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Apontamentos para a concretização do princípio da eficiência do processo. Fredie Didier Jr.1 A última versão do projeto de novo Código de Processo Civil, apresentada pelo deputado Sérgio Barradas Carneiro, em novembro de 2012, ratificou a proposta apresentada ainda no Senado, no sentido de prever enunciado expresso consagrando o princípio da eficiência do processo como uma norma fundamental processual. O art. 6º do projeto prescreve: “Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência”. Este pequeno ensaio tem o objetivo de apresentar algumas ideias para a concretização desta norma, que, por recente, carece de densidade. O processo, para ser devido, há de ser eficiente. O princípio da eficiência, aplicado ao processo, é um dos corolários da cláusula geral do devido processo legal2. Realmente, é difícil conceber como devido um processo ineficiente. Mas não só. Ele resulta, ainda, da incidência do art. 37, caput, da CF/883. Esse dispositivo também se dirige ao Poder Judiciário – como indica, aliás, a literalidade do enunciado, que fala em “qualquer dos Poderes”. 1. 2. 3. Livre-docente (USP), Pós-doutorado (Universidade de Lisboa), Doutor (PUC/SP) e Mestre (UFBA). Professor-adjunto de Direito Processual Civil da Universidade Federal da Bahia. Professor-coordenador da Faculdade Baiana de Direito. Membro dos Institutos Brasileiro e Ibero-americano de Direito Processual, da Associação Internacional de Direito Processual e da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo. Advogado e consultor jurídico. www.frediedidier.com.br. Assim, também, CUNHA, Leonardo José Carneiro da.. “A previsão do “princípio da eficiência” no projeto do novo Código de Processo Civil brasileiro”. Artigo inédito, gentilmente cedido pelo autor. Art. 37 da Constituição Federal: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:” 433 Fredie Didier Jr. Assim, o princípio do processo eficiente é resultado de uma combinação de dois dispositivos da Constituição Federal: art. 5º, LIV, e art. 37, caput. Há quem defenda que essa norma é um postulado, não um princípio, pois é norma que serve à aplicação de outras normas (princípios e regras)4. É uma metanorma, que estrutura o modo de aplicação de outras normas. Postulado é, então, uma norma com estrutura e finalidade diversas, segundo o pensamento de Ávila. Para manter a coerência de seu pensamento, o autor opta por considerar a eficiência administrativa como um postulado. Optamos pela menção a “princípio da eficiência”, entretanto, por duas razões: a) o texto constitucional o menciona expressamente; b) norma é sentido que se dá a um texto; do dispositivo constitucional, pensamos que tanto se possa extrair um postulado como um princípio – uma norma que vise à obtenção da eficiência, no caso uma gestão processual eficiente, como estado de coisas a ser alcançado. O princípio repercute sobre a atuação do Poder Judiciário em duas dimensões: a) Administração Judiciária e b) a gestão de um determinado processo. a) Sobre a Administração Judiciária. O Poder Judiciário também pode ser encarado, sob uma perspectiva, como ente da administração – e é exatamente por isso que o art. 37 da CF/88 também a ele se refere. A Administração Judiciária – administração dos órgãos administrativos que compõem o Poder Judiciário – deve ser eficiente. A criação do Conselho Nacional de Justiça, pela EC nº 45/2004, corrobora essa dimensão do princípio da eficiência administrativa. A simples leitura do § 4º do art. 103-A é suficiente para demonstrar o que se afirma: “§ 4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura: I – zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos 4.ÁVILA, Humberto. “Moralidade, razoabilidade e eficiência na atividade administrativa”. Revista Eletrônica de Direito do Estado. Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº 4, 2005, p. 24. Disponível em www.direitodoestado.com.br, acesso em 22.12.2012, às 06h29. Nesse sentido, COSTA, Eduardo José da Fonseca. “As noções jurídico-processuais de eficácia, efetividade e eficiência”. Revista de Processo. São Paulo: RT 2005, nº 121, item 6, p. 292-296; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. “A previsão do “princípio da eficiência” no projeto do novo Código de Processo Civil brasileiro”. Artigo inédito, gentilmente cedido pelo autor. 434 Apontamentos para a concretização do princípio da eficiência do processo. regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências; II – zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União; III – receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa; IV – representar ao Ministério Público, no caso de crime contra a administração pública ou de abuso de autoridade; V – rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano; VI – elaborar semestralmente relatório estatístico sobre processos e sentenças prolatadas, por unidade da Federação, nos diferentes órgãos do Poder Judiciário; VII – elaborar relatório anual, propondo as providências que julgar necessárias, sobre a situação do Poder Judiciário no País e as atividades do Conselho, o qual deve integrar mensagem do Presidente do Supremo Tribunal Federal a ser remetida ao Congresso Nacional, por ocasião da abertura da sessão legislativa”. O