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ANO 18 •
35 • JANEIRO - JUNHO 2015
PUBLICAÇÃO OFICIAL DO
INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO - IASP
Diretor da Revista do IASP:
ELIAS FARAH
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
ANO 18 •
35 • JANEIRO - JUNHO 2015
Conselho Editorial:
ACACIO VAZ DE LIMA FILHO
KARINA PENNA NEVES
ADRIANA LAPORTA CARDINALI STRAUBE
KLEBER LUIZ ZANCHIM
LAIR LOUREIRO FILHO
ALBERTO CAMINA MOREIRA
ALEXANDRE JUNQUEIRA GOMIDE
LAURO CESAR MAZETTO FERREIRA
LUIZ CARLOS OLIVAN
ASDRUBAL FRANCO NASCIMBENI
LUIZ GUERRA
CARLOS ALBERTO MALUF SANSEVERINO
CARLOS EDUARDO NICOLETTI CAMILLO
LUIZ SERGIO MODESTO
MARCIA DINAMARCO
CARLOS FREDERICO ZIMMERMANN NETO
CLAUDIA ELISABETE SCHWERZ CAHALI
MARCIO BELLOCCHI
MARCOS PAULO DE ALMEIDA SALLES
DANIEL MARTINS BOULOS
DEBORA GOZZO
MARCUS VINÍCIUS LOBREGAT
MAURÍCIO AVILA PRAZAK
DINORÁ ADELAIDE MUSETTI GROTTI
DIOGO L. MACHADO DE MELO
MAURO GRINBERG
NELSON RENATO PALAIA RIBEIRO DE CAMPOS
DURVAL FERRO BARROS
EDSON ANTONIO MIRANDA
PAULO HAMILTON SIQUEIRA JUNIOR
ELIAS FARAH
PAULO LUCENA DE MENEZES
PAULO LUCON
EVANE BEIGUELMAN KRAMER
RAQUEL ELITA ALVES PRETO
EVERALDO AUGUSTO CAMBLER
FABIANA DOMINGUES CARDOSO
RICARDO ALVES BENTO
FABIANO CARVALHO
RICARDO PEAKE BRAGA
RICARDO SAYEG
FERNANDO FREIRE
ROBERTO CALDAS
FRANCISCO JOSÉ CAHALI
GLAUCO MARTINS GUERRA
RODRIGO BARIONI
GUSTAVO MILARÉ ALMEIDA
RODRIGO REBOUÇAS
ROGERIA GIEREMEK
IGOR MAULER SANTIAGO
ROGERIO MOLLICA
JORGE SHIGUEMITSU FUJITA
SILMARA CHINELLATO
JOSÉ ALBERTO COUTO MACIEL
WAGNER BALERA
JOSÉ AUGUSTO DELGADO
WALTER VIEIRA CENEVIVA
JOSE LUIS RIBEIRO BRAZUNA
ISSN 1415-7683
Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo
Ano 18 / Nº 35 / JANEIRO - JUNHO 2015
Edição e Distribuição da Editora IASP
Os colaboradores desta Revista gozam da mais ampla liberdade de opinião e de crítica, cabendo-lhes
a responsabilidade das ideias e conceitos emitidos em seus trabalhos.
Instituto dos Advogados de São Paulo - IASP
CNPJ: 43.198.555/0001-00
Rua Líbero Badaró, 377 - 26º andar - CEP 01009-000 São Paulo - SP - Brasil
Telefone: (55 11) 3106 - 8015
Site: www.iasp.org.br
E-mail: [email protected]
Fundado em 29 de Novembro de 1874
Revisão: Instituto dos Advogados de São Paulo
Capa e Diagramação: Kriando / Brandium
Impressão: Orgrafic
Impresso no Brasil: [09-2015]
SÃO PAULO, SETEMBRO DE 2015
ESTA OBRA É LICENCIADA POR UMA LICENÇA
CREATIVE COMMONS
Atribuição 4.0 Internacional
Você pode:
• copiar, distribuir, exibir e executar a obra;
• criar obras derivadas.
Sob as seguintes condições:
Atribuição. Você deve dar crédito ao autor original
Qualquer direito de uso legítimo (ou fair use) concedido por lei
ou qualquer outro direito protegido pela legislação local não são
em nenhuma hipótese afetados pelo disposto acima.
INTRODUÇÃO
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INTRODUÇÃO
JOSÉ HORÁCIO HALFELD REZENDE RIBEIRO
Presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP
O INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO, fundado em 29 de novembro de
1874, declarado de utilidade pública pelo Decreto Federal nº 62.480, de 28 de março
de 1968, Decreto Estadual nº 49.222, de 18 de janeiro de 1968 e Decreto Municipal nº
7.362, de 26 de janeiro de 1968, associação civil de fins não econômicos que congrega
os principais juristas, professores, advogados, magistrados e membros do Ministério
Público do país, admitidos por rigorosa avaliação com pareceres e votação, dedica-se
aos altos estudos e a difusão dos conhecimentos jurídicos, ampliando os horizontes da
cultura e das carreiras jurídicas em benefício da sociedade.
A fundação da Editora IASP foi o marco da comemoração dos 140 anos das atividades
do Instituto dos Advogados de São Paulo cuja essência sempre foi o debate que ecoa e
se pereniza com as publicações.
A Editora IASP dedica-se à publicação de revistas especializadas com os trabalhos
das Comissões de Estudos, de livros a partir da seleção de teses, dissertações, trabalhos
e pesquisas de excelência, bem como esta Revista do IASP que alcança seu número 35.
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
A reflexão e crítica são imprescindíveis, bem como a lição de Norberto Bobbio para
guiar o nosso trabalho, pois: “Aprendi a respeitar as idéias alheias, a deter-me diante
do segredo de cada consciência, a compreender antes de discutir, a discutir antes de
condenar.”
O IASP, completando 140 anos de existência, e sendo a mais antiga instituição jurídica associativa do Estado de São Paulo, continua a escrever uma história profícua e inspiradora, nunca se esquecendo que o progresso é a consolidação das conquistas, como
esta obra é instrumento para que se possa olhar para o futuro com responsabilidade,
responsabilidade essa que deve transcender mandatos e interesses particulares.
É nesse contexto que o Instituto dos Advogados de São Paulo colaborará para que
políticas públicas garantam uma perspectiva de vida digna para a sociedade, pois o
nosso país não deve e não pode estar abaixo das expectativas dos seus cidadãos.
O IASP continuará sendo a janela que ilumina a reflexão, os debates, guiado pelas
premissas de servir, e não ser servido, de conduzir e não ser conduzido.
APRESENTAÇÃO
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APRESENTAÇÃO
ELIAS FARAH
Diretor da Revista e Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo - IASP
Ao ensejo da apresentação deste número 35 da REVISTA DO IASP, muito nos regozijamos em poder destacar a notável contribuição que o sodalício vem prestando, ao longo da presente gestão, à cultura jurídica do país, em várias direções e áreas dos estudos
jurídicos, isolado ou coletivamente. Esta profícua e aplaudida façanha, se deve ao promissor e denodado empenho dos seus dIrigentes, sob a hábil batuta da sua presidência.
A revista anterior, de número 34, que iniciou a nova fase editorial, com a criação
da EDITORA IASP, lançada com muitos aplausos, em caráter especial, em homenagem
aos 140 anos de fundação do Instituto, buscou amplamente divulgar uma síntese do
grandioso programa de iniciativas culturais, desenvolvido por elevado número de
estudiosos do direito e de outros estudos de interesse científico e social.
Este número da tradicional revista do iASP constitui, pois, o fiel cumprimento do
compromisso de persistir na realização dos objetivos institucionais da entidade, o que
vêm sendo realizado mediante a publicação de outras novas revistas, dedicadas, cada
uma, à publicação de estudos de outras áreas do direito, e da cultura jurídica, que se
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
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somam aos inumeráveis seminários, palestras, congressos, e outras participações com
outros órgãos associativos ou corporativos da advocacia, para solução de impasses do
interesse comum.
Ao longo dos últimos anos, o IASP teve justa preocupação de convidar para participar dos seus tradicionais almoços, e conhecer-lhes os pensamentos, as mais renomadas
personalidades, como o vice-presidente da República, Michel Temer; o ministro do STF,
Ricardo Lewandowski; a jurista, Tereza Arruda Alvim Wambier; o jurista e agraciado com
o Prêmio Barão de Ramalho do IASP, Modesto Carvalhosa. Neste número foram publicadas as manifestações feitas durante os almoços dos referidos palestrantes. O IASP
busca, com aplaudida lealdade, contribuir no somatório das vozes dos que desejam ou
podem contribuir para formar e preservar a sociedade, quanto possível, mais organizada e feliz.
O presente número, por exemplo, abre as suas páginas para publicação de pareceres
e contribuições de associados do IASP. Busca, com isso, revelar a pujança intelectual
dos estudiosos que compõem o seu nobre corpo associativo, além da publicação de
estudos sobre direito civil, de direito de família, de propriedade industrial, de direito
penal, de direito público, além de considerações sobre o novo CPC. Está já organizado
em um índice geral, por temas, títulos, autores, tudo que já foi publicado nos 35
números da revista, como forma da disponibilizar para consulta a todos os estudiosos,
o extraordinário patrimônio cultural acumulado pela Instituição.
Os homens de bem do país precisam estar alertas na proteção das suas Instituições,
mantendo-as fortes e capazes de lutas e reivindicações. Da sua força, independência e
civismo é que depende a defesa da ordem legal e a segurança jurídica do cidadão. Uma
nuvem negra parece surgir no horizonte, ocultando um temporal oculto e destruidor,
que se formaram nas caladas das noites. Revelam, entretanto, que o poder legal precisa
estar necessariamente fortalecido em valores éticos e morais básicos. Instituições fortes,
altivas, independentes, inspiradas no civismo, são fundamentais para que a ordem legal
não seja quebrada.
Esta missão o IASP tem orgulhosamente procurado cumprir.
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DIRETORIA DO IASP
DIRETORES 2013.2014.2015
Presidente: José Horácio Halfeld Rezende Ribeiro
Vice-Presidente: Paulo Henrique dos Santos Lucon
Diretora Administrativa: Raquel Elita Alves Preto
Diretor Financeiro: Jairo Sampaio Saddi
Diretor Cultural: Diogo Leonardo Machado de Melo
Diretor de Comunicação: Fernando Calza de Salles Freire
DIRETORES DOS ÓRGÃOS
COMPLEMENTARES
Escola Paulista de Advocacia – EPA:
Renato de Mello Jorge Silveira
Comissão dos Novos Advogados – CNA:
Rodrigo Matheus
Câmara de Mediação e Arbitragem:
Marcos Rolim Fernandes Fontes
DIRETORES ADJUNTOS
Relações Internacionais: André de Almeida
Revista: Elias Farah
Relações Governamentais: Luiz Guerra
Núcleo de Pesquisa: Maria Garcia
Assuntos Legislativos: Mário Luiz Delgado
Letrado: Allan Moraes
ASSESSORES ESPECIAIS DA PRESIDÊNCIA
Fabiana Lopes Pinto
Fábio Carneiro Bueno Oliveira
Flávio Maia Fernandes dos Santos
Ivo Waisberg
Marina Pinhão Coelho Araújo
DIRETOR DE PATRIMÔNIO
DIRETORES DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS
Alex Costa Pereira
Alexandre Jamal Batista
Carla Rahal Benedetti
Carlos Linek Vidigal
Cassio Sabbagh Namur
Clarissa Campos Bernardo
Cláudio Gomara de Oliveira
Frederico Prado Lopes
José Marcelo Menezes Vigliar
Leonardo Augusto Furtado Palhares
Luiz Eduardo Boaventura Pacífico
Marco Antonio Fanucchi
Mauricio Scheinman
Miguel Pereira Neto
Milton Flávio de A. Camargo Lautenschläger
Ricardo Melantonio
Ricardo Peake Braga
Rodrigo Fernandes Rebouças
Ronaldo Vasconcelos
Zaiden Geraige Neto
Alexandre Sansone Pacheco
DIRETOR DA BIBLIOTECA
Roberto Correia da Silva Caldas
DIRETOR DO PROGRAMA DE TV
Cesar Klouri
ASSESSORES DO VICE-PRESIDENTE
Carolina Barros de Carvalho
Daniel Battaglia de Nuevo Campos
ASSESSORA DA DIRETORA
ADMINISTRATIVA
Paula Marcílio Tonani de Carvalho
ASSESSOR DA DIRETORIA CULTURAL
Alexandre Junqueira Gomide
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
CONSELHO 2013.2014.2015
CONSELHO 2015.2016.2017
EFETIVOS
Antonio de Souza Corrêa Meyer
Antonio José da Costa
Aparicio Dias
Celso Cintra Mori
Edson Antonio Miranda
Eduardo de Mello
Jorge Lauro Celidonio
Oscavo Cordeiro Corrêa Netto
Paulo Faingaus Bekin
Regina Beatriz Tavares da Silva
Ruy Pereira Camilo Junior
Wagner Balera
EFETIVOS
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira
Elias Farah
Eloy Franco de Oliveira Filho
Josefina Maria de Santana Dias
Luiz Antônio Sampaio Gouveia
Luiz Ignácio Homem De Mello
Manoel Alonso
Manuel Alceu Affonso Ferreira
Marcial Barreto Casabona
Maria Garcia
Oséas Davi Viana
Silmara Juny de Abreu Chinellato
COLABORADORES
Antonio Carlos Malheiros
Paulo Adib Casseb
COLABORADORES
Maria Cristina Zucchi
Ronaldo Alves de Andrade
CONSELHO 2014.2015.2016
COLÉGIO DE PRESIDENTES DO IASP
EFETIVOS
Carlos Alberto Dabus Maluf
Décio Policastro
Geraldo Facó Vidigal
Lauro Celidonio Gomes dos Reis Neto
Lionel Zaclis
Lourival José dos Santos
Luiz Antonio Alves de Souza
Marcos Paulo de Almeida Salles
Marilene Talarico Martins Rodrigues
Renato de Mello Jorge Silveira
Renato Ribeiro
Silvânio Covas
Ives Gandra da Silva Martins
Eduardo de Carvalho Tess
Rubens Approbato Machado
Rui Celso Reali Fragoso
Nelson Kojranski
Tales Castelo Branco
Maria Odete Duque Bertasi
Ivette Senise Ferreira
COLABORADORES
Alberto Camiña Moreira
Marco Antonio Marques da Silva
13
ASSOCIADOS DO IASP
ASSOCIADOS DO IASP
ACACIO VAZ DE LIMA FILHO
ACLIBES BURGARELLI
ADA PELLEGRINI GRINOVER
ADALBERTO SIMAO FILHO
ADELIA AUGUSTO DOMINGUES
ADEMIR DE CARVALHO BENEDITO
ADIB GERALDO JABUR
ADILSON ABREU DALLARI
ADRIANA BRAGHETTA
ADRIANA CALDAS DO REGO FREITAS DABUS MALUF
ADRIANA DE ALMEIDA ORTE NOVELLI CALDEIRA
ADRIANA LAPORTA CARDINALI STRAUBE
ADRIANO FERRIANI
AFONSO COLLA FRANCISCO JUNIOR
AFONSO GRISI NETO
AFRANIO AFFONSO FERREIRA NETO
AGOSTINHO TOFFOLI TAVOLARO
AIRES FERNANDINO BARRETO
ALAMIRO VELLUDO SALVADOR NETTO
ALBERTO CAMINA MOREIRA
ALBERTO PIMENTA JUNIOR
ALBERTO SANTOS PINHEIRO XAVIER
ALBERTO ZACHARIAS TORON
ALCIDES JORGE COSTA
ALESSANDRA NASCIMENTO SILVA E F. MOURAO
ALESSANDRO ROSTAGNO
ALEX COSTA PEREIRA
ALEXANDRE ALVES LAZZARINI
ALEXANDRE DAIUTO LEAO NOAL
ALEXANDRE DE ALMEIDA CARDOSO
ALEXANDRE DE MENDONCA WALD
ALEXANDRE DE MORAES
ALEXANDRE H.M.THIOLLIER FILHO
ALEXANDRE JAMAL BATISTA
ALEXANDRE JUNQUEIRA GOMIDE
ALEXANDRE MAGNO DE MENDONCA GRANDESE
ALEXANDRE PALERMO SIMOES
ALEXANDRE SANSONE PACHECO
ALFREDO LUIZ KUGELMAS
ALLAN MORAES
ALMIR PAZZIANOTTO PINTO
ALOYSIO RAPHAEL CATTANI
ALVARO VILLACA AZEVEDO
AMERICO IZIDORO ANGELICO
AMERICO LOURENCO MASSET LACOMBE
ANA CANDIDA MENEZES MARCATO
ANA CAROLINA AGUIAR BENETI
ANA CLAUDIA AKIE UTUMI
ANA EMILIA OLIVEIRA DE ALMEIDA PRADO
ANA LUCIA PENON GONCALVES
ANA LUISA PORTO BORGES
ANA LUIZA BARRETO DE ANDRADE FERNANDES NERY
ANA MARIA GOFFI FLAQUER SCARTEZZINI
ANA PAULA PELLEGRINA LOCKMANN
ANDRE ALMEIDA GARCIA
ANDRE DE ALMEIDA
ANDRE DE CARVALHO RAMOS
ANDRE GUSTAVO DE OLIVEIRA
ANDRE PAGANI DE SOUZA
ANDRE WEISZFLOG
ANDRE ZONARO GIACCHETTA
ANDREA TEIXEIRA PINHO
ANGELA MARIA DA MOTTA PACHECO
ANIS KFOURI JUNIOR
ANNA CANDIDA DA CUNHA FERRAZ
ANTENOR BATISTA
ANTONIO ARALDO FERRAZ DAL POZZO
ANTONIO AUGUSTO DE MESQUITA NETO
ANTONIO BRAGANCA RETTO
ANTONIO CANDIDO DE AZEVEDO SODRE FILHO
ANTONIO CARLOS AGUIAR
ANTONIO CARLOS DE ARAUJO CINTRA
ANTONIO CARLOS DE OLIVEIRA FREITAS
ANTONIO CARLOS MALHEIROS
ANTONIO CARLOS MATHIAS COLTRO
ANTONIO CARLOS MATOS RUIZ FILHO
ANTONIO CARLOS MATTEIS DE ARRUDA
ANTONIO CARLOS MATTEIS DE ARRUDA JUNIOR
ANTONIO CARLOS MENDES
ANTONIO CARLOS MONTEIRO DA SILVA FILHO
ANTONIO CARLOS MORATO
ANTONIO CARLOS VIANNA DE BARROS
ANTONIO CELSO FONSECA PUGLIESE
ANTONIO CELSO PINHEIRO FRANCO
ANTONIO CEZAR PELUSO
ANTONIO CLAUDIO MARIZ DE OLIVEIRA
ANTONIO DE ALMEIDA E SILVA
ANTONIO DE PADUA SOUBHIE NOGUEIRA
ANTONIO DE SOUZA CORREA MEYER
ANTONIO FAKHANY JUNIOR
ANTONIO FERNANDES RUIZ FILHO
ANTONIO GALVAO PERES
ANTONIO IVO AIDAR
ANTONIO JACINTO CALEIRO PALMA
ANTONIO JORGE PEREIRA JUNIOR
ANTONIO JOSE DA COSTA
ANTONIO LUIZ CALMON TEIXEIRA
ANTONIO PENTEADO MENDONCA
ANTONIO PINTO MONTEIRO
ANTONIO RULLI NETO
ANTONIO SERGIO BAPTISTA
ANTONIO TITO COSTA
APARICIO DIAS
AREOBALDO ESPINOLA OLIVEIRA LIMA FILHO
ARI POSSIDONIO BELTRAN
ARMANDO CASIMIRO COSTA
ARNALDO MALHEIROS
ARNOLDO WALD
ARNOLDO WALD FILHO
ARTHUR LUIS MENDONCA ROLLO
ARY OSWALDO MATTOS FILHO
ASDRUBAL FRANCO NASCIMBENI
AUGUSTO NEVES DAL POZZO
AURELIA LIZETE DE BARROS CZAPSKI
BELISARIO DOS SANTOS JUNIOR
BENEDICTO CELSO BENICIO
BENEDICTO PEREIRA CORTEZ
BENEDICTO PEREIRA PORTO NETO
BENEDITO ANTONIO DIAS DA SILVA
BENEDITO DANTAS CHIARADIA
14
BENEDITO EDISON TRAMA
BENTO RICARDO CORCHS DE PINHO
BERENICE SOUBHIE NOGUEIRA MAGRI
BERNARDO STROBEL GUIMARAES
BIANCA CASALE KITAHARA
BRASIL DO PINHAL PEREIRA SALOMAO
BRAZ MARTINS NETO
BRUNO BALDUCCINI
BRUNO DANTAS NASCIMENTO
BRUNO FREIRE E SILVA
CAESAR AUGUSTUS FERREIRA S. ROCHA SILVA
CAETANO LAGRASTA NETO
CAIO CESAR VIEIRA ROCHA
CAMILA DA MOTTA PACHECO A.ARAUJO TARZIA
CAMILA WERNECK DE SOUZA DIAS
CANDIDO DA SILVA DINAMARCO
CANDIDO RANGEL DINAMARCO
CARLA AMARAL ANDRADE J.CANERO
CARLA DOMENICO
CARLA RAHAL BENEDETTI
CARLO BARBIERI FILHO
CARLOS ALBERTO CARMONA
CARLOS ALBERTO DABUS MALUF
CARLOS ALBERTO FERRIANI
CARLOS ALBERTO MALUF SANSEVERINO
CARLOS DAVID ALBUQUERQUE BRAGA
CARLOS EDUARDO N. CAMILLO
CARLOS ELOI ELEGIO PERRELLA
CARLOS FIGUEIREDO MOURAO
CARLOS FRANCISCO DE MAGALHAES
CARLOS FREDERICO ZIMMERMANN NETO
CARLOS JOSE SANTOS DA SILVA
CARLOS LINEK VIDIGAL
CARLOS MARCELO GOUVEIA
CARLOS MARIANO DE PAULA CAMPOS
CARLOS MARIO DA SILVA VELLOSO
CARLOS MIGUEL CASTEX AIDAR
CARLOS PINTO DEL MAR
CARLOS RENATO DE AZEVEDO FERREIRA
CARLOS ROBERTO GONCALVES
CARLOS ROBERTO HUSEK
CAROLINA XAVIER DA SILVEIRA MOREIRA
CASSIO DE MESQUITA BARROS JUNIOR
CASSIO SABBAGH NAMUR
CASSIO SCARPINELLA BUENO
CASSIO TELLES FERREIRA NETTO
CECILIA FRANCO MINERVINO
CELSO ALVES FEITOSA
CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO
CELSO AUGUSTO COCCARO FILHO
CELSO CINTRA MORI
CELSO DE SOUZA AZZI
CELSO JACOMO BARBIERI
CELSO LAFER
CELSO RENATO D’AVILA
CESAR AMENDOLARA
CESAR AUGUSTO GUIMARAES PEREIRA
CESAR CIAMPOLINI NETO
CESAR MARCOS KLOURI
CHARLES D. COLE
CHRISTIANE DE CARVALHO STROPPA
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
CIBELE MIRIAM MALVONE TOLDO
CICERO JOSE DA SILVA
CID TOMANIK POMPEU
CID VIEIRA DE SOUZA FILHO
CLARISSA CAMPOS BERNARDO
CLAUDIA CARVALHO VALENTE
CLAUDIA ELISABETE SCHWERZ CAHALI
CLAUDIA NAHSSEN DE LACERDA FRANZE
CLAUDIO FELIPPE ZALAF
CLAUDIO GOMARA DE OLIVEIRA
CLAUDIO JOSE LANGROIVA PEREIRA
CLAUDIO MAURICIO ROBORTELLA BOSCHI PIGATTI
CLAUDIO SALVADOR LEMBO
CLEMENCIA BEATRIZ WOLTHERS
CLOVIS BEZNOS
CONSTANCA GONZAGA JUNQUEIRA DE MESQUITA
CORIOLANO AURELIO A.CAMARGO SANTOS
CRISTIANE MARREY MONCAU
CRISTIANO AVILA MARONNA
CRISTIANO DE SOUSA ZANETTI
CRISTIANO ZANIN MARTINS
CRISTOVAO COLOMBO DOS REIS MILLER
CUSTODIO DA PIEDADE UBALDINO MIRANDA
DALTON TOFFOLI TAVOLARO
DANIEL DE CAMARGO JUREMA
DANIEL MARTINS BOULOS
DANIEL PENTEADO DE CASTRO
DANIEL ZACLIS
DANIELA CAMPOS LIBORIO
DANTE BUSANA
DANTON DE ALMEIDA SEGURADO
DARIO ABRAHAO RABAY
DARMY MENDONCA
DAVID GUSMAO
DEBORA GOZZO
DECIO POLICASTRO
DELCIO BALESTERO ALEIXO
DENISE VIANA NONAKA ALIENDE RIBEIRO
DILZIANE ENDO DA CUNHA FRANCO
DINORA ADELAIDE MUSETTI GROTTI
DIOGENES MENDES GONCALVES NETO
DIOGO LEONARDO MACHADO DE MELO
DIOGO RAIS RODRIGUES MOREIRA
DIRCEO TORRECILLAS RAMOS
DIRCEU ANTONIO PASTORELLO
DIRCEU AUGUSTO DA CAMARA VALLE
DIRCEU DE MELLO
DIVA PRESTES MARCONDES MALERBI
DJALMA BITTAR
DOMINGOS SAVIO ZAINAGHI
DONALDO ARMELIN
DUDLEY DE BARROS BARRETO FILHO
DURVAL FERRO BARROS
ECIO PERIN JUNIOR
EDDA GONCALVES MAFFEI
EDEVALDO ALVES DA SILVA
EDGARD HERMELINO LEITE JUNIOR
EDGARD SILVEIRA BUENO FILHO
EDISON CARLOS FERNANDES
EDMO COLNAGHI NEVES
EDMO JOAO GELA
15
ASSOCIADOS DO IASP
EDSON ANTONIO MIRANDA
EDSON COSAC BORTOLAI
EDSON ELIAS ALVES DA SILVA
EDUARDO ARRUDA ALVIM
EDUARDO AUGUSTO ALCKMIN JACOB
EDUARDO AUGUSTO ALVES VERA-CRUZ PINTO
EDUARDO AUGUSTO DE OLIVEIRA RAMIRES
EDUARDO AUGUSTO MUYLAERT ANTUNES
EDUARDO CARVALHO TESS
EDUARDO CARVALHO TESS FILHO
EDUARDO DAMIAO GONCALVES
EDUARDO DE ALBUQUERQUE PARENTE
EDUARDO DE MELLO
EDUARDO DOMINGOS BOTTALLO
EDUARDO MOLAN GABAN
EDUARDO NELSON CANIL REPLE
EDUARDO REALE FERRARI
EDUARDO SILVEIRA MELO RODRIGUES
EDUARDO TELLES PEREIRA
EDVALDO PEREIRA DE BRITO
EID GEBARA
ELEONORA COELHO
ELIANA CALMON ALVES
ELIANA RACHED TAIAR
ELIANE CRISTINA CARVALHO TEIXEIRA
ELIANE TREVISANI MOREIRA
ELIANE YACHOUH ABRAO
ELIAS FARAH
ELIAS KATUDJIAN
ELIAS MARQUES DE MEDEIROS NETO
ELIO ANTONIO COLOMBO JUNIOR
ELISABETH V. DE GENNARI
ELIZABETH NANTES CAVALCANTE
ELIZABETH NAZAR CARRAZZA
ELOISA DE SOUSA ARRUDA
ELOY CAMARA VENTURA
ELOY FRANCO DE OLIVEIRA FILHO
EMERSON DEL RE
ENRIQUE RICARDO LEWANDOWSKI
ERICKSON GAVAZZA MARQUES
ERNESTO ANTUNES DE CARVALHO
ERNESTO JOSE PEREIRA DOS REIS
ESTEVAO MALLET
ESTEVAO PRADO DE OLIVEIRA CARVALHO
EUCLIDES BENEDITO DE OLIVEIRA
EUCLYDES JOSE MARCHI MENDONCA
EURIPEDES SALES
EVANE BEIGUELMAN KRAMER
EVELCOR FORTES SALZANO
EVELIN SOFIA ROSENBERG KONIG
EVERALDO AUGUSTO CAMBLER
FABIANA DOMINGUES CARDOSO
FABIANA LOPES PINTO
FABIANO CARVALHO
FABIANO SCHWARTZMANN FOZ
FABIO CARNEIRO BUENO OLIVEIRA
FABIO DE SA CESNIK
FABIO DE SOUZA RAMACCIOTTI
FABIO GUIMARAES CORREA MEYER
FABIO LOPES VILELA BERBEL
FABIO MACHADO DE ALMEIDA DELMANTO
FABIO MESSIANO PELLEGRINI
FABIO MOURAO SANDOVAL
FABIO NUSDEO
FABIO PRIETO DE SOUZA
FABIO ROMEU CANTON FILHO
FABIO ROSAS
FABIO ULHOA COELHO
FABIOLA MARQUES
FABRICIO FAVERO
FATIMA CRISTINA PIRES MIRANDA
FATIMA FERNANDES RODRIGUES DE SOUZA
FATIMA NANCY ANDRIGHI
FELICE BALZANO
FELIPE EVARISTO DOS SANTOS GALEA
FELIPE LOCKE CAVALCANTI
FELIX RUIZ ALONSO
FERNANDA DE GOUVEA LEAO
FERNANDA GARCEZ LOPES DE SOUZA
FERNANDA HENNEBERG BENEMOND
FERNANDA MARQUES BAYEUX
FERNANDA TARTUCE SILVA
FERNANDO ANTONIO ALBINO DE OLIVEIRA
FERNANDO BERTAZZI VIANNA
FERNANDO BORGES VIEIRA
FERNANDO BRANDAO WHITAKER
FERNANDO CALZA DE SALLES FREIRE
FERNANDO CAMPOS SCAFF
FERNANDO CASTELO BRANCO
FERNANDO DANTAS MOTTA NEUSTEIN
FERNANDO DE OLIVEIRA MARQUES
FERNANDO FACURY SCAFF
FERNANDO FORTE
FERNANDO FRAGOSO
FERNANDO GASPAR NEISSER
FERNANDO JOSE DA COSTA
FERNANDO LUIZ DA GAMA LOBO D ECA
FERNANDO PEREIRA
FERNANDO SACCO NETO
FLAVIA CRISTINA MOREIRA DE CAMPOS ANDRADE
FLAVIO ALBERTO GONCALVES GALVAO
FLAVIO FRANCO
FLAVIO JAHRMANN PORTUGAL
FLAVIO JOSE DE SOUZA BRANDO
FLAVIO LUIZ YARSHELL
FLAVIO MAIA FERNANDES DOS SANTOS
FLAVIO MURILO TARTUCE SILVA
FLAVIO PEREIRA LIMA
FLAVIO YUNES ELIAS FRAIHA
FLORIANO CORREA VAZ DA SILVA
FRANCISCO ANTONIO BIANCO NETO
FRANCISCO ANTONIO FEIJO
FRANCISCO ANTUNES MACIEL MUSSNICH
FRANCISCO ARY MONTENEGRO CASTELO
FRANCISCO AUGUSTO DE J.V. FALSETTI
FRANCISCO AURELIO DENENO
FRANCISCO CESAR ASFOR ROCHA
FRANCISCO CESAR PINHEIRO RODRIGUES
FRANCISCO DE ASSIS VASCONCELLOS P. DA SILVA
FRANCISCO GONCALVES NETO
FRANCISCO JOSE CAHALI
FRANCISCO JOSE F. DE SOUZA R. DA SILVA
16
FREDERICO PRADO LOPES
GABRIEL JORGE FERREIRA
GABRIEL MARCILIANO JUNIOR
GABRIEL SEIJO LEAL DE FIGUEIREDO
GASTAO ALVES DE TOLEDO
GENESIO CANDIDO PEREIRA FILHO
GEORGE WASHINGTON TENORIO MARCELINO
GEORGHIO ALESSANDRO TOMELIN
GERALDO DE FIGUEIREDO FORBES
GERALDO FACO VIDIGAL
GERALDO MAGELA DA CRUZ QUINTAO
GIL COSTA CARVALHO
GILBERTO BERCOVICI
GILBERTO DE CASTRO MOREIRA JUNIOR
GILBERTO HADDAD JABUR
GILBERTO ILDEFONSO FERREIRA CONTI
GILDA FIGUEIREDO FERRAZ DE ANDRADE
GILDO DOS SANTOS
GILSON HIROSHI NAGANO
GIOVANNA CARDOSO GAZOLA
GIOVANNI ETTORE NANNI
GLAUCIA MARA COELHO
GLAUCO MARTINS GUERRA
GUILHERME ALFREDO DE MORAES NOSTRE
GUILHERME CARVALHO E SOUSA
GUILHERME MARTINS MALUFE
GUILHERME OCTAVIO BATOCHIO
GUSTAVO D ACOL CARDOSO
GUSTAVO FERRAZ DE CAMPOS MONACO
GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARO
GUSTAVO MILARE ALMEIDA
GUSTAVO NEVES FORTE
GUSTAVO RENE NICOLAU
HAMILTON DIAS DE SOUZA
HAMILTON ELLIOT AKEL
HAMILTON PENNA
HAROLDO MALHEIROS DUCLERC VERCOSA
HELCIO HONDA
HELENA REGINA LOBO DA COSTA
HELENO TAVEIRA TORRES
HELIO PEREIRA BICUDO
HELIO RAMOS DOMINGUES
HELIO RUBENS BATISTA RIBEIRO COSTA
HERMES MARCELO HUCK
HOMERO ALVES DE SA
HORACIO BERNARDES NETO
HUGO FUNARO
IGNACIO MARIA POVEDA VELASCO
IGOR MAULER SANTIAGO
IGOR SANT ANNA TAMASAUKAS
ILENE PATRICIA DE NORONHA NAJJARIAN
ISABEL DELFINO SILVA MASSAIA
ISABEL MARINANGELO
IVANA CO GALDINO CRIVELLI
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS
IVETTE SENISE FERREIRA
IVO WAISBERG
JAIRO HABER
JAIRO SAMPAIO SADDI
JANE GRANZOTO TORRES DA SILVA
JAQUES BUSHATSKY
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
JAYME PAIVA BRUNA
JERONIMO ROMANELLO NETO
JOAO ADELINO DE MORAIS ALMEIDA PRADO
JOAO ALBERTO SCHUTZER DEL NERO
JOAO ARMANDO MORETTO AMARANTE
JOAO BAPTISTA MORELLO NETTO
JOAO BIAZZO FILHO
JOAO BRASIL VITA
JOAO DANIEL RASSI
JOAO FRANCISCO RAPOSO SOARES
JOAO JOSE PEDRO FRAGETI
JOAO OTAVIO DE NORONHA
JOAO PAULO HECKER DA SILVA
JOAQUIM PORTES DE CERQUEIRA CESAR
JONATHAN BARROS VITA
JONES FIGUEIREDO ALVES
JORGE ELUF NETO
JORGE HENRIQUE AMARAL ZANINETTI
JORGE LAURO CELIDONIO
JORGE LUIZ DE MORAES DANTAS
JORGE SHIGUEMITSU FUJITA
JORGE TADEO FLAQUER SCARTEZZINI
JOSE ALBERTO COUTO MACIEL
JOSE ALBERTO WEISS DE ANDRADE
JOSE ALEXANDRE AMARAL CARNEIRO
JOSE ALEXANDRE TAVARES GUERREIRO
JOSE ANCHIETA DA SILVA
JOSE ANTONIO DE ANDRADE MARTINS
JOSE ARNALDO VIANNA CIONE FILHO
JOSE ARTUR LIMA GONCALVES
JOSE AUGUSTO DELGADO
JOSE AUGUSTO RODRIGUES JUNIOR
JOSE CALIMERIO MUZETTI
JOSE CARLOS BAPTISTA PUOLI
JOSE CARLOS DA SILVA AROUCA
JOSE CARLOS DE CARVALHO CARNEIRO
JOSE CARLOS DE MORAES SALLES
JOSE CARLOS DIAS
JOSE CARLOS FAGONI BARROS
JOSE CARLOS LEITE M. DE OLIVEIRA
JOSE CARLOS MAGALHAES T. FILHO
JOSE CARLOS MOREIRA ALVES
JOSE CELSO DE MELLO FILHO
JOSE DE ARAUJO NOVAES NETO
JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO
JOSE DEL CHIARO FERREIRA DA ROSA
JOSE EBRAN
JOSE EDUARDO DUARTE SAAD
JOSE EDUARDO GOMES PEREIRA
JOSE EDUARDO HADDAD
JOSE EDUARDO RANGEL DE ALCKMIN
JOSE EDUARDO SOARES DE MELO
JOSE EDUARDO VERGUEIRO NEVES
JOSE FERNANDO CHRISTINO NETTO
JOSE FERNANDO SIMAO
JOSE FRANCISCO LOPES DE MIRANDA LEAO
JOSE FRANCISCO REZEK
JOSE FRANCISCO VIEIRA DE FARIA
JOSE GERALDO FERREIRA DE CASTILHO NETO
JOSE GUILHERME CARNEIRO QUEIROZ
JOSE HORACIO CINTRA GONCALVES PEREIRA
17
ASSOCIADOS DO IASP
JOSE HORACIO HALFELD REZENDE RIBEIRO
JOSE INACIO GONZAGA FRANCESCHINI
JOSE JOAQUIM GOMES CANOTILHO
JOSE JORGE NOGUEIRA DE MELLO
JOSE JORGE TANNUS
JOSE LUIS DE SALLES FREIRE
JOSE LUIS MENDES DE OLIVEIRA LIMA
JOSE LUIS RIBEIRO BRAZUNA
JOSE LUIZ PIRES DE OLIVEIRA DIAS
JOSE LUIZ TORO DA SILVA
JOSE MACHADO DE CAMPOS FILHO
JOSE MANOEL DE ARRUDA ALVIM NETO
JOSE MANSSUR
JOSE MARCELO MENEZES VIGLIAR
JOSE MARIA DE MELLO FREIRE
JOSE MARIA SIVIERO
JOSE MARIA WHITAKER NETO
JOSE MAURO MARQUES
JOSE NANTALA BADUE FREIRE
JOSE NERI DA SILVEIRA
JOSE OSORIO DE AZEVEDO JUNIOR
JOSE PAULO MOUTINHO FILHO
JOSE PAULO SEPULVEDA PERTENCE
JOSE RAIMUNDO GOMES DA CRUZ
JOSE RENATO NALINI
JOSE REYNALDO PEIXOTO DE SOUZA
JOSE RICARDO BIAZZO SIMON
JOSE ROBERTO BATOCHIO
JOSE ROBERTO DOS SANTOS BEDAQUE
JOSE ROBERTO OPICE BLUM
JOSE ROBERTO PEIRETTI DE GODOY
JOSE ROBERTO PERNOMIAN RODRIGUES
JOSE RODRIGUES DE CARVALHO NETTO
JOSE RUBENS SALGUEIRO MACHADO DE CAMPOS
JOSE THEODORO ALVES DE ARAUJO
JOSE YUNES
JOSEFINA MARIA DE SANTANA DIAS
JUDITH MARTINS-COSTA
JULIANA ABRUSIO FLORENCIO
JULIANA FERREIRA ANTUNES DUARTE
JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHAO
JULIO KAHAN MANDEL
JUNIA VERNA FERREIRA DE SOUZA
JUSSARA RITA RAHAL
JUSTINO MAGNO ARAUJO
KARINA PENNA NEVES
KATIA BOULOS
KAZUO WATANABE
KIYOSHI HARADA
KLEBER LUIZ ZANCHIM
LAERCIO LAURELLI
LAERCIO MONTEIRO DIAS
LAERCIO NILTON FARINA
LAERTES DE MACEDO TORRENS
LAFAYETTE POZZOLI
LAIR DA SILVA LOUREIRO FILHO
LAIS AMARAL REZENDE DE ANDRADE
LARISSA TEIXEIRA QUATTRINI
LAURO CELIDONIO GOMES DOS REIS NETO
LAURO CESAR MAZETTO FERREIRA
LAURO MALHEIROS FILHO
LEANDRO SARCEDO
LELIA CRISTINA RAPASSI DIAS DE SALLES FREIRE
LEO KRAKOWIAK
LEO MEIRELLES DO AMARAL
LEONARDO AUGUSTO FURTADO PALHARES
LEONARDO BAREM LEITE
LEONARDO LINS MORATO
LEONARDO MASSUD
LEONARDO SARTORI SIGOLLO
LEONARDO SICA
LEONEL CESARINO PESSOA
LEOPOLDO UBIRATAN CARREIRO PAGOTTO
LESLIE AMENDOLARA
LIDIA VALERIO MARZAGAO
LIONEL ZACLIS
LIVIO DE VIVO
LOURIVAL JOSE SANTOS
LUCIANA GERBOVIC AMIKY
LUCIANA NUNES FREIRE
LUCIANO ANDERSON DE SOUZA
LUCIANO DE SOUZA GODOY
LUCIANO FERREIRA LEITE
LUIGI MARIA JACOPO GHISLAIN CHIERICHETTI
LUIS ALEXANDRE BARBOSA
LUIS ANDRE NEGRELLI DE MOURA AZEVEDO
LUIS ANTONIO SEMEGHINI DE SOUZA
LUIS CAMARGO PINTO DE CARVALHO
LUIS CESAR AMAD COSTA
LUIS EDUARDO SIMARDI FERNANDES
LUIS FELIPE SALOMAO
LUIS OTAVIO SEQUEIRA DE CERQUEIRA
LUIS PAULO ALIENDE RIBEIRO
LUIZ ANTONIO ALVES DE SOUZA
LUIZ ANTONIO GUERRA DA SILVA
LUIZ ANTONIO SAMPAIO GOUVEIA
LUIZ ARTHUR CASELLI GUIMARAES
LUIZ AUGUSTO AZEVEDO DE ALMEIDA HOFFMANN
LUIZ AUGUSTO PRADO BARRETO
LUIZ CARLOS AMORIM ROBORTELLA
LUIZ CARLOS ANDREZANI
LUIZ CARLOS DE AZEVEDO RIBEIRO
LUIZ CARLOS FONTES DE ALENCAR
LUIZ CARLOS OLIVAN
LUIZ CARLOS PACHECO E SILVA
LUIZ EDSON FACHIN
LUIZ EDUARDO BOAVENTURA PACIFICO
LUIZ EDUARDO MARTINS FERREIRA
LUIZ FELIPE HADLICH MIGUEL
LUIZ FELIPE PERRONE DOS REIS
LUIZ FERNANDO ALOUCHE
LUIZ FERNANDO DE CAMARGO PRUDENTE DO AMARAL
LUIZ FERNANDO DO VALE DE ALMEIDA GUILHERME
LUIZ FERNANDO MARTINS KUYVEN
LUIZ FERNANDO MUSSOLINI JUNIOR
LUIZ FLAVIO BORGES D’URSO
LUIZ FLAVIO GOMES
LUIZ FRANCISCO LIPPO
LUIZ FUX
LUIZ GONZAGA BERTELLI
LUIZ GUILHERME MOREIRA PORTO
LUIZ IGNACIO HOMEM DE MELLO
18
LUIZ LEMOS LEITE
LUIZ OLAVO BAPTISTA
LUIZ PERISSE DUARTE JUNIOR
LUIZ RAFAEL DE VARGAS MALUF
LUIZ SERGIO MODESTO
LUIZ TZIRULNIK
MAIDA SILVESTRI
MAIRAN GONCALVES MAIA JUNIOR
MANOEL ALONSO
MANOEL ANTONIO TEIXEIRA FILHO
MANOEL GONCALVES FERREIRA FILHO
MANUEL ALCEU AFFONSO FERREIRA
MANUEL INACIO ARAUJO SILVA
MARCAL JUSTEN FILHO
MARCEL CORDEIRO
MARCEL LEONARDI
MARCELLO MARTINS MOTTA FILHO
MARCELO ANTONIO MOSCOGLIATO
MARCELO BESERRA
MARCELO BOTELHO PUPO
MARCELO COSTA MASCARO NASCIMENTO
MARCELO GUEDES NUNES
MARCELO GUIMARAES DA ROCHA E SILVA
MARCELO LUCON
MARCELO MANHAES DE ALMEIDA
MARCELO ROSSI NOBRE
MARCELO TADEU ALVES BOSCO
MARCELO TERRA
MARCELO TESHEINER CAVASSANI
MARCELO THIOLLIER
MARCELO UCHOA DA VEIGA JUNIOR
MARCELO VIANA SALOMAO
MARCELO XAVIER DE FREITAS CRESPO
MARCIA CONCEICAO ALVES DINAMARCO
MARCIA MARTINS MIGUEL
MARCIAL BARRETO CASABONA
MARCIO CALIL DE ASSUMPCAO
MARCIO CAMMAROSANO
MARCIO DO CARMO FREITAS
MARCIO PESTANA
MARCO ANTONIO FANUCCHI
MARCO ANTONIO INNOCENTI
MARCO ANTONIO MARQUES DA SILVA
MARCO AURELIO BRASIL LIMA
MARCO AURELIO GRECO
MARCO AURELIO MENDES DE FARIAS MELLO
MARCO FABIO MORSELLO
MARCO VANIN GASPARETTI
MARCOS DA COSTA
MARCOS PAULO DE ALMEIDA SALLES
MARCOS ROLIM FERNANDES FONTES
MARCOS VINICIO RAISER DA CRUZ
MARCOS VINICIUS DE CAMPOS
MARCUS VINICIUS DOS SANTOS ANDRADE
MARCUS VINICIUS FURTADO COELHO
MARCUS VINICIUS LOBREGAT
MARESKA TIVERON SALGE DE AZEVEDO
MARIA AURORA CARDOSO DA SILVA OMORI
MARIA CECILIA DIAS DE ANDRADE SANTOS
MARIA CELESTE CORDEIRO LEITE SANTOS
MARIA CELESTE DE OLIVEIRA
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
MARIA CLARA DA SILVEIRA VILASBOAS ARRUDA
MARIA CRISTINA IRIGOIYEN PEDUZZI
MARIA CRISTINA ZUCCHI
MARIA DE LOURDES PEREIRA CAMPOS
MARIA DO CEU MARQUES ROSADO
MARIA ELIZABETH QUEIJO
MARIA EUGENIA RAPOSO DA SILVA TELLES
MARIA FERNANDA VAIANO S.CHAMMAS
MARIA GARCIA
MARIA HELENA DINIZ
MARIA LUCIA GIANGIACOMO BONILHA
MARIA ODETE DUQUE BERTASI
MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO
MARIANA CONTI CRAVEIRO
MARIANA NADDEO LOPES DA CRUZ CASARTELLI
MARILENE TALARICO MARTINS RODRIGUES
MARILIA MURICY MACHADO PINTO
MARINA BEVILACQUA DE LA TOULOUBRE
MARINA PINHAO COELHO ARAUJO
MARIO ANTONIO FRANCISCO DI PIERRO
MARIO DE BARROS DUARTE GARCIA
MARIO LUIZ DELGADO REGIS
MARIO LUIZ OLIVEIRA DA COSTA
MARIO SERGIO DE MELLO FERREIRA
MARIO SERGIO DUARTE GARCIA
MARIO SERGIO MILANI
MARLENE LAURO
MARTA MARIA RUFFINI PENTEADO GUELLER
MARTIM DE ALMEIDA SAMPAIO
MASATO NINOMIYA
MATHIAS ALEXEY WOELZ
MAUCIR FREGONESI JUNIOR
MAURICIO ANDERE VON BRUCK LACERDA
MAURICIO ASNIS
MAURICIO AVILA PRAZAK
MAURICIO BAPTISTELLA BUNAZAR
MAURICIO FERREIRA LEITE
MAURICIO GRANADEIRO GUIMARAES
MAURICIO SCHAUN JALIL
MAURICIO SCHEINMAN
MAURICIO TRALDI
MAURICIO ZANOIDE DE MORAES
MAURO AUGUSTO PONZONI FALSETTI
MAURO CARAMICO
MAURO DE MORAIS
MAURO DELPHIM DE MORAES
MAURO GRINBERG
MAURO LUCIANO HAUSCHILD
MAURO OTAVIO NACIF
MEJOUR DOUGLAS ANTONIOLI
MICHEL MIGUEL ELIAS TEMER LULIA
MIGUEL ALFREDO MALUFE NETO
MIGUEL PEREIRA NETO
MIGUEL REALE JUNIOR
MILENE CALFAT MALDAUN
MILTON FLAVIO DE A. CAMARGO LAUTENSCHLAGER
MILTON PAULO DE CARVALHO
MODESTO SOUZA BARROS CARVALHOSA
MOIRA VIRGINIA HUGGARD CAINE
MOISES AKSELRAD
MORVAN MEIRELLES COSTA JUNIOR
19
ASSOCIADOS DO IASP
MURILO MAGALHAES CASTRO
NANCY TANCSIK DE OLIVEIRA
NELSON KOJRANSKI
NELSON MANNRICH
NELSON NERY JUNIOR
NELSON RENATO PALAIA RIBEIRO DE CAMPOS
NELSON TABACOW FELMANAS
NEWTON DE LUCCA
NEWTON JOSE DE OLIVEIRA NEVES
NEWTON SILVEIRA
NEY PRADO
NILSON LAUTENSCHLEGER JUNIOR
NORMA JORGE KYRIAKOS
OLAVO DE OLIVEIRA NETO
ORESTE NESTOR DE SOUZA LASPRO
ORLANDO MALUF HADDAD
OSCAVO CORDEIRO CORREA NETTO
OSEAS DAVI VIANA
OSWALDO CHADE
OSWALDO SANT’ANNA
OTAVIO LUIZ RODRIGUES JUNIOR
OVIDIO ROCHA BARROS SANDOVAL
PATRICIA ROSSET
PAULA MARCILIO TONANI DE CARVALHO
PAULO ADIB CASSEB
PAULO AFONSO PINTO DOS SANTOS
PAULO AMADOR THOMAZ ALVES DA CUNHA BUENO
PAULO AYRES BARRETO
PAULO CELSO BERGSTROM BONILHA
PAULO CEZAR PINHEIRO CARNEIRO
PAULO DE BARROS CARVALHO
PAULO EDUARDO DE CAMPOS LILLA
PAULO EGIDIO SEABRA SUCCAR
PAULO FAINGAUS BEKIN
PAULO FERNANDO CAMPOS SALLES DE TOLEDO
PAULO HAMILTON SIQUEIRA JUNIOR
PAULO HENRIQUE CREMONEZE PACHECO
PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON
PAULO LUCENA DE MENEZES
PAULO MAGALHAES NASSER
PAULO MIGUEL DE CAMPOS PETRONI
PAULO NAPOLEAO N. BASILE NOGUEIRA SILVA
PAULO ROBERTO DE OLIVEIRA SCHMIDT
PAULO ROBERTO JOAQUIM DOS REIS
PAULO ROBERTO SARAIVA DA COSTA LEITE
PAULO SALVADOR FRONTINI
PAULO SERGIO V. PEREIRA
PEDRO ALBERTO DO AMARAL DUTRA
PEDRO ALCANTARA SILVA L.FILHO
PEDRO AUGUSTO DE FREITAS GORDILHO
PEDRO DA SILVA DINAMARCO
PEDRO DE ABREU MARIANI
PEDRO LUCIANO MARREY JUNIOR
PEDRO PAULO DE REZENDE PORTO FILHO
PEDRO PAULO TEIXEIRA MANUS
PEDRO PAULO WENDEL GASPARINI
PERSIO THOMAZ FERREIRA ROSA
PHILIP ANTONIOLI
PIERPAOLO CRUZ BOTTINI
PLINIO BOLIVAR DE ALMEIDA
PRISCILA MARIA PEREIRA CORREA DA FONSECA
PRISCILA SANTOS ARTIGAS
PRISCILA UNGARETTI DE GODOY WALDER
RACHEL FERREIRA ARAUJO TUCUNDUVA
RAPHAEL GARCIA FERRAZ DE SAMPAIO
RAQUEL ELITA ALVES PRETO
REGINA AFFONSO DOS SANTOS FONSECA RIBEIRO
REGINA BEATRIZ TAVARES DA SILVA
REGINA LUCIA SMITH DE MORAES ARAUJO
REGINA SAHM
REGIS FERNANDES DE OLIVEIRA
RENAN LOTUFO
RENATA ALONSO
RENATA DE ARRUDA BOTELHO DA VEIGA TURCO
RENATA LORENZETTI GARRIDO
RENATA SILVA FERRARA
RENATO AFONSO GONCALVES
RENATO DE MELLO JORGE SILVEIRA
RENATO LUIZ DE MACEDO MANGE
RENATO MACEDO BURANELLO
RENATO MULLER DA SILVA OPICE BLUM
RENATO RIBEIRO
RENATO RODRIGUES TUCUNDUVA JUNIOR
RENATO XAVIER DA SILVEIRA ROSA
RENNAN FARIA KRUGER THAMAY
RENZO LEONARDI
RICARDO ALVES BENTO
RICARDO BARRETO FERREIRA SILVA
RICARDO CHOLBI TEPEDINO
RICARDO DAGRE SCHMID
RICARDO DOS SANTOS CASTILHO
RICARDO HASSON SAYEG
RICARDO JOSE MARTINS
RICARDO LISBOA JUNQUEIRA
RICARDO MARIZ DE OLIVEIRA
RICARDO MELANTONIO
RICARDO PEAKE BRAGA
RICARDO PENTEADO DE FREITAS BORGES
RIVADAVIA PEREIRA GOMES
ROBERTA JARDIM DE MORAIS
ROBERTO CORREA
ROBERTO CORREIA DA SILVA GOMES CALDAS
ROBERTO DE SIQUEIRA CAMPOS
ROBERTO DELMANTO JUNIOR
ROBERTO GARCIA LOPES PAGLIUSO
ROBERTO LATIF KFOURI
ROBERTO MALICHESKI FERREIRA
ROBERTO PARAHYBA DE ARRUDA PINTO
ROBERTO PODVAL
ROBERTO QUIROGA MOSQUERA
ROBERTO ROSAS
ROBERTO SENISE LISBOA
ROBERTO SOARES ARMELIN
ROBERTO TEIXEIRA
RODOLFO DA COSTA MANSO REAL AMADEO
RODRIGO BERNARDES DIAS
RODRIGO FERNANDES REBOUCAS
RODRIGO GAGO FREITAS BARBOSA
RODRIGO JORGE MORAES
RODRIGO MATHEUS
RODRIGO OTAVIO BARIONI
RODRIGO ROCHA MONTEIRO DE CASTRO
20
ROGERIA PAULA BORGES GIEREMEK
ROGERIO BORGES DE CASTRO
ROGERIO IVES BRAGHITTONI
ROGERIO MOLLICA
ROGERIO VIDAL GANDRA DA SILVA MARTINS
ROMEU GIORA JUNIOR
ROMULO DE SOUZA PIRES
RONALDO ALVES DE ANDRADE
RONALDO VASCONCELOS
RONY VAINZOF
ROQUE ANTONIO CARRAZZA
ROSIMARA RAIMUNDO VUOLO
RUBENS APPROBATO MACHADO
RUBENS BECAK
RUBENS CARMO ELIAS
RUBENS CARMO ELIAS FILHO
RUBENS DECOUSSAU TILKIAN
RUBENS FERRAZ DE OLIVEIRA LIMA
RUBENS NAVES
RUBENS TARCISIO FERNANDES VELLOZA
RUBENS TAVARES AIDAR
RUDI ALBERTO LEHMANN JUNIOR
RUI CELSO REALI FRAGOSO
RUI FERREIRA PIRES SOBRINHO
RUI GERALDO CAMARGO VIANA
RUY MARTINS ALTENFELDER SILVA
RUY PEREIRA CAMILO JUNIOR
RUY ROSADO DE AGUIAR JUNIOR
SANDRA REGINA COMI
SANDRO DANTAS CHIARADIA JACOB
SANTO ROMEU NETTO
SEBASTIAO BARBOSA DE ALMEIDA
SERGEI COBRA ARBEX
SERGIO BERMUDES
SERGIO DE FREITAS COSTA
SERGIO DE MAGALHAES FILHO
SERGIO FERRAZ
SERGIO GONINI BENICIO
SERGIO MARTINS RSTON
SERGIO QUINTELA DE MIRANDA
SERGIO ROSENTHAL
SHIRLEY FERNANDES MARCON CHALITA
SIDNEI AGOSTINHO BENETI
SIDNEI AMENDOEIRA JUNIOR
SIDNEI TURCZYN
SIDNEY GRACIANO FRANZE
SILMARA JUNY DE ABREU CHINELLATO
SILVANA BUSSAB ENDRES
SILVANIO COVAS
SILVANO ANDRADE DO BOMFIM
SILVIA DA GRACA GONCALVES COSTA
SILVIO DE SALVO VENOSA
SILVIO SIMONAGGIO
SONIA MARIA GIANNINI MARQUES DOBLER
SONIA STERMAN
SUSETE GOMES
SUSY GOMES HOFFMANN
SYDNEY SANCHES
SYLVIO CESAR AFONSO
SYLVIO JOSE DO AMARAL GOMES
TAIS BORJA GASPARIAN
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
TALES CASTELO BRANCO
TALLULAH KOBAYASHI DE ANDRADE CARVALHO
TAMIRA MAIRA FIORAVANTE
TANIA NIGRI
TATIANA DRATOVSKY SISTER
TERCIO CHIAVASSA
TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR
TERESA CELINA DE ARRUDA ALVIM WAMBIER
THEREZA CELINA DINIZ DE ARRUDA ALVIM
THIAGO RODOVALHO DOS SANTOS
THIAGO TABORDA SIMOES
THOMAS BENES FELSBERG
TIAGO ASFOR LIMA
UBIRATAN MATTOS
ULISSES BUTURA SIMOES
ULYSSES DE OLIVEIRA GONCALVES JR
UMBERTO LUIZ BORGES D URSO
VALTER EUSTAQUIO FRANCO
VANESSA VILARINO LOUZADA
VANIA MARIA RUFFINI PENTEADO BALERA
VERA LUCIA ANGRISANI
VERA LUCIA DE MELLO NAHRA
VERA MARIA CALDAS WILKINSON
VICENTE MAROTA RANGEL
VICTOR LUIS DE SALLES FREIRE
VINICIUS BAIRAO ABRAO MIGUEL
VINICIUS LOBATO COUTO
VITOR RHEIN SCHIRATO
VITOR WEREBE
VITORINO FRANCISCO ANTUNES NETO
VLADMIR OLIVEIRA DA SILVEIRA
WAGNER BALERA
WALFRIDO JORGE WARDE JUNIOR
WALTER CENEVIVA
WALTER PIVA RODRIGUES
WALTER VIEIRA CENEVIVA
WANESSA DE CASSIA FRANCOLIN
WILSON LUIS DE SOUSA FOZ
WILSON RODRIGUES DE FARIA
WOLF GRUENBERG
YARA MARTINEZ DE CARVALHO E SILVA STROPPA
ZAIDEN GERAIGE NETO
ZELMO DENARI
21
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
JOSÉ HORÁCIO HALFELD REZENDE RIBEIRO
7
APRESENTAÇÃO
ELIAS FARAH
9
DIRETORIA DO IASP
11
ASSOCIADOS DO IASP
13
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
OPINIÃO LEGAL DECRETO 8.441/2015
SUSY GOMES HOFFMANN
27
AUDIÊNCIA DE CUSTÔDIA
MARCELO XAVIER DE FREITAS CRESPO
55
MENOR SOB GUARDA
WAGNER BALERA
75
NECESSIDADE DE RENOVAÇÃO DE PEDIDO DE CONCESSÃO DE
ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA EM SEDE RECURSAL.
ORIENTAÇÃO DO EGRÉGIO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
ILEGALIDADE E INCONSTITUCIONALIDADE.
ARRUDA ALVIM, THEREZA ALVIM E EDUARDO ARRUDA ALVIM
101
CONSULTA PÚBLICA PORTARIA Nº 54/2014
111
MANHÃ DE DEBATES “MULHER, LIDERANÇA E REPRESENTATIVIDADE
A SUB-REPRESENTAÇÃO FEMININA NO BRASIL E AS SUAS
DECORRÊNCIAS” ENUNCIADOS PROPOSITIVOS 13 DE MARÇO DE 2015
117
DOUTRINA
DESAFIOS DA JUSTIÇA
O EXECUTIVO E A MODERNIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
127
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
22
DIREITO CIVIL
PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA NO CENÁRIO DO DIREITO DO
CONSUMIDOR: RELAÇÃO ENTRE O DIREITO E O TEMPO NA
CONTEMPORANEIDADE
REGINA VERA VILLAS BÔAS E WILSON JOSÉ VINCI JÚNIOR
143
DIREITO DE FAMÍLIA
O CASAMENTO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO NO BRASIL
ANDRÉ DE CARVALHO RAMOS
165
PROPRIEDADE INTELECTUAL
TRADEDRESS: IMITAÇÃO E CONCORRÊNCIA DESLEAL
FERNANDA NEVES PIVA
191
SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
O PROCEDIMENTO COMUM NO NOVO
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
DOUGLAS BELANDA
207
POR UM PROCESSO CIVIL COMUNICATIVO E DIALÓGICO
PAULO SÉRGIO VELTEN PEREIRA
235
DIREITO PENAL
AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER:
UMA REVISÃO DA LITERATURA
SÍLVIA APARECIDA GONÇALVES
255
DIREITO PÚBLICO
A DESAPROPRIAÇÃO DA ÁGUA
JOSÉ AILTON GARCIA E ANDRÉ LUIZ DOS SANTOS NAKAMURA
311
LEI FEDERAL DAS NORMAS GERAIS PARA LICENCIAMENTO
E COMPARTILHAMENTO DE INFRAESTRUTURA DE REDE
DE TELECOMUNICAÇÕES
ERICSON SCORSIM
345
APLICAÇÃO DA TEORIA DO FACTA CONCLUDENTIA E SUA RELAÇÃO
COM A REVOGAÇÃO DE ATOS ADMINISTRATIVOS DE FORMA
IMPLÍCITA POR PARTE DA ADMINISTRAÇÃO
LUÍS ALBERTO DE FISCHER AWAZU
369
23
SUMÁRIO
DIREITO AMBIENTAL
QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS ENVOLVENTES DA CLASSIFICAÇÃO
DOS BENS JURÍDICOS TRAZIDA NO CÓDIGO CIVIL E DO CONCEITO
ABRANGENTE DO BEM AMBIENTAL
REGINA VERA VILLAS BÔAS, JOSÉ ÂNGELO REMÉDIO E
MARLENE DOS SANTOS VILHENA
389
TEORIA GERAL DO DIREITO
HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO
JOSÉ CARLOS FAGONI BARROS
413
REUNIÕES-ALMOÇO DO IASP
DESAFIOS E PERSPECTIVAS DO JUDICÁRIO
RICARDO LEWANDOWSKI
453
PERSPECTIVAS ECONÔMICAS PARA O BRASIL
GUSTAVO LOYOLA
463
O QUE ESPERAR DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL?
TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER
473
ANTICORRUPÇÃO E O DESENVOLVIMENTO DO BRASIL
MODESTO CARVALHOSA
483
A REFORMA POLÍTICA POSSÍVEL
MICHEL TEMER
495
MANIFESTAÇÕES E DISCURSOS
LIBERDADE E RESPONSABILIDADE
JOSÉ HORÁCIO HALFELD REZENDE RIBEIRO
509
EXAME DE ORDEM
LUIZ GONZAGA BERTELLI
513
OFÍCIO - DERRUBADA DO VETO
JOSÉ HORÁCIO HALFELD REZENDE RIBEIRO
519
CADEIA NELES! E DEPOIS?
LUIZ GONZAGA BERTELLI
523
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
24
DISCURSO PROFERIDO POR OCASIÃO DO 140º ANIVERSÁRIO DO IASP
E OUTORGA PRÊMIO BARÃO DE RAMALHO
JOSÉ RENATO NALINI
NOVO ESTATUTO DO IASP
527
531
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
OPINIÃO LEGAL DECRETO 8.441/2015
SUSY GOMES HOFFMANN
Mestre e Doutora em Direito do Estado pela PUC-SP.
Exerceu o cargo de Vice-Presidente do CARF – Conselho Administrativo de Recursos .
Autora de livros e artigos.
Associada Efetiva do IASP.
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
28
São Paulo, 15 de maio de 2015.
Com muita honra, atendendo ao pedido da mui Digna Diretoria do Instituto dos
Advogados de São Paulo – IASP, na pessoa do Excelentíssimo Presidente – Dr. José
Horácio Halfaged Rezende Ribeiro e na pessoa do Excelentíssimo Diretor – Dr. Diogo
L. Machado de Melo - aceitei o desafio de emitir uma Opinião Legal acerca do recém
editado Decreto 8.441/2015, que dentre outros, instituiu a gratificação de presença aos
Conselheiros indicados pelos Contribuintes do Conselho Administrativo de Recursos
Fiscais do Ministério da Fazenda – CARF.
Em seu pedido de Opinião Legal foi me solicitado que respondesse aos seguintes
questionamentos suscitados pela Digna Diretoria desta Nobre Instituição:
1.
Há alguma ilegalidade ou inconstitucionalidade no Decreto nº 8.441/2015 a
ser identificada?
2.
Há incompatibilidade (ou impedimento) entre o exercício da advocacia
e a função de juiz do tribunal administrativo fiscal? A incompatibilidade
se estende aos integrantes do Escritório do juiz de tribunal administrativo
convocado?
Em razão do pouco tempo para poder perfilhar todo o caminho que me leva para
apresentar ilegalidades e inconstitucionalidades no referido Decreto, vou indicar o
sumário da Opinião, para, em seguida, tratar, ainda que de forma breve, dos temas
suscitados.
A. Contexto da edição do Decreto.
B.
Breves considerações sobre o histórico do CARF.
C. A importância da paridade nos órgãos administrativos de julgamento
D. O Decreto 8.441/2015 como decreto regulamentador e não como decreto
autônomo
E.
O Decreto 8.441/2015, naquilo que procurou regulamentar, extrapolou
os limites da lei e daí, por consequência, é ilegal. O Decreto ao trazer aos
Conselheiros dos Contribuintes as limitações previstas na Lei 12.813/2013
extrapolou a sua competência, além de gerar desigualdade entre Conselheiro
dos Contribuintes e Conselheiros Fazendários.
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
OPINIÃO LEGAL DECRETO 8.441/2015
F.
29
O Decreto 8.441/2015 trouxe disparidades entre os julgadores oriundos da
representação fiscal e da representação dos contribuintes, o que gera a sua
inconstitucionalidade, ainda que indireta.
G. O Decreto 8.441/2015 e a sua referência à Lei 8.906/1994. Decreto
regulamentador e os limites da lei que regula. Extrapolação dos limites.
Ilegalidade.
H. Impedimento e Incompatibilidade para advocacia por advogados que
compõem órgão julgador. Precedente do Supremo Tribunal Federal que
impõe diretrizes de interpretação. Impedimento parcial do advogado e
não da sociedade para advogar. Impedimento pessoal do advogado para
advogar em causas que tramitam no Órgão a que pertence o Tribunal do
qual faz parte.
I.
Conclusões – respostas objetivas às questões formuladas.
Estabelecido o sumário, passarei a trabalhar, individualmente, os itens enumerados.
A. O contexto da edição do Decreto 8.441 de 29 de abril de 2015.
Relevante para o exame do Decreto que seja colocado o contexto de sua edição.
Em 26 de março de 2015 tornou-se pública a Operação da Polícia Federal,
denominada “Zelotes” que tem por objetivo apurar eventuais crimes cometidos junto
ao antigo Conselho de Contribuintes e atual CARF.
De acordo com as notícias veiculadas na imprensa, há fortes indícios de que houve a
participação de funcionários, Conselheiros e ex-Conselheiros do CARF para que fossem
negociados os resultados de julgamentos vultosos.
O CARF, até então um órgão desconhecido da maior parte da sociedade, passou a
ser alvo de contínuas discussões e opiniões.
Dentre estas discussões veio à tona do tema de advogados que possuem seus
escritórios e militam na área tributária figurarem como Conselheiros representantes
dos contribuintes.
A partir da publicidade dada à Operação Zelotes e em razão dos fatos relevantes
nela apontados, várias medidas foram tomadas pelo Ministério da Fazenda: i) houve
a suspensão das sessões de julgamento do CARF até que fossem feitas alterações na
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
30
estrutura do Órgão, ii) foi constituído pelo Ministro da Fazenda um Grupo de Trabalho
para apresentar uma nova proposta de regimento; e iii) foi elaborado um Código de
Ética no CARF.
A proposta de Regimento foi apresentada à sociedade em 24 de abril e tal proposta
foi colocada para Consulta Pública que se encerrou no dia 11 de maio.
Observe-se, desde logo, que na citada Proposta de Regimento, não houve mudanças
significativas que trouxessem novo impedimento ou qualquer hipótese remota de
incompatibilidade do Conselheiro representante dos contribuintes com a advocacia.
Em 30 de abril, em pleno curso do procedimento de consulta pública à proposta do
Regimento do CARF, foi publicado o Decreto 8.441/2015 que tem o seguinte conteúdo:
DECRETO Nº 8.441, DE 29 DE ABRIL DE 2015
Dispõe sobre as restrições ao exercício de atividades profissionais aplicáveis aos
representantes dos contribuintes no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais
e a gratificação de presença de que trata a Lei nº 5.708, de 4 de outubro de 1971.
A PRESIDENTA DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84,
caput, inciso IV, da Constituição, e tendo em vista o disposto no art. 1º da Lei nº
5.708, de 4 de outubro de 1971, art. 6º, parágrafo único, alínea “a”, do Decreto-Lei
nº 1.437, de 17 de dezembro de 1975, art. 48 da Lei nº 11.941, de 27 de maio de
2009, e art. 10 da Lei nº 12.813, de 16 de maio de 2013,
DECRETA:
Art. 1º O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais - CARF, órgão colegiado
judicante, integrante da estrutura do Ministério da Fazenda, é constituído,
paritariamente, por representantes da Fazenda Nacional e dos contribuintes, na
forma da legislação.
§ 1º Os conselheiros representantes dos contribuintes no CARF estão sujeitos
às restrições ao exercício de atividades profissionais em conformidade com
a legislação e demais normas dos conselhos profissionais a que estejam
submetidos, observado, em qualquer caso, o disposto no art. 10 da Lei nº 12.813,
de 16 de maio de 2013.
§ 2º As restrições a que se refere o § 1º incluem a vedação ao exercício da
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
OPINIÃO LEGAL DECRETO 8.441/2015
31
advocacia contra a Fazenda Pública federal, nos termos da Lei nº 8.906, de 4 de
julho de 1994.
§ 3º O conselheiro, sem prejuízo de outras exigências legais e regulamentares,
firmará compromisso de que observará durante todo o mandato as restrições
a que se refere este Decreto, ficando sujeito às sanções previstas na legislação.
Art. 2º A gratificação de presença estabelecida pela Lei nº 5.708, de 4 de outubro
de 1971, devida exclusivamente aos conselheiros representantes dos contribuintes
no CARF, corresponderá à sexta parte da remuneração do cargo em comissão do
Grupo-Direção e Assessoramento Superiores - DAS nível 5, conforme estabelecido
na Lei nº 11.526, de 4 de outubro de 2007, por sessão de julgamento.
§ 1º Serão remuneradas pela gratificação de presença de que trata o caput até,
no máximo, seis sessões de julgamento por mês.
§ 2º Para a caracterização da presença de que trata o caput, deverá ser comprovada
a participação efetiva na sessão de julgamento, na forma estabelecida em ato do
Ministro de Estado da Fazenda.
Art. 3º O pagamento da gratificação de presença de que trata o art. 2º fica
condicionado à existência de dotação orçamentária e autorização específica na
Lei Orçamentária Anual.
Art. 4º O Ministro de Estado da Fazenda expedirá normas complementares para
o cumprimento do disposto neste Decreto.
Art. 5º Este Decreto entre em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 29 de abril de 2015; 194º da Independência e 127º da República.
DILMA ROUSSEFF Joaquim Vieira Ferreira Levy Nelson Barbosa
A mera leitura do Decreto já faz o intérprete verificar que ele colide com a Proposta
de Regimento, uma vez que traz impedimentos maiores ao previsto naquele ato.
Ademais, resta indubitável que a pretensão deste ato regulador é de afastar do CARF
o advogado militante na área tributária federal, desconstituindo, desta forma, como
será melhor explicitado nos próximos itens, a paridade necessária ao referido Tribunal,
pelo formato nele proposto.
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
32
A. Breves considerações sobre o histórico do CARF.
Para a análise da questão aqui proposta merece que seja feito um rápido histórico da
existência do então Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda até o atual CARF.
A criação do Conselho de Contribuintes surgiu com o Decreto nº 16.580 de 04 de
setembro de 1924 que criou um Conselho de Contribuintes em cada Estado e no Distrito
Federal, com competência para julgamento de recursos referentes ao Imposto sobre
a Renda, cujos cinco membros seriam escolhidos entre contribuintes do comércio,
indústria, profissões liberais e funcionários públicos, todos de reconhecida idoneidade
e nomeados pelo Ministro da Fazenda. O Conselho de Contribuintes do Imposto de
Renda no Distrito Federal, foi o único a ser instalado, iniciou seu funcionamento em 14
de setembro de 1925.
Ou seja, há quase 90 anos existe um órgão do Ministério da Fazenda que tem por
objeto julgar processos administrativos fiscais em segunda instância.
Este órgão SEMPRE foi composto por membros oriundos do serviço público e por
membros indicados pela sociedade civil.
Com as alterações sofridas ao longo do tempo, em especial a alteração da sua
estrutura que ocorreu em 2009, passando a ser o atual CARF, não foi alterado o sistema
paritário para a sua composição.
A Lei 11.941/2009, em seu artigo 48 indica o CARF como órgão paritário.
E, este dado é importante, porque mesmo com o advento da Constituição Federal
de 1988 e com a promulgação do Estatuto da Advocacia por meio da Lei 8.906 de
1994, não houve qualquer óbice para que advogados militantes pudessem atuar como
Conselheiros do Tribunal, possibilitando, desta forma, que o órgão permanecesse
paritário e tivesse sua paridade confirmada pela citada Lei 11.941/2009 que neste item
não sofreu qualquer questionamento por instituições públicas ou privadas.
Em todos estes anos nunca houve a preocupação de Ministério Público ou outro
órgão “fiscalizador” da Lei e da Constituição em questionar tal modelo. Assim ou o
modelo funcionou bem até agora e, com a mudança dos tempos não se presta mais
a realizar os relevantes serviços, ou tais Instituições deixaram, em todos estes anos de
realizar o seu mister.
Ao longo destes quase 90 anos, os Conselhos de Contribuintes e o atual CARF julgaram
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
OPINIÃO LEGAL DECRETO 8.441/2015
33
milhares de processos, sendo que a jurisprudência deste Tribunal foi e é referência tanto
para interpretação, pelos contribuintes, da complexa legislação tributária como para
o próprio Poder Judiciário, que muitas vezes, em suas decisões, considerou o quanto
vinha sendo decidido pelo Tribunal.
Deve ser lembrado que são realizados inúmeros Seminários, Congressos, Cursos a
partir dos julgamentos do CARF, dada a sua importância no cenário jurídico nacional.
Ainda, há que se notar, que o Tribunal conta com 107 Súmulas que são de observância
obrigatória pelos membros do CARF e dentre elas há Súmulas Vinculantes que, como o
próprio nome diz, vinculam toda a administração tributária.
Assim, este órgão julgador, decerto, tem trabalhado com técnica, pois, caso contrário
não seria possível uma produção acadêmica, doutrinária, jurisprudencial e normativa
como a que ocorreu no decorrer deste percurso.
Estes rápidos dados vêm demonstrar que o Tribunal vem cumprindo o seu papel e,
se há problemas que a Operação Zelotes veio verificar, estes são problemas pontuais
que jamais podem macular todo o histórico do Tribunal, e mais ainda, não pode fazer
transparecer que tais problemas surjam em razão da composição paritária do Órgão
com ênfase para a representação dos contribuintes.
Neste sentido cito a notícia veiculada pela “Folha” em 08/05/20151 em que informa
que o Ministério Público Federal tem por objetivo acabar com a representação dos
contribuintes no CARF. Anote-se, para ilustração, parte da notícia, em que grifei os
trechos que julguei mais relevantes:
A principal proposta dos procuradores é acabar com o atual formato de
composição do conselho, paritário, em que indicados dos contribuintes têm o
mesmo poder de voto que os representantes da Fazenda Nacional –auditores da
Receita Federal.
O modelo de funcionamento e composição do Carf é único no mundo se
comparado a outros tribunais de recursos fiscais. Algo está errado.
“Sempre que há uma crise como essa do Carf, abre-se uma janela de oportunidade
1. http;//www1.folha.uol.com.br/colunas/leonardosouza/2015/05/1626206-mpf-pede-a-fazenda-fim-daparidade-no-carf.shtml
34
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
para melhorar e fortalecer a instituição pública. A figura do conselheiro privado
no Carf é a porta de entrada para a corrupção”, disse à coluna o procurador José
Alfredo de Paula Silva, um dos integrantes da força-tarefa do MPF, coordenada
por Frederico Paiva e integrada também por Raquel Branquinho e Rodrigo Leite
Prado.
É de se lamentar que a notícia denota que os Dignos Membros do Ministério Público
Federal atribuam aos advogados a conduta que leva às práticas criminosas no órgão,
indicando que estes Conselheiros agem com total irresponsabilidade com a nação e
com o Estado de Direito.
A partir do lamentável noticiado pode-se concluir que os representantes da
Fazenda sempre são honestos e julgam de acordo com a lei e os representantes dos
contribuintes – em sua maioria advogados – julgam sempre de acordo com os seus
interesses ou interesses dos seus clientes. Novamente a classe dos advogados é aviltada
de forma desonrosa, para o que, desde já, entendo que caberia as devidas providências
pela Ordem dos Advogados do Brasil para apurar a responsabilidade dos subscritores
da notícia.
Como subscritora desta Opinião Legal entendo que é o momento de se repensar a
estrutura de julgamento de segunda instância, mas dentro de um conjunto de ações.
O problema tributário surge com a legislação complexa, com o dever único ao
contribuinte, no primeiro momento, de interpretar a legislação e se sujeitar a pesadas
multas se ocorrer erros nesta interpretação.
O sistema leva a autuações relevantes, em muitos casos, realizadas a partir da
interpretação de um Agente Fiscal ou de um Grupo de Agentes que podem determinar
o fechamento de uma pessoa jurídica, a insolvência de uma pessoa física.
Este sistema como um todo – da complexidade da legislação, das autuações em
massa, dentre outros – leva a uma realidade de mais de 100 mil processos aguardando
julgamento no Tribunal Administrativo (CARF), pois deve ser considerado que mesmo
em casos em que há julgamento definitivo no âmbito do Superior Tribunal de Justiça
ou no Supremo Tribunal Federal – o Fisco continua autuando, pois há imensa demora
até que seja expedida ordem que determine que o assunto não seja mais objeto de
autuação, gerando um imenso contencioso. Ou seja, há que se pensar e rever o todo
e não apenas um órgão, e especialmente, no que tange à parte de sua composição: a
parte que é indicada pela sociedade.
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
OPINIÃO LEGAL DECRETO 8.441/2015
35
Se for para rever o órgão para alterar o sistema paritário, que isto seja feito e realizado
de forma a obedecer o regime democrático e republicano e não na forma pretendida
pelo ilegal e inconstitucional Decreto 8.441/2015 em que a representação fazendária
continua com todo o seu poder e sem qualquer alteração, isto é, podendo a Fazenda estar
representada por qualquer um de seus membros, desde que cumpridos os requisitos;
e, de outro turno, para os representantes dos contribuintes, as regras impostas são tão
seletivas que poucos poderão se inscrever, trazendo enorme prejuízo a toda a sociedade.
A. A importância da paridade nos órgãos administrativos de julgamento
A paridade, isto é, o fato de existir, num órgão de julgamento colegiado, membros
julgadores oriundos de duas classes diversas, com igualdade de formação, igualdade de
prerrogativas e obrigações gera a paridade e daí a imparcialidade.
Normalmente o sistema paritário promove um julgamento imparcial, pois a
parcialidade de cada classe de julgadores é neutralizada pela paridade entre as duas
classes. Os critérios de desempate nos julgamentos são previamente estabelecidos nos
regimentos próprios dos órgãos.
Paridade significa igualdade de condições para uma disputa. Igualdade de
capacidade.
A paridade nos órgãos administrativos de julgamento foi a solução encontrada no
sistema brasileiro para produzir um julgamento, imparcial em instância administrativa,
dentro do próprio órgão que produz o lançamento tributário (Ministério da Fazenda,
Secretaria de Fazenda).
A obrigatoriedade do CARF ser um órgão colegiado paritário está expressamente
prevista no artigo 48 da Lei 11.941/2009.
A partir dos próximos itens, parece-me indubitável que a regra da paridade foi
quebrada com o advento do Decreto 8.441/2015, de tal modo que se não existe
mais a paridade, porque uma das classes sofreu restrições, o sistema não pode mais
permanecer na forma proposta, sendo necessário rever o modelo.
A. O Decreto 8.441/2015 como decreto regulamentador e não como decreto
autônomo
Neste item, dada a natureza desta Opinião, não será possível fazer digressões
acadêmicas sobre a natureza dos decretos do Poder Executivo.
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
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Para este trabalho vou mencionar os dois tipos de decreto. De acordo com o previsto
nos incisos IV e VI do artigo 84 da Constituição Federal: o decreto regulamentador da lei,
previsto no inciso IV e o denominado decreto “autônomo” previsto no inciso VI do artigo 84.
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e
regulamentos para sua fiel execução;
VI - dispor, mediante decreto, sobre:
a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar
aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; b) extinção de
funções ou cargos públicos, quando vagos;
O decreto regulamentador está adstrito aos termos da lei. Como determina o
comando constitucional é um decreto para possibilitar a fiel execução da lei.
O Decreto 8.441/2015, em seu preâmbulo, indica que é um decreto regulamentador.
Porém a primeira questão que surge é: qual lei o decreto vem regulamentar? O
preâmbulo indica o seguinte:
A PRESIDENTA DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84,
caput, inciso IV, da Constituição, e tendo em vista o disposto no art. 1º da Lei nº
5.708, de 4 de outubro de 1971, art. 6º, parágrafo único, alínea “a”, do Decreto-Lei
nº 1.437, de 17 de dezembro de 1975, art. 48 da Lei nº 11.941, de 27 de maio de
2009, e art. 10 da Lei nº 12.813, de 16 de maio de 2013,
DECRETA:
...
A primeira Lei citada é a 5.708/1971 que em seu artigo 1º. dispõe:
Art 1º Os órgãos de deliberação coletiva da administração federal direta e
autárquica serão classificados de acôrdo com o princípio de hierarquia e tendo
em vista a importância, o vulto e a complexidade das respectivas atribuições e
responsabilidades.
Parágrafo único. A classificação dos órgãos referidos neste artigo, inclusive
os já regulados por disposições especiais, será proposta pelo Órgão
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
OPINIÃO LEGAL DECRETO 8.441/2015
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Central do Sistema de Pessoal e aprovada por decreto, que fixará o valor
da gratificação de presença e estabelecerá o máximo de sessões mensais
remuneradas.
O artigo 6º, parágrafo único, “a” do Decreto-lei 1.437/1975 prevê que:
Art 6º Fica instituído, no Ministério da Fazenda, o Fundo Especial de
Desenvolvimento e Aperfeiçoamento das Atividades de Fiscalização - FUNDAF,
destinado a fornecer recursos para financiar o reaparelhamento e reequipamento
da Secretaria da Receita Federal, a atender aos demais encargos específicos
inerentes ao desenvolvimento e aperfeiçoamento das atividades de fiscalização
dos tributos federais e, especialmente, a intensificar a repressão às infrações
relativas a mercadorias estrangeiras e a outras modalidades de fraude fiscal ou
cambial, inclusive mediante a instituição de sistemas especiais de controle do
valor externo de mercadorias e de exames laboratoriais. (Vide Decreto-lei nº
2.280, de 1985)
Parágrafo único. O FUNDAF destinar-se-á, também, a fornecer recursos para custear:
(Incluído pela lei nº 9.532, de 1997)
A. o funcionamento dos Conselhos de Contribuintes e da Câmara Superior
de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda, inclusive o pagamento
de despesas com diárias e passagens referentes aos deslocamentos de
Conselheiros e da gratificação de presença de que trata o parágrafo único
do art. 1º da Lei nº 5.708, de 4 de outubro de 1971; (Incluída pela lei nº 9.532,
de 1997)
O artigo 48 da Lei 11.941/2009 dispõe que:
Art. 48. O Primeiro, o Segundo e o Terceiro Conselhos de Contribuintes do
Ministério da Fazenda, bem como a Câmara Superior de Recursos Fiscais, ficam
unificados em um órgão, denominado Conselho Administrativo de Recursos
Fiscais, colegiado, paritário, integrante da estrutura do Ministério da Fazenda,
com competência para julgar recursos de ofício e voluntários de decisão de
primeira instância, bem como recursos especiais, sobre a aplicação da legislação
referente a tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil.
Parágrafo único. São prerrogativas do Conselheiro integrante do Conselho
Administrativo de Recursos Fiscais - CARF: (Incluído pela Lei nº 12.833, de 2013)
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
I - somente ser responsabilizado civilmente, em processo judicial ou
administrativo, em razão de decisões proferidas em julgamento de processo no
âmbito do CARF, quando proceder comprovadamente com dolo ou fraude no
exercício de suas funções; e (Incluído pela Lei nº 12.833, de 2013)
E, finalmente o artigo 10 da Lei 12.813/2013 que dispõe sobre o conflito de interesses
no exercício de cargo ou emprego do Poder Executivo federal e impedimentos
posteriores ao exercício do cargo ou emprego prevê que:
Art. 10. As disposições contidas nos arts. 4o e 5o e no inciso I do art. 6o estendemse a todos os agentes públicos no âmbito do Poder Executivo federal.
Ora, verificadas as legislações citadas pelo Decreto, a única regulamentação possível
é a prevista no artigo 1º. da Lei 5.708/1971, ou seja, tal decreto apenas poderia instituir
a gratificação de presença para os Conselheiros que integram o CARF. Isto é, de acordo
com a Lei 5.708/71 e o Decreto 1437/75, o Decreto somente poderia indicar qual o valor
da gratificação de presença. Ou seja, jamais poderia estabelecer remuneração por
serviços ou criar qualquer tipo de vínculo.
Deste modo a única interpretação possível é que este Decreto, por seu artigo 2º.
criou uma gratificação de presença.
Porém, o artigo 1º. do citado Decreto em nada se relaciona, para fins de
regulamentação, à Lei 5.708/71 ou ao Decreto 1.437 ou à Lei 11.941/2009 ou à Lei
12.813/2013.
Observe-se que o artigo 1º do Decreto é todo dedicado a restringir a atuação
dos Conselheiros dos Contribuintes criando-lhes e impondo-lhes situações de
impedimentos e/ou de incompatibilidade que não estão presentes na Lei ou legislação
instituidora do Tribunal.
Por outro lado, também não há que se falar de, nesta parte, ter natureza de decreto
autônomo, pois não estão preenchidos os requisitos previstos no inciso VI do artigo 84
da CF anteriormente citado.
Portanto, o artigo 1º. do Decreto é manifestamente inconstitucional
(inconstitucionalidade indireta) porque extrapolou todos os limites da lei ou das leis
que pretendeu regulamentar.
A. O Decreto 8.441/2015, naquilo que procurou regulamentar, extrapolou
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
OPINIÃO LEGAL DECRETO 8.441/2015
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os limites da lei e daí, por consequência, é ilegal. O Decreto ao trazer aos
Conselheiros dos Contribuintes as limitações previstas na Lei 12.813/2013
extrapolou a sua competência, além de gerar desigualdade entre Conselheiro
dos Contribuintes e Conselheiros Fazendários.
Se por um lado para o artigo 1º resta certo que há a inconstitucionalidade indireta,
porque extrapolou os seus limites porque não está fundamentado em nenhuma lei,
importante verificar que a análise conjunta do artigo 1º com o artigo 2º, artigo este
que, em tese, poderia ser objeto da regulamentação, indica, para este artigo 2º uma
ilegalidade.
Neste item a ilegalidade, apesar de sutil, está presente.
Ao trazer para o valor da gratificação por presença uma relação com o valor recebido
por um funcionário público do Ministério da Fazenda comissionado com um DAS nível
5, o Decreto mais do que indicar o valor da gratificação de presença, pretendeu trazer
para o Conselheiro do Contribuinte todas as consequências de poder vir a ser equiparado
a este servidor.
Deste modo, além de no parágrafo primeiro trazer aos Conselheiros do Contribuinte
as restrições impostas pela Lei 12.813/2013 – o que não existe para os Conselheiros
Fazendários – para que por outra vertente também houvesse tal vinculação, o parâmetro
do valor a ser pago a título de “gratificação de presença” foi baseado na remuneração
de comissionamento de um funcionário público DAS nível 52, no intuito de por dois
aspectos diversos trazer limitações ao exercício da advocacia pelo Conselheiro do
Contribuinte, de forma manifestamente inconstitucional e ilegal.
Para tanto é preciso verificar o teor da Lei 12.813/2013 que trata sobre conflito de
interesses envolvendo ocupantes de cargo ou emprego no âmbito do Poder Executivo
Federal.
Os artigos 1º e 2º da citada Lei expressam os destinatários da Lei:
Art. 1o As situações que configuram conflito de interesses envolvendo ocupantes
2. Art. 2º A gratificação de presença estabelecida pela Lei nº 5.708, de 4 de outubro de 1971, devida exclusivamente
aos conselheiros representantes dos contribuintes no CARF, corresponderá à sexta parte da remuneração do
cargo em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores - DAS nível 5, conforme estabelecido na Lei
nº 11.526, de 4 de outubro de 2007, por sessão de julgamento.
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
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de cargo ou emprego no âmbito do Poder Executivo federal, os requisitos e
restrições a ocupantes de cargo ou emprego que tenham acesso a informações
privilegiadas, os impedimentos posteriores ao exercício do cargo ou emprego
e as competências para fiscalização, avaliação e prevenção de conflitos de
interesses regulam-se pelo disposto nesta Lei.
Art. 2o Submetem-se ao regime desta Lei os ocupantes dos seguintes cargos e
empregos:
I - de ministro de Estado;
II - de natureza especial ou equivalentes;
III - de presidente, vice-presidente e diretor, ou equivalentes, de autarquias,
fundações públicas, empresas públicas ou sociedades de economia mista; e
IV - do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores - DAS, níveis 6 e 5 ou
equivalentes.
Parágrafo único. Além dos agentes públicos mencionados nos incisos I a IV,
sujeitam-se ao disposto nesta Lei os ocupantes de cargos ou empregos cujo
exercício proporcione acesso a informação privilegiada capaz de trazer vantagem
econômica ou financeira para o agente público ou para terceiro, conforme
definido em regulamento.
Assim, não há dúvidas de que o Decreto, tanto por seu artigo 1º como pelo 2º, busca
levar as citadas restrições aos Conselheiros dos Contribuintes.
Ora, o parágrafo primeiro do artigo 1º, traz expressa referência ao artigo 10 da Lei
12.813/13 que por sua vez, remete os agentes para as restrições impostas pelos artigos
4º, 5º e 6º, inciso I3, restrições, estas que, em verdade, vão impedir que Conselheiros
3. Art. 4o O ocupante de cargo ou emprego no Poder Executivo federal deve agir de modo a prevenir ou a
impedir possível conflito de interesses e a resguardar informação privilegiada.
§ 1o No caso de dúvida sobre como prevenir ou impedir situações que configurem conflito de interesses, o
agente público deverá consultar a Comissão de Ética Pública, criada no âmbito do Poder Executivo federal, ou a
Controladoria-Geral da União, conforme o disposto no parágrafo único do art. 8o desta Lei.
§ 2o A ocorrência de conflito de interesses independe da existência de lesão ao patrimônio público, bem como
do recebimento de qualquer vantagem ou ganho pelo agente público ou por terceiro.
Art. 5o Configura conflito de interesses no exercício de cargo ou emprego no âmbito do Poder Executivo federal:
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
OPINIÃO LEGAL DECRETO 8.441/2015
41
advoguem, pois, de acordo com o inciso II do artigo 5º, não poderão receber honorários
de qualquer pessoa física ou jurídica que tenha processo em trâmite no CARF. Porém,
a grande maioria dos Conselheiros dos Contribuintes ou é funcionário de sociedades
empresárias que ou tem processos administrativos fiscais, ou correm o risco de ter; ou
advogam na área tributária, e, por consequência, receberão honorários por si ou pelo
escritório que pertencem, de pessoas físicas ou jurídicas que já possuem ou podem vir
a ter processos em trâmite no CARF.
A chance da ocorrência do conflito de interesses nos moldes previstos no inciso II do
artigo 5º da Lei 12.813/2013 é quase total.
Por sua vez, o artigo 2º do Decreto 8.441/2015 faz referência, ao tratar do valor
da gratificação por presença, à remuneração do cargo de comissão de DAS 5. Os
funcionários com este cargo em comissão se submetem às rígidas restrições previstas
pela Lei 12.813/2013.
Veja-se que determinando o valor da gratificação de presença de acordo com a
I - divulgar ou fazer uso de informação privilegiada, em proveito próprio ou de terceiro, obtida em razão das
atividades exercidas;
II - exercer atividade que implique a prestação de serviços ou a manutenção de relação de negócio com pessoa
física ou jurídica que tenha interesse em decisão do agente público ou de colegiado do qual este participe;
III - exercer, direta ou indiretamente, atividade que em razão da sua natureza seja incompatível com as atribuições do
cargo ou emprego, considerando-se como tal, inclusive, a atividade desenvolvida em áreas ou matérias correlatas;
IV - atuar, ainda que informalmente, como procurador, consultor, assessor ou intermediário de interesses privados
nos órgãos ou entidades da administração pública direta ou indireta de qualquer dos Poderes da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
V - praticar ato em benefício de interesse de pessoa jurídica de que participe o agente público, seu cônjuge,
companheiro ou parentes, consanguíneos ou afins, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, e que possa ser
por ele beneficiada ou influir em seus atos de gestão;
VI - receber presente de quem tenha interesse em decisão do agente público ou de colegiado do qual este
participe fora dos limites e condições estabelecidos em regulamento; e
VII - prestar serviços, ainda que eventuais, a empresa cuja atividade seja controlada, fiscalizada ou regulada pelo
ente ao qual o agente público está vinculado.
Parágrafo único. As situações que configuram conflito de interesses estabelecidas neste artigo aplicam-se aos
ocupantes dos cargos ou empregos mencionados no art. 2o ainda que em gozo de licença ou em período de
afastamento.
Art. 6o Configura conflito de interesses após o exercício de cargo ou emprego no âmbito do Poder Executivo
federal:
I - a qualquer tempo, divulgar ou fazer uso de informação privilegiada obtida em razão das atividades exercidas;
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
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remuneração de um DAS 5, consoante o meu entendimento, o Decreto acaba por criar
uma situação de desigualdade entre os Conselheiros dos Contribuintes e os Conselheiros
Fazendários, pois estes últimos não estarão sujeitos às restrições da Lei 12.813, porque
exceção ao Presidente do CARF e aos Presidentes de Seção, nenhum outro Conselheiro
faz jus ao DAS 5.
Por outro lado, o Conselheiro do Contribuinte não goza das prerrogativas do
Conselheiro da Fazenda que é um servidor público concursado, inclusive com
remuneração de alto valor, muito superior à gratificação de presença indicada pelo
Decreto, mas estará sujeito a regras restritivas muito mais abrangentes.
Assim, de um lado o Conselheiro do Contribuinte estará submetido a restrições que
praticamente o inviabilizam de qualquer outro trabalho que não seja o de Julgador,
pois até mesmo o magistério poderá ser questionado, pelos termos da Lei 12.813,
especialmente artigo 5º, inciso II, se a instituição que o Conselheiro ministrar aulas tiver
qualquer processo perante o CARF, enquanto que o Conselheiro Fazendário, além de
ser efetivamente remunerado por salário de vulto, não sofrerá restrições da citada Lei.
Portanto, a única conclusão possível é que mesmo no que tange ao artigo 2º
o Decreto 8.441/2015 é ilegal, porque mal regulamentou a Lei 5.708/71, pois não
disciplinou apenas o valor da gratificação de presença, além disso, ao relacionar o valor
da remuneração ao cargo de comissionamento DAS nível 05 pretendeu afirmar aos
Conselheiros dos Contribuintes a condição de agente público sujeito às restrições da Lei
12.813/2013, e desta forma, extrapolou do âmbito do poder regulamentador da citada
Lei 5.708/71.
A. O Decreto 8.441/2015 trouxe disparidades entre os julgadores oriundos da
representação fiscal e da representação dos contribuintes, o que gera a sua
inconstitucionalidade, ainda que indireta.
Muitos doutrinadores asseguram que o grande princípio da Constituição Federal de
1988 é o da igualdade, com o que concordo, em vista da preocupação do Constituinte
em diversas passagens do Texto Constitucional afirmar e reafirmar tal princípio.
Por outro lado, a dificuldade está em constatar, em muitos casos, se tal princípio
está sendo respeitado, pois a igualdade tem que ser verificada entre situações ou
pessoas sempre numa relação, de tal modo, que a situação ou a pessoa é igual ou
desigual em relação a outra situação ou a outra pessoa. Precisa ser verificada a situação
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
OPINIÃO LEGAL DECRETO 8.441/2015
43
discriminadora, se ela tem ou não respaldo.4
Neste prisma é preciso ser analisado se o Decreto 8.441/2015 ao se referir,
expressamente, como consta de seu preâmbulo, apenas aos representantes dos
contribuintes5 se não feriu a igualdade, visto que não há uma situação diferenciadora
que permita a regra da desigualdade.
Não tenho dúvidas de que o princípio da igualdade foi ferido pelo Decreto 8.441/2015.
Tivesse o Decreto simplesmente indicado o valor da gratificação de presença
teria cumprido o seu papel regulamentador. Porém, ao estabelecer as restrições aos
serviços profissionais, além de ter extrapolado os limites de decreto regulamentador
como foi demonstrado, trouxe restrições específicas aos Conselheiros representantes
dos contribuintes que ou teriam que ter sido aplicadas também aos Conselheiros
representantes da Fazenda Pública ou não poderiam ter sido aplicadas.
Neste item refiro-me, especialmente (mas não só), às restrições trazidas pelo
parágrafo 1º do artigo 1º.
Alguns podem colocar que os Conselheiros representantes da Fazenda não exercem
atividades profissionais, pois possuem dedicação exclusiva ao serviço público e, por
este motivo, seria inócua tal restrição. Sem sentido este argumento, pois a Lei 12.813 é
dirigida, especialmente, aos funcionários públicos em cargos da alta gestão.
Mas, ainda para argumentar este primeiro possível argumento aqui indico exemplos.
O primeiro já indicado sobre o magistério. Numa interpretação rasa do inciso II, do artigo
5º da Lei 12.813/2013, os Conselheiros representantes dos contribuintes só poderão
exercer o magistério para as instituições que não tenham processos no CARF, enquanto
que os Conselheiros representantes da Fazenda não terão esta restrição.
Todos os que militam no CARF sabem que muitas instituições educacionais possuem
processos no CARF, especialmente em razão das diversas discussões acerca das normas
de imunidade, isenção e outras aplicáveis às instituições educacionais.
4. Neste sentido é o preciso ensinamento do Prof. Celso Antonio Bandeira de Melo, em seu livro O Conteúdo
Jurídico do Princípio da Igualdade.
5. Dispõe sobre as restrições ao exercício de atividades profissionais aplicáveis aos representantes dos
contribuintes no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais e a gratificação de presença de que trata a Lei nº
5.708, de 4 de outubro de 1971
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
44
Outra situação, por exemplo, os funcionários públicos podem ser sócios de pessoas
jurídicas, apenas não podem ter o cargo de administrador. Pois bem, se um Conselheiro
representante dos contribuintes, por qualquer motivo for sócio de uma sociedade
empresária que tiver um processo administrativo fiscal estará configurado o conflito de
interesses e o mesmo não ocorrerá para o Conselheiro representante da Fazenda.
E, outra hipótese que traz uma situação esdrúxula: o advogado que mantém uma
relação de emprego com determinada sociedade empresária terá o conflito de interesse
configurado se esta sociedade tiver um processo administrativo fiscal em trâmite no
CARF, enquanto que o Conselheiro representante da Fazenda, como o próprio nome
diz, é representante da Fazenda, é funcionário público, a sua remuneração depende
da Fazenda, e neste caso, não se cogita conflito de interesses, mesmo sendo a Fazenda
uma das partes do processo administrativo.
Porém, para além destes exemplos, infelizmente, quer me parecer que este Decreto
fez uma odiosa discriminação.
Numa possível interpretação do Decreto, os Conselheiros representantes da Fazenda
sempre estão acima de qualquer suspeita, sempre votam de acordo com a lei e com as
suas convicções, são profissionais altamente gabaritados e não necessitam de qualquer
restrição ou de regras severas. Já os Conselheiros dos Contribuintes, em sua maioria,
advogados, sempre são suspeitos, porque sempre votam de acordo com o interesse
de seus clientes; como não votam em consonância com a melhor interpretação da lei
precisam se submeter a regras tão rígidas que praticamente os impede de advogar.
Odiosa discriminação.
Discriminação que precisa ser extirpada do sistema positivo.
Discriminação que coloca sobre a nobre classe dos advogados a origem dos
problemas relativos à corrupção no órgão.
Paridade é paridade. Há necessidade de classes “parciais”, com as mesmas “armas”
em cada um dos lados para possibilitar um resultado neutro. Nesta paridade, a possível
“parcialidade” faz parte da regra, tanto que o órgão é do Ministério da Fazenda, a
Fazenda é parte no processo, e metade dos integrantes do órgão é oriunda da Fazenda.
O que não é possível é admitir que o Decreto institua que uma classe possa ser
parcial porque a sua parcialidade está acima de qualquer suspeita e presumir que a
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
OPINIÃO LEGAL DECRETO 8.441/2015
45
outra classe, por não ser oriunda das fileiras do serviço público, tem uma parcialidade
obtusa e corrupta e por isso, imprestável, para formar o Tribunal.
A inconstitucionalidade pela afronta direta ao princípio da igualdade é latente e
precisa ser afastada pelas instituições da sociedade civil comprometidas com o ideal
democrático e republicano.
A. O Decreto 8.441/2015 e a sua referência à Lei 8.906/1994. Decreto
regulamentador e os limites da lei que regula. Extrapolação dos limites.
Ilegalidade.
O Decreto 8.441/2015 extrapolou nos limites da legalidade ao fazer referência à Lei
8.906/1994.
Ora, aqui demonstrei que o Decreto não encontra fundamento legal para trazer
restrições ao exercício das atividades profissionais dos Conselheiros representantes dos
contribuintes. E, por este mesmo motivo, não há fundamento legal para o Decreto fazer
referência à Lei 8.906/1994.
Como irei detalhar no próximo item se, em consonância com a interpretação
autêntica feita pelo Supremo Tribunal Federal, sequer o advogado que tem assento
nos Tribunais Eleitorais tem vedação ao exercício da advocacia, como um Decreto que
sequer possui fundamento legal para tratar de restrição à atividade profissional pode
pretender disciplinar a Lei 8.906/1994?
É óbvio que qualquer referência feita pelo Decreto 8.441/2015 à Lei 8.906/1994
tem que ser considerada ilegal, pois este instrumento – o Decreto – não é o veículo
apropriado para tal fim.
Ainda que possa ser interpretado como razoável o impedimento do Conselheiro
representante dos contribuintes em advogar contra a Fazenda Pública Federal, há que
se concluir que o Decreto 8.441/2015 não é o veículo normativo pertinente para trazer
tal impedimento.
Este impedimento somente pode surgir da lei ou da interpretação da Lei 8.906/1994,
por quem de direito, neste caso a própria entidade – Ordem dos Advogados do Brasil –
ou o Poder Judiciário.
Assim, evidente a ilegalidade do parágrafo 2º do artigo 1º do Decreto
8.441/2015.
46
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
A. Impedimento e Incompatibilidade para advocacia por advogados que
compõem órgão julgador. Precedente do Supremo Tribunal Federal que
impõe diretrizes de interpretação. Impedimento parcial do advogado e não
da sociedade para advogar. Impedimento pessoal do advogado para advogar
em causas que tramitam no Órgão a que pertence o Tribunal do qual faz parte.
Para iniciar este item que tem uma importância ímpar nos questionamentos que me
propus responder, proponho que a resposta seja elaborada a partir da interpretação
feita pelo Supremo Tribunal Federal quando julgou a constitucionalidade do artigo 28,
II do Estatuto da OAB.
E esta proposta vem em função da similaridade da situação colocada para
julgamento pela Excelsa Corte.
A Associação dos Magistrados Brasileiros propôs uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade – ADI 1127-8 DF em face de diversos dispositivos da Lei 8.906/1994,
dentre eles, o artigo 28, II, que assim determina:
Art. 28. A advocacia é incompatível, mesmo em causa própria, com as seguintes
atividades:
II - membros de órgãos do Poder Judiciário, do Ministério Público, dos tribunais
e conselhos de contas, dos juizados especiais, da justiça de paz, juízes classistas,
bem como de todos os que exerçam função de julgamento em órgãos de
deliberação coletiva da administração pública direta e indireta;
Para a referida Ação o questionamento pairava no fato de que tal dispositivo se
chocava com o previsto no artigo 119, II e 120, I, § 1º, III da Constituição Federal, que
tratavam da organização da Justiça Eleitoral, pois no Tribunal Superior Eleitoral e no
Tribunal Regional Eleitoral, por disposição constitucional, dentre outros membros, por
advogados de notável saber jurídico.
A questão que se colocou foi que o artigo 28, II da Lei 8.906/1994 impedia, em razão
da incompatibilidade, que tais membros dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Tribunal
Superior Eleitoral pudessem exercer a advocacia, o que traria um enorme prejuízo
à sociedade, pois, dificilmente ou talvez de modo impossível, os Tribunais seriam
compostos pelos melhores e mais preparados profissionais da advocacia.
O Relator, Saudoso Ministro Paulo Brossard, assim se manifestou (transcreverei os
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
OPINIÃO LEGAL DECRETO 8.441/2015
47
principais trechos, esclarecendo que grifei e sublinhei o que entendi mais importante):
Assim, parece-me que a alteração pretendida pela lei de impedir os advogados
que compõem, como juristas, o Tribunal Superior Eleitoral, de advogar, ofende
diretamente esses artigos da Constituição, gerando proibição oblíqua, mas real
e efetiva.
Quando estive no Ministério da Justiça, cuidei de fazer com que funcionasse o
CADE que estava um tanto esquecido, ocorre que a lei que regulava a composição
do seu Conselho estabelecia que os membros tinham os mesmos impedimentos
que os magistrados; por conseguinte, era lhes vedado advogar. Acontece que
a remuneração dos Conselheiros era simbólica, de modo que escolher pessoas
qualificadas para integrar o Conselho do CADE era operação extremamente
difícil. Foi grande a dificuldade em conseguir nomes qualificados e só foi possível
consegui-los pela circunstância de haver pessoas que se dedicam exclusivamente
ao magistério, e por isso, não advogam. Em princípio, a ideia era boa, só que, na
prática, gerava uma quase impossibilidade de bem constituir o Conselho.
Entendo que no caso não foi feliz o legislador quando teve a ideia de estabelecer esta
proibição para os Juízes dos Tribunais Eleitorais – de exercer a advocacia até em causa
própria, pelo fato de serem Juízes – advogados. Nunca existiu essa incompatibilidade,
e a fórmula está incorporada ao nosso direito; temos uma experiência de sessenta
anos, a esse respeito, e não me consta ter havidos, nesses anos, motivo de queixa,
de censura, de crítica, á atuação desses juízes; ao contrário, do depoimento de todos
que têm servido ou frequentado a Justiça Eleitoral, os juízes saídos da classe dos
advogados têm prestado à Justiça Eleitoral os maiores e melhores serviços.
Com esta diretriz interpretativa, posso passar a colocar meu posicionamento sobre
possível incompatibilidade ou impedimento para o exercício da advocacia por parte
dos Conselheiros dos Contribuintes.
Importante ter por pressuposto que o Tribunal Administrativo do Ministério da
Fazenda, como coloquei no início deste trabalho, foi instituído em 1924 e entrou em
funcionamento em 1925, ou seja, funciona há quase 90 anos, como um órgão paritário.
No mesmo molde colocado pelo Ministro Paulo Brossard em seu voto, a “fórmula está
incorporada ao nosso direito”. Não há como interpretar a participação dos advogados
nos Tribunais Administrativos sem enfrentar esta “fórmula”.
48
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
E, a interpretação constitucional para a regra de incompatibilidade para a advocacia
prevista no artigo 28, inciso II da Lei 8.906/1994, feita pelo Supremo Tribunal Federal
no que tange à participação de advogados em órgãos colegiados de julgamento,
considerou a histórica, a “fórmula incorporada ao nosso direito”.
E, consoante o meu modesto entendimento, outro não poderia ter sido o caminho
trilhado pelos Nobres Ministros.
Particularmente, entendo que a própria OAB, por seu Egrégio CFOAB, deveria
seguir a diretriz indicada pelo Supremo Tribunal Federal na citada ADI 1.127-DF para
interpretar, quando instada a tal, o artigo 28, II da CF.
Não é possível interpretar um dispositivo sem colocá-lo no contexto.
Assim, a participação de advogados nos Tribunais Administrativos Fiscais como o
CARF tem uma história, uma fórmula incorporada ao direito, que é a fórmula da paridade.
Este histórico não pode ser desconhecido ao ser interpretada a norma, em especial,
o artigo 28,II.
Porém, a paridade, como igualdade de armas, igualdade de forças, num Tribunal
Administrativo que é formado por um lado por Auditores da Receita Federal, que são
profissionais que tem altíssimo conhecimento técnico aliado a treinamentos constantes
só pode ser equilibrada se do outro lado também estiver presente uma classe que
detenha tal conhecimento.
Na esfera do Direito Tributário, com a complexidade que o sistema brasileiro possui,
com mais dezenas de tributos federais, somente profissionais com conhecimento
técnico, militância na área e contínuo aprendizado poderão formar uma classe que se
iguale, em termos de conhecimento e força para ser paritária à classe dos auditores.
Ou há igualdade de forças ou o modelo do Tribunal precisa ser revisto, talvez para
um modelo em que não seja paritário, e que todos os julgadores sejam concursados,
mas não vinculados à Receita Federal. Porém, esta Opinião não versa sobre possíveis
modelos, mas sobre o Decreto 8.441/2015.
E o Decreto 8.441/2015 pretende criar uma incompatibilidade seja pelas regras
impostas pelo artigo 1º seja pela gratificação pela presença prevista pelo artigo 2º de
modo a inserir os Conselheiros dos Contribuintes na regra da incompatibilidade prevista
no citado artigo 28, II do EOAB.
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
OPINIÃO LEGAL DECRETO 8.441/2015
49
Como me referi anteriormente a regra previsto no artigo 1º, § 1º é ilegal e
indiretamente inconstitucional.
A regra prevista no artigo 2º que cria a gratificação pretende inserir os Conselheiros
dos Contribuintes na regra de incompatibilidade, pois o CFOAB, em decisão anterior,
esclareceu que não haveria incompatibilidade para o exercício da advocacia se o
julgador não fosse remunerado.
A ementa da Consulta nº 002/2004 assim dispõe:
CONSULTA. MEMBROS DO CONSELHO DE CONTRIBUINTES DO MINISTÉRIO DA
FAZENDA. FUNÇÃO DESPROVIDA DE REMUNERAÇÃO. ARTIGO 28, II DO ESTATUTO
DA OAB. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. INTEPRETAÇÃO TELEOLÓGICA DO
DIPLOMA. INCOMPATIBILIDADE INEXISTENTE.
I – O integrante do Conselho de Contribuintes não recebe remuneração fixa por
sua atuação no colegiado, devendo manter-se em atividade profissional para a
sua subsistência.
II – Ofende o princípio da proporcionalidade vedar-se a uma só categoria
profissional o acesso ao Conselho de Contribuintes, notadamente àquela que,
por sua formação técnica, apresenta-se como a mais habilitada para analisar
questões referentes a tributos federais.
III – O art. 28, inciso II, do Estatuto da OAB e da Advocacia deve ser interpretado
de acordo com os comandos constitucionais maiores, evitando-se que a sua
aplicação venham a malferir princípios de isonomia e razoabilidade.
IV – Ao membro do Conselho de Contribuintes não se aplica a incompatibilidade para
a advocacia, restando somente impedido de atuar em processos administrativos
fiscais perante o próprio Conselho, bem como de patrocinar causas judiciais cujo
conteúdo possa a ser objeto de apreciação por parte daquele colegiado.
Por sua vez houve nova Consulta ao CFOAB versando sobre o tema, que teve a
seguinte Ementa 019/2014 julgada em 07/04/2014 e publicada em 21/05/2014:
INEXISTÊNCIA DE INCOMPATIBILIDADE DO EXERCÍCIO DA ADVOCACIA COM
O DE MEMBROS DOS CONSELHOS DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS QUE
NÃO RECEBAM REMUNERAÇÃO DE NATUREZA SALARIAL PARA O EXERCÍCIO
DA FUNÇÃO DE CONSELHEIRO OU JULGADOR DESTES ÓRGÃOS COLEGIADOS.
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
PRECEDENTES DO ÓRGÃO ESPECIAL. MANIFESTAÇÃO FAVORÁVEL DO
CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. ADEQUAÇÃO
DE REDAÇÃO.
Portanto, o artigo 2o do Decreto 8.441/2015, apesar de não ter criado remuneração
de natureza salarial, uma vez que o valor tem natureza de “gratificação de presença”,
trouxe, novamente, esta discussão.
Inclusive, por Consulta feita pela Procuradoria da Fazenda Nacional, o Conselho
Federal da Ordem dos Advogados do Brasil deve novamente se manifestar sobre o tema.
A questão é que o valor da “gratificação de presença” ao ser vinculado ao valor
recebido pelo cargo de comissão de Nível DAS 05, traz um valor de mais relevo, por
girar em torno de até R$ 8.000,00 (oito mil reais) ao mês se houver 6 sessões mensais e
se o Conselheiro nelas comparecer.
Aos meus olhos a discussão não se alterou pela criação da “gratificação de presença”,
pois esta não tem a natureza de remuneração salarial.
Mas, ainda que tivesse, na esteira do precedente do Supremo Tribunal Federal, a
remuneração ou a gratificação de presença não pode ser considerada de forma isolada,
porque se a interpretação for assim realizada, não haverá paridade do órgão julgador.
Entendo que a norma prevista pelo dispositivo veiculado pelo inciso II do artigo 28
da Lei 8.906/1994 já foi interpretada pelo Supremo Tribunal Federal que ponderou o
recebimento da remuneração – naqueles casos da Justiça Eleitoral remuneração com
natureza salarial – com a necessidade dos advogados para a composição dos Tribunais
Eleitorais e deu preponderância para a importância da participação dos advogados
naqueles órgãos de julgamento.
E a interpretação que deve ser dado para os órgãos com composição paritária deve
seguir a mesma trilha, e, entendo, que sem a importância para a remuneração e com
maior preponderância para que seja possível a efetivação da paridade.
Como várias vezes assinalei neste documento, se não houver participação de
advogado militante não haverá paridade. Sem advogados o órgão terá que ter todo o
seu modelo revisto, o que como também afirmei, não é objeto deste estudo.
Assim, concluo que não há que se falar em incompatibilidade para o exercício da
advocacia pelos membros advogados do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais.
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
OPINIÃO LEGAL DECRETO 8.441/2015
51
Quanto ao tema do impedimento, novamente afirmo que o Decreto é ilegal ao
disciplinar uma restrição ao exercício da advocacia, de tal modo que concluo pela
ilegalidade do parágrafo 2º, do artigo 1º do Decreto 8.441/2015.
O impedimento natural e que consta do próprio Regimento do órgão é para o
exercício da advocacia, pelo próprio Conselheiro, no âmbito do órgão, e aí entendo que
envolva toda a instância administrativa, ou seja, o advogado que atua como Conselheiro
não pode exercer a advocacia nas Delegacias da Receita Federal, nas Delegacias de
Julgamento e no CARF quando se tratar de processos administrativos fiscais.
É certo que sequer se cogita aqui da tão comentada “advocacia administrativa” que
deve ser repudiada e condenada sob todos os aspectos. Todo e qualquer Conselheiro,
seja representante de qualquer das classes, que usar do cargo para obter vantagem,
deve responder administrativa e criminalmente sobre isto.
Mas, não é sobre isto que deve ser tratado.
Como afirmei, não é classe dos advogados que forma o grupo dos corruptos ativos
ou passivos, por isso, não é cabível um Decreto que trate a nossa nobre classe desta
forma. A corrupção, infelizmente, existe entre os homens, sem discriminação de raça,
cor, credo ou profissão.
E, por última questão, entendo que o impedimento parcial para a advocacia atinge
apenas o advogado que exerce a função de Conselheiro e não reflete na sociedade da
qual participa. Por certo, as regras do regimento interno do CARF já trazem regras de
impedimento no julgamento dos casos que envolvam clientes dos advogados ou das
sociedades as quais pertençam, regra esta que num ambiente de boa-fé é suficiente
para permitir que os julgamentos ocorram dentro da legalidade.
A. Conclusões – respostas objetivas às questões formuladas.
Após ter trilhado este percurso discursivo, passo responder objetivamente as
questões formuladas:
1.
Há alguma ilegalidade ou inconstitucionalidade no Decreto nº 8.441/2015 a ser
identificada?
Sim. Conforme busquei demonstrar ao longo desta Opinião Legal, estão presentes
as seguintes inconstitucionalidades e/ou ilegalidades:
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
52
A. O artigo 1º. do Decreto 8.441/2015 por não encontrar fundamento de
validade em nenhuma lei traz uma inconstitucionalidade indireta em face
de sua manifesta ilegalidade.
B.
O artigo 2º do Decreto 8.441/2015 ao trazer restrições aos Conselheiros
representantes dos contribuintes sem fundamento legal para tal também
traz inconstitucionalidade indireta em face de sua manifesta ilegalidade.
C. O Decreto 8.441/2015 ao trazer tratamento desigual entre os Conselheiros
representantes da Fazenda e os Conselheiros representantes dos
Contribuintes em situações em que não há fundamento para tal situação de
desigualdade fere o princípio constitucional da igualdade.
D. O Decreto 8.441/2015 é inconstitucional (ainda que por inconstitucionalidade
indireta) ao trazer odiosa e repugnante discriminação à nobre classe dos
advogados.
E.
O parágrafo 1º do artigo 1º do Decreto 8.441/2015 é manifestamente ilegal
pois estipula aos Conselheiros dos Contribuintes restrições previstas na Lei
12.813/2013 sem que possua fundamento de validade, isto é, lei que permita
estender tais restrições legais aos Conselheiros.
F.
O parágrafo 2º do artigo 1º do Decreto 8.441/2015 é manifestamente
ilegal, pois impõe aos Conselheiros representantes dos contribuintes que
exercem a advocacia limitações previstas na Lei 8.906/1994, sem que tenha
fundamento legal para impor tal impedimento.
G. Há incompatibilidade (ou impedimento) entre o exercício da advocacia
e a função de juiz do tribunal administrativo fiscal? A incompatibilidade
se estende aos integrantes do Escritório do juiz de tribunal administrativo
convocado?
Não há incompatibilidade entre o exercício da advocacia e a função de julgador
do tribunal administrativo fiscal, seja porque o tribunal administrativo tem formação
paritária, por disposição legal, e tal paridade só se torna efetiva com a participação
de advogados militantes e experientes; seja tendo como diretriz interpretativa o
julgamento da ADI 1.127-8 que considerou compatível com a advocacia a função de Juiz
dos Tribunais Eleitorais.
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
OPINIÃO LEGAL DECRETO 8.441/2015
53
Há impedimento parcial para o advogado que exerce a função de juiz no tribunal
administrativo apenas para o exercício da advocacia perante as instâncias administrativas
relativas ao processo administrativo federal.
O impedimento parcial não produz reflexos para a sociedade da qual o advogado
participa.
Essa é a Opinião Legal que coloco para análise de Vossas Excelências.
AUDIÊNCIA DE CUSTÔDIA
MARCELO XAVIER DE FREITAS CRESPO
Doutor e Mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Professor Titular na Disciplina Processo Penal III na Faculdade de Direito de Sorocaba.
Associado Efetivo do IASP.
SUMÁRIO
A consulta; 1 – A prisão e a garantias a ela referidas na Constituição Federal de 1988; 2- A prisão e as garantias
a ela referidas na Convenção Americana de Direitos Humanos; 3- Do direito da pessoa presa em flagrante ser
conduzida, sem demora, à presença de um juiz; 4- Das consequências da inobservância do direito do preso ser
levado, sem demora, à presença do juiz; 5- Do Provimento Conjunto nº 03/2015 da Presidência do Tribunal de
Justiça do Estado De São Paulo e sua respectiva Corregedoria; 6- Das impugnações ao Provimento Conjunto nº
03/2015; 7- Do Projeto de Lei do Senado nº 554/2011; 8- Respostas à consulta.
