SUMÁRIO - Uniesp

Transcrição

SUMÁRIO - Uniesp
SUMÁRIO
Neste ensaio, Rubens Carmo Elias Filho discute
sobre a responsabilidade civil do provedor
provedor,,
presidente, administrador e diretor clínico de
entidades assistenciais hospitalares, no Brasil,
onde o princípio que norteia o ordenamento
jurídico está assentado na supremacia da
dignidade humana. T
rês assuntos de alta
Três
complexidade: a responsabilidade civil, o
desenvolvimento do terceiro setor e a
desconsideração da personalidade jurídica nas
entidades assistenciais hospitalares são
cuidadosamente analisados.
34
Este ensaio aborda a responsabilidade civil
do dentista, tipos de erros odontológicos,
transmissão de moléstias contagiosas na
clínica, bem como problemas relacionados
com os aparatos utilizados e responsabilidades de fabricantes. A responsabilidade dos fabricantes dos aparelhos é
objetiva. A dos dentistas depende da
odavia, pela teoria
prova de sua culpa. T
Todavia,
da inversão do ônus da prova, ao cirurgiãodentista cabe a prova liberatória de sua
culpa. Por Jerônimo Romanello Neto.
A situação das pequenas e médias
empresas no Brasil é analisada, aqui, por
Sueli Soares de Lima, que discute legislação, situação financeira e prognósticos
sobre este importante segmento da
economia brasileira, e constata que
que,, não
obstante serem essas empresas gerado
gerado-ras de emprego, têm sido ignoradas ou
desestimuladas pelos governos do país
país..
1
8
50
TEMA
SUMÁRIO
A perspectiva prioritária da ação política
inovadora, em Maquiavel, em oposição à
concepção medieval, que via a salvação como
primordial, e o princípio básico de Mandeville,
sintetizado na expressão vícios privados,
benefícios públicos, são aqui tratados por
Orlando Villas Bôas Filho.
82
Romeu Giora Júnior discute o modelo inovador
de investimento e parceria do setor público
com o privado, no Brasil, contido na Lei da
PPP - Parceria Público-Privada.
Este artigo aborda os vários significados
d a p a l a v r a D i r e i t o , incluindo mitos que
cercam sua acepção jurídica, na Grécia e
em Roma. T
rata ainda da gênese do direito,
Trata
considerando as leis da natureza e as leis
civis, norteadas pelos princípios gerais
estabelecidos pelo direito natural.
98
70
90
Ana Cláudia P
ompeu T
orezan Andreucci
Pompeu
Torezan
realiza uma leitura crítica do filme norteamericano “Doze homens e uma sentença”
sentença”,,
a partir do estudo da retórica, desde sua
origem até os dias atuais, e de sua ampla
aplicabilidade na instituição do T
ribunal do
Tribunal
Júri nos Estados Unidos e no Brasil.
UNIESP
2
SUMÁRIO
O que é cargo de confiança e quais as
suas características? Este tema é posto
em discussão por Evilásio Ferreira Filho,
tendo como base a CL
T.
CLT
134
O regime da propriedade intelectual
e o sistema de patentes: as licenças
compulsórias. Estes temas são discutidos por Maria Lúcia de Barros
Rodrigues, que se fundamenta em
importantes posições doutrinárias
acerca da propriedade intelectual, as
quais apontam para a necessidade
de uma reforma na regulamentação
existente no ordenamento brasileiro
brasileiro..
Lúcia P
P.. S. Villas Bôas apresenta, aqui,
apontamentos para o estudo da relação
entre conhecimento e pesquisa, tendo
como base alguns aspectos da teoria
sistêmica elaborada pelo sociólogo
alemão Niklas Luhmann.
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180
TEMA
UNIESP
4
TEMA
ISSN 0103-8338
Revista das Faculdades Integradas Teresa Martin, instituição vinculada à UNIESP.
nº 49, janeiro/junho, 2007
Publicação indexada no IBICT, no ULRICH’S International Periodicals Directory e
no Latindex. Circulação regular desde 1986.
Edição de janeiro/junho:
Direito
Editor Responsável:
Zenaide Bassi Ribeiro Soares – MTb 8607.
Conselho Editorial:
Prof. Dr. Aclives Bulgarelli (Mackenzie), Prof. Dr. Alcides Ribeiro Soares (UNESP - Franca),
Prof. Dr. Alysson Mascaro (USP), Prof. Dr. Amadeu Paes de Almeida (Mackenzie), Profa.
Dra. Ana Cláudia Pompeu T. Andreucci (FATEMA), Prof. Dr. Djalma de Campos
(Mackenzie), Prof. Dr. Edivaldo Brito (Universidade Federal da Bahia), Prof. Omar
Toledo Damião (FATEMA), Prof. Dr. Orlando Villas Bôas Filho (FATEMA e Mackenzie),
Profa. Dra. Regina Toledo Damião (FATEMA), Roberta Nechar Gorni (Universidade de
Coimbra), Profa. Dra. Rosa Maria Valente Fernandes (FATEMA), Profa. Dra. Zenaide
Bassi Ribeiro Soares (FATEMA e Universidade Guarulhos).
Capa:
Joanes Lessa.
Revisão:
Profa. Dra. Rosa Maria Valente Fernandes.
Revisão de Inglês:
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Editoração Eletrônica:
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site: www.fatema.br
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TEMA
Revista
TEMA
Publicação indexada no IBICT, no ULRICH’S International Periodicals Directory e no Latindex.
Circulação regular desde 1986.
R.TEMA S.Paulo nº 49
UNIESP
P.192 janeiro/junho, 2007
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Apresentação
N
este ano o Instituto Teresa Martin comemora 60 anos de atividades educacionais, a Revista TEMA completa vinte e um anos de circulação regular e a UNIESP festeja a integração dessa
instituição ao corpo de Faculdades que administra.
Presidida pelo professor José Fernando Pinto
da Costa, a UNIESP estimula as Faculdades Integradas Teresa Martin a retomarem com mais força sua trajetória na educação brasileira; valoriza o curso de Direito que, neste ano, forma sua primeira turma; orienta
a Revista TEMA para o campo jurídico, revelando a densidade acadêmica e profissional de seu corpo docente
e discente, que oferece respostas à sociedade brasileira sobre questões relevantes, de grande atualidade.
Coordenado pela professora doutora Regina
Damião, o curso de Direito abre nova frente nos espaços tradicionais da educação do país, revelando seu
caráter inovador, que exige outro tipo de atitude diante
do conhecimento, ultrapassando o formato fechado
dos cursos, buscando soluções mais ágeis e flexíveis,
com a ampliação das salas de aula para além de suas
paredes, projetando-se na comunidade de forma integrada e responsável.
Desse modo, o Instituto Educacional Teresa
Martin se reorganiza, para enfrentar, com segurança,
novos e grandes desafios.
Zenaide Bassi Ribeiro Soares
Editora da Revista TEMA
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TEMA
Autor e Texto
Author - Text
Rubens Carmo Elias Filho*
RESPONSABILIDADE CIVIL DO PROVEDOR,
PRESIDENTE, ADMINISTRADOR E DIRETOR CLÍNICO
DAS ENTIDADES AS
SISTENCIAIS HOSPIT
ALARES
ASSISTENCIAIS
HOSPITALARES
CIVIL RESPONSABILITY OF THE PROVIDER, PRESIDENT, ADMINISTRATOR AND
CLINICAL DIRECTOR OF HOSPITAL ASSISTANCE ENTITIES
RESUMO
O presente artigo tem por objetivo discutir três assuntos de alta complexidade e
muito em voga no meio jurídico nacional: a responsabilidade civil, o
desenvolvimento do terceiro setor e a desconsideração da personalidade jurídica
nas entidades assistenciais hospitalares.
ABSTRACT
The objective of the present article is to discuss about three complex topics
which have been focused in the national juridical medium: civil liability,
development of the third sector and the disregard of the juridical liability in the
hospital assistance entities.
PALAVRAS-CHAVE
Responsabilidade civil. Terceiro setor. Desconsideração da personalidade
jurídica.
KEY WORDS
Civil liability. Third sector. Disregard of juridical liability.
* Advogado, integra o escritório de advocacia Elias e Laskowski Advogados Associados. Bacharel em
Direito pela Universidade Mackenzie, onde posgraduou-se em Direito Empresarial. Mestre em Direito das
Relações Sociais pela PUC-SP. É professor de Direito Civil, Direito Processual Civil e Direito Imobiliário na
FATEMA/UNIESP. Professor Assistente no Curso de Pós-Graduação lato sensu em Direito Contratual na
PUC-SP – COGEAE. Diretor Jurídico da Associação das Administradoras de Bens Imóveis e Condomínios
de São Paulo. Membro efetivo do Instituto dos Advogados de São Paulo. Autor do Livro “As despesas do
Condomínio Edilício”, publicado pela Editora Revista dos Tribunais. Autor do artigo “O Sistema de
Financiamento Imobiliário e o Patrimônio de Afetação para a Retomada do Mercado Imobiliário”, publicado
na obra Contratos Bancários, da Editora Quartier Latin.
R.TEMA
S.Paulo
UNIESP
nº 49
jan./jun. 2007
P. 08-33
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Rubens Carmo Elias Filho
RESPONSABILIDADE CIVIL DO PROVEDOR,
PRESIDENTE, ADMINISTRADOR E DIRETOR CLÍNICO
DAS ENTIDADES AS
SISTENCIAIS HOSPIT
ALARES
ASSISTENCIAIS
HOSPITALARES
CIVIL RESPONSABILITY OF THE PROVIDER, PRESIDENT, ADMINISTRATOR AND
CLINICAL DIRECTOR OF HOSPITAL ASSISTANCE ENTITIES
N
ão há como deixar de anotar que o conceito de
hospital evoluiu consideravelmente nos últimos
sessenta anos, passando das instituições assistenciais
difundidas pelas ordens religiosas para modernos hospitais,
que contam com a melhor medicina e ciência, visando, acima
de tudo, o restabelecimento do enfermo, pautando pelo asseio,
higiene, profissionalismo e especialização.
Diferente do que se via até aproximadamente 1940,
quando as instituições, ainda que pautadas pelo melhor espírito
de assistência e bondade, buscavam, muitas vezes, com
improviso, acalentar os enfermos e esperar um final menos
sofrido, sem grandes esperanças de progresso e também sem
grandes responsabilidades, “porque a assistência se prestava
a título de esmola, por comiseração e caridade, e, nesse sentido,
aquilo que se fizesse, pouco importando a maneira como se
fizesse, era sempre benefício, fruto da boa intenção e
sentimento cristão.”, como apontou Odair P. Pedroso1, até
porque poucos eram os recursos existentes.
Nos dias atuais, ao contrário, impera a supremacia da
dignidade humana, princípio norteador do ordenamento
1
ODAIR P. PEDROSO, Evolução Conceitual da Assistência Médico Hospitalar, p. 20.
9
TEMA
jurídico pátrio (art. 1º, III, da CF), repelido o descaso para com
a vida dos brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil, de
modo que o recolhimento do doente, rico ou pobre, a um hospital
constitui para a entidade que o mantém, obrigação de
tratamento digno e adequado, e, conseqüentemente, compatível
com as possibilidades criadas pela ciência e tecnologia.
Desta forma, o que se verifica é que os hospitais, sejam
públicos, privados e mesmo os assistenciais, devem zelar,
sempre, pela melhor saúde do paciente, devendo contar com
as condições compatíveis ao serviço que pretendem prestar,
visto que “a saúde é direito de todos e dever do Estado,
garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem
à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso
universal igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação.” (art. 196, CF).
Ao mesmo tempo em que o conceito de hospital progrediu
na busca pela saúde do cidadão, o ordenamento jurídico
igualmente evoluiu em prol de maior proteção à pessoa humana.
Neste diapasão, quanto ao tema que nos foi confiado, a
responsabilidade civil, esta é definida como o dever de indenizar
o dano, que se impõe no meio social regrado, traduzindo a
própria noção de Justiça, vista a responsabilidade como o
“dever moral de não prejudicar a outro, ou seja, o neminem
laedere.” 2, visando garantir o direito do lesado de ser
plenamente ressarcido dos prejuízos causados para, dentro do
possível, restabelecer o statu quo ante.
A Lei do Talião, por exemplo, também seria, no passado,
uma forma indenizatória, baseada na correspondência entre o
dano causado e a conseqüência de sua ocorrência, baseavase, porém, na justiça por iniciativa própria.
O Código de Hamurabi (2400 a.c) já estabelecia que: “O
médico que mata alguém livre no tratamento ou que cega um
cidadão livre terá suas mãos cortadas; se morre, o escravo paga
seu preço, se ficar cego, a metade do preço.”
2
RUI STOCCO, Responsabilidade civil e sua interpretação jurisprudencial, p. 59.
UNIESP
10
Apoiando-se nas lições de Marton, preleciona Maria
Helena Diniz3, quanto à responsabilidade civil:
“Vem a ser uma reação provocada pela infração
a um dever preexistente. É, desse modo, a
conseqüência que o agente, em virtude de
violação de dever, sofre pela prática de seus atos.
Tem uma função essencialmente indenizatória,
ressarcitória ou reparadora. Portanto, dupla é a
função da responsabilidade:
a) garantir o direito do lesado à segurança;
b) ser vir como sanção civil, de natureza
compensatória, mediante a reparação do dano
causado à vítima.”
Estes atos que caracterizam situação desabonadora em
afronta ao regime jurídico, causadores de danos a outrem são
chamados de atos ilícitos, geradores da responsabilidade civil
do agente causador do dano.
No Código Civil de 2002, os artigos 186 e 187
apresentam o ato ilícito:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão
voluntária, negligência ou imprudência, violar
direito e causar dano a outrem, ainda que
exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um
direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente
os limites impostos pelo seu fim econômico e
social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
São pressupostos da responsabilidade civil a ação ou
omissão, culpa ou dolo do agente, relação de causalidade e o
dano experimentado pela vítima.
Por outro lado, existem outros fatos causadores de
responsabilidade, alguns mesmo sem a existência da culpa, com
3
MARIA HELENA DINIZ, Curso de Direito Civil Brasileiro – Responsabilidade Civil,
7º vol, p. 8.
11
TEMA
base no risco objetivamente considerado (responsabilidade
objetiva) e os casos de responsabilidade por atos lícitos, nos quais
o dano nasce de um fato legalmente permitido que obriga o
responsável a ressarcir o prejuízo causado ao lesado.
O estado de necessidade regulado no Código Civil (art.
188, II) indica ato lícito passível de indenização, pois, havendo
deterioração ou destruição de coisa alheia para remover perigo
iminente, o dono da coisa, se não for culpado pelo perigo, tem
direito de indenização contra aquele que causou o dano, o qual
poderá regressivamente cobrar o causador do dano ou aquele
em defesa de quem se danificou a coisa4 (art. 929 e 930, CC/02).
A desapropriação por interesse público também gera o
direito de indenização, assim como outras intervenções na
propriedade privada por interesse público ou particular
(servidão de águas, servidão de passagem etc).
BREVE HISTÓRICO SOBRE A RESPONSABILIDADE
CIVIL DOS MÉDICOS E HOSPIT
AIS NO
HOSPITAIS
ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
O Código Civil revogado se preocupou basicamente com
a responsabilidade civil denominada subjetiva ou aquiliana, cujo
nome originou-se da Lex aquilia damno (Séc. III a.c.), a qual
estabeleceu, no Direito Romano, as bases jurídicas da
responsabilidade civil, criando a compensação pecuniária pelo
dano causado. O agente seria responsável se tivesse concorrido
com culpa, ou seja, se não tivesse operado com prudência,
diligência ou perícia, e, em decorrência de tal fato, provocasse
um dano a terceiro.
Não contemplou, também, o Código Civil revogado a
responsabilidade civil dos hospitais, instituição embrionária,
em 1916, limitando-se a estatuir a responsabilidade de
4
MARIA HELENA DINIZ, Op.cit., 7º vol., p.6.
UNIESP
12
médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras e dentistas, em
seu artigo 15455.
Independentemente da previsão legal, com o surgimento
dos hospitais, os tratamentos médicos deslocaram-se das
residências para os nosocômios, surgindo a necessidade de
se avaliar a existência de responsabilidade ou, ainda, coresponsabilidade dos hospitais, entre outras entidades afins,
pelos atos exercidos pelos médicos ou enfermeiras,
presumindo-se a culpa do hospital pelos atos culposos de
empregados ou prepostos (art. 1521, III, CC/1916)6.
Desta forma, caracterizado o erro médico, que causou
danos a paciente internado em hospital, a responsabilidade do
hospital tornou-se solidária, a menos que se prove que o
paciente tinha relação profissional pessoal com o médico, que
não possui nenhuma relação contratual com o hospital e que
se utiliza apenas dos seus serviços.
Com base na responsabilidade civil subjetiva, sustentada
na culpa, a responsabilidade do hospital decorre do erro
médico, respondendo solidariamente quando existente relação
de subordinação entre o causador do dano e o empregador,
entidade hospitalar.
Cabe, em regra, ao paciente provar o dano causado, o
nexo de causalidade entre o dano e suposto ato causador do
dano e a culpa do agente.
Ocorre que o perigo à saúde e à vida pode não decorrer
apenas da atividade do médico, sendo até mesmo intuitiva a
dissociação das atribuições do profissional da área de saúde
das atribuições do hospital.
Por esta razão, o hospital, e, na realidade, a pessoa
jurídica que o mantém ou que o administra, responde por seus
atos próprios, visto que, mesmo que inexista relação contratual
5
6
Art. 1545.Os médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras e dentistas são
obrigados a satisfazer o dano, sempre que da imprudência, negligência, ou
imperícia, em atos profissionais, resultar morte, inabilitação de servir, ou ferimento.
Súmula 341 do STF: “É presumida a culpa do patrão ou comitente pelo ato
culposo do empregado ou preposto.”
13
TEMA
entre o médico e o hospital, é inegável que no íntimo do paciente
se estabeleça uma relação entre todas as partes, relação esta
que efetivamente se estabelece, uma vez que o hospital não
deixará de prestar serviços ao enfermo7.
Nesse contexto, surge a responsabilidade civil objetiva
dos estabelecimentos de saúde que, ao contrário do médico,
responderão independentemente de prova do liame entre a
atuação e o resultado lesivo, porque, sendo fornecedores de
serviços, estão obrigados a procederem dentro de rigoroso
controle de qualidade, pois, a qualquer tempo poderão ter de
provar que determinado resultado danoso decorreu de motivos
estranhos ao atendimento prestado8, assim dispondo o Código
de Defesa do Consumidor, em seu artigo 14:
“O fornecedor de ser viços responde,
independentemente da existência de culpa, pela
reparação dos danos causados aos consumidores
por defeitos relativos à prestação de serviços, bem
como por informações insuficientes ou
inadequadas sobre sua fruição e riscos.”
§ 1º. O serviço é defeituoso quando não fornece
a segurança que o consumidor dele pode esperar,
levando-se em consideração as circunstâncias
relevantes, entre as quais:
I - o modo de seu fornecimento;
II – o resultado e os riscos que razoavelmente
dele se esperam;
III – a época em que foi fornecido.
§ 2º. O serviço não é considerado defeituoso pela
adoção de novas técnicas;
§ 3º. O fornecedor de serviços só não será
responsabilizado quando provar:
I – que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;
II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
7
8
CARAMURU AFONSO FRANCISO, Responsabilidade civil dos hospitais, clínicas
e prontos-socorros, p. 187.
FABRÍCIO ZAMPROGNA MATIELO, Responsabilidade Civil do Médico, p. 85.
UNIESP
14
§ 4º. A responsabilidade pessoal dos
profissionais liberais será apurada mediante a
verificação da culpa.
Observe-se, por oportuno, que a responsabilidade
objetiva, no campo das entidades assistenciais e fundações, é
anterior, tendo origem na norma constitucional:
Constituição Federal
Art. 37
§ 6º. As pessoas jurídicas de direito público
e as de direito privado prestadoras de
serviços públicos responderão pelos danos
que seus agentes, nessa qualidade,
causarem a terceiros, assegurado o direito
de regresso contra o responsável nos casos
de dolo ou culpa.
Diante do Código de Defesa do Consumidor, o hospital
responde pelo dano produzido pelas coisas (instrumentos,
aparelhos) utilizadas na prestação dos seus serviços, visto que
ao dono da coisa incumbe, ocorrido o dano, suportar os
encargos dele decorrentes, restituindo o ofendido ao statu quo
ideal, por meio da reparação.9
Clássica já é a responsabilização do hospital pela
infecção médico-hospitalar, que vem sendo analisada sob a
ótica da falha na prestação de serviço, obrigação contratual
relativamente à incolumidade do paciente, no que concerne aos
recursos colocados à disposição para o adequado tratamento
e recuperação10.
9
CARLOS ROBERTO GONÇALVES, Responsabilidade civil, p. 372.
RT 768/353. “Reparação de danos – Hospital – Prestação de serviços – Simples
traumatismo no dedo de um menor que, não obstante o atendimento médico
recebido, acaba se transformando em infecção grave a ponto de ser necessária
a amputação cirúrgica do membro – Falha no serviço caracterizada – Verba
devida pelo estabelecimento hospitalar, pois, nos termos do art. 14 da Lei 8.078/
90, responde objetivamente, independentemente de culpa, pelos danos causados
aos consumidores.”
10
15
TEMA
O Código Civil de 2002, assim como o Código revogado,
não contemplou especificamente os estabelecimentos
hospitalares em seu bojo, contudo, de maneira genérica, não
deixou de mencionar que o autor do dano responde
objetivamente, independentemente de culpa, pelas atividades
de risco (art. 927, Parágrafo único).
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e
187) causar dano a outrem, fica obrigado a
repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o
dano, independentemente de culpa, nos casos
especificados em lei, ou quando a atividade
normalmente desenvolvida pelo autor do dano
implicar, por sua natureza, risco para os direitos
de outrem.”
Na teoria do risco criado, inserta no Parágrafo único do
artigo 927, supra, não se cogita da intenção ou do modo de
atuação do agente, mas apenas da relação de causalidade entre
a ação lesiva e o dano, sendo suficiente a existência do nexo
causal entre a ação e o dano, porque, de antemão, aquela ação
ou atividade, por si só, é considerada potencialmente perigosa11.
Outrossim, o artigo 951 ampliou a esfera da responsabilidade, com relação ao 1545 do Código revogado, abrangendo
todas as pessoas que em sua atividade profissional, com culpa
em sentido estrito, causem dano ao paciente.
Art. 951. O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplicase ainda no caso de indenização devida por aquele
que, no exercício de atividade profissional, por
negligência, imprudência ou imperícia, causar a
morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe
lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho.
11
REGINA BEATRIZ TAVARES DA SILVA, Novo Código Civil Brasileiro. (Ricardo
Fiúza, coord.), p. 820.
UNIESP
16
E, os artigos 948 a 950 tratam da liquidação do dano, o
valor devido, nas hipóteses de responsabilização civil.
Art. 948. No caso de homicídio, a indenização
consiste, sem excluir outras reparações:
I – no pagamento das despesas com o tratamento
da vítima, seu funeral e o luto da família;
II – na prestação de alimentos às pessoas a quem
o morto os devia, levando-se em conta a duração
provável da vida da vítima.
Art. 949. No caso de lesão ou outra ofensa à
saúde, o ofensor indenizará o ofendido das
despesas do tratamento e dos lucros cessantes
até o fim da convalescença, além de algum outro
prejuízo que o ofendido prove haver sofrido.
Art. 950. Se da ofensa resultar defeito pelo qual o
ofendido não possa exercer o seu ofício ou
profissão, ou se lhe diminua a capacidade de
trabalho, a indenização, além das despesas do
tratamento e lucros cessantes até o fim da
convalescença, incluirá pensão correspondente
à importância do trabalho para que se inabilitou,
ou da depreciação que ele sofreu.
Parágrafo único. O prejudicado, se preferir,
poderá exigir que a indenização seja arbitrada e
paga de um só vez.
Exposto o direito material, constata-se que o hospital,
diante do ordenamento jurídico, submetido está ao regime da
responsabilidade civil objetiva, seja porque responde pelos
fatos de outrem, pelos atos de seus empregados (presunção
de culpa), seja porque responde por sua adequada prestação
de serviços.
17
TEMA
RESPONSABILIDADE POR A
TO OU F
A TO DE
ATO
FA
TERCEIRO – PRESUNÇÃO DE CULP
A
CULPA
Responsabilidade dos empregadores ou
comitentes pelos atos dos empregados,
serviçais e prepostos (art. 932, III)
Art. 932. São também responsáveis pela
reparação civil:
III – o empregador ou comitente, por seus
empregados, serviçais e prepostos, no exercício
do trabalho que lhes competir, ou em razão dele.
Está-se diante da chamada culpa in eligendo: decorre
da má escolha do representante, do preposto e culpa in
vigilando: decorre da ausência de fiscalização.
“Para que haja responsabilidade do empregador
por ato do preposto, é necessário que concorram
três requisitos, cuja prova incumbe ao lesado:
1º) qualidade de empregado, ser viçal ou
preposto, do causador do dano (prova de que o
dano foi causado por preposto);
2º) conduta culposa (dolo ou culpa strictu sensu)
do preposto;
3º) que o ato lesivo tenha sido praticado no
exercício da função que lhe competia, ou em
razão dela.” 12
Resta ao empregador, como se verifica, apenas provar
que o causador do dano não é seu subordinado ou que o dano
não foi causado no exercício do trabalho que lhe competia.
Típica é a responsabilidade médica hospitalar, quando
caracterizado o erro médico, que causou danos a paciente
internado em hospital. A responsabilidade do hospital é solidária,
12
CARLOS ROBERTO GONÇALVES. Op. cit., p. 148.
UNIESP
18
a menos que se prove que o paciente tinha relação profissional
pessoal com o médico, funcionário ou subordinado do hospital.
Importante ressaltar que diante da complexa estrutura
hospitalar, na qual existem grupos de médicos, tais como os
médicos diretores; médicos chefes de equipe, médicos
membros do Corpo Clínico, médicos plantonistas e médicos
residentes, a responsabilização dos médicos pode se mostrar
segmentada, dificultando a apuração de responsabilidades e
até mesmo o exercício do direito de regresso pelo hospital.
Por outro lado, se o paciente contratou apenas com o
médico que, por sua vez, providenciou a equipe, responde
pelos atos de todos os membros da equipe.
Direito de regresso do
indenizador do dano (art. 934, CC/02)
Faculta o Código Civil àquele que ressarcir o dano
causado por outrem, reaver o que houver pago daquele por
quem pagou (art. 934), sendo recomendável que as entidades
hospitalares contratem seus profissionais da forma mais
minuciosa possível para viabilizar o exercício do direito de
regresso, no âmbito hospitalar.
Ao se esmiuçar a responsabilidade dos membros do
Corpo Clínico e dos auxiliares, a entidade hospitalar estará
facilitando a identificação dos responsáveis pelo eventual dano
causado ao paciente.
Erro médico
O médico tem com o paciente relação contratual,
assumindo, conseqüentemente, obrigações. Estas são
chamadas de obrigações de meio e de obrigações de resultado.
Nas obrigações de meio, cabe ao credor provar que a
culpa, pela inexecução ou pelo dano, é do devedor da
obrigação (do médico) que se obrigou a empregar todos os
19
TEMA
meios e esforços para a consecução de seu objetivo, não
respondendo, porém, pelo resultado.
Observe-se que o próprio Código de Defesa do
Consumidor (art. 14, § 4º) excepciona os profissionais liberais,
entre eles o médico, da responsabilidade objetiva, diante da
relação de pessoalidade subentendida nos contratos firmados
com os profissionais liberais, de onde se extrai a obrigação
de meio.
Nas obrigações de resultado, por outro lado, dispensase a prova da culpa, porque o contratado se obrigou pelo
resultado, como as cirurgias estéticas embelezadoras e não
corretivas, nos exames laboratoriais, e, inclusive nos cuidados
necessários para que paciente não contraia infecção. Nesses
casos, a obrigação assumida é de alcançar a finalidade almejada.
Nas obrigações de meio, o erro médico ou culposo,
leciona João Monteiro de Castro, “supõe uma conduta
profissional inadequada associada à inobservância de regra
técnica, potencialmente capaz de produzir dano à vida ou
agravamento do estado de saúde de outrem, mediante
imperícia, imprudência ou negligência.13”
É o mal provocado pelo médico no exercício de sua
profissão, quando involuntário.
“A Medicina presume um comportamento de
meios, portanto o erro médico deve ser separado
do resultado adverso quando o médico empregou
todos os recursos disponíveis sem obter o
sucesso pretendido ou, ainda, diferenciá-lo do
acidente imprevisível.”14
A imprudência médica corresponderia a uma ação ou
omissão do médico que assume procedimento de risco, sem
lhe prestar, ou a quem de direito, os devidos esclarecimentos e
13
14
JOAO MONTEIRO DE CASTRO, Responsabilidade civil do médico, p. 141.
JULIO CÉZAR MEIRELLES GOMES, Erro médico, p.244.
UNIESP
20
colher o consentimento esclarecido, ou, ainda, atuar sem
respaldo ou suporte científico, entre outras possibilidades.
A negligência corresponderia a um comportamento
negativo do médico que não se empenha no tratamento, não
observa os deveres exigidos pela circunstância. Exemplifica
Miguel Kfouri Neto: “Revela negligência do médico que, diante
do caso grave, permanece deitado na sala dos médicos, em
hospital, limitando-se a prescrever medicamento, sem contato
com o paciente, criança desidratada, que veio a falecer.”15
A imperícia aconteceria se o médico que não domina
determinada técnica a usa, em uma sociedade que se prima
pelo constante aperfeiçoamento e especialização.
Nas hipóteses acima, responderia o hospital
solidariamente pelos atos culposos de seus empregados ou
prepostos, recaindo sobre a vítima a prova da culpa.
Na responsabilidade objetiva (art. 14, do CDC), o que
se observa é que a responsabilidade independe da prova da
culpa, bastando o dano para que o prestador de serviços seja
compelido a repará-lo a menos que se prove a inexistência de
defeitos no serviço prestado ou que a culpa é exclusiva do
consumidor (paciente) ou de terceiro (aquele que não
participou em nenhuma fase do fornecimento do serviço).
DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO
EST
ABELECIMENTO HOSPIT
ALAR
ESTABELECIMENTO
HOSPITALAR
Na forma preconizada pelo artigo 14, caput, do CDC,
como fornecedores de serviços, os hospitais estão obrigados
a procederem dentro de rigoroso controle de qualidade, de
modo que a infecção hospitalar é vista como responsabilidade
15
MIGUEL KFOURI, Responsabilidade civil do médico, p. 78.
21
TEMA
objetiva do hospital, assim como danos decorrentes de outros
equipamentos utilizados, de propriedade do nosocômio16.
Importa observar ainda onde encerra a responsabilidade
do médico e inicia a do hospital, ainda que inexista vínculo entre
o médico e o hospital.
Exemplifica Aguiar Dias: “a direção de um hospital é
responsável pelos danos decorrentes de ter o médico do
estabelecimento deixado, por vários dias, de verificar o estado
de um cliente ali interno, do que resultou agravação do seu
estado e anquilose da perna, por ter ficado na mesma posição
por tempo prolongado. Não procede a defesa fundada em que
se trata de erro técnico, que a direção não pode impedir, nem
mesmo criticar, porque o caso é de negligência, cujas
conseqüências ela poderia evitar se empregasse fiscalização
mais severa. Admitido o doente como contribuinte, forma-se
entre ele e o hospital um contrato, que impõe ao último a
obrigação de assegurar ao primeiro, na medida da estipulação,
as visitas, atenções e cuidados reclamados pelo seu estado.(...)
Assim, para resolver se a administração é ou não
responsável pela falta do médico, cumpre examinar se ele agiu
no exercício de sua profissão. Se, por exemplo, ministrou alta
dose de tóxico ao doente; se lhe corta um órgão vital no decorrer
de operação cirúrgica, a responsabilidade é exclusivamente
sua. Se, no caso contrário, deixa de examinar devidamente uma
criança atacada de moléstia contagiosa, confiando-a a uma
enfermeira, que é contaminada, pratica negligência ordinária,
16
“ementa da redação: Não respondem pela indenização decorrente de ato ilícito
pela morte de paciente por infecção hospitalar os médicos que cuidaram da
vítima, e sim o hospital onde permaneceu internada, ainda que os profissionais
não sejam subordinados à entidade hospitalar, pois, de acordo com o art. 14, §
4º, do CDC, o contratante somente se exculpará do evento danoso quando o
profissional liberal contratado desempenhar automaticamente, seu ofício no
mercado de trabalho, o que não se aplica aos serviços profissionais prestados
pelas pessoas jurídicas, seja sociedade civil, seja associação profissional.
Responsabilidade civil – Indenização hospitalar, como fornecedora de serviços,
à família da vítima, independentemente de culpa, mormente se não comprovada
a existência de defeito ou culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro –
Intelegência do art. 14, caput, e § 3º, I e II, da Lei 8.078/90. RT 755/469.
UNIESP
22
que nada tem de profissional, negligência que a fiscalização
do leigo poderia evitar. Examinar tardiamente um doente é
também negligência ordinária. Acresce, no caso, o fato de haver
um contrato entre o doente e o hospital, que se comprometeu,
implicitamente, a proporcionar-lhe uma assistência idônea e
satisfatória.(...)
Concordamos em quase tudo com as ponderações do
comentário. Apenas colocamos em lugar de maior importância
o contrato entre o hospital e o doente. Em face da garantia que
esse contrato encerra, torna-se ocioso indagar – sem proveito
para a configuração jurídica da espécie, quando não em seu
detrimento – se o médico desempenha ou não função de
preposto. Ao cliente que contratou com a direção uma
hospitalização em condições satisfatórias, pouco importa
indagar do conteúdo da relação jurídica entre a administração
e o técnico que presta o serviço por ele prometido.”17
No campo assistencial, a responsabilidade objetiva
originou-se de ordem constitucional18, e se o centro médico ou
hospital, no exercício de seu mister, aufere receitas, públicas e
privadas, para a prestação de serviços médicos, colocando à
disposição equipamentos e condições ao exercício da medicina,
responde objetivamente pela ocorrência de danos ao paciente,
em virtude de sua atividade específica e de seus equipamentos.
17
JOSE DE AGUIAR DIAS. Da Responsabilidade Civil, Tomo I, p. 365/6.
CIVIL – FUNDAÇÃO PRESTADORA DE SERVIÇO PÚBLICO – ATENDIMENTO ERRO NO DIAGNÓSTICO – COMPROVAÇÃO DO NEXO CAUSAL – DEVER DE
INDENIZAR – VERBAS. Morte de menor atendido no hospital da Fundação e
tratado como caxumba, quando, na verdade, a doença era um abcesso cervical,
que, diagnosticado e tratado corretamente poderia impedir a morte do paciente.
Fundação, por aplicação da teoria do risco administrativo ou objetiva, a que
alude o art. 37, § 6º, da Constituição da República, incidente mesmo não havendo
culpa do agente causador do dano. Verificação da concorrência de causas de
ambas as partes para o resultado morte e do dano sofrido pelos autores. Diante
das circunstâncias de ser a vítima menor de dez meses de idade, apenas o
“pretium doloris” deve ser ressarcido, assim mesmo com a redução da verba
indenizatória do dano moral, Exclusão das pensões alimentícias, por incabíveis.
Recurso parcialmente provido.(TJRJ – 7ª Câm. Cível, AC 2001.01.06708-RJ,
Rel. Des. Paulo Gustavo Horta, j. 16/8/2001, BAASP 2282/608, 23.9.2002).
18
23
TEMA
A PRESCRIÇÃO DOS MEDICAMENTOS
O médico, no exercício da medicina, é obrigado, ainda,
a aplicar produtos que, se perigosos, viciados ou inadequados,
podem causar danos ao paciente. Diante desse quadro,
questiona-se se responderá solidariamente o médico pelos
produtos prescritos e o hospital pelos produtos utilizados pelos
médicos que lhe são subordinados.
A nosso ver, a responsabilização decorreria apenas se o
medicamente ministrado que carreasse vício à saúde, tivesse
sido prescrito em dosagem extrapolada ou na hipótese de
receita de medicamento incongruente ao combate da doença.
Eventuais efeitos colaterais devem ser devidamente
informados e a dosagem corretamente indicada. Caso
contrário, pelo defeito da informação, o médico poderá
responder pelo dano causado.
No caso de medicamentos defeituosos ou que não
permitam a evolução do quadro clínico almejada, se o médico
se circunscrever à prescrição de remédios de qualidade
anteriormente comprovada, nenhuma responsabilidade advirá19.
DA RESPONSABILIDADE DO PROVEDOR,
PRESIDENTE, ADMINISTRADOR E DIRETOR CLÍNICO.
A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Diante do contexto jurídico acima citado, se vislumbra
que a instituição hospitalar acaba sendo um verdadeiro pólo
de atração de indenizações por danos supostamente causados
ao paciente.
Não seria leviano afirmar que as entidades hospitalares
são vítimas da indústria de indenizações intentadas pelos
negociantes da honra.
Importante então avaliar quais riscos que podem surgir
aos maestros da majestosa ópera assistencial.
19
JOAO MONTEIRO DE CASTRO. Op. cit., p. 174.
UNIESP
24
Quais as possibilidades de as perdas e danos, materiais
ou morais, resvalarem nos comandantes, seja o provedor, o
presidente, o administrador e diretor clínico, por meio do perigoso
instituto da desconsideração da personalidade jurídica.
Perigoso sim, porque em mãos desatentas, pode se tornar
verdadeiro constrangimento, para não se dizer ilegalidade, na
medida em que, sem se atentar aos princípios constitucionais
do devido processo legal e da ampla defesa, muitos juízes, no
afã de solucionar conflitos, arbitrariamente, podem
desconsiderar a personalidade jurídica de entidades, mesmo
as de fins não-econômicos, para atingir o patrimônio pessoal
de seus membros, sócios e administradores, em violação frontal
ao artigo 5º, incisos LIV e LV, da Constituição Federal20.
Aplicando-se o Código de Defesa do Consumidor às
relações entre o hospital, médico e paciente, conseqüentemente, se torna indispensável mencionar o artigo 28, do CDC,
que dispõe:
Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a
personalidade jurídica da sociedade quando, em
detrimento do consumidor, houver abuso de
direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou
ato ilícito ou violação aos estatutos ou contrato
social. A desconsideração também será
efetivada quando houver falência, estado de
insolvência, encerramento ou inatividade da
pessoa jurídica provados por má administração.
————————————————
§ 5º. Também poderá ser desconsiderada a
pessoa jurídica sempre que sua personalidade
for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento
dos prejuízos causados aos consumidores.
20
art. 5º LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido
processo legal. LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos
acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os
meios e recursos a ele atinentes.
