A Psiquiatria na rota de Ribeiro Sanches

Transcrição

A Psiquiatria na rota de Ribeiro Sanches
A Psiquiatria na rota de Ribeiro Sanches
José Pacheco
Breve história biográfica e científica
António Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783) era «De família judaica, nasceu em
Penamacor e estudou Filosofia e Medicina em Coimbra, tendo sido doutorado em
Salamanca [em 1724]. Exerceu clínica na Guarda e em Lisboa, assim como em
Benavente. Pouco depois foi para Montpellier e Marselha e daí seguiu para Leiden
(Holanda) onde frequentou cursos do célebre fisiologista Boerhaave» (Macedo, 1998).
De facto em 1726 exilou-se em França onde, para além das cidades já referidas, também
esteve em Bordéus e pouco depois viajou por Itália (Génova e Pisa) e Inglaterra
(Londres) até ter ido para a Holanda, em 1729, para frequentar o curso de Medicina,
orientado por Boerhaave (1668-1738).
Posteriormente foi para a corte russa, porque «Deixou tão boa impressão que o
professor de Leiden indicou o seu nome para ir para a Rússia a pedido da czarina Anna
Ivanova [1693-1740]. Por lá ficou doze anos e adquiriu grande fama como médico da
corte e do exército. Tornou-se membro da Academia Real de S. Petersburgo assim
como da Academia das Ciências de Paris, cidade que escolheu para residir depois de
voltar da Rússia [onde esteve entre 1731 e 1747] e onde veio a falecer» (Macedo, 1998).
Filinto Elísio (1734-1819), poeta e exilado em Paris, por fuga à Inquisição «… fez
imprimir o Elogio que dele compôs o insigne anatomista parisiense Vicq-D’Azir [17481794]» e dedicou-lhe uma ode:
Tu como Sócrates podes, com Aurélio
Adoçar as mordazes amarguras.
Que os deuses (quase digo que invejosos)
Te enviam pelo tempo.
Para além da sua origem judaica, depreciativamente chamado estrangeirado, e por isso
só muito tarde reconhecida a sua contribuição para a ciência e para a educação em
Portugal. Influenciado pelo enciclopedismo, defendeu o progresso científico, numa
perspectiva eclética, em que apesar de propugnar uma visão naturalista, em oposição à
visão teológica, considerava-a, tendo mesmo contactos regulares com os jesuítas da
China.
Dele afirmou Sobral Cid (1907)1, sobre o seu papel na renovação do ensino
universitário: «A contextura estatual da nossa Universidade é obra do Marquês, mas o
espírito pedagógico que animou a Universidade reformada, foi Ribeiro Sanches, o
insigne médico e pedagogo português, que lho incutiu do seu exílio de Paris. Nas
célebres Cartas sobre a Educação Civil e Política da Juventude, dirigidas ao principal
Mendonça2, se inspirou o Marquês de Pombal [1699-1782] para a criação do Colégio
1
Aparentemente desconhecia que Ribeiro Sanches tivesse deixado obra no campo da Psiquiatria.
Na época, principal era um título honorífico e hierárquico usado no contexto religioso, universitário ou
político. O único principal que encontramos foi José Francisco Miguel António de Mendonça (17861818) que foi patriarca de Lisboa e teve, muito mais tarde, um papel relevante na reforma da
2
dos Nobres, onde pela primeira vez foi introduzido em Portugal o ensino científico
moderno. Porventura estas cartas representaram uma primeira e longínqua sugestão
pedagógica da reforma de 1772, e certo é que a organização dos novos estudos, em
grande parte do que diz respeito à Faculdade de Filosofia e completamente quanto à
Medicina, assentaram no Método para estudar a Medicina e apontamentos para a
fundação duma Universidade Real, que Ribeiro Sanches elaborou em Paris, a pedido do
Marquês, e enviou para Lisboa por intermédio do embaixador [em Haia] Luís da Cunha
[1662-1749]» (p.327). Contudo, como « … era mal visto na corte, e o Marquês de
Pombal que o sabia mas não queria desaproveitar os seus conselhos e indicações,
apresentou maliciosamente com o pseudónimo de João Sachetti3 as memórias e
relatórios que Ribeiro Sanches enviara de Paris para a elaboração dos novos estatutos»
(p.328).
No campo da medicina escreveu diversas obras sobre doenças venéreas, métodos de
aprender e estudar medicina e cirurgia e até uma memória sobre os banhos de vapor na
Rússia4. No Tratado da Conservação da Saúde dos Povos (1756) apresentou indicações
universidade. Pode admitir-se que se tenha inspirado em Ribeiro Sanches, ainda que este nunca lhe
pudesse ter dirigido as Cartas; o mais provável é que Sobral Cid se quisesse referir ao principal Salema,
então ministro português em Paris e a quem Ribeiro Sanches as enviou, mas na década de 1730 (ver José
Costa Pereira, «Vectores Culturais Portugueses de Seiscentos e Setecentos» in José Hermano Saraiva
(Ed.), História de Portugal, Publicações Alfa, Lisboa, Volume 5, 1982, Lisboa.
3
Eventualmente alude-se aqui ao médico alentejano Sachetti Barbosa, que foi nomeado pelo marquês de
Pombal para fazer um plano de reforma, mas só aproveitou algumas das ideias de Ribeiro Sanches, que
teria ficado irritado com o seu colega de profissão.
4
Para Ribeiro Sanches os banhos a vapor eram importantes para a conservação da saúde e para tratar
doenças (fadiga, dor, edema, peso na cabeça, indisposições e resfriamentos) e eram baratos (inclusive
havia banhos públicos), fáceis e eficazes. De um modo geral, provocavam transpiração, sudação, conforto
e sonolência. Depois do banho a pessoa devia meter-se na cama para induzir transpiração. Criticava os
banhos de limpeza em tinas, apesar de aconselhados por colegas, porque «… o mal que causam muitas
vezes estes banhos de limpeza, é relaxar, enfraquecer, inervar as partes sólidas de todo o corpo… porque
perturbam a circulação do sangue e provocam catarros, dor de cabeça».
Outros tipos de banho tinham sempre o problema do ar ou do vapor não serem renovados: «As estufas da
Alemanha e as dos banhos de água quente, tanto de Itália como do resto da Europa, relaxam sempre o
sistema de sólidos…», ao contrário do banho turco ou do usado em Londres que não enfraqueciam o
corpo. Para além disso, «… a respiração de várias pessoas fechadas na mesma divisão, sem comunicação
com o exterior é extremamente prejudicial, pois que o suor e sobretudo a respiração são matérias não
assépticas…».
O banho russo, que seria uma síntese feliz entre o romano e o turco, era sequenciado por uma massagem
com sabão e folhas ou ramos de tília, amolecidos em água quente. Todos os outros tipos de banho
também eram associados a massagens com pomadas, óleos, argila, aguardente com rábano e águas de
cheiro, mas Ribeiro Sanches desaconselhava o seu uso. Do ponto de vista do racional provocariam uma
«febre moderada ou leve» ou seja um aumento do ar e do fogo no nosso corpo que eram superiores aos
outros banhos. De resto, este pressuposto, ainda surgia mais claramente expresso, quando afirmava: «O
que é o sabão? É fogo e ar concentrados e condensados nos sais salinos, nos óleos ou gorduras, ou na cal.
As gorduras da Ásia, os aromáticos, as raízes e as cascas amargas, os espíritos voláteis, alcalinos e
oleosos contêm uma maior quantidade de fogo e de ar do que o resto dos medicamentos que encontramos
na Europa…».
