Travessia sem fronteiras
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Travessia sem fronteiras
Puerto varas rediscover rome O visual do alto do vulcão Osorno já valeria a viagem, mas o Cruce Andino revela muito mais na região fronteiriça entre Chile e Argentina travessia sem fronteiras Prestes a completar um século, a travessia dos lagos andinos liga Chile e Argentina por uma rota deslumbrante de vulcões nevados, lagos esmeraldinos, bosques que mudam de cor, cachoeiras, pássaros cantores e uma culinária de encher os olhos, o estômago e a alma texto Julio Cruz Neto | fotos Chema Llanos 68 Outubro 2011 Outubro 2011 69 Puerto varas “o turismo na travessia dos lagos iniciou em 1913, após o comércio de lã diminuir” A bucólica Frutillar, sede do belo Teatro del Lago, fica próxima a Puerto Varas, de onde se parte para as águas esmeraldinas do Cruce Andino. Na página ao lado: na primavera e no verão, o verde dos Andes se mistura aos picos eternamente nevados 70 Outubro 2011 E ra uma vez um pequeno felino de um mês e meio, cor de café com leite, que vivia preso em uma jaula onde mal podia espreguiçar-se. Fora capturado na região dos lagos andinos, em algum ponto entre o Chile e a Argentina, e parecia destinado a viver como um animal doméstico ou, pior, exibido como atração turística. Mas o roteiro foi corrigido a tempo. Com um mês e meio, foi comprado por um bom samaritano que só queria devolvê-lo aos bosques. Mas não foi mais embora. Adotou seu libertador e passou a acompanhá-lo por toda a parte. Passeava de carro, nadava junto, dava a patinha — que logo virou patona —, deitava a cabeça sobre a perna dele para descansar. Comia do bom e do melhor. Embora fosse um puma, animal retratado como perigoso nos documentários, nunca provocou um arranhão sequer. Tanta confiança só se concede a quem quer bem aos animais, conversa com eles, não os teme. É o caso de Alberto Schirmer Roth, um senhor acostumado a cuidar de pássaros doentes, como os 13 condores que já passaram pela sua “enfermaria” antes de voltar a voar, e descobrir lugares onde seres humanos nem sonham existir. Don Alberto, como é conhecido, vive na Região dos Lagos, em um vilarejo chileno minúsculo chamado Peulla, de cento e poucos moradores, ponto central da travessia entre Puerto Varas, no Chile, e Bariloche, na Argentina, feita parte de barco, parte de ônibus. Dono dos dois hotéis do local e de toda a estrutura turística do “Cruce Andino”, ele é uma espécie de guardião deste que é um dos lugares mais deslumbrantes da América do Sul. O viés turístico da travessia dos lagos iniciou em 1913 pelas mãos de Ricardo Roth, seu avô – depois que sua utilidade na exportação de lã caiu em desuso. Chegou a ter 60 mil turistas por ano em 2007, sendo cerca de 30% brasileiros. Outubro 2011 71 Puerto varas Mas a crise econômica, a gripe A (H1N1) e o terremoto de 2010 fizeram o número despencar pela metade. As pessoas não sabem o que estão perdendo. Não conhecem, por exemplo, a cor de esmeralda do Lago de Todos os Santos, em uma tonalidade que quase chega a confundir o limite entre a água e a mata; a força da água que despenca nos Saltos do Petrohué; os montes nevados que se revelam pelo caminho; ou a vegetação exuberante dos bosques, que vai alaranjando e avermelhando conforme se olha mais para o alto dos paredões que margeiam o lago. Os animais, discretos, não costumam dar o ar da graça. Mas não é tão difícil avistar pássaros como o condor, o martim-pescador e o chucao, o tenor da região, pequenino e de cordas vocais potentes, com um repertório vasto de melodias. Parte dessa boa impressão depende de um céu limpo e um sol raiando, que intensifica os contrastes e ajuda a aplacar 72 Outubro 2011 o vento frio. Não é tarefa fácil em uma região onde chove 3.500 mm ao ano, bem mais que na Amazônia. Mas uma boa pedida é evitar os meses de inverno, os preferidos dos brasileiros por causa da neve. Independentemente da estação, a dica mais importante é não fazer a travessia em um único dia. De setembro a abril, quando os dias são mais longos, é possível sair de Puerto Varas pela manhã e chegar a Bariloche para o jantar. Mas é um desperdício não pernoitar em Peulla e curtir o aconchego do vilarejo e da paisagem que o cerca; cavalgar cruzando rios com água quase no pé; praticar arvorismo; admirar a boiada pastando no prado extenso ao pé da montanha; conhecer a escolinha onde 11 alunos são divididos por baias em uma única sala, de acordo com a idade; e apreciar um anoitecer de outono, com o céu ainda azul emoldurando a montanha já completamente escura. “é um pecado não dormir em peulla e curtir o aconchego do vilarejo” No