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
56
A CONSULTA
Honra-me o Instituto dos Advogados de São Paulo, a mais antiga instituição jurídica
associativa do Estado, com 140 anos de existência, por seu Presidente, José Horácio
Halfeld Rezende Ribeiro, formulando consulta com pedido de parecer relativamente à
“Audiência de Custódia” e a prisão em flagrante, o Provimento Conjunto nº 03/2015 da
Presidência do Tribunal de Justiça do Estado De São Paulo e sua respectiva Corregedoria
e eventuais impugnações ao mencionado ato normativo.
A consulta foi formulada na 23ª Reunião do Triênio (2013/2015), havida no dia 25 de
março, p.p. e não acompanhou documentos.
O consulente formulou os seguintes quesitos:
a) Existe, em nosso direito, a previsão da realização de “audiência de custódia”,
considerada esta a audiência perante juiz, logo após prisão em flagrante?
b) O direito de ser submetido a “audiência de custódia” tem aplicação imediata nos
casos de prisão em flagrante ou é um direito que dependa de regulamentação?
c) Quais as consequências no caso de descumprimento da apresentação do preso
em “audiência de custódia”?
d) O que é o Provimento Conjunto nº 03/2015 da Presidência do Tribunal de Justiça
do Estado De São Paulo e sua respectiva Corregedoria? Houve impugnações judiciais a
ele? Quais o status de julgamento destas impugnações?
e) Há projeto de lei sobre o tema? E, em havendo-o, o projeto atende a critérios
técnico-jurídicos para que seja aprovado ou necessita intervenções em sua redação?
Bem examinadas as questões atinentes à presente consulta, passo a emitir o meu
parecer.
PARECER
1 – A PRISÃO E A GARANTIAS A ELA REFERIDAS NA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
A Constituição de 1988 adveio para estabelecer uma nova ordem jurídica, mais garantista
e com vistas a impedir, além de outros abusos, que ocorressem arbitrariedades praticadas
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
AUDIÊNCIA DE CUSTÔDIA
57
pelo Estado nos casos em que houvessem prisões. Reflexo de deliberações por cerca de vinte
meses, a Constituição pretendeu estabelecer direitos e garantias que eram cerceados dos
cidadãos no período ditatorial. Não à toa é comumente chamada de “Constituição Cidadã”.
Neste sentido, como uma das garantias nela previstas, pretendeu-se evitar que a
prisão cautelar representasse um mal além da sua própria necessidade. Por tal razão é
que se verificam os seguintes dispositivos no texto constitucional:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindose aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e
fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão
militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;
LXII - a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados
imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada;
LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado,
sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;
LXIV - o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu
interrogatório policial;
LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária;
LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade
provisória, com ou sem fiança.
Com a leitura dos incisos acima, conclui-se que à exceção da prisão nos casos de
flagrante (arts. 301 a 310, CPP), ninguém poderá ser preso senão por ordem judicial (art.
5º, LXI, CF), devendo a prisão ser comunicada imediatamente ao juiz e à família do preso
(art. 5º, LXII, CF), que também terá direito à assistência de um advogado (art. 5º, LXIII, CF),
bem como à identificação dos responsáveis pela prisão (art. 5º LXIV).
Feita a comunicação ao juiz e sendo ela ilegal por desrespeitar as hipóteses previstas
no Código de Processo Penal (art. 302), deverá ser relaxada (art. 5º, LXV, CF). Por outro
lado, sendo ela legal, mas havendo a possibilidade de concessão de liberdade provisória,
deverá esta ser providenciada (art. 5º, LXVI, CF).
58
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
Quanto à prisão em flagrante, relembramos as palavras de Carnelutti, que esclarece
que ela está imediatamente relacionada à llama, que denota con certeza la combustión;
cuando se ve la llama, es indudable que alguna cosa arde, sendo verdadeiramente
a visibilidade do delito conhecida como fumus commissi delicti.1 Mas é preciso
relembrar, ainda, que apesar disso, a prisão em flagrante é precária, eis que surgida
administrativamente, constituindo mera detenção que não se presta para o resultado
final do processo. Por essa razão, sua jurisdicionalização se mostra fundamental porque
só assim sua legalidade será analisada, convalidando a custódia – e concedendo a
liberdade provisória se for o caso – ou relaxando-a.
Muito embora no sistema processual penal exista a previsão da análise da legalidade da
prisão em flagrante pelo Judiciário, dentre as garantias expressas nos incisos do art. 5º da
Constituição não há o direito do preso ser encaminhado imediatamente até um juiz para
que proceda tal análise presencialmente em “audiência de custódia”. O inciso LXII determina
apenas que a prisão deve comunicada imediatamente ao juiz e à família do preso.
Não há, portanto, nem no texto constitucional, nem no código de processo penal (arts.
301 a 310), a exigência para que o preso em flagrante seja encaminhado ao Judiciário para
que, na presença de um magistrado, particpe de uma “audiência de custódia”.
2- A PRISÃO E AS GARANTIAS A ELA REFERIDAS NA CONVENÇÃO
AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Os Estados das Américas, no âmbito da Organização dos Estados Americanos – OEA,
adotaram diversos instrumentos internacionais que se converteram nos fundamentos
de um sistema regional de promoção e proteção dos direitos humanos, conhecido
como o Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Pode-se dizer que a formalização do sistema Interamericano teve início com a
aprovação da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem em 1948,
contando, ainda, com outros instrumentos como a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos, Protocolos e Convenções sobre temas especializados, como a Convenção
para Prevenir e Punir a Tortura, a Convenção sobre o Desaparecimento Forçado e a
Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, entre outros e os
Regulamentos e Estatutos de seus órgãos.
1. CARNELUTTI, Francesco. Lecciones sobre el Proceso Penal. Trad. Santiago Sentis Melendo. Buenos Aires, 1950,
t. II, pg. 77/78.
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
AUDIÊNCIA DE CUSTÔDIA
59
Diferentemente da Constituição Federal, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas desde 16 de dezembro de
1966 estabelece que:
Art. 9 (3) Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá
ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por
lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de
ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento
não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a
garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a
todos os atos do processo e, se necessário for, para a execução da sentença.
De forma congênere previu-se na Convenção Americana sobre Direitos Humanos
– um tratado internacional que prevê direitos e liberdades que devem ser assegurados
pelos Estados partes – , adotada no âmbito da Organização dos Estados Americanos,
em São José da Costa Rica, em 22 de dezembro de 1969 que:
art. 7 (5) Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à
presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais
e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem
prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias
que assegurem o seu comparecimento em juízo.
Quanto a estes diplomas internacionais, é fundamental ressaltar que ambos foram
integrados ao ordenamento jurídico nacional por meio dos Decretos nº 592, de 6 de
julho de 1992 e nº 678, de 6 de novembro de 1992, respectivamente.
E, na esteira do discurso sobre normas integradas ao nosso ordenamento, é preciso
lembrar do princípio da máxima efetividade do Direito Internacional dos Direitos
Humanos que determina que as disposições devem ser aplicadas de forma que não sejam
consideradas meramente programáticas. Nas palavras de André de Carvalho Ramos:2
Para melhor defesa dos direitos humanos adota-se a aplicabilidade imediata dos
textos normativos às situações fáticas existentes, de modo que se reconhece que, sob
o aspecto formal (jurídico normativo), tais direitos são tendencialmente completos,
ou seja, aptos a serem invocados desde logo pelo jurisdicionado.
2. RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional . 2 ed. São Paulo:
Saraiva, 2012, p.196.
60
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
Assim, no caso dos tratados internacionais de direitos humanos a interpretação deve
efetivamente servir para o incremento da proteção dada ao ser humano. São direitos
autoaplicáveis até porque as normas em comento são objetivas, tendo destinatário
certo e podem ser perfeitamente aplicadas a casos concretos, não havendo razão para
sua não aplicação.
Ocorre que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não reconhecia nem o
status constitucional nem o supralegal dos mencionados textos, muito embora parte
importante da doutrina já se posicionasse por este reconhecimento em face do art. 5º,
§2º da Constituição Federal.3
Entretanto, a partir do julgamento do Recurso Extraordinário nº 466.343/SP (onde
se discutiu a inconstitucionalidade da prisão civil do devedor fiduciante em contrato
de alienação fiduciária, em 2009), houve significativa mudança de posicionamento
da nossa mais alta Corte. Pragmaticamente considerado, o novo entendimento – um
marco histórico para a defesa dos direitos humanos – determinou que qualquer norma
infraconstitucional colidente com as garantias previstas na Convenção Americana de
Direitos Humanos e no Pacto internacional de Direitos Civis e Políticos, anterior ou
posterior à promulgação de tais tratados, não mais poderia ter aplicação porque o Brasil
não fez qualquer reserva quanto aos textos.
Vale dizeer, ainda, que no julgamento do Recurso Extraordinário nº 466.343/SP
houve dois posicionamentos distintos quanto à natureza da Convenção Americana de
Direitos Humanos. No caso, o Min. Gilmar Mendes entendeu-a como norma supralegal
e o Min. Celso de Mello como materialmente constitucional. Em qualquer dos casos,
no entanto, deve prevalecer a Convenção caso confrontada com leis ordinárias e que
com elas colidir.
3. Cf. PIOVESAN, Flávia. A incorporação, a hierarquia e o impacto dos tratados de proteção dos direitos humanos
no direito brasileiro. In: GOMES, Luiz Flávio; PIOVESAN, Flávia (Coords.). O sistema interamericano de proteção
dos direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo: RT, 2000, p. 160; STEINER, Sylvia Helena de Figueiredo. A
Convenção Americana sobre Direitos Humanos e sua integração ao processo penal brasileiro, SãoPaulo: RT, 2000,
p. 90. GOMES FILHO, Antonio Magalhães. O princípio da presunção de inocência na Constituição de 1988 e na
Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, In: Revista do Advogado , São
Paulo, Associação dos Advogados de São Paulo, nº 42, abr. 1994, p. 34.
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
AUDIÊNCIA DE CUSTÔDIA
61
3- DO DIREITO DA PESSOA PRESA EM FLAGRANTE SER
CONDUZIDA, SEM DEMORA, À PRESENÇA DE UM JUIZ
A Convenção Americana de Direitos Humanos previu, no art. 7 (5), primeira parte,
que é assegurado a toda pessoa seu encaminhamento, sem demora, à presença de
autoridade judiciária.
Além disso, já vimos que essa garantia foi alçada a um status de prevalência quanto a
normas infraconstitucionais que com ela colidissem. Mais do que isso, trata-se de norma
fundamental em países onde há perigo real de tortura e brutalidade policial, como
é o caso do Brasil, tendo passado da hora de abrirmos os olhos para estas questões
envolvendo a sedimentação do Estado Democrático de Direito e suas garantias contra
o abuso estatal.
eis o momento, então, de compreeender o seu conteúdo.
Assim, a primeira consideração a ser feita é quanto ao aspecto temporal na
perspectiva da expressão “sem demora” contida no art. 7 (5), primeira parte da
Convenção Americana de Direitos Humanos.
Nas versões em espanhol e em inglês da Convenção4 as expressões utilizadas foram
“sin demora” e “promptly”, termos não idênticos, mas próximos e que podem, facilmente
ser comparados com sinônimos no nosso vernáculo, tais como “imediatamente”,
“seguidamente” e “ato contínuo”. Nessa comparação verifica-se que o “sem demora”
deve levar tempo suficente e razoável para que seja possível a tal apresentação a uma
autoridade judicial, sendo que o termo inicial de tal período é o momento em que a
pessoa é privada de sua liberdade.
é bem verdade que o tempo suficente e razoável que defendemos aqui pode variar
de caso para caso, especialmente no Brasil com suas imensas dimensões. Por isso, para
concretizar o “sem demora” alguns critérios devem ser considerados, tais como i) a existência
de uma norma legal mencionando o prazo; ii) não se justificar a demora em apresentar o
preso em razão da gravidade ou do tipo de crime; e, ainda, iii) que não se satisfaça a norma
com a mera apresentação do preso, mas com a efetiva decisão judicial sobre a prisão.
A segunda questão sobre o conteúdo do ato refere-se a quem exercerá o controle
da prisão. O art. 7 (5) da Convenção Americana de Direitos Humanos prevê que o preso
4. Textos disponíveis em www.oas.org
62
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
deve ser apresentado a “um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções
judiciais”. Compreender o que é um juiz não traz grandes desafios de interpretação
porque será a autoridade judiciária em face de quem se exige que se seja “competente,
independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer
acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações
de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.”5
No Brasil não cabe discutir o termo “outra autoridade competente” porque
a Constituição determina que a comunicação da prisão seja feita para um “juiz
competente” (art. 5º, caput, LXII) e que a prisão ilegal será relaxada pela “autoridade
judiciária” (art. 5º, caput, LXV).
a terceira questão sobre o conteúdo do ato que deve ser enfrentada é o
procedimento da “audiência de custódia”. Isso porque a expressão “deve ser
apresentado prontamente” necessita ser interpretada à luz do objetivo da garantia,
evidenciando que a oitiva pessoal do preso pela autoridade judiciária é um
fundamento, verdadeiro requisito procedimental que urge, portanto, ser cumprido
antes do juiz decidir sobre a legalidade e necessidade da prisão. Além disso, a
apresentação do preso ao juiz deve ser automática e independe de requerimento,
o que auxilia cumprir a garantia constitucional de relaxar prisões indevidas e de
substituir prisões desnecessárias já que o contraditório sobre a prisão é diferido e o
preso tem dificuldades em demonstrar a ilegalidade da prisão.
Considerando-se que nas prisões em flagrante a custódia não decorre de um juízo
anterior de magistrado, a audiência do preso em flagrante constitui requisito da prisão,
que, se não ocorrer, invalidará a medida. Ademais, ao se ouvir o preso na “audiência de
custódia” é fundamental a presença de advogado ou defensor porque será uma forma de
assegurar a legalidade da própria audiência, fazendo-se respeitar, por exemplo, o direito ao
silêncio, além de constituir figura fundamental para que haja paridade de armas em face do
Ministério Público, já que poderão ser apresentados argumentos contrários à prisão.
A “audiência de custódia”, portanto, tem dois vieses, sendo o primeiro a análise da
legalidade da prisão e, o segundo, a necessidade da sua manutenção, nos termos do
art. 310, CPP, embora a norma processual mencionada não se refira propriamente a uma
audiência, mas apenas ao recebimento do auto de prisão em flagrante para análise, nos
seguintes termos:
5. http://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm, acesso em 02.04.15.
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
AUDIÊNCIA DE CUSTÔDIA
63
Art. 310. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente:
I - relaxar a prisão ilegal; ou
II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos
constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as
medidas cautelares diversas da prisão; ou
III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.
Em suma, apesar do sistema de garantias brasileiro contido na Constituição Federal e
no Código de Processo Penal determinar que a prisão em flagrante seja imediatamente
comunicada ao juiz em 24 horas, devendo, então, o magistrado, mediante decisão
fundamentada, decidir sobre a legalidade da prisão bem como sobre a sua conversão em
prisão preventiva ou substituição por medida alternativa, tais previsões não atendem à
garantia do art. 7 (5) da Convenção Americana de Direitos Humanos, que determina que
a pessoa presa “deve ser conduzida, sem demora, a presença de um juiz”.
4- DAS CONSEQUÊNCIAS DA INOBSERVÂNCIA DO DIREITO DO
PRESO SER LEVADO, SEM DEMORA, À PRESENÇA DO JUIZ
Como já exposto, o direito previsto no art. 7 (5) da Convenção Americana de Direitos
Humanos, integra o ordenamento jurídico nacional. Então, a aplicação literal do art.
306 do Código de Processo Penal, apenas com a comunicação do auto de prisão em
flagrante ao magistrado, é inábil para cumprir e respeitar o direito do preso.
Mas qual a consequência da não observação do direito do preso neste caso? Ou, em
outras palavras, caso não seja realizada a audiência de custódia, qual a consequência
processual? Não restam dúvidas que a prisão em flagrante, neste caso, deverá ser
relaxada em face do desrespeito ao art. 7 (5) da Convenção Americana de Direitos
Humanos e nos termos do art. 5º, caput, inciso LXV, da Constituição.
A “audiência de custódia” constitui, portanto, etapa procedimental essencial
para a legalidade da prisão de forma que se não for observada a prisão deverá ser
imediatamente relaxada.
É, pois, uma questão muito mais imbuída de aspectos políticos que propriamente
jurídicos para sua efetivação. Nesta perspectiva, Bobbio, com maestria e perspicácia,
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
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relatou no seu “A era dos Direitos”:6
Não se pode dizer que os direitos do homem tenham sido mais respeitados nas épocas
em que os eruditos estavam de acordo em considerar que haviam encontrado um
argumento irrefutável para defendê-los, ou seja, um fundamento absoluto: o de que
tais direitos derivavam da essência ou da natureza do homem. Em segundo lugar,
apesar da crise dos fundamentos, a maior parte dos governos existentes proclamou
pela primeira vez, nessas décadas, uma Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Por conseguinte, depois dessa declaração, o problema dos fundamentos perdeu
grande parte do seu interesse. Se a maioria dos governos existentes concordou com
uma declaração comum, isso é sinal de que encontraram boas razões para fazê-lo.
Por isso, agora, não se trata tanto de buscar outras razoes, ou mesmo (como querem
os Jusnaturalistas redivivos) a razão das razões, mas de por as condições para uma
mais ampla e escrupulosa realização dos direitos proclamados.
Não se trata, pois, de buscar (novos) argumentos para o cumprimento dos direitos do
homem, mas de procurar efetivamente realizá-los. É uma questão muito mais política
que jurídica ou filosófica. Segundo Bobbio:7
O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto justificálos, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político.
Caberá, assim, especialmente ao Poder Judiciário a indispensável e necessária
vontade política de resolver tal problema e assegurar e proteger os direitos fundamentais
do preso.
A boa vontade para concretizar os direitos humanos, no entanto, deve advir de
todos os agentes envolvidos no nosso sistema processual, que devem analisar a
implementação sob a ótica da realização dos direitos humanos em nosso Estado
Democrático de Direito, não permitindo que interesses ou sentimentos pessoais ou
políticos se sobreponham à proteção dos direitos humanos.
6. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos . trad. de Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 23/24.
7. Idem.
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
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5- DO PROVIMENTO CONJUNTO Nº 03/2015 DA PRESIDÊNCIA
DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO E SUA
RESPECTIVA CORREGEDORIA
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no dia 22 de janeiro de 2015, editou
o Provimento Conjunto nº 03/2015 da Presidência e da Corregedoria Geral de Justiça,
justamente para regulamentar as denominadas “audiências de custódia”.
Em linhas gerais, o Provimento determina a apresentação da pessoa detida em até
24 horas ao juiz competente juntamente com o auto de prisão em flagrante, conforme
se vê nas normas abaixo reproduzidas:
Art. 1º Determinar, em cumprimento ao disposto no artigo 7º, item 5, da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos (pacto de San Jose da Costa Rica), a apresentação
de pessoa detida em flagrante delito, até 24 horas após a sua prisão, para participar
de audiência de custódia.
Art. 3º A autoridade policial providenciará a apresentação da pessoa detida, até
24 horas após a sua prisão, ao juiz competente, para participar da audiência de
custódia.
§ 1º O auto de prisão em flagrante será encaminhado na forma do artigo 306,
parágrafo 1º, do Código de Processo Penal, juntamente com a pessoa detida.
Quanto a estas disposições, verifica-se que o Tribunal de Justiça procurou atender
às normas da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (o que já deveria ser uma
praxe no país, diga-se) e, no quesito temporal, andou muito bem ao exigir que o preso
seja apresentado em até 24 horas ao magistrado competente para a “audiência de
custódia”, juntamente com o auto de prisão em flagrante.
O Provimento estabeleceu, ainda, regras procedimentais da “audiência de custódia”,
garantindo que o preso tenha contato prévio com seu advogado ou defensor por
tempo razoável, conforme dispõe o art. 5º:
Art. 5º O autuado, antes da audiência de custódia, terá contato prévio e por tempo
razoável com seu advogado ou com Defensor Público.
Prosseguiu determinando que o próprio juiz informará a possiblidade do preso de
manter-se silente (reforçando o que o defensor ou advogado já teriam feito na reunião
prévia) mas interrogando-o sobre sua qualificação, condições pessoais, meios de vida
66
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v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
ou profissão, local onde reside e, o mais importante, sobre as circunstâncias objetivas
da prisão, conforme descrito abaixo:
Art. 6º Na audiência de custódia, o juiz competente informará o autuado da sua
possibilidade de não responder perguntas que lhe forem feitas, e o entrevistará sobre
sua qualificação, condições pessoais, tais como estado civil, grau de alfabetização,
meios de vida ou profissão, local da residência, lugar onde exerce sua atividade, e,
ainda, sobre as circunstâncias objetivas da sua prisão.
§ 1º Não serão feitas ou admitidas perguntas que antecipem instrução própria de
eventual processo de conhecimento.
§ 2º Após a entrevista do autuado, o juiz ouvirá o Ministério Público que poderá
se manifestar pelo relaxamento da prisão em flagrante, sua conversão em prisão
preventiva, pela concessão de liberdade provisória com imposição, se for o caso, das
medidas cautelares previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal.
§ 3º A seguir, o juiz dará a palavra ao advogado ou ao Defensor Público para
manifestação, e decidirá, na audiência, fundamentadamente, nos termos do
artigo 310 do Código de Processo Penal, podendo, quando comprovada uma das
hipóteses do artigo 318 do mesmo Diploma, substituir a prisão preventiva pela
domiciliar.
Veja-se que o Provimento proíbe que sejam feitas perguntas que possam antecipar
a instrução criminal, devendo o ato restringir-se a análise da legalidade da prisão, já que,
oportunamente, será providenciada a instrução processual.
É, pois, um mecanismo dirigido especificamente para evitar os abusos de prisões
que não se encontrariam nas hipóteses legais de flagrância, não um juízo sumário da
culpa, o que é corroborado pelos dispositivos acima mencionados, em especial os §§2º
e 3º do art. 6º do Provimento.
Vê-se, ainda, que após o contraditório o juiz decidirá por um dos caminhos acima
apontados, além do poder requisitar exames clínico e de corpo de delito quando
concluir que a perícia seja necessária para apurar eventuais abusos cometidos durante
o ato ou mesmo determinar o devido encaminhamento assistencial.
Ocorre que o Provimento não determinou a imediata aplicação das audiências de
custódia em todo o Estado, regulamentando-a nos seguintes termos:
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
AUDIÊNCIA DE CUSTÔDIA
67
Art. 2º A implantação da audiência de custódia no Estado de São Paulo será gradativa
e obedecerá ao cronograma de afetação dos distritos policiais aos juízos competentes.
Parágrafo único. A Corregedoria Geral da Justiça disciplinará por provimento a
implantação da audiência de custódia no Estado de São Paulo e o cronograma de
afetação dos distritos policiais aos juízos competentes.
Portanto, apesar de louvável e ainda que tardia, a iniciativa do Tribunal de Justiça,
é preciso atentar para que se elabore um cronograma factível e que efetivamente se
implementem as “audiências de custódia” por todo o Estado. Até porque, como vimos
acima, considerando-se a integração no nosso ordenamento jurídico da Convenção
Americana de Direitos Humanos e, com o entendimento atual do Supremo Tribunal
Federal, as normas atinentes as tais audiências seriam autoaplicáveis, não carecendo de
deliberações ulteriores sobre sua concretização. E não só por isso, mas especialmente
em face do disposto na Constituição Federal relativamente à regra de aplicação
imediata dos direitos fundamentais, prevista no art. 5º, § 1º que determina que as
normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
Mas o Provimento nº 03/2015, apesar de bem-vindo, foi duplamente impugnado até
o momento. Impugnações revestidas, à primeira vista, de arguições de vícios de forma
mas, que na prática, verificam-se questões outras como se verá nas explicações abaixo.
6- DAS IMPUGNAÇÕES AO PROVIMENTO CONJUNTO
Nº 03/2015
A Associação Paulista do Ministério Público, que representa os membros do órgão
no Estado, pretendeu suspender a implantação das “audiências de custódia” mediante a
impetração do Mandado de Segurança nº 2031658-86.2015.8.26.0000 perante o Órgão
Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.8
Como fundamentos da impetração a Associação argumentou que o Provimento
extrapola a legitimidade para interferência legislativa no art. 310, CPP. Menciona, ainda,
que a medida causaria discordância de membros do Ministério Público e do Judiciário
pela sua inviabilidade prática, embora não esclareça o que inviabilizaria o ato. Este
argumento (vazio) soa muito mais um ataque à (pequeníssima) carga extra de serviço
aos envolvidos, tais como os Promotores de Justiça e Juízes.
8. Íntegra da inicial disponível em http://www.conjur.com.br/2015-fev-25/membros-mp-sp-entram-acaoaudiencias-custodia , acesso em 02.04.15.
68
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
Mas a impetração contou, ainda, com o curioso argumento de que a aplicação
do Provimento nº 03/2015 causaria “zonas de exclusão” porque previu a implantação
paulatina das “audiências de custódia” no Estado e, por tal razão, o autor de crimes poderia
escolher aonde os praticaria tendo em vista que teria o “benefício” de ser entrevistado por
um juiz. Como se este “benefício” significasse a imediata soltura do preso em flagrante
em todos os casos, uma ilação bastante descompassada com a real função da providência
determinada pelo. Trata-se de argumentação verdadeiramente ad terrorem.
Prosseguindo nos argumentos, sugere-se que o Provimento foi editado pelo
Judiciário com vistas a atuar conjuntamente com o Executivo para evitar superlotação
dos presídios.
Por fim, alega que a edição do Provimento significa a indevida interferência do
Judiciário no Executivo haja vista a violação do art. 144, CF que dispõe que as polícias
subordinam-se a este último Poder, não ao Judiciário por meio de Provimento quando
determina a apresentação do preso ao juiz, o que evidentemente necessita da participação
de policiais para que seja concretizada a condução do preso até o magistrado.
O Mandado de Segurança, todavia, foi julgado rapidamente e foi extinto sem
resolução do mérito por se entender que a Impetrante não tinha interesse processual pela
inadequação da via eleita, haja vista ter-se valido do Petitório para atacar situação geral
e impessoal de alcance genérico e que disciplina hipótese nele abstratamente prevista.
Da decisão que extinguiu o Mandado de Segurança sem resolução do mérito houve
a interposição de Embargos de Declaração e Agravo Regimental, ainda não julgados.
A questão está, pois, sub-judice.
Por seu turno, a Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol) ingressou
com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (ADI nº
5240) pedindo a suspensão do Provimento nº 03/2015.9
Os fundamentos da ação são, basicamente, os já veiculados no Mandado de Segurança impetrado pela Associação Paulista do Ministério Público, tais como a violação
do art. 22, I, CF (competência exclusiva da União para legislar sobre direito processual)
e do art. 144 CF (sujeição da polícia civil ao Poder Executivo), inclusive trazendo os
mesmo argumentos extrajurídicos e claramente políticos lá mencionados, tais como a
9. Petição inicial disponível em http://s.conjur.com.br/dl/adi-audiencia-custodia.pdf, acesso em 02.04.15. Os autos
podem ser consultados via site do STF (ADI nº 5240).
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
AUDIÊNCIA DE CUSTÔDIA
69
repetição de uma Nota crítica ao Provimento, de autoria do Presidente da Associação
Nacional dos Juízes Estaduais. 10
A ADI foi distribuída para a relatoria do Min. Fux, que se manifestou no sentido de
expedir ofícios ao Advogado-Geral da União, ao Procurador-Geral da República em
conjunto com o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo para que manifestem-se.
Os ofícios foram expedidos em 30 de março de 2015. A Presidência do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo em conjunto com a Corregedoria Geral de Justiça se
manifestaram no sentido de que o Provimento nada mais fez que dar concretude ao
procedimento a ser seguido pelos magistrados para garantir os direitos fundamentais
dos presos. Alegaram ser um mero ato administrativo em consonância com a política
pública federal, não havendo no texto do Provimento qualquer matéria de competência da União. Já a Advocacia-Geral da União igualmente defendeu a constitucionalidade
do Provimento. Aguarda-se a manifestação da Procuradoria-Geral da República, a qual,
espera-se, se manifeste pela constitucionalidade do Provimento, haja vista o Ministério
Público Federal – por meio das Câmaras de Coordenação e Revisão responsáveis pela
matéria criminal (2ª CCR), pelo combate à corrupção (5ª CCR) e pelo controle externo da
atividade policial e sistema prisional (7ª CCR) – ter apresentado Nota Técnica manifestando apoio à aprovação do Projeto de Lei do Senado n. 554/11. Após, os autos deverão
ir à conclusão para a apreciação do pedido liminar.
7- DO PROJETO DE LEI DO SENADO Nº 554/2011
O Processo Penal passou por algumas alterações nas disposições relativas à prisão processual, fiança, liberdade provisória e demais medidas cautelares com o advento da lei
12.403 de 4 de maio de 2011. Todavia, persistiram lacunas como o não estabelecimento de
um prazo máximo para prisão preventiva e o dever de revisar periodicamente a medida, por
exemplo. Quanto a prisão em flagrante, perdeu-se uma ótima oportunidade para a criação
da “audiência de custódia”, já prevista nos tratados internacionais acima mencionados.
No entanto, o PLS 554/2011 busca resolver esse grave problema que persiste no
sistema de prisões cautelares. Eis a proposta legislativa em discussão:
Art. 1º O art. 306 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo
Penal), passa a vigorar com a seguinte redação:
10. Nota disponível em http://blogdofred.blogfolha.uol.com.br/2015/02/06/entidade-de-juizes-critica-adocaoimediata-da-audiencia-de-custodia/ , acesso em 02.04.15.
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v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
70
Art. 306.
§ 1º No prazo máximo de vinte e quatro horas após a prisão em flagrante, o preso será
conduzido à presença do juiz para ser ouvido, com vistas às medidas previstas no art.
310 e para que se verifique se estão sendo respeitados seus direitos fundamentais,
devendo a autoridade judicial tomar as medidas cabíveis para preservá-los e para
apurar eventual violação.
§ 2º Na audiência de custódia de que trata o parágrafo 1º, o Juiz ouvirá o Ministério
Público, que poderá, caso entenda necessária, requerer a prisão preventiva ou outra
medida cautelar alternativa à prisão, em seguida ouvirá o preso e, após manifestação
da defesa técnica, decidirá fundamentadamente, nos termos art. 310.
§ 3º A oitiva a que se refere parágrafo anterior será registrada em autos apartados, não
poderá ser utilizada como meio de prova contra o depoente e versará, exclusivamente,
sobre a legalidade e necessidade da prisão; a prevenção da ocorrência de tortura ou
de maus-tratos; e os direitos assegurados ao preso e ao acusado.
§ 4º A apresentação do preso em juízo deverá ser acompanhada do auto de prisão
em flagrante e da nota de culpa que lhe foi entregue, mediante recibo, assinada pela
autoridade policial, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os nomes das
testemunhas.
§ 5º A oitiva do preso em juízo sempre se dará na presença de seu advogado, ou, se não
o tiver ou não o indicar, na de Defensor Público, e na do membro do Ministério Público,
que poderão inquirir o preso sobre os temas previstos no parágrafo 3º, bem como se
manifestar previamente à decisão judicial de que trata o art. 310 deste Código.
A proposta, como se vê, é bastante semelhante ao que dispõe o Provimento
nº 03/2015 já comentado. O que de mais diferente consta dela é um Substitutivo de
Autoria do Senador Francisco Dornelles para incluir que a “audiência de custódia” pode
ser realizada por videoconferência.
O PLS 554/2011 é bem-vindo e atende às disposições para garantir os direitos
humanos no Processo Penal, em especial quanto a prisão em flagrante.
Como já muito esclarecido acima, a “audiência de custódia” corrige, de forma
simples e eficiente, a mera análise dos autos do flagrante pelo juiz para que o faça em
conjunto da audiência tendo, assim, mais condições de analisar a presença ou ausência
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
AUDIÊNCIA DE CUSTÔDIA
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dos requisitos para a manutenção da custódia.
O projeto pretende, portanto, positivar em legislação nacional uma prática factível
e perfeitamente realizável que demandará uma rápida e simples audiência com o
custodiado. Não haverá grandes impactos com sua implementação eis que é o próprio
juiz que analisa o flagrante que conduziria a “audiência de custódia”, demandando
apenas a presença do órgão do Ministério Público e do Advogado ou Defensor na
mesma ocasião. Ou seja, nada complicado demais ou impossível de se realizar.
A efetiva implantação das “audiências de custódia” assegura de uma só vez o direito
a um processo sem dilações indevidas, além de proporcionar melhores condições de
eficácia das cautelares diversas do art. 319 porque no contato pessoal com o imputado,
o juiz melhor poderá aferir a medida cautelar mais adequada a ser imposta, além de,
por óbvio, garantir a dignidade do imputado ao permitir o imediato acesso à órgão
jurisdicional.
Ademais, é preciso lembrar que desde 2008 o interrogatório passou a ser o último
ato processual para quase todos os procedimentos, fazendo com que o preso em
flagrante e que tivesse sua prisão convertida em preventiva viesse a ter contato com o
juiz (oportunidade de audiência) apenas no final do procedimento. Ou seja, uma clara
violação ao art. 7 (5) do Pacto de São José da Costa Rica.
Sendo certo que é bastante comum a prisão preventiva durar vários meses, a
garantia da realização de uma “audiência de custódia” corrige esta situação, dando ao
preso o acesso ao Judiciário desde logo para fazer valer seus direitos.
O projeto, portanto, atende à sistemática processual penal pátria e os diplomas
internacionais comentados.
Por fim, não se pode esquecer que historicamente e originariamente o Habeas
Corpus era um meio de se obter o rápido comparecimento físico de alguém acusado
de crime perante uma Corte como um direito fundamental em face dos abusos estatais
justamente para verificar prontamente a legalidade da prisão. Daí o termo Habeas
Corpus significar “trazer o corpo” (do latim habeo, habere = ter, exibir, trazer; corpus,
corporis = corpo).
Assim, embora a “audiência de custódia” não constitua uma ação impugnativa
autônoma como nosso atual Habeas Corpus, sua concretização remete-nos à ideia
de respeito aos direitos humanos fundamentais de forma análoga ao originado no
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
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Direito Inglês.
Concluindo, o projeto de lei nº 554/2011 não precisaria ser aprovado caso houvesse
a boa vontade política de concretizar direitos já inseridos no ordenamento jurídico
pátrio. Todavia, em face da inoportuna resistência à implementação das “audiências
de custódia”, a rápida aprovação do projeto faria com que os direitos fossem aplicados
em todo o país, como deve ser em nossa federação em face do nosso sistema
processual penal.
8- RESPOSTAS À CONSULTA
A) Existe, em nosso direito, a previsão da realização de “audiência de custódia”,
considerada esta a audiência perante juiz, logo após prisão em flagrante?
Não há previsão explícita da “audiência de custódia” em nossa Constituição. Não
obstante, tanto o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos quanto a Convenção
Americana de Direitos Humanos, contêm esta previsão em seus respectivos textos e
ambos integram o ordenamento jurídico nacional. No âmbito do Estado de São Paulo
há o Provimento nº 03/2015 do Tribunal de Justiça e da Corregedoria, que implementa
o insituto em São Paulo, a ser aplicado paulatinamente.
B) O direito de ser submetido a “audiência de custódia” tem aplicação imediata nos
casos de prisão em flagrante ou é um direito que dependa de regulamentação?
Todos os direitos fundamentais previstos em tratados internacionais de direitos
humanos e, evidentemente todos aqueles constantes da Constituição Federal, são
normas autoaplicáveis, independendo de regulamentação pelo Judiciário. Especificamente a norma contida no art. 7 (5) da Convenção Americana de Direitos Humanos que prevê a realização de “audiência de custódia”, é portanto, autoaplicável.
C) Quais as consequências no caso de descumprimento da apresentação do preso
em “audiência de custódia”?
A não observância do art. 7 (5) da Convenção Americana de Direitos Humanos, isto
é, a não realização da chamada “audiência de custódia” é ilegal e, como tal, deverá
implicar no relaxamento imediato da prisão em flagrante pelo magistrado competente.
Considerando-se a existência do Provimento nº 03/2105 no âmbito do Estado de São
Paulo, a não realização do ato ensejará o relaxamento da prisão em flagrante.
d) Houve impugnações ao Provimento Conjunto nº 03/2015 da Presidência do
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AUDIÊNCIA DE CUSTÔDIA
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Tribunal de Justiça do Estado De São Paulo e sua respectiva Corregedoria? Quais os
status de julgamento destas impugnações?
Sim, até o presente momento há notícias de duas impugnações ao Provimento
aludido.
A Associação Paulista do Ministério Público, que representa os membros do órgão
no Estado, pretendeu suspender a implantação das “audiências de custódia” mediante
a impetração do Mandado de Segurança nº 2031658-86.2015.8.26.0000. Este, todavia,
foi julgado pelo Órgão Especial do Tribunal e foi declarado extinto sem resolução
do mérito por se entender que a Impetrante não tinha interesse processual pela
inadequação da via eleita, haja vista ter-se valido do Petitório para atacar situação
geral e impessoal de alcance genérico e que disciplina hipótese nele abstratamente
prevista. Houve oposição de embargos declaratórios e agravo regimental, ambos
ainda não julgados.
A Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol) ingressou com uma Ação
Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (nº ADI 5240), pedindo
a suspensão do Provimento nº 03/2015. A ADIN foi distribuída para a relatoria do Min.
Fux, que se manifestou no sentido de expedir ofícios ao Advogado-Geral da União e
ao Procurador-Geral da República para que se manifestem. Os ofícios foram expedidos
em 30 de março de 2015 e aguarda-se manifestação das autoridades mencionadas
para apreciação do pedido liminar. A Advocacia-Geral da União já se manifestou
favoravelmente à Constitucionalidade do Provimento e espera-se que a ProcuradoriaGeral da República faça o mesmo.
e) Há projeto de lei sobre o tema? E, em havendo-o, o projeto atende a critérios
técnico-jurídicos para que seja aprovado ou necessita intervenções em sua redação?
Sim, há projeto de lei sobre o tema, o PLS nº 554/2011 de autoria do Senador
Antônio Carlos Valadares, projeto este aprovado pela Comissão de Direitos Humanos
e pela Comissão de Assuntos Econômicos do Senado e que pretende dar nova redação
ao art. 306, CPP estabelecendo o prazo para a apresentação do preso ao juiz (§ 1º),
determinando que haja a intervenção do Ministério Público, do preso e da defesa, na
audiência (§ 2º), discorrendo sobre a forma de autuação (§ 3º) e os documentos que
deverão ser submetido a Juízo em tal ato.
A existência do projeto não implica em restrição ou impedimento para que seja
aplicado o art. 7(5) da Convenção Americana de Direitos Humanos, que pode e deve
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ser atendido. A não aplicação do dispositivo caracteriza ilegalidade nas prisões em
flagrante e ilícito internacional praticado pelo país.
É inegável, porém, que uma intervenção legislativa deverá ocorrer com vistas a
prover maior segurança e apresentar os requisitos específicos para a observância de
tal direito.
É o meu parecer.
São Paulo, 20 de maio de 2015.
MENOR SOB GUARDA
WAGNER BALERA
Professor Titular da PUC/SP.
Presidente da Comissão de Estudos de Direito Previdenciário do IASP.
Conselheiro do IASP.
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1.INTRODUÇÃO
Por designação da douta Presidência sou instado a me pronunciar sobre o texto da
Ação Direta de Inconstitucionalidade que versa sobre o tema da Pensão por morte do
Guardião para Criança Guardada.
Para tanto, tecerei considerações de ordem geral e de cunho previdenciário que
entendo pertinentes à reflexão e tomada de posição deste E. Conselho sobre tema de
cunho tão importante.
Advirto, porém, que irei escusar-me, deliberadamente, de trazer à apreciação da
Casa a copiosa jurisprudência que se formou a respeito do assunto. Tais julgados são de
fácil acesso e como revelam a controvérsia sob diversas perspectivas não atenderiam ao
escopo da presente manifestação.
1.1 A JUSTIÇA SOCIAL.
A Justiça Social é, consoante expressão indicativa do art. 193 da Constituição, o fim
da Ordem Social.
Entre outros instrumentos esse fim é alcançado por meio do sistema de
seguridade social.
E, dentre os planos de proteção geridos pelo sistema de seguridade social cumpre
destacar aqueles que se voltam, mais especificamente, à família.
O festejado PIERRE LAROQUE, com propriedade, assinala: “não se pode conceber
uma seguridade social do indivíduo que não seja uma seguridade social familiar.1
Dentro do arcabouço da proteção familiar podem ser encontradas distintas vias de acesso.
Mais particularmente, é possível distinguir: i. a via previdenciária (seguro social) e; ii.
a via assistenciária (integrada por distintos esquemas de atuação: o sistema de saúde e
o sistema de assistência social).
Mantenhamos em retentiva a definição de seguridade social, no Brasil, como sendo:
“o conjunto de medidas constitucionais de proteção dos direitos individuais e
1. PIERRE LAROQUE, Famille et Securité Sociale, in Revue Française du Travail, 1947, p. 829.
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MENOR SOB GUARDA
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coletivos concernentes à saúde, à previdência e à assistência social.”2
O conceito que se construiu é útil para o exame dos regimes jurídicos aplicáveis a
quem venha a demandar proteção por qualquer daquelas vias.
No âmbito da seguridade social podem existir, naturalmente, combinações de
programas de natureza distinta, de arte a que todas as situações de necessidade venham
a ser protegidas, em pleno cumprimento do primeiro dos objetivos constitucionais desse
sistema, que assim se acha enunciado: universalidade da cobertura e do atendimento
(art. 194, único, I, da Lei Magna).
Merecem destaque, no particular, os planos e programas de proteção social da família.
Aliás, como é de comum sabença, a família é a primeira rede de seguridade social, que
será coadjuvada pelo Estado se e quando não se revelar apta a garantir as necessidades
básicas dos respectivos integrantes.
Bem lembrava o saudoso RUY DE AZEVEDI SODRÉ que a proteção da família se dá
em ordem a fazer “a coletividade social participar das consequências econômicas de
um fato puramente particular.”3
2. A INSTITUIÇÃO FAMILIAR NOS QUADROS DA
SEGURIDADE SOCIAL
A instituição familiar, por seu turno, é situada em determinado quadro referencial.
Seus integrantes tanto podem ser considerados individualmente como beneficiários
e, sob esse prisma, estão definidos pela lei como segurados, como podem estar
situados em posição de dependência econômica do segurado e, como tal, receberem a
qualidade jurídica de dependentes.
Recorda LOURIVAL VILANOVA que:
“Onde haja direito incidindo em fatos sociais (ou fatos físicos que se tornem
relevantes para o direito), aí estará a relação jurídica.” 4
2. Cf. o meu: “A Seguridade Social na Constituição de 1988”, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1989, p. 34.
3. RUY DE AZEVEDO SODRÉ ,”Amparo à Família pela Legislação Social”, São Paulo, 1951, p. 23.
4. LOURIVAL VILANOVA, “ As estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo”, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1977, p. 25.
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No plano familiar estão presentes duas relações jurídicas: a regulada pelo direito de
família e a disciplinada pelo direito previdenciário.
A primeira qualifica os agentes integrantes da entidade familiar e sob a influência de
tal atribuição é que se monta o quadro referencial da segunda relação jurídica.
No atual quadro referencial previdenciário, os segurados foram classificados em
duas classes: o obrigatório e o facultativo.
Segurados obrigatórios são todos trabalhadores, menos aqueles que se acham sob
os regimes próprios de seguridade social (como, por exemplo, os servidores públicos,
os magistrados e congressistas).
De outra parte, segurado facultativo é qualquer pessoa que, mesmo não integrando
o mundo do trabalho, quer ingressar ou manter vínculo formal com a seguridade social.
A qualidade de segurado, em qualquer das duas situações, é atribuída ao sujeito
pela filiação, ato administrativo que documenta o estatuto jurídico previdenciário do
sujeito de direito previdenciário.
Os maiores de dezesseis anos, como receberam o direito ao trabalho, se resolverem
exercer esse direito, estarão enquadrados dentre os segurados.
Qualquer que seja a categoria em que esteja enquadrado o segurado, se o mesmo
tiver recebido do direito de família certa qualificação jurídica, é a partir dessa perspectiva
que se situará a relação previdenciária de dependência.
Os beneficiários da proteção social familiar foram definidos pela lei previdenciária
como dependentes.
O liame existente entre segurados e dependentes é, sobretudo, de natureza
econômica. Pode-se dizer, mais propriamente, que a dependência é fato econômico a
que a lei atribui consequências jurídicas e, dentre estas, concretamente, a outorga de
proteção social previdenciária.
Com efeito, apurada a dependência econômica, potencial geradora de estado de
necessidade, o sistema de seguridade social se põe em movimento a fim de outorgar ao
dependente a correspondente cobertura previdenciária ou assistencial.
O dependente detém direito subjetivo público por direito próprio. Não se confunde,
tal direito, com o ius atribuído pela lei ao segurado.
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
MENOR SOB GUARDA
79
Assim, por exemplo, se marido e mulher trabalham, são os dois segurados obrigatórios,
e, por conseguinte, um também está qualificado como dependente do outro.
Por igual, o filho não emancipado pode ser dependente do pai e, este último, está
sob a dependência do filho.
A dependência econômica não demanda exclusividade.
De todo modo, certa classificação dos dependentes pode restringir o grupo protegido.
O pano de fundo a partir do qual se entretece essa situação é o da dependência
econômica. Quem merecia sustento do segurado, na ausência desse passa a merecer
sustento do sistema de seguridade social.
A qualidade de dependente exige a inscrição do sujeito no quadro de integrantes
de tal categoria jurídica.
O segurado foi investido, pela lei, da prerrogativa de efetuar a inscrição do
dependente, observadas as formalidades ditadas pelo órgão previdenciário.
Aliás, em precedente jurisprudencial que, em meu entendimento, tem cunho
interpretativo plenamente conforme com a certeza e segurança das relações jurídicas,
o Conselho de Recursos da Previdência Social assentou:
“A existência de beneficiário preferencial não impede que o segurado inscreva,
para fins meramente declaratórios, pessoa que viva sob sua dependência
econômica.”5
A inscrição poderá, excepcionalmente, ser realizada “post mortem” se e quando não
tiver sido efetivada pelo segurado.
O art. 16 do Plano de Benefícios da Previdência Social (Lei n.º 8.213, de 1991, com
a redação dada pelas Leis n. 9.032, de 1995, n. 9,528, de 1997 e 12.470, de 2011) fixa o
seguinte quadro referencial dos dependentes:
Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de
dependentes do segurado:
5. Trata-se do Enunciado n.º 15, do CRPS que, embora revogado, é de manifesto conteúdo interpretativo do
melhor direito.
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I - o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de
qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha
deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz,
assim declarado judicialmente; II - os pais;
III - o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um)
anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne
absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente; IV – revogado.
§ 1º A existência de dependente de qualquer das classes deste artigo exclui do
direito às prestações os das classes seguintes.
§ 2º. O enteado e o menor tutelado equiparam-se a filho mediante declaração
do segurado e desde que comprovada a dependência econômica na forma
estabelecida no Regulamento.
§ 3º Considera-se companheira ou companheiro a pessoa que, sem ser casada,
mantém união estável com o segurado ou com a segurada, de acordo com o § 3º
do art. 226 da Constituição Federal.
§ 4º A dependência econômica das pessoas indicadas no inciso I é presumida e a
das demais deve ser comprovada.
Para os propósitos deste estudo convém trazermos à tela de considerações a redação
do § 2º, do art. 16, modificado pela Lei n. 9.528, de 1997.
Assim se encontrava grafado o comando em questão:
§ 2º Equiparam-se a filho, nas condições do inciso I, mediante declaração do
segurado: o enteado; o menor que, por determinação judicial, esteja sob a sua
guarda; e o menor que esteja sob sua tutela e não possua condições suficientes
para o próprio sustento e educação.
Atentemos, ainda para a regra estampada no § 2º, do artigo em comento. A
dependência econômica das pessoas indicadas no inciso I é presumida, diz a regra,
enquanto que, a das demais, é de ser comprovada.
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Portanto, presunção ditada pelos termos da subordinação econômica - viver às
expensas - do dependente ao segurado dispensa o respectivo beneficiário de produzir
qualquer comprovação dessa vivência.
Dependentes arrolados no inciso I, do art. 16 da Lei, ficam eximidos de produzir qualquer
prova da dependência econômica. Quanto aos demais, o liame econômico está subordinado
à manifesta demonstração, no mundo fenomênico, da vivência às expensas do segurado.
Registrada essa observação preliminar, passemos ao exame da primeira categoria
de dependentes, justamente aqueles em cujo favor milita a presunção de vivência às
expensas do segurado.
Esse rol de dependentes – a quem o Regulamento da Previdência Social batiza de
preferenciais – está, atualmente, assim adnumerado no art. 16, I, do Plano de Benefícios,
com a redação que lhe deu a Lei n. 12.470, de 2011:
I - o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de
qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha
deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz,
assim declarado judicialmente
Trata-se de certo grupo de pessoas situadas, pela lei, em igual posição jurídica, no
quadro referencial dos dependentes do segurado.
Não existe, entre elas, qualquer primazia.
Todas fazem jus, em igual posição jurídica, aos benefícios previdenciários.
Portanto, tanto o cônjuge quanto o companheiro e os filhos de qualquer condição
merecem idêntico tratamento na esfera da previdência social.
Aliás, o art. 226, § 5º, da Constituição de outubro de 1988, manifestamente, situa o
homem e a mulher em posição de mútua dependência.
Por igual, entre esposa e companheira, o marido e companheiro, se estabelece a
chamada concorrência, em igualdade de condições, às prestações.
Incumbe comprovar o vínculo entre o segurado e o dependente, mediante fórmulas
jurídicas concernentes a cada uma das distintas situações.
Assim, por exemplo, o casamento será comprovado mediante o registro civil,
82
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
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devidamente certificado pelo órgão competente.
Sublinhe-se: incumbe ao interessado demonstrar tão somente o liame entre as
partes, vez que é presumida a dependência econômica das pessoas enquadradas no
inciso I, do artigo em estudo.
Tal demonstrativo decorre da dúplice perspectiva em que se situa o sujeito de
direitos: a] a econômico e; b] a jurídica.
Ao vetor jurídico, ainda que conglobe o vetor econômico, não é dado desfazer
posições paralelas na vida social do segurado: a familiar e a previdenciária. A ordenança
legal, à partida, considera a realidade familiar para, de seguida, conferir a competente
cobertura do sistema previdenciário.
É outra a qualidade jurídica da vetusta expressão «filhos de qualquer condição»
desde que colocada sob a perspectiva do art. 227, § 6º da Constituição.
Nenhuma discriminação pode existir entre os filhos.
O fenômeno jurídico da concorrência carrega consigo a equiparação, entre os
sujeitos, dos respectivos direitos. Todos os sujeitos catalogados no inciso I, do art. 16 do
Plano de Benefícios, possuem os mesmos direitos
Todos são credores das prestações, em igualdade de condições.
É bem verdade que incumbe ao segurado equiparar entre dependentes, desde que
observada a restritíssima regra fixada pelo § 2º do art. 16. Ainda assim, no entanto, surge
manifesto o discrimen entre os beneficiários: os filhos seguem mantendo a presunção
de dependência econômica, enquanto que os equiparados haverão de comprovar a
vivência a cargo do segurado, ainda que não exclusiva.
Fica, desde logo, excluído do quadro dos dependentes aquele que deixa de viver às
custas do segurado.
Enfileirado sob o mesmo estatuto protetor do filho encontrava-se, segundo a
tradição do direito previdenciário, o menor sob guarda.
Com efeito, o Decreto-Lei n. 66, de 21 de novembro de 1966, ao alterar a redação do
art. 11 da Lei Orgânica da Previdência Social (Lei n. 3.807, de 1960), introduzia o seguinte
preceptivo:
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
MENOR SOB GUARDA
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“Art. 11. Consideram-se dependentes dos segurados, para os efeitos desta Lei:
I - a esposa, o marido inválido, os filhos de qualquer condição menores de 18
(dezoito) anos ou inválidos, e as filhas solteiras de qualquer condição, menores
de 21 (vinte e um) anos ou inválidas;
..................................................................
§ 2º Equiparam-se aos filhos, nas condições estabelecidas no item I, e mediante
declaração escrita do segurado:
a) o enteado;
b) o menor que, por determinação judicial, se ache sob sua guarda;
c) o menor que se ache sob sua tutela e não possua bens suficientes para o
próprio sustento e educação.
...................................................................
Em verdade, as prestações da seguridade são fieis a esse modelo essencial.
Fundamenta o sistema de seguridade social o preceito estampado no art. 194,
parágrafo único, I, da Constituição pelo qual a ordem jurídica se compromete com a
universalidade da cobertura e do atendimento.
Como tive oportunidade de explicar em outra oportunidade, esse princípio, quanto
aos sujeitos protegidos, pode ser traduzido da seguinte forma:
Todas as pessoas colocadas em situação de risco social terão direito ao atendimento
integral.6
Tal modelo atende, sobretudo, a três ordens de exigências: i] as que são próprias dos
direitos humanos; ii] as que confluem com os objetivos do sistema organizado a partir
do art. 194, da Constituição e, finalmente, iii] à conformação técnica de cada uma das
prestações.
6. Cf. o meu: Noções Preliminares de Direito Previdenciário, São Paulo, Quartier Latin, 2ª edição, 2010, p. 106
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3. OS DIREITOS HUMANOS.
Na evolução da concepção dos direitos humanos, como se sabe, foram engendrados,
com especial empenho, os assim denominados direitos civis e políticos, dentre os quais
se destaca o direito da família.
E, no estágio contemporâneo, essa evolução foi sumariada pela Declaração Universal
dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948.
O texto do Art. XXV da Declaração, tal como aprovado pela Resolução n. 317 – A, da
Assembleia Geral das Nações Unidas, assim se acha grafado:
Artigo XXV
1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua
família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados
médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de
desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos
meios de subsistência fora de seu controle.
2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas
as crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção
social.
O comando assegura, desde logo, o direito da família ao bem-estar, expressão que
compreende prestações fornecidas pelos programas de proteção social, dentre os quais
o mais destacado é o da seguridade social.
Tal exigência vem reforçada, no ordenamento constitucional brasileiro, por tríade
elementar: a) a dignidade da pessoa humana; b) a prevalência dos direitos humanos e;
c) a promoção do bem de todos.
Capacitemo-nos bem desses três fundamentos.
3.1. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
Conquanto não dependa de configuração em texto normativo, vez que é valor que
antecede à juridicidade, a dignidade é elemento constitutivo da sociedade e chave
essencial de toda a caminhada da humanidade rumo à justiça.
Explica, com claridade, MIGUEL REALE:
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
MENOR SOB GUARDA
85
“A ideia de valor, para nós, encontra na pessoa humana, na subjetividade
entendida em sua essencial intersubjetividade, a sua origem primeira, como
valor-fonte de todo o mundo das estimativas, ou mundo histórico-cultural. ”7
Não é por acaso ou por exigências topográficas que a dignidade da pessoa humana
está colocada no Art. 1º da Constituição.
É que a força instauradora e transformadora da Constituição encontra suporte em
tal valor, que haverá de ser reconhecido como tal, preservado e restaurado se e quando
restar abalado.
Daí que, ao considerar a pessoa humana enquanto tal, o ordenamento jurídico
a um só tempo reconhece incumbir ao próprio homem o cuidado com a vida e o
desenvolvimento individual e social, igualmente trata de aparelhar a pessoa com o
ferramental apto a permitir que aquela, tanto na dimensão individual como em projeção
comunitária, conquista o ideal do bem estar.
JORGE MIRANDA sublinha que a dignidade da pessoa humana confere:
“...unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos
fundamentais”, 8
Justamente porque a pessoa é:
“...fundamento e fim da sociedade e do Estado”.9
Parece certo que a dignidade humana parte da “noção decisiva de pessoa” que,
como se sabe, constitui a base do cristianismo, como sublinha MOUNIER. 10
Trata-se, melhor dizendo, de valor essencial para a compreensão do ser pessoa e do
lugar que está reservado à pessoa no interior do ordenamento jurídico.
KANT, com propriedade, explica que a pessoa se acha investida de valor por si e em si.
O notável filósofo explicita tal ideia no conhecido imperativo prático: “Age de tal maneira
que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro,
7. MIGUEL REALE, Introdução à filosofia, 2. edição, Saraiva, São Paulo, 1989, p. 168
8. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV. Lisboa: Ed. Coimbra, segunda edição, 1993, p. 180
9. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, citado, página 180.
10. EMMANUEL MOUNIER, O Personalismo, Martins Fontes, Santos, 1964, p. 23.
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sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”11.
Concluamos este ponto afirmando que a dignidade da pessoa humana é o primeiro
e decisivo critério de interpretação de todo o direito e, particularmente, dos direitos
humanos.
Ora, sendo certo que a Declaração de 1948 se apresenta – e realmente o é - como o
denominador comum da sociedade humana destes tempos, será necessário que esse
histórico documento, lido sob a chave hermenêutica da dignidade humana, encontre
efetividade nos quadrantes da Constituição brasileira de 1988 também sob o mesmo
critério de interpretação.
3.2. A PREVALÊNCIA DOS DIREITOS HUMANOS.
A prevalência dos direitos humanos é de ser considerada a partir do tema da estrutura
escalonada das normas jurídicas, consoante a conhecida concepção de Kelsen. 12
Poderíamos considerar que, no plano ideal, o catálogo de direitos humanos
estampado na Declaração de 1948, conquanto não se ache revestido de
formalidades inerentes à celebração de um ato internacional, revela a norma
fundamental internacional de direitos humanos que a comunidade mundial aceita
por consenso.13
11. IMMANUEL KANT, Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos, tradução de Leopoldo Holzbach,
Martin Claret, São Paulo, 2004, p. 64.
12. HANS KELSEN, Teoria Pura do Direito, Coimbra, Armênio Amado, 1974, tradução de João Baptista Machado, 3ª
ed., páginas 309 e seguintes. O autor também cogita da existência de idêntica estrutura nos quadrantes do direito
internacional (p. 431 e segs.).
13. A Declaração é como que a súmula do pensamento das Nações Unidas sobre os direitos humanos. Aos
seus formuladores não pareceu que, àquela altura, devesse conformar-se como tratado ou convenção. Restou
reservada tal função aos dois Pactos de 1966. É certo que se trata de um consenso aprovado pela unanimidade
dos integrantes. É verdade que houve oito abstenções (África do Sul, Arábia Saudita Iugoslávia, Polônia,
Tchecoslováquia União Soviética, Ucrânia e Rússia Branca, e, a e abstiveram-se de votar.
Em novembro de 2013, a África do Sul foi eleita para o Conselho de Direitos Humanos da ONU. Integram
igualmente o Conselho a Russia e a Arabia Saudita. A Tchecoslováquia foi dissolvida em 1993. A Republica
Checa, sua sucessora, assim como a Bielorrussia, a Polonia e a Ucrânia, são signatárias dos dois Pactos que
projetam, no plano formal, a Declaração. A Iugoslávia foi desintegrada e as repúblicas que a sucederam Eslovênia, Croácia, Bósnia e Herzegovina, Macedônia, Montenegro, Sérvia, - integraram-se à União Européia
e a seu sistema de direitos humanos, posto em ordem à Declaração de 1948. Portanto, é unânime a adesão
daqueles que se abstiveram inicialmente, ao bill normativo internacional dos direitos humanos.
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
MENOR SOB GUARDA
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Para simplificar ao máximo a questão, dentro dos estreitos limites deste estudo,
o mesmo pode ser situado como resposta singela à seguinte indagação: Natureza
constitucional ou caráter de supralegalidade dos tratados internacionais de direitos
humanos? 14
Essa questão só aparentemente teria sido superada pelo advento da Emenda
Constitucional n. 45, de dezembro de 2004, que acrescentou o seguinte parágrafo ao
art. 5º da Constituição:
§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem
aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três
quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas
constitucionais.
Digo que só aparentemente a questão foi superada porque, em verdade, as normas
internacionais de direitos humanos que vierem a ser introduzidas no ordenamento
jurídico pátrio com observância do processo de produção normativa estatuído pelo
preceito acima transcrito já se encaixam, na estrutura escalonada do ordenamento
jurídico, no quadro das emendas constitucionais, ocorre que até o presente momento,
somente um diploma internacional de direitos humanos foi apreciado pelas duas Casas
do Congresso por meio do procedimento especial e qualificado de deliberação.
Deste modo, para uma concepção estritamente positivista, os tratados de direitos
humanos se acham colocados em nível superior ao das normas legais, mas não podem
superar, em termos estritos, as normas constitucionais.
Como afirma o Supremo Tribunal Federal: “ . o caráter especial desses diplomas
internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento
jurídico.”15
Pode-se dizer que ao encravar o inciso II no artigo 4º da Constituição, como
referencial que há de reger as relações da Republica do Brasil tanto com a sua gente
como defronte aos estrangeiros, o constituinte deu por concluído o processo histórico
pelo qual nosso país se ombreia com aqueles que fazem questão absoluta de situar os
14. A questão figura na Ementa do Habeas Corpus 96.772, Relator o Ministro CELSO DE MELLO, julgado pelo
Supremo Tribunal Federal, publicado no Diário da Justiça de 21/08/2009.
15. Vide Ementa do HC 96772-SP, relator o Min. Celso de Mello, publicada no Diário da Justiça de 21/08/2009.
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direitos humanos no mais elevado patamar da normatividade e da vivência nacional e
internacional.
Adequadamente compreende Kildare Gonçalves Carvalho que: “o princípio
da prevalência dos direitos humanos situa o homem como destinatário do direito
internacional”16
Avançando pouco mais no tema, não há como conviverem no ordenamento
constitucional o princípio da prevalência dos direitos humanos e leis que impeçam ou
inibam a cabal efetividade de tais direitos.
3.3. A PROMOÇÃO DO BEM DE TODOS.
Em linha com os comandos que descrevem os assim chamados Princípios Fundamentais
da Constituição (Titulo I), se acha catalogado o art. 3º, cujo inciso IV estabelece, dentre os
objetivos fundamentais da República o da promoção do bem de todos.
A efetividade de tal desiderato encontra sua mais genuína expressão mediante o
trabalho, adequadamente catalogado como o valor dotado de primazia para a Ordem
Social (art. 193).
Entretanto, a finalidade da Ordem Social, contemplada pelo mesmo comando, é o
bem estar social, que se concretiza no bem de todos.
Operam o bem estar, nos quadrantes do assim chamado Estado do Bem-Estar
(Welfare State) as políticas sociais e econômicas de cunho prestacional, notadamente
aquelas levadas a efeito pelo sistema de seguridade social.
De feito. Observado o catálogo dos direitos sociais expressos nos artigos 6º, 7º, 196
e seguintes, da Constituição de 1988, de pronto se percebe que o principal instrumento
com que conta o Estado do Bem-Estar é a seguridade social.
Sob a cobertura e o atendimento da seguridade social serão colocados os
trabalhadores em geral e respectivos dependentes.
Aliás, o estudo presente é relacionado com a seguridade social devida ao dependente
do trabalhador.
A seguridade social é o aparato estatal que promove, sob certas e determinadas
16. KILDARE GONÇALVES CARVALHO, Direito constitucional. 14. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 661.
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
MENOR SOB GUARDA
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condições técnicas, o bem de todos, fornecendo as prestações de benefícios e serviços.
Força concluir que a seguridade social, expressão do direito previdenciário, integra o
catálogo dos direitos humanos e deve prestações com plena observância da prevalência
desses direitos e com vistas à promoção do bem de todos.
4. OS OBJETIVOS DA SEGURIDADE SOCIAL.
A morte é um dos riscos cobertos pela seguridade social.
Verificada esse fato, o objetivo da seguridade social, no caso especifico, consiste em
oferecer a prestação apta a atender àquele que dependia economicamente, até então,
da pessoa falecida.
Portanto, os dependentes são credores do benefício, cuja concessão não será
retardada pela falta de requerimento de quaisquer deles.17 Cada qual pode exercer o
respectivo direito, independentemente ou até mesmo em oposição aos demais que se
apresentem revestidos de igual qualidade jurídica.
No caso, não se instaura concurso de credores e nem se espera que os interessados
todos postulem a prestação.
Acorre ao INSS, de ordinário, quem tinha provido diretamente o seu sustento pelo
segurado, não esperando nada nem ninguém, pois está em necessidade, emergente
necessidade como quer VENTURI, provocada pela perda de ingresso que o falecido
percebia e com o qual sustentava a si mesmo e os seus.
O benefício, que é a denominada pensão por morte, independe de carência e será
devido de imediato.
Havendo habilitação posterior, o beneficiário retardatário ingressa na relação
jurídica a partir de então e novo rateio do benefício será efetuado. Havendo perda da
qualidade de dependente (por exemplo, pela maioridade) segue a prestação sendo
devida aos demais dependentes, após novo rateio.
17. O art. 76 da Lei n. 8.213/91 assim dispõe:
A concessão da pensão por morte não será protelada pela falta de habilitação de outro possível dependente, e
qualquer inscrição ou habilitação posterior que importe em exclusão ou inclusão de dependente só produzirá
efeito a contar da data da inscrição ou habilitação.
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A pensão equivale, hoje em dia, a 100 % (cem por cento) do salário-de-benefício
do segurado ou da que teria direito se estivesse aposentado por invalidez na data do
respectivo falecimento.
A única exigência para que o sujeito de direitos faça jus à prestação é que o mesmo
viva a cargo do segurado falecido.
MOACYR VELLOSO CARDOSO DE OLIVEIRA sublinhava que não existia regra rígida
sobre os meios de prova de dependência econômica.18
É certo que, presentemente, todos os meios admitidos em direito podem ser
acolhidos, bastando que se vislumbre o exemplário armado no bojo do art. 22 do
Regulamento da Previdência Social (Decreto n.º 3.048/99).
Serão chamados a integrar a relação jurídica, implementada, no mundo fenomênico,
a situação de risco, os irmãos do segurado, desde que fique demonstrada a ausência de
outros dependentes e a vivência às expensas do segurado.
Vez que comprovada a assim chamada qualidade de dependente, não há como se
denegar o beneficio a quem dele necessitar.
4.1. O DIREITO PREVIDENCIÁRIO.
No atual estágio da seguridade social, quanto mais abrangente seja o quadro dos
beneficiários com maior presteza será alcançado vetor constitucional da promoção do
bem de todos.
A exclusão de um daqueles beneficiários ao invés de caminhar a favor do objetivo
constitucional se volta contra tal propósito.
Entendo que, para perfilar-se com o móvel essencial da seguridade social, a
previdência social deve deferir a prestação familiar ao menor sob guarda, em quantia
suficiente para a mantença desse e dos demais dependentes, assegurando-se, destarte,
o padrão de vida equivalente ao que lhes era conferido pelo segurado.
E, como em todas as situações a que confere cobertura, a previdência social não
estará atendendo a pessoa tão somente em sua posição individual.
Estará, mais propriamente, conferindo proteção social, promovendo o bem de
18. “A Dependência Econômica na Previdência Social”, in Revista de Previdência Social n. 122, p. 3.
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
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todos, consoante o comando da Lei Suprema, ao integrante de um grupo que mereceu
especial atenção do constituinte.
Eis como se encontra enunciado o art. 227 da Superlei:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao
adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade,
ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocálos a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)
§ 1º O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da
criança, do adolescente e do jovem, admitida a participação de entidades não
governamentais, mediante políticas específicas e obedecendo aos seguintes
preceitos: (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)
§ 3º - O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:
.........................................................
II - garantia de direitos previdenciários e trabalhistas;
.....................................................................................
VI - estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e
subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança
ou adolescente órfão ou abandonado
Portanto, todos os direitos constitucionais, que integram o conceito de atendimento
integral (art. 196) ou mesmo de proteção especial (art. 227, § 3º) terão necessariamente
que confluir para uma única direção.
Apreciada em termos sociais, a normativa constitucional não deixa nenhuma dúvida
– in claris cessat interpretatio - a respeito da extensão e do alcance dos direitos sociais
conferidos à criança e ao adolescente.
Como se não fossem suficientes os termos amplos e objetivos, o inciso VI do mesmo
preceito ainda insiste: o Poder Público deve estimular e incentivar, até mesmo com
medidas fiscais, a guarda da criança e do adolescente.
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Nenhum comando legal pode afrontar essas diretrizes, componentes de urdidura
bem amarrada, que alia o direito social geral das crianças e dos adolescentes com
o direito especial, de cunho previdenciário, a que faz nominal e expressa menção o
parágrafo transcrito literalmente.
Sobre ser manifesto o entrelaçamento entre o direito familiar e o direito
previdenciário cujos titulares integram o grupo familiar, ninguém pode denegar
que o direito à proteção social de cunho previdenciário, a ser fruído pelas crianças e
adolescentes projeta, no particular, a dignidade humana.
De fato, como acentua o art. 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente, todos
os direitos fundamentais desse grupo são (devem ser) exercidos em condições de
liberdade e de dignidade.
Eis o comando do ECA:
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais
inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta
Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades
e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral,
espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade
O desenvolvimento da pessoa humana da criança e do adolescente está em
manifesta conexão com a respectiva proteção social de cunho previdenciário.
A muitos e muitos somente restará, como instrumental econômico e social capaz
de assegurar o desenvolvimento da pessoa de que aqui se cuida, o valor mensal do
benefício previdenciário.
Dentre os critérios a serem observados em toda e qualquer modificação legislativa
de leis que concretizam direitos sociais está, como é curial, o da impossibilidade de
afronta aos valores constitucionais.
Uma norma não ingressa no ordenamento jurídico pátrio se tem por escopo forcejar
a destruição ou redução dos direitos já garantidos pela Leis das Leis.
Aliás, é bom critério de exegese o constante da parte final do caput do art. 7º da
Constituição.
Após fazer referência genérica aos direitos dos trabalhadores e de seus dependentes,
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o constituinte acrescenta: “além de outros que visem à melhoria de sua condição
social”. Vale dizer, os direitos são outorgados em ordem à melhoria da condição social
dos trabalhadores e modificações devem ser realizadas com idêntico escopo, em
conformidade – na esfera específica da seguridade social – com o objetivo último da
promoção do bem de todos.
O fato de ter uma medida provisória – que já não passaria pelo primeiro teste de
constitucionalidade – mesmo depois de convertida em lei, ter intentado excluir o menor
sob guarda do rol dos beneficiários do segurado falecido não resiste à interpretação
conforme com a Constituição que emana do sistema de proteção social no seu todo
considerado.
Tampouco se sustenta a exclusão diante da garantia constitucional da proteção dos
direitos previdenciários da criança e do adolescente e da regra estampada no Estatuto
da Criança e do Adolescente.
Por fim, não para em pé a exclusão perpetrada pela medida provisória depois
convertida em lei pela elementar regra hermenêutica que ensina: a lei geral não
prevalece sobre a lei especial.
Com efeito, a Lei n. 9.528, de 1997, ao mutilar o Plano de Benefícios da Previdência Social
nada pondo em seu lugar para a disciplina do direito previdenciário aplicável ao menor
sob guarda não poderia se sobrepor ao ditame do Estatuto da Criança e do Adolescente
que, concretamente, outorgou a qualidade de dependente a essa figura jurídica.
Ao explicar o instituto da antinomia, MARIA HELENA DINIZ leciona:
“Antinomia é o conflito entre duas normas, dois princípios, ou de uma norma
e um princípio geral de direito em sua aplicação prática a um caso particular” 19
A mesma autora, na sua classificação das antinomias, refere que casos como o que
estamos a estudar são de antinomia de segundo grau.
São assim denominadas antinomias em que norma anterior especial conflita com a
norma posterior geral.
A antinomia, em casos que tais, é resolvida pelo princípio da especialidade,
19. MARIA HELENA DINIZ, Compêndio de introdução à ciência do direito: introdução à teoria geral do direito, à filosofia
do direito, à sociologia jurídica. 22ª ed. ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 501.
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obediente ao velho aforismo romano:
lex posterior generalis num derrogati legi priori speciali
É, manifestamente o que se tem aqui.
A lex posterior generalis – que cuida da descrição genérica dos beneficiários do
Regime Geral de Previdência Social (RGPS) - não poderia derrogar a lex speciali que a
precedeu, cujo teor dá disciplina aos direitos constitucionais da criança e do adolescente,
sob o signo da proteção integral de tais sujeitos de direito.20
A regra, na descrição dos dependentes do segurado, é a que se encontra estampada
no art. 16 da Lei n. 8.213, de julho de 1991, com a supressão cominada pela Lei n. 9.5.28,
de 1997.
A exceção, para o caso, consiste na qualificação jurídica do menor posto sob guarda
como sujeito de direitos previdenciários, em plena conformidade com a garantia
constitucional da proteção integral.
Observemos bem.
A norma especial carrega consigo os elementos essenciais enunciativos da qualidade
do dependente do segurado.
A norma especial já informara, antes mesmo da edição da norma geral – o Plano de
Benefícios da Previdência Social – o critério norteador conforme com a Constituição, de
proteção previdenciária do menor sob guarda.
O legislador, em verdade, tomou na devida conta outro essencial elemento para o
deslinde dessa grave questão.
O legislador do ECA considerou que o instituto da guarda não é o mero esquema
burocrático formal de manifestação do poder familiar. O Estatuto pretende, sobretudo,
situar a criança e o adolescente no seio da família, onde não só o poder seja exercido
pelo guardião. Para além do poder, que se configure o amparo, a solidariedade, o amor.
Enfim, uma verdadeira família!
A família, insista-se, é o primeiro estamento de proteção social. Núcleo fundamental e
20. O artigo 1º da Lei n. 8.069, de julho de 1990, denominada Estatuto da Criança e do Adolescente, resume e
compendia o teor do Diploma: dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
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natural da sociedade, como guardiã se vê investida do dever grave de proporcionar moradia,
alimentação, educação, saúde e bem estar. Tudo com o propósito de substituir-se a quem,
por circunstâncias diversas e adversas, que não vem a pelo discutir aqui, não se revelou apto
a proporcionar à criança e ao jovem tais atributos elementares inerentes à vida digna.
Ademais, incumbe à sociedade e ao Estado atuarem, em linha com o princípio da
subsidiariedade.
Ao conferir ao menor sob guarda o mesmo status atribuído ao filho, o legislador
cumpre o mandato constitucional que lhe indicou o caminho: estimular a guarda da
criança e do adolescente.
É bem verdade que a guarda é, em sua essência, instituto de cunho provisório, apto
a solucionar situações emergenciais.
Mas, ninguém ignora que as vicissitudes da vida acabam por estender até a
maioridade o status de tal figura jurídica.
Ao impor a Medida Provisória n. 1523, de 11 de outubro de 1996, sucessivamente
reeditada, até converter-se na Lei n. 9.528, de 1997, muito possivelmente o Poder
Executivo interpretava, a seu modo, certa práxis que pode, decerto, ocorrer.
Consistiria, essa práxis, na utilização do instituto da guarda pura e simplesmente
para a obtenção do benefício previdenciário.
Como reconhecem Daniel Machado da Rocha e José Paulo Baltazar Junior:
É verdade que muitas vezes se buscou o deferimento da guarda de menores para fins
de propiciar abatimentos fiscais ao guardião, ou alcançar benefícios previdenciários...21
Ocorre que a drástica supressão do instituto jurídico de nenhum modo pode ser
justificada sob tal fundamento.
Incumbe ao Poder Público velar pela moralidade (art. 37 da Constituição) e não
suprimir direitos sob pretexto da imoralidade.
Verificada a burla à legislação, o caminho natural e lógico consistiria, pura e
simplesmente, no cancelamento da pensão.
21. DANIEL MACHADO DA ROCHA e JOSÉ PAULO BALTAZAR JUNIOR, Comentários à Lei de Benefícios da Previdência
Social. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 7ª edição, 2007, p. 103.
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A estratégia governamental, a que de maneira estranha e inexplicável, deu guarida
o Congresso Nacional, afronta toda a construtura da proteção social constitucional,
pacientemente armada em 1988.
Sob perspectiva previdenciária, ademais, não existe distinção jurídica entre os
institutos da tutela e da guarda, meros revestimentos da condição de dependência,
quando muito aplicáveis – no plano formal – aos quadrantes do direito privado.
O direito previdenciário é direito público. A pessoa da criança e do adolescente
estão investidas, tanto pela Constituição de outubro de 1988 quanto pelo ECA, de
1990, do direito subjetivo público aos benefícios e serviços devidos pelo sistema de
seguridade social.
Sobre ser cabal afronta ao princípio dos princípios da Lei Magna – a isonomia –
porque trata desigualmente situações que, sob a perspectiva previdenciária, são iguais,
o legislador avança em direito social já consagrado pelo sistema jurídico.
Assinala Souto Maior Borges:
Por isso se diz que a igualdade garante a igualdade. Essas normas somente
podem ser interpretadas uma em conexão com a outra. Se essa conexidade for
desconsiderada, abre-se oportunidade à aplicação da igualdade apenas formal
(igualdade perante à lei), com prejuízo à igualdade material (igualdade na lei) ”.22
Impõe, a norma em comento, afronta ao princípio constitucional da isonomia e,
igualmente, manifesto retrocesso social.
Impede, ademais, que seja cumprido o já referido objetivo constitucional da
universalidade da cobertura e do atendimento que é, no âmbito da seguridade social, a
mais cabal expressão da isonomia.23
Sem que desempenhe a tarefa de universalização, o sistema de seguridade social
estará sendo tolhido na sua especifica missão constitucional de dar cumprimento ao
fim da ordem social: o bem estar e a justiça, consoante o teor expresso do art. 193 da
22. JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, Significação do princípio da isonomia na Constituição de 1988, Revista de
Direito Público. São Paulo, n° 93, ano 23, jan. /mar. 1990, p. 34-40.
23. Como escrevi em outra oportunidade: “A universalidade do atendimento e da cobertura pode ser considerada
a especifica dimensão do princípio da isonomia (garantia estatuída no art. 5º da Lei Maior) na Ordem Social. É a igual
proteção para todos. ” In Noções Preliminares de Direito Previdenciário, citado, p. 106.
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
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Lei Fundamental.
Na conhecida teorização de Canotilho, os direito sociais não podem ser atingidos
por normas que lhes inferiorizem o espectro de aplicação. Consoante a lição do mestre
de Coimbra:
Neste sentido se fala também de cláusulas de proibição de evolução reaccionária
ou de retrocesso social (ex. consagradas legalmente as prestações de assistência
social, o legislador não pode eliminá-las posteriormente sem alternativas ou
compensações <<retornando sobre seus passos>>; reconhecido, através de lei,
o subsídio de desemprego como dimensão do direito ao trabalho, não pode o
legislador extinguir este direito, violando o núcleo essencial do direito social
constitucionalmente protegido)24
Não pode o legislador, com base nesse oportuno critério de interpretação dos
direitos sociais, impor o retrocesso antissocial em que consiste a exclusão de alguém do
quadro de dependentes do RGPS.
Ao apreciar a questão, o Desembargador Federal Sergio Nascimento, conhecido
especialista em direito previdenciário asseverou, em sintético julgado:
“Restou consignado na decisão ora embargada que a Lei nº 9.528/97 não teve
o condão de revogar o parágrafo 3º, do art. 33, do ECA, pois não poderia o
legislador ordinário contrariar os princípios e valores constitucionais em matéria
de promoção do melhor interesse da criança e do adolescente. A alteração
legislativa deve, pois, ser interpretada de modo a se considerar que apenas
nos casos de colocação do menor sob guarda, no sentido formal, mas sem a
correspondente constituição da família assistencial, é que não haverá o direito à
pensão previdenciária. Entretanto, nos casos em que a criança ou o adolescente
foi regular e corretamente colocado em família substituta sob a forma da guarda,
haverá direito à pensão. ”25
A discriminação odiosa, ofensiva à isonomia e ao direito social contraria, ademais,
a tradicional acolhida que as crianças e adolescentes sempre receberam, seja nos
24. JOSÉ J. GOMES CANOTILHO, m. Direito Constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2006, p. 177
25. BRASIL. Tribunal Regional Federal da 3.ª Região. Agravo de Instrumento n.º 2010.03.00.037344-0. Partes [?]. Relator:
Des. Fed. Sergio Nascimento. Julgado em 10/05/2011. Publicado em 18/05/2011. Disponível em <http://www.trf3.jus.
br/NXT/Gateway.dll?f=templates&fn=default.htm&vid=trf3e:trf3ve. > Acesso em 25 de agosto de 2014.
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quadrantes da tutela como na esfera da guarda.
Sem adentrarmos ao mérito de certo julgamento, ao reproduzir os dizeres de um
Termo de Entrega e Guarda, o Desembargador Rui Portanova, do Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul como que sumariou o “ethos” do instituto em estudo.
Assim se achava redigido o referido documento:
“Pelo segundo casal comparecente foi dito que recebe o casal a mencionada
menor de bom grado, como já o fez extra-oficialmente, prometendo tratar dita
menor como se sua filha fosse” (fl. 33, grifei). 26
E, como não poderia deixar de ser, agindo em consequência, o guardião fez questão
de que outro documento identificasse com que qualidade estava sendo objeto de seus
cuidados a criança que, desde os três anos de idade, fora posta sub sua guarda:
“ Na carteira do antigo INPS, em nome de F., consta o nome de M. N. como “filha
adotiva” 27).
Claro, o verdadeiro guardião deve cuidar, e efetivamente cuida, da criança e do
adolescente, postos sob os seus cuidados, como trata dos integrantes de sua própria família.
Foi pleno de coerência o primitivo preceito da lei previdenciária, encravado no sistema
jurídico em 1966, portanto bem antes dos avanços estabelecidos pela Constituição de
1988, quando equiparou o menor sob guarda ao filho, conferindo o status que a cultura
da comunidade desde sempre imprimiu a essa peculiar situação jurídica e de fato.
Ora, encadeado com os novos rumos que ao direito brasileiro imprimiu a Constituição
de 1988, o Congresso Nacional introduziu na ordem jurídica pátria, por meio do Decreto
Legislativo n° 28, de 14 de setembro de 1990, a Convenção sobre os Direitos da Criança,
cujo artigo 26, em linha com a promoção do bem de todos e com a universalidade da
cobertura e do atendimento acentua:
Artigo 26
1. Os Estados Partes reconhecerão a todas as crianças o direito de usufruir da
previdência social, inclusive do seguro social, e adotarão as medidas necessárias
26. http://s.conjur.com.br/dl/tj-rs-nega-reconhecimento-paternidade.pdf
27. http://s.conjur.com.br/dl/tj-rs-nega-reconhecimento-paternidade.pdf
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
MENOR SOB GUARDA
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para lograr a plena consecução desse direito, em conformidade com sua
legislação nacional.
2. Os benefícios deverão ser concedidos, quando pertinentes, levando-se em
consideração os recursos e a situação da criança e das pessoas responsáveis pelo
seu sustento, bem como qualquer outra consideração cabível no caso de uma
solicitação de benefícios feita pela criança ou em seu nome.
Apontando, uma vez mais, para onde deve caminhar a ordem jurídica pátria nesse
setor, isto é, para a “plena consecução desse direito” erigido em favor das crianças e dos
adolescentes, a regra da Convenção se encaixa dentro do escopo maior prefigurado
pela Constituição.
É, pois, um todo coerente – o do sistema jurídico – que define e institucionaliza a
proteção jurídica da criança e do adolescente, inclusos nesse grupo os menores sob
guarda, entrelaçando diversas regras capazes de projetar esse mesmo sistema rumo ao
respectivo fim último.
4. CONCLUSÃO E PROPOSTAS.
Tudo visto, cremos que a suma de comandos constitucionais e legais aponta para a plena
incompatibilidade com o sistema jurídico brasileiro da exclusão do menor sob guarda do
quadro de dependentes do segurado, catalogado pelo Regime Geral de Previdência Social.
Bem andou o Conselheiro Oseas Davi Viana ao propor que o IASP tome parte do
intenso debate que ora se trava a respeito do tema aqui examinado.
Tal debate se desenvolve em duas frentes: a] a do Poder Judiciário e; b] a do
Congresso Nacional.
Com efeito,
Na primeira frente duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade se situam:
i. A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4878, aforada em novembro de
2012, pelo Procurador Geral da República, cujo teor se encontra encartado no
presente expediente. O relator do feito, no Supremo Tribunal Federal, é o Min.
Gilmar Mendes.
ii. E a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5083, em que o Conselho
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
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Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em janeiro de 2014, também
questiona o mesmo assunto, cujo relator é o Min. Dias Tofolli.
Os dois processos constitucionais aguardam julgamento.
Proponho que o Instituto dos Advogados de São Paulo ingresse como Amicus
Curiae em tais feitos, perfilando-se com os entendimentos esposados pelos autores das
referidas medidas judiciais.
Na segunda frente se encontra o Projeto de Lei n. 6399, de 2013, que adentrou à
Câmara dos Deputados em setembro de 2013, para revisão daquela Casa do Congresso,
depois de haver sido aprovado pelo Senado Federal, onde fora apresentado pelo
Senador Paulo Paim.
O projeto reinsere no preceito estampado no art. 16 da Lei n. 8 .213, de julho de
1991, o teor primitivo do § 2º, nele situando o menor sob guarda no catálogo dos
dependentes equiparados aos filhos do segurado.
Em julho do corrente ano a propositura recebeu parecer favorável da Comissão de
Seguridade Social e Família da Câmara e aguarda pareceres de outras duas Comissões
para, afinal, ser apreciado pelo Plenário.
Proponho que o IASP oficie à Câmara dos Deputados opinando pela aprovação do
texto legislativo do Plano de Benefícios da Previdência Social.
Eis o meu parecer.
São Paulo, 22 de fevereiro de 2015
Conselheiro Wagner Balera
NECESSIDADE DE RENOVAÇÃO DE PEDIDO
DE CONCESSÃO DE ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA
GRATUITA EM SEDE RECURSAL.
ORIENTAÇÃO DO EGRÉGIO
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
ILEGALIDADE E INCONSTITUCIONALIDADE.
ARRUDA ALVIM
Doutor e Livre-docente. Professor Titular da Pós-graduação stricto sensu (Mestrado e Doutorado) da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Advogado em São Paulo, Brasília, Porto Alegre e Rio de Janeiro.
Associado Remido do IASP.
THEREZA ALVIM
Doutora em Direito. Professora Associada da Pós-graduação stricto sensu (Mestrado e Doutorado) da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Advogada em São Paulo, Brasília, Porto Alegre e Rio de Janeiro.
Associada Remida do IASP.
EDUARDO ARRUDA ALVIM
Presidente da Comissão Permanente de Estudos de Processo Constitucional do IASP. Doutor e Mestre em
Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Professor da PUC/SP (doutorado, mestrado,
especialização e graduação) e da FADISP – Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo
(doutorado e mestrado). Associado Efetivo do IASP.
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
Consulta-nos o Excelentíssimo Presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo
– IASP, Dr. José Horácio Halfeld Rezende Ribeiro, a respeito de recente orientação
do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, na linha de exigir, no ato de interposição de
recursos dirigidos àquela Corte Superior, a comprovação da concessão de Assistência
Judiciária Gratuita ou, ainda, a renovação de aludido requerimento.
Dita orientação restou firmada pela Corte Especial do Egrégio Superior Tribunal de
Justiça por ocasião do julgamento do Agravo Regimental nos Embargos de Divergência
em Agravo em Recurso Especial n.º 321.732/RS, relatado pela Eminente Ministra Maria
Thereza de Assis Moura, promovido aos 16/10/2013, e publicado no Diário de Justiça
Eletrônico do dia 23/10/2013, assim ementado:
“AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. AUSÊNCIA DE
COMPROVAÇÃO DO RECOLHIMENTO DAS CUSTAS NO ATO DE INTERPOSIÇÃO
DO RECURSO. BENEFICIÁRIO DA JUSTIÇA GRATUITA. AUSÊNCIA DE PEDIDO NA
PETIÇÃO DE RECURSO. DESERÇÃO. INCIDÊNCIA DO ART. 511 DO CÓDIGO DE
PROCESSO CIVIL. RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
1. O preparo deve ser feito no momento da interposição do recurso, sob pena
de deserção, sendo certo, outrossim, que na hipótese de o recorrente ser
beneficiário da justiça gratuita, deve haver a renovação do pedido quando do
manejo do recurso, uma vez que o deferimento anterior da benesse não alcança
automaticamente as interposições posteriores. Precedente desta Corte.
2. Agravo regimental a que se nega provimento”
(STJ, AgRg nos EAREsp 321.732/RS, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS
MOURA, CORTE ESPECIAL, julgado em 16/10/2013, DJe 23/10/2013).
O recurso julgado, cuja ementa transcrevemos acima discutia, fundamentalmente,
a necessidade de renovação do pedido de Assistência Judiciária Gratuita, no
âmbito do Superior Tribunal de Justiça. Deveras, segundo se dessume do inteiro
teor do Acórdão, o Recorrente havia interposto Embargos de Divergência contra
Acórdão prolatado em Agravo em Recurso Especial, julgado pelo STJ.
Mesmo sendo beneficiário da Assistência Judiciária Gratuita, concedida pelo
Tribunal de Origem, seu recurso de Embargos de Divergência não veio a ser
conhecido por falta de recolhimento das custas no ato de interposição do
recurso, tendo sido aplicada em seu desfavor a pena de deserção. Contra essa
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
NECESSIDADE DE RENOVAÇÃO DE PEDIDO DE CONCESSÃO DE ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA
GRATUITA EM SEDE RECURSAL - ORIENTAÇÃO DO EGRÉGIO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
ILEGALIDADE E INCONSTITUCIONALIDADE.
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última decisão, interpôs o Recorrente Agravo Regimental, que restou improvido,
à unanimidade pela Colenda Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça.
O fundamento para a manutenção da decisão Agravada foi assim sintetizado:
“(...).
Cumpre ressaltar que essa compreensão não afronta o disposto no art. 9.º da
Lei nº 1.06/50, porquanto é bem verdade que o benefício compreende todos
os atos do processo, assim como também é certo que a gratuidade de justiça é
um benefício momentâneo dependente de uma situação provisória, podendo
ser requerido a qualquer tempo e enquanto perdurar o processo, ou, se o caso,
decair quanto a parte não mais detenha a condição de hipossuficiência. Daí a
necessidade de renovação do pedido quando do manejo recursal
(...).”
Após o julgamento do recurso acima, essa orientação vem sendo seguida pelo STJ,
o que pode ser confirmado, por exemplo, a partir dos resultados dos julgamentos dos
seguintes feitos: a) AgRg no AREsp 261.520/SC, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES,
SEGUNDA TURMA, julgado em 25/11/2014, DJe 03/12/2014; b) AgRg no AREsp 587.595/
RS, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 25/11/2014,
DJe 05/12/2014; c) AgRg nos EREsp 1182705/RS, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES,
CORTE ESPECIAL, julgado em 19/11/2014, DJe 11/12/2014; d) AgRg nos EREsp 1405752/
DF, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 12/11/2014, DJe
18/11/2014.
Em outros termos, muito embora a Constituição Federal, bem como a legislação
federal disponham que a Assistência Judiciária Gratuita seja um direito do jurisdicionado
e que deve estar presente até o final do litígio, uma vez concedida e mantida a mesma
situação econômica, o STJ vem exigindo, por ocasião da interposição de recurso àquela
Corte Superior, que o beneficiário de dita Assistência renove o pedido, ainda que já
tenha sido concedido nas instâncias locais.
Em nosso sentir, trata-se de orientação que não se coaduna, seja com a Legislação
Federal, seja com a Constituição Federal.
Preparo tem natureza de tributo (taxa) – violação às normas constitucionais e
infraconstitucionais que disciplinam o direito tributário
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
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O preparo, como se sabe, constitui requisito extrínseco de admissibilidade dos
recursos. Trata-se do pagamento prévio das custas relativas ao processamento do
recurso.
Por se tratar de requisito extrínseco de admissibilidade, o preparo diz respeito à
matéria de processo, devendo, obrigatoriamente respeitar a lei, seja federal, seja local,
nos termos dos arts. 22, I, e 24, IX da Constituição Federal, que estatuem, respectivamente
competir à União legislar sobre direito processual e à União, aos Estados e ao Distrito
Federal legislar sobre procedimentos em matéria processual. O art. 511, do Código de
Processo Civil (Lei Federal, portanto), de seu turno, remete à legislação pertinente a
exigência de preparo, providência essa feita, no âmbito da Justiça Estadual, pelas
respectivas Leis Estaduais.
Em outros termos, na medida em que se trata de tema que requer regulamentação
disposta em lei ao lado, não é dado a ato normativo infralegal regulamentá-lo de forma
antagônica ao que dispõem a lei, a Constituição Federal e o próprio Regimento do
Superior Tribunal de Justiça.
Ao lado disso, tem-se que o preparo, assim como as demais despesas processuais,
pode ser considerado espécie do gênero tributo, amoldando-se bem à ideia do art. 3.º
do Código Tributário Nacional.
Nesse contexto, autorizada doutrina, bem como o Egrégio Superior Tribunal de
Justiça costumam inserir o preparo como modalidade de taxa, tributo devido em
decorrência de atuação estatal:
“PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO. PREPARO. DESISTÊNCIA EM RAZÃO DE ACORDO
ENTRE AS PARTES. RECURSO PENDENTE DE JULGAMENTO. DEVOLUÇÃO DAS
CUSTAS. IMPOSSIBILIDADE.
1. O preparo para a interposição de recurso inclui-se no conceito de custas
judiciais que se revestem da natureza de taxa. Precedentes do STJ e do STF.
2. Consoante dispõe o art. 511 do CPC, “no ato de interposição do recurso, o
recorrente comprovará, quando exigido pela legislação pertinente, o respectivo
preparo, inclusive porte de remessa e de retorno, sob pena de deserção”, levando
à conclusão de que a hipótese de incidência dessa taxa é a protocolização do
recurso .
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
NECESSIDADE DE RENOVAÇÃO DE PEDIDO DE CONCESSÃO DE ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA
GRATUITA EM SEDE RECURSAL - ORIENTAÇÃO DO EGRÉGIO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
ILEGALIDADE E INCONSTITUCIONALIDADE.
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3. Portanto, não é a manifestação do juízo a quo quanto aos efeitos em que
recebe a insurgência, tampouco o deslocamento dos autos ao Tribunal de Justiça
ou o julgamento do recurso que torna exigível o recolhimento do preparo, mas,
antes de tudo, a sua interposição que materializa a hipótese de incidência dessa
taxa.
4. Saliente-se, outrossim, que a desistência do recurso não implica reconhecer
a ausência de atividade jurisdicional. Isso porque, embora seja um ato que
independe da concordância da parte contrária, está submetido ao controle pelo
Judiciário, sendo necessária sua homologação para que produza a totalidade
de seus efeitos. Nesse contexto, o art. 26, do CPC expressamente consigna a
necessidade de pagamento das despesas processuais, mesmo que o processo
seja extinto em razão da desistência.
5. Recurso especial não provido”
(REsp 1216685/SP, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em
12/04/2011, DJe 27/04/2011).
O art. 511, § 1.º, do Código de Processo Civil, disciplina hipóteses de isenção quanto ao
pagamento de preparo, ou seja, isenção quanto ao pagamento de taxa. De outro lado,
o art. 150, § 6.º, da Constituição Federal, ao disciplinar o princípio da estrita legalidade
em matéria tributária, estatui que “Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de
cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas
ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou
municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente
tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, g”.
A respeito desse importante princípio em matéria tributária, diz Paulo de Barros
Carvalho que: “O princípio da legalidade é limite objetivo que se presta, ao mesmo
tempo, para oferecer segurança jurídica aos cidadãos, na certeza de que não serão
compelidos a praticar ações diversas daquelas prescritas por representantes legislativos,
e para assegurar a observância ao princípio constitucional da tripartição dos poderes. O
princípio da legalidade compele o intérprete, como é o caso dos julgadores, a procurar
frases prescritivas, única e exclusivamente, entre as introduzidas no ordenamento
positivo por via de lei ou de diploma que tenha o mesmo status. Se do conseqüente
da regra advier obrigação de dar, fazer ou não fazer alguma coisa, sua construção
reivindicará a seleção de enunciados colhidos apenas e tão-somente no plano legal”
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(Cf. Paulo de Barros Carvalho, Direito Tributário: Linguagem e Método, 2.ª ed., São Paulo:
Noeses, 2008, pp. 282 e 283).
Por sua vez, o Código Tributário Nacional dispõe que “A isenção, ainda quando
prevista em contrato, é sempre decorrente de lei que especifique as condições e
requisitos exigidos para a sua concessão, os tributos a que se aplica e, sendo caso, o
prazo de sua duração” (CTN, art. 176). Ao lado disso, esse mesmo diploma legal prescreve
que a legislação tributária que disponha sobre outorga de isenção deve ser interpretada
restritivamente (CTN, art. 111, II).
Em outros termos, uma vez concedida a isenção tributária quanto ao pagamento
do preparo, nos termos do art. 511, § 1.º, do CPC e demais regras que serão abordadas
no curso do presente Parecer, não é dado ampliá-las, tampouco criar embaraços a sua
concessão. Vale dizer, a norma em apreço veda tanto a interpretação da norma isentiva
quanto a adoção de requisito não previsto na lei, conforme eloquente decisão do
Superior Tribunal de Justiça:
“RECURSO ESPECIAL. TRIBUTÁRIO. ISENÇÃO. ARTIGO 96, DA LEI 8.383/91
(DIFERENÇA ENTRE O VALOR DE MERCADO AFERIDO EM 31 DE DEZEMBRO DE
1991 E O CONSTANTE DE DECLARAÇÕES DE BENS DE EXERCÍCIOS ANTERIORES A
1992). APRESENTAÇÃO DA DECLARAÇÃO DE AJUSTE ANUAL APÓS O EXERCÍCIO
FINANCEIRO DE 1992. (...).
6. A imposição da interpretação literal da legislação tributária que disponha
sobre outorga de isenção (artigo 111, inciso II, do CTN) proscreve tanto a adoção
de exegese ampliativa ou analógica, como também a restrição além da mens
legis ou a exigência de requisito ou condição não prevista na norma isentiva.
7. Raciocínio inverso implicaria em instituir isenção “condicional” sem
observância do princípio constitucional da estrita legalidade tributária, que veda
a instituição ou aumento de tributo sem lei que o estabeleça (artigo 150, I), bem
como determina que “qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo,
concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas
ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal,
estadual ou municipal” (artigo 150, § 6º).
8. Outrossim, o Codex Tributário determina que a isenção (ainda quando prevista
em contrato) é sempre decorrente de lei que especifique as condições e requisitos
exigidos para a sua concessão (artigo 176).
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
NECESSIDADE DE RENOVAÇÃO DE PEDIDO DE CONCESSÃO DE ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA
GRATUITA EM SEDE RECURSAL - ORIENTAÇÃO DO EGRÉGIO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
ILEGALIDADE E INCONSTITUCIONALIDADE.
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9. Conseqüentemente, inexistindo norma expressa que condicione a fruição
da isenção à entrega tempestiva da declaração de ajuste anual, não se revela
possível a exclusão do contribuinte que retardou o cumprimento do aludido
dever instrumental. (...).
11. Recurso especial desprovido”
(REsp 1098981/PR, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em
02/12/2010, DJe 14/12/2010).
Em suma, ao se considerar o preparo como taxa, tem-se que não é dado se exigir
requisitos não prescritos na lei para a concessão de sua isenção, sob pena de violação da
estrita legalidade em matéria tributária, aplicável também às normas de cunho isentivo.
Renovação do Pedido de Concessão de Assistência Judiciária Gratuita por ocasião
da interposição de recursos – violação da Constituição, da Lei Federal e do Regimento
Interno do STJ
O beneficiário da assistência judiciária (Lei 1.060/50) é dispensado do recolhimento do
preparo. Nos termos do art. 3.º, VII, da Lei 1.060/50, acrescentado pela Lei Complementar
132/09, a assistência judiciária compreende a isenção “dos depósitos previstos em lei
para interposição de recurso, ajuizamento de ação e demais atos processuais inerentes
ao exercício da ampla defesa e do contraditório”.
De seu turno, o art. 9.º, também da Lei 1.060/50 é expressa no sentido de que “Os
benefícios da assistência judiciária compreendem todos os atos do processo até decisão
final do litígio, em todas as instâncias” (Art. 9.º, Lei 1.060/50 – grifamos).
Trata-se, sem dúvida alguma, de dispositivo que disciplina o tempo de duração
do benefício da Assistência Judiciária Gratuita, não impondo, de outro lado, qualquer
requisito quanto à renovação de seu pedido.
Exigir a renovação desse pedido implica em impor ao beneficiário que comprove
por mais de uma vez fazer jus a ele, o que vai novamente contra a letra da lei. Deveras
em caso de inexistência ou desaparecimento dos requisitos essenciais à concessão do
benefício, pode a parte contrária pleitear a sua revogação (art. 7.º, da Lei 1.060/50), o
que pode também ser determinado de ofício (art. 8.º, da Lei 1.060/50). Contudo, mesmo
nesse último caso, deve-se implementar o contraditório devendo-se ouvir a parte
contrária (parte final do art. 8.º, da Lei 1.060/50).
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
O que não se deve tolerar é que haja a presunção de que houve a revogação de tal
benefício por ocasião da interposição do recurso. Em outros termos, não se deve impor
ao seu beneficiário que renove dito pedido demonstrando, uma vez mais, a existência
dos requisitos para tanto.
Mas não é só. A desnecessidade de renovação do pedido pode ainda ser vislumbrada
a partir de outros dispositivos legais e regimentais.
No âmbito legal, há o art. 13, da Lei 11.636/2007, que cuida de disciplinar as custas
judiciais no âmbito do Superior Tribunal de Justiça. Segundo aludido dispositivo legal,
“prevalecerá no Superior Tribunal de Justiça a assistência judiciária já concedida em
outra instância”.
Ao lado disso, o art. 511, § 1.º, do Código de Processo Civil prescreve que “são
dispensados de preparo os recursos interpostos pelo Ministério Público, pela União,
pelos Estados e Municípios e respectivas autarquias, e pelos que gozam de isenção
legal”.
Já no âmbito regimental, o Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça,
possui semelhante redação no art. 115, § 2.º, onde se lê também que “prevalecerá no
Tribunal a assistência judiciária já concedida em outra instância”.
Deve-se ainda ressaltar que dita exigência de renovação do pedido, ainda que já
tenha sido concedido pelos tribunais locais, é medida que afronta a própria Constituição
Federal, a exemplo do que dispões os arts. 5.º, incisos II (legalidade); XXXV (princípio
da inafastabilidade do Judiciário e acesso à justiça); LIV (princípio do devido processo
legal); LV (princípio do contraditório e ampla defesa) e LXXIV (que assegura a Assistência
Judiciária Gratuita e integral aos necessitados).
Com efeito, a legalidade é amparada pela máxima segundo a qual ninguém é
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude lei. Nesse contexto,
não há qualquer legislação que imponha a renovação do pedido que já tenha sido
concedido pelas instâncias locais. Diferentemente, o que há é expressa (expressas,
em verdade) disposição legal na linha de que o benefício, uma vez concedido, deverá
perdurar até o final do processo.
Já o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional está intimamente ligado
àquele que assegura assistência jurídica gratuita e integral aos necessitados (art. 5.º,
LXXIV, da CF/88). Com efeito, sem que se enseje esse tipo de assistência, não se irá dar
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
NECESSIDADE DE RENOVAÇÃO DE PEDIDO DE CONCESSÃO DE ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA
GRATUITA EM SEDE RECURSAL - ORIENTAÇÃO DO EGRÉGIO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
ILEGALIDADE E INCONSTITUCIONALIDADE.
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efetividade ao comando que garante o amplo acesso ao Judiciário, pois grande parte
da população, em que pese a garantia insculpida no inciso XXXV do art. 5.º, estaria
alijada do efetivo acesso ao Judiciário. Tal benefício, é importante que se diga, pode ser
concedido inclusive para pessoas jurídicas, desde que comprove a impossibilidade de
arcar com os encargos processuais, de acordo com a orientação cristalizada na Súmula
481 do STJ: “Faz jus ao benefício da justiça gratuita a pessoa jurídica com ou sem fins
lucrativos que demonstrar sua impossibilidade de arcar com os encargos processuais”.
Dito de outro modo, a exigência da renovação pode vir retirar do jurisdicionado
que já obteve o benefício a ter de experimentar o dissabor de ver o seu recurso não
conhecido, ainda que não haja lei para tanto.
Em função de toda legislação que cuida da matéria, temos que tal exigência afronta
a Constituição Federal, a Legislação Federal e, ainda, o próprio Regimento Interno do
Superior Tribunal de Justiça, devendo ser revista tal orientação.
APLICAÇÃO PROSPECTIVA DA ORIENTAÇÃO FIRMADA
PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Oportuno consignar, inclusive, que ainda que tal orientação seja mantida, devem ser
ressalvados os recursos já interpostos, sob pena de colocar em risco inúmeros princípios
constitucionais, sobretudo a segurança jurídica.
Com efeito, a aplicação dessa orientação do STJ quanto à renovação do pedido de
concessão de Assistência Judiciária Gratuita, se vier a prevalecer (ainda que não haja
respaldo legal e a fortiori, constitucional), deverá ser aplicada somente para os recursos
interpostos após sua consolidação, ou seja, prospectivamente.
Deveras, sabe-se que as normas de direito processual têm aplicação imediata. Ao
lado disso, em matéria recursal, a norma aplicável deve ser aquela que existia na data da
decisão a ser impugnada, eis que é daí que exsurge o direito de recorrer. A esse respeito,
dizia Galeno Lacerda que “em direito intertemporal, a regra básica no assunto é que a
lei do recurso é a lei do dia da sentença (...) proferida a decisão, a partir desse momento
nasce o direito subjetivo à impugnação, ou seja, o direito ao recurso autorizado pela lei
vigente nesse momento. Estamos, assim, em presença de verdadeiro direito adquirido
processual, que não pode ser ferido por lei nova, sob pena de ofensa à proteção que a
Constituição assegura a todo e qualquer direito adquirido” (Cf. Galeno Lacerda, O novo
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
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direito processual civil e os feitos pendentes, Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 68).
Em outras palavras, não deve o jurisdicionado que já interpôs seu recurso na
vigência da orientação anterior, ou seja, em que não era necessário renovar o pedido
de concessão de Assistência Judiciária Gratuita, ser surpreendido pela nova orientação
cristalizada no STJ. Dando respaldo ao que estamos afirmando, o Novo Código de
Processo Civil, recentemente aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção
presidencial veio a trazer eloquente e interessante dispositivo, permitindo aos tribunais
modular os efeitos da decisão em função de alteração de jurisprudência dominante.
É o que dispõe o art. 925, § 3.º, do Novo CPC, in verbis: “Na hipótese de alteração de
jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou
daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos
da alteração no interesse social e no da segurança jurídica”.
Esse, s.m.j., o nosso Parecer.
São Paulo, 04 de Fevereiro de 2015.
CONSULTA PÚBLICA
PORTARIA Nº 54/2014.
112
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
Excelentíssimo Senhor Desembargador Hamilton Elliot Akel
DD. Corregedor Geral de Justiça do Estado de São Paulo
Assunto: Portaria nº 54/2014. Consulta Pública.
O INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO – IASP, a mais antiga instituição
jurídica do Estado de São Paulo, fundado em 29 de novembro de 1874, declarado de
utilidade pública pelo Decreto Federal nº 62.480, de 28 de março de 1968, Decreto
Estadual nº 49.222, de 18 de janeiro de 1968 e Decreto Municipal nº 7.362, de 26 de
janeiro de 1968, associação civil de fins não econômicos que congrega atualmente
965 Associados, admitidos por rigorosa avaliação com pareceres e votação, dentre
os principais juristas, professores, advogados, magistrados e membros do Ministério
Público do país, dedica-se aos altos estudos e a difusão dos conhecimentos jurídicos,
ampliando os horizontes da cultura e das carreiras jurídicas em benefício da sociedade.
O IASP, agradecendo o honroso convite de colaborar a Ilustre Corregedoria Geral
de Justiça do Estado de São Paulo, em atendimento à Portaria nº 54/2014, vem, pela
presente, apresentar suas considerações em relação à Consulta Pública que tem por
objetivo coletar sugestões quanto à viabilidade de previsão expressa dos denominados
“condomínios de lotes” no Capítulo XX das NSCGJ - Extrajudicial.
Considerando o prazo concedido, solicitamos a análise da matéria aos Drs. Alexandre
Jamal Batista, associado efetivo e presidente da Comissão de Direito Imobiliário do
IASP, Rodrigo Matheus, associado efetivo, diretor da Comissão dos Novos Advogados e
membro da Comissão de Urbanismo e Mobilidade do IASP, e Renato Guilherme Góes,
membro da Comissão de Urbanismo e Mobilidade do IASP.
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
PORTARIA Nº 54/2014 - CONSULTA PÚBLICA
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INTRODUÇÃO
Trata-se de espécie de empreendimento imobiliário assemelhado ao condomínio
horizontal, sendo certo que nos condomínios de lotes não há prévia edificação, razão
pela qual o próprio lote constitui-se uma unidade imobiliária autônoma. O condômino
proprietário do lote pode incorporar nele a edificação que bem entender, com as
limitações impostas pela Municipalidade e pelas regras internas do condomínio
constituído sob essa forma.
Essa espécie de parcelamento do solo não se confunde com os loteamentos,
disciplinados na Lei 6.766/79, uma vez que: i) nos condomínios de lotes as áreas destinadas
ao arruamento interno e as áreas livres comunitárias são privadas, de propriedade
comum dos condôminos, enquanto nos loteamentos referidas áreas são transferidas
ao Município; ii) a aprovação dos projetos e os procedimentos registrários observam o
regramento disciplinado na Lei 4.591/64 (Lei de Condomínios e Incorporações), e não os
ditames da Lei 6.766/79 (Parcelamento do Solo Urbano).
Os condomínios de lotes decorrem de construção doutrinária, pois não existe lei
federal que expressamente os regulamente.
Assim sendo, a viabilidade de previsão expressa dessa modalidade de condomínio no
Capítulo XX das NSCGJ – Extrajudicial, deve então subsumir-se à análise do condomínio
de lotes sob o ponto de vista da competência legislativa e da vigência das regras que a
ele fazem referência.
ANÁLISE DA LEGALIDADE
Parte da doutrina sustenta a ilegalidade dos condomínios de lotes por considerar essa
espécie de parcelamento do solo uma forma de burlar a Lei 6.766/79, pois não haveria
necessidade de se observar para esses condomínios os rígidos requisitos previstos no
artigo 4º da Lei 6.766/79. Além disso, as legislações municipais e as normas administrativas
que disciplinam os condomínios de lotes seriam inconstitucionais sob alegada revogação
pela Lei 6.766/79 o Decreto-lei 271/67, que em seu artigo 3º aplicava aos loteamentos
a Lei 4.591/64, equiparando o loteador ao incorporador, os compradores de lotes aos
condôminos e as obras de infraestrutura à construção da edificação.
O Decreto-lei 271, de 28 de fevereiro de 1967, dispôs sobre o loteamento urbano,
sobre a responsabilidade do loteador e deu outras providências. Em seu artigo 3º previu
114
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
expressamente a aplicação da Lei 4.591/64 aos loteamentos, e equiparou “o loteador ao
incorporador, os compradores de lote aos condôminos e as obras de infraestrutura à
construção da edificação”.
Com o advento da Lei 6.766/79, que disciplinou o parcelamento do solo urbano,
foram tacitamente revogados os artigos 1o, 2o, 4o, 5o e 6o do Decreto-lei 271/67, que
tratavam justamente do loteamento urbano. Entretanto, a revogação não atingiu todo
o referido Decreto-lei, que além de disciplinar o loteamento urbano tratava de outras
matérias. Tanto o é, que o artigo 7o do Decreto-Lei 271/67 teve recentemente sua
redação expressamente alterada pelo artigo 7o da Lei 11.481/2007.
No que diz respeito ao já mencionado artigo 3o do Decreto-lei 267/67, não há
incompatibilidade entre a sua redação e a disciplina trazida aos loteamentos pela
Lei 6.766/79, de modo que nosso ordenamento admite a aplicação do regime de
condomínio tratado na Lei 4.591/64 aos loteamentos disciplinados na Lei 6.766/79.1
O artigo 3º do Decreto-lei 271/67 foi também recepcionado pela Constituição
Federal de 1988, pois se harmoniza com seus princípios e com os direitos sociais de
moradia e segurança, insculpidos no artigo 6º, e serve de importante instrumento para
a implementação das políticas de desenvolvimento urbano previstas no artigo 182.
A regulamentação dos condomínios de lotes cabe aos municípios, nos termos
da competência que lhes atribuiu o artigo 30, VIII da Constituição Federal, para
promoverem o adequado ordenamento territorial, mediante o planejamento do uso,
do parcelamento e da ocupação do solo urbano.
Com base nesses fundamentos muitos municípios regulamentaram os condomínios
de lotes e os órgãos correicionais de diversos estados admitiram os registros dessa
espécie de ocupação urbana, ao lado dos loteamentos e condomínios edilícios2.
No Estado de São Paulo os condomínios de lotes foram aceitos por algum tempo
e muitos foram registrados, até que o Conselho Superior da Magistratura passou a
considerá-los irregular, em especial a partir do parecer do Magistrado Francisco Eduardo
1. Neste mesmo sentido, Melhim Namem Chalub, in Condomínio de Lotes de Terreno Urbano, Revista de Direito
Imobiliário (RT), v. 67, jul-dez/2009, p. 101-151.
2. Confira-se João Pedro Lamana Paiva, in Espécies de Empreendimentos Imobiliários com Ênfase em Condomínio
de Lotes, na 6ª Reunião Ordinária do CONURB, em 09 de maio de 2010.
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
PORTARIA Nº 54/2014 - CONSULTA PÚBLICA
115
Loureiro3, proferido no Processo CG 1.536/96 e Ap. Cíveis nº 2.002-0, da Comarca de
Taubaté-SP e 2.553-0, da Comarca de Sorocaba4.
Nas I Jornadas de Direito Civil promovida nos dias 12 e 13 de setembro de 2002, pelo
Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, sob a Coordenação-Geral
do Ministro Milton Pereira, 130 juristas aprovaram 137 enunciados, dentre os quais o de
nº 89, com a seguinte redação: Art. 1.331: O disposto nos arts. 1.331 a 1.358 do novo Código
Civil aplica-se, no que couber, aos condomínios assemelhados, tais como loteamentos
fechados, multipropriedade imobiliária e clubes de campo.
Mais recentemente, a Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo sinalizou
mudança de posicionamento e assumiu a vigência do Decreto-lei 271/67 com a edição
do Provimento nº 18/20125, quando ao dispor na Seção III sobre a regularização de
condomínios de frações ideais, permitiu que a regularização fundiária fosse realizada
com base no referido Decreto-lei.6
O mesmo Provimento previu também a obrigatoriedade dos requerimentos de
abertura de matrículas especificarem qual a modalidade de regularização pretendida:
i) parcelamento do solo ou ii) instituição e especificação de condomínio de casas ou
lotes7. E fez expressa referência ao artigo 3º do Decreto-Lei 271/67 ao determinar que o
3. (…) imprescindível a vinculação do terreno à efetiva construção que nele será erigida e constituirá a unidade
autônoma.
Entender o contrário permitiria, por exemplo, que se aprovasse incorporação com dez, cinco, um metro quadrado
de área construída, ou apenas um tijolo ou um bloco construído, delegando ao próprio condômino a prerrogativa
de construir posteriormente a sua unidade, como bem entender.
Em termos diversos, estaria consagrada a figura de condomínio de solo, ou de lotes, em formal contradição
ao espírito e ao que dispõe a Lei 4.591/64 e em manifesta fraude ao que dispõe a Lei 6.766/79 (Lei do
Parcelamento do Solo).
4. Base de dados do IRIB Responde: http://www.irib.org.br/html/noticias/noticia-detalhe.php?not=962
5. Prov. 18/2012: 236. Na hipótese de a irregularidade fundiária consistir na ocupação individualizada de fato, cuja
propriedade esteja idealmente fracionada, as novas matrículas serão abertas a requerimento dos titulares das
frações ideais ou de seus legítimos sucessores, em conjunto ou individualmente, aplicando-se, conforme o caso
concreto, o disposto no art. 3º, do Decreto lei 271/67, o art. 1º, da Lei nº 4.591/64, ou o art. 2º da Lei nº 6.766/79.
6. Cf. Fábio Ribeiro dos Santos, in “Condomínio de Lotes”: Panorama Legal e seu Registro, in Carta Forense: http://
www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/condominios-de-lotes-panorama-legal-e-seu-registro/13962
7. Prov. 18/2012: 236.1. O requerimento deverá especificar a modalidade de regularização pretendida, se
parcelamento do solo ou instituição e especificação de condomínio de casas ou lotes, com as respectivas
atribuições de unidades autônomas ou lotes, obedecidas as condições abaixo.
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
116
requerimento de regularização do condomínio seja subscrito por todos os titulares de
fração registrada, ou seus sucessores8.
E o Poder Executivo, em recentíssima Medida Provisória 656, de 07 de outubro de 2014,
que, dentre outras matérias, dispôs sobre a concentração dos atos na matrícula do imóvel,
igualmente fez expressa referência ao condomínio de lotes instituído pelo artigo 3º do
Decreto-lei 271/67, ao dispor em seu artigo 11 que “A alienação ou oneração de unidades
autônomas integrantes de incorporação imobiliária, parcelamento do solo ou condomínio
de lotes de terreno urbano, devidamente registrada, não poderá ser objeto de evicção ou
de decretação de ineficácia, mas eventuais credores do alienante ficam sub-rogados no
preço ou no eventual crédito imobiliário, sem prejuízo das perdas e danos imputáveis ao
incorporador ou empreendedor, decorrentes de seu dolo ou culpa, bem como da aplicação
das disposições constantes da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990.”9
CONCLUSÃO
Considerando que não se analisou as implicações de ordem urbanísticas, no que diz
respeito à pertinência dessa espécie de parcelamento do solo para as cidades, o que
deverá ser observado casuisticamente, de acordo com as necessidades e características
de cada município, diante do fundamento legal apresentado, e subsidiado na
interpretação de respeitáveis juristas10 que se dedicaram à análise da legalidade dos
condomínios de lotes, afigura-se viável a sua expressa previsão no Capítulo XX
das NSCGJ – Extrajudicial, para a regulamentação de seus atos registrários, o que,
entretanto, não dispensa a necessária disciplina dessa forma de parcelamento do solo
por lei municipal, ante a competência definida pela Constituição Federal.
JOSÉ HORÁCIO HALFELD REZENDE RIBEIRO
Presidente
8. Prov. 18/2012: 238. O requerimento de regularização como condomínio deverá vir subscrito por todos os
titulares de fração registrada ou seus legítimos sucessores, nos termos da Lei nº 4.591/64 ou no art. 3º, do Dec. Lei
nº 271/67, e instruído com: (...)
9. Medida Provisória 656, de 07 de outubro de 2014.
10. Entre outros, Clari de Fátima Bottega, Décio Antônio Erpen, Eduardo Pacheco de Souza, Fábio Ribeiro dos
Santos, Francisco Arnaldo Schmidt, Gilberto Valente da Silva, Gustavo Burgos de Oliveira, Hely Lopes Meirelles,
João Padro Lamana Paiva, Julio Cesar Weschenfelder, Mário Pazutti Mezzari e Melhim Namem Chalub.
MANHÃ DE DEBATES “MULHER,
LIDERANÇA E REPRESENTATIVIDADE
A SUB-REPRESENTAÇÃO FEMININA
NO BRASIL E AS SUAS DECORRÊNCIAS”
ENUNCIADOS PROPOSITIVOS
13 DE MARÇO DE 2015
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
118
ENUNCIADOS – A MULHER E A POLÍTICA
1.
Sendo a população brasileira composta por 51,5% de Mulheres e o eleitorado
brasileiro, por 52,13% de Mulheres, impõe-se a paridade de gênero na
composição dos órgãos legislativos do País.
2.
A composição do Legislativo deve ser paritária, a fim de que a discussão dos
assuntos relativos aos interesses do País tenha a efetiva participação feminina,
especialmente aqueles correlatos à condição da Mulher. Tratar de temas de
interesse público sem a participação da Mulher não se mostra condizente com
o Estado Democrático de Direito, conforme arts. 1º e 5º, inciso I, da Constituição
da República Federativa do Brasil, e, torna-se especialmente dramático naqueles
temas eminentemente femininos diante de um Congresso Nacional composto
por 89,22% de Deputados Federais e Senadores do sexo masculino.
3.
A maioria esmagadora da população brasileira ignora que o Brasil é o 116º
colocado no ranking mundial de participação feminina no Legislativo, ficando
atrás de países como a Líbia, o Afeganistão, o Paquistão, a Arábia Saudita, ou
ainda os latino-americanos Paraguai, Venezuela e Peru, dentre outros 109 países
melhor posicionados.
4.
