O ano da biodiversidade: um panorama dos principais temas

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O ano da biodiversidade: um panorama dos principais temas
Abril 2010
Vol.6 No.1
ISSN: 1813-4378
Pontes
ENTRE O COMÉRCIO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
O ano da biodiversidade:
um panorama dos principais temas
1
O ano da biodiversidade: um
panorama dos principais temas
4
A implementação da retaliação
brasileira no caso do algodão
Ben Cote e Fabio Weinberg Crocco
6
Riscos e oportunidades na retaliação
cruzada em propriedade intelectual
Pedro Paranaguá
7
Procurado: novo modelo para o
multilateralismo
Guy de Jonquières
8
A OMC é o canário na mina
Juliana Peixoto Batista
9
Depois de Copenhague: próximos
passos em agricultura
Marie Chamay
11 Tratado de Lisboa: efeitos da reforma
institucional na UE
13 As eleições nos EUA e as negociações
da Rodada Doha
Trineesh Biswas
14 Cooperação Brasil-Angola na produção
de etanol
Rafael Vaisman
Entre os males provocados ao meio ambiente pela atividade humana, a perda da diversidade de
vida no planeta revela-se uma ameaça cada vez mais preocupante. No ano da biodiversidade, o
Pontes apresentará uma série de artigos sobre os principais tópicos relacionados ao tema, com
destaque para a interface deste com o comércio. Neste artigo – o primeiro da série – é apresentado
um panorama da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), suas metas e desafios para 2010.
Em 2009, os esforços para avançar na agenda
ambiental internacional concentraram-se no
tema das mudanças climáticas (MCs) – uma
agenda que se estende em 2010. E, aliada a essa
difícil agenda, ainda teremos outra frente de
negociações: biodiversidade no mundo.
O conceito de biodiversidade inclui não apenas
a multiplicidade de espécies existentes no
planeta, como também as variações genéticas verificadas dentro de cada espécie. Esta
variedade determina tanto a riqueza quanto
a singularidade dos organismos. Outro aspecto
da biodiversidade encontra-se na variedade de
ecossistemas, como oceanos, florestas, desertos
e pântanos. A rede formada por cada um desses
sistemas possui um equilíbrio particular, dentro
do qual a vida de cada organismo depende de
sua interação com o ecossistema.
Atualmente, cerca de 17 mil espécies (de
aproximadamente 47 mil identificadas) estão
ameaçadas de extinção. No que toca às classes,
a situação engloba 21% dos mamíferos, 30% dos
anfíbios, 12% das aves, 28% dos répteis, 37%
dos peixes e 70% das plantas já catalogadas.
A abundância de espécies foi reduzida em 40%
entre 1970 e 2000. A população de peixes no
norte do Atlântico diminuiu em 66% nas últimas
cinco décadas. A cobertura de corais da região
do Caribe foi reduzida de 50% para 10% em trinta
anos. Estima-se que 99% desta ameaça resulte
da ação humana, sendo a degradação do meio
ambiente o principal elemento causador: desde
2000, aproximadamente 6 milhões de hectares
de floresta nativa foram eliminados a cada ano1.
As MCs também contribuem de forma significativa para esse cenário. O aquecimento global
representa um fator importante de modificação
dos habitats, o que pode causar danos irreversíveis, mesmo que as metas estabelecidas na
Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre
Mudança do Clima (UNFCCC, sigla em inglês)
sejam alcançadas. Segundo previsões científicas, a elevação de apenas 1ºC na temperatura
atmosférica pode causar o desaparecimento de
diversas espécies que se encontram no limiar
Você sabia?
Quantas espécies estão ameaçadas de extinção atualmente?
Fonte: IUCN
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Es pa ç o a be r t o
Editorial
Estimado(a) leitor(a),
Ao final do primeiro trimestre de 2010, podemos
observar a busca dos diversos atores em avaliar
os frutos do ano anterior e retomar os esforços
para avançar nos temas definidos como prioridade. Nesta pauta, a questão da ameaça à diversidade biológica do planeta foi posta no topo
da agenda, na medida em que as Nações Unidas
apontaram 2010 como o ano da biodiversidade.
Neste sentido, diversas instâncias de debate e
negociação têm promovido eventos com o intuito de reverter o quadro de crescente velocidade do desaparecimento de espécies e degradação dos ecossistemas. Frente a este cenário,
o artigo de abertura desta edição apresenta os
desafios e metas da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), principal marco jurídico
e esfera multilateral para regulamentação do
tema. Este será o primeiro de uma série de artigos que procurarão abordar a interface entre
a biodiversidade e o comércio.
No âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), aproveitou-se o momento para a
realização de um balanço sobre o avanço das
negociações após a Conferência Ministerial realizada em novembro passado, em Genebra.
Nesse sentido, o artigo de Juliana Peixoto aborda a relação entre os entraves na Rodada Doha
e as alterações no equilíbrio de poder entre os
países. Também o texto de Guy de Jonquières
discute o impasse nas negociações multilaterais – e sua relação com a nova configuração
mundial de poder –, sob o enfoque do modelo
proposto por Robert Howse, em artigo publicado na edição anterior do Pontes.
Enquanto a Rodada permanece adormecida, o
sistema de solução de controvérsias continua
a se desenvolver. Nas últimas semanas, uma
das disputas paradigmáticas caminhou para o
desfecho - o contencioso iniciado pelo Brasil
contra os subsídios concedidos pelos Estados
Unidos da América (EUA) ao setor de algodão.
A iniciativa do Brasil em impor medidas retaliatórias contra bens e direitos de propriedade
intelectual dos EUA foi abordada em dois artigos desta edição. O texto de Pedro Paranaguá
analisa em mais detalhe as implicações da opção pela retaliação cruzada, recurso polêmico
ainda não implementado na história da OMC.
A partir deste mês, as atenções voltam-se para
a corrida eleitoral no plano nacional – com as
eleições presidenciais no Brasil – e internacional – em vista da disputa por assentos no Congresso dos EUA. O Pontes buscará analisar como
as agendas de comércio e meio ambiente têmse inserido nas plataformas dos candidatos,
bem como o impacto recíproco das nomeações
e dos arranjos formados entre os diferentes
braços do governo para as negociações internacionais. O artigo de Trineesh Biswas apresenta
esta última perspectiva em relação aos EUA, ao
discutir os principais fatores da política eleitoral estadunidense que influenciaram o avanço
nas discussões da Rodada Doha.
Esta edição traz ainda uma análise sobre a reforma nas instituições comunitárias da União
Europeia implementada por meio do Tratado de
Lisboa, com enfoque em sua repercussão para
a condução das relações exteriores e da política comercial do bloco. Outro assunto abordado
foi o prosseguimento da agenda das mudanças
climáticas, com um artigo sobre os avanços do
tema para a agricultura.
Esperamos que aprecie a leitura.
Equipe Pontes
2
Pontes Abril 2010 Vol.6 No.1
da extinção. A produção alimentar também pode sofrer sérios prejuízos pela perda de
organismos que contribuem para o processo produtivo.
Diante dessa realidade, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU)
declarou 2010 como o ano da biodiversidade. A iniciativa tem como propósito engajar
todos os setores da comunidade internacional na luta contra essa ameaça ao meio
ambiente. Segundo a declaração emitida pela Assembleia Geral, o primeiro passo
nesse sentido consiste em elevar a consciência sobre a importância da biodiversidade,
demonstrando o custo humano representado por sua perda. O mesmo documento confere
ao Secretariado da CDB a tarefa de elaborar e gerir um programa de eventos ao longo
do ano2. Destes, um dos principais encontros ocorrerá entre 18 e 29 de outubro deste
ano, em Nagoya (Japão): a 10ª Conferência das Partes (COP, sigla em inglês) da CDB.
O regime internacional da biodiversidade
A preocupação com as consequências do quadro mencionado acima deu origem à criação
do regime internacional para a conservação da biodiversidade. Em 1973, um grupo de
21 países assinou a Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Flora
e da Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (Cites, sigla em inglês). Atualmente, o
documento conta com a adesão de 175 países.
A Cites busca regulamentar, por meio de sistemas de certificados, o comércio de
espécies ameaçadas de extinção, ou que correm o risco de chegar a esta situação.
Os objetos de controle são definidos por acordos renovados periodicamente, e
encontram-se listados nos anexos do documento da seguinte forma: Anexo I – espécies
ameaçadas de extinção, cujo comércio é autorizado apenas em casos excepcionais;
Anexo II – espécies não necessariamente ameaçadas de extinção, cujo comércio é
regulado para evitar utilização incompatível com a sobrevivência desse grupo; e
Anexo III – espécies protegidas por ao menos um país, que exigem a cooperação das
demais Partes para controlar sua comercialização.
À exceção do Anexo III, que pode ser alterado unilateralmente por qualquer uma das
Partes, a inclusão de espécies nos Anexos I e II ocorre por decisão da COP, órgão composto
por todos os membros da Cites. A cada reunião da COP, os países apresentam propostas
para alteração das listas, as quais são submetidas a discussão e votação.
O marco regulatório internacional foi expandido com a assinatura da CDB, que se tornou o principal instrumento jurídico para a biodiversidade. A adoção dessa Convenção
foi oficializada durante a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento – conhecida como ECO-92 –, realizada em junho de 1992, no Rio de
Janeiro. A CDB constituiu um dos acordos-chave do encontro, no qual os líderes mundiais concordaram em buscar o desenvolvimento de forma sustentável, preservando os
recursos do planeta para as gerações futuras.
A CDB possui três objetivos principais: conservação da diversidade biológica; uso sustentável de seus elementos; e repartição equitativa dos benefícios decorrentes do uso de
recursos genéticos. Na 6ª COP, realizada em 2002, as Partes da Convenção assumiram o
compromisso de reduzir significativamente, até 2010, a taxa de perda de biodiversidade
em âmbito global, regional e nacional. Contudo, ainda não foram definidas obrigações
específicas ou metas quantificadas a serem cumpridas pelas Partes.
A exemplo do que ocorre com a UNFCCC e a Cites, o processo decisório concentrase na COP, órgão máximo da CDB. Esta instância possui competência para revisar
os progressos alcançados, identificar novas prioridades, criar órgãos subsidiários
e alterar o conteúdo da Convenção.
Por sua vez, o Secretariado desempenha as atribuições operacionais e burocráticas. Ligado
ao Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e sediado em Montreal,
o Secretariado organiza as reuniões e elabora os textos-base para as negociações, além
de assistir aos Membros na implementação de seu programa de trabalho. Existe também
o Órgão de Apoio Científico, Técnico e Tecnológico (Sbstta, sigla em inglês). Ainda,
foram criados quatro grupos de trabalho, voltados aos seguintes temas: i) negociação
do regime de acesso e repartição de benefícios (ABS, sigla em inglês); ii) proteção do
conhecimento tradicional; iii) áreas protegidas; e iv) estratégias e planos de ação nacional.
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Pontes Abril 2010 Vol.6 No.1
Ponto sensível: temas de viés econômico
De maneira semelhante ao que ocorre no âmbito da UNFCCC,
a interface de alguns aspectos do mandato da CDB com a seara
econômica representa um obstáculo ao avanço das negociações
sobre biodiversidade. Um destes pontos constitui o Access
and Benefit Sharing (ABS, sigla em inglês) - os benefícios
decorrentes da utilização de recursos genéticos. Enquanto a
maior parte da diversidade genética encontra-se em países
em desenvolvimento (PEDs), tais recursos são geralmente
explorados por pesquisadores e empresas de países desenvolvidos (PDs). Os benefícios oriundos da comercialização de
produtos desenvolvidos a partir destes recursos muitas vezes
não são compartilhados com os países de origem.