princípio, neste sentido, é norma de direito administrativo, sem qualquer especificidade digna de nota pelo fato de ser dirigido ao Poder Judiciário. Essa dimensão do princípio da eficiência não será examinada neste ensaio. b) A dimensão do princípio da eficiência que ora nos interessa é a outra. O princípio da eficiência, aplicado ao processo jurisdicional, impõe a condução eficiente de um determinado processo pelo órgão jurisdicional. O princípio, aqui, dirige-se ao órgão do Poder Judiciário, não na condição de ente da administração, mas, sim, de órgão jurisdicional, responsável pela 435 Fredie Didier Jr. gestão de um processo (jurisdicional) específico. Assim, é norma de direito processual. A compreensão da eficácia processual do princípio da eficiência impõe, ainda, que se levem em consideração algumas premissas. i) Esse princípio se relaciona com a gestão do processo. O órgão jurisdicional é, assim, visto como um administrador: administrador de um determinado processo. Para tanto, a lei atribui-lhe poderes de condução (gestão) do processo. Esses poderes deverão ser exercidos de modo a dar o máximo de eficiência ao processo. Trata-se, corretamente, o serviço jurisdicional como uma espécie de serviço público5. Para a compreensão do princípio do processo jurisdicional eficiente, é imprescindível, então, o diálogo entre a Ciência do Direito Processual e a Ciência do Direito Administrativo. Essa é a primeira premissa: o princípio da eficiência dirige-se, sobretudo, a orientar o exercício dos poderes de gestão do processo pelo órgão jurisdicional, que deve visar à obtenção de um determinado “estado de coisas”: o processo eficiente. ii) A aplicação do princípio da eficiência ao processo é uma versão contemporânea (e também atualizada) do conhecido princípio da economia processual6. Muda-se a denominação, não apenas porque é assim que ela aparece no texto constitucional, mas, sobretudo, como uma técnica retórica de reforço da relação entre esse princípio e a atuação do juiz como um administrador7 – ainda que administrador de um determinado processo8. 5.CADIET, Loïc, JEULAND, Emmanuel. Droit Judiciaire Privé. 7ª ed. Paris: LexisNexis, 2011, p. 35 e 38; CAPONI, Remo. “O princípio da proporcionalidade na justiça civil: primeiras notas sistemáticas”. Revista de Processo. São Paulo: RT, 2011, nº 192, p. 400-401. 6. CONRADO, Paulo César. Introdução à teoria geral do processo civil. São Paulo: Max Limonad, 2003, p. 58 e segs. 7. A eficiência como uma qualidade que contemporaneamente se busca atribuir à atividade administrativa – que se pretende uma administração gerencial – foi bem percebida por CUNHA, Leonardo José Carneiro da.. “A previsão do “princípio da eficiência” no projeto do novo Código de Processo Civil brasileiro”. Artigo inédito, gentilmente cedido pelo autor. 8. Em sentido diverso, Eduardo José da Fonseca Costa: “O postulado da eficiência processual é norma sobre a produção de outras normas, é norma de segundo grau, norma que imputa ao juiz o dever estrutural de arquitetar criativamente regras procedimentais individuais e concretas que, uma vez efetivadas, produzam o estado fático desejado pelos princípios que as inspiram. Já o princípio da economia processual é norma de comportamento, é norma de primeiro grau, é norma que fixa como fim prático desejado um processo civil em que se obtém o máximo de proveito com o mínimo de atividade dos sujeitos envolvidos. É bem verdade que a doutrina hodierna vem tentando dar ao princípio da economia processual um novo apelido, chamando-o de “princípio da eficiência”. Trata-se de modernice dispensável, porém. A inovação terminológica tão-somente se justifica se 436 Apontamentos para a concretização do princípio da eficiência do processo. iii) Exatamente por conta disse, pode-se sintetizar a “eficiência”, meta a ser alcançada por esse princípio, como o resultado de uma atuação que observou dois deveres: a) o de obter o máximo de um fim com o mínimo de recursos (efficiency); b) o de, com um meio, atingir o fim ao máximo (effectiveness)9. Eficiente é a atuação que promove os fins do processo de modo satisfatório em termos quantitativos, qualitativos e probabilísticos. Ou seja, na escolha dos meios a serem empregados para a obtenção dos fins, o órgão jurisdicional deve escolher meios que os promovam de modo minimamente intenso (quantidade – não se pode escolher um meio que promova resultados insignificantes) e certo (probabilidade – não se pode escolher um meio de resultado duvidoso), não sendo lícita a escolha do pior dos meios para isso (qualidade – não se pode escolher um meio que produza muitos efeitos negativos paralelamente ao resultado buscado) 10. A eficiência é algo que somente se constata a posteriori: não se pode avaliar a priori se a conduta é ou não eficiente. Assim como o princípio da adequação, o princípio da eficiência impõe ao órgão jurisdicional o dever de adaptar ou “arquitetar”, na expressão de Eduardo José da Fonseca Costa, regras processuais, com o propósito de atingir a eficiência. Mas enquanto a adequação é atributo das regras e do procedimento, a eficiência é uma qualidade que se pode atribuir apenas ao procedimento – encarado como ato11. Embora se conceba um procedimento a o inovador estiver cônscio da grave distinção entre “princípio da eficiência” e “postulado da eficiência”. Todavia, a semelhança entre estas locuções só traz mais perturbações, motivo pelo qual a antiquada “economia processual” ainda é preferível à “eficiência” para designar o princípio”. (COSTA, Eduardo José da Fonseca. “As noções jurídico-processuais de eficácia, efetividade e eficiência”, cit., p. 294.) 