É fundamental que haja paridade de assentos a fim de assegurar o preenchimento,
por Mulheres, de 50% das vagas disponíveis nas Casas Legislativas, sob pena de
sanções legais que sejam efetivas.
5.
É premente a implantação de um sistema eficaz de sanções aos partidos
e coligações que não cumpram as normas legais quanto ao percentual de
participação e representação feminina no Legislativo, tais como: perda
expressiva da participação no fundo partidário, perda de tempo de propaganda
radiotelevisiva, perda de vagas do partido ou coligações, além da inclusão em
lista pública restritiva, sem prejuízo de outras que venham a ser estipuladas por
lei.
6.
Criação imediata de lista pública restritiva ao recebimento de doações eleitorais,
na qual sejam incluídos os partidos políticos e as coligações partidárias que
não cumpram as normas legais quanto ao percentual de participação e
representação feminina no Legislativo.
7.
A cota de gêneros prevista em lei deverá ser aplicada e respeitada também
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
MANHÃ DE DEBATES “MULHER, LIDERANÇA E REPRESENTATIVIDADE – A SUB-REPRESENTAÇÃO FEMININA NO
BRASIL E AS SUAS DECORRÊNCIAS” ENUNCIADOS PROPOSITIVOS - 13 DE MARÇO DE 2015
119
quanto à distribuição de tempo na propaganda eleitoral gratuita no rádio e na
televisão, sob pena de sanções.
8.
A proporção legal de gênero deve ser observada pelos partidos políticos
inclusive na composição de suas lideranças e diretorias executivas.
9.
O órgão nacional de direção partidária deverá observar o percentual de tempo
mínimo legal da participação política feminina em cada uma das praças nas
quais for transmitida propaganda partidária.
10. Deverá haver gasto efetivo e comprovado do fundo partidário, a ser auditado
formal e especificamente, em prol de programas de promoção e difusão da
participação politica feminina, bem como o fomento de suas candidaturas.
11. As doações eleitorais recebidas pelos partidos políticos deverão também ser
distribuídas na proporção das cotas de participação para mulheres, conforme
determinado em lei.
12. A Reforma Política deverá contemplar todos estes temas e proposições, pois
é fundamental a resolução definitiva da disparidade de participação feminina
no Legislativo Brasileiro e o contexto inconstitucional de sub-representação
hoje existente. Urge utilizar a Reforma Política para resolver de vez a subrepresentação feminina no Legislativo Brasileiro, bem como para se fazer
respeitar o comando constitucional de igualdade entre Mulheres e Homens.
13. A igualdade política tem como substrato a condição feminina, a qual abrange
vários outros aspectos e dimensões, que devem ser tratados por meio de
Políticas Públicas frontais e efetivas e com a adequada atenção estratégica
por parte dos governos, inclusive com a destinação de parcela específica e
adequada do orçamento público para esse fim, com vinculação de despesas
orçamentárias específicas e/ou fixação de despesas mínimas obrigatórias, com
vedação de contingenciamento de tais despesas orçamentarias vinculadas
ou despesas mínimas obrigatórias, de tal sorte haja efetivo suporte financeiro
para subsidiar ações e programas de empoderamento feminino. A vinculação
dessas despesas orçamentárias ou o estabelecimento de despesas mínimas
obrigatórias conforme referido não poderá sofrer contingenciamento.
120
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
ENUNCIADOS – A MULHER E O DIREITO
1.
Apesar do mandamento constitucional específico, estatísticas e dados
diversos demonstram, de forma inconteste, que ainda não existe igualdade de
oportunidades para Homens e Mulheres no Brasil, nem mesmo nas carreiras
jurídicas. Portanto, é imperiosa a construção de acervo normativo que viabilize
de forma concreta e real a igualdade de oportunidades para todos, Homens e
Mulheres, inclusive e especialmente por meio de ações afirmativas, que têm se
mostrado inteiramente efetivas em todo o mundo.
2.
O pressuposto da ascensão de Mulheres aos cargos de alta gestão, de cúpula e
de maior densidade decisória é a concretização da meritocracia em ambientes
efetivamente democráticos.
3.
Ações afirmativas devem ser viabilizadas imediatamente, pois além de serem
constitucionais, são ações que têm mostrado capacidade de transformação
positiva nos diversos países em que há várias décadas vem sendo amplamente
utilizadas com vistas à solução dos problemas que envolvem a condição
feminina, notadamente a sub-representação da Mulher.
4.
É impreterível a criação de leis que instituam política nacional de cotas para
garantir a participação de Mulheres em todos os níveis governamentais, espaços
decisórios e em todos os cargos de alta gestão, públicos ou privados. Trata-se de
mecanismo transitório para a solução de problemas seculares, senão milenares.
5.
É inaceitável que nomes de Mulheres sequer sejam cogitados para a ocupação
de cargos de Ministros do Supremo Tribunal Federal, por exemplo, o que bem
demonstra a desigualdade de oportunidades para Mulheres diante das posições
mais elevadas nos cargos de comando e de alta gestão no País.
6.
Nomes de Mulheres devem ser sempre colocados, de forma paritária, em todas
e quaisquer listas de escolha de candidatos para todos os cargos, sejam eles
públicos ou privados, e, especialmente, para aqueles mais elevados, até para
que isso sirva de exemplo às boas práticas que devem imperar no País, em
estrito respeito, aliás, aos comandos constitucionais.
7.
Não é aceitável, muito menos constitucional que apenas duas, dentre onze
Ministros do Supremo Tribunal Federal, sejam Mulheres. Assim como não é
aceitável, que dos 33 Ministros do Superior Tribunal de Justiça, apenas 6 sejam
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
MANHÃ DE DEBATES “MULHER, LIDERANÇA E REPRESENTATIVIDADE – A SUB-REPRESENTAÇÃO FEMININA NO
BRASIL E AS SUAS DECORRÊNCIAS” ENUNCIADOS PROPOSITIVOS - 13 DE MARÇO DE 2015
121
Mulheres. Ou ainda, que dos 360 cargos de Desembargadores do Estado de São
Paulo, apenas 24 deles sejam ocupados por Mulheres. E também não é aceitável
que nenhuma Mulher até hoje tenha sido Procuradora Geral do Ministério
Público de São Paulo ou Procuradora Geral da União. Todas essas são situações
sintomáticas que evidenciam a sub- representação feminina nos cargos de
gestão e de maior envergadura nas carreiras jurídicas.
8.
Esses números e cenários, e todos os inúmeros outros, bem evidenciam e
comprovam de forma inescapável as maiores e diversas dificuldades para a
inserção feminina em todos os patamares da vida pública e privada brasileira e,
especialmente, para a ascensão das Mulheres a quaisquer cargos mais elevados,
o que as distancia dos centros de decisão de nossa Nação.
9.
É fundamental que haja presença feminina expressiva nos órgãos de cúpula e
alta gestão no Poder Judiciário, no Ministério Público e em todas as Instituições
representativas da Advocacia Pública e Privada do País.
10. Somente a presença expressiva de Mulheres nas instâncias mais altas dos
órgãos do Judiciário, do Ministério Público, das Instituições Representativas da
Advocacia, fará com que haja efetiva representatividade feminina e tornará tais
entes e órgãos efetivamente diversificados, o que levará a movimentações e
manifestações mais plurais e materialmente mais democráticas. Do contrário,
nem a Democracia, nem os comandos constitucionais frontais, quanto à
paridade de gênero, serão concretizados.
ENUNCIADOS – A MULHER NOS CARGOS EXECUTIVOS –
PÚBLICO E PRIVADO
1.
É inaceitável que os mais elevados cargos executivos da esfera pública não
sejam paritariamente distribuídos entre Homens e Mulheres. Não é admissível
que dentre 39 Ministérios Federais, apenas 6 sejam ocupados atualmente por
Mulheres. Assim como, dentre 26 Secretarias Estaduais em São Paulo, apenas
duas sejam chefiadas por Mulheres. Ou ainda, que dentre as 24 Secretarias do
Município de São Paulo, apenas 4 sejam atualmente chefiadas por Mulheres.
2.
Os Chefes dos Executivos Federal, Estaduais e Municipais, podem e devem
utilizar sua prerrogativa legal de organização de funções e cargos públicos
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
122
na Administração Pública Direta para, por meio de Decreto, expedirem
normas de concretização do comando constitucional de paridade de gênero,
estabelecendo, por exemplo, política de cotas crescente até que haja a ocupação
paritária de cargos e funções públicos sob seu comando e controle direto.
3.
Os Conselhos de Administração e Diretorias Executivas de empresas públicas e
privadas podem e devem estabelecer programas internos efetivos de valorização
da profissional Mulher, de forma a garantir a ocupação paritária de cargos e
funções em todos os níveis da empresa que dirijam, independentemente de
que tenham de cumprir disposições normativas que venham a ser instituídas.
Tais iniciativas deverão merecer incentivo público específico, a exemplo da
criação de incentivos fiscais para tais programas espontâneos, bem como a
divulgação em lista oficial de empresas mais democráticas.
4.
As Bolsas de Valores, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e outros Órgãos
Reguladores deverão criar sistemas de verificação e avaliação das empresas e
agentes de mercado que efetivamente estejam implementando, ou tenham
implementado, programas e condutas de inserção efetiva da Mulher em todos
os níveis de gestão nos ambientes empresariais.
5.
É fundamental criar, paralelamente, ações afirmativas diversas, dentre outras
medidas, que incentivem e estimulem de forma concreta o respeito à condição
feminina no ambiente corporativo, tais como: leis que estabeleçam cotas para
participação de Mulheres em Conselhos de Administração e Diretoria, que
proíbam a participação de empresas não paritárias no sistema de contratação
pública, que estabeleçam licença paternidade mandatória para Homens
equivalente àquela existente para Mulheres, que aprimorem o sistema de
estabilidade de emprego para a Mulher após o retorno da Licença Maternidade,
que estabeleçam a paridade de gênero como premissa para concessão de
créditos em Bancos Públicos ou de Desenvolvimento, bem como para repasses
e incentivos de verbas públicas em favor de ONGs ou demais entidades
vinculadas ao Terceiro Setor.
6.
Em pleno século 21, torna-se premente que a condição feminina, milenarmente
estabelecida numa situação de desigualdade, receba a valorização e o respeito
necessários, de tal sorte possa essa situação de desigualdade ser efetivamente
superada.
PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP
MANHÃ DE DEBATES “MULHER, LIDERANÇA E REPRESENTATIVIDADE – A SUB-REPRESENTAÇÃO FEMININA NO
BRASIL E AS SUAS DECORRÊNCIAS” ENUNCIADOS PROPOSITIVOS - 13 DE MARÇO DE 2015
São Paulo, 22 de Abril de 2015
A COMISSÃO DE REDAÇÃO DE ENUNCIADOS
PROPOSITIVOS:
Raquel Elita Alves Preto
Maria Garcia
Clarissa Campos Bernardo
Silvana Bussab Endres
Eloísa de Sousa Arruda
Rogéria Paula Borges Gieremek
Rosimara Raimundo Vuolo
Marcia Dinamarco
Ana Emília Oliveira de Almeida Prado
Karina Penna Neves
Maria Cristina Zucchi
Fátima Cristina Pires Miranda
Renata Lorenzetti Garrido
Alessandra Nascimento Silva Figueiredo Mourão
Marina Bevilacqua de La Touloubre
Sílvia da Graça Gonçalves Costa
Luciana Oliveira Ramos
Ligia Pinto Sica
Priscila Santos Artigas
Regina Affonso dos Santos Fonseca Ribeiro
Paula Tonani
Fernanda Marques Bayeux
Maria de Lourdes Pereira Campos
Cibele Malvone Toldo
123
DOUTRINA
DESAFIOS DA JUSTIÇA
O EXECUTIVO E A MODERNIZAÇÃO
DO JUDICIÁRIO
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
Ex-Presidente da República.
Medalha Barão de Ramalho do IASP.
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
A Justiça falha quando tarda. O Brasil democrático reclama uma Justiça mais rápida,
sem arranhar o princípio do contraditório e ampla defesa e o direito de recurso, pilares
do devido processo legal.
Temos, como nação, respondido positivamente a esse desafio. A própria intensidade do debate público sobre a organização e desempenho da Justiça deve ser saudada
como um sinal de que o processo constituinte, em sentido amplo, não se esgotou no
ato de promulgação da Constituição de 1988. Mais de vinte anos depois, a construção
da democracia – obra, por definição, inacabada – prossegue sobre a pedra angular da
nova Carta, renovando esperanças no seu enraizamento definitivo em solo brasileiro.
O equilíbrio entre Executivo e Judiciário é uma variável tão fundamental quanto
complexa nesse processo. Uma balança capaz de aferi-la precisaria de vários pares de
pratos, para as várias dimensões da relação entre os dois Poderes.
Pela quantidade de ações em que é parte direta ou indiretamente interessada, o
Executivo, nos três níveis de governo, é o principal cliente do Judiciário. O descontrole
administrativo e fiscal dos governos tende a afogar o Judiciário numa enxurrada de demandas, como se viu no rescaldo dos planos econômicos mal sucedidos dos anos 80 e
começo dos 90. Reciprocamente, a morosidade da Justiça tanto compromete o controle
dos atos do Executivo como esvazia seu poder de polícia, nas várias frentes em que ele
é essencial para a garantia dos direitos individuais e interesses coletivos.
Para o custeio e expansão da sua estrutura, o Judiciário depende dos recursos arrecadados e transferidos pelo Executivo nos planos estadual e federal. A interlocução entre os
dois Poderes em matéria orçamentária comporta tanto parceria em torno de objetivos comuns como disputa por recursos escassos. Pressões por elevação do teto remuneratório,
aumentos e equiparações salariais de servidores testam a capacidade de arbitragem dos
governos e somam tensões entre e no interior de cada um dos Poderes.
Seu poder de iniciativa legislativa e capacidade de articulação política fazem do Presidente da República um ator-chave na formulação, discussão e aprovação das propostas
de reforma do Judiciário, como de outras reformas. A orientação dos membros dos tribunais superiores, indicados pelo Presidente, repercute na implementação das mudanças.
Se o Presidente se distancia da agenda de reformas, ela perde tração. Se ele se engaja
além de certo ponto, pode suscitar protestos de atropelo da autonomia do Judiciário.
As reformas em curso atravessam todas essas dimensões da relação Judiciário-Executivo. Acrescente-se o Legislativo, e a complexidade da equação aumenta exponen-
DOUTRINA . DESAFIOS DA JUSTIÇA
O EXECUTIVO E A MODERNIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO
129
cialmente. Isso tende a amplificar a percepção de riscos, reais ou supostos, para os atores com interesse investido no statu quo, e pode obscurecer os benefícios da mudança
para o conjunto da sociedade.
Discussões como a que a OAB promove neste livro – de caráter interdisciplinar, foco
amplo e abordagem equidistante, tanto quanto possível, de demandas estritamente
setoriais – podem iluminar alternativas, mitigar apreensões exageradas e subsidiar a
construção dos consensos necessários para levar adiante as reformas.
Nossa contribuição nesse sentido começa por um retrospecto dos avanços na organização e desempenho da Justiça brasileira sob a Constituição de 1988. Sobre esse pano
de fundo, discutimos pontos que nos parecem relevantes na agenda de reformas por
fazer, sempre destacando suas implicações para a relação Judiciário-Executivo.
O arcabouço institucional da democracia brasileira está de pé. Retoques, reformas
sempre serão necessárias. Mas falta algo essencial: falta a alma da democracia, que é o
sentimento da igualdade perante a lei como valor fundamental, compartilhado pelos
dirigentes e o conjunto da sociedade. As dificuldades persistentes de aplicar a lei de
modo igual para todos, expostas pelo espetáculo da corrupção política impune, difundem sentimentos opostos, de desânimo e cinismo em relação às instituições democráticas. A “pedagogia da lei” supõe a possibilidade de difundir o sentimento da igualdade
por exemplos de rigor na administração da Justiça. Este é o grande desafio da modernização do Judiciário.
1. ESTABILIDADE ECONÔMICA E SEGURANÇA JURÍDICA
Às vésperas da promulgação da Constituição de 1988, o presidente José Sarney
alertou que o descompasso entre o aumento das obrigações da União e a diminuição
da sua fatia no bolo tributário poderia tornar o país “ingovernável”.1 A preocupação
mostrou-se, afinal, exagerada. Mas não sem que antes a expansão do gasto público
pusesse de fato em cheque a capacidade dos três níveis de governo de equilibrar seus
recursos e obrigações, e a disparada da inflação consumisse a boa vontade popular em
relação à Nova República e seus fundadores.
O desequilíbrio fiscal vinha de desajustes estruturais herdados do regime autoritário.
1. Sarney faz ameaça do país ingovernável. O Estado de S. Paulo, 27/07/1988, p. 1. http://acervo.estadao.com.br/
pagina/#!/19880727-34791-nac-1-999-1-not/
130
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
Também fazia parte dessa herança a indexação generalizada de preços, salários, ativos
financeiros e tributos, que realimentava a inflação. Qualquer que fosse a origem
dos problemas, no entanto, o desafio que se apresentava era enfrentá-los pelas vias
democráticas, sem quebrar contratos nem reeditar procedimentos do velho Executivo
“imperial”, atropelando os freios e contrapesos entre os Poderes constituídos.
Instituições não funcionam por si mesmas, sem lideranças políticas, organizações
sociais e uma massa crítica de cidadãos que saibam operá-las. Aprender a operar
instituições democráticas depois de vinte anos de autoritarismo não seria, em qualquer
hipótese, uma tarefa fácil. As sucessivas tentativas fracassadas de controlar a inflação
impuseram um custo extraordinário a esse aprendizado.
Na esteira dos planos Cruzado (1986), Bresser (1987), Verão (1989), Collor I (1990) e
Collor II (1991), milhares de empresas, trabalhadores, aposentados, pensionistas, poupadores foram à Justiça reclamar perdas decorrentes de congelamentos, tabelamentos e
conversões compulsórias de preços, salários e outras obrigações.
O primeiro plano Collor testou o limite de tolerância do país a essa sequência de
experimentos desastrados. Só o desespero com a hiperinflação explica que uma
retenção de depósitos bancários por ato unilateral do Executivo tenha encontrado tão
pouca resistência dos outros Poderes e do público em geral. A volta da inflação, porém,
avivou a indignação com o “confisco da poupança” e acendeu um sinal vermelho para
novas tentativas de estabilizar a economia às custas da segurança jurídica da sociedade.
O Real (1994) aproveitou lições das dificuldades dos planos econômicos anteriores.
Em vez da popularidade fácil mas efêmera de um novo congelamento de preços, como
no Cruzado, optou-se pela combinação de um ajuste fiscal convencional com uma
estratégia inovadora de desindexação da economia.2
O ajuste fiscal esbarrava numa dificuldade política – a resistência a cortes de gasto
por parte do Congresso e de grupos de interesse influentes – que foi possível superar
graças à firmeza do presidente Itamar Franco e à própria exaustão da maioria da
sociedade com a corrida atrás da inflação.
A desindexação passaria, paradoxalmente, pela superindexação: a criação de
um indexador diário universal, a Unidade Real de Valor – URV, que funcionaria como
2. Ver Gustavo Franco, O Plano Real e URV – fundamentos da reforma monetária brasileira de 1993-94, in O Plano
Real e outros ensaios. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1995. pp. 31-53.
DOUTRINA . DESAFIOS DA JUSTIÇA
O EXECUTIVO E A MODERNIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO
131
unidade de conta estável até dar lugar à nova moeda, o Real. Essa estratégia embutia
dois riscos: que a indexação diária acelerasse a inflação até explodir antes da troca de
moeda; e que as regras de conversão das obrigações na moeda velha – o cruzeiro real –
para a URV suscitassem uma nova enxurrada de demandas judiciais.
A URV foi criada pela Medida Provisória nº 434, de fevereiro de 1994. Para surpresa de
muitos, o público a entendeu e adotou sem dificuldade, não como mais um indexador,
mas como embrião da futura moeda. Isso provou o acerto da decisão de anunciar e
explicar antecipadamente cada passo do plano, sem o sobressalto dos “choques”
econômicos passados.
A equipe econômica, reforçada por bons advogados, estudou a fundo a
jurisprudência a fim de evitar a repetição dos impasses legais criados pelos planos
anteriores. A própria URV foi uma construção jurídico-econômica que levou em conta
a distinção estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal entre “correção monetária” –
medida objetiva da inflação ocorrida – e “indexação” – regra de atualização de valores
convencionada entre as partes. O cálculo da paridade diária entre URV e cruzeiro
real baseou-se, por uma fórmula complexa, em três índices de preços amplamente
utilizados. Essa proeza econômica deu solidez jurídica à URV como instrumento de
correção monetária, afastando dúvidas sobre a neutralidade do seu efeito no equilíbrio
econômico dos contratos em vigor.
Um teste decisivo da reforma monetária foi seu trânsito por um terreno onde outros
planos de estabilização haviam atolado – a política salarial. Sindicatos contestaram a
conversão dos salários em URV pela média do valor dos últimos quatro meses, conforme
previsto pela MP nº 434, e não pelo pico do valor na data-base do último reajuste. O
Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo, no julgamento de um dissídio de greve dos
metalúrgicos, reconheceu a consistência jurídica e econômica da regra de conversão. O
julgamento de outros dissídios confirmaria esse entendimento. A discussão das perdas
reclamadas pelos sindicatos esvaziou-se, nos meses subsequentes, na medida em que a
percepção geral dos trabalhadores foi de aumento do seu poder aquisitivo.
A conversão de outras obrigações, fora os salários, foi deixada à vontade das partes.
As condições de preço e prazo dos contratos vigentes entre empresas embutiam, comumente, o efeito esperado da inflação sobre os valores a pagar e receber. A supressão
do chamado “float inflacionário” traria ganhos para algumas empresas e perdas para
outras. A negociação para reequilibrar essas relações ao longo das cadeias de produção
e distribuição foi dura, em muitos casos. A aceitação generalizada da URV funcionou, no
132
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
entanto, como um forte estímulo à conversão, mesmo nos casos mais difíceis. Quando
a nova moeda entrou em circulação, em julho de 1994, os contratos estavam renegociados e só foi preciso renomear seus valores de URV para Real, sem os desalinhamentos
de preços que haviam sido uma das causas do insucesso dos planos anteriores.
Todas essas cautelas foram recompensadas pelo número relativamente baixo de
demandas judiciais suscitadas pelo Plano Real. Destacam-se, pelo montante dos valores
envolvidos, as ações questionando a regra prevista pelo art. 36 da MP nº 434, convertido
no art. 38 da Lei nº 8.880, para a correção monetária de obrigações nos meses de julho
e agosto de 1994. A validade desse dispositivo foi confirmada, porém, por reiteradas
decisões dos tribunais federais.
Ao passar de forma tranquila pelo crivo da Justiça, o Real fez mais que derrubar
a inflação: reconciliou estabilidade econômica e segurança jurídica, que os planos
anteriores pareciam colocar em campos opostos. Apraz-nos pensar que esse foi um
capítulo importante do amadurecimento da capacidade do país de lidar com os desafios
de uma economia emergente nos marcos do estado democrático de direito. Páginas
fundamentais desse capítulo foram escritas, como vimos, para e pelo Poder Judiciário.
2. JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA
E A ADVOCACIA DA UNIÃO
Ao explicar os desdobramentos do Plano Real, os responsáveis por sua concepção
e execução insistiam que a derrubada da inflação não era um fim em si mesmo, mas
o começo de mudanças destinadas a consolidar a estabilidade e refazer as condições
de desenvolvimento econômico e social do país. Outros capítulos dessa agenda de
reformas envolveram intensamente o Poder Judiciário.
A Constituição de 1988 inovou ao detalhar em seu próprio texto um amplo elenco
de direitos e obrigações; ao espalhar pela sociedade a titularidade para questionar
diretamente no STF a constitucionalidade de atos dos Poderes Executivo e Legislativo;
e, não menos importante, ao garantir em termos inequívocos a autonomia do
Ministério Público em relação ao Executivo. Tudo isso teve o efeito esperado e desejável
de fortalecer o Judiciário. E teve o efeito, talvez menos esperado, mas inevitável, de
deslocar para os tribunais questões que em outros países são matéria precípua de
deliberação política.
DOUTRINA . DESAFIOS DA JUSTIÇA
O EXECUTIVO E A MODERNIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO
133
A oposição às reformas pós-Real, notadamente às privatizações e às mudanças
na previdência social, recorreu amplamente à “judicialização da política”. Propostas
referendadas pelo eleitorado, aprovadas pelo Legislativo e sancionadas pelo Executivo
foram levadas ao Judiciário, a pretexto de questionar sua constitucionalidade, para o
que era na verdade um turno adicional de discussão do seu mérito, ou mera manobra
de obstrução da sua implementação. Isso pode parecer uma anomalia do ponto de
vista do direito comparado. Do ponto de vista prático, contudo, trata-se de um dado da
realidade (que tem sua recíproca na “politização da Justiça”).
Lidar com as consequências dessa peculiaridade da democracia brasileira obrigou o
Executivo federal a encarar a fragilidade da sua representação na esfera judicial.
Não é segredo que a Advocacia-Geral da União, ao ser separada do Ministério
Público, em 1993, nasceu como uma espécie de patinho feio, carente de pessoal,
recursos e charme. Essas carências obrigaram os membros da instituição a esforços
heróicos para responder, por exemplo, às dezenas de ações simultâneas em varas da
Justiça Federal por todo o país tentando bloquear na última hora a realização de leilões
de privatização. Menos visíveis, mas tão ou mais graves, eram os prejuízos para o erário
acumulados em decorrência da falta de defesa adequada numa miríade de processos
envolvendo funções rotineiras da administração pública.
O reforço da sua estrutura a partir de 1995, tanto em termos orçamentários
quanto de pessoal, permitiu à AGU erguer-se à altura da sua missão de defesa do
interesse público na representação judicial e extrajudicial da União. A unificação da
representação judicial das autarquias e fundações federais diretamente pela AGU, ou
sob sua supervisão, foi fundamental para fechar os ralos de negligência e corrupção
pelos quais escoava dinheiro público em algumas dessas entidades. A criação, em 2002,
da Procuradoria-Geral Federal, no âmbito da AGU, nivelou por cima a assistência jurídica
às entidades da administração direta da União. A revisão de cálculos e perícias judiciais
por um departamento especializado da AGU permitiu a impugnação de precatórios
superfaturados no montante de R$17 bilhões de reais entre 1995 e 2001. Os esforços de
elaboração de teses jurídicas e sistematização de estratégias processuais em defesa dos
interesses da União também deram frutos na sustentação de outros pontos da agenda
de reformas, como o reconhecimento da constitucionalidade do fator previdenciário e
da fixação de limites à despesa de pessoal pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Anos e anos de inflação alta acostumaram os agentes públicos a apostar na
procrastinação para diluir o valor real de obrigações do erário. Sem inflação, esse
134
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
expediente tornava-se financeiramente insustentável, além de eticamente condenável.
A presença mais eficaz da AGU em juízo teve por contrapartida medidas visando aliviar
o Poder Judiciário de recursos procrastinatórios e ações sem possibilidade real de
sucesso para a União. O Decreto nº 1.601, de 1995, autorizou a Procuradoria-Geral da
Fazenda Nacional a não recorrer de decisões judiciais relativas a determinados tributos,
onde houvesse jurisprudência firmada pelos tribunais superiores. Várias súmulas
administrativas do Advogado-Geral especificaram condições em que fica autorizada
a não interposição de recursos sobre diferentes matérias. O Decreto nº 2.346, de 1997,
consolidou normas e procedimentos destinados a conformar os atos do Executivo às
decisões do Judiciário.
No mesmo passo em que contribuíram para desafogar o Judiciário, essas medidas
estimularam a criação, no âmbito do Executivo, de uma cultura administrativa
condizente com tempos de estabilidade econômica e controles democráticos.
3. A REFORMA POLÍTICA QUE DÁ CERTO
Enquanto o Poder Executivo se adaptava às exigências de um Judiciário fortalecido,
este iniciava um ciclo de abertura às demandas da cidadania. As discussões sobre
reforma política costumam girar em torno das propostas de mudança do sistema
eleitoral e partidário. Mas é neste outro campo – o do aperfeiçoamento das estruturas
e procedimentos da Justiça – que a democratização das instituições tem avançado a
passos mais largos.
A Lei nº 8.952, de 1994, introduziu, entre outras inovações, a tutela antecipada,
permitindo ao juiz proteger direitos que seriam irreversivelmente lesados com a demora
de uma decisão final.
A criação dos Juizados Especiais Civis e Criminais, pela Lei nº 9.099, de 1995, é um
marco desse processo. Com soluções inovadoras, tanto na área criminal como na civil,
o modelo tradicional da Justiça brasileira, ensimesmada em seus ritos burocráticos,
deu lugar a um procedimento mais simples e rápido, que facilitou o acesso do cidadão
comum à Justiça, inclusive com dispensa de advogado em parte dos casos.
A criação dos Juizados Especiais Federais, pela Lei nº 10.259, de 2001, teve um sentido
democratizador semelhante. A simplificação de processos em que figuram como rés
a União, suas autarquias, fundações e empresas públicas atendeu a uma aspiração
DOUTRINA . DESAFIOS DA JUSTIÇA
O EXECUTIVO E A MODERNIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO
135
antiga da sociedade e do próprio Judiciário. O sucesso da medida foi tão grande, que se
descobriu uma demanda escondida expressiva, principalmente relativa aos benefícios
da previdência e da assistência social. Há alguns anos, os Juizados Especiais Federais
julgam mais processos que a Justiça Federal comum e os Tribunais Regionais Federais.
No mesmo espírito, o Código de Processo Civil passou por uma série de
“microrreformas”. Destacam-se a introdução da ação monitória (Lei nº 9.079, de 1995);
alterações no agravo de instrumento (Lei nº 9.139, de 1995); a regulamentação da
arbitragem (Lei nº 9.307, de 1996); aperfeiçoamentos no processamento de recursos no
âmbito dos tribunais (Lei nº 9.756, de 1998); a limitação das questões relacionadas com
o duplo grau de jurisdição e a alteração de procedimentos recursais (Lei nº 10.352, de
2001); a alteração de dispositivos do processo de conhecimento (Lei nº 10.358, de 2001).
O processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação
declaratória de constitucionalidade perante o STF foram regulamentados pela Lei nº
9.868, de 1999.
A Lei nº 9.882, de 1999, dispôs sobre o processo e julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental, regulamentando o § 1o do art. 102 da Constituição. Ela também contribui para desafogar o Judiciário, na medida em que a decisão
do STF tem eficácia contra todos e efeito vinculante para os demais órgãos públicos.
A regulamentação da ação direta de inconstitucionalidade, da ação declaratória
de constitucionalidade e da arguição de descumprimento de preceito fundamental
valorizaram o papel do STF como corte constitucional, permitindo às demais instâncias
do Judiciário se alinharem mais rapidamente com suas decisões.
Na área trabalhista, a Lei nº 9.957, de 2000, instituiu o procedimento sumaríssimo,
permitindo acelerar o julgamento de dissídios individuais de valor até quarenta vezes
o salário mínimo. A Lei nº 9.958, de 2000, criou as Comissões de Conciliação Prévia
e permitiu a execução de título executivo extrajudicial na Justiça do Trabalho. As
comissões, integradas por representantes de empregados e empregadores, promovem
a conciliação de conflitos individuais do trabalho, o que tende a diminuir o número
de demandas reclamatórias. Sua importância foi limitada, no entanto, por uma decisão
posterior do STF que desobrigou as partes de comparecerem à comissão. 3
3. Valemo-nos aqui do sumário das “microrreformas” do Judiciário incluído na Mensagem ao Congresso Nacional.
Brasília, Presidência da República, 2002. pp. 483-487.
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
A promulgação da Emenda Constitucional nº 45, de 2004, coroou esse ciclo. Outros
autores saberão discutir neste livro, com mais propriedade, as implicações jurídicas da
Reforma do Judiciário, como tem sido chamada essa emenda. Destacamos aqui duas
implicações políticas.
Quanto ao processo da sua elaboração, ela é um testemunho eloquente tanto
da dificuldade como, ao fim e ao cabo, da viabilidade da construção dos consensos
necessários para realizar mudanças de vulto no e pelo marco legal da nossa democracia.
Da dificuldade dizem bem os 13 anos de tramitação desde a apresentação da proposta
original de emenda pelo deputado Hélio Bicudo. A viabilidade é atestada pela amplitude
da sua discussão, dentro e fora do Congresso Nacional. Dos membros dos Poderes
constituídos, nos diferentes níveis, aos setores da sociedade direta ou indiretamente
interessados, ninguém deixou de se fazer ouvir.4
Quanto ao resultado, ela criou dois instrumentos fundamentais para desafogar o
STF – os institutos da súmula vinculante e da repercussão geral – e uma fórmula original, engenhosa, de controle interno – o Conselho Nacional de Justiça. Talvez mais
importante, fixou na Constituição dois princípios para o aprimoramento contínuo do
Poder Judiciário: a simplificação dos seus procedimentos, tendendo à sua maior celeridade, e a transparência das suas estruturas perante a sociedade. Desse ponto de vista, a
Emenda Constitucional nº 45 foi o coroamento de um ciclo, mas não o fim das reformas
necessárias para alinhar o desempenho da Justiça com as demandas da cidadania.
4. UMA AGENDA DA SEGURANÇA COM TRANSPARÊNCIA
O Presidente da República, sozinho, não faz reformas – nem governa, diga-se. Mas
reformas importantes não avançam sem a liderança ou pelo menos o estímulo do
Presidente. As mudanças legislativas que resenhamos acima começaram por iniciativa
do Presidente e avançaram quando e na medida em que este atuou para somar a
seu favor a maioria do Congresso e a hierarquia do Judiciário. A exceção notável foi
a Emenda Constitucional nº 45, de iniciativa da Câmara dos Deputados. Mas mesmo
essa teria levado mais do que os 13 anos que levou para ser aprovada, se não fosse o
4. A tramitação da Reforma do Judiciário na Câmara dos Deputados (PEC nº 96, de 1992) e no Senado
Federal (PEC nº 29, de 2000) está detalhada nestas páginas: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/
fichadetramitacao?idProposicao=14373 | http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_
mate=44577
DOUTRINA . DESAFIOS DA JUSTIÇA
O EXECUTIVO E A MODERNIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO
137
empenho sucessivo de dois Presidentes e seus principais auxiliares na área jurídica.
Tal convergência de forças não ocorre sempre, nem ocorre só porque o país precisa de
reformas. Depende das prioridades do Presidente, da visão dos demais atores com poder
de decisão – inclusive poder de veto – e, em última análise, das circunstâncias históricas.
A história não é uma loteria, porém. Não avança a golpes de fortuna, somente, mas
graças à virtù de quem busca deliberadamente tornar possíveis as mudanças necessárias.
Poucos acreditavam, em 1993, que seria possível derrubar a inflação. Faltavam
condições políticas para tanto, dizia-se. O rescaldo do impeachment de um presidente
e um Congresso Nacional mergulhado no escândalo dos “anões do orçamento” não
pareciam, de fato, um cenário favorável para atacar de frente o dragão inflacionário.
Havia, contudo, razoável clareza sobre o rumo das reformas econômicas necessárias,
fruto de anos de reflexão e discussão entre técnicos, gestores públicos, lideranças sociais
e políticos mais afeitos ao assunto. Isso nos permitiu avançar quando as condições
políticas se apresentaram, ou antes, foram alcançadas.
As condições para propostas mais ambiciosas de reforma do Judiciário podem não
parecer dadas no momento – mas quem garante que não podem ser criadas? O esforço
de iluminar os próximos itens dessa agenda será recompensado, de todo modo, se
estivermos prontos para aproveitar a oportunidade quando uma conjunção favorável
de atores e circunstâncias se apresentar.
Adiantamos algumas ideias nesse sentido, mais em forma de questões que de
sugestões específicas. Estas virão, acreditamos, de quem tem qualificação jurídica para
formula-las.
O norte são os princípios, já assinalados, da eficiência e transparência da Justiça.
A variável crítica da eficiência continua sendo a celeridade do processo judicial,
ainda longe de satisfatória, apesar dos avanços realizados. A situação é dramática na
área criminal, sobretudo nos casos de homicídio e corrupção, de forte repercussão
pública, onde a morosidade da Justiça cria sensação de impunidade e mina a confiança
nos Poderes constituídos em geral.
Sem prejuízo de microrreformas simplificadoras do Código de Processo Penal,
semelhantes às que foram feitas na área civil, seria bom ver propostas mais ousadas
em debate.
138
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
Menos de 10% dos homicídios são esclarecidos no Brasil. Um esforço conjunto
das autoridades federais e estaduais conseguiu elevar essa taxa para 19%. 5 É um
avanço importante, mas que ainda nos deixa em má posição na escala da impunidade. O desfecho do processo penal depende, na origem, da consistência da denúncia, que por sua vez depende da qualidade do inquérito policial. O STF tem respaldado a atuação do Ministério Público na investigação criminal, sem prejuízo da
competência precípua das polícias Civil e Federal. Se isso não encerrar as disputas
frequentes entre as corporações, mudanças na legislação podem ser necessárias
para lhes dar regras claras de cooperação no combate ao crime. Da mesma forma,
conflitos e lacunas de competência entre as polícias Civil, Militar e Federal reclamam
respostas mais efetivas, tanto de arranjos administrativos quanto da lei. Aguardam
regulamentação legal, a propósito, dispositivos da Constituição que tratam das atribuições da Polícia Federal (artigo 144, § 1º, inciso I) e da “organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a
eficiência de suas atividades” (artigo 144, § 7º).
O preciosismo dos trâmites judiciais, em nossa vetusta tradição luso-brasileira, é a
delícia do legista e o suplício das partes, ou pelo menos da parte interessada em resolver
e não procrastinar a demanda. Isso aumenta a distância entre a lei e o cidadão comum.
Existe uma forma consagrada de encurtar essa distância: o júri popular.
Tocqueville equiparou o júri ao voto como pilares da democracia americana.
O júri, e sobretudo o júri civil, serve para dar ao espírito de todos os cidadãos uma
parte dos hábitos de espírito do juiz; e esses hábitos são precisamente os que
melhor preparam o povo para ser livre.
Ele difunde em todas as classes o respeito pela coisa julgada e a ideia do direito...
Ensina os homens a praticar a equidade. Cada um, ao julgar seu vizinho, pensa
que por sua vez poderá ser julgado...
O júri ensina cada homem a não se furtar à responsabilidade por seus próprios
atos; disposição viril, sem a qual não existe virtude política.
5. Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública. Relatório Nacional da Execução da Meta 2 : um diagnóstico
da investigação de homicídios no país. Brasília, Conselho Nacional do Ministério Público, 2012. p. 43. http://www.
cnmp.gov.br/portal/images/stories/Enasp/relatorio_enasp_FINAL.pdf
DOUTRINA . DESAFIOS DA JUSTIÇA
O EXECUTIVO E A MODERNIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO
139
Ele investe cada cidadão numa espécie de magistratura; faz todos sentirem que
têm deveres a cumprir para com a sociedade, e que tomam parte no seu governo.
Ao obrigar os homens a cuidarem de outra coisa além de seus próprios assuntos,
combate o egoísmo individual, que é como a ferrugem das sociedades.6
A ideia pode soar mal a ouvidos conservadores, mas não terá chegado a hora
de sacudir a ferrugem da tradição e estender a competência do júri popular no
Brasil? Por que não levar a júri, por exemplo, os casos de corrupção que assaltam
o bolso e agridem a consciência dos cidadãos? Se Tocqueville tinha razão –
como acreditamos que tinha – tanto a confiança na Justiça como a qualidade da
participação popular na democracia ganhariam com essa virada histórica.
É verdade que isso fará pouca diferença, se os casos de corrupção e outros
submetidos a júri demorarem tanto quanto os de homicídio para transitarem em
julgado. Voltamos à questão da celeridade. Os possíveis ganhos incrementais de
microrreformas, somente, parecem paliativos diante das notícias recorrentes de
prescrição da pena de crimes graves. Como “acelerar a aceleração” do processo?
Duas respostas se apresentaram recentemente.6
A Lei Complementar nº 135, de 2010, chamada Ficha Limpa, atacou o problema
de maneira efetiva mas, por assim dizer, lateralmente, ao proibir a candidatura de
pessoas condenadas em segunda instância. Dizemos lateralmente, porque a lei tratou a inelegibilidade, não como punição, mas como impedimento decorrente do
não cumprimento de um requisito para a assunção de cargo público. Contornou,
desse modo, o princípio da presunção de inocência até o trânsito em julgado da
sentença condenatória.
A Proposta de Emenda à Constituição nº 15, de 2011, conhecida como PEC dos
Recursos, quer atacar o problema frontalmente, acabando com o efeito suspensivo dos
recursos ao Superior Tribunal de Justiça e STF. As sentenças dos tribunais de segunda
instância teriam, assim, efeito imediato. Sem mergulhar na discussão acalorada que
essa proposta suscitou no meio jurídico, limitamo-nos a assinalar o óbvio: se a solução
é controvertida, o problema é real, assim como a indignação que provoca na opinião
pública. Impossível tira-lo da ordem do dia, a não ser com uma solução melhor, se
6. Alexis de Tocqueville, De la Démocratie en Amérique, tome deuxième. Douzième édition. Paris, Pagnerre, 1848.
The Project Gutenberg EBook, Released Nov 21, 2009, Kindle format, Location 1796. http://www.gutenberg.org/
ebooks/30514
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possível, mas efetiva, para acabar com o exotismo brasileiro que é o julgamento em
quatro instâncias como rotina, e não exceção.
O Conselho Nacional de Justiça ajudou a colocar a questão da celeridade da
Justiça na ordem do dia, motivando e apoiando os Tribunais estaduais para reduzir
as pilhas de processos a espera de julgamento. No mínimo, prestou um enorme
serviço ao radiografar nacionalmente o problema. O que nos leva, para concluir, à
questão da transparência.
Houve sinais de desconforto com a exposição, pelo CNJ, do atraso acumulado no
fluxo de processos dos Tribunais. A intensidade do desconforto subiu vários pontos
com a exposição de pagamentos mal justificados feitos por alguns Tribunais a alguns
de seus membros. A transparência, como a espada da Justiça, é um valor que muda de
sinal conforme se lhe sinta a ponta ou empunhe o cabo.
A Justiça deve sair-se bem dessa prova, com o STF, boa parte da magistratura e a
opinião pública respaldando o papel fiscalizador do CNJ. Pode sair-se ainda melhor se a
consolidação do controle interno abrir caminho para mais avanços no aprimoramento
da administração do Poder Judiciário.
O princípio da autonomia administrativa dos tribunais, em si mesmo defensável,
tem o efeito colateral de sobrecarregar magistrados com tarefas administrativas para as
quais eles não são vocacionados. A missão do CNJ, com as adaptações eventualmente
necessárias da legislação, poderia incluir a formulação e estímulo à implementação de
medidas no sentido da profissionalização da administração judiciária, com gestores de
carreira especialmente selecionados e treinados.
A política remuneratória dos membros e servidores do Judiciário é outra
matéria sobre a qual o CNJ parece apto a atuar. Os presidentes de tribunais vêem-se
frequentemente na posição delicada de dublê de supremo magistrado e porta-voz
de reivindicações salariais de seus pares perante o Executivo e o Legislativo. Seria
preferível, para a dignidade da sua função precípua, desonera-los da função secundária
e remetê-la para o CNJ ou algum foro ligado a ele. Isso parece tanto mais recomendável
quanto maior é a repercussão da política remuneratória do Judiciário sobre os outros
Poderes, seja pelo instituto formal do teto, seja pelo parâmetro de fato que os salários
do Judiciário estabelecem para as demandas dos demais servidores.
Ideias não faltarão, se houver ambiente propício para apresenta-las e discutilas com tranquilidade. O desejável é que representantes dos três Poderes e da
DOUTRINA . DESAFIOS DA JUSTIÇA
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sociedade civil sintam-se à vontade para intervir no debate buscando explorar novas
possibilidades de avanço, sem interditos nem sobressaltos corporativos antecipados.
E que a prática do debate amplo sobre o desempenho, estruturas e perspectivas
do Judiciário se torne permanente, em múltiplos foros, como condiz com seu papel
proeminente no Brasil democrático.
DIREITO CIVIL
PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA NO
CENÁRIO DO DIREITO DO CONSUMIDOR:
REÇÃO ENTRE O DIREITO E O TEMPO
NA CONTEMPORANEIDADE
REGINA VERA VILS BÔAS
Pós-Doutora em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra - Ius Gentium Conimbrigae.
Graduada, Mestre Doutora em Direito Civil e Doutora em Direitos Difusos e Coletivos, todos pela PUC/SP.
WILSON JOSÉ VINCI JÚNIOR
Mestrando em Direito pela PUC/SP. Especialista em Direitos Difusos e Coletivos (2013) e Direito Público (2007),
ambas pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo. Procurador Federal.
Deus pede estrita conta de meu tempo. / E eu vou do meu tempo, dar-lhe conta. / Mas, como dar, sem tempo, tanta conta / Eu, que
gastei, sem conta, tanto tempo? / Para dar minha conta feita a tempo, / O tempo me foi dado, e não fiz conta, / Não quis, sobrando
tempo, fazer conta, / Hoje, quero acertar conta, e não há tempo. / Oh, vós, que tendes tempo sem ter conta, não gasteis vosso tempo
em passatempo. / Cuidai, enquanto é tempo, em vossa conta! Pois, aqueles que, sem conta, gastam tempo, quando o tempo chegar, de
prestar conta, chorarão, como eu, o não ter tempo.
(Tempo e Conta - Frei António das Chagas, in ‘Antologia Poética’)
SUMÁRIO
1. Introdução: Contextualização dos Institutos na Sociedade Contemporânea; 2. Compreensão dos Institutos:
Distinção e Conceitos; 3. Prescrição e Decadência no Código de Defesa do Consumidor (CDC); 4. Notas Finais;
5. Referências.
RESUMO
ABSTRACT
O presente artigo apresenta breves considerações
sobre os institutos da prescrição e da decadência,
a partir das disposições contidas no Código de
Defesa do Consumidor, analisando, também, as
principais divergências doutrinárias relacionadas
ao assunto. A importância do tema reside na
complicada relação entre o tempo e o direito,
afinal, via de regra, o exercício de um direito
é condicionado a um lapso temporal. O texto
apresenta especificidades dos institutos da
prescrição e da decadência pelo viés do Direito
do Consumidor, o qual desafia o contexto jurídico
clássico em que, inicialmente, se desenvolveram
os institutos, tudo em favor do consumidor. A
rica doutrina utilizada na elaboração do presente
artigo é interpretada de maneira criativa, com a
finalidade de melhor compreender a prescrição e
a decadência, promovendo a atualização cultural
dos significados dos institutos na sociedade
contemporânea.
This article presents a brief look about the
institutes of prescription and limitation, from
the provisions of the Consumer Protection Code,
analyzing also the major doctrinal differences
related to the subject. The importance of the
issue lies in the complicated relationship between
time and the right, after all, as a rule, the exercise
of a right is conditional upon a time gap. The
text presents specificities of prescription and
limitation by the Consumer Law view, which
challenges the classic legal context in which
initially developed the institutes, all in favor
of the consumer. The rich doctrine used in the
preparation of this article is interpreted creatively,
in order to better understand the prescription
and limitation, promoting cultural update of
the meanings of the institutes in contemporary
society.
PAVRAS-CHAVE
KEYWORDS
Prescrição. Decadência. Direito do consumidor.
Comtemporaneidade.
Prescription. Limitation. Consumer. Lae.
Contemporaneity
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1. INTRODUÇÃO: CONTEXTUALIZAÇÃO DOS INSTITUTOS
NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
A complexidade das relações e das situações sociais contemporâneas impõe aos
aplicadores do Direito a utilização de visão interdisciplinar e transdisciplinar, porque
esta corrobora a clareza e a justeza de suas reflexões.
O homem hodierno necessita ter claros e definidos os valores que ambiciona
concretizar na trajetória de sua vida, valores incorporados nos horizontes por ele
sonhados. Sem traçar os seus horizontes, caminha desequilibrado na busca de suas
necessidades, interesses e desejos, distanciando-se cada vez mais das referências
naturais e essenciais do ser humano, que o acompanham nessa longa trajetória da vida.
Por um lado, pensar o homem contemporâneo é, sobretudo, discutir a dignidade
da pessoa humana. O ordenamento jurídico nacional apresenta fundamento sólido no
artigo 1º, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil, o qual propicia a
valoração do homem e da sua dignidade, independentemente das suas características,
eis que ele, ser humano, deve ser considerado um fim em si mesmo, possuidor de
potências capazes de satisfazer a si mesmo e aos seus semelhantes.
Por outro lado, pensar o Direito implica, antes, a lembrança da máxima regra de
conduta que informa “havendo homem, haverá a sociedade e, havendo sociedade,
haverá o direito”. Ora, se isso ocorre porque o Direito agrega entre as suas finalidades
a de ordenar a convivência social dos indivíduos, poder-se-ia considerar desnecessária
a aplicação de regras jurídicas, regulamentadoras de condutas, nas situações de
vivência solitária do homem? Seria possível, na sociedade contemporânea, levar
uma vida isolada da sociedade, considerando-se que o mundo atravessa uma época,
regida pelo famigerado hiperconsumismo, que invade e desencanta a todos? Pode-se
pensar que os povos, dantes isolados das relações civis costumeiras, não conseguem
sequer garantir a utilização dos espaços territoriais que herdaram das gerações que os
antecederam, e que o homem encontra, isoladamente, dificuldades maiores de manterse em isolamento?
Observa-se, nessa cadência, que a interface compartilhada pelo homem e pelo
direito mostra, do lado do direito, uma feição controladora das condutas sociais, que
tem base em estrutura conservadora; e do lado do homem uma feição de liberdade,
que tem base na busca constante de verdades, orientadas pela sua vontade. O homem,
valendo-se de sua liberdade criativa, pode tornar sua conduta ativa e modificar a sua
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RELAÇÃO ENTRE O DIREITO E O TEMPO NA CONTEMPORANEIDADE
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vida, transformando o mundo em algo melhor. O direito, que não é somente um poço de
regras de condutas, transformará também a sociedade e o homem, na medida em que
o homem os transformarem. Todas as palavras, ações, gestos e comandos praticados
pelo homem e assimilados pelo direito são transformadores dos valores das condutas
sociais.
As reflexões ora apresentadas procuram apinhar de humanidade as palavras e
orações escritas, de maneira a conjugar a linguagem jurídico-técnica com a jurídicoartística, possibilitando ao leitor uma pitada de visão interdisciplinar, regada por
conceitos extraídos do pensamento da complexidade, difundido, notadamente, por
Edgar Morin1.
Dessa maneira, a presente pesquisa considera que todas as interfaces do direito
interagem com as do ser humano, que carrega em si o dom de ser independente, capaz
e bem-aventurado.
O interesse humano, em regra, começa a ser valorado na ordem social e, somente
após, ganha realce e status no mundo jurídico, que passa a protegê-lo no rol dos direitos
e garantias do homem, propiciando instrumentos jurídicos que promovam a sua defesa
e tutela.
Pois bem, esclarecendo-se, inicialmente, que o exercício de um direito não pode
ficar pendente indefinidamente, porque tal fato geraria, sem dúvida, uma instabilidade
social, desafia-se os institutos ora apreciados a defenderem a dignidade da pessoa
humana, destacada como fundamento maior da Constituição da República Federativa
do Brasil, e o consumidor, cuja defesa é prevista como um princípio geral da atividade
econômica, no art. 170, inciso V da Constituição da República Federativa do Brasil,
localizado “na ordem econômica e financeira nacional”.
Nesse contexto, a ordem pública exige que o titular do exercício de direitos e da
pretensão à propositura da ação observe o lapso temporal predeterminado para
exercitá-lo, garantindo a estabilidade econômico-social. A importância sempre
contemporânea da prescrição e da decadência enseja a pontual conceituação dos
institutos, matéria exposta a seguir.
1. MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. Trad. Eliane Lisboa. 3. ed. Porto Alegre: Sulina, 2007.
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2. COMPREENSÃO DOS INSTITUTOS:
DISTINÇÃO E CONCEITOS
Por primeiro, necessária a compreensão dos vocábulos jurídicos inércia e tempo, que
são comuns na conceituação dos institutos da decadência e da prescrição, mas que não
se confundem quanto aos seus objetivos e momentos de atuação. O tempo remete o
intérprete à questão da duração relativa das coisas, que institui no imaginário humano a
ideia de passado, presente e futuro, apontando a continuidade a que os acontecimentos
se sujeitam, determinando lapsos temporais ao exercício e à pretensão de defesa de
direitos. A inércia se mostra, por um lado, como uma antonímia do agir, uma atonia
que revela estagnação e indiferença, colocando o titular do exercício de direito e o do
exercício da ação, esmorecido, diante destas possibilidades que o ordenamento jurídico
lhe propicia e, de outro lado, pode servir de fundamento ao interesse público.
Extrai-se, das premissas acima, que na decadência a inércia diz respeito ao exercício
do direito e o tempo opera os seus efeitos desde o nascimento deste (direito), enquanto
que, na prescrição, a inércia diz respeito ao exercício da pretensão à propositura da ação
e o tempo opera os seus efeitos desde o nascimento desta, que, em regra, é posterior ao
nascimento do direito por ela protegido.
Prescrição2 é a extinção da pretensão à propositura de ação judicial possível, em
virtude da inércia de seu titular por um certo lapso de tempo, conforme dispõe o § 194
do BGB (Código Civil alemão), que estabelece estarem sujeitas à prescrição somente as
pretensões, tendo início a contagem de referido prazo, do nascimento da pretensão.
No debate clássico travado entre ela (prescrição) e a justiça, a interpretação mais
apropriada é a de que o instituto, certamente, serve à justiça, não cuidando, dessa
maneira, de apenar a desídia do titular de um direito, fundamento este equivocado
e afastado pela doutrina contemporânea, que alicerça a prescrição não mais na
punição do credor, mas sim no direito e na proteção do devedor, o qual não pode
ficar, eternamente, em estado de sujeição ao credor, o que, per se, coloca a prescrição a
serviço da justiça ao fixar prazos para o exercício das pretensões do credor. O instituto
promove a estabilidade e harmonia social, protegendo o interesse social.
A prescrição, de maneira absoluta, não teria a ver com o direito, já que este pode
2. Ressalte-se que a prescrição referida neste artigo refere-se à prescrição extintiva ou propriamente dita, uma vez
que a prescrição aquisitiva, em tese, é instituto afeto ao direito das coisas.
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sobreviver àquela, conforme leciona Pontes de Miranda3. Exemplo dessa situação é
extraído da norma do artigo 882 do Código Civil Brasileiro vigente, que dispõe não
poder repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou seja, quem paga dívida
prescrita não pode acionar o credor, em razão de tê-la solvido, o que impõe ausência de
prescrição de direito, nesta situação.
A decadência, por sua vez, refere-se à extinção do direito pela inércia de seu titular,
quando sua eficácia é, de origem, subordinada à condição de seu exercício dentro de um
prazo prefixado, tendo este se esgotado sem que referido exercício se tenha verificado.
Para Antônio Luis Câmara Leal4, decadência ou caducidade é “a extinção ou
perecimento do direito pelo decurso do prazo fixado ao seu exercício, sem que o seu titular
o tivesse exercido”. Logo, para o autor, a extinção do direito é o principal efeito operado
pela decadência, decorrendo dessa situação, o desaparecimento da ação que deveria
assegurar referido direito, ou seja, quando ação e direito não se identificam, não ocorre
o nascimento da ação, que perece juntamente com o direito, na ocasião em que com
ele, simultaneamente, nasce.
Agnelo Amorim Filho5 leva em conta a espécie de ação relacionada à proteção
do direito, para estabelecer critério prático de distinção dos institutos, lecionando
que: a) se a ação é condenatória, o prazo é de prescrição, prescrevendo a pretensão a
que referida ação corresponde; b) se a ação é constitutiva, tendo o prazo de exercício
legalmente instituído, está-se diante da decadência, sendo que o direito potestativo
(cujo exercício propicia a extinção, modificação ou criação de certa relação jurídica, e
não uma prestação do sujeito passivo) é que enseja a propositura da ação constitutiva;
c) se a ação é declaratória, a prescrição não ocorre, tendo em vista ser ela imprescritível,
o mesmo acontecendo com as pretensões exercidas por meio de ações constitutivas
que não possuem prazo de exercício, legalmente fixado.
Pois bem, fixados os conceitos e as principais distinções - entre os dois institutos
apreciados - pela doutrina clássica e contemporânea, observa-se, ainda, que: a) a
decadência tem por efeito extinguir o direito, e a prescrição extinguir a pretensão à
3. Tratado de Direito Privado, § 662, nº 9, 4ª e, SP: RT, 1983, p. 106.
4. Da prescrição e da decadência: Teoria Geral de Direito Civil, nº 71 e 86, 4ª e., RJ: Forense, 1982, pp. 99 e 115,
respectivamente.
5. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista
dos Tribunais, v. 744, pp 725-750, SP: RT, out. 1997.
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propositura da ação; b) a decadência, em regra, não se suspende nem se interrompe,
e só é impedida pelo exercício do direito a ela sujeito; a prescrição pode ser suspensa
ou interrompida por causas preclusivas, previstas em lei; c) a decadência corre contra
todos, não prevalecendo contra ela as isenções criadas pela lei em favor de certas
pessoas; a prescrição não corre contra todos, havendo pessoas que, por consideração
de ordem especial da lei, ficam isentas de seus efeitos; d) a decadência resultante de
prazo extintivo imposto pela lei não pode ser renunciada pelas partes, nem depois de
consumada; a prescrição, depois de consumada, pode ser renunciada pelo prescribente.
3. PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA NO CÓDIGO DE DEFESA
DO CONSUMIDOR (CDC)
As normas jurídicas contidas no Código de Defesa do Consumidor são cristalinas no
tocante à intenção de restabelecer o equilíbrio nas relações de consumo, o que não significa
a ausência de prazos a serem cumpridos pelo consumidor6 em prol dos seus direitos.
Os institutos da prescrição e da decadência são fundamentais às relações sociais, já
que podem propiciar a extinção de pretensões e de direitos, respectivamente. Assim,
em última análise, afastam de maneira definitiva, pela inércia, a proteção legal a que
o consumidor faz jus. São, portanto, institutos que têm por escopo a estabilidade e a
segurança jurídica.
Nesse diapasão, dispõe o artigo 26 do Código de Defesa do Consumidor:
Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em:
I - trinta dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos não duráveis;
II - noventa dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos duráveis.
§ 1° Inicia-se a contagem do prazo decadencial a partir da entrega efetiva do produto
ou do término da execução dos serviços.
6. Na lição de José Geraldo Brito Filomeno, “o conceito de consumidor adotado pelo CDC foi exclusivamente de caráter
econômico, ou seja, levando-se em consideração tão-somente o personagem que no mercado de consumo adquire
bens ou então contrata a prestação de serviços, como destinatário final, pressupondo-se que assim age com vistas ao
atendimento de uma necessidade própria e não para o desenvolvimento de uma outra atividade negocial.” (GRINOVER,
Ada Pellegrini [et al]. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto, São
Paulo: Forense Universitária, 2005, p. 27).
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§ 2° Obstam a decadência:
I - a reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o
fornecedor de produtos e serviços até a resposta negativa correspondente, que deve
ser transmitida de forma inequívoca;
II - (Vetado) a reclamação formalizada perante os órgãos ou entidades com
atribuições de defesa do consumidor, pelo prazo de noventa dias.
III - a instauração de inquérito civil, até seu encerramento.
§ 3° Tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que
ficar evidenciado o defeito.
A norma contida no artigo 26 do Código de Defesa do Consumidor dispõe que o direito
do consumidor de reclamar por vícios7 aparentes ou ocultos dos produtos ou serviços
se extingue em: 1) trinta dias, tratando-se de fornecimento de produtos ou serviços não
duráveis; 2) em noventa dias, tratando-se de fornecimento de produtos ou serviços duráveis.
Segundo Zelmo Denari8, a qualificação dos produtos ou serviços como de consumo
duráveis ou não duráveis envolve a sua maior ou menor durabilidade, mensurada em
termos de tempo de consumo. Exemplifica o referido autor dizendo que os produtos
alimentares, de vestuário e os serviços de dedetização não são duráveis, ao passo que os
eletrodomésticos, veículos automotores e os serviços de construção civil são duráveis.
Cumpre esclarecer que os prazos referidos no artigo 26 do CDC são considerados
pela doutrina majoritária como de natureza decadencial. Trata-se da conhecida
“garantia legal” de produtos/serviços, obrigatória e inderrogável, decorrente do próprio
sistema legal de proteção do consumidor.
Ao lado dessa garantia legal, existe a chamada garantia contratual, consistente em
um prazo facultativo e deliberadamente concedido pelos fornecedores de produtos e/
ou serviços, visando a atrair consumidores para a sua aquisição, sob o argumento da
boa qualidade daquilo que produzem.
7. Vício é a característica negativa de qualidade ou quantidade que torna o produto/serviço impróprio ao
consumo (inviabilizando o seu uso), inadequado ao consumo (dificultando o seu uso) ou que diminui o seu valor.
8. GRINOVER, Ada Pellegrini [et al]. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do
anteprojeto, São Paulo: Forense Universitária, 1999, p. 199.1
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Vale esclarecer que, para a maioria da doutrina consumerista, o prazo de garantia
legal somente começa a ser contado após cessado o prazo de garantia contratual. Em
outras palavras, não há o risco da vigência de duas garantias ao mesmo tempo, a legal e
a contratual. Referido entendimento encontra lastro, inclusive, no artigo 50 do CDC, que
estabelece que “a garantia contratual é complementar à legal e será conferida mediante
termo escrito.”
Observe-se que esse entendimento é amplamente mais favorável ao consumidor.
Explica-se. Imagine-se que o consumidor tenha adquirido um bem durável, cuja
garantia legal seja de 90 (noventa) dias, nos termos do artigo 26, inciso II do CDC, e cuja
garantia contratual seja fixada pelo prazo de 1 (um) ano. Pelo entendimento majoritário
da doutrina, primeiro o consumidor estará protegido pela garantia contratual de 1
(um) ano, sendo que, após se escoar esse prazo, começará a valer a garantia legal de
90 (noventa) dias, totalizando um ano de noventa dias de garantia do bem durável
adquirido. Evidentemente, esse entendimento é mais favorável ao consumidor do que
se imaginar uma relação de continência, onde o prazo de 90 (noventa) dias estaria
contido no prazo de 1 (um) ano, totalizando apenas 1 (um) ano de garantia.
Em suma, a garantia total de um produto ou serviço equivale à soma da garantia
contratual com a garantia legal, confirmando assim, que a interpretação mais favorável
ao consumidor encontra guarida no Código de Defesa do Consumidor, o qual estabelece,
em seu artigo 47, que as cláusulas contratuais devem ser interpretadas de maneira mais
favorável ao consumidor.
Em se tratando de vícios aparentes, o prazo decadencial se inicia a partir da efetiva
entrega do produto ou do término da execução dos serviços (art. 26, § 1° do CDC). É o
chamado termo inicial da decadência.
Tratando-se de vícios ocultos, inicia-se o prazo decadencial a partir do momento em
que estes vícios se tornam perceptíveis (art. 26, § 1° do CDC).
Salienta-se, ainda, que o vício aparente é aquele de fácil constatação, enquanto
o vício oculto é aquele de complexa ou dificultosa percepção, que não pode ser
visualizado de pronto.
Se o vício oculto se manifesta durante o prazo da garantia do produto ou serviço,
o consumidor poderá fazer uso das alternativas sancionatórias previstas no artigo 18,
incisos I, II e III, do CDC, consistentes em:
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Art. 18, § 1°: Não sendo o vício sanado no prazo máximo de trinta dias, pode o
consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:
I - a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso;
II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo
de eventuais perdas e danos;
III - o abatimento proporcional do preço.
Uma parte da doutrina considera que, se o vício oculto se exterioriza somente após o
termo contratual de garantia, o fornecedor não pode ser compelido a substituir o produto
defeituoso, restituir imediatamente a quantia paga ou reduzir proporcionalmente o
preço. Referido entendimento é exposto por Zelmo Denari9, justificando o bom senso e
o elementar critério de justiça.
Contudo, saliente-se que há entendimento doutrinário e jurisprudencial defendendo
a possibilidade de se responsabilizar o fornecedor de produtos ou serviços que
contenham vícios, ainda que já expirado o termo final de garantia, conforme já decidiu o
STJ no REsp 984.106/SC, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado
em 04/10/2012, DJe 20/11/2012:
DIREITO DO CONSUMIDOR E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO
E RECONVENÇÃO. JULGAMENTO REALIZADO POR UMA ÚNICA SENTENÇA.
RECURSO DE APELAÇÃO NÃO CONHECIDO EM PARTE. EXIGÊNCIA DE DUPLO
PREPARO. LEGISLAÇÃO LOCAL. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 280/STF. AÇÃO DE
COBRANÇA AJUIZADA PELO FORNECEDOR. VÍCIO DO PRODUTO. MANIFESTAÇÃO
FORA DO PRAZO DE GARANTIA. VÍCIO OCULTO RELATIVO À FABRICAÇÃO.
CONSTATAÇÃO PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. RESPONSABILIDADE DO
FORNECEDOR. DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA. EXEGESE DO ART. 26, § 3º, DO
CDC.
1. (...).
2. (...).
3. No mérito da causa, cuida-se de ação de cobrança ajuizada por vendedor
9. GRINOVER, Ada Pellegrini [et al]. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do
anteprojeto, São Paulo: Forense Universitária, 1999, p. 201.
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de máquina agrícola, pleiteando os custos com o reparo do produto vendido.
O Tribunal a quo manteve a sentença de improcedência do pedido deduzido
pelo ora recorrente, porquanto reconheceu sua responsabilidade pelo vício que
inquinava o produto adquirido pelo recorrido, tendo sido comprovado que se
tratava de defeito de fabricação e que era ele oculto. Com efeito, a conclusão
a que chegou o acórdão, sobre se tratar de vício oculto de fabricação, não se
desfaz sem a reapreciação do conjunto fático-probatório, providência vedada
pela Súmula 7/STJ. Não fosse por isso, o ônus da prova quanto à natureza do vício
era mesmo do ora recorrente, seja porque é autor da demanda (art. 333, inciso I,
do CPC) seja porque se trata de relação de consumo, militando em benefício do
consumidor eventual déficit em matéria probatória.
4. O prazo de decadência para a reclamação de defeitos surgidos no produto
não se confunde com o prazo de garantia pela qualidade do produto - a qual
pode ser convencional ou, em algumas situações, legal. O Código de Defesa do
Consumidor não traz, exatamente, no art. 26, um prazo de garantia legal para o
fornecedor responder pelos vícios do produto. Há apenas um prazo para que,
tornando-se aparente o defeito, possa o consumidor reclamar a reparação, de
modo que, se este realizar tal providência dentro do prazo legal de decadência,
ainda é preciso saber se o fornecedor é ou não responsável pela reparação do
vício.
5. Por óbvio, o fornecedor não está, ad aeternum, responsável pelos produtos
colocados em circulação, mas sua responsabilidade não se limita pura e
simplesmente ao prazo contratual de garantia, o qual é estipulado unilateralmente
por ele próprio. Deve ser considerada para a aferição da responsabilidade do
fornecedor a natureza do vício que inquinou o produto, mesmo que tenha ele se
manifestado somente ao término da garantia.
6. Os prazos de garantia, sejam eles legais ou contratuais, visam a acautelar o
adquirente de produtos contra defeitos relacionados ao desgaste natural da
coisa, como sendo um intervalo mínimo de tempo no qual não se espera que
haja deterioração do objeto. Depois desse prazo, tolera-se que, em virtude do
uso ordinário do produto, algum desgaste possa mesmo surgir. Coisa diversa é
o vício intrínseco do produto existente desde sempre, mas que somente veio a
se manifestar depois de expirada a garantia. Nessa categoria de vício intrínseco
certamente se inserem os defeitos de fabricação relativos a projeto, cálculo
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estrutural, resistência de materiais, entre outros, os quais, em não raras vezes,
somente se tornam conhecidos depois de algum tempo de uso, mas que, todavia,
não decorrem diretamente da fruição do bem, e sim de uma característica oculta
que esteve latente até então.
7. Cuidando-se de vício aparente, é certo que o consumidor deve exigir a
reparação no prazo de noventa dias, em se tratando de produtos duráveis,
iniciando a contagem a partir da entrega efetiva do bem e não fluindo o citado
prazo durante a garantia contratual. Porém, conforme assevera a doutrina
consumerista, o Código de Defesa do Consumidor, no § 3º do art. 26, no que
concerne à disciplina do vício oculto, adotou o critério da vida útil do bem,
e não o critério da garantia, podendo o fornecedor se responsabilizar pelo
vício em um espaço largo de tempo, mesmo depois de expirada a garantia
contratual.
8. Com efeito, em se tratando de vício oculto não decorrente do desgaste
natural gerado pela fruição ordinária do produto, mas da própria fabricação,
e relativo a projeto, cálculo estrutural, resistência de materiais, entre outros,
o prazo para reclamar pela reparação se inicia no momento em que ficar
evidenciado o defeito, não obstante tenha isso ocorrido depois de expirado o
prazo contratual de garantia, devendo ter-se sempre em vista o critério da vida
útil do bem.
9. Ademais, independentemente de prazo contratual de garantia, a venda
de um bem tido por durável com vida útil inferior àquela que legitimamente
se esperava, além de configurar um defeito de adequação (art. 18 do CDC),
evidencia uma quebra da boa-fé objetiva, que deve nortear as relações
contratuais, sejam de consumo, sejam de direito comum. Constitui, em outras
palavras, descumprimento do dever de informação e a não realização do próprio
objeto do contrato, que era a compra de um bem cujo ciclo vital se esperava, de
forma legítima e razoável, fosse mais longo.
10. Recurso especial conhecido em parte e, na extensão, não provido.
(STJ - REsp 984.106/SC, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA,
julgado em 04/10/2012, DJe 20/11/2012)
Questão interessante que se extrai tanto da doutrina quanto da jurisprudência
reside no fato de que, a despeito dos prazos de garantia contratual e legal existentes,
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ainda que o produto ou serviço apresente defeito após expirado o prazo de garantia
total10, haverá responsabilidade do fornecedor, se ficar comprovado que o vício oculto
decorreu de problemas no projeto e na fabricação (e não do desgaste natural do seu
uso pelo consumidor), diminuindo-lhe a vida útil.
Em outras palavras, a interpretação que deve ser conferida ao § 3º do artigo 26 do
CDC (“Tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que ficar
evidenciado o defeito”), relaciona-se menos ao critério da garantia e mais ao critério da
vida útil do bem, esta entendida como o lapso temporal que legitimamente se espera,
de ser o bem fruível sem apresentar qualquer desconformidade.
Conforme já decidiu o E. TJSP11, “não se pode confundir vício oculto com desgaste
natural decorrente do uso. Aquele gera ao adquirente o direito de rescindir o contrato ou
abater do preço o valor do defeito, mas pelo segundo ele nada pode cobrar.”
Obviamente, para se evitar abusos na invocação dessa teoria por parte do
consumidor, deve-se avaliar qual é o lapso temporal de vida útil do produto/serviço
objeto no caso concreto, com base no critério interpretativo da razoabilidade e nas
cláusulas gerais da probidade e da boa-fé, além da vedação ao enriquecimento
sem causa. Vale dizer: não é de se admitir, por exemplo, que não exista um prazo
para o consumidor exercer o seu direito de reclamação por vício oculto, isto é, que
o fornecedor seja “eternamente” responsável por qualquer vício que surja naquele
produto ou serviço adquirido. A prevalecer essa tese, o consumidor poderia até
mesmo demandar o fornecedor a responder por vícios decorrentes de desgaste
natural na utilização do bem, o que, como há de se perceber, geraria enriquecimento
sem causa em favor do consumidor, ofendendo, inclusive, o princípio da boa-fé nas
relações consumeristas.
Acerca do assunto, pode-se conferir o acórdão do TJSP que, adotando o critério da
vida útil do bem, indefere pedido de devolução de veículo adquirido com nove anos
de uso, sob o argumento de que algumas peças do carro naturalmente apresentam
desgaste depois desse lapso temporal de utilização:
10. Com a expressão “garantia total”, alude-se à soma dos prazos de garantia contratual e legal incidentes sobre
um produto/serviço.
11. (TJSP - Apelação nº 0113165-32.2008.8.26.0006, Relator(a): Arantes Theodoro; Comarca: São Paulo; Órgão julgador:
36ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 13/11/2014; Data de registro: 14/11/2014)
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Compra e venda de veículo automotor. Ação de rescisão contratual com pedido
cumulado de indenização por danos morais. Veículo com nove anos de fabricação.
Desgaste natural consequente ao uso e esgotamento da vida útil de componentes.
Quadro que não podia ser classificado como vício oculto. Improcedência da ação
que se impunha. Apelo provido. (TJSP, Apelação nº 0113165-32.2008.8.26.0006 Relator(a): Arantes Theodoro; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 36ª Câmara de
Direito Privado; Data do julgamento: 13/11/2014; Data de registro: 14/11/2014).
O artigo 26, § 2° do CDC, preleciona as hipóteses de obstaculização da decadência.
São elas: (i) a reclamação formulada pelo consumidor até a resposta negativa do
fornecedor e (ii) a instauração de inquérito civil a cargo do Ministério Público, até seu
encerramento.
Para a maioria da doutrina consumerista, este prazo de obstaculização da
decadência é suspensivo, ou seja, terminada a suspensão, o prazo retoma o seu
curso, com aproveitamento do tempo anteriormente decorrido. E a explicação para
esta consideração é um tanto quanto lógica: uma vez que o legislador previu um
termo final (dies ad quem, como, por exemplo, a resposta negativa do fornecedor
e o encerramento do inquérito civil), seu propósito não foi interromper, mas
simplesmente suspender, uma vez que, na interrupção, não há possibilidade de haver
o estabelecimento prévio de um termo final. Referido entendimento também já foi
manifestado pelo STJ, através do REsp 579.941/RJ, Rel. Ministro CARLOS ALBERTO
MENEZES DIREITO, Rel. p/ Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA,
julgado em 28/06/2007, DJe 10/12/2008:
Consumidor. Rescisão de contrato de compra e venda. Vícios aparentes. Termo a
quo do prazo decadencial. - Trata-se, na hipótese, da fixação do termo inicial para
a contagem do prazo decadencial de garantia, determinado no CDC, quando,
durante o período de garantia ofertado pela concessionária, veículo novo que
apresenta defeito é encaminhado, recorrentemente, à rede autorizada, voltando
sempre com o mesmo defeito.
- Se ao término do prazo de garantia contratado, o veículo se achava retido
pela oficina mecânica para conserto, impõe-se reconhecer o comprovado
período que o automóvel passou nas dependências da oficina mecânica
autorizada, sem solução para o defeito, como de suspensão do curso do
prazo de garantia.
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
158
- Prorroga-se, nessa circunstância, o prazo de garantia inicialmente ofertado, até a
efetiva devolução do veículo ao consumidor, sendo este momento fixado como dies
a quo do prazo decadencial para se reclamar vícios aparentes em produtos duráveis.
Recurso não conhecido.
Já o instituto da prescrição está regulado no artigo 27 do CDC, in verbis:
Art. 27. Prescreve em cinco anos a pretensão à reparação pelos danos causados por
fato do produto ou do serviço prevista na Seção II deste Capítulo, iniciando-se a
contagem do prazo a partir do conhecimento do dano e de sua autoria. Parágrafo
único. (Vetado) Interrompe-se o prazo de prescrição do direito de indenização pelo
fato do produto ou serviço nas hipóteses previstas no parágrafo 1° do artigo anterior,
sem prejuízo de outras disposições legais.
O citado dispositivo normativo, para a maioria da doutrina, se refere ao instituto da
prescrição, aplicável nos casos de responsabilidade por danos, isto é, nos acidentes causados
por defeitos12 dos produtos ou serviços, o que para Zelmo Denari, não se confirma, já que
para ele a hipótese versada no citado art. 27 do CDC é de decadência, e não de prescrição,
tratando-se de perecimento de direitos subjetivos em via de constituição13.
Corrobora o entendimento exposto por Zelmo Denari o aresto do Tribunal de Justiça
do Estado de São Paulo: “Decadência – Indenização – Consumidor – Responsabilidade
pelo fato do serviço – Danos materiais e morais em virtude de serviços defeituosamente
prestados – Prazo decadencial de cinco anos – Inteligência do art. 27 da Lei n. 8.078/90 –
Inaplicabilidade do art. 26 do mesmo diploma legal (TJSP – RT 743/258)”.
De qualquer maneira, seja o lapso temporal conceituado como decadência ou
como prescrição, importa saber que o prazo extintivo é de cinco anos, contado do
conhecimento do dano e de sua autoria, ressaltando-se, ainda, que o entendimento
doutrinário majoritário assenta-se na aplicação das causas obstaculizadoras do artigo
26, § 2° do CDC, no artigo 27 do mesmo diploma legal14.
12. Defeito é mais que o vício, o que levou alguns autores a conceituá-lo como um “vício potencializado”. O
defeito é a característica negativa do produto/serviço que extrapola o âmbito de prejudicialidade, chegando até
mesmo a atingir a pessoa do consumidor ou seus bens.
13. GRINOVER, Ada Pellegrini [et al]. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do
anteprojeto, São Paulo:Forense Universitária, 1999, p. 202.
14. Segundo informações do próprio Zelmo Denari, in GRINOVER, Ada Pellegrini [et al]. Código Brasileiro de
DOUTRINA . DIREITO CIVIL
PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA NO CENÁRIO DO DIREITO DO CONSUMIDOR:
RELAÇÃO ENTRE O DIREITO E O TEMPO NA CONTEMPORANEIDADE
159
Contudo, em sentido contrário ao acima afirmado, William Santos Ferreira15 assim
se manifesta:
Não é cabível, como defendem alguns, a aplicação do parágrafo 2° do art. 26 (que
trata das causas obstativas da decadência), porque não há no direito positivado
a remissão indispensável, já que esta foi vetada, não havendo qualquer outro
dispositivo que possibilite através de uma interpretação sistemática a aplicação
das causas obstativas da decadência, até porque estas pelo próprio emprego de
terminologia específica ao instituto da decadência (‘obstam a decadência’) não
admitem uma interpretação extensiva.
Continua o autor, afirmando que “ao que nos parece, incidiriam as causas
suspensivas, interruptivas e impeditivas da prescrição estampadas no Código Civil,
porque estas, em princípio, não colidem com as disposições insertas no Código de
Defesa do Consumidor.” 16
Possível questionamento pode ser feito em relação à prescrição e decadência
previstas no atual Código Civil e seu suposto conflito em relação aos mesmos institutos
previstos no CDC.
O artigo 205 do Código Civil estabelece ser a prescrição, via de regra, de dez anos,
quando a lei não lhe fixar prazo menor.
O artigo 206, em seu § 3°, inciso V do Código Civil, dispõe que prescreve em três anos
a pretensão de reparação civil, o que poderia gerar um eventual conflito com o prazo
prescricional de cinco anos disposto no artigo 27 do CDC.
Assim, denota-se um conflito aparente entre os prazos prescricionais previstos
no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil. Todavia, não se deve
esquecer que tais relações têm origens diferentes, sendo inconcebível a confusão
entre ambas.
Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto, São Paulo:Forense Universitária, 1999, p. 203.
15. FERREIRA, Willian Santos. Prescrição e Decadência no Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do
Consumidor, São Paulo:RT, Abril/Junho de 1994, p. 94.
16. FERREIRA, Willian Santos. Prescrição e Decadência no Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do
Consumidor, São Paulo:RT, Abril/Junho de 1994, p. 94
160
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
Entende-se, portanto, que, quando a relação é consumerista17, aplicam-se os prazos
dispostos no Código de Defesa do Consumidor; e se a relação for aquela paritária (calcada
na igualdade entre as partes), a que se refere o Direito Privado, civil ou empresarial,
aplicam-se os prazos dispostos no Código Civil.
Em relação aos prazos decadenciais previstos no artigo 26 do CDC, tem-se que, pelo
princípio da especificidade da norma consumerista, sua aplicação revela-se inconteste.
O cerne da dúvida reside na aplicação (ou não) do prazo previsto no artigo 27 do
CDC para os casos de vícios do produto ou do serviço, uma vez que o mencionado
artigo apenas aduz expressamente ser aplicável “à reparação pelos danos causados por
fato do produto ou do serviço”.
Por interpretação analógica (art. 4° da Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro – Decreto-Lei n° 4.657/42), é plausível o entendimento de aplicação do prazo
prescricional de cinco anos para hipóteses de vício do produto ou do serviço (artigo 27
do CDC).
Todavia, levando-se em conta a proteção do consumidor insculpida no artigo 5°,
inciso XXXII, da Constituição Federal e, sabendo ser este a parte mais vulnerável18
da relação de consumo, merecendo, pois, tratamento diferenciado, não se pode
simplesmente ignorar a corrente doutrinária que sustenta ser o prazo prescricional
decorrente de vício do produto ou serviço aquele estabelecido no artigo 205 do Código
Civil, qual seja, dez anos. Assim, através de uma interpretação constitucional, pode-se
sustentar a aplicação do maior prazo prescricional para o consumidor exercer o seu
direito de pretensão à propositura da ação.
Essa discussão acima travada só se faz pertinente quando se considera que o
prazo previsto no artigo 27 do CDC, efetivamente, é prescricional. Entendido, porém,
que o prazo é decadencial, deve-se lembrar que não há um “prazo geral decadencial”
estabelecido no Código Civil.
17. Relação de consumo é aquela que traz, em seus polos subjetivos, o consumidor e o fornecedor, tendo por
objeto o fornecimento de produtos e/ou a prestação de serviços, conceito este extraído da análise conjunta dos
artigos 2° e 3° do CDC.
18. Cabe lembrar que vulnerabilidade é instituto de direito material, gerando presunção absoluta em favor
do consumidor. Já a hipossuficiência é instituto de direito processual, analisado no caso concreto, em regra
dependendo do deferimento do juiz e ostentando presunção relativa, ou seja, admitindo-se prova em contrário.
DOUTRINA . DIREITO CIVIL
PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA NO CENÁRIO DO DIREITO DO CONSUMIDOR:
RELAÇÃO ENTRE O DIREITO E O TEMPO NA CONTEMPORANEIDADE
161
Veja-se que a interpretação constitucional dada à solução da questão é permeada
por uma visão interdisciplinar, garantida por interpretação jurídica contemporânea,
a qual, percebendo a amplitude e complexidade do sistema sócio-jurídico, procura
estudar e compreender, transversalmente, teorias, disciplinas, e ciências que possam
enriquecer as realidades da vida e, com isso, corroborar a busca e a efetivação dos
valores da essência humana.
4. NOTAS FINAIS
O presente texto, objetiva diferenciar claramente os institutos da prescrição e da
decadência, a fim de melhor explicitar a natureza dos prazos dispostos no Código de
Defesa do Consumidor.
Após situar, conceituar e contextualizar os institutos da decadência e da prescrição,
extraem-se algumas conclusões que podem significar maior celeridade na aplicação
do direito, no plano do direito do consumidor, o que implica homenagear a dignidade
humana, garantindo estabilidade ao ordenamento jurídico.
Extrai-se que o prazo decadencial, disposto no artigo 26 do CDC, para casos de
vícios do produto/serviço não suscita grandes dúvidas, sendo sua redação dotada de
um maior primor técnico em relação à redação do artigo 27 do mesmo diploma.
Referido artigo 27 do CDC dispõe sobre o prazo prescricional para o exercício do
direito de ação, que resulta de danos causados por produtos/serviços defeituosos,
havendo algumas interpretações divergentes. Parte da doutrina entende que a
disposição do artigo 27 do CDC corresponde, em verdade, a um prazo de natureza
decadencial, e não prescricional. Outros entendem que o prazo do artigo 27 do CDC é
de natureza prescricional e complementam dizendo que o prazo de cinco anos também
se aplica aos casos de vícios do produto/serviço. Há ainda quem sustente que, levandose em conta a especial proteção constitucional conferida ao consumidor, o prazo
prescricional para as situações relativas aos vícios do produto/serviço é aquele disposto
no artigo 205 do Código Civil, ou seja, dez anos.
Ressalta-se, ainda, relativamente ao vício oculto, que a doutrina e a jurisprudência
acolhem a teoria de que, enquanto o produto/serviçi estiver no prazo da sua vida
útil, o consumidor possui proteção em face do fornecedor. Evidentemente, o lapso
temporal de vida útil de cada produto/serviço deve ser definido no caso concreto, à
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
162
luz da razoabilidade, garantindo-se a proteção do vulnerável na relação de consumo,
ao mesmo tempo em que se busca evitar o enriquecimento sem causa do consumidor,
caso tal prazo seja efetivamente exagerado.
O Direito, por ser considerado uma ciência humana em permanente transformação,
admite várias interpretações acerca de um mesmo assunto, não se vislumbrando, em
tese, a existência de uma interpretação totalmente correta em detrimento de outra
absolutamente equivocada19.
A pesquisa compila algumas posições doutrinárias e jurisprudenciais, algumas
majoritárias, outras não, ficando a escolha da “melhor”, a cargo de cada operador do
Direito, e dependente da sua ideologia e do interesse do patrocinador.
Por derradeiro, o presente artigo almeja ao menos honrar a lição de Dylan
Thomas20, para quem “o conhecimento exerce-se na noite silenciosa”, sobressaindo
do texto, ora escrito, “páginas de espuma/Não para o homem orgulhoso/Que se
afasta da lua enfurecida/Nem para os mortos de alta estirpe/Com seus salmos e
rouxinóis,/Mas para os amantes, seus braços/Que enlaçam as dores dos séculos.(...)”.
Afinal, o Direito e o homem caminham juntos para alcançar a paz, que pode ser
percebida, em tempos de violência e de não violência. O tempo e o espaço são figuras
abstratas aos olhos do homem e, ao raciocínio do direito, afetam pretensões e direitos
almejados pelo homem, conforme argumentado no presente texto.
5. REFERÊNCIAS
AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da
decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista dos Tribunais, v.
744, pp 725-750, SP: RT, out. 1997.
CÂMARA LEAL, Antônio Luis. Da prescrição e da decadência: Teoria Geral de
Direito Civil, nº 86, 4ª e., RJ: Forense, 1982.
19. Neste sentido, extrai-se a recente discussão, em algumas universidades brasileiras, acerca do estudo da
“lógica jurídica”, instituto pelo qual toda interpretação é válida, desde que sejam respeitadas proposições lógicas
basilares do sistema jurídico.
20.THOMAS, Dylan. Em meu ofício ou arte taciturna. Trad. Ivan Junqueira. Disponível em: http://www.culturapara.
art.br/opoema/dylanthomas/dylanthomas.htm. Data de acesso: ago de 2011.
DOUTRINA . DIREITO CIVIL
PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA NO CENÁRIO DO DIREITO DO CONSUMIDOR:
RELAÇÃO ENTRE O DIREITO E O TEMPO NA CONTEMPORANEIDADE
163
FERREIRA, William Santos. Prescrição e Decadência no Código de Defesa do
Consumidor [Revista de Direito do Consumidor], São Paulo:RT, Abril/Junho de 1994.
GRINOVER, Ada Pellegrini [et al]. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor
comentado pelos autores do anteprojeto. São Paulo:Forense Universitária,
edições de 1999 e 2005.
GUGLINSKI, Vitor. Jurisprudência: Vício oculto. Defeito após garantia. Vida
útil do produto (REsp 984.106-SC). Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n.
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MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito Privado, § 662, nº 9, 4ª e, SP: RT, 1983.
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Tradução de Maria D. Alexandre e Maria Alice
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______.Introdução ao Pensamento Complexo. Trad. Eliane Lisboa. 3. ed. Porto
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VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil, São Paulo: Editora Atlas, 2004.
VILLAS BÔAS, Regina Vera. “Um olhar transverso e difuso aos Direitos Humanos
de terceira dimensão: a solidariedade concretizando o dever de respeito à
ecologia e efetivando o postulado da dignidade da condição humana”. Revista de
Direito Privado - Ed. Revista dos Tribunais – Ano 13 - nº 51 – Julho/Setembro – 2012
– Coordenação de Nelson Nery e Rosa Maria de Andrade Nery.
_____. Violência Ética e Socioambiental: macula dignidade da condição humana
e desafia a proteção dos interesses difusos e coletivos, in Obra Coletiva” Direito e a
Dignidade Humana: Aspectos éticos e socioambientais” – Orgs: Consuelo Yoshida
e Lino Rampazzo, Campinas, SP: Editora Alínea, 2012 (Cap. 3º - p. 101 a 122) – ISBN
978-85-7516-599-7
_____. Concretização dos postulados da Dignidade da Condição Humana e da
Justiça – Revista de Direito Privado – Ed. Rev. dos Tribunais, coord. Nelson Nery Jr. e
Rosa Maria Nery, SP: Ed. RT. Ano 12, nº 47 – jul.-set/2011.
_____. Apontamentos sobre o código civil vigente. Revista Direito & paz, do
Centro Universitário Salesiano de São Paulo, nº 09, Ano 05, Lorena - SP, p. 129-156, 2º
Sem.2003.
DIREITO DE FAMÍLIA
O CASAMENTO NO DIREITO
INTERNACIONAL PRIVADO NO BRASIL
ANDRÉ DE CARVALHO RAMOS
Professor de Direito Internacional e Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
(Largo São Francisco). Doutor e Livre-Docente em Direito Internacional (USP). Procurador Regional da República.
Procurador Regional Eleitoral do Estado de São Paulo (2012-2016).
SUMÁRIO
1. Introdução: a proposta do artigo; 2. A lei brasileira aplicável ao casamento: celebração e impedimentos; 3. O
domicílio dos cônjuges e a interpretação conforme aos direitos humanos da LINDB; 4. A lei aplicável aos casos de
invalidade do casamento; 5. A lei aplicável ao regime de bens; 6. A mudança do regime de bens; 7. O casamento
de estrangeiros; 8. O divórcio e a evolução do Direito Internacional Privado brasileiro; 9. A lei aplicável ao divórcio;
10. Conclusão.
RESUMO
ABSTRACT
O artigo analisa o desenvolvimento do tratamento
ao casamento e temas correlatos no âmbito do
Direito Internacional Privado de matriz legal no
Brasil, sob o foco da interpretação conforme aos
direitos humanos.
This article analyses the development of the
marriage legal treatment in Brazil and some
related issues, focusing on a human rights
approach of this matter.
PAVRAS-CHAVE
KEYWORDS
Direito Internacional Privado. Lei de Introdução
às Normas do Direito Brasileiro. Direito de
Família. Casamento.
Private International Law. Introduction of
Brazilian Law Statute. Matrimonial Law. Marriage.
168
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
1. INTRODUÇÃO: A PROPOSTA DO ARTIGO
O Direito Internacional Privado (DIPr) deve levar em consideração a
jusfundamentalização do direito das famílias, que abarca formas, como a união estável,
união homoafetiva, família monoparental etc., e ainda é regulado pela promoção da
dignidade humana e igualdade de direitos entre os indivíduos (homens e mulheres).
A Constituição de 1988 prevê que um dos fundamentos do Estado Democrático de
Direito brasileiro é a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Também determina que
é dever do Estado a proteção da família (art. 226), assegurando a igualdade entre os
cônjuges (art. 226, § 6º)1.
No plano internacional, a igualdade de direitos no direito de família é prevista no
art. XVI da Declaração Universal de Direitos Humanos2, no art. 23 do Pacto Internacional
dos Direitos Civis e Políticos3 e o art. 16 da Convenção da ONU pela Eliminação de toda
forma de discriminação contra a mulher4.
1. Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...); § 6º O casamento civil pode ser
dissolvido pelo divórcio. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 66, de 2010).
2. Art. XVI - Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm
o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua
duração e sua dissolução. 2. O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes.
3. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado.
3. Artigo 23 - 1. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e terá o direito de ser protegida pela
sociedade e pelo Estado. 2. Será reconhecido o direito do homem e da mulher de, em idade núbil, contrair casamento
e constituir família. 3. Casamento algum será celebrado sem o consentimento livre e pleno dos futuros esposos. 4.
Os Estados-partes no presente Pacto deverão adotar as medidas apropriadas para assegurar a igualdade de direitos
e responsabilidades dos esposos quanto ao casamento, durante o mesmo e por ocasião de sua dissolução. Em caso
de dissolução, deverão adotar-se as disposições que assegurem a proteção necessária para os filhos.
4. Art. 16. Os Estados-partes adotarão todas as medidas adequadas para eliminar a discriminação contra a mulher
em todos os assuntos relativos ao casamento e às relações familiares e, em particular, com base na igualdade entre
homens e mulheres, assegurarão: a) o mesmo direito de contrair matrimônio;
b) o mesmo direito de escolher livremente o cônjuge e de contrair matrimônio somente com o livre e pleno
consentimento; c) os mesmos direitos e responsabilidades durante o casamento e por ocasião de sua dissolução;
d) os mesmos direitos e responsabilidades como pais, qualquer que seja seu estado civil, em matérias pertinentes
aos filhos. Em todos os casos, os interesses dos filhos serão a consideração primordial; e) os mesmos direitos
de decidir livre e responsavelmente sobre o número de filhos e sobre o intervalo entre os nascimentos e a ter
acesso à informação, à educação e aos meios que lhes permitam exercer esses direitos; f) os mesmos direitos e
responsabilidades com respeito à tutela, curatela, guarda e adoção dos filhos, ou institutos análogos, quando
esses conceitos existirem na legislação nacional. Em todos os casos, os interesses dos filhos serão a consideração
DOUTRINA . DIREITO DE FAMÍLIA
O CASAMENTO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO NO BRASIL
169
Esse é o vetor de interpretação pro homine que deve conduzir a análise do Direito
Internacional Privado brasileiro, composto por normas constitucionais, legais e
convencionais. Essa visão contemporânea informada pela gramática dos direitos
humanos é indispensável para a conformação do Direito Internacional Privado brasileiro
de matriz legal, pois a antiga Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei 4.657/42),
agora denominada Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB - graças à
Lei 12.376/2010), não sofreu alteração substancial desde sua edição em 1942 até os dias
atuais.5
Por isso, a proposta do presente artigo é rever a interpretação das disposições da Lei
de Introdução às Normas do Direito Brasileiro referentes ao casamento, à luz de uma
interpretação conforme aos direitos humanos que defendo para todo o novo Direito
Internacional Privado no Brasil.
Para tanto, abordarei neste artigo os principais temas do Direito Internacional
Privado sobre o casamento, a saber: a (i) lei aplicável à celebração e aos impedimentos;
(ii) a determinação do domicílio conjugal; (iii) a lei aplicável à invalidade do casamento;
(iv) a lei aplicável ao regime de bens; (v) a lei que rege a mudança do regime de bens.
(vi) a lei que regula o casamento de estrangeiros e, finalmente, (vii) o tratamento de DIPr
ao divórcio.
2. A LEI BRASILEIRA APLICÁVEL AO CASAMENTO:
CELEBRAÇÃO E IMPEDIMENTOS
Na regra geral do caput do art. 7º6 da LINDB aplica-se a lei do domicílio para reger
a capacidade dos nubentes em celebrar o casamento e demais formas de união entre
pessoas para fins de vida comum (uniões civis, por exemplo).
primordial; g) os mesmos direitos pessoais como marido e mulher, inclusive o direito de escolher sobrenome,
profissão e ocupação; h) os mesmos direitos a ambos os cônjuges em matéria de propriedade, aquisição, gestão,
administração, gozo e disposição dos bens, tanto a título gratuito quanto a título oneroso.
5. Os projetos de alteração da LICC, agora LINDB, não prosperaram. O último foi o projeto de lei do Senado Federal
nº 269, apresentado em 2004, pelo Senador Pedro Simon, que consistia em reapresentação do projeto de lei
4.905/94, com alterações pontuais.
6. In verbis: “Art. 7º. A lei do país em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da
personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família.”
170
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
O §1º do art. 7º7 estabelece uma regra especial, ao dispor que o casamento será
regido pela lei do local da celebração quanto à (i) formalidade da celebração e (ii)
impedimentos matrimoniais.
A LINDB adotou a regra do locus regit actum no tocante às formalidades da celebração
do matrimônio. Assim, caso seja celebrado no Brasil, devem ser cumpridos os artigos
1.525 a 1.542 do Código Civil, ainda que os nubentes não sejam brasileiros, que tratam:
(i) do processo de habilitação para o casamento (art. 1.525 ao 1.5328); (ii) cerimônia, local
de realização, forma de celebração e assento no livro de registro (art. 1.533 a 1.5379);
7. In verbis: Art. 7º, § 1º: “Realizando-se o casamento no Brasil, será aplicada a lei brasileira quanto aos impedimentos
dirimentes e às formalidades da celebração.”
8. Art. 1.525. O requerimento de habilitação para o casamento será firmado por ambos os nubentes, de próprio
punho, ou, a seu pedido, por procurador, e deve ser instruído com os seguintes documentos: I - certidão de
nascimento ou documento equivalente; II - autorização por escrito das pessoas sob cuja dependência legal
estiverem, ou ato judicial que a supra; III - declaração de duas testemunhas maiores, parentes ou não, que atestem
conhecê-los e afirmem não existir impedimento que os iniba de casar; IV - declaração do estado civil, do domicílio e
da residência atual dos contraentes e de seus pais, se forem conhecidos; V - certidão de óbito do cônjuge falecido, de
sentença declaratória de nulidade ou de anulação de casamento, transitada em julgado, ou do registro da sentença
de divórcio. Art. 1.526. A habilitação será feita pessoalmente perante o oficial do Registro Civil, com a audiência do
Ministério Público. (Redação dada pela Lei nº 12.133, de 2009) Parágrafo único. Caso haja impugnação do oficial, do
Ministério Público ou de terceiro, a habilitação será submetida ao juiz. (Incluído pela Lei nº 12.133, de 2009). Art. 1.527.
Estando em ordem a documentação, o oficial extrairá o edital, que se afixará durante quinze dias nas circunscrições
do Registro Civil de ambos os nubentes, e, obrigatoriamente, se publicará na imprensa local, se houver. Parágrafo
único. A autoridade competente, havendo urgência, poderá dispensar a publicação. Art. 1.528. É dever do oficial do
registro esclarecer os nubentes a respeito dos fatos que podem ocasionar a invalidade do casamento, bem como
sobre os diversos regimes de bens. Art. 1.529. Tanto os impedimentos quanto as causas suspensivas serão opostos
em declaração escrita e assinada, instruída com as provas do fato alegado, ou com a indicação do lugar onde
possam ser obtidas. Art. 1.530. O oficial do registro dará aos nubentes ou a seus representantes nota da oposição,
indicando os fundamentos, as provas e o nome de quem a ofereceu. Parágrafo único. Podem os nubentes requerer
prazo razoável para fazer prova contrária aos fatos alegados, e promover as ações civis e criminais contra o oponente
de má-fé. Art. 1.531. Cumpridas as formalidades dos arts. 1.526 e 1.527 e verificada a inexistência de fato obstativo,
o oficial do registro extrairá o certificado de habilitação. Art. 1.532. A eficácia da habilitação será de noventa dias, a
contar da data em que foi extraído o certificado.
9. Art. 1.533. Celebrar-se-á o casamento, no dia, hora e lugar previamente designados pela autoridade que houver
de presidir o ato, mediante petição dos contraentes, que se mostrem habilitados com a certidão do art. 1.531. Art.
1.534. A solenidade realizar-se-á na sede do cartório, com toda publicidade, a portas abertas, presentes pelo menos
duas testemunhas, parentes ou não dos contraentes, ou, querendo as partes e consentindo a autoridade celebrante,
noutro edifício público ou particular. § 1o Quando o casamento for em edifício particular, ficará este de portas abertas
durante o ato. § 2o Serão quatro as testemunhas na hipótese do parágrafo anterior e se algum dos contraentes
não souber ou não puder escrever. Art. 1.535. Presentes os contraentes, em pessoa ou por procurador especial,
juntamente com as testemunhas e o oficial do registro, o presidente do ato, ouvida aos nubentes a afirmação de
DOUTRINA . DIREITO DE FAMÍLIA
O CASAMENTO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO NO BRASIL
171
(iii) das causas de suspensão da cerimônia (art. 1.53810); (iv) do caso de moléstia grave
de nubente e dos requisitos do casamento nuncupativo (aquele celebrado de urgência
perante testemunhas em virtude do risco iminente à vida de um dos contraentes - arts.
1.539 a 1.54111) e (v) do casamento por procuração (1.54212)
que pretendem casar por livre e espontânea vontade, declarará efetuado o casamento, nestes termos:”De acordo
com a vontade que ambos acabais de afirmar perante mim, de vos receberdes por marido e mulher, eu, em nome
da lei, vos declaro casados.” Art. 1.536. Do casamento, logo depois de celebrado, lavrar-se-á o assento no livro de
registro. No assento, assinado pelo presidente do ato, pelos cônjuges, as testemunhas, e o oficial do registro, serão
exarados: I - os prenomes, sobrenomes, datas de nascimento, profissão, domicílio e residência atual dos cônjuges;
II - os prenomes, sobrenomes, datas de nascimento ou de morte, domicílio e residência atual dos pais; III - o prenome
e sobrenome do cônjuge precedente e a data da dissolução do casamento anterior; IV - a data da publicação dos
proclamas e da celebração do casamento; V - a relação dos documentos apresentados ao oficial do registro; VI - o
prenome, sobrenome, profissão, domicílio e residência atual das testemunhas; VII - o regime do casamento, com
a declaração da data e do cartório em cujas notas foi lavrada a escritura antenupcial, quando o regime não for
o da comunhão parcial, ou o obrigatoriamente estabelecido. Art. 1.537. O instrumento da autorização para casar
transcrever-se-á integralmente na escritura antenupcial.
10. Art. 1.538. A celebração do casamento será imediatamente suspensa se algum dos contraentes: I - recusar a
solene afirmação da sua vontade; II - declarar que esta não é livre e espontânea; III - manifestar-se arrependido.
Parágrafo único. O nubente que, por algum dos fatos mencionados neste artigo, der causa à suspensão do ato,
não será admitido a retratar-se no mesmo dia.
11. Art. 1.539. No caso de moléstia grave de um dos nubentes, o presidente do ato irá celebrá-lo onde se encontrar
o impedido, sendo urgente, ainda que à noite, perante duas testemunhas que saibam ler e escrever. § 1o A
falta ou impedimento da autoridade competente para presidir o casamento suprir-se-á por qualquer dos seus
substitutos legais, e a do oficial do Registro Civil por outro ad hoc, nomeado pelo presidente do ato. § 2o O termo
avulso, lavrado pelo oficial ad hoc, será registrado no respectivo registro dentro em cinco dias, perante duas
testemunhas, ficando arquivado. Art. 1.540. Quando algum dos contraentes estiver em iminente risco de vida, não
obtendo a presença da autoridade à qual incumba presidir o ato, nem a de seu substituto, poderá o casamento
ser celebrado na presença de seis testemunhas, que com os nubentes não tenham parentesco em linha reta, ou,
na colateral, até segundo grau. Art. 1.541. Realizado o casamento, devem as testemunhas comparecer perante a
autoridade judicial mais próxima, dentro em dez dias, pedindo que lhes tome por termo a declaração de: I - que
foram convocadas por parte do enfermo; II - que este parecia em perigo de vida, mas em seu juízo; III - que, em sua
presença, declararam os contraentes, livre e espontaneamente, receber-se por marido e mulher. § 1o Autuado
o pedido e tomadas as declarações, o juiz procederá às diligências necessárias para verificar se os contraentes
podiam ter-se habilitado, na forma ordinária, ouvidos os interessados que o requererem, dentro em quinze dias.
§ 2o Verificada a idoneidade dos cônjuges para o casamento, assim o decidirá a autoridade competente, com
recurso voluntário às partes. § 3o Se da decisão não se tiver recorrido, ou se ela passar em julgado, apesar dos
recursos interpostos, o juiz mandará registrá-la no livro do Registro dos Casamentos. § 4o O assento assim lavrado
retrotrairá os efeitos do casamento, quanto ao estado dos cônjuges, à data da celebração. § 5o Serão dispensadas
as formalidades deste e do artigo antecedente, se o enfermo convalescer e puder ratificar o casamento na
presença da autoridade competente e do oficial do registro.
12. Art. 1.542. O casamento pode celebrar-se mediante procuração, por instrumento público, com poderes
172
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
Já o impedimento também deve ser regido pela lei do local da celebração,
consistindo em uma incapacidade que restringe o direito de contrair matrimônio ou
união civil, o que excepciona a regra geral da lei do domicílio para reger a capacidade
dos nubentes.
Com isso, mesmo que um dos nubentes seja domiciliado no estrangeiro, caso o
casamento seja celebrado no Brasil, a lei brasileira será aplicável (lex loci actus), no que
tange aos impedimentos dirimentes, absolutos e relativos (arts. 1.52113, 1.548, I14, e 1.55015
do Código Civil). Como o § 1º menciona tão somente “impedimentos dirimentes”, a
norma brasileira deve ser cumprida tanto no que tange o impedimento dirimente
absoluto ou público, cuja violação torna o casamento nulo quanto o impedimento
relativo ou privado, que é aquele cuja violação torna o casamento anulável.16
especiais. § 1o A revogação do mandato não necessita chegar ao conhecimento do mandatário; mas, celebrado o
casamento sem que o mandatário ou o outro contraente tivessem ciência da revogação, responderá o mandante
por perdas e danos. § 2o O nubente que não estiver em iminente risco de vida poderá fazer-se representar no
casamento nuncupativo. § 3o A eficácia do mandato não ultrapassará noventa dias. § 4o Só por instrumento
público se poderá revogar o mandato.
13. Caso de impedimento público ou absoluto, pois o casamento é nulo. Art. 1.521. Não podem casar: I - os
ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil; II - os afins em linha reta; III - o adotante com
quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante; IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais,
e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive; V - o adotado com o filho do adotante; VI - as pessoas casadas;
VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.
Art. 1.522. Os impedimentos podem ser opostos, até o momento da celebração do casamento, por qualquer
pessoa capaz. Parágrafo único. Se o juiz, ou o oficial de registro, tiver conhecimento da existência de algum
impedimento, será obrigado a declará-lo.
14. Caso de impedimento dirimente público ou absoluto, pois o casamento é nulo. Art. 1.548. É nulo o casamento
contraído: I - pelo enfermo mental sem o necessário discernimento para os atos da vida civil; II - por infringência
de impedimento.
15. Caso de impedimento privado ou relativo, pois o matrimônio é anulável. Art. 1.550. É anulável o casamento:
I - de quem não completou a idade mínima para casar; II - do menor em idade núbil, quando não autorizado
por seu representante legal; III - por vício da vontade, nos termos dos arts. 1.556 a 1.558; IV - do incapaz de
consentir ou manifestar, de modo inequívoco, o consentimento; V - realizado pelo mandatário, sem que ele ou o
outro contraente soubesse da revogação do mandato, e não sobrevindo coabitação entre os cônjuges; VI - por
incompetência da autoridade celebrante. Parágrafo único. Equipara-se à revogação a invalidade do mandato
judicialmente decretada.
16. Nesse sentido, ESPÍNOLA, Eduardo e ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Tratado de Direito Civil Brasileiro. Vol. VIII, “Do Direito
Internacional Privado Brasileiro”, Tomo II, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1943, p. 809. Os citados autores reconhecem
que a LICC/42 não distinguiu os impedimentos dirimentes, devendo, quanto aos impedimentos dirimentes relativos
“também atender a lei brasileira”. Contra, Serpa Lopez, para quem o dispositivo deve ser interpretado de modo
DOUTRINA . DIREITO DE FAMÍLIA
O CASAMENTO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO NO BRASIL
173
Antes da edição do novo Código Civil brasileiro, houve discussão na doutrina sobre
a lei a ser utilizada na hipótese dos impedimentos impedientes, que eram os casos que
não tornavam nulo ou anulável o casamento, mas impunham regime de bens - adoção
do regime de separação legal de bens no casamento.
Valladão criticou a redação do § 1º do art. 7º, que menciona expresssamente o uso
da lei brasileira para os casamentos celebrados no Brasil apenas para os impedimentos
dirimentes, levando à aplicação da lei do domicílio do nubente (regra geral do caput do
art. 7º) para reger os impedimentos meramente impedientes (terminologia anterior).17
A alternativa, defendida por Valladão, seria o uso da lei brasileira, pois a lei do local
de celebração faria parte da nossa tradição, sendo a exclusão dos impedimentos
impedientes na redação do § 1º do art. 7º da LICC (hoje, LINDB) uma omissão a ser
suprida pelo uso da lei do local da celebração.
Porém, não se tratou de omissão, mas de se utilizar a lei brasileira tão somente nos
casos de incapacidade para contrair matrimônio considerados mais graves, que geram a
nulidade ou anulabilidade do casamento, em clara convergência com o conceito de ordem
pública. Atualmente, ao invés dos impedimentos impedientes, o Código Civil atual prevê
causas suspensivas do casamento (art. 1.52318), cujo descumprimento não gera a nulidade
ou anulabilidade do casamento, mas sim a imposição do regime de separação legal dos
bens, conforme o art. 1.641, I do CC.19.
finalístico, uma vez que seu objetivo seria o de preservar a ordem pública brasileira. Como os impedimentos
dirimentes relativos não geram a nulidade do casamento (somente a anulabilidade), não precisariam ser observados,
devendo imperar a lei do domicílio do nubente. Conferir em SERPA LOPES, Miguel Maria de. Comentários à Lei de
Introdução ao Código Civil. Vol. II, 2ª edição, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1959, pp. 92.
17. VALLADÃO, Haroldo. Direito Internacional Privado. Vol. II. 2ª ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1977, p. 60.
18. Art. 1.523. Não devem casar: I - o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer
inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros; II - a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser
nulo ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal;
III - o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do casal; IV - o tutor
ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou
curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas. Parágrafo
único. É permitido aos nubentes solicitar ao juiz que não lhes sejam aplicadas as causas suspensivas previstas
nos incisos I, III e IV deste artigo, provando-se a inexistência de prejuízo, respectivamente, para o herdeiro, para o
ex-cônjuge e para a pessoa tutelada ou curatelada; no caso do inciso II, a nubente deverá provar nascimento de
filho, ou inexistência de gravidez, na fluência do prazo.
19. Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I - das pessoas que o contraírem com
inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
Por fim, apesar da regra do § 1º do art. 7º ser unilateral, ou seja, só fazer menção
à lei brasileira, admite-se a sua bilateralização, para que os casamentos celebrados no
exterior obedeçam (i) as formalidades e ainda os (ii) impedimentos da lei local (lex loci
celebrationis), mesmo que não previstos no nosso ordenamento.20
3. O DOMICÍLIO DOS CÔNJUGES E A INTERPRETAÇÃO
CONFORME AOS DIREITOS HUMANOS DA LINDB
Um dos dispositivos da LINDB incompatíveis com a gramática dos direitos humanos
é o § 8º do art. 7º. que prevê que “ salvo o caso de abandono, o domicílio do chefe
da família estende-se ao outro cônjuge e aos filhos não emancipados, e o do tutor ou
curador aos incapazes sob sua guarda”. Essa parágrafo contém o conceito do domicílio
de dependência, que é aquele fixado por uma pessoa e que se estende a outras,
consideradas dependentes do primeiro.
No caso, há a menção ao “domicílio do chefe da família”. À época, o Código Civil
de 1916 estipulava que o “chefe da família” era, em geral, o marido (art. 233, III)21, que,
então, determinava o domicílio da esposa e dos filhos não emancipados. Também é
feita referência ao “domicílio do tutor” e ao “domicílio do curador”, que abrangem os
incapazes sob sua guarda.
No caso da mulher casada, em 1962 a Lei nº 4.121 (“Estatuto da Mulher Casada”)
modificou apenas ligeiramente a situação, continuando a dar ao marido o direito de
fixar o domicílio da família, mas permitindo que a mulher recorresse ao Judiciário, caso
a deliberação a prejudicasse.22
Com a Constituição de 1988, a igualdade entre homem e mulher na sociedade conjugal
foi determinada expressamente no art. 226, § 5º, pelo qual “os direitos e deveres referentes
à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”. Nessa linha,
20. Nesse sentido, TENÓRIO, Oscar. Lei de Introdução ao Código Civil. 2ª ed., Rio de Janeiro: Borsói, 1955, p. 254.
21. Redação original do Código Civil: “art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal. Compete-lhe:
(...) III. direito de fixar e mudar o domicílio da família (arts. 46 e 233, nº IV).”
22. Redação dada pela Lei nº 4.121, de 1962: “Art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que
exerce com a colaboração da mulher, no interêsse comum do casal e dos filhos (arts. 240, 247 e 251). Competelhe: III - o direito de fixar o domicílio da família ressalvada a possibilidade de recorrer a mulher ao Juiz, no caso de
deliberação que a prejudique;”
DOUTRINA . DIREITO DE FAMÍLIA
O CASAMENTO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO NO BRASIL
175
o Código Civil (CC) de 2002 dispõe que a direção da sociedade conjugal será exercida, em
colaboração, pelo marido e pela mulher, sempre no interesse do casal e dos filhos (art.
1.567). No tocante ao domicílio do casal, o art. 1.569 do CC prevê que este será escolhido
por ambos os cônjuges, mas um e outro podem ausentar-se do domicílio conjugal para
atender a encargos públicos, ao exercício de sua profissão, ou a interesses particulares
relevantes. Havendo divergência, qualquer dos cônjuges poderá recorrer ao Judiciário.
Com isso, faltou atualização da LINDB sob à luz da gramática dos direitos humanos.
Na falta de alteração expressa da lei, resta sua interpretação conforme aos direitos
humanos, para considerar que o domicílio do “chefe da família” é, na verdade, o
domicílio escolhido por ambos os cônjuges.
Na existência de pluralidade domiciliar da família (com os cônjuges possuindo
domicílio diferente, por razões de foro íntimo, razões profissionais etc), deve ser
utilizada a lei do domicílio respectivo para o fato transnacional que lhe corresponda.
4. A LEI APLICÁVEL AOS CASOS DE INVALIDADE DO
CASAMENTO.
No caso da lei para reger a invalidade do casamento, dispõe o § 3º do art. 7º23 da
LINDB que será a lei do domicílio dos nubentes, ou, se distintos os domicílios, a lei do
primeiro domicílio conjugal.
Obviamente, há inevitável estranhamento pois se ignorou o básico: a validade ou
invalidade deve ser regida pela lei do local da celebração. Caso contrário, há o risco de
considerarmos inválido um casamento pelo uso de lei estabelecendo requisitos que
não eram indispensáveis pela lei do local da celebração, gerando insegurança jurídica
evidente.
Como aponta Valladão, a validade de um ato da importância do casamento ficou
dependente não da lei que presidiu o ato, mas sim de outra lei, livremente escolhida pelos
nubentes (a lei do primeiro domicílio conjugal), bastando que eles tenham domicílio
diverso no momento da celebração do matrimônio24.
23. In verbis: Art. 7º, § 3º. “Tendo os nubentes domicílio diverso, regerá os casos de invalidade do matrimônio a lei
do primeiro domicílio conjugal.”
24. Para Valladão, esse dispositivo é absurdo. In verbis: “A Lei de Introdução, art. 7º, § 3º, adotou, absurdamente,
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
O Código Bustamante segue linha diversa da LINDB, dispondo que a nulidade do
matrimônio deve ser regulada pela mesma lei a que estiver submetida a condição
intrínseca ou extrínseca que a tiver motivado (art. 47).25
Finalmente, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou inócua a regra,
considerando-a “não escrita”, uma vez que a “validade ou invalidade de um ato só
pode ser aferida em face da lei a que ele obedeceu”. Quanto ao § 3º do art. 7º,
no mesmo julgado, o STF reconheceu que “esse dispositivo resultou de equívoco
evidente e não há como aplicá-lo”. 26
5. A LEI APLICÁVEL AO REGIME DE BENS
Dispõe o § 4º do art. 7º da LINDB que “o regime de bens, legal ou convencional, obedece
à lei do país em que tiverem os nubentes domicílio, e, se este for diverso, a do primeiro
domicílio conjugal”. Curiosamente, na publicação original do Decreto-Lei 4.657, em
setembro de 1942, o dispositivo em questão possuía redação diferente, dispondo que a lei
de regência deveria ser a lei do domicílio conjugal dos nubentes. Obviamente, o nubente é
aquele que vai casar-se, não possuindo, ainda, domicílio conjugal. Em 17 de junho de 1943,
houve a republicação do texto, com a sua retificação para a redação ora em análise.
para reger a invalidade do matrimônio de nubentes de domicílio diverso uma lei estranha...ao ato e da livre escolha
pelos interessados”. Grifo do próprio autor. VALLADÃO, Haroldo. Direito Internacional Privado. Vol. II. 2ª ed., Rio de
Janeiro: Freitas Bastos, 1977, p. 133.
25. Art. 47. A nullidade do matrimonio deve regular-se pela mesma lei a que estiver submettida a condição
intrinseca ou extrinseca que a tiver motivado.
26. Tratou-se de casamento celebrado no Brasil, por nubentes de domicílio diverso (Estados Unidos e Brasil). Após
o casamento, o primeiro domicílio conjugal foi fixado na Califórnia, Estados Unidos. O marido requereu e obteve
a anulação do casamento nos EUA, por ter a esposa descumprido obrigação de fixação de residência nos EUA e
de ter filhos, assumida antes do casamento. Essa promessa da mulher teria sido essencial para o consentimento
do homem e para a consequente celebração do casamento, ensejando sua anulação de acordo com a lei
californiana. Após, o marido requereu, no Brasil, a homologação da sentença estrangeira de anulação, obrigando
o STF a analisar o alcance do art. 7º, § 3º, ou seja, se seria possível a lei do primeiro domicílio conjugal considerar
inválido aquilo que a lei do local da celebração (lei brasileira) não considera como hipótese de anulação de
casamento. O caso chamou a atenção até porque o STF havia, inicialmente, homologado - burocraticamente - a
sentença estrangeira. Depois, em um segundo julgamento, para correção de erro material, o STF considerou o
preceito (art. 7º, § 3º) como “inaplicável, por impossibilidade lógica, e assim, como não escrito” (consta do Voto do
Relator, Ministro Luiz Gallotti) e indeferiu a homologação. Conferir em Sentença Estrangeira nº 2.085 - segundo
julgamento/ EUA - Relator: Min. Luiz Gallotti. Julgamento: 03/03/1971, publicado no DJ de 10-11-1972, pp. 07727.
DOUTRINA . DIREITO DE FAMÍLIA
O CASAMENTO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO NO BRASIL
177
O fundamento do dispositivo encontra-se no desejo de substituição da lei da
nacionalidade (critério de conexão da antiga introdução ao Código Civil de 1916) pela lei
do domicílio na regência do Direito de Família, no bojo da ruptura promovida por Vargas
com a nova LICC/42.
Era necessário, contudo, dar uma resposta à hipótese dos nubentes terem domicílio
diverso. A solução encontrada foi a escolha da lei do primeiro domicílio conjugal, o que
valoriza a autonomia de vontade dos próprios interessados (os cônjuges), na escolha do
primeiro domicílio do casal.
Na jurisprudência, houve intenso debate sobre o alcance do § 4º do art. 7º. No
caso Mardini, casal de brasileiros casou-se no Uruguai, cujo regime de bens (no
silêncio dos nubentes) é o da separação total de bens, alegando, no ato, serem
lá domiciliados. Após trinta dias, foram viver no Rio Grande do Sul. No litígio que
se seguiu a separação do casal, houve intenso debate sobre a fixação ou não do
domicílio no Uruguai, a despeito do alegado por ambos. O Supremo Tribunal
Federal entendeu que, além da declaração de ambos, houve ainda aquisição de
fazenda e permanência por certo período no país, não tendo sido apenas uma
passagem temporária para fins de casamento. Além disso, o regime da separação
total de bens é permitido pelo Direito brasileiro, o que evitou debate sobre fraude
à lei e à ordem pública. Ademais, o princípio da proibição do venire contra factum
proprium pesou contra o interessado (no caso, o marido) em contestar a aplicação
da lei uruguaia referente à separação total de bens, uma vez que ele havia declarado
expressamente seu domicílio no Uruguai. 27
Analisando o Caso Mardini, é possível extrair algumas conclusões: (i) o regime do
casamento foi fixado pela lei do domicílio (idêntico) dos nubentes, pouco importando o
domicílio anterior (que era no Brasil) ou posterior (que voltou a ser no Brasil); (ii) mesmo
que se admitisse a existência de pluralidade domiciliar, a lei do domicílio no Uruguai
rege o ato que lhe corresponde, no caso, o casamento ali realizado; (iii) a lex fori (a lei
do foro no qual se analisa o fato transnacional) é a lei que define o que é domicílio. No
caso, era a lei brasileira, sendo importante a aferição do ânimo definitivo dos nubentes
na fixação da residência (exigência da lei brasileira para que se caracterize o domicílio)
por meio da análise da declaração deles, da aquisição de fazenda etc.
27. Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário nº 86.787/RS, Relator Min. Leitão de Abreu, julgamento:
20/10/1978, publicado no DJ 04-05-1979, pp. 3520.