Embora diversos países tenham avançado em relação ao ABS por
meio de legislações que disciplinam o acesso a seus recursos
genéticos (como Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Peru e
Venezuela), as Partes da CDB ainda não lograram alcançar um
acordo sobre o tema. Apesar das iniciativas do grupo de países
megadiversos3 no sentido de instituir um acordo vinculante
sobre ABS, as negociações durante a última COP não alcançaram
este objetivo. Os representantes de diversos PDs insistiram
em concentrar a discussão nos aspectos procedimentais das
negociações, o que impediu avanços nas questões substanciais.
Outro tópico que apresenta progresso tímido consiste na
proteção das formas de conhecimento tradicional como
fonte de acesso aos recursos genéticos. A CDB reconhece
o direito de populações indígenas e outras comunidades
tradicionais a receber informação acerca da exploração de
seus recursos. Igualmente, confere a esses grupos o direito
de autorizar ou não a exploração, bem como de receber
uma parcela de eventuais benefícios decorrentes desta.
Contudo, a disciplina deste propósito ainda não adquiriu
contornos mais definidos, o que se reflete em uma situação
prática de implementação deficitária destes dispositivos.
Sob a disciplina da Cites, as discussões para inclusão de novas
espécies na lista do Anexo I, assim como para a definição
de exceções de autorização ao comércio, têm sido marcadas por divergências e impasses. Exemplo disso foram os
debates sobre a inserção do atum rabilho neste rol, espécie
cuja população sofreu acentuada redução nos últimos anos.
Apesar do apoio da União Europeia (UE) e dos Estados Unidos
da América (EUA), a proposta foi derrotada por iniciativa do
Japão, maior importador no mundo desse peixe.
Também causou debates acirrados o recente pedido de autorização feito por Tanzânia e Zâmbia para a venda de seus estoques
de marfim. Os países buscavam uma exceção à proibição do
comércio do produto – já que os elefantes são classificados
como espécie ameaçada sob a Cites. Apesar da alegação
de que os estoques teriam origem legal, as Partes reunidas
decidiram pela rejeição do pedido, sob o argumento de que a
abertura do comércio estimularia a caça ilegal e predatória.
Desafios à frente
O ano da biodiversidade foi lançado oficialmente em 11 de
janeiro, com o objetivo de relembrar o compromisso de reduzir
significativamente a perda de biodiversidade até 2010 – principalmente, diante da falta de evidências que apontem para
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Espaço aberto
avanços nesse sentido. Na abertura do evento, a anfitriã Angela
Merkel, primeira-ministra alemã, sustentou que o tema da
biodiversidade possui relevância equiparável àquela das MCs.
Para tanto, os esforços pela conservação precisam acarretar
uma reversão da tendência atual, tão urgente quanto aquela
necessária para combater o aquecimento global.
Merkel reconheceu que o regime jurídico da biodiversidade
terá que ser aprimorado no que toca aos acordos e sua implementação, bem como em termos de estrutura institucional.
O regime também carece de uma base científica mais sólida
e sistematizada para embasar as negociações e decisões
políticas. Nesse sentido, a chanceler recomendou a criação
de um órgão nos moldes do Painel Intergovernamental sobre
a Mudança do Clima (IPCC, sigla em inglês), a fim de prover
bases técnicas para a tomada de decisões.
Avançar na definição de obrigações específicas e no detalhamento dos acordos constitui desafio ainda maior para a CDB,
na medida em que implica passos árduos do ponto de vista
político, como no caso do ABS.
Até o momento, os progressos mais significativos têm sido
alcançados em âmbito nacional. Dentre os exemplos de
política pública bem-sucedida, destaca-se o programa
adotado por Uganda para a proteção de áreas de vida selvagem, com base no qual parte da renda arrecadada com
o turismo é revertida para a conservação pela população
local. Ressalta-se, ainda, a legislação florestal editada pela
Costa Rica, em 1996, que inclui provisões para compensar
os proprietários que preservarem a mata nativa dentro de
suas propriedades. Iniciativas como essas contribuíram para
reduzir o ritmo do desaparecimento de espécies ou o avanço
da ameaça à sua sobrevivência.
Contudo, a reversão da tendência exigirá muito além destes
esforços. O modelo de desenvolvimento da maior parte dos
países continua fortemente fundamentado na lógica econômica de extração de recursos de forma negligente à sua
preservação. Um aspecto agravante no caso da biodiversidade
consiste no caráter muitas vezes irreversível do dano. Além
dos impactos negativos já identificados – como no caso da
produtividade agrícola – a perda incontornável da variedade
genética possui consequências não plenamente conhecidas.
A despeito desse quadro, a ameaça da extinção parece
distante no consciente de boa parte da população mundial.
Assim, as iniciativas programadas para o ano da biodiversidade
são bem-vindas, já que a disseminação de informação e o
aumento da consciência acerca da magnitude do problema
podem contribuir para a reversão desse cenário. Contudo,
o avanço no quadro jurídico e na formulação de políticas
requererá maior mobilização de esforços e vontade política,
tanto por parte das lideranças mundiais quanto dos demais
atores no âmbito nacional.
1 Dados do relatório International Union for Conservation of Nature Red List
2009, disponível em: <http://www.iucnredlist.org>.
2 Ver: <http://www.CDB.int/2010/welcome/>.
3 O grupo, formado pelos principais países detentores de biodiversidade,
busca a celebração de um protocolo vinculante para a repartição de
benefícios, nos moldes do Protocolo de Cartagena sobre biossegurança,
que disciplina o comércio e a disseminação de organismos geneticamente
modificados (OGMs) no âmbito da CDB. Ver: <http://ictsd.org/i/news/
pontesquinzenal/72730/>.
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OM C e m f o c o
Pontes Abril 2010 Vol.6 No.1
A implementação da retaliação brasileira
no caso do algodão
Ben Cote*
Fabio Weinberg Crocco**
A retaliação brasileira à não retirada dos subsídios indevidos concedidos pelos Estados Unidos da América (EUA) a seus produtores de algodão materializou-se, em março, com a publicação das listas de bens estadunidenses que terão sua importação
sobretaxada. O potencial impacto das medidas retaliatórias contribuíram para a reabertura do diálogo entre autoridades
brasileiras e estadunidenses. Enquanto os termos do acordo estão sendo negociados, a vigência das medidas foi postergada.
O desenrolar do contencioso do algodão observou uma
guinada ao longo dos últimos meses, na medida em que o
Brasil tomou iniciativas para consumar o direito de retaliação reconhecido pelo Órgão de Solução de Controvérsias
(OSC). O governo brasileiro divulgou, em março, duas listas
que englobam medidas de retaliação1 contra os EUA. O
processo de implementação da retaliação marca uma nova
etapa no litígio que se prolonga há oito anos. Vale lembrar
que, em 2005, o OSC entendeu que os subsídios concedidos
pelo governo estadunidense a produtores e exportadores
de algodão violavam a normativa multilateral de comércio.
Diante da falha dos EUA em adequar sua política interna, o
OSC autorizou o Brasil a adotar contramedidas até o limite
de US$ 829 milhões, o segundo maior valor em retaliação
já autorizado na história da Organização.
Em 8 de março, o governo brasileiro publicou a lista final
dos bens estadunidenses que terão as alíquotas de Imposto
de Importação elevadas. A medida, introduzida no ordenamento nacional pela Resolução No. 15 da Câmara de
Comércio Exterior (Camex), deveria entrar em vigor 30
dias após a publicação. Dentre os 102 produtos contidos no
rol, encontram-se: pneus, automóveis, cosméticos, artigos
de higiene e alimentos. A majoração tarifária é variável e
inclui aumento de 14% para produtos farmacêuticos e 100%
para produtos de algodão. Segundo estimativas brasileiras, o prejuízo aos exportadores dos EUA corresponderá
a US$ 591 milhões. Para Carlos Márcio Cozendey2, diretor
do Departamento Econômico do Ministério das Relações
Exteriores (MRE), ao selecionar tão ampla lista de bens, o
Brasil pretende maximizar a pressão exercida sobre o governo
dos EUA pelos diferentes setores afetados pela retaliação.
A fim de adaptar a legislação brasileira de modo a possibilitar o uso da prerrogativa, o governo editou, em 10
de fevereiro passado, a Medida Provisória (MP) n. 482.
O instrumento regulamenta a aplicação de medidas que
suspendam vantagens relativas aos direitos de propriedade
intelectual, em caso de descumprimento de obrigações
decorrentes dos Acordos da OMC.
A MP enumera as medidas que podem ser adotadas, bem
como o procedimento necessário à sua imposição. Seis tipos
de medida são contemplados: i) suspensão de direitos de propriedade intelectual; ii) limitação de direitos de propriedade
intelectual; iii) alteração de medidas para a aplicação de
normas de proteção de direitos de propriedade intelectual;
iv) alteração de medidas para obtenção e manutenção de
direitos de propriedade intelectual; v) bloqueio temporário
de remessa de royalties ou remuneração relativa ao exercício de direitos de propriedade intelectual; e vi) aplicação
de direitos de natureza comercial sobre a remuneração do
titular de direitos de propriedade intelectual.
Além da divulgação da lista de retaliação em bens, vale
destacar que o governo brasileiro também foi autorizado
a impor medidas de suspensão de concessões ou obrigações relativas adireitos de propriedade intelectual e a
serviços. As autoridades de comércio do país já deram
os primeiros passos nessa direção.
Em relação ao procedimento necessário à imposição das
medidas acima mencionadas, a MP estabeleceu que a etapa
inicial consistirá na apresentação, pela Camex, de um relatório
preliminar contendo uma minuta das medidas e sua respectiva
fundamentação. Em seguida, deve ser aberto prazo de 20 dias
para manifestações acerca do relatório preliminar. Após a
consulta pública, a Camex emitirá o parecer final. Caso seja
sugerida a aplicação de medida que não esteja contida no
relatório preliminar, todo o procedimento deverá ser repetido.
De acordo com o artigo 22 do Entendimento Relativo a Normas
e Procedimentos sobre Soluções de Controvérsia (DSU, sigla
em inglês) da Organização Mundial do Comércio (OMC), caso
Com a alteração legislativa necessária, o governo deu o primeiro passo para implementar a retaliação cruzada. Editada
em 12 de março passado, a Resolução Camex n. 16 instaurou
Propriedade intelectual: o próximo passo
4
a retaliação contra o mesmo setor – ou relativa ao Acordo
da OMC – em que a violação ocorreu não seja “prática”
ou “efetiva” para o país ofendido, este poderá, mediante
autorização, adotar medidas retaliatórias em outro setor. Tal
prática é conhecida como “retaliação cruzada”. Com base
nessa prerrogativa, em agosto de 2009, um painel arbitral da
OMC autorizou o Brasil a retaliar os EUA nas áreas de serviços
e de propriedade intelectual. De acordo com a decisão, a
aplicação de contramedidas nessas áreas poderá alcançar o
montante de US$ 238 milhões, ao longo de um ano.