museu (abaixo), na escolinha de Peulla e nas casas de madeira (na página ao lado), o estilo e o modo de vida dos imigrantes alemães se manifesta de várias formas Outubro 2011 73 Puerto varas “vejo um papel à distância, porque sei que sua cor não pertence a natureza” Alberto Roth (acima) é o guardião de Peulla, localidade onde se pode cavalgar, praticar esportes de aventura ou simplesmente contemplar a riqueza da fauna que varia conforme a altitude 74 Outubro 2011 “Aqui, os turistas relaxam. Há senhores de 80 anos que fazem arvorismo”, conta Don Alberto. Mas muitos param só para almoçar e seguem viagem. “As pessoas andam viajando que nem japoneses. Passam tão rápido pelos lugares que depois passam o ano todo discutindo com a família de onde são as fotos. Isso não é turismo.” Claro que ele tem interesse em travessias mais longas, mas Alberto não é do tipo marqueteiro que usa jornalista para mandar recado e, afinal, sua opinião faz sentido. A primeira vista da travessia é a do vulcão Osorno (2.660 metros de altura), inativo há quase dois séculos e deslumbrante desde sempre, fazendo lembrar o Monte Fuji, no Japão. O formato cônico quase perfeito deve-se às 40 crateras situadas ao redor da base. As erupções ocorreram ali, o que preservou o topo. Depois aparece outro vulcão, cujo nome não poderia ser mais autoexplicativo: Puntiagudo (2.493 metros). Mais pontudo que o Osorno, tem o topo irregular e um pouco inclinado, qual uma Torre de Pisa dos Andes. Há quem diga que ficou assim após o terremoto de 1960. Outros afirmam que foi a última erupção, ocorrida bem antes. Viagem tem muito disso. Nativos contam histórias com uma certeza que parece protocolada em cartório, mas sempre pode surgir um “ou não”. É o caso do chucao, que uns dizem ter sete tipos diferentes de cantos, outros 24... Seja como for, o que importa é que o canto deste pajarito é a trilha perfeita para apreciar os vulcões e toda a paisagem. O monte Tronador também dá o ar da graça. Tem quase 3,5 mil metros, mas tamanho não é necessariamente documento. Mais vale ter um bom ponto de observação. Prova disso é a cascata Yefe. De longe parece um filetinho d’água, mas peça para o capitão do catamarã passar perto e repare no capricho de seus inúmeros degraus. “Gosto de todo o trajeto, porque a cada dia que passa, ele é diferente. Hoje tem aquelas nuvens ali, à meia altura”, diz o capitão Jorge Araya, 65 anos, apontando na direção do vulcão. “Amanhã, podem não estar ali, ou pode ter caído mais neve.” Havia um tempo em que a região dos lagos era tão inóspita que nem os nativos viviam ali, embora mapuche signifique “gente da terra”. Para povoá-la, foram recrutados colonos da então Confederação Germânica, que vivia uma revolução – a Alemanha propriamente dita ainda não existia. Como em toda guerra, muitos queriam fugir. E como o clima no sul do Chile tem um ar germânico, o governo de Manuel Montt resolveu incentivar a migração. “O Chile precisava de gente para colonizar a região e os alemães precisavam de trabalho e dinheiro, então ganharam Outubro 2011 75 Puerto varas “o legado do povo alemão é visível na arquitetura gastronomia, e cultura” O observador curioso vai se interessar não só pelas belas flores e picos nevados, mas também pela natureza morta dos salmões após a interminável e fatal viagem para a desova. Na página ao lado: à luz do crepúsculo e em meio a névoa, os Andes adquirem um clima envolvente terras aqui”, diz Pedro Felmer, dono do museu Antonio Felmer – Nuestras Raices. “Quando chegaram, descobriram que não havia nada além de bosque”. Era o ano de 1850. A Revolução Industrial se espalhara pelo mundo, a carga horária nas fábricas caía para perto das 50 horas semanais (um avanço naqueles tempos), Darwin publicara A Origem das Espécies e até o Brasil inaugurava sua primeira ferrovia, em Petrópolis, no Rio de Janeiro. Enquanto isso, os colonos alemães trabalham dia e noite para construir suas casas em um terreno inóspito e aprendem estratégias rudimentares de sobrevivência, como fazer carne de sol, por exemplo. “Muito simples. Basta cortar a carne em fatias finas, salgar e pendurar ao sol ou fumaça para secar”, ensina um nativo, quando os recém-chegados se deram conta de que não havia sequer recipientes grandes o suficiente para salgar carne e armazená-la. Quando aportam ali, em um veleiro, os primeiros 70 colonos descobrem que não vão ficar exatamente onde esperavam, que não há nenhuma vila à beira do lago e o único abrigo disponível é um galpão no meio da mata, sem divisória alguma e sem forro. São obrigados a racionar comida, fazer fila para tomar o desjejum, realizar trabalhos penosos