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
Já no caso Ruthofer, discutiu-se a partilha de herança, no qual o autor (de cujus)
havia contraído matrimônio, na Áustria (domicílio comum dos nubentes, à época), em
1951, sob o regime da separação legal de bens. Após três anos, o casal fixou domicílio
no Brasil e, durante a convivência comum, houve a aquisição de diversos bens, feita
cada qual em seu nome próprio. Na partilha dos bens da herança, a filha do primeiro
casamento do falecido exigiu que houvesse a comunicação dos aqüestos (bens
adquiridos na constância do casamento) à herança (levando, então, ao aumento do
valor do seu quinhão), tendo em vista a inexistência de pacto antenupcial que vedasse
tal comunhão e aplicando a lei brasileira da época (art. 259 do Código Civil de 191628),
bem como o enunciado 377 da Súmula o Supremo Tribunal Federal29.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em especial no voto do Min. Luis Felipe Salomão,
reconheceu como correta a invocação do art. 7º, § 4º da LINDB, que, em tese, favoreceria
a segunda mulher do falecido, uma vez que diversos bens adquiridos após o casamento
estavam em seu nome. Todavia, o STJ ponderou essa regra da LINDB com a vedação do
uso de direito estrangeiro que ofenda a ordem pública brasileira (art. 17 da LINDB). A
defesa da unidade familiar pela Constituição Federal (artigo 226, caput) exigiu, na visão
do STJ, que o patrimônio amealhado na constância do casamento e oriundo do esforço
comum fosse comunicado também ao outro cônjuge. Considerou o STJ que a ordem
pública seria violada, caso fosse aceita no Brasil a separação radical de bens prevista no
ordenamento civil austríaco.30
Assim, a jurisprudência brasileira utiliza o art. 7º, § 4º (Caso Mardini), mas mantém a
aplicação da lei estrangeira sobre o regime de bens sob o crivo da ordem pública (Caso
Ruthofer).
6. A MUDANÇA DO REGIME DE BENS
Com a redação dada pela Lei nº 6.515, de 1977, a LINDB permite ao estrangeiro casado,
que se naturalizar brasileiro e mediante expressa anuência de seu cônjuge, requerer ao
28. Art. 259. Embora o regime não seja o da comunhão de bens, prevalecerão, no silêncio do contrato, os princípios
dela, quanto à comunicação dos adquiridos na constância do casamento.
29. Súmula 377 do STF: «No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do
casamento».
30. Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial nº 123.633/SP, Relator Min. Aldir Passarinho Junior, Data do
Julgamento: 17/03/2009, Data da Publicação/Fonte: DJe 30/03/2009.
DOUTRINA . DIREITO DE FAMÍLIA
O CASAMENTO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO NO BRASIL
179
juiz, no ato de entrega do decreto de naturalização, se apostile ao mesmo a adoção
do regime de comunhão parcial de bens, respeitados os direitos de terceiros e dada esta
adoção ao competente registro (art. 7º, § 5º). Esse dispositivo trata da mutabilidade do
regime de bens no casamento.
A redação original da LICC/42 era semelhante, mas determinava que o estrangeiro,
ao se naturalizar brasileiro, poderia optar tão somente pela comunhão universal31. Com
a mudança do regime legal do Código Civil para o regime da comunhão parcial, houve
a reforma da lei, tendo sido escolhido o regime da comunhão parcial, que não comunica
o patrimônio adquirido pelos nubentes antes do casamento.
Destaco que a regra impunha, à época, uma exceção à imutabilidade do regime de
bens do casamento que era adotada pelo Código Civil de 1916 (depois abandonada
pelo Código Civil de 2002). É mais um reforço à mutabilidade justificada do regime de
bens do casamento agora previsto no Código Civil de 200232, valorizando a autonomia
da vontade sem prejudicar terceiros.
Sua origem está no Decreto-Lei nº 389, de 25 de abril de 1938 (em plena ditadura
Vargas), que estabelecia, em seu art. 2333, que o naturalizado poderia, com aquiescência
expressa do outro cônjuge, no ato de entrega do decreto de naturalização, manifestar o
seu desejo de adotar o regime de comunhão universal de bens, respeitados os direitos
de terceiro.
A intenção do legislador de 1938 era permitir aos estrangeiros casados no exterior
que pudessem adotar a comunhão universal de bens (a regra geral do Código Civil de
1916). A comunhão universal não era a regra geral em alguns Estados e essa previsão
legislativa varguista tinha como objetivo homogeneizar o regime de bens vigente no
31. LICC/42, redação original do art. 7º, § 5º: “ O estrangeiro casado, que se naturalizar brasileiro, pode, mediante
expressa anuência de seu cônjuge, requerer ao juiz, no ato de entrega do decreto de naturalização, se apostile
ao mesmo a adoção do regime da comunhão universal de bens, respeitados os direitos de terceiro e dada esta
adoção ao competente registro.” Grifo meu.
32. Art. 1.639 do Código Civil (2002), in verbis: É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular,
quanto aos seus bens, o que lhes aprouver. § 1o O regime de bens entre os cônjuges começa a vigorar desde
a data do casamento. § 2o É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido
motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de
terceiros”
33. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0389.htm, último acesso em 2 de fevereiro
de 2015.
180
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
Brasil. Tratou-se, mais uma vez, do desejo do Estado Novo brasileiro de eliminar os
nichos de direito estrangeiro existentes no Brasil, o que, levaria, quatro anos depois,
à mudança da lei de regência do estatuto pessoal (de lei da nacionalidade para lei do
domicílio). Após, em 1977, com a adoção da regra geral da comunhão parcial, houve
também a mudança da LICC (hoje LINDB) para possibilitar que o estrangeiro, ao se
naturalizar, apostile a mudança do regime de bens para o regime de comunhão parcial.
Os requisitos, então, para tal mudança do regime de bens são os seguintes: (i) prova
do casamento válido; (ii) momento adequado, que é a solicitação no ato de entrega por
juiz federal da portaria de naturalização (e não mais decreto, de acordo com o art. 119 da
Lei 6.815/8034); (iii) anuência expressa do outro cônjuge, que deve ser feita por instrumento
público ou particular; (iv) forma, que é a apostila na portaria de naturalização, que
formaliza a modificação do regime (v) preservação dos direitos de terceiro, o que pode
redundar em ineficácia da mudança, caso haja prova de prejuízo a terceiro e (vi) registro
para efeito em relação a terceiros, aplicando-se analogicamente o disposto no art. 1.657
do Código Civil, que trata do registro dos pactos antenupciais35.
7. O CASAMENTO DE ESTRANGEIROS.
Os estrangeiros podem se casar perante a autoridade diplomática ou consular do
Estado patrial, o que implica no uso da lei estrangeira para reger tanto a celebração
quanto os impedimentos ao casamento celebrado no Brasil. Essa exceção à lei do local
da celebração do casamento foi estabelecida no §1º do art. 7º da LINDB36
34. Art. 119. Publicada no Diário Oficial a portaria de naturalização, será ela arquivada no órgão competente do
Ministério da Justiça, que emitirá certificado relativo a cada naturalizando, o qual será solenemente entregue,
na forma fixada em Regulamento, pelo juiz federal da cidade onde tenha domicílio o interessado. § 1º. Onde
houver mais de um juiz federal, a entrega será feita pelo da Primeira Vara. Quando não houver juiz federal na
cidade em que tiverem domicílio os interessados, a entrega será feita através do juiz ordinário da comarca e, na
sua falta, pelo da comarca mais próxima. § 3º. A naturalização ficará sem efeito se o certificado não for solicitado
pelo naturalizando no prazo de doze meses contados da data de publicação do ato, salvo motivo de força maior,
devidamente comprovado.
35. Código Civil, art. 1.657: « As convenções antenupciais não terão efeito perante terceiros senão depois de
registradas, em livro especial, pelo oficial do Registro de Imóveis do domicílio dos cônjuges». Nessa linha, SERPA
LOPES, Miguel Maria de. Comentários à Lei de Introdução ao Código Civil. Vol. II, 2ª edição, Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1959, p.122.
36. “Art. 7º, § 2º O casamento de estrangeiros poderá celebrar-se perante autoridades diplomáticas ou consulares
do país de ambos os nubentes.”
DOUTRINA . DIREITO DE FAMÍLIA
O CASAMENTO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO NO BRASIL
181
Nesse dispositivo, o DIPr interage com o Direito Internacional Público, uma vez que
esse poder dado às autoridades diplomáticas ou consulares originou-se em costume
internacional ou tratados sobre os poderes dados a tais autoridades (e não em tratados
sobre o DIPr).
No Brasil, já em 1863, Pimenta Bueno, no primeiro livro de Direito Internacional
Privado publicado no país, referiu-se a “costume admitido de poderem efetuar-se
os casamentos dos estrangeiros nos respectivos consulados”.37 Durante o Império
brasileiro, admitia-se tal regra, desde que observada a reciprocidade, ou seja, que
o Estado estrangeiro também considerasse válido casamento de brasileiros pela
autoridade consular brasileira no exterior.38
Após a proclamação da República, o Decreto nº 181/1890 (que promulgou a lei
sobre casamento civil) estabeleceu, em seu artigo 47,§ 2º, que, se ambos os nubentes
fossem brasileiros, poderiam casar perante agente diplomático ou consular do Brasil
no exterior. O citado Decreto foi omisso quanto à possibilidade dos estrangeiros
casarem no Brasil perante seu agente consular. Em consulta expressa feita pelas Missões
Diplomáticas do Reino Unido e da Alemanha, o governo brasileiro respondeu, em 1910,
que somente tratados, sob reciprocidade, poderiam dar validade nacional a casamentos
de estrangeiros celebrados no Brasil perante seu agente consular. 39
O Código Civil de 1916 previu, laconicamente, em seu art. 204, único, que o
casamento celebrado fora do Brasil e contraído perante agente consular (e não mais
perante agentes diplomáticos), deveria ser provado por certidão do assento no registro
do consulado. Para Espínola e Espínola Filho, o Código Civil de 1916 exigia que ambos
os nubentes fosses brasileiros para pudessem celebrar casamento perante agente
consular do Brasil no exterior.40Pontes de Miranda, em sentido contrário, defendeu que
bastaria que um dos nubentes fosse brasileiro41.
37. PIMENTA BUENO, José Antônio. Direito internacional privado e applicação de seus principios com referencia as leis
particulares do Brazil. Rio de Janeiro: Typographia Imp. e Const. de J. Villeneuve e C, 1863, p.60. Grafia atualizada.
38. VALLADÃO, Haroldo. Direito Internacional Privado. Vol. II. 2ª ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1977, p. 68.
39. Essa resposta do Ministério das Relações Exteriores do Brasil está em OCTÁVIO, Rodrigo. Droit International Privé
dans la legislation brèsilienne. Paris: Librarie de la Société du Recueil Sirey, 1915, p. 160.
40. ESPÍNOLA, Eduardo e ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Tratado de Direito Civil Brasileiro. Vol. VIII, “Do Direito
Internacional Privado Brasileiro”, Tomo II, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1943, p. 860.
41. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Internacional Privado. Tomo II, Parte Especial. Rio
182
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
Assim, a Lei de Introdução ao Código Civil (LICC) de 1942 veio resolver polêmicas
e regrar expressamente a temática do casamento, quer de brasileiros ou estrangeiros,
perante autoridade diplomática ou consular.
Porém, a redação original da LICC/42, apesar de adotar viés de permissão genérica
de tal matrimônio (evitando a reciprocidade que fere a igualdade entre brasileiros e
estrangeiros), adotou, surpreendentemente, o princípio da lei do domicílio e não da
nacionalidade dos nubentes, da seguinte forma: “O casamento de estrangeiros pode
celebrar-se perante as autoridades diplomáticas ou consulares do país em que um dos
nubentes seja domiciliado”.
Ocorre que essa atribuição dada a autoridades diplomáticas ou consulares é fruto
justamente da nacionalidade42, para permitir que os nacionais possam se socorrer de
institutos jurídicos do seu Estado, como, por exemplo, um tipo especial de casamento,
uma forma de lavratura de procuração etc.
Por isso, a Lei nº 3.238/57 alterou esse dispositivo da LICC e retornou à exigência
da nacionalidade, dispondo que o casamento será celebrado perante autoridade
diplomática ou consular do “país de ambos os nubentes”. Nesse caso, apesar da
celebração ocorrer no Brasil, aplica-se a lei estrangeira.
Essa regra também é aplicada aos brasileiros no exterior, que podem se casar
perante nossa autoridade consular, que, por sua vez, deve observar as regras brasileiras
sobre a celebração e os impedimentos. A celebração do casamento de brasileiros pela
autoridade consular brasileira no exterior está regulada no Decreto 24.113/34, que, na
parte sobre “Regulamento para o Serviço Consular Brasileiro”, dispõe que os consulados
só poderão celebrar casamentos quando ambos os nubentes forem brasileiros e a
legislação local reconhecer efeitos civis aos casamentos assim celebrados (art. 13, §
único)43. Há, ainda, a exigência de residência de pelo menos um dos nubentes no local
sob jurisdição administrativa do Consulado (a chamada “jurisdição consular”), como
de Janeiro : José Olympio, 1934, pp. 34-35.
42. Esse dispositivo original da lei recebeu ácidas críticas da doutrina especializada da época. Por todos, ver
VALLADÃO, Haroldo. “ A Lei de Introdução ao Código Civil e sua reforma” in Revista dos Tribunais, v. 49, n. 292, fev.,
1960, pp. 7–21.
43. Art. 13, § único: “Os Consulados de carreira só poderão celebrar casamentos quando ambos os nubentes
forem brasileiros e a legislação local reconhecer efeitos civis aos casamentos assim celebrados”.
DOUTRINA . DIREITO DE FAMÍLIA
O CASAMENTO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO NO BRASIL
183
premissa para a atuação dos serviços consulares44. Obviamente, esses dois requisitos
(reconhecimento do ordenamento estrangeiro e residência) não constam da LINDB, o
que torna questionável a sua aplicação, em face do princípio da legalidade previsto na
Constituição e nos tratados internacionais.
De qualquer modo, o casamento de brasileiro celebrado no estrangeiro deverá ser
registrado em cento e oitenta dias, a contar da volta de um ou de ambos os cônjuges
ao Brasil, no cartório do respectivo domicílio, ou, em sua falta, no 1o Ofício da Capital
do Estado em que passarem a residir, conforme dispõe o art. 1.544 do Código Civil45.
O registro é meramente declaratório, sendo o casamento válido e impedindo novo
casamento no Brasil até que seja dissolvido o primeiro matrimônio.46
8. O DIVÓRCIO E A EVOLUÇÃO DO DIREITO
INTERNACIONAL PRIVADO BRASILEIRO
A dissolução do casamento pelo divórcio no exterior e sua posterior homologação
no Brasil é tema de DIPr que está vinculado à evolução da (in)dissolubilidade do
casamento e o tratamento do divórcio.
De início, o casamento no Brasil imperial era religioso e católico, tendo o Imperador D. Pedro
I determinado, pelo Decreto de 03 de novembro de 182747, a aplicação das normas da Igreja
44. Ver, por exemplo, o que consta da página na internet da Embaixada brasileira na Rússia: “Apenas dois cidadãos
brasileiros podem casar-se diretamente em repartição consular brasileira. A Autoridade Consular somente poderá
celebrar casamento se ambos os nubentes forem brasileiros maiores de 16 (dezesseis) anos e se a legislação local
não o impedir. Para os brasileiros com idade entre 16 e 18 anos incompletos, é necessário o consentimento de
ambos os pais ou responsáveis. Pelo menos um dos contraentes deverá ser residente na jurisdição consular há,
no mínimo, um ano”. Disponível em: http://moscou.itamaraty.gov.br/pt-br/casamento.xml. Último acesso em 02
de fevereiro de 2015.
45. Art. 1.544. O casamento de brasileiro, celebrado no estrangeiro, perante as respectivas autoridades ou os
cônsules brasileiros, deverá ser registrado em cento e oitenta dias, a contar da volta de um ou de ambos os
cônjuges ao Brasil, no cartório do respectivo domicílio, ou, em sua falta, no 1º Ofício da Capital do Estado em que
passarem a residir.
46. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n° 280.197 - RJ. Civil. Casamento realizado no estrangeiro.
Matrimônio subseqüente no país, sem prévio divórcio. Anulação. O casamento realizado no estrangeiro é válido
no país, tenha ou não sido aqui registrado, e por isso impede novo matrimônio, salvo de desfeito o anterior.
Recurso especial não conhecido. (STJ, Resp 280.197, 3ª Turma, Rel. Min. Ari Pargendler, j. 05.08.02)
47. Disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret_sn/1824-1899/decreto-38408-3-novembro-1827-
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
Católica (do Congresso de Trento e do Arcepispado da Bahia) para regular o matrimônio, cujo
vínculo, pelas regras católicas, era indissolúvel. Somente em 1861, foi editada a Lei nº 1.144,
permitindo que outras Igrejas celebrassem casamentos com efeitos civis.48
Com a proclamação da República em 1889, houve a consequente separação da
Igreja do Estado. O Decreto nº 181, de 24 de janeiro de 1890 implantou o casamento
civil49, na linha da laicização do Estado, já estabelecida pelo Decreto nº 119-A de 7 de
janeiro de 1890.50Por sua vez, a Constituição de 1891 tratou de reconhecer somente o
casamento civil (art. 72, § 4º51), omitindo-se quanto à proibição do divórcio.
Mas a herança católica da indissolubilidade do vínculo marital foi mantida no
Código Civil de 1916, que previu o desquite, que rompia somente a sociedade conjugal
(terminava a vida em comum e o regime de bens52), impedindo que os desquitados
pudessem celebrar novo matrimônio.
Em 1934, a influência da Igreja fez com que houvesse a introdução expressa da
indissolubilidade do casamento no texto da Constituição (art. 14453, que previu que
a lei ordinária regularia os casos de desquite e anulação do casamento), impedindo
que o divórcio pudesse ser introduzido por mera lei ordinária, no que foi mantido na
Constituição de 1937 (art. 12454), na Constituição de 1946 (art. 16355), na Constituição de
566712-publicacaooriginal-90232-pl.html, último acesso em 2 de fevereiro de 2015.
48. Conferir em SOARES, Oscar de Macedo. Casamento Civil - Decreto n. 181 de 24 de janeiro de 1890, Commentado e
Annotado. Rio de Janeiro: B.L Garnier, Livreiro-Editor, 1890, em especial p. 12 e seguintes.
49. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/D181.htm, último acesso em 2 de
fevereiro de 2015.
50. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d119-a.htm, último acesso em 02 de
fevereiro de 2015.
51. In verbis: “ A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita.”.
52. Art. 322 do Código Civil de 1916: “ Art. 322. A sentença do desquite autoriza a separação dos conjugues, e põe
termo ao regime matrimonial dos bens, como se o casamento fosse anulado (art. 267, n. III)”.
53. Art 144 - A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. Parágrafo
único - A lei civil determinará os casos de desquite e de anulação de casamento, havendo sempre recurso ex
officio , com efeito suspensivo.
54. Art. 124 - A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. Às famílias
numerosas serão atribuídas compensações na proporção dos seus encargos.
55. Art. 163 - A família é constituída pelo casamento de vínculo indissolúvel e terá direito à proteção especial do Estado.
DOUTRINA . DIREITO DE FAMÍLIA
O CASAMENTO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO NO BRASIL
185
1967 (art. 167, § 1º56) e na Emenda Constitucional de 1969 (art. 175, §1º57).
O impacto da proibição do divórcio no Brasil no âmbito do Direito Internacional Privado
é evidente. De início, a introdução ao Código Civil de 1916 era omissa, mas a proibição de
divórcio no Brasil gerou, rapidamente, a existência de divórcios de brasileiros (ou entre
brasileiros e estrangeiros) feitos em Estado estrangeiro com ordenamento mais permissivo
e, após, era feito o pedido de homologação da sentença estrangeira de divórcio no Brasil.
Buscava-se, assim, contornar a rigidez da legislação brasileira.
A jurisprudência da época posicionou-se de modo contrário a tais condutas,
considerando que a indissolubilidade do casamento era matéria de ordem pública, o que
impedia a homologação dessas sentenças estrangeiras de divórcio de casais brasileiros.
No máximo, o Judiciário brasileiro aceitava considerar, no caso de divórcio de brasileiro
e estrangeiro, homologar a sentença estrangeira como sendo de desquite caso a
legislação nacional do estrangeiro admitisse o divórcio, o que impedia que ambos os
cônjuges (inclusive o cônjuge estrangeiro) pudessem se casar de novo no Brasil.
Assim, com a aprovação da LICC/42, supriu-se a omissão da introdução ao Código
Civil de 1916, com a redação original do § 6.o do art. 7º, que dispunha, em linha com os
precedentes judiciais dos anos anteriores, que «não será reconhecido no Brasil o divórcio,
se os cônjuges forem brasileiros. Se um deles o for, será reconhecido o divórcio quanto
ao outro, que não poderá, entretanto, casar-se no Brasil.» A redação original da LICC/42
alinhava-se com a jurisprudência então reinante, determinando que o divórcio no exterior
não seria reconhecido no Brasil, se os cônjuges fossem brasileiros. Seria considerado como
mero desquite, previsto no Código Civil da época, se as condições lá previstas tivessem
sido preenchidas58. Se um deles o fosse, seria reconhecido o divórcio quanto ao outro
(cônjuge estrangeiro), caso a lei de sua nacionalidade admitisse o divórcio, mas que não
poderia, entretanto, casar-se no Brasil. Essa posição era assim resumida: se os brasileiros
não podiam divorciar-se no Brasil, também não poderiam em outro país.
Esse dispositivo, embora compatível com a jurisprudência da época, rompeu com a
regra geral da LICC/42 sobre o uso da lei do domicílio para reger o estatuto pessoal (art.
56. Art. 167 - A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos. § 1º - O
casamento é indissolúvel.
57. Art. 175. A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos. § 1º O casamento
é indissolúvel.
58. Nesse sentido, TENÓRIO, Oscar. Lei de Introdução ao Código Civil. 2ª ed., Rio de Janeiro: Borsói, 1955, p. 287.
186
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
7º, caput), pois levava em consideração a nacionalidade brasileira dos cônjuges, como se
o novo DIPr brasileiro não houvesse substituído a lex patriae pela lex domicilii.
Assim, a LICC, na sua redação original, acabou acatando o sistema misto no tocante
ao estatuto pessoal, abrindo exceção quanto ao divórcio, que continuou regido pela lei
da nacionalidade, para atender a pressão da Igreja Católica (a favor da indissolubilidade
do casamento) contra os divórcios celebrados no exterior de casais brasileiros. Para
manter a coerência com a lei do domicílio (que, em abstrato, permitiria que um casal de
brasileiros, domiciliados em Estado estrangeiro que aceitasse o divórcio de casamento
celebrado em outro país, se divorciasse), a saída seria invocar a cláusula de ordem
pública para vedar a homologação de sentença estrangeira de divórcio de brasileiro
domiciliado no exterior.
Somente em 1977, 86 anos depois da separação republicana da Igreja do Estado, foi
aprovada a Emenda Constitucional nº 09, de 28 de junho de 1977, que alterou a redação
artigo 175, § 1º, da Constituição então vigente dispondo que “ o casamento somente
poderá ser dissolvido, nos casos expressos em lei, desde que haja prévia separação
judicial por mais de três anos”. A dissolução do casamento pelo divórcio, então, foi,
finalmente, aceita pelo ordenamento brasileiro, condicionada à prévia separação
judicial por mais de três anos (o antigo “desquite” do Código Civil de 1916).
Após a aprovação da Emenda nº 09/77, a Lei 6.515/77 (“Lei do Divórcio”) deu nova
redação ao § 6º do art. 7º da LICC, dispondo que o divórcio realizado no estrangeiro,
se um ou ambos os cônjuges fossem brasileiros, seria reconhecido no Brasil somente
depois de três anos da data da sentença, salvo se houvesse sido antecedida de
separação judicial por igual prazo, caso em que a homologação produziria efeito
imediato, obedecidas as condições estabelecidas para a eficácia das sentenças
estrangeiras no Brasil .
A nova redação desse dispositivo da LICC obedeceu a lógica do sistema misto (lei
da nacionalidade usada no divórcio, ao invés da regra geral da lei do domicílio) acima
apontada: a lei brasileira havia sido modificada (permitindo o divórcio, com lapsos
temporais) e, então, a LICC seguiu o mesmo rumo, só que usou os lapsos temporais
para postergar a homologação da sentença estrangeira, evitando que os brasileiros
que quisessem se divorciar optassem por uma “via rápida” do divórcio no exterior.
A LICC ainda autorizou o Supremo Tribunal Federal (na época competente para julgar
a ação de homologação de sentença estrangeira), na forma de seu regimento interno,
DOUTRINA . DIREITO DE FAMÍLIA
O CASAMENTO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO NO BRASIL
187
a reexaminar, a requerimento do interessado, decisões já proferidas em pedidos de
homologação de sentenças estrangeiras de divórcio de brasileiros, a fim de que passem
a produzir todos os efeitos legais.
A redação originária da Constituição de 1988 manteve, obviamente, a
dissolubilidade do casamento, ampliando a forma de sua concessão, prevendo que o
casamento civil poderia ser dissolvido pelo divórcio, após (i) prévia separação judicial
por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou (ii) comprovada separação de fato
por mais de dois anos59.
O Código Civil de 2002 seguiu a linha da divisão entre a “separação judicial” (que
extingue a sociedade conjugal, os deveres de coabitação e fidelidade recíproca e
regime de bens60) e o “divórcio direto” (art. 1.580, § 2º61).
Em 2007, a Lei 11.441 possibilitou a realização de inventário, partilha, separação
consensual e divórcio consensual por via administrativa. O art. 1.124 - A do Código de
Processo Civil (introduzido por essa lei) prevê a existência de divórcio consensual por
escritura pública, da qual constarão as disposições relativas à (i) descrição e à partilha
dos bens comuns e (ii) à pensão alimentícia e, ainda, ao (iii) acordo quanto à retomada
pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou à manutenção do nome adotado quando
se deu o casamento. É requisito para o divórcio consensual por escritura pública a
inexistência de filhos menores ou incapazes do casal.62
Com a maior liberalização do divórcio dada pela Constituição de 1988, novamente
o § 6.o do art. 7º da lei foi alterado. A Lei 12.036/09 estabeleceu que o divórcio
realizado no estrangeiro, se um ou ambos os cônjuges fossem brasileiros, só seria
59. Constituição de 1988, redação original do art. 226, § 6º: “ O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio,
após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato
por mais de dois anos.”
60. Art. 1.576. A separação judicial põe termo aos deveres de coabitação e fidelidade recíproca e ao regime de bens.
61. Art. 1.580. Decorrido um ano do trânsito em julgado da sentença que houver decretado a separação judicial,
ou da decisão concessiva da medida cautelar de separação de corpos, qualquer das partes poderá requerer sua
conversão em divórcio. § 1o A conversão em divórcio da separação judicial dos cônjuges será decretada por
sentença, da qual não constará referência à causa que a determinou. § 2o O divórcio poderá ser requerido, por
um ou por ambos os cônjuges, no caso de comprovada separação de fato por mais de dois anos.
62. Conferir Res. 35 do Conselho Nacional de Justiça, que disciplina a aplicação da Lei nº 11.441/07 pelos serviços
notariais e de registro. Disponível em http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-presidencia/323resolucoes/12151-resolu-no-35-de-24-de-abril-de-2007, último acesso em 2 de fevereiro de 2015.
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
reconhecido no Brasil depois de um ano da data da sentença, salvo se houvesse
sido antecedida de separação judicial por igual prazo, caso em que a homologação
produziria efeito imediato, obedecidas as condições estabelecidas para a eficácia das
sentenças estrangeiras no país.
Novamente, a lógica da lei da nacionalidade brasileira para reger o divórcio dominou
o DIPr: como a CF/88 havia criado a figura do divórcio direto depois de dois anos de
separação de fato ou divórcio depois de um ano de separação judicial63, entendeu o
legislador que esses prazos poderiam ser adaptados ao DIPr, evitando, novamente, que
o divórcio no exterior fosse mais rápido que o doméstico.
O Superior Tribunal de Justiça, na forma de seu regimento interno, foi autorizado
pela Lei 12.036 a reexaminar, a requerimento do interessado, decisões já proferidas em
pedidos de homologação de sentenças estrangeiras de divórcio de brasileiros, a fim de
que passassem a produzir todos os efeitos legais.
Essa redação dada em 2009 ao § 6.o do art. 7º está em vigor até hoje.64
Em 2010, houve mais um avanço, com a edição da Emenda Constitucional nº 66 (cuja
proposta de emenda constitucional foi apelidada de “PEC do Divórcio”), que suprimiu o
requisito de prévia separação judicial por mais de um ano ou de comprovada separação
de fato por mais de dois anos, dispondo, sucintamente, que “o casamento civil pode
ser dissolvido pelo divórcio” (nova redação do art. 226, § 6º). O Superior Tribunal de
Justiça já possui precedente pelo qual a regra do art. 226, § 6°, da CF⁄88 prevalece sobre
o disposto no art. 7°, § 6°, da LINDB65.
63. Constituição de 1988, redação original do art. 226, § 6º: “ O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio,
após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato
por mais de dois anos.”
64. In verbis: § 6º. «O divórcio realizado no estrangeiro, se um ou ambos os cônjuges forem brasileiros, só será
reconhecido no Brasil depois de 1 (um) ano da data da sentença, salvo se houver sido antecedida de separação
judicial por igual prazo, caso em que a homologação produzirá efeito imediato, obedecidas as condições
estabelecidas para a eficácia das sentenças estrangeiras no país. O Superior Tribunal de Justiça, na forma de
seu regimento interno, poderá reexaminar, a requerimento do interessado, decisões já proferidas em pedidos
de homologação de sentenças estrangeiras de divórcio de brasileiros, a fim de que passem a produzir todos os
efeitos legais.» (Redação dada pela Lei nº 12.036, de 2009).
65. Sentença Estrangeira Contestada nº 4441 / Estados Unidos - Relatora: Ministra Eliana Calmon - Órgão Julgador:
Corte Especial - Data do Julgamento: 29/06/2010 - Data da Publicação/Fonte: DJe 19/08/2010.
DOUTRINA . DIREITO DE FAMÍLIA
O CASAMENTO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO NO BRASIL
189
Deve ser atualizada, então, a interpretação da LINDB, para permitir o reconhecimento
do divórcio realizado no exterior sem qualquer exigência temporal, na linha das últimas
alterações dessa regra de DIPr, que sempre foi atualizada para estar em linha com o
desenvolvimento do regime jurídico brasileiro do divórcio.
9. A LEI APLICÁVEL AO DIVÓRCIO.
Questão importante sobre o divórcio no DIPr é a determinação da lei aplicável. Caso
ambos os cônjuges sejam domiciliados no mesmo Estado, utiliza-se tal lei, que é a lei
do domicílio conjugal, regra geral sobre direito de família no DIPr brasileiro. Caso eles
possuam domicílio em Estados diferentes, a LINDB é omissa.
Em primeiro lugar, não é possível o uso extensivo do domicílio de um cônjuge, como
chefe da família conforme consta da regra prevista no art. 7º, § 7º da LINDB. De fato, como
já visto acima, a escolha de um “chefe da família” é inconstitucional e inconvencional,
uma vez que esse tipo de domicílio por dependência ofende a igualdade entre os cônjuges
prevista na Constituição e nos tratados de direitos humanos celebrados pelo Brasil. Assim,
para suprir essa omissão legislativa, é possível a utilização de duas soluções.
A primeira solução possível é a aplicação analógica do art. 7º, § 8º, que estabelece
alternativas para o caso de inexistência de domicílio (no caso, a residência ou onde
quer que a pessoa se encontre). Inexistindo o domicílio conjugal, utiliza-se, para reger
o divórcio, a lei da última residência habitual comum durante o casamento. A segunda
solução possível seria a utilização da lex fori, ou seja, a lei brasileira.66
10. CONCLUSÃO.
O presente artigo buscou esmiuçar os dispositivos da Lei de Introdução às Normas
do Direito Brasileiro sobre o casamento e temas correlatos. O enfoque foi o do
questionamento das soluções tradicionais doutrinárias e mesmo normativas à luz da
gramática dos direitos humanos.
Como já defendi em outro artigo, atualmente, é um truísmo a afirmação da
necessidade do Direito Internacional Privado respeitar os direitos humanos, pois
66. Nesse sentido, ver TANAKA, Aurea Christine. O divórcio dos brasileiros no Japão. O direito internacional privado e
os princípios constitucionais. São Paulo: Kaleidos-Primus, 2005, pp; 97-98.
190
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
todo o ordenamento jurídico internacional – e nacional – deve respeito a essa nova
centralidade.67
Assim, espera-se que o casamento no Direito Internacional Privado seja agora
interpretado sob esse novo foco, permitindo uma interpretação conforme aos direitos
humanos da LINDB, evitando seu engessamento e obsolescência.
67. CARVALHO RAMOS, André de. “Pluralidade das fontes e o novo Direito Internacional Privado” in Revista da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo v. 109, jan./dez. 2014, pp. 597 - 620.
PROPRIEDADE INTELECTUAL
TRADEDRESS IMITAÇÃO E
CONCORRÊNCIA DESLEAL
FERNANDA NEVES PIVA
Mestranda em Direito Comercial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Advogada.
SUMÁRIO
1. Introdução; 1.a Conceito de trade dress,1.b Trade dress em estabelecimentos comerciais; 2. Tutela jurídica do trade
dress no Brasil; 3. Elementos caracterizadores da infração do trade dress, 3.a Distintividade, 3.b Possibilidade de
confusão ou associação – Desvio de clientela; 4. Dever de indenizar; 5. Conclusão; 6. Bibliografia.
RESUMO
ABSTRACT
Este artigo visa a analisar brevemente o conceito de trade dress e, principalmente, identificar os
elementos caracterizadores da conduta anticoncorrencial consistente na imitação do conjunto-imagem de um determinado player por seus concorrentes de mercado. Será também examinada
a forma como os tribunais brasileiros têm julgado
as ações em que se busca reparação civil em virtude da violação do trade dress, inclusive no que diz
respeito à necessidade de comprovação do dano
material para a configuração do dever de indenizar nesses casos.
This paper aims to briefly analyze the concept of
trade dress and especially identify the elements
capable of characterizing the anti-competitive
conduct of trade dress imitation. We will also
examine how the Brazilian courts have been
judging the lawsuits regarding breach of trade
dress, with special attention to the need to prove
damages in order to configurate the duty to
indemnify in these cases.
PAVRAS-CHAVE
KEYWORDS
Conjunto-imagem. Concorrência desleal. Desvio de
clientela. Propriedade intelectual.
Unfair competition. Antitrust law.
Intellectual property
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1.INTRODUÇÃO
A sociedade pós-moderna é, incontestavelmente, regida pelo consumo em grande escala.
Uma das maiores características do mercado de consumo atual, por conseguinte, é o alto
nível de competitividade existente entre os players de cada segmento. Prova disto é a grande
quantidade de produtos similares ofertados ao consumidor, das mais diversas marcas.
Neste cenário, portanto, cada vez mais importantes são os elementos identificadores
das empresas – tais como o trade dress - que desempenham o relevante papel de
diferenciá-las dos demais concorrentes de mercado, conferindo a cada uma delas
identidade única.
A) CONCEITO DE TRADE DRESS
O trade dress – no Brasil também chamado de conjunto-imagem - nada mais é do
que a identidade visual de determinado produto, serviço ou estabelecimento.
Como explica JOSÉ CARLOS TINOCO SOARES, trata-se da “exteriorização do objeto,
do produto ou de sua embalagem, é a maneira peculiar pela qual se apresenta e se
torna conhecido. É pura e simplesmente a ’vestimenta’, e/ou ‘uniforme’, isto é, um traço
peculiar, uma roupagem ou a maneira particular de alguma coisa se apresentar ao
mercado consumidor ou diante dos usuários”1.
Em aprofundado estudo sobre a matéria, GUSTAVO PIVA DE ANDRADE esclarece que
trade dress “é o conjunto dos elementos que compõem a atividade visual de determinado
produto ou serviço, distinguindo-o e individualizando-o dos seus congêneres no mercado”2.
O conjunto-imagem desempenha papel de extrema relevância, porquanto “muitas
vezes exerce um poder de atração equivalente ou até maior do que aquele exercido
pela principal marca da empresa”3. É, assim, fator determinante no ato da escolha e da
aquisição de determinado bem ou serviço pelo consumidor.
A título de exemplo, podemos mencionar, dentre outros, latas e garrafas de bebidas,
embalagens de produtos de limpeza, caixas e recipientes de alimentos, e, ainda, layouts
de restaurantes, interiores de lojas, fachadas de postos de gasolina, etc.
1. Concorrência Desleal vs. Trade Dress e/ou Conjunto-imagem. Ed. Tinoco Soares, 2004, p. 213.
2. O trade dress e a proteção da identidade visual de produtos e serviços. In: Revista da ABPI, nº 112, mai/jun 2011, p. 4.
3. Gustavo Piva de Andrade. Ob. cit., p. 6.
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Nas palavras de JOSÉ ROBERTO GUSMÃO e LAETITIA PABLO d’HANENS, o instituto
“configura um vínculo entre o empresário e o consumidor, levando este último a optar
pelo produto ou serviço baseado na memória da aparência ou da roupagem que os
identificava em experiência satisfatória passada”4.
No que diz respeito ao destaque de determinado produto, serviço ou
estabelecimento, o trade dress é, portanto, figura determinante no mercado.
Em função disso, conjuntos-imagem bem sucedidos e fortes são frequentemente
copiados por imitadores que, ao invés de criarem a própria identidade visual, apropriamse indevidamente daquela desenvolvida por um concorrente, visando a alcançar lucro e
sucesso de maneira mais rápida e fácil.
B) TRADE DRESS EM ESTABELECIMENTOS COMERCIAIS
Ainda que, no início, o termo estivesse relacionado apenas a embalagens e rótulos
de produtos, a proteção ao conjunto-imagem posteriormente estendeu-se também à
impressão visual de estabelecimentos.
O leading case, no Brasil, foi a ação proposta pela loja de calçados Mr. Cat, na qual
alegava que a forma como decorava suas lojas havia sido copiada por outra empresa do
ramo (grife Mr. Foot). A autora sustentava que a porta de entrada dos estabelecimentos,
a fachada e até mesmo as prateleiras e balcões internos das lojas haviam sido
reproduzidos pela concorrente.
O caso foi julgado pelo Juízo da 4ªVara Cível da Comarca de Goiânia, que,
reconhecendo a infração ao trade dress da Mr. Cat, entendeu que “os estabelecimentos
se confundem pela característica da decoração feita com mobiliário em madeira,
saquinhos em algodão ou malha, com logotipo impresso e expostas no interior das
lojas, prateleiras em arquibancadas, balcões abertos, caixas recuados ao fundo das lojas
e as portas de acesso em estilo boutique, com passagem individual para clientes”5.
A ação foi julgada procedente, reconhecida a prática de concorrência desleal pela
ré, que foi condenada a alterar o layout de sua loja, bem como ao pagamento de
indenização à autora.
4. Breves comentários sobre a proteção ao trade dress no Brasil. In: Revista dos Tribunais - RT 919, maio de 2012, p. 591.
5. Processo n° 1101/97, 4ª Vara Cível da Comarca de Goiânia/GO.
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Ainda sobre trade dresses de estabelecimentos comerciais, pode-se dizer que cada
vez mais comuns são os casos em que postos de gasolina copiam as fachadas de
seus concorrentes, apropriando-se indevidamente das cores, formas e símbolos que
compõem sua identidade visual. Assim ocorreu em caso julgado recentemente pelo
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Veja-se:
“CONCORRÊNCIA DESLEAL. Utilização do trade dress de marca de distribuidora
de combustíveis, com utilização de fachada do posto de gasolina com as
cores que caracterizam o conjunto de imagens distintivo. Violação de direitos
da propriedade industrial e usurpação que tem finalidade de aproveitamento
da bandeira para captação de clientela. Sentença de procedência. Apelo
para reconhecimento de ausência de interesse de agir, ou julgamento de
improcedência, bem como redução dos honorários. Não provimento”6.
O relator, ilustre Des. ENIO ZULIANI, manteve a sentença que julgou procedente a
ação proposta pela Petrobras, em virtude do provável desvio de clientela ocasionado
pela imitação do trade dress da autora. Segundo ele, “as características inseridas na
fachada do estabelecimento comercial da ré são suficientes para causar prejuízos à
autora, bem como causar confusão na massa consumidora”.
São diversas as ações judiciais, portanto, em que se busca coibir eventuais imitações
do conjunto-imagem. A seguir, analisaremos os fundamentos jurídicos de tais ações.
Brevemente caracterizado o trade dress e também apontada a possibilidade de
aplicação do conceito a estabelecimentos, cumpre-nos examinar a tutela jurídica do
instituto na legislação brasileira. Em outras palavras: quais instrumentos legais podem e
são utilizados na proteção ao conjunto-imagem?
2.TUTELA JURÍDICA DO TRADE DRESS NO BRASIL
O instituto teve origem nos Estados Unidos e vem ganhando cada vez mais
importância no cenário mundial. Naquele país, é tutelado pelo Lanham Act7, que prevê
6. Ap. 0203428-85.2009.8.26.0100, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial.
7. Section 43 (15 U.S.C. § 1125): “Any person who, on or in connection with any goods or services, or any container
for goods, uses in commerce any word, term, name, symbol, or device, or any combination thereof, or any false
designation of origin, false or misleading description of fact, or false or misleading representation of fact, which-(A) is likely to cause confusion, or to cause mistake, or to deceive as to the affiliation, connection, or association
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expressamente a possibilidade de reparação civil em caso de violação do trade dress.
No Brasil, o conjunto-imagem ainda não é tutelado por previsão legal específica,
mas sua imitação tem sido coibida com base no instituto da concorrência desleal.
Essencial ao estudo da proteção jurídica do instituto no ordenamento jurídico
pátrio é compreender a distinção entre o trade dress e outros sinais distintivos (marcas,
desenhos industriais, etc).
Isto porque, como elucidam JOSÉ ROBERTO GUSMÃO e LAETITIA PABLO d’HANENS, “a
proteção jurídica ao trade dress, como conjunto de elementos e/ou sinais característicos
e distintivos, não afasta nem se confunde com a eventual proteção conferida a cada
um deles individualmente considerados como, por exemplo, quando tais elementos ou
sinais constituem marcas, desenhos industriais, títulos de estabelecimento, e assim por
diante”8. Ponderam os autores, assim, que o instituto pode ser equiparado a um sinal
distintivo não registrado.
Portanto, apesar de não existir, no Brasil, dispositivo legal específico que proteja o
trade dress, os atos de violação do conjunto-imagem podem - e tem sido - coibidos por
meio da aplicação: (i) do art. 5º, inciso XXIX, da Constituição Federal, que determina
que “a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua
utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes
de empresas e a outros signos distintivos...” e (ii) das regras de proteção à concorrência,
especialmente os arts. 2º, V9, e 195, III, da Lei de Propriedade Industrial (“comete crime de
of such person with another person, or as to the origin, sponsorship, or approval of his or her goods, services, or
commercial activities by another person, or
(B) in commercial advertising or promotion, misrepresents the nature, characteristics, qualities, or geographic
origin of his or her or another person’s goods, services, or commercial activities, shall be liable in a civil action by
any person who believes that he or she is or is likely to be damaged by such act.
(2) As used in this subsection, the term “any person” includes any State, instrumentality of a State or employee of
a State or instrumentality of a State acting in his or her official capacity. Any State, and any such instrumentality,
officer, or employee, shall be subject to the provisions of this Act in the same manner and to the same extent as
any nongovernmental entity.
(3) In a civil action for trade dress infringement under this Act for trade dress not registered on the principal
register, the person who asserts trade dress protection has the burden of proving that the matter sought to be
protected is not functional”.
8. Ob. cit., p. 592.
9. “A proteção dos direitos relativos à propriedade industrial, considerando o seu interesse social e o
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concorrência desleal quem: II – emprega meio fraudulento para desviar, em proveito próprio
ou alheio, clientela de outrem”).
Citamos, a título ilustrativo, recente julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo, no qual, aplicando o art. 195, III, da LPI, o nobre Des. ROBERTO MAIA reconheceu
a concorrência desleal praticada por posto de combustível, em virtude do uso indevido
de trade dress do seu concorrente:
“POSTO DE COMBUSTÍVEL. USO INDEVIDO DE TRADE DRESS. CONCORRÊNCIA
DESLEAL. DANOS MATERIAIS. O réu-apelado utilizou testeira nas cores
verde e amarela, com uma fixa branca no meio, em medidas semelhantes às
empregadas pelos postos vinculados à autora-apelante. Cartaz com a marca ‘BR’
estrategicamente posicionado. Placa com o valor do litro da gasolina e do álcool,
na qual constavam os dizeres ‘De olho no produto’, cartaz muito similar ao da
recorrente, o qual anuncia os preços e também o programa de qualidade ‘De
olho no combustível’. Uso ilícito de elementos característicos do trade dress da
apelante. Concorrência desleal específica. Artigo 195, inciso III, da Lei nº
9.279/1996. O recorrido deverá pagar à recorrente indenização por danos
materiais (danos emergentes e lucros cessantes), em valor a ser apurado na fase
de liquidação. Recurso provido, com alteração do ônus da sucumbência” 10.
No caso, além de condenado à abstenção do uso do trade dress de seu concorrente,
o réu foi também obrigado ao pagamento de indenização ao autor, em virtude de sua
conduta anticoncorrencial.
Vale ressaltar que a reparação civil, nesses casos, tem respaldo no art. 209 da LPI, que
assim preconiza:
“Fica ressalvado ao prejudicado o direito de haver perdas e danos em
ressarcimento de prejuízos causados por atos de violação de direitos de
propriedade industrial e atos de concorrência desleal não previstos nesta Lei,
tendentes a prejudicar a reputação ou os negócios alheios, a criar confusão entre
estabelecimentos comerciais, industriais ou prestadores de serviço, ou entre os
produtos e serviços postos no comércio”.
desenvolvimento tecnológico e econômico do País, efetua-se mediante: (...) V – repressão à concorrência desleal”.
10. Ap. 0340728-98.2009.8.26.0000, 10ª Câmara de Direito Privado.
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Comentando o instituto, DENIS BORGES BARBOSA pondera que, além “dos artigos
da LPI que protegem e possibilitam a tutela civil e o ressarcimento por perdas e danos,
ainda é possível se valer dos artigos 186 e 927 do código civil de 2002”11.
Importante esclarecer que o trade dress não precisa estar registrado para que se
busque sua proteção em juízo.
Como explica o especialista na área, GUSTAVO PIVA DE ANDRADE, “a própria lei
brasileira, inclusive, salienta que o fato gerador do ato ilícito é o desvio fraudulento de
clientela”. Assim, “mesmo que o trade dress não esteja registrado, o empresário pode
buscar proteção sobre a impressão visual do seu produto ou serviço com base nas
regras de concorrência”.
Além disso, nem sempre o trade dress é passível de registro, porquanto, por muitas
vezes, não pode ser enquadrado no conceito de marca ou desenho industrial. É o caso,
por exemplo, da identidade visual de lojas, que envolve não apenas cores, símbolos,
etc., mas, muitas vezes, a organização e disposição interna de móveis e objetos.
Em outras palavras, o registro do trade dress não é condição indispensável para que
se pretenda proibir a prática de concorrência desleal por imitação. Assim decidiu o
Colendo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em brilhante e recente decisão
relatada pelo Des. RAMON MATEO JR.:
“É certo inexistir nos autos notícia do registro da marca mista da autora, solicitado
antes mesmo do ajuizamento da presente demanda. Esse aspecto, entretanto,
não apresenta qualquer relevo.
O pedido de registro da marca mista (correspondente ao nome e ao desenho),
pendente de aprovação, assegura à autora ‘zelar pela sua integridade material ou
reputação. Esse depósito ou requerimento, a princípio, assegura a precedência
e a proteção contra a utilização ilícita por terceiros.’ (Apelação Cível n. º 016567735.2007.8.26.0100, Rel. Des. Francisco Loureiro).
Logo, ainda que ausente o registro, irrecusável possuir a autora direito de ver
salvaguardada a trade-dress de seu produto.
11. Do trade dress e suas relações com a significação secundária. Disponível em: http://www.denisbarbosa.addr.
com/arquivos/200/propriedade/trade_dress.pdf.
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A alegação da ré, no sentido de comercializar os produtos anteriormente à
autora, desde 2002, sobre não haver sido corroborada com qualquer prova nos
autos, não merece acolhida.
E, de toda sorte, a autora demonstrou que comercializa seus produtos
denominados Doguitos, desde 2001 (fl. 95).
Logo, ainda que o pedido de registro da marca mista tenha sido levado a efeito
em 2012, tal aspecto não possui qualquer relevância. Pois a colocação do produto
Doguitos no mercado é anterior ao produto da ré” 12.
Nos Estados Unidos, igualmente, o Lanham Act confere a mesma proteção para o
trade dress registrado ou não registrado, como aponta GUSTAVO PIVA DE ANDRADE em
seu detalhado estudo, citando decisão da Suprema Corte Americana nesse sentido:
“The Supreme Court interprets this section as having created a federal cause of
action for infringement of unregitered trade mark or trade dress and concludes
that such a mark or trade dress should receive essentially the same protection as
those that are registered’ (Two Pesos, Inc v. Taco Cabana, Inc. 505 U.S. 763, 1992)”13.
Uma vez registrado, vale dizer, o trade dress estará protegido não apenas pelas regras
que regem a concorrência, mas também pelas normas de propriedade intelectual.
Eventual imitação do trade dress, nesses casos, importará também, portanto, em
contrafação.
São diversas as vantagens de se registrar o trade dress quando possível. Ao fazê-lo, o
titular efetivamente adquire direitos de propriedade sobre o signo e pode, pois, licenciálo e aliená-lo. Além disso, poderá basear-se nos dispositivos legais relativos à infração de
marca ou desenho industrial para combater eventuais imitações, como já dito.
Ainda, com o registro, o titular adquire direitos exclusivos sobre o trade dress em
todo o território nacional, o que afasta eventuais argumentos do infrator no sentido
de que inexiste relação de concorrência entre as empresas pelo fato de atuarem em
diferentes territórios (estados, por exemplo).
12. Ap. 0011981-66.2013.8.26.0100, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. E, no mesmo sentido: TJSP, Ap.
374.951.4/8-00.
13. Ob. cit., p. 8.
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De se ponderar, ainda, que a existência do registro facilita também a obtenção de
liminares em juízo. Nas palavras do autor supracitado, “influenciados pelas características
do sistema atributivo, juízes brasileiros se sentem mais confortáveis em conceder tutelas
de urgência baseados em um título de propriedade, validamente expedido pelo órgão
competente, do que baseados somente no instituto da concorrência desleal”.
Em suma: quando viável, o registro do conjunto-imagem é recomendável – ainda
que não seja imprescindível, como visto, para que se busque protegê-lo.
Superada a questão do registro, há de se avaliar quais elementos serão considerados
pelo juízo quando do julgamento de uma disputa judicial envolvendo a identidade
visual de um produto, serviço ou estabelecimento.
Ou seja: o que deverá ser demonstrado pela empresa que alega a imitação de seu
trade dress para que consiga proibir seu uso por terceiros concorrentes e, ainda, receber
indenização pelos danos que experimentou em virtude da suposta infração.
3. ELEMENTOS CARACTERIZADORES DA INFRAÇÃO DO
TRADE DRESS
Essencialmente, são dois os fatores que devem estar presentes para que se consiga
obter em juízo a proteção do trade dress: (a) distintividade do conjunto-imagem e (b)
possibilidade de confusão ou associação (desvio de clientela).
Discorreremos, a seguir, sobre cada um de tais elementos.
A) DISTINTIVIDADE
A distintividade pode ser descrita como a identidade única conferida ao produto ou
ao serviço pelo conjunto-imagem, que o distingue e diferencia dos demais.
Como explica CASSIANO RICARDO GOLOS TEIXEIRA em artigo publicado na Revista
Eletrônica do IBPI14, “o primeiro ponto da avaliação do conceito de trade dress seria o
aspecto inerentemente distintivo que se resume justamente à habilidade do trade dress
servir como função para identificar a fonte dos produtos e serviços, sendo adquirida ao
longo do uso extensivo da ‘aparência’”.
14. Concorrência desleal: Trade Dress. In: Revista Eletrônica do IBPI, 2009, p. 8. Disponível em: http://ibpibrasil.org/
ojs/index.php/Revel/article/view/17/17.
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Assim, para ser considerado distintivo, o conjunto-imagem deve ser hábil a destacar
determinado produto, serviço ou estabelecimento em relação aos seus concorrentes de
mercado. GUSTAVO PIVA DE ANDRADE pondera que “o escopo de proteção conferido ao
trade dress é diretamente proporcional ao seu grau de disntintividade. Trade dresses únicos
e absolutamente distintitvos são merecedores de um amplo escopo de proteção”15.
Caracterizada a distintividade do trade dress, dever-se-á verificar, no caso concreto,
se a similaridade existente entre os conjuntos-imagem sob análise causa ou poderá vir
a causar, futuramente, confusão entre produtos ou serviços.
B) POSSIBILIDADE DE CONFUSÃO OU ASSOCIAÇÃO – DESVIO DE
CLIENTELA
A simples possibilidade de confusão, vale dizer, é reconhecida pela jurisprudência
como suficiente para a proteção do trade dress. Nesse sentido, pontua o mesmo autor,
em outro artigo de sua autoria sobre o tema16:
“É interessante notar que a lei brasileira proíbe não apenas a confusão concreta
como também a possibilidade de confusão entre os produtos. O tipo mais
comum de confusão ocorre quando o novo competidor tenta aproximar a
embalagem do seu produto da embalagem do produto líder de mercado. Tratase de uma forma de concorrência desleal e já existem diversos precedentes no
Judiciário brasileiro atestando a ilicitude dessa conduta (vide Sanofi v.H.B. Farma,
2003, Sanofi v. Vitapan, 2006)” .
Sobre a confusão, explica o renomado jurista JOSÉ CARLOS TINOCO SOARES: “Como
exemplo flagrante dessa modalidade temos a hipótese em que são reproduzidos ou
imitados os característicos do produto, de sua embalagem, de sua forma de apresentação
no mercado, aliados ao emprego de sinais distintivos (marcas nominativas ou figurativas,
tipos de letra, emblemas, desenhos e outros), com o emprego ou não das expressões
de propaganda que salientam as qualidades do produto ou do estabelecimento. O
conjunto levará fatalmente os menos avisados a erro e confusão quanto à origem ou
PROCEDÊNCIA DO PRODUTO”17.
15. Ob. cit., p. 12.
16.A proteção do ‘’trade dress’’ na área farmacêutica. Disponível em: http://www.dannemann.com.br/dsbim/
Biblioteca_Detalhe.aspx?&ID=392&pp=1&pi=2.
17. Apud NEWTON SILVEIRA. Estudos e Pareceres de Propriedade Intelectual. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2008, p.437.
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De se ponderar, ainda, que não só a confusão, mas também a associação indevida
pode ser reconhecida como desvio fraudulento de clientela. A associação indevida,
decorrente do chamado “aproveitamento parasitário”, resulta na obtenção de vantagem,
pela empresa infratora, a partir do uso de trade dress pioneiro ou já conhecido no
mercado.
Nesses casos, ainda que não haja aquisição errônea do produto, o infrator se aproveita
dos esforços empreendidos pelo criador do conjunto-imagem copiado (especialmente
de marketing), visando a facilitar o reconhecimento e a venda de seu bem no mercado.
A associação indevida também gera, portanto, desvio de clientela e, assim, é
igualmente considerada prática anticoncorrencial, inclusive para a finalidade de
proteção do trade dress.
Assim, embora menos evidente do que a confusão, a associação indevida tem sido
reconhecida como infração pelos tribunais brasileiros. Comenta GUSTAVO PIVA DE
ANDRADE nesse sentido: “Hoje já existem diversos julgados que atestam a infração
não só em função da errônea aquisição de um produto pelo outro, como também em
decorrência da associação fraudulenta, capaz de transmitir indevidamente ao produto
entrante os mesmos valores e atributos do produto tradicional”18.
Hipótese muito comum e que facilita a visualização da associação indevida na
prática diz respeito às fábricas de medicamentos genéricos que, por vezes, lançam
novos produtos no mercado, reproduzindo a impressão visual do medicamento de
referência, de maneira idêntica, adicionando apenas a letra “G” na embalagem. Haverá
nesses casos, indubitavelmente, aproximação indevida pelo consumidor.
Em suma, é essencial, portanto, que estejam presentes os dois elementos referidos
(distintividade e confusão/associação) para que se reconheça o ato ilícito praticado pelo
concorrente e, assim, o dever de indenizar.
4. DEVER DE INDENIZAR
No que diz respeito ao dever de indenizar nos casos em que há imitação do trade
dress (consagrado, como mencionado, no art. 209 da LPI19), imprescindível examinar
18. Ob. cit., p. 13.
19.“Fica ressalvado ao prejudicado o direto de haver perdas e danos em ressarcimento de prejuízos causados
204
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como a questão da necessidade de prova dos prejuízos é vista pela doutrina e, ainda,
como vem sendo tratada na jurisprudência dos tribunais brasileiros.
De acordo com um dos maiores doutrinadores na matéria, GAMA CERQUEIRA,
a prática do ato ilícito (anticoncorrencial) é suficiente para que surja a obrigação de
reparação:
“A simples violação do direito obriga à satisfação do dano, na forma do art.
159 do Cód. Civil, não sendo, pois, necessário, ao nosso ver, que o autor faça
a prova dos prejuízos no curso da ação. Verificada a infração, a ação deve ser
julgada procedente, condenando-se o réu a indenizar os danos emergentes e
os lucros cessantes (Cód. Civil, art. 1.059), que se apurarem na execução. E não
havendo elementos que bastem para se fixar o quantum dos prejuízos sofridos,
a indenização deverá ser fixada por meio de arbitramento, de acordo com o art.
1.553 do Cód. Civil”20.
No mesmo sentido tem se posicionado o Colendo Superior Tribunal de Justiça ao
interpretar o art. 209 da LPI, reconhecendo repetidas vezes o dever de indenizar na hipótese
sob análise, em virtude do dano patrimonial presumido sofrido pelo autor da ação:
“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL.
DANOS MORAIS. CONTRAFRAÇÃO. NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO.
PRECEDENTES. 1. Conforme a jurisprudência desta Corte, em se tratando de
direito de marcas, o dano material pode ser presumido, pois a violação do direito
é capaz de gerar lesão à atividade empresarial do titular, tais como, o desvio de
clientela e a confusão entre as empresas. Por outro lado, há a necessidade de
comprovação do efetivo dano moral suportado pela empresa prejudicada pela
contrafação, uma vez que, a indenização extrapatrimonial está ligada à pessoa
do titular do direito. 2. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO”21.
Na linha do entendimento do STJ, veja-se, também, recente julgado do TJSP, em que o
ilustre relator do acórdão, Des. CLÁUDIO GODOY, entendeu que o dano material está in re ipsa:
por atos de violação de diretos de propriedade industrial e atos de concorrência desleal não previsto nesta Lei,
tendentes a prejudicar reputação ou os negócios alheios, a criar confusão entre estabelecimentos comercias,
indústrias ou prestadores de serviço, ou entre os produtos e serviços postos no comércio”.
20. Tratado da Propriedade Industrial. São Paulo: Ed. Lumen Juris, 2012, vol. II, p. 218.
21. AgRg no AREsp 51.913/SP, Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão.
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“Propriedade industrial. Trade dress. Reprodução pelos réus do mesmo conjuntoimagem para a comercialização de produto concorrente. Concorrência desleal.
Conduta predatória tipificada no art. 195, II, da Lei 9.279/96. Divulgação, por exrepresentante comercial da autora, da informação de que ela havia encerrado suas
atividades. Prejuízo havido e mesmo presumido. Liquidação por arbitramento, nos
termos dos artigos 208 e 210 da Lei 9.279/96. Honorários contratuais hão também de
ser ressarcidos. Inteligência do art. 389 do CC. Sentença revista. Recurso provido”22.
Não se trata, porém, de questão sedimentada na jurisprudência. Parte dos julgadores
ainda entende que, em se tratando de violação a direito de propriedade intelectual ou
ato de concorrência desleal, o dano – assim como o ato ilícito e o nexo causal - deve ser
demonstrado pelo autor da ação em que se busca reparação civil23.
Assim, ideal seria que a questão da necessidade de prova do prejuízo quando evidenciada
a imitação do trade dress fosse pacificada na jurisprudência, especialmente em atenção ao
princípio da segurança jurídica e da isonomia, assegurados na Constituição Federal.
5.CONCLUSÃO
Realizadas as breves ponderações acima acerca do tema, verifica-se, em síntese,
que, embora não haja previsão legal expressa de proteção ao trade dress no Brasil, o
ordenamento jurídico brasileiro conta com meios eficazes de combate à concorrência
desleal – perfeitamente aplicáveis às hipóteses de imitação do conjunto-imagem.
Nota-se, também, que a jurisprudência dos tribunais brasileiros sobre o tema é bem
desenvolvida e conta com diversas decisões que reforçam a importância do instituto,
protegendo-o, por exemplo, independentemente de registro no INPI e pela simples
possibilidade de confusão ou associação resultante da imitação do trade dress.
Repisa-se, por fim, o antes exposto no sentido de que a questão relativa à necessidade
de comprovação dos prejuízos materiais decorrentes da violação do conjunto-imagem
merece especial atenção da jurisprudência, a fim de que se consolide um entendimento
quanto ao dano nesses casos (se presumido ou não).
22. Ap. 0001513-77.2011.8.26.0176, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. No mesmo sentido: Ap. 001198166.2013.8.26.0100, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Ramon Mateo Jr.
23. Confiram-se, a respeito, no TJSP, EI 0065228-57.2011.8.26.0576/50000, Rel. Des. Alexandre Marcondes.
206
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
6. BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Gustavo Piva de. O trade dress e a proteção da identidade visual de
produtos e serviços. In: Revista da ABPI, nº 112, mai/jun 2011.
ANDRADE, Gustavo Piva de. A proteção do ‘’trade dress’’ na área farmacêutica.
Disponível
em:
http://www.dannemann.com.br/dsbim/Biblioteca_Detalhe.
aspx?&ID=392&pp=1&pi=2.
BARBOSA, Denis Borges. Do trade dress e suas relações com a significação secundária.
Disponível em: www.denisbarbosa.addr.com/arquivos/200/propriedade/trade_dress.
pdf
CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da Propriedade Industrial. Rio de Janeiro: Ed.
Lumen Juris, 2012.
GUSMÃO, José Roberto d’Affonseca; d’HANENS, Laetitia Maria Alice Pablo. Breves
comentários sobre a proteção ao trade dress no Brasil. In: Revista dos Tribunais - RT
919, maio de 2012.
SILVEIRA, Newton. Estudos e Pareceres de Propriedade Intelectual. Rio de Janeiro:
Ed. Lumen Juris, 2008.
SOARES, José Carlos Tinoco. Concorrência Desleal vs. Trade Dress e/ou Conjuntoimagem. Ed. Tinoco Soares.
TEIXEIRA, Cassiano Ricardo Golos. Concorrência desleal: Trade Dress. In: Revista
Eletrônica do IBPI, 2009. Disponível em: http://ibpibrasil.org/ojs/index.php/Revel/
article/view/17/17.
http://www.tjsp.jus.br/. Acesso em: 10/3/2015.
http://www.tjgo.jus.br/. Acesso em: 10/3/2015.
SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
O PROCEDIMENTO COMUM NO NOVO
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
DOUGS BENDA
Advogado. Membro da Comissão dos Novos Advogados do IASP.
SUMÁRIO
1. Introdução; 2. Conceito e Estrutura do Teor Procedimental; 3. Aspectos Gerais da Lei Nº 8.046/2010; 4. Ponto
Focal do Futuro Procedimento Comum; 5. Modificações Gerais no Novo Procedimento Comum; 6. Conclusão;
7. Bibliografia.
RESUMO
ABSTRACT
Recentemente, tivemos a sanção presidencial
quanto ao novo código de processo civil, o
qual traz mudanças significantes na sociedade
brasileira e no poder judiciário.
Assim, já presenciamos alguns escritos e obras
tratando das principais mudanças verificadas no
texto legislativo, todavia, nenhuma tratando de
modo claro e preciso quanto ao Procedimento
Comum e suas nuances, especificamente no que
concerne ao novo rito procedimental.
A idéia principal é dissertar sobre as principais
diferenças e adequações de procedimentos
previstas, dando enfoque ao Procedimento Comum.
We have recently had the presidential approval of
the new Brazilian Code of Civil Procedure, which
brings significant changes to the Brazilian society
and the judiciary branch.
Thus, we have already followed some writings
and works addressing the major changes of the
new Code. However, none of them addressed,
in a clear and accurate manner, the Common
Procedure and its nuances, specifically regarding
the new procedure.
The main idea is to address the main procedural
differences and adequacy sought, focusing on
the Common Procedure.
PAVRAS-CHAVE
KEYWORDS
Novo código de processo civil. Procedimento
comum. Rito. Principais alterações.
New code of civil procedure. Common procedure.
Procedure. Main changes.
210
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v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
1. INTRODUÇÃO:
Tratando da realidade do Novo Código de Processo Civil (Projeto de Lei do
Senado nº 166/2010 e Projeto de Lei na Câmara dos Deputados nº 8.046/2010), que
prevê a substituição do Código de Processo Civil Atual (Lei nº 5.689, de 11.01.1973),
especificamente no que concerne ao novo rito procedimental, e ainda, sem o condão
principal de esgotar na íntegra o tema que traz calorosos debates, todavia, trazendo
abordagens interessantes e corriqueiras na esfera judiciária, pretendemos aprofundar
algumas questões e conhecimentos que serão necessários aos militantes do Judiciário,
inclusive, dissertando sobre as principais diferenças e adequações de procedimento
previstas.
Temos que haverá certa flexibilidade de rito procedimental, podendo o magistrado
ajustar de ofício o procedimento mais adequado para o trâmite processual, sempre
observando alguns conceitos processuais.
De imediato, apontamos a inserção de uma parte geral com fortes preceitos
fundamentais no referido texto de lei. Na citada parte geral, notamos o impute de certo
rol de princípios presentes em Carta Magna e Direito Constitucional puro, os quais irão
reger nosso novo Código. Com isso, não seria demais falarmos em Código de Processo
Civil constitucionalizado.
Assim, temos grande reafirmação dos conceitos existentes em nossa Constituição
Federal, gerando até mesmo apontamento de alguns juristas sobre a real necessidade
de tal alocação.
Importante ressaltar que, a inclusão de princípios gerais de Direito Constitucional
no Código de Processo Civil, pensando amplamente, poderá gerar certa confusão
doutrinária e legal, posto que, observando preliminarmente e sendo extremista na
análise, seria possível ingressar eventualmente ou conjuntamente com Recurso Especial
e Recurso Extraordinário numa mesma decisão, pois teríamos conceitos materiais e
em alguns casos formais, realmente conflitantes, não trazendo nesse ponto a famosa
celeridade processual desejada e respectiva economia processual, ao identificarmos
mais de uma hipótese de recurso para mesma decisão.
No referido Novo Código, existe ainda grande influência da “Commom Law”, pois
será nos casos possíveis apresentada uma tentativa de transação imediata, isto é, no
início efetivo do embate judicial. Tal fato não diminui a tentativa de conciliação que será
DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
O PROCEDIMENTO COMUM NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
211
efetuada no transcorrer do pleito judicial.
Ademais e especificamente tratando desse artigo jurídico, o elaborado Novo
Código de Processo Civil possuirá algumas mudanças significantes no que condiz aos
procedimentos atuais denominados de ordinário, sumário e especiais devidamente
previstos na atualidade nos Artigos 270, 890 e seguintes do CPC e, ainda, outros tantos
apontamentos em legislação extravagante, como passaremos a pormenorizar na
seqüência.
A idéia principal, inclusive no aspecto de alterar a estrutura procedimental, é dar
simplicidade à normativa processual civil e ao processo em si, com o objetivo de fazer
com que o juiz deixe, sempre que possível for, de se preocupar tanto com aspecto
formal da demanda, e sim, com o aspecto material.
Portanto, o intuito do código projetado é justamente dar autonomia para as partes
se preocuparem mais em fazer boas provas, e ainda, tratar a demanda com caráter
justamente conciliatório. Com tal viés e em conjunto com livre acesso ao judiciário, a
celeridade processual e economia processual, poderemos ter uma ótima prestação
jurisdicional, com efetividade judicial.
Assim, a noção de efetividade do processo, embora abrangente e dotada de “dose
inevitável de fluidez”, conforme alerta Barbosa Moreira1 pode ser compreendida como
uma série de exigências que convergem, em síntese, para a concretização de um
processo adaptável ao caso concreto, aproximado da verdade dos fatos, breve e voltado
à realização da tutela jurisdicional requerida.
Um processo efetivo deve garantir, necessária e primordialmente, a observância de
três fatores fundamentais: o tempo razoável, o contraditório e a realização do direito.
É de ressaltar que é justamente esse o intuito perquirido no Código Projetado pelos
legisladores e respectiva comissão, que fora presidida pelo notável Ministro Luiz Fux, do
Superior Tribunal de Justiça (STJ), e na versão substitutiva (Câmara dos Deputados), sob
batuta do relator Deputado Paulo Teixeira.
1. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Efetividade do processo e técnica processual.Temas de direito processual. Sexta
série. São Paulo: Saraiva, 1997.
212
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
2. CONCEITO E ESTRUTURA DO TEOR PROCEDIMENTAL:
Ainda na atualidade, é comum notar certa confusão conceitual sobre procedimento,
e não raro, conflito com o conceito de processo judicial.
O projeto do novo código de processo civil nada mais fez do que sintetizar o processo
cautelar do Código de Processo Civil vigente com o processo de conhecimento,
originando de modo simples o novo procedimento comum, mais abrangente, e assim,
com amplitude de normas.
Nesse mesmo prisma, existirá a extinção do atual procedimento sumário, e ainda, do
ordinário, os quais passarão em conjunto a serem nomeados de procedimento comum.
Na visão do termo procedimento, temos que o respectivo é a forma pela qual ocorre
a movimentação do processo, isto é, a seqüência pela qual ocorrem as práticas dos
atos judiciais. Com tal exposição, fica notório que todo processo segue determinado
procedimento, o que não ocorre no inverso.
De acordo com o Professor J. E Carreira Alvim2, temos que:
“...o processo é uma viagem e o procedimento é o itinerário perseguido para se realizar
a viagem...”.
Analisando esse preceito, notamos que o procedimento é uma noção puramente
formal, circunscrita à coordenação de atos que se sucedem logicamente, isto é, o meio
pelo qual se materializam as fórmulas e atos legais do processo. Procedimento é o modo
de realização do processo, ou seja, o rito processual.
Observando a estrutura do CPC projetado e contextualizando o mesmo, concluímos
que o código ter-se-á as seguintes divisões estruturais: a Parte Geral e a Parte Especial.
A Parte Geral conterá seis livros (Livro I: Das Normas Processuais Civis; Livro II: Da Função
Jurisdicional; Livro III: Dos Sujeitos do Processo; Livro IV: Dos Atos Processuais; Livro V:
Da Tutela Antecipada; Livro VI: Formação, suspensão e extinção do processo).
Já a parte abordada no presente trabalho, consta da Parte Especial,
que conterá três livros (Livro I: Do processo de conhecimento e do cumprimento de
sentença; Livro II: Do Processo de Execução; Livro III: Dos Processos nos Tribunais e dos Meios
2. ALVIM, J. E Carreira. O Novo Código de Processo Civil. São Paulo: Editora Campus Jurídico, 2013.
DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
O PROCEDIMENTO COMUM NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
213
de Impugnação das Decisões Judiciais).
Haverá, ainda, um último Livro, denominado de Livro Complementar, que conterá as
disposições finais e transitórias
Não raro, notamos tratamentos severos quanto ao fato de acreditarem que a
possibilidade de flexibilização de procedimentos e demais nuances pelo Código
Projetado irá trazer uma justiça efetiva e célere, o que para alguns juristas não seria
concebível na prática em termos globais.
Sem dúvidas, ao adequar o procedimento ao caso, o juiz pode escolher uma forma
já existente ou fixar tramitação sucedânea3.
Voltaremos a tratar dos itens analisados supra de modo mais detalhado.
3. ASPECTOS GERAIS DA LEI Nº 8.046/2010:
Elucidando o intróito procedimental no ilustre Novo Código de Processo Civil,
podemos apontar simplificando e muito o teor conceitual, que teremos dois
procedimentos, quais sejam, o procedimento comum e o especial.
Com isso, não sendo identificada a demanda e suas nuances no rol do procedimento
especial, automaticamente entenderemos a ação como sendo do procedimento comum.
Veja que, o intuito é realmente dar uma autonomia maior aos jurisdicionados e ao
sistema judicial como um todo, alterando a instrumentalidade em prol da real busca da
verdade jurídica.
O Código projetado engloba o processo cautelar no próprio processo de
conhecimento, com fito de evitar repetição de processos, o que é realmente inútil,
caminhando em total sentido contrário com o requisitado do judiciário na atualidade.
Esse novo estilo de procedimento visa claramente à simplificação dos atos processuais,
trazendo a desburocratização cartorária, os atos certos que deverão ser praticados pelo
escrivão, a possibilidade do Advogado efetuar a intimação por correio de parte contrária e
suas testemunhas e, muito importante, a devida utilização do processo eletrônico.
3. GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Flexibilização procedimental: um novo enfoque para o estudo do
procedimento em matéria processual, São Paulo, Atlas, 2008.
214
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
O Novo Código de Processo Civil confere ao juiz o poder (e a responsabilidade)
de dar flexibilidade ao procedimento, passando a lhe ser possível dilatar os prazos
processuais e alterar a ordem de produção dos meios de prova, sempre que necessário
às necessidades do conflito. A novidade propulsiona o alcance da efetividade à
tutela do direito por meio da concretização do princípio da adequação, que impõe
ao processo a sua compatibilidade com os direitos por ele tutelados, os sujeitos
envolvidos e os seus fins.
No projeto, os legisladores e juristas pegam mesclas de Rito Sumário e Ordinário,
organizando o novo Procedimento Comum. Tratando de exemplo claro, temos que
o Procedimento Comum será utilizado toda vez que a ação versar sobre interesses
indisponíveis, tal como matérias envolvendo Família e Sucessões.
No que concernem as novidades do Projeto e no procedimento da ação, vimos que
ele prevê a tentativa de audiência de conciliação / mediação, que não será regida por
um magistrado, e sim, pelos mediadores e conciliadores. Caso o acordo ocorra de modo
efetivo, o juiz homologará o pleito judicial.
Entretanto e para que funcione efetivamente, precisamos de forte iniciativa do
setor político e governamental no sentido de concretização e provimento de concurso
público com fito de contratação dos respectivos conciliadores e mediadores.
Alternando um pouco os temas do projeto, passamos a tratar da inversão do
ônus da prova (atualmente prevista no Artigo 333 do atual Código de Processo Civil),
observando a adequação da necessidade de produção de provas no caso em concreto.
Com isso, temos que no projeto a inversão do ônus da prova depende de atitude
do juiz, que deverá comunicar as partes sobre seu entendimento e, eventual inversão.
Portanto, o magistrado pode inverter automaticamente o ônus da prova, cabendo
Agravo de Instrumento de tal decisão e se o caso.
No que tange a intervenção de terceiros, fica claro o que podemos entender por
litisconsórcios necessários e afins. Ainda, não há efetivamente uma nomeação à autoria.
Com isso, se o réu alegar ser parte ilegítima na ação, poderá o juiz corrigir a parte
envolvida.
A oposição no Projeto do Novo Código Civil passa a ser Procedimento Especial,
passando assim a ser sempre Incidental.
DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
O PROCEDIMENTO COMUM NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
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Notem que a intenção é dar celeridade e simplicidade ao processo judicial, realmente
desburocratizando a lide.
Igualmente, tratando dos Julgamentos no Projeto, vislumbramos e citamos
novamente a forte presença da “Commom Law”. Com tal feito, o magistrado irá decidir a
demanda com avaliação dos precedentes existentes nos Tribunais Superiores.
As vantagens de tal julgamento são: previsibilidade, estabilidade e segurança
jurídica.
Em contrapartida, temos como forte desvantagem a falta de análise conceitual de
precedente, ou seja, existem divergências sobre precedentes. Ademais, os precedentes
só cabem (via de regra) em matéria de Direito, o que deve ser sempre avaliado no pleito
decisório.
Sem nos furtarmos da busca do judiciário consubstanciados em fatos relevantes e
inerentes ao direito personalíssimo, correto e real, a eventual análise simplista de uma
determinada ação em detrimento de julgados análogos, pode ceifar um direito em seu
nascedouro e de maneira cruel, sendo que devemos nos atentar a fatos atentatórios do
atendimento judicial.
Outra novidade no Projeto nº 166/2010 (Projeto de Lei do Senado) e Projeto nº
8.046/2010 (Projeto na Câmara dos Deputados), é que a figura da reconvenção no
Procedimento Ordinário (art.315 a 318 do CPC vigente), seria substituída no novo
Procedimento Comum do Código Projetado por um pedido contraposto (art.326,
Parágrafo 1 e 2, do PLS nº 166/2010), a ser deduzido no bojo da contestação, com o
que se corporifica o princípio de que natureza dúplice da ação dúplice passa a ser a
regra geral. Se a contestação pode abrigar o pedido contraposto, não haveria mais
necessidade de reconvenção.
Entretanto, é importante deixar consignado que a figura da Reconvenção retornou
no Projeto de Lei atual tratado pela Câmara dos Deputados (nº 8.046/2010) sob o prisma
do Artigo 344 e parágrafos, onde obteve novamente um destaque, e assim, hoje temos
certa indefinição sobre sua efetivação ou não no Código Projetado. Com isso, a certeza
quando da finalização do presente artigo, é que haverá Reconvenção, todavia, figurado
como um pedido contraposto na contestação, ou seja, será alocado como tópico nessa
peça, podendo tramitar em apartado, mesmo com julgamento improcedente do mérito
da ação principal.
216
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
Algumas matérias, que atualmente são objeto de incidentes processuais específicos,
como é o caso da impugnação ao valor da causa (art.261 do CPC), passam, na redação
do Projeto, a ser passíveis de postulação dentro da contestação, sem necessidade de
incidente apartado com autuação em apenso (arts. 294 do Projeto Substitutivo na
Câmara dos Deputados nº 8.046/2010).
São eliminadas, ainda, as exceções de suspeição e impedimento, dispondo o art.146
do Projeto nº 8.046/2010, em sua redação do substitutivo aprovado pelo Senado
Federal em dezembro de 2010, que tais matérias deverão ser argüidas mediante
simples petição, acompanhadas das respectivas provas documentais e/ou de rol de
testemunhas, o que está, nitidamente, em consonância com a instrumentalidade que
se pretende imprimir no processo.
Muitos procedimentos especiais são extintos pelo Projeto, ficando estabelecido o
uso do processo de conhecimento como processo padrão, com muito mais intensidade
do que no Código atual.
Falando de novidade no tema Julgamento no Projeto, vemos o Julgamento
Antecipado Parcial, do qual caberá eventualmente Agravo de Instrumento.
Exemplificando o apontado supra sobre Julgamento Antecipado Parcial, podemos
citar uma determinada Ação de Prestação de Alimentos cobrando originariamente 72
(setenta e duas) parcelas. O magistrado, verificando o caso em concreto e percebendo
juridicamente ser o prazo de prescrição de tal cobrança 05 (cinco) anos, isto é, 60
(sessenta) parcelas, poderá declarar de plano a prescrição de 12 (doze) parcelas, dando
prosseguimento na ação no que concerne 60 (sessenta) parcelas.
Pelo conteúdo exposto, vislumbramos uma maior autonomia ao magistrado,
inclusive, no sentido de fornecer diretrizes para julgar o pleito judicial em prazo menor
temporal, ocasionando agilidade à prestação jurisdicional.
4. PONTO FOCAL NO FUTURO PROCEDIMENTO COMUM:
Conforme anteriormente destacado, temos algumas simplificações no rumo
procedimental no Projeto do Novo Código, sendo a extinção do procedimento sumário
a primeira que abarcaremos.
O procedimento sumário, em suma, nunca cumpriu com seu principal objetivo
DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
O PROCEDIMENTO COMUM NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
217
que era proporcionar a resolução de conflitos num menor prazo do que o obtido pelo
rito ordinário, e assim, é justo no Código Projetado alterar o respectivo para o novo
procedimento comum, onde passaremos a expor.
4.1. EXTINÇÃO DO PROCEDIMENTO COMUM SUMÁRIO:
Visando trazer celeridade ao processo, e ainda, economia processual respeitando
preceitos fundamentos, houve por bom entendimento finalizar o rumo procedimental
denominado de Procedimento Comum Sumário, tornando-se regra o novo procedimento
denominado comum, isto é, efetuando uma junção do antigo procedimento sumário
com o ordinário, com determinada simplificação.
Assim, notamos o feito ao ler o Artigo 319 do Projeto, que diz:
Art. 319. Aplica-se a todas as causas o procedimento comum, salvo disposição em
contrário deste Código ou de lei.
Parágrafo único. O procedimento comum se aplica subsidiariamente aos demais
procedimentos especiais e ao processo de execução.
Alinhando o entendimento, vimos que a regra é a utilização do procedimento comum.
Não menos importante, temos o momento da conversão e utilização do novo
procedimento aos processos já em trâmite, onde teremos que observar o teor do
dispositivo contido no Artigo 1.059 do Projeto, o qual relata:
Art. 1.059. Ao entrar em vigor este Código, suas disposições se aplicarão desde logo aos
processos pendentes, ficando revogada a Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973.
§ 1º As disposições da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, relativas ao procedimento
sumário e aos procedimentos especiais, que forem revogadas, aplicar-se-ão às ações
propostas até o início da vigência deste Código, desde que ainda não tenham sido
sentenciadas.
Pela análise do dispositivo supra, torna-se evidente que até o momento da sentença
as ações serão observadas e tratadas pelo crivo do novo procedimento comum, sem
qualquer prejuízo as partes da demanda.
Esse momento de transição, ressaltando novamente, se faz necessário tão somente
para ajustar os ritos de procedimento e suas particularidades, todavia, sem maior
impacto no anteriormente tratado.
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
218
Outra importante atualização de conceito se faz quanto às novas ações que
ingressarão já sob batuta do Novo Projeto, principalmente no ato de comparecimento
do réu ao processo e afins, onde melhor abordaremos no transcorrer do artigo.
5. MODIFICAÇÕES GERAIS NO NOVO
PROCEDIMENTO COMUM:
5.1. DO DEVIDO COMPARECIMENTO DO RÉU AO PROCESSO:
No Código de Processo Civil vigente, temos que a efetiva inclusão do réu no processo
judicial se inicia (via de regra), com a respectiva apresentação de defesa no prazo de 15
(quinze) dias a contar da devida citação (arts. 297 c/c 241 do CPC).
Já no novo Código Projetado, teremos a citação do réu para comparecimento
em audiência de conciliação, podendo a audiência ser presidida por conciliador ou
mediador, inclusive, necessário atentar-se ao aparelhamento (contratação), que o poder
judiciário deverá tratar, para atender efetivamente a respectiva legislação.
A intimação do autor, a partir de então, deverá ocorrer na pessoa do seu Advogado
constituído.
O prazo para contestar será de 15 (quinze) dias, igualmente o código vigente,
ressalvando o momento do início de tal contagem, que será:
a) da audiência de conciliação ou mediação em caso de não autocomposição;
b) do protocolo do pedido de cancelamento da audiência apresentado pelo réu;
c) nos demais casos, de acordo com o art. 231 – semelhante ao regramento atual;
Tratando do Litisconsórcio passivo, observaremos os seguintes feitos e prazo para
contestar:
d) No caso de protocolo do pedido de cancelamento de audiência – o prazo para cada
litisconsorte contestar fluirá independentemente; e
e) da data da intimação do despacho que homologar a desistência da ação em relação
a um dos litisconsortes, nos casos em que não se admita autocomposição.
Assim, notaremos também os entendimentos elencados pelos artigos 231, 335 e 336
do Código Projetado, senão vejamos:
DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
O PROCEDIMENTO COMUM NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
219
231. Salvo disposição em sentido diverso, considera-se dia do começo do prazo quando:
I – a citação ou a intimação for pelo correio, a data de juntada aos autos do aviso de
recebimento;
II – a citação ou a intimação for por oficial de justiça, a data de juntada aos autos do
mandado cumprido;
III – a citação ou a intimação se der por ato do escrivão ou do chefe de secretaria, a data
da sua ocorrência;
IV – a citação ou intimação for por edital, o dia útil seguinte ao fim da dilação assinada
pelo juiz;
V – a citação ou a intimação for eletrônica, o dia útil seguinte à consulta ao seu teor ou
ao término do prazo para que a consulta se dê;
VI – citação ou a intimação se realizar em cumprimento de carta, a data de juntada do
comunicado de que trata o §5º deste artigo, ou, não havendo este, da juntada da carta aos
autos de origem devidamente cumprida;
VII – a intimação se der pelo Diário da Justiça impresso ou eletrônico, a data da
publicação;
VIII – a intimação se der por meio da retirada dos autos, em carga, do cartório ou da
secretaria, o dia da carga.
§ 1º Quando houver mais de um réu, o dia do começo do prazo para contestar
corresponderá à última das datas a que se referem os incisos I a VI do caput.
§ 2º Havendo mais de um intimado, o prazo para cada um é contado individualmente.
§ 3º Quando o ato tiver que ser praticado diretamente pela parte ou por quem, de
qualquer forma, participe do processo, sem a intermediação de representante judicial,
o dia do começo do prazo para cumprimento da determinação judicial corresponderá à
data em que se der a comunicação.
§ 4º Aplica-se o disposto no inciso II do caput à citação com hora certa.
Ainda,
Art. 335. Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de
220
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação
com antecedência mínima de trinta dias, devendo ser citado o réu com pelo menos vinte
dias de antecedência.
§ 1º O conciliador ou mediador, onde houver, atuará necessariamente na audiência
de conciliação ou de mediação, observando o disposto neste Código, bem como as
disposições da lei de organização judiciária.
§ 2º Poderá haver mais de uma sessão destinada à conciliação e à mediação, não
excedentes a dois meses da primeira, desde que necessárias à composição das partes.
§ 3º A intimação do autor para a audiência será feita na pessoa de seu advogado.
§ 4º A audiência não será realizada:
I – se ambas as partes manifestarem, expressamente, desinteresse na composição
consensual;
II – no processo em que não se admita a autocomposição.
§ 5º O autor deverá indicar, na petição inicial, seu desinteresse na autocomposição,
e o réu, por petição, apresentada com dez dias de antecedência, contados da data da
audiência.
§ 6º Havendo litisconsórcio, o desinteresse na realização da audiência deve ser
manifestado por todos os litisconsortes.
§ 7º A audiência de conciliação ou de mediação pode realizar se por meios
eletrônicos, nos termos da lei.
§ 8º O não comparecimento injustificado do autor ou do réu à audiência de
conciliação é considerado ato atentatório à dignidade da justiça e será sancionado com
multa de até dois por cento da vantagem econômica pretendida ou do valor da causa,
revertida em favor da União ou do Estado.
§ 9º As partes devem estar acompanhadas por seus advogados ou defensores públicos.
§ 10. A parte poderá constituir representante, por meio de procuração específica,
com poderes para negociar e transigir.
§ 11. A autocomposição obtida será reduzida a termo e homologada por sentença.
DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
O PROCEDIMENTO COMUM NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
221
§ 12. A pauta das audiências de conciliação ou de mediação será organizada de
modo a respeitar o intervalo mínimo de vinte minutos entre o início de uma e o início
da seguinte.
e
Art. 336. O réu poderá oferecer contestação, por petição, no prazo de quinze dias, cujo
termo inicial será a data:
I – da audiência de conciliação ou de mediação, ou da última sessão de
conciliação, quando qualquer parte não comparecer ou, comparecendo, não houver
autocomposição;
II – do protocolo do pedido de cancelamento da audiência de conciliação ou de mediação
apresentado pelo réu, quando ocorrer a hipótese do art. 335, § 4º, inciso I;
III – prevista no art. 231, de acordo com o modo como foi feita a citação, nos demais casos.
§ 1º No caso de litisconsórcio passivo, ocorrendo a hipótese do art. 335, § 6º, o termo
inicial previsto no inciso II será, para cada um dos réus, a data de apresentação de seu
respectivo pedido de cancelamento da audiência.
§ 2º Quando ocorrer à hipótese do art. 335, § 4º, inciso II, e havendo litisconsórcio
passivo, o autor desistir da ação em relação a réu ainda não citado, o prazo para resposta
correrá da data de intimação do despacho que homologar a desistência.
Não menos importante, é o prestígio e reconhecimento dado ao Advogado em si,
a partir do momento da previsão legal das intimações serem efetuadas em nome do
procurador devidamente constituído da parte. Com isso, é fato obrigatório as partes
estarem representadas legalmente por Advogado.
Outra questão inerente ao contencioso e que ajudará no combate as rotinas diárias,
principalmente em empresas com grande número de litígios, é a possibilidade real de
constituir preposto com poderes para transigir.
No intuito claro de corroborar com a rapidez do serviço judiciário, e ainda, trazendo
economia processual e ampliação do acesso ao judiciário em sentido lato, temos a
possibilidade real de utilização de meios eletrônicos (cito Skype), para realização de
audiência e oitiva de testemunhas, ou seja, a videoconferência se tornará cada vez mais
efetiva no futuro código.
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
Fator importante é a diminuição de custos para as partes, ao ser permitido e
utilizado as vias eletrônicas para realização de audiências e devida instrução processual,
adequando-se ao caso real.
Ainda tratando de audiência, as pautas deverão conter um mínimo de 20 minutos
entre uma e outra, para a devida instrução do feito.
Portanto, temos que o Código Projetado ataca a eficiência jurídica, dando mais
hipóteses para soluções de conflitos judiciais. Por tais exposições, o projeto descreve
mais eficiências jurídicas com o devido aproveitamento de alguns atos processuais, os
quais trataremos no item em seqüência.
5.2. POSSIBILIDADES MATERIAIS DE DEFESA:
Reforçando a idéia, o Código projetado tem o claro interesse de trazer celeridade e
economia de atos processuais, para com isso, dar maior sincronia ao processo judicial,
fato que é louvável.
Partindo de tal premissa, avaliamos na contestação do novo procedimento comum,
que alguns atos e peças jurídicas passarão a ser incorporadas na própria peça de defesa,
como é o caso da impugnação ao valor da causa. Dando robustez ao pleito, transcrevo
o Artigo 294 do projeto:
294. O réu poderá impugnar, em preliminar da contestação, o valor atribuído à causa
pelo autor, sob pena de preclusão; o juiz decidirá a respeito, impondo, se for o caso,
a complementação das custas. A decisão do juiz que acolher a impugnação do réu é
impugnável por agravo de instrumento, salvo se for um capítulo da sentença, quando então
será impugnável por apelação.
Ademais, alguns atos processuais serão sucumbidos, cito, por exemplo, a
incompetência relativa.
Após tal análise, resta claro que a contestação passará a concentrar toda a matéria
da defesa, no claro esforço de dar unicidade a peça e ato de defesa efetiva, mais uma
vez reforçando a celeridade.
Outra mudança é o fato da suspeição passar a ser veiculada por intermédio
de petição autônoma, sendo tratado tal aspecto no Artigo 146 do projeto, o qual
apontamos:
DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
O PROCEDIMENTO COMUM NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
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Art. 146. No prazo de quinze dias, a contar do conhecimento do fato, a parte alegará
o impedimento ou a suspeição, em petição específica dirigida ao juiz da causa, na qual
indicará o fundamento da recusa, podendo instruí-la com documentos em que se fundar a
alegação e com rol de testemunhas.
§ 1º Se reconhecer o impedimento ou a suspeição ao receber a petição, o juiz ordenará
imediatamente a remessa dos autos a seu substituto legal; caso contrário, determinará a
autuação em apartado da petição e, no prazo de quinze dias, apresentará suas razões,
acompanhadas de documentos e de rol de testemunhas, se houver, ordenando a remessa
do incidente ao tribunal.
§ 2º Distribuído o incidente, o relator deverá declarar os efeitos em que é recebido. Se
o incidente for recebido sem efeito suspensivo, o processo voltará a correr; se com efeito
suspensivo, permanecerá suspenso o processo até o julgamento do incidente.
§ 3º Enquanto não for declarado o efeito em que é recebido o incidente ou quando
este for recebido com efeito suspensivo, a tutela de urgência será requerida ao
substituto legal.
§ 4º Verificando que a alegação de impedimento ou de suspeição é improcedente, o
tribunal rejeitá-la-á. Acolhida a alegação, tratando-se de impedimento ou de manifesta
suspeição, condenará o juiz nas custas e remeterá os autos ao seu substituto legal; neste
caso, pode o juiz recorrer da decisão.
§ 5º Reconhecido o impedimento ou a suspeição, o tribunal fixará o momento a
partir do qual o juiz não poderia ter atuado.
§ 6º O tribunal decretará a nulidade dos atos do juiz, se praticados quando já
presente o motivo de impedimento ou de suspeição.
No mesmo sentido, discorremos sobre o Artigo 338 do projeto, trazendo as
incumbências do Réu:
Art. 338. Incumbe ao réu, antes de discutir o mérito, alegar:
I – inexistência ou nulidade da citação;
II – incompetência absoluta e relativa;
III – incorreção do valor da causa;
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
IV – inépcia da petição inicial;
V – perempção;
VI – litispendência;
VII – coisa julgada;
VIII – conexão;
IX – incapacidade da parte, defeito de representação ou falta de autorização;
X – ausência de legitimidade ou de interesse processual;
XI – falta de caução ou de outra prestação que a lei exige como preliminar;
XII – indevida concessão do benefício da gratuidade de justiça.
§ 1º Verifica-se a litispendência ou a coisa julgada quando se reproduz ação
anteriormente ajuizada.
§ 2º Uma ação é idêntica a outra quando possui as mesmas partes, a mesma causa
de pedir e o mesmo pedido.
§ 3º Há litispendência quando se repete ação que está em curso.
§ 4º Há coisa julgada quando se repete ação que já foi decidida por decisão transitada
em julgado.
§ 5º Excetuada a incompetência relativa, o juiz conhecerá de ofício das matérias
enumeradas neste artigo.
§ 6º O juiz observará o disposto nos §§ 3º e 4º do art. 73 em relação à falta de
autorização do cônjuge para a propositura da ação.
Por tal artigo, vimos que o Réu terá que trazer muitos apontamentos na peça de
defesa, sob pena de ser responsabilizado, algumas vezes, até mesmo injustamente e,
ainda, ser punido em demanda que contestada corretamente, poderia trazer vitória
judicial ou redução de eventual prejuízo em esferas diversas.
Outro ponto de suma relevância é a extinção da Nomeação à Autoria, prevista no
atual Código de Processo Civil no artigo 62 e seguintes.
DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
O PROCEDIMENTO COMUM NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
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5.3. EXTINÇÃO DA NOMEAÇÃO À AUTORIA:
Atendendo ao conceito de Nomeação à Autoria, temos que é o meio pelo qual se
corrige o pólo passivo da demanda judicial, atualmente prevista no artigo 62 e seguintes
do Código de Processo Civil.
Em suma, é o ato pelo qual se comunica o real responsável por ser parte passiva no
processo.
Igualmente, tendo em vista a unicidade e celeridade que se busca com o Código
Projetado, temos que a figura da Nomeação à Autoria, definitivamente, será extinta.
Com tal afirmação, existirá a possibilidade de emenda à inicial para correção do pólo
passivo quando o réu argüir ilegitimidade passiva e o autor concordar com a argüição.
O intuito é aproveitar o processo, que correrá contra a parte passiva correta.
Elucidando o explicitado supra, trazemos o Artigo 339 e 340 do Código Projetado,
o qual diz:
Art. 339. Alegando o réu, na contestação, ser parte ilegítima ou não ser o responsável
pelo prejuízo invocado, o juiz facultará ao autor, em quinze dias, a alteração da petição
inicial para substituição do réu.
Parágrafo único. Realizada a substituição, o autor reembolsará as despesas e pagará
honorários ao procurador do réu excluído, que serão fixados entre três e cinco por cento do
valor da causa ou, sendo este irrisório, nos termos do art. 85, § 8º.
e
Art. 340. Quando alegar sua ilegitimidade, incumbe ao réu indicar o sujeito passivo da
relação jurídica discutida sempre que tiver conhecimento, sob pena de arcar com as despesas
processuais e de indenizar o autor pelos prejuízos decorrentes da falta da indicação.
§ 1º Aceita a indicação pelo autor, este, no prazo de quinze dias, procederá à alteração
da petição inicial para a substituição do réu, observando-se, ainda, o parágrafo único do
art. 339.
§ 2º No prazo de quinze dias, o autor pode optar por alterar a petição inicial para incluir,
como litisconsorte passivo, o sujeito indicado pelo réu.
Por todo informado, percebemos que a nomeação à autoria realmente foi
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
privilegiada no código projetado, tendo em vista que sua utilização foi facilitada, ao
admitir-se respectiva utilização no bojo da contestação, e não menos importante,
facilitando ao autor corrigir ou incluir pólo correto no embate judicial.
Ainda tratando das novidades ou alterações no novo procedimento comum,
abarcaremos o Julgamento Liminar de Improcedência, previsto no Código de Processo
Civil em vigor no Artigo 285-A, e já no código projetado no Artigo 333, sendo que será
fornecido maiores detalhes no transcorrer do próximo capítulo.
5.4. JULGAMENTO LIMINAR DE IMPROCEDÊNCIA:
No projeto do novo Código de Processo Civil, que de tanto tempo em discussão
logo mais possuirá idéias ou conceitos antigos para os militantes da área, teremos o
julgamento liminar de improcedência com ampliação de hipóteses, recepcionando os
seguintes pontos com mais amplitude, quais sejam:
a - Pedido que contrariar Súmulas;
b - Acórdãos em julgamentos de casos repetitivos;
c - Entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas;
d - Pedido que for juridicamente impossível;
e - Súmula de tribunal local sobre direito local; e
f - Prescrição ou decadência
Igualmente, é necessário afiançar que, uma vez julgada liminarmente improcedente
a ação, e ingressando o autor com Recurso de Apelação da presente decisão, caberá
juízo de retratação pelo magistrado no prazo de 5 (cinco) dias.
No intuito de trazer um melhor entendimento do instituto em tela, importante
colacionar nesse trabalho o teor integral do Artigo 333 do futuro código, que diz:
Art. 333. Nas causas que dispensem a fase instrutória, o juiz, independentemente da
citação do réu, julgará liminarmente improcedente o pedido que contrariar:
I – súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça;
II – acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça
em julgamento de recursos repetitivos;
DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
O PROCEDIMENTO COMUM NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
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III – entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de
assunção de competência;
IV – frontalmente norma jurídica extraída de dispositivo expresso de ato normativo;
V – enunciado de súmula de tribunal de justiça sobre direito local.
§ 1º O juiz também poderá julgar liminarmente improcedente o pedido se verificar, desde
logo, a ocorrência de decadência ou de prescrição.
§ 2º Não interposta a apelação, o réu será intimado do trânsito em julgado da sentença,
nos termos do art. 241.
§ 3º Interposta a apelação, o juiz poderá retratar-se em cinco dias.
§ 4º Se houver retratação, o juiz determinará o prosseguimento do processo, com a
citação do réu para apresentar resposta; se não houver retratação, determinará a citação do
réu para apresentar contrarrazões, no prazo de quinze dias.
§ 5º Na aplicação deste artigo, o juiz observará o disposto no art. 521.
Esse instituto é interessante, pois dificulta o ingresso de ações que não merecem
prosperar no Judiciário ou que já tiveram análise do crivo anteriormente, novamente
trazendo rapidez ao combate judicial, todavia, é interessante apontar que pode haver,
em casos pontuais, cerceamento de defesa em virtude da gama de itens que o vinculam.
Assim, caberá ao Poder Judiciário avaliar o julgamento liminar de improcedência e
seus pormenores no dia a dia e nas respectivas decisões proferidas pelos magistrados,
coibindo eventual equívoco doutrinário ou conceitual.
Dentre outras funções inerentes a magistratura, haverá forte percepção das provas
necessárias para deslinde da ação judicial no advento do código projetado, razão
pela qual demonstraremos relevância ao subitem seqüencial, qual seja, Distribuição
Dinâmica do Ônus da Prova.
5.5. DISTRIBUIÇÃO DINÂMICA DO ÔNUS DA PROVA:
Inequívoco, no direito pátrio, que as provas sempre tiveram uma importância ímpar
na persuasão racional dos magistrados, trazendo muitas sentenças lastreadas nas
respectivas. Esse fato é justo, sem dúvidas.
Igualmente, temos doravante (futuro código projetado), certa participação do
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
magistrado na valoração da prova, indicando o que entende viável e importante para
decidir a ação, ou seja, o juiz instruirá de certo modo a ação judicial.
O magistrado poderá determinar a prova de ofício, fator relevante ao extremo no
Código Projetado.
Como novidade, temos que o juiz irá inverter o ônus da prova sempre que for
necessário, pois o foco principal é a busca da verdade real. Para tanto, dará ciência de
suas intenções devidamente fundamentadas as partes envolvidas, que poderão se
manifestar ou pedir esclarecimentos.
Faz-se necessário reafirmar que o juiz não deve pegar as partes de surpresa, e
sim, entender as particularidades da ação para não cometer injustiças ou onerar
demasiadamente uma parte, gerando desequilíbrio na pontualidade do ônus da prova.
Observando o texto legal, disposto no Projeto em trâmite na Câmara dos Deputados,
temos os seguintes artigos 377 e 380, discorrendo sobre o ônus probatório, que cientificamos:
Art. 380. O ônus da prova incumbe:
I – ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;
II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito
do autor.
§ 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa, relacionadas à
impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou
à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da
prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada. Neste caso, o juiz
deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.
§ 2º A decisão prevista no § 1º deste artigo não pode gerar situação em que a
desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil.
§ 3º A distribuição diversa do ônus da prova também pode ocorrer por convenção
das partes, salvo quando:
I - recair sobre direito indisponível da parte;
II - tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito.
§ 4º A convenção de que trata o § 3º pode ser celebrada antes ou durante o processo.
DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
O PROCEDIMENTO COMUM NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
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Art. 377. Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas
necessárias ao julgamento do mérito.
Parágrafo único. O juiz indeferirá, em decisão fundamentada, as diligências inúteis ou
meramente protelatórias.
Pelo dito, entendemos que o futuro código dará mais relevância ainda ao conteúdo
das provas, fato glorioso.
Dando seguimento, incluiremos no trabalho os pormenores do Julgamento
Antecipado Parcial, o qual apaziguou algumas discussões no que tange recurso cabível.
5.6. JULGAMENTO ANTECIPADO PARCIAL:
O instituto do julgamento parcial, previsto no Código de Processo Civil atual e também
no citado projeto, realmente teve evolução. Falamos desse fato positivo, pois houve no
projeto a definição conceitual sobre recurso cabível em decisão que julga parcialmente
o feito, que doravante (com o advento e aprovação do novo Código Projetado), será o
Agravo de Instrumento, alocado no código projetado no Artigo 363, §4.º.
Tal ponto, por si só, já demonstra a intenção dos legisladores em realmente diminuir
as discrepâncias atuais.
Assim, não seria forçoso concluir que o código projetado efetivamente consagra o
instituto do Julgamento Antecipado Parcial, definindo seus limites e dando sincronia a
essa engrenagem, que na opinião desse Autor, irá ser cada vez mais utilizado, inclusive,
pelas hipóteses de julgamento maduro.
Para darmos uma noção clara do cabimento do respectivo, importo do Código
Projetado o disposto no Artigo 363:
Art. 363. O juiz decidirá parcialmente o mérito quando um ou mais dos pedidos
formulados ou parcela deles:
I - mostrar-se incontroverso;
II – estiver em condições de imediato julgamento, nos termos do art. 362.
§ 1º A decisão que julgar parcialmente o mérito poderá reconhecer a existência de
obrigação líquida ou ilíquida.
§ 2º A parte poderá liquidar ou executar, desde logo, a obrigação reconhecida na decisão
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
que julgar parcialmente o mérito, independentemente de caução, ainda que haja recurso
contra essa interposto. Se houver trânsito em julgado da decisão, a execução será definitiva.
§ 3º A liquidação e o cumprimento da decisão que julgar parcialmente o mérito
poderão ser processados em autos suplementares, a requerimento da parte ou a
critério do juiz.
§ 4º A decisão proferida com base neste artigo é impugnável por agravo de
instrumento.
Isto posto, estando a demanda apta para julgamento conforme preceituado no
artigo supra, sem dúvidas será possível ao magistrado julgar de pronto a respectiva e
de modo parcial.
Dando por encerrado esse ponto de trâmite do novo procedimento comum, iremos
falar sobre a parcial finalização do processo em primeiro grau, com a sentença.
Temos que, com o advento do código projetado, a sentença deverá ser muito bem
fundamentada e com todos seus pontos avaliados.
5.7. DEVIDA FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS:
A fundamentação das decisões judiciais, poderá se tornar com o advento do código
projetado, fatidicamente algo muito discutível.
Relato discutível, posto existir junto ao poder judiciário e na figura de seus
magistrados, a necessidade imperial de abarcar na decisão judicial todos os pontos
elencados na demanda, para com isso, termos algo bem elaborado, não deixando item
algum sem avaliação por parte do poder judiciário.
Em suma, o que é levado ao conhecimento do magistrado deverá ser valorado e
julgado, com explicação de entendimento e fundamentação.
Esse ponto é algo realmente complexo, pois muitas vezes o juiz não se apega aos
detalhes do caso em si, justamente pelo volume de trabalho e, ainda, por entender que
alguns fatos são irrelevantes para conclusão do embate judicial.
O juiz, não menos importante, deverá sempre observar as decisões proferidas pelos
Tribunais Superiores, buscando verdadeira eficácia na finalização do processo.
Outrossim, deverá sempre indicar na legislação aquilo que não considera
DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
O PROCEDIMENTO COMUM NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
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fundamentado, excluindo de sua decisão conceitos vagos ou imprecisos. Veja que, esse
ponto é perigoso, pois o teor de conceito vago é muito subjetivo, podendo gerar certo
casos junto ao Poder Judiciário.
Exemplificando com detalhes o dito supra, sentimos claramente no texto legal o
intuito do código projetado, principalmente em seus artigos 378 e 499, resgatados:
Art. 378. O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito
que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.
e
Art. 499. São elementos essenciais da sentença:
I – o relatório, que conterá os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma
do pedido e da contestação, bem como o registro das principais ocorrências havidas no
andamento do processo;
II – os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;
III – o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe
submeterem.
§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória,
sentença ou acórdão, que:
I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua
relação com a causa ou a questão decidida;
II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua
incidência no caso;
III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;
IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese,
infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus
fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta
àqueles fundamentos;
VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do
entendimento.
§ 2º No caso de colisão entre normas, o órgão jurisdicional deve justificar o objeto e os
critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência
na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão.
§ 3º A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus
elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé.
Analisando pormenorizadamente a legislação em tela, é fácil notar que o legislador
atual concretiza a necessidade de trazer ainda mais segurança ao combate processual,
fazendo com que nesse novo texto, o judiciário seja obrigado a avaliar todas as questões
trazidas ao seu crivo, exigindo participação efetiva do magistrado no processo.
6. CONCLUSÃO:
O código de processo civil devidamente sancionado realmente é positivo e traz uma
evolução no texto legal e no âmbito social, principalmente. Podemos citar inúmeras
benfeitorias no respectivo, como autonomia ao magistrado para apontar provas
interessantes no processo, o interesse contínuo na conciliação, fortalecimento do
meio eletrônico e a necessidade imperial do magistrado em atender todos os itens do
processo na sua decisão final, isto é, na fundamentação da sentença judicial.
Esse esforço é muito salutar, mesmo que ocasione pouca mudança imediata na
questão da celeridade processual e efetividade da justiça.
De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), temos no Brasil (período de
2013 – 2014), cerca de 95,14 milhões4 de processos em andamento, e com isso, toda
atitude com fito de melhorar a prestação jurisdicional é válida para tentar diminuir ou
equalizar esse alto número de demandas.
4.http://www.cnj.jus.br/images/programas/justica-em-numeros/Resumo_Justica_em_Numeros_2014_anobase_2013.pdf
DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
O PROCEDIMENTO COMUM NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
233
7. BIBLIOGRAFIA:
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Efetividade do processo e técnica processual.Temas
de direito processual. Sexta série. São Paulo: Saraiva, 1997.
ALVIM, J. E Carreira. O Novo Código de Processo Civil. São Paulo: Editora Campus
Jurídico, 2013.
GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Flexibilização procedimental: um novo enfoque
para o estudo do procedimento em matéria processual, São Paulo, Atlas, 2008.
Sítio Eletrônico: http://www.cnj.jus.br – Acessado em 07.11.2014, às 09:25 h.
CHIOVENDA. Sagli di Diritto Processuale Civile, vol. I. Roma: Foro Italiano, 1930.
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo. Rio de Janeiro:
AIDE Editora, 2001.
DINAMARCO, Cândido Rangel. FUNDAMENTOS DO PROCESSO CIVIL MODERNO.
Tomo I. 5 Ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
LIEBMAN, Erico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. Volume I. Notas e Tradução:
Cândido Rangel Dinamarco. 2 Ed. Rio de Janeiro: Forense,1985.
MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil. Teoria Geral do Processo. Vol. I.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.
SILVA, Ovídio A Baptista da. Curso de Processo Civil, Volume I, Tomo I. 8. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2008.
SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
POR UM PROCESSO CIVIL
COMUNICATIVO E DIALÓGICO
PAULO SÉRGIO VELTEN PEREIRA
Doutorando e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP.
Especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Desembargador do TJMA.
Associado Colaborador do IASP.
SUMÁRIO
1. Introdução; 2. Um Código informado pelo princípio do contraditório; 3. O abandono do processo autocrático
com contraditório restrito às partes; 4. O modelo constitucional de processo civil brasileiro.; 5. O contraditório
como dever de consulta e de diálogo; 6. Da decisão-surpresa à decisão-projeto; 7. Considerações finais;
8. Referências.
RESUMO
ABSTRACT
O presente artigo aborda o tema da edição do
novo Código de Processo Civil brasileiro e da
expansão que o princípio do contraditório terá
com a entrada em vigor da nova lei, gerando
para o juiz deveres de consulta e de diálogo
com as partes acerca da fundamentação a ser
adotada em sua decisão definitiva, substituindo a
surpresa por um projeto de decisão que garanta
a participação efetiva de todos os sujeitos do
processo na construção de uma solução mais
justa e democrática.
This article discusses the new edition of the
Brazilian Code of Civil Procedure. It also debates
the expansion caused to the principal of an
adversarial process following the entry into force
of new bill of law, which will create judge’s duties
of consultation and dialogue among the parties
pertaining the reasoning he intends to adopt in
his final decision, replacing the surprise factor
with a decision project that can guarantee an
effective participation of all the subjects involved
in the process of building up a more just and
democratic solution.
PAVRAS-CHAVE
KEYWORDS
Novo Código de Processo Civil; Princípio do
contraditório; Modelo constitucional de processo;
Democracia; Dever de consulta e de diálogo;
Processo comunicativo e dialógico; Decisãosurpresa; Decisão-projeto.
New Code of Civil Procedure; Principal of an
adversarial process; Constitutional model of
procedure; Democracy; Duty of consultation and
dialogue; Communicative and dialogical process;
Surprise-decision; Project-decision.
238
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
1. INTRODUÇÃO
Com a edição da Lei nº 13.105 de 16 de março de 2015, que instituiu o novo Código de
Processo Civil no ordenamento jurídico brasileiro, percebe-se que os debates forenses e
acadêmicos em torno desse novel Diploma têm dado pouca ênfase à dimensão que o
princípio do contraditório passará a ter a partir de 16 de março do próximo ano, quando
o CPC entrará em vigor, considerando o prazo de um ano da sua vacatio legis.
Desde sempre o contraditório foi limitado a garantir o conhecimento da existência
de um processo e a sucessiva manifestação das partes sobre os atos subsequentes, mas
com o novo Código esse princípio será expandido para impor novas obrigações ao
magistrado condutor do feito, que deverá, antes de decidir, submeter à manifestação
das partes a fundamentação jurídica que pressupõe aplicável ao caso, algo como um
projeto de decisão.
Aqui será visto que essa forma de atuação do juiz no modelo do novo Código
de Processo Civil é bem distinta daquela com a qual os operadores do direito estão
habituados a trabalhar, em que, essencialmente, apenas se assegura a possibilidade de
manifestação de uma das partes sobre os atos praticados e alegações deduzidas pela
contraparte, observando-se a bilateralidade do processo.
Ao longo do trabalho espera-se demonstrar que a expansão do contraditório tem
por finalidade adequar a lei processual ao texto da Constituição Federal, fazendo com
que a atividade jurisdicional seja desenvolvida da forma mais democrática possível,
por meio do aprofundamento do diálogo com as partes e da cooperação judicial,
rompendo-se as barreiras impostas pelo processo autocrático do Código Buzaid, com
base no qual o juiz é tratado como diretor isolado da batalha travada entre autor e réu.
Submetido ao modelo constitucional de processo, esse contraditório expandido
constitui o solo fértil sobre o qual pode se desenvolver um processo civil renovado no
país, de bases realmente democráticas, em que as partes, conhecendo previamente a
fundamentação jurídica a ser utilizada pelo magistrado, têm a oportunidade de interagir
mais ativamente com o Estado-juiz na construção de uma decisão judicial mais justa e
efetiva, obtida por um processo igualmente justo e equilibrado.
Este ensaio pretende evidenciar que a elaboração da decisão judicial com a
observância do dever de consulta e de diálogo, além de permitir a substituição da
decisão-surpresa pela decisão-projeto, também pode contribuir decisivamente para
DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
POR UM PROCESSO CIVIL COMUNICATIVO E DIALÓGICO
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a redução do déficit democrático do Poder Judiciário, tudo a partir de um processo
comunicativo e dialógico, desenvolvido em sintonia fina com a Constituição.
2. UM CÓDIGO INFORMADO PELO PRINCÍPIO DO
CONTRADITÓRIO
Ao tempo da edição do atual Código Civil brasileiro (Lei nº 10.406/2002) dizia-se
que as modificações introduzidas no novo ordenamento eram essencialmente tópicas,
uma vez que um dos objetivos declarados pela comissão de juristas encarregada da
elaboração do anteprojeto era manter, na medida do possível, boa parte da redação
original do Código Civil de 1916, considerado por muitos estudiosos um primoroso
monumento linguístico.1
Pouco se falava à época da verdadeira revolução projetada pelos valores e princípios
do novo Código Civil, sendo restrita ao círculo acadêmico alguma discussão em torno
do sistema móvel de direito privado, composto de princípios e conceitos adredemente
vagos para permitir a interpretação dinâmica da nova lei e evitar seu engessamento
diante da evolução social.2
Situação semelhante sucede agora com o novo Código de Processo Civil brasileiro
sancionado em março do corrente ano. Dá-se grande destaque para a necessidade
de organização, coesão e sistematização dos dispositivos da lei processual, 3 mas
se dispensa pouca reflexão para os princípios encartados nos enunciados do Livro
I da Parte Geral do Código, em especial para a nova dimensão do princípio do
contraditório.
A ausência desse debate é lamentável, pois nenhuma mudança legislativa será
suficiente para a obtenção de um processo justo, efetivo e de bases democráticas se o
1. Ver a respeito: REALE, Miguel. História do novo código civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 83. Nessa obra o
grande jurista brasileiro registra que uma preocupação permanente da comissão elaboradora do anteprojeto do Código
Civil de 2002 foi preservar a beleza formal do Código de 1916, tido como um modelo insuperável de vernaculidade,
ressaltando Reale que uma lei bela representa meio caminho andado para a comunicação da Justiça.
2. Sobre abertura e mobilidade do sistema de direito privado: CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e
conceito de sistema na ciência do direito. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, p. 103 e ss.
3. Necessidade justificada, segundo a comissão elaboradora do anteprojeto, pelo fato de o velho Código de 1973
ter-se transformado numa colcha de retalhos, mercê das sucessivas reformas tópicas realizadas a partir de meados da
década de 1990.
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
intérprete autêntico não estiver pronto para interpretar/aplicar o novo direito segundo seus
valores e princípios informativos.4 Sem conferir especial atenção para o tema, corre-se
o risco de a nova lei ser aplicada com os olhos no retrovisor, abstraindo-se dela um
raciocínio meramente formal, desprovido de conteúdo, desconectado da realidade
cotidiana e sem sintonia com o Estado Democrático de Direito.
Portanto, o alerta é necessário: com o novo Código, não será possível continuar a
conceber a existência do contraditório apenas em relação às duas partes do feito, aos
sujeitos parciais do processo.
Ao abrigar o princípio do contraditório em mais de um dispositivo do Título referente
às Normas fundamentais e da Aplicação das normas processuais,5 o legislador emprestou a
esse princípio o papel de pensamento diretor da lei processual. Tanto assim, que se trata do
Título de abertura, da sua Parte Geral, cujo propósito é exatamente o de abrigar os princípios
vetores que irão informar todos os demais setores do novo Código.6
E o fato de o princípio do contraditório estar desse modo organicamente posicionado
não deixa de ter um importante significado simbólico, na medida em que serve para
disseminar na cultura jurídica a necessidade de encarar a nova legislação como um
desdobramento da Constituição Federal e ainda sinalizar o dever de interpretá-la de
acordo com os direitos fundamentais processuais civis.7
É nesse contexto que o contraditório constitui fundamento basilar para a
interpretação e aplicação do novo direito processual, sendo a sua expansão de vital
importância para a construção de um processo moderno, capaz de atender o clamor
4. Intérprete autêntico no sentido atribuído por Hans Kelsen, de interpretação realizada pelo órgão estatal aplicador
do direito (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes,
2003, p. 387 e ss.). Interpretar/aplicar o direito como atividade unitária e não-autônoma, pois o intérprete somente
obtém o verdadeiro sentido do texto a partir de um dado caso concreto. Interpretar o direito consiste em dar
concretude à lei em cada caso, ou seja, aplicá-la (GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método, 4.ed. Tradução de Ana
Agud Aparício e Rafael de Agapito. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1991, p. 397-401).
5. O art. 7º determina que o juiz zele pelo efetivo contraditório, não qualquer contraditório; o art. 9º veda que se
profira decisão contra uma parte sem antes ouvi-la; e o art. 10 proíbe a prolação de decisão sem que as partes tenham
oportunidade de se manifestar sobre seus fundamentos (fundamentos da decisão).
6. LARENZ, Karl. Derecho justo - fundamento de ética jurídica. Tradução de Luis Diez-Picazo, Madri: Civitas, 1985, p. 32.
Este autor confere aos princípios a função de pensamentos diretores de uma regulação jurídica existente ou possível.
7. NMARINONI, Luiz Guilherme; Mitidiero, Daniel. O projeto do CPC: crítica e propostas. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2010, p. 16.
DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
POR UM PROCESSO CIVIL COMUNICATIVO E DIALÓGICO
241
social por uma justiça mais célere, efetiva e comprometida com a concretização dos
valores democráticos.
O direito processual é um fiel indicador do grau de democracia e de civilidade
existentes em determinado Estado. Por isso, o legislador reformista projetou a nova
lei tendo o princípio do contraditório como fundamento basilar, assegurando uma
participação mais efetiva das partes no processo de construção da decisão judicial.
Nesse contexto, prevê o art. 10 do novo Código que “O juiz não pode decidir, em
grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha
dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a
qual deva decidir de ofício”.
Sem correspondência no Código de Processo Civil vigente, o novel dispositivo não
encapsula o contraditório na simples manifestação sucessiva de autor e réu, como ocorre
atualmente. Ele vai além: redimensiona o contraditório, assegurando a manifestação
prévia das partes sobre o fundamento da futura decisão, buscando com isso evitar o
proferimento de decisões-surpresa (Verbot der Überraschungsentscheidungen), cuja
fundamentação é conhecida somente no momento da publicação.
O novo Código será informado por um contraditório participativo, que obrigará o
juiz a se comunicar com as partes – e indiretamente com a sociedade –, transformando
o diálogo processual num importante fator de democratização do próprio Poder
Judiciário.
3. O ABANDONO DO PROCESSO AUTOCRÁTICO COM
CONTRADITÓRIO RESTRITO ÀS PARTES
A perda de funcionalidade e eficiência do velho Código Buzaid não é apenas fruto
da atual desarmonia de seus dispositivos, desarmonia gerada pelas sucessivas reformas
tópicas adotadas a partir da década de 90. Decorre também da manutenção de antigas
fórmulas pouco afetas ao contraditório amplo, que hoje somente encontram sentido e
aplicação depois de ajustadas pela lente constitucional.8
8. Exemplo disso são os embargos de declaração, recurso que se distingue dos demais pela ausência de previsão
do contraditório no Código de Processo vigente, mas que na prática é assegurado com fundamento no art. 5º LV da
Constituição Federal, sempre que possível a aplicação de efeito modificativo em caráter excepcional. O novo CPC,
conformando-se com a Lei Maior, expressamente prevê o contraditório para os embargos de declaração no art.1.023 § 2º.