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Pontes Abril 2010 Vol.6 No.1
OMC em foco
o procedimento de consulta pública com vistas à aplicação de
medidas relacionadas a direitos de propriedade intelectual.
profunda e duradoura”3. No entanto, alguns analistas acre-
No que se refere aos direitos de patentes, as medidas previstas
na última lista incluem quatro formas de sanção: o governo
brasileiro poderá retaliar na produção, comercialização,
importação e licenciamento de produtos. A lista contém, ainda,
restrições a direitos autorais, tais como o licenciamento de
direitos sobre obras literárias e sobre a exibição pública de
obras audiovisuais. Também, prevê a aplicação de direitos
de natureza comercial sobre a remuneração decorrente de
direitos de autor relativos a programas de computador.
principal parceiro comercial do Brasil – não deverão tomar
Caso qualquer medida prevista na Resolução Camex n. 16
seja implementada, o Brasil será o primeiro membro da
OMC a aplicar retaliação cruzada em propriedade intelectual. O OSC já autorizou este tipo de retaliação em
outras oportunidades, porém os países reclamantes não
chegaram a implementar as medidas cabíveis.
iminência da aplicação das sobretaxas a seus produtos, os
A instauração do processo de consulta pública deve estimular
empresas estadunidenses potencialmente afetadas pelas
medidas brasileiras a pressionar o governo dos EUA pela
adequação do programa de subsídios às regras da OMC. Na
prática, a pressão dos representantes do setor algodoeiro pela
manutenção do apoio será contrabalanceada pelas indústrias
cinematográfica e farmacêutica.
de novos termos para o funcionamento do programa de
Em contrapartida, as ameaças de represália dos EUA, embora
proferidas em tom diplomático, incentivam parcela da indústria
brasileira a refutar a imposição de medidas de retaliação,
principalmente na área de propriedade intelectual. Este quadro
demonstra como os atores influem em diferentes sentidos,
em cada esfera de negociação. A coexistência desses focos de
pressão torna o processo de retaliação e negociação bastante
complexo, para ambos os lados.
Estratégias e consequências
ditam que os EUA – país que recentemente deixou de ser o
medidas drásticas, já que o país temeria perder a influência
econômica na América do Sul.
Primeiros passos rumo à solução negociada
Paralelamente aos anúncios das sanções, o governo brasileiro
continuou a reiterar a sua preferência por uma solução amigável da controvérsia. Antes da aplicação efetiva da primeira
leva de sanções, esta disposição rendeu frutos. Diante da
EUA apresentaram uma proposta de compensações, a fim de
evitar a concretização da retaliação.
A proposta concentra-se em três concessões: (i) a criação
de um fundo para financiar a cotonicultura brasileira, no
valor de U$ 147 milhões anuais; (ii) a negociação bilateral
garantia de crédito à exportação GSM-102, que subsidia
compradores estrangeiros do algodão estadunidense; (iii)
medidas de cooperação na área de saúde animal, especialmente nos setores de carne, o que pode facilitar o acesso
da carne brasileira ao mercado dos EUA.
Diante da oferta estadunidense, o Brasil aceitou engajarse em novas negociações. Enquanto os representantes dos
países discutem os termos do acordo, a data de vigência
das medidas foi adiada por um período de 20 dias, que
pode ser prorrogado se os resultados das conversas forem
considerados satisfatórios.
Apesar dessa alteração nos rumos da disputa, governo e setor
privado no Brasil reconhecem que as soluções apresentadas
são temporárias. A resposta esperada pelo país só poderá ser
alcançada por meio da revisão da Lei Agrícola dos EUA, em 2012.
A opção pela via retaliatória pode acarretar novos atritos
com Washington e, por conseguinte, impactar negativamente
o fluxo comercial entre os dois países. Agentes do governo
brasileiro receosos acerca das consequências negativas da
medida afirmam que o Escritório de Representação Comercial
dos EUA poderá, por exemplo, recolocar o Brasil na lista de
observação prioritária – que inclui os países que não resguardam direitos de propriedade intelectual.
Como esta atribuição pertence ao Congresso – onde o lobby
Outra possível forma de represália apontada consiste na
suspensão de benefícios concedidos pelos EUA ao Brasil
pelo Sistema Geral de Preferências (SGP). Os benefícios do
programa, que alcança 10% das exportações brasileiras aos
EUA, correspondem a US$ 2,8 bilhões.
* Doutorando em Direito na Universidade de Michigan e integrante
do programa de Solução de Controvérsias do ICTSD.
Segundo John Murphy, vice-presidente pra assuntos internacionais da Câmara de Comércio dos EUA (Amcham, sigla
em inglês), “suspender a proteção ao direito à propriedade
intelectual de empresas americanas seria um ‘gol contra’,
afastando investimentos e prejudicando interesses de forma
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agrícola é muito influente –, os negociadores estadunidenses
não podem garantir que a reforma no esquema de subsídios
será aprovada. Contudo, o Brasil espera que a ameaça de
retaliação funcione como contrapeso às pressões internas,
permitindo que os programas de apoio sejam, afinal, trazidos
à conformidade com as regras do comércio multilateral.
**Aluno do nono semestre da graduação da Escola de Direito de
São Paulo da FGV, membro do Instituto de Analistas Brasileiros de
Comércio Internacional (ABCI Institute) e assistente jurídico do
escritório Lilla, Huck, Otranto e Camargo Advogados.
1 Essa decisão insere-se no contexto do contencioso “EUA – Subsídios ao
Algodão” (DS267) e foi autorizada pelo Órgão de Solução de Controvérsias
da OMC, em novembro de 2009.
2 Reuters. Brazil details US cotton retaliation, wants accord.
(08/03/2010).
Disponível
em:
<http://www.reuters.com/article/
idUSN0810219620100308>.
3 Folha de São Paulo. EUA pressionam para manter subsídios. (17/03/2010).
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OM C e m f o c o
Pontes Abril 2010 Vol.6 No.1
Riscos e oportunidades na retaliação
cruzada em propriedade intelectual
Pedro Paranaguá*
Diante do descumprimento da decisão do Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) por parte dos Estados Unidos da América
(EUA) no caso do algodão, este órgão da Organização Mundial do Comércio (OMC) autorizou a aplicação da retaliação cruzada
pelo Brasil. Nesse sentido, a Câmara de Comércio Exterior (Camex) abriu recentemente consulta pública sobre as medidas
que o Brasil poderá tomar na área de propriedade intelectual. Esse quadro representa um teste para a OMC, que pode ver
sua legitimidade ameaçada caso os EUA ignorem suas regras e incentivos para o cumprimento destas.
A retaliação cruzada pode – e deve – ser feita quando se
estabelece que a suspensão de concessões no mesmo setor
não será eficaz ou quando for mais prejudicial ao país
autorizado a estabelecer tais normas1. Se o aumento do
imposto de importação de alguns bens oriundos dos EUA
for mais desfavorável do que positivo para o Brasil, este
país tem o direito de suspender concessões e obrigações no
setor de propriedade intelectual, isto é, deixar de pagar
por direitos de patentes e direitos autorais.
No caso do algodão, a retaliação cruzada visa a incentivar que
os EUA cumpram a decisão da OMC, ou seja, que retirem os
subsídios ilícitos a seus produtores de algodão. Tal medida não
é permanente: dura apenas enquanto os EUA não obedecerem
à OMC2. Qual é a lógica desse incentivo? Ora, setores como
de entretenimento, biotecnologia, informática e químicofarmacêutico dos EUA logicamente não ficarão satisfeitos
com tal medida. Justamente porque tais indústrias possuem
tamanho poder econômico e político – e porque dependem de
pagamentos provenientes de propriedade intelectual –, pressionarão o governo dos EUA para que este retire os subsídios
contrários às regras da OMC. O Brasil está tomando a melhor
medida possível, dentro das regras da OMC, para incentivar
que os EUA passem a respeitar as regras do comércio mundial.
Se utilizada com inteligência, a retaliação cruzada pode beneficiar: i) os consumidores brasileiros, que pagarão menos ou não
precisarão pagar nada para comprar ou utilizar, por exemplo,
livros didáticos, softwares ou medicamentos patenteados de
empresas estadunidenses; ii) a indústria local, que poderá
lançar medicamentos genéricos; iii) o setor privado nacional
afetado pelas medidas ilegais dos EUA, que compensará as
perdas sofridas; iv) o governo, que fará com que as regras
internacionais sejam cumpridas por todos – a principal vantagem do multilateralismo; e v) a comunidade internacional,
uma vez que um dos países mais poderosos será obrigado a
cumprir as regras que acordou com os demais membros da OMC.
Cabe ressaltar que a ideia de retaliação é estadunidense.
De acordo com alguns analistas3, ao longo dos anos, os
EUA utilizaram recorrentemente esse sistema de forma
unilateral e contrária às regras da OMC4. Agora, o governo
e o setor privado dos EUA estão receosos de provar da
própria fórmula. Ainda que se sugira que o Brasil não está
respeitando os direitos de propriedade intelectual dos
EUA5, é certo que as medidas aplicadas pelo Brasil estão
em conformidade às regras da OMC e foram autorizadas
por seu sistema de solução de controvérsias.
6
O funcionamento do sistema da OMC está sob escrutínio. Seu
sistema de enforcement parece estar sob xeque-mate. Se
países poderosos ignorarem as regras, o sistema multilateral
de comércio pode começar a perder legitimidade.
Se um acordo diplomático não for alcançado – e o Brasil
seguir adiante com as contramedidas autorizadas –, será
interessante observar como o Brasil implementará a retaliação cruzada. Certamente, não será uma tarefa fácil.
Por exemplo, produtores locais de medicamentos podem
não ser incentivados por um possível licenciamento compulsório: é difícil investir em um produto que poderá ser
retirado do mercado em poucos meses. O Brasil terá de
ser prudente na escolha de quais direitos de propriedade
intelectual devem ser suspensos e como isso será feito.
Independentemente da decisão, em recente discurso no
Banco de Exportação e Importação dos EUA, o presidente
estadunidense Barack Obama afirmou que seu governo
utilizará seu “arsenal completo” para combater “práticas
que descaradamente prejudicam” a indústria dos EUA,
e isso inclui “fazer valer os tratados [internacionais]
existentes”6. Nesse caso, a questão que remanescerá é:
será que finalmente os EUA respeitarão suas obrigações
multilaterais perante a OMC, no setor de algodão?
* Mestre (cum laude) em direito da propriedade intelectual
pela Universidade de Londres e doutorando na mesma área na
Universidade de Duke. É professor da FGV-Rio e consultor.
1 Ver: Abbott, Frederick. Cross-Retaliation in TRIPS: Options for Developing
Countries. ICTSD Dispute Settlement and Legal Aspects of International
Trade Series, Issue Paper 8, p. 9.
2 Conforme artigos 22.1 e 22.8 do Entendimento Relativo a Normas e
Procedimentos sobre Soluções de Controvérsia (DSU, sigla em inglês).
3 Ver: Drahos, Peter; Braithwaite, John. Information Feudalism, The New
Press, 2002; Sell, Susan. Private Power, Public Law: The Globalization of
Intellectual Property Rights, Cambridge, 2003; e Sell, Susan. Power and
Ideas: North-South Politics of Intellectual Property and Antitrust, State
University NY Press, 1998.