Em qualquer dos casos tinham contraindicações. Nalgumas pessoas podiam provocar dor de cabeça ou
sede excessiva e, nesse caso, não se devia beber porque era perigoso. A pessoa só devia entrar quatro a
cinco horas após a refeição.
Os banhos a vapor eram interditos na gravidez e o excesso de banhos podia provocar dificuldades sexuais,
alterações menstruais e esterilidade. Se fossem associados ao uso de sangria por ventosas escarificadores
também podia provocar amenorreia. No entanto eram fundamentais nos cinco dias a seguir ao parto,
prevenindo a dor, melhorando a circulação sanguínea, relaxando a pele, prevenindo várias doenças,
sobretudo o «vírus venéreo». O banho a vapor poderia minorar o drama da morte de 30% das parturientes
nas grandes cidades europeias e, para além disso, as mulheres «… conservariam a sua beleza, as suas
sobre higiene e profilaxia das doenças5 e, mais tarde, indicou uma definição de doente:
«… aquele que não pode fazer exercício nem executar a menor função da vida sem
repugnância, nem fadiga de todo o corpo ou de algumas das suas partes, com dor, fadiga
ou mal estar…» que, como se depreende, valorizava a incapacitação.
Terá ainda um lugar na história da psicologia e da psiquiatria porque foi dos primeiros6,
nos tempos modernos, a reivindicar que o campo das perturbações psíquicas e
emocionais devia regressar à medicina, depois de, desde Galeno (129/131-200-217), ter
ficado sob o controlo da teologia. Nesta área, a sua obra fundamental é a Dissertação
sobre as Paixões da Alma7, escrita originalmente em francês e que, apesar de ser um
trabalho notável para o seu tempo, no plano da compreensão das perturbações psíquicas,
demorou mais de duzentos anos para ser vertido para a língua portuguesa.
É possível que a Dissertação sobre as Paixões da Alma tenha resultado do facto de
sofrer de uma grave fobia social. Como diz Cordeiro (1999), no prefácio à edição
portuguesa, «…a tentativa de explicar os seus próprios problemas emocionais que
começaram, a partir de certa altura, a perturbar a sua relação com os outros, incluindo a
sua relação com os doentes» (p. IX). Quando a escreveu havia catorze anos que evitava
os amigos e até estar com uma criança lhe era penoso e difícil: «Por esta razão deixei a
prática da Medicina. Logo que um enfermo me começava a relatar a sua enfermidade,
logo caía e caio nos sintomas referidos de tal modo que fico incapaz de perceber nem de
formar juízo sobre o que queria saber» (p. 36).
Síntese sobre a Dissertação sobre as Paixões da Alma
graças e os seus dentes». «Logo que tive a confirmação do sucesso desta prática na Rússia, o meu método
de tratar e de curar as mulheres e as damas depois do parto, era de as manter na cama, de se agasalharem
bem, as mãos e os braços sempre debaixo dos cobertores tendo a cabeça coberta; faziam-lhes tomar as
bebidas e os alimentos sempre quentes, e manterem o corpo a transpirar pelo menos num estado de
transpiração definido durante os cinco primeiros dias: não me arrependo de ter aprendido este método das
camponesas russas e de outras mulheres que as imitam». Defendia ainda o leite materno como a
amamentação correcta, em detrimento do leite de amas ou de animais.
Relativamente às doenças venéreas, seriam muito frequentes e afirmava que o vírus se espalhava por todo
o corpo. Com frequência, devido às dores nas regiões genitais, havia abstinência sexual. Entre os homens
pobres provocaria uma espécie de escorbuto. Frequentemente afectaria a descendência, fosse porque
morriam ou ficavam deficientes. A solução era efectuar dois banhos a vapor diariamente associados ao
uso de uma decocção de «luxo», zimbro, salsaparilha, bardana ou, ainda, de hidromel e tintura de
sublimado corrosivo. Se tivesse chagas devia lançar-se vinagre ou atear pólvora nas pedras quentes do
banho a vapor. Se tivesse dores na zona genital devia-se aplicar uma cataplasma de farinha de aveia, leite
e gemas de ovo nas regiões afectadas. Na fluor albus (leucorreia) a mulher ficava amenorreica e estéril o
que, frequentemente, afectava a relação conjugal. Neste caso, para além do banho a vapor usava uma
decocção das pontas dos ramos de giesta picados.
Na varíola mencionava que o uso de crostas secas moídas era comum no Casan (devia referir-se à cidade
de Kazan, capital da república do Tartaristão, na Rússia) e na China. No seu receituário, o banho a vapor
associado a dieta alimentar que incluía o hidromel, o leite desnatado, a aguardente, o soro de leite e o
quaz acidulado com mel ou açúcar e um cataplasma de farinha, óleo de linhaça e sementes de mostarda,
para aplicar na garganta, curaria a doença.
5
Nas maleitas comezinhas como a tosse ou as dificuldades respiratórias sugeria um receituário ainda hoje
popular à base de mel, aguardente e gema de ovo. Na febre os caldos de farinha e as bebidas à base de
leite com mel; a água acidulada com vinagre ou as azedas, eram as receitas propostas.
6
No final do século XVI, Alessandro Petronio defendera no De Victum Romanorum (1581) a criação de
uma Medicina da Alma.
7
A obra pode ser adquirida na Câmara Municipal de Penamacor, que a editou.
Trata-se de uma revisão, relativamente exaustiva, sobre o que tinha sido dito acerca das
perturbações psíquicas e uma meditação que Ribeiro Sanches afirmava ter durado vinte
e quatro longos anos.
Uma primeira questão situava-se em quem devia cuidar das perturbações psíquicas.
Por um lado, o papel do médico fora restringido às doenças do corpo, sendo que
raramente a Medicina se interessara pelas causas do sofrimento psicológico, apesar de
este poder ser bastante incapacitante.
As questões da alma tinham sido entregues aos teólogos que actuavam por via de
dogmas e conselhos e «… aos legisladores que com leis penais que tiveram o cuidado
de curar os males que causam as paixões desordenadas; não ensinavam nem persuadiam
mas castigavam as faltas, daquela parte inteligente, que eram prejudiciais à sociedade.
Castigando induziam o medo nos ânimos desregrados e atemorizavam os inocentes para
não ousar cometer delitos…» (p.4). E criticava-os severamente por sugerirem que o
«tratamento» para os maus ímpetos fosse o açoite e a pancada.
Defendeu, assim, um retorno ao classicismo, na medida em que entendia que deviam ser
os médicos a tratar as perturbações psíquicas. Mas, tal como sucedia na Grécia Antiga,
achava que os médicos deviam ser também filósofos como Pitágoras (570-480 a.C),
Demócrito (460-370 a.C.) e Empédocles (século V a.C.) que a duas mãos eram médicos
e filósofos. Ainda que valorizasse outros como Asclepíades (124-40 a.C.), numa alusão
implícita à pouca importância que deu a Hipócrates (460-377 a.C.), sobretudo no que
respeitava à teoria dos humores que, só de passagem, referiu e usou para a compreensão
das perturbações psíquicas.
Pouco antes da apropriação pela Igreja Cristã do tratamento das perturbações psíquicas,
Areteu da Capadócia (81-138) e Galeno tinham sido os últimos a abordá-las no plano
conceptual e terapêutico. E dizia sobre Areteu: «Este é o único autor da antiguidade e
pode ser dito que depois dele ninguém tratou das paixões da alma próprias a cada
enfermidade; que tratou esta nova sintomatologia. Daqui vemos que os diferentes
estados do nosso corpo fazem nascer inclinações ou aversões diferentes daquelas
quando gozamos de perfeita saúde» (p.61).