25
TEMA
De mesmo orientação, o artigo 50, do Código Civil de 2002:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade
jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade,
ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir,
a requerimento da parte, ou do Ministério Público
quando lhe couber intervir no processo, que os
efeitos de certas e determinadas relações de
obrigações sejam estendidos aos bens
particulares dos administradores ou sócios da
pessoa jurídica.
A pessoa jurídica é uma realidade autônoma, capaz de
direitos e obrigações, independentemente de seus membros,
pois efetua negócios sem qualquer ligação com a vontade deles;
além disso, se a pessoa jurídica não se confunde com as pessoas
naturais que a compõem, se o patrimônio da sociedade não se
identifica com o dos sócios, fácil será lesar os credores, mediante
abuso de direito, caracterizado por desvio de finalidade,
circunstância que, avaliada em concreto, poderá ensejar a
despersonalização da pessoa jurídica para a satisfação dos
direitos dos credores, com os bens pessoais dos sócios.
Frise-se, porém, ser necessária a ocorrência de fatos
fartamente demonstrados de desvio de conduta para a
desconsideração da personalidade jurídica, a qual somente
deveria ocorrer por meio de ação própria, oportunizando todo
o direito de defesa àqueles que puderem ser prejudicados21.
Para tal responsabilização, necessário também seria
identificar as personagens responsáveis pelos atos
autorizadores da despersonalização, a qual não deve ser feita
de maneira genérica22. Nesta linha de raciocínio, necessário
dissociar aqueles que atuam nas instituições mantenedoras,
21
Inúmeras são as propostas de lege ferenda de exigir-se ação própria para a
despersonalização.
22
ENUNCIADO 7 do CEJ: “Só se aplica a desconsideração da personalidade
jurídica quando houver a prática de ato irreguar, e limitadamente, aos
administradores ou sócios que nela hajam incorrido.”
UNIESP
26
como o provedor e o presidente, daqueles que ocupam cargos
de direção hospitalar, como o administrador e o diretor clínico.
O provedor e o presidente das associações ou
fundações atuam, sem qualquer remuneração, em prol do
desenvolvimento da benemerência, da assistência, e somente
responderão na demonstração de atitudes ilícitas em proveito
próprio, com desvio de bens e ultrapassando as funções
estatutárias.
Art. 47. Obrigam a pessoa jurídica os atos dos
administradores exercidos nos limites de seus
poderes definidos no ato constitutivo.
Maiores riscos, a meu ver, correm o administrador e o
diretor clínico, e isto porque no organograma hospitalar estes
em geral são prepostos da pessoa jurídica, devendo zelar pela
aplicação das regras do hospital e decidindo sobre as principais
questões levantadas pelo Corpo Clínico (perante terceiros, são
eles que manifestam a vontade da entidade), de modo a,
eventualmente, responderem pelos atos de seus auxiliares, se
compuserem o corpo de médicos ou, ainda, se realizarem
procedimentos que não se compatibilizam com os estatutos e
regimentos da entidade.
Não nos parece, todavia, que qualquer erro médico
culposo possa permitir o atingimento do patrimônio pessoal dos
administradores, mas apenas em casos excepcionais, de clara
demonstração de menosprezo ao ser humano, nos quais,
conseqüentemente, existiria negligência dos superiores
hierárquicos23.
23
PESSOA JURÍDICA – DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURIDICA –
Expediente que só se admite como medida excepcional. Necessidade de prova
cabal e completa de que a sociedade tenha sido constituída com finalidade
manifestamente ilícita. Situação fática, ademais, em que sequer se comprova
a ausência de bens da entidade. Inexistência de elementos mínimos que
autorizassem a despersonalização. Penhora sobre bens dos sócios afastada.
(1º TAC/SP, 8ª Câm., AI n. 869.288-4 SP, Rel. Juiz Maurício Ferreira Leite, j. 4/
8/1999).
27
TEMA
Observe-se que, no exercício das atividades
administrativas e de chefia, cabem ao administrador e diretor
clínico “o dever de assegurar as condições mínimas para o
desempenho ético-profissional da Medicina” (art. 17), não se
olvidando de que “Nenhuma disposição estatutária ou
regimental de hospital ou instituição pública ou privada poderá
limitar a escolha, por parte do médico, dos meios a serem postos
em prática para o estabelecimento do diagnóstico e para a
execução do tratamento, salvo quando em benefício do paciente
(art. 16, do Código de Ética Médica).
Destacam-se ainda os seguintes mandamentos do
Código de Ética Profissional do administrador hospitalar24:
Art. 13. O Administrador Hospitalar testemunha
respeito a todas as formas de manifestação da
vida e empenha-se em preservá-la, mantê-la e
desenvolvê-la, até o limite das suas possibilidades,
repudiando tudo quando possa agredi-la ou
diminuir sua plena expressão.
Art. 16. O Administrador Hospitalar pauta sua
administração pelo princípio de que a pessoa
humana é o fundamento, o sujeito e o fim de toda
instituição assistencial e, quando enferma, o
centro e a razão de ser de toda a atividade de
saúde e hospitalar.
Pautando pela vida, estimulando o aprimoramento
humano, cultural e técnico dos profissionais que trabalham no
hospital, juntamente com a constante atualização tecnológica,
o administrador hospitalar atuará em conformidade com os
ditames legais, não podendo, conseqüentemente, se
responsabilizar pessoalmente por infortúnios.
Na ocorrência do dano oriundo de erro médico,
caracterizado este como ato ilícito, responderão solidariamente
os prepostos que atuaram para o fato e o empregador, hospital,
24
ELMA L.C. ZOBOLI, Ética e Administração Hospitalar, p. 246/5.
UNIESP
28
sendo que se este último pagar o débito, poderá
regressivamente cobrar dos causadores.
A situação fica nebulosa para o administrador e diretor
clínico, responsáveis pelo bom funcionamento do hospital, sendo
o último obrigatoriamente médico, respondendo pelos atos de
seus prepostos e possivelmente pelos danos pelo fato da coisa
(eventual falha de equipamentos do hospital, por exemplo).
Assinala Ângela Tuccio Teixeira25:
“Importante notar que esse artigo26 indica de
maneira abrangente que a atividade exercida pelo
administrador gera obrigações para a entidade.
Vale dizer que esse dispositivo traz pelo menos
duas afirmações a serem consideradas:
a) cabe à entidade delegar poderes de maneira
razoável, cientificando-se de tudo quando
ocorre no exercício da administração de seu
estabelecimento. Delegar, pois, não significa
conferir poderes ilimitados;
b) cabe ao administrador zelar pelo seu exercício
profissional, levando em conta a possibilidade
de cumprimento das metas propostas e,
principalmente, o contido no capítulo do
Código de Ética do Administrador que trata de
seus deveres. Não cabe a alegação de que
eventual infortúnio tenha ocorrido porque o
gestor nada poderia ter feito para alterar o
curso dos fatos ditados pela entidade.”
COMO PREVENIR A
RESPONSABILIDADE CIVIL
A prevenção se mostra, nessa sociedade de negociantes
da honra, da indústria da indenização, como um forte remédio
25
ANGELA TUCCIO TEIXEIRA, O administrador hospitalar diante da vigente
legislação civil.
26
Art. 47, do CC/02.
29
TEMA
para se evitar abusos jurídicos e também aquelas medidas
decorrentes de uma má informação.
É óbvio que, com exceção das hipóteses de obrigação
de resultado, o médico não pode se comprometer com o
objetivo pretendido. Deve sim utilizar corretamente as técnicas
preconizadas para alcançar o objetivo almejado. Mas isto não
basta, pois precisa demonstrar que o resultado obtido foi o
possível, além de informar previamente o paciente sobre os
eventuais riscos.
O primeiro mandamento para o médico evitar ser acusado
de culpa que não lhe cabe é ser explícito com o paciente. Deve
deixar claro e comprovado o pleno entendimento do paciente
quanto à gravidade do problema e claramente entender a seu
nível qual a evolução natural da doença e o que se pode esperar
do tratamento proposto, inclusive, quais as alternativas de
tratamento e os riscos confrontados com os benefícios que cada
alternativa por oferecer27.
O Termo de Consentimento Informado (Livre e
Esclarecido) e o Termo de Responsabilidade se mostram como
verdadeiras armas no combate às insatisfações dos pacientes,
devendo dele constar: a) identificação; b) procedimento; c)
descrição técnica; d) possíveis insucessos; e) complicações
pré e pós-operatória; f) anestesia; g) possibilidade de mudança
de conduta; h) declaração de atendimento; i) confirmação de
autorização (local-data); j) revogação; l) assinatura; m)
testemunhas28, dispondo, inclusive, sobre os direitos e deveres
do paciente e do hospital, tais como: a) faculdades do médico
em caso de iminente perigo de vida; b) procedimentos em caso
de recusa do paciente em realizar exames; c) indicação do
responsável em caso de incapacidade mensal do paciente etc.
O dever de informação é fundamental para a salvaguarda
dos profissionais e estabelecimentos da área de saúde:
27
IRANY NOVAH MORAES, Erro médico e a Justiça, p. 576.
FLORISVAL MEINÃO, Cuidado nunca é demais, Revista da APM, abril de 2005,
24-25.
28
UNIESP
30
a) informação do paciente: É fundamental que o
paciente seja informado pelo médico sobre a
necessidade de determinadas condutas ou
intervenções e sobre os riscos e conseqüências.
b) informações registradas no prontuário: uma das
primeiras fontes de consulta e informação sobre um
procedimento médico contestado é o prontuário do
paciente. É muito importante que ali estejam
registradas todas as informações pertinentes e
oriundas da prática profissional.
c) informações aos outros profissionais: em muitas
oportunidades, a participação de outros profissionais
é imprescindível, sendo muito importante a interação,
inclusive, aos substitutos do plantão sobre pacientes
internados, por meio de registro circunstanciado em
livro de ocorrências.
RESPONSABILIDADE CIVIL E
CRIMINAL (ART
(ART.. 935, CC/02)
A responsabilidade civil acarreta a necessidade de
ressarcimento dos danos causados; a criminal a de
cumprimento da pena estabelecida na lei penal. Contudo, se a
sentença criminal reconhecer o fato e o respectivo agente ou
negar a existência do fato e sua autoria, na justiça civil não
poderão mais ser questionadas essas matérias.
Em sentido contrário, a improcedência da ação penal,
não inviabiliza a indenização, na esfera cível, na medida em
que nem todo fato será considerado crime, podendo ainda se
supor a absolvição pela ausência de provas.
E, ainda, a sentença condenatória, na seara cível,
nenhuma influência terá na instância criminal, a qual exige
pressupostos específicos29.
29
RICARDO FIÚZA(coord.). Novo Código Civil Comentado, p. 833.
31
TEMA
CONCLUSÃO
A entidade assistencial hospitalar assume todas as
responsabilidades da instituição privada com fins econômicos.
Deve investir em seu aprimoramento e de seus auxiliares,
em tecnologia, ciência e instalações adequadas ao bom
atendimento porque a saúde é direito de todos.
No desenvolvimento de suas atividades, essencial será
tomar todas as precauções para evitar o erro médico,
prestigiando a informação adequada e a constante atualização,
seguindo os ensinamentos de Hipócrates para nunca se olvidar:
“O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano,
em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o
melhor de sua capacidade profissional.”30.
O fato de ser entidade assistencial, em nada atenua a
sua responsabilidade, impondo, aliás, a obrigação de exercer
o trabalho adequado e supervisionado pelos administradores
e diretores clínicos.
Cabem às entidades mantenedoras o acompanhamento
dos trabalhos, em prol do bem estar do paciente, zelando pela
melhor medicina, com competência e honestidade.
A doação pessoal ao trabalho assistencial expressa
verdadeira obra de bondade e fraternidade. Essa dádiva,
porém, deve seguir rígido regramento, evitando serem
desvirtuados os institutos e vulgarizada a medicina. Assumir
tais incumbências é grande obrigação e, como tal, se violada,
gera responsabilidade civil e criminal.
30
Art. 2º, do Código de Ética Médica.
UNIESP
32
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ZOBOLI, Elma L.C.P. Ética e administração hospitalar. São Paulo: Loyola,
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TEMA
Autor e Texto
Author - Text
Jerônimo Romanello Neto*
A RESPONSABILIDADE
CIVIL DO ODONTOL
OGIST
A
ODONTOLOGIST
OGISTA
THE CIVIL RESPONSABILITY OF THE ODONTOLOGIST
RESUMO
O advento do Código de Defesa do Consumidor trouxe um novo enfoque à
responsabilidade civil. Moderno e eficiente, introduziu a responsabilidade objetiva
trazendo, indiretamente, a melhoria dos produtos, tecnologia e de mercado, propiciando
ao consumidor maiores oportunidades e escolhas. Mas deste fato não se pode concluir
que o consumidor saiba, por si, dos riscos do tratamento, do uso de aparelhos
odontológicos, médico-hospitalares etc. A responsabilidade dos fabricantes dos aparelhos
é objetiva. A dos dentistas depende da prova de sua culpa. Todavia, pela teoria da
inversão do ônus da prova, ao cirurgião-dentista cabe a prova liberatória de sua culpa.
ABSTRACT
The advent of the Consumer Defense Code brought a new focus to the civil liability. Being
modern and efficient, it inserted the objective liability, bringing indirectly the improvement
of products, technology and market, rendering to the consumer better opportunities and
choices. But even so, one cannot conclude the consumer knows, by himself, about the
risks of treatment, of using dental and medical apparatus etc. The responsibility of the
manufacturers is objective, and the dentists’ depends on the proofs of their guilt.
Nevertheless it is attributed to the dentist surgeon the defense proof to free him from
guilt, according to the theory of proof onus inversion.
PALAVRAS-CHAVE
Responsabilidade Civil. Dentista. Cirurgião-dentista. Código de Defesa do Consumidor.
Prova. Culpa. Responsabilidade subjetiva. Responsabilidade objetiva. Inversão do ônus
da prova.
KEY WORDS
Civil Responsability. Dentist Surgeon. Consumer Defense Code. Proof. Guilt. Subjective
liability. Objective liability. Proof onus inversion.
*Mestre em Direito. Professor da Fatema/Uniesp. Advogado em São Paulo.
R.TEMA
S.Paulo
UNIESP
nº 49
jan./jun. 2007
P. 34-49
34
Jerônimo Romanello Neto
A RESPONSABILIDADE
CIVIL DO ODONTOL
OGIST
A
ODONTOLOGIST
OGISTA
THE CIVIL RESPONSABILITY OF THE ODONTOLOGIST
O CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO
O
Código Civil Brasileiro de 1916, Lei Federal n.º
3.071, de 1.º de Janeiro de 1916, revogado, trazia
em seu artigo 1.545 a seguinte redação: “Art. 1.545 - Os médicos,
cirurgiões, farmacêuticos, parteiras e dentistas são obrigados
a satisfazer o dano, sempre que da imprudência, negligência,
ou imperícia, em atos profissionais, resultar morte, inabilitação
de servir, ou ferimento”.
O atual Código Civil, Lei Federal n.º 10.406, de 10 de
Janeiro de 2002, ao tratar da Indenização, em seu artigo 951
trouxe a seguinte redação: “Art. 951 - O disposto nos arts. 948,
949 e 950 aplicam-se ainda no caso de indenização devida por
aquele que, no exercício de atividade profissional, por
negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do
paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para
o trabalho”. Também, os artigos 186, e 927 a 965, aplicam-se
ao assunto.
O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
Com o advento do Código de Defesa do Consumidor –
CDC, Lei Federal n.º 8.078, de 11 de setembro de 1990, cujas
regras valem igualmente para o cirurgião-dentista, em um
35
TEMA
primeiro momento, para estes profissionais, continua
prevalecendo, em tese, a responsabilidade civil subjetiva, ou
seja, deve ser provada a culpa do cirurgião-dentista para que
lhe seja atribuída a responsabilidade pelo dano causado.
“Certamente, o fundamento da responsabilidade civil, em sua
dupla configuração - contratual e extracontratual ou aquiliana -,
é a existência de um dano ressarcível que, por consistir na lesão
da integridade psicofísica da pessoa humana, requer a existência
de culpa do agente”1.
É a seguinte a redação do artigo 14 do CDC: “Art. 14. O
fornecedor de serviços responde, independentemente da
existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos
consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços,
bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre
sua fruição e riscos. § 1° O serviço é defeituoso quando não
fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar,
levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre
as quais: I - o modo de seu fornecimento; II - o resultado e os
riscos que razoavelmente dele se esperam; III - a época em que
foi fornecido. § 2º O serviço não é considerado defeituoso pela
adoção de novas técnicas. § 3° O fornecedor de serviços só não
será responsabilizado quando provar: I - que, tendo prestado o
serviço, o defeito inexiste; II - a culpa exclusiva do consumidor
ou de terceiro. § 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais
liberais será apurada mediante a verificação de culpa”.
Entretanto, conforme asseverado por Guimarães
Menegale2, “... à patologia das infecções dentárias corresponde
etiologia específica e seus processos são mais regulares e
restritos, sem embargo das relações que podem determinar
com desordens patológicas gerais; conseqüentemente, a
sintomatologia, a diagnose e a terapêutica são muito mais
1
ARAÚJO, André Luís Maluf de. Responsabilidade civil dos cirurgiões-dentistas. In
Bittar, Carlos Alberto (coord.) Responsabilidade civil médica, odontológica e
hospitalar, p. 155.
2
MENEGALE, J. Guimarães. Responsabilidade profissional do cirurgião-dentista.
Revista Forense, vol. 80, p. 37 e seguintes.
UNIESP
36
definidas e é mais fácil para o profissional comprometer-se a
curar”, pelo que a obrigação de resultados seria comum e a de
meios exceção.
O avanço da odontologia, como ciência, é inegável. As
técnicas e aparelhos, com um maravilhoso desenvolvimento
tecnológico, proporcionam ao cirurgião-dentista, nos dias de
hoje, a opção pelo tratamento ao invés da opção única que lhe
restava, não faz muitos anos - arrancar o dente doente. Veja-se
a ortodontia, ramo da odontologia que se ocupa da prevenção
e correção dos defeitos de posição de dentes e problemas
faciais associados, que trouxe àqueles desafortunados
portadores de problemas ortodônticos a inegável possibilidade
da efetiva correção desses problemas, diminuindo-lhes os
problemas psicossociais. Uma verificação dos resultados
pretendidos com os tratamentos odontológicos levam-nos a,
racionalmente, enxergar que a obrigação do cirurgião-dentista,
ora é de meios, ora é de resultados.
Entendemos que a obrigação de cura do cirurgiãodentista está sempre presente durante o tratamento. É que,
durante o tratamento, sua obrigação de meios compreende
isentar o paciente da dor, tratar o dente e restaurá-lo. Se, todavia,
o tratamento não for possível e, conseqüentemente, a
restauração, o dever de privação de dor continua, devendo o
dentista optar por aquela última alternativa - arrancar o dente
doente. E igual procedimento se faz presente nos casos mais
complicados do que um simples tratamento de cárie. Mas ainda
existe um agravamento da responsabilidade do cirurgiãodentista, a estética. Esteticamente falando, o cirurgião-dentista
tem sempre uma obrigação de resultado, quer seja na
restauração do dente doente, quer seja na reposição, por
implante, do dente arrancado. Todavia, nem sempre é possível
devolver a estética que o paciente almeja, mas sim uma estética
adaptada às condições bucais atuais do paciente, razão pela
qual esse esclarecimento, por parte do odontologista ao cliente
é imprescindível. O sorriso, para alguns, é uma fonte de renda.
É assim que surge para o cirurgião-dentista uma
obrigação de resultado, de eficácia, de acordo com sua
37
TEMA
especialidade. Alguns autores entendem que não geram
obrigação de resultado os casos de prótese buco-maxilofacial;
cirurgia e traumatologia buco-maxilofaciais. Como obrigação
de resultados, citam os casos de dentística restauradora,
odontologia legal, prótese dental e radiologia.
Para o cirurgião-dentista, são aplicáveis todas as regras
de especialidade, técnica, diagnóstico, omissão e
consentimento aplicáveis aos médicos, guardadas, obviamente,
as devidas proporções.
Alguns elementos devem estar presentes para que se
possa ver nascer a responsabilidade do cirurgião-dentista, quais
sejam: a) por parte do cirurgião-dentista deve haver um ato ação ou omissão; alguns autores o definem como ato
odontológico; b) este ato deve causar um dano em algum bem
material ou imaterial - direito à saúde, integridade física, à vida,
à personalidade, dano moral, dano patrimonial etc.; e, c) o dano
deve advir daquela ação ou omissão.
Do ato odontológico danoso surge a obrigação de
reparação desse mesmo dano. O dano, em razão dos serviços
odontológicos prestados, pode derivar da assistência sem a
devida diligência; da atuação em desacordo com as regras
consagradas pela prática odontológica; da atuação em
desacordo com o desenvolvimento da ciência no momento da
prestação dos serviços; de um erro de diagnóstico; de um erro
de tratamento; etc.
Guimarães Menegale divide o erro do profissional
odontológico em faltas ordinárias e faltas técnicas. As primeiras
são as que o profissional incide em caráter eventual e não
específico de seu ofício. As segundas, as técnicas, as que só
se verificam em razão do exercício da profissão.
Aguiar Dias3 propõe que “preferível, às vezes, prescindir
da classificação, dado o problemático resultado que
proporcionam”. “Isso quer dizer que a distinção, em princípio,
existe, com a vantagem de, uma vez estabelecido o caráter da
3
DIAS, José de Aguiar. Op. cit., p. 285.
UNIESP
38
falta profissional, indicar ao juiz que se abstenha de decidir a
respeito de circunstâncias peculiares à arte médica. Mas os
seus inconvenientes aconselham a abandoná-la. O principal
deles é a dificuldade de estabelecer uma discriminação
definida. Com efeito, multiplicam-se os exemplos em que uma
afirmação peremptória se torna arriscada. É erro profissional
ou ordinário o que pratica o cirurgião que opera para remover
imperfeição física que não afeta a saúde? E o abandono do
doente?”. Finalizando suas observações, Aguiar Dias adotou,
com as reservas que fez, entre elas as acima transcritas, o
método de Guálter Lutz na classificação dos erros profissionais
do cirurgião-dentista: a) erros e acidentes na anestesia; b) erros
de diagnóstico; c) erros de tratamento; d) erros de prognóstico;
e) falta de higiene; e f) erro nas perícias.
André Luís Maluf de Araújo preferiu classificar o erro
odontológico em “atos odontológicos ilícitos”, subclassificandoos em: a) falta da diligência devida: a imperícia odontológica e
a negligência odontológica; b) erro de diagnóstico; c) erro ou
falha de tratamento; d) falta ou falha dos meios técnicos.
Uma classificação diferente não é comportável no objeto
de uma dissertação, que nas palavras da American Library
Association4 “é um tratado sistemático e completo sobre um
assunto particular, usualmente pormenorizado no tratamento,
mas não extenso no alcance”, razão pela qual optamos por
explicar cada uma delas.
Sobre os erros e acidentes na anestesia, “o dentista não
pode responder pelo fato de alguém sentir dor ou sofrer lesões
labiais devido à sua relutância em submeter-se a ela; não se
pode cogitar de responsabilidade do dentista pelas
conseqüências imprevisíveis da anestesia, máxime quando se
tratar de profissional de reconhecida competência; é preciso
provar a imperícia ou negligência do cirurgião-dentista para
que se possa responsabilizá-lo com base em acidente
decorrente da anestesia; não se aplica à responsabilidade do
4
LEITE, Eduardo de Oliveira. A monografia jurídica, p. 7.
39
TEMA
dentista, em conseqüência de acidente derivado na anestesia,
a regra res ipsa loquitur; é iniludível a responsabilidade do
cirurgião-dentista que, praticando uma injeção destinada a
aliviar a dor do paciente, produz-lhe um fleimão no braço, em
virtude da má assepsia da agulha; é de rigor a esterilização da
seringa, da agulha, da ampola, da serra própria para rompê-la,
assim como a aplicação da tintura de iodo na parte da mucosa
destinada à penetração da agulha, pois a omissão de tal cuidado
implica em estender a flora microbiana desse ponto por todo o
trajeto da agulha; é grave a falta profissional do dentista que
injeta em tecido solapado por infecção, porque a infiltração do
líquido propaga os germes e prejudica a vitalidade e a
resistência dos tecidos, ainda que aplicadas substâncias antisépticas; não constitui culpa a anestesia no decurso da
menstruação ou gravidez, havendo quem condene, entretanto,
o emprego da adrenalina em tais ocasiões como fonte de
resultados lamentáveis; o rompimento da agulha não estabelece,
por si só, a responsabilidade do dentista, devendo, contudo,
examinar-se a participação do profissional no acidente, havendo
decisão que o condena em face das circunstâncias em que
ocorreu a ruptura, assim como em presença de sua manifesta
imperícia, em forçar indevidamente a agulha ou procurar, por
exemplo, extrair a agulha quebrada por meio de incisão na
gengiva do paciente, em condições pouco favoráveis; o emprego
de substância como a adrenalina e a supra-renina, capazes de
produzir intoxicação, dada a existência de anestésicos que as
substituem com vantagem; as lesões de nervos causadas pelo
manejo da agulha contra as indicações da arte”.
Por erro de diagnóstico, capaz de gerar a responsabilidade, o mesmo deve ser “expressão de ignorância
indesculpável; ou de má interpretação de dados semiológicos
corretamente obtidos; ou de desinteresse em obtê-los; ou da
omissão de pesquisas clínicas e radiológicas necessárias ao
tratamento, se o meio em que atua o profissional dispõe desses
recursos”. Se tem por origem o estado imperfeito da ciência, o
erro de diagnóstico é escusável.
UNIESP
40
Ainda, sobre o erro de diagnóstico, o profissional deve
atuar previamente sobre dois aspectos, o primeiro pela
averiguação dos sintomas e o segundo pela aplicação da
melhor técnica conhecida para eliminação do quadro
patológico. Resulta que a responsabilização do profissional por
um erro de diagnóstico é extremamente difícil, em razão de se
tratar de um campo científico. A conduta do dentista na
elaboração do correspondente diagnóstico é o que deve ser
investigado, para que possa ele vir a ser responsabilizado.
O erro ou falha de tratamento traz em si dois problemas
jurídicos: em um primeiro momento, o diagnóstico pelo dentista
que deve ter liberdade para ordenar a terapêutica
correspondente e, em segundo, a autoridade da prescrição
odontológica em função do consentimento do paciente. “O
dentista deve ordenar o tratamento menos perigoso, salvo em
caso necessário, em que outra providência não possa ser
tomada”. As informações ou atuações defeituosas, anteriores
ao tratamento, geram, como conseqüência, o erro ou falha de
tratamento. Os erros de tratamento, podem consistir “na escolha
de tratamento defeituoso ou impróprio; no tratamento mal
orientado de cáries e canais; no emprego de instrumentos
inadequados, nas intervenções, ou de materiais impróprios, nas
obturações, restaurações e trabalhos de prótese; na má
colocação destes ou na sua defeituosa confecção técnica; no
emprego de remédios perigosos ou trocados; na extração
leviana imprudente ou desnecessária; na má interpretação de
radiografias claras; na imperícia no uso dos aparelhos
radiológicos e fisioterápicos; na omissão de providências,
cautelas e conselhos que devam acompanhar o tratamento, nos
fatos das coisas ou instrumentos utilizados e, em geral, nos fatos
dos prepostos (enfermeiras, protéticos etc.) que de qualquer
forma o auxiliam ou intervêm no tratamento”.
Sobre erro de prognóstico, casos muito raros, incide o
dentista que, “dando pouca importância à lesão do paciente,
ocorrida na prática da exodontia, influi no seu ânimo para que
não procure um médico”.
41
TEMA
“Os principais casos de falta de higiene, de demonstração
difícil, consistem em transmissão de moléstias contagiosas,
principalmente a sífilis, cujo contágio se dá, ou diretamente do
dentista ao cliente ou de um cliente a outro, por intermédio de
instrumentos empregados na clínica odontológica”.
Também podemos incluir a responsabilidade do
cirurgião dentista pelo contágio da SIDA (Síndrome da
Imunodeficiência Adquirida) - AIDS, como caso de falta de
higiene. Andrea Cavalli e Maria Rita Cortese 5 dizem:
“considerando que, na atual situação, a única esperança de
controle da moléstia é uma correta prevenção, assume um
ponto de fundamental relevo a informação, seja aquela a ser
fornecida à população, seja aquela endereçada exclusivamente
ao pessoal sanitário, nos termos de uma mensagem sobretudo
clara e explícita nas diferenciações do quanto é conhecido e
no quanto se sugere, dando especial atenção às situações
dotadas de um potencial perigoso. No círculo do pessoal
sanitário, a exigência de uma correta informação é sentida de
modo particular pelos dentistas, posto que as primeiras
manifestações clínicas da A.I.D.S. surgem a nível da cavidade
bucal. Basta pensarmos sobre a candidíase, sobre as lesões
herpéticas e sobre as formas cancerosas e pré-cancerosas
localizadas na boca, e próprias dos quadros de
imunodeficiência...; em todos estes casos um correto
diagnóstico se revela de extrema importância ao término de
um tratamento precoce de A.I.D.S. Dentro de um consultório
dentário, como em qualquer outro ambiente cirúrgico, subsiste
um documentado risco de transmissão do VHI (Vírus Humano
da Imunodeficiência) - HIV entre o dentista e o paciente e o
pessoal auxiliar, de modo que deve ser levado a fundo o
problema relativo à possibilidade de veiculação do vírus de um
paciente a outro por meio de instrumental não submetido
5
CAVALLI, Andrea e Cortese, Maria Rita. La Responsabilità Professionale
Dell´Odontoiatra Per Infezione da H.I.V.: Problematiche Medico-Legali. In La
Responsabilità Medica in Ambito Civile, Attualità e Prospettive, Canepa, Giacomo
e Fiori, Angelo, op. cit., p. 589 a 592.
UNIESP
42
eficazmente ao procedimento de esterilização. Esta última
situação, a qual é induvidosamente uma patologia de natureza
iatrogênica, assume um notável interesse médico-legal. De fato,
deve ser verificada a hipótese de um dentista chamado a
responder em sede penal ou civil por um sujeito soro positivo,
ou contaminado com o vírus da A.I.D.S., por um comportamento
culposo do profissional. Neste ponto, deve ser verificado o
mérito do argumento, pelo que é necessária alguma precisão:
1) no âmbito civil, o eventual montante do ressarcimento é
devido à vítima do dano sofrido; ora, se os reflexos de uma
condição de A.I.D.S. atingem a eficiência psicofísica e a
capacidade laborativa do sujeito, prestando-se a uma avaliação
médico-legal, não se pode, entretanto, dizer que isso ocorra
num caso de “simples” soropositividade, faltando atualmente
aquele conhecimento da natureza puramente biológica e clínica
que poderiam permitir um correto enquadramento da situação
mórbida também em função da projeção prognóstica ...”.
Sobre a falta da diligência devida, sobre a imperícia
odontológica e a negligência odontológica, diz André de Araújo
que “para exercer diligentemente a atividade odontológica e com
disposição às regras da arte, é necessário que o profissional
possua os conhecimentos técnicos correspondentes, obrigação
que o Código de Ética Odontológica impõe em seu artigo 4º.,
quando prescreve que o cirurgião dentista tem o dever e a
responsabilidade de manter atualizados os seus conhecimentos
e de aperfeiçoar sua capacidade profissional. Já assinalamos
que a negligência implica, apesar de estar o dentista na posse
dos conhecimentos suficientes, na prestação por ele dos serviços
odontológicos com abandono, descuido, apatia, omissão de
precauções, enfim, desatenção às regras que presidem a arte
da odontologia, o lex artis, e também as normas deontológicas”.
O problema relacionado com os aparatos utilizados pelo
dentista no exercício de sua profissão: uso de bisturis, aparelhos
ortodônticos, ferramental em geral, raios laser, raio X, bombas
de cobalto, cirúrgicos, aparelhos elétrico-eletrônicos,
informáticos, nucleares, enfim, qualquer objeto classificável
como sendo aparelho médico-hospitalar, podem gerar a
43
TEMA
responsabilidade do dentista, clínicas, hospitais e outras
instituições pelos danos causados ao paciente.
Trata-se de verificar a possibilidade de imputar
responsabilidade ao ente causador do dano ou prejuízo ao
paciente pelo uso do instrumental. Há dois pontos que
distinguem a matéria: a) o dano pode ser causado pelo dentista
por intermédio dos aparelhos; e, b) o dano pode ser causado
pelo próprio aparelho.
No primeiro caso, o dentista é responsável pelo dano que
ocasionar ao seu paciente através dos instrumentos, por não
dominar a respectiva técnica de uso e manejo ou por utilizar
aparelho em condições inadequadas de funcionamento. A prova
liberatória de sua culpa há de ser por ele produzida. Isto significa
que, para não ser responsabilizado, o dentista deverá fazer
prova de que não agiu com culpa, provando que o dano
ocasionado não o foi em razão da forma como utilizou o aparelho
e nem pelas condições do aparelho de sua propriedade ou do
hospital, clínica, etc.
O ente (dentista, hospital, clínica, etc.) tem um dever de
prudência e de diligência quando utiliza uma “coisa”, seja ela
instrumento ou produto, pelo que deverá utilizar os maiores
cuidados na escolha, manutenção e conservação dessas
mesmas “coisas”.
Na França, conforme Aguiar Dias, ob. cit., pp. 262 e 263,
o cliente aceita as conseqüências do uso dos instrumentos, salvo
culpa do dentista. Diz o autor: “Temos dúvida em aceitar
integralmente o ensinamento, considerando que o cliente, de
ordinário, ignora os riscos dos instrumentos médicos. Como
presumir que aceite esses riscos? O caso, para nós, incide no
âmbito da regra fundamental concernente ao exercício da
profissão. Se a aplicação do instrumento oferece riscos, é dever
do médico advertir deles o cliente, respondendo pelas
conseqüências danosas, se não o faz. Em outros termos: a
aceitação dos riscos não se presume. Pode, entretanto, deduzirse dos conhecimentos do cliente, do uso generalizado do
instrumento e de outras circunstâncias de fato que os juizes
saberão apreciar”.
UNIESP
44
Assim, se o dano ocasionado o foi pelo aparelho e não
pelo dentista ou pelo uso inadequado do aparelho, responde o
fabricante perante o consumidor, agora dentista e paciente,
equiparados por força do art. 17 do Código de Defesa do
Consumidor.
A obrigação do profissional da odontologia é a de
prestação de assistência facultativa, com a devida diligência,
utilizando os meios técnicos necessários. “Por isto, a doutrina
assinala o seguinte: a) a obrigação de cada dentista de possuir
o material adequado para que possa realizar o trabalho em
condições normais; b) a obrigação de manutenção e correto
estado de funcionamento dos aparatos que utilize, sendo
responsável pelos prejuízos que os defeitos dos aparatos,
material ou instrumento produzam no paciente; c) a obrigação
de evitar contágios, epidemias e outras implicações externas.”
No caso concreto, deve-se perquirir se os aparatos ou
meios técnicos pertencem ao dentista e se são utilizados em
sua consulta privada ou se pertencem a uma instituição, de
caráter público ou privado, e se nela são utilizados. Também
há de se verificar se o dentista presta serviços a terceiros ou
não, tudo no intuito de se responsabilizar o indivíduo correto.
“Sobre as especialidades, a obrigação é de resultados,
dada a natureza jurídica do contrato de prestação de serviços
odontológicos em torno do contrato de serviço ou do contrato
de obra.” Ainda, André de Araújo, ob. cit. p. 172, cita como
especialidades de resultado a dentística restauradora;
odontologia legal; odontologia preventiva e social; ortodontia;
prótese dental; radiologia. Como especialidades que podem
variar de caso a caso: endodontia; cirurgia e traumatologia
buco-maxilofacial; odontopediatria; ortodontia; patologia bucal;
prótese buco-maxilofacial; e periodontia.
De acordo com o sistema legal vigente, a responsabilidade
do cirurgião-dentista, independentemente da natureza dessa
mesma responsabilidade civil - se contratual ou extracontratual,
somente se dá quando provada pelo paciente a culpa do
profissional (arts. 186, 927 e 951 do Código Civil).
45
TEMA
Ocorre que, pela introdução das regras do Código de
Defesa do Consumidor, além da facilitação da defesa dos
direitos do consumidor, quando, a critério do juiz, diante de
alegação verossímil e a hipossuficiência do consumidorpaciente, poderá ocorrer a inversão do ônus dessa prova.
Invertido o ônus, ao cirurgião-dentista caberá fazer a prova
liberatória de sua culpa. E de nada adianta entendermos ser
regra geral a obrigação de resultados a do dentista, tendo a de
meios como exceção, se na obtenção da reparação do dano
sofrido o paciente deve provar a culpa do profissional.
Já o dissemos, é uma forma, senão mais justa, mais
equilibrada de receber a relação fornecedor (cirurgiãodentista) e consumidor (paciente). As dificuldades de provar a
culpa do profissional da área odontológica são as mesmas
encontradas para provar a culpa do médico, advogado,
engenheiro, enfim, dos profissionais liberais. Os danos
indenizáveis são os danos patrimoniais e os morais. Menciona
o autor André de Araújo o dano corporal. Este último
compreende a invalidez parcial e total do rosto, ou prejuízo
estético, assim como outros prejuízos decorrentes de uma
anestesia aplicada indevidamente.
O advento do Código de Defesa do Consumidor trouxe
um novo enfoque à responsabilidade civil. Moderno e eficiente,
introduzindo a responsabilidade objetiva indiretamente trouxe
a melhoria dos produtos, da tecnologia e de mercado,
propiciando ao consumidor maiores oportunidades e escolhas.
Também, e não se pode negar, o consumidor pôde tornar-se
mais exigente. Mas deste fato não se pode concluir que o
consumidor saiba, por si, dos riscos pelo uso de aparelhos
médico-hospitalares. A responsabilidade dos fabricantes dos
aparelhos é objetiva. A dos dentistas depende da prova de sua
culpa. Todavia, ressaltamos que, pela teoria da inversão do ônus
da prova, ao dentista cabe a prova liberatória de sua culpa.
UNIESP
46
CRONOL
OGIA LEGISLA
TIV
A
CRONOLOGIA
LEGISLATIV
TIVA
O Decreto Federal n.º 20.931, de 11.01.1932, regula e
fiscaliza o exercício da medicina, da odontologia, da medicina
veterinária e das profissões de farmacêutico, parteira e
enfermeira, no Brasil, e estabelece penas. Em seus artigos 11 e
12, trata da falta grave e do erro de ofício; em seus artigos 20 a
22, cuida do receituário e da prescrição de substâncias
químicas (entorpecentes). Os artigos 30 a 33, cuidam do
exercício da odontologia.
Já o Decreto-Lei n.º 4.113, de 14 de fevereiro de 1942,
regula a propaganda de médicos, cirurgiões dentistas, parteiras,
massagistas, enfermeiros, de casas de saúde e de
estabelecimentos congêneres, e a de preparados farmacêuticos.
