A TRAMA DAS REDES

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A TRAMA DAS REDES
A TRAMA
DAS REDES
Marcelo Tas
[Jornalista, autor e diretor de TV]
Trecho de entrevista de Marcelo Tas concedida ao jornalista Gilberto
Dimenstein que deu origem ao livro É rindo que se aprende (Papirus, 2010)
Dimenstein: Acho que seria legal você contar sobre como foi sua
descoberta do digital. Quando ninguém falava em blogs, você já tinha
blog, não é?
Tas: Descobri o digital numa temporada em Nova York, em 1988.
Na NYU (New York University), estudava cinema e televisão com
uma bolsa da Fulbright. Pouco antes de eu vir embora, conheci um
departamento que estava começando na época: mídias interativas.
Dimenstein: É bom lembrar que nessa época não existia a internet
como a conhecemos hoje.
Tas: É ainda mais estranho: não existia o computador pessoal! Havia
computador apenas em algumas empresas e universidades. Ninguém
tinha computador em casa.
Dimenstein: E a NYU já tinha um departamento de mídias interativas.
Tas: Sim, o ITP – Interactive Telecommunications Program. Estive
em Nova York recentemente e me emocionei ao ver que o prédio
onde estudei, onde fica a escola de artes – Tisch School of the Arts –
é hoje um grande ITP. A NYU entendeu o quanto a revolução digital
abraça todas as artes.
Dimenstein: E o que você conheceu lá nessa época? Tas: No ITP, naveguei na internet em 88, fazia chats com universidades da Califórnia, usava e-mail... Por isso o meu choque quando
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voltei ao Brasil. Parecia que eu estava de volta a Ituverava, a pequena
cidade longe de tudo, onde nasci no interior de São Paulo.
Sabia que uma hora aquela mudança ia chegar a muita
gente. Para mim chegou em 1992, quando já morava no Rio. Na
época, tinha contato com o Betinho, que todo mundo conhece por
causa da Campanha da Fome, mas a maioria das pessoas não sabe
que foi ele, através de uma ONG, o Ibase, que trouxe o primeiro provedor de internet público para o Brasil: o Alternex.
Não havia ainda a interface gráfica da web. Era tudo em
preto e branco, e só texto. Fiz meu primeiro e-mail em 1992.
Dimenstein: Só em 94 que a internet ficou comercial no mundo
com o browser. Tas: Os principais provedores e portais vieram ainda depois, como o
UOL, em 96. Depois, em 98, fui convidado para assumir a condução
do Vitrine, na TV Cultura. O programa já existia há muito tempo,
mas naquele ano sofreria uma mudança radical e passou a falar com
ênfase da revolução digital que estava chegando. Foi muito legal porque para mim foi natural, eu estava louco para acompanhar e falar
daquilo tudo. Ainda mais na TV, em rede nacional, ao vivo. Era o
começo da web e dessa transformação gigantesca que a gente vive
cada vez com mais intensidade.
Dimenstein: Você, nessa época, começou a divulgar a cultura digital.
Voce se sentia incompreendido? Tas: Não, nunca visto a carapuça do “ninguém me entende, ninguém
me quer”. Eu vou seguindo, falando as coisas em que acredito, aí vão
surgindo os interlocutores, as pessoas vão chegando. O Vitrine aos
poucos ganhou reconhecimento e virou referência para o pessoal da
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tecnologia, da comunicação e do mundo acadêmico. Em 2000, fizemos a primeira transmissão ao vivo, via internet, da TV brasileira.
Apresentei o programa diretamente da Austrália, dos estúdios da
Universidade de Tecnologia de Sidney, cidade que sediava as Olimpíadas naquele ano. Em 2001, criamos o Vitriblog – o blog do Vitrine.
Imagina só: em 2001, um blog de um programa de televisão! O objetivo era ouvir o telespectador, uma coisa que continua muito nova e
rara de se fazer até hoje. Antigamente, o telespectador ficava passivo
só vendo a televisão. Era até chamado de “o da poltrona”. Agora,
evidentemente, isso mudou. Já naquela época, a gente provocava:
“Escreva, interaja, participe, queremos te ouvir”. Dimenstein: E aí sua vida foi rumando para outras coisas até chegar
ao CQC. Existe um ponto essencial na sua trajetória que é a intersecção da comunicação com a educação e o mundo digital – a interatividade. O que o professor precisa saber para lidar com essa geração
que é colaborativa, que é interativa? O cara da poltrona desapareceu;
isso significa que o sujeito da carteira também desapareceu? Tas: Na verdade, é o seguinte: a poltrona e a carteira ainda estão lá.