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v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
Não há dúvida de que se faz mesmo necessário um novo Código de Processo Civil, capaz
não só de dar maior coesão aos enunciados normativos, mas primordialmente aprofundar
a harmonização de seus dispositivos com o texto da Constituição Federal de 1988,
conformidade que o velho Código Processual de 1973, por ter surgido muito tempo antes,
não logrou mais sustentar. Por isso é que entre os objetivos anunciados pela comissão de
juristas encarregada da elaboração do Anteprojeto destacam-se a necessidade de imprimir
maior grau de organicidade ao sistema e estabelecer uma sintonia fina com a Constituição.
O que se busca em verdade, mas quase não se ressalta, é deixar de lado o
contraditório restrito aos sujeitos parciais do processo e encontrar meios de arbitrar
os conflitos da forma mais democrática possível, prestigiando a efetiva participação
das partes e também a cooperação do Estado-juiz, pois o direito fundamental ao
contraditório encontra assento no valor participação. Nesse aspecto, melhor seria
ter mantido a essência da redação dada ao art. 5º pelo Projeto de Lei aprovado no
Senado (PL nº 166/2010), que estabelecia possuir as partes “direito de participar
ativamente do processo, cooperando entre si e com o juiz e fornecendo-lhe
subsídios para que profira decisões, realize atos executivos ou determine a prática
de medidas de urgência”.
Apesar da boa redação desse dispositivo, a redação final do novo CPC adotou a
alteração introduzida pelo Projeto de Lei aprovado na Câmara (PL nº 8.046/2010),
substituindo a expressa regra de cooperação pelo dever de probidade processual e
boa-fé, valores igualmente importantes e que somente reforçam a necessidade de
instauração de um ambiente cooperativo cuja razão de ser é garantir a participação
ativa do autor e do réu no processo,9 de modo a fornecer ao juiz a maior quantidade
possível de elementos aptos a permitir o arbitramento de uma solução lógica,
coerente e de acordo com o direito posto, se não para eliminar o conflito, por certo
para absorver a insegurança.10
9. A redação do art. 5º do Projeto de Lei do Senado foi fortemente criticada ao prever a existência de cooperação
entre as próprias partes, o que em tese não se compatibilizaria com a estrutura adversarial ínsita ao processo
contencioso. Afinal, se existe processo é porque faltou colaboração mútua no sentido de encontrar uma solução
amigável para o conflito. Isso, todavia, seria motivo para simples ajuste e não para o completo abandono do texto,
sobretudo, quando o dever de cooperação entre as partes encontrou abrigo no art. 6º do novo CPC. E pior, sem
que ficasse aclarado que a colaboração no processo civil do Estado Constitucional, de rigor, deve ser sempre
compreendida como a colaboração do juiz em relação às partes. Nesse sentido ver: MARINONI, Luiz Guilherme;
MITIDIERO, Daniel. O projeto do CPC: crítica e propostas. Op. cit., p. 73.
10. É de Ferraz Junior a percuciente observação de que a finalidade última da decisão judicial não é eliminar
DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
POR UM PROCESSO CIVIL COMUNICATIVO E DIALÓGICO
243
Não se submete a esse modelo constitucional e sistemático, a forma centralizadora e
autocrática de absorção de insegurança reinante na atual processualística nacional, em
que somente as partes atuam para valer (quando atuam), ficando reservado para o juiz
um papel passivo, de árbitro autômato e equidistante, que conhece o direito (jura novit
curia), mas permanece numa redoma de vidro, cooperando pouco e nunca dialogando
com as partes na construção do caminho condutor da decisão, que hoje é imposta
verticalmente, de forma autocrática.
O tema remete ao mito da caverna de Platão, em que apenas o filósofo que dela
podia sair para a luz do dia é capaz de ver as coisas como realmente são e assim governar
os demais habitantes que permaneciam olhando para as sombras refletidas na parede
da caverna. Revisitando esse mito e aplicando-o como critério de solução dos dilemas
do cotidiano, Michael Sandel afirma que essa forma platônica de ver as coisas está certa
apenas em parte, “pois os clamores dos que ficaram na caverna devem ser levados em
consideração”, já que “a filosofia que não tem contato com as sombras na parede só
poderá produzir uma utopia estéril”.11
Sandel quer com isso mostrar que para se captar o sentido de justiça dos
julgamentos não basta ao juiz colocar-se acima dos preconceitos e das rotinas do
dia a dia – o que, por si só, já é algo bastante difícil para alguns. Essencial, segundo
esse pensador, que também colha opiniões e convicções dos outros sujeitos do
processo, ainda que posições parciais, como pontos de partida, pois constitui
um falso pluralismo, típico de democracias ainda jovens, apenas assegurar a
manifestação dos destinatários da decisão, olvidando que o mais importante é levar
em consideração o que dizem, prestigiando o direito de as partes influenciarem o
resultado do julgamento.
os conflitos, mas absorver a insegurança por eles gerada. “Absorção de insegurança significa, pois, que o ato de
decidir transforma incompatibilidades indecidíveis em alternativas decidíveis, ainda que, num momento subsequente,
venha a gerar novas situações de incompatibilidade eventualmente até mais complexas que as anteriores. Absorção de
insegurança, portanto, nada tem a ver com a ideia mais tradicional de obtenção de harmonia e consenso, como se em
toda decisão estivesse em jogo a possibilidade de eliminar-se o conflito. Ao contrário, se o conflito é incompatibilidade
que exige decisão é porque ele não pode ser dissolvido, não pode acabar, pois então não precisaríamos de decisão, mas
de simples opção que já estava, desde sempre, implícita entre as alternativas. Decisões, portanto, absorvem insegurança,
não porque eliminam o conflito, mas porque o transformam”(FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do
direito: técnica, decisão, dominação. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 288).
11. SANDEL, MICHAEL J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. 6. ed. Tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 38-39.
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Convocando essa filosofia para o campo da ciência jurídica, é possível concluir
que um processo centrado na figura do juiz, que restringe o contraditório à simples
manifestação sucessiva das partes, não é um processo de moldura constitucional
capaz de produzir resultados justos e coerentes, ou simplesmente aptos a absorver
insegurança, sabido que no processo autocrático a jurisdição, com frequência cada vez
maior, tem sido utilizada menos para dirimir do que para criar e recriar conflitos.
Esse vetusto modelo autoritário de processo deve ser abandonado, sendo em seu
lugar erigido um novo tipo de contraditório, expandido a partir de uma visão cooperativa
de processo, em que o juiz submete às partes sua primeira impressão técnica sobre a
questão a ser decidida, colhe suas manifestações a respeito como pontos de partida
parciais, abstraindo daí os elementos para a formação de sua convicção e elaboração da
solução final de maneira democrática, proferindo uma decisão fundamentada e com o
enfrentamento das argumentações deduzidas.12
Um país que se proclama democrático e atualmente possui cerca de 95 milhões
de processos em tramitação13 não pode manter seus jurisdicionados sob o jugo
de um processo de cariz autocrática, que não privilegia o diálogo inerente ao
princípio da colaboração nem se conforma com as escolhas políticas elegidas pela
Constituição.
4. O MODELO CONSTITUCIONAL
DE PROCESSO CIVIL BRASILEIRO
O processo civil brasileiro não ficou livre do fenômeno da constitucionalização que
os direitos, de um modo geral, experimentaram a partir da segunda metade do século
XX, fenômeno que Virgílio Afonso da Silva bem definiu como a “irradiação dos efeitos
das normas (ou valores) constitucionais aos outros ramos do direito”.14
12. A propósito, a necessidade de enfrentamento de todos os argumentos importantes deduzidos no processo
está expressamente prevista no novo CPC (art. 489 §1º IV), não se considerando fundamentada a decisão que não
observe essa regra, entre outras.
13. De acordo com a 10ª edição do Relatório Justiça em Números, divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça.
Disponível em:<ftp://ftp.cnj.jus.br/Justica_em_Numeros/relatorio_jn2014.pdf>. Acesso em 12 nov. 2014.
14.SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares.
São Paulo: Malheiros, 2008, p. 18.
DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
POR UM PROCESSO CIVIL COMUNICATIVO E DIALÓGICO
245
Estando a Constituição no centro do sistema jurídico dela se projetam efeitos para
as diversas disciplinas, que passam a se comunicar entre si e em perfeita harmonia com
os princípios e regras irradiantes do texto constitucional.
Em virtude disso, o processo civil também deve se harmonizar com as garantias
constitucionais de um Estado Democrático de Direito, entre as quais a que assegura
o contraditório aos litigantes no processo judicial, conforme art. 5º LV da Carta
Republicana.15
Para o autor de uma ação judicial isso importa a possibilidade de veicular perante
o Estado-juiz o interesse que pretende ver tutelado, assim como a respectiva prova de
suas alegações. E para o réu, a garantia de ser comunicado sobre a demanda e de poder
se contrapor em face dela, também por meio de alegações e da produção da prova
correlata. Para ambos os protagonistas do processo, representa a garantia de que terão
suas argumentações efetivamente levadas em conta (isto é, acolhidas ou rejeitadas) por
ocasião do proferimento de qualquer decisão.
Ao Estado-juiz cabe assegurar o equilíbrio e a igualdade de atuação das partes,
dentro do que se convencionou chamar de princípio da paridade de armas, em verdade,
um desdobramento dos princípios da isonomia e do contraditório.16
Tão significativo é o papel do contraditório na atualidade, que esse princípio, no
Estado Constitucional, passa a compor o próprio conceito de processo, hoje melhor e
mais tecnicamente compreendido como “atividade estatal desenvolvida sob contraditório
e ampla defesa para viabilizar o exercício democrático do poder do Estado.”17
15. CF, art. 5º LV: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o
contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.”
16. O princípio da paridade de armas foi positivado no art. 7º do novo CPC, com a seguinte redação: “É assegurada
às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa,
aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais (...)”. A regra correspondente do Código de Processo Civil
vigente é a do art. 125 I, que diz competir ao juiz “assegurar às partes igualdade de tratamento”. Tem-se que a paridade
contemplada no texto da nova lei constitui expressão mais ajustada à prática da igualdade aristotélica, à medida que o
juiz pode estabelecer as discriminações necessárias, visando assegurar e preservar a participação igualitária das partes,
inclusive, por meio da dinamização do ônus da prova, nos termos do art. 373 §1º do novo CPC.
17. RAMOS, Glauco Gumerato. Processo jurisdicional civil, tutela jurisdicional e sistema do CPC: como está e como
poderá estar o CPC brasileiro. In: CARNEIRO, Athos Gusmão; CALMON, Petrônio (Coord.). Bases científicas para um
renovado direito processual. 2.ed. Salvador: Editora Podivm, 2009, p. 574.
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Nesse conceito subjaz a ideia segundo a qual o Estado-juiz não possui a chave da
verdade, por essa razão deve se preocupar com a legitimidade de sua decisão, e esta
será tanto mais legítima à proporção que advenha de um processo de deliberação, que
assegure a participação ampla e efetiva de todos os atores envolvidos. No âmbito do
processo civil, o juiz do Estado Constitucional deve ser “ativo na condução do processo
em colaboração com as partes”.18 Outra compreensão não é possível quando se invoca o
exercício democrático do poder.
E para que uma democracia possa funcionar bem e perdurar, as decisões não podem
ser proferidas antes de um amplo processo de deliberação, que envolva o debate e a
crítica esclarecida. Forte nesse entendimento, Albert Hirschman sustenta que constitui
um risco para a democracia a existência de opiniões sólidas e preconcebidas, que
interditam o debate e não valorizam a opinião do outro.19
Essa visão moderna, fundada na teoria da democracia, pressiona por uma mudança
de postura do intérprete autêntico, que deve abandonar opiniões preconcebidas,
não raro formadas no discurso ideológico, e abrir a mente para as argumentações
deduzidas pelas partes. Mais que isso: deve levar em conta tais argumentações. Essa
deve ser a prática resultante do modelo constitucional de processo, fora do qual não há
atividade jurisdicional válida e capaz de assegurar o acesso a uma ordem jurídica justa,
democrática e apta a tutelar o direito material de forma efetiva e eficiente.
Mas para que a atividade jurisdicional seja realmente legítima e viabilizadora do
exercício democrático do poder do Estado, o contraditório precisa ser visto nessa
dimensão mais ampla, participativa e abrangente de todos os aspectos, processuais
e materiais, como decorrência das conquistas sociais obtidas ao longo da evolução
histórica. Em suma, a nova processualística deve ter presente um contraditório elevado
à condição de dogma, que tenha por base o diálogo e por horizonte a convicção de que
nada pode ser decidido sem o conhecimento e a participação das partes.
18. MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O projeto do CPC: crítica e propostas. Op. cit., p. 32.
19. HIRSCHAMAN, Albert O. Auto-subversão: teorias consagradas em xeque. Tradução de Laura Teixeira Motta. São
Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 96.
DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
POR UM PROCESSO CIVIL COMUNICATIVO E DIALÓGICO
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5. O CONTRADITÓRIO COMO DEVER DE CONSULTA
E DE DIÁLOGO
Na perspectiva de um processo realmente dialógico, acertou o legislador com a
introdução do art. 10 no novo Código. O dispositivo inspira-se na ideia de cooperação
judicial e reafirma o direito de participação ativa das partes no processo, consagrando
o contraditório como dever de consulta e de diálogo judicial, considerando que o
princípio não fica mais restrito às partes, ele se expande e passa a ter como destinatário
também o juiz.20
Com a entrada em vigor da nova lei, não bastará ao magistrado assegurar
a manifestação mútua das partes antes de decidir. Deverá primeiro consultálas, submetendo ao seu exame prévio os fundamentos que pretende adotar na
decisão.
O processo é produto da vida de relações que se desenvolve no seio da sociedade.
Logo, não pode ficar encastelado na técnica e no conhecimento do aplicador da lei.
Ao revés, deve estar aberto para sofrer as influências da sociedade que o criou. E é por
meio do diálogo que as partes possuem a oportunidade de influenciar eficazmente na
formação da convicção do juiz.
Como pressuposto da decisão judicial, o contraditório expandido transforma
o processo em instrumento de comunicação, um processo emancipador de
comunicabilidade, como preconizava Habermas, 21 favorecendo o escopo
político de participação da sociedade na busca civilizada da solução dos
litígios. Uma busca coletiva, que requer interlocutores instruídos, e não mais um
trabalho hercúleo de investigação introspectiva, feita no silêncio do gabinete
do magistrado.
O processo deixa de ser dialético, limitado ao embate argumentativo fixado
entre autor e réu, e passa a ser dialógico, pois considera a manifestação das partes
como pontos de partida parciais para a elaboração da decisão judicial. Com isso,
concede-se aos sujeitos do processo, que vivenciam o contexto fático regulado pela
norma, a possibilidade de ser um de seus cointérpretes, pondo fim ao monopólio da
20. MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O projeto do CPC: crítica e propostas. Op. cit., p. 75.
21. HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução de Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 2003, p. 145.
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interpretação tão criticado pela pena de Peter Häberle, ao argumento de que “todo
aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto
é, indireta ou, até mesmo diretamente um intérprete dessa norma. O destinatário da
norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente,
do processo hermenêutico”.22
Com essa visão ampliada de contraditório fundado em dever de consulta e de diálogo com
os sujeitos parciais do processo, contribui-se, em preciosa medida, com o equacionamento
do problema de déficit democrático do Poder Judiciário23 – pois a democracia se alimenta
muito mais do entrechoque de opiniões do que de consensos e unanimidades –, eliminando
a chamada decisão-surpresa, nascida da pressa e da falta de diálogo, sendo por isso incapaz
de produzir efeito em face do modelo constitucional de processo.24
Além de reafirmar as bases democráticas do processo civil brasileiro, a nova
técnica do contraditório recolocará no tablado a necessidade da reflexão resultante
do cumprimento dos deveres de consulta e de diálogo, retirando os juízes da linha
de produção para a qual foram empurrados pelos órgãos de controle com vistas
ao atendimento frenético de metas, com graves consequências para a qualidade
da prestação jurisdicional. 25 Juízes não podem ser convertidos em autômatos do
22. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição
para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto
Alegre: Fabris, 2002, p. 15.
23. E resolver problemas foi uma das linhas de trabalho da Comissão, conforme exposição de motivos do Anteprojeto
no novo Código de Processo Civil.
24. MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O projeto do CPC: crítica e propostas. Op. cit., p. 76. Esses autores
criticam o fato de o novo Código não haver disciplinado as consequências da decisão-surpresa, que existe e pode ser
considerada válida (desde que formalmente fundamentada), embora se revele ineficaz por violar uma das condições de
sua prolação, que é exatamente o dever de diálogo em que se desdobra o contraditório.
25. As Metas Nacionais do Poder Judiciário, também conhecidas como Metas de nivelamento, foram definidas
pela primeira vez no 2º Encontro Nacional do Judiciário, no ano de 2009, em Belo Horizonte, sob a coordenação
do Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Entre essas metas, a de nº 2 foi merecedora de maior destaque, pois
ela determinou aos tribunais que identificassem e julgassem os processos judiciais mais antigos, distribuídos
até 31/12/2005. Através da Meta 2 o Judiciário buscou conferir concretude ao direito fundamental à razoável
duração do processo (CF, art. 5º LXXVIII), empenhando-se ao máximo para eliminar o estoque de processos
responsáveis pelas elevadas taxas de congestionamento nos tribunais. Para 2014, a Meta 2 estabeleceu
percentuais de julgamento distintos para os diversos seguimentos do Judiciário. A Justiça Estadual, por exemplo,
deverá identificar e julgar, até 31/12/2014, pelo menos 80% dos processos distribuídos até 31/12/2010 no 1º
grau, e até 31/12/2011 no 2º grau; e 100% dos processos distribuídos até 31/12/2011 nos Juizados Especiais e nas
DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
POR UM PROCESSO CIVIL COMUNICATIVO E DIALÓGICO
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sistema, devem ser estimulados a proferir decisões maturadas e forjadas no debate
processual.
O Judiciário da pós-modernidade não deve cuidar apenas de fazer depressa (e a
qualquer custo). Deve, conforme o dito espirituoso de José Alberto dos Reis, fazer bem e
depressa,26 o que importa prestar a jurisdição em tempo razoável, mas sem prejuízo da
qualidade, trabalho que requer uma demora mínima, necessária à reflexão como fruto
do diálogo processual.27
E não se diga que a sistemática de um processo comunicativo resultará num
formalismo excessivo, uma das causas da morosidade que tanto atormenta a
comunidade jurídica e constrange o Judiciário.
O processo comunicativo prestigiará o formalismo na dose certa, o bastante para
disciplinar o andamento do processo, de modo a evitar o arbítrio do poder e os excessos
de uma parte em face da outra. Um formalismo-valorativo destinado a conferir segurança
jurídica e atenção com os atos que precedem a prolação de uma sentença justa.
Quando proferida com precisão, boa técnica e garantia da efetiva participação
dos sujeitos do processo, a decisão judicial tende a ser mantida nos tribunais e melhor
assimilada pela parte sucumbente, que aceita mais resignadamente o resultado
proclamado, à medida que com ele contribuiu, recebendo todas as justificativas
concretas pelas quais o juiz deixou de acolher suas alegações, conforme passará a
exigir o rico enunciado do art. 489 §1º. Percebe-se, então, que a tutela jurisdicional
proferida em bases democráticas, com a observância do dever de consulta e de diálogo,
absorve a insegurança de maneira definitiva e plena, devolvendo mais rapidamente a
estabilidade para a vida de relações. Eis aí uma boa forma de celeridade a ser resgatada.
Turmas Recursais Estaduais. O CNJ também colocou em seu sítio eletrônico um processômetro com o índice de
produtividade dos Tribunais brasileiros. Os juízes estão na linha de produção e fiscalizados.
26. FUX, Luiz (Org.). O novo processo civil brasileiro: direito em expectativa. Rio: Forense, 2011, p. 3.
27. A propósito do papel do tempo no processo judicial, Lorenzo Zolezzi Ibárcena adverte que “La búsqueda de la
verdad toma tiempo y el tiempo es bueno para enfriar las pasiones y hacer que las personas tocadas por la tragedia, los
investigadores, acusadores y juzgadores, y el público em general, tengan tiempo para reflexionar y domar esos instintos
de que hablámos, esos instintos de venganza, de búsqueda de un castigo casi siempre irreflexivo” (IBÁRCENA, Lorenzo
Zolezzi. Derechoen contexto. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2012, p.160/161).
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6. DA DECISÃO-SURPRESA À DECISÃO-PROJETO
No contexto de um processo de moldura constitucional, em que o contraditório se
expande para incluir o magistrado, sendo redimensionado como dever de consulta e de
diálogo, a tradicional decisão-surpresa deve dar lugar à decisão-projeto, compreendida
como tal um plano ou esboço de fundamentação jurídica que, depois de submetido à
manifestação das partes, em qualquer momento em que se houver de decidir, comporá
os fundamentos da futura decisão, com base nos quais o juiz analisará as questões de
fato e de direito deduzidas.
A depender da qualidade da crítica ofertada pelas partes ao projeto de motivação
da futura decisão, o juiz terá a possibilidade de rever a fundamentação pressuposta
para a hipótese, conformando-a com as argumentações apresentadas.
Assim, através da participação ativa e da cooperação das partes no processo, o
condutor do feito tem a oportunidade de entregar uma prestação jurisdicional de
melhor qualidade, sendo infinitamente maiores as chances de encontrar uma solução
justa, também no sentido de solução precisa e ajustada ao caso, a solução que
contemple a chamada equidade individualizadora de que falava Agostinho Alvim.28
A garantia de manifestação prévia das partes sobre os fundamentos da futura
decisão não importa prejulgamento, à medida que, nessa fase preparatória,
as questões de fato e de direito deduzidas não são analisadas em pormenor e
tampouco há acolhimento ou rejeição de qualquer tipo de pretensão. Tudo isso fica
para a ocasião de prolação da decisão propriamente dita, decisão em sentido lato
(interlocutória ou sentença).
O dever de consulta se encerra na apresentação de um simples esboço ou projeto de
decisão (que pode ser oral, quando em audiência), pois o que o novo Código exigirá é que
o magistrado apenas submeta ao exame das partes o fundamento jurídico que pretende
adotar, sem ter que necessariamente dizer se o adotará para deferir ou indeferir o que se
pede. A decisão propriamente dita, se positiva ou negativa, estará sempre a depender da
crítica esclarecida apresentada pelas partes, nisso consiste o diálogo judicial.
Sendo a regra do contraditório expandido também aplicável à matéria sobre a qual
o juiz deva decidir de ofício, a decisão-projeto caberia na seguinte fórmula: “digam
28.ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1980, p.4.
DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
POR UM PROCESSO CIVIL COMUNICATIVO E DIALÓGICO
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as partes sobre a incidência da prescrição ao caso”. Como se vê, a questão não reside
apenas em assegurar a manifestação. Está em garantir a manifestação das partes sobre
determinada matéria que o julgador pressupõe poder aplicar à situação concreta que se
apresentar, mas que somente poderá dela se valer para fundamentar sua decisão, após
submetê-la ao escrutínio das partes.
Na prática judiciária hodierna, de um modo geral, a decisão vem na forma de
surpresa, o juiz decide de ofício matéria que sequer é agitada no processo, porque de
ordem pública, suprimindo a possibilidade de as partes, segundo o exemplo dado,
trazerem ao seu conhecimento a ocorrência de uma causa interruptiva ou suspensiva
da prescrição.29
A consequência é que a jurisdição acaba gerando perplexidade. O juiz decide sem
ouvir ou consultar ninguém e, de ordinário, decide mal. Rende ensejo à interposição de
um recurso, que sendo provido, determinará a reforma da decisão e, em alguns casos, a
restituição dos autos ao 1º grau para novo julgamento, com perda de tempo e energia,
prolongando o litígio e ampliando a carga de trabalho dos tribunais desnecessariamente,
tudo em desprestígio da jurisdição e do princípio que assegura a solução do processo
em tempo razoável.
A ideia de contraditório como dever de diálogo e de consulta, permitindo a
substituição da decisão-surpresa pela decisão-projeto, vem para eliminar o anacronismo, a
falta de transparência, o desperdício de tempo e de energia, tornando mais justo o resultado
e o processo em si, mercê do equilíbrio propiciado pela garantia da efetiva participação
democrática.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O contraditório expandido previsto no art. 10 do novo Código colocará o direito
processual civil brasileiro num outro estágio evolutivo, com a maximização da oportunidade
de as partes atuarem de modo mais efetivo na construção da decisão judicial.
29.Nada obstante o sistema processual atual esteja alinhado, em geral, ao modelo de decisão-surpresa, é
oportuno observar que a Lei de Execução Fiscal (Lei 6.830/1980), de forma vanguardista e aplicando a ideia de
contraditório como dever de diálogo e de consulta, já exige desde 2004 que o magistrado ouça a Fazenda Pública
antes de pronunciar a prescrição intercorrente na execução fiscal (art. 40 §4º), exatamente para que possam ser
arguidas eventuais causas de suspensão ou interrupção da prescrição do crédito tributário.
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Concebendo-se o contraditório como dever de consulta e de diálogo, construirse-á um processo com bases democráticas, que de certo favorecerá o atingimento dos
escopos da jurisdição mais eficazmente do que o atual modelo autocrático de processo
permite realizar, sobretudo os objetivos políticos de participação da sociedade na busca
da melhor e mais adequada solução do conflito de interesses.
A nova lei, se corretamente compreendida e aplicada, promoverá uma importante
mudança de postura do seu aplicador, que deverá refugar idiossincrasias e posições
peremptórias, adotando um estilo de atuação mais transparente, maduro e cooperativo,
sujeitando a decisão-projeto à análise crítica das partes, criando espaços para um
debate esclarecido e propositivo.
Processo não é monopólio das partes e tampouco do juiz. A natureza pública do
instituto reclama um debate plural, democrático e amplificado pelo diálogo permanente
de todos os seus sujeitos.
O contraditório expandido pela efetiva participação das partes na construção da
norma do caso concreto constitui uma preciosa garantia fundamental do processo,
uma vez que além de legitimar democraticamente a atuação dos juízes, contribuirá
para melhorar a qualidade das decisões judiciais.
Por um processo civil comunicativo e dialógico, que venha o novo Código!
8. REFERÊNCIAS
ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 5.ed. São
Paulo: Saraiva, 1980.
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POR UM PROCESSO CIVIL COMUNICATIVO E DIALÓGICO
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DIREITO PENAL
AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO
DA LITERATURA
SÍLVIA APARECIDA GONÇALVES
Doutorando e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP.
Desembargador do TJMA.
SUMÁRIO
1. Introdução; 2. Conceitos e Origem da Violência, 2.1 Tipos de Violência e Violência de Gênero, 2.2 Modalidades
e Ciclo da Violência contra a Mulher; 3. As Origens da Violência contra a Mulher, 3.1. A Formação da Família e o
Sistema Patriarcal, 3.2. A Construção dos Papéis Sociais; 3.3. Conseqüências da Desigualdade entre Homens e
Mulheres; 4. A Evolução dos Direitos das Mulheres, 4.1. A Luta do Movimento de Mulheres pelos Direitos Sociais
e Políticos – O Movimento Feminista, 4.2. As Leis e a Lei n.11.340/2006 – Lei Maria da Penha – As inovações e a
transdisciplinariedade; 4.3. Neofeminismo e Visão Restauradora; 5. Considerações Finais; 6. Referências.
RESUMO
ABSTRACT
O presente trabalho pretende explorar a
dinâmica da violência doméstica contra a
mulher, abordando a sua relação com uma
visão restauradora. Através de uma revisão
bibliográfica apresenta uma reflexão sobre
as causas da violência doméstica e possíveis
soluções, haja vista tratar-se de uma violação dos
Direitos Humanos (ONU 1993) e um problema de
Saúde Pública (ONU 1994), pelo seu impacto para
a saúde e o desenvolvimento biopsicossocial da
mulher. Revisa o contexto do sistema patriarcal
e machista presente na sociedade, bem como
seus rebatimentos no exercício da sexualidade
feminina. Propõe uma visão restauradora,
partindo do neofeminismo, da cultura de paz
e de uma intervenção interdisciplinar entre
as áreas profissionais, objetivando integrar
conhecimentos para coibir a violência, através da
rede de serviços, varas especializadas, formação
continuada e capacitação em gênero.
Abstract the present work aims to explore the
dynamics of domestic violence against women,
addressing its relationship with a restorative
vision. Through a literature review presents a
reflection on the causes of domestic violence and
possible solutions, given that this is a violation
of human rights (UN 1993) and a public health
problem (UN 1994), by its impact on health and the
biopsychosocial development of women. Revises
the context of patriarchal and sexist system
present in society, as well as their rebatimentos
in the exercise of female sexuality. Proposes a
restorative vision, starting from neofeminismo,
the culture of peace and of interdisciplinary
intervention among the professional areas,
aiming to integrate knowledge to curb violence,
through the network of services, specialty sticks,
continuing education and training in gender.
PAVRAS-CHAVE
KEYWORDS
violência contra a mulher; sistema patriarcal;
direitos; sociedade; feminismo
violence against women; patriarchy; rights;
society; feminism
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v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho pretende explorar a dinâmica da violência doméstica contra a
mulher abordando a sua relação com uma visão restauradora.
O interesse pelo tema surgiu a partir da minha trajetória profissional em Direito de
Família, observando a presença da violência relacionada ao contexto social e psicológico
das pessoas, propondo uma nova perspectiva na dinâmica do Direito com o objetivo de
desenvolver soluções mais abrangentes dos conflitos.
A relevância da presente pesquisa deve-se aos fatos incontroversos observados na
sociedade que retratam a violência contra a mulher, apresentando a necessidade de
uma reflexão sobre suas causas e possíveis soluções, haja vista tratar-se de uma violação
dos Direitos Humanos (ONU 1993) e um problema de Saúde Pública (ONU 1994), pelo
seu impacto para a saúde e o desenvolvimento da mulher.
Os objetivos são refletir sobre as causas da violência contra a mulher e desconstruir
o conceito de que se trata de um problema privado. Os métodos de pesquisa adotados
foram a revisão bibliográfica para a construção da fundamentação teórica, bem como
a sistematização e análise das informações. As hipóteses prováveis para o tema são
o sistema patriarcal e machista presente na sociedade, objetivando o controle da
sexualidade da mulher e a manutenção de riquezas.
Esta monografia encontra-se dividida em quatro itens. O item dois conceitua a
violência de uma forma geral, abordando as suas possíveis causas e origens, objetivando
compreender melhor o comportamento agressivo que pode se tornar violento,
dependendo de vários fatores, os quais não se têm uma definição única devido à
amplitude do tema.
Apresenta ainda a conceituação de violência de gênero, natureza, tipos e causas
da violência doméstica contra a mulher. Aborda as novas definições das formas
de violência: física, sexual, psicológica, moral e patrimonial, dentro de um ciclo
destrutivo.
Para que sejam compreendidas as causas relacionadas à violência doméstica
contra a mulher o item três inicia-se com a formação da família para colaborar com o
entendimento de como se deu as relações entre homens e mulheres e a transformação
do sistema matriarcal para patriarcal.
DOUTRINA . DIREITO PENAL
AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA
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Explora as informações sobre a construção de gênero e os papéis sociais dos homens
e mulheres, bem como as conseqüências da desigualdade.
O item quatro traz uma análise sobre a conquista das mulheres na sociedade
mediante a cultura machista arraigada a ela, através dos movimentos de luta, tais
como o movimento feminista. O referido movimento tem como meta a igualdade de
direitos entre homens e mulheres, intervindo na sociedade através de propostas de
garantia de direitos, exaltando algumas personalidades femininas que contribuíram
significativamente para a transformação da história.
Apresenta a forma como a legislação trata a conduta da mulher e regulariza
as suas relações, através da Constituição Federal, Código Civil (Lei. n.º 3.071/1916
e n.º 10.406/2.002; Código Penal (Decreto Lei n.º 2.848/1940); Estatuto da Mulher
Casada (Lei n.º 4121/1962), Lei n.º 6.515/77 (Lei do Divórcio) e Lei n.º 9.099/95.
Aborda os Tratados Internacionais e especificamente a Lei n.º 11.340/06 – Lei
Maria da Penha, suas inovações, caráter transdisciplinar, pontos controversos e
constitucionalidade.
Finaliza com uma proposta restauradora, partindo do neofeminismo, da cultura
de paz e de uma intervenção interdisciplinar entre as áreas profissionais, objetivando
integrar conhecimentos para coibir a violência, através da rede de serviços, varas
especializadas, formação continuada e capacitação em gênero.
2. CONCEITOS E ORIGENS DA VIOLÊNCIA
“Não existe uma definição consensual ou incontroversa de violência.
O termo é potente demais para que isso seja possível.”
(Anthony Asblaster)
Dicionário do Pensamento Social do Século XX
Com intuito de elucidar a compreensão das origens da violência, se faz necessário
definir alguns conceitos. Segundo o Dicionário Houaiss (2010, p.804), “violência é uso
de força física; ação de intimidar alguém moralmente ou o seu efeito; ação freqüente
destrutiva, exercida com ímpeto, força; expressão ou sentimento vigoroso; fervor”. A
Organização Mundial da Saúde (OMS), no Relatório Mundial sobre Violência e Saúde
(2002), define violência como:
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
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O uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio,
contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte
ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico,
deficiência de desenvolvimento ou privação.
Violência em seu significado mais freqüente quer dizer uso da força física,
psicológica ou intelectual para obrigar outra pessoa a fazer algo que não está com
vontade; é constranger, é tolher a liberdade, é incomodar, é impedir a outra pessoa
demanifestar seu desejo e sua vontade, sob pena de viver gravemente ameaçada ou
até mesmo ser espancada, lesionada ou morta. É um meio de coagir, de submeter
outrem ao seu domínio, é uma violação dos direitos essenciais do ser humano (TELES
e MELO, 2002).
Michaud (1989, p. 08) propõe em relação à etimologia do termo:
Violência vem do latim violentia, que significa violência, caráter violento ou
bravio, força. O verbo violare significa tratar com violência, profanar, transgredir.
Tais termos devem ser referidos a vis, que quer dizer força, vigor, potência,
violência, emprego de força física, mas também quantidade, abundância,
essência ou caráter essencial de uma coisa. Mais profundamente, a palavra vis
significa a força em ação, o recurso de um corpo para exercer sua força e portanto
a potência, o valor, a força vital.
O autor ressalta ainda que, devido à diversidade, é difícil definir violência, porém,
um conceito possível seria: “uma ação direta ou indireta destinada a limitar, ferir ou
destruir as pessoas ou os bens” (MICHAUD, 1989, p.10). Ou então:
A violência se define, no sentido estrito, como um comportamento que visa causar
ferimentos às pessoas ou prejuízo aos bens. Coletiva ou individualmente, podemos
considerar tais atos de violência como bons, maus, ou nem um nem outro, segundo
quem começa contra quem. (MICHAUD; GRAHAM; GURR, 1989, p. 10).
Analisando a origem da violência salienta-se a importância do estudo da
agressividade. Segundo Michaud (1989), as abordagens antropológicas descrevem a
agressividade sugerindo um estado que leva ao ataque e ao combate, de forma positiva
adaptativa ao ser vivo. Há uma agressividade correspondente às situações de estresse
no organismo para a produção de uma modificação. Na agressividade humana a função
positiva é relativa, em que pese seja ela própria do homem como dos outros animais.
Tem caráter adaptativo nos primeiros homens, mas com o conhecimento e domínio do
DOUTRINA . DIREITO PENAL
AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA
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meio ambiente, técnicas e instrumentos de caça passam a ser nocivos, de modo que
a violência humana traz uma transgressão, uma destruição e uma crueldade que não
coadunam com a natureza.
A agressão acompanha a conquista, a destruição e a exploração. Neste sentido,
há uma violência no próprio âmago da humanidade, que anima suas invenções,
suas descobertas e sua produção de cultura. (MICHAUD, 1989, p.76).
De acordo com Goldberg (2004), há duas formas de agressão: a instintiva, impulso
mediante o ataque ou recuo quando há ameaça à vida ou ao espaço vital; e aquela
com requintes de crueldade e objetivo de satisfação de um desejo. O homem reage
impulsionado por uma herança da era pré-histórica, onde por sua primitividade
caçava para sobreviver, já a vontade de matar teria prosperado pela competitividade.
Sob o prisma da Psicologia Social, a violência pode ser compreendida como a seqüela
da centralização dos poderes, da burocratização das decisões e da globalidade
representativa presentes nas sociedades totalitárias. Enfatiza que a violência pode ser
causa e não só efeito, pois não existe uma psicologia do indivíduo sem o entendimento,
também, da sua inserção social.
Pelo entendimento de Michaud (1989), há várias abordagens psicológicas da
violência e da agressividade: as que consideram fortes excitações, privações e hiperestimulações como fatores desencadeadores da agressividade e da raiva e outras que
concebem os modelos na aprendizagem da agressão, através do convívio. Existem
ainda teorias que equacionam a proporção da agressividade com a reação à frustração,
ampliando-a com aspectos da vida social que podem influenciar o comportamento.
Outras abordagens trazem os fatores traumáticos na formação das personalidades
agressivas, dentro do ambiente familiar de forma a correlacionar a auto-agressão
suicida e agressão voltada contra alguém, ou seja: uma situação de interação, onde
agressor e vítima se condicionam mutuamente, concluindo: “Ninguém sabe realmente
de que pode tornar-se capaz em matéria de violência”. Esclarece que todos estes fatores
e aspectos contribuem para esclarecer sobre os indivíduos e suas capacidades de
violência, de forma a produzir iniciativas práticas e educação. (MICHAUD, 1989, p. 81).
Ainda com relação ao conceito e a natureza da violência, Sá (1999) enfatiza a
dificuldade de defini-los, concluindo que as diversas opiniões dos autores sobre a
violência passam por aspectos como o psiquismo, as frustrações e as privações como
possíveis causas de uma força que causa à vítima uma privação ainda que oculta e não
menos lesiva.
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
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A violência e a agressividade não são sinônimas, pois ainda que a violência tenha
origem no instinto agressivo, este pode não gerar violência propriamente dita,
enquanto que ela não vem do instinto e pode ser totalmente racionalizada, planejada e
justificada, como diz Costa (1992, apud Sá,1999, p.60): “violência é o emprego desejado
da agressividade com fins destrutivos”. A agressividade é compreendida como
reação natural do ser animal e hominal como forma de sobrevivência, visando suas
necessidades e não seus objetivos.
Devido à violência ser um resultado de vários fatores, não há uma única explicação
para o comportamento violento das pessoas, sendo aplicado pela OMS (2002) um
modelo chamado ecológico para concluir sua natureza de modo que fatores individuais
e contextuais se relacionam. Assim, elementos históricos, biológicos, pessoais e
demográficos, tais como: a) impulsividade; b) baixo rendimento escolar; c) abuso de
substâncias tóxicas; d) histórico de abuso e agressão podem ser desencadeadores de
atos violentos, além do convívio em ambientes que perpetuam e reproduzem tais atos
nas relações sociais e íntimas.
Sob um enfoque social a violência pode ser visualizada como um modo de viver
da sociedade a qual, com o decorrer do tempo, se aculturou dela marginalizandose do mundo através dos muros, enquanto que nas favelas passou a ser vivenciada
intimamente. Vale ressaltar que a violência sempre se apresentou sob várias faces, a
partir do reconhecimento de seu uso como defesa e sobrevivência dos primórdios da
vida humana. O exemplo da mais original e ostensiva das violências é a expulsão de
Adão e Eva do paraíso partindo de um Deus agressor e punitivo, justificando o trabalho
e a dor como castigos e conseqüências do bem e do mal, o que traz o conceito de
normas, leis e regras e subordinação (ODALIA, 1985).
O autor aponta ainda a violência institucional traduzida pelas diferenças sociais que
sempre fizeram parte da sociedade humana como uma forma de violência, uma vez que
afasta o homem do homem e impõe uma relação de força e não de equilíbrio. Por outro
lado, viver em sociedade implica em uma organização em relação ao outro, trazendo
a necessidade de definição do que é permitido e proibido, inclusive delimitando a
violência através das leis.
Neste sentido Reale (1993, p.44) ensina que: “Quem pratica um ato, consciente da
sua moralidade já aderiu ao mandamento a que obedece.” O autor esclarece que há
regras sociais que podem ser cumpridas espontaneamente ou por coação, quando o
indivíduo é obrigado a obedecer, através da idéia da força que a norma jurídica prevê.
DOUTRINA . DIREITO PENAL
AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA
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Esta idéia de força presente nas regras do Direito como controle da conduta humana
também é apontada por Ferraz Junior (1988) quando diz que a justiça é uma maneira
de impor uma ordem a qual, se desrespeitada, pode gerar uma oposição, mas que sem
ela, as pessoas são levadas a um descontrole das regras de convivência, demonstrando
assim que as normas possuem um caráter de obediência e de revolta.
Costa e Pimenta (2006) enfatizam a necessidade de se compreender a formação do
Estado Brasileiro, permeado de vários tipos de violência, principalmente contra índios,
negros, mulheres e pobres, além dos problemas sociais, econômicos e culturais não
superados desde o Brasil - Colônia.
Ensina Pedroso (2002), que as práticas de violência foram herdadas de Portugal, que
seguiam as Ordenações Filipinas, cujas normas legais eram muito rígidas e as penas aplicadas
de acordo com a condição social do réu, demonstrando a falta do princípio de igualdade,
até 1808, quando se iniciou uma revisão das leis e a associação entre Estado e Igreja.
Surge então a Inquisição, procedimento que fora instituído oficialmente em Portugal
em 1492 para justificar a perseguição de todos os que não fossem cristãos. Através das
Visitações Portuguesas compostas por representantes da Igreja e do Estado Português,
os infiéis eram levados à Igreja onde eram processados e sentenciados na própria
Colônia. Já os casos mais graves contra a fé, eram julgados pelo Tribunal Lisboeta, tal
como o caso de Joana Maria, que fora acusada de heresia por tentar vender uma hóstia
consagrada, em 1772.
No processo contra Joana Maria, casada com o serrador de madeiras Francisco
Antônio Coluna e moradora do Grão-Pará, consta que ela cometeu “o mais
horroroso, abominável e sacrilégio desacato” aos dogmas da fé. A pena aplicada
à ré foi dura, mesmo levando-se em conta sua confissão espontânea do crime e
seu objetivo em praticá-lo – livrar-se do marido que a espancava rotineiramente.
Para o Santo Ofício, Joana Maria desprezou a obrigação de temer a Deus e a seu
esposo, permitindo que sua fragilidade e ignorância naturais a dominassem,
ao servir como agente de Satã. Foi, então, punida. “Não com a morte, já que
confessou seu pecado, mas com o açoite purificador e o degredo de dez anos
em uma casa de correção, a fim de voltar aos preceitos da fé e reparar seus erros.
PEDROSO (2002, p.14).
A autora explica que tais imposições e regras autoritárias, políticas e religiosas,
trouxeram para o Brasil a base de normas políticas, morais e sociais para a criação dos
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
primeiros códigos legais brasileiros, atingindo a todos, e no tocante às mulheres, as
quais foram estigmatizadas como seres com menos ou nenhum direito, surgindo assim
uma modalidade específica de violência.
Tais fatos consubstanciam a dificuldade de aplicação da justiça social sob o
pressuposto da igualdade e de atendimento das demandas advindas do processo de
imigração, urbanização e industrialização, gerando frustrações e revolta dos menos
favorecidos, possíveis geradores de atos violentos. (PEDROSO, 2002).
Para Costa e Pimenta (2006) o modelo de produção capitalista e o projeto político
democrático, porém, tradicional, instituíram um sistema controlador e padronizou
aos seus moldes o comportamento de todos sem considerar as diferenças sociais
existentes. Para os autores, se antes o modelo de comportamento era do “homem
cordial” e submisso, com a globalização, os papéis sociais buscam uma melhor sintonia
democrática, porém, ainda numa sociedade desorganizada, o que contribui para
disseminação de condutas violentas.
Neste sentido observa-se nos homens um movimento individualista e uma busca
de satisfação imediata que acirra as disputas e dificulta soluções, indicando que a
violência está presente em todos os setores da sociedade, de algum modo, cultivando
o desrespeito pelo outro.
Da perspectiva cultural, a violência é parte do viver, do presente, e está no trânsito,
nas casas, nas ruas, nas escolas, no tráfico de drogas, no Estado, nas relações
de gênero e de poder e nas instituições (policiais, judiciárias, hospitalares,
educacionais, entre outras). A violência não é somente um reflexo da violência
urbana e nem exclusivamente se vincula às estruturas sociais injustas, às
desigualdades econômicas, à inércia do Estado ou à desestruturação da ordem
legal. Em campo aberto a violência ganha dimensão de excesso, banal, brutal,
vazia, espetacular, desconectada e, aparentemente para muitos sem sentido e
sem conteúdo. (COSTA e PIMENTA, 2006, p. 65)
O homem é o único primata capaz de torturar membros da mesma espécie sem
motivo biológico, econômico e com obtenção de prazer (sadismo, paixão pelo
poder sobre o outro ser de sensibilidade). (GOLDBERG, 2004, p.34).
Mediante toda esta perspectiva pode-se atentar mais pormenorizadamente em
um tipo de violência praticada contra as mulheres, hoje chamada violência de gênero.
DOUTRINA . DIREITO PENAL
AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA
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2.1. TIPOS DE VIOLÊNCIA E VIOLÊNCIA DE GÊNERO
Para se definir violência de gênero, primeiramente conceituam-se os tipos de
violência segundo a OMS (2002, p.5): “[...] o resultado da complexa interação de fatores
individuais, de relacionamento, sociais, culturais e ambientais”. Assim, sua natureza
pode ser: física, sexual, psicológica, envolvendo privação ou negligência. Além disso,
propõe uma divisão conforme a característica de quem comete o ato de violência,
dividindo-a em três grandes categorias: 1) violência dirigida a si mesmo (auto-infligida):
suicídio, auto-abuso ou automutilação; 2) violência interpessoal: entre pessoas de um
mesmo grupo; 3) violência coletiva: social, política e econômica, praticada por grandes
grupos ou pelos Estados.
A violência interpessoal é dividida em duas subcategorias: Violência da família e de
parceiro (a) íntimo (a), ou seja, violência que ocorre em grande parte entre os membros
da família e parceiros íntimos, normalmente, mas não exclusivamente, dentro de casa.
Violência comunitária: violência que ocorre entre pessoas sem laços de parentesco
(consangüíneo ou não), e que podem conhecer-se (conhecidos) ou não (desconhecidos),
geralmente fora de casa (OMS, 2002, p. 6).
Os tipos de violência pertencentes à primeira subcategoria (familiar) incluem: o
abuso infantil, a violência praticada por parceiro íntimo e o abuso contra os idosos. A
segunda (comunitária) inclui violência juvenil, atos aleatórios de violência, estupro ou
ataque sexual por estranhos, bem como a violência em grupos institucionais, tais como
escolas, locais de trabalho, prisões e asilos.
Dentre os diversos tipos de violência definidos pela OMS (2002), a violência
intrafamiliar é aquela que ocorre entre membros da própria família, podendo ser
caracterizada pela violência conjugal entre homens e mulheres nas relações afetivas
de casal, dentro e fora do ambiente doméstico, podendo estendê-las também para
os relacionamentos entre noivos, namorados, ex-maridos e ex-conviventes, incluindo
aquela que ocorre pela discriminação sexual, ou seja, violência de gênero.
De acordo com Teles e Melo (2002), gênero é um termo definido pela gramática
como uma categoria que indica por meio de desinências (flexão de número, gênero,
pessoa, tempo etc.) uma divisão dos nomes baseada em critérios como sexo e
associações psicológicas. A violência de gênero é entendida como “violência contra a
mulher”, sendo gênero uma expressão que foi aplicada pelo movimento feminista nos
anos 70 para definir atos lesivos contra a mulher. É a violência que é praticada contra
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a mulher exatamente por ser mulher, usada como instrumento de poder e dominação
masculina, construído, reafirmado e mantido pelo sistema social baseado no modelo
patriarcal de forma que produz e banaliza a violência doméstica contra as mulheres.
Para a OMS (2002), a violência de gênero é uma das formas mais comuns de
violência contra as mulheres, praticada por um marido ou um parceiro íntimo. O que
normalmente não ocorre com relação aos homens, pois geralmente eles são atacados
por um desconhecido ao invés de alguém que faça parte de seu círculo íntimo de
amizades. Um fato colaborador deste tipo de violência é que as mulheres, em geral, estão
emocionalmente envolvidas com quem as vitimiza e dependem economicamente
deles, implicando tanto para a dinâmica do abuso quanto para as formas de lidar com
o problema.
Segundo a OMS (2002) a violência de gênero ocorre em todos os países,
independentemente do grupo social, econômico, religioso ou cultural e apesar
de mulheres poderem ser violentas em seus relacionamentos com homens ou em
relacionamentos homoafetivos, a grande parcela da violência de gênero recai sobre as
mulheres nas mãos dos homens. Se inicialmente a violência de gênero era vista como
uma questão de direitos humanos, atualmente é cada vez mais encarada como um
importante problema de saúde pública.
Os dados advindos de uma grande variedade de países indicam que a violência
de gênero é responsável por um significativo número de mortes por assassinato
entre as mulheres. Estudos realizados na África do Sul, na Austrália, no Canadá, nos
Estados Unidos e em Israel mostram que: das mulheres vítimas de assassinato, de
40% a 70% foram mortas por seus maridos ou namorados, normalmente no contexto
de um relacionamento de abusos constantes. Esse fato contrasta com a situação dos
homens vítimas de assassinato. Nos Estados Unidos, por exemplo, apenas 4% dos
homens assassinados entre 1976 e 1996 foram mortos por suas esposas, ex-esposas ou
namoradas (OMS, 2002).
O relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF, 2000, apud
GOLDBERG, 2004) registra 60 milhões de mulheres a menos nas estatísticas globais
devido a fatores como: violência (espancamentos, crimes de honra), desatenção, falta de
acesso a unidades médicas e educação, incesto, aborto seletivo, infanticídio, mutilação
genital, matrimônio precoce, desnutrição, prostituição e trabalhos forçados.
Em uma relação íntima, a violência de gênero refere-se a qualquer comportamento
DOUTRINA . DIREITO PENAL
AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA
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que cause dano físico, psicológico ou sexual àqueles que fazem parte da relação. Esse
comportamento inclui: atos de agressão física, tais como estapear, socar, chutar e surrar;
abuso psicológico, tais como intimidação, constante desvalorização e humilhação;
relações sexuais forçadas e outras formas de coação sexual e vários comportamentos
controladores, tais como isolar a pessoa de sua família e amigos, monitorar seus
movimentos e restringir seu acesso às informações ou à assistência (OMS, 2002).
Violência doméstica é a que ocorre dentro de casa, nas relações entre pessoas da
família, entre homens e mulheres, pais/mães e filhos, entre jovens e pessoas idosas.
Podemos afirmar que, independentemente da faixa etária das pessoas que sofrem
espancamentos, humilhações e ofensas nas relações descritas, as mulheres são o alvo
principal (TELES; MELO, 2002, pág.19).
Mas como já foi visto a violência contra a mulher é um tipo de violência interpessoal
praticada por parceiro íntimo, que ocorre ou não no ambiente doméstico em razão da
relação íntima de afeto, conforme define a Lei n.º11.340/2006 (Lei Maria da Penha), que
cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, definindo
e identificando as formas de violência com um caráter pedagógico à sociedade. Tal
conceito era desconhecido e sua prática tolerada como se não existisse, motivo pelo
qual não era considerada como violação de direito. Deste modo, violência
doméstica é: “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte
(femicídio1), lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.”
(DIAS, 2007, p.40). Para a autora, seu campo de abrangência é aquele em que é praticada,
seja no âmbito da unidade doméstica, da família ou qualquer relação íntima de afeto,
independente de orientação sexual, devido a vários fatores.
2.2. MODALIDADES E CICLO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
Além de um novo conceito e uma nova definição, a Lei 11.340/2006 reconheceu
formas específicas de violência doméstica e familiar contra a mulher, sem ser exaustiva,
podendo reconhecer outras ações que configurem a agressão, de modo inovador pelo
legislador:
Violência Física: “qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal”,
podendo ser entendida como o resultado do uso da força, ainda que não deixe marcas
físicas, independente da intenção do agressor.
Violência Psicológica: “qualquer conduta que cause dano emocional, diminuição
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da auto-estima, prejudique ou perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise
degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante
ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante,
perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do
direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e
à autodeterminação”.
1 Novo conceito aplicado para o assassinato de mulheres por razões associadas às
relações de gênero, usado pela primeira vez por Diana Russell e Jill Radford, em seu livro
The Politics of Woman Killing, publicado em 1992, em Nova York. A expressão já havia
sido empregada no Tribunal Internacional de Crimes contra Mulheres, em 1976. Lei nº
13.104/2015 – Alterou o art. 121 do Decreto Lei 2.848/1940, para prever o feminicídio
como circunstância qualificadora do crime de homicídio e o art. 1º da Lei nº 8.072/1990
para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos.
Violência Sexual: entendida como: “qualquer conduta que a constranja a presenciar,
a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça,
coação ou uso de força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a
sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force
ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou a prostituição, mediante coação, chantagem,
suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e
reprodutivos.”
Violência Patrimonial, configurada como: “retenção, subtração, destruição parcial
ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens,
valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas
necessidades.”
Violência Moral, entendida como: “qualquer conduta que configure calúnia,
difamação ou injúria.” Calúnia: atribuição à vítima de um fato definido como crime;
Injúria, ofensa a dignidade ou decoro da vítima – honra subjetiva; Difamação, ofensa a
reputação da vítima – honra objetiva.
No contexto familiar e propriamente nas relações íntimas de afeto entre casais, a
violência tem um ciclo de evolução característico, proveniente de vários fatores que será
tratado no próximo capítulo, tais como fatores sócio-culturais, econômicos, emocionais
e religiosos, os quais no decorrer do tempo foram se arraigando no consciente das
pessoas de forma banalizada. (DIAS, 2007).
DOUTRINA . DIREITO PENAL
AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA
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A despeito da crença popular de que “mulher gosta de apanhar”, Dias (2007),
observa que a mulher tem dificuldade de denunciar seu agressor, por vários motivos:
ambivalência entre o amor e o ódio, eis que é o seu companheiro, pai de seus filhos
quem a desrespeita; medo, vergonha, dependência financeira e afetiva; falta de
informação e apoio, etc.
Desta forma, a autora explica que o ciclo da violência se dá primeiramente pela
indiferença, reclamações, discussões, reprovações, ofensas e punições (Fase de Tensão);
posteriormente pelas ameaças, humilhações públicas, empurrões, tapas, destruição de
seus pertences, agressões de todo o tipo e lesões (Fase da Violência); depois vêm as
justificativas, pedidos de perdão, promessas e arrependimento (Fase da Lua de Mel)
e assim sucessivamente, as fases vão se repetindo numa espiral ascendente, até o
próximo conflito.
Este ciclo se concretiza perversamente porque entre o homem e a mulher foi
construída uma relação de dominante e dominado, de desigualdade sociocultural e da
ideologia patriarcal que “protege” a agressividade masculina definindo papéis
específicos para ambos, tais como: “homem não chora” e “trabalho doméstico é coisa
de mulher”, além dos conceitos e ditados populares que absorvem a violência contra a
mulher, por exemplo: “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”; “ele pode
não saber por que bate, mas ela sabe por que apanha” e “mulher gosta de apanhar”,
fruto de uma educação diferenciada que leva à invisibilidade desta problemática (DIAS,
2007, p.15-20).
A ferida sara, os ossos quebrados se recuperam, o sangue seca, mas a perda da
auto-estima, o sentimento de menos valia, a depressão, essas são feridas que
não cicatrizam. (DIAS, 2007, p.20)
3. AS ORIGENS DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
“Quando se respeita alguém não queremos forçar
a sua alma sem o consentimento.”
(Simone de Beauvior)
A violência doméstica contra a mulher é uma realidade histórica que tem uma origem
construída e mantida pela sociedade e por diversos fatores inerentes ao ser humano,
tornando-se extremamente relevante entender as causas, seus efeitos, conseqüências
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e fatores de sua existência para, mais que constatar passivamente tal fato, compreender
que o indivíduo faz parte desta cultura e por isso pode transformá-la (MURARO, 2002;
DIAS, 2007).
3.1. A FORMAÇÃO DA FAMÍLIA E O SISTEMA PATRIARCAL
Nesta seção, Engels (2009), explana sobre a formação da família a partir das pesquisas
de Morgan e textos de Marx.
Antes de se atingir a civilização o desenvolvimento humano se iniciou pelo
estado selvagem, onde o modo de sobrevivência era caracterizado pelo consumo
das espécies da própria natureza. Através do desenvolvimento e fabricação de
instrumentos veio a apropriação de alimentos. Posteriormente, o homem passou a
usufruir de produtos artificiais, da criação de gado e da agricultura, até desenvolver
o aprendizado para a produção da natureza. A partir da civilização surge o período
da indústria e da arte.
Na constituição dos primeiros modelos o sistema verificado era o da família
acasalada, juntada ou estendida por grupos onde os homens não conheciam nenhuma
outra forma de organização familiar. Na família punaluana, só se admitia um macho
adulto como marido e como não podiam sobreviver isolados, precisavam formar grupos
para se tornarem mais fortes, tornando-se, portanto necessário controlar o sentimento
de ciúme e haver tolerância entre os machos para que se mantivesse o casamento
grupal. Nessas formas de organização havia relação entre grupos de homens e grupos
de mulheres e o conceito de incesto não existia, pois todos se relacionavam entre si à
semelhança dos animais.
As primeiras etapas da constituição familiar posterior, a família consangüínea, foram
formadas por relações temporárias entre os pares e os filhos de um determinado casal,
ou seja, os irmãos eram também maridos e mulheres uns dos outros, não havendo mais
as relações entre ascendentes e descendentes. Posteriormente, passou-se a excluir
também os relacionamentos sexuais entre os irmãos e em seguida entre os primos.
Nessa forma de constituição familiar, não se tinha certeza em relação à paternidade,
apenas da maternidade. A descendência, portanto só era possível se estabelecer em
relação à mãe, a exemplo da organização por classes, onde a herança era materna.
Essas formas de organização se mantiveram até que se constituísse o impedimento
das relações sexuais e o casamento entre os membros consangüíneos, favorecendo a
formação da família pré-monogâmica.
DOUTRINA . DIREITO PENAL
AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA
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Na família pré-monogâmica havia a proibição do casamento entre parentes
consangüíneos, em que pese haver uniões por pares mais longas e com uma mulher
principal, mantinha-se ainda, a poligamia e a infidelidade dos homens. Às mulheres
exigia-se o rigor da fidelidade e o castigo mais cruel em caso de adultério, apesar do
vínculo conjugal poder ser dissolvido por ambas as partes. Com este novo arranjo de
relações familiares, nova organização ocorreu uma mistura das classes através das uniões
entre pessoas de grupos diferentes, criando-se uma raça mais forte física e mentalmente
e por conseqüência o destaque das mais adiantadas sobre as mais atrasadas. Por esse
motivo se reduziu muito a rotatividade entre seus membros, característica das relações
grupais antes existentes, bem como o número de mulheres que podiam se relacionar
livremente, surgindo assim o rapto e a compra de mulheres através dos arranjos de
casamento, característica das uniões pré-monogâmicas.
Sob este modelo de união houve o predomínio da mulher no âmbito doméstico
e o reconhecimento da mãe natural devido à impossibilidade de se reconhecer o
verdadeiro pai, o que de certo modo demonstrava consideração às mães e o domínio
das mulheres na organização dos lares, mas por outro lado existia o caráter humilhante
e opressor nas relações.
O casamento temporário ou definitivo com um só homem significava uma
libertação para a mulher que não desejava mais ser objeto de negociação, através do
direito à castidade como forma de autoproteção. A América foi o berço da família prémonogâmica, no velho mundo, entretanto havia outra realidade histórica e econômica
verificada através da criação de gado e da necessidade de mão-de-obra. Nesse contexto,
surgiu o trabalho escravo, tido como fonte de riqueza por ser considerado um dos
utensílios de trabalho dos homens, chefes de família, aos quais era atribuído o trabalho
externo como parcela da divisão dos esforços nas relações. Tais utensílios, como os
instrumentos de trabalho, as terras, os animais e os escravos com eles permaneciam
em caso de separação do casal. Como a descendência só se contava pela linha feminina
(materna), os filhos conseqüentemente se tornavam herdeiros somente do que a mãe
possuía o que não constituía riquezas em razão da divisão do trabalho, uma vez que a
mulher havia ficado reduzida aos afazeres domésticos.
À medida que as riquezas foram aumentando, através dos lucros, o homem se
destacou numa posição mais importante, o que motivou uma mudança profunda
na sociedade, visto que a ele interessava modificar a ordem de herança materna, já
que passou a se impor perante a mulher através das conquistas materiais, atribuídas
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somente ao seu trabalho, sendo de seu interesse manter esta situação e subjugar a
mulher a ter muitos filhos, preferencialmente homens que pudessem trabalhar nas suas
terras e acumular bens. Desse modo, a mulher foi excluída e substituída pelo direito
hereditário paterno e pela linha de descendência masculina, como garantia de sucessão
das riquezas e posses.
Casuística nata nos homens, a de mudar as coisas mudando-lhes os nomes!
E encontrar saídas para romper com a tradição sem sair dela, sempre que um
interesse direto der o impulso suficiente para isso (MARX, 1848, apud ENGELS,
2009, pág.57).
Surgia assim, a família patriarcal monogâmica, caracterizada pelo domínio e poder
exclusivo dos homens, os quais mantinham em seu poder: as riquezas, a mulher, os
filhos e certo número de escravos, o que se chamava de família. Assim era na sociedade
romana, cujo chefe mantinha o pátrio poder e o direito de vida e morte sobre todos
eles, ocorrendo à transição do casamento pré-monogâmico para a monogamia, o
qual objetivava assegurar a fidelidade da mulher e a paternidade dos filhos, através do
controle da sexualidade feminina.
A mulher tinha a finalidade expressa de procriar filhos, cuja paternidade fosse
indiscutível e exigida, porque os filhos deviam tomar posse dos bens paternos na
qualidade de herdeiros diretos. De acordo com o Código Napoleônico (1804, apud Engels,
2009), neste modelo só o homem tinha direito à infidelidade e podia romper o casamento
com o e repudio a sua mulher. Portanto, a monogamia era só para a mulher, para a qual
se exigia tolerância, castidade e a fidelidade conjugal, exercendo a administração da
casa, dos filhos e das escravas, que eram exploradas sexualmente por seus maridos,
expressando uma forma de subjugação de um sexo pelo outro “como proclamação de
um conflito entre os sexos, ignorado, até então, em toda a pré-história” (p.65).
Sendo assim, a liberdade sexual era benefício apenas dos homens, e r a tolerada
p ela sociedade e praticada livremente, principalmente p elas classes
dominantes. Para as mulheres esta prática era reprovada, ficando elas desprezadas
e relegadas, enquanto aos homens proclamava-se a supremacia absoluta sobre o sexo
feminino. Esse quadro contribuiu para o surgimento da figura da mulher abandonada, a
do inevitável amante desta mulher e a do marido traído. Essa situação gerou desconforto
e na tentativa de solucioná-la foi criado, através do Código Napoleônico, o art.º 312 que
visava a preservação dos bens: “L´enfant conçu pendant lê mariage a pour père le mari”
(O filho concebido durante o casamento tem por pai o marido), pois tanto a mulher
DOUTRINA . DIREITO PENAL
AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA
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como o homem geravam filhos impuros ou bastardos com os amantes e as concubinas,
fato que não podia ser tolerado pela sociedade e pela igreja, já que os bens seriam de
herança paterna.
Este modelo de casamento que moldou três mil anos de monogamia motivou
a abolição do divórcio pela Igreja Católica, que tinha influência social e interesse de
preservação dos bens da classe burguesa. No entanto, percebia-se uma diferença desta
interferência nas relações, dependendo da classe social mais ou menos abastada. Na
burguesia o matrimônio era condicionado pela posição social dos contratantes, por
conveniência. Na classe pobre não se justifica papel algum na atitude controladora do
marido para com sua mulher, a qual não deixa de ser mal tratada pelo homem em razão
do aculturamento do machismo introduzido pela monogamia. Do mesmo modo não há
interesse econômico, possui características de maior liberdade de escolha do parceiro e
apresenta maior participação na economia através do trabalho na indústria e na fábrica.
A derrocada do direito materno foi a derrota do sexo feminino na história
universal. O homem tomou posse também da direção da casa, ao passo que a
mulher foi degradada, convertida em servidora, em escrava do prazer do homem
e mero instrumento de reprodução. Esse rebaixamento da condição da mulher,
tal como aparece abertamente, sobretudo entre os gregos dos tempos
heróicos e mais ainda dos tempos clássicos, tem sido gradualmente retocado,
dissimulado e, em alguns lugares, até revestido de formas mais suaves, mas de
modo algum eliminado (ENGELS, 2009, pág.57).
Priore (1997) complementa a elucidação, mostrando que a educação formal, com
o mínimo possível de conteúdo, destinava-se somente às mulheres da burguesia,
através da clausura da igreja a partir de princípios religiosos, o que não ocorria com
os homens. O casamento continuava com a interferência da igreja na convivência do
casal, pois o ato sexual era destinado somente à procriação, sendo proibido o prazer
feminino e o comportamento ardente do homem com sua esposa. O uso de muitos
adornos, vestimentas que mostrasse o pescoço, o colo, os pés eram proibidos, já que
eram considerados altamente eróticos.
A medicina acreditava que as doenças eram castigos divinos associados à culpa
por pecados cometidos ou sinal demoníaco. Voltava-se para o estudo da anatomia e
patologia, sobretudo feminina com o objetivo de saber por que e para quê Deus havia
criado a mulher. Acreditava-se que a função reprodutiva da mulher era a causa de
doenças e estas ligadas ao demônio, através da genitália da mulher, que a transformava
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numa eterna doente. Seu útero era objeto de estudo, porém, limitado, pois era
considerado um mero depósito das sementes do macho, terras disponíveis para serem
fertilizadas. (PRIORE, 1997).
Fato histórico relevante e pouco estudado muito menos pesquisado, ocorrido na
idade média foi o genocídio contra as mulheres na Europa e nas Américas, chamado
“caça as bruxas” através do Tribunal da Inquisição. Eram consideradas incrédulas
(hereges) pelo trato com ervas ao exercerem funções de curandeiras e parteiras, função
que concorria com a medicina, profissão permitida somente aos homens. Sendo ela
associada ao mal e seu corpo à fonte de malefícios, período em que o poder, monopólio
da nobreza e do clero, baseava-se na posse da terra e na ascendência espiritual,
afastando a mulher da participação pública. Acontecimento que faz parte da herança
do silêncio que recobre a história da mulher. (ALVES e PITANGUY, 1981; PRIORE, 1997).
“Segundo Aristóteles (384-322 a.C. apud Priore, 1997, p.82) era o homem que insuflava
alma, vida e movimento à matéria inerte produzida no útero pela mulher.”
Neste sentido, Venâncio (1997), discorre sobre a maternidade feminina no período
colonial do Brasil demonstrando como a mulher tinha que se sacrificar para viver em
sociedade. Valendo citar a figura da Roda dos Expostos ou Enjeitados, já antes conhecida
em Portugal, que era um cilindro de madeira com uma abertura lateral vertical
instalada nas santas casas ou casas de misericórdias hospitalares. Tinha como finalidade
o depósito e acolhimento de bebês ou crianças abandonadas por suas mães e tal
procedimento ocorria na calada da noite para que essas não fossem vistas. Abriam mão
de seus filhos em razão dos conceitos morais e religiosos que as reprimiam, já que eram
da burguesia, solteiras ou casadas que haviam engravidado em relações extraconjugais
ou ainda pobres e escravas sem condições de assumirem ou sustentarem seus filhos.
O aborto era praticado irregularmente e sem os cuidados médicos necessários, já
que a mulher corria o risco de ser presa ou processada pelo Tribunal do Santo Ofício
Português (Inquisição), submetendo-se a métodos de eficácia duvidosa, sob muitos
temores e risco de morte.
Além disso, as índias morriam em decorrência de doenças trazidas pelo homem,
frutos de relações dos homens brancos, para as quais não possuíam defesa orgânica,
sendo seus filhos deixados com os padres jesuítas. (VENÂNCIO, 1997).
A posição social da mulher na sociedade brasileira, principalmente no caso das
mulheres de classes mais altas era puramente simbólica, pois estas não exerciam
DOUTRINA . DIREITO PENAL
AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA
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atividade fora do lar, mas representavam e se comportavam como objeto de posse
dos maridos (capital simbólico), aos quais eram livres para ocupar os espaços públicos
em todas as áreas sociais. Às mulheres era admitido receber a família e os amigos do
marido, dentro do ambiente doméstico, devendo-se portar como peça de apreciação
pública quando era do interesse social e econômico do homem, seguindo as regras de
bem receber e bem representar diante das pessoas. Podiam freqüentar certos lugares
da vida social do esposo, como cafés, bailes, teatros desde que vigiadas por eles, pais ou
irmãos, com muita moderação. (D’INCAO, 1997).
A máscara social será um índice das contradições profundas da sociedade
burguesa e capitalista [...] em função da repressão dos sentimentos, o amor vai
restringir-se à idealização da alma à supressão do corpo”. (LEITE; MASSANI, 1989
apud PRIORE, 1997, p.229).
A autora argumenta que as mulheres pobres ou de menos condições e as viúvas se
ocupavam de trabalhos manuais, artesanais, quitutes, costuras, entre outras atividades
para sobreviverem, mas o faziam com muita dificuldade ou até escondidas, pois não
eram bem aceitas pela sociedade. As muito pobres sempre trabalhavam com a família
no cultivo da terra e plantações além de acumular os serviços domésticos e os cuidados
com os filhos, demonstrando ser mão-de-obra para qualquer serviço, o que no caso das
escravas, ocorria desde a infância.
Acrescenta que a mulher escrava era considerada “coisa”, podendo ser vendida, dada,
emprestada ou alugada. Não tinha família nem ascendência, se liberta, podia absorver
o sobrenome do antigo dono ou uma referência religiosa católica, exemplo: Ana Maria
de Jesus. Seu casamento era informal, sem qualquer publicidade, caracterizado pela
espontaneidade e junção de corpos do casal. No casamento da mulher pobre não
havia interesse financeiro e nem dote, pois era visto como um alívio para o pai que
comemorava com parcos recursos, desde que o genro tivesse um cavalo e uma casa de
palha para levar sua filha como esposa.
Ainda de acordo com D’Incao, 1997, as demais mulheres eram destinadas ao
casamento para garantia de descendência, posição social e patrimônio, sendo
providenciado pela família o compromisso e o acordo financeiro entre os interessados
no aumento de riquezas.
O regime era dotal onde o pai da noiva costumava adiantar parte da herança da
filha ao genro, observando-se a doação como presente de casamento. Tais presentes
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eram representados através de uma escrava, ainda que fosse bebê, até animais, ficando
tudo sob o poder marital, para usar, gastar, dispor ou destruir sem qualquer direito de
intervenção da esposa.
Os casamentos eram realizados em festas gigantescas de pompa, esbanjamento de
comidas, ostentação de riquezas e competição de poder. Muitas uniões que objetivavam
manter e unir posses eram realizadas entre primos consangüíneos, gerando filhos
“doentes mentais”, já que eram “arranjados” pelas famílias. As mulheres que escolhiam
um homem e casavam informalmente, sem o consentimento do pai eram excluídas da
família e mal vistas pela sociedade. (D’INCAO, 1997).
Das leis do Estado e da Igreja, com freqüência bastante duras, à vigilância inquieta
de pais, irmãos, tios, tutores, e à coerção informal, mas forte, de velhos costumes
misóginos, tudo confluía para o mesmo objetivo: abafar a sexualidade feminina
que, ao rebentar as amarras, ameaçava o equilíbrio doméstico, a segurança do
grupo social e a própria ordem das instituições civis e eclesiásticas. (ARAÚJO,
1993, apud PRIORE, 1997, p.45).
O texto de Nunes (1997) ensina que mulheres consideradas excluídas ou desviadas
das regras da sociedade viviam marginalizadas, por vezes praticavam a prostituição
como meio de sobrevivência já que tinham pouca oportunidade de trabalho,
principalmente se seus companheiros estivessem desempregados ou mortos.
Outra forma de submissão das mulheres eram os conventos que serviam de controle
das atividades desviantes da mulher que não obedecia às ordens impostas ou até
mesmo por espontaneidade da mulher para escapar de um casamento não desejado,
clausura piedosa ou para se livrar dos maus tratos que sofriam de seus maridos. Sendo
o acolhimento feito mediante dote, o que dificilmente acontecia para as mulheres
pobres, indígenas, mestiças, negras, estas últimas, quando recebidas viviam como
escravas das religiosas, pois não eram consideradas “puras de sangue”, além de
possuírem “tendências acentuadas à lascívia e á luxúria” por serem mais sensuais do
que as brancas e até por isso sofriam mais violência. (NUNES, 1997, p.489).
A autora enfatiza que a repressão das mulheres no campo religioso também é relevante,
pois no Brasil, mesmo as freiras não tiveram oportunidade de manifestação, participação
ou influência no desenvolvimento das organizações eclesiásticas até hoje, dominada por
homens, os quais através do poder “enviado por Deus” tinham muita influência social,
econômica e política, portanto, uma realidade totalmente desigual mantida há muito tempo.
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3.2. CONSTRUÇÃO DOS PAPÉIS SOCIAIS
Vários autores analisaram a construção e a estrutura dos papéis sociais sob um
enfoque de gênero, permitindo visualizar melhor o papel da mulher na sociedade.
Enfatizaram que os papéis do homem e da mulher são construídos, delimitados e
naturalizados pela sociedade, atribuindo-lhes funções específicas e desiguais, além de
outros fatores e idéias.
Tal naturalização deve-se à interferência humana, o que faz concluir que esta
construção de papéis é sociocultural e se difere em cada sociedade em razão de
interesses dos poderes dominantes. Existem grupos, por exemplo, que não sofrem a
interferência do meio social, como as tribos indígenas brasileiras onde as mulheres,
logo após o parto, retomam suas atividades e o pai cuida do filho.
Pela influência social, percebe-se que as mulheres foram ocultando-se na história,
estigmatizadas como domésticas ou do lar, realizando trabalhos considerados de
menos valia, o que colaborou com a supremacia do homem. (ENGELS, 2009; MURARO,
1992; CUSCHNIR, 1994; TELES; MELO, 2002; DIAS, 2007).
De acordo com estes autores, uma das justificativas poderia ser a diferença de força
física entre homens e mulheres, o que deixaria o homem em vantagem para abonar a
discriminação das mulheres. No entanto as mulheres pobres sempre trabalharam na
terra com maior produtividade que o homem e ocuparam seus lugares na indústria
bélica durante a guerra. Além disso, deve-se destacar que do ponto de vista biológico a
mulher apresenta maior resistência e longevidade que o homem.
Uma tentativa de fixar a idéia de inferioridade feminina refere-se à inteligência, já que
ao homem é destinado o espaço público enquanto que poucas oportunidades são dadas
à mulher para desenvolver suas potencialidades, haja vista sua maior permanência no
espaço privado, restrito e doméstico. Cabe salientar que neste ambiente não há divisão
social dos afazeres e geralmente pouca “ajuda” masculina e nunca a responsabilidade,
a partilha e a preocupação do homem. Daí a idéia do trabalho doméstico não ser
considerado e o trabalho externo ser visto como “ajuda” e nunca participação, mesmo
porque, quando trabalha fora do lar na maioria das vezes tem um salário inferior ao
do homem, sendo também discriminada nesta área. Causa de uma construção social
de gênero feminino fragilizado de modo que até hoje a mulher ainda não ocupa
espaços públicos em igualdade com os homens e não tem seus direitos respeitados na
integralidade. (MURARO, 1992; PRIORE, 1997, TELES; MELO, 2002; FARIA, 1994).
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Outra ligação importante para a compreensão da dominação e violência seria
entre castração e patriarcado, a partir de uma visão religiosa, mostrando as relações
de submissão da natureza ao homem, dos homens entre si, da mulher ao homem e
do homem a um Deus (pai), evidenciado pelo elemento da culpa da mulher pela saída
do homem do Paraíso; pela conseqüência de punição pelo trabalho (repressão do
prazer e da sexualidade) assim como a aquisição de saber e conhecimento visto como
transgressão às regras da sociedade. Demonstrado pelas idéias eclesiásticas: “e comerás
o pão com o suor do teu rosto”; e ainda a dor e a submissão à mulher: darás à luz ao teu
filho com dores”; “e teu desejo te levará ao teu marido e ele te dominará”.(GOLDBERG,
2004, p.25; MURARO, 1992, p.73; MURARO; BOFF, 2002, p.96).
O fato de se adquirir conhecimento, segundo os autores, geraria indivíduos mais
exigentes e esclarecidos, por isso a falta de incentivo à educação e à instrução formal.
Pois, se assim não fosse não haveria sociedade agrária para justificar a escravidão e com
isso a necessidade do domínio pelos mais abastados sobre os menos favorecidos, o que
faz funcionar o sistema.
Neste sentido, é observado que um sentimento de transcendência, alimentado
provavelmente pela descoberta do papel do homem na procriação dos filhos o que
acabou com a idéia da relação da mulher com o sagrado, antes temida devido ao parto,
a nudez e a menstruação. Nascendo então a possibilidade de controle e poder da
sexualidade da mulher e da natureza, além da crença em um Deus do sexo masculino,
transcendente e controlador, início da moralidade e pecado. Principalmente ou
diretamente para os oprimidos e às mulheres, através das regras criadas pelos próprios
homens empoderados de soberba para manter o controle e a opressão. (GOLDBERG,
2004; PRIORE, 1997; SAFFIOTTI, 1987).
Sob este panorama as mulheres foram associadas à sedução, à traição, a derrota
e a morte rompendo-se o laço de afeição entre homens, mulheres e os grupos,
por isso subjugada, humilhada, explorada econômica, social e sexualmente como
serviçal, introjetando sua inferioridade, causa da dependência psicológica, tendências
masoquistas, baixa estima, frigidez e carência sexual. Carência que geralmente verificada
pela compensação afetiva na relação com os filhos, sobretudo os filhos homens.
Outra hipótese seria a cultura genitalizada concentrada nos órgãos sexuais
masculinos que os torna menos sensíveis às outras áreas do seu corpo e do corpo da
mulher, detendo ele o direito ao desejo e ao prazer, porém solitário, incompleto focado
exclusivamente na ejaculação, o que torna o ato sexual empobrecido para ambos, eis
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que ausente a reciprocidade e o prazer do dar e receber simultâneos em várias atividades
e não somente naquelas meramente serviçais atribuídas à mulher, cujas atividades não
trazem realização, admiração e valorização.
A falta de sensibilidade que permeia a educação masculina pode levar o homem para
o hábito de dominação dos outros, o pensamento abstrato, a manipulação, o trabalho,
a violência, a competitividade etc. Reflete nos relacionamentos podendo resultar
em pura racionalidade e incapacidade de amar uma mulher, se ocorrer rompimento
do afeto e da imagem da mulher, que ora pode se confundir com a mãe afetiva e ora
com a da mulher perniciosa e vulgar que só serve para o prazer momentâneo, fruto
do aprendizado de que o amor por uma mulher pode castrá-lo ou vencê-lo deixando
o fraco. Tudo isso, segundo os autores, não ocorreria com a mulher, pois esta desde a
infância não romperia a sexualidade do afeto, não reprimiria o amor e nem a ligação
com a mãe, desenvolvendo a sociabilidade, a intuição, a subjetividade, solidariedade
e partilha, reprimindo, no entanto, a iniciativa, inteligência, agressividade, a partir do
inconsciente. (SAFFIOTI, 1987; MURARO, 1992; MURARO; BOFF, 2002, PRIORE, 1997).
A plenitude do prazer só pode ser alcançada quando nenhuma dimensão da
personalidade do ser humano – homem ou mulher - é impedida de se desenvolver.
Por que não permitir, e mesmo
estimular, o desenvolvimento da razão nas mulheres? Por que não incentivar o
homem a não reprimir a dimensão afetiva de sua personalidade? Ambos seriam
mais completos e, portanto, mais capazes de sentir e dar prazer. Das relações
assimétricas, desiguais, entre homens e mulheres derivam prejuízos para ambos.
Basta observar atentamente o tipo mais freqüente de relações homem-mulher
para se chegar a esta conclusão. Cabe, então, perguntar a quem beneficia este
estado de coisas, já que forças poderosas tentam, de todos os modos, impedir
que nele se operem mudanças. (SAFFIOTI, 1987, p.20).
Para Muraro e Boff (2002), na construção dos princípios femininos e masculinos há
três correntes, sendo que a primeira afirma que a origem dos comportamentos se dá
através de características psicológicas próprias e os tipos de relação entre os sexos,
opressora ou igualitária, são condicionadas por esta base biológica. A segunda afirma
que as diferenças resultam de condicionamentos sociais que podem ser moldados
dependendo da influência social operada. E a terceira reconhece parte das duas
correntes anteriores, reputando a singularidade de cada um, seu capital biológico-sexual
e a influência social que se interagem simultaneamente, construindo socialmente o
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gênero através do meio social cultural em que o indivíduo vive. Nesse sentido, poderiam
surgir conflitos quando não ocorre reciprocidade e complementariedade. Nas relações
injustas e desumanas não se considera a reciprocidade, nela vigora a diferença como
deficiência e, por isso, não se admitindo esta complementariedade que pode existir
entre homem e mulher.
3.3. CONSEQÜÊNCIAS DA DESIGUALDADE ENTRE HOMENS E
MULHERES
Analisando as conseqüências destas desigualdades apontadas pelos diversos
autores acima descritos, Muraro e Boff (2002) explicam que considerando a evolução
da humanidade ter passado por todas as fases e mutações para chegar às formas mais
elevadas nas relações e tomada de consciência verifica-se que o despertar foi lento
até chegar à explosão em que a sociedade se encontra através da aceleração histórica
e tecnológica. Demonstrando que a solidariedade e a partilha que antes existia
nos primórdios das civilizações passaram à consciência da competição e com isso a
banalização da violência.
Através do uso da força pelo homem e a sua destinação ao domínio público, ao
contrário da mulher que se dirigiu ao privado e a procriação, a relação homem – mulher
passa a ser de dominação e violência. Mas a mulher milenarmente educada para o
altruísmo e a partilha passa a fechar um ciclo de cultura patriarcal, trazendo para o
sistema produtivo e para o Estado, um novo modo de atuação na área pública.
Atualmente, a mulher é quem traz os novos/arcaicos valores simbólicos de
solidariedade da família para o sistema produtivo e para o Estado. Desta forma,
a entrada da mulher no domínio público masculino é condição essencial para
reverter o processo de destruição. (MURARO; BOFF, 2002, p.14).
Muraro e Boff (2002) classificam as conseqüências das desigualdades em
vários aspectos, tanto no âmbito da personalidade quanto no âmbito sexual. Tais
conseqüências relativas à personalidade manifestam-se nos meninos, através
de posturas marcadas pelo egoísmo, racionalidades, rigidez, impessoalidade,
autonomia, controle, solidão, agressividade, manipulação e fragmentação. No caso
das meninas, através do altruísmo, corpo, flexibilidade, passividade, dependência,
união, acolhimento, cuidado e integração. No âmbito sexual, os meninos expressam
que o amor leva à morte, o sexo é diferente de afeto, foco na realização dos prazeres
e objetivos materiais, sentimento de medo em aprofundar as relações, dificuldade
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em demonstrar emoções. As meninas se constituiriam por um forte sentimento de
altruísmo, valorização de relações estáveis e idealização do amor.
Weil (2002) considera normose um conjunto de valores e comportamentos compostos
de consenso geral, ameaça à saúde ou a dignidade humana, individual, social ou
planetária, de forma inconsciente, critérios que podemos observar tanto na normose
masculinista como a feminista.
Na normose masculinista há um consenso aceito por toda a sociedade há séculos,
de caráter patológico e violento, totalmente inconsciente. Na normose feminista, em
que pese a luta pela igualdade de direitos estar no caminho de busca por uma nova
identidade feminina e uma nova definição do papel da mulher na sociedade, ainda
há algumas linhas que se inclinam a pensar que a mulher foi reduzida ao exercício
das atividades domésticas devido à cultura machista, oprimindo-a e causando uma
série de frustrações e doenças mesmo quando ela tenta se equiparar ao homem.
Na sociedade hodierna, quando então tem de enfrentar o preconceito, a diferença
salarial, a culpa e as patologias provocadas pelo acúmulo de funções. A consciência
desta realidade nos foi trazida pelo movimento feminista, hoje neofeminismo,
buscando o resgate do feminino na mulher e no homem, assim como a transformação
do masculino em ambos.
Contrária a essa forma de pensar, que se inclina à redução e à subordinação da
mulher em relação ao homem, surgiu o movimento feminista, que através de seus
integrantes, busca resgatar a valorização do feminino e o maior equilíbrio entre os sexos.
Isto implica uma visão transdisciplinar que passa pelos aspectos: sociológico, cultural,
psicológico, educacional e evolutivo das pessoas, objetivando uma transformação e a
integração da sociedade.
A normose masculinista produz homens autoritários, tirânicos, arrogantes,
orgulhosos, prepotentes, intolerantes, racionalistas ao extremo e, no fundo
emocionalmente frágeis, imaturos e infelizes. A mesma normose produziu
e continua produzindo mulheres submissas, dependentes, internamente
revoltadas ou resignadamente dóceis, também imaturas e infelizes. (WEIL, 2002
p.42).
Muraro e Boff (2002) afirmam que na desconstrução das desigualdades das relações
de gênero o movimento feminista mundial enfrentou o projeto do patriarcado, exigindo
respeito nas relações entre homens e mulheres.
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No sistema patriarcal a violência faz parte da estrutura do homem, nascendo no
momento em que o menino enfrenta o dilema do medo mata ou morre, mostrando a
natureza essencialmente violenta da sublimação, já que lhe é negada a capacidade de
amar no sentido de afeto, negação que o torna incompatível com a mulher, pois reforça
o poder masculino e diminui a potencialidade da mulher. “Toda sublimação, abstração,
generalização, nada mais são do que o jogo da opressão no mais íntimo do ser humano”
(MURARO; BOFF, 2002 p. 151).
Ou seja, não é a natureza a responsável pelos padrões e limites sociais que
determinam comportamentos agressivos aos homens e dóceis e submissos às
mulheres. Os costumes, a educação e os meios de comunicação tratam de criar
e preservar estereótipos que reforçam a idéia de que o sexo masculino tem o
poder de controlar os desejos, as opiniões e a liberdade de ir e vir das mulheres.
(TELES; MELO, 2002, pág.18).
Para os autores, a realização e a completude acompanhadas das naturais adaptações
e singularidade que podem gerar conflitos trazem a descoberta do novo e a liberação de
energias sublimadas, acabando com as repressões, culpa e agressão contra si mesmo.
Tudo isso é contrário ao conservadorismo, onde prevalece o comodismo, afinal muitos
interesses estão em jogo, principalmente os de poder.
4. A EVOLUÇÃO DOS DIREITOS DAS MULHERES
Por uma concepção multicultural de direitos humanos,
temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza;
e temos o direito a ser diferentes quando a nossa
igualdade nos descaracteriza.
(Boaventura de Souza Santos)
A evolução dos direitos na sociedade é gradativa, sendo construída sob bases
e costumes já definidos e por isso passam por interesses de grupos dominantes,
apoiando ou não a introdução de novos paradigmas que podem afetá-los
diretamente, oferecendo mudanças de valores, conceitos e idéias que não se
adéquam mais ao indivíduo ou a um grupo, o que pode gerar conflito e resistência,
de forma que muitas conquistas são conseguidas pelo embate. (SAFFIOTI, 1987;
MURARO, 1992; PRIORE, 1997).
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4.1. A LUTA DO MOVIMENTO DE MULHERES PELOS DIREITOS
SOCIAIS E POLÍTICOS – O MOVIMENTO FEMINISTA
Face aos valores implementados pelo sistema patriarcal na construção dos papéis
sociais baseados nas desigualdades implantadas entre homens e mulheres levandoas à condição de desigualdade em relação aos homens, ressaltam-se os movimentos
de transformação de um estado de coisas e pessoas ou situação em todas as épocas
que contribuem para a evolução da humanidade, novos conceitos e transmutação de
valores. Dentre esses movimentos destaca-se o feminista.
Alves e Pitanguy (1981) ilustram nesta seção que o feminismo não tem uma única
definição ou tradução enquanto movimento de transformação, assim como outros
movimentos conexos de libertação, de denúncia, de existência de formas de opressão
e desrespeito aos direitos, ele rompe o silêncio das mulheres. Além disso, torna
visível o caráter subjetivo do desrespeito, procurou superar as formas de organização
tradicionais e “revela os laços existentes entre as relações interpessoais e a organização
política pública.” (p.08)
O movimento feminista caracteriza-se pela descentralização na sua organização,
reconhecendo-se em suas múltiplas frentes, incluindo grupos que se mobilizam
em torno de cursos, debates, pesquisas, campanhas, editoras, clínicas de saúde,
manifestações culturais etc. E principalmente na esfera doméstica e no trabalho
buscando recriar um novo modelo de relações interpessoais de igualdade onde
homem ou mulher tenham suas qualidades atribuídas ao ser humano. Através deste
movimento é que pode se recuperar a presença da mulher na história, sua condição e
suas lutas. (ALVES ; PITANGUY,1981)
Com relação à conquista de direitos, as autoras explanam que as mulheres não eram
cidadãs de direito. Na Grécia eram equiparadas aos escravos. Na civilização romana as
próprias leis legitimavam o paterfamilias (homem) como o detentor do poder sobre a
mulher, filhos e escravos. No entanto, no ano 195 a.C. mulheres protestaram perante o
Senado Romano por direitos ao uso do transporte público, privilégio masculino na época.
Diversamente desta realidade, ressaltam que em sociedades tribais na Gália e na
Germânia inexistia o controle de um sexo pelo outro, ocupando, homens e mulheres
um espaço de atuação semelhante, sem divisão estrita na economia doméstica e social.
Conjuntamente faziam à guerra, participavam dos conselhos, de decisões como juízas,
ocupavam-se da agricultura e do gado, assim como da construção de suas casas.
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Até o século XIII, início da Idade Média, antes da reintrodução da legislação romana,
as mulheres gozavam de alguns direitos e participação política com direito ao voto para
as mulheres burguesas (proprietárias). Na ausência das guerras as mulheres assumiram
os negócios da família e participavam da força de trabalho, possibilitando receber
instrução profissional, direito posteriormente perdido e motivo de bandeira de luta.
Mas a ascensão da mulher sofria restrição, mesmo para as economicamente
autônomas. Para as assalariadas a competição e hostilidade desvalorizavam a mulher
que sempre recebeu remuneração inferior ao homem. A minoria das mulheres
estudava, pois foram registradas 15 mulheres que estudaram medicina e exerceram a
profissão em Frankfurt no século XIV, e outras que se graduaram em medicina e direito
na Bolonha. (ALVES; PITANGUY,1981)
As autoras destacam personalidades e fatos, tais como: Christine de Pisan, escritora
francesa, primeira mulher a ser indicada poetiza oficial da corte, uma das primeiras
feministas, discursava em defesa dos direitos da mulher defendendo a igualdade entre
homens e mulheres e condenando a dupla moral, onde um mesmo ato é crime quando
praticado pela mulher e apenas pequeno defeito quando pelo homem.
Para as articulistas, o feminismo enquanto movimento político, na América do século
XVII, antecedendo a Revolução e princípio do capitalismo, marcado pela ideologia puritana
religiosa e pelo comércio, surgiu através de figuras e vozes de insubordinação e revolta, tais
como: Ann Hutchinson que afirmava que os homens e mulheres haviam sido criados iguais
por Deus; Abigail Adams que reivindicava igualdade de direitos entre sexos na Declaração
de Independência Americana. E por Mary Wollstonecraft na Inglaterra, conhecida por
afirmar que a inferioridade da mulher advinha da educação diferenciada e pela falta
de oportunidade. Na França, em que pese à mulher participar ativamente do processo
revolucionário, também não viam seus direitos respeitados, passando então o feminismo
por uma prática de ação política organizada, reivindicando a mudança da legislação em
consonância com os princípios gerais da Revolução Francesa, denunciando a situação da
mulher, do trabalho, da desigualdade legal, da participação política, da prostituição etc.
A mulher nasce livre e permanece igual ao homem em direitos (...). Esses direitos
inalienáveis e naturais são: a liberdade, a propriedade, a segurança e sobretudo a
resistência à opressão (...). O exercício dos direitos naturais da mulher só encontra
seus limites na tirania que o homem exerce sobre ela; essas limitações devem
ser reformadas pelas leis da natureza e da razão. (GOUGES, 1791, apud ALVES;
PITANGUY, 1981, p.34).
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Neste período o movimento feminista foi ativo, participando dos principais eventos
da Revolução até 1795 quando um decreto fechou o acesso à mulher, de acordo inclusive
com as idéias de Jean Jacques Rousseau, principal ideólogo da Revolução que afirmava
sobre a submissão da mulher ao homem, desde a infância até a idade adulta.
Discorrem Alves e Pitanguy (1981), que com a reintrodução do direito romano de
forma a reduzir direitos civis e depreciar o trabalho da mulher, no início do século XIX
não se tem registros de mulheres freqüentando universidades. Assim como com a
consolidação do sistema capitalista, também no século XIX, em que as conseqüências
são maiores como: a deterioração da formação profissional feminina e a desvalorização
profissional, o que alerta as líderes operárias como Jeanne Deroin e Flora Tristan para a
necessidade de educação e organização das mulheres da defesa de seus interesses, já
que a condição da mulher é vista como parte das relações de exploração na sociedade
de classes, tendo como origem a propriedade privada. Estes movimentos uniram
homens e mulheres nas organizações sindicais e na repressão que sofreram. A luta
por melhores condições de trabalho, direitos de cidadania, votar e ser votado foram as
bandeiras de luta.
Acrescentam que no dia oito de março de 1857, operárias de uma indústria têxtil
de Nova Iorque fizeram greve objetivando melhores condições de trabalho, redução
da carga horária diária de 16 para 10 horas, equiparação de salário com os homens e
tratamento digno. Sendo trancadas dentro da fábrica que foi incendiada, resultando na
morte de aproximadamente 130 tecelãs. Pela violência e desumanidade praticadas, o
dia 8 de março passaria a ser considerado o “Dia Internacional da Mulher”, reconhecido
em 1910 durante uma conferência na Dinamarca, oficializada, porém, somente em 1975
através de um decreto pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Apontam que o sufrágio universal (direito de votar e ser votado) para a mulher
foi motivo de luta específica por sete décadas nos Estados Unidos e Inglaterra,
marcado por um intenso movimento de massa e pela violência do governo contra
as mulheres. No Brasil, por 40 anos a contar da constituinte de 1891, retomado
posteriormente em 1910 com a fundação do Partido Republicano Feminino, pela
professora Deolinda Daltro e em 1919 pela Liga pela Emancipação Intelectual das
Mulheres, por Bertha Lutz. O direito ao voto foi vagarosamente sendo adotado
pelos Estados, sendo promulgado oficialmente em 1932 por Getúlio Vargas, pela
pressão do movimento característico do feminismo, como forma de denunciar a
exclusão das mulheres.
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De certa forma as reivindicações por direitos da mulher estavam sendo atendidas,
até a necessidade econômica daquele período (1930-1940) prevalecer com a liberação da
mão de obra masculina para as frentes de batalha na guerra concomitantemente com a
valorização e o incentivo do trabalho da mulher na indústria. Realidade que se inverteu
com o final da guerra e o retorno da força de trabalho masculina, evidenciando-se a
diferenciação de papéis por sexo, reativando a condição feminina ao espaço doméstico
para ceder seu lugar aos homens.
Neste contexto contraditório, Simone de Beauvior, isoladamente, analisou as raízes
culturais da desigualdade social através do desenvolvimento psicológico da mulher,
os condicionamentos a ele impostos, constituindo um marco da reflexão feminista
que ressurgiu a partir da década de 60, através de Betty Friedan, Kate Millet, Juliet
Mitchell. Essas escritoras analisaram a frustração constante e indefinida da mulher, o
sistema patriarcal como um sistema universal de dominação que prevalece em todas as
civilizações. (ALVES; PITANGUY, 1981)
Giulani (1997), também explana os acontecimentos no Brasil, ressaltando que
as anarquistas e socialistas procuraram organizar as trabalhadoras em assembléias
sindicais nas primeiras décadas do século XX na busca de uma igualdade social e pelo
fim do patriarcado.
A autora lembra o empenho de Maria Lacerda de Nora, Matilde Magrassi, Patrícia
Galvão (Pagu), Maria Lobos, Nísia Floresta e Heleieth Saffioti, que t r o u xe r a m
u m a contribuição pioneira das ciências sociais para o estudo da mulher no Brasil.
Acrescentaram ao enfoque das reivindicações femininas, além da igualdade dos direitos
políticos, trabalhistas e civis, o questionamento das raízes culturais destas desigualdades
baseadas na suposta inferioridade natural da mulher, mascarada pela construção de
uma cultura predominantemente masculina em todas as áreas da sociedade.
Explica que o movimento feminista denuncia e enfrenta o controle da sexualidade,
do corpo, da liberdade e da imagem da mulher bem como qualquer tipo de violência.
Reivindica o direito a autodeterminação quanto a sua sexualidade, procriação e métodos
contraceptivos, de forma que a maternidade seja o resultado de uma opção consciente.
Bem como o autoconhecimento de seu corpo e suas funções. Propõe reconstruir seu
papel social, através da superação do machismo na educação. E enfatiza a igualdade
de funções, salários, direitos e oportunidades no mercado de trabalho, dupla jornada
como parte de autovalorização e união das mulheres. (GIULANI, 1997).
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Enfatiza ainda a conquista e a formação da cidadania depois dos anos 30 quando
o movimento de luta feminista surtia reflexos em várias esferas, colaborando para a
criação do Ministério do Trabalho, até o golpe militar de 1964, quando o governo
rompe com a cidadania, reafirmando a centralização do Estado e do homem como
única autoridade e representante da família, baseada na formação de um homem, uma
mulher e filhos (família nuclear) de forma autoritária e violenta. Destacaram-se nesta
conquista de melhores condições de vida, de trabalho e cidadania política, o direito ao
voto, alcançado pelas brasileiras em 1932 e aos poucos penetraram nas organizações
tradicionalmente masculinas, podendo também ser observadas essas conquistas
através dos movimentos das mulheres rurais (os sem terra).
A autora apresenta cronologicamente: a partir da década de 70 o movimento passa
a ter uma característica organizacional, formada por várias frentes de luta, tais como a
sexualidade, a violência, a ideologia, formação profissional e mercado de trabalho.
Em 1975 foi fundado em São Paulo, o Movimento Feminino pela Anistia e neste
mesmo ano, ano Internacional da Mulher, foi promovido no Rio de Janeiro com apoio
da ONU uma semana de debates sobre a condição feminina que precursores de grupos
de reflexão em Londres e São Paulo.
A partir dos anos 80 propõe uma nova imagem da feminilidade e masculinidade,
surgindo o conceito de equidade entre sexos e debatidas modificações na ordem
cultural e jurídica, importante para a redemocratização da sociedade e contra a
violência, opressão e discriminação da mulher. Muitas mulheres a propósito de lutarem
pelo fim da desigualdade sexual no trabalho e na família participaram do processo
de elaboração da Constituição Federal de 1988 que contemplou os cidadãos com
vários direitos resultantes desta luta, mas longe ainda das demandas do povo e da
implementação destes direitos na prática, demonstrando que as dimensões sociais da
discriminação sexista ainda eram muito significativas (GIULANI , 1997).
4.2. AS LEIS E A LEI 11.340/2006 – LEI MARIA DA PENHA –
INOVAÇÕES E A TRANSDISCIPLINARIEDADE
O ensaio de direitos à igualdade, já promulgada em anteriores constituições
brasileiras (1891, art. 72, §2º; 1934 e 1969) não foram suficientes para transformar uma
estrutura social construída na discriminação das mulheres enquanto cidadãs de direito
em todas as classes sociais, haja vista o poder ainda hoje estar concentrado em mãos
masculinas (SAFIOTTI, 1987).
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Considerações sobre a evolução das leis ao conceito das mulheres, Engel; Soihet
(1997), elucidam sobre a criminalização da mulher ensinando que a influência da
medicina, religião e o regime de propriedade privada patriarcal, baseados também
na teoria do médico italiano Cesare Lombroso, colaboraram para controlar e julgar a
sexualidade da mulher, que era impedida de ter relações sexuais até o casamento e esta
atividade totalmente controlada após o enlace matrimonial.
Conceito que aprovava a tese de que o crime de adultério (infidelidade no casamento)
deveria ser criminalizado somente para as mulheres, principalmente aquelas dotadas
de intenso erotismo e forte inteligência já que não eram maternais como as mulheres
“normais” e, por isso, criminosas natas, prostitutas e loucas. Devendo, portanto serem
punidas e banidas da sociedade. Com isso o sistema controlava a conduta social, sexual
e formas de trabalho das mulheres através do complexo judiciário, por meio da coerção
e do caráter multiforme da violência. Neste contexto surgia o conceito de “mulher
honesta” e “vagabunda”, consubstanciado pela burguesia, a ciência e as leis, pois à
mulher, especialmente a pobre, só cabia o espaço privado, doméstico, não podendo
sair às ruas livremente, sob o risco de ser considerada “desonesta” e “vadia” estando
submetida às normas e conceitos impostos, como formas de influência na sua liberdade
sexual e individual. (ENGEL; SOIHET, 1997).
Ressaltam Giulani e Silva (1997) novamente, que a realidade da mulher pobre era
contrária aos conceitos impostos em razão da grande quantidade de trabalhadoras
braçais, artesanais e pequenas comerciantes nos grandes centros urbanos, pois essa era
a única forma de sobrevivência, sofrendo então muito mais em razão da vulnerabilidade
social em que se encontravam.
Sofriam inclusive com seus companheiros, pois o contraste entre o homem burguês
e o pobre era grande já que o pobre não podia exercer o papel de mantenedor, provedor
e dominador nos espaços públicos e também no privado, eis que a mulher pobre, na
condição de companheira dele também trabalhava informalmente para garantir a
subsistência.
Relevante salientar, de acordo com Soihet (1997), que nesta classe social onde
o homem sofre pressão do papel social imposto e não tem o poder financeiro, pode
gerar a ele o sentimento de insegurança e impotência com relação à mulher, que pode
ser motivo de conflitos internos, externos e as agressões como forma de exercício de
autoridade e poder, surgindo daí figura do “crime passional”, motivado pelas paixões,
caráter relevante na sociedade do século XX.
DOUTRINA . DIREITO PENAL
AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA
289
Tal tipo de crime contém aspectos controversos, pois somente ao homem era
admitida a isenção de responsabilidade nestes crimes, pois as paixões eram vistas como
formas de loucura, capazes de anular a função inibidora da vontade, acometendo os
criminosos de motivos úteis à sociedade: “amor e honra”, o ideal político e religioso.
Fatores não inerentes à mulher, pela sua passividade, sendo esta a característica de
regulamentação jurídica de vários países com a impunidade total em favor do marido
que “vingasse a honra” ao assassinar sua mulher que supostamente cometesse ou
estivesse cometendo o crime adultério.
No Brasil, pela ordenação penal de 1890, acompanhada pela norma penal Decreto
Lei n.º 2.848/40, só a mulher era penalizada pelo crime de adultério, o homem não,
pois se o praticasse, era com aceitação da sociedade, devido suas “fraquezas sexuais”.
Só seria considerado crime se possuísse concubina fixa, ou seja, mantida por ele.
Mas os motivos de punição são claramente observados já que filhos bastardos eram
considerados ameaça ao patrimônio familiar. (SOIHET, 1997).
A honra da mulher constitui-se em um conceito sexualmente localizado do
qual o homem é o legitimador, uma vez que a honra é atribuída pela ausência
do homem, através da virgindade ou pela presença masculina no casamento.
(SOIHET, In PRIORE, 1997, p. 389).
Assim, observa-se que o sistema judiciário não se baseava nas causas do significado
da violência contra a mulher, no desrespeito a pessoa humana, na integridade da mulher
e na liberdade, já que não existia honra feminina, somente masculina no sentido de um
bem nato do homem. (SOIHET, 1997).
Importante falar, sob o aspecto das normas, sobre a imposição de prestação de serviços
sexuais às mulheres nas relações de trabalho e conjugais, designado como estupro,
eis que contraria a vontade da mulher, comprometendo o desejo e o direito ao prazer da
mulher, neste último caso, consubstanciado e permitido pelo Código Civil de 1916 (Lei n.º
3.071/1916), legitimando o poder do macho através do “dever conjugal: obrigação da mulher
prestar serviços sexuais ao companheiro quando por ele solicitado” (SAFFIOTI, 1987).
Neste mesmo sentido observa-se pelo nosso estatuto civil, inspirado no Código
Napoleônico (França) e pelo nosso Código Penal (Decreto Lei n.º 2848/1940), inspirado
na legislação italiana, que representa anseios e protege direitos individuais da
burguesia, longe da realidade brasileira, de forma opressiva e insensível, baseado no
sistema patriarcal onde a mulher é propriedade do homem (KATO, 1994).
290
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
O destino manifesto do patriarcado já há quatro mil anos foi sempre este: buscar
o dominium mundi, assenhorar-se dos segredos da natureza para submetêlos aos interesses humanos e fazer-se “mestre e possuidor de todas as coisas.
(DESCARTES)
Faria (1994), mostra que toda a história da civilização se baseia em códigos, sempre
a despeito do povo ou das maiorias pobres. O povo não tendo a quem recorrer e sem
independência de ação, de pensamento e conhecimento, carece de consciência jurídica
que pode fazê-lo valer seus direitos e dar visibilidade às suas necessidades. A imposição
da vontade da minoria no poder, através das regras (leis), por meio de mensagem
alienatória, deturpada e manipulada subjetivamente, promove o conflito, a descrença
e a violência.
Regras de conduta existem talvez desde os Dez Mandamentos de Moisés, indicam
que um dos mais antigos códigos legais foi Lipit Isjtar, dois mil anos antes do Código de
Hamurabi, da Babilônia de 1690 a.C., códigos da Assíria e Hititas, Doze Tábuas Romanas,
Código Bizantino de Justiniano e Código de Napoleão, baseados na regulação do
comportamento humano, por meio de comunicação escrita, que pode ser interpretada
de várias formas, daí a dificuldade de adequar as leis à realidade. “Nem mesmo a nossa
CF/88 conseguiu abranger todas as transformações sociais necessárias” (FARIA, 1994,
p.102).
No âmbito civil, podemos observar vários exemplos representativos do preconceito
presente ma sociedade, tal como, quanto ao nome da mulher casada, onde também
observamos o ranço do poder do marido sobre a mulher, estando esta submissa ao
pai antes do casamento e depois submissa ao poder do marido, tendo a obrigatoriedade
de adotar o “patronímico” (nome da família a que pertencia o homem) dele que por si
só já se explica, pois “pater” = “poder”, a mesma coisa que pai, patrão, chefe, dono, vide
art. 240 do Código Civil de 1916. Longa jornada foi transposta até chegarmos à opção
de adotar o citado patronímico, com a igualdade de direito ao nome e á personalidade
é individual. (FERRARA, 2009).
No Brasil, Ferrara (2009), explica que somente com o Estatuto da Mulher Casada em
1962 (Lei n.º 4121/1962) é que a mulher deixa de ser relativamente incapaz, e deixa de
ter que pedir autorização ao marido para trabalhar e dar opiniões.
Alteração feita com a Lei do Divórcio (Lei n.º 6515/1977) e com o Código Civil de 2002 (Lei
n.º 10.406/2002), art. 16 a 19; 1565 §1º; 1578 acerca do nome da mulher casada quando da
DOUTRINA . DIREITO PENAL
AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA
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separação e divórcio, sendo adotado também o termo sobrenome ao invés de patronímico.
A Lei n.º 8.408/92 que alterou o art. 25 da Lei do Divórcio, diz que a mulher poderia conservar
o patronímico do marido se considerada “inocente” (sistema de culpa pela causa da
separação), o que significava então que a “mater famílias” não teria identidade.
A Lei n.º 11.441/07 que alterou o Código de Processo Civil (Lei n.º 5.869/1973)
possibilitando a realização de separação e divórcio consensual via administrativa
permite acordo quanto à manutenção ou não do nome adotado no casamento.
(CHINELATTO, 2008).
Uma das mais importantes conquistas atuais é a tendência a universalização dos
Direitos Humanos, independente das leis, de forma a aproximar o código legal ao
moral, que deve ser baseado no respeito e na responsabilidade.
É notada a necessidade de aproximação entre as leis vigentes e o contexto social
através de uma proposta reflexiva e alternativa de modo que amplie a visão formal do
direito positivo e imposto para uma consciência mais ampla das relações, considerando
que os valores são adquiridos pela educação, tradição, religião e pela cultura jurídica.
(GOLDBERG, 2004)
No sistema das Ordenações Filipinas (Liv.V, Títs.36, par 1., e 95, par. 4.), não
praticava ato censurável aquele que castigasse criado, ou discípulo, ou sua
mulher, ou seu filho, ou seu escravo. (RODRIGUES, 2004, p.120).
Com base neste conjunto de anseios, mediante uma realidade onde a violação dos
direitos é forte, prevalece a desigualdade e certos grupos são desprotegidos e invisíveis,
surge a Lei Maria da Penha. Dias (2007), esmiúça e esclarece sobre a Lei n.º 11.340/2006 –
Lei Maria da Penha que é um marco no resgate da cidadania feminina, conquista de
muitas lutas, para dar visibilidade à violência doméstica contra a mulher e o patamar
que ela atingiu na sociedade atual.
Como luta por direitos, em 2002 foi elaborado um projeto através de 15 ONGs e a
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, por meio do Decreto n.º 30/04, Projeto
de Lei n.º 4559/04, sendo recebido pelo Senado Federal e sancionada a Lei n.º 11340/06
em 07/08/2006.
Ressalta-se que ela foi criada e promulgada como resultado de punição ao Governo
Brasileiro, dentro de um modelo ainda moralmente patriarcal e tradicional, afinal, só
leis e códigos não são suficientes para modificar paradigmas. (KATO, 1994; DIAS, 2007).
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
Mais do que uma lei, esta norma traz uma nova consciência sobre o tema,
demonstrando que a violência doméstica contra a mulher, além de ferimento aos
direitos humanos é um problema de saúde pública pelo seu impacto para a saúde
biopsicossocial da mulher (ONU 1993, 1994). As estatísticas mostram que 87% das
agressões são praticadas pelos maridos ou companheiros (Senado Federal, 2007). A
cada 2minutos, 5 mulheres são espancadas no Brasil (Fundação Perseu Abramo, 2011).
Dias (2007), esclarece que as conseqüências atingem à família, as relações
interpessoais e de trabalho, e, principalmente às crianças, que aprendendo com os
exemplos, tendem a se tornar multiplicadoras do comportamento vivenciado. Tudo
isso somado a idéia da família como entidade inviolável, “não sujeita a interferência da
justiça.” O que fazia com que a tal tipo de violência fosse vista como crimes de menor
potencial ostensivo, abarcada pela Lei n.º 9099/95, Leis dos Juizados Especiais que adotou
medidas despenalizadoras, mas que não priorizou a vida humana, condicionando à
vontade da vítima de lesões corporais leves ou culposas decidir se o agressor será ou
não processado em total contradição com os crimes contra o patrimônio, que não está
vinculado à vontade da vítima por se tratar de ação pública incondicionada, sendo,
portanto, os bens mais valorizados que a vida.
A autora demonstra que fatos indicam o desprezo e a falta de conhecimento
do legislador da secular discriminação contra a mulher, em que pese a igualdade
promulgada pela nossa carta magna, que justifica um tratamento diferenciado para a
questão eis que a violência recorrente no ambiente doméstico, era invisível, por ser em
local visto como privado portanto “sagrado” e “lacrado”.
E mediante esta realidade, mais um caso foi gritante, com a diferença de ter se
tornado visível por isso dado origem a Lei Maria da Penha. Para ser levada sério,
segundo Dias (2007), é que a biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, uma
de tantas vítimas de violência doméstica, em Fortaleza (CE), denunciou as agressões
que sofreu do marido Marco Antonio Heredia Viveros, professor universitário e
economista, que por duas vezes tentou matá-la, sendo a primeira vez em 29/05/83
simulando um assalto com o uso de uma espingarda que a deixou paraplégica e
depois de algum tempo a segunda vez tentando eletrocutá-la. Tais crimes foram
investigados e depois denunciados pelo MP em setembro de 1984 sendo que o réu
foi condenado pela tentativa de homicídio a 10 anos e 6 meses de prisão, em segundo
julgamento realizado somente em 1996, dos quais cumpriu dois, a partir de 2002,
após 19 anos depois dos fatos.
DOUTRINA . DIREITO PENAL
AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA
293
Fatos que foram denunciados por ela e tiveram repercussão internacional através
do CEJIL (Centro pela Justiça e o Direito Internacional) e o CLADEM (Comitê Latino
Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher), que formalizaram
denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, (Organização dos
Estados Americanos) órgão que solicitou por 4 vezes informações do governo brasileiro
sobre o caso, sem êxito.
Por isso condenou o Brasil em 2001 obrigando-o a pagar uma indenização de US$20mil
à Maria da Penha, responsabilizando o Brasil por negligência e omissão nos casos de
violência doméstica e recomendando a simplificação dos procedimentos judiciais penais.
O Brasil foi obrigado a cumprir as convenções e tratados internacionais que é signatário
e motivo pelo qual a Lei Maria da Penha faz referência à Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Convenção CEDAW, 1979 – Convention
on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women) assinada com reservas pelo
Brasil em 1981 e ratificada pelo Congresso Nacional em 1984, aprovada na íntegra pelo
Decreto Legislativo n.º 26/94 e promulgada pelo Decreto n.º 4.377/02, mais de 20 anos
depois de sua elaboração e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar
a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, 1994), ratificada pelo Brasil
em 1995, aprovada pelo Congresso Nacional no mesmo ano pelo Decreto-Legislativo n.º
107/95 e promulgada pelo Decreto n.º 1973/96. (DIAS, 2007; FERREIRA, 2008, p. 23-24):
Art.1. estabelece o conceito de discriminação contra s mulheres como sendo
“toda distinção, exclusão ou restrição fundada no sexo e que tenha por objetivo
ou consequência prejudicar ou destruir o reconhecimento, gozo ou exercício pelas
mulheres, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade dos
homens e das mulheres, dos direitos humanos e liberdades fundamentais, nos
campos político, econômico e social, cultural e civil ou em qualquer outro campo”.
(CEDAW, 1979)
Art.3. preceitua: “Toda mulher tem direito a uma vida livre de violência, tanto no
âmbito público como no privado”. E o art. 6. complementa: “O direito de toda mulher
a uma vida livre de violência inclui, entre outros:
A. o direito da mulher de ser livre de toda forma de discriminação; e
B.
o direito da mulher ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados
de comportamento e práticas sociais e culturais baseados em conceitos de
inferioridade e subordinação”. (Convenção de Belém do Pará, 1994).
294
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
Os tratados internacionais têm aplicabilidade imediata e natureza de norma
constitucional, conforme a nossa Constituição Federal de 1988 (art. 5º. § 1º e 2º,
Emenda Constitucional n.º 45/2004 (CUNHA e PINTO, 2007), que já previa o amparo aos
elementos mais frágeis como mulheres, idosos e crianças, começando pelo seu art. 5º,
inciso I: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”, e inciso XLI, a punição,
pela lei, de qualquer discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais.
(FERREIRA, 2008).
Protegeu a família através do art.226: “A família, base da sociedade, tem especial
proteção do Estado.” Sendo-lhe assegurada a assistência para cada um de seus integrantes,
criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. Por isso a Lei
Maria da Penha atende a um compromisso constitucional. (DIAS, 2007). Enfatiza a autora
que a liberdade é reconhecida como um dos principais direitos do ser humano, assim
como a igualdade e a solidariedade, por isso, a dominação do homem sobre a mulher
viola este estes direitos.
Além de cumprir compromisso constitucional, esta lei trouxe inúmeras inovações e
conceitos que demonstram a sua atualidade e abrangência, tais como o reconhecimento
das uniões homoafetivas como entidades familiares e não só como uniões estáveis e a
diversidade dos tipos de família, baseadas no afeto e por escolha de seus membros.
Raciocina a autora no campo da entidade familiar explicando que o agressor ou
a agressora é qualquer sujeito que tenha ou tenha tido uma relação íntima de afeto,
ou ainda uma relação doméstica ou familiar com a vítima, ampliando o leque de
possibilidades de ocorrências, ainda que o conflito seja só de ordem familiar. A ofendida
é sempre a mulher, incluindo-se a que se identificam como mulheres, com agravante
penal em caso de deficiente física.
Com relação ao espaço de convivência permanente de pessoas com ou sem vínculo
familiar, ainda que esporadicamente agregadas, foi definida como entidade familiar,
sendo considerada família qualquer grupo de indivíduos que esteja unido por laços de
sangue, por afinidade ou por vontade, inovando a concepção de família pela presença
do vínculo de afetividade, não previstos pela Constituição e pelo Código Civil de 2002,
vigente (DIAS, 2007).
Além disso, de acordo com a autora, a Lei definiu e ampliou os tipos de violência contra
a mulher: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Ressaltando o reconhecimento
dos crimes de natureza sexual, que antes eram chamados de crimes contra os costumes.
DOUTRINA . DIREITO PENAL
AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA
295
Com relação à polêmica com relação à constitucionalidade da lei, que poderia
infringir o princípio da igualdade e beneficiar somente a mulher como se seu teor fosse
discriminatório, à autora cumpre lembrar que é exatamente por cumprir o preceito
constitucional de igualar os desiguais ou vulneráveis que a tal norma foi acolhida,
reconhecendo o fato da desigualdade da mulher na sociedade em relação ao homem,
assim como foram também recepcionados outros grupos, pelo princípio da isonomia
e da uma discriminação positiva como meio de sanar as desvantagens históricas e
proteger sua integridade física.
A difícil Revolução da Mulher sem agressividade, ela que foi tão agredida. Uma
revolução sem imitar a linha machista na ansiosa vontade de afirmação e de poder,
mas uma luta com maior generosidade, digamos. Respeitando a si mesma e nesse
respeito o respeito pelo próximo, o que quer dizer amor. (TELES, 1997, p. 672).
Leva em consideração a autora que a realidade muitas vezes demonstra: a mulher
que sofre violência doméstica do marido ou companheiro nem sempre quer ou está
preparada emocionalmente para se separar, ela quer que a violência cesse e procura
ajuda, normalmente quando já está cansada e impotente. Neste contexto foram criadas
as Delegacias de Defesa da Mulher (DDM’s), em SP em 1985 com equipe feminina, no
sentido de melhor acolher a mulher além de desenvolver uma função intimidatória para
o agressor e papel pedagógico à sociedade.
Mas com a Lei n.º 9099/95 que regulava o procedimento técnico para tais crimes,
a conciliação era imposta, mesmo com a representação (ato formal de requisição
processual formulado pela ofendida) e sem a participação da vítima. O Ministério Público
podia transacionar uma pena de multa, arrecadação de cesta básica ou restrição de
direitos, sem constar dos antecedentes criminais e civis do agressor. O que não resolveu
a violência doméstica, sendo ela ainda mais banalizada e impune. (DIAS, 2007).
Através de projetos de lei e participação do movimento de mulheres a Lei n.º
10455/2002 alterou o parágrafo único do art. 69 da Lei n.º 9099/95, admitindo a
possibilidade de o juiz determinar por medida de cautela, o afastamento do agressor
do lar. Já a Lei n.º 10886/2004, acrescentou um subtipo à lesão corporal leve, decorrente
de violência doméstica, aumentando a pena mínima de 3 para 6 meses de detenção,
alterando o art. 129 do Código Penal (Decreto Lei n.º 2.848/40, §9º), mais ainda dentro dos
sistemas patriarcal e dos juizados especiais criminais e perante os índices alarmantes já
que de 100 brasileiras assassinadas, 70 são vítimas dos homens no ambiente doméstico
privado. (DIAS, 2007).