A Lei Federal n.º 4.324, de 14.04.64, instituiu o Conselho
Federal e os Conselhos Regionais de Odontologia. No seu artigo
18, encontramos as penas disciplinares aplicáveis pelos
Conselhos Regionais, de cujas aplicações caberá recurso para
o Conselho Federal. O Decreto n. 68.704, de 03.06.71,
regulamentou a Lei 4.324/64, que instituiu o Conselho Federal
e os Conselhos Regionais de Odontologia e nele estão contidas
normas de ordem administrativa interna dos Conselhos Federal
e Regionais, processos administrativos, inscrições, eleições dos
membros dos Conselhos etc.
A Lei Federal n.º 5.081, de 24 de agosto de 1966, regula
o exercício da odontologia, dizendo que o exercício da
Odontologia, no território nacional, só é permitido ao cirurgiãodentista habilitado por escola ou faculdade oficial ou
reconhecida, após o registro do diploma na Diretoria do Ensino
Superior, no Serviço Nacional de Fiscalização da Odontologia,
na repartição sanitária estadual competente e inscrição no
Conselho Regional de Odontologia sob cuja jurisdição se achar
o local de sua atividade. Interessante ponto da legislação é o
que diz competir ao cirurgião-dentista, entre outros: - proceder
à perícia odontolegal em fôro civil, criminal, trabalhista e em
sede administrativa; - aplicar anestesia local e truncular; -
47
TEMA
empregar a analgesia e a hipnose, desde que comprovadamente
habilitado, quando constituírem meios eficazes para o
tratamento; - manter, anexo ao consultório, laboratório de prótese,
aparelhagem e instalação adequadas para pesquisas e análises
clínicas, relacionadas com os casos específicos de sua
especialidade, bem como aparelhos de Raios X, para diagnóstico,
e aparelhagem de fisioterapia; - prescrever e aplicar medicação
de urgência no caso de acidentes graves que comprometam a
vida e a saúde do paciente; e, - utilizar, no exercício da função de
perito-odontólogo, em casos de necropsia, as vias de acesso do
pescoço e da cabeça.
A Lei nº. 6.681, de 16.08.79, que trata da inscrição de
médicos, cirurgiões-dentistas e farmacêuticos militares nos
respectivos Conselhos Regionais, em seu artigo 5º., menciona
que estes militares não estão sujeitos à ação disciplinar dos
Conselhos Regionais nos quais estiverem inscritos, e sim à da
Força Singular a que pertencerem.
A Lei Federal n.º 6.710, de 05.11.1979, dispõe sobre a
profissão de Técnico em Prótese Dentária e determina outras
providências.
Recentemente, foi publicado no DOU de 6.10.2004, pelo
Conselho Federal de Odontologia, o Código de Processo Ético
Odontológico, cujo objetivo consta dos seus arts. 1.º e 2.º.
Em sede penal, os artigos 268 e 282 do Código Penal
Brasileiro tratam dos “CRIMES CONTRA A SAÚDE PÚBLICA”,
“Infração de medida sanitária preventiva” e “Exercício ilegal
da medicina, arte dentária ou farmacêutica”.
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TEMA
Autor e Texto
Author - Text
*
Sueli Soares de Lima
PEQUENAS E MÉDIAS EMPRESAS:
LEGISLAÇÃO
AS
LEGISLAÇÃO,, REALIDADE E PERSPECTIV
PERSPECTIVAS
SMALL AND MEDIAN SIZE ENTERPRISES:
LEGISLATION, REALITY AND PERSPECTIVE
RESUMO
O objetivo deste trabalho é o de alcançar uma reflexão sobre como é a realidade das
pequenas e médias empresas no Brasil, concernente a aspectos legais e questões
financeiras. É apresentada uma visão geral, seguida de considerações finais.
ABSTRACT
The objective of this work is to motivate a reflection about the reality of small and
medium size enterprises in Brazil, in concerning to lawful aspects and financial
issues. A general view is presented, followed by final considerations.
PALAVRAS-CHAVE
Negócios no Brasil. Pequenas e médias empresas. Funcionamento legal.
Perspectivas.
KEY WORDS
Business in Brazil. Small and medium size enterprises. Legal operation.
Perspectives.
*Aluna do Curso de Graduação em Direito Fatema/ Uniesp.
R.TEMA
S.Paulo
UNIESP
nº 49
jan./jun. 2007
P. 50-69
50
Sueli Soares de Lima*
PEQUENAS E MÉDIAS EMPRESAS:
AS
LEGISLAÇÃO
PERSPECTIVAS
LEGISLAÇÃO,, REALIDADE E PERSPECTIV
SMALL AND MEDIAN SIZE ENTERPRISES:
LEGISLATION, REALITY AND PERSPECTIVE
É
indiscutível a importância das pequenas empresas
na economia global.
Inobstante, em recente artigo, abordou-se a falta de
incentivos para aquelas empresas no Brasil:
Hoje em dia as grandes empresas desempregam
mais do que contratam. São as pequenas e
médias que geram emprego, aqui e mundo afora.
Mas, em vez de fortalecer a pequena empresa,
quase todos os governos do Brasil a ignoram ou
a enfraquecem.
Sob o título “O fim das pequenas empresas”, o referido
autor discorreu sobre uma série de circunstâncias que
desestimulam o empresário e o empreendedor no país:
Ainda segundo estimativas de Burti, 59% das
pequenas e médias empresas fecharão as portas
em 2009. Essas estatísticas não são exageradas.
O número de insolvências nesse segmento
sempre foi elevado, só que antigamente cinco
novas empresas eram criadas para cada quatro
que quebravam.1
1
KANITZ, Stephen. O fim das pequenas empresas. Revista Veja, São Paulo:
Editora Abril, n. 1845, 17 mar. 2004. Disponível em: <http://www.veja.com.br>.
Acesso em: 1 abr. 2004, 23h.
51
TEMA
Além disso, teceu comentários a respeito dos impostos:
houve a elevação, bem como a redução dos prazos de
pagamento (120 para quinze dias), ocorrendo, inclusive
antecipação da receita ao governo.
A partir dessas considerações, aguçou-se a curiosidade
sobre as normas reguladoras das empresas de porte pequeno
e micro, objeto deste trabalho.
PEQUENAS E MICROEMPRESAS E A
LEGISLAÇÃO VIGENTE
Conceito
Não existe uma definição absoluta, aceita
universalmente. Segundo COLOSSI; DUARTE, as possíveis
variáveis concernem: “emprego” e “investimento”, ou “volume
de vendas” e “consumo de energia”, ou, ainda, pelo número de
empregados, variando de estado para estado2. Adotaremos o
conceito preconizado por Rubens Requião, concernente à
receita bruta anual, conforme definido em lei:
De acordo com a Lei no 9.841/99, considera-se
microempresa a pessoa jurídica e a firma
mercantil individual que tiver receita bruta igual
ou inferior a R$ 244.000,00. Já empresa de
pequeno porte será a pessoa jurídica ou a firma
mercantil individual que, não enquadrada como
microempresa, tiver renda bruta anual superior a
R$ 244.000,00 e igual ou inferior a R$
1.200.000,00 (art. 2o)3.
2
COLOSSI, Nelson; DUARTE, Roberta C. Determinantes organizacionais da gestão
em pequenas e médias empresas (PEMS) da grande Florianópolis– SC. In Revista
TEMA, n. 37, p. 6-27. São Paulo, jul./dez. 2000.
3
REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 24. ed. atual. São Paulo: Saraiva,
2000, p. 63.
UNIESP
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Ao Poder Executivo cabe a atualização desses valores
para o enquadramento das microempresas (ME) e das
pequenas de pequeno porte (EPP).
Os arts. 8o e 9o da referida Lei prevêem o enquadramento
e o desenquadramento. Enquadramento (de ME para EPP, ou
EPP para empresa comum), quando os tipos analisados
superarem, por dois anos, consecutivos ou três anos alternados,
em um período de cinco anos, os limites referidos de renda
bruta. O enquadramento de empresa comum, para empresa
de pequeno porte e desta para microempresa, pode ocorrer
trinta dias, a contar da data da ocorrência, que pode ser feita
por via postal, com aviso de recebimento.
Os limites devem ser apurados no exercício civil (1o de
janeiro a 31 de dezembro de cada ano), somando-se as receitas
brutas de todos os meses.4
SEBASTIÃO ROQUE menciona duas formas jurídicas
para ME e a EPP:
forma individual – trata-se do empresário que se
registra com o próprio nome para exercer
atividades empresariais [...] “empresa individual”
ou “empresário individual”[...].
pessoa jurídica – é a chamada empresa coletiva
pela CLT: deve revestir-se de forma societária
prevista pelo Código Comercial e devidamente
registrada na Junta Comercial.6
Estatuto
A Lei no 9.841 instituiu novo Estatuto da Microempresa e
Empresa de Pequeno Porte, que objetiva dar um tratamento
4
5
ROQUE, José Sebastião. Moderno curso de direito comercial. 2. ed. rev. e
ampl. São Paulo: Ícone, 2001, p. 78-79.
ROQUE, 2001, p. 79.
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TEMA
jurídico diferenciado às ME e EPP, conforme previsto na
Constituição Federal vigente:
CAPÍTULO I
DO TRATAMENTO JURÍDICO DIFERENCIADO
Art. 1o – Nos termos dos arts. 170 e 179 da
Constituição Federal, é assegurado às microempresas e às empresas de pequeno porte
tratamento jurídico diferenciado e simplificado nos
campos administrativo, tributário, previdenciário,
trabalhista, creditício e de desenvolvimento
empresarial, em conformidade com o que dispõe
esta Lei e a Lei no 9.317, de 5 de dezembro de
1996, e alterações posteriores.
Parágrafo único. O tratamento jurídico simplificado
e favorecido, estabelecido nesta Lei, visa facilitar
a constituição e o funcionamento da microempresa
e da empresa de pequeno porte, de modo a
assegurar o fortalecimento de sua participação no
processo de desenvolvimento econômico e social.
Existiam, anteriormente, uma série de leis, cujo objetivo
centrava-se em um tratamento diferenciado às ME e EPP: (a)
Decreto-lei no 1.750, de 14 de abril de 1980; (b) a Lei n o 7.256
de 27 de novembro de 1984; (c) a Lei no 8.864, de 28 de março
de 1994, implantando o Estatuto da Microempresa; (d) a Lei no
9.317, de 5 de dezembro de 1996, que, revogando artigos da
Lei no 8.864/94, estabeleceu o Sistema Integrado de Pagamento
de Impostos e Contribuições das Microempresas e Empresas
de Pequeno Porte – o SIMPLES, sobre o qual efetuaremos
abordagem mais pormenorizada, a posteriori. Dessarte,
REQUIÃO afirma haver uma preocupação do Governo em
instituir uma política de desburocratização ainda no regime
militar, por volta de 1979.6
6
REQUIÃO, 2000, p. 62-63.
UNIESP
54
Registro
A Lei no 9.841/99, como mencionado anteriormente, fixa
o limite da receita bruta anual para o enquadramento. O registro
dá-se por meio de uma declaração do titular ou sócios, que
pode ocorrer tanto perante o registro público de empresas
mercantis, executado pelas Juntas Comerciais, como perante
o registro civil das pessoas jurídicas, dependendo da origem
de inscrição do ato constitutivo da empresa. REQUIÃO atesta:
[...] trata-se de comunicação de um fato ou
situação especial, e não de pedido de
reconhecimento, a ser deferido. O órgão que
opera o registro apenas tomará nota do
comunicado, promovendo os registros
necessários. A Lei no 9.841/99, por outro lado,
no art. 6o utiliza a expressão ‘arquivamento’ para
designar o ato do registro da microempresa ou
empresa de pequeno porte[...]7
Destarte, não cabe ao órgão verificar a veracidade das
informações. Contudo, declarações falsas incorrem em
penalidade, prevista no Código Penal:
Art. 299 – Omitir, em documento público ou
particular, declaração que dele devia constar, ou
nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou
diversa da que devia ser escrita, com o fim de
prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a
verdade sobre fato juridicamente relevante:
Pena – reclusão de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e
multa, se o documento é público, e reclusão de
1 (um) a 3 (três) anos, e multa, se o documento
é particular.
7
REQUIÃO, p. 64.
55
TEMA
No registro, deverá constar, em seguida ao nome, a
expressão “microempresa” ou, abreviadamente “ME”, ou
“empresa de pequeno porte” ou “EPP”:
Art. 7o Feita a comunicação, e independentemente
de alteração do ato constitutivo, a microempresa
adotará, em seguida ao seu nome, a expressão
“microempresa” ou, abreviadamente, “ME”, e a
empresa de pequeno porte, a expressão
“empresa de pequeno porte” ou “EPP”.
Regime T
ributário e Fiscal
Tributário
Os art. 11 e 12 da Lei n o 9.841/99 discorrem sobre
algumas dispensas, complementada pela Lei no 9.317/96, assim
exemplificada por REQUIÃO:
[...] essa proposição se transformou em
determinação direta da lei, pois a de no 9.317/96, ao
estabelecer um interessante sistema de pagamento
de impostos e contribuição (art. 3o), eliminando
alguns, reduzindo outros, e concentrado a sua
liquidação em poucos atos decorrentes da atividade
das empresas micro e de pequeno porte. Pelo art.
7o, § 1o, elas ficam dispensadas de escrituração
comercial, desde que mantenham, em boa ordem e
guarda e enquanto não decorrido o prazo
decadencial e não prescritas eventuais ações que
lhes sejam pertinentes: I – Livro Caixa, no qual será
escriturada toda a sua movimentação financeira,
inclusive bancária; II – Livro de Registro de
Inventário, no qual deverão constar registrados os
estoques existentes no término de cada ano; III –
todos os documentos e demais papéis que serviram
de base para a escrita antes referida. Mas essas
facilidades não dispensam o cumprimento de
obrigações acessórias previstas na legislação
previdenciária e trabalhista.”8
8
REQUIÃO, 2000, p. 66.
UNIESP
56
Cálculo e Recolhimento do
Imposto Unificado
Objetivando o favorecimento às ME e EPP, criou-se uma
forma simplificada e unificada de recolhimento de tributos, por
meio da aplicação de percentuais favorecidos e progressivos,
incidentes sobre a renda bruta da empresa (vide 2.1). Trata-se
do Sistema Integrado de Pagamento e Impostos e Contribuições
das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte – o SIMPLES.
O prazo de recolhimento é o décimo dia do mês subseqüente
àquele em que a receita bruta tiver sido auferida.9
A título informativo, anexamos tabela contendo os
percentuais fixados e partilhados, conforme artigos 5o e 23 da
Lei no 9.317/96, com alterações promovidas pelo art. 3o da Lei
no 9.732/98 e Lei no 10.034/00.10
PERCENTUAIS POR FAIXA DE RECEITA BRUTA
Imposto
Contribuição
Microempresa
Empresa de Pequeno Porte
Até
de
de
de
Até
de
de
de
de
de
de
de
R$
60.000,01 90.000,01
240.000,01 360.000,01 480.000,01 600.000,01 720.000,01 840.000,01 960.000,01 1.080.000,00
R$
60.000,00
a
a
a
240.000,00
a
a
a
a
a
a
a
90.000,00 120.000,00
360.000,00 480.000,00 600.000,00 720.000,00 840.000,00 960.000,00 1.080.000,00 1.200.00,00
IRPJ
zero
zero
zero
0,13%
0,26%
0,39%
0,52%
0,65%
0,65%
0,65%
0,65%
0,65%
PIS/PASEP
zero
zero
zero
0,13%
0,26%
0,39%
0,52%
0,65%
0,65%
0,65%
0,65%
0,65%
CSLL
zero
0,4%
1%
COFINS
1,8%
Contribuições
Previdenciárias
1,2%
1,6%
2,0%
2,14%
2,28%
2,42%
2,56%
2,7%
3,1%
3,5%
3,9%
4,3%
3%
4%
5%
5,4%
5,8%
6,2%
6,6%
7%
7,4%
7,8%
8,2%
8,6%
7,9%
8,3%
8,7%
9,1%
SUBTOTAL
2%
2%
0,5%
IPI
TOTAL
1%
3,5%
4,5%
0,5%
5,5%
5,9%
6,3%
6,7%
7,1%
7,5%
9
SEBRAE. Conheça o Simples. Disponível em: <http://www.sebrae.com.br/br/
home/index.asp>. Acesso em: 9 maio .2004, 14h 30min.
10
SEBRAE. Conheça o Simples.
57
TEMA
Regime Previdenciário e T
rabalhista
Trabalhista
A Lei no 9.841/99 assegura, no capítulo V:
Art. 10. O Poder Executivo estabelecerá
procedimentos simplificados, além dos previstos
neste Capítulo, para o cumprimento da legislação
previdenciária e trabalhista por parte das
microempresas e das empresas de pequeno
porte, bem como para eliminar exigências
burocráticas e obrigações acessórias que sejam
incompatíveis com o tratamento simplificado e
favorecido previsto nesta Lei.
No art. 11, enumeram-se as dispensas concernentes à
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT, arts. 74; 135, § 2o; 360;
429; 628, § 1o).
Incentivos
O capítulo VII – do Desenvolvimento Empresarial –
dispõe:
Art. 19. O Poder Executivo estabelecerá
mecanismos de incentivos fiscais e financeiros,
de forma simplificada e descentralizada, às
microempresas e às empresas de pequeno porte,
levando em consideração a sua capacidade de
geração e manutenção de ocupação e emprego,
potencial de competitividade e de capacitação
tecnológica, que lhes garantirão o crescimento e
o desenvolvimento.
No mesmo capítulo, são asseguradas prioridades à ME
e à EPP, quanto: (a) aplicação de recursos em pesquisa (art.
20); (b) acesso a serviços de metrologia e certificação de
conformidade prestados por entidades tecnológicas públicas
(art. 21); (c) competitividade no mercado interno e externo,
inclusive mediante o associativismo de interesse econômico
UNIESP
58
(art. 22); (d) estabelecimento de mecanismos de
desburocratização e capacitação (art. 23); (e) política de
compras governamentais (art. 24).
Apoio Creditício
Assevera-se, no capítulo VI – do Apoio Creditício:
Art. 14. O Poder Executivo estabelecerá
mecanismos fiscais e financeiros de estímulo às
instituições financeiras privadas no sentido de
que mantenham linhas de crédito específicas
para as microempresas e para as empresas de
pequeno porte.
Art. 15. As instituições financeiras oficiais que
operam com crédito para o setor privado
manterão linhas de crédito específicas para as
microempresas e para as empresas de pequeno
porte, devendo o montante disponível e suas
condições de acesso ser expressas, nos
respectivos documentos de planejamento, e
amplamente divulgados.
PEQUENAS E MICROEMPRESAS E OS
PROGRAMAS DO GOVERNO
SEBRAE
O SEBRAE é o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e
Pequenas Empresas, em cujo estatuto encontram-se os
fundamentos da entidade, o âmbito de atuação e objetivos
institucionais, bem como estrutura organizacional e afins (arts.
1º, 5º e 6º), objetivando “fomentar o desenvolvimento
sustentável, a competitividade e o aperfeiçoamento técnico das
microempresas e das empresas de pequeno porte industriais,
comerciais, agrícolas e de serviços, notadamente nos campos
da economia, administração, finanças e legislação”.
59
TEMA
No site do SEBRAE, é possível ao empresário encontrar
informações relevantes às suas necessidades. Estatutos, leis,
decretos, resoluções até formulários estão presentes naquele
site. Inclusive um capítulo concernente a empréstimos: “Como
obter crédito e capital”.
Inicia-se com informações importantes e concretas:
A falta de crédito é um dos principais obstáculos
para a criação e o desenvolvimento dos pequenos
negócios no Brasil. Apesar de responderem por
aproximadamente 20% do Produto Interno Bruto
(PIB) e 60% dos empregos gerados no País, as
MPE recebem apenas 10% dos créditos
concedidos pelos bancos oficiais e privados.
O papel do Sebrae é facilitar o acesso dos
pequenos empreendimentos ao crédito e a
capitais, de forma pioneira e indutora de mercado.
Financiamentos e capitalizações são descritos: Crédito,
Cooperativismo de crédito, Microcrédito, Capital de risco.
Obtêm-se informações sobre os mesmos: o que são, quem pode
ter acesso, onde procurar, modalidades, links úteis.
Não obstante, o SEBRAE alerta aos futuros candidatos a
financiamentos:
[...] só o faça quando estiver seguro de que a
empresa terá condições de pagá-lo.
Verifique se o financiamento é condição
imprescindível para o sucesso de sua empresa.
Lembre-se que obter um financiamento para
cobrir outro tem levado empresas a contrair
dívidas crescentes e difíceis.
[....] O crédito deve ser utilizado para expansão e
fortalecimento do negócio ou para capital de giro.11
11
SEBRAE. Legislação de Microcrédito. Disponível em: <http://www.sebrae.com.br/
br/home/index.asp>. Acesso em: 9 maio 2004, 14h 30min.
UNIESP
60
PROGER
No site da Caixa Econômica Federal, encontram-se as
informações, referentes ao objetivo do PROGER – Programa
de Geração e Renda:
O PROGER – Micro e Pequena Empresa é uma
linha de crédito instituída pelo Ministério do
Trabalho voltada ao financiamento de Planos de
Negócios de investimento e capital de giro
associado, visando a geração e manutenção de
emprego e renda, com a utilização de recursos
do FAT - Fundo de Amparo ao Trabalhador.12
Para utilizar-se do programa, o empresário dirige-se a
uma agência da Caixa a fim de preencher um cadastro.
Havendo aprovação, o mesmo apresenta um Plano de Negócios,
que sofre nova análise. Nesse momento, observa-se a
viabilidade do plano, garantias e possibilidade de honrar o
compromisso.
No mesmo site, são indicadas o que são contemplados
pelo financiamento.
- Investimentos fixos representados por bens, inclusive equipamentos importados, e serviços
inerentes às atividades do proponente, previstos
no Plano de Negócio apresentado;
- Capital de giro associado destinado a suprir as
necessidades de execução das atividades
previstas no Plano de Negócio;
- Investimentos para implantação de sistemas de
gestão empresarial, quando previstos no Plano
de Negócio, exceto para cooperativas e
associações de produção.
12
CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. PROGER. Disponível em: <http://
www1.caixa.gov.br/pj/asp/PROGER_Saibamais.asp>. Acesso em: 29 jun. 2004,
14h.
61
TEMA
Limites para o financiamento (até 90% do projeto,
limitado a R$ 5 mil; até 90% do projeto, limitado a R$ 10 mil,
apenas para recém-formados em medicina, veterinária,
odontologia, farmácia e fisioterapia, e dentro de convênios ou
projetos integrados; inclui-se nestes limites a parcela de capital
de giro associado, quando houver, que não pode exceder a 50%
do total do financiamento); prazos (até 24 meses, incluindo
carência de até 6 meses) e encargos (TJLP + 3% ao ano, e IOF
conforme legislação vigente; juros e TJLP durante o período
de carência) são novas barreiras para o empresário.
PEQUENAS E MICROEMPRESAS E A
REFORMA TRIBUTÁRIA
Projeto
Em julho de 2003, o SEBRAE encaminhou propostas para
Emendas à PEC 41 para impulsionar os Pequenos Negócios,
que objetiva criar uma Lei Geral a fim de tornar mais eficaz o
tratamento diferenciado, previsto na Constituição Federal. O
documento assevera a importância das ME e EPP:
[...] cerca de 98% das empresas estabelecidas
no País, respondem por aproximadamente 12%
das exportações e por cerca de 60% dos
empregos gerados. [...]
No período de 1995 a 2000, cerca de 96% dos
novos empregos foram criados por MPE.13
No item 6 do referido documento, encontra-se a Emenda,
na qual são reproduzidos os dispositivos da PEC no 41 a serem
alterados (sublinhados):
13
SEBRAE. Reforma Tributária – Proposta das MPE. Disponível em: <http://
www.sebrae.com.br/br/parasuaempresa/reformatributariapropostadasmpe.asp>.
Acesso em: 9 maio 2004, 14h, p. 9 (grifo do autor).
UNIESP
62
Art. 1o Os artigos da Constituição adiante
enumerados passam a vigorar com as seguintes
alterações: “Art.
146.
Cabe
à
lei
complementar:......... III – estabelecer normas
gerais em matéria de legislação tributária,
especialmente sobre:........d) definição de
tratamento diferenciado e favorecido para as
microempresas e para as empresas de pequeno
porte, inclusive regimes especiais ou
simplificados no caso do imposto previsto no art.
155, inciso II, e das contribuições previstas no
art. 195, inciso I, e nos § 12 e 13, e no art. 239.
“ ........”Art. 155. Compete aos Estados e ao
Distrito Federal instituir impostos sobre:........ II –
operações relativas à circulação de mercadorias
e sobre prestações de serviços de transporte
interestadual e intermunicipal e de comunicação,
ainda que as operações e as prestações se
iniciem no exterior;.......
§ 2o O imposto previsto no inciso II atenderá
ao seguinte:........VI - relativamente a operações
e prestações interestaduais, será observado o
seguinte:............g) será dispensado tratamento
simplificado às operações em que estejam
envolvidas microempresas e empresas de
pequeno porte, não se aplicando a vedação e o
condicionamento previstos na alínea “e”; VII não será objeto de isenção, redução de base
de cálculo, crédito presumido ou qualquer outro
incentivo ou benefício fiscal ou financeiro que
implique sua redução, exceto para atendimento
ao disposto nos arts. 170, IX, e 179, hipótese na
qual poderão ser aplicadas as restrições previstas
na alíneas “a” e “b” do inciso II; ..........XII .................
j) definir regimes especiais ou simplificados de
tributação, inclusive para atendimento ao disposto
nos arts. 170, IX, e 179, hipótese em que poderá
diferenciar o porte das empresas e as suas
obrigações acessórias em razão do Estado da sua
localização; ........”Art. 195. ................ IV -
63
TEMA
...............§ 12. A lei que instituir, em substituição
total ou parcial da contribuição incidente na forma
do inciso I, “a”, do caput, contribuição específica
incidente sobre a receita ou faturamento definirá
a forma da sua não-cumulatividade, admitida
a definição de regime simplificado para
atendimento ao disposto nos arts. 170, IX, e 179.
§ 13. A lei definirá os setores de atividade
econômica para os quais a contribuição incidente
na forma do inciso I, “b”, do caput, será nãocumulativa, sem prejuízo do atendimento ao
disposto nos arts. 170, IX, e 179. ..................
Art. 2o Ficam acrescentados os seguintes
artigos ao Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias: “Art. 92. Fica vedada, a partir da
promulgação da presente Emenda, a concessão
ou prorrogação de isenções, reduções de base
de cálculo, créditos presumidos ou quaisquer
outros incentivos ou benefícios fiscais ou
financeiros relativamente ao imposto de que trata
o art. 155, II, da Constituição, exceto para
atendimento do disposto nos arts. 170, IX, e 179,
hipótese em que continuarão aplicados até que
lei complementar disponha em contrário sobre o
tratamento favorecido e diferenciado previsto nas
legislações estaduais na data da promulgação
desta Emenda.” (NR)
“Art. 94. Enquanto não entrar em vigor a lei
complementar prevista no art. 146, III, “d”, da
Constituição, com a redação dada por esta
Emenda, ficam mantidas as isenções, os
incentivos, os regimes especiais e qualquer forma
de tratamento favorecido e diferenciado dos
tributos federais, estaduais e municipais
dispensado às microempresas e às empresas de
pequeno porte vigentes na data da promulgação
desta Emenda.”
UNIESP
64
Efetivação
O site do Sebrae é o local onde se encontram as
informações atualizadas a respeito do andamento das reformas.
Sob o título “Desburocratização: Lei Geral deve incluir
Cadastro Único para pequenas empresas”, em 12.03.2004,
assevera-se a necessidade de criar um cadastro unificado:
A unificação da base cadastral das micro e
pequenas empresas é uma das principais
novidades que podem ser aprovadas pelo
Congresso Nacional nas discussões da Lei Geral
das Micro e Pequenas Empresas. De acordo com
essa proposta, todas as informações sobre as
empresas do segmento seriam concentradas no
mesmo endereço.14
Por meio desse cadastro, poder-se-ia “classificar as
MPEs e criar incentivos e facilidades contábeis, fiscais e
tributárias”15, bem como facilitaria a vida do empresário na
medida em que este não necessitaria percorrer os vários órgãos
para registrar seu negócio.
Entretanto, quase um ano após a confecção da proposta
de emenda à PEC 41, não existem quaisquer alterações
concretas, promovidas pelo Governo e “[...] só deverá sair do
papel no ano que vem devido ao marasmo que paralisa o
Legislativo em ano de eleições”16.
Os principais pontos da Lei Geral para as micro e
pequenas empresas são:
- Criação do Super simples, com sistemas
diferenciados de tributação para cada atividade
empresarial;
14
BRITO, Vanessa. Lei Geral deve incluir Cadastro Único para pequenas empresas.
Disponível em: <http://www.sebrae.com.br/br/home/index.asp>. Acesso em: 27
jun. 2004, 15h.
15
BRITO, 2004.
16
LEITE, Janaína. A lei dos mais fracos. In Revista Época, São Paulo: Editora
Abril, 26 abr. 2004, p. 50.
65
TEMA
- Garantia de acesso a novos mercados, como o
de compras governamentais;
- Diminuição da burocracia e racionalização de
procedimentos administrativos;
- Juizados especiais nos âmbitos municipal,
estadual e federal;
- Implementação de um cadastro único para as
micro e pequenas empresas, para facilitar o
acesso ao crédito.17
PEQUENAS E MICROEMPRESAS E A
REALIDADE DO EMPRESARIADO
Burocracia e excesso de tributos são tidos como os vilões
na vida do pequeno e médio empresário.
Uma pesquisa realizada pelo SEBRAE constatou:
[...] serem necessários 15 procedimentos nos
âmbitos municipal, estadual e federal para a
abertura de uma empresa. Eles tomam em média
152 dias [...] contra dois dias na Austrália, três
no Canadá e quatro nos Estados Unidos. [...] O
empresário chileno espera mais ou menos 28
dias [...].
Na hora de fechar uma empresa, a burocracia não é menor:
O tempo médio para a papelada correr no país é
de dez anos. Um prazo 40 vezes acima dos três
meses exigidos na Irlanda e 20 vezes maior do
que os seis meses registrados no Japão18.
Além disso, o número exorbitante de regras (cerca de
50 mil artigos de leis concernentes a impostos) e a falta de um
marco regulatório crível trazem conseqüências alarmantes: no
17
18
Ibidem, p. 50.
LEITE, 2004, p.49.
UNIESP
66
final de 2003, após uma alteração das regras de adesão, mais
de 80 mil empresas perderam o direito de opção de
recolhimento de tributos pelo SIMPLES.19
O acesso ao crédito, por outro lado, não é uma realidade
concreta: 61% das ME e EPP nunca utilizaram crédito bancário;
74% desconhecem as opções de microcrédito, limitadas a R$
10.000,00 (dez mil reais); somente 10% dos créditos concedidos
são destinados a esse segmento. Os empresários, então,
recorrem aos limites de cheque especial, honerando-os em até
143% de juros anuais.20
Destarte, “três de cada dez micro ou pequenas empresas
fecham as portas antes de completar um ano de vida”.21
CONCLUSÃO
Analisando a legislação vigente e a realidade do pequeno
e médio empresário, nota-se a existência de uma grande
lacuna. Isso é, a legislação assegura direitos, porém, os
mesmos não se concretizam devido à falta de uma
regulamentação efetiva. O Governo não consegue promover
mecanismos para a efetivação da lei.
Da promoção de mecanismos, poderia advir nova
realidade ao país.
Prioritariamente, as ME e EPP, representando 98% das
empresas aqui estabelecidas, poderiam diminuir
consideravelmente o alto índice de desemprego. Com a
geração de empregos, haveria novos consumidores, com
necessidade de novos produtos.
19
Ibidem, p. 50.
SEBRAE. Como obter crédito e capital. Disponível em: <http://
www.sebrae.com.br/br/home/index.asp>. Acesso em 09.05.2204, 14h 30min.
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em: 2 maio. 2004, 13h.
21
RYDLEWSKI, 2004.
20
67
TEMA
Entretanto, apesar da sua importância, essas empresas
recebem somente 10% dos créditos concedidos. E muitos deles
desconhecem as linhas de crédito.
A aprovação das emendas à PEC 41, bem como a
existência de uma Lei Geral são, indubitavelmente, necessárias
à criação/manutenção das ME e EPP. Contudo, há que se buscar
recursos para a viabilização das leis. Caso contrário, as
empresas desse segmento não terão condições de manter-se
em um mundo tão competitivo.
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maio 2004, 14h.
68
BRASIL. Resolução no 2.874, de 26 de
julho de 2001 do Conselho Monetário
Nacional. Dispõe sobre a constituição
e o funcionamento de sociedades de
crédito ao microempreendedor. Diário
Oficial [da] República Federativa do
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69
TEMA
Autor e Texto
Author - Text
Orlando Villas Bôas Filho*
A AÇÃO INOVADORA; O SUCESSO NA VIDA POLÍTICA E O
CUSTO DA VIDA SOCIAL A P
ARTIR DOS PENSAMENTOS
PARTIR
DE BERNARD MANDEVILLE E NICOLAU MAQUIAVEL
THE INNOVATIVE ACTION. SUCCESS IN POLITICAL LIFE AND THE COST OF SOCIAL
LIFE BASED ON BERNARD MANDEVILLE AND NICOLAU MAQUIAVEL’S THOUGHTS
RESUMO
O presente artigo pretende realizar uma análise comparativa das obras de Nicolau
Maquiavel e Bernard Mandeville, a partir de três temas básicos: a ação inovadora,
o sucesso na vida política e o custo da vida social.
ABSTRACT
The present article intends to realize a comparative analysis of Nicolau
Maquiavel and Bernard Mandeville works, from three basic themes: Innovative
action, success in political life and the cost of social life.
PALAVRAS-CHAVE
Maquiavel. Mandeville. Ação inovadora. Sucesso na vida política. Custo da vida
social.
KEY WORDS
Maquiavel. Mandeville. Innovative action. Success in political life. Cost of social
life.
* Bacharel em Direito (PUC/SP), História (USP) e Filosofia (USP). Mestre e Doutor em Direito pela Faculdade
de Direito da USP. Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Professor de
direito das Faculdades Integradas Teresa Martin e Universidade Presbiteriana Mackenzie. Ex-professor da
Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato-Grosso do Sul (UFMS).
R.TEMA
S.Paulo
UNIESP
nº 49
jan./jun. 2007
P. 70-81
70
Orlando Villas Bôas Filho
A AÇÃO INOVADORA; O SUCESSO NA VIDA POLÍTICA E O
CUSTO DA VIDA SOCIAL A P
ARTIR DOS PENSAMENTOS
PARTIR
DE BERNARD MANDEVILLE E NICOLAU MAQUIAVEL
THE INNOVATIVE ACTION. SUCCESS IN POLITICAL LIFE AND THE COST OF SOCIAL
LIFE BASED ON BERNARD MANDEVILLE AND NICOLAU MAQUIAVEL’S THOUGHTS
N
icolau Maquiavel e Bernard Mandeville são, acima
de tudo, autores que se situam num contexto em que
ética e política não são mais esferas indissociáveis, como
ocorria na ética clássica que vigia na pólis grega.1 Esse
contexto, ademais, também não é mais aquele da epistéme
medieval em que a política era pautada pela idéia de bom
governo (buon governo).2 O que se observa em ambos os
autores é a entrada no pensamento moderno que rompe com a
concepção medieval, segundo a qual o bom governo seria
aquele que estivesse assentado no monarca bom.3
Tanto Maquiavel como Mandeville irão enfatizar o
momento pragmático que se volta contra a concepção medieval
de que a política deve ser conduzida por um governante
1
2
3
Cf. BIGNOTTO, Newton. As fronteiras da ética: Maquiavel. In: NOVAES, Adauto
(Org.). Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 113. A esse respeito,
ver também: WEBER, Max. Rejeições religiosas do mundo e suas direções. In:
______. Textos selecionados. São Paulo: Abril Cultural, 1974. p. 249-255. (Os
pensadores).
Cf. RIBEIRO, Renato Janine. O retorno do bom governo. NOVAES, Adauto
(Org.). Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 101.
A comparação de Maquiavel com Thomas Morus é, nesse sentido, sugestiva,
uma vez que permite aquilatar a extensão da ruptura entre a concepção medieval
e a moderna. Se Morus contrapõe o bom rei ao tirano, de modo a enfatizar a
imagem tradicional do corpo político como aquele composto pelo governante
(cabeça) e os súditos (membros) numa relação orgânica que, ademais, é pautada
pelo amor, semelhante ao da família, que ligaria os membros à cabeça do corpo
político, Maquiavel estará preocupado em, constatando a ineficiência desse modelo,
assegurar a manutenção do governo, ainda que pelo uso da maldade. Nesse
sentido, ver: RIBEIRO, Renato Janine. O retorno do bom governo, p. 102-103.
71
TEMA
virtuoso, com todas as conseqüências que disso decorrem.4
Assim, a breve articulação que se fará aqui entre Maquiavel e
Mandeville tentará recuperar essa ruptura que é comum aos
dois autores sem, entretanto, desconsiderar que estes,
malgrado esse ponto em comum, sustentam perspectivas
bastante distintas no que se refere ao modo de conceber a
própria política: pode-se dizer que Maquiavel representa a
perspectiva que prioriza a ação política, enquanto Mandeville
representa a perspectiva que prioriza a instituição política.
A AÇÃO POLÍTICA INOVADORA CONTRA A
ORDENAÇÃO INSTITUCIONAL DA AÇÃO
Maquiavel é um pensador que, ao enfatizar a ação política,5
não poderá deixar de levar em conta a necessidade de inovação
que está implicada numa tal ação. A ação política em Maquiavel
deve ser essencialmente criativa, no sentido de que não deve
nem pode pautar-se por regras já estabelecidas, nem por
parâmetros prévios de avaliação, a fim de ser bem-sucedida.
Nesse contexto, a ação inovadora/criativa não é apenas
fundamental, mas, em certo sentido, inexorável, uma vez que o
governante está posto numa posição em que não há regra ou
garantia prévia à ação. Isso implica que a ação do governante
(pois é dela que Maquiavel fala) se furte a regras de conduta
predeterminadas, ou a um elenco de virtudes rigidamente
preestabelecido. Aliás, é a idéia de ação inovadora que opõe
4
Tal como ressalta Merleau-Ponty, ao referir-se a Maquiavel, “ele escreve contra
os bons sentimentos em política, mas é também contra a violência. Desconcerta
tanto aqueles que crêem no Direito como os que crêem na Razão de Estado, já
que tem a audácia de falar em virtude no momento em que fere duramente a
moral comum”. MERLEAU-PONTY, Maurice. Nota sobre Maquiavel. Signos.
São Paulo: Martins Fontes, 1991. p. 238.
5
Claude Lefort enfatiza que “Maquiavel é considerado diabólico por haver exposto
o mais amplo leque de figuras da ação política.“LEFORT, Claude. Maquiavel e a
veritá effetuale. In: ______. Desafios da escrita política. São Paulo: Discurso Editorial,
1999. p. 176.