Só que o cara sentado nelas não é mais o mesmo. Assim como o leitor de jornal não é mais o mesmo, o ouvinte de rádio não é mais o
mesmo, nem o seu filho, a sua avó ou sua namorada... Ninguém é
mais o mesmo depois da revolução digital. Nem a sua tia que nunca
usa a internet é mais a mesma. Porque ela conhece uma vizinha ou
um sobrinho que pode descobrir onde ela pode comprar um liquidificador mais barato, na internet. Então, aquele mundo da passividade,
da distância, da fonte única de informação, acabou. Se voce me pergunta o que o professor tem que aprender com esse novo mundo,
a primeira palavra que me ocorre é ouvir. Porque o professor, assim
como o comunicador de televisão, passamos décadas só falando e não
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ouvindo ninguém. O jornalista, a mesma coisa: tinha a pretensão
de trazer “o que aconteceu no Brasil e no mundo” e jogar na cara do
público sem se importar muito em ouvir o que o público tinha a criticar, comentar ou até complementar a informação e opinião dele. Com
o líder empresarial também acontece a mesma coisa. O chefão era o
sabe-tudo que passava informações e decisões mastigadas aos subordinados, que não podiam discordar ou dar ideias. Isso tudo acabou,
definitivamente. Hoje, muitas vezes o consumidor sabe mais sobre o
produto do que o líder da empresa que fabrica o produto. E mais: ele
pode criticar isso publicamente, ele pode exigir mais.
Nessa hora, pode surgir um raciocínio perigoso: “Ah, então,
o professor já não é mais necessário, nem o jornalista, nem o líder
empresarial...”. Esse raciocínio é uma pista falsa. É justamente
agora que eles são absolutamente fundamentais! Agora é que é a
hora! Antes, meu professor de história lá em Ituverava nos colocava
copiando a aula dele no quadro negro. Sim, nós fomos a geração copy
and paste – copia e cola. Hoje, isso é absolutamente desnecessário.
A informação está disponível em todo lugar. Não precisamos copiar
do quadro-negro. Então agora, sim, o professor é indispensável.
Assim como o jornalista, o líder empresarial... Por que? Para selecionar o que é relevante, filtrar, provocar, estimular, debater, inspirar,
causar insights. Enfim, hoje precisamos de agentes de discernimento
– talvez a palavra-chave da era em que vivemos. Discernimento hoje
é o ouro em pó.
Dimenstein: Agora tem o drama da velocidade. Tas: Mas isso sempre houve. Dimenstein: Sim, mas se hoje você passar um mês sem se conectar,
já fica defasado. 200
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Tas: A gente pensa que agora é que o mundo está veloz. Mas o fundamental não muda tanto. A criação das coisas fundamentais continua do mesmo jeito. O surgimento de um João Gilberto, de um
Mozart, de um Michael Jackson ocorre com a mesma frequência de
antes. Não existe uma produção gigantesca de gênios de uma hora
para outra. Existe uma diferença fundamental: a velocidade da publicação do conhecimento. Isso é absolutamente novo. Aí é que entra o
diferencial da velocidade na era digital. A primeira representação de uma sala de aula de que se tem
notícia é uma pintura da Renascença, de um artista chamado Giorgio Vasari. É a representação de uma sala de aula na Idade Média.
O estudo e o conhecimento das coisas, claro, já existia, mas não se
publicava. A pintura parece uma foto da maioria das salas de aula
onde eu e você estudamos, com o professor na frente falando, e os
“alunos” na classe, sonolentos, copiando do quadro ou só ouvindo.
Depois, na Renascença, a novidade: a explosão de conhecimento
acontece com a publicação. Mesmo assim, com a revolução da
prensa de Gutenberg, a possibilidade de publicação ainda estava nas
mãos de poucos, dos donos das estruturas de poder para publicar
um livro, por exemplo. Eram estruturas muito grandes, proporcionalmente, como são as emissoras de televisão ou grandes editoras
de revistas e jornais atuais.
Quando comecei a trabalhar com TV, lá nos anos 80,
quando fundamos a Olhar Eletrônico, só os donos de emissoras de
televisão é que podiam publicar programas de televisão. A revolução que vivemos agora é que a publicação vem de todos os lados!
Qualquer garoto pode publicar seu programa de televisão no YouTube. Se um cara do interior do Espírito Santo tem um filme ou
ideia relevante, ele pode publicar e causar uma fricção da sua ideia
com alguém em São Paulo, Oxford, Harvard, Londres, Singapura
ou Hollywood. 201
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Dimenstein: Ou seja, o mundo virou uma grande comunidade de
aprendizagem. Tas: Exato. Sem limites geográficos e com uma democratização de oportunidades inédita.