4 Conforme artigos 3(2) e 3(2)(a) do DSU. Ver: United States — Section
110(5) of US Copyright Act (DS160), painel da OMC ressaltou que as
medidas unilaterais tomadas pelos EUA podem não ser compatíveis com o
sistema multilateral de solução de conflitos.
5 Ver: Dantas, Iuri. Brazil Said to Target U.S. Movies in Trade Dispute
(Update1), March 09, 2010, BusinessWeek. Disponível em: <http://www.
businessweek.com/news/2010-03-09/brazil-said-to-target-u-s-movies-intrade-dispute-update1-.html>.
6 Ver: The White House, Office of the Press Secretary, Remarks by the
President at the Export-Import Bank’s Annual Conference, 11 mar. 2010.
Disponível em: <http://www.whitehouse.gov/the-press-office/remarkspresident-export-import-banks-annual-conference>.
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Pontes Abril 2010 Vol.6 No.1
OMC em foco
Procurado: novo modelo para o
multilateralismo
Guy de Jonquières*
Na edição de novembro de 2009 do Pontes Bimestral, Robert Howse apresentou algumas propostas com vistas à retomada da
Rodada Doha. Contudo, duvido que estas sejam suficientes para acelerar as negociações. Pelo contrário: a concretização de
tais propostas poderia reduzir ainda mais o ritmo da Rodada – se isso for possível. Isso porque as recomendações de Howse
se concentram nos sintomas, ao invés de abordar as causas básicas da inércia.
Em seu artigo, o professor Howse sugere que poderia haver
progresso se os temas mais controversos da agenda fossem
deixados de lado. No entanto, Howse não menciona – e isso
tampouco é obvio – os temas que considera menos controversos, sobre os quais já seria possível a obtenção de consenso
entre os membros da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Constitui um curioso paradoxo o fato de que a hegemonia dos
EUA, necessária para criar e manter o sistema multilateral de
comércio, esteja enfraquecida desde o fim da Guerra Fria.
Enquanto isto, a Europa, o Japão e, mais recentemente,
os chamados BRICs (sigla para Brasil, Rússia, Índia e China)
surgiram para desafiar a supremacia estadunidense.
Se agricultura, o tema mais polêmico de todos, estivesse
fora da mesa de negociações, o G-20 seria mais flexível em
relação a tarifas industriais? Se acesso a mercado de bens
não-agrícolas (NAMA, sigla em inglês) fosse colocado em
segundo plano, estariam os Estados Unidos da América (EUA)
e a União Europeia (UE) preparados para reduzir subsídios
agrícolas e barreiras comerciais? Poderia algum destes
cenários tornar mais provável um acordo em serviços? Não
é difícil imaginar a resposta para estas perguntas.
Até agora, entretanto, nenhum outro país conseguiu substituir a liderança global dos EUA; tampouco é provável
que isso ocorra em um futuro próximo. A UE carece da
coesão e influência políticas necessárias para tanto. Por
sua vez, a China e a Índia, preocupadas com pressões no
âmbito nacional, não desejam os custos e as responsabilidades decorrentes da liderança internacional. O Japão
é igualmente reticente a esse respeito.
É também otimista supor que “coalizões de países dispostos a
negociar” possam resolver o impasse. Que países exatamente
são estes, e em torno de que temas se unem? Entusiastas do
plurilateralismo apontam para o sucesso das negociações em
telecomunicações, tarifas sobre tecnologia da informação (TI)
e serviços financeiros na OMC, na década de 1990. Todavia,
esse ponto de vista confunde a carroça com o cavalo.
O Acordo de Telecomunicações foi selado porque as transformações tecnológicas minaram o modelo tradicional de negócios da indústria; o Acordo de Tecnologia da Informação foi
possível, porque as economias asiáticas em desenvolvimento,
dependentes das cadeias globais de produção de eletrônicos
constataram que era ilógica a taxação de insumos essenciais
importados; e as negociações de serviços financeiros estavam
destinadas ao sucesso, porque seu fracasso poderia ter piorado ainda mais a confiança no mercado asiático durante a
crise econômica naquela região. Mas em que outras áreas é
possível identificar contextos tão favoráveis a acordos na OMC?
Para adquirir credibilidade e força, seria necessário que
qualquer coalizão plurilateral incluísse, no mínimo, EUA, UE,
China, Índia, Brasil e Japão, além de outros países em desenvolvimento (PEDs) menores. Contudo, são mais abundantes os
itens em torno dos quais as prioridades nacionais e interesses
desses membros divergem do que aqueles que os aproximam.
Isso nos leva ao centro do problema. Não se trata somente
de falta de atenção política à OMC – afinal, esta foi a
tendência predominante na última década. O problema
tampouco seria a desatualização da agenda da Organização
e de sua mecânica de negociações. A verdade é que a
OMC – e o multilateralismo de forma geral – ainda precisa
se adaptar às transformações geopolíticas e econômicas.
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Como resultado, a influência política foi diluída em diferentes centros de poder; e nenhum deles é capaz de impor sua
vontade sobre os demais. Isso colocou uma tensão incômoda
entre a legitimidade de instituições globais e sua eficácia
na tomada de decisão. Até mesmo atores relativamente
menores podem agora se fortalecer e impedir o consenso
nessas instituições. Ademais, se, por um lado, os países estão
cada vez mais seguros de seus direitos, por outro, parecem
cautelosos em aceitar novas regras impostas externamente.
Anteriormente, a determinação de regras cabia aos EUA;
atualmente, constitui uma prerrogativa global.
Essas tendências são poderosas. A ausência de uma liderança
global clara, a divergência entre prioridades nacionais, a
rivalidade internacional e, em algumas partes, uma crescente
antipatia à globalização são exemplos de fenômenos que não
podem ser resolvidos por alterações, promovidas por diplomatas,
na agenda e nos procedimentos empregados em Genebra. Para
que o multilateralismo funcione melhor, as soluções devem
ser buscadas nas capitais dos países e entre elas.
Este é um dos argumentos mais fortes para a conclusão da
Rodada Doha, ainda que o melhor que se possa esperar seja
um resultado modesto. Quanto mais tempo a Rodada durar,
maior será a tentação de os governos utilizarem isso como
uma justificativa para não confrontar o fundamento dos problemas que atormentam a OMC. Somente quando a Rodada
for concluída é que saberemos se tais problemas realmente
possuem força para abalar a Organização.
* Fellow sênior do Centro Europeu para Economia Política
Internacional e ex-editor para comércio internacional do
Financial Times.
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Pontes Abril 2010 Vol.6 No.1
OM C e m f o c o
A OMC é o canário na mina
Juliana Peixoto Batista*
Há muitas especulações acerca da dificuldade de obtenção de consenso na Rodada Doha de negociações comerciais da
Organização Mundial do Comércio (OMC). Independentemente disso, este artigo sustenta que o entrave na OMC reflete as
mudanças ocorridas na configuração de poder no mundo.
Muitos negociadores afirmam que o maior obstáculo para a
conclusão da Rodada Doha já não é o impasse entre países
em desenvolvimento (PEDs) e desenvolvidos (PDs) em temas
agrícolas e industriais, mas a ausência de um mandato negociador dos Estados Unidos da América (EUA). Outros opinam
que a principal dificuldade é a falta de acordo entre este país
e a União Europeia (UE) quanto à diminuição da ajuda interna
e ao aumento do acesso a mercado. De forma mais pragmática, outros defendem que a Rodada será concluída quando
os custos de não finalizá-la superarem os de sua conclusão.
Antes de Doha, a Rodada Uruguai constituía um exemplo
emblemático no que se refere a obstáculos para o consenso
em torno de temas como agricultura, serviços ou propriedade
intelectual. Naquela ocasião, as negociações estenderam-se
por oito anos e foram concluídas com um resultado excelente
do ponto de vista institucional: a criação da OMC.
Da mesma forma que na Rodada Uruguai, agricultura e acesso
a produtos não-agrícolas (NAMA, sigla em inglês) constituem grandes obstáculos ao acordo de Doha. Novamente,
a grandeza das mudanças nos campos econômico e político internacional, a multiplicação de temas tratados e
de atores envolvidos reflete-se na extrapolação de todos
os prazos e exige uma análise das questões diretamente
relacionadas à governança global do comércio.
Seja qual for o motivo ou o momento para a conclusão da
Rodada Doha, é certo que a OMC está refletindo as mudanças
ocorridas na configuração de poder no mundo. Atualmente,
assistimos a um reposicionamento das economias emergentes,
que desempenham um papel cada vez mais destacado no
cenário mundial. Em decorrência disso, alguns limites estão
sendo postos aos EUA e à UE, que antes definiam a agenda
e tomavam as principais decisões no sistema multilateral de
comércio. Esses limites resultam, em grande parte, de dois
fenômenos: as coalizões de PEDs e o crescente uso do sistema
de solução de controvérsias por parte dos países, cada vez
mais especializados em matéria de litígio.
No que toca às coalizões, o G-20, o NAMA 11, o G-33 são exemplos de como os PEDs podem se unir para ser interlocutores de
peso nas negociações. Nesse sentido, é fundamental manter
a coesão, principalmente quando se observa que seu poder
se reflete mais na capacidade de bloquear iniciativas de PDs
(poder negativo) do que de criar novas regras.
No que se refere ao sistema de solução de controvérsias, os
PEDs vêm aprimorando capacidades para litigar – embora as
disputas na OMC ainda sejam demasiado onerosas para muitos
destes países, carentes de recursos humanos especializados.
Cabe ressaltar disputas memoráveis, como a reclamação do
Equador no caso das bananas, a defesa da Guatemala no caso do
cimento e o caso do Brasil contra os subsídios ao algodão nos EUA.
8
Assim, os PEDs condicionam cada vez mais o comércio
a preocupações relativas ao desenvolvimento. De forma
paralela, os PDs condicionam as normas do comércio a
questões que extrapolam o âmbito meramente comercial
como as mudanças climáticas e as migrações. Parece que
todos estão menos dispostos a continuar aportando ao
sistema multilateral nas atuais condições.
Outros desafios subjazem às dificuldades enfrentadas pela
OMC. Em primeiro lugar, a assimetria entre o controle das
medidas aplicadas na fronteira e a falta de controle das
medidas internas, como os subsídios. Em segundo lugar,
encontram-se os desafios institucionais. Para enfrentá-los,
muitos estudos sobre a necessidade de reforma da OMC têm
sido elaborados – principalmente após o Relatório Sutherland–,
com o objetivo de oferecer melhores respostas ao atual
contexto e ajudar a OMC a se adaptar à nova realidade.
Também é necessário ressaltar que a OMC é somente um dos
pilares do sistema multilateral. A crise, os desequilíbrios e as
mudanças na configuração de poder não podem ser enfrentados
somente com reformas nas normas do sistema multilateral
de comércio. Além disso, a principal contribuição da OMC é
a existência de normas consensuadas, de uma maior transparência no âmbito do comércio internacional e de um sistema
de solução de controvérsias exitoso, porque sua importância
no fluxo real do comércio internacional é apenas marginal.
Nesse sentido, a OMC é somente o canário que anuncia a
falta de oxigênio em uma mina: mostra como uma série de
organizações se encontram obsoletas no novo cenário global.
