A metáfora de Coubertin: Mens fervida in
Transcrição
A metáfora de Coubertin: Mens fervida in
A metáfora de Coubertin: Mens fervida in corpore lacertoso Sebastião Josué Votre | [email protected] Comitê Brasileiro Pierre de Coubertin – UGF, Rio de Janeiro 0 | Abstract This text analyzes the exploration done by Coubertin among the imagistic resources for substituting the words of Juvenal in favor of mens fervida in corpore lacertoso. Three main ideas are put forward by the author in his task of producing literary images: agency, movement and utopia, interlaced in intense imagistic production. The idea of agency flows from the human being to discourse. He, a singular man, associated with the cooperation of other equally singular men, moves a new mental object, under the form of a sentence, and generates a new utopia, in which sport, symbol and continent of the most superior virtues, shows a new future for social groups of young people, both national and continental. The movement of people and ideas is visible through utterances, which transport ideas, as new concrete objects, made from available materials. The utopist dream of an illuminated century, built on the scene of the enthusiastic humanism, is centered on the manifestations of art. The dense poetry of images gets concrete: the referred 763 | mental objects are put in the world in order to accomplish the task of altering representations, building imaginaries and constituting a new humanity. They are marked by anthropomorphism and by technology, anchored in the metaphor and metonymy of the intersection of the mind and the body, young, beautiful and strong, centered on the image of the ‘aero plan’, which flies to the glory. 1 | Introdução Em sua bela crônica de 1911, Mens fervida in corpore lacertoso, arauta de novo imaginário, Pierre de Coubertin personaliza e humaniza os objetos com que lida, que descarta e, sobretudo, os que eleva. Homo discursivus lida com dois artefatos verbais, mais propriamente com duas idéias, expressas por frases lapidares, uma do poeta romano Juvenal, que ele associa ao eugenismo e outra, a um conterrâneo francês, e que ele propõe como frase-síntese do Olimpismo. A frase de Juvenal aparece no contexto do poema em que se fazem referências aos valores da juventude. A frase substituta, que o barão considera apropriada para representar o novo humanismo olímpico, mantém a estrutura da original e troca os adjetivos. Em vez de sana, entra fervida. O lugar de sano, por sua vez, é ocupado por lacertoso. A pequena crônica aqui examinada e comentada ilustra o quando Coubertin estava interessado na dimensão pedagógica e transformadora do esporte, a ponto de propor novo ideal, cunhado em novo lema, à juventude esportiva francesa e européia. Hodiernamente, ele seria considerado | 764 um escritor metafórico, pró-ativo, centrado na corporeidade, a seguirmos a orientação de Lakoff & Johnson (1999). Não poderíamos imaginar mudança mais radical, pois uma mens sana in corpore sano aponta para um tipo de paz e conforto, construído negativamente, isto é, sem doenças, seqüelas ou sofrimento. Uma boa referência, segundo o escritor, para os movimentos higienistas da primeira década do século XX na Europa e mais precisamente em França. Já mens fervida in corpore lacertoso aponta para a exuberância muscular, a serviço de e servida por uma mente em ebulição. A referência à nova juventude universitária da Sorbonne sugere que Coubertin está afinado com os movimentos artísticos, da comédia francesa, com as manifestações da moda e com as novas euforias pelo avanço tecnológico. Sua metáfora-mor é a do avião. Com as duas asas, a mente que fervilha e o corpo que encanta por sua forma e desempenho, pode-se ousar, pode-se mesmo morrer. O que importa, entretanto, é investir, construir-se na nova esteira de glória. O trabalho se encaixa numa linha de pesquisa sobre os textos de Coubertin, uma vez que não há muitas contribuições neste viés no âmbito internacional. Este formato abre possibilidades de outros estudos futuros sobre o inventor do esporte moderno (ou restaurador do atleticismo grego antigo). Entretanto, as referências do Autor, nesta crônica, limitam-se ao lado romano do eugenismo, sem alusão ao legado grego. Concentremo-nos em parte das imagens da lavra do escritor. Ele arrisca remeter ao museu das antigüidades a frase 765 | clássica, que servira (e volta hoje a servir) para marcar os eventos esportivos, as glórias dos atletas e dos heróis. As cinco palavras, que ganharam corpo e espírito e se transformaram em uma entidade simbólica, em que o significante e o significado se articulam à perfeição, são caracterizadas como pobres e velhas, relegadas aos museus antigos, para velhos usuários. Nas palavras dele: Le pauvre vieux mens sana qui avait servi de thème oratoire à tant the faiseurs de discours est relégué au Musée des Antiquités. On n’osera plus le commenter dans les distributions de prix