296
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
A obra de Dias, 2007, mostra que a lei trouxe muitas mudanças que ainda vem
sendo implantadas, tais como: Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher – JVDFMs, com competência cível e criminal (art.14), devolvida à autoridade
policial a prerrogativa investigatória e instauração de inquérito; o direito da vítima ser
acompanhada por advogado (art.27) em todas as fases; garantia de acesso a assistência
judiciária gratuita (art.28), não poder ser ela portadora da notificação ou intimação do
agressor (art.21); o direito de ela ser cientificada quando da prisão e soltura do agressor
(art.21) e o direito a requerer as medidas protetivas de urgência tais como: afastamento
do agressor do lar, de distanciamento e proibição de contato (art.22), possibilidade
de encaminhamento da mulher e dos filhos para abrigo seguro com manutenção do
vínculo de emprego (art.9º,II), separação de corpos, fixação de alimentos, suspensão
de porte de arma e proibição de visitas aos filhos, suspensão dos efeitos de procuração
e anulação de venda de bens comuns (art.24). Proíbe a aplicação de pena pecuniária,
multa de cesta básica (art.17) e permite a prisão em flagrante, preventiva ou temporária
do ofensor (art.20). Possibilidade de o juiz determinar o comparecimento obrigatório
do agressor a programas de recuperação e reeducação (art.45) entre outras. Além disso,
assegura à mulher garantia ao trabalho, podendo suspender o contrato por até seis
meses, por determinação judicial.
Ainda nesta obra, observa-se que nos crimes onde as ações penais são
condicionadas à representação (vontade) da ofendida, por exemplo: as lesões corporais
leves ou culposas, a renúncia (desistência) só pode ser admitida perante o juiz, antes
do recebimento da denúncia (acusação) pelo Ministério Público, o que não ocorre com
os crimes de ação pública incondicionada à vontade da vítima, por exemplo: lesões
corporais graves etc. Os crimes de ação privada dependem de ação própria, chamadas
de Queixa-Crime, tais como: injúria, calúnia e difamação.
Tal representação é ofertada no momento do registro da ocorrência do crime,
na delegacia, quando é tomada por termo a vontade da vítima de ver o agressor
processado pela prática do crime, iniciando-se assim o inquérito policial, que quando
concluído, deve ser enviado a juízo, passando pelo Ministério Público, quem oferecerá
ou não a denúncia do crime e, se admitida pelo juiz, será iniciado o processo criminal.
A Lei Maria da Penha, de acordo com Dias (2007), ainda que de natureza criminal,
também é abrangente o sentido de mesclar a aplicação das normas de Direito Civil, Processo
Civil e Processo Penal, quando não conflitantes, exigindo maior comprometimento do
Ministério Público, Policiais, Juízes e demais operadores do direito.
DOUTRINA . DIREITO PENAL
AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA
297
Outra relevância dos apontamentos da autora é quanto ao atendimento à vítima
ou ofendida, devendo ser iniciativa dos governos federal, estadual e municipal por
meio de políticas públicas específicas, fazer parte do novo caráter de formação dos
profissionais envolvidos nesta temática trazida pela Lei, de modo que envolve maior
zelo, participação, humanização, conhecimento e comprometimento na aplicação
desta regra, garantindo a escuta da mulher, o registro da ocorrência, o encaminhamento
para a rede de serviços especializada, atendimento médico, acompanhamento para
retirada de seus pertences, transporte para abrigo seguro, informação de seus direitos,
das medidas protetivas de urgência que pode pleitear, devendo ser encaminhado a
juízo em 48hs, acompanhamento de advogado, exame de corpo de delito ou demais
exames e perícias. O Ministério Público agente defensor dos direitos fundamentais em
todas as esferas de atuação deve ter como escopo a integração com todas as entidades,
pública e privada ou rede de serviços envolvidas na aplicação da Lei, podendo inclusive
fiscalizá-las, requisitando serviços em todas as áreas que forem necessárias, tais como
saúde, educação, assistência social, entre outros.
Imprescindível, no entanto, que sejam instalados os JVDFMs e que seus juízes,
promotores, advogados e defensores estejam devidamente capacitados.
Imperioso, igualmente, que seja montada uma estrutura interdisciplinar,
para que todos os membros da família recebam atendimento psicológico e
acompanhamento por assistentes sociais. (DIAS, 2007, p.26).
Através de um conjunto articulado de ações da União, Estados, Municípios e ações
não governamentais objetivando integrar o Poder Judiciário, Ministério Público,
Defensoria Pública, Segurança Pública, assistência social, saúde, educação, trabalho
e habitação, por meio de estudos, pesquisas, estatísticas, campanhas de prevenção,
articulação, capacitação permanente dos profissionais envolvidos, promoção dos
valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a reduzir a definição dos papéis
estereotipados que validam a violência doméstica contra a mulher, são previsões da Lei
que são medidas integradas de prevenção à violência. (CUNHA; PINTO, 2007).
De acordo com os autores, a Lei traz um caráter transdisciplinar pioneiro e uma
necessidade de integração da rede de serviços e de áreas profissionais, totalmente
inovadoras dentro do sistema judiciário e na sociedade.
4.3. NEOFEMINISMO E VISÃO RESTAURADORA
Concomitantemente com as importantes mudanças pelas quais a sociedade
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
passa novos modos de ver e solucionar conflitos emergem proporcionando
opções de restauração de valores. (CUSCHNIR,1994; KOLONTAI, 2000; WEIL, 2002;
MURARO;BOFF,2002; GOLDBERG, 2004).
Weil (2002), mostra que a década de 90 foi um período de reavaliação do feminismo,
de modo que as conseqüências para o psicológico das mulheres não possam reprimir o
feminino, mas sim resgatá-lo.
A visão feminista foi mudando com o tempo, pois inicialmente a busca da mulher
era para demonstrar que não era inferior ao homem, depois a busca é para provar que
eram diferentes e não precisavam imitá-los para serem aceitas, depois, buscam serem
consideradas iguais exatamente pela capacidade de serem diferentes dos homens,
iguais enquanto seres humanos e equivalentemente capazes, o que transforma a
sociedade culturalmente através da paz e do amor.
A questão de gênero se coloca em praticamente todos os assuntos, trabalho,
pela escola, nas diferentes áreas. Estar atento a isso, explicitando sempre que
necessário, é, respeito pela diferenças, somando e complementando o que os
homens e as mulheres têm de melhor, compreendendo o outro e aprendendo
com isso a ser pessoas mais abertas e equilibradas. (WEIL, 2002 p.87).
Muraro e Boff (2002) analisam: se por um lado o movimento feminista mundial
enfrentou o patriarcado e descortinou as relações desiguais de gênero, “inaugurou
relações mais simétricas” introduzindo na nossa cultura novos tipos de personalidades
femininas e masculinas baseadas na parceria e solidariedade, propondo novas
definições de papéis que acolhem as diferenças com respeito a igualdade, definindo-o
como novo feminismo ou neofeminismo.
Seguindo neste movimento renovador positivo, Muraro (1992), busca a
conscientização e a reeducação para o equilíbrio. A autora acredita na possibilidade
de vivenciar um embrião de superação do patriarcado, mas esta mudança ainda
está sendo feita com base na construção social e psicológica antigos, dentro de
um sistema capitalista competitivo, o que dificulta a transformação, sem, com isso,
deixar de exercê-la através da entrada da mulher no domínio público, trazendo
transmutação nas estruturas psíquicas tanto de homens como de mulheres. Abrindo
o espaço privado para os homens também participarem em igualdade, de modo que
seus filhos introjetem o respeito e não um modelo de domínio uns pelos outros, sem
afeto e sem amor.
DOUTRINA . DIREITO PENAL
AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA
299
Afirma que tendem a cair os regimes autoritários como já vem acontecendo,
demonstrando um desejo pela democracia, pelos direitos iguais e pela ética, sendo
o crescimento da mulher colaborador para tal desmoronamento. Lembrando ainda,
a resistente opressão das mulheres no Oriente Médio, caso que fere totalmente os
Direitos Humanos, chamando a atenção para que toda esta transformação necessária
venha a nível coletivo e institucional.
Andrade (2007), afirma que a democracia, apesar de suas imperfeições, é o único
caminho que garante o respeito aos princípios dos Direitos Humanos, não pelo estado
de igualdade que nascem os homens, mas sim quando adultos e, portanto, desiguais. Os
direitos fundamentais representam uma conquista plausível de ser alcançada, passando
por uma conscientização vital que antecede a norma jurídica, por meio dos valores
éticos e morais do legislador e do operador do direito, para a concretização e irradiação
de garantias reais e não só como regra imposta com título de proteção e de promoção
da dignidade humana. Tal garantia deve ser independente para que seja reconhecida a
sua necessidade, independente do grupo a que pertence, mas pelo fato de pertencer ao
gênero humano, que deve ser mais relevante do que os demais bens jurídicos.
Delors, (2002) elucida a necessidade de uma transformação na educação, de forma a
exigir uma maior eficácia na transmissão de saberes adaptados a uma maior capacidade
de aprendizado, baseada em conhecer, fazer, viver em sociedade e cooperar. Atrelado
ao ensino estruturado a aprendizagem deve englobar a prática da instrução como parte
integrante, de maneira que o indivíduo se inclua como membro da sociedade e seja
um instrumento de formação contínua e humanitária. Conceber uma educação de base
capaz de evitar ou resolver conflitos com fundamento no conhecimento e respeito de
outras culturas possibilitando um meio de amenizar a violência, através de um contexto
social e econômico igualitário.
A grande lição que nos deixaram tanto o cristianismo quanto o socialismo é que
transformações estruturais e mentalidades devem vir juntas, complementandose umas às outras. (MURARO, 1992, p.195).
Homens e mulheres não precisam competir, apesar de diferentes podem criar um
vínculo generoso, rico de experiências e trocas, com divisão de tarefas renovadoras e
complementares, baseado no respeito e na simetria, que pode fortalecer a diferença
entre si, eliminando as desigualdades visando o equilíbrio. “Somente se os indivíduos
estiverem motivados a se renovarem, a sociedade do futuro poderá contar com todos
os seus membros” (CUSCHNIR, 1994 p. 89).
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Graças ao reencontro entre o Oriente Feminino e o Ocidente Masculino, a
nossa Humanidade, atualmente dilacerada por uma visão distorcida, por ser
predominantemente masculina, poderá chegar a reconstruir uma sociedade de
gênero verdadeiramente iluminada pelo Amor e pela Sabedoria. (WEIL, 2002 p. 246).
Uma nova sociedade baseada na solidariedade e camaradagem inclui o
desenvolvimento máximo da capacidade de simpatia e amor com o próximo mediante
seus sofrimentos e necessidades, baseados numa consciência de união e coletividade,
os quais não se baseiam somente no “domínio das relações matrimoniais e da família,
mas são os laços que contribuem para o desenvolvimento da solidariedade coletiva”
(KOLONTAI, 2000, p.144).
O coletivo será prioritário, ao contrário do individualismo, segundo a autora, pois,
com a modificação de sentimentos, no sentido de união e coisa pública, tende a
desaparecer a desigualdade entre os sexos e as formas de dominação masculina ou
dependência da mulher em relação ao homem.
Confirma Goldberg (2004), que homens e mulheres têm sua essência e sua consciência
fundadas no bem, diversamente da categoria que postula poder de dominação. Podem
ser companheiros de participação igualitária, livres de regras impostas. “Fechem-se
simultaneamente a temporada homicida de caça às mulheres e o sensacionalismo
irresponsável” (GOLDBERG, 2004, p.101).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A violência doméstica contra a mulher é uma realidade histórica que tem uma origem
construída e mantida pela sociedade e por diversos fatores inerentes ao ser humano,
tornando-se extremamente relevante entender as causas, seus efeitos, conseqüências
e fatores de sua existência para, mais que constatar passivamente tal fato, compreender
que o indivíduo faz parte desta cultura e por isso pode transformá-la. (MURARO, 2002;
DIAS, 2007).
Para se compreender as origens da violência iniciou-se pelos seus conceitos e
definições até chegar à violência contra a mulher, sendo necessário primeiramente
entender a construção dos papéis sociais sob vários enfoques, a começar pela formação
e evolução da família em suas etapas. Sua constituição e organização necessitaram da
figura do Estado, representante do poder e gerador de condutas como uma forma de
DOUTRINA . DIREITO PENAL
AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA
301
monitorar a propriedade privada e as pessoas. A partir de sua intervenção, observouse a transição do sistema familiar matriarcal para o modelo patriarcal. Tais idéias foram
observadas na obra de Engels (2009).
Neste contexto conclui-se que no sistema patriarcal prevalecia o interesse do Estado
e das classes dominantes na divisão sexual do trabalho entre homem e mulher e no
acúmulo de bens, caracterizado pelo capitalismo, sistema econômico e político baseado
na garantia dos lucros, sendo esta uma das causas da origem da violência contra a mulher.
Outro fator seria a construção de papéis sociais sob vários aspectos, pois muitas diferenças
foram edificadas neste processo, entre homem e mulher, segundo os autores revisados.
Daí pode ser deduzido que cada um possui uma carga biológica caracterizada por
uma definição sexual, mas inserido numa cultura, num arranjo existencial de profundo
desejo de liberdade e insatisfação. Sem, contudo, deixar de considerar que o elemento
masculino e feminino existe em todo ser humano, nem por isso pior nem melhor, apenas
diferente em formas de ser e em forças produtoras. Nunca como a cultura patriarcal
construiu, determinando o enrijecimento do homem baseado na pura racionalidade,
da mesma forma aculturando o papel feminino como determinante da submissão
e subjetividade, destruindo a possibilidade da construção de um ser humano uno e
diverso, recíproco e igualitário.
Historicamente os papéis foram arquitetados sob a influência do meio social e os
interesses dominantes, enraizados pelos seres humanos formando uma cultura
naturalizada e inconscientemente sexista (machista) no sentido do poder do homem
sobre as mulheres, sob a égide do Estado e da Igreja formados por estes homens, em
proteção aos bens materiais que possuíam, visando os lucros e a manutenção de um
modelo de família que oprimia as mulheres e sua liberdade individual. Fato que gerou,
em todas as épocas, a revolta de muitas pessoas e de mulheres que lutaram com suas
vidas para que seus direitos fossem respeitados, com igualdade, gradativamente, ainda
em evolução.
Como conseqüência das desigualdades na construção de papéis sociais pode-se
observar que muitas vezes somos agentes da cultura machista, até porque fazemos
parte dela através da educação que nos foi passada e reproduzida pelas gerações.
Normalmente em aniversários de meninas se leva como presentes: bonecas,
panelinhas e kit limpeza, roupas de cor rosa, no sentido de confirmar-lhes o espaço
privado e doméstico, enquanto que para os meninos se leva: bolas, carrinhos, armas de
brinquedos e jogos, no sentido de confirmar-lhes o espaço público e livre.
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Às meninas são ensinados as atividades domésticas e os cuidados com os outros, a
obrigatoriedade de ser delicada, recatada, dizer “sim”, ser obediente e condescendente.
Os meninos têm total tolerância para não assumir nenhuma atividade doméstica, afinal
isto “é coisa de mulher”, podem dizer “não”, ter manifestações agressivas, afinal isto “é
coisa de homem” e estes devem aprender a “se defender”, com a única preocupação de
trabalhar fora ou de estudar nas famílias mais estruturadas. Neste contexto as crianças
vão definindo seus papéis aprendendo que “mulher é frágil”, “chora à toa” e é “sensível”,
enquanto: “homem não chora”, “homem tem que ser forte” e “provedor”.
Num ambiente de desrespeito e violência, independente de classe social e
dificuldades sócio-econômicas, os filhos tendem a reproduzir os papéis no ambiente
social em que vivem, como por exemplo, na escola, demonstrando agressividade,
problemas emocionais de toda a ordem, comprometendo seu pleno desenvolvimento,
por isso a violência doméstica contra a mulher não é um problema privado, mas sim
público com a intercorrência de várias outras formas de violência e reflexos em todas as
áreas da sociedade: social, saúde, educação e trabalho.
Pela revisão dos autores, no âmbito religioso também vemos o preconceito contra a
mulher pela interpretação sexista que se dá ao texto bíblico, fortalecendo o conceito de
culpabilidade e menor valor da mulher pelo simbolismo da “costela de Adão” e “fruto
proibido”. Além disso, várias passagens bíblicas textualizam a condição de submissão
e insignificância da mulher: “É dom de Deus uma mulher sensata e silenciosa.”
(Eclesiástico, cap.26).
O sexismo, popularmente chamado de machismo, onde o homem se baseia e uma
relação de poder e domínio sobre as mulheres por se considerarem detentores de
maiores direitos e considerarem as mulheres seres de menor valor e respeito, ocorre
a coação e o exercício do controle, poder, subjugação, constrangimento, ciúme, falta
de apoio, abandono e todos os tipos de violência. Valendo isto em qualquer parte do
mundo e em todas as classes sociais, variando pela sua visibilidade.
Nas nossas músicas também pode ser observado o ranço da discriminação,
cultuadas tradicionalmente: “Eu tenho pena da mulher do meu patrão... mas nervosa
sofre muito por não ter o que fazer no atiço da panela, no batuque do pilão...” (A Mulher
do meu Patrão – Luiz Gonzaga); “Quero te pegar no colo, te deitar no solo e te fazer
mulher” (Deixa eu Te amar – Wando); “Mas que mulher indigesta, indigesta, merece
um tijolo na testa” (Mulher Indigesta – Noel Rosa); “Se te agarro com outro te mato,
te mando algumas flores e depois escapo” (Se te agarro com outro te mato – Sidney
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AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA
303
Magal); “Eu nunca vi fazer tanta exigência, nem fazer o que você me faz ...” (Amélia –
Mário Lago/Ataulfo Alves).
Outra reflexão trata do significado do masculino e do feminino presente nos
dicionários da língua português, assim como os adjetivos que são dados para os
homens os quais tem cunho diferenciado, com relação à sexualidade da mulher, quando
a ela aplicados, como, por exemplo: “homem vagabundo – homem que não trabalha;
aventureiro – viajante, desbravador; homem da vida – homem de grande experiência;
vadio- que não faz nada; homem dado – que não faz nada; atirado – disponível,
impetuoso; atrevido – ousado, petulante; ambicioso- visionário, enérgico. Terão o
mesmo significado se dirigidos às mulheres? Qual? (Texto da Peça: Carne, Patriarcado e
Capitalismo – Cia Kiwi de Teatro, 2011).
Um fato sobre a violência contra a mulher seria a associação dela com o alcoolismo
ou outro tipo de droga, uma maneira de justificar as agressões, pois o agressor com
perfil machista normalmente não bate no amigo ou no patrão. Ele bebe, se motiva e
bate na sua esposa, porque acha que a mulher é propriedade dele e sua “empregada
conjugal”, podendo ele dispor dela quando quiser e corrigi-la se ela lhe “provocar” ou
não realizar “suas funções”, de preferência calada!
A literatura infantil, segundo Luz (2007), traz inúmeros exemplos como: “Bela
Adormecida, doce frágil, indefesa, ‘dorme’ enquanto o príncipe, forte e corajoso, vence
todos os perigos para chegar até lá. Cinderela (que antes do baile era a Gata Borralheira)
que depende do príncipe para romper com as agressões sofridas, indefesas, cria o
sonho do castelo encantado e da vida eternamente feliz. Afinal, somos educados
no simbolismo de princesas e príncipes encantados, castelos de sonhos e doce lar... Será
que não está na hora das Princesas se tornarem Belas Acordadas?
O papel de submissão dados às mulheres reflete na tomada de suas decisões, nas
relações afetivas, demonstrando muito mais dependência emocional do que financeira,
pois ficou demonstrado que as mulheres sempre trabalharam e muito. As de família
mais abastada estudavam sob muita pressão, mas, esclarecidas lutavam por seus
direitos, já as de classe pobre restava trabalhar para sobreviver.
No campo do direito onde se observa no texto das leis a evidente e taxativa a
discriminação contra as mulheres, a evolução é lenta e muitas vezes baseada no embate,
a exemplo do caminho árduo de conquista da Lei n.º 11.340/06 (Lei Maria da Penha) para
um maior reconhecimento da violência doméstica. Até 2001, o ordenamento civil, art.
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v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
129, permitia a anulação do casamento se houvesse o defloramento da mulher ignorado
pelo marido. Sofrendo ao longo do tempo algumas modificações, porém, com muita
resistência, demonstrando que nesta área o tradicionalismo e conservadorismo são muito
fortes e arraigados à cultura patriarcal. Somente em 2005 houve a descriminalização do
adultério, antes previsto como crime no ordenamento penal. Não se vê muito interesse do
legislador em atualizar ou agilizar as normas. Muito menos nos operadores do direito, que
tiveram uma base totalmente positivista e conservadora em ampliar seu ângulo de visão
para qualquer fato que não se enquadre no texto da lei, protegendo-se atrás do texto legal
como forma de se isentar? Ou porque estão distantes da realidade da vulnerabilidade
social que passam a maioria dos casos de violência denunciados. E com os profissionais da
saúde também não se observa o necessário comprometimento com a causa, notificando
os casos de violência e denunciando à rede de serviços o ocorrido, de modo a acolher a
vítima, ainda que seja pela sua conscientização e informação. A todos os profissionais e
áreas seria útil o conhecimento dos problemas e da constituição social da sociedade.
Muitos casos de femicídio (homicídio) conhecidos chegaram ao conhecimento
público, ressaltando que mulheres pobres são mortas e espancadas todos os dias
sem a necessária visibilidade, mas com a mesma banalidade antes vista: Ângela Diniz
(1979), Eliane de Gramond (1981), Sandra Gomide, Eloá Pimentel, Eliza Samudio, Mércia
Nakashima, Viviane dos Santos, Marias, Elaines, Jussaras, etc.
A OMS (2002) recomenda como medidas de prevenção à violência praticada
por parceiros íntimos: o treinamento, capacitação profissional, criação de serviços
especializados para atendimento às vítimas que envolva o acolhimento, apoio social e
psicológico, tratamento médico e abrigo seguro. Maior rigor das leis, com o afastamento
do agressor para contê-lo e possivelmente encaminhá-lo para programas de reeducação.
Intervenção dos demais serviços envolvidos, análise, pesquisa e cadastro com registros
estatísticos além de educação de base e integração em rede.
Souza (2006), fala sobre Políticas Púbicas enquanto área de estudo e sub-área da
Ciência Política com base na ação dos governos, analisando o que o Estado faz e como
faz, por pesquisadores independentes, ou seja: apesar de muitas definições, as Políticas
Públicas assumem uma visão de que o todo é mais importante, buscando ao mesmo
tempo acionar o governo e analisar esta ação, podendo propor mudanças, já que os
governos democráticos visam produzir resultados que influenciam na vida das pessoas.
Por isso tem caráter multidisciplinar com influência de outras áreas de conhecimento.
Vários segmentos se envolvem na formulação de políticas públicas, tais como
DOUTRINA . DIREITO PENAL
AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA
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grupos de interesse, movimentos sociais (sociedade civil) e governo.
O ciclo das políticas públicas compõe-se de: definição de agenda, identificação de
alternativas, avaliação das opções, seleção de opções, implementação e avaliação.
Para definição da agenda, os governos são definidos pela focalização de um
problema, da necessidade de fazer algo sobre ele e da visão que se tem dele, reforçado
ou não por grupos de interesse, com um objetivo, sendo também influenciar pelas
regras formais e informais que regem as instituições, pois a formulação de políticas
públicas passa pela disputa de poder e para recursos entre grupos sociais.
Em 1996 o governo brasileiro lançou o Programa Nacional de Direitos Humanos
implementando decisões da Conferência Mundial dos Direitos Humanos de Viena
de 1993, que define a violência contra as mulheres como violência contra os direitos
humanos; da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra as Mulheres e da IV Conferência Mundial da Mulher em Pequim de 1995,
destacando-se a criação de um Programa Nacional de Combate à Violência contra as
Mulheres, á criação de centros integrados de assistência a mulheres sob risco de violência
doméstica e sexual; às políticas dos governos estaduais e municipais para prevenção da
violência doméstica e sexual contra as mulheres, pesquisas sobre violência contra as
mulheres e sobre formas de proteção e promoção dos direitos da mulher, e ao projeto
que trata do estupro como crime contra a pessoa e sua liberdade sexual, e não mais
como crime contra os costumes.
Tal programa, por meio do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) de
1997 passou a viabilizar a celebração de convênios com estados e municípios para
implementação de casas-abrigo; elaborou a Norma Técnica sobre atendimento às
Mulheres Vítimas de Violência Sexual, com apoio de grupos feministas, em 1998;
criação da Secretaria dos Direitos das Mulheres (Sedim) que passou a ter categoria
ministerial como Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SPM) em 2003 e em
2004 através da Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, que apresentou
diretrizes para a política nacional baseada na igualdade de gênero, criou-se o Plano
Nacional de Políticas para as Mulheres, elaborado pela Secretaria Especial de Políticas
para as Mulheres (SPM) visando uma Política Nacional de Enfrentamento à Violência
contra as Mulheres que busca autonomia, igualdade, no mundo do trabalho, cidadania,
educação inclusiva e não sexista, saúde, direitos sexuais e reprodutivos através de
atendimento humanizado e de qualidade às mulheres, revisar a legislação e integrar os
serviços em redes locais, regionais e nacionais, envolvendo Delegacias das Mulheres,
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
Polícia Militar, Centros de Referência, Casa-Abrigo, Serviços de Saúde, IML, Defensoria
Pública e Núcleos Especializados (Leila Linhares Barsted, 2008 – Secretaria Especial de
Políticas para as Mulheres (SEPM-DF).
A SEPM-DF, também criou um número de denúncia, reclamações e sugestões
através da Central de Atendimento à Mulher – 180, serviço que realizou, de abril de 2006
a outubro de 2011, cerca de 2,2 milhões de atendimentos, sendo de janeiro a outubro
de 2011, relatados 58,5 mil casos de violência – 35,9 mil de violência física; 14 mil de
violência psicológica; 6,3 mil de violência moral; 959 de violência patrimonial;
1.014 de violência sexual; 264 de cárcere privado e 31 de tráfico de mulheres. No
Estado Conselho Estadual da Condição Feminina, através do Decreto n.º 20892/83
e Lei n.º 5447/86 e nos Municípios: Secretaria Especial para Participação e Parceria,
Coordenadoria da Mulher, no caso do município de São Paulo, criada em 1989,
regulamentada em 1992, com atribuições de formular, coordenar e acompanhar políticas
públicas para as mulheres, desenvolver projetos com foco no combate às desigualdades
e discriminações de gênero, na defesa e garantia dos direitos econômicos, sociais,
culturais e políticos das mulheres.
É através destas políticas que Centros e Núcleos especializados fazem o
atendimento de base, na linha de frente da problemática da violência contra a mulher,
através de equipe multidisciplinar, objetivando o rompimento do ciclo da violência,
o desenvolvimento emocional e social da mulher, baseados no fortalecimento, na
cidadania, autonomia, fonte de renda e trabalho, informação, medidas judiciais e
encaminhamentos diversos para a rede de serviços (saúde, educação, programas
sociais, centros de apoio ao trabalhador, defensoria pública, delegacias, campanhas e
atitudes afirmativas. Campanhas e atitudes pacíficas fazem parte dos 16 dias de Ativismo
e Combate à Violência contra a Mulher, pela Rede de Enfrentamento, iniciando-se todos
os anos pelo dia 25 de novembro, Dia Internacional de Luta Contra a Violência à Mulher,
instituída durante o 1º Encontro Feminista Latino Americano e do Caribe (Bogotá, 1.981),
data apoiada também pela Ordem dos Advogados do Brasil São Paulo, através de seu
presidente Luiz Flávio Borges D’Urso, que ressalta a realidade da dificuldade de denúncia
pela mulher observada pelo seu conflito pessoal em aceitar o fim do relacionamento, o
fim do amor e de ver o pai de seus filhos possivelmente preso. Fatores que, no entanto,
não tiram a importância da denúncia e a necessidade de ação, pois: “Não é preciso ser
mulher para saber da necessidade de se criar políticas públicas que cuidem de casos
de violência contra a mulher, não apenas do ponto de vista criminal, como também do
DOUTRINA . DIREITO PENAL
AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA
307
ponto de vista social, psicológico e físico.”
Nesta vertente, observa-se a urgente necessidade de ampliar a visão sobre o
tema, reformulando conceitos e assumindo o compromisso com o enfrentamento e a
prevenção da violência, afinal a “Violência Doméstica contra as Mulheres é um Problema
de todos Nós” (Campanha dos 16 Dias de Ativismo, Agende, 2008).
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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DIREITO PÚBLICO
A DESAPROPRIAÇÃO DA ÁGUA
JOSÉ AILTON GARCIA
Doutor e mestre em Direito Processual Civil pela FADISP e mestre em Direito Constitucional.
Professor titular nos programas de graduação e pós-graduação da Universidade Anhanguera de São Paulo.
Advogado, tendo expertise na área de desapropriação.
ANDRÉ LUIZ DOS SANTOS NAKAMURA
Mestre em Direito do Estado pela PUC-SP. Especialista em Direito Processual Civil pela Escola Superior da
Procuradoria do Estado. Procurador do Estado.
SUMÁRIO
1. Introdução; 2. O regime jurídico das águas no Brasil; 3. Desapropriação da água por necessidade ou utilidade
pública, ou por interesse social; 4. A justa e prévia indenização na desapropriação da água; 5. Conclusão;
6. Referências.
RESUMO
O trabalho foi elaborado tendo em vista a
evidente relevância da água, por tratar-se de um
bem essencial à existência humana individual
e coletiva. Seu regime jurídico é complexo e
intenso, tendo merecido tratamento cuidadoso e
detalhado. A identificação do titular do domínio
da água é realizada sob a ótica constitucional e
sob o prisma da legislação especial. Na segunda
parte, são tecidas considerações acerca do
processo judicial de desapropriação da água,
sob os fundamentos da necessidade ou utilidade
pública ou do interesse social, na hipótese do não
cumprimento da função social de tão valioso
bem. Por fim, versa-se sobre a justa e prévia
indenização na desapropriação da água.
PAVRAS-CHAVE
Agua; desapropriação; necessidade ou utilidade
pública; interesse social; justa indenização.
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314
1. INTRODUÇÃO
Este artigo, ao apresentar tema único e delimitado, pautado em investigação
original, examina de forma inédita, fundamentada e crítica, a desapropriação da água.
O tema foi escolhido, tendo em vista a evidente relevância de tão precioso bem,
essencial à existência humana individual e coletiva.
O discurso adota a forma científica procurando respeitar as exigências estabelecidas
pela Associação Brasileira de Normas Técnicas e aquelas preestabelecidas pelos Editores.
O objetivo é identificar e deslindar aspectos intrigantes relacionados ao regime
jurídico das águas brasileiras, o processo de desapropriação e a justa e prévia
indenização, que resulta do processo expropriatório.
O texto está estruturado em três partes.
Na parte inaugural, aborda-se o regime jurídico das águas a fim de elucidar o
seu domínio. Em seguida, estuda-se a desapropriação da água por necessidade ou
utilidade pública ou por interesse social com as ilações necessárias ao material legislativo
que disciplina o processo expropriatório, em geral. Por fim, investiga-se a instigante
questão da justa e prévia indenização na desapropriação, nela incluída a hipótese de
desapropriação das águas.
Tudo isso com base na legislação especial pertinente e no cenário da atual Carta
Política da nação brasileira.
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A DESAPROPRIAÇÃO DA ÁGUA
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2. O REGIME JURÍDICO DAS ÁGUAS NO BRASIL
Para tratar do regime jurídico 1-2-3 das águas no Brasil e identificar seu domínio
cumpre debruçar sobre o significado de água, bem como investigar a atual Carta
Política da nação brasileira e a legislação infraconstitucional especial.
1. O vocábulo água deriva do latim (aqua). Numa abordagem físico-química, trata-se
de um líquido inodoro, insípido e incolor. Suas moléculas são formadas por dois átomos
de hidrogênio e um de oxigênio (H2O). Tal substância química se encontra na superfície
terrestre nos estados líquido, sólido e gasoso4, possuindo grande poder de dissolução
de muitas outras substâncias químicas.5
Numa abordagem jurídica, tem-se que a água é um bem de domínio público. É um
“bem ambiental”6 de uso comum do povo e indispensável à sadia qualidade de vida. É
um recurso natural limitado e dotado de valor econômico.
1. Carlos Maximiliano assenta que a Hermenêutica e a Aplicação do Direito “precisam inquirir qual a norma que
melhor corresponde não só às exigências da justiça, como também às da utilidade social”. O hermeneuta deve
não apenas atender ao regime jurídico geral, mas principalmente ao especial. A exegese de um preceito de direito está
subordinada ao sistema como um todo, adotado a respeito de cada instituto (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e
aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 134).
2. A expressão regime jurídico é utilizada para indicar “o conjunto de normas jurídicas que dispõem sobre um certo
sujeito, bem ou atividade” (JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 11.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 127). Compreende desde a norma de origem constitucional até as disposições legais
que regulamentam o mesmo tema (SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 28.ed. Atualizadores: Nagib Slaibi Filho e
Glaucia Carvalho. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 1176).
3. Na definição clássica de Ulpiano, encontrada no Digesto (D.1.1.2), o regime jurídico pode ser público (jus publicum),
que diz respeito às coisas do Estado, ou privado (jus privatum), que se refere aos bens dos particulares. Extrai-se do
fragmento original: “Huius studii duae sunt positiones, publicum et privatum. publicum ius est quod ad statum rei romanae
spectat, privatum quod ad singulorum utilitatem: sunt enim quaedam publice utilia, quaedam privatim. publicum ius in sacris,
in sacerdotibus, in magistratibus constitit. privatum ius tripertitum est: collectum etenim est ex naturalibus praeceptis aut
gentium aut civilibus.” Tradução livre: Duas são as posições neste estudo: o público e o privado. É direito público o que
diz respeito ao estado da república, privado o que diz respeito à utilidade dos particulares, pois há coisas de utilidade
pública e outras de utilidade privada. O direito público consiste no ordenamento religioso, dos sacerdotes e dos
magistrados. O direito privado é tripartite, pois está composto dos preceitos naturais, dos povos e civis. (Nesse sentido:
LUMIA, Giuseppe. Elementos de teoria e ideologia do direito. Trad. Denise Agostinelli. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 56.)
4. Neste trabalho vamos nos referir apenas à forma líquida da água.
5. MILARÉ, Édis. Dicionário de direito ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 43. FREIRE, William; MARTINS,
Daniela Lara (coords.). Dicionário de direito ambiental e vocabulário técnico de meio ambiente. Belo Horizonte: Mineira, 2003.
6. FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 2.ed. ampl. São Paulo: Saraiva. 2001, p. 54.
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É elemento essencial à vida do ser humano, dos animais e vegetais, sendo necessário
que seja de boa qualidade e em quantidade suficiente para proporcionar o seu uso
múltiplo. Em situações de escassez, destina-se essencialmente a atender o consumo
humano e à dessedentação de animais.7
2. A atual Carta Política da nação brasileira fornece as bases fundamentais necessárias
à compreensão e identificação do domínio das águas brasileiras.
A Constituição Federal, no que concerne à propriedade das águas, classificou-as em
federais ou estaduais.
As águas denominadas federais são os lagos, rios e correntes de água localizados
em terrenos de domínio da União ou que banhem mais de um Estado, que sirvam de
limítrofes com outros países, ou, ainda, que se estendam a território estrangeiro (CF, art.
20, III).8
Por sua vez, as águas denominadas estaduais, que podem ser superficiais,
subterrâneas, fluentes, emergentes ou em depósito, são aquelas localizadas em áreas
de domínio dos Estados-membros (CF, art. 26, I).
Destaca-se, desde já, que a Carta Magna não tratou de águas particulares, tampouco
municipais.
Além da Constituição Federal, em caráter infraconstitucional, subsidiário e
regulamentar, a matéria relacionada ao domínio da água está disciplinada, também, na
legislação especial – Código das Águas (Decreto nº 24.643/1934), Lei nº 9.433/1997, e Lei
nº 9984/2000 – e na legislação ordinária – Código Civil (Lei nº 10.406/2002).
Nesse ponto, cabe trazer algumas ponderações acerca do significado, do alcance e
da aplicação da norma especial, também denominada singular.
Norberto Bobbio alerta que são possíveis muitas distinções entre as normas
7. Lei nº 9.4337/1997, art. 1º, inciso III.
8. Em sentido diverso, Celso Antonio Pacheco Fiorillo entende que os rios e lagos mencionados no inciso III do
art. 20 da Constituição Federal, por se tratarem de bens ambientais, “não são propriedade de qualquer dos entes
federados. [...] Na verdade, esta atua como simples administradora de um bem que pertence à coletividade,
devendo geri-lo sempre com a participação direta da sociedade” (FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de
direito ambiental brasileiro. 2.ed. ampl. São Paulo: Saraiva. 2001, p. 54). No mesmo sentido: MIRRA, Alvaro Luiz
Valery. Fundamentos do direito ambiental no Brasil. RT, 2706:8.
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jurídicas. Entre elas, a elementar, que se encontra em todos os tratados de lógica, é
aquela entre as proposições universais e singulares.9 Com base nisso, no que se refere à
amplitude ou ao alcance da norma, pode-se dizer que as leis classificam-se em gerais
ou especiais. Enquanto as gerais disciplinam um número indeterminado de pessoas
e atingem uma esfera de situações genéricas, as leis especiais regulam matérias com
critérios particulares, específicos. As leis singulares, também denominadas especiais
“não se opõem às normas gerais, antes, as completam”10.
Nesse diapasão, Dimitri Dimoulis alude que o princípio da especialidade possui
justificação lógica, pois, sendo o legislador racional, ao estabelecer de forma específica
um determinado assunto, revela que essa é a vontade concreta que deve prevalecer11.
Disso se extrai que, quando houver lei especial e lei genérica estabelecendo regras sobre
determinado assunto, prevalecerá aquela cujos preceitos forem dotados de maior grau
de especialidade (lex specialis derogat legi generali).
No mais, na doutrina clássica, Carlos Maximiliano consignou que as leis especiais
limitadoras do domínio são disposições de ordem pública, imperativas ou proibitivas e
que “interpretam-se estritamente”12.
Estas breves considerações acerca do alcance e significado da norma especial servem
para estabelecer que, enquanto as regras gerais disciplinam um número indeterminado
de pessoas e atingem uma esfera de situações genéricas, as leis especiais regulam
matérias com critérios particulares específicos. Havendo qualquer divergência entre
a norma geral e a especial, esta deve prevalecer. A regra dotada de maior grau de
especialidade deve prevalecer sobre a geral. É isto que se aplica às disposições sobre o
domínio da água, tal qual insculpido em nosso ordenamento jurídico.
Tendo em vista que o ponto de interesse nesta parte é tratar sobre o domínio das
águas, na seara da legislação especial, cabe mencionar, inicialmente, o Código das Águas
(Decreto nº 24.643/1934).
9. BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Trad. Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti. Apresentação:
Alaôr Caffé Alves. Bauru/SP: EDIPRO, 2001, p. 178. No me sentido: BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito.
Tradução: Denise Agostinetti; revisão da tradução: Silvana Cobucci Leite. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008,
p. 159-160.
10. VENOSA, Sílvio de Salvo. Introdução ao estudo do direito: primeiras linhas. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 98.
11. DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 234.
12. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 182.
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O vetusto Código das Águas classifica as águas no Brasil em públicas (art. 1º), comuns
(art. 7º) e particulares (art. 8º). As públicas, de uso comum ou dominicais, pertencem,
conforme estabelecido no artigo 29, do mesmo Código, à União (inciso I), aos Estados
(inciso II) ou aos Municípios (III). As denominadas particulares são as nascentes e todas
as águas situadas em terrenos privados, quando as mesmas não estiverem classificadas
entre as águas públicas ou as comuns (art. 8º).
Na doutrina, renomados autores, entre eles Hely Lopes Meirelles, ainda sustentam
a existência de águas particulares, que, portanto, pertencem aos seus proprietários1314 15
- . Não obstante, o mesmo autor entende que o fato de a Constituição não atribuir
qualquer domínio aos Municípios importa em derrogação da norma pertinente às
águas municipais16.
De nossa parte, entendemos que em razão de a Carta Magna não tratar
expressamente de águas particulares, tampouco municipais, exclui-se a pertencialidade
desses institutos ao ordenamento jurídico atual. Portanto, não há mais que se falar em
13. Para Hely Lopes Meirelles, as águas localizadas em caudais “particulares, pertencem aos respectivos
proprietários” (MEIRELLES, Hely Lopes; ALEIXO, Délcio Balestero; BURLE FILHO, José Emmanuel. Direito
administrativo brasileiro. 38.ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 621).
14. Também assim, com base no § 3º do art. 2º do Código de Águas, Celso Antônio Bandeira de Mello propugna
que “os lagos e lagoas situados e cercados por um só prédio particular e que não forem alimentados por correntes
públicas não são bens públicos” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 29.ed. rev. e
atual. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 929).
15. Da mesma forma, José dos Santos Carvalho Filho entende que “as águas formadas em áreas privadas – tanques,
pequenos açudes e lagos, locais de armazenamento de águas da chuva – são bens privados” (CARVALHO FILHO,
José dos Santos Direito administrativo. 23.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 1320).
16. Hely Lopes Meirelles, ao mencionar a partilha constitucional dos rios públicos, aduz que o fato de a Constituição
não atribuir qualquer domínio fluvial ou lacustre aos Municípios “já importava derrogação do art. 29 do Código
de Águas” (MEIRELLES, Hely Lopes; ALEIXO, Délcio Balestero; BURLE FILHO, José Emmanuel. Direito administrativo
brasileiro. 38.ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 620).
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águas particulares17- 18-19. Além disso, deve-se aplicar a legislação especial, mormente a
Lei nº 9.433/1997 e a Lei nº 9.984/2000.
Nesse diapasão, cabe mencionar um julgado de 2007, no qual a 2ª Turma do Superior
Tribunal de Justiça, com relatoria e voto da lavra do Ministro João Otávio de Noronha,
integrada pelos demais Ministros Herman Benjamim, Castro Meira, Humberto Martins,
e Eliana Calmon, por unanimidade, ao dar parcial provimento ao recurso, fez constar, in
verbis:
ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO. TERRENOS SITUADOS NA MARGEM
DOS RIOS. TERRENOS MARGINAIS E PRAIAS FLUVIAIS. DOMÍNIO PARTICULAR.
IMPOSSIBILIDADE. INDENIZAÇÃO. INVIABILIDADE.
1. Código de Águas (Decreto nº 24.643/1934) deve ser interpretado à luz do
sistema da Constituição Federal de 1988 e da Lei nº 9.433/1997 (Lei da Política
Nacional de Recursos Hídricos), que só admitem duas modalidades de domínio
sobre os recursos hídricos – águas federais e águas estaduais. [...]20.
No mesmo sentido, em precedente de 2011, a mesma 2ª Turma do Superior Tribunal
de Justiça, dessa vez com relatoria e voto da lavra do Ministro Mauro Campbell Marques,
acompanhado unanimemente pelos Ministros Cesar Asfor Rocha, Castro Meira,
Humberto Martins e Herman Benjamim, em sede de Recurso Especial que questionava
uma desapropriação indireta, fez constar no acórdão “que a Constituição Federal aboliu
expressamente a dominialidade privada dos cursos de água”21.
17. Também José Carlos de Moraes Salles sustenta que não há mais que se falar águas particulares, “porque estas
não mais existem” (SALLES, José Carlos de Moraes. A Desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência. 6.ed. rev.
atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 160).
18. Da mesma forma, Maria Sylvia Zanella Di Pietro sustenta que diante da atual Constituição, “não se pode mais
falar em águas particulares, o que é confirmado pela Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997” (DI PIETRO, Maria Sylvia
Zanella. Direito administrativo. 25.ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 785).
19. Na mesma linha, Marçal Justen Filho aduz que “A Constituição não deixou espaço para a propriedade privada
ou municipal de águas” (JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 11.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 1228).
20. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – STJ. 2a Turma (decisão unânime). REsp no 508.377-MS (2003/0011452-8).
Rel. Min. João Otávio de Noronha, 23.10.2007.
21. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – STJ. 2a Turma (decisão unânime). REsp no 1.152.028-MG (2009/00000382). Rel. Min. Mauro Campbell Marques, 17.03.2011.
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Ainda investigando a atual Carta Política da nação brasileira, no que concerne ao
domínio da água, tem-se no artigo 21, inciso XIX, que cabe à União “instituir sistema
nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de
direitos de seu uso”. De fato, tal dispositivo está regulamentado em lei especial – Lei nº
9.433/1997 – que, ao estabelecer a Política Nacional de Recursos Hídricos, deu origem
ao Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Esta norma revela-se
imprescindível ao presente estudo, notadamente no que tange ao domínio da água.
Os fundamentos da lei que regulamenta a Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei
nº 9.433/1997) estão dispostos no art. 1º e devem ser interpretados estritamente. In verbis:
“a água é um bem de domínio público” (inciso I). “A água é um recurso natural limitado,
dotado de valor econômico” (inciso II). “Em situações de escassez, o uso prioritário dos
recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais” (inciso III). “A
gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas”
(inciso IV). “A bacia hidrográfica é a unidade territorial para implementação da Política
Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de
Recursos Hídricos” (inciso V). “A gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e
contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades (inciso VI).
Assim, a lei especial que trata dos recursos hídricos (Lei nº 9.433/1997), estabelece
que a água é um bem de domínio público (art. 1º).
Além de tratar das questões relacionadas ao domínio da água, a Lei nº 9.433/1997
cuidou também das hipóteses de uso dos recursos hídricos sujeitas a outorga pelo Poder
Público, (art. 12, § 1º). São elas: o uso para a satisfação das necessidades de pequenos
núcleos populacionais, distribuídos no meio rural (inciso I)22; as derivações, captações
e lançamentos considerados insignificantes (inciso II) e as acumulações de volumes de
água consideradas insignificantes (inciso III). E frisou: “a outorga não implica a alienação
parcial das águas, que são inalienáveis, mas o simples direito de seu uso” (art. 18).
Na mesma seara da especialidade legiferante, com a finalidade de se implementar a
Política Nacional de Recursos Hídricos, foi sancionada a Lei nº 9.984/2000, que dispõe
sobre a criação da Agência Nacional de Águas – ANA, entidade federal que coordena o
Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.
No texto, encontra-se tão somente a previsão de domínio dos corpos de águas pela
22. Nesse sentido, STJ, REsp 1317668 / RJ, Rel. Min. OG Fernandes, 24/03/2015.
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União, Estados ou Distrito Federal (art. 7º, § 2º), sem, em nenhum ponto haver referência
ao domínio particular das águas.
Por outro lado, a legislação ordinária – Código Civil de 2002 –, adotando concepção
individualista, ao tratar sobre o direito à utilização das águas, emprega equivocadamente
a expressão “proprietário de nascente” (art. 1.290). Entende-se tratar de sentido
impróprio, pois a conotação apropriada é a de “proprietário do solo onde se encontra
nascente de água”23-24.
Assim, à luz do teor estabelecido na atual Carta Magna (CF, art. 20, III; art. 26, I e art.
21, IXX) e na legislação especial que deve ser aplicada ao tema (Lei nº 9.433/1997 e Lei nº
9.984/2000), entende-se que o domínio das águas brasileiras é da União e dos Estadosmembros. Afasta-se, nesse ponto, o vetusto Código das Águas (Decreto nº 24.643/1934).
Da mesma forma, não se aplica, in casu, o teor individualista mencionado no Código
Civil de 2002. Com isso, pode-se dizer que o regime jurídico, ou seja, o conjunto de
normas jurídicas aplicáveis às águas brasileiras é de direito público25. Ademais, não se
pode mais falar em domínio muni ou domínio particular da água. O particular não mais
detém o domínio desse bem; apenas aufere o direito ao seu uso.
3. Esclareceu-se que o regime jurídico aplicável ás águas no Brasil é de direito público.
Também ficou esclarecido que o domínio das águas no Brasil é da União, dos seus
Estados-membros ou do Distrito Federal. Contudo, as águas não integram o patrimônio
privado26 de tais entes federativos, mas o seu patrimônio público.
Pode-se definir patrimônio público como sendo o conjunto de bens e direitos de
valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico, a moralidade administrativa, o
23. NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado. 7. ed. rev. ampl. e atual. até 25 ago.
2009. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 996, nota 2 ao art. 1.290.
24. Da mesma forma, Francisco Eduardo Loureiro, ao tratar o tema, utiliza acertadamente a expressão “o dono
ou possuidor do prédio onde nascem ou caem” (LOUREIRO, Francisco Eduardo. Direito das coisas. In: PELUSO,
Cezar (Coordenador). Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Lei n. 10.406, de 10.01.2002. 9.ed. rev. e atual.
Barueri, SP: Manole, 2015, p. 1221).
25. Marçal Justen Filho, na mesma linha, assevera que o regime jurídico aplicável aos recursos hídricos no Brasil
é “um regime jurídico de direito público” (JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 11.ed. rev. atual. e
ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 1225).
26. Os bens que integram o patrimônio privado dos entes federativos são também chamados dominicais – são
os próprios do Estado como objeto de direito real, não aplicados ao uso comum (BANDEIRA DE MELLO, Celso
Antônio. Curso de direito administrativo. 29.ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 930).
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meio ambiente e o patrimônio histórico e cultural.27 As águas integram o meio ambiente
e são inalienáveis (Lei 9.433/1997, art. 18).
O patrimônio público é também denominado bem público pertencente às Pessoas
Jurídicas de Direito Público, nesse caso, a União e os Estados-membros. “O conjunto de
bens públicos forma ‘domínio público’”28, que inclui tanto os bens imóveis como móveis
e cujo direito de propriedade se exerce “sobre todas as coisas de interesse público”29.
Nesse diapasão, a água é “um bem de domínio público, recurso natural limitado e
dotado de valor econômico”30. Inclui-se no complexo de direitos sobre bens materiais
corpóreos, oponível erga omnes, do gênero propriedade, pertencente ao patrimônio
público da entidade jurídica de direito público (União/Estados-membros) que se
destinam ao uso comum do povo31.
Trata-se de um bem de domínio público, que integra o patrimônio público da União,
dos Estados-membros e do Distrito Federal. Como qualquer propriedade deve cumprir
sua função social.
4. Cabe aqui tecer breves considerações acerca do instituto da propriedade, tal como
garantido na Constituição Federal, (CF, art. 5º, XXII). Trata-se do direito de, nos exatos
limites normativos, “usar, gozar e dispor de um bem, corpóreo ou incorpóreo, bem
como de reivindicá-lo de quem injustamente o detenha”32.
27. A definição ora utilizada encontra fundamento no § 1º do art. 1º da Lei nº 4.717/65, c/c o inciso LXXIII do art. 5º
da Constituição Federal. Em sentido idêntico: MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio
ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 25. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo:
Saraiva, 2012, p. 191.
28. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 29.ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros,
2012, p. 929.
29. O conceito de domínio público não é uniforme na doutrina. Hely Lopes Meirelles ao tratar o tema, conceitua
“o domínio público em sentido amplo e em seus desdobramentos político (domínio eminente) e jurídico (domínio
patrimonial); (MEIRELLES, Hely Lopes; ALEIXO, Délcio Balestero; BURLE FILHO, José Emmanuel. Direito administrativo
brasileiro. 38.ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 573-574).
30. MEIRELLES, Hely Lopes; ALEIXO, Délcio Balestero; BURLE FILHO, José Emmanuel. Direito administrativo brasileiro.
38.ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 618.
31. Ainda, no que concerne à definição de domínio público: SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 28.ed.
Atualizadores: Nagib Slaibi Filho e Glaucia Carvalho. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 504; GUIMARÃES, Deocleciano
Torrieri. Dicionário técnico jurídico. 8.ed. São Paulo: Rideel, 2006, p. 248.
32. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. 22.ed. São Paulo: Saraiva, 2007. vol. 4, p. 126.
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Não obstante, deve-se frisar que toda propriedade “atenderá a sua função social”33
(CF, art. 5º, XXIII), segundo a qual o direito de propriedade será “condicionado ao
bem-estar social”34. Trata-se de um “fundamento político e jurídico” 35 que justifica a
intervenção do Estado na propriedade. A função social da propriedade diz respeito à
própria estrutura do direito de propriedade.
O núcleo fundamental do conceito de preenchimento da função social da
propriedade “é dado pela sua eficácia atual quanto à geração de riqueza”36. Destarte, a
Constituição Federal relativizou o significado de propriedade37.
Desta forma, a teor da Constituição Federal, a propriedade tem como princípiovetor o cumprimento de sua função social na extensão de todo o território nacional.
Em caso de descumprimento desse princípio, a Carta autoriza, excepcionalmente, sua
expropriação (art. 5º, XXIV). O Texto também determina que haverá uma justa e prévia
indenização38, a qual deve ser feita nos moldes da lei que regulamenta o procedimento
para desapropriação – Decreto-Lei nº 3.365/41 e Lei nº 4.132/62 –, sob o fundamento da
necessidade ou utilidade pública, ou do interesse social (art. 5º, XXIV).
Portanto, com base na Constituição Federal e na legislação especial pertinente, pode
se afirmar que o regime jurídico aplicável às águas no Brasil é de direito público. As águas
são de domínio público e integram o patrimônio público da União, dos Estados-membros
e do Distrito Federal. Como qualquer propriedade deve cumprir sua função social. Em
caso de não cumprimento da sua função social, são passíveis de desapropriação pela
União, frente aos Estados-membros sob o fundamento da necessidade ou utilidade
pública, ou do interesse social, cujo procedimento para sua desapropriação será tratado
na próxima parte deste artigo.
33. A Constituição Federal não define o que seja “função social”, mas fornece, em diversas passagens, parâmetros
que permitem inferir se a propriedade está ou não a cumprir sua destinação social. Nesse mesmo sentido:
MEDINA, José Miguel Garcia. Constituição Federal comentada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 83.
34. NOHARA, Irene Patrícia. Direito administrativo. 3.ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 715.
35. CARVALHO FILHO, José dos Santos Direito administrativo. 23.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 845.
36. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Celso Bastos, 2002, p. 366.
37. No mesmo sentido: SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 35 ed. São Paulo: Malheiros,
2012, p. 281.
38. NAKAMURA, André Luiz dos Santos. A justa e prévia indenização na desapropriação. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2013.
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3. DESAPROPRIAÇÃO DA ÁGUA POR NECESSIDADE OU
UTILIDADE PÚBLICA, OU POR INTERESSE SOCIAL
Nesta sessão será abordada a desapropriação da água por necessidade ou utilidade
pública, ou por interesse social.
A principal norma que regula a desapropriação é o Decreto-Lei nº 3.365/41 – Lei de
desapropriação por utilidade pública, que merecerá guarida destacada nesta parte do
trabalho, sem se descuidar, entretanto, das ilações necessárias à Lei nº 4.132/62 – Lei de
desapropriação por interesse social.39
1. Inicialmente, cabe tecer considerações sobre os fundamentos denominados
necessidade ou utilidade pública, ou interesse social –, que norteiam o processo judicial
expropriatório.
De fato, a justificativa da desapropriação é a “existência de um interesse público
concretamente verificado, configurado pelos fundamentos utilidade/necessidade
pública ou interesse social”40. Tais permissivos constitucionais retiram o domínio sobre
determinado bem. A existência de qualquer um desses pressupostos permite que o
interesse coletivo prevaleça, despojando o titular do direito fundamental de propriedade.
Não é a obtenção de lucro, pelo Poder Expropriante, que justifica a desapropriação, mas
sim, a presença da necessidade ou utilidade pública, ou do interesse social.
Na desapropriação por necessidade pública, a Administração Pública enfrenta
“situações de emergência”41, estando diante de “um problema inadiável e premente”42,
decorrente de situações “anormais e que obrigam o Estado inevitavelmente a
transferir bens de terceiros para o seu domínio e uso imediato”43, ou seja, mediante a
desapropriação.
39. GARCIA, José Ailton. Desapropriação: comentários ao Decreto-Lei nº 3.365/41 e à Lei nº 4.132/62. São Paulo: Atlas, 2015.
40. ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de direito administrativo. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 1080.
41. TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 470.
42. SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de direito constitucional. 6.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 866.
43. SANTOS, Adair Loredo Santos; INGLESI, Carlos Eduardo. Direito administrativo: interpretação doutrinária,
legislação prática, jurisprudência comentada. São Paulo: Primeira Impressão, 2008, p. 114.
DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO
A DESAPROPRIAÇÃO DA ÁGUA
325
Vislumbram-se de forma exaustiva44, as hipóteses práticas de necessidade pública
nas quatro primeiras alíneas do art. 5º do Decreto-Lei nº 3.365/41: por exemplo, a expropriação de determinada área particular para realizações de obras de contenção de enchentes. Nesse caso, os bens que podem ser desapropriados são os imóveis e os móveis.
Porém, como não há no Decreto-Lei nº 3.365/41 uma rubrica específica que contenha as
hipóteses casuísticas da necessidade pública, estas estão incluídas no rol das hipóteses
de utilidade pública (art. 5º).
Na desapropriação por utilidade pública, propriamente dita, o Poder Público
expropriante enfrenta “situações normais”45, previsíveis, e, para atendê-las, transfere
para o seu domínio e uso bens de terceiros. Em regra, “não exige a transferência urgente
de bens para o domínio estatal”46, todavia, “ao ver do Estado, tal ato expropriatório
consulta ao interesse público”47.
A utilidade pública está evidenciada quando a incorporação da propriedade privada
ao domínio estatal atende ao interesse coletivo, que, encampado pelo poder político,
“converte-se em interesse público a ser satisfeito pelo regime da despesa pública”48.
Essa modalidade expropriativa tem cabimento quando a expropriação, “embora não
seja imprescindível”49, é conveniente para o Poder Público.
As hipóteses capazes de sustentar a desapropriação com base na utilidade pública
estão elencadas numerus clausus, ou seja, de forma taxativa50 -51 e exaustiva, no art. 5º e
44. Em sentido diverso, José Carlos de Moraes Salles entende que ocorrendo uma causa de necessidade ou utilidade pública,
ou de interesse social, caberá a expropriação, ainda que não prevista em lei, porque “a Constituição Federal em vigor não
determinou que os casos de desapropriação fossem fixados em lei” (SALLES, José Carlos de Moraes. A Desapropriação à
luz da doutrina e da jurisprudência. 6.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 86).
45. SANTOS, Adair Loredo Santos; INGLESI, Carlos Eduardo. Direito administrativo: interpretação doutrinária,
legislação prática, jurisprudência comentada. São Paulo: Primeira Impressão, 2008, p. 114.
46. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 471.
47. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 7. ed. rev. atual. e ampl. São
Paulo: RT, 2011, p. 35.
48. HARADA, Kiyoshi. Desapropriação: doutrina e prática. 9.ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 18.
49. TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 470.
50. ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de direito administrativo. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 1073.
51. De modo diverso, José Carlos de Moraes Salles afirma que a “referida enumeração é meramente exemplificativa”
(SALLES, José Carlos de Moraes. A Desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência. 5.ed. rev., atu. e ampl. São Paulo:
326
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
seus incisos do Decreto-Lei nº 3.365/41.
Entende-se que as possiblidades de desapropriação da água, com apoio nos
fundamentos da necessidade ou da utilidade pública, estão contempladas nas diversas
alíneas do art. 5º do Decreto-Lei nº 3.365/41, v.g., c) socorro público em caso de
calamidade; d) salubridade pública; e) criação e melhoramento de centros de população,
seu abastecimento regular de meios de subsistência; e f) aproveitamento das águas.
As hipóteses de desapropriação por interesse social estão elencadas na Lei nº
4.132/62, a qual fornece um rol taxativo52 das circunstâncias consideradas de interesse
social, e que, portanto, servem de sustentação para a declaração de interesse social. O
referido diploma prevê expressamente a desapropriação destinada a proteção do solo
e a preservação de cursos e mananciais de água e de reservas florestais (art. 2º, VII).
Além disso, no artigo 4º da Lei nº 4132/1962, encontra-se a previsão de que se deve dar
aos bens desapropriados a sua destinação social prevista. Enquanto o vocábulo destinação
corresponde à escolha da finalidade dada a um determinado bem, ou seja, “a aplicação da
coisa a um certo fim”53, o adjetivo social indica o que tem em vista a sociedade, em suas
estruturas54. Então, pode-se dizer que a destinação social referida na Lei da Desapropriação
por Interesse Social significa a exigência de que o bem expropriado seja aplicado em
melhor aproveitamento da sociedade. Somente aquele que estiver em condições de dar
ao bem expropriado a destinação social prevista, ou seja, a correta e melhor aplicação do
bem em benefício da sociedade, receberá, o bem objeto da desapropriação.
2. Já se afirmou que o procedimento judicial expropriatório encontra previsão,
substancialmente, no Decreto-Lei nº 3.365/41 – Lei de desapropriação por utilidade
Revista dos Tribunais, 2006, p.96). De fato, outrora a enumeração era exemplificativa, conforme verifica-se no texto do já
revogado Decreto-Lei nº 1.283/1939, que dizia: “enumeração na lei é apenas exemplificativa” (art. 2º).
52. Em sentido contrário, José Carlos de Moraes Salles entende que ocorrendo uma causa de necessidade ou
utilidade pública, ou de interesse social, caberá a expropriação, ainda que não prevista em lei porque “a Constituição
Federal em vigor não determinou que os casos de desapropriação fossem fixados em lei” (SALLES, José Carlos de
Moraes. A Desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência. 6.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2009, p. 86).
53. DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 2, p. 113.
54.ABBAGNANO, Nicola (1901-). Dicionário de filosofia. Tradução da 1ª edição brasileira: Alfredo Bosi. Revisão
da tradução e tradução dos novos textos: Ivone Castilho Benedetti. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000,
p. 912.
DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO
A DESAPROPRIAÇÃO DA ÁGUA
327
pública e, em menor extensão, na Lei nº 4.132/62 – Lei de desapropriação por interesse
social. O Decreto-Lei nº 3.365/41, na sua técnica legislativa própria55, regulamenta o
processo judicial da ação de desapropriação.
O Decreto-Lei nº 3.365/41 estabelece que mediante “declaração de utilidade
pública”, todos os bens poderão ser desapropriados (art. 2º).
A declaração de utilidade pública é o ato administrativo emanado pela chefia do
Poder Executivo que exterioriza a vontade da Administração Pública de deflagrar o
procedimento expropriatório, ou seja, de “exercer o poder de desapropriar”56. Tratase de um ato administrativo exclusivo do Poder Executivo Federal, que, ao reconhecer
a existência do interesse público, com apoio constitucional e legal, determina a
obtenção de um bem específico através da desapropriação. A “conduta declaratória do
interesse público, lídimo ato administrativo, encerra a primeira fase do procedimento
expropriatório”57.
Uma vez verificada a hipótese de utilidade pública, será editada a competente
declaração de utilidade pública, a qual “individuará o bem a ser desapropriado pelo
Poder Público”58. O decreto declaratório da necessidade ou da utilidade pública ou do
interesse social, deve necessariamente especificar a finalidade da desapropriação, sob
pena de nulidade59.
Porém, como já tratado no capítulo anterior deste trabalho, somente a União e os
Estados-membros detêm o domínio da água. Mas, nesse caso, o único ente federativo
que possui poder para desapropriar é a União, frente aos Estados-membros. Trata-se
de uma desapropriação política, prevista no § 2º do art. 2º do Decreto-Lei nº 3.365/41.
A desapropriação política confere às pessoas políticas de Direito Público interno,
de grau superior, a competência para desapropriar bens das pessoas políticas de grau
55. Atualmente, a Lei Complementar nº 95/98 dispõe sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das
leis. Essa conquista técnica legislativa resulta do estabelecido pelo legislador constitucional no parágrafo único
do art. 59 da Constituição Federal.
56. HARADA, Kiyoshi. Desapropriação: doutrina e prática. 9.ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 67.
57. NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. Desapropriação para fins de reforma agrária. 3.ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 118.
58.SALLES, José Carlos de Moraes. A Desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência. 5.ed. rev., atu. e ampl. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 101.
59. Nesse sentido: STJ-RDA 200/190; JTJ 206/44; JTA 61/219.
328
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
inferior;60 - 61 levando-se em conta que o poder expropriante “se circunscreve ao território
da entidade que o detêm”62.
Na parte formal ou adjetiva, da Lei sobre desapropriações por utilidade pública estão
agrupadas as “regras que definem os procedimentos a serem cumpridos no andamento
das questões forenses”63. Tais normas processuais se enquadram nas disposições de
ordem pública64. As questões relacionadas à competência, ao juízo privativo e ao foro
da situação dos bens, estão no art. 11. A norma aponta os juízes que podem conhecer
os processos de desapropriação no art. 12. Os requisitos específicos da petição inicial
encontram-se descritos no art. 13. No art. 14, encontra-se a questão relacionada à
formação dos autos suplementares. A designação de perito e assistente técnico, no art.
15 e parágrafo único. As questões relacionadas à urgência, imissão provisória da posse e
depósito inicial da quantia arbitrada judicialmente, estão no art. 15, parágrafos e alíneas.
Em razão da Medida Provisória nº 2-183-56, de 2001, foi incluído o art. 15-A e seus
quatro parágrafos, a fim de abarcar a modalidade de desapropriação por necessidade
ou utilidade pública ou por interesse social, e a regulação da incidência de juros
compensatórios de até seis por cento ao ano, a contar da imissão prévia da posse. Parte
desse dispositivo foi objeto da ADIN nº 2.332-2, cuja liminar foi deferida parcialmente,
sendo que a ação ainda aguarda julgamento definitivo de mérito. A mesma Medida
Provisória nº 2-183-56, de 2001 adicionou, também, o art. 15-B, para disciplinar o
pagamento dos juros moratórios.
As questões relacionadas à citação encontram-se nos arts. 16 a 18. O art. 19 prevê a
mudança de rito especial para o ordinário, após a citação. O art. 20 prevê a matéria sobre
a qual pode versar a contestação. Em razão da importância do feito expropriatório, a
instância não se interrompe (art. 21). Há previsão de acordo e sua homologação por
sentença (art. 22). As questões relacionadas à apresentação do laudo pericial, sua
elaboração e pagamento de custas no art. 23 e parágrafos. A audiência de instrução
60. SANTOS, Adair Loredo Santos; INGLESI, Carlos Eduardo. Direito administrativo: interpretação doutrinária,
legislação prática, jurisprudência comentada. São Paulo: Primeira Impressão, 2008, p. 120.
61. SALLES, José Carlos de Moraes. A Desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência. 5.ed. rev., atu. e ampl. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 131.
62. GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 14.ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 855.
63. NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 142.
64. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 176.
DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO
A DESAPROPRIAÇÃO DA ÁGUA
329
e julgamento segue o rito do Código de Processo Civil (art. 24). A sentença que fixar a
indenização (art. 24) deverá destacar o principal e os acessórios (art. 25) e, não incluirá
os direitos de terceiro contra o expropriado (art. 27).
A Medida Provisória nº 2-183-56, de 2001 incluiu, ainda, o § 1º ao art. 27 para
estabelecer a fixação de meio e cinco por cento a título de honorários advocatícios,
não podendo ultrapassar a R$ 151.000,00 (cento e cinquenta e um mil reais). A mesma
ADIN nº 2.332-2, proposta pelo Conselho Federal da OAB, questionou esse dispositivo,
tendo o STF, em decisão plenária da liminar, por maioria de votos, deferido em parte a
medida liminar para suspender a eficácia da expressão “não podendo os honorários
ultrapassar R$ 151.000,00 (cento e cinquenta e um mil reais)”. A decisão final da ação
direta de inconstitucionalidade ainda aguarda julgamento.
O § 2º do art. 27 determina, em conflito com outra norma especial, que a transmissão
da propriedade, decorrente de desapropriação amigável não ficará sujeita ao imposto
de lucro imobiliário. O caput do art. 28 regulamenta os efeitos em que a apelação será
recebida o parágrafo único do mesmo artigo impõe o duplo grau de jurisdição à sentença
que condenar a Fazenda Pública em quantia superior ao dobro do oferecido inicialmente.
Por fim, encontram-se as questões relacionadas à expressão valor de alçada (art. 29, § 2º);
à consignação em pagamento, mandado de imissão de posse e transcrição no registro de
imóveis (art. 29) e a regulação quanto ao pagamento de custas processuais (art. 30).
Portanto, como vimos, a desapropriação da água sob os fundamentos da
necessidade ou utilidade pública, ou do interesse social está amparada na Constituição
Federal, no Decreto-Lei nº 3.365/41 – Lei de desapropriação por utilidade pública e na
Lei nº 4.132/62 – Lei de desapropriação por interesse social. O pressuposto fundamental
da expropriação é a existência de um interesse público concretamente verificado. A
existência de qualquer um dos permissivos constitucionais e legais legitima que o
interesse público prevaleça, despojando o titular do domínio da água.
Assim, tendo-se em conta que o domínio das águas brasileiras é da União e dos
Estados-membros, somente a União poderá ingressar com a desapropriação política,
frente a qualquer Estado-membro que não esteja promovendo a destinação social
prevista para a água. É de rigor que as águas brasileiras sejam aplicadas no melhor
aproveitamento possível, em benefício da sociedade.
Na sessão seguinte será abordado o tema relacionado à justa e prévia indenização
na hipótese de desapropriação da água.
330
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
4. A JUSTA E PRÉVIA INDENIZAÇÃO65 NA
DESAPROPRIAÇÃO DA ÁGUA
A justa indenização é um ponto central na desapropriação da água. Sem justa
indenização há, na verdade, confisco. Conforme lição de Sylvio Pereira, “a indenização
ou é justa ou não é indenização66”.
Se a indenização não for justa, haverá uma ofensa grave ao princípio da
igualdade 67, visto que, nesse caso, o interesse da coletividade seria satisfeito com
o sacrifício somente de uma pessoa. A indenização justa é aquela que impede o
empobrecimento e o enriquecimento do expropriado. O conceito de justa indenização
deve representar uma retribuição que permite a reparação integral, traduzida
exatamente na possibilidade imediata em que se encontra o expropriado, quando
receba a indenização, de adquirir um bem do mesmo valor daquele que foi transferido
coativamente ao Estado 68 .
Justa indenização 69 é a indenização que permite ao expropriado adquirir um bem
da mesma qualidade e/ou quantidade que o perdido para o Estado pelo processo de
desapropriação70 . A justa indenização, em regra, corresponde ao valor que o particular
obteria se o bem fosse vendido no mercado71, no momento em que é decretada a
65. Sobre a justa indenização, vide: NAKAMURA, André Luiz dos Santos. A justa e prévia indenização na
desapropriação. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2013.
66. PEREIRA, Sylvio. O poder de desapropriar. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco Filho, 1948, p. 31
67. FERRAZ, Sérgio. Justa indenização na desapropriação. In: Revista dos Tribunais, volume 502, agosto de 1977, p.
247-255.
68. “A justa indenização é aquela que, naquele momento do mercado em que a indenização é colocada na mão
do expropriado, permite que, se ele desejar, possa adquirir outro imóvel da mesma natureza, características e
atributos daquele que lhe fora subtraído por imposição” (FERRAZ, Sérgio. Justa indenização na desapropriação.
In: Revista dos Tribunais, volume 502, agosto de 1977, p. 247-255).
69. “Justa indenização deverá ser a indenização, isto é, consistirá em quantia equivalente ao preço que a coisa
alcançaria caso tivesse sido objeto de contrato normal (e não compulsório) de compra e venda” (CRETELLA
JUNIOR, José. Tratado geral da desapropriação. Rio de Janeiro: Forense, 1980, vol. 2, p.123).
70. “O papel da indenização é, a nosso ver, fazer entrar no patrimônio do expropriado um valor exatamente
equivalente ao que apresentado, pelo bem de que foi despojado” (FERRAZ, Sérgio. A justa indenização na
desapropriação. In: Revista dos Tribunais, 1978, p. 13).
71. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 6.ed., 2010, p. 639.
DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO
A DESAPROPRIAÇÃO DA ÁGUA
331
utilidade pública ou o interesse social, não abrangendo, assim, a valorização decorrente
da própria desapropriação72 .
A indenização somente será justa se por ela se puder deixar o expropriado na situação
econômica que desfrutava antes da expropriação73. O critério de justiça há de ser encarado
considerando o bem e o que ele representa na economia do proprietário74 .
A indenização na desapropriação é decorrente de um ato lícito, exercido no exercício
regular de um direito que decorre da Constituição Federal; assim, não se confunde com
a reparação pelo ato ilícito75. Indenização é a compensação de um prejuízo76 . Este é a
diminuição do patrimônio ocasionada por ato de terceiro. A desapropriação é a causa de
diminuição do patrimônio do expropriado. A indenização é a reposição do patrimônio do
expropriado do prejuízo causado pelo expropriante77.
Não somente o valor do bem entra na indenização. Esta compreende a recomposição
de todos os prejuízos atuais e imediatos decorrentes da desapropriação e margem de lucros
que a coisa expropriada efetivamente já assegurava projetar no futuro78 . Entretanto, não
72. “Outro aspecto dessa reflexão que também deve ser considerado é de que a indexação deve ser calculada
com base no valor do imóvel no momento da declaração da intenção do poder público, excluindo assim
quaisquer incrementos de valor posteriores à declaração da utilidade/necessidade pública ou de interesse social
para fins de desapropriação” (FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia. Revisitando o instituto da desapropriação:
uma agenda de temas para reflexão. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Coord.). Revisitando o instituto da
desapropriação. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 21-37).
73. “Ou seja, a indenização havida como justa, pela sentença, segue-se que o quantum respectivo não pode
sofrer diminuição, evitando-se que por esse motivo e na medida dessa diminuição, viesse a indenização deixar de ser
justa” (ALVIM, Arruda. Desapropriação e valor no direito e na jurisprudência. In: Revista de Direito Administrativo nº 102,
outubro/dezembro 1970, p. 42-70).
74. FAGUNDES, M. Seabra. Da desapropriação no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1949, p. 343.
75. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967. Tomo V. São Paulo: RT, 1968, p. 437.
76. “O pagamento de importância inferior ao preço da cousa desapropriada jamais se poderia chamar de
indenização, eis que ela deve compensar, por inteiro, o prejuízo sofrido pelo expropriado” (PEREIRA, Sylvio. O
poder de desapropriar. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco filho, 1948, p. 31).
77. CRETELLA JUNIOR, José. Tratado geral da desapropriação. Rio de Janeiro: Forense, 1980, vol. 2, p.118/119.
78. FERRAZ, Sérgio. A justa indenização na desapropriação. São Paulo: RT, 1978, p. 19.
332
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
se admite o pagamento de lucros presumidos79, hipotéticos e de afeição80 . A garantia da
propriedade compreende somente a existência de valores patrimoniais concretamente
existentes, não abrangendo oportunidade de aquisição, possibilidades de ganho e esperança
de lucro81. Segundo Seabra Fagundes82, “os lucros cessantes devem ser sempre indenizados...
mas para tal, é preciso que sejam efetivos e não prováveis, problemáticos, apenas possíveis”.
Na desapropriação, não pode haver o enriquecimento sem causa. Este consiste na
obtenção de uma vantagem de caráter patrimonial sem qualquer causa justa para tanto. O
enriquecimento não se verifica apenas mediante um aumento no ativo patrimonial de uma
pessoa, podendo ocorrer também por uma diminuição do passivo. Deve o enriquecimento
dar-se à custa de outrem, porém, não se exige o empobrecimento da outra parte. Para se
configurar o enriquecimento sem causa basta que a vantagem adquirida por uma pessoa
não resulte de um correspondente sacrifício econômico83.
A justa indenização visa a preservar o patrimônio do particular, garantindo a este a
reposição integral84 do bem perdido, como também é uma garantia ao Estado expropriante85
de que este não poderá pagar mais do que efetivamente vale o imóvel86 . O enriquecimento
79. Segundo Fernando Logón, “quando uma coisa é suscetível de produzir algo, ou tem em si mesma um valor
potencial, guarda uma energia positiva de valor. Ao contrário, quando se trata de uma mera possibilidade, não se
pode falar em nenhuma computação, porque se trata de algo constitucionalmente negativo ao objeto. Em outros
termos, deve reintegrar-se o valor dinâmico da coisa, não o estático; a qualidade natural e não a artificiosamente
provocada”. In: FAGUNDES, M. Seabra. Da desapropriação no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1949, p. 345.
80. “De todo o afirmado referentemente à compreensão dos lucros cessantes na fixação do montante da
indenização decorre em contrapartida, a assertiva da inindenizabilidade de prejuízos meramente hipotéticos,
simplesmente passiveis ou não passiveis de aferição patrimonial. Não há, pois, como se considerar o reflexo
patrimonial estimado pelo proprietário em razão de uma especial afeição, que não está contemplado no direito
positivo brasileiro (FERRAZ, Sérgio. A justa indenização na desapropriação. São Paulo: RT, 1978, p. 23).
81. MAURER, Hartmut. Direito administrativo geral. São Paulo: Manole, 2006, tradução de Luiz Afonso Heck, p. 805.
82. FAGUNDES, M. Seabra. Da desapropriação no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1949, p. 344.
83. TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin. Código Civil interpretado conforme
a Constituição da República. Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 753.
84. “Indenização justa é a que tem por finalidade apagar qualquer dano ou gravame. O proprietário deve ficar
indene” (FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros: 8.ed., 2006, p. 336).
85. “Justo preço é o preço adequado na técnica e terminologia do direito vigente e não do excesso individualista da
corrente proprietarista; a preponderância do interesse público é norma a obedecer com rigor” (RDA, vol. I, fasc. I, pág. 277).
86. “O que se busca é o justo valor do bem, e não qualquer valor oferecido ou contraposto, tabelado ou meramente
indexado. Nem seria, de outra parte, coerente com o princípio da legalidade da Administração Pública admitir
DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO
A DESAPROPRIAÇÃO DA ÁGUA
333
sem causa do expropriante ou do expropriado afronta o princípio da moralidade
administrativa. A vedação ao enriquecimento sem causa é aplicável ao regime jurídico
administrativo e, pois, ao instituto da desapropriação87. Não pode ser a desapropriação
nem causa nem de empobrecimento e nem de enriquecimento do expropriado88 . Digna
de menção é a posição de Sérgio Ferraz89 no sentido de que “a desapropriação não pode
servir de fundamento para o enriquecimento de alguns em detrimento de outros”. A justa
indenização não se coaduna com o enriquecimento sem causa do expropriado90 .
A indenização paga na desapropriação não pode representar um ganho patrimonial
indevido, quer para a Administração, quer para o particular. Conforme lição de Pontes de
Miranda91, “a indenização destina-se a evitar a diferença de nível entre o patrimônio do
desapropriado antes da desapropriação e após a desapropriação”. Caso a expropriante
acabe pagando por um bem expropriado mais do que o valor estritamente necessário para
repor o patrimônio do particular, há enriquecimento sem causa deste. Da mesma forma, se
o expropriado receber um valor que não lhe permita sair do processo expropriatório com o
patrimônio incólume, há enriquecimento sem causa do Estado92.
como aceitável um preço superior ao justo, exigível pela coisa expropriada” (FERRAZ, Sérgio. A justa indenização
na desapropriação. São Paulo: RT, 1978, p. 151).
87. UELZE, Hugo Barrozo. Desapropriação. In: Revista dos Tribunais, volume 851, setembro de 2006, p. 697-735.
88. “A indenização deve ser justa e compreensiva do direito de todos os prejudicados, não sendo lícito ampliá-la de
modo a sobrecarregar o desapropriante. A desapropriação não é meio de enriquecimento ilícito, como também
não deve ser causa de forçado empobrecimento” (WHITAKER, F. Desapropriação. São Paulo: Atlas, 3.ed., 1946, p. 30).
89. FERRAZ, Sérgio. A justa indenização na desapropriação. São Paulo: RT, 1978, p. 27.
90. “Aparentemente, a garantia da justa e prévia indenização poderia parecer destinada com exclusividade ao
resguardo do direito de propriedade e, portanto, configurar-se apenas como uma proteção endereçada aos particulares
em face do Estado, sem ter também este como destinatário. Essa insinuação vem não só da topologia da garantia,
situada no capítulo dos direitos e garantias individuais e coletivos, mas também de sua própria redação. Os precedentes
jurisprudenciais que se formaram a esse respeito, todavia, apoiam-se, ainda que não tão explicitamente, em uma visão
bipolar da garantia expressa pelo inc. XXIV do art. 5º constitucional. Nessa perspectiva, o preço justo figura como uma
garantia com que ao mesmo tempo a Constituição Federal quer proteger a efetividade do direito de propriedade e
também resguardar o Estado contra excessos indenizatórios. Nem haveria como entender de modo diferente o emprego
do adjetivo justo, dado que a própria justiça é em si mesma um conceito bilateral, não se concebendo que algo seja
“justo” para um sujeito sem sê-lo para outro. Não se faz “justiça” à custa de uma injustiça” (DINAMARCO. Cândido Rangel.
Nova Era do Processo Civil. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 249).
91. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967. Tomo V. São Paulo: RT, 1968, p. 478.
92. Não se deverá atribuir ao desapropriado nem mais nem menos do que se lhe subtraiu, porque a expropriação
não deve ser instrumento de enriquecimento nem de empobrecimento do expropriante ou do expropriado. A
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
A justa indenização não é compatível com indenizações para prejuízos não existentes.
Não é admissível indenizar o que nunca existiu por mera presunção de que seria possível
existir. Não é lógico e nem razoável pagar um preço por um imóvel considerando o seu
potencial de aproveitamento, que depende de circunstâncias adversas e imprevisíveis.
É totalmente injusto pagar pela desapropriação de um terreno vazio o preço equivalente
a um loteamento imobiliário porque seria possível, em tese, realizar um loteamento no
mesmo, que dependeria, dentre outros critérios aleatórios e que nunca poderiam acontecer,
do interesse do mercado em fazer um empreendimento no local93. Da mesma forma, não
pode ser incluída no valor da indenização a valorização decorrente da atividade do Poder
Público após a imissão na posse, por ser decorrente exclusivamente de benfeitorias que não
foram causadas pelo expropriado, que, assim, não pode se aproveitar delas94 .
Assim, não pode a desapropriação ocasionar um enriquecimento sem causa nem do
expropriante e nem do expropriado, sob pena de violação do preceito constitucional que
assegura a justa indenização.
Por outro lado, a indenização deverá ser prévia. Porém, cabe indagar: prévia a que?
Pontes de Miranda responde:
indenização deve, portanto, ser exata, no sentido de que ao expropriado há de se dar precisamente o equivalente
ao que lhe foi tomado pelo expropriante (STJ - REsp 510.438/PR, Rel. Ministro FRANCIULLI NETTO, SEGUNDA
TURMA, julgado em 22/02/2005, DJ 09/05/2005, p. 331).
93. “A fixação do preço justo não pode embasar-se em mera hipótese de aproveitamento do imóvel, jamais
cogitada pelos expropriados antes do procedimento expropriatório. Vale dizer, não se pode levar em conta
a possibilidade de implantação de loteamento em um imóvel que, antes da intervenção do Poder Público,
sempre foi utilizado para a atividade agropecuária. O interesse auferido pelo proprietário do imóvel expropriado,
mencionado no art. 27 do Dec. Lei 3.365/41, refere-se às eventuais atividades praticadas no momento da
declaração de utilidade pública” (STJ - 1ª T., REsp 986.471, Min. Denise Arruda, j. 13.5.08, DJU 30.6.08. In: NEGRÃO,
Theotonio. Código de Processo Civil e legislação processual em vigor. 41.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 1425/1426).
94. Em casos tais, a regra do art. 26 do Decreto-Lei nº 3.365/41 não pode ser aplicada cega e impositivamente,
sob pena de se comprometer o preceito constitucional da justa indenização. No interregno, geralmente longo,
entre a data da ocupação do bem pelo Estado e a sua avaliação no âmbito da ação de desapropriação indireta,
é possível que ocorram mudanças substantivas no bem, que podem levar ou à sua valorização ou, ao contrário,
à sua depreciação. Não será justo, em nome do art. 26, reconhecer ao proprietário o direito de ser indenizado
pela valorização decorrente de ato estatal superveniente à perda da posse. É indispensável, sempre, levar em
consideração o preceito constitucional que impõe o justo preço. 3. Recurso especial não provido (STJ - REsp
912.778/RS, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, Rel. p/ Acórdão Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em
03/05/2007, DJ 31/05/2007, p. 403).
DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO
A DESAPROPRIAÇÃO DA ÁGUA
335
“Não à sentença que fixe a quantia da indenização: não se sabe de quanto é.
Se há recurso, não cabe exigir-se ou pagar-se, ou o depositar-se. Portanto, a
previedade é em relação à transcrição do título, que é a sentença (somente a
transcrição opera a perda da propriedade, tratando-se de bens registrados) e em
relação ao mandado de imissão, que o juiz não deve expedir antes de efetuado o
pagamento ou depositada a quantia. No direito brasileiro, a indenização tem que
ser prévia. De maneira que não se pode dizer que seja efeito da desapropriação;
é meio para se obter a desapropriação. Ainda para a posse provisória, é preciso que
se deposite o valor dela. A indenização há de ser justa.” 95
O patrimônio do indivíduo forçado a sofrer uma desapropriação é segurado com o
antecipado pagamento. Evitam-se, destarte, os transtornos que à economia individual
poderiam acarretar as delongas da Administração no pagamento do preço96. A prévia
indenização97 resulta da necessidade de repor o patrimônio do expropriado antes da
perda definitiva da propriedade, como forma de evitar que o cidadão fique por algum
lapso temporal privado da propriedade e da indenização98 .
A precedência temporal coloca a indenização como um pressuposto da desapropriação99.
95. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967, com a emenda n. 1 de 1969. 2.ed.
São Paulo: RT, 1971, p. 486.
96. FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. 8.ed. Rio de Janeiro: Forense,
2010, p. 408/409.
97. “Para cercar da maior eficácia a proteção do patrimônio particular, em face desse excepcional direito do
Estado, a Constituição condicionou o expropriamento à prévia indenização. O patrimônio do indivíduo, forçado a
sofrer uma desincorporação de valor em atenção ao interesse público antes que ela se efetive, é segurado do ônus que
lhe vai pesar com o pagamento, em dinheiro, de valor correspondente” (FAGUNDES, M. Seabra. Da desapropriação no
direito brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1949, p. 24).
98. “Indenização prévia significa que deve ser ultimada antes da consumação da transferência do bem. Todavia o
advérbio “antes” tem o sentido de uma verdadeira fração de segundo. Na prática, o pagamento da indenização e
a transferência do bem se dão, como vimos, no mesmo momento. Só por mera questão de causa e efeito se pode
dizer que aquele se operou antes desta. De qualquer forma, deve entender-se o requisito como significando que
não se poderá considerar transferida a propriedade antes de ser paga a indenização” (CARVALHO SANTOS, José
dos Santos. Manual de direito administrativo. 22.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 808).
99. “Uma das condições da desapropriação é causar o mínimo de prejuízo ao desapropriado; é evitar que, mesmo
transitoriamente, seja o proprietário privado do que lhe pertence” (PEREIRA, Sylvio. O poder de desapropriar. Rio de
Janeiro: A. Coelho Branco Filho, 1948, p. 110).
336
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
Conforme lição de Cretella Junior100, “trata-se de um prius ou pressuposto necessário”.
E continua o autor, concluindo que “não se desapropria para depois indenizar. Indenizase para desapropriar”. Segundo lição de Pontes de Miranda101, “indeniza-se antes de se
desapropriar, para que, ao acontecer a perda, já esteja no patrimônio do desapropriando,
fundado em causa futura, o quanto indenizatório”.
A prévia indenização é estabelecida com base na perda que irá ocorrer. Não se presta a
indenização porque se tirou de alguém o bem e sim porque se lhe vai tirar. Para que incida a
norma constitucional que permite a desapropriação, deve haver uma indenização já paga
e incorporada ao patrimônio do expropriado no momento em que ocorre a transferência
coativa da propriedade102.
Dessa forma, a previedade é em relação à transcrição do título e em relação ao
mandado de imissão, provisória ou definitiva, que o juiz não deve expedir antes de efetivado
o pagamento ou depositada a quantia.
Traçadas as linhas gerais e específicas no que tange à justa e prévia indenização no
processo expropriatório, resta ponderar acerca da “justa indenização” na desapropriação
das águas.
Toma-se como fundamento que o regime jurídico aplicável às águas no Brasil
é de direito público. Sendo assim, as águas são de domínio público e integram o
patrimônio público da União, dos Estados-membros e do Distrito Federal. A atual
Carta Política da nação brasileira não mais contempla as denominadas águas
particulares.
Reza a Constituição do Estado de São Paulo, em seu artigo 8º:
“...incluem-se entre os bens do Estado os terrenos reservados às margens dos rios e
lagos de seu domínio”.
Também a Lei nº 9.433/1997, regulamentando o inciso XIX do artigo 21 da Constituição
Federal, passou a considerar a água um bem de domínio público, recurso natural e
limitado, dotado de valor econômico. Dessa forma, toda água é de domínio público. A
100. CRETELLA JUNIOR, José. Tratado geral da desapropriação. Rio de Janeiro: Forense, 1980, vol. 2, p.121.
101. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967. Tomo V. São Paulo: RT, 1968, p. 436.
102. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967. Tomo V. São Paulo: RT, 1968, p. 440.
DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO
A DESAPROPRIAÇÃO DA ÁGUA
337
Constituição Federal, em seu artigo 20, II, estatui que são bens da União os lagos, rios
e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de
um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro
ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais. Por sua vez o
artigo 26, I, da Carta Magna estatui que se incluem entre os bens dos Estados as águas
superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergente e em depósito.
Das disposições legais acima, percebe-se que as margens dos rios pertencem ao seu
respectivo titular, sendo, assim, terras públicas, insuscetíveis de usucapião.
Sobre o assunto, assim manifestou-se a doutrina103:
“Os rios públicos, na partilha constitucional, desde 1946, ficaram repartidos entre
a União e os Estados-membros, sem se atribuir qualquer domínio fluvial ou
lacustre aos Municípios, o que já importava derrogação do artigo 29 do Código
de Águas, que os distribuía entre as três entidades estatais. Outra observação
que se impõe é a de que na distribuição das águas internas foi abandonado o
critério tradicional da navegabilidade ou flutuabilidade, só se levando em conta
a condição territorial das correntes ou lagos. No atual sistema constitucional os
rios e lagos públicos ou pertencem à União ou ao Estado-membro, conforme o
território que cubram”.
No mesmo sentido, o entendimento editado na Súmula 479 do Supremo Tribunal
Federal: “as margens dos rios navegáveis são de domínio público, insuscetíveis de
expropriação e, por isso mesmo, excluídas de indenização”. Assim, não devem ser
indenizadas as margens dos rios, ou seja, a área de terreno reservado prevista nos
artigos 11 a 14 do Código de Águas104.
Portanto, sob a responsabilidade da União, dos Estados-membros e do Distrito
Federal, as águas devem cumprir sua função social, sob pena de desapropriação sob o
fundamento da necessidade ou utilidade pública ou do interesse social (CF, art. 5º, XXIV).
103. MEIRELLES, Hely Lopes; ALEIXO, Délcio Balestero; BURLE FILHO, José Emmanuel. Direito administrativo brasileiro.
38.ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 620.
104. STF – Súmula nº 479. EMENTA Desapropriação. Terreno reservado. 1. A área de terreno reservado, como
assentado pela Suprema Corte na Súmula nº 479, é insuscetível de indenização. 2. Recurso extraordinário
conhecido e provido (RE 331086, Relator: Min. MENEZES DIREITO, Primeira Turma, julgado em 02/09/2008, DJe206 DIVULG 30-10-2008 PUBLIC 31-10-2008 EMENT VOL-02339-05 PP-01033 RTJ VOL-00207-03 PP-01199 LEXSTF v.
31, n. 361, 2009, p. 176-181).
338
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
Em sendo expropriadas, não há que se falar em indenização, justamente por serem de
domínio público e integrarem o patrimônio público. Apenas os terrenos necessários ao
acesso e armazenamento da água é que devem ser indenizados.
5. CONCLUSÃO
Já é tempo de finalizar. Não se alimenta a veleidade de haver produzido uma
abordagem completa sobre o assunto. Ainda há muito que se tratar. Todavia, tem-se a
convicção de que o texto foi elaborado de forma científica, com o objetivo de elucidar as
questões mais intrincadas relacionadas ao regime jurídico, ao processo expropriatório e
à indenização decorrente da desapropriação água.
Apresenta-se, aqui, o desfecho deste artigo na forma consolidada, conforme síntese
a seguir.
Com base na Constituição Federal e na legislação especial pertinente, pode se afirmar
que o regime jurídico aplicável às águas no Brasil é de direito público. As águas são de
domínio público e integram o patrimônio público da União, dos Estados-membros e do
Distrito Federal.
Como toda propriedade, sob a ótica do direito constitucional contemporâneo, os
titulares do domínio das águas devem promover o cumprimento da função social desse
bem essencial à existência humana individual e coletiva. Caso contrário, as águas são
passíveis de desapropriação.
A desapropriação da água sob os fundamentos da necessidade ou utilidade pública,
ou do interesse social está amparada na Constituição Federal, no Decreto-Lei nº 3.365/41
– Lei de desapropriação por utilidade pública e na Lei nº 4.132/62 – Lei de desapropriação
por interesse social. A existência de um interesse público concretamente verificado,
aliado a qualquer um dos permissivos constitucionais e legais legitima que o interesse
público prevaleça, despojando o titular do domínio da água.
Tendo-se em conta que o domínio das águas brasileiras é da União e dos Estadosmembros, somente a União poderá ingressar com a denominada desapropriação
política, frente a qualquer Estado-membro que não esteja promovendo a destinação
social prevista para a água.
Hirta a rigorosa previsão constitucional e legal, de que as águas brasileiras sejam
aplicadas no melhor aproveitamento de toda a sociedade.
DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO
A DESAPROPRIAÇÃO DA ÁGUA
339
Ponto relevante na desapropriação da água é a justa e prévia indenização. Entendese que, sendo as águas do domínio da União, dos Estados-membros e do Distrito Federal,
elas devem cumprir sua função social, sob pena de desapropriação. O fundamento para
a declaração de desapropriação será a necessidade ou utilidade pública ou o interesse
social (CF, art. 5º, XXIV).
Havendo desapropriação, não há que se falar em indenização, em razão de as águas
serem de domínio público e integrarem o patrimônio público dos entes federados. Apenas
os terrenos necessários ao acesso e armazenamento da água é que devem ser indenizados.
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DIREITO PÚBLICO
LEI FEDERAL DAS NORMAS
GERAIS PARA LICENCIAMENTO
E COMPARTILHAMENTO DE
INFRAESTRUTURA DE REDE DE
TELECOMUNICAÇÕES
ERICSON SCORSIM
Advogado, em Curitiba, sócio fundador do escritório Meister Scorsim Advocacia,
especializado no Direito das Comunicações, Doutor em Direito pela USP. Mestre em Direito pela UFPR.
RESUMO
ABSTRACT
O presente artigo analisa Lei Federal que
estabelece Normas Gerais para Licenciamento,
Instalação e Compartilhamento de Redes de
Telecomunicações. Trata-se da Lei nº 13.116/2015,
conhecida como Lei das Antenas, que tem
impacto sobre as empresas de telecomunicações,
os consumidores dos respectivos serviços, os
municípios e os estados-membros da federação.
As infraestruturas de telecomunicações são
essenciais à prestação dos serviços de telefonia
celular (serviço móvel pessoal) e o serviço de
conexão à internet (serviços de comunicação
multimídia). Compete à Anatel regulamentar
vários dispositivos legais relacionados à
implantação, instalação e compartilhamento das
redes de telecomunicações.
This article analyzes federal law that contains
General Rules for Licensing, Installation
and Telecommunications Network Sharing.
This is the Law no. 13116/2015, known as
the Antennas Act, whose impacts are on
telecommunications companies, consumers
of their services, Municipalities and States. The
telecommunications infrastructure is essential
to provide cellular services (personal mobile
service) and the Internet connection service
(multimedia communication services). ANATEL
(National Agency of Telecommunications) has the
power to regulate several legal provisions related
to implementation, installation and sharing of
telecommunications networks.
PAVRAS-CHAVE
KEYWORDS
Lei. Normas gerais. Infraestrutura de
telecomunicações. Licenciamento e
compartilhamento.
Law. General Rules. Telecommunications.
Infrastructure. Licensing and sharing
348
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
1. APRESENTAÇÃO
Os serviços de comunicações nas modalidades ”telefonia móvel”1 e acesso à internet2
móvel são prestados por empresas privadas para milhões de consumidores.
O acesso dos consumidores aos serviços de telecomunicações depende das
infraestruturas organizadas em redes de telecomunicações. Os consumidores, na
posse de tecnologias representadas pelos terminais de acesso (aparelhos celulares,
notebooks, tablets, etc), podem utilizar os serviços de telefonia móvel e internet,
mediante a rede de antenas distribuídas em diversos bairros da cidade.3 O consumo
destes serviços possibilita a comunicação de voz, textos, imagens, dados pessoais, fotos,
vídeos, que trafegam pelas redes de antenas situadas em terrenos e edifícios comerciais
e residenciais.4 Ou seja, mais e melhores redes de telecomunicações tem o potencial de
ampliar o acesso e qualidade dos serviços de comunicação móvel: telefonia e internet.
Estes serviços de comunicações criam imenso valor, pois tem a capacidade de
unir pessoas, na sua vida privada, nos negócios e diante dos governos. A criação de
valor ocorre em diversos âmbitos: informação, comunicação, comércio tradicional e
eletrônico, cultura, saúde, entretenimento (vídeos/redes sociais), acesso aos serviços
de televisão e rádio, entre outras atividades econômicas relevantes para o Brasil e
para os brasileiros.5 Principalmente, destaque-se que a maior vantagem dos serviços
de comunicação móvel consiste na mobilidade, isto é, a sua utilização em estações de
radiocomunicação móveis. Ou seja, a capacidade de utilização dos serviços de telefonia
e internet móvel, dentro de carros, ônibus, táxis, etc.
1. Do ponto de vista da classificação jurídica, o serviço de telefonia celular é uma espécie de serviço móvel
pessoal, algo detalhado adiante.
2. Do ponto de vista da classificação jurídica, o serviço de acesso à internet é uma espécie de serviço de
comunicação multimídia (serviço de valor adicionado à rede de telecomunicações), o que será detalhado à frente.
3. Os consumidores dos serviços de telecomunicações, nas modalidades de telefonia celular e acesso à internet
móvel, são pessoas físicas e pessoas jurídicas. Aliás, o Regulamento da Anatel dos Direitos dos Consumidores nos
Serviços de Telecomunicações, aprovado pela Resolução n. 632/2014, reconhece diversos direitos para pessoas
físicas e jurídicas.
4. As estações de radiocomunicação integram a infraestrutura terrestre, sendo que o sinal de radicomunicação é
propagado pela a utilização de frequências do espaço aéreo eletromagnético.
5. Segundo dados atualizados até dezembro de 2014, na telefonia móvel foi registrado 281,7 milhões de acessos
por terminais dos usuários. Na internet banda larga móvel: 162,9 milhões de acessos por terminais dos usuários.
Dados conforme relatório da Telecom: www.telecom.com.br/3G_brasil.asp e da Anatel.
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LEI FEDERAL DAS NORMAS GERAIS PARA LICENCIAMENTO E COMPARTILHAMENTO DE
INFRAESTRUTURA DE REDE DE TELECOMUNICAÇÕES
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Neste contexto, as infraestruturas de redes de telecomunicações são essenciais à
prestação de serviços de “telefonia celular” e conexão à internet móvel. A ausência de
infraestrutura adequada à prestação dos serviços de telecomunicações ou a existência
de danos em sua configuração são causas que tem repercussão direta na esfera da
vida dos consumidores.6 Daí a razão para o estudo sistemático da nova lei sobre as
infraestruturas de redes de telecomunicações, a seguir visto. O tema envolve o Direito,
as Infraestruturas e as novas Tecnologias de Comunicação.
A Lei federal n. 13.116, de 20 de abril de 2015, aprova normas gerais para o licenciamento,
a instalação e o compartilhamento da infraestrutura de telecomunicações.7 Estas
infraestruturas de telecomunicações destinam-se à execução dos serviços de telefonia
móvel8 e acesso à internet.9 As infraestruturas de telecomunicações são as estações
6. A título ilustrativo, o rompimento da rede de cabos de fibra ótica causa grave lesão aos consumidores dos
serviços de telefonia celular e internet móvel. Este dano na infraestrutura de rede tem intensa repercussao no
funcionamento de serviços bancários, comércio, serviços, etc.
7. A Lei n. 13.116/2015 é conhecida popularmente como Lei Geral das Antenas. Na justificativa do projeto de lei das
normas gerais da infraestrutura telecomunicações alega-se a existência de leis estaduais e municipais que colocam
restrições à instalação de torres e antenas. Na justificativa do projeto de lei, cita-se, como exemplos, leis estaduais
municipais que estabelecem exigências de distanciamento mínimo entre antenas e outras edificações, para fins
de proteção às pessoas diante de campos eletromagnéticos, sendo que a Lei federal n. 11.934/2009 estabelece
critérios de controle da exposição das pessoas a irradiações nos serviços de telecomunicações e energia. Também,
na justificativa do projeto de lei, é citada a exigência por municípios da apresentação do Estudo de Impacto
Ambiental (EIA), como condição para a outorga das licenças para instalação de novas antenas do serviço móvel
pessoal, muito embora a Lei federal n. 6.938/81 que trata das normas para o licenciamento de atividades efetiva
ou potencialmente poluidoras não estabeleça esta exigência para os serviços de radiocomunicação. Em síntese,
segundo a justificação do projeto do Senador Vital do Rêgo: “a presente iniciativa servirá de regra orientadora a
ser seguida pelos Municípios na formulação de suas legislações relativas à ocupação do solo urbano, bem como
pelos órgãos públicos, nas diferentes esferas, para a autorização e licenciamento das redes de telecomunicações”.
8. Do ponto de vista da classificação jurídica, o serviço móvel pessoal (SMP) designa o serviço de telecomunicações
de interesse coletivo que possibilita a prestação do serviço de telefonia celular e o serviço de acesso à internet
por banda larga móvel. Trata-se de um serviço de telecomunicações entre estações de radiocomunicação e
os terminais móveis dos usuários dos respectivos serviços. O regime jurídico da telefonia celular é privado,
sob a outorga de autorização da Anatel. Sua prestação depende da utilização de frequência do espectro
eletromagnético. O serviço móvel pessoal não é, portanto, uma atividade submetida ao clássico regime de
serviço público. Trata-se de uma atividade econômica regulada sob o interesse público.
9. O serviço de conexão à internet e classificado como espécie de serviço de comunicação multimídia (SCM), um
serviço de valor adicionado ao serviço de telecomunicações. O fundamento para sua regulação encontra-se no
art. 60, §1, da Lei Geral de Telecomunicações. O Serviço de Comunicação Multimídia é objeto da Resolução n.
614/2013, da Anatel. Sua prestação ocorre no regime privado, sob a autorização da Anatel. Conforme o Marco
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
de radiocomunicação10, antenas, postes11, torres, armários, estruturas de superfície
e estruturas suspensas.12 A referida Lei federal exemplifica as hipóteses de sua não
incidência a determinados serviços de telecomunicações.13
A Lei das Normas Gerais da Infraestrutura de Telecomunicações cria modificações
na Lei Geral de Telecomunicações, Estatuto da Cidade e da Lei da Proteção à Pessoa
diante de campos de energia elétrica e eletromagnética.14 Destaque-se que alguns dos
dispositivos da Lei 13.116/2015 foram vetados, sob diversos motivos.15
Civil da Internet (Lei n. 12.965/2014, conforme art. 5, inc. III), o serviço de conexão à internet consiste na habilitacão
de um terminal para envio e recebimento de pacotes de dados pela internet, mediante a atribuição ou autentição de
um endereço IP.
10. Segundo a Lei n. 13.116/15, estação transmissora de radiocomunicação é o conjunto de equipamentos ou
aparelhos, dispositivos e demais meios necessários à realização de comunicação, incluindo seus acessórios e
periféricos, que emitem radiofrequências, possibilitando a prestação de serviços de telecomunicações, conforme
art. 3, inc. V. Ainda nos termos da referida Lei, a radiocomunicação é telecomunicação que utiliza frequências
radioelétricas não confinadas a fios, cabos e outros meios físicos, conforme art. 3, inc. IX.
11. A infraestrutura de postes é de propriedade, via de regra, das empresas de distribuição de energia elétrica. Estas
empresas, mediante acordos comerciais, alugam os postes paras as empresas de telecomunicações, colocarem
seus cabos e fibras óticas. Há regulamentação do compartilhamento destas infraestruturas e preços praticados
no mercado pelas respectivas agências reguladoras do setor. A título ilustrativo, noticiou-se a realização de uma
parceira público-privada (PPP) entre a Copel Telecom e TIM, para aproveitamento da infraestrutura de postes para
a oferta de serviços de internet sem fio sem alta velocidade, nas tecnologias 3G e 4G.
12. Ressalte-se que há diversos casos de cessão onerosa de infraestrutura de telecomunicações (antenas e torres)
pelas prestadoras dos serviços de telecomunicações às empresas especializadas na gestão dessas infraestruturas.
13. A Lei n. 13.116/2015 prevê as hipóteses de sua não incidência: ii) às infraestruturas de telecomunicações utilizadas
para serviços de interesse restrito em plataformas off-shore de exploração de petróleo; ii) radares militares e
civis utilizados na defesa ou controle de tráfego aéreo; iii) infraestruturas de radionavegação aeronáutica e as
telecomunicações aeronáuticas, em seu art. 1, §2, incisos I, II e III.
14. A Lei n. 11.934/2009 trata dos limites à exposição humana a campos elétricos, magnéticos e eletromagnéticos,
associados ao funcionamento de estações transmissoras de radiocomunicação, de terminais de usuário e sistemas
de energia elétrica nas faixas de frequências de até 300 GHz (trezentos gigahertz), para fins de proteção da saúde e
do meio ambiente. A Lei n. 11.934/2009 cria obrigações para as prestadoras de serviço de telecomunicaçõpes que
utilizem estações transmissoras de radiocomunicação, aos fornecedores de terminais de usuários permissionárias
e autorizadas de serviços de energia elétrica. Em seu art. 3, da mesma lei, há a consideração da área crítica como
sendo aquela localizada até 50 (cinquenta) metros de hospitais, clínicas, escolas, creches e asilos.
15. Entre os vetos ao projeto de lei das infraestruturas de telecomunicações: i) a regra que obriga o poder
público promover investimentos necessários na ampliação e capacidade das redes de telecomunicações
(inc. III do art. 4). A razão do veto foi preservação da lógica regulatória de investimentos privados no setor de
telecomunicações. Outro veto foi à regra (inciso II do art. 13) que estipula a transferência da competência para
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INFRAESTRUTURA DE REDE DE TELECOMUNICAÇÕES
351
O presente artigo tem como foco a apresentação da repercussão da lei federal
sobre os municípios, estados, as empresas de telecomunicações e os consumidores dos
serviços de telecomunicações.16
2. OBJETIVOS DA LEI DAS NORMAS GERAIS SOBRE A
INFRAESTRUTURA DE TELECOMUNICAÇÕES
O objetivo da Lei n. 13.116/15 é a promoção e o fomento dos investimentos
em infraestruturas de redes de telecomunicações, para compatibilizá-lo com o
desenvolvimento socioeconômico do País.17
Conforme a Lei n. 13.116/15, em seu art. 1, §1,exige-se que a gestão da infraestrutura seja
realizada de modo a atender às metas sociais, econômicas e tecnológicas estabelecidas
pelos poderes públicos. Ocorre que a lei contém uma norma aberta e genérica sobre
metas para a gestão da infraestrutura de redes de telecomunicações. Daí a dúvida,
caberá a Anatel editar normas sobre estas metas sociais, econômicas e tecnológicas,
impondo-as às empresas de gestão da infraestrutura de telecomunicações?18 Primeiro, a
outorga do licenciamento da instalação de telecomunicações ao órgão regulador federal na hipótese de decurso
do prazo de 60 (sessenta) dias para deliberação por órgão municipal. A razão do veto foi a preservação da
competência municipal para tratar de assunto local. Outras regras (caput, §2 do art. 21 e arts. 22 e 23), objeto de
veto presidencial, dizem respeito, no âmbito da regulamentação, da observância dos critérios de dinamicidade
do uso das estações, mobilidade e variação de acordo com dia, horário e realização de eventos específicos, para
fins de avaliação da qualidade dos serviços. Neste aspecto, segundo o veto, caberia ao poder público parte
significativa das estratégias de investimento das prestadoras de serviços de telecomunicações. Ainda, segundo
este veto (caput, §2 do art. 21 e arts. 22 e 23), o tratamento específico dos parâmetros de fiscalização, ao invés
da fixação das metas de qualidades, poderia criar dificuldades na diferenciação e a inovação tecnológicas para
melhoria dos serviços pelas prestadoras e, com isso, restringir a concorrência no setor de modo injustificado.
16. De fato, a Lei da Infraestrutura das Redes de Telecomunicações tem regras com efeitos sobre telecomunicações,
meio ambiente, urbanismo, saúde pública e direitos do consumidores, entre outros temas relevantes.
Quanto ao segmento da construção civil, a Lei da infraestrutura de redes de telecomunicações impacta o direito
de passagem de cabos e fibras óticas dentro dos edifícios privados e públicos, algo visto mais à frente. Neste
aspecto, a lei federal cria limites ao direito à propriedade privada, algo de certo modo já previsto no Código Civil..
17. De fato, a expansão das infraestruturas redes de telecomunicações é essencial ao desenvolvimento do Brasil
e serve diretamente aos consumidores dos respectivos serviços, os quais poderão acessar melhores serviços de
telefonia celular e internet por banda larga móvel.
18. Cf. o art. 130 Lei Geral de Telecomunicações, a prestadora do serviço de telecomunicações, em regime privado,
não tem direito adquirido à permanência das condições vigentes quando da expedição da autorização ou início
das atividades, e deve observar os novos condicionamentos impostos por lei e pela regulamentação. E, ainda, no
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v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
gestão da infraestrutura de telecomunicações é uma tema no âmbito da autonomia das
empresas privadas de telecomunicações.19 Segundo, qualquer restrição à autonomia
empresarial de gestão sob o fundamento do interesse público há de ser suficientemente
motivada.20 Com efeito, a edição de normas pela Anatel sobre a gestão da infraestrutura
de telecomunicações deve observar os princípios da razoabilidade, proporcionalidade,
devido processo legal, segurança jurídica, e economicidade, entre outros que vinculam
a atuação da agência reguladora.21
Os objetivos específicos da Lei das Normas Gerais da Infraestrutura de
Telecomunicações são: i) uniformizar, simplificar e acelerar os procedimentos e
critérios para a outorga de licenças para órgãos competentes, ii) minimizar os impactos
urbanísticos, paisagísticos e ambientais, iii) ampliar a capacidade instalada das redes
de telecomunicações, com a atualização tecnológica e melhoria da cobertura e
da qualidade dos serviços prestados, iv) precaver-se contra os efeitos da radiação
não ionizante, conforme parâmetros legais; v) incentivar o compartilhamento de
infraestrutura de redes de telecomunicações.22
3. DA COMPETÊNCIA DA UNIÃO PARA ESTABELECER
NORMAS GERAIS SOBRE INFRAESTRUTURA DE
TELECOMUNICAÇÕES
Segundo a Lei federal n. 13.116/2015, compete exclusivamente à União a
regulamentação e a fiscalização dos aspectos técnicos das redes e dos serviços de
parágrafo único, o art. 130, da Lei Geral de Telecomunicações dispõe que será concedido prazo suficiente para
adaptação aos novos condicionamentos impostos pela regulação.
19. Aqui, conforme art. 128, inc. I, da Lei Geral das Telecomunicações, ao dispor sobre condicionamentos
administrativos ao direito de exploração das diversas modalidades de serviço no regime privado (limites, encargos
ou sujeições), a Anatel deve observar a exigência de mínima intervenção na vida privada, considerando-se que a
liberdade será a regra, sendo exceção as proibições, restrições e interferências do Poder Púlbico.
20. Cf. Art. 128, inc. III, da Lei Geral de Telecomunicações.
21. Cf. Art. 128, inc. IV, da LGT: “o proveito coletivo gerado pelo condicionamento deverá ser proporcional
à privação que ele impuser”. E, ainda, conforme a mesma LGT: “haverá relação de equilíbrio entre os deveres
impostos às prestadoras e os direitos a elas reconhecidos”, art. 128, inc. V.
22. Cf. Art. 2, da Lei nº 13.116/15.
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INFRAESTRUTURA DE REDE DE TELECOMUNICAÇÕES
353
telecomunicações.23 É vedado aos Estados, aos Municípios e ao Distrito Federal impor
condicionamentos que possam afetar a seleção de tecnologia, a topologia das redes e a
qualidade dos serviços prestados.24 E, ainda, a lei em análise expressamente dispõe que
a atuação dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal não deve comprometer as
condições e os prazos impostos ou contratados pela União em relação a qualquer serviço
de telecomunicações de interesse coletivo.25 Este tema pode ser objeto de conflitos
entre União, Estados e Municípios, com discussões a respeito das possibilidades, dos
limites e da constitucionalidade da Lei n. 13.116/2015 (e, respectivamente, dos limites ao
exercício da competência da União sobre telecomunicações), diante das competências
constitucionais dos demais entes federativos.26 Em outras palavras, pode surgir o conflito
23. Cf. Art. 4, inc. II, da Lei nº 13.116/15.
24. Cf. Art. 4, inc. II, da Lei nº 13.116/15.
25. Cf. Art. 4, inc. VIII, da Lei nº 13.116/15
26. A título ilustrativo, cabe mencionar que no STF, na ADI n. 2902/SP, ainda pendente de julgamento até o
momento da conclusão deste artigo, discute-se a constitucionalidade da Lei n. 10.995/2001 do Estado de São
Paulo que trata da instalação de antenas transmissoras de telefonia celular, com a imposições de regras sobre a
potência de radiação das antenas e as distâncias em relação aos imóveis aonde se situam as antenas. As teses
que defendem a inconstitucionalidade da lei estadual estão baseadas nos seguintes argumentos: i) competência
privativa da União para legislar sobre serviços de telecomunicações (art. 22, IV, CF), ii) violação à competência
concorrente entre União e Estados, para legislar sobre direito urbanístico, sendo que a lei estadual não estabelece
normas supletivas de caráter geral, mas sim normas específicas (art. 24, I, §1 e 3), iii) ofensa ao art. 25, 1, da
CF, eis que os Estados podem legislar somente sobre matérias que não sejam proibidas pela Constituição; iv)
afronta ao art. 30, I e VIII, da Constituição, pois matéria de interesse local, como ordenação do solo urbano é de
competência do legislador municipal. Na defesa da constitucionalidade da lei estadual, alega-se: a) o objetivo
da lei é proteger os cidadãos do Estado de São Paulo sobre os malefícios por aparelho de radiocomunicação que
emitem radiação; b) a competência concorrente do Estado para legislar sobre defesa da saúde (art. 24, inc. XII, da
CF), c) não aplicação da competência privativa da União para legislar sobre telecomunicações, mas de imposição
de limites aceitáveis de emissão de radiodifusão em defesa da saúde pública; d) a lei estadual é compatível com
a legislação federal sobre a matéria.
Também, na ADI n. 3501/DF questiona-se a constitucionalidade da lei distrital n. 3.446/2004 que estabelece
normas para instalação de torres destinadas a antenas de transmissão de sinais de telefonia, ainda pendente de
julgamento pelo STF, até o momento da conclusão deste artigo.
É possível que o tema constitucional relativo às regras para implantação das antenas de telefonia celular seja
objeto de futuro enquadramento como de repercussão geral no STF.
A Lei n. 10.995/2001 do Estado de São Paulo foi declarada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça de São Paulo,
na Arguição de Inconstitucionalidade n. 0265129-22.2010.26.0000, no Voto 21.379, sob o argumento da invasão
da competência da União para explorar os serviços de telecomunicações (art. 21, inc. XI, da CF), bem como para
legislar sobre telecomunicações (art. 22, inc. IV). Ressalta-se que esta decisão judicial sobre a inconstitucionalidade
da lei estadual que trata da instalação de antenas celulares tem efeitos somente no caso concreto.
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v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
entre a lei federal e leis estaduais e municipais, havendo a necessidade de solução
jurídica para precisar o sentido e o alcance das normas gerais sobre infraestrutura de
telecomunicações, à luz do quadro de competências constitucional.27
4. DA APLICAÇÃO SUPLEMENTAR DAS LEGISLAÇÕES
ESTADUAIS E DISTRITAL
De acordo com a Lei das Normas Gerais da Infraestrutura de Telecomunicações,
é aplicável de forma suplementar as legislações estaduais e distrital, no que tange
à implantação e compartilhamento da infraestrutura de telecomunicações, com
a salvaguarda da aplicabilidade do art. 24, §4, da Constituição.28 Trata-se de matéria
sujeita à competência concorrente, isto é, compete a União estabelecer as normas
gerais sobre o tema, e aos Estados a competência legislativa suplementar. Conforme
determina a Constituição, a superveniência de lei federal contendo normas gerais
suspende a eficácia da lei estadual no que lhe for contrário.29 Portanto, a Lei federal
13.116/15, que contempla as normas gerais sobre infraestrutura de telecomunicações,
suspende a eficácia das leis estaduais que contenham regras com ela incompatíveis.30
Também, em outro caso, o Tribunal de Justiça de São Paulo, na ADI n. 0128923-93.2013.8.26.000, Relator
Desembargador Antonio Luis Pires Neto, declarou a inconstitucionalidade parcial da Lei n. 13.756/2004, do
Município de São Paulo, que trata da instalação e funcionamento de postes, torres, antenas, contêineres e demais
equipamentos que compõem as Estações Rádio-Base, destinadas à operação dos serviços de telecomunicações.
Ao final, julgou procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da expressão “e o funcionamento”,
prevista no art. 1 e nos artigos 22, 23, 24, 27 e 28 da Lei n. 13.756/2004, do Município de São Paulo. Estas regras
tratam da competência do Município de São Paulo para fiscalizar o funcionamento das estações rádio-base,
criar um sistema de informação e localização e funcionamento das estações rádio-base, avaliar e controlar a
densidade de potência das radiações das estações de radiocomunicação, a tipificação como crime ambiental
a extrapolação do limite de radiação da estação de radiocomunicação. Segundo entendimento do Tribunal de
São Paulo, a inconstitucionalidade dos dispositivos legais decorre da competência privativa da União para legislar
sobre telecomunicações.
27. A solução definitiva da questão constitucional sobre a interpretação mais adequada ao texto da Lei n. 13.116/15
caberá ao STF.
28. Cf. Art. 1, § 3º, da Lei nº 13.116/15.
29. Cf. Art. 24, §4º, da CF.
30. Daí o conflito entre a Lei federal n. 13.116/15, que trata da instalação das infraestruturas de telecomunicações,
e a Lei do Estado de São Paulo n. 10.995/01, que trata das instalações de antenas transmissoras de telefonia
celular, com restrições às potência das estações de radiocomunicação e as respectivas distâncias em relação
aos imóveis aonde se situam. Destaque-se que a Lei n. 10.995/01 de São Paulo é objeto de uma Ação Direta de
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INFRAESTRUTURA DE REDE DE TELECOMUNICAÇÕES
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5. IMPACTO DA LEI SOBRE MUNICÍPIOS:
O LICENCIAMENTO DAS ESTAÇÕES DE
RADIOCOMUNICAÇÃO
5.1. PRINCÍPIOS NO PROCEDIMENTO DE OUTORGA DAS
LICENÇAS
O impacto da lei federal sobre os municípios ocorre no procedimento de licenciamento
das estações de radiocomunicação. A lei federal estabelece os princípios para o
licenciamento da infraestrutura e redes de telecomunicações, a saber: razoabilidade e
proporcionalidade, eficiência e celeridade, integração e complementaridade entre as
atividades de instalação de infraestrutura de suporte e de urbanização, e redução do
impacto paisagístico da infraestrutura de telecomunicações, sempre que tecnicamente
possível e economicamente viável. 31
5.2. DO PROCESSO ADMINISTRATIVO SIMPLIFICADO.
Segundo a Lei da Infraestrutura de Telecomunicações deve ser adotado um
procedimento administrativo simplificado para a outorga das licenças necessárias para
instalação de infraestrutura de suporte de telecomunicações em área urbana, sem
prejudicar a manifestação dos diversos órgãos competentes no decorrer da tramitação
do processo administrativo.32
O processo de licenciamento ambiental, quando necessário, deve ocorrer de modo
integrado ao procedimento de licenciamento simplificado.33 Compete ao Conselho
Inconstitucionalidade n. 2902/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, perante o STF, ora pendente de julgamento, até
a conclusão do presente artigo.
Por outro lado, a título ilustrativo, sobre esta relação entre União e Estados, no campo das telecomunicações,
o Estado do Paraná promulgou a Lei n. 18.297/2014 que obriga a instalação pelas empresas que prestam
o serviço móvel pessoal, de tecnologias de identificação ou bloqueio de sinais de telecomunicações (ou)
radiocomunicação nos estabelecimentos penais. Na hipótese de descumprimento da referida lei estadual, as
prestadoras dos serviços estão sujeitas ao pagamento de multas entre R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) a R$
1.000.000,00 (hum milhão de reais). A lei estadual foi fundamentada na competência constitucional do Estado
para tratar de assuntos ligados à segurança pública. É possível a discussão sobre a constitucionalidade desta lei
estadual à luz da competência privativa da União para legislar e explorar os serviços de telecomunicações.