Estava assim por desbravar o estudo da etiologia, da classificação e do tratamento,
incluindo uma farmacopeia específica, das perturbações psíquicas e emocionais que
deviam instituir-se como uma especialização no campo da medicina, que seria, no seu
dizer, de toda a utilidade para a Religião e para a República.
Admitindo, numa visão aristotélica, que a alma podia mover o corpo questionava,
apesar de ignorar a resposta, se não seria verdadeira a possibilidade das disposições do
corpo poderem afectar a alma.
Quis pois estudar as causas e as consequências das perturbações psicológicas, uma vez
que a alma e o corpo, sendo separados, eram igualmente interligados, ainda que de
forma pouco compreendida: «…sabemos que um homem, pacato e na melhor saúde,
sendo afrontado com uma palavra injuriosa todo o seu corpo se altera. Sai logo o ânimo
daquela tranquilidade, mostra-se pela cara vermelha, carrancuda, os olhos em fogo, por
todos os membros em acções desordenadas, treme, espuma, o coração palpita, o pulso é
trémulo e desordenado, o estômago não digere os alimentos, todas as secreções se
perturbam e este estado é o que se chama doença. Aqui vemos que o ânimo tem o sumo
poder no corpo para alterá-lo até fazê-lo enfermo e às vezes até perder a vida» (p.5).
E exemplificava como a fome ou o excesso de comida, o défice ou o excesso de sono, o
álcool, o ópio, a gravidez8 ou as mudanças de ar podiam alterar o comportamento em
pessoas fisicamente saudáveis. E os delírios febris e a centralização da nossa atenção na
dor violenta. Em todos os casos «… transformam, confundem e perturbam aquela parte
inteligente» (p.6). Ou seja, «… ninguém negará este poder da parte inteligente naquele
corpo nem o poder deste na substância ainda que espiritual de que se compõe o homem»
(p.6) e que, especificando, «A cada enfermidade e a cada doença é própria uma paixão
da alma» (p.60) e que esta, enquanto doença, alteraria, de novo, o corpo.
Considerava, pois, que o temperamento e o comportamento acabavam por ser uma
resultante complexa das disposições do cérebro, das condições ambientais (o clima, o
ar, o vento, a exposição solar), da dieta alimentar, do contexto familiar e da
hereditariedade («Há males hereditários tanto corporais como do ânimo», p.25). E aqui
seguia «Galeno [que] se atrevia pela dieta apropriada a cada temperamento, pela
mudança de clima, mudar totalmente as inclinações, mudando primeiro o corpo» (p.58).
Para Ribeiro Sanches, os alimentos e as bebidas podiam alterar inclinações, juízos,
acções e relações sociais. Curiosamente recusava a ideia de que as paixões da alma
fossem simplesmente uma mera consequência da má criação ou dos costumes.
Defendeu que o instinto sexual e o instinto de conservação tinham um papel fulcral
nas reacções psíquicas: «A todo o vivente implantou o Altíssimo aquele seu desejo de
conservar-se e de produzir seu semelhante. Estes desejos são a origem de todas as
paixões da alma» (p.12). E defendia a moderação, uma vez que se «… os desejos ou a
aversão passarem além da medida de se conservar, servirão á sua destruição» (p.12).
Para além disso, o instinto de conservação (fome, sede, sexo, dor) levar-nos-ia a tentar
manter o estado de saúde.
Ribeiro Sanches defendeu a existência de dois sistemas, o sentir e o mover, que se
encaixavam na ideia de que existia um sensório comum, ou seja, uma espécie de
central de interligação entre o cérebro e o corpo. Esta interligação operava-se através
dos nervos e havia nervos especializados para cada um dos sentidos.
Estes sistemas seriam governados pela medula oblongata (bolbo raquidiano), uma vez
que a sua destruição fazia com que deixassem de funcionar. Verificou que a lesão ou
destruição de um órgão podia dar lugar a uma dor localizada nessa zona ou noutra
região do organismo (exemplos – cancro do útero, pedras nos rins, hipocondria)9. Ou
mesmo a ocorrência de dor e de outras sensações na ausência de órgão, como no caso
do membro fantasma dos amputados. «Daqui vemos que quando os nervos que se
distribuem pelo interior do corpo estão ofendidos que podemos perceber a dor, e o mal
em lugar diferente daquele adonde reside a enfermidade…» (p.11).
Defendeu a tese da interligação entre o cérebro e o corpo: «Do mesmo modo que do
coração saem todas as artérias e que se distribuem por todo o corpo, do mesmo modo do
cérebro e do cerebelo, que vem acabar na medula oblongata, saem deste lugar todos os
8
«… é tão desregrada e tão insolente a imaginação das mulheres prenhes que muitas chegaram a matar
seus maridos para satisfazer o danado apetite de carne humana» (p.58).
9
Provavelmente estaria a referir-se a uma dor no diafragma e não a hipocondria como hoje a definimos.
nervos que se distribuem por todo o corpo» (p. XI). A medula oblongata seria o
princípio e o fim dos nervos que conduziam as sensações da periferia para o centro. Para
além da similitude de funcionamento do coração e do cérebro, advogava que estes dois
órgãos se interligavam.
Na medula oblongata situar-se-ia o sensório comum onde se localizaria a memória, que
nos permitia conservar ideias e impressões, e que seria material, uma vez que a doença
podia afectar, parcial ou totalmente, a pessoa, sobretudo e paradigmaticamente, se fosse
acometida de apoplexia.
Ao entrar no sensório comum uma sensação era comparada com as experiências prévias
(passado/presente, contexto, intensidade): «… o homem inteligente e dotado de razão
não só compara as ideias presentes com as passadas mas ainda as combina com o
futuro. Estas combinações fazem-se pela reminiscência, e não pela memória» (p.19). As
paixões da alma dependeriam da reminiscência ou seja da combinação de sensações
passadas, presentes e futuras.
E, ao contrário de Helmontis (1579-1644), que situava o princípio do movimento que
causava a doença no piloro, Ribeiro Sanches concluía que era no diafragma que se
encontrava, ao nível do corpo, o terminal universal dos nervos e, consequentemente, se
aí houvesse lesão ou disfunção haveria, consequentemente, uma perturbação psíquica.
Era aí que se situavam os sintomas de angústia, as dificuldades em respirar, as náuseas,
os vómitos, os borborigmos10. Ou, de outro modo, afirmava que «… existem fora do
cérebro, no fim dos nervos, as enfermidades do cérebro desde a vertigem até á apoplexia
e desde a tristeza ou escandecência11 até ao terror e ao furor. Destruído aquele fim de
nervo ou mudado, fica curado o corpo e o ânimo» (p.67).
No entanto nem tudo vinha dos sentidos, nomeadamente os conceitos e as abstracções.
Ou seja havia paixões da alma que, sendo materiais, só dependiam do sensório comum e
outras que só afectavam a alma. Por exemplo, as ideias novas seriam conceitos
abstractos, elaborados a partir das sensações registadas no sensório comum – a luxúria,
a ambição, a avareza, a superstição, a vaidade de viver na memória dos homens depois
da morte.
Relativamente à forma como se geravam as paixões da alma, Ribeiro Sanches defendeu
que, antes de tudo, tinham que estar gravadas no sensório comum ou seja, se uma
criança ainda não as tinha impressas não poderia sentir medo, que só ocorria depois de
ter experimentado uma sensação desagradável. De um modo geral, as impressões
agradáveis estavam ligadas á conservação e as desagradáveis à destruição e por isso a
tendência para por elas sentirmos aversão ou tendência para as evitar. Por outro lado, se
estas impressões não ocorriam, os sujeitos eram designados estúpidos e fátuos.