ni chercher dans les cinc mots une sagesse indiscutable. (p. 603) Nova figura brilhante, desta vez uma metonímia antropomorfizada, indica que nosso século ativo (isso é, o século XX, no texto), constata que o dístico de Juvenal está cansado, marcado pela inércia e mediocridade. Num jogo sutil entre o todo e as partes, Coubertin diz que novas palavras tomarão o lugar das velhas. De fato, apenas os adjetivos são trocados, e não por palavras novas, pois que fervida aparece na Eneida, de Vergílio, enquanto lacertoso, no sentido de musculoso, ocorre em Metaformoses, de Ovídio. Mas, evidentemente, o autor está coberto de razão e merece os louros literários. Pois é novo em folha o uso, novo o arranjo, portanto, nova a obra: Des mots nouveaux vont prendre la place de ceux-là. Notre siècle actif s’est avisé soudain qu’il prônait une formule de médiocrité et d’inertie. | 766 A idéia da agência, de um homem que muda o mundo com a força de suas idéias e (diríamos hoje, no contexto do giro lingüístico) com suas palavras. O polígrafo barão tem consciência aguda de seu poder e se refere em terceira pessoa. Denuncia a ausência de valor atlético no adágio antigo e – por isso mesmo – deixa claro que a frase aborrecia o senhor Coubertin. Entretanto, é ele mesmo quem o diz. O que cria um efeito de afastamento e de aproximação. O autor se aproxima da frase e diz que a mesma aborrece a figura pública do nobre senhor, que já decidira que, dali para frente, o espírito seria ardente e o corpo seria trabalhado, arrebatador, sedutor. Le mens sana in corpore sano est excellement hygiénique et nullement athlétique. Cela chagrinait M. de Coubertin. Même quelque chose de bien athlétique ne lui suffisait point. Il voulait de l’olympique. Il avait décidé que l’esprit serait ardent et le corps entraîné. Coubertin mostra como mudou a história: convidou um famoso latinista, M. Morlet, do Liceu Michelet e amante dos esportes, para cunhar nova expressão, que se ajustasse ao novo século. E mens fervida in corpore lacertoso foi cunhada. O novo objeto visual e sonoro, com duas palavras novas, resulta numa fórmula revolucionária, que vai cumprir seu destino, viajar pelo mundo, gravar-se no bronze, eternizar-se e eternizar um novo ideal: “La formule est partie pour faire le tour du monde. La voici gravée sur le bronze en commémoration des dernières manifestations olympiques.” 767 | A oposição entre os higienistas e os atletas é formulada de modo cruel, no sentido original do termo. Primeiro desenhase o mundo dos negativistas, voltados para a busca de um ideal de ausência de sofrimentos psicológicos e físicos, representado ironicamente pelos higienistas de então: “Messieurs les hygiénistes restent leur Mens sana sur les bras et leur corpore sano; s’ils savent s’y prendre, ils en tireront un excellent profit.” Propõe-se então um novo equilíbrio, instável porque dinâmico, em contínua construção, em que fervida e lacertoso se articulam, dialeticamente. O ardor pétulante, no sentido de atrevido, ousado, mas não com o tom negativo que a palavra tem, em português, está presente num corpo que se caracteriza pela souplesse : flexibilidade, elasticidade, destreza, agilidade, que enquadram também as figuras de docilidade, complacência e graça. “Quant à Messieurs les athlètes, ils auront un équilibre bien joli à maintenir entre l’ardeur pétulante de l’esprit et la ‘souplesse’ audacieuse du corps.” O encanto com as novas tecnologias e a fixação na idéia de trajetória, caminho, caminhada para a glória, faz com que o aeroplano entre, em epifania, no fecho da crônica. A combinação da mente e do corpo, revestidos dos novos valores, imbuídos das novas funções, resultará numa entidade quase etérea, sólida mas móvel, mais pesada do que o ar, mas capaz de voar. O efeito estético é estupendo, | 768 com o recurso do advérbio presque, que se aproxima do adjetivo próximo. O aeroplano de então poderia estar mais fadado a cair, talvez, do que o de hoje. Mas o rendimento retórico era o mesmo. Quando não caísse, partiria para a glória, para a consagração. Os que não morrem brilharão como estrelas de primeira grandeza, no balanço entre mente e corpo. É uma epígrafe preciosa para a religião do esporte. “Ce sera presque de l’aéroplane. On en tombe: on s’y tue même mais la fin est glorieuse et, sur les ailes de ce bilanlà, ceux qui ne tombent pas on chance d’atteindre peutêtre les plus hauts sommets du parfait olympisme.” A metáfora do aeroplano é uma das preferidas de Coubertin que, por meio do Comitê Olímpico Internacional (que ele liderou até 1925) outorgou a Santos Dumont um “Diploma Olímpico” (ver Atlas do Esporte no Brasil p. 869). 2| Referências COUBERTIN, P. de. Revue Olympique, juillet 1911, pp. 99-100. DaCOSTA, L. Atlas do Esporte no Brasil. Rio de Janeiro: Shape, 2005. LAKOFF, G. ; JOHNSON, M. Philosophy in the Flesh. The Embodied Mind and its Challenge to Western Thought. New York: Basic Books, 1999. 769 |