31. Cf. Art. 5º, da Lei nº 13.116/15.
32. Cf. Art. 7º, da Lei nº 13.116/15.
33. Art. 7º, § 10, da Lei nº 13.116/15.
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Nacional do Meio Ambiente estabelecer as regras do procedimento do licenciamento
ambiental.34 Neste contexto, a lei federal dispõe sobre a necessidade dos entes federados
promoverem a conciliação entre as normas ambientais, de ordenamento territorial e de
telecomunicações.35 Este é um ponto central: a necessidade de respeito ao equilíbrio
federativo e da autonomia dos entes federativos e de suas respectivas competências
constitucionais, em tema complexo que envolve aspectos de: i) infraestrutura e serviços
de telecomunicações; ii) uso e ocupação do solo urbano; iii) meio ambiente. 36
5.3. DO PRAZO DE 10 (DEZ) ANOS DAS LICENÇAS
DE INSTALAÇÃO DE INFRAESTRUTURA E REDES DE
TELECOMUNICAÇÕES
De acordo com a Lei, as licenças para instalação de infraestrutura e redes de
telecomunicações em áreas urbanas terão prazo de vigência por, no mínimo 10 (dez)
anos. É possível a renovação da licença por igual período.37
Destaque-se, aqui, que uma vez preenchidos os requisitos objetivos da legislação,
surge para o requerente o direito à obtenção da licença de instalação da infraestrutura e
rede de telecomunicações. Se negado este direito, é cabível a medida judicial adequada
para a proteção do interesse da empresa prejudicada quanto à obtenção da licença.
5.4 DO PRAZO DE 60 (SESSENTA) DIAS PARA
EMISSÃO DAS LICENÇAS
A Lei n. 13.116/15 estabelece que o prazo para emissão de qualquer licença não pode
ser superior a 60 (sessenta) dias, contados da data de apresentação do requerimento.38
Tal norma geral demanda, portanto, a adaptação das legislações municipais quanto
ao procedimento administrativo de licenciamento das instalações de infraestrutura de
rede de telecomunicações.
Destaca a lei federal que os órgãos competentes não podem impor condições ou
34. Cf. Art. 9 º, da Lei nº 13.116/15.
35. Cf. Art. 4º, inc. VII, da Lei nº 13.116/15.
36. Como já referido, ao final, a solução definitiva para o tema constitucional em torno do sentido e do alcance
da Lei n. 13.116/2015 caberá ao STF.
37. Cf. Art. 7º, §7º, da Lei nº 13.116/15.
38. Cf. Art. 7º, §1º, da Lei nº 13.116/15.
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INFRAESTRUTURA DE REDE DE TELECOMUNICAÇÕES
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vedações que impeçam a prestação de serviços de telecomunicações de interesse
coletivo, nos termos da legislação vigente. A mesma lei preceitua que eventuais
condicionamentos impostos pelas autoridades competentes na instalação de
infraestrutura de suporte não poderão provocar condições não isonômicas de
competição e de prestação de serviços de telecomunicações. 39 De fato, um município
não pode criar privilégios para uma determinada empresa de telecomunicações em
detrimento de outra empresa concorrente. Também, um município não pode prejudicar
uma determinada empresa de telecomunicações, a fim de beneficiar a empresa
concorrente. Trata-se de uma norma geral que objetiva preservar a concorrência leal no
mercado de infraestruturas de telecomunicações.
5.5. CONSULTA E AUDIÊNCIAS PÚBLICAS
Nos processos administrativos de licenciamento de infraestrutura e redes de
telecomunicações que utilizar mecanismos de consulta ou audiência pública, o prazo
para emissão das respectivas licenças não poderá ser postergado por mais de 15
(quinze) dias.40 Ou seja, o prazo é 60 (sessenta) dias, com a postergação, motivada pela
audiência e consulta pública, de no máximo 15 (quinze) dias.
6. DESNECESSIDADE DE LICENCIAMENTO DE
INFRAESTRUTURA DE REDES DE TELECOMUNICAÇÕES
DE PEQUENO PORTE
A lei dispõe que em área urbana não é necessária a emissão de licença para infraestrutura
de redes de telecomunicações de pequeno porte, conforme regulamentação específica.41
Daí surge a seguinte dúvida: qual é a autoridade competente para regulamentar este
dispositivo legal ? Ao que parece, cabe à Anatel a regulamentação dos critérios para a
classificação da infraestrutura de rede de telecomunicações de pequeno porte.
39. Cf. Art. 8º, parágrafo único, da Lei nº 13.116/15.
40. Cf. Art. 7, §6, da Lei n. 13.116/2015.
41. Cf. Art. 10, da Lei nº 13.116/15.
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7. REGRA SOBRE A INSTALAÇÃO DO COMITÊ
CONSULTIVO NOS MUNICÍPIOS
Outra regra legal para os municípios com população superior a 300.000 (trezentos
mil) habitantes, diz que o poder público municipal deverá instituir de comissão de
natureza consultiva, com representantes da sociedade civil e das prestadoras dos
serviços de telecomunicações, para contribuir com a aplicação da lei em análise.42 Tratase de aplicação da lei federal que assegura a participação social, evidentemente com
respeitada a competência da auto-organização dos municípios quanto à estruturação
do referido órgão consultivo.
8. IMPACTO DAS NORMAS GERAIS DE INFRAESTRUTURA
SOBRE AS EMPRESAS DE TELECOMUNICAÇÕES
A) COMPARTILHAMENTO DE INFRAESTRUTURA DE SUPORTE DE
TELECOMUNICAÇÕES
O impacto das normas gerais sobre as empresas de telecomunicações, para além
do aspecto do licenciamento, ocorre no âmbito do compartilhamento de infraestrutura
de telecomunicações. Assim, cria-se a obrigatoriedade do compartilhamento da
capacidade excedente de infraestrutura de suporte telecomunicações, excetuada
a hipótese de justificado motivo técnico.43 O compartilhamento da infraestrutura de
telecomunicações deve ocorrer de modo a respeitar o patrimônio urbanístico, histórico,
cultural e paisagístico.44 Exige-se, no planejamento da construção e ocupação da
infraestrutura de suporte, a consideração do compartilhamento pelo maior número
possível de prestadoras dos serviços de telecomunicações. O compartilhamento de
infraestrutura deve ser realizado com a observância do tratamento não discriminatório
e a preço em condições justas e razoáveis. As empresas detentoras das infraestruturas
de suporte são obrigadas a informar as condições de compartilhamento, inclusive
42. Cf. Art. 24, da Lei nº 13.116/15.
43. Cf. Art. 14 da Lei nº 13.116/15. Segundo a Lei, capacidade excedente é a infraestrutura de suporte instalada e
não utilizada, total ou parcialmente, disponível para compartilhamento.
44. A duplicação das infraestruturas de redes (antenas) compromete a paisagem urbana, bem como o patrimômio
histórico e cultural. Daí o incentivo do poder público ao compartilhamento das infraestruturas de redes de
telecomunicações, para evitar sua desnecessária multiplicação.
DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO
LEI FEDERAL DAS NORMAS GERAIS PARA LICENCIAMENTO E COMPARTILHAMENTO DE
INFRAESTRUTURA DE REDE DE TELECOMUNICAÇÕES
359
apresentar informações técnicas georreferenciadas da infraestrutura disponível e os
preços e prazos aplicáveis, conforme regulamentação da Anatel.45 Também, as empresas,
no mapeamento e georreferenciamento das redes, devem garantir ao poder público
informações sobre a localização, dimensão e capacidade disponível das infraestruturas
de redes de telecomunicações.46
B) LIMITES DA EXPOSIÇÃO DAS PESSOAS A CAMPOS ELÉTRICOS
E MAGNÉTICOS
Há regras para as estações transmissoras de radiocomunicação, bem como os terminais
de acesso dos usuários dos serviços de telecomunicações, quanto aos limites de exposição
das pessoas aos campos elétricos, magnéticos e eletromagnéticos. 47 Trata-se de uma norma
relevante para a proteção da saúde das pessoas, diante dos campos de energia dos produtos
e redes de telecomunicações, cuja fiscalização de sua aplicação está sob a responsabilidade
da Anatel.48 Daí a responsabilidade quanto à avaliação das estações de radiocomunicação,
com a imposição da lavratura de laudo técnico sobre sua conformidade à legislação. Segundo
a lei, as estações de radiocomunicação devidamente licenciadas pela Anatel, que possuam
relatório de conformidade à legislação, não podem ter suas instalações impedidas de
funcionar por razões referentes à exposição humana a radiação não ionizante.49 Além disto,
a lei em análise impõe a obrigação para as prestadoras dos serviços de telecomunicações
45. Cf. Art. 26, da Lei nº 13.116/15.
46. Cf. Art. 4º, inc. V, da Lei nº 13.116/15.
Neste aspecto, cabe esclarecer que o georreferenciamento é uma técnica para encontrar pessoas, locais e
objetos na terra, mediante a obtenção de informações e dados geográficos a partir de coordenadas existentes
em imagens ou mapas, mediante GPS (sistema de posicionamento global). Esta técnica já é adotada no
georreferenciamento de imóveis rurais, conforme exigência da Lei nº 10.267/01.
47. Cf. Art. 18, da Lei nº 13.116/15.
48. A Resolução n. 303/202 da Anatel trata do regulamento sobre limitação da exposição a campos elétricos,
magnéticos e eletromagnéticos na faixa de frequências entre 9 KHz e 300 GHz, afetos ao licenciamento das
estações de radiocomunicação.
49. Cf. 19, §2, da Lei n. 13.116/15. Por sua vez, no contexto da Lei n. 11.934/2009, que trata dos limites à exposição
humana a campos elétricos, magnéticos e eletromagnéticos, dispõe o dever das prestadoras de serviços de
telecomunicações da realização de medições dos níveis de campo elétrico, magnético e eletromagnético de
radiofrequência, em suas estações transmissoras de radiocomunicação, conforme seu art. 13. As emissoras
de radiodifusão comercial não enquadradas na Classe Especial, as emissoras de radiodifusão educativa e de
radiodifusão comunitária não são obrigadas a realizar as referidas medições, segundo o §1, do art. 13 da Lei n.
11.934/2009.
360
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
e os poderes públicos federal, estadual, distrital e municipal, informar a sociedade sobre os
limites de exposição humana aos campos elétricos, magnéticos e eletromagnéticos.50
C) AUTORIZAÇÃO DO PROPRIETÁRIO OU POSSUIDOR
DO IMÓVEL PARA A INSTALAÇÃO DA ESTAÇÃO DE
RADIOCOMUNICAÇÃO
Também, a nova Lei das infraestruturas de telecomunicaçoes permite a instalação e
o funcionamento das estações de radiocomunicação e de infraestrutura de suporte em
bens privados ou públicos, com a necessária autorização do proprietário ou, quando
não for possível, do possuidor do imóvel.51 Portanto, a empresa gestora das estações
de radiocomunicação deve providenciar esta autorização do proprietário ou possuidor
do imóvel, para instalar as respectivas antenas e equipamentos de radiocomunicações.
Quanto aos condomínios, a regra da obrigatoriedade do compartilhamento da
infraestrutura de rede não se aplica à utilização das antenas fixadas sobre estruturas dos
prédios, das harmonizadas à paisagem e as estações de radiocomunicação já instaladas
até 5 de maio de 2009.52
D) DIREITO DE PASSAGEM EM VIAS PÚBLICAS, FAIXAS DE
DOMÍNIO E BENS PÚBLICOS
É assegurado às empresas de telecomunicações o direito de passagem em vias
50. Art. 20, da Lei n. 13.116/15. Aqui, cumpre destacar a plenitude do direito fundamental à informação
dos cidadãos e consumidores a respeito do potencial de riscos causados pelos produtos e serviços de
telecomunicações, em relação à sua saúde e respectivo corpo. Daí a necessidade das empresas prestadoras
dos serviços de telecomunicações, bem como dos fabricantes de aparelhos celulares, notebooks, tablets, etc,
informarem adequadamente sobre os limites de exposição das pessoas aos campos de energia. Em síntese,
é obrigação das empresas que prestam serviços de telecomunicações e dos fabricantes de aparelhos celular
informar sobre os riscos à saúde das pessoas causados pela proximidades aos campos magnéticos das estações
de radiocomunicação e dos aparelhos celulares. Aqui, a plena incidência do princípio da precaução, o que
integra o regime jurídico de atuação das referidas empresas.
A título ilustrativo, no RE n. 627.189/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, em trâmite no STF, discute-se a questão constitucional
sobre os limites do campo eletromagnético das linhas das redes de transmissão de energia elétrica, com a
realização inclusive de audiência pública, em razão do risco à saúde das pessoas decorrentes da exposição a
estes campos de energia. Basicamente, a questão constitucional envolve a aplicação do art. 225 da Constituição,
isto é, saber se o princípio da precaução é aplicável às novas tecnologias no setor da energia elétrica que causam
impacto no meio ambiente.
51. Conforme modificação do art. 6, § 2º, da Lei n. 11.934/2009.
52. Conforme modificação do art. 10, § 1º, da Lei n. 11.934/2009.
DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO
LEI FEDERAL DAS NORMAS GERAIS PARA LICENCIAMENTO E COMPARTILHAMENTO DE
INFRAESTRUTURA DE REDE DE TELECOMUNICAÇÕES
361
públicas, em faixas de domínio e em outros bens públicos de uso comum do povo.53
Nesta hipótese, veda-se a exigência de contraprestação pelo exercício do direito de
passagem. Ressalta-se que os custos de instalação, operação, manutenção e remoção
de infraestrutura e equipamentos devem ser suportados pela entidade interessada. A
proibição da contraprestação em razão do exercício do direito de passagem não afeta
as obrigações indenizatórias decorrentes de eventual dano efetivo ou restrição de
uso significativa.54 Ou seja, na hipótese do exercício do direito de passagem afetar o
direito de uso da propriedade privada haverá a obrigação de indenizar o seu respectivo
proprietário.
E) RESPONSABILIDADE EM RELAÇÃO À SEGURANÇA DOS
USUÁRIOS DOS SERVIÇOS DE TELECOMUNICAÇÕES.
De acordo com a Lei das Normas Gerais sobre Infraestrutura de Telecomunicações,
as prestadoras de telecomunicações devem cumprir integralmente as disposições legais
e regulamentares incidentes sobre sua atividade econômica, especialmente aquelas
relacionadas à segurança dos usuários dos serviços, sob pena de responsabilização civil
e penal na hipótese de descumprimento da legislação.55
9. REPERCUSSÃO DA LEI FEDERAL SOBRE OS
CONSUMIDORES: OS TERMINAIS DE ACESSO AOS
SERVIÇOS DE TELECOMUNICAÇÕES
A Lei das Normas Gerais sobre Infraestrutura de Telecomuunicações tem reflexos para
os consumidores. Há regra que dispõe sobre a comercialização de terminais de usuários
dos serviços de telecomunicações. Nesta hipótese, a lei federal preceitua que não
serão exigidas por Estados, Distrito Federal e Municípios condições distintas daquelas
integrantes na regulamentação da Anatel, e no Código de Defesa do Consumidor, e
das demais normas federais relativas às relações de consumidor, inclusive quanto ao
conteúdo e forma disponibilização de informações ao usuário.56
53. Cf. Art. 12, da Lei nº 13.116/15.
54. Cf. Art. 12, § 1º, da Lei nº 13.116/15.
55. Cf. Art. 4º, inc. IV, da Lei nº 13.116/15.
56. Conforme art. 28 da Lei 13.116/2015, que altera o art. 14, §3º, da Lei n. 11.934/2009.
A interpretação do art. 28 da Lei n. 13.116/15 que trata da proibição para Estados, Distrito Federal e Municípios, de
362
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
10. IMPACTO DAS NORMAS GERAIS DE INFRAESTRUTURA
DE TELECOMUNICAÇÕES SOBRE O SETOR DA
CONSTRUÇÃO CIVIL.
Ao modificar a Lei Geral de Telecomunicações (art. 74), a Lei das Normas Gerais da
Infraestrutura de Telecomunicações estabelece que a concessão, permissão ou autorização
do serviço de telecomunicações não isenta a prestadora do atendimento às normas de
engenharia e às leis municipais, estaduais e distritais relativas à construção civil. 57
A lei em análise dispõe que a construção de edifício público ou privado destinado
ao uso coletivo deve ser executada de modo a dispor de dutos, condutos, caixas de
passagem e outras infraestruturas que permitam a passagem de cabos ou fibras
óticas para instalação de redes de telecomunicações, conforme as normas técnicas de
edificações. Esta norma geral sobre o direito de passagem trata do ponto de conexão
entre as redes internas de telecomunicações dentro dos edifícios com as redes externas
de telecomunicações, presentes nas ruas e avenidas das cidades.
Por fim, ao modificar o Estatuto da Cidade, a Lei nº 13.116/15 estabelece como diretriz
geral da política urbana o tratamento prioritário às obras e edificações de infraestrutura
de energia, telecomunicações, abastecimento de água e saneamento.58 E, a referida
impor exigências relacionadas ao conteúdo e à forma de informar os consumidores, quanto à comercialização de
terminais de acesso aos serviços de telecomunicações, há de ser realizada com certa cautela. É que a Constituição,
em seu art. 24, inc. VIII, dispõe sobre a competência concorrente da União, Estados e Distrito Federal para legislar
sobre responsabilidade por dano ao meio ambiente e ao consumidor. O exercício da competência concorrente
pela União, com a edição de normas gerais, não pode excluir a competência dos Estados para suplementar a
lei federal. Daí porque a regra contida no art. 28 da Lei n. 13.116/2015 não pode esvaziar o espaço para atuação
suplementar os Estados, no que tange ao direito fundamental à informação do consumidor em relação aos
terminais de acesso aos serviços de telecomunicações. A princípio, na visão pessoal do autor do presente artigo, o
exercício da competência federal não pode excluir a hipótese de maior proteção ao consumidor, seja por estados,
seja pelos municípios.
57. Conforme art. 27 da Lei n. 13.116/15, que modifica o art. 74 da Lei 9.472/1997.
58. Conforme art. 30, da Lei n. 13.116/2015, que modifica o art. 2º, inc. XVIII, do Estatuto da Cidade. Neste contexto,
destacam-se as leis municipais que tratam da instalação de redes subterrâneas de cabos de energia e de
telecomunicações. Um tema de convergência entre as infraestruturas de redes de energia e de telecomunicações
que desafia o enfrentamento da constitucionalidade destas leis municipais, diante da competência da União para
legislar sobre infraestruturas de redes e serviços de energia e telecomunicações. Sobre o assunto, destaquese que tema constitucional encontra-se em análise pelo STF. Na Ação Cautelar n. 3420 MC/RJ, no Recurso
Extraordinário com Agravo n. 764.029/RJ (ação cautelar para atribuir efeito suspensivo a agravo), Rel. Min. Carmén
DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO
LEI FEDERAL DAS NORMAS GERAIS PARA LICENCIAMENTO E COMPARTILHAMENTO DE
INFRAESTRUTURA DE REDE DE TELECOMUNICAÇÕES
363
lei reafirma a competência da União para instituir diretrizes para o desenvolvimento
urbano, inclusive infraestrutura de energia e telecomunicações.59 Evidentemente, o
estabelecimento destas diretrizes federais deve ser em conformidade com a preservação
da autonomia constitucional dos municípios para tratar de assuntos de interesse local
dos seus cidadãos. A concretização do direito à infraestrutura urbana adequada60
para coletividade dos cidadãos demanda, portanto, o tratamento prioritário, seja pelo
Poder Executivo, seja Poder Legislativo local, das obras e instalações de infraestrutura
de energia e telecomunicações. Ou seja, cria o dever de adoção de regras, ações, e
procedimentos administrativos e legislativos, de modo suficiente, à concretização do
direito à infraestrutura urbana adequada para seus respectivos cidadãos.
11. DA COMPETÊNCIA DA ANATEL
Cabe à Anatel estabelecer os parâmetros técnicos para instalação, operações,
manutenção e remoção das redes de telecomunicações, inclusive infraestrutura de suporte.61
Também, a princípio, compete a Anatel o estabelecimento das metas sociais, econômicas e
tecnológicas para a gestão das infraestruturas de telecomunicações. Evidentemente, que o
estabelecimento de uma política regulatória nesta direção pode ser examinada judicialmente
sob a perspectiva de sua constitucionalidade e legalidade. Compete, também, à Anatel a
edição das normas sobre os critérios para classificação de uma estação de radiocomunicação
de pequeno de porte, e, assim, para afastar a exigência do licenciamento.62
Por fim, compete a Anatel fiscalizar o respeito aos limites legais impostos às
estações transmissoras de radiocomunicação e os terminais de acesso dos usuários
dos serviços, em relação à exposição das pessoas aos campos elétricos, magnéticos
Lúcia, discute-se a inconstitucionalidade da lei do Município do Rio de Janeiro que obriga a substituição de
rede elétrica aérea por rede subterrânea. A título ilustrativo, o Município de Curitiba aprovou a Lei n. 14.593/2015
para a substituição da rede aérea de cabos por uma rede subterrânea, com repercussão sobre as empresas de
distribuição de energia elétrica e de telecomunicações.
59. Conforme art. 30, da Lei n. 13.116/2015, que modifica o art. 2º, inc. IV, do Estatuto da Cidade
60. O direito à infraestrutura urbana é uma diretriz geral da política urbana previsto no Estatuto da Cidade em
seu art. 2, inc. I.
61. Cf. Art. 13, inc. I, da Lei n. 13.116/2015.
62. Art. 10 da Lei n. 13.116/2015.
364
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
e eletromagnéticos.63 Uma questão que surge em decorrência da Lei n. 13.116/2015
consiste na competência da Anatel para tratar de assuntos referentes às infraestruturas
de redes de telecomunicações. É que a competência originária da Anatel incide, de
modo predominante, sobre os serviços de telecomunicações e, respectivamente, sobre
as empresas prestadoras de serviços telecomunicações. Daí a questão sobre os limites
da competência da Anatel para a criação de obrigações vinculantes para empresas
especializadas na gestão da infraestrutura de redes de telecomunicações.64 Ou seja, há
discussões sobre os limites à competência da Anatel sobre o setor de infraestrutura, em
decorrência da interpretação dos dispositivos da Lei em análise.65
12. CONCLUSÕES:
Diante do exposto, a partir da análise da Lei n. 13.116/2015 das Normas Gerais para
Implantação e Compartilhamento da Infraestrutura de Telecomunicações, apresenta-se
as seguintes conclusões:
O acesso dos consumidores aos serviços de telecomunicações depende das
infraestruturas organizadas em redes de telecomunicações. Os consumidores, na posse
de terminais de acesso (aparelhos celulares, notebooks, tablets, etc), podem utilizar
os serviços de telefonia móvel e internet, mediante a rede de antenas distribuídas em
diversos bairros da cidade.66
63. Art. 18, §1, da Lei 13.116/2015.
64. Pela Lei Geral de Telecomunicações, há a competência da Anatel para disciplinar as redes de telecomunicações,
sejam aquelas do regime público ou sejam aquelas do regime privado, especialmente quanto à normatização
técnica para fins de interconexão entre as redes.
65. A título ilustrativo, o novo Código de Processo Civil contém dispositivos que afetam a Anatel. Por exemplo, as
decisões em incidente de resolução de demandas repetitivas que envolvam questão sobre a prestação de serviço
concedido, permitido ou autorizado, o resultado do julgamento deve ser comunicado à agência reguladora
competente para fiscalizar a efetiva aplicação, pelos entes sujetitos à regulação, da tese jurídica adotada pelo
tribunal, conforme dispõe o art. 985, §2, do novo CPC.
66. Os consumidores dos serviços de telecomunicações, nas modalidades de telefonia celular e acesso à internet
móvel, são pessoas físicas e pessoas jurídicas. Aliás, o Regulamento da Anatel dos Direitos dos Consumidores nos
Serviços de Telecomunicações, aprovado pela Resolução n. 632/2014, reconhece diversos direitos para pessoas
físicas e jurídicas. Este foi abordado pelo autor do presente artigo no estudo: Direito dos Consumidores nos
Serviços de Telefonia Fixa, Móvel Pessoal, TV por assinatura, conexão à internet: aproximações entre o Direito
do Consumidor e o Direito Regulatório das Comunicações (Telecomunicações e Internet), a ser publicado na
Coletânea Repensando os Direitos do Consumidor, pela OAB/PR, trabalho ainda no prelo.
DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO
LEI FEDERAL DAS NORMAS GERAIS PARA LICENCIAMENTO E COMPARTILHAMENTO DE
INFRAESTRUTURA DE REDE DE TELECOMUNICAÇÕES
365
Estes serviços de comunicações criam imenso valor para as pessoas, os negócios,
cidades e os governos. A criação de valor ocorre em diversos âmbitos: informação,
comunicação, comércio tradicional e eletrônico, entretenimento (vídeos/redes sociais),
entre outras atividades econômicas relevantes para o Brasil e para os brasileiros.67
As infraestruturas de telecomunicações são essenciais para a prestação dos
serviços móvel pessoal e conexão à internet. A falta de infraestrutura adequada de
telecomunicações ou danos à infraestruturas repercutem intensamente na vida das
pessoas, dos negócios (comércio, indústria e serviços) e dos governos. Vale dizer, mais e
melhores redes de telecomunicações tem o potencial de ampliar o acesso e qualidade
dos serviços de comunicação móvel para os consumidores.
A Lei n. 13.116/2015, que trata das infraestruturas de telecomunicações, foi
editada com fundamento na competência privativa da União para legislar sobre
telecomunicações, daí a razão para o estabelecimento de normas gerais sobre
infraestrutura de telecomunicações, com o enquadramento constitucional no art. 22,
inc. IV, da Constituição do Brasil.
Em que pese a competência federal para legislar sobre telecomunicações, destaquese a competência concorrente legislativa da União e do Estado para legislar sobre direito
urbanístico, previsto no art. 24, 1, inc. I, da Constituição.
Também, saliente-se a competência municipal para tratar de matéria de interesse
local, como é o caso do uso e ocupação do solo urbano e de regras para a autoorganização da administração pública.
Daí na hipótese de eventual conflito em torno da constitucionalidade de algumas
das regras da Lei n. 13.116/2015, especialmente dos limites à competência federal, diante
das competências dos Estados e Municípios. Caberá ao STF firmar o entendimento
sobre sentido e o alcance das lei com as normas gerais sobre as infraestruturas de
telecomunicações, na hipótese de o tema constitucional ser discutido.
A Lei das Normas Gerais da Infraestrutura de Telecomunicações modifica a Lei Geral
de Telecomunicações, Estatuto da Cidade e Lei da Proteção à Pessoa diante campos
de energia elétrica e eletromagnética. A referida Lei contém regras sobre aspectos de
67. Segundo dados atualizados até dezembro de 2014, na telefonia móvel foi registrado 281,7 milhões de acessos
por terminais dos usuários. Na internet banda larga móvel: 162,9 milhões de acessos por terminais dos usuários.
Dados conforme relatório da Telecom: www.telecom.com.br/3G_brasil.asp e da Anatel.
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
366
telecomunicações, meio ambiente, urbanismo e saúde pública.
A Lei das Normas Gerais da Infraestrutura de Telecomunicações tem repercussão
no âmbito dos municípios na medida em que contém princípios para o processo
administrativo de outorga do licenciamento da instalação de infraestrutura e redes
de telecomunicações, a saber: i) razoabilidade e proporcionalidade; ii) eficiência e
celeridade; iii) integração e complementaridade entre as atividades de instalação de
infraestrutura de suporte e de urbanização; iv) redução do impacto paisagístico da
infraestrutura de telecomunicação.
A Lei das Normas Gerais sobre a Infraestrutura de Telecomunicações contém norma
geral para o licenciamento das estações de radiocomunicações pelos municípios,
especificamente estabelece o prazo de 60 (sessenta) dias para emissão da licença
de operação da referida estação de radiocomunicação, contados a partir da data de
apresentação do requerimento;
A referida Lei das Normas Gerais sobre a Infraestrutura de Telecomunicações impacta
as empresas com autorização, permissão e concessão dos serviços de telecomunicações,
ao aprovar normas gerais sobre:
i.
metas sociais, econômicas e tecnológicas a serem estabelecidas pelo
poder público quanto à gestão da infraestrutura de telecomunicações.
Neste aspecto, o art. 1, §1, da Lei n. 13.116/2015 há de ser interpretado, em
conformidade com os artigos 128 e 130 da Lei Geral de Telecomunicações, os
quais se referem aos condicionamentos regulatórios à atuação empresarial e
respectivos limites legais à atuação da agência reguladora;
ii.
o compartilhamento da capacidade excedente da infraestrutura de suporte
dos serviços de telecomunicações;
iii. os limites da exposição das pessoas ao campo elétrico e magnético das
estações de radiocomunicação, com a responsabilização das empresas de
telecomunicações quanto à segurança dos usuários dos respectivos serviços;
iv. exigência de autorização do proprietário ou possuidor do imóvel para a
instalação de estação de radiocomunicação;
Conforme a Lei em análise, compete à Anatel:
i) estabelecer parâmetros técnicos para instalação, operações, manutenção e re-
DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO
LEI FEDERAL DAS NORMAS GERAIS PARA LICENCIAMENTO E COMPARTILHAMENTO DE
INFRAESTRUTURA DE REDE DE TELECOMUNICAÇÕES
367
moção redes de telecomunicações, inclusive infraestrutura de suporte; ii) estabelecer
metas sociais, econômicas, tecnológicas para a gestão das infraestruturas de telecomunicações; iii) editar normas sobre os critérios para classificação de uma estação de radiocomunicação de pequeno porte, para fins de dispensa de licenciamento; iv) fiscalizar os
limites de exposição humana aos campos magnéticos das estações de radiocomunicações e os terminais de acessos dos usuários aos respectivos serviços.
A Lei n. 13.116/15 tem repercussão no âmbito do Direito do consumidor,
especialmente sobre o direito de informação dos consumidores a respeito dos limites
de exposição das pessoas aos campos de energia dos produtos/terminais de acesso
aos serviços de telecomunicações (celulares, notebooks, tablets, etc), com a exclusão da
incidência de normas estaduais e municipais sobre conteúdo e forma de disponibilizar
estas informações aos consumidores.
As empresas do setor da construção são impactadas pela Lei das Normas Gerais de
Infraestrutura de Telecomunicações. Garante-se o direito de passagem de cabos e fibras
óticas, dentro dos edifícios privados e públicos.
É aprovada como diretriz geral da política urbana, no âmbito do Estatuto da
Cidade, o tratamento prioritário às obras e edificações de infraestrutura de energia e
telecomunicações, reafirmando-se a competência da União para o estabelecimento das
diretrizes para o desenvolvimento urbano. Em síntese, o direito à infraestrutura urbana
adequada requer o tratamento prioritário do Poderes Executivo e Legislativo, mediante
ações e procedimentos efetivos, sobre as instalações de rede de telecomunicações.
A Lei n. 13.116/2015 define o regime jurídico da infraestrutura de telecomunicações,
em reforço à regulação federal do tema. Esta lei federal representa um passo de
centralização normativa, com a finalidade de preservar a unidade regulatória sobre o tema
das antenas de celulares, sobre todo o território nacional, com o estabelecimento dos
critérios para o licenciamento das estações de radiocomunicação e o compartilhamento
obrigatório da capacidade excedente das redes de telecomunicações.
Em síntese, a Lei das Normas Gerais da Infraestrutura de Telecomunicações contém
regras relevantes no âmbito do Direito das Comunicações, com repercussão nos
interesses das empresas de telecomunicações e de infraestrutura, consumidores dos
serviços de telefonia e internet móvel, estados e municípios. Daí a necessidade de seu
conhecimento adequado para buscar a interpretação e orientação mais adequada à
defesa da realização dos seus objetivos práticos.
DIREITO PÚBLICO
APLICAÇÃO DA TEORIA DO FACTA
CONCLUDENTIA E SUA REÇÃO COM A
REVOGAÇÃO DE ATOS ADMINISTRATIVOS
DE FORMA IMPLÍCITA POR PARTE DA
ADMINISTRAÇÃO
LUÍS ALBERTO DE FISCHER AWAZU
Advogado. Graduado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em direito empresarial na GV
LAW/ FGV. Mestre em direito pela da USP. Doutorando em direito constitucional pela PUC-SP.
SUMÁRIO
1.Introdução; 2.Aplicação do facta concludentia no Direito Administrativo. 2.1 Da Possibilidade de Revogação do
Ato Administrativo com Base no Facta Concludentia; 3.Conclusão; 4. Referências Bibliográficas.
RESUMO
ABSTRACT
O chamado facta concludentia, aplicado aos
atos administrativos, implica a possibilidade de
revogação de atos administrativos por outros,
supervenientes, que implicitamente revogariam
os atos anteriores com eles incompatíveis,
operando-se a chamada revogação tácita.
Aplicando-se o princípio da boa-fé objetiva,
tem-se que é negado à Administração a
adoção de comportamentos contraditórios,
ainda que implícitos, em face do princípio da
confiança. Assim, o segundo ato administrativo,
que contradiz o primeiro ato concedente de
direitos ao interessado, deve ser, em princípio,
considerado inválido.
The so called facta concludentia, applied to
administrative acts, implies the possibility
of revocation of administrative acts by other
acts, supervening, which implicitly repeal the
earlier acts with them incompatible, operating
the tacit revocation. Applying the principle of
objective good faith, that denies the power to
he Administration for adoption of contradictory
behavior, even if implicit, given the principle of
trust . Thus, the second administrative act, which
contradicts the first act – this one granting rights
to the person concerned - should be considered
invalid.
PAVRAS-CHAVE
Facta Concludentia – ato administrativo revogação tácita – boa-fé objetiva
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
372
1.INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por objetivo colher elementos acerca da teoria do chamado
facta concludentia, e sua aplicação no direito administrativo, em especial sobre a
possibilidade de revogação de atos administrativos por outros, supervenientes, que
implicitamente revogariam os atos anteriores com eles incompatíveis.
Assim, cabe estreitarmos o conceito de facta concludentia que será utilizado para os
fins deste trabalho. De acordo com a Enciclopédia Saraiva do Direito:
“Fatos dos quais se pode concluir algo. Traduz-se literalmente: fatos concludentes.
Fatos que se deduzem ou se podem concluir da própria manifestação da
vontade. Constituem uma declaração implícita de vontade geradora de um
negócio jurídico. Por exemplo, o herdeiro que paga uma dívida dá a entender
que aceitou a herança (v. Abstenção).1”
O facta concludentia é um instituto aplicado em muitos ramos do direito,
especialmente no direito civil e processo civil, para representar, de modo geral, a prática
de atos posteriores, incompatíveis com os anteriores praticados na mesma relação
jurídica.
Em geral, o facta concludentia acaba por revelar uma vontade implícita diversa do
agente quando pratica o segundo ato, como por exemplo, quando em um processo
uma parte recorre da sentença e imediatamente após assina acordo para quitação da
dívida. Nesta hipótese, o recurso estará prejudicado, ainda que o acordo nada fale a
respeito.
O segundo ato, sendo incompatível com o primeiro, e tendo ambos partidos da
mesma pessoa, prejudica o primeiro, pois de alguma forma, está se atacando seu
conteúdo – ainda que implicitamente.
2. APLICAÇÃO DO FACTA CONCLUDENTIA NO DIREITO
ADMINISTRATIVO
No campo do direito administrativo, o facta concludentia tem sido aplicado no
1. Enciclopédia Saraiva do Direito / coordenação do Prof, R. Limongi E46 França. — São Paulo: Saraiva, 1977.vol.
XI.p.42
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campo do silêncio administrativo, ou seja, a não resposta da Administração a um pleito
individual, ou simples inação do Estado diante de uma situação concreta.
Tem-se ainda este sido associado com os chamados atos administrativos tácitos e/
ou implícito2. Vale destacar que a doutrina pátria de maneira majoritária não considera
o silêncio administrativo como ato administrativo, mas sim, um fato administrativo. Este
porém, não é o enfoque do presente trabalho, que é, ao contrário a prática de atos
administrativos concretos no tempo.
Citando o autor português André Gonçalves Pereira, Estrela esclarece que o ato
implícito é o que “que resulta necessariamente de uma consulta destinada a fim diverso,
inferindo-se sem possibilidade de dúvida dos facta concludentia.3”
Por sua vez o mesmo autor conceitua o ato tácito o qual pode ser:
(a) interno, quando resulta da omissão de órgão administrativo controlador
em manifestar tempestivamente a sua aquiescência ou desacordo em relação
a ato de outro órgão que deva ser objeto de seu controle. Se não o fizer em
determinado prazo, a lei o considera aprovado; e (b) externo, resultantes da
omissão administrativa em apreciar, em dado tempo legalmente pré-fixado, uma
pretensão do administrado. Não o fazendo, considera-se rejeitada a pretensão
que lhe fora submetida4.
Pode-se notar das classificações acima transcritas, que de acordo com o autor citado,
tanto o ato tácito quanto o implícito se referem a omissões da Administração.
Para os fins desta pesquisa, melhor resultado alcançou Celso Antônio Bandeira de
Mello, que escorado na doutrina italiana, assim define o ato administrativo implícito:
58. No Direito Português ambas as hipóteses são denominadas “atos tácitos”. Já, no
Direito italiano a omissão administrativa em manifestar-se perante pretensão do
administrado sobre a qual deva pronunciar-se é conhecida simplesmente como silêncio, ao passo que a expressão “ato tácito” ou declaração tácita é, algumas vezes,
utilizada para referir outra situação: aquela reveladora do que mais propriamente
2. SANTOS, Felipe Estrela de los Santos. O valor do Silêncio da Administração Pública na Hipótese de Ausência de
Pronúncia em Face do Reclamo do Administrado. In: RGPE, Porto Alegre, v.33. n.69, p.89-124. P.100
3. PEREIRA, André Gonçalves. Erro e Ilegalidade no Acto Administrativo, Lisboa, 1962. 86 apud Estrela.p.100
4. Ob.cit.p.100-grifo nosso
374
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v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
se denominaria “ato implícito”.51 A saber: os casos em que a Administração não
se manifesta explicitamente ante uma dada situação, entretanto, através de outro
comportamento seu, pode-se deduzir, inequivocamente, uma decisão implícita,
decorrente de algum ato explícito ou mesmo de um fato (facta concludentia). Sirva
de exemplo um pedido de permissão de uso em relação a dado bem imóvel efetuado por mais de um sujeito. Deferida a um, está implicitamente indeferida a outro.5
Interessante notar do trecho destacado em negrito, que a decisão da Administração
pode se dar por um fato administrativo ou ato explícito. Isto implica tecer alguns
comentários acerca da estrutura da manifestação de vontade do agente público.
Oswaldo Aranha Bandeira de Mello assim anota:
Quanto à estrutura, distingue-se em expressa e tácita. Expressa, quando a fórmula
de manifestação da vontade é feita diretamente com referência ao próprio ato
jurídico em consideração. Tácita, quando a fórmula de manifestação da vontade
resulta indiretamente com referência a dado assunto, pela prática de outro ato
jurídico ou ato material, ou mesmo pela falta de qualquer exteriorização de
manifestação de vontade6.
Entretanto, neste ponto do trabalho cabe questionar até que ponto a manifestação
tácita da Administração, em ato ou fato posterior, pode implicar a retirada do ato
contrariado do ordenamento jurídico?
2.1. DA POSSIBILIDADE DE REVOGAÇÃO DO ATO
ADMINISTRATIVO COM BASE NO FACTA CONCLUDENTIA
A retirada do mundo jurídico dos atos jurídicos por vontade própria da Administração
é um dos temas mais polêmicos no direito administrativo.
A retirada da vigência do ato administrativo por vontade posterior da Administração,
pode se dar por meio da revogação, não anulação, pois não se trata da discussão de
vícios na vigência ou eficácia dos atos administrativos em comparação, mas simples
alteração de vontade por parte da Administração que alterou a situação fática praticada
no primeiro ato.
5. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30ª. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros,
2014.p.418-grifo nosso
6. MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios Gerais do Direito Administrativo. 3.ed. Vol I. São Paulo:
Malheiros, 2007.p.508-grifo nosso
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À medida em que a Administração emana comportamentos contraditórios, ainda
que tácitos entre duas manifestações, surge a discussão sobre se isto pode ser ou não
causa da derrubada do ato administrativo (em especial o ato administrativo primário
confrontado com o segundo ato, este sim objeto do comportamento contraditório).
Assim, caso haja no curso da vigência de um ato administrativo a alteração de um
pressuposto de direito indispensável à sua existência estaremos diante do fenômeno
do decaimento. Sobre este fenômeno assim anota Márcio Cammarosano:
Assim considerado, o decaimento é conseqüência do desaparecimento quer
de um pressuposto de fato, quer de um pressuposto de direito indispensável
à existência de um ato administrativo, ou à sua validade, ou à sua eficácia, ou à
manutenção do seu efeito.
De nossa parte, aceitamos o decaimento não como modalidade de extinção do ato
administrativo ou de seus efeitos, mas como a invalidade superveniente, que dará
ensejo à extinção do ato ou de seus efeitos mediante a emanação de outro ato.
Restringimos, destarte, o conceito de decaimento, de sorte a compreender
apenas o fenômeno da invalidade superveniente de um ato ou relação jurídica,
em virtude de modificação da ordem legal que fundamentava sua validade.7
Logo, a discussão quanto à revogação do ato administrativo com base no facta
concludentia não se dá, aparentemente, pelo decaimento, pois não há invalidade
superveniente, mas uma alteração da vontade da Administração.
Sobre a possibilidade de revogação tácita dos atos administrativos Celso Antônio
Bandeira de Mello anota:
111. A revogação pode ser explícita ou implícita. É explícita quando a autoridade
simplesmente declara revogado o ato anterior. É implícita quando, ao dispor
sobre certa situação, emite um ato incompatível com o anterior. Em um e outro
caso a revogação pode ser total ou parcial, conforme a amplitude com que afeta
a situação precedente8.
7. CAMMAROSANO, Márcio. Decaimento e extinção dos atos administrativos. Revista de Direito Público, v. 13, n.
53/54, p. 161-172, jan./jun. 1980.p.169
8. Ob.cit.p.458-grifo nosso
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v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
O autor citado considera ser possível a revogação de ato administrativo de modo
implícito, total ou parcialmente. Em outras palavras, isto significa o facta concludentia.
Entretanto, observamos na doutrina tradicional, que a revogação deve ocorrer de
modo explícito, ou seja, expressamente, por ato secundário que revogue ato anterior.
Neste sentido anota Manoel Ribeiro, em parecer datado de 1961:
VII - O silêncio da autoridade que substituiu a que emitiu o ato não tem qualquer
sentido. Não produz efeito jurídico. O ato foi emitido por escrito. A decretação
de sua nulidade (sempre expressa) e a revogação (expressa ou implícita) deverão
ser escritas. A manifestação da vontade deverá concretizar-se pela mesma forma
por que foi realizado o ato que se pretendia decretar nulo ou revogar. Mesmo
aquêles que mandam apenas observar, estritamente, o princípio da similitude
da forma para os atos de revogação, não podem negar que a decretação da
nulidade deve ser expressa, clara e inequívoca.
Não se pode argüir que a manifestação tácita revelada pelo comportamento
da nova autoridade denotasse repulsa, revogação ou decretação de nulidade
do ato praticado pela autoridade antecessora. Não serve a manifestação tácita,
para desfazer ou afastar um ato administrativo. Está em pleno, desacôrdo com o
principio da similitude da forma, que é principio geral de direito. Na verdade, a
autoridade dos princípios gerais de direito aparece na jurisprudência, ora igual
à lei, ora superior, ora inferior, é o que escreve Rivero (“apud” Benoit Jeanneau,
“Les príncipes généraux du Droit dans la Jurisprudence Administrative” edition
Recueil Sirey, Paris, 1954, pág. 169). Benoit Jeanneau na ob. cit., pág. 171, declara
que, de um ponto-de-vista material, os princípios gerais de direito aparecem,
com efeito, como superiores à lei9.
A revogação tácita, aqui tratada como sinônimo do facta concludentia, ainda é
matéria polêmica. Para tentar ilucidar a questão devemos recorrer, inevitavelmente, à
Lei 9.784/99 que trata do processo administrativo na esfera federal. Em seu art.3º, III
dispõe que é direito do administrado: “formular alegações e apresentar documentos
antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente.”
9. RIBEIRO, Manuel. Perfeição e Validade do Ato Administrativo. Revogação e nulidade – O Princípio da Similitude
da Forma. In: Di Pietro, Maria Zenella, Sundfeld, Carlos Ari (orgs). Direito Administrativo. São Paulo: Ed. RT, 2012
(Doutrinas Essenciais, vol. 2, p.952-grifo nosso ).
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Por sua vez o art.48 dispõe que é dever da Administração decidir as questões que
lhe são propostas pelos administrados tendo o “dever de explicitamente emitir decisão
nos processos administrativos e sobre solicitações ou reclamações, em matéria de sua
competência.”
Deste modo, concluímos que a legislação, ao menos no plano federal, não trata
claramente do silêncio da Administração, ao contrário, imprime o dever de decidir ao
Poder Público, o que contrario sensu, implica na vedação ao silêncio administrativo.
Neste sentido, não podemos ignorar manifestações absolutamente díspares por
parte da Administração, que devem ser consideradas num contexto mais amplo. Ou
seja, deve-se analisar a estrutura das relações jurídicas dos atos administrativos alvo das
contradições.
Explique-se. Se em um ato a Administração manifesta uma vontade, concedendo
um determinado direito ao interessado, concretiza-se uma relação jurídica perante à
Administração:
S1 r1 - S2 (r1: relação jurídica)
Se posteriormente, em um segundo ato, a Administração expede ato no sentido
de alterar substancialmente a essência da r1, de modo implícito, estará a revogar o
ato anterior, resguardada a possibilidade de este ser ato jurídico perfeito, conferindo
direito adquirido ao seu titular ou mesmo o prazo decadencial de anulação dos atos
administrativos previstos no art.54 da Lei 9.784/99.
Observando este panorama, Carlos Ari Sundfeld anota:
Se, de um lado, os atos administrativos gozam de presunção de legitimidade,
de outro, aquele que se conformar com a decisão estatal, e cumpri-la, tem em
seu favor a presunção de que agiu de boa-fé e, como tal, será protegido. Essa
é a contrapartida ao poder de impor unilateralmente obrigações exigíveis. O
particular que, em conformidade com ato administrativo, constitui situação
concreta, recebe especial amparo do Direito.
Essa proteção se justifica, principalmente, nas situações em que a decisão
administrativa, em virtude de ilegalidade (invalidação) ou por conveniência e
oportunidade da Administração (revogação), vem a ser posteriormente extinta
ou reformada. Mesmo após sua extinção, os efeitos do ato administrativo
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v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
merecem tratamento especial, de modo a serem preservados os interesses dos
particulares atingidos.
Assim é que, nos casos de revogação, tem-se como assente o dever de a
Administração respeitar os direitos constituídos a partir do ato revogado. Ou seja,
há o reconhecimento inconteste de que tais atos produzem direitos adquiridos;
direitos esses que, mesmo após a extinção do ato que os sustentava, merecem
proteção.
Até mesmo quando se trata de ato administrativo com vício de legalidade,
não fica desamparado o particular que, de boa-fé, tiver sido atingido pelo ato
inválido. Atualmente, essa situação tem reconhecimento legislativo, por meio da
Lei de Processo Administrativo Federal, que estabeleceu o prazo máximo de 5
anos para a Administração anular atos viciados que tenham ampliado a esfera de
direitos de particulares de boa-fé10.
Neste sentido, a doutrina moderna passou a analisar o comportamento da
Administração sob o ponto de vista da boa-fé objetiva, incorporada a tempos ao
direito civil.
O princípio da boa-fé objetiva reflete o comportamento das partes antes, durante
e após a celebração do contrato. Uma das aplicações consagradas deste princípio
é o chamado venire contra factum proprium, ou seja, a vedação de comportamento
contraditório das partes no curso da execução de um contrato, por exemplo.
Flavio Tartuce comenta sobre a aplicação do venire contra factum proprium:
Pela máxima venire contra factum proprium non potest, determinada pessoa não
pode exercer um direito próprio contrariando um comportamento anterior, devendo
ser mantida a confiança e o dever de lealdade, decorrentes da boa-fé objetiva.11
Aplicando o princípio da boa-fé objetiva ao processo administrativo, Egon Bockman
anota:
10. SUNDFELD, Carlos Ari. “Nova Orientação do CADE Sobre o Cumprimento de Compromisso de Cessação Não
Pode ter Efeitos Para o Passado” in: Direito administrativo econômico, coleção pareceres vol. I, São Paulo, Revista
dos Tribunais, 2013, pp.616-grifo nosso
11. TARTUCE, Flavio. Manual de direito civil: volume único. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.p.561
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45. Quanto ao princípio da boa-fé, o art.2º da Lei 9.784/99 prevê expressamente
sua incidência, no inciso IV de seu parágrafo único, que exige a “atuação segundo
padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé”.
O inciso I do art. 3º celebra que é direito do cidadão “ser tratado com respeito
pelas autoridades e servidores, que deverão facilitar o exercício de seus direitos e
o cumprimento de suas obrigações”. E, em seguida, o art. 4a impõe os deveres de
o particular “proceder com lealdade, urbanidade e boa-fé” e “não agir de modo
temerário” (incisos II e III). A Lei 9.784/1999 positivou a boa-fé como dever para a
Administração e para as pessoas privadas que com ela interagem.
Relacionam-se à boa-fé processual o dispositivo legal que decreta a inadmissibilidade
das provas obtidas por meio ilícito (art. 30) e aquele que veda a produção de provas
“ilícitas, impertinentes, desnecessárias ou protelatórias” (art. 38, § 2a).
Ou seja, a Lei 9.784/1999 é rica em disposições que positivam e enaltecem este
aspecto do princípio da moralidade12.
O STJ também vem aplicando o princípio do venire contra factum proprium nos atos
administrativos:
DIREITO ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL – EMBARGOS DE DECLARAÇÃO
– CONSTATAÇÃO DE ERRO DE PREMISSA FÁTICA – EMBARGOS ACOLHIDOS
– POLICIAL FEDERAL “SUB-JUDICE” – APOSTILAMENTO – ATENDIMENTO
DOS REQUISITOS DO DESPACHO MINISTERIAL Nº 312/2003 – PRINCÍPIOS DA
RAZOABILIDADE E DA BOA-FÉ – “VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM” –
SEGURANÇA CONCEDIDA.
1. Constatado que o julgado embargado adotou premissa fática equivocada,
configurado está o erro de fato a justificar o acolhimento dos aclaratórios.
2. Os impetrantes, na qualidade de policiais federais “sub-judice”, atenderam todos
os requisitos do Despacho Ministerial nº 312/2003, fazendo jus ao apostilamento.
3. A Administração Pública fere os Princípios da Razoabilidade e da Boa-fé
quando exije a desistência de todas as ações promovidas contra a União ao
12.BOCKMANN, Egon Moreira. Processo Administrativo: Princípios Constitucionais e a Lei 9.784/99. 4ªed.São Paulo:
Malheiros, p.126
380
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v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
mesmo tempo em que estabelece exigências não previstas expressamente no
Despacho Ministerial nº 312/2003, regulamentado pela Portaria nº 2.369/2003DGP/DPF para a concessão do apostilamento.
4. “Nemo potest venire contra factum proprium”.
5. Embargos de declaração acolhidos para, reconhecendo o erro de premissa
fática, conceder a segurança para os fins especificados13.
Entretanto, qual seria a relação entre o princípio da boa-fé objetiva (teoria dos atos
próprios ou venire contra factum proprium) e o facta concludentia?
O vínculo está que atualmente se exige um comportamento probo da Administração,
sendo que em seus atos não pode agir contraditoriamente, ou seja, de modo a quebrar
a confiança do administrado, o que está plasmado no art.2º, inciso IV da Lei 9.784/99.
Sobre este tema anota Luís Manoel Fonseca Pires:
Uma vez mais, a confiança. A confiança que se produz junto ao administrado
como expectativa legítima pelo contexto fático que se circunstancia. Se a
Administração, por exemplo, concede uma permissão de uso de bem público
para um administrado, sorteado entre outros interessados, instalar-se com uma
banca de jornal em uma praça pública, provoca a expectativa de que os seus
investimentos não podem destinar-se a que se mantenha em funcionamento
por apenas um mês. A segurança jurídica — da qual emana a confiança do
administrado — é fundamento bastante a impedir a revogação da permissão
se não houver fundamentação congruente, exata, suficiente e clara, e mesmo
que se atenda a estes requisitos (cogite-se da superveniente necessidade de
expandir a área de segurança de um prédio público), a despeito de a revogação
tomar-se possível, há direito à indenização ao permissionário porque de todo
modo a confiança que lhe foi estimulada em virtude do comportamento e dos
atos da Administração inegavelmente se rompeu14.
13. EDcl no Mandado de Segurança Nº 14.649 - DF (2009/0184092-2), STJ, RELATOR : MINISTRO MOURA RIBEIRO,
26/02/14-grifo nosso
14. PIRES, Luis Manoel Fonseca. A Estabilidade como Atributo do Ato Administrativo. In: Tratado Sobre o Princípio
da Segurança Jurídica no Direito Administrativo. Coordenadores: Rafael Valim, José Roberto Pimenta Oliveira,
Augusto Neves Dal Pozzo. Belo Horizonte: Fórum, 2013.p.308-grifo nosso
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381
A vedação ao agir de modo contraditório da Administração, em tese, também é
a proibição ao facta concludentia, ou seja, a adoção de uma manifestação contrária
incompatível com ato anterior.
O princípio da confiança deve ser levado em consideração quando ocorrem alterações
de regimes jurídicos regulamentadores de determinada atividade econômica, por
exemplo, como regra de concessões de serviços públicos, analisando-se assim como
ficam as relações jurídicas em relação ao regime normativo modificado.
O princípio da proteção da confiança encontra-se na constituição federal de 1988 por
meio de alguns dispositivos constitucionais, principalmente o art.5º caput e o art.37 caput.
Tal princípio traduz-se na ideia de que deve haver um limite para o exercício do poder
pelo Estado Administração, de forma a considerar não apenas as razões de interesse
público, mas também um limite à modificação de situações jurídicas resultantes dos atos
administrativos, ex.: prescrição, preclusão, decadência do direito anular, etc. O Estado,
atuando através de seus agentes, deve se pautar pela probidade, transparência e boafé nas relações jurídicas privadas, visando unicamente atender ao interesse público e
estabelecer um equilíbrio nas relações com os que se relacionam com o Estado15.
A segurança jurídica é um princípio que visa proteger a manutenção de situações
jurídicas constituídas validamente, como também situações nas quais houve a falta de
algum dos requisitos de validade, mas que pela boa-fé e decurso do tempo ganharam
proteção pelo ordenamento jurídico. A rigor, a segurança jurídica admite dois sentidos
distintos: um objetivo e outro subjetivo.
Sob uma ótica objetiva, podemos entender como sendo a garantia de previsibilidade
da conduta estatal e irretroatividade de seus efeitos e, subjetivamente, resulta na
proteção da confiança dos cidadãos em relação a toda ação administrativa, com o foco
de limitar a prerrogativa da Administração de mudar sua conduta em relação a seus
destinatários, assim como determinar a responsabilidade do poder público quando
assim proceder.
Desta forma, o princípio da confiança possui estreita relação com o princípio da
segurança jurídica. Conforme anota Rafael Valim, a confiança legítima “impõe o já
aludido dever de adoção de disposições transitórias para mudanças de regimes jurídicos,
15. MIRAGEM, Bruno. A Nova Administração Pública e o Direito Administrativo. São Paulo: 2011, Editora Revista dos
Tribunais, p.248.
382
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v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
ressalvada eventual situação em que o interesse público perseguido pelo regime jurídico
seja incompatível com um regime transitório.16”
Nestes momentos é que se costumam adotar regras de transição, visando adequar as
normas do regime revogado ao novo regime. As regras de transição, quando existentes
e suficientes, constituem verdadeiros elementos de segurança jurídico.
Ocorre que muitas vezes em nosso ordenamento jurídico tais regras não se
encontram presentes. Por vezes as alterações de regimes jurídicos ocorrem por medidas
provisórias, que por já nascerem com força de lei, acabam por encurralar o Congresso
Nacional, dado que pode ocorrer o trancamento da pauta caso a Medida Provisória não
seja apreciada em 45 dias após a sua publicação (art.62, §6º CF).
Foi o que quase ocorreu com a Medida Provisória nº 595/12, atual Lei nº12.815/13
(Lei dos Portos). Aprovada no último dia de vigência, a referida Medida Provisória
revogou a Lei nº 8.630/93, e sua conversão em lei se deu com vários vetos presidenciais,
prejudicando ainda mais a clareza do texto normativo.
As normas de transição são elementos confirmadores do princípio da confiança e,
em alguns setores, como no de infraestrutura, são essenciais. Ocorre que, devido ao
longo prazo de maturação dos investimentos, mudanças bruscas nos regimes jurídicos
da infraestrutura delegada aos particulares (portos, rodovias, aeroportos etc.) podem
afetar a composição dos planos de negócios.
Adotadas regras de transição claras e que protejam os investimentos já realizados
ou em curso, o investidor – principalmente o estrangeiro – terá mais confiança para
investir ou, no mínimo, para avaliar melhor as premissas do investimento.
Caso não sejam adotadas regras claras de transição, o próprio Estado se torna refém,
pois, não sendo possível a viabilização dos investimentos, o Estado terá que assumir a
concessão ou aditar o contrato administrativo inicial.
Haveria algum critério de aferição da confiança diante de uma alteração no regime
jurídico? Rafael Valim aponta duas perguntas para solução da referida pergunta17: 1- Há
a confiança legítima do administrado a ser tutelada? (b) Há um interesse público no
novo regramento que justifique a preterição da confiança legítima?
16. VALIM, Rafael. Princípio da Segurança Jurídica no Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2010. p.124
17. Ob.cit.p.126
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Aponta o autor que a confiança legítima deve significar uma expectativa real com a
mudança. De qualquer forma, não se tira a legitimidade do Estado em alterar as regras,
por ser sua prerrogativa, ainda mais no que tange a normas administrativas.
A aferição do interesse público deve se dar de modo proporcional ao direito
protegido, isto é, uma mudança radical no regime jurídico em vigor e que não haja
nenhuma proteção por uma regra de transição poderia potencialmente ofender a
legítima expectativa do interessado.
Há várias situações em que podem ocorrer alterações no regime jurídico vigente da
regulação de diversos setores, e o que vai variar é o momento em que se dá a alteração
e o momento em que se avalia a legítima expectativa.
Muito embora não haja direitos adquiridos sobre institutos ou regimes jurídicos em
si, mas sim aos efeitos por eles produzidos, a teoria aqui esposada busca se aplicar aos
diversos casos em diversos momentos, refletindo maior ou menor eficácia.
Por exemplo, caso em um determinado processo administrativo em curso perante
determinada agência regulatória ou autarquia, e no meio do processo haja uma
mudança legislativa - extinguindo o instituto jurídico no qual era baseado o direito
pleiteado – sem haver qualquer norma transitória, deve ser considerada se havia neste
momento a plena materialização do direito requerido.
Em outras palavras, se o requerente já preenchia todos os requisitos para a
materialização do direito pleiteado, faltando apenas um ato decisório final para a
plena materialização do direito, ainda não seria possível se falar em direito plenamente
adquirido, mas é possível se falar, em tese, em legitima expectativa – ainda mais se a
demora para a conclusão do direito não se der por conta do interessado, mas do órgão
onde tramita o processo administrativo.
Por outro lado, caso sequer tenha sido iniciado o processo administrativo para este
fim, a alegação de legítima expectativa fica um tanto prejudicada.
Por fim, caso já tenha sido assinado o contrato e iniciado os atos concretos da
autorização ou concessão, a expectativa é, aparentemente, mais do que legítima,
havendo fortes sinais de direito adquirido.
De qualquer forma, a quebra da confiança em face da Administração pode caminhar
para uma tentativa de adequação da situação fática do novo regime jurídico ou a
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intervenção judicial, via de regra com a fixação de indenização por perdas e danos.
Portanto, a legítima expectativa de direito em face de alteração de regime jurídico é
corolário do Estado de direito, pois materializa o princípio da confiança, este derivado
da segurança jurídica. A alteração de regime jurídico de determinado setor regulado da
economia, deve, em tese, conter regras de transição, a fim de que se proteja as relações
jurídicas que estão em andamento e que possam se consolidar no curso do processo
administrativo. A sua não observação acaba por ferir a confiança na Administração,
gerar conflitos e, por consequência, pode gerar um potencial atraso ou redução de
investimentos privados em infraestrutura.
A jurisprudência, como visto, vem fulminando o segundo ato (aquele que contradiz
o primeiro), por ofender à boa-fé objetiva. Sendo assim, o facta concludentia por
implicar uma vontade implícita, implica a revogação do primeiro ato, fazendo entender
que prevalece a vontade posterior da Administração, operando-se a revogação tácita,
salvo os atos jurídicos perfeitos.
Entendemos que a melhor interpretação é a conciliação das duas teorias, pois ambas
vêm a proteger a boa-fé objetiva do Administrado. A vedação ao comportamento
contraditório da Administração implica também a proteção a comportamentos
implícitos contraditórios. Neste caso, defendemos a prevalência da manutenção do
primeiro ato administrativo, este que concedeu os direitos (atacados num segundo
momento) ao interessado, limitando desta forma a revogação implícita.
3.CONCLUSÃO
1.
O chamado facta concludentia, aplicado aos atos administrativos,
implica a possibilidade de revogação de atos administrativos por outros,
supervenientes, que implicitamente revogariam os atos anteriores com eles
incompatíveis, operando-se a chamada revogação tácita.
2.
Tem-se associado o facta concludentia com os chamados atos administrativos
tácitos e/ou implícitos, oriundos de uma omissão/silêncio da Administração.
O silêncio administrativo não constitui ato administrativo, mas sim, um fato
administrativo.
3.
Consideramos correta a posição de Celso Antônio Bandeira de Mello, o qual
considera o facta concludentia como ato implícito, pelo qual a decisão da
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385
Administração não é expressa em determinado ato, mas age contrariamente
com manifestação exarada anteriormente, o que pode se dar por um fato
administrativo ou ato explícito ou mesmo implícito.
4.
Quanto aos efeitos da ocorrência do facta concludentia, tendo em vista que a
Administração emana comportamentos contraditórios, ainda que tácitos entre
duas manifestações, surge a discussão sobre se, tal fenômeno, pode ser ou não
causa da derrubada do ato administrativo (em especial o ato administrativo
primário confrontado com o segundo ato, este sim objeto do comportamento
contraditório). Em outras palavras, estamos tratando da revogação tácita.
5.
Quando a Administração expede ato posterior que contraria ato anterior
– o qual conferiu direitos ao interessado – alterando substancialmente a
relação jurídica criada pelo primeiro ato, estará, implicitamente revogando
o primeiro ato, resguardada a possibilidade de este ser ato jurídico perfeito,
conferindo direito adquirido ao seu titular ou mesmo o prazo decadencial
de anulação dos atos administrativos previstos no art.54 da Lei 9.784/99.
6.
O princípio da boa-fé objetiva reflete o comportamento das partes antes,
durante e após a celebração de um contrato. Uma das aplicações consagradas
deste princípio é o chamado venire contra factum proprium, ou seja, a
vedação de comportamento contraditório das partes no curso da execução
de um contrato, por exemplo. A vedação ao agir de modo contraditório da
Administração, em tese, também é a proibição ao facta concludentia, ou seja,
a adoção de uma manifestação contrária incompatível com ato anterior.
7.
A vedação ao comportamento contraditório da Administração implica a
proteção a comportamentos implícitos contraditórios, em face do princípio
da confiança na Administração. Neste caso, defendemos a prevalência da
manutenção do primeiro ato administrativo, este que concedeu os direitos
(atacados num segundo momento) ao interessado, limitando desta forma a
revogação implícita.
8.
Por fim, cabe-nos destacar que não se deve confundir revogação, implícita ou
não, com revisão interpretativa dos fatos que fundamentaram determinado
ato administrativo, a fim de, com isso, pretender a Administração rever ou
anular atos que gerem direitos legítimos aos seus titulares, o que é vedado
pela Lei 9784/99, art.2º, inciso XIII.
386
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO
APLICAÇÃO DA TEORIA DO FACTACONCLUDENTIA E SUA RELAÇÃO COM A REVOGAÇÃO DE ATOS
ADMINISTRATIVOS DE FORMA IMPLÍCITA POR PARTE DA ADMINISTRAÇÃO
387
VALIM, Rafael. Princípio da Segurança Jurídica no Direito Administrativo Brasileiro.
São Paulo: Malheiros, 2010.
DIREITO AMBIENTAL
QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS
ENVOLVENTES DA CSSIFICAÇÃO DOS
BENS JURÍDICOS TRAZIDA NO CÓDIGO
CIVIL E DO CONCEITO ABRANGENTE DO
BEM AMBIENTAL
REGINA VERA VILS BÔAS
Pós-Doutora em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra - Ius Gentium Conimbrigae.
Graduada, Mestre Doutora em Direito Civil e Doutora em Direitos Difusos e Coletivos, todos pela PUC/SP.
JOSÉ ÂNGELO REMÉDIO
Procurador do Estado de São Paulo. Mestre em Direito Difusos e doutorando em Direitos
Difusos e Coletivos pela PUC-SP.
MARLENE DOS SANTOS VILHENA
Mestra e doutoranda em Direito Difusos e Coletivos pela PUC-SP.
Como qualquer outra produção cultural, os direitos humanos têm uma origem histórica resultante do processo cultural de reação
que os seres humanos colocam em funcionamento em suas constantes relações com outros seres humanos, com a natureza e com
eles mesmos. (...) o que caracteriza os direitos humanos é serem “uma” entre essa grande quantidade de lutas que o Ocidente propôs
quando se encontrou, a partir dos séculos XV e XVI, com outros povos tão ou mais avançados do que aquilo que se considerava
civilização (p. IX). Devemos, portanto, ir de novo aos conceitos e aos fundamentos dos direitos, escrevendo e investigando sobre eles,
mas sempre e a todo o momento trabalhando em atenção às vítimas das injustiças e opressões e com o objetivo genérico de reinventar
a vida de todas e de todos em função da dignidade, e não da mera coerência formal ou lógica dos textos” (Joaquín Herrera Flores.
Teoria Crítica dos Direitos Humanos: os Direitos Humanos como Produtos Culturais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, pp. IX e 48).
SUMÁRIO
1. Introdução; 2. Dos bens considerados em si mesmos, 2.1. Dos bens imóveis, 2.2. Dos bens móveis, 2.3. Dos bens
fungíveis e consumíveis, 2.4. Dos bens divisíveis, 2.5. Dos bens singulares e coletivos; 3. Dos bens reciprocamente
considerados; 4. Bens Públicos; 5. Bem de Família; 6. Bem Ambiental; 7. Considerações Finais; 8. Referências.
RESUMO
ABSTRACT
A presente pesquisa objetivou refletir sobre os
conceitos dos bens protegidos pelo direito, à luz
da classificação trazida na parte geral do Código
Civil vigente, apurando a existência de outros
bens, dispostos no mesmo Código, além daqueles
indicados na parte geral, trazendo à baila
discussões sobre o objetivo da sistematização
ínsito à codificação. Referida insuficiência foi
ilustrada com o bem de família e o próprio bem
ambiental, evidenciando que este último exorbita
o regime jurídico do direito privado e do direito
público. A par disso, empregando a clássica
lição de Alf Ross, utilizou-se do conceito de “tûtû” para demonstrar a ausência de utilidade de
alguns conceitos de bem jurídico, acolhidos pela
codificação do direito civil.
It is study that aimed to assert the goods in
the Civil Code of 2002 , showing that there are
other goods set out in the Code itself apart from
those indicated in the general part , putting in
check in order to systematize ínsito codification.
Illustrated is this failure with the family well and
the very environmental well , the latter exceeds
the legal framework for private law and public
law. Alongside this , using the classic lesson
of Alf Ross , we used the concept of “ tu-tu “ to
demonstrate the futility of various concepts of
good legal welcomed the codification of civil law.
PAVRAS-CHAVE
KEYWORDS
Código Civil; bens jurídicos; bem ambiental.
Civil Code; property; and environmental .
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
1. INTRODUÇÃO
Inicia-se o enfrentamento do tema constatando que o bem jurídico é o elemento
chave para a operacionalização do sistema jurídico, eis que é o próprio objeto da relação
jurídica e de tutela da norma jurídica. Melhor esclarecendo, o sistema jurídico tem
por especificidade funcional assegurar o cumprimento das expectativas normativas
mediante a qualificação da licitude ou ilicitude da conduta humana. O bem jurídico é o
objeto da tutela inserto nesta aferição de licitude ou ilicitude, não se confundindo com
a modal deôntica da norma que prescreve que o comportamento pode ser permitido,
proibido ou obrigatório.
Apreciar o bem jurídico era muito mais simples durante o primado da sociedade
individualista, pois refletia esta realidade, polarizando a clássica relação entre Tício e Caio
ou, posteriormente, particular e Estado. Deve-se relembrar que desde o século XIX o direito
civil era o direito comum, a própria base da construção da teoria do direito, papel esse que
foi, em grande parte, avocado atualmente pelo direito constitucional, a partir da segunda
metade do século XX, após a Segunda Guerra Mundial e a revisitação da ciência jurídica.
É sabido que o direito civil tem inspiração direta no direito romano, que vigorou
há mais de dois mil anos, dada a recepção de muitos dos seus institutos jurídicos,
especialmente, na seara do direito obrigacional. Observa-se que no direito romano
inexistia o instituto do bem jurídico utilizado na acepção atual, porquanto era utilizada
a “coisa” - res - com diversas acepções: a) em sentido mais restrito, a coisa corporal,
individual, juridicamente autônoma; b) em sentido mais amplo, qualquer objeto de
um direito privado ou de um processo civil, ou ainda, o patrimônio1. Assim, no direito
romano as relações jurídicas tinham por objeto as coisas como fruto de pretensões
individuais, tornando-se incomparável com o bem jurídico hodierno. Ou seja, o instituto
jurídico “coisa” atendia aos reclamos daquela sociedade da antiguidade.
No Brasil, o Código Civil de 1916 trouxe o instituto “Bens” dentro de um capítulo
próprio. A inserção do capítulo “Bens” dentro da parte geral do Código Civil de 1916,
ensejou questionamentos doutrinários sobre a abrangência das “coisas” pelos “bens”
ou a abrangência dos “bens” pelas “coisas” e, também, sobre a situação de serem ambos
constituídos, exclusivamente, de valores econômicos.
1. KASER, Max. Direito privado romano. Trad. Samuel Rodrigues e Ferdinand Hämmerle. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1999, p. 121.
DOUTRINA . DIREITO AMBIENTAL
QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS ENVOLVENTES DA CLASSIFICAÇÃO DOS BENS JURÍDICOS
TRAZIDA NO CÓDIGO CIVIL E DO CONCEITO ABRANGENTE DO BEM AMBIENTAL
393
Silvio Rodrigues2, doutrinador e intérprete do Código Civil de 1916, explana que
o direito só vai disciplinar as coisas com valor econômico, excluindo-se, assim, aquelas
abundantes da natureza, como o ar atmosférico. Prossegue, acentuando que há diferença
entre coisas - que é tudo o que não é humano -, e bens jurídicos que são as “coisas que, por
serem úteis e raras, são suscetíveis de apropriação e contém valor econômico”.
Ainda, na égide do Codex revogado, Washington de Barros Monteiro, civilista
brasileiro da segunda metade do século XX, leciona que bens são os valores materiais
ou imateriais que podem ser objeto de relação jurídica, enquanto que coisas pode se
referir tanto à espécie quanto ao gênero de bens. O conceito de coisa para o direito é
dado pela economia, e, por isso, “o ar atmosférico, a luz solar, e a água dos oceanos deixam
de ser bens em sentido jurídico”. Os únicos bens não econômicos que o civilista admite
são as emanações da personalidade natural, tais como a vida, a honra, a liberdade, a
defesa e o nome.
Destaca-se a lição de Pontes de Miranda3, considerado pela doutrina contemporânea
como um dos maiores tratadistas (brasileiro) do século XX, que leciona que são coisas
em sentido estrito os objetos corpóreos que podem ser objeto do direito. O conceito
de bem jurídico, por sua vez, é de objeto de direito. O âmago da lição do jurista advém
da constatação de que o “que não tem valor pode ser objeto de direito, inclusive de direito
das coisas (coisa em senso estrito)”, eis que afasta o critério do valor econômico para a
incorporação de bem no sistema jurídico.
Exposto, anteriormente pela coautora 4: “Bens no sentido jurídico são as coisas
materiais ou imateriais, apreciáveis sob o ponto de vista econômico e que podem ser
objetos de uma relação ou situação jurídica; ou ainda, as coisas passíveis de avaliação
pecuniárias (uma peça de roupa, um carro, um ônibus, uma linha de telefone, um pouco
comercial), podendo compor este rol, interesses protegidos juridicamente”.
No entender de Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery5: “Bem é tudo quanto
possa ser desejado e cobiçado pelos homens e protegido e tutelado pelo direito, quer
2. RODRIGUES, Silvio. Direito civil. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 109-110, v. 1.
3. PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2000, p. 38-52, v. 2.
4.VILLAS BÔAS, Regina Vera, Perfis dos conceitos de Bens Jurídicos. (In) Revista do Direito Privado. RDPriv 37/2009
·jan. – mar./2009. p. 1314.
5. NERY JR., Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado. 6.ed. São Paulo: RT, 2008, p.223.
394
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
se tratem de coisas materiais, quer de bens imateriais, quer componham aquilo que a
linguagem coloquial se usa explicar como patrimônio de alguém”.
À luz do Código Civil de 2002 - CC, Maria Helena Diniz6, citando ensinamento
de Agostinho Alvim, afirma que bens são as coisas matérias ou imateriais com valor
econômico, podendo ser objeto de relação jurídica, excluindo-se do direito as coisas
como “a luz solar, o ar atmosférico, a água do mar etc.”, “porque não há nenhum interesse
econômico em controlá-lo”. As coisas, segundo a autora, são o gênero de tudo que não
seja o homem, enquanto os bens são coisas úteis e suscetíveis de apropriação. Mais
recentemente, para demonstrar a época de modificação de paradigmas, especialmente
no tocante a antiga afirmação de que somente o interesse econômico era critério de
incorporação de bens jurídicos, quiçá, correto para o direito civil, transcreve-se lição de
Maria Helena Diniz7, in verbis: “Fácil é perceber que o bem ambiental não é res nullius,
por ser, diante do comando constitucional, uma res communiomnium. A sua titularidade
é do povo. O meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado é bem de uso comum
do povo, não integrando o patrimônio particular de qualquer pessoa física ou jurídica”.
Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho8averbam que bem jurídico é o objeto
de direitos subjetivos, com ou sem valor econômico. Coisa, por sua vez, são os objetos
corpóreos, na mesma senda da doutrina alemã, obtemperam os referidos juristas.
Flávio Tartuce9 averba que coisa seria o gênero que abarcaria tudo que não é
humano, enquanto que os bens seriam espécie de coisas com interesse econômico ou
jurídico, passíveis de apropriação.
Segundo afirma Francisco Amaral10 finalidade de qualquer classificação é separar em
grupos e espécies a que se aplicam as mesmas regras jurídicas, admitida a possibilidade
de cada espécie ter sua própria disciplina legal.
6. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 2010, p. 337, v. 1.
7. DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 723.
8. GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002,
p. 258-261, v. 1.
9.TARTUCE, Flávio. Direito civil. 3. ed. São Paulo: Método, 2007, p. 262, v. 1.
10. AMARAL, Francisco. Direito civil. 7 . ed. Rio de Janeiro: Renovar. 2008. p.349, v. 1.
DOUTRINA . DIREITO AMBIENTAL
QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS ENVOLVENTES DA CLASSIFICAÇÃO DOS BENS JURÍDICOS
TRAZIDA NO CÓDIGO CIVIL E DO CONCEITO ABRANGENTE DO BEM AMBIENTAL
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Já afirmado, anteriormente pela coautora11 que a doutrina cuida, inicialmente, das
coisas gerais, das coisas e dos bens (bens corpóreos e incorpóreos; coisas materiais e
imateriais), tendo em mira a revelação de perfis adequados à satisfação dos interesses
jurídicos das sociedades contemporâneas. Bens corpóreos ou coisas são os valores
materiais, assim entendidos, aqueles que são dotados de existência física. São aqueles
considerados tangíveis, porque podem ser perceptível pelos sentidos do homem.
Exemplos: gás, eletricidade, uma máquina fotografia. Bens incorpóreos são os valores
imateriais, que só podem ser compreendidos pelo intelecto do homem. São os que
têm existência abstrata. Exemplos: liberdade, honra, direitos da personalidade, da
propriedade intelectual entre outros que, apesar de não possuírem existência material
podem ser objeto de direito, numa relação ou situação jurídica estabelecida. Vale
esclarecer que a diferença entre bens corpóreos e incorpóreos reside no fato de que
alguns institutos só se aplicam aos primeiros. Regra geral, os direitos reais têm por
objetivo bens corpóreos. E quanto à transferência, os corpóreos são objeto de compra
e venda, doação ou troca, enquanto que os incorpóreos, no caso, os direitos, apenas de
cessão.
É imperioso notar que persiste em menor intensidade a visão eminentemente
econômica dos bens e coisas no direito privado. Entendemos como bem jurídico o
objeto do direito, não se confundindo com as coisas, que são bens corpóreos.
Evidencia-se, de imediato, que o Código Civil vigente, no capítulo dos bens,
perdeu a oportunidade ímpar de adequar as normas privadas à modernidade (e a
pós-modernidade), inclusive, para concretizar com exatidão a Constituição Federal. Os
avanços foram extremamente tímidos em relação ao Código Civil de 1916. O exemplo
mais emblemático foi ignorar os animais tratando-os no contexto das “coisas móveis”
(semoventes), enquanto que nos países com o direito civil mais avançado, os animais vêm
elencados fora do contexto dos móveis. Ao lado deste aspecto, não é possível olvidar
o célebre livro de Alf Ross12 “Tû-tû”, no qual o jurista dinamarquês utiliza da expressão
“tû-tû” como referência à conduta ilícita praticada por qualquer dos membros de uma
tribo primitiva de uma ilha remota. Para qualquer ato ilícito, os indígenas diziam que
o infrator estava impregnado pela transgressão, utilizando a palavra “tû-tû” para tal
fim. Alf Ross, no final do interessantíssimo estudo, explica que a tese antropolológica
11. VILLAS BÔAS, Regina Vera. Op. cit., p.1315.
12. ROSS, Alf. Tû-tû. Trad. Edson Bini. São Paulo: Quartier Latin, 2004.
396
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
citada como fonte de pesquisa da tribo primitiva é fictícia, servindo para ilustrar que
no Direito muitas vezes são utilizados conceitos e institutos inúteis. A crítica de Ross era
direcionada mais precisamente contra o conceito de direito subjetivo, por entendê-lo
prescindível ao funcionamento do sistema jurídico. O pensamento de Ross serve de
advertência prévia ao estudo dos bens no Código Civil, pois, parece-nos, que por amor
à tradição, abrigou-se certo institutos à moda “tû-tû” no novel Código Civil. A título de
ilustração, cita-se a distinção prevista no artigo 89 do Código Civil entre bens singulares
e coletivos que não revela interesse prático, inexistindo previsões semelhantes no
direito comparado, tendo sido afastada intencionalmente a inclusão desta norma,
desde o projeto de Clóvis Beviláqua que resultou no Código Civil de 191613
A seguir, apresenta-se uma breve exposição sobre as diversas categorias de bens
previstos no Código Civil, bem como sobre o bem de família, não inserto na parte
geral do Código Civil e que tem previsão em legislação extravagante, e sobre o bem
ambiental, que não tem previsão expressa no Código Civil, apesar de ser tutelado em
diversas normas, como é o caso, por exemplo, do art. 1.228 do CC14.
2. DOS BENS CONSIDERADOS EM SI MESMOS
Os bens considerados em si mesmos são aqueles examinados individualmente,
observados “per se”. São eles: imóveis e móveis; fungíveis e infungíveis; consumíveis e
inconsumíveis; divisíveis e coletivos.
2.1. DOS BENS IMÓVEIS
Não é exagero dizer que os bens imóveis são o centro da atenção das normas do
Código Civil em comparação com os bens móveis, dada às peculiaridades necessárias a
esta categoria de bens. Por exemplo: a transmissão da propriedade imóvel é formal; as
ações relacionadas a imóveis têm competência processual no local da coisa; prazos mais
13. TEPEDINO, Gustavo. BARBOZA, Heloisa Helena. MORAES, Maria Celina Bodin. Código Civil interpretado
conforme a Constituição da República. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 189, v. 1.
14. Código Civil. Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la
do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais
e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as
belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar
e das águas.
DOUTRINA . DIREITO AMBIENTAL
QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS ENVOLVENTES DA CLASSIFICAÇÃO DOS BENS JURÍDICOS
TRAZIDA NO CÓDIGO CIVIL E DO CONCEITO ABRANGENTE DO BEM AMBIENTAL
397
dilatados para a ação de usucapião; etc. Bens imóveis abrangem o solo e sua superfície,
acessórios e adjacências naturais, além de tudo quanto lhes incorporar naturalmente, e
também, os que a lei considerar.
Não há dificuldade em nenhuma pessoa em dizer o que é um bem imóvel previsto
no artigo 79 do CC. A questão fica mais intrincada quando o Código Civil prescreve que
também são bens imóveis tudo o que for incorporado “natural ou artificialmente”. Um
exemplo que esclarece a disposição normativa: incorpora-se natural ou artificialmente
as árvores, plantas, etc que estiverem presas por raízes, plantadas pelo ser humano ou
não, que ao serem removidas sofrem destruição.
Uma questão polêmica a ser apreciada diz respeito à classificação e localização
jurídica do espaço aéreo e do subsolo, qual seja: ambos fazem parte do bem imóvel? 1)
Corrente favorável: Flávio Tartuce15 afirma que: “Os bens imóveis por natureza abrangem
o solo com sua superfície, o subsolo e o espaço aéreo”. 2) Corrente desfavorável:
Gustavo Tepedino, acompanhado por outros doutrinadores, leciona que: “Abandonou
o legislador a menção ao espaço aéreo, bem como ao subsolo, que no regime anterior
já fora objeto de numerosas restrições”16.
A respeito da questão colocada, entende-se que o bem imóvel implica uma
autorização do uso do espaço aéreo e do subsolo, desde que não haja norma que traga
vedação. Exemplo: proibição de construção de prédios à beira mar em ilhas em razão de
norma municipal vedando a obra; proibição de construção a determinada profundida
de garagem no subsolo em razão da presença de lençol freático ou aquífero. Sobre a
questão, não se pode perder de vista os artigos 1228 e 1229 do CC. Dispõe o art. 1.229,
que “a propriedade do solo abrange a do espaço aéreo e subsolo correspondentes, em
altura e profundidade úteis ao seu exercício, não podendo o proprietário opor-se às
atividades que sejam realizadas, por terceiros, a uma altura ou profundidade tais, que
não tenha ele interesse legítimo em impedi-las”.
Sobre os recursos minerais: art. 20, inciso IX e artigo 176 da CF dispõem que são de
propriedade da União, o solo ou subsolo.
Não bastasse, o artigo 80 do CC assegura que tanto as ações relacionadas com
15. TARTUCE, Flávio. Direito civil. 3. ed. São Paulo: Método, 2007, p. 263, v. 1.
16. TEPEDINO, Gustavo. BARBOZA, Heloisa Helena. MORAES, Maria Celina Bodin. Código Civil interpretado
conforme a Constituição da República. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 178, v. 1
398
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
imóveis quanto a sucessão aberta (inventário ou arrolamento) sejam considerados bens
imóveis, para garantir maior segurança jurídica. Lembra-se, ainda, que a sucessão pode
ser aberta extrajudicialmente, sem prejuízo de caracterizar-se bem imóvel.
Por derradeiro, o artigo 81 do CC diz que não perde a característica de imóvel as
edificações que separadas do solo conservem esta sua natureza. É o exemplo das casas
pré-construídas que removidas do solo permanecem hábeis para serem recolocadas
em outro local. Ou, ainda, os materiais extraídos da reforma de propriedade imóvel,
desde que sejam reutilizados na propriedade, estes não perdem a característica de bem
imóvel.
2.2. DOS BENS MÓVEIS
Os móveis suscetíveis de movimento próprio abrangem os semoventes (animais)
e objetos inanimados que podem locomover-se sem prejuízo da sua essência ou do
seu valor econômico e coletivo. A novidade contida no texto do artigo 82 diz respeito
à expressão “sem alteração da substância ou da destinação econômica – social” do
bem. O artigo 83 do CC, inciso I - por opção da decisão política, que resultou o texto
de referida norma jurídica -, insere a energia, que possui valor econômico, no rol dos
bens móveis. Os incisos II e II do artigo 83, por sua vez, mantém regra já consagrada no
Código Civil de 1916. O artigo 84 do CC mantém a mesma lógica do artigo 81 do CC, pois
enquanto os materiais para a construção não forem utilizados permanecem na situação
de bens móveis.
Já afirmado pela coautora17 que a doutrina reconhece a qualidade de imóvel ao bem,
enquanto não for empregado na construção, admitindo inclusive que pode ser utilizado
na construção de outro prédio, extraindo-se, a contrario sensu, que a separação em
caráter permanente dos materiais, relativamente ao prédio, assegura-lhe a mobilidade.
A respeito do material proveniente de demolição que tenha por destinação a
construção de outro prédio, entende o Superior Tribunal de Justiça que o material
conservará a qualidade de bem móvel, enquanto não utilizado (STJ – RESP 327.562 – Rel.
Min, Humberto Gomes de Barros, DJ 11.09.2001).
2.3. DOS BENS FUNGÍVEIS E CONSUMÍVEIS
A definição de bens fungíveis do Código Civil é de uma clareza meridiana, vindo de
17. VILLAS BÔAS. Regina Vera. Op.cit., p.1321.
DOUTRINA . DIREITO AMBIENTAL
QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS ENVOLVENTES DA CLASSIFICAÇÃO DOS BENS JURÍDICOS
TRAZIDA NO CÓDIGO CIVIL E DO CONCEITO ABRANGENTE DO BEM AMBIENTAL
399
uma tradição que tem origem no direito romano. É relevante nos dias atuais, pois viabiliza
a formação de regimes jurídicos diversos para os bens fungíveis em contraposição aos
infungíveis. Note-se que o Código Civil não esclarece o que são os bens infungíveis, que
podem ser inferidos pela interpretação contrario sensu.
Maria Helena Diniz18 define os bens infungíveis como “os que, pela sua qualidade
individual, têm um valor especial, não podendo, por este motivo, ser substituídos sem
que isso acarrete a alteração do seu conteúdo”.
Já trazido pela coautora Regina Vera Villas Bôas19 acrescenta que a “fungibilidade se refere
aos móveis que podem ser substituídos por outro da mesma espécie, qualidade e quantidade,
o que resulta da qualidade física das coisas que se contam, medem ou se pesam”.
Exemplos de bens fungíveis: compra de determinados quilos de arroz ou café, ou
cabeças de gado, sem fazer exigências específicas. Quando o Poder Público nas diversas
unidades da federação necessitam licitar (procedimento administrativo para o Poder
Público realizar a aquisição ou venda de bens) busca o melhor preço do arroz, café ou
carne, mas, não vai se preocupar se é o produto X ou Y, demonstrando a fungibilidade
do bem. O dinheiro é o bem fungível por excelência, o mais constante objeto das
obrigações de dar coisa incerta. Denomina-se quantia a coisa incerta (fungível) que for
qualidade de moeda corrente20.
Constata-se, conforme já demonstrado no capítulo 2.1, que os bens imóveis, por
sua natureza, são infungíveis, devido às peculiaridades do regime jurídico destes bens.
Nelson Nery Jr.21 leciona que o “as coisas infungíveis são as coisas que em determinada
relação jurídica são consideradas tendo em vista sua específica individualidade”.
Na prestação de serviços, há gritante diferença entre o serviço prestado como
infungível ou fungível. A título de ilustração, se for contratado um espetáculo musical
para um aniversário, sem identificar o cantor, poderá o serviço ser prestado por qualquer
artista. Mas, se ficar convencionado que será o artista X o serviço passa a ser infungível.
É interessante observar que na seara das relações trabalhistas o assunto está em voga
18. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 2010, p. 351, v. 1.
19. VILLAS BÔAS. Regina Vera. op.cit.p.1322.
20.NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. 10 ed. São Paulo: RT, 2013, p.343.
21. NERY JR., Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. cit.
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com a legislação sobre terceirização.
O Código Civil entende que bem consumível é o bem móvel, cujo uso implica a
destruição da própria substância. Ressalte-se que o bem consumível é para a norma
jurídica, podendo o mundo do direito considerar consumíveis inúmeros bens, antes não
consumíveis. Exemplo: tanto um alimento é bem consumível, quanto um livro exposto
à venda em uma livraria.
Por fim, não se pode olvidar que os bens consumíveis não são necessariamente
fungíveis. Exemplo: uma obra de arte rara colocada a venda é consumível, mas não é
fungível.
2.4. DOS BENS DIVISÍVEIS
O legislador definiu os bens divisíveis, vinculando a matéria à destinação do bem
e ao valor econômico. Exemplificam essa categoria de bens: uma saca de milho, arroz,
algodão; um lote de terreno; um sitio; uma pedra preciosa. Prescreve o Código Civil, no
artigo 87: “Bens divisíveis são os que se podem fracionar sem alteração na sua substância,
diminuição considerável de valor, ou prejuízo do uso a que se destinam”, no artigo88
“Os bens naturalmente divisíveis podem tornar-se indivisíveis por determinação da lei
ou por vontade das partes”.
O critério acolhido pelo Código Civil para dizer quais são os bens divisíveis é
eminentemente econômico e busca à sua destinação. Pode abranger bens corpóreos e
incorpóreos (artigo 258 do CC). A indivisibilidade pode decorrer de determinação da lei
ou da vontade das partes.
Questão polêmica: na hipótese da lei municipal proibir o parcelamento do solo,
ou seja, a divisão de bem imóvel em propriedades menores, pode haver usucapião
tornando o bem menor, violando a indivisibilidade legal? A decisão ainda não está
definitivamente solidificada pelo Supremo Tribunal Federal22, embora os votos
prolatados pelos senhores Ministros sejam favoráveis à tese da possibilidade da
usucapião, conforme INFORMATIVO Nº 782: “ Título Usucapião de imóvel urbano
e norma municipal de parcelamento do solo – 3 PROCESSO RE - 422349 - ARTIGO
O Tribunal retomou julgamento de recurso extraordinário, afetado pela 1ª Turma,
em que se discute a possibilidade de usucapião de imóvel urbano em município
que estabelece lote mínimo de 360 m2 para o parcelamento do solo. No caso, os
22. Extraído da internet, no sítio: www.stf.jus.br. Acesso em 12 maio 2015.
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QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS ENVOLVENTES DA CLASSIFICAÇÃO DOS BENS JURÍDICOS
TRAZIDA NO CÓDIGO CIVIL E DO CONCEITO ABRANGENTE DO BEM AMBIENTAL
401
recorrentes exercem, desde 1991, a posse mansa e pacífica de imóvel urbano onde
edificaram casa, na qual residem. Contudo, o pedido declaratório, com fundamento
no art. 183 da CF (“Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta
metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para
sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário
de outro imóvel urbano ou rural”), para que lhes fosse reconhecido o domínio, fora
rejeitado pelo tribunal de origem. A corte local entende que o aludido imóvel teria
área inferior ao módulo mínimo definido pelo Plano Diretor do respectivo município
para os lotes urbanos. Consigna não obstante que os recorrentes preencheriam os
requisitos legais impostos pela norma constitucional instituidora da denominada
“usucapião especial urbana” - Informativo 772. Em voto-vista, o Ministro Luiz Fux
acompanha o Ministro Dias Toffoli (relator), para prover o recurso, afirmando que
o recorrente preencheria todos os requisitos constitucionais para obter o direito
pretendido. O relator, por sua vez, reafirma a tese anteriormente proferida, com
alterações, para assentar o seguinte: “preenchidos os requisitos do art. 183 da
Constituição Federal, o reconhecimento do direito à usucapião especial urbana não
pode ser obstado por legislação infraconstitucional que estabeleça módulos urbanos na
respectiva área, nem pela existência de irregularidades no loteamento em que situado
o imóvel”. Em seguida, pediu vista o Ministro Marco Aurélio. RE 422349/RS, rel. Min.
Dias Toffoli, 22.4.2015. (RE-422349)”.
2.5. DOS BENS SINGULARES E COLETIVOS
Nas palavras da coautora23 exibida anteriormente coisas (ou bens) singulares são
aquelas consideradas separadamente em sua individualidade, embora reunidas; são
passiveis de separação, porque podem se apresentar de maneira independente, são
autônomas em relação às outras coisas da reunião. A crítica aos bens singulares foi feita
na introdução deste, em razão da ausência de utilidade prática.
A marca característica da universalidade de fato é a visão conjunta dos bens. Exemplo:
um navio é um bem singular, enquanto que uma frota é uma universalidade de fato;
uma árvore é um bem singular, enquanto que uma floresta é uma universalidade de
fato. Os requisitos da universalidade de fato consistem na pertinência à mesma pessoa
e na destinação unitária.
Explica Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery universalidade é a pluralidade
23. VILLAS BÔAS, Regina Vera. Op.cit.,p.1325.
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
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de coisas autônomas – ainda que somente – duas que, nada obstante conservarem
sua identidade são unificadas com vistas a cumprir destinação em favor de interesses
dos sujeitos que exercem titularidade de direitos sobre as coisas que a compõem.
Acrescentam, ainda, que a universalidade é também de coisas coletivas chamadas pelos
romanos corpora ex distantibus, distinguindo-se das coisas compostas.
Um aspecto relevante da universalidade de fato advém do fato de se tratar de uma
categoria lógica, pois os bens que a formam podem ser objeto de relações jurídicas
próprias. A universalidade direito consiste no complexo de relações jurídicas, de uma
pessoa, com valor econômico, corpóreas ou incorpóreas. A ideia central é a do conjunto
e não das coisas que a formam. Exemplo: STJ – “O FGTS é uma universalidade de direito
(CC, art. 54, II) constituída pela agregação dos saldos em contas vinculadas. Tais saldos,
uma vez agregados, perdem a individualidade, tornando-se cota ou frações ideais. Os
trabalhadores donos das contas agregadas, são cotistas (condôminos) do fundo”. (STJ –
ERESP 286.020, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ 09.05.2002).
3. DOS BENS RECIPROCAMENTE CONSIDERADOS
São examinados, uns em face de outros bens. Podem ser principais ou acessórios e
se referem às coisas corpóreas ou incorpóreas. Principal é aquele bem que preenche,
per se, seus fins e suas funções econômicas, o que implica ele existir sobre si, abstrata
e concretamente, enquanto que bem acessório exerce uma função e realiza um fim,
atrelado ao bem principal. Coisa principal nas palavras de Nelson Nery Júnior e Rosa
Maria de Andrade Nery24: “são aquelas cuja existência ou sorte jurídica não esta na
dependência de outras coisas, ou seja, as coisas principais não estão vinculadas a outras
por laços de ordem física, mecânica, econômica, jurídica ou estética, ou por qualquer
outro liame que faça suportar sua dependência com outra”.
Na doutrina da coautora, exibida anteriormente, acessório é o bem cuja existência é
subordinada a existência do principal. Ele não possui valoração autônoma, como possui
o bem principal.
Observa-se, na presente situação, a aplicação do princípio da gravitação jurídica, ou
seja, desde o direito romano vigora o princípio de que o acessório segue o principal, que
informa a regra “accessorium sequitur principale”. É uma regra central de todo o Código
24. NERY JUNIOR, Nelson. Op. cit., p.346
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QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS ENVOLVENTES DA CLASSIFICAÇÃO DOS BENS JURÍDICOS
TRAZIDA NO CÓDIGO CIVIL E DO CONCEITO ABRANGENTE DO BEM AMBIENTAL
403
Civil. Exemplo: a nulidade de um contrato de locação implica a nulidade da fiança, pois
é obrigação acessória da obrigação principal.
O artigo 93 do CC traz o instituto das pertenças, uma espécie de bem acessório que
tem especial destaque, como é o caso da escultura incorporada a um imóvel. O disposto
no artigo 94 do CC rompe o princípio da gravitação jurídica, no que diz respeito às
pertenças, salvo se o contrário resultar da lei, da manifestação da vontade ou das
circunstâncias do caso.
O artigo 95 do CC trata dos frutos e produtos ressaltando que podem ser objeto
de negócio jurídico. Frutos são utilidades que se retiram do bem principal sem que
diminuam a quantidade, pois são produzidos periodicamente; enquanto que os
produtos são utilidades que se retiram do bem principal, diminuindo a quantidade.
Exemplo de fruto: a colheita de plantação em imóvel; exemplo de produto: a extração
de areia em propriedade imóvel. Os frutos podem ser classificados, ainda, como
pendentes, percipiendos e percebidos ou colhidos. Esta última classificação tem grande
relevância prática, no que diz respeito, por exemplo, à hipótese do possuidor de boa-fé.
O artigo 96 do CC traz o instituto das benfeitorias que consistem nas obras ou gastos
feitos no bem principal, voluptuárias, úteis ou necessárias. É interessante observar que
as categorias voluptuárias, úteis ou necessárias devem ser apreciadas no caso concreto,
porquanto uma piscina que pode ser considerada uma benfeitoria voluptuária em um
loteamento fechado de alto padrão pode ser classificada com benfeitoria útil, quando
obrigatória a obra, devido às normas da associação de moradores.
Nesse sentido, lembra-se que há quarenta anos, a garagem de veículos era
benfeitoria voluptuária, enquanto atualmente pode ser considera útil. A regra básica é
que o possuidor de boa-fé tem direito à indenização das benfeitorias úteis e necessárias.
O art. 97 do CC veda que sejam consideradas benfeitorias os melhoramentos feitos no
bem principal sem anuência do proprietário, possuidor ou detentor.
4. BEM PÚBLICO
Bens públicos, segundo Hely Lopes Meirelles25, são todas as coisas, corpóreas ou
incorpóreas, que pertençam, a qualquer título, as pessoas jurídicas da Administração
25. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 459.
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Direta ou Indireta. Obtempera Celso Antonio Bandeira de Mello26 que bens públicos
são todos aqueles que pertencem as pessoas jurídicas de direito público ou estejam
afetados ao serviço público.
O Código Civil conceitua o bem público na seguinte disposição normativa: “Art.
98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de
direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que
pertencerem”.
Evidencia-se que a utilização da expressão “pessoas jurídicos de direito público
interno” abarca os entes públicos da Administração Público direta e não todos os entes
da indireta, a saber: a) direta: União, Estados, Municípios e Distrito Federal; b) indireta:
autarquia, fundação de direito público, empresa pública, sociedade de economia mista
e consórcio, sendo que estes últimos entes estão submetidos ao regime jurídico de
direito privado, afastando, a priori, a ideia de bem público.
A distribuição dos bens públicos é feita pela Constituição Federal expressamente
para a União (artigo 20) e Estados (art. 26). Não há previsão expressa de um rol de bens
para os Municípios e Distrito Federal, o que não prejudica os bens públicos destes entes
federativos.
O artigo 100 do Código Civil, ao preceituar que os bens de uso comum e de uso
especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação traz garantia da
mantença do patrimônio público, indispensável ao cumprimento do interesse público
da sociedade.
É interessante observar que a proibição da usucapião do bem público – móvel
ou imóvel – decorre de expresso mandamento da Constituição Federal previsto nos
artigos 182 (imóvel urbano) e 184 (imóvel rural). Não bastasse, o corolário da vedação
da usucapião implica que os esbulhos aos bens públicos obstaculizam a posse velha ou
nova, pois a situação jurídica, independentemente do decurso de tempo, será de mera
ocupação indevida. Há hipóteses como o direito de moradia que podem excepcionar
esta regra em virtude de expressa autorização legal para a ocupação do imóvel,
atendidos os requisitos legais.
Salta aos olhos que, diferentemente dos doutrinadores civilistas, os publicitas
26. MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 779.
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QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS ENVOLVENTES DA CLASSIFICAÇÃO DOS BENS JURÍDICOS
TRAZIDA NO CÓDIGO CIVIL E DO CONCEITO ABRANGENTE DO BEM AMBIENTAL
405
não se prendem nas nuances da separação entre bens e coisas, pois bem é um gênero que
abarca as diversas modalidades do domínio público. A despeito de uma aproximação
do bem ambiental com o bem público em diversos ordenamentos jurídicos, inclusive
no direito pátrio, uma dissecação minuciosa demonstra que não há semelhança na
identidade do titular do domínio com os titulares do bem ambiental.
6. BEM DE FAMÍLIA
O CC inseriu o bem de família voluntário no capítulo relacionado ao direito de
família (arts. 1.711 a 1.722). Além disso, existe o bem de família legal decorrente da Lei
8.009/90. Trata-se de instituto jurídico que resguarda o único imóvel familiar utilizada
para moradia, tornando-o um bem inalienável para fins de adimplemento de dívidas,
resguardando o direito fundamental de moradia da entidade familiar. As exceções
estão previstas na Lei 8.009/90.
O bem de família demonstra a insuficiência da classificação dos bens no Código Civil
de 2002, pois, sem dúvida, seria oportuno uma categoria dos bens inalienáveis, dado a
ideal de sistematização e racionalidade que percorre a ideia de codificação.
7. BEM AMBIENTAL27
O Código Civil vigente, apesar de implicitamente reconhecer os bens ambientais
como uma nova categoria de bens jurídicos, a ignora totalmente no capítulo dos “Bens”.
É incontestável, todavia, que essa nova categoria de bens não se amolda nos bens
privados, assim como não se encaixam nos bens públicos. Trata-se de bens difusos, é
uma categoria nova de bens, cuja construção da dogmática está, apenas, se iniciando.
No direito pátrio há um notável avanço na positivação dos direitos difusos, coletivos
e individuais homogêneos no Código de Defesa do Consumidor como categorias
de direito material: Dispõe o artigo 81que :“ A defesa dos interesses e direitos dos
consumidores e das vítimas poderá ser exercida em Juízo individualmente, ou a título
coletivo. Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I - interesses
ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais,
de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por
27. O presente capítulo foi elaborado com base no livro: REMÉDIO JÚNIOR, José Ângelo. Direito ambiental
minerário. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.
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circunstâncias de fato; II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos
deste Código, os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo,
categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação
jurídica-base; III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os
decorrentes de origem comum”.
Não sem razão, o mais insigne representante desta categoria de bens é o bem
ambiental, consoante preceitua o artigo 225 da Constituição Federal: “Art. 225. Todos
têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo
e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o
dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
O estudo pioneiro responsável pela consagração do bem ambiental é da lavra de
Massimo Severo Giannini28 intitulado “Ambiente: reflexão sobre seus diversos aspectos
jurídicos” do ano de 1973. O âmago do escólio de Massimo Severo Giannini29ressalta que
os traços comuns dos bens ambientais não dizem respeito à propriedade; isto, aliás,
consiste em questão neutra, pois: “Bens de domínio estatal ou de outras entidades
territoriais, do patrimônio indisponível de um ente público, ou privado, podem ser
igualmente declarados bens ambientais culturais (por exemplo, respectivamente, a
costa marinha do domínio militar, edifício histórico transformado em escritório, colina
paisagística de propriedade privada; assim como o vínculo de florestal pode referirse à propriedade privada, os quais simultaneamente podem estar compreendidos no
perímetro de um parque natural).
Por tal razão, o elemento identificador do bem ambiental é o regime jurídico.
Massimo Severo Giannini30 leciona: “Os traços comuns do bem ambiental advém do
regime jurídico. Todos os bens ambientais revelaram-se com função conservativa; a
função se manifesta, segundo a doutrina – em ponto pacífico – como um vínculo de
conservação da substância do bem”.
No Brasil, o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado tem
por objeto de tutela o bem ambiental, cujo fundamento primordial é o artigo 225 da
28. Ressalte-se que o artigo foi recentemente compilado com outros estudos e reeditado na monumental obra
“Escritos” do jurista italiano: GIANNINI, Massimo Severo.<<Ambiente>>saggio sui diversi suoi aspetti giuridici. In:
GIANNINI, Massimo Severo.Scritti. Milano: Giuffrè, 2005, p. 445, v. 6. Tradução livre.
29. GIANNINI, Massimo Severo.Op. cit. p. 458.
30. GIANNINI, Massimo Severo.Op. cit. p. 458.
DOUTRINA . DIREITO AMBIENTAL
QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS ENVOLVENTES DA CLASSIFICAÇÃO DOS BENS JURÍDICOS
TRAZIDA NO CÓDIGO CIVIL E DO CONCEITO ABRANGENTE DO BEM AMBIENTAL
407
Constituição Federal, e, por conseguinte, o bem ambiental consiste no próprio objeto
tutelado pelo direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e
essencial à sadia qualidade de vida.
O bem ambiental, assim, é o meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial
à sadia qualidade de vida. É um bem fundamental, comum, de titularidade difusa,
em prol das gerações presentes e futuras. Evidencia-se que o bem ambiental é uma
categoria que engloba os bens ambientais em espécie e estes têm como componentes
os recursos ambientais. Não se pode, assim, separar de um lado o bem ambiental (bem
intangível) e, de outro, os recursos naturais (bens tangíveis). O bem ambiental é um
instituto bastante abrangente que impõe exatamente o meio ambiente ecologicamente
equilibrado ao prescrever uma gestão racional dos recursos ambientais, que são seus
componentes. Dissociar do bem ambiental dos recursos naturais gera a perda da própria
essencialidade do direito ambiental aos próprios componentes do meio ambiente.
A par disso, é inegável que por se tratar o bem ambiental de uma categoria macro,
existem suas especificações em bens ambientais, que não deixam de ser parte da
categoria maior. O bem ambiental é complexo na sua composição, não sendo unitário
na sua formação.
É equivocado, outrossim, tentar adentrar na questão da titularidade do bem
ambiental para excluir a titularidade do bem público ou privado, pois a perspectiva
essencial do bem ambiental é função ecológica e não a exclusão da titularidade pública
ou privada do bem. O cerne da questão é que o bem público ou privado pode estar
vinculado à função ambiental, sem que exclua a titularidade pública ou privada deste
bem, embora permitindo surgir uma nova categoria de titulares deste mesmo bem, sob
prisma diverso, os titulares indeterminados e ligados por circunstâncias de fato do meio
ambiente. Faz-se esta reflexão para admitir uma dupla titularidade do domínio público
ou privado e deste mesmo bem que está gravado com a funcionalidade ambiental uma
titularidade indeterminada e interligada por circunstância de fato.
No sistema jurídico brasileiro, hodiernamente, há um direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado na Constituição Federal, no artigo 225, caput, e na década
de 80, já existia na Lei da Política Nacional do Meio Ambiente a previsão do conceito
jurídico de meio ambiente. Assim, admite-se três categorias distintas e indissociáveis,
sendo que a relação de englobamento, do maior ao menor, pode ser exposta na
seguinte sequência: bem ambiental -> bens ambientais -> recurso ambiental ou natural.
408
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v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
O bem ambiental, repise-se, é o objeto do direito fundamental ao meio ambiente
sadio e ecologicamente equilibrado. É uma autorização do sistema jurídico para a
existência de propriedade pública ou privada, embora vinculada a uma funcionalidade
ambiental, em prol das presentes e futuras gerações, mas sempre condicionada a busca
da mantença do meio ambiente ecologicamente equilibrado responsável pela sadia
qualidade de vida. São regimes jurídicos diversos incidentes sobre uma mesma coisa.
O bem ambiental, paradoxalmente, sempre é artificial, ou seja, é criado pelo
direito, não nasce por si só na natureza. É o reconhecimento pelo direito de uma
proteção especial gravando-o de bem ambiental por suas características próprias
que lhe recomendam uma proteção especial no sistema jurídico. Por obviedade, são
os elementos do ecossistema e o próprio ecossistema que são o aspecto material do
bem ambiental, ressaltando-se sempre o parâmetro de meio ambiente ecologicamente
equilibrado à sadia qualidade de vida, para evitar-se incorrer em abstração excessiva
desfavorável à tutela jurídica do objeto em comento. Ou seja, é possível ser titular do
domínio de bem e este estar limitado na sua utilização pública ou privada em prol de
direito difuso, cujo titular é a humanidade e tem por objeto o meio ambiente elevado
ao patamar de bem jurídico. Afirma-se, então, que é possível ser proprietário de bem,
que também seja onerado como bem ambiental. A consequência de ser bem ambiental
advém da limitação do seu uso a uma função ambiental.
Exemplos concretos poderão afastar a aridez da teoria: uma floresta de mata
atlântica localizada dentro de uma propriedade privada, faz com que esta última seja
limitada no seu uso e gozo, não impedindo que o acessório (a floresta) tenha como
titular o proprietário do imóvel, mas, obstando que seu gozo e uso sejam feitos de
modo diverso do que autorizam as normas do direito ambiental. Por isso, jargões como
a “floresta amazônica é patrimônio da humanidade”, ou, talvez ainda ocorra em um
futuro não distante os “recursos minerais do Brasil são patrimônio da humanidade”,
são equivocadas, pois o proprietário é quem a Constituição Federal do Estado
Socioambiental brasileiro diz que é (pelo menos, em tese!).
Assim, os olhares advindos do regime de direito administrativo/civil são diversos
do olhar do direito ambiental sobre o mesmo bem, pois são prismas diversos de
observação. A primeira consequência do nosso entendimento consiste na contrariedade
da alegação de que o artigo 99, inciso I do Código Civil não poderia prever como bens
públicos os bens de uso comum do povo tais como os rios e lagos. Afirma-se, ainda, em
sentido contrário ao nosso pensamento, que a própria Constituição Federal, nos artigos
DOUTRINA . DIREITO AMBIENTAL
QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS ENVOLVENTES DA CLASSIFICAÇÃO DOS BENS JURÍDICOS
TRAZIDA NO CÓDIGO CIVIL E DO CONCEITO ABRANGENTE DO BEM AMBIENTAL
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20 e 26, mereceria reparo ao elencar como bens de domínio público os rios, lagos,
águas subterrâneas, recursos naturais da plataforma continental, e, especificamente, de
propriedade da União os recursos minerais presentes no solo e subsolo, pois a União
seria uma gestora dos referidos bens e não detentora da titularidade do bem. Não se
compartilha da interpretação referida, porquanto: 1) o Código Civil, neste particular,
não é inconstitucional, eis que se admite que o bem ambiental tenha titularidade
pública ou privada, não se confundindo com a limitação ínsita ao bem por força da
funcionalidade da proteção do meio ambiente; 2) a Constituição Federal não merece
reparo na sua expressa letra da norma (verbi gratia, artigo 20, inciso IX), pelos mesmos
motivos já declinados quanto a constitucionalidade do Código Civil, ou seja, admitese a titularidade dos bens naturais, sendo que o ônus oriundo do bem ambiental é de
tornar obrigatório o atendimento da função ambiental do bem jurídico.
Observe-se que a doutrina costuma qualificar o bem ambiental de indisponível,
adéspota, unitário. Ressalvando a questão da característica da unidade do bem
ambiental, que é um tema deveras polêmico, pode-se perfilhar o entendimento de que
é indisponível e adéspota. Mas, a questão merece melhor aprofundamento, pois, como
se pode admitir a exploração sustentável dos recursos ambientais não renováveis? De
fato, o bem ambiental e sua especificação bem ambiental em espécie é indisponível
e adéspota, pois significa o conjunto de componentes ambientais correlacionados
necessários a garantia do meio ambiente ecologicamente equilibrado à sadia qualidade
de vida. É a visão macro do bem ambiental. Não se pode comercializar o bem ambiental
em espécie pois é parte integrante do bem ambiental. Mas, quando se olha apenas os
componentes do bem ambiental em espécie, encontram-se os recursos ambientais,
e, daí, a ideia da indisponibilidade e da adésposta muda de semblante, porquanto o
próprio sistema normativo vai prever mecanismos procedimentais para permitir que o
ser humano utilize e se aproprie destes recursos naturais.
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
À guisa de finalizar, demonstrou-se ao longo do estudo que o capítulo dos “Bens”
no Código Civil vigente nasceu apegada as longevas tradições do direito civil, mas,
olvidou uma necessária atualização e sistematização dos institutos jurídicos dos “bens”,
imprescindível a ideia de codificação.
É certo, entrementes, que o instituto jurídico “bem ambiental” exorbita os limites
dos regimes jurídicos do direito público e do direito privado, eis que inserto na categoria
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dos bens difusos. De todo modo, seria oportuno, ao menos, a menção expressa entre os
demais bens da parte geral do Código Civil, evitando equívocos recorrentes da doutrina
e da jurisprudência que não conseguem concretizar uma visão horizontal e transversal
imprescindível ao bem ambiental que percorre todo o sistema jurídico.
Outro capítulo dos “Bens” no Código Civil vigente, que tem muito do “tû-tû” de Alf
Ross e pouco do papel de diretriz para as condutas humanas que deveria nortear todo
e qualquer sistema jurídico, é o capítulo sobre os “Bens públicos”, porque um tanto
dissociado da realidade prática do regime jurídico de direito público.
Estas foram as breves anotações sobre os “Bens” no Código Civil vigente, que tiveram
o escopo de ensejar reflexões contínuas sobre a função do objeto da norma jurídica
e a sua atualidade no contexto contemporâneo, a partir do novel direito comum da
sociedade brasileira.
9. REFERÊNCIAS
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DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 2010, v. 1.
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ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 258-261, v. 1.
GIANNINI, Massimo Severo.<<Ambiente>>saggio sui diversi suoi aspetti giuridici. In:
GIANNINI, Massimo Severo.Scritti. Milano: Giuffrè, 2005, p. 445, v. 6. Tradução livre.
KASER, Max. Direito privado romano. Trad. Samuel Rodrigues e Ferdinand Hämmerle.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 24. ed. São Paulo: Malheiros,
1999.
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 15. ed. São Paulo:
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São Paulo: RT, 2013
PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2000, v. 2.
REMÉDIO JÚNIOR, José Ângelo. Direito ambiental minerário. Rio de Janeiro: Lumen
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RODRIGUES, Silvio. Direito civil. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, v. 1.
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TEPEDINO, Gustavo. BARBOZA, Heloisa Helena. MORAES, Maria Celina Bodin. Código Civil
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412
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
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Negrini Filho, Orgs: Lívia Gaigher Bósio Campello e Vanessa Hasson de Oliveira – RJ:
Editora Clássica, 2012 (Cap. 8 p. 205 a 236) – ISBN 978-85-99651-54-4
TEORIA GERAL DO DIREITO
HANS KELSEN E O
POSITIVISMO JURÍDICO
JOSÉ CARLOS FAGONI BARROS
Doutorando em Direito pela FADISP. Mestre em Direito pela PUC/SP
Diretor Jurídico da Advocacia Salomone.
Associado Efetivo do IASP.
SUMÁRIO
1. Breve contextualização histórica e o legado de Hans Kelsen; 2. Hans Kelsen e o Positivismo Jurídico;
3. O Positivismo e o Jusnaturalismo: tese e antítese reciprocamente [des] considerados; 4. Bibliografia.
RESUMO
ABSTRACT
O contexto histórico em que viveu Hans Kelsen
e breves considerações sobre sua Teoria Pura
do Direito e o Jusnaturalismo. Reflexões sobre o
Conceito de Direito e de Norma Jurídica.
The historical context in which he lived Hans
Kelsen and briefly consider his Pure Theory of Law
and the Natural Law. Reflections on the Concept
of Law and Legal Standard.
PAVRAS-CHAVE
Hans Kelsen; Positivismo e jusnaturalismo;
Direito e Norma.
416
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
1. BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E O LEGADO
DE HANS KELSEN.
Heidelberg é uma cidadela medieval edificada às margens do Rio Neckar, na qual
Ruperto I, Eleitor do Palatino fundou a respectiva Universidade em 1.386, tendo se
tornado um importante centro de excelência na investigação e no desenvolvimento
do conhecimento, do qual resultou a láurea para mais de 50 agraciados com o Prêmio
Nóbel1.
Graças a uma bolsa de estudos obtida em maio de 1908, outorgada pela Faculdade
de Direito e Ciência Política da Real-Imperial Universidade de Viena, no importe de 1.200
coroas, Hans Kelsen2 pôde concluir seu trabalho de Livre-Docência nessa relevante
Universidade Alemã, tendo freqüentado durante um semestre as aulas [não todas] de
Georg Jellinek [1851-1911], considerado um dos mais renomados juristas de seu tempo,
com destaque para pesquisas no campo do direito público e internacional3.
Desse período Hans Kelsen recorda o seguinte: “logo descobri que tanto a pessoa
de Jellinek quanto seu seminário não seriam de muita valia para o meu trabalho e
concentrei-me inteiramente neste último. Por causa disso deixei de ter contato mais
próximo com o círculo de Max Weber, que lecionava então com grande sucesso em
Heidelberg e com cujos escritos só me familiarizaria muito tempo depois. Só cheguei
a conhecer esse homem excepcional no curto período em que ele trabalhou em Viena
após a Primeira Guerra Mundial”4.
1. Cf.: www.uni-heidelberg.de
2. A versão brasileira da Autobiografia de Hans Kelsen é composta por: [i] um estudo introdutório de autoria de
José Antonio Dias Tóffoli e de Otavio Luiz Rodrigues Junior, intitulado Hans Kelsen, o jurista e suas circunstâncias,
no qual é apresentado minuciosa contextualização história e síntese dos principais acontecimentos da vida do
biografado e fatos de relevo verificados no panorama mundial do período; [ii] Introdução de autoria de Matthias
Jestaedt, discípulo do Mestre de Viena e de [iii] duas “Autoapresentações”, uma de 1927 e a outra de 1947, mais
[iv] um apêndice. A Autobiografia foi inicialmente organizada por Rudolf Aladár Métall em 1969, com base em
depoimentos pessoais prestados pelo próprio Hans Kelsen, como também com base em diversos escritos
deixados pelo biografado. Cf. Introdução à Autobiografia, p. 21, 4ª ed., tradução de Gabriel Nogueira Dias e de
José Ignácio Coelho Mendes Neto. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
3. Cf. Hans Kelsen, Autobiografia, p. 46, nota 39, 4ª ed., tradução de Gabriel Nogueira Dias e de José Ignácio Coleho
Mendes Neto. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
4. Cf. op. cit. supra, pp. 48-49.
DOUTRINA . TEORIA GERAL DO DIREITO
HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO
417
Ainda a propósito, rememora Kelsen: “não travei relações pessoais em Heidelberg. Tive
algum contato apenas com Emil Lederer [1892-19395], que já conhecia de Viena e que vivia
em Heidelber como assistente de Max Weber e redator do Archiv für Sozialwissenschaften
[Arquivo de ciências sociais]. Minha única distração durante esse período era um passeio
ocasional ao Molkenkur e uma caneca de cerveja preta à noite no Perkeo. Mas foi um
período feliz. Depois de anos de dificuldades financeiras e grave aflição junto ao leito de
meu pobre pai doente, eu podia dedicar-me de corpo e alma ao trabalho no meu livro,
que eu esperava que me abrisse caminho para uma carreira científica”6.
O Molkenkur7 é um bucólico hotel situado em ponto elevado enquanto o Perkeo
é um simpático restaurante; da narrativa depreende-se a humanidade de uma pessoa
preocupada com seus familiares e com seu trabalho; cônscia de sua realidade e desejosa
de, ao mesmo tempo, “descobrir algo novo” e também obter um trabalho ou uma
carreira que lhe propicie a felicidade de atuar na área de seu interesse e também lhe
custeie as necessidades elementares da vida.
Dificilmente Kelsen é apresentado com a franqueza e simplicidade da qual ele
próprio se vale em sua “Autoapresentação” elaborada em 1927 para seu colega
húngaro Juilus Moór [1888-1950], jusfilosofo que lecionou em Budapeste e em sua
“Autobiografia”, escrita em 1947, a propósito das quais é possível perceber os fatos
de relevo nos âmbito pessoal e social que o marcaram, bem como as personagens de
expressão com quem travou contato, impondo destaque para Leon Duguit [1859-1928],
professor da Universidade de Bordeaux, Max Weber [1864-1920], Hans Carl Nipperdey
e Henrich Lehmann, ambos da Universidade de Colônia, Karl Popper [1902-1994]8, do
London School of Economics e implacável opositor do totalitarismo político, Sigmund
Freud [1856-1939], H. L. Hart9 [1907-1992] e Alf Ross10 [1899-1979]11.
5. Dirigiu juntamente com Alfred Weber o Instituto de Ciências Sociais e Políticas de Heidelberg entre 1923 e 1931,
tendo, após, imigrado para os Estados Unidos. Cf. op. cit. supra, p. 49, nota 46.
6. Op. cit. supra, p. 49.
7. Cf. www.molkenkur.de e www.restaurant-perkeo-heidelberg.de
8. Cf. A Lógica da Pesquisa Científica, 1ª ed., tradução de Leonidas Hegenberg e de Octanny Silveira da Mota. São
Paulo: Cultrix, 1972.