Vejamos agora, num plano conceptual, alguns dos conceitos que utilizava. Defendeu
que a vontade podia ser consciente, inconsciente ou meramente reflexiva e instintiva e
que, quando houvesse perfeita saúde, esta interagiria harmoniosamente com o corpo.
A percepção do objecto ou de um contexto podia ser agradável, desagradável ou
indiferente. Seria igualmente afectada pelo significado que o sujeito lhe atribuía, assim
10
11
Ruídos de gases nos intestinos.
Aqui usado com o significado de entusiasmo.
como pelas «…impressões que ficaram impressas no sensório comum» (p.8). Anotou
ainda a influência do contexto social, exemplificando que um espectáculo estava
associado a alegria, enquanto que um funeral estava ligado a tristeza e que seria através
da imitação que esses processos se operavam. E defendeu que o modo de apresentação
de um acontecimento podia influir na nossa reacção emocional. Por vezes, bastava a
pessoa experimentar um episódio negativo para que ficassem marcas para toda a sua
vida. Exemplificava-o com o caso do imperador romano Nero (54-68) que, sem duvidar
da tirania do seu regime, foi apresentado por Suetónio (64-141) de um modo que não o
detestamos e, ao contrário, por Tácito (55-120) que fazia com que sentíssemos a
vivência emocional da sua tirania.
No que respeita à imitação afirmava que «Há no homem uma faculdade conhecida por
uma infinidade de experiências, que é uma tendência natural a imitar tudo o que ele vê
fazer. A causa da imitação desta tendência natural é inexplicável. Boceja, vomita, chora,
ri ao ver bocejar, vomitar, chorar ou rir: nas mulheres o desejo de urinar se comunica,
quando uma delas sente necessidade de o fazer. Esta tendência maquinal à imitação
existe também nos animais. Se um cão ladra todos os cães da vizinhança lhe respondem.
Contudo, esta faculdade está mais desenvolvida em certas pessoas e indivíduos: nas
crianças, nas mulheres e nas pessoas fracas de espírito» (p.14). É provável que, visto
sob o nosso olhar, os exemplos sejam muito mais de reacções sintónicas do que de
imitação ou, no caso dos cães, uma forma de comunicação.
Apresentava, igualmente, uma longa lista de situações em que uma pessoa podia ficar
doente simplesmente porque vira outra ficar com essa patologia: epiléptico, histérica,
hemorragia, bexigas, peste, tísica12. Sugeria mesmo que se devia evitar uma ama que
fosse gaga, vesga, disforme, para não influenciar negativamente a criança.
Referia, igualmente, a imitação das pessoas em posição de autoridade –
inconscientemente as pessoas riam ou tossiam só porque elas o tinham feito. Ainda
hoje, inúmeras pessoas, de forma reflexa, assim reagem.
Ou de um caso clássico, citado de Plutarco (46-126), de morte por imitação: «… em
Mileto, cidade de Caria, se gerou tal constituição do ar que todas as donzelas se
matavam sem causa alguma; parece que as primeiras que foram vítimas desta epidemia
serviram de original às mais que se mataram igualmente» (p.16). Esta «epidemia»
acabou por ser totalmente debelada quando foi adoptada uma medida simples – expor,
completamente nuas, em público, as que se tinham matado.
Defendia que as primeiras impressões (neutras ou traumatizantes), com frequência,
eram marcantes para o resto da vida: «Descartes [1596-1650] afirma que toda a vida
amou os olhos verdes porque na sua adolescência estivera enamorado de uma moça que
os tinha semelhantes» (p.19).
Relativamente à imaginação considerou que: «A maior parte do que este imagina mais
serve para a nossa destruição do que para a nossa conservação e portanto a natureza só
por este fim nos deu o contentamento e a dor que dependem das sensações corporais.
Ela representa à alma ilusões e fantasmas e também a força e o enleio de se ocupar e
meditar nelas» (p.21).
12
Claro que em nenhuma delas, sabe-se hoje, era adquirida por «imitação».
Ribeiro Sanches, apresentou um ensaio relativamente complexo de classificação das
perturbações psíquicas, ainda que de um modo relativamente desorganizado e, em
parte, baseado nas apresentadas pelos autores clássicos.
Os antigos distinguiam as paixões da alma pela duração e pela intensidade da
sintomatologia. Nesse sentido, uma doidice momentânea, como a paixão amorosa ou a
cólera, o impetu faciens descrito por Hipócrates, seria diversa do maníaco que discorria
sem ordem e sem capacidade de comparar o verdadeiro, o útil e o honesto.
Galeno tinha dividido as paixões da alma em dois subgrupos em função dos efeitos e
das consequências das paixões da alma. Estes dois subgrupos eram caracterizados por
dois movimentos diferentes: quando ia da periferia para o centro, daria lugar ao medo e
à tristeza; pelo contrário, quando ia do centro para a periferia dava lugar à alegria, à
raiva ou à esperança.
Mas Ribeiro Sanches, considerando a classificação de Galeno incompleta, estava mais
próximo da versão proposta por Varrão (116-27 a.C.) que afirmava: «Há quatro sortes
de paixões da alma: as primeiras duas são contrárias à nossa conservação: a dor e o
medo. A primeira é a percepção do mal presente, e a segunda a percepção do mal futuro
ou impendente. As outras duas são o contentamento e o desejo; a primeira afecta o
ânimo actualmente, a segunda com a percepção do futuro» (p.23).
Paixões
da alma
I divisão
Negativas
II divisão
Positivas
Conservação da
vida/perpetuação
da espécie
Contrária
Favorável
(se moderada)
Elasticidade
dos nervos
Défice
Excesso
Movimento
Percepção
do presente
Percepção
do futuro
Periferia
↓
Centro
Centro
↓
Periferia
Dor, tristeza
Medo
Alegria,
amizade,
raiva
Desejo,
esperança
O primeiro grupo estaria associado à morte súbita, incluindo a partir de um medo, susto
ou terror intenso (de naufrágio, ficar sozinho, ver um filho a morrer ou morto, ver um
porco esventrado, ser obrigado a casar com uma mulher feia e hedionda). Noutros casos
podia desencadear doenças físicas (v.g. cancro da mama) ou reacções psicossomáticas
(v.g. falsa gravidez).
No segundo, seriam favoráveis à conservação da espécie desde que as vivências fossem
moderadas, porque uma alegria muito intensa e excessiva (v.g. sair da prisão, ganhar um
jogo, enriquecimento inesperado) podia até desencadear a morte. Nas alegrias mais
moderadas, a febre, a insónia, a melancolia. Como dizia «Não fomos formados para
sofrer excesso ainda que seja de contentamento» (p.45). Aí enquadrava a alegria, a
amizade, a esperança, a escandecência que, desde que moderadas, podiam contribuir
para prolongar a vida.
No plano neurológico, as perturbações psíquicas podiam ser tanto uma consequência da
fraqueza como do excesso de elasticidade dos nervos.
As experiências emocionais moderadas e positivas podiam aliviar inúmeros
sofrimentos. Os doentes com artrite aliviavam a dor, com música, convívio e
companhia. Parir ou ter um filho ou ser eleito para um cargo também podiam aliviar
males físicos (v.g. gota). Mesmo nas emoções positivas e quentes o excesso também era
perturbador (alegria, amor, cólera, indignação, saudades).
Lista e definição de emoções
Reacções emocionais
Agritude
Luto ou planto (pranto)
Saudade
Misericórdia
Preguiça
Penitência
Desespero
Vergonha
Pudor ou pejo
Suspeitas (desconfiança)
Inveja
Definição
Ânimo deprimido pelo mal presente. A
pessoa não pensa noutra coisa.
Dor pela coisa amada.
Perda ou ausência do objecto amado.