UNIESP
72
Maquiavel à concepção medieval de bom governo, na qual o
governante deveria agir conforme os mandamentos da religião,
subordinando-se ao bem agir, a fim de salvar a si e aos súditos.6
Em Maquiavel, as prédicas de Cícero não têm mais a mesma
ressonância que haviam obtido na tradição renascentista italiana
de Bartolomeo Sacchi, Giovanni Pontano e Francesco Patrizi. Tal
como ressalta Claude Lefort, “Maquiavel quer ser o fundador de
uma ciência segura que forneça a inteligibilidade da sociedade
e das coisas do mundo; pretende desarraigar a idéia de que
haveria uma virtude em si, uma justiça em si, as quais, mesmo
sendo de fato inacessíveis, constituiriam uma norma para a
conduta humana e para a organização social”.7
Entretanto, não é desse modo que a perspectiva que
prioriza a instituição política se posiciona em relação à questão
da inovação, mesmo porque o que se visa aqui não é a ruptura
ou a mudança, e sim a cristalização e a reposição de padrões
rompidos. Ademais, a ação é, nessa perspectiva, mitigada em
sua importância. Em Mandeville, a ênfase está no que se pode
apontar como uma espécie de trabalho de “hidráulica”, que leva
uma ação privada, via de regra viciosa, a um resultado benéfico
socialmente. Nesse sentido, a questão da inovação sofre um
sensível deslocamento nessa perspectiva. O papel do sujeito que
atua é minimizado, assim como suas intenções. Aliás, não é o
caráter inovador e criativo da ação política, nem mesmo a própria
ação política, tal como a entende Maquiavel, o que lhe interessa.
O que importa para Mandeville são ações que, brotando em sua
espontaneidade, uma vez bem canalizadas, conduzem a
benefícios gerais, e mesmo nesse caso a ênfase está na
estruturação que permite atingir tais benefícios.
6
Maquiavel ressalta que “é preciso entender que um príncipe, sobretudo um príncipe
novo, não pode observar todas aquelas coisas pelas quais os homens são
considerados bons, sendo-lhe freqüentemente necessário, para manter o poder,
agir contra a fé, contra a caridade, contra a humanidade e contra a religião.“
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 85.
7
LEFORT, Claude. Maquiavel e a veritá effetuale, p. 156.
73
TEMA
O SUCESSO NA
VIDA POLÍTICA
No que concerne ao que se pode denominar de “sucesso
na vida política”, Maquiavel, enquanto representante de uma
perspectiva que prioriza a ação política inovadora, opõe-se à
tradição medieval, na qual a questão da salvação se impunha
como primordial à avaliação da eficácia da ação do governante.
Logo no início do Capítulo XV de O príncipe, Maquiavel, ao
analisar a ação do príncipe/governante, afirma que: “ao discutir
essa matéria, me afastarei das linhas traçadas pelos outros.
Porém, sendo meu intento escrever algo útil para quem me ler,
parece-me mais conveniente procurar a verdade efetiva da
coisa do que uma imaginação sobre ela”.8 Isso sugere, logo de
início, que a eficácia em Maquiavel não é medida com base no
além, mas no plano do real.
Portanto, para Maquiavel, o sucesso da ação política não
se relaciona com a salvação, e sim com o propósito básico do
príncipe que é mantenere lo stato.9 E, para alcançar esse
propósito, “os meios serão sempre julgados honrosos e
louvados por todos, porque o vulgo está sempre voltado para
as aparências e para o resultado das coisas, e não há no mundo
senão o vulgo (...)”.10 Advém daí a máxima segundo a qual, em
Maquiavel, “os fins justificam os meios”, bem como o recorrente
equívoco de imaginar que toda e qualquer ação é válida para
tanto. É preciso notar, entretanto, que Maquiavel não reduz a
ação política à mera ação bem-sucedida. Não obstante enfatize
o resultado, isto é, os fins a serem alcançados, Maquiavel não
8
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe, p. 73. A esse respeito, ver também: LEFORT,
C. Maquiavel e a veritá effetuale, p. 146 e 170.
9
Cf. SKINNER, Quentin. Maquiavel. Tradução de Maria Lúcia Montes. São Paulo:
Brasiliense, 1988. p. 51; MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe , p. 85.
10
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe , p. 85-86.
UNIESP
74
exclui aquilo que ele denomina de virtù,11 que é de tal forma um
fator imprescindível à configuração da ação política, que a ação
pode por vezes obter sucesso sem que seja uma ação política
propriamente dita.12 Trata-se do exemplo de Agátocles, que,
embora tenha sido bem-sucedido, não pode, segundo
Maquiavel, ser “celebrado entre os homens excelentes”.13
Percebe-se, assim, que para Maquiavel o sucesso na
vida política não se implementa pura e simplesmente com a
manutenção sob controle do sistema de governo. Como observa
Skinner, “além da mera sobrevivência, há objetivos muito
maiores a se buscar; e ao especificar quais são eles, Maquiavel
mais uma vez se revela um verdadeiro herdeiro dos
historiadores e moralistas romanos. Ele parte do pressuposto
de que todos os homens desejam acima de tudo conquistar os
bens da Fortuna. (...) No entanto, tal como os moralistas
romanos, Maquiavel descarta a aquisição de riquezas como
um objetivo básico, argumentando que (...) a conquista da
11
Celso Lafer aponta no pensamento de Maquiavel (que, segundo ele, “preferia a
salvação da pátria à salvação de sua alma”) os pressupostos da distinção
weberiana entre ética de convicção e ética de resultados, que colocaria a ética
de resultados como a ética própria da política. Cf. LAFER, Celso. A mentira: um
capítulo das relações entre ética e política. NOVAES, Adauto (Org.). Ética. São
Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 229. A esse respeito, vale notar,
entretanto, que, malgrado a análise de Lafer seja correta, a separação entre
ética de convicção e ética de responsabilidade, em Weber, não é tão simples,
pois, segundo este autor, “a ética da convicção e a ética da responsabilidade
não se contrapõem, mas se completam e, em conjunto, formam o homem
autêntico, isto é, um homem que pode aspirar à ‘vocação política’”. WEBER,
M. Ciência e política: duas vocações. 11. ed. São Paulo: Cultrix, 1999. p. 122.
12
Vale notar aqui mais uma vez a observação de Merleau-Ponty, que ressalta a
importância da virtude na vida política. Segundo ele, “Maquiavel a adota [a virtude]
como sinal de valor em política – e não o sucesso, uma vez que dá como
exemplo César Borgia, que não foi bem-sucedido, mas possuía virtù , e o
contrapõe a Francesco Sforza, que foi bem-sucedido, mas por sorte.” Cf.
MERLEAU-PONTY, M. Nota sobre Maquiavel, p. 244.
13
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe, p. 38. Aliás, a esse respeito seria interessante
indagar se tal não ocorreria justamente por não haver no caso de Agátocles
qualquer práxis envolvida na ação e sim mera fabricação, no sentido em que
Hannah Arendt emprega os termos. Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
75
TEMA
honra e glória mundana constitui o mais alto objetivo (...)”.14 Ora,
caracterizado o sucesso nesses termos, fica claro que, em
Maquiavel, a sua obtenção está vinculada a uma ação criativa,
inovadora, no sentido em que o termo foi empregado acima.
Em Mandeville, o sucesso na vida política é aferido de
forma diferenciada. Para ele, não é uma ação criativa, inovadora,
que conduz ao êxito na vida política, êxito esse que também
não consiste na mesma coisa de que fala Maquiavel, cujo
pensamento está centrado no sujeito que age politicamente.
Em Mandeville, o sucesso é aquilatado a partir de outras
premissas: ele consiste e é aferível na pujança alcançada pelo
corpo social como um todo, no modo como, partindo de vícios
privados, se atingem benefícios públicos. Há uma equação
curiosa no pensamento de Mandeville, que se expressa logo
no início do prefácio da Fábula das abelhas, em que ele nota
que se se examina a natureza do homem, abstraindo-se da arte
e da educação, é possível observar que o que o torna um animal
social consiste não em seu desejo de companhia, sua boa
natureza, piedade, afabilidade, ou outras virtudes, mas as mais
vis e detestáveis qualidades.15 Ou seja, em Mandeville, não são
as qualidades tradicionalmente consideradas como boas, mas
sim as mais vis e odiosas características do ser humano que
garantem a prosperidade da sociedade e permitem aos homens
14
SKINNER, Quentin. Maquiavel , p. 51-52. No mesmo sentido, Claude Lefort
ressalta que “Maquiavel não estaria absolutamente interessado nas virtudes
antigas e modernas tal como são entendidas em todos os tempos pelo senso
comum – em oposição aos vícios (...); somente estaria interessado no que
nomeia como virtù, uma virtude que proporciona ao sujeito uma força enorme
para resistir às adversidades da fortuna e lhe assegurar grande poder de agir”.
LEFORT, Claude. Maquiavel e a veritá effetuale, p. 146.
15
A esse respeito, Mandeville afirma que: “so they that examine into de Nature of
Man, abstract from Art and Education, may observe, that what renders him a
sociable Animal, consists not in his desire of Company, good Nature, Pity, Affability,
and other Graces of a fair Outside; but that his vilest and most hateful Qualities are
the most necessary Accomplishments to fit him for the largest, and according to
the World, the happiest and most flourishing Societies”. MANDEVILLE, Bernard.
Preface. The fable of the bees. London: Penguin Books, 1970. p. 53.
UNIESP
76
conseguir satisfazer seus desejos de conforto, prazer, luxo etc.16
Nesse sentido, em última análise, seriam as qualidades odiosas
que uniriam os homens. Essa premissa anti-aristotélica acentua
não as ações individuais (políticas ou não), mas o modo pelo
qual estas podem ser convertidas em benefícios públicos.
Aqui fica bem delineada a distinção entre a perspectiva
da instituição política e a perspectiva da ação política, pois,
enquanto Mandeville coloca todo o acento nas instituições que
fazem o trabalho de conversão de vícios privados (private vices)
em benefícios públicos (public benefits), Maquiavel, sem
desconsiderar as instituições, ressalta que estas são moldadas
pela ação dos homens. Ao se referir a Maquiavel, Claude Lefort
ressalta que “as instituições, julga ele, tendem a modelar o
caráter de um povo e de seus dirigentes. Contudo, como já
Aristóteles observava, elas não crescem como plantas, nem se
reproduzem como tais. Não somente trazem consigo a marca
da mão do homem em sua origem, mas também requerem, para
durar, a ação de indivíduos (...). A análise das formas de
sociedade política induz portanto ao exame das formas de ação,
e vice-versa”.17
Mandeville, entretanto, não está interessado nas ações.
Segundo Maurice Goldsmith, o ataque de Mandeville ao que
ele chama de “ideologia da virtude pública e privada” (ideology
of public and private virtue) consiste em afirmar que luxúria,
vício e corrupção conectam-se com a higidez, o poder e a
prosperidade, enquanto a virtude é acompanhada da
simplicidade, da pobreza e de condições primitivas de
16
Curioso notar a impressionante semelhança entre a análise de Mandeville e a
de Hobbes acerca do homem. Hobbes afirma, numa dentre várias passagens
do Leviatã, que “o desejo de conforto e deleite sensual predispõe os homens
para a obediência ao poder comum, pois com tais desejos se abandona a
proteção que poderia esperar-se do esforço e do trabalho próprios”. Cf. HOBBES,
Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder um Estado eclesiástico e civil. São
Paulo: Abril Cultural, 1974. p. 65. (Os pensadores.)
17
LEFORT, Claude. Maquiavel e a veritá effetuale, p. 175.
77
TEMA
subsistência.18 É por essa razão que Goldsmith afirma que, para
Mandeville, o vício produz não apenas a prosperidade, mas a
própria civilização, pois, em primeiro lugar, o vício, no sentido
de deficiência física, privação ou necessidade, tornaria a
sociedade indispensável para a sobrevivência humana e, em
segundo lugar, porque o vício, no sentido de um defeito moral
(avareza, vaidade, orgulho, egoísmo, luxúria e inveja),
estimularia a produção e o desenvolvimento. Ou seja, as
necessidades e os apetites fariam a cooperação social
desejável na medida em que esta aumenta os benefícios e os
recursos disponíveis.19 Portanto, para Mandeville, o sucesso na
política não está na ação política, mas na possibilidade de
implementação de instituições que canalizem as ações viciosas
para o benefício público. A questão aqui, diferentemente do
que ocorre em Maquiavel, não está na ação do príncipe com
vistas à manutenção do Estado, mas na consolidação das
instituições que tornem vícios privados em benefícios públicos.
O CUSTO DA
VIDA SOCIAL
Por fim, também no que se refere à questão do custo da
vida social, cabe ressaltar que esta recebe um tratamento
bastante diferenciado em cada um dos dois autores aqui
18
Nas palavras de Goldsmith, “if luxury, vice and corruption are connected with
wealth and power and so with prosperity, then the converse is also true: virtue is
accompanied by simplicity, poverty and primitive conditions”. GOLDSMITH,
Maurice M. Private vices, public benefits: Bernard Mandeville’s social and political
thought. New York: Cambridge University Press, 1985. p. 34-35.
19
Segundo Goldsmith, “Mandeville contents that vice produces not only prosperity
but civilization as well (…) firstly, vice in the sense of physical deficiency, privation
and need makes society necessary of human survival; secondly, vice in the
sense of moral defect (greed, vanity, pride, selfishness, lust, luxury and envy)
stimulates production and improvement. Needs and appetites make social
cooperation desirable in conditions where it will increase the available benefits
and resources”. GOLDSMITH, Maurice M. Private vices, public benefits: Bernard
Mandeville’s social and political thought, p. 40. Ver também: MANDEVILLE,
Bernard. Preface, p. 55.
UNIESP
78
brevemente analisados, não obstante seja possível afirmar que
ambos, também no que tange a esse aspecto, se inserem na
perspectiva moderna.
A perspectiva de Mandeville visa uma estruturação da
sociedade que seja o menos onerosa possível, fundando-a naquilo
que, para ele, é, no homem, assim como em todos os demais
animais, uma característica comum: seguir suas inclinações.
Mandeville, em Enquiry into the origin of moral virtue, lembra
que foi atribuído o nome de vício a tudo aquilo que, sem se
relacionar ao público, o homem pode cometer para satisfazer
seus apetites.20 Nesse sentido, os vícios privados não devem ser
reprimidos, pois podem ser convertidos em benefícios públicos.
Isso obviamente acarreta um barateamento da vida social, pois
a ênfase passa para a opulência econômica das nações que,
sob essa perspectiva, identifica-se com a razão da felicidade
dos povos. Sob vários aspectos, pode-se dizer que a perspectiva
de Mandeville expressa bem aquilo que Benjamin Constant
demonstrara em sua célebre conferência de 1819:21 que a vida
social havia se tornado onerosa para os “modernos”, que
estariam concentrados na esfera da vida privada. Percebe-se,
portanto, que Mandeville já descreve o homem em termos
modernos, como um indivíduo centrado na esfera da vida
privada, cujas ações viciosas podem redundar em benefícios
públicos passíveis de aferição pela riqueza da nação.
Maquiavel, por sua vez, se situa noutro paradigma, o qual
está ainda a certa distância da análise de Benjamin Constant
acerca da diferença entre a liberdade dos modernos
comparada à dos antigos. No entanto, já é possível vislumbrar
em seu pensamento elementos que, afastando-o do conceito
moralista de virtus, o colocam entre os modernos e não entre
20
Cf. MANDEVILLE, Bernard. Enquiry into the origin of moral virtue. The fable of
the bees. London: Penguin Books, 1970. p. 86.
21
Cf. CONSTANT, Benjamin. De la liberté des anciens comparée a celle des
modernes. In: GAUCHET, Marcel. De la liberté chez les modernes: écrits politiques,
textes choisis, présentés et annotés par M. Gauchet. Paris: Librarie Générale
Française, 1980.
79
TEMA
os antigos. Contudo, tal como ressalta Maurice Merleau-Ponty,
no pensamento de Maquiavel, há uma espécie de “moralismo”
que, oposto ao “imoralismo” que impera na política, pautaria a
vida privada. 22 Trata-se, portanto, de dois âmbitos que,
entretanto, estariam articulados pela capacidade do
governante em “evitar o despertar dos cidadãos”23 e que, nesse
sentido, já parecem estar remetidos, ainda que se tomando o
devido cuidado de não cometer anacronismos, à esfera de uma
vida privada, que caracteriza os modernos.
BIBLIOGRAFIA
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de Janeiro: Forense Universitária,
1995.
BIGNOTTO, Newton. As fronteiras da
ética: Maquiavel. In: NOVAES, Adauto
(Org.). Ética. São Paulo: Companhia
das Letras, 1992.
BOBBIO, Norberto. Teoria das formas
de governo. Tradução de Sérgio Bath.
Brasília: Editora da Universidade de
Brasília, 1981.
CONSTANT, Benjamin. De la liberté des
anciens comparée a celle des
modernes. In: GAUCHET, Marcel. De la
liberté chez les modernes: écrits
politiques, textes choisis, présentés et
annotés par M. Gauchet. Paris: Librarie
Générale Française, 1980.
GOLDSMITH, Maurice M. Private vices,
public benefits: Bernard Mandeville’s
social and political thought. New York:
Cambridge University Press, 1985.
22
Segundo Merleau-Ponty, “citam-se sempre máximas dele que remetem a
honestidade à vida privada, e fazem do interesse do poder a única regra em
política. Mas vejamos as razões pelas quais ele [Maquiavel] subtrai a política ao
puro juízo moral: apresenta duas. A primeira é que ‘um homem que quer ser
perfeitamente honesto, em meio a pessoas desonestas, não pode deixar de
sucumbir cedo ou tarde’. Fraco argumento, já que poderíamos do mesmo
modo aplicá-lo à vida privada, onde, contudo, Maquiavel permanece ‘moral’. A
segunda razão vai mais longe: é que, na ação histórica, a bondade por vezes é
catastrófica e a crueldade menos cruel que o temperamento
bonachão”.MERLEAU-PONTY, Maurice. Nota sobre Maquiavel, p. 242.
23
Idem, Ibidem, p. 238-239.
UNIESP
80
HARTH, Phillip. Introduction. In:
MANDEVILLE, Bernard. The fable of the
bees. London: Penguin Books, 1970.
HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria,
forma e poder um Estado eclesiástico
e civil. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
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LAFER, Celso. A mentira: um capítulo
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NOVAES, Adauto (Org.). Ética. São
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MANDEVILLE, Bernard. Enquiry into
the origin of moral virtue. The fable of
the bees. London: Penguin Books,
1970.
____________. Preface. The fable of the
bees. London: Penguin Books, 1970.
81
MANDEVILLE, Bernard. The grumbling
hive: or, knaves turn’d honest. The
fable of the bees. London: Penguin
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MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe.
Tradução de Maria Júlia Goldwasser.
São Paulo: Martins Fontes, 1999.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Nota sobre
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WEBER, Max. Ciência e política: duas
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________. Rejeições religiosas do
mundo e suas direções. In: ________.
Textos selecionados. São Paulo: Abril
Cultural, 1974. (Os pensadores.)
TEMA
Autor e Texto
Author - Text
Romeu Giora Junior*
NOV
A LEI PREVÊ MODEL
O INOV
ADOR DE
NOVA
MODELO
INOVADOR
INVESTIMENTO E P
ARCERIA DO SETOR
PARCERIA
PÚBLICO COM O PRIVADO
NEW LAW FORESEES INNOVATIVE MODEL OF INVESTMENT AND
PARTNERSHIP BETWEEN PUBLIC AND PRIVATE SECTORS
RESUMO
A Parceria Público-Privada, conhecida mundialmente pela sigla PPP, vem ganhando
espaço como uma forma de viabilizar a implantação de projetos de infra-estrutura
básica, em face das carências sociais e econômicas de nosso país, mediante a
colaboração entre o setor público e o privado.
ABSTRACT
The Private-Public Partnership known as PPP, is increasing as a way to insert
projects of basic infra-structure, facing the social and economic lack in our
Country, by means of contribution of public and private sectors.
PALAVRAS-CHAVE
Parceria público privada. Administração pública. Serviços públicos. Riscos e
investimentos.
KEY WORDS
Private-public partnership. Public administration. Public services. Risks and
investments.
*Mestre em Direito. Professor da Fatema/Uniesp. Advogado em São Paulo.
R.TEMA
S.Paulo
UNIESP
nº 49
jan./jun. 2007
P. 82-89
82
Romeu Giora Junior
NOV
A LEI PREVÊ MODEL
O INOV
ADOR DE
NOVA
MODELO
INOVADOR
INVESTIMENTO E P
ARCERIA DO SETOR
PARCERIA
PÚBLICO COM O PRIVADO
NEW LAW FORESEES INNOVATIVE MODEL OF INVESTMENT AND
PARTNERSHIP BETWEEN PUBLIC AND PRIVATE SECTORS
N
o final de 2004, após muito esforço do Governo
brasileiro, o Congresso Nacional aprovou a Lei
11.079 de 30 de dezembro de 2.004, conhecida como a Lei da
PPP – Parceria Público Privada, que nada mais é do que uma
transposição de modelos adotados em outros países.
O conceito Parceria Público-Privada nasceu na
Inglaterra, na década de 90, com a finalidade de viabilizar
determinados projetos de infra-estrutura nos quais o Governo
apresentava forte interesse, mas não tinha como financiá-los.
Atualmente, esse instituto é forte tendência mundial,
principalmente nos países europeus, tendo em vista o
processo de globalização e o intenso intercâmbio entre as
nações, o investimento torna-se cada vez mais importante no
cenário internacional.
A nova lei pode ser avaliada como um instrumento para
eliminação de obstáculos para crescimento da economia,
atraindo recursos e investimentos privados para setores de
atuação que são de responsabilidade do Estado.
Como veremos, o texto legal preocupou-se em oferecer
segurança ao setor privado, com a implementação de
diretrizes e condições a serem seguidas por um contrato de
Parceria Público-Privada e a criação de garantias aos
investimentos realizados.
83
TEMA
CONCEITOS
O novo regulamento jurídico estabelece normas gerais
para licitação e contratação de parceria público-privada no
âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal
e dos Municípios, aplicáveis aos órgãos da Administração
Pública, aos fundos especiais, às fundações públicas, às
empresas públicas, às sociedades de economia mista e às
demais entidades controladas diretamente ou indiretamente
pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
A lei define parceria público-privada como um contrato
administrativo de concessão, na modalidade patrocinada ou
administrativa, típica categoria de direito público.
A modalidade patrocinada é a concessão de serviços
públicos ou de obras públicas abordada na Lei nº 8.987 de 13
de fevereiro de 1.995, mas acrescida da requisição de uma
tarifa aos seus usuários. Na realidade, é uma concessão comum
onde o Estado adicionalmente realiza alguma forma de
contraprestação. Um exemplo a ser citado desta concessão é
a ampliação e administração de rodovias e ferrovias.
Já a concessão administrativa é o contrato de prestação
de serviços que a Administração Pública pode ser usuária tanto
direta como indireta, ainda que ligada à execução de obra ou
fornecimento e instalação de bens. Nessa modalidade, um
exemplo é a licitação para construção e operação de hospitais.
A intenção do legislador no novo ordenamento legal é
que o contrato de parceria público-privada se desenvolva
concomitantemente aos contratos de concessão comuns já
existentes, com enfoque aos projetos de infra-estrutura.
O contrato de concessão comum é aquele em que a
Administração delega a execução de um serviço do poder
público ao particular, sendo que este a explorará independente
de qualquer garantia, pelo prazo e nas condições previamente
estabelecidas.
A origem das receitas do particular é o que diferencia o
contrato de parceria público-privada do de concessão comum,
uma vez que o primeiro é formado por pagamentos efetuados
UNIESP
84
pelo Governo ou este associado com tarifas obtidas dos
usuários do serviço, enquanto que no último se constitui
exclusivamente de tarifas provenientes dos usuários do serviço.
A Lei 11.079 de 2004 prevê expressamente que as
concessões comuns persistem, sendo regulamentadas pela Lei
das Concessões, e que a Lei 8.666 de 21 de junho de 1993
permanece regendo os contratos administrativos, exceto os da
concessão comum, patrocinada ou administrativa.
REGRAS APLICÁVEIS
O legislador preocupado com o uso indiscriminado do
contrato de parceria público-privada veda a celebração deste
nos seguintes termos: se o valor do contrato for inferior a 20
milhões de reais; se o período de prestação do serviço for
inferior a 5 anos e se tiver como objeto único o fornecimento de
mão-de-obra, o provimento e instalação de equipamentos ou a
execução de obra pública.
A lei ainda estabelece algumas diretrizes a serem
seguidas como: eficiência no cumprimento das missões de
Estado e no emprego dos recursos da sociedade; respeito aos
interesses e direitos dos destinatários dos serviços e dos entes
privados incumbidos da sua execução; indelegabilidade das
funções de regulação, jurisdicional, do exercício do poder de
polícia e de outras atividades exclusivas do Estado;
responsabilidade fiscal na celebração e execução das parcerias
(a própria Lei 11.079/04 estabelece no art. 10, inciso I, b, a
observância das regras da Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei
Complementar 101 de 04 de maio de 2.000); transparência dos
procedimentos e das decisões; repartição objetiva de riscos
entre as partes; sustentabilidade financeira e vantagens
socioeconômicas dos projetos de parceria.
As diretrizes acima especificadas espelham a forma que
a Administração Pública deverá proceder a suas contratações,
indicando alguns princípios que devem ser aplicados.
85
TEMA
ASPECTOS BÁSICOS
Quanto à s Garantias –
Fundo Garantidor (FGP)
A nova norma institui um peculiar sistema de garantias
das obrigações pecuniárias contraídas pela Administração
Pública, dentre elas se destaca o Fundo Garantidor das
Parcerias Público-Privadas (FGP).
O Fundo Garantidor detém como função exclusiva a
viabilização do contrato de parceria público-privada e terá
como objetivo “prestar garantia de pagamento de obrigações
pecuniárias assumidas pelos parceiros públicos federais”.
Apresenta natureza privada e patrimônio próprio, dotado de
direitos e obrigações.
A União, autarquias e fundações estão autorizadas a
participar do Fundo, desde que respeitado um limite global de
6 (seis) bilhões de reais.
A sua gestão e administração serão exercidas por uma
entidade financeira estatal direta ou indiretamente pela União
que deverá zelar pela manutenção de sua rentabilidade.
As garantias deverão ser prestadas de forma
proporcional à participação do cotista, sendo vedado a
concessão de uma garantia a um, cujo valor líquido ultrapasse
o ativo total do fundo, devendo ser somadas as garantias
prestadas anteriormente e demais obrigações.
Implementação de uma PPP As Sociedades de Propósito Específico
Antes da celebração do contrato, os projetos de Parcerias
Público Privadas serão implantados e geridos por uma Sociedade
de Propósito Específico, que são sociedades de objeto exclusivo,
utilizadas em consórcios e operações estruturadas.
O objetivo delas é segregar determinados ativos e riscos
de forma efetiva dentro de uma operação. Assim, sua eficiência
UNIESP
86
depende de seu grau de independência em relação às demais
partes e atividades envolvidas em determinado projeto.
A lei não impõe restrições na forma de constituição da
sociedade, assim se organizada no formato de uma companhia
aberta, poderá inserir valores mobiliários no mercado. Contudo
estabelece limitações quanto à composição do capital e
controle desta, uma vez que a Administração Pública está
impossibilitada de ser a titular da maioria do capital votante,
além de ser fundamental uma autorização prévia para
transferência do controle.
Esses dispositivos permitem que a Sociedade de Propósito
Específico apresente controle e estabilidade para manutenção
deste em relação ao parceiro privado. Em síntese, trata-se de
uma repartição objetiva de riscos, direitos e obrigações entre
setores público e privado, no contexto de cada projeto.
Da Licitação
A contratação da parceria público-privada será
antecedida de licitação na modalidade concorrência, sendo que
a abertura do processo licitatório está condicionada a algumas
determinações a serem cumpridas pela Administração Pública.
Como a seguir analisaremos, a Lei da Parceria PúblicoPrivada apresenta algumas inovações no tocante à licitação.
Primeiramente, é possível a inversão das fases de
habilitação e julgamento. O edital poderá prever que após
analisadas e julgadas as propostas, será verificada apenas a
habilitação do licitante que apresentou a melhor proposta.
Essa inversão pode tornar a licitação mais competitiva
e ainda mais rápida e dinâmica. Por outro lado, poderá
diminuir a fiscalização dos demais licitantes que não obtiveram
uma boa classificação.
O julgamento poderá adotar como critério, além dos
previstos na Lei 8.987 de 1995, o de menor valor da
contraprestação a ser paga pela Administração Pública.
87
TEMA
Outra novidade se refere aos lances em viva voz. O edital
possibilita que esses sejam feitos em lances sucessivos pelos
licitantes, após a abertura dos envelopes com as propostas
econômicas. Além disso, restringe a apresentação de lances
cuja proposta inicial escrita seja no máximo 20% maior que o
valor da proposta inicial.
A lei ainda estipula que a proposta técnica poderá ser
eliminatória e não apenas classificatória, como se dá no modelo
tradicional da Lei de Licitações.
Outro ponto a ser mencionado é a possibilidade do edital
permitir o saneamento de falhas, de complementação de
insuficiência ou ainda de correções de caráter formal no curso
do procedimento, permitindo que os licitantes em um segundo
momento apresentem documentos de habilitação que deixaram
de constar no respectivo envelope, que corrijam eventuais erros
aritméticos presentes nas propostas econômicas ou ainda
acrescentem dados técnicos.
Assim, a lei da Parceria Público-Privada incorpora ao
tradicional modelo da concorrência mecanismos modernos que
tendem a aumentar a competição entre os licitantes e a dinamizar
o procedimento, sem prejuízo da necessária transparência.
CONCLUSÃO
A Parceria Público-Privada reflete uma conjugação de
interesses das duas partes principais envolvidas, o setor
público e o privado. Ao primeiro está assegurado a contribuição
de conhecimento técnico e tecnológico, inovação e sistemas
sofisticados de administração de riscos. Já o setor privado
viabiliza oportunidades reais de negócios e retorno adequado
para seus investimentos.
Apesar desse instituto não ser a solução para as
deficiências que o nosso país possui na área de infra-estrutura,
representa um grande passo para o seu crescimento, uma vez
que contribuirá para a reativação da atividade econômica e
ainda para a produção direta e indireta de empregos.
UNIESP
88
As perspectivas são positivas quanto à utilização da
Parceria Público-Privada e seus resultados, em face do bom
retorno alcançado em outros países.
No entanto, resta ao poder público cumprir expectativas,
ofertando aos particulares parcerias para a realização de
atividades que sejam de seu interesse, em condições que
viabilizem a contratação e ainda honrando os compromissos
assumidos de forma a consolidar a credibilidade no novo
instituto. Afinal, a Parceria Público-Privada só terá êxito se as
negociações entre as partes caminharem para uma relação
segura e equilibrada.
BIBLIOGRAFIA
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pedido da OAB/SP, pela inconstitucionalidade parcial do art.8º da Lei
11.079/04, 2005.
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http://www.jusnavegandi.com.br
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89
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2004.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito
administrativo brasileiro. 27º ed. São
Paulo: Melhoramentos, 2003.
TEMA
Autor e Texto
Author - Text
Zenaide Bassi Ribeiro Soares*
EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO SOCIAL: O DIREITO
COMO SÍMBOL
O DE UMA FORÇA IDEALIZADA
SÍMBOLO
EVOLUTION OF THE SOCIAL THOUGHT: RIGHT
SYMBOL OF AN IDEALIZED FORCE
RESUMO
Este artigo aborda os vários significados da palavra Direito, incluindo mitos
que cercam sua acepção jurídica. Trata ainda de sua materialização em
símbolos como a deusa Diké (da Grécia) e da deusa Iustitia (de Roma).
ABSTRACT
This article refers to several meanings of the word Right, including the myths that
sorround its juridical acceptance. It also deals with symbols, as the goddess
Diké (Greek) and the goddess Iustitia (Roman).
PALAVRAS-CHAVE
Direito. Justiça. Balança. Equilíbrio. Espada.
KEY WORDS
Right. Justice. Balance. Equilibrium. Sword.
* Mestre em Ciências Sociais pela FESP-USP. Doutora em Comunicação e Artes pela
Universidade Mackenzie. Pós-Doutorado em Literatura. Responsável pela área de
pesquisa e extensão da FATEMA. Professora titular na Universidade Guarulhos.
R.TEMA
S.Paulo
UNIESP
nº 49
jan./jun. 2007
P. 90-97
90
Zenaide Bassi Ribeiro Soares
EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO SOCIAL: O DIREITO
COMO SÍMBOL
O DE UMA FORÇA IDEALIZADA
SÍMBOLO
EVOLUTION OF THE SOCIAL THOUGHT: RIGHT
SYMBOL OF AN IDEALIZED FORCE
A
palavra Direito tem vários significados. Esse termo
é definido, no dicionário Aurélio, da seguinte forma:
“direito: reto, direto, probo, justo, honrado. Aquilo que é justo e
reto conforme a lei. Faculdade concedida pela lei; poder
legítimo. Conjunto de normas jurídicas vigentes num país”.
Como se vê, em suas diversas acepções, a palavra direito
remete à idéia de retidão, equilíbrio, justiça. Atesta que o direito
é visto, popularmente, como um instrumento capaz de oferecer,
a todos, oportunidades iguais e assegurar proteção contra atos
violentos, de tirania, ou prepotência. Seria, enfim, um meio eficaz
de corrigir injustiças.
Em geral, observa-se que o homem comum atribui ao
Direito uma série de valores que o tornam símbolo de uma força
idealizada. Para ele, o Direito seria algo impreciso que evoca
instituições perfeitas, capazes de apontar o reto caminho e
distribuir justiça. Essa concepção é bem antiga. A idéia da justa
distribuição, dos direitos iguais, em suma a idéia do equilíbrio
já estava na antiguidade, materializada num símbolo onde
figurava uma balança, com um fiel no centro e dois pratos
colocados lado a lado, exatamente no mesmo nível.
Na Grécia, quando não havia o fiel, a balança aparecia
na mão esquerda da deusa Diké1, postada de pé e de olhos
1
Uma das Horas, filha de Têmis e Zeus.
91
TEMA
abertos, mantendo na mão direita uma espada, sinalizando que
o reconhecimento do Direito não excluía o uso da força para
executá-lo. Os romanos, por sua vez, adotavam como símbolo
a deusa Iustitia, de olhos vendados, segurando a balança. Os
olhos vendados sugerem a imparcialidade: quem julga não
distingue entre senhor e escravo, rico e pobre, fraco e poderoso.
Em suma: as classes sociais e o poder econômico não contam.
Os olhos vendados sugerem ainda a valorização da audição,
da palavra falada, da argumentação oral bem articulada e
ouvida com atenção. Entre os romanos, porém, a deusa Iustitia
segurava a balança mas não usava a espada, o que leva a supor
a valorização da prudência, do equilíbrio, da segurança e
firmeza na ação com a dispensa da força da arma.
Na língua portuguesa, a palavra direito preservou tanto
o sentido de jus como de derectum. Jus no latim clássico, falado
pelas pessoas cultas, significava direito. A palavra jus era usada
nos meios especializados, como entre os juristas, e outras
pessoas dotadas de saber. Continha, em seu sentido original,
certa deificação da justiça enquanto virtude moral. Ainda entre
os romanos, a palavra jus foi, ao longo do tempo, sendo
substituída pela palavra derectum, que era usada em
documentos não jurídicos destinados ao povo.
Era, em geral, empregada com um sentido associado à
noção de retidão, ao equilíbrio das balanças, ao ato correto da
justiça. Isto significa que a palavra evocava um ordenamento
jurídico onde a ação de praticar a justiça se fazia através de
um aparelho judicial que, por sua vez, é dotado de virtudes
morais, ou seja das artes do bom e do justo.
Em português a palavra direito absorveu os significados
de jus e derectum e isso pode significar que o sentido moral da
justiça juntamente com o ato prático de bem aplicar a norma
jurídica estão presentes no significado da palavra direito em
nossa língua.
A palavra direito envolve também algumas
ambiguidades, relacionadas com as possibilidades de indução,
persuasão e imposição. Por exemplo, ela pode sugerir e induzir
o indivíduo a seguir as regras sociais, persuadindo-o de que
UNIESP
92
isso lhe trará tranqüilidade. De modo implícito estará alertandoo para os riscos de se adotar uma conduta desviante, pois
poderá pesar sobre o transgressor, de modo inevitável, as
penas da lei. A ameaça permanente pesa sobre ele: “não pule
fora dos trilhos, não saia da linha”. Essa ameaça será mais forte
ou menos forte conforme o caráter da sociedade - mais tolerante
ou mais intolerante - e conforme o momento histórico que ali se
vive. Num momento de predomínio de uma ditadura, por
exemplo, o medo fará parte do cotidiano da população com
muito mais intensidade do que num momento de maior
liberdade e tolerância diante de opiniões divergentes.
Nas mais diversas sociedades, todos sentem pairar sobre
as suas cabeças as imposições das leis. O não cumprimento
das normas pode levar o infrator a punições que variam de
acordo com as leis vigentes em cada país.
Como, porém, teriam sido elaboradas as primeiras Leis?
Sabe-se que as regras foram estabelecidas por seres humanos,
segundo normas e padrões de sua cultura. Os romanos, porém,
distinguiam algumas regras que não teriam sido elaboradas
pelos homens: as leis da natureza.
GÊNESE DO DIREITO:
TUREZA
NATUREZA
AS LEIS DA NA
“Antes de todas as leis, existem as leis da natureza, assim
chamadas porque decorrem unicamente da constituição de nosso
ser” - diz Montesquieu em sua famosa obra “O Espírito das Leis”.
“Para bem conhecer essas leis, é preciso considerar o homem
antes do estabelecimento das sociedades” - pondera Montesquieu,
na obra citada.
Antes, porém, de Montesquieu, e de modo diferente,
outros pensadores consideraram a questão das leis da
natureza. Na Grécia antiga, acreditava-se que há no ser humano
certas idéias inatas, que o predispõem ao bem e ao justo, que
o desviam do mal e o proíbem. Aristóteles admitia a existência
de uma via natural que aspira à beleza, que reside na ordem,
93
TEMA
na harmonia, na proporção. Essa noção de belo que quer a
perfectibilidade, a natureza corrigida, para Aristóteles, era
imanente ao espírito humano, portanto eterna e imutável. Sendo,
então, superior à realidade, cabia ao homem buscar através
de uma compreensão direta, profunda e intuitiva a beleza plena,
regular, ordenada, harmoniosa e simétrica que já estava
idealmente dentro dele. Essas noções ideais são princípios
superiores, eternos e imutáveis, com os quais o ser humano já
nasce: uma espécie de herança divina.