Dimenstein: De qualquer forma, o mundo virou a sua Ituverava,
porque a rua e a escola viraram... Tas: Ou a minha Nova York. Dimenstein: Na verdade, a sua Ituverava nunca o deixou. Você a
levou para Nova York, para São Paulo, para o Rio... De alguma forma,
essa busca de união entre a rua e o ensino formal sempre esteve presente – no Rá-Tim-Bum, no Telecurso, no CQC etc. De alguma forma,
a comunidade de aprendizagem foi um pouco a sua lógica. Você
sempre foi guiado pela ideia de aprender em tudo quanto é canto e
lugar: no mundo digital, no vídeo, no teatro, na dança, na ECA, na
Poli... Daí, sua atuação como educomunicador – educador e comunicador – faz todo sentido também.
Tas: Este momento da vida em rede em alta velocidade é muito rico de
possibilidades para aperfeiçoar, multiplicar e democratizar o conhecimento. O que realmente importa é o que vale desde sempre: ter
conversas de qualidade. Sigo o lema daquela canção brega do Odair
José, grande artista popular brasileiro: “O importante é o verdadeiro
amor”. O importante é a história que toque o coração do outro. Assim
começa a interação. Pode ser pelo Twitter, Facebook, um filmezinho
de cinco reais ou de 500 milhões de dólares. Não importa o meio,
mas a troca. O que cada pessoa leva para o resto de sua vida é o que
lhe toca o coração.
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Dimenstein: Em nossa conversa, o tempo todo você colocou o aprendizado como emoção. O ato de aprender de forma intensa é o ato de
se emocionar. E a comunicação o levou a emocionar as pessoas.
Tas: E ser emocionado. Na comunicação em rede, o importante é
estar aberto, o que é uma tarefa bem difícil. Ser emocionado é muito
importante para nós, seres da transição, que viemos do mundo analógico, com muitas certezas, às vezes não nos deixamos emocionar
porque pensamos que já sabemos tudo. Aí não nos permitimos
ouvir ou encontrar alguém, geralmente alguém mais jovem, que vai
modificar nossa vida. Dimenstein: Você disse que encontra sentido na diversão, que a
diversão o leva ao aprender, que significa se conhecer. Você encontra
sentido na diversão e naquilo que o emociona por ter aberto uma
possibilidade. Seus aprendizados são motivados pelas emoções. Por
isso talvez a educação seja difícil hoje: se não se conseguir emocionar de alguma maneira a pessoa, não há aprendizado. Porque a palavra emoção, no latim, significa “mover”, é o que move. Tas: Então... Deve ser por isso que quando um garoto hoje diz: “Isso
não me emociona”, devemos procurar outras coisas que possam
movê-lo. Existe tanta concorrência ao redor para os olhos desses
garotos e garotas! Eu entendo e tenho compaixão pelo drama atual do
professor. É uma concorrência muito grande: os games, o Facebook,
o filme que acabou de sair, o celular... Muitas vezes, o garoto está
diante de uma aula que não o move e tem o mundo inteiro potencialmente se movendo dentro do celular dele! Por que ficar prestando
atenção na aula? Por isso, respeito, admiro e valorizo o professor
que, talvez naquele momento da vida, dentro da sala de aula, é o cara
que pode mudar a vida daquele garoto com a palavra.
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Aperfeiçoar a comunicação em rede talvez seja a chave para todos
nós, juntos, descobrirmos formas de como aproveitar melhor o
tempo. Se conseguirmos deixar as pessoas motivadas, num estado
de paixão, de prazer com o que elas estão fazendo, o aproveitamento
do tempo é mais eficiente e divertido. A minha vida hoje é centrada na interação em rede, especialmente com jovens. É uma molecada que me ensina diariamente
algo importante: eles não têm medo de errar. Repare: geralmente
o pai não sabe usar o celular, mas o moleque da casa sabe. Chega o
DVD novo, alguém diz: “Chama o gênio da casa”, aí aparece aquele
sobrinho de 12 anos. Voce acredita mesmo, Gilberto, que esses
moleques são mais inteligentes que um adulto? Não, eles não são
mais inteligentes, mas têm uma diferença fundamental em relação
aos adultos: eles não têm medo de errar. Saem apertando os botões e
telas sem medo de “pagar mico” e acabam aprendendo por tentativa
e erro, justamente. O adulto, do alto da sua arrogância, muitas vezes,
prefere rogar uma praga no aparelho e colocar a culpa na tecnologia.
O adulto inventou que não pode errar, o que significa no mundo
veloz em que vivemos que o adulto não sabe aprender. Há toda uma
geração de adultos sendo excluídos da revolução digital por arrogância. O adulto geralmente cria um distanciamento porque tem medo
do erro. E hoje temos que aprender a descobrir o mundo através da
interação. De forma coletiva e colaborativa. Em rede.