Dor pela miséria alheia.
Medo do trabalho.
Acções contra a consciência.
Sentir que não há solução para o mal que
sentimos.
Medo de fazer coisas injustas, desonestas
ou de realizar acções que atentem contra a
nossa reputação ou conservação.
Convencer-se que as suas acções podem
ser injustas ou ter medo de ser difamado.
Ameaça de dano na reputação ou no
corpo.
Dor pelo aumento de quem não amamos
com paixão.
Adiantava que as reacções emocionais se interligavam às fisiológicas, e que podiam ser
tanto uma consequência de disposições hereditárias, nomeadamente do instinto de
conservação, como de factores adquiridos, em particular a aprendizagem através da
imitação.
Por outro lado, interligava as reacções psíquicas, assim como as doenças orgânicas, à
constituição física. Se fosse delicada, estaria em risco de sofrer de perturbações do
estômago e intestinos, flatos, cefaleias, convulsões e zumbidos e, mais especificamente
psicológicas a hipocondria e a histeria. Se fosse robusta, associava-se a hemorragias,
vómitos de sangue, aneurismas, pedras nos rins, icterícia e, na esfera psíquica, à mania e
à epilepsia. Para além da má conformação do corpo, as paixões da alma podiam
depender também do estado dos nossos humores, uma vez que os humores degenerados
ou perturbados, ao actuar no diafragma, podiam afectar o cérebro.
Ou seja haveria causas internas localizadas no cérebro (duramáter, cerebelo, glândula
pineal) e nos órgãos internos do corpo (pâncreas, cólon, mesentério, veia porta, coração,
fígado, pulmões) que determinariam as doenças mentais, especificamente a debilidade
mental, as fobias, a mania, a melancolia crónica assim como neurológicas (a epilepsia).
Notou ainda que havia uma associação entre os estados de alma e as doenças físicas:
aborrecimento e enxaqueca, tristeza e hemoptises, actividade delirante e estados febris.
Na hidropsia (expectoração de sangue) atribuía valor a coisas sem importância e
apresentava resiliência ao sofrimento, assim como ao desejo de viver. De resto, «… o
pulso pequeno, a respiração interrompida e rara, a cor da cara mudada, as insónias, as
dores de cabeça, lassidão e peso de todo o corpo, as ânsias e sufocações, os aneurismas
e pólipos do coração e da aorta, os desmaios, a desesperação, a coagulação dos humores
até à morte, o marasmo, o pericárdio como vi pegado ao coração depois da morte,
provêm das alterações que recebem as artérias pela força dos nervos que as abraçam,
encolhidos e cerrados ou puxados para a sua origem» (p.25-26).
Relativamente à importância da relação médico-doente assinalou o seguinte: «É um
grande segredo na mão do médico prático ter a alegria a seu poder para usar dela na
maior parte da sua prática, conserve e aumente a sua reputação para que o enfermo
tenha nele a mais firme esperança; far-se-á agradável com decoro porque com a
conversação agradável e um não sei quê no modo de expressão e do gesto muitas
queixas tiram daqui o maior vigor dos remédios que ordenar» (p.43). E refere ainda a
forma como um dos seus mestres agia: «… a graça, com decência, o saber da judiciosa
conversação, a cordialidade com que mostrava magoar-se nas dores difíceis, animava
aqueles ânimos ainda que abatidos» (p.43).
No campo das perturbações psíquicas apresentou um amplo leque de situações
clínicas que englobavam a maioria das doenças mentais. Relativamente ás fobias
descreveu uma série de situações extremas de medo que podiam conduzir à morte (ver
filho a morrer ou morto, mulher que ficou sozinha em casa, homem obrigado a casar
com mulher disforme e hedionda, entrar num barco tendo um medo terrível de
naufrágios, não encontrar um argumento durante uma discussão). Noutros casos, ainda
de grande intensidade, os sustos, os terrores e as tristezas podiam levar à loucura,
catalépsia, mania, melancolia crónica ou mesmo a doenças físicas, como o cancro da
mama.
Quando a intensidade era menor, a ansiedade e a tristeza eram o quadro sintomático
mais relevante. No entanto, o medo, ao provocar alterações na circulação sanguínea,
podia melhorar as doenças orgânicas (febre intermitente, artrite, paralisias) e psíquicas
(manias e hidrofobias13).
No que respeitava à sua etiologia, admitia que podia ter, até uma origem pré-natal: «O
terror que sentiram as mulheres prenhas, dispõem os cérebros da sua prole a mover-se
mais facilmente com semelhantes sensações. Jacob VI de Inglaterra (1603-1625) não
podia ver espada nua porque sua mãe, estando dele prenhada, se assustou, vendo ferir
um seu súbdito» (p.25).
No que respeita à sintomatologia anotou a mencionada por Galeno, como o pulso lento,
o corpo tenso, as alterações na respiração e na transpiração e a falta de memória. No
caso concreto do medo, a tensão, a cara descorada, os arrepios no corpo e no cabelo, a
circulação lenta. E no caso do pudor, da vergonha e do medo, os sintomas específicos de
corar, baixar os olhos e sentir desânimo.
13
Apesar de a colocarmos aqui, o mais provável era que se referisse à raiva, onde o doente apresenta
sintomas hidrofóbicos. No entanto, os sintomas são subtilmente diferentes, de uma autêntica fobia à água.
Ribeiro Sanches, eventualmente, também poderá ter-se referido a esta, mas nem sempre é claro.
Relativamente ao tratamento refere que «… as [paixões] moderadas podem às vezes
curar algumas enfermidades, achando aqui verdadeira a consideração que fez o célebre
Guntz, físico-mor de El-Rei da Polónia, no comentário que fez de humoribus de
Hipócrates (Lipsia, 1745,8º, p.219) de que as paixões inesperadas e os sustos não
horrendos servem de cura a muitos males. Curou-se a paralisia causada por velhos
reumatismos, a ciática, a hidrofobia, os fluxos de sangue, as quartãs, as febres, os
soluços e as hérnias» (p.33) e ainda as manias e os delírios amorosos. Ou seja, uma
paixão podia servir de remédio a outra, sobretudo se tivesse efeitos opostos, como no
caso da raiva e do medo.
De uma forma geral, os banhos a vapor seriam um precioso auxiliar para diminuir a
ansiedade, assim como para induzir um sono tranquilo e satisfatório.
Relativamente ao medo de realizar operações, criticava os cirurgiões por ignorarem a
sua importância no contexto clínico. É de suspeitar que, na época, sem anestesiantes de
eficácia, devia ser difícil alguém não ter medo de se submeter a uma qualquer
intervenção cirúrgica.
Refere que os hidrofóbicos se curavam mergulhando-os em água fria, quando estavam
descuidados. Esse efeito não resultava de propriedades medicinais da água mas da
experiência permitir que deixassem de ficar aterrorizados pelo contacto com a água. E
ficava espantado «…é uma coisa notável que a mesma paixão produza efeitos
contrários» (p.33) ou ainda «… o terror e o pavor podem causar a paralisia mas temos
observações que a mesma paixão curou o mesmo mal» (p.34). Apesar disso advertia:
«… não se devem pôr em prática estes métodos violentos quando houver outros
remédios mais seguros…» (p.35).
No entanto, noutro trabalho especificava outros modos de tratamento, como o uso de
panos embebidos em água misturada com vinagre e uma alimentação á base de flor de
farinha, carne ou peixe leves, uma bebida acidulada e um pouco de aguardente. Para
além disso, «Durante todo o tratamento o doente deve evitar os prazeres do amor, os
licores espirituosos, as paixões vines, é preciso obrigá-lo a habitar um lugar obscuro».