No Direito, os adeptos dessa crença constituíram uma
escola, que ficou, então, conhecida como jusnaturalista ou do
Direito natural.
Na Grécia antiga, o direito se caracterizava como
exercício ético, valorizando-se a prudência, o equilíbrio e a
ponderação nos atos de julgar. O Direito se revestia de um
caráter de perfeição e invariabilidade e se admitia, desde o
filósofo Heráclito, que a doutrina de um Direito imutável
assentava-se na lei natural e no logos universal, nas quais
deveria sustentar-se a legislação humana.
Em Roma, Cícero, em De República, estabeleceu uma
síntese da concepção jusnaturalista, ressaltando o caráter
universal e eterno do direito. Alí se entendia que a lei era igual
para todos os homens, em todos os tempos e em todos os
lugares. Não importava que fosse em Roma ou em Atenas, nem
que se tratasse desta ou daquela nação, neste ou em outro
lugar: seu caráter permanente e imutável derivava da própria
natureza do homem, da essência divina que havia em cada ser
humano e que lhe permitia distinguir entre o bem e o mal,
induzindo-o ao bem. Cícero escreveu o seguinte:
“Existe uma lei verdadeira, reta razão, conforme
a natureza, difusa em todos, constante, eterna,
que apela para o que devemos fazer, ordenando
- o, e que desvia do mal, que ela proíbe; que, no
entanto, se não ordena nem proíbe em vão aos
bons, não muda por suas ordens nem por suas
proibições os maus(...) É de instituição divina que
UNIESP
94
não se possa propor ab-rogar essa lei e que não
seja permitido aboli-Ia (...) não é preciso procurar
um Elio Sexto como seu comentador ou intérprete;
ela não é diferente em Roma ou Atenas, não é
diferente hoje nem amanhã; mas sim, lei única,
eterna e imutável,ela será para todas as nações
e para todos os tempos...”
Os romanos estabeleciam distinção entre o direito natural
e o direito civil. Para eles, o direito civil era constituído pelas
normas próprias de cada Estado (civitas). As leis civis, porém,
norteavam-se pelos princípios gerais estabelecidos pelo direito
natural. Ulpiano, jurisconsulto romano, no segundo século da era
cristã resumiu em três máximas os preceitos ideais de conduta,
regidos pelo direito natural: 1°) - Viver honestamente; 2°) não
prejudicar o próximo; 3°) dar a cada um o que lhe é devido.
Na Idade Média foram elaborados elementos de uma
doutrina jurídica e São Tomás de Aquino irá distinguir três tipos
de direito. O primeiro, de fundo religioso, é o direito divino, que
irá centrar-se nas Escrituras Sagradas e nas decisões tomadas
pelos papas e concílios. O segundo, chamado de direito natural,
equiparava-se ao que estabeleciam os romanos e confundiamse com o direito divino. Centrava-se na capacidade de que é
dotado o ser humano de apreender o que é inerente à sua
condição ou seja a noção do bem, do justo, do certo, do errado.
O terceiro é o direito positivo. Este sim teria sido criado pelos
homens para regular suas relações inter-pessoais e grupais
Os fundamentos desse direito são antigos e derivam do
estado de guerra. Este estado surge quando os indivíduos, que
estão em sociedade, descobrem sua força como grupo e
passam a combater outros grupos.
“Cada sociedade particular passa a sentir sua força; isso
gera um estado de guerra de nação para nação. Os indivíduos,
em cada sociedade, começam a sentir sua força: procuram
reverter em seu favor as principais vantagens da sociedade:
isso cria entre eles um estado de guerra” - afirma Montesquieu,
analisando as origens das leis positivas. São então, segundo
95
TEMA
ele, essas duas espécies de estado de guerra (entre indivíduos
e entre nações) que irão propiciar o estabelecimento de leis
entre os homens.
Assim, serão estabelecidos o Direito das gentes (das
nações), o Direito Político e o Direito Civil.
O Direito das gentes estabelece as relações que
diferentes povos mantêm entre si. O Direito Político considera,
numa determinada sociedade, as relações entre os que
governam e os que são governados. O Direito Civil estabelece
as relações que todos os cidadãos mantêm entre si.
Na Idade Média, os filósofos cristãos estabeleceram uma
distinção entre razão e revelação: assim para eles havia a razão
como luz natural e a revelação como luz sobrenatural. Aos
conhecimentos divinos chegava-se através da revelação. Foi
através da revelação, registrada nas escrituras, que o
conhecimento do divino teria chegado aos homens.
O cristianismo absorveu e reelaborou noções antigas do
Direito natural relacionando-as com a religião, a partir das
noções reveladas que os livros sagrados registram. Assim, o
homem feito à imagem e semelhança de Deus degradou-se
através do pecado. O trabalho, a propriedade privada, o Estado,
as penas, a escravidão decorrem do ato primeiro de infringir a
vontade divina, através do pecado original. A luta do homem
entre o bem e o mal expressa-se na obra de Santo Agostinho,
“A cidade de Deus”.
Mais tarde, as concepções religiosas perderam impacto.
As concepções dos racionalistas ganharam força na Europa.
A palavra razão tem origem em duas fontes: Termo ratio
(latino) e logos (grego). Na sua origem as duas palavras têm
sentidos semelhantes: contar, reunir, juntar, calcular. Marilena
Chauí diz que “logos, ratio ou razão significa pensar e falar
ordenadamente, com medida e proporção, com clareza e de
modo compreensível para outros. Assim, na origem, razão é a
capacidade intelectual para pensar e exprimir-se correta e
claramente, para pensar e dizer as coisas tais como são. A razão
é uma maneira de organizar a realidade pela qual esta se torna
compreensível. É, também, a confiança de que podemos
UNIESP
96
ordenar e organizar as coisas porque são organizáveis,
ordenáveis, compreensíveis nelas mesmas e por elas mesmas,
isto é, as próprias coisas são racionais”.
Para Kant, a idéia de uma constituição civil já contém, a
priori, um princípio da razão prática, segundo o qual o poder
legislatório constituído deve ser obedecido, independentemente das características de sua origem. Segundo ele, somente
através do ordenamento racional-jurídico o gênero humano
percebe o progresso. O progresso avança ao infinito, no sentido
da articulação plena entre moralidade e felicidade - e essa
conjunção perfeita constitui, segundo Kant, o sumo bem.
Os seres humanos, segundo ele, são determinados a
priori, pela razão, no sentido de promover, com todas as forças,
o maior bem do mundo, entendendo-se que esse bem consiste
na ligação dos seres racionais com a moralidade, conforme
estabelece a lei. O direito, segundo ele, só se aprimora numa
ordem estabelecida e a luta pelo seu aprimoramento é travada
com as armas da argumentação.
BIBLIOGRAFIA
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Paulo: Abril, coleção Os Pensadores,
1974.
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1987.
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São Paulo: Nova Cultural, 1996.
(Coleção Os Pensadores).
97
TEMA
Autor e Texto
Author - Text
Ana Cláudia Pompeu Torezan Andreucci*
A RETÓRICA JURÍDICA E O CINEMA: ANÁLISE DO FILME
“DOZE HOMENS E UMA SENTENÇA
UZ DOS
SENTENÇA”” À L
LUZ
ENSINAMENTOS DO DOUTRINADOR CHAIM PERELMAN
THE JURIDICAL RHETORICAL AND THE CINEMA. FILM ANALYSIS: “TWELVE MEN AND A
SENTENCE”, BASED ON THE TEACHINGS OF INDOCTRINATOR CHAIM PERELMAN
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo analisar o filme americano “Doze homens
e uma sentença” em consonância com o estudo da retórica desde sua origem até
os dias atuais e sua ampla aplicabilidade na instituição do Tribunal do Júri nos
Estados Unidos e no Brasil.
ABSTRACT
The present work aims to analyze the American film “Twelve Men and a sentence”
according to a rhetorical study since its origin until now and its large
applicability in the Law Court Institution in the United States of America and
Brazil.
PALAVRAS-CHAVE
Filme . Retórica. Tribunal do Júri. Estados Unidos. Brasil.
KEY WORDS
Film. Rhetoric. Law Court. United States. Brazil.
* Mestre e Doutoranda em Direito Previdenciário na PUC/SP. Professora do Curso de
Direito da Fatema/Uniesp e da Universidade Presbiteriana Mackenzie na Graduação e
Pós-Graduação.
R.TEMA
S.Paulo
UNIESP
nº 49
jan./jun. 2007
P. 98-127
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Ana Cláudia Pompeu Torezan Andreucci
A RETÓRICA JURÍDICA E O CINEMA: ANÁLISE DO
UZ DOS
SENTENÇA”” À L
LUZ
FILME “DOZE HOMENS E UMA SENTENÇA
ENSINAMENTOS DO DOUTRINADOR CHAIM PERELMAN
THE JURIDICAL RHETORICAL AND THE CINEMA. FILM ANALYSIS: “TWELVE MEN AND
A SENTENCE”, BASED ON THE TEACHINGS OF INDOCTRINATOR CHAIM PERELMAN
“Há de tomar o pregador uma só matéria, há
de defini-la para que se conheça, há de dividila para que se distinga, há de prová-la com a
Escritura, há de declará-la com a razão, há de
confirmá-la com o exemplo, há de amplificá-la
com as causas, com os efeitos, com as
circunstâncias, com as conveniências que se
hão de seguir, com os inconvenientes que se
devem evitar; há de responder às dúvidas, há
de satisfazer as dificuldades, há de impugnar
e refutar com toda a força da eloquência os
argumentos contrários, e depois disso há de
colher, há de apertar, há de concluir, há de
persuadir, há de acabar”
Padre Antônio Vieira (Sermão da Sexagésima)
“Sem conhecer a força das palavras é
impossível conhecer os homens.”
Confúcio
“D
oze homens e uma sentença” é um filme para ser
assistido e analisado pelas mais diversas
ciências.São aspectos sociais, psicológicos, jurídicos,
linguísticos entre outros que foram enfocados com maestria
nesta obra americana.
99
TEMA
É importante ressaltar que o filme foi filmado pela
primeira vez em 1957 sendo protagonizado por Henry Fonda e
Lee J. Cobb e tendo por diretor Sidney Lumet, que à época
debutava no cinema, apesar de já ser conhecido no teatro e
em produções para televisão.
Sucesso de crítica e bilheteria a obra foi refilmada em
1996, tendo na segunda versão como estrelas principais Jack
Lemmon, no papel de argumentador maior e George C. Scott,
seu maior opositor, e último jurado a mudar de voto.
Apenas a título de consideração introdutória deve ser
informado o fato de que na primeira versão do filme nenhum
dos jurados era negro. Contudo, na segunda versão há quatro
negros, sendo que um deles, o que representa o empresário
emergente, durante todo o julgamento demonstrou ser o mais
preconceituoso em relação a sua própria raça.
No contexto do filme uma indagação de primordial
importância deve ser formulada: qual a razão para refilmagem
de uma obra que durante 93 minutos mantém 12 homens em
uma sala mal decorada e a portas fechadas deliberando pelo
destino de um outro homem? Não há ação, romances, viagens
e outros artifícios que agradam aos cinéfilos. Há apenas um
objeto central, a palavra, a persuasão, a retórica.
No que diz respeito à retórica esta técnica argumentativa
é a “estrela maior” do filme, é, por meio dela, que o filme
persuade o destinatário a assistir, bem como o diretor e atores
envolvidos se engajam na tarefa de demonstrar aos
espectadores que a instituição do Tribunal do Júri nos EUA deve
ser repensada.
Mais do que a utilização e análise de argumentos e fatos,
o filme desnuda o Tribunal do Júri americano e tece severeas
críticas tendo por base os erros nos julgamentos, em razão do
jurado não estar comprometido com sua função e, o que é pior
não saber separar a sua realidade, do julgamento que está
em questão.
No presente trabalho o filme será discutido em
consonância com o conceito de retórica, sua origem, evolução
UNIESP
100
histórica e principalmente tendo por alicerce maior a nova
retórica proposta pelo estudioso belga Chaim Perelman.
Ademais, à guisa de melhor ilustração do assunto a
instituição do Tribunal do Júri nos EUA e no Brasil será
apresentada em todos os seus aspectos formais através da
legislação que norteia a matéria.
Por meio da análise de um filme é oportuno relatar que
o cinema é fonte inesgotável de motivação para o estudo dos
mais variados temas, em especial aqueles que remontam à
época antiga.
Torna-se imprescindível mencionar ainda que a
metodologia utilizada para a realização do trabalho em questão
foi a pesquisa bibliográfica, buscando obras pátrias bem como
de outros países para que se pudesse embasar a matéria.
Finalmente a conclusão a ser apresentada revelará como
a retórica é um assunto atual e se apresenta de forma constante
nas lides advindas do Tribunal do Júri.
A crítica trazida pelo diretor do filme à instituição do
Tribunal do Júri nos Estados Unidos será traduzida para o
cenário brasileiro, apontando como a retórica utilizada por
acusador e defensor, atores no Tribunal, pode levar a erros.
Ao final procurar-se-á apresentar proposta para a
legislação pátria brasileira com o intuito maior de não eliminar
a retórica como arma argumentativa, mas pelo menos, diminuir
sua atuação, que atualmente encontra-se no nosso direito pátrio
cingida apenas nas mãos da promotoria e defensoria nos
julgamentos, já que os jurados não têm simplesmente a
possibilidade de discutir o caso e seus votos são secretos.
DOZE HOMENS E UMA SENTENÇA
“Antes mil vezes absolver o culpado do que
uma só vez condenar o inocente.” (absolvere
nocentes satius est, quam condemnare
inocentem) Brocardo Latino
101
TEMA
A história
O filme começa nas derradeiras horas de um julgamento
por assassinato, tendo como réu um porto-riquenho e a
denúncia de ter esfaqueado seu pai, levando-o à morte.
O cenário para o julgamento de uma questão tão difícil,
não é nada aprazível, o dia é quente e abafado e o Tribunal não
oferece condições para atenuar tais fenômenos da natureza.
A juíza que preside o caso deixa clara a responsabilidade
daqueles doze homens, qual seja, de serem juízes e decidirem
pela culpabilidade ou pela inocência de um réu. E adverte:
“Vocês devem julgar imparcialmente, separar os fatos da
fantasia. Não invejo essa tarefa, a responsabilidade é enorme”.
Após as explicações necessárias, seguem aqueles doze
homens para a sala secreta e com a advertência de que de lá só
poderiam sair com um resultado unânime: absolvição ou
condenação.
O Diretor do filme, propositalmente, nos apresenta um
cenário desagradável, com paredes mofadas, mal pintadas,
janelas quebradas e ar condicionado sem funcionar, o que seria
imprescindível num dia daqueles.
A pressa era reinante entre a grande maioria dos jurados,
e em princípio a idéia é a de levar o caso rapidamente à votação.
A pressa inicial que tomava conta dos jurados aumenta na medida
em que vão se instalando na desconfortável sala secreta.
Contudo, não se pode dizer que a pressa era a regra geral
para todos os componentes do Conselho de Jurados. Para o
arquiteto protagonizado por Jack Lemmon, não havia pressa,
havia comprometimento, preocupação com o destino de uma
pessoa, apego ao ideal de justiça. Havia para ele uma “dúvida
cabível” no caso a ser tratado, e por via de consequência o réu
não poderia ser condenado, consubstanciado na maxima latina
“ in dubio pro reo”, ou seja, na dúvida a favor do réu.
Além do arquiteto, integram o corpo de jurados:
UNIESP
102
1) um senhor de idade, com dificuldade de
locomoção e que é o primeiro a mudar de voto;
(HUME CRONYN)
2) um corretor de seguros que sempre busca
argumentos lógicos; (ARMIN MUELLER –STAHL)
3) um negro nascido e criado num cortiço e que
trabalha num hospital do Harlem; (DORIAN
HAREWOOD)
4) um vendedor que quer acabar logo o julgamento
para ir ao jogo de beisebol; (TONY DANZA)
5) um publicitário;
(WILLIAN PETERSEN)
6) um imigrante do leste europeu que trabalhava
como relojoeiro; (EDWARD JAMES OLMOS)
7) um muçulmano emergente; (MIKELTI WILLIAMSON)
8) um senhor negro, simples e que trabalha em um
banco; (OSSIE DAVIS)
9)
um técnico de beisebol que é o jurado
coordenador dos trabalhos; (COURTNEY B. VANCE)
10) um pintor de paredes, “sem opinião própria”;
(JAMES GANDOLFINI)
11) um pequeno empresário “inflamado” em suas
idéias e que caracteriza-se pelo rancor pela
juventude, espelho de seu filho que o ameaçou
e o abandonou anos atrás. Este é o último a
mudar de voto, contra-atacando todos os
argumentos trazidos. É neste que está
103
TEMA
configurado o exemplo maior de que para
alguns não se dissocia a fantasia da realidade.
(GEORGE C. SCOTT)
Na primeira votação sugerida pelo jurado coordenador
dos trabalhos, o resultado é uma surpresa 11 a 1, tendo em
vista que o arquiteto demonstra que não está seguro para
condenar o Réu.
No princípio o jurado discordante é visto como uma
“ovelha negra”, mas pouco a pouco, e utilizando-se da retórica,
arte de persuadir, vai lentamente influenciando seus colegas
a repensarem suas opiniões, afastarem seus preconceitos,
falhas e medos.
Como já dito a obra americana serve de suporte para
vários campos de estudo, mas é para os estudiosos do direito
e lingüistas, um exemplo de como a retórica pode modificar a
opinião das pessoas.
O trabalho de advogado de fato e não de direito do réu
feito pelo arquiteto demonstra a fragilidade das provas trazidas
aos autos e sobre as quais os demais jurados estavam
convencidos, sem questionar, entendendo que o julgamento
encontrava-se solidamente embasado.
Mostra ainda a fragilidade do júri, quando “despe” os
jurados, pondo-os a nu com seus preconceitos, sua educação.
Se o filme não nos dá uma sentença condenatória à Instituição
do Júri,pelo menos nos leva a pensar sua precariedade, já que
as pessoas, não conseguem afastar seus juízos, preconceitos
e aspectos pessoais do julgamento.
As condições precárias da sala dos jurados podem ser
consideradas como meio de induzi-los a rapidamente decidir,
para saírem do sofrimento, do desconforto.
O interessante de ser notado no filme é a seqüência dos
argumentos utilizados e o momento em cada argumento
convence um jurado determinado.
Há argumentos que convencem um ou outro jurado, mas
há argumentos que pelo impacto da informação têm o condão
de fazer com que todos repensem a validade de seus conceitos.
UNIESP
104
Ademais, nota-se claramente em determinados trechos
do filme que apesar de alguns argumentos serem sólidos e
profundos, muitos são os jurados que se sentem motivados a
mudar de opinião, mas com o intuito orgulhoso de não ceder
resolvem manter suas opiniões originárias.
Há de ser mencionado que muitos são os argumentos
trazidos ao filme, mas apenas aqueles de maior impacto serão
enfocados.Senão vejamos.
Argumento n. 1 :
A faca
A faca, instrumento do crime, em primeiro lugar é tida
como única, pelos depoimentos prestados durante a instrução.
Seu desenho é exclusivo e não haveria meios de haver outra
igual. Pela primeira vez no discurso argumentativo o arquiteto
formula uma indagação aos demais jurados a qual leva a
suscitar uma dúvida.
O arquiteto demonstra que uma faca como aquela pode
ser comprada em qualquer loja da região, e que ele mesmo no
dia anterior ao julgamento esteve no bairro onde morava o réu
e obteve facilmente uma faca com iguais características àquela
utilizada no assassinato.
No que tange ainda à faca é necessário ressaltar como
resultou o ferimento por ela produzido na vítima.
Segundo o laudo pericial inserto nos autos o ferimento
foi feito com a faca de cima para baixo. A faca que se abria de
seu compartimento só poderia ser usada com pressão de cima
para baixo. Como explicar este fato já que o réu era 15 (quinze)
centímetros mais baixo que seu pai. Restou claro, naquele
momento, que para funcionar a pressão teria sido de cima para
baixo e em virtude da diferença de altura, não seria o réu o
responsável pela morte de seu pai, mas sim uma pessoa que
tivesse estatura maior que a da vítima.
105
TEMA
Deve ser notado que este argumento não foi trazido pelo
arquiteto, mas sim pelo senhor negro, bancário, que poderia
ser qualificado como “medroso” e “sem opinião própria,” mas
com o incentivo do arquiteto pôde demonstrar que também era
capaz de raciocinar e de deixar de lado o medo de defender
seu ponto de vista.
Os argumentos, ora trazidos, afetaram sobremaneira o
negro que trabalhava num hospital do Harlem, fazendo-o
lembrar que aquele tipo de faca não se usava de cima para
baixo, mas exatamente o contrário. Logo, mais uma dúvida foi
inserida no pensamento dos jurados.
Argumento n. 2 :
Os gritos ouvidos no
andar debaixo
Outra prova que mereceu especial atenção do corpo de
jurados foi um depoimento testemunhal de um senhor “idoso”
que vivia no andar debaixo e teria ouvido o menino dizer ao
seu pai “Vou matar você”.
Esta prova é facilmente derrubada quando o arquiteto
demonstra com base em outro depoimento testemunhal, agora
de uma mulher, que vivia do outro lado da rua, de que naquele
exato momento de exclamação da frase ameaçadora passava
um trem na ferrovia vizinha ao local dos acontecimentos.
Assim é fato: como identificar no andar debaixo com o
barulho ensurdecedor de um trem a voz do filho dizendo ao
seu pai: Vou matar você!
Tal possibilidade não só é impossível como nos remete a
outra indagação, como confiar num depoimento como este?
Com isso derruba-se o depoimento testemunhal daquele
senhor e todos os fatos por ele alegados em juízo são
desmascarados, entendendo até mesmo um componente do
corpo de jurados, também idoso, que aquela testemunha teria
se sentido importante no momento do Júri e poderia até mesmo
fantasiar fatos que efetivamente não teriam acontecido.
UNIESP
106
Argumento n. 3 :
O vulto do filho visto pelo
vizinho do andar debaixo
O argumento n. 3 trazido no filme também tem total
relação com a testemunha acima explicitada, ou seja, o senhor
“idoso” morador do andar debaixo.
Esta testemunha, que sofrera um derrame um ano antes,
depôs dizendo que ouvira o garoto brigar com o pai e depois
um corpo cair ao chão. Disse ainda que quinze segundos depois,
o garoto teria descido as escadas do edifício.
O arquiteto, através da lógica matemática que é
inerente a sua profissão, analisando a planta do apartamento
e simulando a ação do velho, comprovou que o percurso da
cama da testemunha até a porta que levava ao corredor
demorava 42 segundos, e não 15 segundos como havia a
testemunha mencionado.
Pela segunda vez esta testemunha é colocada em dúvida .
Argumento n. 4 :
A mulher que presenciou o
crime através das janelas do trem
Cumpre destacar que o argumento n. 4 está relacionado
a uma mulher, descrita no filme como muito elegante e vaidosa
e que testemunhou dizendo que havia presenciado o crime por
meio das janelas do trem que passava no momento.
Ressalta-se que esta testemunha morava no lado oposto
e que o trilho do trem era a marca divisória entre a sua casa e
a da vítima.
No momento do crime , a testemunha encontrava-se
repousando em sua cama e ao ouvir os gritos pôde presenciar
o filho matando o seu pai.
É interessante notar que esta testemunha é
desmascarada pelo jurado mais idoso, e ressalte-se como é
107
TEMA
comum com a terceira idade, sendo tratado com desprezo por
alguns companheiros do Júri.
O jurado atentamente olhava para o jurado, corretor da
bolsa de valores, que esfregava suas marcas de expressão na
parte interna dos olhos, profundas e típicas de quem usa óculos
com graus maiores. Tal gesto, como de maneira mágica fez com
que o jurado mais “idoso”, se lembrasse que a vaidosa
testemunha tinha o mesmo hábito de esfregar o canto dos olhos.
Pôde assim perceber que por ser vaidosa, ou até mesmo
instruída pela Promotoria, foi ao Tribunal sem seus óculos. A
constatação aliada ao fato de que no momento do crime a
testemunha encontrava-se repousando fez com que o jurado
raciocinasse que para poder enxergar ela precisaria colocar
seus óculos e que no tempo descrito não poderia ter
testemunhado o crime.
Ou ainda o que é pior, não seria possível para quem não
dispõe das faculdades visuais perfeitas, enxergar através das
janelas do trem que passava no momento do crime.
Todos os argumentos e os detalhes que formam o enredo
do filme são um convite ao estudo da arte da palavra, das
técnicas da argumentação e para resumir, da arte retórica.
De todos os filmes que existem no cenário americano,
no qual encontra-se a maior safra de filmes desta natureza,
talvez seja “Doze homens e uma sentença” o exemplo daquele
que melhor trata da retórica, enquanto técnica, enquanto arte,
enquanto “estrela maior” do espetáculo.
No próximo capítulo será a retórica apresentada em seus
aspectos conceituais e toda a sua evolução através dos tempos.
Procurar-se-á ainda cotejar elementos identificados no filme e
citações formuladas pelo “pai da retórica moderna” o estudioso
belga, Chaim Perelman.
UNIESP
108
RETÓRICA
“O que melhor caracteriza a retórica é ter sido
definida como a ciência de dizer bem, porque
isto abrange ao mesmo tempo todas as
perfeições do discurso e a própria moralidade
do orador, visto que não se pode
verdadeiramente falar sem se ser um homem
de bem.”
Quintiliano
Conceito
Anteriormente ao conceito do instituto é necessário
enfocar que a retórica só ocorrerá dentro de um sistema,
chamado de discurso, disciplinado pela Teoria Geral do
Processo de Comunicação.
Nesse sentido, o discurso deve ser entendido consoante
lições de Tércio Sampaio Ferraz Júnior1 como “uma ação
linguística dirigida a outrem, donde o seu caráter de discussão,
em que alguém fala, alguém ouve e algo é dito. E argumenta
ainda o professor Tércio2 que “ assim, a situação comunicativa
se limita internamente também na forma de regras de atribuição
e de diferenciação de papéis. Com isso é possível 3
determinarem-se diversas reações avaliativas dos partícipes:
cooperativas, contestativas, indiferentes, etc, com a
conseqüente qualificação do objeto do discurso e seu controle
(função estimativa do discurso). Assumimos, assim que as
partes, na situação comunicativa, estão motivadas, isto é, têm
em princípio, interesse pelo que se diz, certeza de que algo vai
ser alcançado e incerteza sobre o que será alcançado.”
1
2
3
Direito, Retórica e Comunicação, p. 57.
Op. cit., p. 59.
O processo da comunicação: introdução à teoria e à prática, p.12.
109
TEMA
Deve ser ponderado que todo o discurso está relacionado
com um objetivo maior na comunicação, qual seja, segundo
David Berlo4 o de nos fazer influenciadores dos outros, dos
ambientes e até de nós mesmos. Tal influência é feita de maneira
intencional pelo agente ativo da comunicação.
Resta clara assim, a idéia precípua de que o discurso é
a base da comunicação humana e esta visa acima de tudo
influenciar.
Comungando das mesmas considerações o professor
Ubaldo César Baltazar 5 define o
“discurso como um acontecimento linguístico e
social, único e irrepetível. Pode produzir vários
sentidos porque se constrói com o material
lingüístico, e é heterogêneo porque reflete a
multifacetação cultural do tecido social:há
diferentes sistemas de referência que possibilitam
múltiplos sentidos numa dada formação social.”
Quanto ao termo retórica impõe considerar que já esteve
vinculado como sinônimo de oratória, mas contudo a melhor
definição para que se possa entender a natureza da retórica
está adstrita ao mestre Chaim Perelman6 que a considera como
o “estudo dos meios de argumentação, não pertencentes à
lógica formal, que permitem obter ou aumentar a adesão de
outrem às teses que se lhe propõem ao seu assentimento.”
Há de ser verificado que a retórica tem por finalidade,
enquanto ciência, o estudo das formas de argumentação que
levam à adesão de um auditório. Neste cenário oportuno se
torna mencionar que os termos persuasão e convencimento são
indissociáveis da idéia de retórica.
4
5
6
O processo da comunicação: introdução à teoria e à prática, p.12.
O poder das metáforas : Homenagem aos 35 anos de docência de Luis Alberto
Warat, p. 20.
Retóricas. p. 57.
UNIESP
110
David Berlo7 comunga das mesmas idéias asseverando
que “Aristóteles definiu o estudo da retórica (comunicação)
como a procura de todos os meios disponíveis de persuasão”.
Discutiu outros possíveis objetivos de quem fala, mas deixou
nitidamente fixado que a meta principal da comunicação é a
persuasão, a tentativa de levar outras pessoas a adotarem o
ponto de vista de quem fala”. E acrescentou “nosso objetivo
básico na comunicação é nos tornar agentes influentes, é
influenciarmos outros, nosso ambientes e nós próprios, é nos
tornar agentes determinantes, é termos opção no andamento
das coisas. Em suma, nós nos comunicamos para influenciar –
para influenciar com intenção.”
Desta forma evidencia-se a idéia que ao se comunicar o
ser humano implicitamente visa cativar, conquistar, convencer
e persuadir, necessariamente nesta ordem. A intenção do
emissor da mensagem é a concordância do receptor e para
tanto a maior responsabilidade para que ocorra o objetivo
almejado encontra-se nas mãos do emissor.
Contudo, para argumentar Ronaldo Caldeira Xavier8
elucida que “a argumentação, porém, é o ponto fundamental ,
a pedra de toque da eloquência. Nela se resume a arte de
discutir as provas, distinguir o verdadeiro do falso, de rebater
as razões do adversário, tendo por fim convencer o ouvinte. A
argumentação, por sua vez, pode subdividir-se em confirmação
e refutação. A primeira é a parte defensiva; a Segunda, a parte
ofensiva. Consoante velho conselho dos mestres da palavra, a
confirmação deve dispor os argumentos de modo que os mais
fortes venham em primeiro lugar, para atrair a atenção; depois
os menos poderosos e, só então, quando já se tem granjeada a
confiança da platéia, os mais fracos. Finalmente, coroando tudo,
os mais vibrantes, para que causem grande impressão no
espírito dos ouvintes. Na refutação, o orador passa para o
ataque, para a destruição dos argumentos opostos aos seus.
7
8
Op. cit,. p. 20.
Português no Direito. p. 226.
111
TEMA
Se o desejar, pode fazê-la preceder à confirmação, dependendo
da estratégia oratória adotada. A refutação far-se-á segundo o
obstáculo pela frente: criticando a falsidade ou dubiedade de
um fato, desarticulando o aparato lógico de um raciocínio
tendencioso, reduzindo-o à mais simples expressão, se possível,
ao nada, responder-se-á à paixão com a paixão, à injúria com a
injúria, à ironia com a ironia. Em suma, o orador combaterá com
as mesmas armas que usar o adversário.”
Das lições trazidas resulta destacar que o emissor deverá
conhecer o receptor, ou melhor seu auditório, falando o que
convém , no momento mais oportuno.
Convém enfatizar ainda que o que for propício para um
auditório muitas vezes não o será para outros. Conforme Chaim
Perelman9 a argumentação teórica tem por objetivo a adesão
do auditório, e cada auditório a que se dirige deve ser visto de
modo singular, o que funciona como premissa para um
determinado público poderá não ser para outro, e aí está a base
da argumentação e da retórica.
Ademais parafraseando o mestre belga10 impõe notar
que a retórica guarda diferenças da lógica pelo fato de se
ocupar não com a verdade abstrata, categórica ou hipotética,
mas com a adesão. Tem por meta a retórica produzir ou
aumentar a adesão de um determinado auditório a certas teses
e seu ponto inicial será a adesão desse auditório a outras teses.
Importa salientar que o orador no momento de
desenvolvimento do seu discurso deve dar especial atenção à
adesão alheia, propugnando para que os receptores da
mensagem fixem a atenção, sejam conquistados e em especial,
formem uma espécie de comunidade comprometida com o teor
da comunicação.
A citação ora trazida ao trabalho encaixa-se
perfeitamente na intenção do jurado arquiteto, posto que toda
a sua retórica estava destinada a convencer um auditório
9
10
Retóricas. p. 70.
Op. cit. p. 71.
UNIESP
112
heterogêneo, mas que de certa forma encontrava-se
comprometido com um mesmo problema, qual seja, a decisão
dentro de um julgamento de assassinato.
Perelman11 invoca ainda em seus estudos que situações
envolvendo vários interlocutores com pensamentos diversos
ocorrem com freqüência e, ainda além do adversário, receptor
da mensagem, muitas são as pessoas que não participam
diretamente do processo comunicativo, mas assistem à discussão.
Podemos notar tal teoria explicitada pragmaticamente
no filme “Doze homens e uma sentença” no qual por vezes uma
tese era aceita por alguns, mas não por outros jurados, a
resposta para esta assertiva pode ser compreendida como a
possibilidade de adesão pelos demais ouvintes quando a tese
parecer mais adequada, oportuna e contemporânea.
O filme nos mostra ainda em várias passagens que o
argumentador principal, qual seja, o jurado arquiteto, ao
estabelecer as premissas fundamentais de sua tese e ao se
dirigir ao jurado em especial, buscava a persuasão de todos
aqueles que assistiam à discussão.
Destaca-se também que por não estar a retórica ligada
a uma ciência exata tudo pode ser motivo para indagações a
esse respeito e Perelman12 informa em sua obra “Retóricas”
“que tudo sempre pode ser questionado; sempre se pode retirar
a adesão: o que se concede é um fato, não um direito”.
É evidente que no filme “Doze homens e um sentença”
tudo foi questionado e todos os conceitos que pareciam
intangíveis foram sendo derrubados um a um.
Por conseguinte, há de ser relevado que em todos os
momentos os jurados que apresentavam-se comprometidos
com a argumentação dos fatos expostos no julgamento fictício
não se deixavam levar pelas emoções desenfreadas, posto que
estas muitas vezes pode dificultar a finalidade maior da
argumentação. Cabendo citar para corroborar as idéias acima
11
12
Op. cit., p. 77.
Op. cit. p. 77.
113
TEMA
expostas o entendimento do mestre Whitaker Penteado13 "a
legítima argumentação deve ser construtiva na sua finalidade,
cooperativa em espírito e socialmente útil. Embora seja exato
que os ignorantes discutem pelas razões mais tolas, isto não
constitui motivo para que os homens inteligentes se omitam em
advogar idéias e projetos que valham a pena. Homens mal
intencionados discutem por motivos egoístas ou ignóbeis, mas
este fato deve servir de estímulo aos homens de boa vontade
para que se disponham a falar com maior frequência e maior
desassombro. O ponto de vista que considera a discussão como
vazia de sentido e ausente de senso comum é não só falso, mas
também perigoso, sob o ponto de vista social”.
Neste mesmo diapasão é de ser verificado que as
discussões trazidas pelos jurados na sala secreta fizeram com
que o julgamento fosse repensado, e medos, preconceitos e
hipocrisia foram lentamente deixados de lado para ocupar o
papel central, o objetivo maior da questão, ou seja destino de
um outro homem.
Quanto ao destino deste outro homem não poder-se-ia
precisar se era culpado ou não, mas repensar sua condição
diante de uma “dúvida cabível” quanto a sua inocência.
A retórica muitas vezes, por consistir na arte de persuadir,
visa questionar fatos, que não podem ser tomados como
verdades absolutas.
Quando se trata da análise da retórica no Júri pode-se
evidenciar que a verdade é tida sempre como relativa, devendo
os jurados enquanto juízes da questão analisarem os fatos em
consonância com as provas dos autos.A verdade provisória ou
relativa não macula apenas o Tribunal do Júri, mas sim é marca
característica da ciência do Direito, como elucida a professora
Maria José Constantino Petri14 que no campo do Direito sempre
se nota a relatividade da verdade, pois cada acontecimento
13
14
A técnica da comunicação humana. p. 233.
Argumentação linguística e discurso jurídico. p. 97.
UNIESP
114
ocorre em determinado tempo e local e tais questões devem ser
analisadas na relação entre tese e norma jurídica.Tendo o Direito
o Homem como objeto central não é possível se falar em
verdades absolutas, pois as ações se projetam para o futuro.
Nem o próprio momento é absoluto, varia no passado, presente
e futuro. Cabe à Justiça a singularidade de cada caso em concreto
realizando um fim em si mesma e o discurso jurídico busca a
sentença absolutória ou condenatória do acusado, o que faz do
discurso jurídico altamente argumentativo e persuasivo.
O pensamento da professora Maria José Constantino
Petri talvez seja o melhor exemplo para fundamentar o vasto
campo da retórica na ciência do Direito, sua atuação enquanto
principal instrumento de atuação.
Pode-se dizer que é a retórica inspiração constante dos
diretores de cinema, em especial, os americanos, tendo em vista
que naquele país inúmeros são os filmes que tratam da arte de
persuadir, enumerando suas formas e artifícios.
Também nos bancos das academias do curso de Direito
a retórica é estudada como principal ferramenta de trabalho
daqueles que objetivam trabalhar na área.
Tal como se evidencia nos dias atuais a retórica sempre
foi objeto de estudo de filósofos, lingüistas, estudiosos do Direito
entre outros.
Retórica:
Da antiguidade aos dias atuais
Originou-se a retórica em Siracusa, Grécia, 485 a.C.,
configurando-se como primeiros professores Empédocles de
Agrigento, Corax e Tísias de Siracusa.
Segundo Barthes citado por Maria José Constantino Petri
a retórica inicial era marcada pela tentativa de sistematização
de um discurso e Corax foi o responsável por tal sistematização
elaborando o Plano composto de cinco partes do discurso entre
elas: o exórdio ou introdução, a narração ou ação, a
argumentação ou prova, a digressão e o epílogo.
115
TEMA
Górgias foi considerado outro expoente no estudo da
retórica preocupando-se com a utilização de figuras de
linguagem, sendo seguido por Platão .
Talvez tenha sido Aristóteles quem melhor engendrou
estudos sobre o tema. O filósofo grego com base no seu tratado
denominado “Topica” escreveu “Techne Rhetorike”.
Para Aristóteles a retórica é uma técnica que visa
persuadir, raciocinar sobre o verossímil e pontos de vista, e
portanto não poderia ser considerada como uma ciência, pois
esta última tem como finalidade demonstrar.
Como técnica que era a retórica estava consubstanciada
em três gêneros: o judiciário, o deliberativo e o epidítico.
No que tange ao Império Romano a retórica marca sua
passagem nos idos do Século II a C. e surgem em Roma as
escolas de Retórica; é de Cícero a obra “Rethorica ad
Herenium” sendo seguido por “De Institutione Oratoria” de
Quintiliano considerado à época como professor especialista
na retórica de Aristóteles e lhe é dada a missão de lecionar tal
assunto, como forma de propagar a matéria.
Na Idade Média a retórica foi difundida juntamente com
o cristianismo tendo por precursor Santo Agostinho.
No século XX a retórica é inicialmente rejeitada em
virtude do espírito analítico matemático que pairava no ar. São
tempos de teorias matematicamente demonstráveis através
da lógica formal.