O sistema de cotas do Fundo Monetário Internacional (FMI) ou
do Banco Mundial e o poder de veto das potências no Conselho
de Segurança das Nações Unidas são anacrônicos. Ao mesmo
tempo, é difícil modificar essas estruturas tão arraigadas. Na
OMC, por outro lado, não há voto qualificado ou sistema de
cotas: é a mais transparente dentre as organizações multilaterais com poder vinculante; é também a mais fiscalizada
(accountable) por seus membros – daí sua maior sensibilidade
às mudanças ocorridas na comunidade internacional.
Uma reforma mais abrangente deveria englobar as dimensões
comercial, financeira e monetária do sistema multilateral,
assim como repensar a relação de todo o sistema com temas
complexos, como as mudanças climáticas e as migrações. Pode
ser que essa reforma não ocorra agora, ou nem seja concluída, mas a situação atual bem parece uma fase de transição,
na qual as organizações multilaterais buscam se adaptar às
mudanças ineludíveis que começaram a mostrar seu talante.
* Coordenadora da Rede Latino-Americana de Política Comercial
(LATN), pesquisadora na FLACSO/Argentina. A autora agradece o
valioso apoio de Mariana Merlo na revisão deste artigo.
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Pontes Abril 2010 Vol.6 No.1
Outros temas multilaterais
Depois de Copenhague: próximos passos
em agricultura
Marie Chamay*
Se a Conferência de Copenhague evidenciou a dificuldade em obter consenso em torno de alguns temas, é possível identificar avanços nas negociações sobre mitigação das mudanças climáticas (MCs) no setor de agricultura. O tema constitui
objeto central de propostas submetidas ao Secretariado da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima
(UNFCCC, sigla em inglês) por países em desenvolvimento (PEDs). Além disso, esforços de cooperação científica nessa
matéria podem contribuir para as negociações na próxima Conferência das Partes (COP, sigla em inglês), a ser realizada
em novembro de 2010 no México.
Diferentemente de muitos outros temas – em torno dos quais
divergiram os esforços para alcançar um novo acordo global
nas negociações climáticas –, a agricultura acabou por unir
interesses em diversas esferas. Mais precisamente, diversas
Partes avançaram no desenvolvimento de uma linguagem
específica em matéria de agricultura no âmbito do Grupo
de Trabalho Ad Hoc sobre Medidas de Cooperação de Longo
Prazo (AWG-LCA, sigla em inglês), ao tratarem do tópico
de abordagens setoriais com vistas à mitigação. A versão
atual do texto – incluída em um documento extra-oficial que
continuará a ser negociado em 2010 – reconhece a importância da segurança alimentar quando se trata de desafios
relacionados às MCs, bem como o elo entre agricultura e
segurança alimentar e a estreita relação entre adaptação e
mitigação no contexto da agricultura. O documento também
solicita ao Órgão Subsidiário de Assessoramento Científico
e Tecnológico que estabeleça um programa de trabalho
específico para o setor. Embora Copenhague não tenha sido
bem-sucedida em concluir as negociações no AWG-LCA,
os países decidiram dar continuidade aos diálogos, com o
objetivo de chegar a um acordo na 16ª COP, a ser realizada
em Cancun (México), no final de 2010.
Agricultura e mudança no uso da terra
Ainda que o tema de agricultura não seja mencionado de forma
explícita no Protocolo de Quioto, é tratado indiretamente
nas negociações sobre uso do solo, mudança no uso do solo
e florestas, no âmbito do Grupo de Trabalho Ad Hoc sobre o
Protocolo de Quioto (AWG-KP, sigla em inglês). Com vistas
a atingir suas metas, os países que compõem o Anexo I do
referido Protocolo devem reportar e quantificar as emissões
e o armazenamento de gás carbônico no solo por práticas
relacionadas à mudança no uso do solo e florestas. Entre as
atividades discutidas nas mesas de negociação voltadas a
este aspecto, está a ação voluntária para reduzir emissões
de gases de efeito estufa (GEEs) dos solos agrícolas.
Em Copenhague, as discussões não progrediram no que
se refere à inclusão de medidas para além do manejo das
áreas florestais e das pastagens. Ademais, os países não
decidiram se adotarão abordagens voluntárias ou mandatórias no que toca à redução de emissões com base no uso
da terra. No entanto, um programa de trabalho dotado de
perspectiva mais abrangente – que incluiria a quantificação
de redução de emissões relacionada ao uso do solo – pode
ser futuramente apresentado. Por fim, as discussões acerca
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do escopo do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL)
não avançaram, de modo que o mecanismo permanecerá
restrito às atividades de reflorestamento.
Ação agrícola de mitigação sob o Acordo de
Copenhague
O Acordo de Copenhague, apoiado por grande parte dos
países membros da UNFCCC, não menciona o setor agrícola
ou a segurança alimentar. O documento pede aos países
desenvolvidos (PDs) que submetam ao Secretariado da
Convenção suas metas de mitigação e aos PEDs, que informem e detalhem as medidas adotadas para cumprir suas
metas. Dos 32 relatórios elaborados por PEDs em resposta
ao documento, 12 mencionaram especificamente o setor
agrícola entre suas ações de mitigação.
As propostas dos PEDs apresentadas ao Secretariado da UNFCCC
refletem diferentes capacidades, condições e perspectivas
nacionais. Tais medidas incluem algumas das tecnologias e
práticas centrais à mitigação atualmente disponíveis para
comércio no setor agrícola. Estas consistem em: i) melhoria no manejo das áreas florestais e das pastagens, com o
objetivo de aumentar o armazenamento de carbono no solo;
ii) restauração de solos degradados; iii) aprimoramento de
técnicas de cultivo de arroz e manejo da agropecuária e
do esterco, com vistas à redução das emissões de metano;
iv) melhoria nas técnicas de aplicação de fertilizante
nitrogenado para reduzir as emissões de óxido nitroso; v)
cultivos destinados à produção de biocombustíveis de base
agrícola, a fim de substituir o uso de combustíveis fósseis;
e vi) melhoria da eficiência energética.
Brasil, Costa do Marfim, Etiópia, Indonésia, Jordânia,
Madagascar, Marrocos, Mongólia, Papua Nova Guiné, Macedônia,
República do Congo e Serra Leoa constituem exemplos de
países que enviaram ao Secretariado relatórios e propostas
relacionadas ao setor agrícola.
O Brasil apresentou estimativas quantificadas de metas
voluntárias de redução de emissões e, com base nestas,
propôs ações relacionadas ao manejo de pastagens, áreas
florestais e pecuária. Mais precisamente, o Brasil afirma
que buscará restaurar as pastagens e integrar sistemas de
cultivo e pecuária, bem como promoverá o uso de espécies
biológicas fixadoras de nitrogênio e técnicas de plantio
direto [ver glossário]. Ainda, o país empreende esforços
para aumentar o consumo de biocombustíveis.
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Pontes Abril 2010 Vol.6 No.1
Ou t r o s t e m a s m u l t i l a t e ra i s
A Indonésia está finalizando um Plano de Ação Nacional para
materializar a redução de 26 a 41% nas emissões de CO2
equivalente do país [ver glossário]. Para atingir essa meta
até 2020, a Indonésia propõe ações em diferentes setores,
incluindo o agrícola. Neste, o país busca implementar práticas
sustentáveis de manejo das florestas de turfas e desenvolver
projetos de sequestro de carbono [ver glossário], entre outras
atividades. Ademais, a Indonésia considera o desenvolvimento
de fontes alternativas e renováveis de energia.
A Etiópia, por sua vez, submeteu ao Secretariado um conjunto
de Ações de Mitigação Nacionalmente Apropriadas (NAMAs,
sigla em inglês) de caráter voluntário, na esperança de que
estas recebam o apoio financeiro e tecnológico mencionado
no Acordo de Copenhague. No que tange ao setor agrícola,
o país propõe aumentar o sequestro de carbono no solo por
meio do desenvolvimento de compostagens para adubar
terras agrícolas de comunidades rurais locais, assim como
mediante a implementação de práticas e sistemas agroflorestais. Ademais, a Etiópia buscará produzir etanol e
biodiesel suficiente para abastecer o setor de transporte
rodoviário e o consumo doméstico.
A Jordânia propõe o cultivo de forragens perenes na Região
de Badia e a implementação de melhores práticas quanto
à aplicação por irrigação de fertilizantes agrícolas e ao uso
de metano emitido pela pecuária, avicultura e matadouros.
Mais de 80% do Produto Interno Bruto (PIB) do setor agrícola
da Mongólia deriva do sub-setor da pecuária. Como NAMA,
o país sugere controlar o aumento da pecuária, por meio do
incremento da produtividade de cada tipo de animal, em
especial o gado. Marrocos, diferentemente, sugere aumentar
a produtividade de suas terras agrícolas.
O documento elaborado por Papua Nova Guiné expressa disposição em reduzir as emissões de GEEs em pelo menos 50% até
2030 e, mais especificamente, diminuir as emissões agrícolas
em 15-27 Mt de CO2 por ano – embora o país não especifique
as ações por meio das quais pretende cumprir tal meta.
Serra Leoa propõe introduzir a agricultura conservacionista
[ver glossário] e promover o uso de outras práticas agrícolas
sustentáveis em setores como o agrícola e o florestal.
A Macedônia criará pré-condições favoráveis à redução de
emissões de GEEs mediante, por exemplo, a implementação
da legislação da Política Agrícola Comum da União Europeia
(UE); a finalização das reformas institucionais e legais em
matéria de irrigação; o desenvolvimento de um sistema para
a aplicação de Boas Práticas em Agricultura; e a promoção
do apoio financeiro com vistas a motivar os produtores
agrícolas a empregar tecnologias de mitigação de emissões
de GEEs. No que diz respeito a estas últimas, destaca-se
o aprimoramento do manejo de resíduos resultantes de
cultivos vegetais e da criação de animais.
De acordo com a Organização para Agricultura e Alimentação
(FAO, sigla em inglês), a proporção de relatórios submetidos
por PEDs ao Secretariado da UNFCCC que incluem agricultura
pode constituir um indicador de que o setor provavelmente
se tornará um componente importante das NAMAs de países
que não constam do Anexo I do Protocolo de Quioto.
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Próximos passos em agricultura
Cabe ressaltar que, no âmbito externo às negociações da UNFCCC,
21 países assinaram recentemente uma declaração ministerial
por meio da qual criaram a Aliança Global de Pesquisa sobre
GEEs emitidos pela Agricultura. De acordo com o documento, os
participantes desta aliança compartilharão seu conhecimento
e esforços de pesquisa, identificarão lacunas no leque temático
abrangido pelas pesquisas e movimentarão novos recursos para
projetos de cooperação. Na primeira reunião deste grupo,
realizada em 9 e 10 de abril na Nova Zelândia, foram debatidos temas relacionados a governança e focos de pesquisa.
Essa aliança pode facilitar o entendimento comum acerca dos
desafios relacionados à mitigação de emissões na agricultura.
Qual será o próximo passo mais provável em matéria de agricultura, nas negociações climáticas? Os diálogos no âmbito do
AWG-LCA e do AWG-KP serão retomados, conforme definido
pelas Partes em Copenhague, e as decisões sobre o escopo e
conteúdo do programa de trabalho do Órgão Subsidiário de
Assessoramento Científico e Tecnológico em agricultura ainda
devem ser tomadas nas próximas reuniões da UNFCCC. Esse
programa de trabalho pode facilitar e dotar de conteúdo um
futuro acordo climático pautado em metodologias científicas e
tecnológicas, com vistas à mitigação das MCs no setor agrícola.