No entanto, o tratamento principal, se tivesse medo da água, era ir ao banho de vapor de
seis em seis horas «… e que lá fique tanto quanto puder suportá-lo sem desmaiar»
(Sanches, 1779).
A fobia social era uma reacção fóbica que não afectaria os cegos, uma vez que os
fóbicos sociais tinham «… dificuldade de olhar para o objecto que se quer ver» (p.38), o
que incapacitaria a pessoa para o desempenho de cargos públicos. E descreveu-a de
forma minuciosa: «Os que se envergonham sentem na boca do estômago uma ansiosa
angústia, um como nó na garganta, não respiram por alguns momentos, fica o ar dentro
do bofe, adquire aí maior raridade, estende-se, comprime as veias pulmonares que
levam o sangue ao ventrículo esquerdo; não se vaziando o ventrículo direito, não pode
entrar no sinus do mesmo lado o sangue da veia cava superior que traz o sangue da
cabeça. Daqui vem que o sangue se espalha pela cara, além disso os nervos se encolhem
e aquela porção do par sétimo que se espalha por toda a cara vermelha, o pensamento se
turba, turba-se a memória, o pulso é vazio e irregular; então se sentem na cara ingratos e
dolorosos movimentos, todos os músculos se retiram e se mudam de mil modos, os
olhos vêem turvos, fica todo o ânimo com o corpo todo consternado» (p.35).
No caso da fobia social, os remédios eram inúteis. Sugeria que o doente tossisse,
escarrasse, falasse em voz alta ou se zangasse porque «… saindo o ar do bofe, acelerase a circulação e não se enche o cérebro de sangue o que turba o pensamento» (p.38).
No ciúme mórbido, que designava como paixão dos zelos, a pessoa achava que o
objecto amado estava a ser possuído por outro, seria «… acompanhada com suspeitas,
com desonra, com vergonha, não só é capaz de fazer cair melancólico e atrabiliário mas
ainda maníaco» (p. 40). Doença muito frequente em Portugal, decorreria de uma
fraqueza do sistema nervoso e seria acompanhada de depressão, de juízo confuso e de
sintomas como o peito oprimido e o choro que seriam aliviadores porque aceleravam a
circulação do bofe.
Relativamente ao amor excessivo, começava por tentar estabelecer uma definição de
amor normal, estabelecendo uma destrinça relativamente à amizade: «Difere o amor da
amizade. Esta é aquele amor que temos para nos unir com a utilidade que redunda da
virtude. Aquele, o amor que temos para nos unir com o objecto amado e representado
por este, tem por objecto a representação natural da coisa amada, e a amizade a
representação das potências da alma ordenada» (p.46).
A paixão amorosa seria uma doença da alma ociosa, na medida em que a pessoa se
fixava no objecto amado, ficava fora de si e esquecia o passado e não perspectivava o
futuro. Exemplificava com um caso clássico: «Pinta Virgílio [70-19 a.C.] a Dido
amorosa de Eneias dominada da paixão de tal modo que não vê nem ouve outra coisa,
parece toda transformada no objecto que ama» (p.46). Afirmava que a paixão amorosa
atacava os nervos e as artérias, correndo o risco do apaixonado ficar cataléptico ou
maníaco. Na mulher o amor excessivo podia afectar os ovários. Referia ainda que a
paixão amorosa não era inevitavelmente em relação a pessoas mas também a estátuas,
árvores e animais. E referia-se ainda, negativamente, aos «amores de Anacreonte» (563478 a.C.), que deviam ser homossexuais, se considerarmos que o poeta não escondeu os
seus desejos em relação aos rapazes14.
Relativamente à sintomatologia do amor doentio referia que a pessoa apresentava a cara
descorada, os olhos encovados e quebrados, a insónia, as dificuldades de memória e
raciocínio, a fatuidade, a mania e a melancolia. Na presença do objecto amado, o
embaraço, o peso na boca do estômago, os desmaios ou os batimentos cardíacos
acelerados eram os sintomas mais comuns15.
Ribeiro Sanches, como em relação a qualquer outra patologia, dá vários exemplos em
que as problemáticas amorosas podiam conduzir à morte: nos amores proibidos, na
separação do objecto amoroso e na rejeição do amado, por exemplo quando o homem
não podia casar com ela.
14
Pelo menos é muito explícito no fragmento nº 4:
Rapaz de olhar virgíneo
Desejo-te, mas tu me evitas,
Não sabendo que da minha
Alma governas as rédeas.
Tradução de Andytias Soares de Moura (gargantadaserpente.com, consultado 23.4.08).
15
Sintomas que já seriam conhecidos desde que Erástrato de Alexandria (260 a.C.) os descrevera pela
primeira vez. De resto, Erástrato, assim como Herófilo (300 a.C.) tinham concluído que o cérebro era uma
zona vital e tinham distinguido os nervos motores dos sensitivos.
Não se referia à existência de uma paixão amorosa transitória mas, apesar disso,
estabelecia diferentes graus que perturbariam de modo diverso o ânimo da pessoa.
Assim nas paixões amorosas moderadas podia ajudar o exercício e a ocupação física,
assim como a mudança de «ideias ingratas», «… enquanto a paixão não causa insónias,
ânsias, nem se sente aquele peso no estômago, o melhor remédio é a ausência, fazer
jornadas, viagens por mar; nesta mudança de ar e variada de objectos e principalmente
se enjoarem, alimpa-se o estômago, adquire maior elasticidade o diafragma e todas as
vísceras; muda-se aquela ideia amorosa do sensório comum» (p. 50).
Nos casos graves, quando o amante já tinha melancolia e humor atrabiliário, seguia a
regra geral: «Cura-se também o ânimo excitando paixões contrárias àquela dominante»
(p.51) que no caso consistiria em «inculcar ódio do objecto amado», «mudar de clima»
ou «comer frutos do Estio». Nesta patologia não aconselhava a mergulhar o corpo, de
súbito, em água fria, porque no seu entender, isto não resultava porque só curava o
sensório comum mas ficava no corpo a atrabílis, que seria mais facilmente adquirida,
por via das paixões, nos climas meridionais.
Relativamente à raiva, que analisava exaustivamente, definia-a com clareza e indicava
uma série de tratamentos para a debelar e reconhecia-lhe méritos terapêuticos, para
outras patologias, desde que em doses moderadas, sobretudo para evitar um mal
presente.
Definia-a do modo seguinte: «A ira é um sumo desejo de castigar a quem ofendeu. O
ódio é uma ira antiga, a inimizade e o desejo de vingar-se observando a ocasião, e é
discórdia um rancor procedido de aversão e antigo desejo de vingar-se» (p.52). No que
respeita ao quadro sintomático: «Mostra-se pela cara incendiada, pelos olhos vibrando
fogo, pela voz rouca e entoada, pelos tremores dos beiços, pelo morder das mãos e bater
dos pés com elas, e com os pés. O pulso é forte, veloz, cheio, a boca seca e virada, todas
as secreções se detêm e todo o corpo se conhece alterado e enfermo» (p.52) e, noutros
casos, podia apresentar suores, horripilações, mudez, curada com um vomitório e, na
mulher podia estar associada a correr sangue pelos bicos dos peitos. Ao nível dos
factores precipitantes indicava que a fome e a sede podiam desencadear uma reacção de
cólera.
A ira associada ao desespero podia conduzir à morte (exemplificava o caso de vários
imperadores), aneurismas, febres, cálculos na bexiga do fel, vómitos, diarreia. No
entanto avisava que «A ira suprimida não mata subitamente mas, como veneno lento,
faz terminar a vida» (p.54) e aparecia expressa em perturbações psicossomáticas como a
asma.