À época nada que fosse comprovado e demonstrado
seria aceito e assim a retórica que era considerada como a arte
do provável, do verossímil é deixada de lado, só renascendo
com Chaim Perelman através de seu tratado da argumentação.
Para Perelman as ciências humanas devem ser
respeitadas e há regras diferentes para cada ciência, não
tornando nenhuma submetida à outra.
No que tange à retórica defendia Perelman que se tratava
de uma ciência com leis próprias .
UNIESP
116
O TRIBUNAL DO JÚRI
“Não sou contrário ao Júri. Penso que, bem
organizado, o tribunal popular distribuirá a
justiça em melhores condições do que os
juízes togados. Julgando de consciência, o
jurado defenderá a sociedade de seus maus
elementos e impedirá que os bons elementos
sofram os rigores da lei.”
Ministro Costa Manso
Origem
A origem do Júri remonta à antiguidade, época em que os
acusados em geral eram julgados por reis ou seus autorizados.
Com a conscientização sobre a liberdade individual de
cada um, os julgamentos passaram a ser realizados com a
intervenção do povo. Conforme o processualista Vitorino Prata
Castelo Branco, “com o aparecimento da democracia, com a
intervenção do povo na administração da justiça, o homem,
acusado de algum crime , passou a ser julgado por seus iguais,
assim surgindo o júri, denominação inglesa, derivada do antigo
francês jurée, marcando, no meridiano do mundo político o
aparecimento do poder popular”.
Há referências de julgamentos pelo Tribunal do Júri na
Roma Clássica, na Grécia Antiga. Na Inglaterra, o Júri Popular
foi instaurado nos idos do século VII no governo do Rei Alfredo,
o Grande.
Já na França o Júri Popular apareceu tardiamente
somente sendo instituído após a Revolução Francesa de 1789.
Origem no Brasil
Em se tratando de Brasil, o Júri teve sua história marcada
em 18 de junho de 1822 objetivando julgamentos oriundos de
crime de imprensa.
117
TEMA
Foi por meio do Código de Processo Criminal do Império
de 1841 que o Tribunal do Júri alcançou sua primeira
sistematização.
Impera ressaltar que somente a partir do Decreto-Lei n.
167 de 5 de janeiro de 1938 o Júri teve sua competência
limitada sendo-lhe facultado apenas os julgamentos dos crimes
dolosos contra a vida, tentados ou consumados, entre eles o
homicídio, o aborto, o infanticídio e o induzimento, instigação
ou auxílio ao suicídio.
Desde o Decreto-Lei supra citado encontra-se o Júri
adstrito aos julgamentos dos crimes dolosos contra a vida,
sendo de todo importante salientar que está erigido à categoria
de Direito e garantia fundamental do cidadão no artigo 5,
XXXVIII da Constituição Federal de 1988, cabendo citar:
Art. 5 o Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade nos
termos seguintes:
XXXVIII – é reconhecida a instituição do júri, com
a organização que lhe der a lei, assegurados:
a) A plenitude de defesa;
b) O sigilo das votações;
c) A soberania dos veredictos;
d) A competência para o julgamento dos crimes
dolosos contra a vida.
Procedimentos processuais do
Tribunal do Júri
Os procedimentos relativos ao Tribunal do Júri
encontram-se elencados no Código de Processo Penal,
Capítulo, Seções I a V, artigos 406 a 496.
UNIESP
118
Ressalta-se assim que são 90 artigos destinados a
operacionalizar todo o funcionamento dos crimes julgados pelo
Tribunal do Júri, quais sejam, os dolosos contra a vida, tentados
ou consumados.
Da função do jurado
Impõe destacar que a instituição do Tribunal do Júri é
consubstanciada no julgamento do réu pelos seus pares e assim
sendo o artigo 434 estabelece que o serviço do Júri é obrigatório.
O critério de idoneidade dos cidadãos será um dos
requisitos para que se possa participar como jurado.
Cumpre observar que a missão do jurado é de absoluta
importância e sua recusa importará na perda dos direitos
políticos, conforme acentuado pelo artigo 119, b da
Constituição Federal.
Por outro lado é necessário enfatizar que o artigo 437
estabelece ser a função de jurado um serviço público relevante,
garantindo ao jurado “presunção de idoneidade moral e
assegurará prisão especial, em caso de crime comum, até o
julgamento definitivo, bem como preferência, em igualdade de
condições, nas concorrências públicas.”
Do julgamento pelo Júri
No dia designado para o julgamento são intimados 21
jurados para que compareçam à sessão. Dentre os 21 jurados
convocados, sairão 7 jurados que irão compor o Conselho de
Sentença.
A escolha dos 7 julgadores será mediante sorteio e após
a formação do conselho de sentença os convocados sob a
presidência do juiz farão a seguinte exortação, informada no
artigo 464 do Código de Processo Penal:
119
TEMA
“Em nome da lei, concito-vos a examinar com
imparcialidade esta causa e a proferir vossa
decisão, de acordo com a vossa consciência
e os ditames da justiça”.
Após a exortação seguem–se nesta ordem o
interrogatório do réu, a leitura do relatório do processo com as
provas e fatos pertinentes.
A seqüência dar-se-á com a oitiva das testemunhas e,
posteriormente, com aquela fase em que a retórica aparece de
forma mais evidentes, os chamados debates.
Inicialmente o promotor pela acusação e o advogado
pela defesa terão 02 horas cada um para a exposição de seus
argumentos. Para a réplica do acusador e tréplica do defensor
o tempo será de 30 minutos conforme dispositivo expresso no
artigo 474 do diploma processual penal.
Após os debates os jurados se recolhem à sala secreta ,
onde lhes são entregues os autos do processo, “devendo o juiz
estar presente para evitar a influência de uns sobre os outros”,
consoante reza o artigo 476 do Código de Processo Penal.
Resta claro que os jurados não poderão conversar sobre
o caso, cabendo ao juiz impedir qualquer manifestação ou
questionar acerca do julgamento. Ressalta-se que, nesta fase
difere-se sobremaneira da votação nos EUA onde há liberdade
entre os jurados para questionar e argumentar sobre o caso.
Destaca-se que aos jurados são distribuídas cédulas para
que sejam respondidos os quesitos. Cada cédula sigilosamente
é entregue ao oficial de justiça que as repassará ao juiz.
A decisão poderá ser por maioria de votos e finda a
votação os termos dos quesitos serão assinados pelo juiz e
pelos jurados.
O comprometimento e a
consciência ao julgar
Pela análise dos tópicos anteriormente expostos no
capítulo em questão, necessário se faz ressaltar que a tarefa
UNIESP
120
do jurado encerra uma das maiores responsabilidades, qual
seja, ser um juiz e sentenciar o destino de uma pessoa.
Neste momento impõe trazer à baila os ensinamentos do
especialista em Tribunal do Júri, Vitorino Prata Castelo Branco15
cumprindo citar: “ a arte de julgar, missão difícil mas digna, não
depende da ciência ou de sabedoria, depende tão-somente de
bom senso, virtude que qualquer pessoa responsável possui.”.
E acrescenta “ o maior perigo do julgamento é julgar errado, não
punir o culpado certo, ou condenar um inocente. A lei processual
procura garantir a verdade dos fatos, na contrariedade dos
debates, escritos e orais. Todavia, a justiça humana, sempre falha,
permite o aparecimento de erros judiciários, ocorridos no
estrangeiro e no Brasil”.
Desta feita, consoante as lições ora trazidas tem-se por
óbvio que a consciência e o comprometimento devem ser
requisitos presentes no jurado sorteado. Contudo, na prática
verifica-se constantemente que tais pressupostos por vezes não
ocorrem e que na figura de julgadores, muitos são os jurados
que se sentem como pessoas superiores e dignas de maior
merecimento que o réu que ali se encontra.
O Júri nos Estados Unidos
Importa esclarecer que para que se possa entender em
toda a sua plenitude o filme “Doze homens e uma sentença”
necessário se faz o estudo pormenorizado do Tribunal do Júri
nos Estados Unidos.
Neste diapasão é imprescindível sublinhar suas origens,
crimes de sua competência e aspectos formais-procedimentais.
O instituto, na sua forma norte-americana de ser, terá no
presente tópico por metodologia de análise a comparação com
as formas preconizadas no Brasil.
15
O advogado no Tribunal do Júri. p.42.
121
TEMA
As bases fundantes do Tribunal do Júri nos Estados
Unidos encontram sua gênese nos aspectos históricos já
mencionados na origem do instituto de maneira geral.
Quanto aos procedimentos o modelo americano segue
o disposto no modelo inglês onde o jurado responde ser o réu
culpado ou inocente, guilty ou not guilty. É o jurado, nos Estados
Unidos, um juiz da matéria de fato e de direito, diferentemente
do que ocorre no Brasil, onde aos jurados é dada a função de
responder aos quesitos e ao juiz aplicar o direito conforme
respostas aos quesitos formulados.
São escolhidos no Júri americano 12 jurados que irão
compor o Conselho de Sentença.
Ademais, comparativamente ao Brasil outro aspecto de
salutar importância e que merece ser analisado é que as
votações são abertas e aos jurados é permitida a análise dos
fatos e provas.
No instituto americano não há interferência do juiz,
enquanto fiscal, para que os jurados não conversem no momento
da decisão, como é o caso do Brasil. Muito pelo contrário, no
sistema americano o debate, o questionamento e as
discussões são presentes em todos os julgamentos.
Talvez seria necessário meditar se o sistema americano
não representa o melhor sistema de Tribunal do Júri, já que
através do número maior de jurados e a troca de informações
entre eles, possibilita a discussão e a análise minuciosa dos
fatos e provas do processo visando evitar injustiças oriundas
de preconceitos, falácias, erros e verdades inabaláveis.
CONCLUSÃO
“Quem seduz induz; quem seduz conduz;
quem seduz deduz; e quem seduz aduz.”
Gabriel Chalita
Em se concluindo o presente artigo é oportuno reiterar
que a retórica, instituto que teve sua origem nos idos do século
V a.C., continua atual e revivida pela escola de Chaim Perelman.
UNIESP
122
O conceito de retórica é indissociável do exercício
profissional dos operadores do Direito, tendo em vista ser a
palavra a principal ferramenta de trabalho destes profissionais.
Entretanto, dentre os mais diversos campos da Ciência do
Direito, é no Processo Penal, ou mais precisamente no Tribunal
do Júri, que a retórica aparece como estrela maior.
Sublinha-se que o filme “Doze homens e uma sentença”
traz a lume uma crítica bem fundamentada ao instituto do
Tribunal do Júri, haja vista que por caber aos leigos o
julgamento de réus, muitos são aqueles que não conseguem
separar a realidade da fantasia, ou o que ainda é pior, separar
seus preconceitos, dogmas e crenças do objeto do julgamento.
Mister se faz salientar também a existência de recursos
amplamente utilizados pelos atuantes no Júri, entre eles
promotores e advogados, com a finalidade básica de
persuadir. As falácias, pode-se dizer, que são muito utilizadas
e os leigos, não preparados, se vêem impedidos de questionar
aspectos fundamentais.
A mensagem do filme é clara e transparente ao abordar
que se deve repensar a instituição, Tribunal do Júri. Se não
houvesse o arquiteto protagonizado na 2a versão por Jack
Lemmon e para os saudosistas por Henry Fonda na versão
inicial, talvez um inocente teria sido condenado.
Mas, por que sublinhar a condicional talvez? A resposta
a tal indagação é simples, posto que o filme não quer reduzir a
discussão ao fato de ser o réu culpado ou inocente, mas sim de
que paraiva uma “dúvida cabível” e que por si só não poderia
gerar uma condenação.
Em face do brocardo latino “ in dubio pro reo”, havendo
dúvida esta deve ser entendida a favor do Réu. A condenação
requer provas robustas e cabais da culpabilidade do réu, em
razão do princípio maior da presunção da inocência, qual seja,
todos são inocentes até que se prove o contrário.
Impende mencionar que a retórica, enquanto técnica da
persuasão, esteve presente em todos os momentos do enredo,
seja na acusação da promotoria, seja na defesa formulada em
123
TEMA
prol do réu, pelo defensor “ad hoc”, mas e, principalmente, na
sala do Conselho de Jurados.
É interessante notar que no primeiro momento do filme
cabe apenas ao arquiteto a reflexão e interpretação consciente
de que as provas carreadas aos autos não eram suficientes para
sentenciar a condenação do Réu e não existiam provas robustas
que comprovavam a tese proposta pela acusação.
Vencido na primeira votação na sala secreta é o arquiteto
que inicia a persuasão do auditório, atentando firmemente para
o fato que encontrava-se diante de um auditório heterogêneo.
Após suas primeiras indagações o arquiteto “planta” na
mente de seus colegas do Júri uma “dúvida cabível” sobre ter
sido o réu autor ou não do assassinato de seu pai. Neste cenário,
após ter sido o precursor da retórica o arquiteto consegue o
que almejava fazendo com que à sua tese houvesse adesão. E
é através desta adesão que alguns jurados passam também a
trabalhar como argumentadores buscando outros elementos
que ainda não haviam sido abordados.
Pode-se concluir então que o arquiteto é colocado no filme
como a força motriz inicial para os debates e daí se originam os
questionamentos e a persuasão por meio da retórica.
Deve-se deixar claro que nos Estados Unidos o Conselho
de Sentença no Júri é formado por 12 jurados e o voto é feito de
maneira aberta, o que possibilita, como se verifica no filme, a
existência de cidadãos mais comprometidos e mais
questionadores.
Em se tratando de Brasil a realidade é absolutamente
outra tendo em vista que o Conselho de Sentença é formado
por 7 jurados, os quais estão advertidos que não podem debater
a questão e o voto é tomado um a um de maneira secreta através
de votação de vários quesitos.
Se o filme for analisado de forma criteriosa perceber-seá que não se objetiva terminar com o Júri nos EUA, a crítica ali
disposta é para que se reflita acerca da necessidade de
questionamento dos argumentos retóricos trazidos pela
acusação e pela defensoria.
UNIESP
124
Entretanto, ao se pensar no Brasil deve ser deixado claro
que inúmeros são os artifícios retóricos utilizados pelos
profissionais que atuam no Júri, sendo absolutamente visto
como um palco, onde vence aquele que melhor atuar. Neste
sentido, é célebre a frase do poeta Mário Quintana:
“ Tribunal do Júri: local onde os senhores jurados
decidem, entre dois litigantes, qual o que tem o
melhor advogado”.
Resta claro que se injustiças ocorrem no voto aberto, elas
são ainda maiores no escrutínio secreto, haja vista não ocorrer
a conscientização e o comprometimento tão necessários à
função de julgar.
Finalmente, em virtude das considerações expostas este
artigo não teve por objetivo esgotar o assunto, já que este é
rico em detalhes, mas apenas almejou por finalidade precípua
incutir na mente daqueles que o lerem, a idéia de que o Tribunal
do Júri deve ser repensado de maneira geral, mas em especial
no caso do Brasil em razão da votação ocorrer de forma secreta
o que certamente, impossibilita o questionamento por todos
aqueles que serão responsáveis por uma decisão.
Não se pretende no presente ensaio opinar pela extinção
do Tribunal do Júri, mas simplesmente enfatizar que a retórica,
artifício utilizado tanto pela acusação como pela defesa no Júri
brasileiro, não é questionada. Os interessados ditam suas
verdades como absolutas e, jurados , na sua grande maioria,
como leigos que são, encontram-se impedidos de discutir
abertamente as provas e os fatos trazidos aos autos.
Como sugestão poder-se-ia dizer que através do voto
aberto, questionado, discutido e refletido por todos os jurados
envolvidos não se daria azo a tantas injustiças.
Não se pode dizer também que com o voto aberto a
retórica, neste momento entendida em seu mau sentido, ou
seja de mascarar uma verdade, deixe de existir. Como já dito
seu conceito é intimamente ligado ao conceito do Tribunal do
Júri e junto a ele permanecerá.
125
TEMA
Mas com certeza, como no filme “Doze homens e uma
sentença” a retórica bem utilizada, como forma de desnudar
preconceitos e apresentar argumentos dispostos de maneira
lógica fará com que uma dúvida seja apreciada, e ela por si só
não levará à condenação do acusado.
Por derradeiras palavras, o que se pretende num Estado
Democrático de Direito é a justiça e de todas as formas ela deve
ser buscada!
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TEMA
Autor e Texto
Author - Text
Evilásio Ferreira Filho*
APONT
AMENTOS ACERCA DA FIGURA
APONTAMENTOS
JURÍDICA DO CARGO DE CONFIANÇA
NOTES ABOUT HE JURIDICAL FIGURE OF THE TRUSTWORTHY CHARGE
RESUMO
O cargo de confiança é aquele ocupado por empregado que possua de forma
objetiva o poder de gestão na empresa, ou seja, aquele que possua o poder
de mando sobre os demais empregados, isto é, a possibilidade de abonar
faltas, advertir, punir, negociar com baços, admitir, demitir etc. no âmbito de
suas funções.
ABSTRACT
The trustworthy charge is the one occupied by the employee who has in an
objective way the power of management, or ever, who has the power of
leadership over other employees, that is, the possibility of warrant absence,
advert, punish, negotiate with moods, admit, dismiss etc. in the line of duty.
PALAVRAS-CHAVE
Cargo de confiança. Empregado. Possibilidade de abonar falta de
empregados. Poder de mando. Poder de gestão. Direção da empresa. Poder
de Contratação e demissão.
KEY WORDS
Trustworthy charge. Employee. Possibility of warrant absence. Leadership power.
Management power. Enterprise administration. Power of contracting and dismissing.
*Mestre em Direito. Professor da Fatema/Uniesp. Advogado em São Paulo.
R.TEMA
S.Paulo
UNIESP
nº 49
jan./jun. 2007
P. 128-133
128
Evilásio Ferreira Filho
APONT
AMENTOS ACERCA DA FIGURA
APONTAMENTOS
JURÍDICA DO CARGO DE CONFIANÇA
NOTES ABOUT HE JURIDICAL FIGURE OF THE TRUSTWORTHY CHARGE
Definir é algo geralmente difícil. Por
isto, tudo que vamos discorrer neste
artigo, acerca do cargo de confiança,
haverá de ser entendido como simples
enunciado provisório, sujeito à
contestação.
N
o mundo em que vivemos, a velocidade dos fatos
acaba por alterar diversos segmentos do
mercado econômico. Em épocas passadas, as sucessivas
intervenções do Governo na Economia provocaram uma onda
de instabilidade no país, e as empresas foram obrigadas,
num primeiro momento, a diminuir o volume de seus negócios
e investimentos e a cortar despesas para suportar aquele
período difícil e tumultuado.
Entre as despesas cortadas estão os contratos de
trabalhos dos empregados, que ocupavam o cargo de
confiança, junto aos seus ex-empregadores.
MAS O QUE É
CARGO DE CONFIANÇA?
Não devemos nos iludir com a possibilidade de definir
o que é cargo de confiança. Definir é algo geralmente difícil.
129
TEMA
Por isto, tudo que vamos discorrer neste artigo, acerca do
cargo de confiança haverá de ser entendido como simples
enunciado provisório, sujeito à contestação.
Para Amauri Mascaro do Nascimento o cargo de
confiança1 é aquele desenvolvido pelo empregado que não
está vinculado a certos direitos do trabalho e possua uma
vantagem financeira diferenciada.
Por outro lado, cumpre destacar que o cargo comum
proveniente do contrato de trabalho é aquele exercido pelo
empregado para desenvolver a atividade para qual se
comprometeu realizar mediante um contrato nos termos do
artigo 442 da CLT.
Assevera o inciso II do artigo 62 da CLT que os
gerentes2, assim considerados os exercentes de cargos de
gestão, aos quais se equiparam os diretores e chefes de
departamento ou filial estão excluídos da proteção da jornada
normal de trabalho, não tendo controle da jornada de modo
que deixam deter direito a horas extras.
Na verdade o problema é definir no Direito do Trabalho
quem seja estes gerentes, posto a variedade de interpretação
dos magistrados sobre o tema. Assim, diante do caráter
preventivo é importante que seja entendido como cargo de
confiança aqueles empregados que tenham poderes de
gestão, ou seja, o ato de gerir, o de gerência e administração,
tendo mandato expresso ou tácito.
O Professor Sérgio Pinto Martins3 esclarece que: “é
gerente o que tem poderes de gestão, como de admitir ou
dispensar funcionários, adverti-los, puni-los, suspendê-los,
1
2
3
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Iniciação ao Direito do Trabalho,
p.348.
OLIVEIRA. Aristeu Consolidação das Leis do Trabalho Anotadas e Legislação
Complementar. p.28.
MARTINS. Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. p.284.
UNIESP
130
de fazer compras ou vendas em nome do empregador, sendo
aquele que tem subordinados, pois não se pode falar num
chefe que não tem chefiados.
Para Valentin Carrion 4 o que vale é o poder de
autonomia nas opções importantes a serem tomadas, poder
este que o empregado substitui ao empregador.
Délio Maranhão5, por seu turno, entende que a lei se
refere “àqueles não que podem, mas cujo exercício, põe,
necessariamente, em jogo os próprios destinos da
atividade do empregador. Assim, o empregado que
administra o estabelecimento ou aquele que chefia
determinado setor vital para os interesses do
estabelecimento. Não é possível enumerar, a priori, quais
sejam esses cargos. Tudo depende da natureza da função
em relação à finalidade do estabelecimento”.
A matéria é extremamente controvertida, de modo que a
empresa, ao conceder pelo exercício de cargo de confiança à
determinada pessoa deve fazê-lo somente àquelas que têm poder
de gestão, este entendido entre outras características como poder
de mando aos demais funcionários; presença de subordinados;
possibilidade de abonar faltas, advertir, punir empregados;
poderes para representar a empresa; aprovar funcionários para
contratação; negociar contratos; negociar com bancos,
autonomia nas decisões dentro do âmbito de suas funções.
Importante é que o empregado tenha liberdade e
flexibilidade em seu horário de trabalho.
Não se pode esquecer que mesmo que exerça este cargo
de gestão, muito importante que tenha um salário6 superior a
40% do salário que recebia antes da promoção ou comparado
4
5
6
CARRION. Valentin. Comentários à CLT. p.320.
MARANHÃO. Délio. Instituições de Direito do Trabalho. p.235.
OLIVEIRA. Aristeu Consolidação das Leis do Trabalho Anotadas e Legislação
Complementar , Cenofisco p.39.
131
TEMA
com os demais funcionários do setor, vejamos, quanto a isto, o
parágrafo único do artigo 62 da CLT:
“O regime previsto neste capítulo será
aplicável aos empregados mencionados no
inciso II deste artigo quando o salário do
cargo de confiança, compreendendo a
gratificação de função, se houver, for inferior
ao valor do respectivo salário efetivo
acrescido de 40%”
Note-se a indispensabilidade dos requisitos devem
estar presentes concomitantemente, ou seja, o funcionário
deve efetivamente exercer cargo de gestão e receber salário
diferenciado, devendo tais cargos serem exceção e não regra.
O artigo 224, § 2º que trata dos bancários7, estabelece
que é considerado cargo de confiança aquele que
compreende cargos de direção, gerência, fiscalização ou
chefias, bem como outros semelhantes.
Para justiça laboral, não importa a nomenclatura
utilizada pelo empregador, sendo sempre analisado os
aspectos fáticos que envolveram a relação de trabalho. Assim,
deverá existir prova suficiente de que o funcionário exercia
cargo de função e a demonstração inequívoca do aumento
salarial e da diferença entre o salário deste e dos demais.
Assim, ao optar-se por conferir “cargo de confiança”
a determinada pessoa a empresa deverá ter presente os
requisitos do cargo (poderes de gestão – em sentido amplo),
bem como diferença salarial, devendo tal fato ser
documentado através de termo aditivo, termo de retificação
ou alteração nos contratos de trabalho a serem celebrados.
7
OLIVEIRA. Aristeu ob.cit. , p. 81.
UNIESP
132
BIBLIOGRAFIA
CARRION. Valentin. Comentários à CLT.
São Paulo: Atlas, 2001.
MARANHÃO. Délio. Instituições de
direito do trabalho. São Paulo: LTR, 2003.
MARTINS. Sérgio Pinto. Direito do
Trabalho. 14ª ed. São Paulo: Editora
Atlas, 2004.
133
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso
de Iniciação ao Direito do Trabalho. 31ª
ed. São Paulo: LT, 2002.
OLIVEIRA. Aristeu consolidação das
leis do trabalho anotadas e legislação
complementar. São Paulo: Cenofisco
p.39.
TEMA
Autor e Texto
Author - Text
Maria Lúcia de Barros Rodrigues*
DO REGIME DA PROPRIEDADE
INTELECTU
AL E O SISTEMA DE P
ATENTES:
INTELECTUAL
PA
AS LICENÇAS COMPULSÓRIAS
PROPERTY OF INTELLECTUAL REGIME AND THE
PATENT SYSTEM: COMPULSORY LICENSES
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo estudar a licença compulsória na Lei nº
9.279/96 e no Decreto nº 4.830/03, em especial matéria de emergência nacional.
Para alcançar os objetivos almejados, o trabalho se fundamenta em importantes
posições doutrinárias acerca da propriedade intelectual, as quais caminham no
sentido de se entender que se faz necessária uma reforma na regulamentação
existente no ordenamento brasileiro.
ABSTRACT
The present work aims to study the compulsory license in Law number 9.279/
96 and Decree number 4.830/03, especially national emergency matters. In
order to achieve the desired objectives, the work is grounded in important
doctrinal positions about the intellectual property, which objective to
understand a necessary renewal in the existent rules in the Brazilian ordinance.
PALAVRAS-CHAVE
Propriedade intelectual. Licenças compulsórias. Função social da propriedade.
KEY WORDS
Intellectual property. Compulsory license. Property. Property social funtion.
*Professora de Direito Empresarial, doutora em Direito e advogada em São Paulo.
R.TEMA
S.Paulo
UNIESP
nº 49
jan./jun. 2007
P. 134-179
134
Maria Lúcia de Barros Rodrigues
DO REGIME DA PROPRIEDADE
INTELECTU
AL E O SISTEMA DE P
ATENTES:
INTELECTUAL
PA
AS LICENÇAS COMPULSÓRIAS
PROPERTY OF INTELLECTUAL REGIME AND THE
PATENT SYSTEM: COMPULSORY LICENSES
UM DIREITO DE
PROPRIEDADE SUI GENERIS
P
oder-se-ia imaginar que a discussão acerca da
natureza jurídica do direito sobre os bens imateriais
parece sem importância ou desprovida de interesse prático
para os estudiosos do Direito.
Mas, na verdade, dependendo da natureza jurídica que se
atribua a esse - ou qualquer outro direito - diferente será a maneira
de interpretá-lo e, conseqüentemente, aplicar a própria lei.
Se optarmos por uma vertente, assim será a sua
aplicação e interpretação. Melhor explicando: se dermos a
qualificação para os direitos sobre os bens imateriais como
direitos pessoais ou reais, a interpretação e aplicação da lei
seguirá o regime jurídico inerente aos direitos pessoais ou reais.
Os bens imateriais - ou bens incorpóreos - não existem
materialmente ou, preferindo, concretamente.
Mas são economicamente valiosos, fazem parte do
estabelecimento empresarial e podem ser chamados de “classe
especial de ativos intangíveis”.1
1
SOUZA, Ana Cristina França. Avaliação de Propriedade intelectual e ativos
intangíveis, Revista da ABPI nº 39, p. 9 a 14, p.10.
135
TEMA
- “propriedade intelectual: é uma classe especial
de ativos intangíveis que é única, por ter seu uso
e exploração protegidos por lei. Pode ter uso
interno ou ser transferida para terceiros (marcas,
patentes, processos secretos, direitos autorais,
software, etc.).”
A divisão em direitos de natureza corpórea e incorpórea
já vinha desde os Romanos, obedecendo à possibilidade ou
não de serem tocados.
Porém, a melhor definição não é a que relaciona a
imaterialidade ao fato de se poder “tocar” ou não. Mas sim, aquela
que admite sua existência em virtude da atividade intelectual e
inventiva do homem, devidamente regulamentados pelas normas
de direito industrial (marcas, patentes, modelos de utilidade e
desenhos industriais), bem como das de direito do autor.
Posto isto, surgiram várias teorias para explicar a
natureza jurídica dos direitos relacionados aos bens imateriais.
Se pegássemos a teoria da propriedade pura e simples
(tout court), teríamos que esta procurava identificar a natureza
jurídica dos direitos sobre os bens incorpóreos como de
natureza real, ou seja, o verdadeiro direito de propriedade.
O direito de propriedade, segundo a melhor doutrina, é
exclusivo e absoluto. Para o novo texto do Código Civil - art.
1.228, caput:
“O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor
da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que
injustamente a possua ou detenha”.
Conforme ensinamentos de Gama Cerqueira: 2
“Resumindo tudo quanto nesta parte ficou
exposto, poderemos dizer que o direito do autor
e de inventor é um direito privado patrimonial, de
caráter real, constituindo uma propriedade móvel,
em regra temporária e resolúvel, que tem por
2
Gama Cerqueira. Tratado da Propriedade Industrial. Vol. 1, parte I, Ed. Forense,
p. 148.
UNIESP
136
objeto uma coisa ou bem imaterial; denomina-se,
por isto, propriedade imaterial, para indicar a
natureza de seu objeto”.
PROPRIEDADE IMA
TERIAL
IMATERIAL
Há várias definições de bem. A que mais se aproxima da
matéria relativa à propriedade intelectual é a que afirma que
bem é tudo aquilo- corpóreo ou incorpóreo- que, contribuindo
direta ou indiretamente, venha propiciar ao homem o bom
desempenho de suas atividades, que tenha valor econômico e
que seja passível de apropriação pelo homem.
O inventor, quando cria algo novo, apresenta para a
sociedade o fruto de sua intelectualidade. A invenção, por isso,
é um bem intangível do qual pode resultar um bem material,
exemplo, um produto ou processo suscetível de ser utilizado
pela indústria.
A intelectualidade é a fonte indutora dos bens imateriais,
sendo estes os geradores dos bens materiais.
Outros exemplos:
Ao transferir para a tela a genialidade da minha arte,
transformei um bem intangível (minha capacidade artística),
de minha propriedade, em um bem tangível — a obra de arte.
O engenheiro, que tem conhecimento técnico, projeta e
dimensiona a construção de um edifício — bem material.
Vejamos a propriedade intelectual.
A PROPRIEDADE INTELECTUAL
Propriedade, lato sensu, é o poder irrestrito de uma
pessoa sobre um bem.
Propriedade dos bens imateriais é regida por regras
específicas que constituem o direito da propriedade intelectual.
Propriedade irrestrita e ilimitada não existe, porque há,
inclusive, limitações constitucionais. Exemplo: a função social
da propriedade.
137
TEMA
Porém, propriedade intelectual pode ser conceituada
como o direito de uma pessoa sobre um bem imaterial.
Aqui, também existem suas limitações.
O autor de uma obra literária ou artística usufrui da
proteção relativa ao bem, concedida pelos direitos autorais,
limitada a um certo período, que varia de acordo com o previsto
na lei ou convenção adotada por cada país.
O direito outorgado a um inventor, o qual garante o poder
deste sobre a invenção, fica condicionado a um prazo
determinado pela lei. Aí, cai em domínio público, o objeto da
invenção.
E esse direito é relativo, pois pode acontecer de um
inventor ter proteção ao seu invento em um país e não ter em
outro. Exemplo, a briga dos remédios entre EUA x Brasil.
As regras da propriedade intelectual não se aplicam às
coisas corpóreas.
A propriedade intelectual volta-se para o estudo das
concepções inerentes aos bens intangíveis que, de modo geral,
podem ser divididos nas categorias:
· Artísticas
· Técnicas
· Científicas
Criações artísticas: englobam obras literárias, escritas ou
orais;
Obras musicais, cantadas ou instrumentadas.
Obras estéticas bidimensionais (desenhos,
pinturas, gravuras, litografias, fotografias, etc.).
Tridimensionais (esculturas e obras de
arquitetura).
Criações técnicas: invenções. São as leis de patentes.
Concepções científicas: são descobertas nos campos da
física, química, biologia, astronomia, etc.
UNIESP
138
Descoberta não é protegida porque não é a
criação de algo novo. É um fenômeno natural
ignorado até então. O autor só teve o mérito de
antecipar sua revelação à humanidade. Ele é
um descobridor, não um criador.
O que faz a propriedade intelectual é ligar o
autor (criador) com o bem imaterial, bem como
estatuir suas regras da proteção.
PROPRIEDADE INDUSTRIAL
Episódio da propriedade intelectual que trata dos bens
imateriais aplicáveis nas indústrias.
São assuntos referentes às invenções:
· Modelos de utilidade
· Desenhos industriais
· Marcas de produto ou serviço, de certificação
ou coletivas.
· Repressão às falsas indicações geográficas e
demais indicações.
· Repressão à concorrência desleal
A propriedade industrial abrange os campos do Direito,
da Técnica e da Economia. Por causa do desenvolvimento
mundial das técnicas industriais e da globalização do mercado
internacional, a propriedade industrial vem passando por várias
alterações em sua estrutura.
Por exemplo em 1994, os EUA adotaram o GATT (General
Agreement for Tarifs and Trade), que promoveu mudanças
importantes em sua legislação de propriedade intelectual para
compatibilizar com o TRIPS e o Tratado de Livre Comércio da
América do Norte - Nafta.
139
TEMA
SISTEMA DE P
A TENTES
PA
É um conjunto de regras que tratam da produção das
invenções voltadas para a indústria.
A patente é o direito outorgado pelo governo de uma nação
a uma pessoa, o qual confere a exclusividade de exploração do
objeto de uma invenção, ou de um modelo de utilidade, durante
um determinado período em todo o território nacional.
O sistema de patentes é justificado por quatro aspectos:
direito, economia, técnica e desenvolvimento.
RAZÕES DE DIREITO
O inventor tem o direito natural da propriedade do bem
imaterial, caracterizado na invenção. Proporciona um meio de
defesa contra a apropriação indevida por terceiros. Dá a ele o
privilégio da exclusividade.
A patente é a defesa do inventor contra a exploração
indevida, o que causa ao inventor vários prejuízos, dentre eles a
perda da clientela, cujo resultado é baixar o preço de seu produto.
Sim, porque a simples cópia do resultado final da invenção
permite aos copiadores desonestos a venda do produto a preços
e qualidade bem inferiores aos do autêntico inventor.
A patente confere um monopólio temporário de
exploração ao seu titular. Dá a ele a possibilidade de intervir na
justiça, com objetivo de paralisar a contrafação e,
eventualmente, reaver possíveis prejuízos contra terceiros que,
sem consentimento, estejam explorando a invenção.
RAZÕES DE ECONOMIA
A invenção proporciona um benefício à sociedade, sendo
justo que o inventor lucre com o seu trabalho.
O privilégio da exclusividade é o modo mais apropriado
de retribuição ao inventor.
UNIESP
140
O grau de utilização de uma patente varia na razão direta
do interesse público.
Quanto maior a clientela da patente, mais lucros tem
seu titular.
Os lucros são estimulados pelo fato de a patente restringir
somente ao seu titular a devida exploração. Induz uma escassez
de uso, por isso o preço é alto.
Para evitar especulações e sobre lucros dos titulares,
algumas nações adotam em suas leis dispositivos como a
concessão da licença obrigatória - art. 68 da Lei n.º 9.279/96(“LPI”) -para a exploração do privilégio a terceiros, quando ficar
provado que o uso efetivo por parte do titular não atende à
demanda do mercado.
Se o abuso ou o desuso não forem sanados pela licença
obrigatória, há o que se chama pedido de caducidade - art. 78,
III da LPI.
Porém, sem retribuição, os inventores manterão suas
idéias em segredo e os empresários não se arriscarão a investir
em algo novo se não houver a expectativa do lucro conseqüente
à existência desse privilégio temporário que a patente possibilita.
No âmbito de um país ou países que façam parte de
blocos econômicos e tratados internacionais, o sistema de
patentes funciona como autêntica arma de economia, pois evita
que técnicas desenvolvidas por inventores nacionais sejam
apropriadas por estrangeiros.
RAZÕES DE TÉCNICA
As patentes contribuem para o aumento de
conhecimento nos mais diferentes campos da técnica.
Patent Office norte- americano revela que a patente é o
fator estimulante da atividade criativa das pessoas. Incentiva a
demanda de soluções técnicas para as carências e os anseios
da sociedade.
Amplia o campo de opções.
141
TEMA
Cresce o estado da técnica. Um arquivo contendo matéria
de patentes é, sem dúvida, uma autêntica universidade de
conhecimentos técnicos. Com a proteção da patente, o inventor
revela suas idéias. Elas podem servir de origem para outras
concepções e desenvolvimentos.
RAZÕES DE
DESENVOL
VIMENTO
LV
O sistema de patentes é fator de desenvolvimento. Daí
ser adotado em quase todas as nações do mundo, independente
do seu estágio de evolução. Onde não há esse sistema, a
indústria não é tão desenvolvida, porque desanima inventores
e empresários.
As patentes são publicadas, devendo constar a
descrição das características da invenção de modo que um
técnico do assunto possa realizá-la.
O progresso técnico é colocado ao alcance da
coletividade, proporcionando a qualquer pessoa o direito de
utilizar a invenção objeto da patente, uma vez expirado o prazo
de sua validade.
FUNDAMENTO DO
SISTEMA DE P
A TENTES
PA
A partir do século XIX, o desenvolvimento industrial
tomava proporção cada vez maior. Invenções surgiam no
campo da técnica. Os sistemas de propriedade industrial se
estendiam entre as nações. Mas os mecanismos de atuação
eram essencialmente nacionais e variavam de país a país. Esse
fato impunha aos inventores grandes dificuldades para a
obtenção de patentes no estrangeiro.
A noção de patenteabilidade variava de acordo com a
lei de cada nação e com suas formalidades.
UNIESP
142
Ao postular a patente, o inventor era obrigado a publicar
as características de sua invenção - o que fazia com que a
condição de novidade ficasse comprometida.
Era assim: a condição de novidade no estrangeiro era
absoluta porque as leis eram exemplarmente nacionalistas e
não cogitavam de assegurar direitos de prioridade para
inventores divulgados em outros países.
Algumas nações não analisavam o mérito da invenção,
concedendo as patentes e sendo elas julgadas a posteriori,
judicialmente.
Setores jurídicos e empresariais reclamam um sistema
internacional de patentes. Discutia-se, na Europa, a adoção da
uniformidade de tratamento para muitas classes de assunto.
A fim de estabelecer os fundamentos de uma legislação
internacional sobre as patentes, em 1880 forma-se a
Conferência de Paris.
Pelo projeto básico, foram elaboradas e aprovadas
disposições sobre patentes e outras formas de propriedade
industrial e a organização de um escritório internacional para a
proteção da propriedade industrial.