Dimenstein: Então você está tocando num ponto crítico, ou seja, um
drama da escola: é que ela ensina as respostas certas. Tas: Exatamente. A maioria das escolas promove um elogio ao erro
ao acentuar que não podemos errar. Ela dá poder para o erro. O erro
é rei. A molecada digital não dá importância ao erro. Eles vivem
usando e aperfeiçoando coisas que estão literalmente em estado
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“Beta”– em testes, em fase de desenvolvimento. O erro não é um
obstáculo. Pelo contrário, é parte do aprendizado – a gente erra e
aprende, erra e aprende. Dimenstein: A escola tem que ser uma casa de curiosidades e de
experimentações, onde o erro seja o grande mestre. Tas: O erro pode ser um grande mestre. E vou dizer outra coisa
que pode parecer estranha: a escola também deve ser um lugar de
desaprender o que consideramos essencial, definitivo. Geralmente a
escola guarda verdades absolutas num cofre forte: “Não, isto daqui
deve ficar aqui muito bem guardado, não quero desaprender isto
aqui”. Neste mundo veloz e colaborativo, às vezes temos de abrir
mão daquilo que aprendemos porque o prazo de validade pode ter
vencido. Precisamos às vezes desaprender o que sabemos para abrir
espaço para aprender coisas novas e necessárias.
Dimenstein: Foi Thomas Edison que, diante da pergunta: “Quantas
vezes voce errou até inventar a lâmpada?”, respondeu: “Nenhuma.
Eu descobri, sim, 902 jeitos de como não fazer a lâmpada”. Tas: O diretor de teatro Antunes Filho, que foi meu mestre lá no
início da vida profissional, falava assim: “Não guardem seus passarinhos mortos dentro da caixa”. Deixava todo mundo um tanto
confuso. Os passarinhos são aquelas ideias que numa parte da vida a
gente acha geniais e fica estocando, guardando para uma eternidade
que nunca vai chegar. O passarinho, a ideia, pode até nascer viva e
exuberante. Mas se a gente quiser cristalizá-la, mantê-la com força,
a ferro e fogo, apertada entre os dedos... Ela pode envelhecer ou
morrer sufocada. “E, depois que o passarinho morre, vocês ainda o
colocam debaixo do travesseiro e ficam guardando, convivendo com
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aquele cadáver pelo resto de suas vidas”, dizia o velho Antunes. Às vezes,
a gente se apega a coisas que foram relevantes numa época.
Dimenstein: Não queremos nos desapegar. É preciso inovar e... Tas: E abrir mão – inclusive e principalmente – até do sucesso, do
que deu certo durante um tempo.
Dimenstein: Só mais uma coisa, Marcelo: e as dificuldades durante
a aprendizagem? Porque, afinal, aprender nem sempre é prazeroso.
Às vezes a recompensa está só lá no fim do processo. Crescer, para
você, deu trabalho, não foi? Tas: Claro, toda vez que falo de diversão, é importante entender isso.
Estudar engenharia na Escola Politécnica ou mesmo semiologia
na Escola de Comunicação da USP nem sempre foi diversão. Quer
dizer, às vezes o estudo é penoso, às vezes fazer o CQC é penoso –
são 40 pessoas trabalhando, é uma tarefa árdua produzir as reportagens, apurar fatos, escrever o texto, inventar quadros novos.
Dimenstein: Você está diferenciando diversão de entretenimento.
Entretenimento é se divertir sem fazer força; a diversão que é estimulante e criativa é um trabalho de disciplina. Tas: O legal é eleger a diversão mais sublime possível, que é conhecer
a si mesmo, conhecer pessoas, conhecer o mundo. Porque o período
que passamos aqui nesta vidinha é muito curto. Então, buscar outra
dimensão para o que estamos fazendo nesse período tão curto sobre
a Terra é uma diversão muito ambiciosa e especial. Dimenstein: Você já está descobrindo?
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Tas: Eu estou sempre a caminho da descoberta. Sempre a caminho.
Acho que estar na trilha já é uma maneira de me colocar para a descoberta. Às vezes descubro umas coisinhas.
Dimenstein: Encerro esta conversa dizendo que, para mim, está
muito claro o seu caminho. Talvez ele tenha várias trilhas diferentes,
mas o seu caminho de compartilhar o que você aprende, de aprender a toda hora, com qualquer pessoa, desde o seu avô analfabeto
até os mestres que você foi encontrando e que o encantaram na vida
profissional, de alguma forma fez parte desse trajeto todo. Tas: Então vou ler este livro, para tentar entender tudo isso (risos).
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