No que respeita à terapêutica sugeria que o remédio para a ira era o medo, instigado por
outrém: «…dizia o grande Boerhaave que um algoz fazia os homens mais virtuosos que
cem pregadores» (p.54). Especificava que «Aqueles que por constituição particular são
coléricos devem usar a dieta vegetal, dormirem o mais que puderem, evitar exercícios
violentos, diminuir a atenção dos sólidos por banhos de vapor e dormir em cama mole»
(p.55). Não dar purgas ou vomitórios, porque «… o ópio desfeito em vinagre ou as
emulsões de soro de leite seriam o remédio. Melhor que tudo banhos de vapor» (p.55).
Relativamente às propriedades terapêuticas da raiva, dizia: «Ainda que o enfurecer-se e
agastar-se com desejo de vingar-se seja prejudicial à nossa saúde, esta paixão incitada
por um prudente médico poderá curar muitas enfermidades que tocam a natureza da
paralisia e fatuidade» (p.55). Seria indicado pois enfurecer ou injuriar os sujeitos com
febres, gota, artrites e na esfera psicológica, as histéricas, os maníacos, os
hipocondríacos indiferentes e os que sofriam de amores doentios.
Ribeiro Sanches defendia que a raiva, moderada e sem desejo de vingança, era positiva:
«Não deve o médico reprimir (…) estes movimentos involuntários de cólera (…) deve
antes prevenir os assistentes que servem de remédio àquela doença» (p.52). Se só
provocasse agastamento teria um papel positivo, na medida em que, de início,
melhorava a circulação.
Descreve um caso de cleptomania de uma mulher grávida e que teve como
consequência, mais tarde, a filha também sofrer desta patologia. A seu ver a filha ter
cleptomania resultava do facto de a mãe ter esses comportamentos no decurso da
gravidez.
No caso do jogo patológico afirmava que «Poucos são os jogadores por ofício que não
sejam melancólicos e a paixão do jogo é uma doença do ânimo que tem a sua origem no
humor atribiliário» (p.44).
Quando afirmava que «Todos observaram aqueles desordenados apetites das donzelas
naquele tempo que precede a evacuação dos mênstruos» (p.59), referia-se a casos de
pica, em que as donzelas comiam carvão, gesso, sal e até imundícies.
No que se referia aos efeitos psíquicos do consumo de várias substâncias referia que o
álcool, a datura16 e o ópio alteravam o juízo e a imaginação. Claramente, situava-os na
natureza excessiva do comportamento, assim como no défice de controlo que podiam
envolver: «Acusamos temerariamente de viciosos aqueles que não podem corrigir-se da
frequência de actos luxuriosos, da bebedice, de jogar as cartas e de furtar. São estes
vícios enfermidades, na verdade, do ânimo e que têm a sua origem na conformação e
nos humores do corpo. Nestes casos pertence ao teólogo decretar a consciência e instruir
como se pode alcançar a graça divina para curar aquele ânimo e aos legisladores retê-lo
pelo medo, e pelo terror dos castigos públicos, mas ao médico pertence ou curar o corpo
ou induzir outra enfermidade que produza paixões diferentes» (p.63). E referia ainda
que «… os médicos na necessidade de curarem estes vícios ou pela dieta e diferente
modo de viver ou fazendo mudar de clima como nós fazemos, mandando os moços de
vida dissoluta para a Índia e demais Colónias…» (p.65). Os banhos a vapor eram
indicados para aliviar os sintomas associados aos excessos de álcool, de exercício físico
ou de alimentação.
Relativamente às perturbações psicóticas referia que «Costumam nos hospitais dos
doidos, tratar os maníacos ou furiosos como bestas feras à força de açoutes e de
castigos» (p. 69). Estes teriam o condão de mudar as ideias doidas porque «Vêm a si e
tanto que vêem vir o seu algoz, logo falam razoáveis» (p. 69). Ribeiro Sanches
explicava que isso acontecia porque tinham recebido uma acção violenta no fim dos
nervos que iria induzir uma alteração positiva ao nível das ideias doidas.
16
Designação genérica para um grupo de plantas que têm efeitos alucinogéneos.
No entanto avisava «Mas a causa daquela ideia doida fica no corpo; é necessário curar
esta depois, mudando-a, como dissemos, às vezes por alguns anos, pela dieta e pelos
remédios» (p. 70). Indicava ainda um tratamento para as ideias doidas, delirantes e
insensatas e que consistia em mergulhar a cabeça do doente dentro de água, durante
alguns segundos para este sentir medo de morrer e, desse modo, ser possível destruir a
ideia delirante.
E exemplificava: «Ouvi contar a Boerhaave que um doutíssimo homem melancólico
caíra no delírio que tinha as pernas de vidro pelo que sempre estava assentado por temer
que caminhando se quebrasse. Um dia, por acaso, a criada varrendo, por mau jeito, deu
tal pancada na perna do pobre melancólico que o feriu. Com a força da dor mudou-se
aquela ideia que tinha e ficou curado dela, estando já persuadido que as suas pernas
eram de carne e osso» (p.69). Aqui, como noutros casos, enganava-se Ribeiro Sanches
na análise explicativa: não era a dor mas o confronto inabalável e inequívoco com a
realidade17 que permitiu, excepcionalmente, que se alterasse a actividade delirante.
Relativamente à histeria afirmava que as doenças dos ovários, do útero, das trompas de
Falópio activavam as queixas histéricas, uma vez que havia uma ligação entre estes
órgãos e o sensório comum. E que, quanto à etiologia, «… uma paixão violentíssima,
principalmente no tempo que correm os lóquios ou os mênstruos, bastará para ficarem
estas miseráveis histéricas enquanto viverem…» (p.28). Verificou que nas mulheres
histéricas, a dor tendia a ocorrer em zonas diferentes daquelas onde possivelmente
haveria algum tipo de lesão ou disfunção. As soluções terapêuticas eram os fortificantes,
as dietas, as viagens e a vida alegre.
Relativamente às perturbações da aprendizagem nas crianças, referia que as palmadas
e açoites eram eficazes porque a dor excitava o sensório comum duro e estúpido que,
desse modo, se tornava mais elástico e ficava mais apto a receber novas ideias. No
entanto, advertia que este método não era aplicável a todos porque havia as crianças que
reagiam positivamente se fossem repreendidas ou elogiadas verbalmente e neste caso
bater-lhes seria contraproducente porque «O medo, o terror e a vergonha acanhará
aquele delicado e elástico sensório comum» (p. 70).
Relativamente aos problemas da lateralidade referia que: «Acusamos um menino
canhoto de má educação mas falsamente. Eu vi trazer o braço esquerdo cosido no
vestido para se acostumar o direito mas tudo foi inútil para se acostumar o menino e
depois rapaz que conheci. Sempre foi usando do braço esquerdo; poderá ser que nestes
as vísceras estejam ao revés» (p.64). Esteve próximo de acertar Ribeiro Sanches, só que
a causa não estava nas vísceras mas na dominância dos hemisférios cerebrais.
No que respeita à depressão, afirmava que o desejo de ser estimado e venerado e de
forçar os outros a pensar bem de nós continha em si o risco de inquietação e de
desgosto. «A alma deprimida perde a faculdade de julgar e, às vezes, também de querer.