e enfrentar várias outras privações e provações. Mas o povo germânico é batalhador, criativo e caprichoso, como provam os museus da região e o legado arquitetônico, gastronômico e cultural. Sem falar na saga de Ricardo Roth, filho de um paleontólogo suíço “importado” pelo governo argentino no final do século 19. Ricardo é um aventureiro que se 76 Outubro 2011 mandou de casa após concluir os estudos. Não entendia nada do campo, mas queria conhecer a natureza into the wild. Percorreu toda a Patagônia e instalou-se na região dos lagos, onde implantou a primeira turbina para geração de energia hidrelétrica da região e criou a primeira estação de rádio, que os moradores sintonizavam para saber, por exemplo, o número de passageiros a bordo de um barco. Era um visionário, lembra o neto Alberto. “Quando chegou aqui, as pessoas queimavam os bosques para fazer pasto. Ele entrou em pânico porque o local ia perder o valor turístico.” Recorreu ao explorador argentino Francisco Pascasio Moreno, que o havia convidado para participar das discussões fronteiriças entre Chile e Argentina. Perito Moreno, como era conhecido, sugeriu que ele lutasse pela criação do primeiro parque nacional do Chile – o que Ricardo, homem refinado e culto, conseguiu em 1925, após muito lobby em Santiago. O parque leva o nome do homem que coordenara a entrega de terras aos colonos, Vicente Pérez Rozales. Seu filho, Rui Roth, foi o primeiro homem a chegar ao cume do Puntiagudo, e morreu na ocasião. Gastou boa parte do gene aventureiro do velho Ricardo, deixando para Alberto um legado diferente. “O que eu mais aprendi com meu avô foi a tranquilidade com que fazia as coisas e como as planejava”. Além do olhar apurado e do faro fino para os negócios e para a vida selvagem. O olhar serve para zelar pelo meio ambiente. “Enxergo um pedaço de papel a distância, porque percebo que aquela cor não pertence à natureza.” E o faro, para Outubro 2011 77 Puerto varas apreciar lugares que poucos conhecem ou dão o devido valor, como o Cerro Rigi, para ele o lugar mais interessante do Cruce Andino, bem na fronteira. “Você sai do lago e sobe 700 metros por uma trilha. Lá em cima, vê de perto as flores de altitude, que crescem em várias cores, com aromas incríveis. Você sente cheiros que nunca sentiu e ficam gravados na memória. Quando você vê de novo a mesma planta, já sabe o aroma que vai sentir.” Esta montanha só conhece quem vai com tempo para perder e se perder. Ou, eventualmente, quem descola uma carona no avião-anfíbio de Don Alberto. Mas quem viaja no cronograma corrido da travessia também volta para casa com a memória farta de boas lembranças. Um bom exemplo é o trecho entre Peulla e Puerto Frias, a primeira parada no lado argentino. A trilha mais fechada, com cachoeiras e vegetação densa, muita samambaia se derramando sobre o caminho, lembra um pouco a nossa Mata Atlântica. Mas há inúmeras peculiaridades, como o alerce (árvore que os alemães usaram e abusaram na colonização, e agora não pode mais ser derrubada, pois cresce apenas um centímetro a cada 15 anos); 78 Outubro 2011 “o lago frías é ideal para um pintor fincar seu cavalete e esquecer da vida” Num lindo dia de sol, o Lago Frías, em território argentino, é sério concorrente ao título de visual mais bonito de toda a travessia dos Lagos Andinos A Lonely Planet viajou a convite da empresa aérea LAN, da companhia de cruzeiro Cruce Andino, e dos hotéis Cabañas del Lago, Cumbres Patagónicas, Solace e Hotel Patagónico a amancay (flor de verão sagrada para os mapuches, que tinham hábito de batizar com este nome suas filhas mais velhas); a lenga (planta com folhas amarelas e laranjas, que ganham tom avermelhado no outono antes de cair); além de animais como o puma, veado, javali, bisão e, mais fáceis de ver e ouvir, os pássaros. Já Puerto Frias, com sua vista bucólica do Lago Frias, é o lugar ideal para um pintor fincar seu cavalete e esquecer da vida, principalmente se o céu estiver azul e todos os matizes do bosque refletidos na superfície. Quem sabe um dia desses algum artista plástico aviste o puma de Don Alberto, que após cinco anos vivendo praticamente como um gato de estimação, resolveu emancipar-se e nunca mais voltou para casa. “Sempre lembro dele, eu sofro. Vivi todas as etapas até a maturidade”, lembra este emotivo senhor de 72 anos. “É um animal sentimental”. Desconfio que Don Alberto seria capaz de dar seu hotel, com todos os hóspedes dentro, por uma tela bem pintada do felino, como uma espécie de prova de que ele continua se espreguiçando livremente pelas paisagens andinas. O nome dele é Pangui. Quer dizer puma, na língua mapuche.