* Diretora da Plataforma Global sobre Mudanças Climáticas,
Comércio e Energia Sustentável do ICTSD.
Tradução e adaptação de texto originalmente publicado em Bridges
Trade BioRes Review, Vol. 4, No. 1 - mar. 2010.
Glossário
Agricultura conservacionista: compreende diversas formas e
técnicas de manejo, mas tem por princípios gerais a cobertura
permanente e o revolvimento mínimo do solo e a rotação de
culturas. Tais práticas visam à conservação ou recuperação das
propriedades químicas e físicas do solo, de modo a evitar a erosão
e conservar a matéria orgânica e a umidade do solo. O plantio
direto e a redução no uso de agroquímicos são práticas de manejo
conservacionista difundidas atualmente. (Fonte: Icone)
Carbono equivalente: parâmetro que expressa o potencial de
aquecimento global (PAG) de um GEE em termos do PAG do CO2,
ou seja, a quantidade de CO2 que causa a mesma retenção de
calor na atmosfera que determinada quantidade de outro gás.
(Fonte: Observatório do Clima)
Plantio direto: conjunto de técnicas de produção agrícola que
atende a três requisitos principais: não-revolvimento do solo,
rotação de culturas e uso dos resíduos agrícolas para formação
de palhada, o que pode inclusive contribuir para minimização dos
custos de produção. O principal benefício do plantio direto é a
conservação das propriedades físicas do solo, além da conservação
de sua umidade e a diminuição da erosão. (Fonte: Icone)
Sequestro de carbono: processo natural de armazenamento de
gás carbônico no solo devido principalmente à dinâmica dos oceanos, florestas e outros organismos que, por meio da fotossíntese,
capturam o carbono e lançam oxigênio na atmosfera. É a captura
e estocagem segura de gás carbônico (CO2), que evita sua emissão e permanência na atmosfera terrestre. Na agricultura, essa
captação é realizada por meio de técnicas de manejo do solo,
como as adotadas no plantio direto. (Fonte: Icone)
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Pontes Abril 2010 Vol.6 No.1
Análises regionais
Tratado de Lisboa: efeitos da reforma
institucional na UE
Entrou em vigor em 1º de dezembro de 2009 o Tratado de Lisboa1, que conclui o processo de reforma iniciado com os acordos
de Amsterdã (1999) e Nice (2001), com vistas a facilitar a condução das relações exteriores da União Europeia (UE), reduzir
a complexidade de procedimentos decisórios e reforçar a legitimidade democrática de suas instituições deliberativas.
“Para quem telefono, se eu quiser falar com a Europa?”.
A pergunta atribuída a Henry Kissinger durante sua gestão
como secretário de Estado dos Estados Unidos da América
(EUA) ilustrava o ceticismo estadunidense diante dos rumos
da integração europeia. Mais do que isso, o questionamento
parecia desnudar o caráter incompleto das instituições europeias em meados dos anos 70, expondo a falta de unidade
do Velho Continente na condução de suas relações externas.
As dúvidas quanto ao rumo da integração foram dissipadas
nas décadas seguintes. Nesse período, o bloco foi submetido
a um vertiginoso alargamento, passando de 9 para 27 Estados
membros – acumulando peso demográfico e poderio políticoeconômico. Ao mesmo tempo, houve um aprofundamento das
matérias atribuídas à competência das instâncias europeias. De
uma abordagem essencialmente econômica, avançou-se para
a cooperação política, política externa de segurança comum
e política europeia de segurança e defesa – em um bloco
rebatizado, fortalecido internacionalmente e cultuado como
o exemplo mais bem sucedido de regionalismo supranacional.
A despeito de tamanhas realizações, a relativa incapacidade
em responder de maneira uníssona aos problemas internacionais permaneceu entre as principais debilidades do bloco. De
maneira paradoxal, o sucesso na integração da UE – com seu
alargamento e aprofundamento – significou o agravamento
da complexidade, burocratização e baixa representatividade
democrática de suas instâncias decisórias. Tais contradições
ensejaram o início de um processo de reformas institucionais,
cujos pontos referenciais são as alterações em matéria de
governança introduzidas pelos tratados de Amsterdã (1997) e
Nice (2001), e cujo ponto culminante foi a entrada em vigor
do Tratado de Lisboa, em dezembro de 2009.
Os fundamentos deste tratado foram lançados a partir de
2001, quando foi negociado um projeto de Constituição para a
Europa, com o objetivo de aprimorar o funcionamento da UE
e simplificar o Direito Comunitário por meio da consolidação
do emaranhado de tratados em um único texto. Com isso,
buscava-se possibilitar o alargamento do bloco para a Europa
do Leste. O projeto fracassou em 2005, diante da rejeição de
franceses e holandeses, consultados em referendo popular.
Posteriormente, decidiu-se optar por uma proposta reformadora menos ambiciosa. As negociações foram novamente
retomadas em 2007, mas, desta vez, adotou-se a estratégia
de eliminar a nomenclatura constitucional do documento.
Segundo a nova fórmula, seriam mantidos em vigor os
tratados de Roma (1957) e Maastricht (1992), cujos dispositivos seriam emendados. Diferente na forma, o Tratado
de Lisboa, foi concebido para abarcar a maior parte dos
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elementos substanciais que compunham o fracassado projeto
de Constituição para a Europa. Após a assinatura do documento em Lisboa, ao final de 2007, durante o exercício da
Presidência do Conselho da UE por Portugal, teve sequência
um conturbado processo de ratificação. Novas rejeições em
consultas populares – desta vez na Irlanda – retardaram a
conclusão das ratificações a novembro de 2009.
Dentre as alterações previstas no Tratado de Lisboa, destacamse: i) a criação de uma presidência estável para o Conselho
Europeu, a ser exercida em um mandato de 30 meses, com
uma recondução autorizada; ii) a criação do cargo de alto
representante da União para os Negócios Estrangeiros e a
Política de Segurança; iii) a inclusão da integração do comércio
mundial como um dos objetivos da ação externa da UE e da
política comercial como matéria de competência exclusiva
da União; iv) a extensão do procedimento de “codecisão”,
com consequente aumento da participação do Parlamento
Europeu no processo legislativo; v) a adoção da maioria qualificada para a votação no Conselho da União Europeia; vi) a
atribuição de personalidade jurídica internacional à UE; vii)
a eliminação dos “três pilares da UE”, cujas competências
serão fundidas e incorporadas à União; e viii) a criação de um
serviço europeu de ação externa, corpo diplomático do bloco.
Os números de telefone da Europa
Tendo por objetivo tornar o funcionamento da UE mais eficaz,
em especial em sua ação externa, dois cargos executivos de
grande visibilidade foram criados pelo Tratado de Lisboa: o
presidente do Conselho Europeu e a alta representante da
UE para os Negócios Estrangeiros. Seriam os dois “números
de telefone da Europa”, em resposta à pergunta de Kissinger.
Contudo, a ação externa do bloco permanecerá descentralizada,
sob a responsabilidade de diferentes atores – na verdade,
ainda são muitos os números de telefone da UE.
Até o momento, o Conselho Europeu – instância executiva
que reúne os chefes de Estado e de governo dos países do
bloco – era presidido rotativamente pelas lideranças do país
a ocupar a presidência pro tempore. Diante da ampliação da
UE a 27 membros, a manutenção da regra antiga – segundo a
qual o mandato era alternado a cada seis meses –, implicaria
o retorno de cada Estado membro à Presidência do Conselho
após 14 anos. A fim de garantir maior continuidade aos trabalhos do Conselho Europeu, o Tratado de Lisboa configurou o
posto de presidente do Conselho Europeu como cargo eletivo,
a ser ocupado durante um mandato de 30 meses, admitida
uma recondução. O primeiro a ocupá-lo será Herman Von
Rompoy, antigo primeiro-ministro belga.
11
An á l i s e s r e gi o n a i s
O fracassado Projeto de Constituição para a Europa contemplava a criação do cargo de ministro de relações exteriores da
UE – nomenclatura considerada excessivamente ambiciosa, em
seu caráter quase estatal. Em seu lugar, o Tratado de Lisboa
propõe o posto de alto representante para Assuntos Externos
e para a Política de Segurança, mantidas todas as atribuições
da proposta anterior. O alto representante – para o qual foi
nomeada Catherine Ashton, antiga comissária europeia para
o Comércio – deverá acumular as atribuições de duas outras
funções existentes: a do alto representante para a Política
Externa e Segurança Comum, exercida desde 1999 por Javier
Solana; e a de comissário europeu para as Relações Exteriores,
exercida até o momento por Benita Ferrero-Waldner.
O Tratado de Lisboa alarga a utilização do voto por
maioria qualificada, estendendo de 36 para 87 o
número de matérias submetidas a este, que passa a
ser o procedimento normal de votação. Como exceção,
determinadas matérias permanecem sob a exigência
da unanimidade, em especial defesa, tributação e os
principais aspectos relacionados à política externa. A
partir de 2014, entrará formalmente em vigor o critério
da dupla maioria, agora fixado na exigência de aprovação de 55% dos Estados membros, o que abrange 65%
da população contida no bloco.
Não se trata, desse modo, da criação de uma representação
externa unificada para a União: a alta representante deverá
coordenar as políticas dos Estados membros em uma base intergovernamental, com decisões tomadas sob a regra da unanimidade,
de modo que persiste o espaço para divergências entre Estados
membros em matéria de política externa. Contudo, a alta
representante também será encarregada da direção do recém
criado Serviço Europeu de Ação Externa, o corpo diplomático
da UE, composto por funcionários da Comissão, do Secretariado
do Conselho e de diplomatas a serviço dos Estados membros.
As reformas introduzidas pelo Tratado de Lisboa deverão
produzir efeitos sobre as relações comerciais europeias. Ao
reformular a esfera de competências da União, o tratado
transfere o conjunto de temas relacionados à política
comercial – o que inclui comércio de serviços, investimentos estrangeiros diretos (IEDs) e direitos de propriedade
intelectual – à competência exclusiva da UE. Passam a ser
proscritos os acordos comerciais mistos, em que tanto a
União quanto os Estados membros tomam parte.
A representação externa da UE permanecerá compartilhada
por múltiplos atores, com destaque para o presidente do
Conselho Europeu (Herman Von Rompoy), o presidente da
Comissão Europeia (José Manuel Durão Barroso) e a alta
representante (Catherine Ashton). A presidência rotativa da
União perderá suas prerrogativas de representação externa
durante as reuniões de cúpula em que participem terceiros
países. A UE será representada pelo presidente do Conselho
Europeu, que deverá manifestar-se sobre assuntos políticos, e
pelo presidente da Comissão Europeia, encarregado de temas
comunitários. Nestas reuniões, em que chefes de Estado são
comumente acompanhados por ministros, deverão também
participar a alta representante e os comissários das pastas
envolvidas. A UE será representada em reuniões ministeriais
pela alta representante, ao passo que as delegações diplomáticas da União a representarão perante terceiros Estados.
Aspectos de governança
O aprimoramento dos aspectos de governança da UE foi mais
uma área enfatizada na reforma promovida pelo Tratado de
Lisboa. Foram tomadas medidas para garantir o aumento da
transparência e da participação democrática nas instâncias
decisórias do bloco. Ao mesmo tempo, buscou-se promover
a simplificação dos procedimentos decisórios, com alteração
dos critérios de votação no processo legislativo.