Neste caso diz Buffon: tanto que quisermos ser mais felizes do que a natureza nos
17
De memória recordamo-nos de uma mulher que, durante anos, fora atormentada pela ideia de que os
homens da aldeia onde vivia lhe rodeavam a casa, com grande alarido, com a intenção de a molestar
sexualmente. A ideia persistiu, apesar de nunca ter, de facto, sido agredida no plano sexual. Esta ideia
delirante, associado a um delírio auditivo, que lhe despertava um pavor intenso, foi destruída, quando um
dia, em que deve ter tido mais coragem, foi à janela e não viu ninguém. Compreendeu então que as vozes
que ouvia só podiam vir de dentro da sua própria cabeça.
permite logo seremos desgraçados» (p.21). Para além disso, identificou com clareza
que, na mulher, a melancolia se podia associar à menopausa. Referindo-se à importância
dos banhos de vapor dizia «Os mesmos banhos, as mesmas fricções, as mesmas loções
com água morna ou fria seriam um alívio e um remédio excelente nos desgostos, nas
depressões, no aborrecimento, na tristeza, de seguida a acessos de paixões fortes: então
o banho de vapor é preferível ás viagens por terra ou por mar; seria o alívio mais rápido
e mais fácil» (Sanches, 1779) e contribuiriam para induzir um sono mais tranquilo e
satisfatório. Na melancolia induzida por desgostos, vida monótona e sedentarismo e
associada a perturbações gastrointestinais, aconselhava passar um mês sem trabalhar, a
libertar-se de todas as preocupações e a fazer banhos a vapor diariamente.
Na depressão bipolar notou as oscilações de humor, ora avaros, ora pródigos.
Valorizavam coisas sem importância. Na mania eram desconfiados, furiosos, alegres,
luxuriosos e depois tristes, chegando a ferir o próprio corpo.
Nas ideias fixas, onde se poderiam incluir inúmeras categorias patológicas, segundo os
actuais critérios de diagnóstico, devia provocar-se uma dor intensa porque mudar o
corpo «… pela dieta e pelos remédios que, produzindo um novo estado do corpo, se
produzam também novas ideias» (p.69). Prescrevia assim, com intuitos purgativos, o
uso de uma dieta vegetal, constituída por ervas, raízes, leite, fruta e mel ou mais
inovadora, a salivação pelo gálico, porque «… purgam todos os humores antigos e se
reparam outros feitos com esta nova dieta» (p.71).
No que concerne à epilepsia referia que quando os doentes sentiam um vapor ou uma
aura, enquanto sintoma prodomático, que lhes subia dos membros inferiores ou
superiores em direcção ao diafragma, onde se dava o ataque convulsivo. A solução
terapêutica era pôr uma «… corda forte com fivela naquela parte onde se levanta o
vapor (…) até causar uma violentíssima dor, o que serve às vezes de remédio» (p.66).
Também se usavam evacuantes e antiepilépticos.
Notas críticas e conclusivas
Como já referimos, Ribeiro Sanches foi dos primeiros a defender, dentro da medicina, a
criação de uma especialização em psiquiatria, termo que só viria a ser cunhado por
Johann Christian Reil (1759-1813) em 1833 (cf. Austragesilo, 1951) ou em 1808,
segundo outras fontes, mais conformes à realidade18.
Relativamente à imitação, Ribeiro Sanches mistura coisas que hoje classificaríamos
como reacções sintónicas e simpáticas que diferem claramente da imitação, na medida
em que são menos consciencializadas, menos mediadas pelo desejo e pela vontade e
muito mais reguladas pelo sistema nervoso autónomo. Anote-se como relevante a
referência ao papel da imitação, enquanto desenvolvimento característico de certas fases
da evolução da criança. Anote-se ainda a confusão relativamente ao contágio através de
vírus que erroneamente era classificado como imitação.
No que respeita às fobias refira-se a especificidade da época no caso fobia dos
naufrágios que, então, eram clinicamente mais relevantes do que hoje. Provavelmente
18
Eventualmente uma possível confusão entre datas de publicação do texto em que o termo psiquiatria
aparece mencionado.
porque hoje existe uma ampla variedade de alternativas para fazer viagens longas e
assim a fobia de voo adquire uma outra relevância. Pelo contrário, a claustrofobia, hoje
uma reacção fóbica muito frequente, nem sequer aparecia mencionada.
De uma forma geral apresentou uma concepção extremamente moderna sobre as
perturbações psíquicas e emocionais. Abarcou-as na sua globalidade, dedicando uma
parte significativa da obra a patologias que, mesmo no século XIX, ainda não tinham
sido estudadas e analisadas. Curiosamente, a patologia menos mencionada, as
perturbações psicóticas, seria a que predominantemente faria parte do interesse da
psiquiatria no século XIX, centrada nas políticas de internamento do doente psiquiátrico
crónico.
Efectivamente só no final do século XIX é que a psiquiatria viria a valorizar outras
patologias «menores» que, genericamente, foram, depois, englobadas por Freud (18561939) no conceito de neurose.
Mesmo que não tivesse acertado nas localizações cerebrais, é nítido que já as admitia
como hipótese e é claro que procurou estabelecer uma inter-relação entre o
funcionamento do corpo e da mente. Frequentemente, é excessivo, ainda que incisivo,
quando apresenta exemplos de casos extremos em que uma experiência psicológica e
emocional intensa pode ter como consequência a morte, uma vez que esses casos são,
felizmente, extremamente raros. Em qualquer dos casos, para efeitos demonstrativos, do
papel do mundo psíquico nas reacções do organismo físico são elucidativos e
relevantes. Mesmo que, por vezes, tenha confundido as meras reacções psíquicas,
inerentes ao sofrimento físico, conseguiu apresentar um quadro empírico e
compreensivo sobre muitas perturbações psíquicas e cognitivas.
É um texto quase enxuto de referências teológicas e filosóficas sobre o funcionamento
do mundo psíquico que claramente já assentava no pressuposto de que as funções
psíquicas se localizavam no cérebro.
Apesar da teoria hipocrática dos humores ter prevalecido até ao final do século XIX,
Ribeiro Sanches só acessoriamente se socorre dela, enquanto explicação causal ou no
que respeita a uma qualquer indicação terapêutica.
Uma parte significativa das soluções terapêuticas parece ineficaz ou ingénua mas é
preciso ter presente que, ainda no final do século XIX, pouco se tinha progredido nessa
matéria. Para além disso, Ribeiro Sanches apresentou sugestões ou ideias em que
muitos ainda hoje se podem rever. Os comportamentalistas ficarão satisfeitos por aí
encontrarem referências ao uso do reforço ou da exposição. Os psicossomáticos de
inspiração psicanalítica por aí encontrarem notas explícitas sobre o conceito de
hostilidade suprimida, tão em voga há setenta ou oitenta anos atrás. Mesmo os
freudianos mais puros aí encontrarão referências explícitas sobre a importância do
desenvolvimento infantil e, inclusive, pré-natal. Os novos terapeutas emocionais aí se
poderão rever também, na exacta medida em que Ribeiro Sanches deu às emoções um
papel de relevo no funcionamento psíquico, assim como nas patologias que lhe estavam
associadas.
Referências Bibliográficas
Austragesilo, A. (1951) – Psicologia e Psicoterapia, Irmãos Pontigi, Rio de Janeiro.
Cid, S. (1907) – «Oração de Sapiência» in Obras de José de Matos Sobral Cid,
Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, volume II, 1984, pp. 299-328.
Ferreira, J. (s/d) – Prefácio a Líricas e Sátiras de Filinto Elísio, Domingos Barreira,
Porto.
Macedo, M.M. (1998) – História da Medicina Portuguesa no século XX, Edição dos
CTT Correios, Lisboa.
Sanches, R. (1753) – Dissertação sobre as Paixões da Alma, Edição da Câmara
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«Affections de l’âme», Encyclipédie Méthodique, Edit. Panckouke, 1787, Paris.
Sanches, R. (1779) – «Memória sobre os banhos de vapor da Rússia considerados para a
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