CUP
-CONVENÇÃO DA
CUP-CONVENÇÃO
UNIÃO DE P
ARIS
PARIS
A Convenção de Paris, para a Proteção da Propriedade
Industrial é um acordo acessível a qualquer nação, podendo
ser implementado mediante o termo de adesão de cada país à
Organização Mundial da Propriedade Intelectual- OMPI. A
Convenção estabelece as cláusulas para a proteção da
propriedade industrial sob seus vários aspectos.
Passaremos a abordar o tema das licenças compulsórias
das patentes,após uma síntese elaborada sobre a propriedade
intelectual e seu regime específico.
143
TEMA
LICENÇAS COMPULSÓRIAS
ORIGENS E TIPOS
ORIGENS
Para haver a exploração de uma invenção é necessária
a sua patente, que é um direito de propriedade, e essa
exploração deve ser feita dentro de um prazo, sob pena de ficar
sujeita à concessão de uma licença compulsória.
Desde legislações anteriores já havia a exigência de se
explorar uma invenção patenteada. O prazo era de dois anos e
se o interessado não explorasse sua invenção, perdia o direito.
Havia determinações no sentido de que a exploração da
invenção patenteada deveria ser feita industrialmente e mais,
deveria atender às necessidades do mercado consumidor.
Caso contrário, o titular perderia seus direitos ou então,
em caso de produção insuficiente, os direitos seriam limitados
a uma área do território.
Podemos dizer que esse dispositivo foi, na verdade, o
primeiro passo para privilegiar o interesse público em relação
aos direitos de inventores e daqui partiu a licença compulsória.
O Código da Propriedade Industrial de 1945 dispunha
que a efetiva exploração tinha que ser comprovada pela
prática regular da atividade daquela patente. Os Códigos
posteriores, de 1967, 1969 e 1971 já dispuseram que a efetiva
exploração deveria ser comprovada pela exploração contínua,
em escala industrial, da invenção patenteada, fosse pelo titular
ou por um licenciado.
Além disso, o Código de 1967 dispunha sobre a exigência
de que a exploração industrial daquela invenção fosse
apropriada para atender a demanda do país.
Posto isso, passaremos a abordar as modalidades de
licenças compulsórias, tendo em vista a atual legislação, a Lei
n. 9.279/96 (“LPI”). Tal legislação estruturou melhor o instituto
das licenças compulsórias.
Porém, primeiramente, cabe-nos abordar um capítulo
sobre o TRIPS- “Trade Related Aspects of Intellectual Property
UNIESP
144
Rights”, parte integrante do “Acordo Constitutivo da
Organização Mundial do Comércio-OMC”, Anexo 1C, que trata
da Propriedade Intelectual.
DO ACORDO TRIPS
INTRODUÇÃO
Devido a uma interação entre a proteção dos direitos da
propriedade intelectual e o direito internacional, ficaram os
primeiros vinculados ao segundo.
Desempenharam um papel fundamental para a evolução
dos direitos de propriedade intelectual, tanto no âmbito interno
como no âmbito internacional, a CUP - Convenção da União de
Paris, de 1883, bem como a União de Berna para a proteção
das obras literárias e artísticas (1886).
Depois da Segunda Grande Guerra, várias transformações
mundiais ocorreram e refletiram em todos os âmbitos, inclusive
do direito internacional que, por sua vez, refletiu no direito de
propriedade intelectual. A ONU proporcionou alterações no
sistema das Uniões - Paris e Berna. Suas estruturas se tornaram
arcaicas e precisavam se adaptar às novas demandas.
A carta das Nações Unidas teve importante papel em
relação à cooperação econômica e social entre os EstadosMembros.
Criaram dois órgãos:
a) Conferência das Nações Unidas para o
Comércio e Desenvolvimento - CNUCED/
Unctad (1964);
b) Organização das Nações Unidas para o
Desenvolvimento Industrial-ONUDI (1966);
Com o aparecimento desses órgãos tornou-se necessário
o aparecimento de algum outro, mais específico e apropriado
para a propriedade intelectual.
145
TEMA
A Convenção de Estocolmo, de 1967, criou a OMPI Organização Mundial da Propriedade Intelectual e que tem
sede em Genebra.
A função desse órgão é de unificar os conceitos,
tornando-os “propriedade intelectual” que, por sua vez, engloba
propriedade industrial e direitos de autor e conexos.
Com o passar do tempo, a OMPI – cuja organização é de
caráter eminentemente técnico – demonstrou uma certa
deficiência, reconhecendo-a, uma vez que não há, em sua
estrutura, um órgão para verificar o adimplemento, por parte
dos estados, dos compromissos que assumiram em relação aos
direitos de propriedade intelectual.
Sabemos que a propriedade intelectual e sua proteção
estão visceralmente ligados ao incremento do comércio mundial.
Devido a pressões de países industrializados,
especialmente dos Estados Unidos, o tema proteção à
propriedade intelectual foi levado às portas do GATT.
Tais negociações tiveram início em 1986 quando houve
o lançamento da Rodada Uruguai.
De acordo com Maristela Basso 3 :
“Durante os debates, emergiram três concepções sobre
propriedade intelectual:
a) A primeira, defendida pelos Estados Unidos,
entendia a proteção da propriedade intelectual
como instrumento para favorecer a inovação,
as invenções e a transferência de tecnologia,
independentemente
dos
níveis
de
desenvolvimento econômico dos países. Os
países desenvolvidos enfatizavam a vinculação
entre propriedade intelectual e comércio
internacional.
3
Basso, Maristela. O Regime Internacional de Proteção da Propriedade Intelectual
da OMC/Trips. In: OMC e o Comércio Internacional, coordenação de Alberto do
Amaral Jr., Aduaneiras, SP, 2002, p. 119.
UNIESP
146
Durante as discussões, os países comunicaram
ao GATT que a operação de suas companhias
era ameaçada pela contrafação e inadequada
proteção da propriedade intelectual.
b) A segunda posição, defendida pelos países em
desenvolvimento, destacava as profundas
assimetrias Norte-Sul, no que diz respeito à
capacidade de geração de tecnologia. Sem
desconhecer a importância da proteção da
propriedade intelectual, esses países
defendiam que o objetivo primordial das
negociações deveria assegurar a difusão de
tecnologia, mediante mecanismos formais e
informais de transferência.
Os países em desenvolvimento tinham a
preocupação de garantir o acesso seguro à
moderna tecnologia, maior proteção dos direitos
de propriedade intelectual. O dilema era como
aumentar a proteção a esses direitos e garantir
o acesso à moderna tecnologia. Para eles, suas
necessidades de desenvolvimento econômico e
social eram tão importantes (ou mais) que os
direitos de propriedade intelectual.
c) Por fim, tínhamos uma posição intermediária de
alguns países desenvolvidos, dentre os quais o
Japão e os membros da Comunidade Européia,
que destacavam a necessidade de assegurar
a proteção dos direitos de propriedade
intelectual, evitando abusos no seu exercício ou
outras práticas que constituíssem impedimento
ao comércio legítimo. Isso porque os direitos
exclusivos, outorgados pelos títulos de
propriedade intelectual poderiam se tornar,
muitas vezes, barreiras ao comércio,
especialmente por seu uso abusivo. Para esses
147
TEMA
países, as distorções no comércio podem surgir
não apenas da “inadequada” proteção, como
também de uma “excessiva” proteção.”
DO TRIPS
TRIPS - Trade Related Aspects of Intellectual Property
Rights é parte integrante do “Acordo Constitutivo da
Organização Mundial do Comércio” - OMC, como ANEXO 1C.
Entre nós, vigora pelo Decreto Presidencial n.º 1.355, de
30/12/94.
É também conhecido como “Ata Final da Rodada
Uruguai” 4
Os Estados-Membros da OMC são os destinatários do TRIPS.
O TRIPS tem por objetivo:
“(a) completar as deficiências do sistema de
projeção da Ompi e (b) vincular, definitivamente,
os direitos de propriedade intelectual ao comércio
internacional e ‘reduzir as distorções e obstáculos
ao comércio internacional’ levando em conta5 a
necessidade de promover uma proteção eficaz e
adequada dos direitos de propriedade intelectual
‘e’ a necessidade de assegurar que as medidas
e procedimentos destinados a fazê-los respeitar
não se tornem, por sua vez, obstáculos ao
comércio legítimo” 5.
O TRIPS tem disposições que constituem padrões
mínimos de proteção, que devem ser observados pelas
legislações internas dos Estados-Partes.
Onde houver controvérsias, estas serão submetidas à OMC.
4
5
Basso, Maristela. Op. cit., p. 126.
Preâmbulos do TRIPS, apud Basso, Maristela. Op. cit., p. 131.
UNIESP
148
Ainda, de acordo com Basso 6:
“O TRIPS e a OMPI não se excluem, mas somam forças
para melhorar o disciplinamento, o reconhecimento e a proteção
dos direitos de propriedade intelectual.”
A partir do TRIPS, o regime internacional fundamental
de proteção da propriedade intelectual tem esta configuração,
que depois comentaremos.
REGIME INTERNACIONAL DE
PROTEÇÃO DA PROPRIEDADE INTELECTUAL
Existem várias convenções:
Convenção de Paris para a proteção da Propriedade
Industrial de 1883, revista em Estocolmo, em 1967.
Convenção de Berna para a proteção das Obras
Literárias e Artísticas, de 1886, revista em 1971.
Convenção de Roma para a proteção dos Artistas Intérpretes, Produtores de Fonogramas e Organizações de
Radiodifusão, de 1961.
Convenção de Estocolmo que cria a Organização
Mundial de Propriedade Intelectual - OMPI, de 1967.
Convenção de Washington sobre Propriedade Intelectual
Relativa a Circuitos Integrados, de 1989.
Trips - Acordo Relativo aos Aspectos dos Direitos de
Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio.
No Brasil, o Trips tem dois tipos de efeitos: os externos e
os internos.
Os externos se relacionam às obrigações assumidas
perante a OMC e aos seus Estados-Membros.
Os internos se referem à entrada em vigor no nosso
direito, bem como sua executoriedade.
6
Basso, Maristela. Op. cit., p. 150.
149
TEMA
E para terminar esta parte, ainda no dizer de Basso 7:
“O Trips é uma norma especial, ou seja, um
acordo sobre aspectos de propriedade intelectual
no campo do comércio internacional. Daí decorre
a sua natureza especial, inclusive no que diz
respeito aos direitos de propriedade intelectual”.
Com relação ao tema em questão - licenças compulsórias - especialmente as relacionadas ao interesse público e
emergência nacional, temos que a licença obrigatória de
patentes é internacionalmente reconhecida como uma
exceção, porém válida aos direitos que a patente confere,
portanto, constante dos principais acordos internacionais, tais
como a CUP - art. 5.A.2 e o TRIPS, art. 8.
TIPOS
A atual legislação – a Lei nº 9.279/96 – Lei da Propriedade
Industrial – “LPI” – contém disposições sobre as licenças
compulsórias.
Denis Borges Barbosa nos explica:
“Modalidades de Licença Compulsória
A legislação em vigor prevê uma série de licenças
coativas:
- a licença por abuso de direitos;
- a licença por abuso de poder econômico;
- a licença de dependência;
- a licença por interesse público;
- a licença legal que o empregado, co-titular
de patente, confere ex legis a seu
empregador, conforme o artigo 91,§ 2º, do
CPI/96.
7
Basso, Maristela. Op. cit., p. 160.
UNIESP
150
Outra distinção absolutamente relevante é entre
as licenças de interesse privado e as de interesse
público; aquelas têm por pressuposto um
interesse individual, subjetivado, cuja pretensão
se exerce mediante requerimento ao ente público
que examinará a legitimidade do requerente em
face do pedido, e a satisfação das condições
procedimentais e substantivas. As licenças de
interesse público seguem processualistica própria
e atendem a pressupostos constitucionais
inteiramente diversos.
Claro está que – de maior carga pública ou
privada – o interesse em questão tem
fundamentos no pressuposto constitucional do
uso social do privilégio.”
Dessa forma, parece-nos que a licença compulsória é
voltada às situações extremas.
Para Siemsen:8
“No âmbito internacional, a noção da falta de
exploração de uma invenção patenteada foi
inicialmente introduzida na Convenção de Paris,
por ocasião da revisão do texto da Convenção,
em Bruxelas, em 1900. A penalidade prevista foi
a caducidade da patente, caso a falta de
exploração não tivesse motivos justificados. Em
Haia, em 1925, por ocasião de nova revisão do
texto da Convenção de Paris, duas noções
adicionais foram introduzidas: a primeira era a
de que a falta de exploração deveria estar
caracterizada como uma das formas de abuso
dos direitos decorrentes da patente para que a
mesma ficasse sujeita a sanções. Como outra
forma de abuso, se poderia mencionar preço
excessivo, que poderia ocorrer mesmo que o
invento patenteado estivesse sendo explorado.
8
Siemsen, Peter Dirk, in “Painel 3”, Anais do XXI Seminário Nacional da
Propriedade Intelectual, 2001, p. 56.
151
TEMA
A segunda noção introduzida em Haia foi a de
estabelecer que a caducidade, pena máxima,
somente seria aplicável caso a concessão de um
licença compulsória fosse insuficiente para
prevenir o abuso. De qualquer maneira, nenhuma
dessas sanções seria aplicável antes de
decorridos os três anos da data da concessão
da patente. No Brasil, as disposições para
concessão de licenças compulsórias
apareceram, pela primeira vez, no Código da
Propriedade Industrial de 1945, quando as
licenças eram concedidas, exclusivamente,
devido à falta de exploração”.
A licença compulsória tem sido uma constante nas
legislações, porém aparece melhor regulamentada na atual
legislação, a LPI.
A título de ilustração, traremos o que nos ensina Gustavo
Morais9:
“Listarei a seguir algumas dentre as principais
regras para licença obrigatória constantes da
nossa nova legislação:
Art. 68 (caput): Prevê a sanção para o detentor
de patente que “exercer os direitos dela
decorrentes de forma abusiva, ou por meio dela
praticar abuso de poder econômico, comprovado
nos termos da lei, por decisão administrativa ou
judicial”, conforme autorizado no artigo 31 (k) de
TRIPS. Não está, todavia, claro que o alcance e
duração dessa licença “será restrito ao objetivo
para o qual foi autorizado”, conforme estabelece
a alínea c do mesmo artigo de TRIPS, nem que o
detentor dos direitos deve ser “adequadamente
remunerado”(alínea h).
9
Morais, Gustavo, in “Manutenção do Direito de Patente e Licença Obrigatória”,
Anais do XVI Seminário Nacional de Propriedade Intelectual, 1996, p. 74.
UNIESP
152
Essa disposição espelha o artigo 24-I(a) da Lei
nº 8.884/94, que prevê a recomendação aos
órgãos competentes, pelo Cade, para que seja
concedida licença compulsória de patentes de
titularidade do infrator da ordem econômica,
sendo que os respectivos artigos 20 e 21
enumeram uma série de condutas reprimidas.
O exercício prático deste dispositivo depende
fundamentalmente das regras e da jurisprudência
a ser estabelecida pelo Cade para julgar os abusos
que podem ser cometidos através de direitos de
propriedade intelectual, sendo os mais óbvios a
formação de cartel, boicotes e vendas casadas.
Em particular, será interessante acompanhar as
diretrizes seguidas por este órgão para determinar
a existência efetiva de posição dominante, já que,
se o titular da patente não a ocupar, muito mais
difícil falar-se em “abuso”. Naturalmente, a
definição de “posição dominante” só é
significante no contexto de “mercado relevante”,
que deve ser determinado levando-se em
consideração a possibilidade de substituição de
um determinado produto por outros,10 os quais
podem não ser patenteados.
É sempre bom salientar, mesmo correndo o risco
do óbvio, que é primordial determinar a
abrangência de cada patente alegadamente
envolvida em abuso através do criterioso estudo
das suas reivindicações. Infelizmente, é
relativamente comum determinar-se escopo de
patente com base em mera leitura do relatório
descritivo e observação de suas figuras.
É também importante ter em mente que a
propriedade de uma ou mais patentes não deveria
caracterizar, necessariamente, a posição
dominante, em especial em vista de sucedâneos.
Esta conclusão parece ser hoje pacífica nos EUA
e Europa, após décadas de debate.
10
Melville, Forms and Agreements on Intellectual Property and International
Licensing, Sweet & Maxwell, Londres, 1996.
153
TEMA
Finalmente, os EUA parecem ter sido os primeiros
a prever licença obrigatória como forma de coibir
violações das regras de concorrência. Não
obstante, este recurso não vem sendo usado
desde 1981, vez que parece haver uma
percepção de que o licenciamento compulsório
não é particularmente eficiente na restauração
da competição.11
Art. 68, §1º e incisos: Licença compulsória
concedida se o produto/processo objeto da patente
não for fabricado/usado no Brasil, sendo admitida
importação em caso de inviabilidade econômica.
Comercialização que não satisfaz necessidades do
mercado também enseja sanção.
A inatividade do titular pode ser justificada, de
acordo com o artigo 69 e incisos, por “razões
legítimas”, “sérios e efetivos preparativos para a
exploração” ou “obstáculo de ordem legal”, o que
vai além do previsto no artigo 5(A)4 da CUP, que
só prevê “razões legítimas” como justificativa.
Notem-se as várias expressões (“razões
legítimas”, “sérios e efetivos preparativos para a
exploração”, “obstáculo de ordem legal”,
“inviabilidade econômica” e “satisfação das
necessidades do mercado”) cujo real significado
deverá ser cifrado em futuras decisões. No caso
da última, mais fácil, em tese, “satisfazer o
mercado” se existirem no mercado sucedâneos
para o produto/processo patenteado.
Finalmente, o fato de só ser admitida importação
nos “casos de inviabilidade econômica” (art. 68,
inciso I) está em desacordo com o artigo 27.1 de
TRIPS, que determina que “as patentes serão
disponíveis e os direitos patentários serão
usufruíveis sem discriminação... quanto ao fato
de os bens serem importados ou produzidos
localmente”.
11
Latham e Geissmar, “Should Competition Law be Used to Compel the Grant by
Owners of Intellectual Property Rights of Licences in respect of their Creations?”,
Revue Internationale de la Concurrence – International Reports, Salzburg, 1995.
UNIESP
154
Art. 68, § 2º: Só pessoa com legítimo interesse,
com capacidade técnica e econômica para
exploração da patente no sentido de suprir,
predominantemente, mercado interno, poderá
requerer a licença.
Art. 68, § 4º: Traz permissão ampla, sem qualquer
limite temporal, para importação paralela por
terceiros se o titular importa objeto da patente
nos termos do § 1º, inciso I.
Art. 70: Grande – e a meu ver perigosa – novidade
em nosso sistema de patente, que autoriza a
concessão de licença obrigatórias quando (i) ficar
caracterizada dependência entre patentes, (ii) o
objeto da patente dependente constituir substancial
progresso técnico em relação ao da anterior, e (iii)
forem infrutíferas as tentativas de acordo.
Ora, o conceito de “substancial progresso
técnico” é fugidio e altamente sujeito a debate, e
não é por outra razão que tal critério, usado
outrora para determinar patenteabilidade em
diversos países (Alemanha, em particular), foi há
muito – e em boa hora – substituído pela “nãoobviedade”, hoje internacionalmente consagrada
e inserida em nosso ordenamento através do
artigo 8º da nova Lei.
A situação agrava-se diante do § 2º do artigo 70,
que estabelece a possibilidade de uma patente
de processo ser considerada dependente de uma
patente de produto (e vice-versa). Assim, a
patente de um fármaco revolucionário pode ter
de ser licenciada para o detentor de mera patente
de processo cujo “substancial processo técnico”
tenha sido defendido com boa retórica.
Deve-se reconhecer que TRIPS autoriza a
concessão de licenças obrigatórias no caso de
patentes dependentes. Entretanto, nossa nova
lei diverge de TRIPS ao não estabelecer que o
critério adicional de “considerável significado
econômico” (art. 31-I-i) do objeto da patente
dependente. Tal parâmetro também não é
155
TEMA
particularmente concreto, mas sem dúvida reduz
o escopo para concessão de licenças.
Como comentário final, observo que a antiga lei
holandesa previa um sistema peculiar de
licenciamento compulsório em caso de
dependência de patente, no qual inexistia sequer
o critério do avanço técnico, pelo que um grande
número de licenças era concedido a despeito das
fortes críticas. Tudo isso caiu por terra com a
adequação das regras daquele país ao TRIPS.12
Art. 71: Ao enunciar “emergência nacional ou
interesse público” como fundamentos adicionais
para a concessão de licenças obrigatórias, nosso
legislador, de um lado, seguiu a alínea (b) do artigo
31 de TRIPS, que autoria tal medida em caso de
“emergência nacional ou outras circunstâncias
de extrema urgência”, até mesmo sem prévia
tentativa de licenciamento, e, de outro lado,
introduziu critério que se caracteriza pela
indefinição e que não é previsto em TRIPS: o
interesse público.
Art. 72 a 74: Espelham, inter alia, algumas das
restrições que devem – conforme TRIPS –
caracterizar direito advindo de licença
compulsória, a saber: não-exclusividade,
inadmissibilidade de sublicenciamento ou cessão,
esta última exceto em conjunto com a parte do
empreendimento que a explore.
Não obstante, nossas novas regras deixaram de
incluir vários preceitos expressos nas alíneas do
artigo 31 de TRIPS, entre os quais destacam-se:
(alínea a) concessão de licenças com base no
“mérito individual” de cada patente, (b) o
requerente da licença deverá ter antes tentado
“obter autorização do titular, em termos e
condições comerciais razoáveis, e que esses
12
Hansen e Klusmann, “Compulsory Licenses in Western Europe”, Patentes &
Licensing, vol. 26, nº 1.
UNIESP
156
esforços não tenham sido bem sucedidos num
prazo razoável” (TRIPS dispensa essa etapa nos
casos de emergência e abuso), (c (g) restrição
do alcance e duração da licença em função do
objetivo visado (o art. 71 da nova Lei determina
o caráter temporário apenas das licenças
resultantes de emergência ou interesse público),
e (h) remuneração “adequada”, apesar de o §6º
do artigo 73 determinar que se leve em conta “o
valor econômico da licença” no arbitramento da
remuneração.
Interessante notar que a alínea (c) do artigo 31
de TRIPS parece ter alçado a tecnologia de
semicondutores à categoria distinta, já que a
concessão de licença compulsória de patente
nesta área só seria aceitável no caso de “uso
público não-comercial” ou para remediar
procedimento “anticompetitivo ou desleal”.
Finalmente, deve-se observar que o artigo 31 de
TRIPS estabelece que essas diversas
“disposições serão respeitadas”, o que implicaria
muito mais um controle dos atos das autoridades
dos membros da OMC do que da linguagem
utilizada nas respectivas legislações.”
Ao elencarmos as licenças compulsórias na legislação
atual, vimos que são elas, basicamente, as que versam sobre
abuso de poder econômico, abuso de direito, licença por
dependência e interesse público somado à emergência nacional.
Concluímos que as licenças compulsórias já vinham
tendo tratamento legal no Acordo TRIPS e foram mantidas pela
nossa legislação.
Sobre a licença compulsória do art. 71 da LPI vigente, o
que comentaremos com mais vagar a seguir, o nosso então
Ministro da Saúde, José Serra, baseou-se nessas razões
legítimas, ou seja, emergência nacional e interesse público
quando quis proteger os doentes de AIDS.
157
TEMA
LICENÇAS COMPULSÓRIAS E VOLUNTÁRIAS
Conforme dissemos anteriormente, a patente concedida
é um direito de propriedade, mesmo que sui generis, mas é.
Assim sendo, é passível de cessão e transferência, por
ato inter vivos ou causa mortis.
Tais anotações são feitas nos registros do INPI, que
produzirão os efeitos em relação a terceiros, desde sua
publicação. 13
As licenças, então, podem ser voluntárias ou
compulsórias.
As licenças voluntárias estão regulamentadas nos artigos
61 a 67 da LPI.
O titular da patente poderá licenciar um terceiro a sua
exploração através de um contrato, que deverá ser averbado
no INPI.
Tal contrato, ao ser averbado, passará a produzir efeitos
perante terceiros.
Ele também é um instrumento que define direitos e
obrigações das partes intervenientes.
A nossa legislação também prevê que o titular da patente
poderá colocá-la em oferta para a exploração, através do INPI.
Muito bem. Esses são os casos de licença voluntária.
Mas existem os casos de licença compulsória, as quais
já mencionamos.
De acordo com Eduardo Grebler: 14
“A longa e minuciosa regulamentação que se
encontra na LPI sobre a licença compulsória
parece destinar-se a situações excepcionais. Com
efeito, normas de caráter semelhante existiam no
antigo Código, que chegava a contemplar a
13
Conforme Lei n.º 9.279/96 (“LPI”), artigos 58, 59 e 60
Grebler, Eduardo. A nova lei brasileira sobre a propriedade industrial, artigo
publicado na Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro,
n.º 111, Malheiros Editores, p. 107.
14
UNIESP
158
possibilidade de desapropriação do privilégio,
quando considerado de interesse da segurança
nacional ou quando o interesse nacional o
exigisse” (CPI, arts. 33 a 39). Continuando:
“Contudo, em 25 anos de vigência do Código,
apenas três casos de licença obrigatória foram
registrados no INPI — todos referentes à mesma
patente —, a demonstrar a pouca aplicabilidade
deste mecanismo, cujo maior efeito é de caráter
dissuasório”. O autor aqui se refere à patente da
vacina contra febre aftosa, requerida pelo
Laboratório Valée.
Para o Prof. Jacques Labrunie: 15
“A questão do privilégio temporário de exploração
exclusiva da invenção, conferido ao inventor, pelo
Estado, sempre foi objeto de discussões sobre
possíveis abusos do poder econômico.
Sobretudo nos países menos desenvolvidos, a
questão assume grandes contornos, uma vez que
a grande maioria das patentes depositadas e
concedidas pertence a não-nacionais.
Durante muito tempo, se defendeu que, para
países como o Brasil, pertencer ao Sistema
Internacional de Patentes, isto é, conceder
patentes aos estrangeiros, só traria benefícios se
tais invenções fossem exploradas localmente.
Conseqüentemente, gerando empregos,
impostos, transferência de tecnologia, utilização
de matéria-prima local, poupança de divisas etc.
Para se forçar o titular da patente a explorar a
invenção localmente, foram criadas as sanções
pelo não-uso, a saber, os institutos da caducidade
por falta de exploração e da licença obrigatória”.
A caducidade está prevista nos arts. 78, III, 80 e 83 da
LPI e seu principal efeito é tornar a invenção de domínio público,
ou seja, pode ser explorada por qualquer interessado.
15
Labrunie, Jacques. Licença Obrigatória e Caducidade de Patentes: As
modificações geradas pelo texto de Estocolmo da Convenção de Paris. In: revista
da ABPI, n.º 7, p. 17.
159
TEMA
A diferença com a licença obrigatória é que neste caso,
há a substituição do titular da patente, pela autoridade
designada, com a finalidade de conceder a um terceiro a
autorização de exploração da invenção.
Vamos falar sobre os casos previstos na LPI sobre licença
compulsória:
Art. 68, § 1.º, I - estabelece que a licença obrigatória por
falta de fabricação local ou falsificação local incompleta ou
ainda falta de uso integral do processo patenteado, pode ser
evitada no caso de inviabilidade econômica, quando será
admitida importação.
O § 2.º desse mesmo artigo determina que a licença
obrigatória somente poderá ser requerida por pessoa com
legítimo interesse e que possua capacidade técnica e
econômica para realizar a exploração eficiente do objeto da
patente.
O licenciado obrigatório sofre uma limitação territorial,
uma vez que a exploração deve se destinar predominantemente
ao mercado interno. O licenciado pode exportar, mas deve
satisfazer o mercado interno.
O § 3.º do mencionado art. 68 estipula regras para a
licença obrigatória obtida com base no abuso de poder
econômico por parte do titular.
Aqui, novamente a exceção permissiva da importação
por tempo determinado (um ano da concessão da licença
obrigatória) do objeto da patente, pelo licenciado obrigatório.
O § 4.º fala da licença compulsória concedida por falta
de exploração local bem como sobre a licença concedida por
abuso de poder econômico, o que permite, em ambos os casos,
ao licenciado e mesmo a terceiros importarem o objeto da
patente, desde que sejam produtos legítimos — o que isso quer
dizer — quer dizer produtos colocados no mercado pelo titular
ou com seu consentimento (as tais “importações paralelas”).
Sobre as licenças por abuso de poder econômico, isto
funciona em duas esferas administrativas, o INPI e o CADE.
Como toda e qualquer decisão administrativa, cabe recurso ao
Poder Judiciário.
UNIESP
160
No nosso entendimento, somente após trânsito em
julgado da decisão judicial tornando definitiva a decisão do
CADE é que seria possível ao INPI autorizar e conceder a licença
ao requerente.
E, finalmente, a licença compulsória por emergência
nacional ou interesse público (art. 71 da LPI), objeto do presente
trabalho, que passaremos a explicar.
DA EMERGÊNCIA NACIONAL E DO
INTERESSE PÚBLICO
CONCEITO INDETERMINADO
Primeiramente, devemos explicar o que é um conceito
indeterminado ou aberto, uma vez que “emergência nacional”
e “interesse público” são assim denominados.
De acordo com Engish: 16
“Por conceito indeterminado entendemos um
conceito cujo conteúdo e extensão são em larga
medida incertos. Os conceitos absolutamente
determinados são muito raros no Direito. Em todo
o caso devemos considerar como tais os conceitos
numéricos (especialmente em combinação com
os conceitos de medida e os valores monetários:
50 km, prazo de 24 horas, 100 marcos). Os
conceitos jurídicos são predominantemente
indeterminados, pelo menos em parte.
É o que pode afirmar-se, por exemplo, a respeito
daqueles conceitos naturalísticos que são
recebidos pelo Direito, como os de “escuridão”,
“sossego noturno”, “ruído”, “perigo”, “coisa”.
E com mais razão se pode dizer o mesmo dos
conceitos propriamente jurídicos, como os de
16
Engish, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. Fundação Calouste Gulbenkian,
Lisboa, 6ª ed., p. 208 e seguintes.
161
TEMA
“assassinato”, (“homicídio qualificado”), “crime”,
“ato administrativo”, “negócio jurídico”, etc.
O autor, mais adiante, menciona o “poder discricionário”,
que aborda a “administração”.
E explica que o nosso poder discricionário apenas
aparece como “discricionaridade da estatuição” ou também
como “discricionaridade na hipótese legal”.
A título de ilustração, transcreveremos um trecho muito
interessante: 17
“Conceitos discricionários como, ‘interesse
público’ ou a ‘equidade’ podem de igual forma
ser olhados como pressupostos da estatuição
(logo como elemento da hipótese) ou como
elementos determinantes da própria estatuição.
Freqüentemente é apenas de uma questão de
técnica legislativa que depende acharem-se os
conceitos discricionários integrados na “hipótese”
ou na “estatuição”, que se formule: ‘quando se
esteja perante um interesse público, então...”, ou
‘o interesse público pode ser satisfeito,
procedendo...”.
Assim, podemos concluir que existe discricionaridade em
nossa ordem jurídica, ainda que se fale em um Estado de Direito.
O que vai se passar, nesse caso, é um sentido de
valoração, uma vez que — como conceitos indeterminados —
algo ou alguém, no caso a administração pública, determinará
o que é emergência nacional, bem como interesse público. E
fica a critério da hermenêutica jurídica onde e com que alcance
tal discricionaridade existe.
Partindo do pressuposto que interpretar (processo
hermenêutico) quer dizer encontrar a significação de algo,
caímos em três questões fundamentais, a saber:
17
Engish, Karl. Op. cit., p. 227.
UNIESP
162
a) o que é que se interpreta;
b) interpretando-se algo, o que vale e o que não vale;
c) qual é o valor alcançado ao se descobrir ou ao se
criar uma significação.
E como se dá essa interpretação, digamos, como
resolver o dilema?
Temos vários tipos, tais como interpretação gramatical,
interpretação sistemática (dentro do sistema normativo),
interpretação valorativa ou axiológica e, finalmente,
interpretação histórica...
Difícil de responder. O fato é que o que se busca é uma
verdade hermenêutica. O que prevalece? A vontade da lei ou a
vontade do legislador?
A interpretação gramatical ou léxica consiste na definição
do significado dos termos usados pelo legislador, comparandose os contextos lingüísticos nos quais os termos são aplicados.
A interpretação teleológica é aquela que busca a ratio legis,,
ou seja, a finalidade ou motivos que levaram à criação da lei. A
interpretação sistemática pressupõe o dogma da racionalidade
do legislador, portanto, de que existe uma vontade unitária e
coerente na elaboração da lei, inserindo-se esta no contexto
geral do sistema jurídico. Neste caso o intérprete elimina as
antinomias e integra as eventuais lacunas. A interpretação
histórica utiliza documentos históricos,tais como estudos e
trabalhos preparatórios para a elaboração das leis.18
Entretanto, a discricionaridade não implica que a
administração pública seja ilimitada em suas determinações.
Sempre existe a possibilidade de revisão pelo Poder Judiciário,
que também fará seu processo hermenêutico, porém colocando
um ponto final à discussão.
Vamos apenas interpretar o que diz o art. 71 da LPI, bem
como o Decreto n.º 4.830/03, que dá nova redação ao Decreto
18
Norberto Bobbio. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo,
Ícone, 1995, p. 214.
163
TEMA
n.º 3.201/99, que dispõe sobre a concessão, de ofício, de
licença compulsória nos casos de emergência nacional e
interesse público.
ASPECTOS CONSTITUCIONAIS DO DECRETO 3.201/99,
AL
TERADO PEL
O DECRETO 4.830/03.
ALTERADO
PELO
PEQUENA INTRODUÇÃO
Como é sabido, o art. 71 da LPI trata das licenças
compulsórias por emergência nacional e interesse público,
tendo sido regulamentado pelo Decreto n.º 3.201/99, o qual foi
alterado pelo decreto n.º 4.830/03, posteriormente.
A patente, assim, é um direito limitado por sua função:
existe enquanto socialmente útil.
O uso da exclusiva, de forma abusiva, é contradireito.
A nossa Constituição traz dois aspectos que limitam o
uso da patente:
a) o privilégio – aliás, uma restrição excepcional à
liberdade de concorrência – não pode ser
abusado;
b) mesmo que sua utilização esteja de acordo com a
sua função social, ainda assim estará sujeito às
limitações impostas pelo interesse coletivo .
Analisaremos este último aspecto.
DA CONSTITUCIONALIDADE DO DECRETO 3.201/99,
AL
TERADO PEL
O DECRETO 4.830/03.
ALTERADO
PELO
Toda propriedade, incluindo-se aqui a propriedade
intelectual, ainda que sui generis, conforme já mencionado, goza
de duas garantias:
UNIESP
164
a) a de conservação, isto é, o dono somente perde
se o interesse coletivo o exigir (necessidade
pública, utilidade pública e interesse social).
b) a de compensação, ou seja, a justa indenização
do expropriado.
Manoel Gonçalves Ferreira Filho 19 menciona a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789:
Art. 17: “sendo a propriedade um direito inviolável e
sagrado, ninguém pode dela ser privado a não ser quando a
necessidade pública legalmente verificada o exige de modo
evidente e sob condição de uma justa e prévia indenização”.
Prevista na nossa Constituição, no art. 5.º, XXIV, a figura
em lei e mediante justa e prévia indenização em dinheiro.
Como direito de propriedade que é, o direito do inventor
se sujeita a essas mesmas regras.
Por força da função social constitucional, aí se encontra
o fundamento da desapropriação por interesse público.
De acordo com Barbosa20, há dois tipos de licença
compulsória:
“Outra distinção absolutamente relevante é entre
as licenças de interesse privado e as de interesse
público; aquelas têm por pressuposto um
interesse individual, subjetivado, cuja pretensão
se exerce mediante requerimento ao ente público
que examinará a legitimidade do requerente em
face do pedido, e a satisfação das condições
procedimentais e substantivas. As licenças de
interesse público seguem processualística própria
e atendem a pressupostos constitucionais
inteiramente diversos”.
19
Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. A propriedade intelectual e o Desenvolvimento
Tecnológico sob o prisma da Constituição Brasileira. Anais, 2002, ABPI, p. 25 e
seguintes.
20
Barbosa, Denis Borges. A nova regulamentação da licença compulsória por
interesse público. ABPI, n.º 67, p. 11.
165
TEMA
A licença de interesse público se distingue das demais,
uma vez que o interesse a prevalecer não é o do licenciado,
mas o próprio nome diz, o interesse público.
O Acordo Trips,já explicado anteriormente, prevê a
licença por interesse público, em seu art. 31, especialmente
por aplicação do art. 8.º.
Em novembro de 2001, o Conselho Ministerial da OMC
reuniu-se na cidade de Doha e os países emitiram uma
declaração denominada Trips e a Saúde Pública.
Barbosa21 nos explica:
“Seguindo a explicação oficial da OMC, nesta
declaração os ministros enfatizam que é
importante executar e interpretar o Acordo Trips
de maneira que dê apoio aos objetivos da saúde
pública, promovendo acesso aos medicamentos
novos. O enunciado afirma que o Acordo Trips
não deve impedir que os governos nacionais ajam
para proteger a saúde pública, pois que têm eles
o direito de usar as flexibilidades do acordo”.
Após tais declarações, fica esclarecido que os
instrumentos da licença compulsória são absolutamente lícitos
no contexto do Acordo Trips.
Da mesma forma as importações paralelas: todo paísmembro poderá exportar produtos farmacêuticos sob licença
compulsória. Todos os países-membros da OMC são elegíveis
como importadores, mas desde que declarem que não podem
fabricar o bem licenciado compulsoriamente.
Esse mecanismo somente poderá ser utilizado em boafé, ou seja, para a saúde pública.
O mecanismo da licença por interesse público já é
admitido em outros países, como para o direito francês.
O direto italiano também acolhe o instituto.
21
Barbosa, Denis Borges. Op. cit., p. 13.
UNIESP
166
O nosso direito passou a admitir o instituto a partir de
1996, com a edição da já mencionada LPI, em seu artigo 71.
NA
TUREZA JURÍDICA DA LICENÇA
NATUREZA
COMPULSÓRIA DO ART
ART.. 71 DA LPI.
É necessária uma justificação da limitação da
propriedade pelo interesse do Estado.
Se, por um lado, existe a proteção constitucional da
propriedade , por outro existe a prevalência de uma
necessidade ou utilidade pública sobre o interesse privado.
Não é o mesmo mecanismo da licença por abuso de
poder econômico, ou daquelas por falta de uso. Aqui, trata-se
de necessidade ou utilidade pública sobre o interesse privado.
A regra constitucional, mais uma vez, é a do uso social
da propriedade, previsto no art. 5.º, XXIX da Carta de 1988, que
dispõe que a patente deve ser usada “tendo em vista o interesse
social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país”.
Podemos interpretar o artigo mencionado tanto para as
correções de abuso, quanto para as situações de interesse
social sobre o particular.
Ainda Barbosa 22:
“O exercício do domínio iminente do estado se
faz em direito através da desapropriação ou da
requisição. No caso brasileiro, entendemos que
a licença compulsória pertinente é o caso
específico de requisição”.