A principal das medidas nesta área foi a expansão da participação do Parlamento Europeu no processo legislativo da
UE. Isto se seu pela ampliação das matérias cobertas pelo
chamado procedimento de “codecisão”, ou seja, a aprovação
concomitante do Conselho da UE e do Parlamento de propostas
de legislação europeia. Note-se que esta medida reveste de
maior legitimidade democrática o processo legislativo da UE,
uma vez que o Parlamento é composto por representantes
eleitos diretamente pelos cidadãos. A codecisão passa a ser
o procedimento ordinário no processo legislativo da União,
abarcando matérias como agricultura e comércio.
12
Pontes Abril 2010 Vol.6 No.1
Aspectos comerciais
Avalia-se que as mudanças nos critérios de votação
também deverão afetar as relações comerciais da UE. A
expansão da votação por maioria qualificada no Conselho
da UE, por exemplo, poderá favorecer a aprovação de
acordos comerciais naquele órgão. Não haverá mais a
possibilidade de bloqueio de acordos pelo veto individual de um membro.
A expansão do procedimento de codecisão, por outro lado,
poderá dificultar a aprovação de acordos comerciais sobre
temas socialmente controvertidos. O Parlamento, órgão
mais sensível às pressões populares, passará a ter o poder
de vetar a aprovação de acordos. Em casos de divergência
entre o voto do Parlamento e aquele do Conselho da UE,
um complicado procedimento de reconciliação política
terá início, com o envolvimento da Comissão Europeia, e
inevitáveis atrasos à aprovação do acordo.
A entrada em vigor do Tratado de Lisboa constitui um
importante marco do aprimoramento institucional da
UE, na medida em que foram garantidas a eficiência e a
legitimidade democrática do bloco. De todos os avanços
obtidos, o que tem o maior potencial de produzir frutos duradouros é o aprimoramento da ação externa do
bloco. Se, por um lado, manter intactas as soberanias
estatais para a livre formulação de política externa
parece uma opção politicamente sensata, por outro,
não se pode garantir êxito aos objetivos nacionais caso
a ação externa dos países europeus seja contraditória.
Em certa medida, o principal legado desta reforma é
submeter a política externa europeia a mecanismos
institucionais de harmonização, em detrimento de
soluções do tipo estatal, de caráter centralizador. Mais
do que um número de telefone, os europeus necessitam
de uma voz única.
1 Disponível em <http://eur-lex.europa.eu/JOHtml.do?uri=OJ:C:2007:306:
SOM:PT:HTML>. Acesso em 27 jan. 09.
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Pontes Abril 2010 Vol.6 No.1
Análises regionais
As eleições nos EUA e as negociações da
Rodada Doha
Trineesh Biswas*
No contexto de eleições presidenciais em diversos países no mundo, o Pontes inaugura uma série de artigos a respeito da
influência desse pleito sobre a definição da política comercial. Neste artigo inaugural, são analisados os principais fatores
da política eleitoral dos Estados Unidos da América (EUA) que influenciam as negociações multilaterais de comércio.
Nas negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC),
todos os membros buscam maximizar o acesso de suas exportações ao mercado estrangeiro e, ao mesmo tempo, minimizar
a concorrência dos produtos importados no mercado interno.
Dessa forma, os setores-chave da indústria doméstica frequentemente logram proteger seus interesses. Os EUA não
constituem exceção a essa regra.
Em grande parte das democracias, o poder Executivo pode
negociar acordos comerciais e, posteriormente, submetêlos à votação no Legislativo. Diferentemente, nos EUA, os
legisladores não somente devem autorizar a administração
presidencial a conduzir negociações desses tratados, como
também não possuem competência para modificar o acordo
negociado pelo Executivo – podem apenas votar contra ou
a favor, sem possibilidade de emenda. Na ausência de tais
garantias, apenas um governo extremamente ingênuo negociaria e ratificaria um acordo comercial com Washington.
Isso significa que o presidente dos EUA que desejar concluir
negociações comerciais precisa manter o Congresso alinhado com
sua agenda. É importante lembrar, ainda, que os grupos atuantes no setor agrícola estão super-representados no Congresso
dos EUA – comparativamente à população estadunidense
dependente deste setor. Isso ocorre em especial no Senado.
Isso pode explicar por que a administração de George W.
Bush, apesar de sua retórica favorável ao livre mercado,
fracassou em conter os subsídios previstos na Farm Bill,
bem como a imposição, em 2002, de tarifas protecionistas
sobre as importações de aço. Alguns analistas sugeriram
que a Casa Branca reproduziu o movimento de grupos de
interesse influentes não por ter cedido às pressões destes,
mas porque enfrentá-los colocaria em risco as chances de
aprovação da Autoridade para Promoção Comercial (TPA,
sigla em inglês) no Congresso. A derrota significaria o fim
da política comercial da administração Bush antes mesmo
desta começar. Com a aprovação da TPA, Washington deu
continuidade à negociação de uma série de acordos bilaterais
de comércio, paralelamente à Rodada Doha.
Durante muitos anos, a expiração, em meados de 2007, do
mandato da TPA, foi utilizada pela gestão de Bush como um
prazo informal para a conclusão do acordo de Doha. No entanto,
a paralisação da Rodada, em julho de 2006 e junho de 2007,
significou que esse prazo – como tantos outros – seria extrapolado.
Enquanto isso, nos EUA, o apoio público ao livre comércio
– e aos acordos de livre comércio, em particular – estava
em declínio, devido a preocupações com relação à China
e à percepção de que os ganhos do comércio não eram
amplamente compartilhados. Isso se refletiu nas eleições
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de 2006 para o Congresso. À época, um número considerável de representantes eleitos pelo Partido Democrata
apresentou campanhas altamente críticas à agenda de
comércio da administração Bush.
O foco de suas críticas incidia sobre os acordos bilaterais
de comércio com países em desenvolvimento (PEDs), tais
como o Tratado de Livre Comércio da América Central
(Cafta, sigla em inglês), criticado por carecer de dispositivos voltados à proteção do meio ambiente e dos direitos
trabalhistas. Um acordo com a Casa Branca em matéria
de política comercial, obtido no início de 2007, sugeriu
que a predominância democrata no Congresso apoiaria a
negociação, pela gestão Bush, de um acordo na Rodada
Doha. Em 2008, entretanto, o acordo continuava distante,
com o fracasso de mais uma reunião mini-ministerial.
O comércio permaneceu como tema controverso da campanha
eleitoral de 2008 para a presidência nos EUA. Durante a
primeira campanha para a nomeação do Partido Democrata,
Barack Obama criticou o Tratado Norte-Americano de Livre
Comércio (Nafta, sigla em inglês), prometendo renegociar
as provisões que tratavam de direitos trabalhistas e preservação do meio ambiente. É comum candidatos democratas
utilizarem um tom severo acerca de temas comerciais
nas eleições primárias, quando necessitam do apoio de
sindicatos trabalhistas que se opõem ao livre comércio;
mas, uma vez garantida a nomeação, abandonam essa
retórica. Obama enquadra-se nesse padrão.
As posições de Obama em temas comerciais permaneceram nebulosas após sua posse, em meio à crise
econômica, mas era notório que o tempo e o capital
político seriam direcionados aos pacotes de estímulo
econômico e à reforma do sistema de saúde dos EUA,
ou seja, o comércio não constituiria uma prioridade.
Alguns dos temas da agenda doméstica de Obama podem,
no longo prazo, contribuir para a recuperação do apoio ao
livre comércio. Para os trabalhadores estadunidenses, o
desemprego implica perder benefícios como seguro-saúde
e aposentadoria. Nesse sentido, a reforma no sistema de
saúde buscou fortalecer a rede de segurança social do
país, de modo a atenuar a sensibilidade do desemprego.
No entanto, diante da atual taxa de desemprego e do
elevado déficit comercial – particularmente com a China–,
as relações comerciais devem permanecer como objeto
de controvérsia no futuro próximo.
* Conselheiro do Diretor-executivo do ICTSD.
13
Pontes Abril 2010 Vol.6 No.1
Bra s i l
Cooperação Brasil-Angola
na produção de etanol
Rafael Vaisman*
Graças à transferência de tecnologia do Brasil, Angola está começando a produzir biocombustíveis. Os objetivos da iniciativa
incluem a criação de empregos em áreas rurais, a diversificação da matriz energética e a promoção das exportações. No
entanto, se mal planejada, a transferência de tecnologia nesta área pode não trazer os benefícios pretendidos.
O setor de bioenergia tornou-se um dos mais dinâmicos da
economia, devido a três fatores principais. Primeiramente, a
dependência do petróleo importado de regiões politicamente
instáveis e a possibilidade de escassez na oferta deste combustível levaram ao aumento do interesse por alternativas
energéticas. Em segundo lugar, os governos têm buscado
reduzir as emissões de carbono, como forma de mitigação das
mudanças climáticas – os biocombustíveis podem colaborar nesse
sentido. Por fim, a perspectiva de criação de empregos nas
zonas rurais constitui um elemento atrativo para os governos.
Contudo, por não possuírem a tecnologia necessária para a
produção de biocombustíveis, muitos países dependem da
transferência de tecnologia para transpor esse obstáculo. De
acordo com a Organização para Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE), a transferência de tecnologia envolve dois
processos distintos: “[a] transmissão de capacidades de produção industrial e a transferência de capacidades de domínio,
adaptação e posterior aprimoramento da tecnologia recebida”.
Este artigo concentra-se em uma experiência recente de
transferência de tecnologia, realizada entre Brasil e Angola. Os
dois países têm cooperado com vistas à diversificação no setor
de energia e à impulsão da produtividade agrícola em Angola.
Produção de etanol em Angola
O país enfrenta adversidades econômicas decorrentes da guerra
civil que assolou o país por 27 anos, pacificada em 2002. Desde
então, a economia angolana tem crescido, e o país tornou-se
o segundo maior exportador de petróleo na África. O gasto
público quadruplicou entre 2002 e 2004. Neste mesmo período, a concentração de renda no país foi ampliada, segundo
dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD). Diante desse quadro, a produção de etanol em Angola
foi concebida como forma de contribuir para a diversificação da economia e a criação de empregos na área rural.
O acordo de transferência de tecnologia entre Angola e Brasil
levou à criação da Companhia de Bionergia de Angola Ltda.
(BioCom), voltada à produção de açúcar e etanol na região
de Cacuso. Com sede em Angola, a empresa caracteriza-se
como uma joint venture entre as angolanas Sonangol (20%) e
Damer (40%) e a brasileira Odebrecht (40%). O projeto será
instalado em uma área de 30 mil hectares, no município de
Malange. As atividades deverão ser iniciadas em 2012, com
um orçamento inicial de US$ 258 milhões e uma produção
esperada de 30 milhões de litros de etanol, 250 toneladas
de açúcar e 160 mil megawatts-hora de eletricidade ao ano.
O financiamento inicial contou com o auxílio da Agência
Nacional para Investimento Privado (ANIP) na captação de
verbas junto ao Banco Angolano de Fomento (BAF) e ao Banco
do Espírito Santo (BES), com participação do Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
14
Transferência de tecnologia
A experiência brasileira nas áreas de práticas agrícolas,
manipulação genética e maquinário contribuiu para garantir
a eficiência, sustentabilidade e o estado da arte na produção.