9.ÁVILA, Humberto. “Moralidade, razoabilidade e eficiência na atividade administrativa”, cit., p. 19. 10.ÁVILA, Humberto. “Moralidade, razoabilidade e eficiência na atividade administrativa”, cit., p. 23-24. 11. Em sentido diverso, Eduardo José da Fonseca Costa, para quem a eficiência é um atributo das regras. O autor entende que não existe um princípio da eficiência, mas, sim, um postulado; esse postulado “não impõe o dever jurídico de promover-se um fim, mas estrutura, mediante a produção de regras jurídicas, a aplicação do dever de promover-se os fins que as infundiram. Não prescreve diretamente um comportamento, mas sim uma maneira de elaboração das regras, em que se concorda ao máximo o conteúdo delas com os valores que lhe justificaram a produção e que devem estar nelas imbricados. Enfim, o postulado da eficiência é um dever de estruturação, que estabelece uma vinculação entre princípios e regras jurídicas e que estabelece uma relação de otimização no processo de concretização dos princípios pelas regras. Definitivamente, quanto mais a criação duma regra estiver centrada na finalidade que dá suporte ao seu criador, ou nos princípios que lhe devam estar subjacentes, tanto mais eficiente será essa regra”. (COSTA, Eduardo José da Fonseca. “As noções jurídico-processuais de eficácia, efetividade e eficiência”, cit., p. 293.) 437 Fredie Didier Jr. priori (em tese) adequado – um procedimento definido pelo legislador, com a observância dos critérios objetivo, subjetivo e teleológico –, um procedimento eficiente é inconcebível a priori: a eficiência resulta de um juízo a posteriori, como se disse, sempre retrospectivo. Note que, assim, podemos distinguir eficiência e efetividade. Efetivo é o processo que realiza o direito afirmado e reconhecido judicialmente. Eficiente é o processo que atingiu esse resultado de modo satisfatório, nos termos acima. Um processo pode ser efetivo sem ter sido eficiente – atingiu-se o fim “realização do direito” de modo insatisfatório (com muitos resultados negativos colaterais e/ou excessiva demora, por exemplo). Mas jamais poderá ser considerado eficiente sem ter sido efetivo: a não realização de um direito reconhecido judicialmente é quanto basta para a demonstração da ineficiência do processo. Estabelecidas as premissas, podemos, agora, visualizar algumas aplicações do princípio da eficiência no processo. I) O dever de eficiência impõe-se na escolha do meio a ser utilizado para a execução da sentença (art. 461, § 5º, CPC). O meio executivo deve promover a execução de modo satisfatório, nos termos mencionados acima. II) O princípio da eficiência exerce uma função interpretativa. Os enunciados normativos da legislação processual devem ser interpretados de modo a observar a eficiência. Dispositivos relacionados à suspensão do processo, por exemplo, que impõem um limite temporal máximo para a suspensão (art. 265, § § 3º e 5º, CPC), devem ser interpretados com temperamento: em certas situações, o prosseguimento do processo, após o vencimento do prazo máximo de suspensão, é medida que pode revelar-se extremamente ineficiente, sob o ponto de vista da administração do processo. III) Do princípio da eficiência pode-se extrair a permissão de o órgão jurisdicional estabelecer uma espécie de “conexão probatória” entre causas pendentes, de modo a unificar a atividade instrutória, como forma de redução de custos, mesmo que isso não implique a necessidade de julgamento simultâneo de todas elas. Nessa linha, é difícil demarcar as áreas de incidência dos princípios da adequação – sobretudo a adequação teleológica – e da eficiência, que acabam por confundir-se. O próprio Eduardo José da Fonseca Costa entende que o postulado da eficiência opera sobre a criação de regras jurídicas ainda não existentes (cit., p. 293) – exatamente o que aqui se defende pelo nome de princípio da adequação. Essa é mais uma razão para relacionarmos a eficiência à economia processual. 438 Apontamentos para a concretização do princípio da eficiência do processo. Imagine-se o caso em que um mesmo fato é afirmado em várias causas pendentes – nocividade de um determinado produto, por exemplo –, que não podem ser reunidas para julgamento simultâneo, porque cada uma delas possui, ainda, suas próprias peculiaridades fáticas. Pode o órgão jurisdicional, neste caso, determinar uma perícia única, cujos custos seriam repartidos entre os sujeitos interessados de todos os processos. IV) O princípio da eficiência é fundamento para que se permita a adoção, pelo órgão jurisdicional, de técnicas atípicas (porque não previstas expressamente na lei) de gestão do processo, como o calendário processual (definição de uma agenda de atos processuais, com a prévia intimação de todos os sujeitos processuais de uma só vez), ou outros acordos processuais com as partes, em que se promovam certas alterações procedimentais, como a ampliação de prazos ou inversão da ordem de produção de provas. 439