CF/88, Art. 5.º, XXV:
“No caso de iminente perigo público, a autoridade
competente poderá usar de propriedade particular, assegurada
ao proprietário indenização ulterior, se houver dano”.
22
Barbosa, Denis Borges. Op. cit., p. 17.
167
TEMA
Pontes de Miranda,23 em antigo estudo sobre o assunto
em questão, destaca que a requisição é um instituto parecido
com a desapropriação. Diz-se estado policial de necessidade.
A propriedade do bem não é retirada do dono, portanto não há
desapropriação.
É o que passaremos a discutir a seguir: os aspectos
inconstitucionais do Decreto 3.201/99, com alterações do
Decreto 4.830/03.
ASPECTOS INCONSTITUCIONAIS DO DECRETO 3.201/
99, COM AL
TERAÇÕES DO DECRETO 4.830/03.
ALTERAÇÕES
Vamos tomar alguns detalhes conceituais primeiramente,
para podermos alcançar o nosso objetivo.
Emergência nacional implica um agravado estado de
interesse público ou coletivo, cujo atendimento das demandas
é urgente.
Iminente perigo público é próprio das requisições e não
se identifica com o critério de emergência nacional ou interesse
público, conforme nos ensina Barbosa24.
A emergência é nacional, não local;
O interesse pode ser difuso, coletivo ou público. Se for
interesse público, pode ser em qualquer âmbito, não
necessariamente federal.
O interesse público pode justificar uma desapropriação
de patente. O ponto a ser enfocado, assim, é no tocante à prévia
indenização decorrente das desapropriações, mas dispensável
nas requisições. Parece, entretanto, que se houver pagamento
de “royalties” na mesma proporção do uso da patente, fica
caracterizada uma forma de indenização.
O domínio iminente justifica-se pelas noções de utilidade
pública, onde encontramos o interesse público.
23
24
Miranda, Pontes de apud Denis Barbosa. Op. cit., p. 17.
Barbosa, Denis Borges. Op. cit., p. 18.
UNIESP
168
Assim dispõe o Decreto-Lei n.º 3.365/41, em seu art. 5.º:
“Art. 5.º Consideram-se casos de utilidade pública:
a) a segurança nacional;
b) a defesa do Estado;
c) o socorro público em caso de calamidade;
d) a salubridade pública;
e) a criação e melhoramento de centros de
população, seu abastecimento regular de meios
de subsistência;
f) o aproveitamento industrial das minas e das jazidas
minerais, das águas e da energia hidráulica;
g) a assistência pública, as obras de higiene e
decoração, casas de saúde, clínicas, estações de
clima e fontes medicinais;
h) a exploração ou a conservação dos serviços
públicos;
i) a abertura, conservação e melhoramento de vias
ou logradouros públicos; a execução de planos de
urbanização; o loteamento de terrenos edificados
ou não para sua melhor utilização econômica,
higiênica ou estética; a construção ou ampliação
de distritos industriais;
j) o funcionamento dos meios de transporte coletivo;
k) a preservação e conservação dos monumentos
históricos e artísticos, isolados ou integrados em
169
TEMA
conjuntos urbanos e rurais, bem como as medidas
necessárias a manter-lhes e realçar-lhes os
aspectos mais valiosos ou característicos e, ainda,
a proteção de paisagens e locais particularmente
dotados pela natureza;
l) a preservação e a conservação adequada de
arquivos, documentos e outros bens móveis de
valor histórico ou artístico;
m) a construção de edifícios públicos, monumentos
comemorativos e cemitérios;
n) a criação de estádios, aeródromos ou campos de
pouso para aeronaves;
o) a reedição ou divulgação de obra ou invento de
natureza científica, artística ou literária;
p) os demais casos previstos por leis especiais.”
A necessidade pública ou utilidade pública deverá ser
declarada em ato do Poder Executivo Federal.
Como é um conceito jurídico indeterminado, conforme
já abordado, é mediante um decreto do Presidente da
República, Governador ou Prefeito, que se chega à declaração.
O art. 71 da LPI menciona a necessidade de uma
publicação de interesse público ou emergência nacional em
ato do Poder Executivo.
O questionamento sobre a competência especificada, na
lei, de alguma autoridade leva a uma eventual dúvida sobre a
constitucionalidade da concessão de uma licença.
Embora a Lei 9.279/96 determine a competência
exclusiva da União para o procedimento declaratório, outras
esferas do executivo também podem ser titulares de algum
interesse público que demande um atendimento.
UNIESP
170
A Administração Pública, todavia, não se manifestará
nesse sentido – licença compulsória – se o titular da patente,
bem como o licenciado, estiverem em condições de atender à
demanda ensejada pela emergência ou interesse público.
Para a defesa do interessado, a própria Constituição criou
o mecanismo: “due process of law”, art. 5.º, LIV.
Emergência nacional, entretanto, prejudica uma defesa
prévia do titular.
Podemos estar, novamente, diante de uma inconstitucionalidade?
Bem, fora esse detalhe, a Lei do Processo Administrativo
Federal (Lei n.º 9.784/99) deverá ser aplicada:
“Art. 2.º A Administração Pública obedecerá, entre
outros, aos princípios da legalidade, finalidade,
motivação, razoabilidade, proporcionalidade,
moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança
jurídica, interesse público e eficiência.
Parágrafo único. Nos processos administrativos
serão observados, entre outros, os critérios de: (...)
VIII - observância das formalidades essenciais à
garantia dos direitos dos administrados.”
A licença do art. 71 da LPI, assim, não se deve a um
requerimento de algum interessado, mas, ao contrário, ela é
concedida de ofício.
Na verdade, sua razão de ser é para evitar preços
excessivos por causa de um aumento de demanda. Um
exemplo, uma epidemia que necessita de vacinas. O titular da
patente não a licencia a terceiros e também não supre o
mercado, aumentando o preço do medicamento. Surge, então,
o motivo para a licença em questão.
Podem ocorrer duas situações:
a) ou a licença se destina à produção para o
mercado;
b) ou a licença se destina para compras
governamentais.
171
TEMA
Na hipótese “a”, a Administração apenas criou uma
oportunidade de mercado. Já na hipótese “b”, a licença é
subsidiária a uma demanda do Estado.
A oferta de licença deve ser feita de forma impessoal e
através de publicidade. Deve, portanto, constar de edital
publicado a todos os interessados.
Vejamos o que dispõe o art. 37 da nossa CF/88:
“A Administração pública direta e indireta de
qualquer dos poderes da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos
princípios da legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência (...)”.
Se for um caso específico de demanda do estado, além
do acima transcrito (caput do art. 37 da CF/88), aplica-se o
inciso XXI do mesmo artigo, especialmente no que diz respeito
ao processo de licitação pública. A não ser no caso de
emergência nacional, conforme o disposto na Lei n.º 8.666/93:
Assim conceitua a Lei 8.666/93 para dispensabilidade
de licitação:
“IV- nos casos de emergência ou de calamidade
pública, quando caracterizada urgência de
atendimento de situação que possa ocasionar
prejuízo ou comprometer a segurança de
pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros
bens necessários ao atendimento da situação
emergencial ou calamitosa e para as parcelas de
obras e serviços que possam ser concluídas no
prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias
consecutivos e ininterruptos, contados da
emergência ou calamidade, vedada a
prorrogação dos respectivos contratos”.
Vejamos, a seguir, o procedimento da licença compulsória
por interesse público.
Distinguem-se claramente seis fases no procedimento
da licença compulsória por interesse público:
UNIESP
172
“- a determinação da necessidade ou emergência e
da impossibilidade ou recusa do seu atendimento
pelo titular da patente;
- da declaração do interesse público ou da
emergência;
- da oferta pública ou licitação para a licença;
- da outorga da licença;
- da fixação ou arbitramento do valor do royalty na
forma dos §§3.º e 4.º do artigo 73 da lei 9.279/96;
- do registro da licença compulsória.”
As duas primeiras situações estão dispostas na já
referida lei n.º 9.784/99, sendo que a declaração de interesse
público ou emergência seguirá o rito processual das
declarações de necessidade ou utilidade pública para
desapropriação;
A oferta de licença segue as regras da Lei n.º 8.666/93;
Finalmente, as duas últimas situações acima expostas
são regulamentadas pelo disposto na Lei n.º 9.279/96, art. 73.
Fator determinante para a promoção de oferta ou a
contratação com a Administração Pública é o valor dos royalties.
Assim...
Ainda que se entenda a licença compulsória como
instituto de requisição – e não de desapropriação – deve haver
indenização, sob pena de inviabilizar os paradigmas da
propriedade privada. Como igualmente cabe ao Poder Público
avaliar, no caso concreto, a necessidade de fazer prevalecer o
interesse social ao interesse privado.
DA OUTORGA DA LICENÇA
DO P
APEL DO INPI
PAPEL
Não é da competência exclusiva do INPI para a concessão
da licença ex-officio do artigo 71 da LPI.
A Lei 9.279/96 não restringiu ao INPI essa função. Como
a licença compulsória em questão tem natureza de requisição
173
TEMA
administrativa, quem deve apurar a necessidade pública ou
emergência é a autoridade à qual esteja vinculado o
atendimento à necessidade pública referente.
Se for um caso de saúde, a pasta é o Ministério da Saúde.
E ainda, a necessidade ou emergência deveria ser
declarada por um decreto da Presidência da República, porém
essa função é do Ministério da área em questão.
Quando declarada a existência do interesse público ou
da emergência em relação a uma patente específica, a oferta
ou determinação de licenciamento caberia ao órgão ou
entidade incumbida de promover o procedimento de licitação.
O INPI executa a decisão administrativa, de acordo com
os §§ 3.º e 4.º do art. 73 da LPI, bem como o registro da licença
compulsória.
Existe remuneração ao instituto da requisição, de
natureza indenizatória, não remuneratória.
Então, a indenização será o valor econômico da patente,
cujo cálculo será sobre o preço efetivamente praticado pelo
licenciado compulsório – não sobre o que pratica o titular ou
seu licenciado voluntário.
A licença será temporária, pois visa atender à
emergência ou ao interesse público temporário. Se tornar
permanente, então há que se falar em desapropriação, pois
muda a titularidade da patente em questão. Passa do particular
para o âmbito público, então houve desapropriação, nesse caso.
DAS MODIFICAÇÕES TRAZIDAS PEL
O
PELO
DECRETO N.º 4.830/03
A primeira modificação relevante trazida pelo novo
Decreto foi em relação ao uso “não comercial” desse tipo de
licença, que o Decreto anterior dispunha. Havia nisso uma
ilegalidade.
Assim, o Decreto n.º 4.830/03, combinado com o art. 31
do Acordo Trips da OMC elucida essa questão, ou seja, quando
UNIESP
174
existir emergência nacional ou outros casos de também
emergência, o uso público pode ser comercial.
O decreto delega ao ministro de Estado pertinente –
através de portaria – a atribuição de declarar a emergência
nacional ou o interesse público.
Outra alteração é em relação ao art. 5.º, III do Decreto
3.201/99, em atendimento ao art. 24 da Lei nº 9.279/96, uma
vez que o relatório da patente tem que expor a maneira de
execução prática da solução técnica reivindicada.
Uma alteração igualmente importante foi em relação à
permissão ao licenciado de adquirir, no mercado externo, de
qualquer fonte que o possibilite suprir a demanda do mercado.
Finalmente, ao INPI caberá anotação das licenças – as
quais – atendidas a emergência nacional ou interesse público,
a autoridade competente deverá extinguir.
A TU
ALIDADES SOBRE O TEMA
TUALIDADES
CONCLUSÃO
São seguramente, dois assuntos complexos: saúde e
mercado.
Saúde e propriedade são direitos igualmente garantidos
pela nossa constituição.
Saúde está no capítulo dos direitos sociais e no da
ordem social.
Já o direito à propriedade encontra-se no capítulo que
regula os direitos individuais e coletivos e na ordem econômica.
Saúde e propriedade se tocam quando falamos sobre
medicamentos (políticas de preço, distribuição etc.) e suas
patentes de invenção.
Não há, no nosso ordenamento jurídico, nenhuma
legislação específica sobre medicamentos. Logo, o que se
aplica são as normas da Lei 9.279/96, a já mencionada LPI.
Vimos que saúde é um direito difuso; medicamentos estão
diretamente ligados à manutenção da saúde da população, uma
vez que fazem parte da política sanitária do Estado.
175
TEMA
É um ponto de vista defensável que os fármacos estão
no patamar de coisa pública. Por esta razão é que o Estado se
faz tão presente.
Para Campilongo 25:
“A Constituição brasileira de 1988 ratificou essa
incumbência social do Estado ao estabelecer o
direito à saúde como um dos seus princípios
fundamentais. No seu art. 1º, III, a Carta Magna
afirma que a dignidade da pessoa humana é um
dos fundamentos do estado Democrático do
Direito. E, no inciso IV do art. 3º, ressalta que a
promoção do bem de todos é um dos objetivos
da República do Brasil. Já no título VIII, Da Ordem
Social, o direito à saúde é tratado mais
especificamente, trazendo diretrizes, normas
políticas essenciais à área da saúde”.
Especificam melhor a questão os artigos 196 e 197 da
nossa Constituição.
Por sua vez, “a propriedade é elemento essencial da
estrutura econômica de qualquer Estado”.26
Mas tem que passar pelo aspecto da função social da
propriedade, pois não há como tratar da propriedade sem que
ela se obrigue. Mas não há autorização constitucional para
suprimi-la, apenas para socializá-la, por assim dizer. É um “meio
de consecução da vontade pública”.27
Passemos às patentes: forma de propriedade, inclusive
um monopólio legal.
Existem diplomas constitucionais que incentivam a
atividade científica, ex. art. 218 § 1.º; 218 § 3.º; 218 § 4 e 218 § 5.
25
Campilongo, Celso Fernandes. In: Política de patentes e o direito da concorrência,
artigo componente de Política de patentes em saúde humana, Ed. Atlas S/A.,
SP, 2001, p. 156.
26
Campilongo. Op. cit., p. 157.
27
Idem.
UNIESP
176
Proteger as patentes é trazer desenvolvimento, em
última análise.
E, com o intuito de não causar distorções ou, por outro
lado, minimizá-los, é que foi criado o mecanismo de licenças
compulsórias. Quem decide é a esfera administrativa, ou seja,
o CADE e o INPI, mas sendo cabível tanto o recurso
administrativo quanto o judicial de suas decisões.
Os Estados Unidos não são simpáticos à proteção da
produção nacional e alegam que, se todos os países membros
da OMC quiserem manter seu programa de produção local acaba
a globalização comercial. Depois, os EUA foram questionar a
licença compulsória junto a OMC porque consideram que a nossa
legislação não está de acordo com o Trips.
Ainda não temos notícia de licenciamento compulsório no
caso de patentes da indústria farmacêutica, mas é certo que é
um setor de extrema importância por ser de relevância pública.
Finalmente o que se tem hoje é um programa brasileiro
de combate à Aids, com destaque internacional.
O Brasil contribui com países africanos de língua
portuguesa através da transferência gratuita de tecnologia para
que se fabrique o coquetel anti-aids. A finalidade é garantir o
acesso da população a tais medicamentos, uma vez que são
de custo elevado.
Se fizermos um paralelo entre o moderno Direito de Autor
praticado por uma entidade sem fins lucrativos chamada
“Creative Commons”, chegaremos a algumas possibilidades.
Analisando o contexto de sua criação, o Creative
Commons teve por objetivo coibir as práticas de violações de
Direitos Autorais que a Internet facilita. Mas sem com isso proibir
a pesquisa e uso de obras cujo acesso é aberto pela Internet.
Assim, um professor da Universidade de Stanford, Lawrence
Lessig criou o Creative Commons. Os titulares de direitos
autorais disponibilizam suas obras aos interessados sem com
isso perderem sua titularidade. Ao titular cabem os direitos
autorais e a escolha sobre o que se pode ou não permitir aos
licenciados fazer ou não fazer. Por exemplo, existem amplas
177
TEMA
licenças que permitem qualquer tipo de uso, inclusive cópia,
outras limitam ou mesmo proíbem cópias da obra.
Se estendermos o raciocínio às patentes, veremos que
se for criado um mecanismo semelhante, pelo menos no que
diz respeito às patentes de medicamentos, não haverá
necessidade de licenças compulsórias. O próprio titular da
patente já determina o tipo de uso que pode ter sua invenção.
Assim, a propriedade estará cumprindo sua função
social. Para pensarmos.
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TEMA
Autor e Texto
Author - Text
Lúcia P. S. Villas Bôas*
APONT
AMENTOS SOBRE O PESQUISAR E O CONHECER
APONTAMENTOS
A P
ARTIR DE UMA ABORDAGEM FUNDADA NA TEORIA
PARTIR
DOS SISTEMAS DE NIKLAS LUHMANN
NOTES ABOUT RESEARCH AND KNOWLEDGE FROM A
BOARDING BASED ON NICKLAS LUHMANN’S SYSTEMS
RESUMO
Este texto objetiva oferecer alguns apontamentos para a relação entre
conhecimento e pesquisa a partir de alguns aspectos da teoria sistêmica
elaborada pelo sociólogo alemão Niklas Luhmann.
ABSTRACT
This text aims to offer some notes for a relation between knowledge and research
starting from some aspects of the systemic theory worked out by Niklas
Luhmann, a German sociologist.
PALAVRAS-CHAVE
Niklas Luhmann. Teoria dos sistemas. Pesquisa. Conhecimento. Epistemologia.
KEY WORDS
Niklas Luhmann. Systems theory. Research. Knowledge. Epistemology..
* Mestre e Doutoranda do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: Psicologia da Educação da
Pontifícia da Universidade Católica de São Paulo e professora do curso de Direito das Faculdades
Integradas Teresa Martin (FATEMA) e da Faculdade de Direito Carlos Drummond de Andrade. Ex-professora
do curso de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
R.TEMA
S.Paulo
UNIESP
nº 49
jan./jun. 2007
P. 180-192
180
Lúcia P. S. Villas Bôas
APONT
AMENTOS SOBRE O PESQUISAR E O
APONTAMENTOS
CONHECER A P
ARTIR DE UMA ABORDAGEM FUNDADA
PARTIR
NA TEORIA DOS SISTEMAS DE NIKLAS LUHMANN 1
NOTES ABOUT RESEARCH AND KNOWLEDGE FROM A
BOARDING BASED ON NICKLAS LUHMANN’S SYSTEMS
“L
ewis Carroll era professor de matemática na
Universidade de Oxford quando escreveu o seguinte
em Alice no país das maravilhas:
‘- Gato Chesire... quer fazer o favor de me
dizer qual é o caminho que eu devo tomar?
- Isso depende muito do lugar para onde você
quer ir – disse o Gato.
- Não me interessa muito para onde... – disse
Alice.
- Não tem importância então o caminho que
você quer tomar – disse o Gato.
- ... contanto que eu chegue a algum lugar –
acrescentou Alice como uma explicação.
- Ah, disso pode ter certeza – disse o Gato –
desde que caminhe bastante’.
A resposta do Gato tem sido freqüentemente citada para
exprimir a opinião de que os cientistas não sabem para onde o
1
As idéias contidas neste artigo foram amplamente discutidas com Orlando Villas Bôas
Filho, ao qual, desde já, agradeço a colaboração.
181
TEMA
conhecimento está levando a humanidade e, além disso, não se
importam muito. Diz-se que a ciência não pode oferecer objetivos
sociais porque os seus valores são intelectuais e não éticos. Uma
vez que os objetivos sociais tenham sido escolhidos por meio de
critérios não científicos, a ciência pode determinar a melhor
maneira de prosseguir. Mas é provável que a ciência possa
contribuir para formular valores e, assim, estabelecer objetivos,
tornando o homem mais consciente das conseqüências de seus
atos. A necessidade de conhecimento das conseqüências, no
ato de tomar decisões, está implícita na observação do Gato de
que Alice chegaria certamente a algum lugar se caminhasse o
bastante. Desde que esse algum lugar poderia revelar-se bem
indesejável, é melhor fazer escolhas conscientes do lugar para
onde se quer ir”2 (grifos do autor).
O texto acima, apesar de evidenciar uma preocupação
com os “fins da ciência”, permite pensar que, similar ao
acontecido com Alice, vários são os caminhos para o
conhecimento; caminhos estes que podem ir desde o
dogmatismo, configurando-se como “seguros” e “desejáveis”,
na medida em que se apresentam como uma via de mão única,
sem bifurcações; até os que enfatizam o dissenso,
configurando-se como polêmicos porque tentam modificar o
estabelecido, o status quo.
Partindo-se do pressuposto de que caminhos diferentes
levam, por vezes, a distintas construções de conhecimento, podese afirmar então que, nesse sentido, muitas são as relações que
podem ser estabelecidas entre pesquisar e conhecer.
É isso que Arruda leva em conta ao afirmar que pesquisar
é perigoso, parodiando Riobaldo, personagem de Guimarães
Rosa que por sentir-se atormentado por seu amor por Diadorim,
pergunta-se o tempo todo se o mal está dentro ou fora de cada
um, concluindo que viver é muito perigoso. Segundo esta
2
DUBOS, René. O despertar da razão. São Paulo: Melhoramentos/Edusp, 1972,
p. 165.
UNIESP
182
pesquisadora, “também a pesquisa se perguntou por muito
tempo como isolar os sentimentos, as crenças e tentou
neutralizá-los. Pesquisar também é muito perigoso, o que ditou
à pesquisa normas e dogmas para não arriscar-se (sic), para
não escapar aos eixos do aceitável, garantindo a neutralidade.”3
Optar por Niklas Luhmann como eixo condutor na
elaboração destes apontamentos também envolve riscos: sua
teoria é altamente abstrata, eminentemente teórica, possui
compromissos interdisciplinares e, ao final, não oferece
nenhuma “solução” que possa ser reputada definitiva. É por
isso mesmo que se acredita que alguns aspectos da teoria
sistêmica proposta por esse autor permitem indicar diretrizes
para a investigação da relação entre pensar, pesquisar e
conhecer. Diretrizes estas que estão na contramão do “dogma”
na medida em que, para Luhmann, o conhecimento só é
possível como construção refutando, nesse sentido, a existência
de um dogmatismo de grupos que se enclausuram a partir de
um posicionamento inquestionável.
Some-se a tal preocupação o próprio compromisso que
a teoria de Luhmann tem com a generalidade, o que faz com
que seus delineamentos não se restrinjam apenas ao âmbito
da sociologia, mas possibilitem múltiplas leituras que
extrapolam as fronteiras de uma teoria da sociedade. E é
justamente uma dessas leituras que se pretende percorrer,
como a um caminho mesmo, para refletir sobre as relações
entre o pensar e o pesquisar.
NOT
AS SOBRE A CIÊNCIA E O CONHECIMENTO NA
NOTAS
PERSPECTIVA DE NIKLAS LUHMANN
Toda a obra de Luhmann visa elaborar uma teoria geral
da sociedade de caráter eminentemente descritivo por meio
3
ARRUDA, Ângela. As representações sociais: desafios de pesquisa. Revista de Ciências
Humanas. Especial temática, 2002. p. 09.
183
TEMA
do questionamento de categorias analíticas tradicionais para
a sociologia clássica, tais como, sujeito, razão, ação,
conhecimento, entre outros, que, segundo esse autor, seriam
inadequados para a descrição da sociedade contemporânea.4
Como decorrência dessa inadequação, Luhmann se vê
obrigado a buscar novos instrumentos conceituais para elaborar
uma nova teoria da sociedade. Para tanto, tem, como suporte
metodológico, a teoria da comunicação, dos sistemas, da
organização, do direito, da evolução, cibernética, etc. o que
torna sua obra extremamente interdisciplinar5.
Assim, ao dispor desse novo instrumental teórico,
Luhmann adverte que o objeto central de sua análise é a
complexidade, tomada como excesso de possibilidades, como
presença de múltiplas alternativas, em que reina a relação frente
a todo e qualquer determinismo mecânico. A teoria luhmanniana,
portanto, visa reduzir a complexidade, a fim de que esta se faça
transparente, embora saiba que não pode eliminá-la.
É nesse contexto que Luhmann concebe a sociedade
como um sistema auto-referencial que cria suas próprias
condições de existência e suas próprias condições de
mudança. Um sistema que se diferencia a si mesmo – em um
processo auto-criador – para abordar novos espaços de
possibilidade que se oferecem ante ele.
Com a evolução da sociedade, esta passa por uma
progressiva diferenciação em distintos sistemas funcionais (direito,
economia, educação, política, religião etc.) em que a ciência pode
ser analisada como um deles, pois, como afirma Luhmann:
“La forma de diferenciación de la sociedad
moderna posibilita y aun obliga a la autonomía a
4
Cf. LUHMANN, Niklas. La ciencia de la sociedad . México: Universidad
Iberoamericana, 1996. (Autores, textos y temas – Ciencias sociales, 10).
5
Para maiores informações sobre os âmbitos teóricos utilizados por Luhmann, sobretudo
para a construção do seu conceito de complexidade, ver, por exemplo: IZUZQUIZA,
Ignacio. La sociedad sin hombres: Niklas Luhmann o la teoría como escándalo.
Barcelona: Anthropos, 1990. p. 58 e ss.
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184
los diferentes campos funcionales, lo que se logra
por medio del proceso de diferenciación de los
correspondientes sistemas autopoiéticos y
clausurados operativamente. Con ello, la
diferenciácion impone a los sistemas rendimientos
de reflexión que conciernen a su propria unidad
y a su carácter insustituible, pero que tienen en
cuenta también el hecho de que en el mundo
existen otros sistemas funcionales del mismo tipo.
Los conocimientos y precisamente los
conocimientos exigentes y avanzados, son
entonces solo una posibilidad social entre otras.
Si éstos se pueden utilizar en la economia, si han
de ser aprovechados en la política, si son
apropriados para fines educativos, se decide en
outra parte. Por cierto, habíamos llegado a la
conclusión de que la comunicación verbal
presupone ya conocimiento y que la sociedad,
sin conocimientos, no puede comunicarse, es
decir, no puede existir. Sin embargo, precisamente
para los conocimientos de rendimiento máximo
de la ciencia moderna, esto no es válido. La
sociedad depende de estos conocimientos solo
en un sentido muy específico, pero no para la
autopoiesis de la comunicación sin más y más.
De una manera singular, los conocimientos
científicos deben defenderse y, a la vez, retirarse:
siempre deben aportar nuevos rendimientos y
renunciar, al mismo tiempo, a definir el mundo
para la sociedad.”6 (grifos apostos).
Essa idéia de que a ciência não deve definir o mundo
para a sociedade é derivada do fato de que, para Luhmann, a
ciência, tal como o conhecimento, não é descoberta, mas sim
construção7. Nesse sentido, não existe diferença entre sujeito
6
7
LUHMANN, Niklas. La ciencia de la sociedad. p. 494-495.
Cf. LUHMANN, Niklas. La ciencia de la sociedad . p. 501. Para Luhmann, a
ciência provoca “la disolución de identidades encontradas en lo real en relaciones,
y establece continuamente nuevas combinaciones con esas relaciones”.
LUHMANN, Niklas. apud IZUZQUIZA, Ignacio. La sociedad sin hombres: Niklas
Luhmann o la teoría como escándalo. p. 305 (grifos do autor).
185
TEMA
e objeto e, a ciência, então, não pode mais ser concebida como
representação do mundo tal como ele é, na medida em que o
conhecimento não está baseado em uma correspondência com
a realidade externa, mas sim sobre as construções de um
observador8 e, conseqüentemente, ela deve, por isso mesmo,
“renunciar a su pretensión de poder instruir os otros sobre el
mundo”, na medida em que ela apenas “produce una
exploración de posibles construcciones que se pueden
introducir en el mundo, y producen el efecto de la forma, es
decir, producen uma diferencia.”9 Ou seja, a ciência é sempre
produção e, como tal, não pode ser a ela reputada pretensões
de caráter normativo10.
Para Luhmann, a ciência, como um sistema autoreferencial e autopoiético, opera com um código binário de
comunicação que é a questão do verdadeiro ou não verdadeiro.
Nesse sentido, é possível afirmar que:
“[...] la verdad científica no debe ser
entendida como adaptación lograda a los objetos
o como descubrimiento de la realidad. Los dos
valores del código de la verdad, verdadero y no
verdadero, no tienen ninguna correspondência con
el ambiente externo: al contrario de cuanto
sostiene la lógica clásica con ascendência
aristotélica, la verdad no es una propriedad de los
objetos y el error no es un privilegio de la
consciência.”11. (grifos apostos).
8
Segundo Corsi, Esposito e Baraldi, na teoria de Luhmann, “la realidad es
simplemente la que es, actual y positiva; pero el conocimiento que se basa en
observaciones está forzado a captarla bajo la forma de distinciones, a las cuales,
en la realidad no corresponde nada. El observador conoce entonces unicamente
sus propias categorias e no datos primitivos” CORSI, Giancarlo; ESPOSITO, Elena;
BARALDI, Cláudio. Glosario sobre la teoria social de Niklas Luhmann. México:
Universidad Iberoamericana, 1996. p. 51.
9
LUHMANN, Niklas. La ciencia de la sociedad. p. 501.
10
Um exemplo disso é a pretensão normativa de utilização da ciência para fins
emancipatórios, rejeitada por Luhmann. Cf. VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. O
direito na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. São Paulo: Max Limonad, 2006.
p. 250.
11
CORSI, Giancarlo; ESPOSITO, Elena; BARALDI, Cláudio. Glosario sobre la teoria
social de Niklas Luhmann, p. 160.
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186
A existência, portanto, dessa autopoiesis no sistema
ciência, traz algumas conseqüências para o conhecimento
científico e para tudo o mais o que se produza por meio do
código binário verdadeiro/não verdadeiro, na medida em que
este pressupõe uma descontinuidade entre o sistema que
conhece e a realidade externa a esse sistema (entorno), isso
porque, o conhecimento se produz a partir das operações do
próprio sistema. Nesse sentido, Luhmann afirmará que:
“la verdad científica, por lo tanto, cierta-miente no se puede
fundar sobre un concepto ontológico de objetividad, pero al
mismo tiempo no puede tampoco renunciar a la pretensión
de indicar la realidad. El valor positivo, verdadero, indica
simplemente el hecho de que la comunicación puede
conectarse inmediatamiente a um determinado enunciado
y que precisamente esta posibilidad de conexión vuelve
contingente a ese enunciado: se puede afirmar la misma
cosa de una manera distinta, se podrían encontrar
conexiones novas, y esto precisamente porque atrás del
enunciado no se encuentra un pedazo de realidad, sino
siempre e únicamiente otro conocimiento. El valor negativo,
por su parte, marca un punto en el que las expectativas del
sistema no se han realizado, en donde la realidad se ha
manifestado bajo la forma de sorpresa, de condición
insostenible de una cierta posición, de coacción a la
reacción. El experimiento desempena entre otras cosas
precisamiente esta función: conduce la comunicación ante
la alternativa entre verdadero y no verdadero y expone la
comunicación científica a la posssibilidad de la decepción.”12
(grifos apostos).
Contudo, visando reduzir a complexidade do mundo e,
nesse sentido, estabilizar expectativas cognitivas, as descrições
produzidas pelo sistema da ciência não podem ser desmentidas
pelo seu entorno. Assim, para que o conhecimento sirva de
índice que permita guiar a ação em meio à contingência do
12
Idem, ibidem. p. 160-161.
187
TEMA
mundo, é preciso que as expectativas que se baseiam em suas
descrições não sejam frustradas por aquilo que ocorre no
entorno. Quando há a frustração de uma expectativa de ordem
cognitiva, ocorre a adaptação da mesma à realidade. Trata-se
do contrário do que ocorre com as expectativas normativas13
que se estabilizam de forma contrafática, ou seja, se mantêm
mesmo diante da desilusão. Essa distinção é importante porque,
muitas vezes, algumas posturas dogmáticas podem transformar
expectativas cognitivas em algo próximo às expectativas
normativas, ou seja, não aceitam o descompasso das mesmas
em relação à realidade e as mantém a despeito disso.
Assim, uma teoria (e poder-se-ia acrescentar a pesquisa
que nela se baseia), mais do que construir unidades, deve
permitir o estabelecimento de diferenças e a criação de novas
diferenças, processando-as de um modo dinâmico de modo a
evitar uma “tranqüilidade epistêmica”. Sendo assim, a pesquisa
não deve resolver problemas no sentido afirmativo de ação, ela
deve gerar novos a partir dos problemas já resolvidos.
É justamente essa busca constante de problemas que
explica uma das maiores dificuldades intrínseca a toda obra
luhmanniana que é a questão do diálogo com diferentes áreas
do conhecimento, tais como, lingüística, biologia, matemática
etc, mas que cumpre a exigência da elaboração de um aporte
teórico complexo para descrever uma sociedade que também
é complexa. Contudo, há que se cuidar para que a
interdisciplinaridade não signifique anacronismo, ou seja, é
preciso não usar uma proposição que o conjunto da obra de
um determinado autor não autoriza.
Todo esse diálogo e esforço teórico têm sentido para a
proposição de uma teoria que, segundo Luhmann, não deve
gerar déficits teóricos. Luhmann aponta alguns aspectos que,
então, devem ser observados para a construção de uma teoria,
13
Como exemplos de expectativas normativas, podem-se citar as expectativas
morais e jurídicas. Cf. VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. O direito na teoria dos
sistemas de Niklas Luhmann . p. 181-184.
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aspectos estes que, ainda que esquematicamente, indicam (por
que não?), elementos a serem levados em conta nas pesquisas
a serem realizadas para que as mesmas não se baseiem em
teorias que apresentem déficits teóricos em relação à
complexidade de seu entorno. Sendo assim, segundo Luhamnn,
uma “teoria adequada” é aquela que:
a) possui generalidade e abstração de modo que os
delineamentos teóricos não fiquem restritos a
âmbitos particulares na medida em que estes podem
ser aplicados a diferentes domínios. Segundo
Izuzquiza, “tal exigência de generalidad convierte a
la teoria en un verdadero artificio de generación de
problemas que deben ser recogidos en su raíz
general por la teoría. Más aún, uma teoria será tan
eficaz como elevada sea su potencia para generar
problemas nuevos”14;
b) apresente, nesse sentido, dinamismo;
c) tenha uma estruturação teórica segundo a lógica da
diferença, superando posturas que se baseiam na
univocidade;
d) unida à observação, abandone as pretensões
normativas;
e) dê conta da complexidade de seu objeto e, nesse
sentido, deve ser suficientemente complexa em si
mesma. Assim, a teoria deve ser um instrumento de
redução da complexidade, lembrando que a
complexidade é o referente necessário de toda teoria
com a qual se pretende observar a realidade. Para
reduzir a complexidade, a teoria também precisa ser
ela mesma complexa;
14
IZUZQUIZA, Ignacio. La sociedad sin hombres: Niklas Luhmann o la teoría
como escándalo. p. 13.
189
TEMA
f) é reflexiva e auto-referente, uma vez que, sendo autoreferente, a teoria pode descrever-se a si mesma e
gerar operações próprias de extremada
complexidade. A auto-referência constitui o grau
máximo de maturidade de uma teoria, ainda que
demande uma lógica nova para ser entendida.
O pesquisar e o conhecer, a partir desta perspectiva,
implica ainda em não operar com a premissa “verdade” no
sentido de dogma, isso porque o conhecimento é
historicamente construído, portanto sempre provisório na
medida em que se atrela a um determinado contexto, ou seja,
se “por um lado, ‘todas as informações aparecem
contextualizadas’, mas (sic) por outro lado, oferecem a
possibilidade de um modo diferente de olhar. Nada mais é
estabelecido por si mesmo. Tudo parece estar à mercê da
comparação com outras possibilidades. Essa tendência leva à
conclusão de que cada pessoa tem que se conscientizar da
responsabilidade que tem para consigo e, assim, procurar
‘encontrar possibilidades de se orientar em si própria sob essas
condições.”15
15
LUHMANN, Niklas. apud MARKET, Werner. Novos paradigmas do conhecimento
e modernos conceitos de produção: implicações para uma didática orientada
no sujeito e na ação. Disponível em: <www.educacaoonline.pro.br/
novos_paradigmas_do_conhecimento.asp?f_id_artigo=221>. Acesso em: 15 de
junho de 2004. Um dos exemplos mais interessantes sobre as lacunas da nossa
lógica ou sobre os aspectos contextuais das relações pode ser encontrado em
um conto de Borges. Citando Foucault: “uma certa enciclopédia chinesa onde
está escrito que ‘os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b)
embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em
liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos,
j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino e de pêlo de camelo, l)
et etcetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem
moscas’. No deslumbramento dessa taxonomia, o que de súbito atingimos, o
que, graças ao apólogo, nos é indicado como o encanto exótico de um outro
pensamento, é o limite do nosso: a impossibilidade patente de pensar isso”
FOUCAULT, Michel. Prefácio. In: _____ . As palavras e as coisas: Uma arqueologia
das ciências humanas. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1981. p. 5.
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190
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os aspectos expostos acima que, segundo Luhmann, são
indicadores de uma teoria sem déficit teórico são articulados
pela questão da complexidade. Questão esta que traz
implicações diretas para o fazer pesquisa. Assim, ao elaborar
uma pesquisa, deve-se procurar manter o objeto de estudo e,
portanto, o recorte efetuado, articulado à complexidade das
relações, rejeitando que a hipostasia deste signifique uma
simplificação ou mesmo perda das próprias relações desse
objeto. Assim, se a ciência é um sistema que reduz a
complexidade do mundo atual, tornando esta transparente de
modo dinâmico e particular16, a pesquisa deve estar então
estruturada em uma lógica de relações e no contínuo esforço
de pensar, de modo reflexivo, a sua própria racionalidade, ainda
que isso signifique expor o conhecimento científico à
possibilidade de decepção.17
Acredita-se que o caminho traçado na elaboração destas
considerações, é menos uma leitura teórica sobre a abordagem
luhmanniana em sua relação com o pesquisar e o conhecer, e
mais uma indicação de aspectos importantes a serem
considerados quando da construção de conhecimento a partir
de uma perspectiva crítica e problematizadora que, segundo
Luhmann, é que deve pautar a ciência e, consequentemente, a
produção da pesquisa.
16
Izuzquiza pontua que a redução de complexidade pela ciência leva à produção
de um mundo semelhante a um cristal “que, donde se hace más compacto,
se refleja en sí mismo y traspasa a otro la transparencia.” IZUZQUIZA, Ignacio.
La sociedad sin hombres: Niklas Luhmann o la teoría como escándalo. p. 305.
17
Cf. CORSI, Giancarlo; ESPOSITO, Elena; BARALDI, Cláudio. Glosario sobre
la teoria social de Niklas Luhmann . p. 160-161.
191
TEMA
BIBLIOGRAFIA
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Niklas. Sociedad y sistema: la ambición
de la teoria. 1ª reimpr. Barcelona:
Paidós, 1997. (Pensamiento Contemporâneo, 8).
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