O projeto de cooperação entre Brasil e Angola, que tem na
transferência dessas tecnologias seu principal objeto, também
enfatizará a gestão da água e de resíduos (incluindo a reciclagem de lixo), bem como o uso eficiente de fertilizantes.
A maior parte da tecnologia transferida para a BioCom já
se encontra em domínio público, porém parte dela está
protegida por direitos de propriedade intelectual. Em
dezembro de 2009, 62 funcionários da BioCom completaram o treinamento industrial e agrícola no complexo de
Eldorado, em Mato Grosso do Sul.
Contudo, o processo de adaptação tecnológica é lento –
segundo especialistas, pode levar de três a cinco anos. No
caso de sistemas biológicos, como a produção agrícola, os
ciclos naturais devem ser respeitados. O ciclo da cana é de
um ano, de modo que os resultados devem ser avaliados e
modificados após três anos de trabalho.
Esperanças e realidade
Os diversos atores envolvidos no processo de transferência
de tecnologia, assim como seus beneficiários, estipularam
objetivos que incluem a diminuição da dependência das
importações – atualmente, Angola importa todo o açúcar que
consome – e o incremento da possibilidade de exportação para
o mercado europeu de etanol. Agnaldo Jaime, coordenador
da Comissão de Reestruturação da ANIP, enfatizou que o papel
do investimento privado consiste em financiar a criação de
empregos, promover a redução de importações e estimular
a expansão do comércio exterior angolano.
A geração de empregos industriais na área rural, com os esperados benefícios sociais e econômicos, constitui um objetivo
central do projeto. A iniciativa poderá também contribuir para
a expansão dos serviços de eletricidade na área rural, uma
vez que o processo industrial – cuja energia será originada
do bagaço de cana – deve gerar excedente de eletricidade.
A BioCom e seus parceiros também identificam benefícios
potenciais do projeto em matéria ambiental, já que a produção
de etanol em Angola permitirá a adoção de um patamar de
mistura do biocombustível à gasolina, no setor de transporte.
Caso adotada, essa medida contribuirá para a redução das
emissões de dióxido de carbono e, consequentemente, para
uma menor poluição do ar. Ainda, isso permitirá a geração
de lucros por meio do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo
(MDL) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança
do Clima (UNFCCC, sigla em inglês).
www.ictsd.org/news/pontes/
Pontes Abril 2010 Vol.6 No.1
Pontes
Desenvolvimento tecnológico como redutor de pobreza?
Os objetivos ambiciosos do projeto de transferência de tecnologia levantam algumas questões.
Que atores serão beneficiados? Que oportunidades e dificuldades a população de Cacuso poderá
enfrentar? O projeto ajudará a reduzir a pobreza e a desigualdade? Que potenciais impactos
terá sobre a segurança alimentar? Diante destas indagações, o projeto tem sido alvo de
críticas, especialmente em relação aos benefícios que as comunidades rurais poderão receber.
Em entrevistas conduzidas dentro do escopo deste estudo, uma série de riscos sócio-econômicos foi identificada. Em termos de trabalho, o projeto criará cerca de 500 empregos para
angolanos e brasileiros. Todavia, a maior parte da população de Cacuso não possui as habilidades necessárias para preenchê-los e, dessa forma, ficará à margem dos benefícios produzidos.
De acordo com a BioCom, 31 membros da população local foram empregados até o momento.
Outro entrevistado expressou preocupações relacionadas à segurança alimentar, ao
declarar que os moradores da região carecem de alimento. Nesse sentido, a produção
de combustível e açúcar não preenche suas necessidades básicas.
No que toca ao acesso à terra, alguns entrevistados afirmaram temer que a expansão da
monocultura de cana em larga escala cause pressão sobre a população pobre. Tal apreensão
persistiu mesmo após a BioCom ter ressalvado que a produção dos pequenos agricultores não
seria prejudicada. A empresa argumentou que não apropriou terras da comunidade e que
o abastecimento de água não sofreria pressão, já que a plantação de cana não é irrigada.
A Associação para o Desenvolvimento Rural e Ambiental, organização não-governamental
sediada em Angola, propôs que três questões centrais fossem tratadas. Primeiramente, as
famílias locais deveriam ser envolvidas no processo decisório, a fim de avaliar os possíveis
riscos e benefícios do projeto. Isso contribuiria para mitigar os problemas e compensar
os indivíduos que fossem prejudicados. Em segundo lugar, deveria ser desenvolvido
um plano com vistas à otimização do uso da mão-de-obra local. Por fim, as empresas
deveriam engajar-se em projetos de responsabilidade social e ambiental na região.
De forma geral, os entrevistados revelaram preocupações quanto às fragilidades institucionais e sociais do projeto, na medida em que Angola ainda enfrenta dificuldades
associadas à instabilidade política e a governança. Ademais, a participação pública
e o debate na formulação de projetos como o da BioCom ainda é pouco expressiva.
Esse quadro tem mudado, ainda que lentamente. Um recente apelo postulado por representantes da sociedade civil angolana – intitulado “Declaração Benguela” – pede ao governo
que reavalie a atual política, a fim de evitar que os investimentos provoquem a saída da
população de suas terras. O documento não condena os investimentos, mas destaca os
perigos das políticas empresariais sem qualquer controle. Os postulantes desejam evitar
as consequências negativas, tais como a pressão latifundiária sobre os pobres. Buscam
também garantir que os mais necessitados sejam incluídos na repartição de benefícios. Os
argumentos levantados na Declaração também poderiam ser aplicados ao setor de bioetanol.
Considerações finais
A transferência de tecnologia deve ser elaborada e executada com cautela, especialmente em países marcados por instituições frágeis. Isso é necessário para garantir que
os benefícios alcancem a população mais carente. Caso contrário, o caráter sustentável
do etanol produzido será ameaçado, cenário desfavorável a todos os atores envolvidos
– governo, empresários e comunidade local.
O presente artigo sugere a concepção de arranjos entre empresas e comunidade, a
fim de alcançar a sustentabilidade desejada por todas as partes interessadas. Em um
balanço geral, é preciso compreender profundamente a dinâmica da transferência de
tecnologia no que toca aos projetos agrícolas de larga escala. Tal entendimento poderia
contribuir para a elaboração de políticas importantes de apoio à atividade econômica,
bem como à qualidade de vida nas zonas rurais. O resultado final poderia ser verificado
na melhoria do índice de desenvolvimento humano (IDH) do país.
* Mestrando da Universidade Lund, na Suécia. Sua linha de pesquisa inclui sustentabilidade,
governança e políticas.
PONTES tem por fim reforçar
a capacidade dos agentes na
área de comércio internacional
e desenvolvimento sustentável,
por meio da disponibilização de
informações e análises relevantes
para uma reflexão mais aprofundada sobre esses temas. É também
um instrumento de comunicação
e de geração de idéias que
pretende influenciar todos aqueles
envolvidos nos processos de
formulação de políticas públicas e
de estratégias para as negociações
internacionais.
PONTES foi publicado pelo Centro
Internacional para o Comércio e
o Desenvolvimento Sustentável
(ICTSD).
Equipe editorial
Michelle Ratton Sanchez
Adriana Verdier
Manuela Trindade Viana
Daniela Helena Oliveira Godoy
ICTSD
Diretor executivo:
Ricardo Meléndez-Ortiz
7, chemin de Balexert
1219, Genebra, Suíça
[email protected]
www.ictsd.org
As opiniões expressadas nos
artigos assinados em PONTES
são exclusivamente dos autores
e não refletem necessariamente
as opiniões do ICTSD, ou
das
instituições
por
ele
representadas.
Tradução e adaptação de texto originalmente publicado em Bridges Trade BioRes Review, Vol.
4, No. 1 - mar. 2010.
www.ictsd.org/news/pontes/
15
Pontes
ENTRE O COMÉRCIO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
EVENTOS
PUBLICAÇÕES
26-30 FAO - Conferência Regional para América Latina
Banco Mundial. Relatório sobre o desenvolvimento mundial
2010: Desenvolvimento e Mudanças Climáticas. Washington,
D.C., 2010. Disponível em: <http://siteresources.worldbank.
org/INTWDR2010/Resources/5287678-1226014527953/
WDR10-Full-Text.pdf>.
ABRIL
e Caribe (31ª reunião). Cidade do Panamá,
Panamá.
27
CEPAL - Conferência “A reinvenção das Nações
Unidas”. Santiago, Chile.
27-28 OCDE - Conferência Global sobre a Água 2010:
“Transformando o Mundo da Água”.Paris, França
MAIO
1
Abertura da Exposição Universal em Xangai,
China.
3-7 FAO - Comissão Florestal para América do Norte
(25ª reunião). Chiapas, México.
5-6 OMC – Reunião do Conselho Geral. Genebra,
Suíça
6-7 BID - RemesAméricas 2010. Cidade do México,
México.
11
BID – Parcerias Público-Privadas no Brasil e na
América Latina. Salvador, Brasil.
17-21 FAO – Conselho Geral (139ª sessão). Roma,
Itália.
18-19 Cúpula de Chefes de Estado e de Governo
UE-ALC. Madrid, Espanha.
26-27 OCDE - Fórum anual da OCDE. Paris, França.
30 CEPAL - XXXIII Período de Sessões da CEPAL.
Brasília, Brasil.
30
WEF – Cúpula “Global Redesign Summit”.
Doha, Qatar.
Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe,
CEPAL. Mudanças climáticas: uma perspectiva regional.
Santiago, 2010. Disponível em: <http://www.eclac.cl/
publicaciones/xml/9/38539/2010-109-Cambio_climaticouna_perspectiva_regional.pdf>.
Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe,
CEPAL. Objetivos de Desenvolvimento do Milênio: Avanços na
sustentabilidade ambiental do desenvolvimento na América
Latina e no Caribe. Santiago, jan. 2010. Disponível em:
<http://www.cepal.org/publicaciones/xml/6/38496/2009696-ODM-7-completo.pdf>.
Gallagher, K. & Chudnovsky, D. Rethinking Foreign Investment
for Sustainable Development: Lessons from Latin America.
Medford, 2010. Disponível em: <http://www.ase.tufts.
edu/gdae/Pubs/rp/RethinkForInv.html>.
Meléndez, R. & Roffe, P. Intellectual Property and Sustainable
Development: Development Agendas in a Changing World.
Londres: EE Publishing, 2010. Disponível em: <http://ictsd.
org/i/trade-and-sustainable-development-agenda/71019/>.
Nelson, G., Palazzo, A., Ringler, C. & Sulser, T. The Role
of International Trade in Climate Change Adaptation.
Genebra: ICTSD, 2010. Disponível em: <http://ictsd.
org/i/publications/66988/>.
Strachan, J. Sell, M. & Kamal, M. Trade, Climate Change
and Sustainable Development: Key Issues for Small States,
Least Developed Countries and Vulnerable Economies.
Londres: Commonwealth Secretariat and ICTSD, 2010.
Disponível em: <http://ictsd.org/i/publications/68995/>.
United Nations Conference on Trade and Development,
UNCTAD. Trade and Environment Review 2009/2010.
Genebra, 2010. Disponível em: <http://www.unctad.org/
en/docs/ditcted20092_en.pdf>.
Banco Mundial. Doing Business 2010. Washington, D.C.,
2010. Disponível em: <http://www.doingbusiness.org/
documents/fullreport/2010/DB10-full-report.pdf>.
16
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