9. Cf. O Conceito de Direito, 1ª ed., tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1961.
10. Cf. Direito e Justiça,
11. Cf. José Antonio Dias Toffoli e Otavio Luiz Rodrigues Junior. Hans Kelsen, o jurista e suas circunstâncias, in
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
A “Autobiografia” de Kelsen descreve a relação que teve com seus professores
e alunos, um dos quais lhe acusou de plágio; a passagem pelo Exército Imperial,
a idealização e sua integração à Corte Constitucional da Áustria Republicana e a
controvérsia jurisdicional que lhe custou a magistratura; o magistério na Universidade
de Colônia, da qual foi demitido em razão da ascensão do Nazismo; sua estada na
Tchecoslováquia, na Suíça e depois no exílio forçado nos Estados Unidos, onde lecionou
inicialmente na Universidade de Harvard, que lhe outorgara em 1936 o doutorado
“honoris causa”, assentando-se definitivamente na Universidade da Califórnia, em
Berkeley, “não na Faculdade de Direito, mas no Departamento de Ciência Política, no
qual podia desenvolver seu trabalho científico sem inimizades pessoais e sem ameaça
para sua subsistência econômica, bem como avançar em sua trajetória segura”12.
Impossível, no meio jurídico este não limitado ao acadêmico, passar despercebido
de Hans Kelsen, que provoca defesas apaixonadas de seus adeptos na mesma proporção
das críticas de seus algozes, muitas vezes destituídas de fundamentação ou seriedade
de lado a lado; apesar disso, é reconhecido o relevo de suas teorias, particularmente a
“Teoria Pura do Direito”, fazendo-lhe merecer um bronze na Universidade de Heidelberg,
curiosamente posicionado a poucos passos de outro, em memória de Georg Jellinek, de
quem não foi aluno afeiçoado13.
A respeito das críticas diz no prefácio à primeira edição de sua obra mestra: “a Teoria
Pura do Direito não tem de forma alguma possibilidade de dar satisfação ao seu postulado
metodológico fundamental e é mesmo tão-só a expressão de uma determinada atitude
política. Mas qual das afirmações é verdadeira? Os fascistas declaram-na liberalismo
democrático, os democratas liberais ou os sociais-democratas consideram-na um
posto avançado do fascino. Do lado comunista é desclassificada como ideologia de
um estatismo capitalista, do lado capitalista-nacionalista é desqualificada, já como
bolchevismo crasso, já como anarquismo velado. O seu espírito é – asseguram muitos –
aparentado com o da escolástica católica; ao passo que outros crêem reconhecer nela
as características distintivas de uma teoria protestante do Estado e do Direito. E não
faltam também quem a pretenda estigmatizar com a marca de ateísta. Em sua, não há
qualquer orientação política de que a Teoria Pura do Direito se não tenha ainda tornado
Autobiografia, p. XXXVI e ss.
12. Mathias Jestaedt. Introdução à Autobiografia, p. 19.
13. Cf. Autobiografia, pp. 46 e ss.
DOUTRINA . TEORIA GERAL DO DIREITO
HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO
419
suspeita. Mas isso precisamente demonstra, melhor do que ela própria poderia fazer, a
sua pureza”14.
Acrescenta, no prefácio à segunda edição, “o problema da Justiça, enquanto
problema valorativo, situa-se fora de uma teoria do Direito que se limita à análise do
Direito positivo como sendo a realidade jurídica”15.
Hans Kelsen não é o instituidor do positivismo jurídico, modelo que, por sua vez,
apesar de “explicar bem”, particularmente a estrutura fechada e hierárquica das normas,
a partir da “norma fundamental” a atribuir validade e vigência as que lhe seguem, numa
estrutura escalonada de normas superiores e normas inferiores, porém não é o único
instrumental apto a permitir a compreensão do Direito; sua contribuição, contudo,
alicerçada na eliminação de todo e qualquer elemento “não jurídico” para dar lastro
à “Teoria Pura do Direito” impôs aos jus-filósofos que lhe seguiram a difícil tarefa de
estruturar novas concepções, muitas vezes construídas com preocupação maior de
criticar o Jurista de Viena do que formular teorias resistentes à prova da realidade.
Desse debate emergem idéias de relativização dos conceitos jurídicos, de retorno
ao jusnaturalismo, de sistema jurídico “aberto” e tantas outras que nada mais são
do que mecanismos aptos a propiciar a discussão e a “evolução” da metodologia de
formulação e de compreensão do Direito, com ou sem abandono de “valores” prezáveis
à humanidade já reconhecidos no “Direito Romano” calcado no “neminem laedere”,
“honeste vivere” e “suum cuique tribuere”.
Quanto a suas origens, Hans Kelsen declara na sua “Autoapresentação”, utilizando
a primeira pessoa: “nasci em 11 de outubro de 1881 em Praga. No meu terceiro ano
de vida, meus pais se mudaram para Viena, onde cursei a escola pública, o ginásio da
Faculdade de Direito. Depois de obter o doutorado (1906), estudei três semestre em
Heidelberg e Berlim. Obtive em 1911 a livre-docência em direito público e filosofia do
direito, em 1917 tornei-me professor extraordinário e em 1919, professor ordinário da
Universidade de Viena”16.
Filho de Adolf Kelsen e de Auguste Lowy, ele empresário que veio a falir e ela zelosa
mãe. Sua família é judia oriunda do Leste do Império Austro-Húngaro, a respeito da qual
14. Teoria Pura do Direito, 6ª ed., pp. 9-10, tradução de João Baptista Machado. Coimbra: Armênio Amado Editor, 1984.
15. Op. cit., p. 14.
16. Op. cit., pp. 23-24.
420
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
anotam José Antonio Dias Toffoli e Otavio Luiz Rodrigues Junior que se tratava de uma
“geração de judeus” que migraram para as regiões centrais [do Império], desejosos por
libertarem-se “das amarras e dos controles de seus líderes religiosos” para “assumir uma
postura laica perante a vida moderna, além de evidentemente subtraírem-se aos níveis
mais elevados de preconceitos e obscurantismo de suas áreas de origem”17.
Apesar de se considerar agnóstico, converteu-se em 10 de junho de 1905 ao
Catolicismo Romano e, depois, em 1912 ao Protestantismo, condutas consideradas,
então, como tentativa de melhor integração à sociedade Austro-Húngara, de acordo
com relato de Benjamin Akzin18.
Casou-se com Margarete Bondi [depois Kelsen] em 20 de maio de 1912, com quem
teve as filhas Hanna Renate e Maria Beatrice. A esposa faleceu em 5 de janeiro, vindo o
marido a partir logo depois, em 19 de abril de 1973.
Foi súdito do Império Austro-Húngaro, servindo o Exército durante a I Grande
Guerra, não combatendo no “front” por motivos de saúde, tendo, por outro lado, se
destacado em função administrativa chegando a ocupar o posto de Consultor Jurídico
do Ministério da Guerra, posição que lhe valeu distinto reconhecimento do último
Ministro da Guerra da Casa do Habsburgos.
Ainda nessa posição, envidou esforços para manutenção da Monarquia, já
fragmentada por conta da improvável manutenção da convivência no Impérito
pentacentenário de uma pluralidade de etnias e respectivos interesses conflitantes,
situação agravada por uma sucessão regicida a começar pelo ocorrido em Saraievo
quanto ao assassinato do Arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do Imperador
Francisco José I, fato estopim da beligerância em 1914 e, depois, em razão da morte
do próprio Imperador em pleno foco das hostilidades em 1916, cujo sucessor foi um
seu sobrinho-neto, Carlos I da Áustria e IV da Hungria19, que sequer chegou a concluir
seu reinado, premido entre a ofensiva dos países integrantes da tríplice aliança de um
lado, e a Revolução Bolchevista do outro, fatos [não exauridos apenas nesses aspectos]
que resultaram o Tratado de Versalhes em 1918, cujos termos contribuíram para um
17. Op. cit., p. XXII.
18. Op. cit., p. XXII, nota 12
19. O Imperador Carlos I da Áustria IV da Hungria foi beatificado pelo Papa João Paulo II em 3 de outubro de 2004.
Cf.: www.vatican.va/news_services/liturgy/saints/index_canoniz-beat_po.html
DOUTRINA . TEORIA GERAL DO DIREITO
HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO
421
período de crise e colapso financeiro para os “vencidos” e se transformaram em fonte
quase inesgotável de um nacionalismo crescente do qual emergiram os regimes
totalitários Nazi-Fascista na Alemanha e na Itália, com contraponto do Stalinismo na
recém instituída União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Nesse contexto, apesar de Hans Kelsen ter origem judaica, e inicialmente se considerar
agnóstico e, depois, sucessivamente “cristão” católico romano e protestante, bem com
nas suas origens não possuir relação particular com a tradição, a cultura ou as aspirações
da comunidade [judaica], retornou ao sionismo por conta da ascensão do nazismo20.
Refere, em diversas oportunidades na sua Autobiografia, as sucessivas restrições
de acesso ao ensino e de ascensão e permanência no meio acadêmico que sofreu,
justamente em razão dessa origem judaica, culminando com seu afastamento da
Universidade de Colônia, por imposição do Partido Nacional Socialista, apesar da
corajosa oposição manifestada pelos professores Hans Carl Nipperdey e Heinrich
Lehmann, coautores, junto com Ludwig Ennecerus, do sempre atual Tratado de Direito
Civil Alemão21 e, ainda, dos professores Hans Planitz, Godehard Josef Ebers, Albert
Aloysius Coenders e Gotthold Bohne22.
Nipperdey, convém lembrar, foi o formulador da teoria da eficácia direta dos direitos
fundamentais entre os particulares23.
Entre idas e vindas por diversos países, é possível afirmar ser Hans Kelsen “cidadão
do mundo”, Austro-Húngaro de nascimento, tendo se radicado na Alemanha, depois na
Suíça, e na Tchecoeslováquia, país do qual obteve a cidadania em razão de ter assumido
o cargo de professor na Universidade Alemã de Praga, o que lhe custou a cidadania
Austríaca e Alemã24 por um lado e, por outro lhe trouxe certa tranqüilidade financeira25 e,
finalmente, nos Estados Unidos da América, onde veio a falecer em Berkeley em 19.4.1973.
20. José Antonio Dias Toffoli e Otavio Luiz Rodrigues Junior, op. cit., p. XVIII.
21. Traduzido para o espanhol pelos professores Blas Pérez Gonzáles e José Alguer, da Universidade de Barcelona,
publicado em 1951 por Bosch Casa Editorial.
22. Cf. op. cit., p. XLIV.
23. Cf., Virgílio Afonso da Silva. A Constitucionalização do Direito – Os direitos fundamentais nas relações entre
particulares, p. 87. São Paulo: Malheiros, 2005.
24. Cf. Hans Kelsen, o jurista e suas circunstâncias, in Autobiografia, p. XLIX, p. 78.
25. Autobiografia, p. 18.
422
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
Essa aparente multe funcionalidade de Kelsen, por transitar em vários países e
exercer magistério em diversas Universidades da Europa e dos Estados Unidos, mais a
magistratura na Corte Constitucional durante a República Austríaca instituída logo após
o término da I Guerra Mundial, é muito mais decorrência das circunstâncias históricas,
políticas e econômicas da época em que viveu, do que conseqüência do desejo desse
jurista, conforme aponta Matthias Jestaedt: “trata-se, na grande maioria, de eventos
infelizes ou incompletos, dolorosos ou fracassados para Hans Kelsen. A fama e o
sucesso, a felicidade e o reconhecimento surgem apenas marginalmente e mais para
o fim da descrição. Predomina um tom elegíaco. A vida de Kelsen se deixa ler como a
história do indesejado. Ele troca cinco vezes de emprego universitário, nenhuma delas
por iniciativa própria”26.
Somente em Berkeley pôde, então, encontrar “finalmente um final feliz”, aí falecendo
aos 19 de abril de 1973, pouco mais de 2 meses após a partida de sua companheira de
toda a vida, com quem esteve casado por mais de 60 anos.
Hans Kelsen teve embates teóricos com os principais juristas do Século XX, com
destaque para Carlos Cóssio, formulador da teoria egológica do direito; Herbert L.
A Hart27 e Alf Ross28, sendo este último simultaneamente um crítico e expoente do
magistério do primeiro.
A respeito dessa influência, anota Alaôr Caffé Alves que “de Kelsen, Ross, apesar das
críticas à teoria pura do direito, assimila importantes elementos de sua teoria, como, por
exemplo, a distinção entre normas e proposições jurídicas (da ciência jurídica); a coerção
física como nota de identificação do direito; a negação do conhecimento objetivo sobre
as questões morais; a importância das normas para caracterizar o direito e os juízes
como destinatários das normas jurídicas”29.
O legado deixado por Hans Kelsen não se limita à sua mais conhecida obra, publicada
inicialmente em 1934, – Reine Rechtslehe – Teoria Pura do Direito, cujo teor provoca a
“ira” de integrantes representativos de todos os segmentos importantes da época e,
nos parece, inicia o debate contemporâneo acerca das concepções de Direito enquanto
26. Introdução à Autobiografia, p. 18.
27. Cf. op. cit. supra.
28. Cf. op. cit. supra.
29. Cf. Direito e Justiça, 1ª ed., p. 10., tradução e notas de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2000.
DOUTRINA . TEORIA GERAL DO DIREITO
HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO
423
ciência distinto da virtude Justiça e de valores da moral e de outras ciências, conforme
anota: “a ciência jurídica procura apreender o seu objecto ‘juridicamente’, isto é, do
ponto de vista do Direito. Aprender algo juridicamente não pode, porém, significar
senão aprender algo como Direito, o que quer dizer: como norma jurídica ou conteúdo
de uma norma jurídica, como determinado através de uma norma jurídica”30.
A esse aspecto acrescenta João Baptista Machado: “é esta a posição da Teoria Pura
do Direto em face da chamada teoria ‘egológica’ do Direito, que afirma ser o objeto da
ciência jurídica constituído não pelas normas, mas pela conduta humana e em face da
teoria marxista, que considera o Direito como agregado das relações econômicas”31.
Cabe referir, ainda, diversos escritos publicados postumamente, sem tal circunstância
retirar o relevo do conteúdo, merecendo destaque – Allgemeine Theorie der Normem
- a Teoria Geral das Normas, onde desenvolve conceitos laterais à Teoria Pura do Direito
e, segundo o tradutor da versão brasileira, professor doutor José Florentino Duarte,
“um dos pontos ratificados por Kelsen, e de grande repercussão, refere-se à norma
fundamental, porque muito já se explicou sobre esta matéria, e tudo o que disseram
está agora revogado. Assim, a norma fundamental, neste tratado, recebeu conceituação
nova e definitiva, corrigindo, o autor mesmo, o que se escrevera anteriormente ao tratála como hipótese”32.
Refere ao objeto de consideração adiante, quanto a desconcertante assertiva de
Kelsen, após exercício tendente ao “ad infinitum” chegar ao que considerou a norma
origem, após sucessão de substituições de normas fundamentos que se seguiram e
constatar que esta seria “um dado da razão”, ou seja, uma ficção...
Também merece referência A Ilusão da Justiça, na qual traz concepções extraídas de
Platão, particularmente a noção deste de Justiça e sobre a qual formula suas convicções
imbuídas de teor filosófico e psicológico até chegar ao capítulo final: “a apoteose do
direito positivo no Críton”, convindo destacar o seguinte: “no Críton, ao contrário do que
parece, a questão decisiva não é se as leis existentes servem ao bem comum, se são justas,
mas se o cidadão a elas sujeito tem o direito de decidir sobre essa questão. Que ele não
30. Cf. Teoria Pura do Direito, p.109.
31. Cf. Teoria Pura do Direito, p. 109, nota 2.
32. Cf. Teoria Geral das Normas, 1ª ed., p. VIII tradução de José Florentino Duarte. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris Editor, 1986.
424
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
o tem e que, portanto, as leis do direito positivo podem exigir obediência em quaisquer
circunstâncias, é a idéia central do diálogo que se dá entre as últimas obras de Platão”33.
Enfim, qualquer que seja a posição adotada, a de partidário ou a de crítico dos
postulados firmados por Hans Kelsen, particularmente os explicitados na Teoria Pura do
Direito, é irremovível a análise desses elementos para uma tentativa de compreensão
do Direito e concordar, ou não, com as considerações desse notável jurista.
2. HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO.
Os juristas e, particularmente, os comentadores das leis partem da análise textual do
comando objeto do estudo para, a par desse procedimento, discorrer sobre as causas,
componentes e conseqüências do instituto abordado34.
A respeito da “praticidade” propiciada pela redução do Direito à lei, ainda mais
quando organizada em códigos ou consolidação de leis esparsas, anota Clovis
Bevilaqua: “as codificações, além de corresponderem ás necessidades mentaes de
clareza e systematização, constituem, do ponto de vista social, formações orgânicas
do direito, que lhe augmentam o poder de precisão e segurança, estabelecendo
harmonia e a recíproca elucidação dos dispositivos, fecundando princípios e institutos,
que, no isolamento, se não desenvolveriam sufficientemente, conendo, canalizando
e orientando energias, que se poderiam prejudicar, na sua acção dispersiva. Por isso
apresentam-se na historia do direito, como phase normal da evolução, que, partindo da
fluidez inicial das ordens mais ou menos arbitrarias, das sentenças de varia inspiração,
e dos costumes, vae em busca de formas definidas, firmes e lúcidas, que traduzam,
melhor, as exigências, cada vez mais apuradas, da consciência jurídica, e, melhor,
disciplinem os interesses dos indivíduos e dos agrupamentos sociaes”.35
Essa orientação é resultante da tendência senão iniciada ao menos universalizada em
razão do Código Civil Francês, ou Código Napoleão, acerca do qual o próprio Napoleão
33. A Ilusão da Justiça, 2ª ed., tradução de Sérgio Tellaroli, p. 512. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
34. Cf. dentre vários: Francesco Messineo, Manuale di Diritto Civile e Commerciale, v. 1, p. 11, 9ª ed. Milano: Dott. A.
Giuffrè Editore, 1957; Ludwig Enneccerus, Theodor Kipp, Martin Wolff e Hans Carl Nipperdey, Tratado de Derecho
Civil Aleman, v. 1, t. 1, p. 29 e ss., 2ª ed. Barcelona: Bosch Casa Editorial, 1953; Clóvis Bevilaqua, Código dos Estados
Unidos do Brasil, v. 1, p. 2, 2ª ed. São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1921.
35. Cf. op. cit. e p. supra.
DOUTRINA . TEORIA GERAL DO DIREITO
HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO
425
asseverou se tratar de seu maior legado36, resultado de uma concepção racionalista,
tornado realidade “precisamente porque as idéias iluministas se encarnaram em forças
histórico-políticas, dando lugar à Revolução Francesa. É, de fato, propriamente durante
o desenrolar da Revolução Francesa (entre 1790 e 1800) que a idéia de codificar o direito
adquire consistência política”37.
Inicialmente debatido a partir de conceitos extraídos do Jusnaturalismo propostos
por Cambacérès em agosto de 1793, o projeto do Código Civil é conseqüência dos
trabalhos desenvolvidos por uma comissão nomeada por Napoleão, composta
por Tronchet, Maleville, Bigot-Prémeneau e, com destaque, Jean Etienne Marie
Portalis, discutido em 102 sessões perante o Conselho de Estado, dentre as quais
57 presididas pelo próprio Napoleão, então Primeiro Cônsul e, após as aprovações
de cada um dos Títulos, promulgados como leis separadas, foram compilados e
promulgados como Código Civil dos Franceses em 21 de março de 1804, sob franca
inspiração de outro jurista, Robert Joseph Pothier [1699-1772], particularmente seu
Tratado de Direito Civil.
A grande questão surgida a partir daí foi a de haver, ou não, resposta no Código
Civil [e na lei de modo geral] para todas as questões de direito que lhe são pertinentes,
isto por conta da redação de seu artigo 4º 38. Pragmaticamente significa ser vedado
ao juiz proferir decisão “non liquet”, ou seja, deixar de julgar e entregar a prestação
jurisdicional por falta de lei específica para o caso concreto. A partir desse contexto
iniciou-se o debate de haver, ou não, lacuna na lei, estendendo-se para o de ser o Direito
[normatizado] fechado, completo e acabado ou, ao contrário, aberto, incompleto
e mutável, não apenas por força de normas [leis], como também por força de outros
elementos [costumes, decisões judiciais e etc.].
O movimento “normativista” iniciado na Europa Continental mediante a Codificação,
particularmente do Direito Civil, se estendeu e ganhou outra dimensão em razão da
constitucionalização do direito, reflexo inicial também da Revolução Francesa com a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada em 26 de agosto de 1789,
36. Cf. Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, p. 63 e ss., 1ª ed. São Paulo: Ícone
Editora, 1999.
37. Cf. Op. cit., pp. 64 e ss.
38. “art. 4 – O juiz que se recuse a julgar sob pretexto de silêncio, de obscuridade ou de insuficiência da lei, poderá
ser processado como responsável por denegação da justiça”.
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ainda sob influência do Jusnaturalismo, e da anterior Declaração de Independência dos
Estados Unidos, ratificada no Congresso Continental de 4 de julho de 1776.
A concepção positivista adota a primeira posição, a da onipotência inicialmente
do legislador [a mens legislatoris] e depois da lei [a mens legis] e da circunstância de
o juiz “sempre” encontrar uma solução na norma para determinado caso concreto,
diretamente ou por integração a partir da analogia, de modo a haver uma completude
do ordenamento jurídico, sendo inadmissíveis os costumes contra legem e somente
viável a modificação por força de uma nova lei de igual ou superior hierarquia.
É esse o contexto da estruturação do positivismo jurídico iniciado no Século XIX
e desenvolvido no Século XX, a partir de considerações sobre a natureza e função do
Estado considerado em relação a si e quanto a outros Estados e o delineamento do Direito
Internacional, a força vinculante e o destinatário da lei; o sistema hierarquizado da norma
a partir da constituição; a inexistência de lacunas; a distinção e separação [absoluta] entre
o Direito e os demais ramos do conhecimento [dentre os quais a psicologia, a economia
e etc.], postulados que deram ensejo aos estudos iniciais até a formulação da Teoria Pura
do Direito, por Hans Kelsen, a par de outros juristas que também se debruçaram sobre tais
questões, sem o êxito da construção de um arcabouço teórico contendo praticamente
a solução para todas essas questões e, de resto, suscetível de ser amoldado a qualquer
sistema jurídico, quer o Continental Europeu quer o da Common Law, na medida em
que os precedentes judiciais característicos deste também apresentam basicamente a
mesma eficácia vinculante verificada no outro.
Difícil criticar, e mais ainda abandonar, o positivismo jurídico insculpido na Teoria Pura do
Direto por conta da “facilidade” oferecida para solução das questões postas em discussão,
particularmente em função da estrutura hierarquizada e fechada das normas, cujo sistema
é imune de lacuna, encontrando as inferiores fundamento de existência e validade nas
superiores, valendo-se o esquema do modelo lógico-silogístico formulado por Aristóteles39,
que, por sua vez, o considera a forma fundamental de todo raciocínio dedutivo.
Relata Abbagnano que “nos Primeiros Analíticos o silogismo é caracterizado nos
termos da dedução em geral, vale dizer, como ‘um discurso e que, postas algumas coisas,
se seguem necessariamente outras. Um silogismo compõem-se de três enunciados, dois
39. Cf. Órganon, 2ª ed., tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2010.
DOUTRINA . TEORIA GERAL DO DIREITO
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dos quais são chamados de premissas e o terceiro de conclusão40 como instrumento de
“solução”: se tal fato se encarta na regra “x” é inexorável a conclusão prevista, qual seja
a sanção. Essa estrutura lógica se apresenta em quatro formas categóricas, que veio a
ser conhecida posteriormente como “quadrado Aristotélico”.
Convém lembrar, ainda, que Aristóteles formulou outro esquema de raciocínio
diverso do dedutivo, qual seja a tópica, posteriormente apreendida por Immanuel
Kant41 e depois considerada por Theodor Viehweg na sua Tópica e Jurisprudência42.
Acresce o relevo considerado pelos pensadores contemporâneos de Kelsen acerca
da necessidade de se impor ao “conhecimento” uma metodologia de obtenção e uma
cientificidade de resultado, a ponto de se recusar conclusões fora desses parâmetros,
emergindo daí a imposição praticamente absoluta de separação entre o científico e o
não-científico e, no caso do Direito, a distinção entre este e a Justiça dentro das mais
variadas acepções43.
O “positivismo jurídico” de Hans Kelsen é inovador, uma vez que parte da abordagem da
sistematização, ou seja, a construção do seu objeto no sentido de que não impõe à esfera
jurídica, a partir do exterior, a coerência interna que lhe é necessária, tentando antes extrair
dela matérias jurídicas e correndo assim o risco de, por vezes, ser levada a estabelecer por
dedução, regras jurídicas não explicitamente formuladas nos textos normativos.
Neste aspecto, considera Kelsen que ou os fatos são juridicamente relevantes e,
por conseguinte, se constituem objeto de norma, ou são juridicamente indiferentes,
resultando a parêmia válida para o direito privado: tudo o que não estiver expressamente
40. Nicola Abbagnano. Dicionário de Filosofia, tradução da 1ª ed. brasileira coordenada e revista por Alfredo Bosi,
p. 1.065. São Paulo: Martins Fontes, 2007; Cf. Órganon, An. pr. I, 1, 24b 18; I, 32, 47ª 34
41. Cf. Crítica da Razão Pura, analítica transcedental, nota a anfibolia.
42. Tópica e Jurisprudência, 1ª ed., tradução de Tércio Sampaio Ferraz Jr. Brasília: Departamento de Imprensa
Nacional, 1979.
43. Cf. dentre vários: André Franco Montoro, Introdução à Ciência do Direito, p. 58 e ss., 29ª ed. São Paulo: Editora
RT, 2011; Miguel Reale, Filosofia do Direito, p. 497 e ss., 12ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1999; Luis Recasens Siches,
Tratado General de Filosofia del Derecho, p. 153 e ss., 18ª ed. Ciudad de Mexico, Editorial Porrúa, 2006; Giorgio Del
Vecchio, Lições de Filosofia do Direito, p. 331 e ss., 5ª ed., tradução de Antonio José Brandão. Coimbra: Armênio
Amado Editor, 1979; Rudolf Von Jhering, A Finalidade do Direito, v. 1, p. 213 e ss., 1ª ed., tradução de Heder K.
Hoffman. Campinas: Bookseller, 2002; Andrei Marmor, Direito e Interpretação, p. 235 e ss., 1ª ed., tradução de Luís
Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
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proibido [ou normatizado] está implicitamente permitido44. Destaca, ainda, a autonomia
do Direito, ou seja, pensar o jurídico a partir do próprio jurídico, sem levar em consideração
aspectos éticos, políticos, sociológicos, econômicos, psicológicos e etc. 45.
O direito é um sistema normativo hierarquizado fechado e autônomo, não se
integrando ou exigindo “conhecimentos” externos para sua explicação e aplicação.
Kelsen “imuniza” e exclui a importância de todo e qualquer elemento que não seja
estritamente de Direito para a construção de uma “teoria geral” deste, o posicionando
como ciência autônoma, independente e distinta de toda e qualquer outra,
particularmente a psicologia e a sociologia, dentre outros, por serem “extrajurídicos”.
Aponta: “a Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito Positivo – do Direito Positivo
em geral, não de uma ordem jurídica especial. É teoria geral do Direito, não interpretação
de particulares normas jurídicas nacionais ou internacionais. Contudo, fornece uma
teoria da interpretação. Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu
próprio objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Mas já
lhe não importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito.
É ciência jurídica e não política do Direito. Quando a si própria se designa como “pura”
teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas
dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu
objeto, tudo quanto se não possa, rigorosamente, determinar como Direito”46.
44. O mesmo pode ser dito em relação do Direito Público, mediante inversão da proposição: para a Administração
Pública, tudo o que não estiver legal e expressamente permitido, é proibido. Ainda que se cogite referir o “poder
discricionário” na Administração Pública, tal ocorre sempre a partir de uma norma que permita certa conduta,
atribuindo ao exercente momentâneo do poder a “escolha” entre a adoção ou não da medida e os respectivos
limites. Por outro lado, se não houver norma a delinear a atuação da Administração, a intervenção é ilegal. E há
necessidade de incidir tal restrição para limitar e mesmo impedir uma atuação descontrolada da Administração
Pública [leia-se do Estado] sobre a pessoa que sob sua soberania. Desse aspecto surgem questões cruciais: e se
houver norma a permitir a intervenção absoluta do Estado acerca da vida e do patrimônio da pessoa, proposição
amparada no sistema de validação entre normas inferiores e superiores, a ponto de encontrar respaldo o aspecto
na norma fundamental? No sistema positivista, esse procedimento é legítimo, quer a partir do “modelo” romanogermânico, quer com base no da Common Law, como ocorre quanto a “legitimidade da pena de morte” adotada
em diversas países, inclusive nos EEUU. Entretanto, a “manipulação” desse sistema de “legitimação” propicia
resultados absolutamente iníquos, conforme corretamente demonstra Françoise Rigaux em A Lei dos Juízes, 1ª
ed., tradução de Edmir Missio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
45. Jean-Cassien Billier e, Aglaé Maryioli. História da Filosofia do Direito, 1ª ed., p. 175, tradução de Pedro Henriques.
Lisboa: Instituto Piaget, 2006
46. Teoria Pura do Direito, p. 17.
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HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO
429
E acrescenta: “de um modo inteiramente acrítico, a jurisprudência tem-se
confundido com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria política. Esta confusão
pode porventura explicar-se pelo fato de estas ciências se referirem a objetos que
indubitavelmente têm uma estreita conexão com o Direito”47.
Estrutural e cientificamente a Teoria Pura do Direito de modo algum está limitada a
formula “geral” de reunião de conceitos jurídicos dos diferentes ramos, concatenados
sob a égide de premissas fundamentais capazes de “esgotar” o termo Direito e manifestar
a unidade deste. Kelsen pretende muito mais: elimina toda e qualquer consideração
ética, política ou pertinente a qualquer outro ramo do conhecimento – que não seja
estritamente jurídico – para, formulação dessa Teoria toda ela calçada no normativismo,
ou seja, a base da consideração é a norma jurídica.
Nesse contexto, a Teoria Pura do Direito foi formulada com o objetivo de dimensionar
“o que é o Direito” cognoscível em termos gerais ou universais, e não em relação a um ou a
um grupo de sistemas de Direito, ou seja, deve ser suficiente tanto para a “Common Law”
quanto para a “Civil Law” ou qualquer outro sistema, desde que seja pertinente ao “Direito”,
de modo a valer também para sistemas desde os “teocráticos” até para os mais elementares
utilizados por comunidades aborígenes sem contato com o “Mundo Civilizado”.
E para tanto busca identificar os aspectos comuns em todos esses variados sistemas,
elementos esses que devem ser estritamente jurídicos, identificando-os com “coerção”,
no sentido de [possibilidade de] exercício de legítima força física despendida, ou
imposição de “sanção”, por autoridade competente, contra alguém, com intuito de ser
cumprido o comando de uma “norma jurídica”.
O cumprimento da “norma” é atendido não porque seja justa, ou porque ajustarse ao “bem comum”, mas sim em razão da [possibilidade] de sanção ou “coerção” ao
cumprimento. E essa estrutura baseia-se em uma escala ordenada de legitimação de
normas, umas encontrando nas outras o fundamento de existência e validade, até se
chegar à “norma fundamental” [Grundnorm], diferenciando-se a “coerção” de um fato
[arbitrário e injusto] impositivo de força, em razão da legitimidade e competência da
autoridade para exigir o cumprimento da “norma”.
A respeito do que seja “norma”, afirma Kelsen: “quer-se significar que algo deve
ser ou acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada
47. Op. cit. supra.
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maneira”48, sob pena de sofrer uma sanção, conforme mais adiante evidencia: “dizer que
o Direito é uma ordem coativa significa que as suas normas estatuem atos de coação
atribuíveis à comunidade jurídica. Isto não significa, porém, que em todos os casos da
sua efetivação se tenha de empregar a coação física. Tal apenas terá de suceder quando
essa efetivação encontre resistência, o que não é normalmente o caso”49.
Acrescenta: “proposições jurídicas são juízos hipotéticos que enunciam ou traduzem
que, de conformidade com o sentido de uma ordem jurídica – nacional ou internacional
– dada ao conhecimento jurídico, sob certas condições ou pressupostos fixados por
esse ordenamento, devem intervir certas condições pelo mesmo ordenamento
determinadas. As normas jurídicas, por seu lado, não são juízos, isto é, enunciados
sobre um objeto dado ao conhecimento. Elas são antes, de acordo com o seu sentido,
mandamentos e, como tais, comandos imperativos. Mas não são apenas comandos,
pois também são permissões e atribuições de poder ou competência. Em todo caso,
não são – como, por vezes, identificado Direito como ciência jurídica, se afirma –
instruções (ensinamentos). O Direito prescreve, permite, confere poder ou competência
– não “ensina” nada”50 .
Prossegue: “quando a proposição jurídica é aqui formulada com sentido de que,
sob determinadas pressupostos, deve realizar-se uma determinada conseqüência, isto
é, quando a ligação produzida por uma norma jurídica, dos fatos estabelecidos como
pressuposto e conseqüência é expressa na proposição jurídica pela cópula “deve (-ser)”
[sollen], esta palavra não é empregada no seu sentido usual”51, e destaca: “em especial,
a ciência jurídica não pode afirmar que, de conformidade com uma determinada ordem
jurídica, desde que se verifique um ilícito, se verifica efetivamente uma conseqüência
do ilícito. Com uma tal afirmação colocar-se-ia em contradição com a realidade, na
qual muito freqüentemente se comete um ilícito sem que intervenha a conseqüência
do ilícito estatuída pela ordem jurídica”52 e conclui: “a Teoria Pura do Direito, como
específica ciência do Direito, concentra, como já se mostrou – a sua visualização sobre
as normas jurídicas e não sobre os fatos da ordem do ser [sein], quer dizer: não a dirige
48. Cf. Teoria Pura do Direito, p. 21.
49. Teoria Pura do Direito, p. 61.
50. Teoria Pura do Direito, p. 111.
51. Op. cit. 120.
52. Op. cit. 121.
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HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO
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para o querer ou para o representar das normas jurídicas, mas para as normas jurídicas
como conteúdo de sentido – querido ou representado”53.
É facilmente perceptível o posicionamento “hermético” feito por Kelsen para
delimitação da sua Teoria Pura do Direito e, por conseguinte, o expurgo de sua
compreensão de tudo o quanto não seja “jurídico”, valendo, pois, o primado da norma
jurídica assim considerada em dois aspectos: o estático e o dinâmico.
A respeito da vigência e domínio de vigência da norma assevera: “[...] a vigência da
norma pertence à ordem do “dever-ser” [sollen], e não a do ser [sein]”, por conseguinte,
“deve [-se] também distinguir a vigência da norma da sua eficácia, isto é, do fato real de
ela ser efetivamente aplicada e observada, da circunstância de uma conduta humana
conforme à norma se verificar na ordem dos fatos. Dizer que uma norma vale (é vigente)
traduz algo diferente do que se diz quando se afirma que ele é efetivamente aplicada e
respeitada, se bem que entre a vigência e a eficácia possa existir uma certa conexão”54.
Demais disso, é possível constatar engenhosa trama acerca da “liberdade humana”,
considerando-a Kelsen como resultado da norma, ou seja, ao abordar a “regulamentação
positiva e negativa” do Direito: “a conduta humana disciplinada por um ordenamento
normativo ou é uma ação por esse ordenamento determinada, ou a omissão de
tal ação. A regulamentação da conduta humana por um ordenamento normativo
processa-se por uma forma positiva e por uma negativa. A conduta humana é regulada
positivamente por um ordenamento positivo, desde logo, quando a um indivíduo é
prescrita a realização ou a omissão de um determinado ato (quando é prescrita a
omissão de um ato, esse ato é proibido)”.
E logo a seguir acrescenta: “Num sentido muito amplo, toda conduta humana que
é fixada num ordenamento normativo como pressuposto ou como conseqüência se
pode considerar como autorizada por esse mesmo ordenamento e, neste sentido, como
positivamente regulada. Negativamente regulada por um ordenamento jurídico é a
conduta humana quando, não sendo proibida por aquele ordenamento, também não o
é positivamente permitida por uma norma delimitadora do domínio de validade de uma
outra norma proibitiva – sendo, assim, permitida num sentido meramente negativo”55.
53. Op. cit. 156.
54. Op. cit., p. 30.
55. Op. cit. p. 36.
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Mais: “O Direito” [é uma] “ordem coercitiva de conduta humana”. “Dizer que o
Direito é uma ordem coactiva significa que as suas normas estatuem atos de coação
atribuíveis à comunidade jurídica. Isto não significa, porém, que em todos os casos da
sua efetivação se tenha de empregar a coação física. Tal apenas terá de suceder quando
essa efetivação encontre resistência, o que não é normalmente o caso”56.
Prossegue adiante, ao se referir ao “mínimo de liberdade”: “uma conduta que não
é juridicamente proibida é – neste sentido negativo – juridicamente permitida”57
e arremata: “por vezes não se nega que a vontade do homem seja efetivamente
determinada por via causal, como todo o acontecer, mas afirma-se que, para tornar
possível a imputação ético-jurídica, se deve considerar o homem como se a sua vontade
fosse livre. Quer dizer: crê-se que se tem de manter a liberdade da vontade, a sua nãodeterminação causal, como uma ficção necessária”58.
Este último conceito, “tudo o que não está expressamente proibido é implicitamente
permitido” é valido tanto considerado o fundamento de Direito Privado como
também, em ordem inversa, o Direito Público: “tudo o que não estiver expressamente
permitido, é proibido para a Administração Pública”, dos quais é possível afirmar que,
dentro desse escopo da Teoria Pura do Direito, a liberdade é uma ficção “necessária”,
cuja realidade e limites decorrem da norma jurídica, e não da autodeterminação e
governo das pessoas.
Demais disso, o destinatário da norma não é o cidadão ou, mais genericamente, a
pessoa, e sim os órgãos judiciários e, em geral os do Estado. Essa assertiva formulada por
Kelsen, também sob o foco da coerção como elemento da norma, fora antes considerada
por Rudolf Von Jhering [1818-1892]: “a organização da força social de coação constituise de dois aspectos: o estabelecimento do mecanismo externo da força e a fixação de
princípios para regular o emprego dela. A forma pela qual é possível realizar a primeira
tarefa, é o poder público, para a realização da segunda, o direito. Ambos os conceitos
encontram-se em relação de condicionamento mútuo: o poder público necessita do
direito, , e o direito não pode prescindir do poder público”59.
56. Op. cit. p. 61.
57. Op. cit. p. 72.
58. Op. cit. p. 143.
59. A Finalidade do Direito, v. 1, p. 213, 1ª ed., tradução de Helder K. Hoffmann. Campinas: Bookseller, 2002.
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Ainda a respeito da coação, Kelsen destaca: “uma regra é uma regra jurídica não porque
sua eficácia é assegurada por uma outra regra que dispõe uma sanção; uma regra é uma
regra jurídica porque dispõe uma sanção. O problema a coerção (coação, sanção) não é o
problema de assegurar a eficácia das regras, mas sim o problema do conteúdo das regras”60.
Resulta dessa assertiva a consideração de que norma desprovida de sanção ou de
coação é uma “não-norma”.
Alf Ross, ex-aluno de Hans Kelsen e dos mais respeitáveis expoentes da escola
realista do direito, observa, ainda a respeito da coação: “devemos insistir no fato de que
a relação entre as normas jurídicas e a força consiste em que tais normas dizem respeito
à aplicação da força e não que são protegidas por meio a força. [...] Um sistema jurídico
nacional é um sistema de normas que se referem ao exercício da força física”61
Norberto Bobbio anota, também sobre esse aspecto: “segundo a moderna
formulação da teoria da coação, o direito é, por conseguinte, um conjunto de regras
que têm por objeto a regulamentação do exercício da força numa sociedade”62.
Entretanto, a partir da “positivação” de princípios, ou seja, desde a inserção na
Constituição de princípios jurídicos que, normalmente, se apresentam como postulados
ou premissas, sem a “indicação” de sanção, essa situação de modo algum lhes retira
a natureza “normativa”, uma vez que o desrespeito a esses postulados passa a ser
considerado, ou ao menos é possível considerar como causa de inconstitucionalidade.
Basta considerar, por exemplo, uma norma afirmativa de que “A República [...] tem
como fundamento [...] a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho
e da livre iniciativa”; cujos objetivos fundamentais sejam “constituir uma sociedade
livre, justa e solidária” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, segundo a qual toda e
qualquer decisão judicial ou medida administrativa ou, por fim, proposição legislativa
deve ser norteada, sob pena de vir a ser reconhecida a “inconstitucionalidade”. Tal
assertiva normativa poderia ser objetada sob o argumento de que se constitui “norma
programática”, ou seja, um ideal a ser atingido, sem eficácia vinculativa. Entretanto,
ainda que assim se considere, o ranço de inconstitucionalidade subsiste, uma vez que
60. Cf. Teoria Geral do Direito e do Estado, p. 28.
61. Cf. Direito e Justiça, pp. 52 e ss. 1ª ed., tradução e notas de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2000.
62. Cf. O Positivismo Jurídico, p. 157.
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se é “ideal”, nenhuma medida ou decisão pode ser adotada que venha a deslocar esse
marco para um ponto mais distante do que aquele no qual já esteja situado.
Em outros termos, é possível a eleição de variados critérios de acordo com a política
legislativa para ser construída e alcançada a finalidade da norma, o defeso é a definição
de critérios em desatenção ao comando constitucional, ainda que seja um principio. O
intrigante é identificar se o princípio é ou não constitucional, como ocorre em relação
ao Preâmbulo da Constituição Federal de 1988.
Quanto à sanção, esta deve ser considerada como inerente ao sistema normativo,
de modo que o desrespeito a uma norma constitucional é a inconstitucionalidade do
ato desconforme, por decorrência normal da estrutura hierarquizada das normas, ainda
que essa conseqüência não seja expressa.
Kelsen apresenta duas vertentes para abordagem universal do Direito, a partir das teorias
jurídicas estática e dinâmica da norma: a primeira tem por objeto o Direito como um sistema
de normas em vigor, o Direito no seu momento estático; a outra tem por objeto o processo
jurídico em que o Direito é produzido e aplicado, o Direito em movimento. Deve, no entanto,
observar-se, a propósito, que este mesmo processo é, por sua vez, regulado pelo Direito.
As normas, por sua vez, se apresentam a partir de uma estrutura escalonada dentro
da ordem jurídica, de modo que a norma superior é fundamento de existência e validade
para uma norma inferior, conforme considera “[...] uma norma somente é válida porque
e na medida em que foi produzida por uma determinada maneira, isto é, pela maneira
determinada por uma outra norma, esta outra norma representa o fundamento imediato
de validade daquela. A relação entre a norma que regula a produção de uma outra norma e
a norma assim regularmente produzida pode ser figurada pela imagem espacial da suprainfra-ordenação. A norma que regula a produção é a norma superior, a norma produzida
segundo as determinações daquela é a norma inferior. A ordem jurídica não é um sistema
de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é
uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua
unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma
norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre esta outra norma,
cuja produção, por seu turno, é determinada por outra; e assim por diante, até abicar
finalmente na norma fundamental – hipotética, nestes termos – é, portanto, o fundamento
de validade último que constitui a unidade deste interconexão criadora”63.
63. Op. cit. p. 309.
DOUTRINA . TEORIA GERAL DO DIREITO
HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO
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Tal norma hipotética é, então, uma “ficção” ou um dado da razão humana...
Essa constatação acaba por, senão infirmar, ao menos apresentar relevante objeto de
questionamento da unicidade e universalidade da Teoria Pura do Direito, na medida em
que acaba por se fundar em um elemento absolutamente desprovido de “consistência
jurídica”, qual seja em uma hipótese ou abstração decorrente da Vontade humana,
aspecto que pode suscitar uma certa proximidade justamente com o Direito Natural,
categoricamente recusado por Kelsen em razão de estar desprovido de todos os
elementos para justificar uma Teoria fundada em aspectos “exclusivamente jurídicos”.
Ainda que seja considerada a obra póstuma Teoria Geral das Normas [Allgemeine
Theorie der Normen], da qual cabe inicialmente destacar a anotação do tradutor,
José Florentino Duarte, quanto a “um dos pontos retificados por Kelsen, e de grande
repercussão, refere-se à norma fundamental, porque muito já se explicou sobre esta
matéria, e tudo o quanto disseram está, agora, revogado. Assim, a norma fundamental,
neste tratado, recebeu conceituação nova e definitiva, corrigindo o autor mesmo, o que
escrevera anteriormente, ao tratá-la como hipótese” 64.
Refere a seguinte assertiva: “a norma fundamental de uma ordem jurídica ou moral
positivas – como evidente do que precedeu – não é positiva, mas meramente pensada,
e isto significa uma norma fictícia, não o sentido de um real ato de vontade, mas sim
de um ato meramente pensado. Como tal, ela é uma pura ou ‘verdadeira’ ficção no
sentido da vaihingeriana Filosofia do Como-Se, que é caracterizada pelo fato de que
ela não somente contradiz a realidade, como também é contraditória em si mesma”65
e acrescenta: “segundo Vaihinger, uma ficção é um recurso do pensamento, do qual se
serve se não se pode alcançar o fim do pensamento com o material existente”66.
Conclui: “o fim do pensamento da norma fundamental é: o fundamento de validade
das normas instituintes de uma ordem jurídica ou moral positiva, é a interpretação do
sentido subjetivo dos atos ponentes dessas normas como de seu sentido objetivo; isto
significa, porém, como normas válidas, e dos respectivos atos como atos ponentes da
norma. Este fim é atingível apenas pela via de uma ficção”67.
64. Cf. a Introdução do tradutor, José Florentino Duarte, p. VIII, 1ª ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986.
65. Teoria Geral das Normas, p. 328.
66. Op. cit. p. 329.
67. Op. cit. supra.
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Ocorre que a norma fundamental, a partir de uma consideração hipotética, também
evidencia a ausência de “pureza”, na medida em que se vale do elemento não-jurídico
vontade, ou “criatividade” humana para escorar sua estrutura bem articulada sob o
aspecto lógico-formal, porém questionável se considerado, em última análise e no
maior grau de expurgo, o aspecto “não-jurídico” basilar no qual se sustenta.
É o que sustenta Claus-Wilhelm Canaris: “são também impróprios para traduzir a
unidade interior e a adequação de uma ordem jurídica, todos os sistemas de ‘puros’
conceitos fundamentais, tal como Stammer, Kelsen ou Nawiasky os desenvolveram.
Trata-se, neles, de categorias puramente formais, que subjazem a qualquer ordem
jurídica imaginável, ao passo que a unidade valorativa é sempre de tipo material e só
pode realizar-se numa ordem jurídica historicamente determinada; sobre isso, porém,
os sistemas de puros conceitos fundamentais, pela sua própria perspecção, não querem
bem dizer nada”68.
Apesar da estruturação lógica e da eliminação de toda e qualquer consideração
“não-jurídica” para a formulação de uma “Teoria Pura”, a base desta, por ser uma “ficção”,
acaba por lhe retirar a consistência justamente em razão dessa “falta de pureza”.
Trata-se a “norma fundamental” de uma conjectura filosófica a propósito da qual é
possível utilizar a articulação lógico-filosófica construída a partir das conclusões tecidas
por Ludwig Wittgenstein: “6.522. Existe no entanto o inexprimível. É o que se revela,
é o místico. 6.53. O método correcto da Filosofia seria o seguinte: só dizer o que pode
ser dito, i.e, as proposições das ciências naturais – e portanto sem nada que ver com a
Filosofia – e depois, quando alguém quisesse dizer algo metafísico, mostrar-lhe que
nas suas proposições existem sinais aos quais não foram dados uma denotação. A esta
pessoa o método pareceria ser frustrante – uma vez que não sentiria que lhe estávamos a
ensinar Filosofia – mas este seria o único método estrictamente correto. 6.54. As minhas
proposições são elucidativas pelo faço de que aquele que as compreende as reconhece
afinal como falhas de sentido, quando por elas se elevou para lá delas. (Tem que, por
assim dizer, deitar fora a escada, depois de ter subido por ela). Tem que transcender
estas proposições; depois vê o mundo direito”69.
68. Cf. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na ciência do Direito, p. 27, 4ª ed., tradução de A. Menezes
Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.
69. Cf. Tratado Lógico-Filosófico, pp. 141-142, 2ª ed., tradução e prefácio de M. S. Lourenço. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1995.
DOUTRINA . TEORIA GERAL DO DIREITO
HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO
437
Tércio Sampaio Ferraz Junior traz o conceito de norma e elabora sua Teoria Geral a
partir a partir de uma abordagem pragmática fundada na teoria comunicacional70, na
qual demonstra haver uma aporia quanto a solução do enigma pertinente a “legitimidade
dos sistemas normativos”, ao considerar que “o caráter dogmático do discurso normativo
releva, portanto, um modo específico de racionalidade que consiste em não eliminar,
ao contrário, assumir aporias como ponto de partida do seu discursar, estabelecendo
premissas que apenas contornam a aporia, as quais se mantém na medida em que estão
abertas a um confronto com outras possibilidades. Curiosamente, o discurso normativo,
enquanto dogmático, é um discurso aberto no sentido da viabilidade das decisões,
mas que, por isso mesmo, corre o risco de absolutizar-se. Toda vez que ele nega seu
momento dialógico e vê apenas os seus valores materializados ideologicamente como
os únicos prevalecentes, ele se exime de suas próprias regras e se torna irracional. Esta
irracionalidade é o que o faz ilegítimo. A legitimidade do discurso normativo repousa,
pois, não em premissas incontestáveis e absolutas, mas na garantia da posição de outras
possibilidades, em confronto com as quais o dogma se sustenta”71.
E conclui: “a impossibilidade de se sair dos limites ideológicos não deve ser entendida,
porém, como a afirmação absoluta do relativismo. O que se diz, é que dentro dos discursos
heterológicos ou de dentro deles, estamos sempre referidos a limites ideológicos, embora
um discurso heterológico possa ser, como tal, objeto de um discurso homoloógico que
terá condições, então de por o problema em termos de verdade”.
Assim, qualquer que seja a formulação teórica acerca do Direito, quer enquanto
teoria “geral” ou “da norma” ou do “Estado”, inexoravelmente haverá aspectos de
sustentação e outros de fragilidade que, em algum momento, serão refutados com
superação dessa [Teoria] por outra “Teoria” melhor estruturada em consonância com o
contexto histórico em que estiver situada, sucessivamente.
Isto não significa que seja “melhor” ou “pior” que as antecessoras, da mesma
maneira que a “Civilização Antiga” não é “melhor” nem “pior” do que a atual, ou que
a “Civilização Ocidental” possa ser objeto de comparativo com a do “Oriente Médio”
e etc., pois cada qual com sua estrutura e maior ou menor [des] equilíbrio traça seus
70. Cf. Dentre vários: Paul Watzlawic, Janet Helmick Beavin e Don D. Jackson, Pragmática da Comunicação
Humana: um estudo dos padrões, patologias e paradoxos da interação, 1ª ed., tradução de Álvaro Cabral. São
Paulo: Editora Cultrix, 1967; Fernand de Saussure, 1ª ed., tradução de Antonio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro
Blikstein. São Paulo: Editora Cultrix, 2006.
71. Cf. Teoria Geral da Norma, pp. 179 e ss., 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978.
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
contornos, particularmente quanto ao Direito, para justificar a própria organização
social e, com isto, estabelecer um parâmetro mínimo de convivência.
Talvez seja esse o aspecto norteador de uma “norma fundamental”, não uma “norma
origem”, mas uma “norma equilíbrio”, no sentido de que enquanto houver insitamente
uma harmonia social tendente a manutenção de um estado de “paz” entre as pessoas, o
sistema jurídico no qual está alicerçada se mantém. Essa “norma equilíbrio” supõe uma
“coerção” suficiente a impor o comportamento determinado e, por outro lado, quando
deixa de incidir ou de ser oponível pela autoridade competente de forma sistêmica,
provoca a fragmentação da própria “norma fundamental” da qual resultará outra, desde
que e até que seja suficiente para restaurar o “equilíbrio” e a manutenção de um estado
de “paz”. Isto não significa que a harmonia equivalha a felicidade ou a um “estado de
bem estar”, desejável, porém somente alcançável se os diversos fatores de sustentação
da “norma equilíbrio” forem suficientes para mantê-la e impô-la.
Fica, de qualquer forma, a conclusão de Wittgenstein: “Acerca daquilo de que não se
pode falar, tem que se ficar em silêncio”72
3. O POSITIVISMO E O JUSNATURALISMO: TESE E
ANTÍTESE RECIPROCAMENTE [DES] CONSIDERADOS.
Hans Kelsen não é o “fundador” do “positivismo jurídico”, cujas raízes filosóficas
assentam em Saint-Simon, que utilizou “positivismo” para designar o “método exato
das ciências e sua extensão para a filosofia (De La Religion Saint-Simonienne, 1830:3)” e
“adotado por Augusto Comte para a sua filosofia e, graças a ele, passou a designar uma
grande corrente filosófica”73.
Ainda no campo estritamente filosófico, o “positivismo” apresenta duas correntes
históricas, “a do “positivismo social” de Saint-Simon, Comte e John Stuart Mil, nascido
da exigência de construir a ciência como fundamento de uma nova ordenação social e
religiosa unitária, e o “positivismo evolucionista” de Herbert Spencer, que estende a todo
o universo o conceito de progresso e procura impô-lo a todos os ramos da ciência”74.
72. Op. cit. supra.
73. Cf. Nicola Abbagnano, Op. cit., p. 909.
74.
DOUTRINA . TEORIA GERAL DO DIREITO
HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO
439
O positivismo pode ser resumido a três teses fundamentais: “[i] a ciência é o
único conhecimento possível e o método da ciência é o único válido, de modo que
o recurso a causas ou princípios não acessíveis ao método da ciência não dá origem
a conhecimentos; a metafísica, que ocorre a tal método, não tem nenhum valor; [ii] o
método da ciência é puramente descritivo, no sentido de descrever os fatos e mostrar
as relações constantes entre os fatos expressos pelas leis, que permitem a previsão dos
próprios fatos [cf. Augusto Comte75]; ou no sentido de mostrar a gênese evolutiva dos
fatos mais complexos a partir dos mais simples [Spencer]; [iii] o método da ciência, por
ser o único válido, deve ser estendido a todos os campos de indagação e da atividade
humana; toda vida humana, individual ou social, deve ser guiada por ele”76.
Narra nesse contexto Norberto Bobbio, ao observar a transposição do “positivismo
filosófico” para o “positivismo jurídico” que este “nasce do esforço de transformar o estudo
do direito numa verdadeira e adequada ciência que tivesse as mesmas características
das ciências físico-matemáticas, naturais e sociais. Ora, a característica fundamental
da ciência consiste em sua “avaloratividade”, isto é, na distinção entre juízos de fato
e juízos de valor e na rigorosa exclusão destes últimos do campo científico: o juízo de
fato representa uma tomada de conhecimento da realidade, visto que a formulação
de tal juízo tem apenas a finalidade de informar, de comunicar a um outro a minha
constatação; o juízo de valor representa, ao contrário, uma tomada de posição frente à
realidade, visto que a sua formulação possui a finalidade não de informar, mas de influir
sobre o outro, isto é, fazer com que o outro realize uma escolha igual a minha”77.
Tanto assim que Kelsen aponta: “na afirmação evidente de que o objeto da ciência
jurídica é o Direito, está contida a afirmação – menos evidente – de que são as normas
jurídicas o objeto da ciência jurídica, e a conduta humana só o é na medida em que
é determinada nas normas jurídicas como pressupostos ou conseqüência, ou – por
outras palavras – na medida em que constitui conteúdo de normas jurídicas” e, a seguir,
acrescenta: “a ciência jurídica procura apreender o seu objeto ‘juridicamente’, isto é, do
ponto de vista do Direito. Apreender algo juridicamente não pode, porém, significar
senão apreender algo como Direito, o que quer dizer: como norma jurídica ou conteúdo
75. In André Vergez, História dos Filósofos, p. 286 e ss., 2ª ed., tradução de Lélia de Almeida Gonzales. Rio de
Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1972.
76. Op. cit. e p. supra.
77. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, 1ª ed., tradução de Márcio Pugliesi, p. 135. São Paulo:
Ícone, 1999.
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de uma norma jurídica como determinado através de uma norma jurídica”78.
Por outro lado Kelsen rejeita veementemente as concepções formuladas por uma
corrente de pensadores iniciada na Magna Grécia, tendo no Século XVII expoentes
como Hugo Grócio [1583-1645], Thomas Hobbes [1588-1679] e John Locke [1632-1704] e
designada por Direito Natural.
Hobbes formula célebres expressões como “homo homini lupus”79 e “bellum omnium
contra omnes”80, para quem o direito reduz-se à força, mas distingue dois momentos na
história da humanidade: o estado natural e o estado político. No estado natural, o poder
de cada um é medido por seu poder real; cada um tem exatamente tanto direito quanto
de força e todos só pensam na própria conservação e nos interesses pessoais81.
Tais assertivas soam familiares, ainda mais se consideradas as ponderações de Ferdnand
de Lassalle na sua A Essência da Constituição82, ao tratar dos “fatores reais de poder” que
diferenciam uma Carta Política Fundamento de um apanhado de “folhas de papel”.
Entretanto o Direito Natural não se resume a essa aparente feição de brutalidade,
da qual o ser humano se torna sociável “por acidente” na opinião de Hobbes83, ou por
imperar interesses egoísticos intolerantes, conforme teceu John Locke considerações em
sentido contrário, a propósito de quem, desde Voltaire84 até Bobbio, são desenvolvidos
os mais variados e consistentes estudos sobre a tolerância, o governo civil e a distinção
entre a teocracia e o pacto social, sendo este sim a origem do poder governamental85.
Norberto Bobbio considera que “para compreender o que se quer dizer com a
expressão direito natural, será preciso começar com o conceito de natureza. O direito
78. Cf. Teoria Pura do Direito, p. 109.
79. “O homem é o lobo do homem”.
80. “A guerra de todos contra todos”.
81. Cf. André Vergez. História dos Filósofos, 2ª ed., tradução de Lélia de Almeida Gonzalez, p. 217. Rio de Janeiro:
Freitas Bastos, 1972.
82. 6ª ed., tradução de Aurélio Wander Bastos. São Paulo: Lumen Juris, 2001
83. Cf. op. cit supra, p. 217.
84. Cf. op. cit. supra, p. 218.
85. Cf. op. cit. supra, p. 219. Cf., ainda: Norberto Bobbio. Locke e o Direito Natural, 1ª ed., tradução de Sérgio Bath.
Brasília: UnB, 1997.
DOUTRINA . TEORIA GERAL DO DIREITO
HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO
441
natural provém da natureza e se funda na natureza. Mas, o que é natureza? Trata-se
de um conceito, entre muitos de caráter extremamente genérico, que recebemos
dos gregos e, dois mil anos a fio, não cessa de atormentar os filósofos que procuram
determinar o seu significado”86.
Prossegue, mais adiante: “para entender o que os gregos queriam dizer com
natureza é preciso remontar a Aristóteles, dedicado precisamente a explicar o sentido
de natureza. Nele encontramos a conhecida definição: ‘no sentido primário e próprio,
natureza é a substância dos seres que têm em si mesmos, enquanto tais, o princípio do
seu movimento’”87.
Após divisar “o que é” e “o que não é” próprio da Natureza, acrescenta: “certas regras
derivam da natureza e, por isso, constituem o direito natural; outras derivam da arte ou
da convenção – as do direito positivo. Dessa resposta dada pelos gregos ao problema do
Direito, surgiu a dicotomia entre o direito natural versus direito positivo, que chegou até
nós, depois de mil peripécias. A nós, hoje, pode parecer estranho que o direito pudesse
ser considerado, pelo menos em parte, uma coisa natural, um produto da natureza.
Se hoje propuséssemos a pergunta nos mesmos termos em que fora proposta pelos
gregos, não hesitaríamos em responder que as regras que dirigem e controlam a vida
social são um produto do fazer humano, entendido no duplo sentido aristotélico de
‘produzir’ e ‘agir’. A prova é a seguinte: se em vez de considerar as noções tipicamente
gregas de arte ou convenção como antitéticas à natureza, tomássemos os outros termos
da antítese, como sociedade, civilidade, história, espírito, só seria possível uma resposta:
‘o direito, todo ele – sem possibilidade de distinção – é produto da sociedade, ou da
civilidade, ou da história, ou do espírito. É, contudo, preciso levar em conta que, nas
sociedade antigas – inclusive na helênica – o direito era essencialmente consuetudinário:
um conjunto de regras transmitidas de geração a geração, aplicadas pelos magistrados
e seguidas espontaneamente pelos cidadãos. O direito legislativo, como o entendemos,
ou seja, o direito proposto por uma vontade dominante, individual ou coletiva, era
um fenômeno excepcional. Ora, a caracerísitca do direito consuetudinário é que ele
é aceito como se sempre tivesse existido: são as regras cuja origem não conhecemos
exatamente e com as quais nos conformamos por instinto, por imitação, por hábito; não
porque nos curvamos, quem sabe a contra-gosto, à sua autoridade, mas porque todos
86. Cf. op. cit. supra, p. 27.
87. Idem.
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
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os demais, antes de nós, e os que estão a nosso lado, se comportam assim, e parece que
não poderiam conduzir-se de outra forma. A distinção entre natureza e norma proposta
por uma vontade dominante é evidente, mas muito menos óbvia é a que existe entre
natureza e costume”88.
Na opinião de André Franco Montoro “o Direito positivo é constituído de normas
elaboradas por uma sociedade determinada, para reger sua vida interna, com a proteção
da força social. Direito natural significa coisa diferente. É constituído pelos princípios
que servem de fundamento ao Direito positivo”89 e mais adiante acrescenta: “a palavra
‘direito’ indica realidades diferentes num e noutro caso. Inúmeras interpretações
inexatas do Direito natural decorrem [...] do fato de se atribuir significação unívoca,
isto é, uma única significação ao vocábulo ‘direito’ em ambos os casos” e arremata: “
o Direito natural, na sua formulação clássica, não é um conjunto de normas paralelas
e semelhantes às de Direito positivo. Mas é o fundamento do Direito positivo. É
constituído por aquelas normas que servem de fundamento a este, tais como: ‘deve
se fazer o bem’, ‘dar a cada um o que lhe é devido’, ‘a vida social deve ser conservada’,
‘os contratos devem ser observados’ etc., normas essas que são de outra natureza e de
estrutura diferente das do Direito positivo”90.
A “generalidade” do que seja o Direito Natural, a partir dos primórdios da Civilização
Ocidental fundada no “kalos kai agathos” (καλός καi αγαθός), ou seja, no Belo e Bom, ou
nos fundamentos do Direito Romano, calcado no “honeste vivere”, “neminem laedere”
e “suum cuique tribuere” dificultam, para não dizer praticamente impossibilitam a
formulação de uma Teoria Geral do Direito “universal”, “fixa” e “invariável” com bases
nesses parâmetros, dadas as oscilações compreensivas de tais elementos, dificuldade
essa irresistível a redução e teste da formulação a critérios “científicos”, o que torna
imbatível, sobre esse prisma “científico” a proposição de uma Teoria formulada a partir
do Direito Positivo.
Entretanto, é assente que o próprio Direito Positivo está fundamento na norma
jurídica, que nada mais é do que produto da “vontade humana”, ainda que o processo
de produção também seja definido por “determinada norma jurídica”, uma vez que
qualquer que seja o mecanismo de “criação”, tal se dará porque dada coletividade de
88. Op. cit., p. 30.
89. Op. cit., p. 59.
90. Op. cit. supra.
DOUTRINA . TEORIA GERAL DO DIREITO
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pessoas, organizada autonomamente e situada em certo território, assim entendeu.
Essa “vontade humana” pode ser traduzida como a “vontade do legislador” e, mesmo
que se considere o resultado [norma] destacado e desvinculado da ideologia ou outros
fatores determinantes para a produção normativa, estará vinculada a uma “abstração“,
ou a uma “conveniência social” ou a designação que queira dar, como, por exemplo,
“norma fundamental”, cuja origem só pode ser determinada a partir da própria vontade
humana, de modo que a tentativa de atribuir uma feição “pura” ou um critério de “cientificidade” a uma Teoria do Direito somente permite a aceitação geral, se considerada
como uma das várias possível para compreensão do que seja o Direito e não a única.
Quanto a intersecção entre o Direito e a Moral, Kelsen refere: “o Direito só pode ser
distinguido essencialmente da Moral quando – como já mostramos – se concebe como
uma ordem de coação, isto é, como uma ordem normativa que procura obter uma
deerminada conduta humana ligando à conduta oposta um ato de coerção socialmente
organizado, enquanto a Moral é uma ordem social que não estatui quaisquer sanções
desse tipo, visto que suas sanções apenas consistem na aprovação da conduta conforme
às normas e na desaprovação da conduta contrária às normas, nela não entrando sequer
em linha de conta, portanto, o emprego da força física”91.
Observam, a propósito, Jean-Cassien Billier e Aglaé Maryioli que “Segundo Kelsen,
o dualismo direito positivo / direito natural é insustentável por uma razão simples, mas
fundamental: fazer depender a validade de uma ordem jurídica da sua conformidade
com preceitos de justiça exteriores à ordem jurídica positiva é pressupor uma ordem
moral absoluta e única à qual se deve conformar o direito positivo. ‘Sublinhar a
necessidade’, afirma Kelsen, ‘ de separar o direito da moral, e , conseqüentemente, da
justiça, tendo como fundamento uma teoria relativista de valores’ não significa que
‘o direito na tem nada a ver com a moral. Significa tão-só que, quando se julga uma
ordem jurídica moral ou imoral, justa ou injusta, se indica a relação que ela tem com
um dos numerosos sistemas morais possíveis e não com a ‘moral’, pelo que a validade
de uma ordem positiva é independente da sua conformidade ou inconformidade com
um qualquer sistema moral’92. Afigura-se evidente que a posição de Kelsen se concebe
unicamente na perspectiva de uma teoria universal do direito e, por acrescento, pura,
91. Op. cit. p. 99.
92. Cf. História da Filosofia do Direito, p. 183, nota 20, tradução Pedro Henriques, 1ª ed. Lisboa: Instituto Piaget,
2001.
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ou seja, naquela em que a unidade, para não dizer a unicidade, de qualquer ordem
jurídica positiva possível não pode advir do conteúdo de uma ordem jurídica, mas sim
da sua forma, isto é, do modo de criação de normas jurídicas. Independente daquilo que
diz Kelsen, o jusnaturalismo do conteúdo é assim substituído por um jusnaturalismo da
forma. Seguindo as duas abordagens, que só aparentemente serão opostas, a validade
do direito positivo deriva apenas de princípios universais válidos, referindo-se ao
conteúdo (teorias substanciais do direito natural) e outros à forma (norma fundamental
que habilita uma autoridade criadora as normas). O argumento de Kelsen responde, de
forma relativamente satisfatória, às teorias do direito natural universalistas substanciais.
Mas o seu argumento, que se pretende positivista, não responde em caso algum às
teorias jusnaturalistas de conteúdo historicamente variável”93.
O Direito enquanto “Ciência”, ou “Teoria Pura”, apesar de justificar-se dentro de uma
proposta positivista, é insuficiente para evitar que, com base nessa estrutura, o lobo
contido no homem devore seu semelhante, de modo que a dicotomia Direito Positivo e
Direito Natural configuram uma aporia.
Mais: a circunstância de o Direito positivo aparentemente não conviver e excluir o
Direito natural e vice versa é muitas vezes contornada a partir de “regras de calibração”
disfarçadas em suas respectivas estruturas como, por exemplo, ocorre com os chamados
conceitos vagos94 ou os princípios jurídicos não positivados como ocorre, por exemplo,
com o da proporcionalidade, da razoabilidade e da dignidade da pessoa humana.
Demais, contexto histórico após a Segunda Guerra Mundial impõe novamente
outras reflexões, a começar pela mudança de orientação pontuada por Gustav Radbruch
[1878—1949], segundo o qual “há princípios que são mais fortes do que qualquer
estatuto jurídico [...]. Esses princípios dão pelo nome de direito natural ou direito da
razão. É certo que, se o analisarmos ao pormenor, não estão isentos de dúvidas, mas o
trabalho de diversos séculos elaborou, não obstante, um número constante e reuniu-o
nas ditas declarações dos direitos do homem e direitos cívicos, sendo o acordo tão geral
que só um pretenso cepticismo poderá fazer duvidar deles”95.
93. Cf. op. cit. supra, p. 183-184.
94. Cf. a propósito: Karl Engish. Introdução ao Pensamento Jurídico, 6ª ed., tradução de João Baptista Machado p.
205 e ss. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988.
95. Cf. Introdução à Ciência do Direito, p. 215 e ss., tradução de Vera Barkow. São Paulo: Martins Fontes, 1999; cf.
ainda, Jean-Cassien Billier e Aglaé Maryioli, História da Filosofia do Direito, p. 316.
DOUTRINA . TEORIA GERAL DO DIREITO
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Evidente a marcante estrutura positivista do Direito Brasileiro, cujas raízes remontam
ao final do Segundo Império, a partir de movimentos republicanos liderados por
Benjamin Constant Botelho de Magalhães, sob influência de Augusto Comte, resultantes
na Proclamação da República e ainda visível no “lema” impresso na Bandeira Nacional.
Essa estrutura positivista espraiou-se na organização do Estado, a partir da Primeira
República e está nítida nos textos das Constituições que se seguiram até a de 1967, com a
Emenda 1, de 1969, não sendo abandonada, porém “atenuada” na Carta e 1988, mediante
a “constitucionalização” ou “normatização” de diversos princípios, agora alçados à
condição de imperativos expressos e outros implícitos, porém francamente invocados
como fundamento, dentre os quais o da “proporcionalidade”, da “razoabilidade” e “da
dignidade da pessoa humana”.
A singela, sem deixar de ser significativa, mudança de posição é reflexo das
reflexões retomadas por Gustav Radbruch e desenvolvidas por Helmut Coing96, dentre
vários, propiciou extraordinário debate sobre a “teoria da norma” e, mais ainda, sobre
a legitimidade das autoridades quanto possibilidade, ou não, de formular normas
consideradas iníquas. Novamente Radbruch desafia: “se houver leis que neguem
intencionalmente o desejo de justiça, por exemplo... recusando ao homem os direitos o
homem de uma forma arbitrária, essas leis carecem de validade, o povo não é obrigado
a obedecer-lhes e os juristas devem ter a coragem de recusar o seu caráter jurídico”97.
A questão de saber se as autoridades, e as pessoas em geral, destinatárias da
norma podem ou não recusar-lhes eficácia [e não hipótese de ser contrária a valores
fundamentais, particularmente se não expressos em norma constitucional ou, ainda
que expressos, seja a própria norma constitucional “in”constitucional por ofender um
“valor fundamental], é tema de acirrados debates.
A partir de uma formulação positivista, nos moldes preconizados pela Teoria Pura
do Direito, a resposta é negativa, ou seja, se houver uma norma fundamento que dê
baliza para a norma inferior tida por iníqua, esta norma pode ser considerada “injusta”
ou imoral, porém é válida e deve ser reconhecida; se, do mesmo modo, a norma
constitucional tida por “in”constitucional, por exemplo em razão de ter sido inserida
em razão de processo constituinte derivado sem respeito à formalidade, ou se vier a
96. Cf. Elementos Fundamentais da Filosofia do Direito, tradução da 5ª edição alemã or Elisente Antoniuk, p. 269 e
ss. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2002.
97. Cf. História da Filosofia do Direito, p. 316.
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ofender “cláusula pétrea”, padecer de um desses, por exemplo, poderá ser reconhecida
a inconstitucionalidade, caso contrário, permanece hígida.
Esse mecanismo lógico-positivo é tema de crítica formulada, dentre vários, por
Fançois Rigaux98, uma vez que faz preponderar uma “solução formal” em detrimento
de outra consonante com princípios e valores jurídicos reconhecidos, porém não
considerados por ausência de “previsão legal”.
Apesar da justeza, a redução do Direto em uma categoria perfeita e acabada,
contendo ou do qual é possível extrair “respostas” para todas as questões jurídicas
expressas ou implícitas, atuais ou futuras, imunizada de toda e qualquer “influência
externa”, ou seja, em se constituir em uma estrutura hermética à economia, à sociologia,
à psicologia e à filosofia, dentre vários ramos do conhecimento humano e da tentativa
de se constituir em uma forma expedita de afirmação científica [do próprio Direito], tal
empreitada pode resultar na justificação de resultados formalmente corretos, porém
inaceitáveis sob outros parâmetros.
Por outro lado, o abandono justamente dessas premissas tomadas por dogma do
Positivismo também pode levar a resultados nefastos, dentre os quais a discriminação
fora do limite normativo, a fragmentação dos direitos e garantias individuais e coletivos
em nome de um “Estado Forte” normalmente justificado pela preponderância do
interesse público sobre o privado, ou por concepções teocráticas nos Estados fundados
em ideologias religiosas.
Nesses termos, é estarrecedor observar a conformação da Teoria Pura do Direito
aos sistemas jurídicos de Estados democráticos, teocráticos e totalitários, justamente
por expurgar os elementos não jurídicos e identificar os caracteres comuns a todos:
“norma” e “coerção” emanada e exigível de uma autoridade competente.
Assim, qualquer que seja a premissa, a “explicação” e a consistência do Direito depende
do tênue, para não dizer frágil, ponto de equilíbrio entre esses diversos aspectos e, ainda
assim, certamente é utilizada para justificação de determinado modelo de “Poder”.
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REUNIÕES-ALMOÇO DO IASP
DESAFIOS E PERSPECTIVAS
DO JUDICÁRIO
RICARDO LEWANDOWSKI
Presidente do Supremo Tribunal Federal.
Associado Honorário do IASP.
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
REUNIÃO-ALMOÇO IASP
RICARDO LEWANDOWSKI
PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
28 DE NOVEMBRO DE 2014
JOSÉ HORÁCIO HALFELD REZENDE RIBEIRO
PRESIDENTE IASP
Muito boa tarde, senhoras e senhores. Esta data, 28 de novembro agendada para essa Reunião Almoço não foi ao acaso. Amanhã, dia 29 de Novembro, o Instituto dos Advogados de São
Paulo completará 140 anos de existência, sendo a instituição jurídica mais antiga do Estado de
São Paulo. O Instituto se orgulha nessa historia de desde o seu nascimento, congregar todas as
carreiras jurídicas, não somente os Advogados, os membros do Ministério Público, da Magistratura e ter uma capacidade especial de diálogo. Miguel Reale, na sua genialidade, escreveu que
na realidade, um Juiz, todos sabem, é um ser humano que participa de todas as emoções, inclinações e tendências do meio social e é exatamente esse cenário é um cenário que deve servir de
exame da sua atuação. Todos nós sabemos que a palavra sentença é uma palavra de origem
latina, gerúndio do verbo sentir e que é nela, na sentença que o Juiz coloca o sentimento dele. O
nosso homenageado de hoje, o Ministro Ricardo Lewandowski congrega vários ângulos desse
sentimento especial. O primeiro deles, como ser humano, apoiado pela Doutora Iara que todos
nós conhecemos, que tem dado o apoio incansável para a sua trajetória. Também como pai e
aqui, nós temos presentes dois de seus filhos, o Ricardo e o Henrique, que estão ali, os dois também Advogados, um Advogado em Londres, um dos poucos Advogados habilitados em advogar em Londres, o Ricardo e o Henrique é Advogado em Nova York e também a Lívia, que não é
da área do Direito. Também nessas facetas do sentimento, além de homem, além de pai, a faceta
de professor. O nosso Ministro é professor titular na cadeira Direito de Estado na Faculdade de
São Paulo, tendo feito uma carreira brilhante naquela faculdade, regresso da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, que ainda hoje, forma brilhantes professores advogados de todas
as carreiras jurídicas e exatamente, nessa qualidade de professor, o Ministro Lewandowski tem
trabalhado no Supremo, tem advogado a tese que nós conversávamos com o Presidente do Conselho Federal que não se trata de ser garantia, mas trata-se de respeitar a Constituição Federal e
as Leis [palmas]. E imprensa notificou hoje, exatamente no dia de hoje a divulgação… noticiou
os pareceres do ministério Publico federal, que eu tive o cuidado de lê-los, onde lá está escrito
que a prisão preventiva serve de incentivo para colaboração do processo, o que é um verdadeiro
absurdo e o procurador, quando entrevistado pelo jornalista, disse: “É na gaiola que o passarinho
canta”. Se nós, da área jurídica admitirmos ainda mais um professor de Direito, que defende o
Direito de estado, situações dessa jaez que não se confundem de nenhuma forma com o com-
REUNIÕES-ALMOÇO DO IASP
DESAFIOS E PERSPECTIVAS DO JUDICIÁRIO - RICARDO LEWANDOWSKI
455
bate à corrupção, com a impunidade, na quadra mais negra que nós estamos vivendo no nosso
(incompreendido). Este ângulo também decorre do fato do nosso homenageado ter sido Advogado. Foi conselheiro da Ordem dos Advogados de São Paulo, da Seccional de São Paulo. Em
1990, foi para o Tribunal pelo 5º Constitucional para o Tribunal de alçada criminal e tem a sensibilidade do Advogado, por isso que a comunidade jurídica agradece ao Ministro Lewandowski
o fato dele apoiar a suspensão de prazos que os provimentos dos Tribunais de Justiça editaram,
que são apenas mais 8 dias uteis, mas que somados ao recesso estabelecido pela Lei, garantem
as férias dos Advogados [palmas]. Um agradecimento especial, Presidente, por essa sensibilidade
fundamental, porque o Advogado não tem carteira de trabalho assinada, o Advogado é vinculado pelo mandato judicial e os processos que demoram cerca de 10 anos, nós simplesmente, não
temos a menor condição de nos planejar e isso não é para nenhum dos senhores e das senhoras
que estão aqui nessa sala, que não representam, de fato, hoje, os mais de 300 mil Advogados em
São Paulo, os mais de 800 mil Advogados no país que trabalham sozinhos, sem nenhum tipo de
apoio e que esse período é um período fundamental para que ele possa descansar, ter respeito à
família, à saúde, como recentemente, no próprio seminário realizado em Florianópolis, também
se buscou e lá estabeleceu-se como diretriz, o apoio aos magistrados servidores nas questões de
saúde. A ninguém, de bem, interessa o Poder Judiciário fraco, nem a Advocacia. No angulo do
sentimento, também, além do homem, do pai, do professor, do Advogado, o Magistrado. O Magistrado que tem a coragem, de agora, não só como Presidente do Supremo Tribunal Federal,
mas também como Presidente do Conselho Nacional de Justiça, tratando de questões intrincadas, que às vezes, até extrapolam a própria alçada e a missão que a constituição Federal estabeleceu para o Conselho Nacional de Justiça vai nos dizer, hoje, sobre os desafios e as perspectivas
que nós temos. Senhoras e senhores, o nosso associado honorário do Instituto de Advogados,
homenageado, Ministro Ricardo Lewandowski.
[Palmas]
RICARDO LEWANDOWSKI
PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Permitam-me quebrando um pouco o protocolo, porque acabo de saber que aqui neste
venerando Instituto de Advogados de São Paulo não se faz menção à nomes para não permitir, eventualmente, o nome das inúmeras, de algumas… das inúmeras personalidades
e autoridades que aqui se encontram, mas eu preciso até por um dever de amizade, fazer
menção aqueles que me acompanham não diria na mesa principal, porque todas as mesas
são principais, mas essa mesa que se encontra a minha frente. E desta forma, eu quero manifestar os meus profundos agradecimentos ao querido Presidente José Horácio Halfeld Re-
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
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zende Ribeiro, que é o Presidente deste Instituto a oportunidade que me dá de usar da palavra nessa data extremamente significativa que é a data em que esse Instituto comemora 140
anos de existência, é, na verdade, mais do que uma associação que congrega Advogados,
mais do que um grupo de pessoas que se dedicam ao estudo do Direito, é já na verdade, uma
verdadeira instituição da Republica, permitam-me dizer. Quero cumprimentar meu ex-colega, Ministro de ontem e de sempre, Doutor Francisco Rezek, aliás, Professor Francisco Rezek;
quero cumprimentar o Desembargador Fabio Prieto, que é Presidente do TRF da 3ª Região,
o nosso iminente bâtonnier da Ordem dos Advogados do Brasil, Doutor Ministro Furtado
Coelho, que muito tem contribuído para a garantia do estado de Direito em nosso país, cumprimentar Doutor Marcos Costa, Presidente da OAB, Seccional São Paulo, tive a honra de
integrar como conselheiro; quero cumprimentar o Doutor Paulo Casseb, que é Presidente do
Tribunal de Justiça Militar; o Desembargador Marco Antônio Marques da Silva, meu antigo
colega, colega não apenas de judicatura, mas também de Magistério, portanto é Professor
Titular da PUC, Direito Penal, acaba de nos dizer, também, da sua preocupação especial com
as garantias constitucionais, tema ao qual se dedica há tanto tempo em seus estudos acadêmicos; cumprimentar o Doutor Sergio Rosenthal que esta presente aqui a nossa frente,
que é o Presidente da Associação dos advogados, meu querido amigo de longa data, Mario
Sergio, Soares Garcia; cumprimentar o Deputado Arnaldo faria de Sá, que é um defensor das
nossas questões, e digo “nossas” porque são questões comuns da Advocacia do Ministério
Publico e também, do Judiciário perante a Câmara dos Deputados, muito obrigado pela sua
presença, que muito nos honra, aliás, presença constante em todos os eventos em que a família forense, como o Marcos Vinicius, Doutor Marcos Vinicius e eu gostamos de dizer, é uma
antiga ideia, antigo conceito que precisa ser recuperado. Há alguns anos atrás, nós éramos
uma família: Advogados, membros do Ministério Publico e Magistrados e convivíamos fraternalmente nas mais variadas ocasiões, tínhamos até a Páscoa da família forense que não
sei se ainda se realiza, mas talvez, não com tanta intensidade, com tanto fervor, com tanta
amizade como se fazia no passado, mas é preciso recuperar essa ideia.
Eu queria, primeiramente, tranquilizá-los, porque não vou fazer uma palestra acadêmica,
até porque o instituto que tem quase 150 anos tem a sabedoria de primeiramente, oferecer
ao palestrante a entrada e depois, acenar com o segundo prato, se a palestra for longa,
evidentemente, o segundo prato será cortado, portanto, tranquilize-se que eu quero trazer
a senhoras e senhores apenas alguns números que hoje o Poder Judiciário Brasileiro,
portanto, todos operadores do Direito enfrentam e devem enfrentar com bastante
preocupação. Aquelas que tem me honrado com a presença em diferentes reuniões, as quais
tenho comparecido e nas quais, me foi dado o usar da palavra, eu tenho expressado uma
REUNIÕES-ALMOÇO DO IASP
DESAFIOS E PERSPECTIVAS DO JUDICIÁRIO - RICARDO LEWANDOWSKI
457
preocupação com um fenômeno, e perdoem-se se repito esta figura para aqueles que já
me ouviram, um fenômeno que o sociólogo português Boaventura Souza Santos chama
de “Explosão de Litigiosidade”, é um fenômeno que se dá, não apenas no Brasil, mas em
todos os países do mundo e ele, na verdade, ele tem duas raízes, dois vetores, duas causas,
fundamentalmente. Em primeiro lugar, é o mundo plural urbano, o mundo cosmopolita,
o mundo globalizado em que nós vivemos, em que os conflitos, evidentemente, que têm
origem e interesses multifalhos eclodem a cada momento, a cada instante e que precisam ter
uma solução adequada. Em segundo lugar, este fenômeno da “Explosão de Litigiosidade”
tem uma outra etiologia que pode ser buscado naquilo que nos aponta o recentemente
falecido, justo filosofo italiano, Norberto Bobbio, que dizia que no final do século XX, no
começo do século XXI, nós ingressamos na era dos direitos. O momento que ele chama de
avanço moral, avanço civilizatório da humanidade em que se passa não apenas a estudar
os direitos fundamentais em tese, já escritos em tratados internacionais, em constituições,
em leis especificas, mas se trata, efetivamente, de concretiza-los. Então, é o momento em
que o homem comum descobre que tem direitos, bate às portas do judiciário e vai cobrá-los.
Então, nós temos este fenômeno da “Explosão de Litigiosidade”, são milhões de conflitos,
milhões de litígios que aportam ao Judiciário e que demandam uma solução. Eu trago,
então, as senhoras e aos senhores, uma preocupação nossa, nossa porque digo que num
primeiro momento é uma preocupação do Poder Judiciário e creio que deve ser, também,
uma preocupação também de todos operadores do Direito que é uma preocupação no
sentido de que nós vivemos, diria eu, uma superação, uma obsolescência desse tradicional
sistema adversarial de solução de controvérsias. Por quê que eu digo isso? Eu digo isso
porque o Conselho Nacional de Justiça que eu presido, durante alguns anos, vem fazendo
uma pesquisa da Justiça em números, exatamente para cumprir a função precípua, a
função principal que a Carta Magna assinala que é a de fazer o planejamento estratégico
do Poder Judiciário. E na ultima pesquisa relativa ao ano de 2013, divulgada agora em
2014, pesquisa essa que preparou o encontro que tivemos, 8º Encontro nacional do Poder
Judiciário em Florianópolis, revelou números bastante assustadores, números que nos
diziam que em 2013 tramitavam no Brasil cerca de 95 milhões de Processos. Desse total de
Processos, nós tivemos 28 milhões, aproximadamente, de casos novos, ou seja, mais de 1,2%
do que aqueles que ingressaram no ano de 2012. Nós proferimos um total de 25,7 milhões de
sentenças, ou seja, 3,5% a mais do que as sentenças proferidas em 2012. Houve um aumento,
em média, de 1,8% de feitos em todo o país, isso resultou numa média de aproximadamente,
6 mil Processos para cada Juiz brasileiro, juiz estadual, juiz federal, juiz trabalhista, juiz
eleitoral, juiz militar. Nós verificamos, também, que em média, o Juiz Brasileiro, nos últimos
quatro anos, a pesquisa que fizemos retroagiu a esse quatriênio, ele proferiu cerca de 1400
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
a 1500 sentenças ou decisões por ano, que é um numero extraordinário, um aumento de
1,7% com relação ao ano de 2012. Nós baixamos, no ano de 2013, 27.700 mil processos, ou
seja, 0,1% a mais do que 2013, apesar desse esforço inaudito que os magistrados brasileiros
fizeram. Então, chegamos a uma conclusão que a nossa taxa de congestionamento em que
pese esse esforço gigantesco, em que pese o aumento de 1,5% de investimento do poder
judiciário, um aumento de 1,8% do numero de magistrados e que pese o aumento de 2%
do numero de servidores, nós temos hoje 16.500 magistrados aproximadamente, cerca de
400 mil servidores, servidores efetivos, comissionados, terceirizados, colaboradores, leigos,
conciliadores para esse imenso volume de processos, que não obstante, esse investimento,
esse esforço, o crescimento da taxa de produtividade dos magistrados, a nossa taxa de
congestionamento é de 70,1%, isto representa, essa taxa de congestionamento – é preciso
dizer – representou um aumento de 1,3% com relação à taxa de congestionamento do
ano de 2013. Isto significa o quê? Significa que de cada 100 processos que ingressaram no
Poder Judiciário em 2013, apenas 30 deles foram efetivamente, resolvidos. Vejam então, as
senhoras e senhores, que nós estamos com um problema serio em mãos, tendo em vista,
o Brasil foi colhido em cheio por esse fenômeno da explosão de litigiosidade. Creio que
hoje – não temos ainda dados precisos – creio que hoje nós temos cerca de 100 milhões de
processos tramitando no Brasil, ou seja, dois processos para cada brasileiro. Evidentemente,
essa é uma tarefa hercúlea, é uma tarefa de Sisyphus, personagem da Mitologia Grega, que
empurrava eternamente uma pedra enorme montanha acima, quando chegava no cume
dessa montanha, essa pedra rolava morro abaixo e novamente, durante séculos e séculos,
esse trabalho era repetido. Evidentemente, temos que mudar o paradigma, nós temos que
sair de uma cultura de c para uma cultura de pacificação. É preciso mudar a concepção
como nós encaramos a solução dos litígios. Evidentemente, o Poder Judiciário não vai se
furtar a cumprir a sua missão, que é a de prestar a mais eficiente jurisdição possível e para
isso, estamos cuidando de implementar uma série de instrumentos, em primeiro lugar,
o planejamento estratégico, que é missão, como disse, do Conselho Nacional de Justiça.
Nós queremos mudar um pouco o viés desse importante conselho que foi9 criado pela
Emenda 45 de 2004, que era um viés evidentemente convencional, para dar a ele um viés de
planejamento estratégico para prestar maior eficiência ao Poder Judiciário como um todo.
Nós estamos também, no Supremo Tribunal Federal, trabalhando com outros instrumentos
que também foram criados nessa Emenda 45 de 2004 e são dois novos instrumentos bastante
importantes, mas que ainda não despertaram o interesse necessário da comunidade jurídica.
Houve até, no inicio, bastante resistência e eu, quando era Desembargador, aqui no egrégio
Tribunal de Justiça, que Doutor Marco está representando aqui com tanta proficiência,
REUNIÕES-ALMOÇO DO IASP
DESAFIOS E PERSPECTIVAS DO JUDICIÁRIO - RICARDO LEWANDOWSKI
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eu me lembro que tinha uma certa resistência às súmulas vinculante e ao instrumento de
repercussão geral, mas eu vejo que hoje, com esse numero avassalador de Processos, nós
temos que ter instrumentos alternativos para fazer com que o Juiz se debruce sobre questões
que são realmente relevantes e não perca o seu tempo com matéria já resolvida pelas
instâncias superiores, sobretudo pelo Supremos Tribunal Federal. Então, nós estamos dando
ênfase ao julgamento das repercussões gerais, dos recursos extraordinários com repercussão
geral e nós sabemos que quando o Supremo Tribunal reconhece que um determinado recurso
extraordinário tem um interesse maior, um interesse que transcende o interesse subjetivo das
partes, porque apresenta uma questão de relevância do ponto de vista econômico, social,
politico, jurídico, então, ele é admitido pelo Supremo Tribunal Federal e nesse momento, todos
os processos que tratam de temas semelhantes ficam sobrestados nos tribunais inferiores. E nós
chegamos à conclusão que temos centenas de milhares de Processos sobrestados nos tribunais
superiores aguardando uma decisão do Supremo Tribunal Federal, o Desembargador Nalini,
meu grande amigo de longa data do Tribunal de Justiça diz que o Tribunal aqui de São Paulo
e outros tribunais do pais já estavam, inclusive, obrigados a alugar prédios para arquivar os
processos sobrestados que estavam aguardando o pronunciamento final da Suprema Corte do
país. Então, estamos dando ênfase às repercussões gerais, porque ao Juiz interessa, realmente
resolver questões novas e não antigas já discutidas e rediscutidas. Durante o meu mandato,
embora tenha se iniciado formalmente, no dia 10 de setembro deste ano, começou tendo em
vista a renuncia de meu antecessor, interinamente em agosto, desde então, nós já julgamos e
ontem, tive a noticia de que a Ministra Carmem Lucia, presidindo a Sessão de ontem, porque
fui homenageado para o meu gáudio pela querida Congregação da Faculdade São Francisco,
ontem foi julgada mais uma repercussão geral que totaliza 45 repercussões gerais julgadas
nesses quatro primeiros meses do segundo semestre de 2014, liberando quase 40 mil Processos
sobrestados em primeira instância. Esses números ainda são imprecisos porque o Supremo
Tribunal Federal não tem informações completas que estamos já requerendo com outros
tribunais, mas me parece que além do planejamento estratégico, da utilização da repercussão
geral e também das súmulas vinculantes, como todos nós sabemos, são pequenos enunciados
sintéticos que resumem em poucas palavras o entendimento do Supremo tribunal Federal
acerca da interpretação de certos temas constitucionais e que obrigam não apenas todo
Poder Judiciário, mas também a administração publica essas súmulas vinculantes a partir da
minha gestão serão editadas de forma regular, de maneira a permitir que os juízes tenham
um norte em questões já decididas rapidamente e sem grandes consultas. Nós, nesse pequeno
período de tempo em que assumimos a gestão da Suprema Corte, já aprovamos quatro
súmulas vinculantes novas e temos 57 preparadas já em discussão, sobretudo na Comissão
de Regimento e eu quero ver se até o final do meu mandato, vamos editar, pelo menos, de 50
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
a 100 súmulas [palmas]. Isso tudo auxilia o descongestionamento desse acumulo enorme de
processos. Uma outra frente de ataque importante que nós queremos assumir é exatamente,
a informatização do processo judicial no Brasil,. Nós sabemos que cada estado, cada Tribunal
tem um sistema eletrônico, isso, evidentemente, dificulta a vida dos operadores do Direito.
Mas é claro que isso não pode ser feito de acordo, segundo a imposição de cima para baixo,
conversando com o Doutor Marcus Vinicius, conversando com o Presidente do tribunal de
Justiça e outros colegas aqui, não apenas de São Paulo, mas de todo país, nós verificamos
que alguns já desenvolveram alguns sistemas próprios, alguns advogados ainda estão um
pouco, digamos assim, não tão avançados no conhecimento das minucias dessa nova técnica
de manipulação dos Autos. Então, eu preciso ouvir todos os interessados e nós fizemos isso no
oitavo encontro que tivemos agora, recentemente, algumas semanas atrás em Florianópolis,
ouvindo todos os interessados, especialmente, representantes da Ordem e dos Tribunais e
também, do próprio Ministério Publico para pouco a pouco, uniformizarmos esse universo
importante, que é o universo da informatização do processo judicial. Mas tenham a certeza e
tenham a tranquilidade de que isso não será feito de uma hora para outra, será feito de acordo
com o esforço comum de todos .
[palmas].
O Supremo também tem agilizado o julgamento de Processos. Nesses quatro meses que
estivemos à testa do Supremo Tribunal Federal, já julgamos em nossa Presidência mais de
1.200 Processos, publicamos cerca de 500 acórdãos que estavam aguardando publicação,
um acórdão, um HC determinado, estava parado há mais de 10 anos, aguardando
exatamente, a ciência dos interessados, mediante a publicação devida, estamos colocando
em dia, como também fizemos a distribuição de mais de 2 mil processos que estavam
parados na Presidência, por razoes mais diversas possíveis.
Mas o que eu queria dizer as senhoras e aos senhores, hoje, e esta é a grande mensagem
que eu me permitiria transmitir a todos e que nós devemos, justamente, insisto nesse
tema, mudar a nossa cultura, mudar o enfoque no sentido da solução de controvérsias,
nós temos que sair, como eu disse, de uma cultura de litigiosidade para uma cultura de
conciliação, de pacificação. E como é que nós fazemos isso? Nós fazemos isso utilizando
meios alternativos, instrumentos alternativos de solução de controvérsias. E eu me refiro,
exatamente, à conciliação, à mediação e também à arbitragem. O mundo moderno precisa
desses instrumentos, porque como nós vimos, com esses números extraordinários aos quais
eu me referi, não é mais possível que o Judiciário dê conta sozinho desses conflitos que
existem na sociedade e que precisam ser resolvidos. Eu me permitiria, também aqui, fazer
REUNIÕES-ALMOÇO DO IASP
DESAFIOS E PERSPECTIVAS DO JUDICIÁRIO - RICARDO LEWANDOWSKI
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uma rápida referência a um trabalho acadêmico que eu orientei no ano de 2005, portanto,
há quase dez anos atrás, de um notável advogado chamado Roberto Ulhôa Cintra, essa Tese
de Doutorado foi defendida com êxito na Universidade de São Paulo e resultou num livro
publicado pelo Senado federal e chama-se “A Pirâmide da Solução de Conflitos”, e a tese tem
mais um subtítulo que diz o seguinte: a contribuição da sociedade civil para a reforma do
Poder Judiciário. E nessa Tese, o doutorando, então doutorando, defendia a ideia de que os
conflitos numa sociedade se encerram dentro de uma pirâmide virtual. Quer dizer, ele dizia
então, que os conflitos que se situam na base e na porção mediana desta pirâmide virtual
devem ser resolvidos pela própria sociedade, devem ser resolvidos pela Associação… pela
Sociedade Amigos de Bairro, pela Associação de Pais e Mestres, pelos clubes de serviço, pelo
Rotary, pelo Lions, pelos conciliadores, pelos mediadores, pelos pastores, pelos padres, pelos
sacerdotes, enfim, pela própria comunidade, porque todos eles, de modo geral, tratam de
direitos disponíveis, ou seja, aqueles direitos que podem ser livremente transacionados e em
linha de regra, dizem respeito a valores materiais. Apenas aqueles conflitos que se situam
no ápice da pirâmide, que dizem respeito a valores que não podem sofrer qualquer tipo de
intransigência, ou questões de estado é que devem aportar ao Judiciário. E também queria
dizer e essa Tese que foi precursora, hoje, se revela uma realidade e se revela um caminho
para a solução desses problemas que ousei apresentar a essa comunidade de doutos que
aqui se reúne neste momento.
Nós instauramos como uma politica permanente, uma meta permanente do Conselho
Nacional de Justiça, justamente, a conciliação e ao longo de vários anos, estamos fazendo
semanas de conciliação para incentivar esse tipo de solução de controvérsias alternativas com
bastante sucesso. Hoje de manhã, acessei o sitio eletrônico do Conselho Nacional de Justiça
e com muito agrado, com muita satisfação, eu vi que nessa nova semana que se inaugurou,
agora, recentemente e terminou na sexta-feira… hoje, está terminando hoje, na sexta-feira,
nós já tivemos 115 mil audiências de conciliação em todo país e nós já homologamos 1.300
milhões de reais em conciliações, efetivamente, realizadas, concretizadas. É um numero
fantástico! Eu estive aqui na abertura da 9ª Semana de conciliação, aqui em São Paulo,
estava presente o Doutor Nalini, Presidente, Doutor Fabio Prieto também, Presidente do STJ,
Doutor Fabio Prieto, Presidente do TRF da 3ª Região e lá verifiquei que no Parque da Água
Branca estavam programadas 5 mil audiências de conciliação, três mil na Justiça Estadual
e duas mil na Justiça Federal, um numero enorme, que demonstra que a sociedade quer
participar, realmente, desta forma alternativa de solução de controvérsias e eu mesmo
tive a satisfação de presidir duas audiências de conciliação: uma na Justiça Federal, onde
homologuei, assinei o termo de transação de uma Ação de danos morais que um cidadão
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
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ajuizou contra a Caixa Econômica federal por uma questão enfim, que não vem ao caso
aqui revelar em todos os seus detalhes. Mas depois de assinada a transação, eu verifiquei
que ambas as partes saíram inteiramente satisfeitas, deram as mãos, olharam-se nos olhos
e resolveram em poucos minutos a sua controvérsia. Na Justiça Estadual, é um caso um
pouco mais complicado, trata-se de uma separação consensual, também, rapidamente, as
partes chegaram num acordo, assinei o termo de conciliação e vi que as partes, embora
sofridas, saíram também, satisfeitas pela solução rápida de seus problemas. O que eu quero
dizer então, finalizando senhor Presidente, porque corro o risco de não ser agraciado com o
segundo prato do almoço, que penso que nós temos que perseverar nesta forma ou nessas
formas alternativas de solução de controvérsias: a mediação, a conciliação e a arbitragem,
especialmente com relação à arbitragem, tive oportunidade de dizer também recentemente,
creio que na FIESP, quando conversamos sobre esse tema, que o Brasil é hoje a 7ª economia
do mundo e segundo alguns economistas, em breve, seremos a 5ª economia do mundo,
oxalá isso ocorra de fato! E os grandes negócios hoje, sabemos, não podem se dar ao luxo,
se houver eventual controvérsia ou litigio, não podem se dar ao luxo de aguardar a solução
pela via judicial, busca-se então, a arbitragem. Nós temos aqui um eminente hábito que é
o ex-Ministro Professor, sempre Ministro Professor Francisco Rezek que é uma das grandes
soluções para esse mundo empresarial globalizado em que vivemos.
Enfim, senhor Presidente do IASP, agradecendo muitíssimo a oportunidade que tive para
compartilhar com todos alguns dos problemas que não são apenas do Judiciário, mas de
toda sociedade brasileira, gostaria de terminar conclamando a todos que integram a família
forense que nos ajudem a resolver este grande problema da solução dos litígios, dos conflitos
no Brasil, que não é apenas nosso, do Poder Judiciário, mas que é de toda sociedade brasileira.
Muito obrigado.
PERSPECTIVAS ECONÔMICAS
PARA O BRASIL
GUSTAVO LOYO
Economista e Ex-Presidente do Banco Central
464
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
REUNIÃO-ALMOÇO IASP
GUSTAVO LOYOLA
ECONOMISTA E EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL
20 DE MARÇO DE 2015
JOSÉ HORÁCIO HALFELD REZENDE RIBEIRO
PRESIDENTE IASP
Senhoras e senhores, muito boa tarde! É realmente com imensa alegria que o Instituto
de Advogados de São Paulo realiza que esta é a primeira Reunião Almoço do ano de 2015
aqui numa nova casa acolhendo esse público, predominantemente, dos nossos associados
e convidados para um tema que tem nos preocupado profundamente. A questão da
Economia, ela efetivamente tá ligada não somente pelos fatores específicos que regem a
atividade do mercado, mas sem dúvida, por conta das questões politicas. Eu recordava por
conta dos 140 anos do instituto de advogados de São Paulo que o Instituto no ano de… no
longínquo ano de 1892, editou pela primeira vez a sua revista e foi num cenário de absoluto
turbilhão que me parece bastante apropriado recordar. À época, nós tínhamos a Constituição
da República de 1891, que foi fruto também de muita reflexão e debate e colaboração do
Instituto de Advogados de São Paulo que era uma carta muito clara que estabelecia os
poderes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, mas existia uma crise politica muito
grande, a conhecida Crise do Encilhamento, havia um processo inflacionário muito alto,
havia um problema nas bolsas de valores e o Congresso, então, editou algumas leis, uma
chamada Lei de Responsabilidade para limitar o poder do Presidente da época, que era
Deodoro da Fonseca. O resultado todos nós sabemos, houve o fechamento do Congresso, a
censura à imprensa, o que levou a uma ameaça de bombardeio da cidade do Rio de janeiro,
que levou à renuncia do Presidente Deodoro da Fonseca e assumiu então à época, Floriano
Peixoto, que governou institucionalmente até 1894, porque a Proclamação da República de
1891 não determinava que fossem chamadas novas eleições e isso não ocorreu. Um fato
que marca a importância dos fatores econômicos para o próprio desenvolvimento do país.
No dia de hoje, nós teremos a palestra do professor Gustavo Loyola. Professor Gustavo
Loyola nasceu em Goiânia, tem uma carreira acadêmica brilhante e uma experiência também
única. Por dois períodos, presidiu o Banco Central, antes de ter presidido, foi Diretor de Normas
do Banco Central e foi o responsável pela estruturação do sistema bancário que nós temos no
país. O ano passado, por muita justiça, pela Ordem dos Economistas, foi eleito o economista do
ano e certamente nos trará hoje, se não alento, mas pelo menos, algumas diretrizes a cerca do
cenário econômico que muito nos preocupa. Senhoras e senhores, o Professor Gustavo Loyola.
REUNIÕES-ALMOÇO DO IASP
PERSPECTIVAS ECONÔMICAS PARA O BRASIL - GUSTAVO LOYOLA
465
PROFESSOR GUSTAVO LOYOLA
ECONOMISTA
Senhoras e senhores, boa tarde! Meu caro José Horácio, gostaria de em primeiro lugar,
agradecer o convite, a oportunidade para estar com as senhoras e senhores hoje, ilustres
convidados que aqui estão, encontrar alguns amigos, conhecer outros amigos, também.
É um prazer para mim, não digo nem em dobro, mas em triplo, talvez, estar aqui com os
senhores e senhoras hoje, senão bastasse o prestigio, a tradição do IASP, eu quero dizer que
eu me sinto sempre muito honrado, muito alegre de participar de um evento de advogados,
de profissionais do Direito. Eu que fui criado neste ambiente, meu pai advogado, meu avo
desembargador, também um tio desembargador, meu bisavô desembargador, um irmão
juiz, cresci cercado de livros de Direito e de processos que o meu pai estudava em casa,
sempre muito curioso, lia muito. Foi até uma decepção, de certa maneira, para o meu pai
quando eu decidi fazer Engenharia Elétrica e não Direito, porque ele achava que eu faria
Direito em função de toda essa influencia de casa, mas isso acabou ficando com o meu
irmão do meio que fez curso de Direito, depois foi para o Ministério Público e agora, é juiz
lá em Brasília.
Tive a oportunidade de ser presenteado pelo José Horácio, com um belíssimo livro da
história do IASP, ali encontrei um outro ponto de contato interessante, que vi lá que talvez
o primeiro membro honorário do IASP foi Ruy Barbosa, Ruy que também foi Ministro da
Fazenda, então temos aí uma ligação antiga entre as profissões de Direito e de Economia,
naquela época não existia essa função, essa atividade, essa profissão de economista,
os economistas eram os bacharéis de Direito que se dedicavam um pouco a chamada
Economia Politica e evidentemente, isso é mais um aspecto importante para mim de ter tido
essa oportunidade. Finalmente, do ponto de vista profissional, eu sócio lá da Tendências
Consultoria, nossa empresa trabalha muito de perto com advogados, fazemos pareceres
econômicos em ações para escritórios de advocacia e ações seja no âmbito judicial, seja
arbitragem, então temos um contato muito próximo com a profissão e é sempre um prazer
para mim trabalhar nessa fronteira que existe entre o Direito e a Economia, então com tudo
isso, realmente, foi com grande satisfação que eu recebi o convite do IASP, essa homenagem
e agradeço muito a oportunidade de estar aqui com os senhores e senhoras hoje.
Eu vou falar rapidamente aqui como é que nós estamos vendo o cenário econômico
brasileiro e quais são essas perspectivas para nossa economia ao longo dos próximos meses
e anos. Vamos começar falando do cenário internacional, o cenário internacional que traz
pelo menos três fatores de incertezas que nos afetam mais de perto: o primeiro é a chamada
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
normalização da politica monetária nos Estados Unidos. Depois da crise de 2008, a crise
financeira muito severa de 2008 levou a uma reação também muito forte e até, de certo
ponto, não usual do banco Central Americano, do Federal Reserve, reação essa que passou
para uma queda… baixa dos juros, praticamente, os juros básicos nos estados Unidos
estão a nível de zero e também, uma expansão da oferta de moeda através da compra de
títulos pelo Banco Central Americano. Hoje, com a economia americana se recuperando,
essa politica monetária está sendo revertida, o Banco Central, o FED já deixou de expandir a
moeda, mas os juros continuam baixos e existe a perspectiva de aumento desses juros nos
próximos meses e isso tem afetado muito os mercados financeiros, principalmente através
da valorização da moeda americana em relação às moedas dos demais países, então há
uma tendência global de valorização do dólar e nó estamos sentindo esse reflexo aqui, não
é só por fatores internos que a moeda brasileira está se desvalorizando, mas também por
fatores externos, por exemplo, hoje o euro tá valendo 1,05 dólares, há pouco tempo atrás
era 1,30; 1,25 essa cotação, então isso mostra como o dólar se valorizou em relação ao euro
e isso também é verdade em relação a maioria das moedas do mundo.
Um outro fator que nos afeta também muito de perto é a desaceleração da economia
chinesa, a China teve um papel fundamental no inicio dos anos 2000, principalmente no
crescimento da economia global e na elevação dos preços dos produtos primários, minérios, produtos agrícolas em que o Brasil é um dos seus maiores produtores, o Brasil então,
se beneficiou desse processo de crescimento acelerado chinês que aumentou a procura por
esses produtos primários e elevou o seu preço, o preço das commodities. Na medida em que
a China começa a ter a sua economia em desaceleração e esses preços de commodities começaram a cair e evidentemente, fica a grande dúvida sobre onde vai parar a desaceleração
da economia chinesa. A China crescia em torno de 9 a 10% ao ano, hoje cresce em torno de
6,5% ao ano e como eu disse, há sempre a dúvida: vai parar aí nos 6,5 ou vai… ou essa taxa
de crescimento cai ainda mais para 5, 4, 3, aí depende do grau de pessimismo do analista.
Então, isso traz grandes dúvidas. De fato, essa pressão baixista no preço das commodities,
que também é acentuada pela própria desvalorização do dólar, tem nos afetado. E o terceiro
fator de incerteza externa, global, que afeta o Brasil são as dificuldades de recuperação da
economia europeia, na chamada zona do euro, que usam o euro como moeda. Essa recuperação tem sido muito lenta, cheia de percalços políticos, existe aí uma dificuldade inerente
ao fato de ser uma moeda para países, para entidades politicas autônomas, que são os países membros, a dificuldade de coordenação das politicas, principalmente no âmbito fiscal
e a Europa teve muitos problemas para ajustar a sua trajetória de recuperação de uma crise
que foi, realmente, muito forte. Diferentemente dos estados Unidos, em que a recuperação
REUNIÕES-ALMOÇO DO IASP
PERSPECTIVAS ECONÔMICAS PARA O BRASIL - GUSTAVO LOYOLA
467
foi mais rápida até em função dessa unidade politica, coincidente com a união monetária,
mesma moeda. Além disso, sobre a Europa pairam algumas dúvidas de ordem geopolítica,
principalmente, em função das ações da Rússia na Ucrânia, até que ponto há um potencial
de desestabilização politica e econômica para Europa Central e Europa Ocidental em função
desses eventos que estão acontecendo na fronteira sul ucraniana. Então, esses são assim, os
principais fatores que ao meu ver, jogam aí um papel fundamental para a economia brasileira neste momento e nos meses e nos anos seguintes. Qual é a nossa visão, nossa tendência sobre esses fatores de incerteza? Nós acreditamos que num cenário mais provável, a
recuperação da economia dos Estados Unidos se firma, ela de fato, ocorre, como de fato nós
estamos vendo hoje pelos números e o Banco Central Americano começa a elevar os juros
ainda este ano, mas de uma maneira muito cautelosa, muito lenta, tentando evitar turbulências no mercado, até porque há uma consciência no FED de que o dólar é uma moeda
global e que um movimento mais abrupto nas taxas de cambio poderia causar um efeito
boomerang sobre o próprio Estados Unidos, ou seja, na medida em que o resto do mundo
fosse pior do ponto de vista econômico, isso poderia ter um efeito sobre a própria economia
americana. Então, o FED vai se conduzir de uma maneira muito cautelosa, não é? Mas de
todo modo, a tendência é de o dólar continuar apreciado, continuar valorizado em relação
às moedas globais, então isso já tira aí do nosso cenário qualquer perspectiva de que o real
se valorize em relação ao dólar, a perspectiva contraria é que a nossa moeda continue fraca
perante ao dólar nos Estados Unidos. A Europa, a gente conta com a continuação dessa
recuperação lenta, embora com uma expansão monetária muito forte por parte do Banco
Central europeu que agora, de certa maneira, segue os passos do Banco Central americano,
do FED, evidentemente, de uma maneira atrasada. A China, nós não acreditamos num cenário de desaceleração mais forte, acreditamos que as perspectivas de crescimento são moderadas, ou seja, a China pode ficar nos próximos anos com uma taxa de crescimento de 5
a 6%, que é suficiente para manter os preços dos produtos primários, as commodities em níveis historicamente altos, ou seja, não tão altos quanto foram no inicio dos anos 2000, mas
historicamente, pegando uma perspectiva de longo prazo, em patamares razoavelmente
altos. Acreditamos numa recuperação também muito lenta do Japão e América Latina com
um menor crescimento, por força dessa queda dos preços dos produtos de commodities, a
América Latina, grande parte dos países depende muito da trajetória desses preços.
Bom, dado esse cenário internacional, como é que a gente vê a sua repercussão sobre o
Brasil? Primeiro, a queda do… a primeira repercussão que a gente já sente e deve continuar
sentindo nos próximos anos é a queda… a piora dos termos de troca do Brasil. Em outras
palavras, os produtos que o Brasil exporta se tornam mais baratos vis-à-vis os preços dos
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
produtos que o Brasil importa. Então, o poder de compra do Brasil, vamos dizer assim, cai por
causa do barateamento dos produtos que aqui são produzidos, né? Segunda repercussão
sobre o Brasil é a continuidade de uma pressão para a depreciação, para a desvalorização
da nossa moeda, isso em função justamente dessa mudança da politica monetária do
FED. Aqui, além dessa pressão, deve-se dizer que não se espera uma trajetória linear de
depreciação, uma trajetória muito calma de depreciação do real, mas sim, uma trajetória
muito volátil em que as cotações da moeda americana tendem a flutuar muito, por exemplo,
ontem o dólar chegou a 3,29 e agora, antes de vir para cá, eu tava olhando aí quanto que
tava a cotação, tava 3,23; 3,22. Então, em um dia, poucas horas de pregão, uma volatilidade
muito grande e assim, vai continuar a acontecer nos próximos meses. E aqui, nós temos um
fator domestico também afetando, não é só o fator externo que vai desvalorizar o real, mas
também, os fatores domésticos. Nós temos também um outro aspecto da repercussão sobre
a economia brasileira que é de que o saldo da Balança Comercial Brasileira vai melhorar
em função da desvalorização do real que favorece os nossos produtos do ponto de vista
do preço em reais que o preço em dólar produzido em reais ficam mais baratos, mas por
outro lado, essa recuperação da Balança Comercial Brasileira vai ser muito lenta, justamente
em função da dificuldade que os principais parceiros comerciais brasileiros enfrentam.
Então, nós não vamos conseguir abrir muitos mercados e nos aproveitarmos muito desta
oportunidade que o real mais desvalorizado oferece em termos de expansão de exportação.
Finalmente, o cenário então, internacional traz para o Brasil um contexto de maior aversão
ao risco dos investidores. Os investidores estrangeiros se tornaram mais seletivos, eles
tendem a procurar, vamos dizer assim, pelo em ovo, começam a selecionar, a se tornar mais
reativos à situação domestica de cada país, mais reativo aos fatores idiossincráticos e isso
vem num momento muito ruim para o Brasil, porque o Brasil tá se diferenciando dos demais
países emergentes de uma maneira negativa em função do baixo crescimento, em função
dos equívocos político-econômicos, em função da crise de politica. Então, nós temos aí um
cenário internacional que não é dos mais favoráveis ao país, é um cenário difícil, porém não
é um cenário de crise internacional, não é um cenário que nós enfrentamos por exemplo
na crise da Ásia, na crise do México, na crise da Argentina, na crise da divida externa, é um
cenário difícil mas que poderia muito bem ser ultrapassado se tivéssemos bons fundamentos
econômicos aqui no Brasil, o que infelizmente, não é o caso, né?
E aí, a gente chega no cenário domestico. Como estamos vendo o cenário domestico?
Olhando primeiro de um lado político, nós não estamos considerando o impeachment da
Presidente Dilma como um cenário mais provável, não quer dizer que não possa ocorrer,
mas nós estamos afastando isso do nosso cenário mais provável, aquele cenário com
REUNIÕES-ALMOÇO DO IASP
PERSPECTIVAS ECONÔMICAS PARA O BRASIL - GUSTAVO LOYOLA
469
o qual nós trabalhamos e na realidade, estamos vendo do ponto de vista politico para
os próximos anos, um governo fraco, um governo sujeito a ser desafiado sempre pelas
forças politicas, um governo incapaz de ter uma agenda construtiva mais forte do ponto
de vista de aperfeiçoamento das instituições, das reformas estruturais, enfim, um governo
muito mais reativo às crises, reagindo muitas vezes de maneira atabalhoada, um governo
que vai ser questionado desde o inicio, que está sendo questionado desde o inicio, aquilo
que normalmente, ocorre em final do governo que é chamado de governo pato manco,
o presidente pato manco, nós já temos uma pata manca, com todo respeito a presidente,
desde agora, no inicio do governo. Então, isso traz de fato, deve trazer uma turbulência
politica para os próximos anos, a não ser que ela consiga, de fato, ultrapassar todas essas
dificuldades, tenha um novo pacto politico aí que certamente, passaria pelo PMDB, mas esse
também não é o nosso cenário principal.
Como, então, a gente tá vendo o cenário econômico? Aproveitando que a gente tá na hora
do almoço, existe um ditado na Economia atribuído ao Premio Nobel Professor Milton Friedman
que diz que em Economia não há almoço grátis. Evidentemente, se ele tivesse aqui, até ele poderia mudar essa coisa, pelo menos para os economistas, mas de todo modo, eu diria que não
havendo almoço grátis, tá na hora de pagarmos pelos erros de politica econômica, é a hora de
pagarmos a conta dos quatro, cinco, seis anos sucessivos e grosseiros, muitas vezes, da politica
econômica e basicamente, nós estamos pagando isso com duas coisas: recessão e inflação. A
pior situação possível que se pode ter em economia é recessão e inflação, a gente pode ter economia crescendo com inflação, ou uma economia que não cresce, mas sem inflação, mas nós estamos no pior dos mundos e isso significa o que no ponto de vista da Economia em 2015, aumento
do desemprego e queda da renda das famílias, queda do lucro das empresas. E pela primeira
vez, desde 2003, nós temos uma reinvenção da tendência de aumento do consumo das famílias
brasileiras, pela primeira vez desde 2003. Não é a toa, tiradas as outras razoes, como o escândalo
da corrupção, não é a toa que o nível de popularidade do governo caiu a patamares quase ao
res do chão, estamos aí com uma popularidade muito baixa da Presidente e isso tem muito a ver
com essa piora que nós estamos vendo da Economia, notadamente no emprego. O emprego
vinha sendo o ultimo bastião aí de saúde na economia brasileira, mas já tem dado sinais aí ade
enfraquecimento e infelizmente, nós vamos ver nos próximos meses, um aumento do desemprego. Também os salários reais estão caindo. Então, é um quadro desafiador para as empresas brasileiras e para as pessoas também, né, que a gente não via desde 2003, desde 2002, pelo menos.
E não bastasse esse quadro aí muito ruim do ponto de vista de consumo, nós temos dois outros
fatores que já afetam, que podem afetar até mais a Economia esse ano. O primeiro são os riscos
de racionamento de energia elétrica e de água. De certa forma, já existe algum tipo de restrição
470
REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
da oferta de água e ainda não estamos livres do risco de racionamento de energia elétrica, então basta dizer que se houver um racionamento de 10% do consumo de energia elétrica, o efeito
sobre o PIB, sobre o crescimento do Produto Interno Bruto brasileiro, sobre a Economia brasileira
é de 0,8%. Então, por exemplo, nós temos a tendência, uma estimativa de que o PIB brasileiro
vai sofrer um decréscimo de 1,2% esse ano. Se houver racionamento, esse decréscimo seria de
2%, uma recessão realmente muito forte. Além disso, existem os desdobramentos do escândalo
da Petrobras e da operação Lava Jato. Esses desdobramentos, eles vêm por dois canais, vamos
dizer assim, o primeiro são os investimentos da própria Petrobrás, Petrobrás tem um papel importantíssimo no investimento do Brasil. A Petrobras, 10% mais ou menos da formação bruta de
capital fixo, que é o termo economês para o investimento, cerca de 10% são investimentos diretos
da Petrobrás, ora, se a gente por exemplo, uma hipótese, imaginar que a Petrobrás corte 30%
deste investimento, vocês conseguem imaginar o impacto que isso pode ter sobre o investimento
total no Brasil, sem contar os efeitos, vamos dizer assim, indiretos dessa retração do investimento
da Petrobrás. E além disso, nós temos também, os efeitos que vêm das empresas que estão envolvidas nesse affair que terão maiores dificuldades para, vamos dizer assim, investir, elas são
fortes investidoras em infraestrutura, as grandes consultoras brasileiras, grupos associados a elas
e evidentemente, se elas não conseguem, vamos dizer assim, cumprir os seus cronogramas de
investimento por questões financeiras ou legais, a gente vai ter também um outro fator aí que
piora muito a perspectiva de PIB no curto prazo.
Do lado um pouco mais positivo, eu diria que a politica econômica com o Ministro Levy,
pelo menos, foi colocada no rumo certo, a saída do Guido Mantega e do seu fiel escudeiro,
Arno Augustin trouxe, de fato, uma melhora qualitativa muito grande para gestão da
politica macroeconômica, a gente já vê alguns resultados positivos disso na execução fiscal,
mas a verdade é que existe ainda um ceticismo em relação à permanência dessa politica
nos próximos meses e anos. De um lado, nós sabemos da necessidade que a Presidente
tem de ajustar a Economia, porque caso não seja feito esse ajuste, ela se inviabiliza ainda
muito mais na Presidência, mas por outro lado, nós sabemos que a cartilha do Ministro
da Fazenda não é exatamente a cartilha da Presidente, a Presidente é economista, só que
ela estudou com outros livros que felizmente, não foram os meus livros, os livros que eu
estudei são outros, mas ela acredita em outras coisas e evidentemente, está tendo agora
que ceder um pouco porque pelo estado de necessidade, mas nós não sabemos como é
que isso vai desenvolver nos próximos meses. Nós tivemos aqui na semana passada uma
manifestação a favor da Presidente, mas contra a político-econômica da Presidente, uma
coisa meio estranha, então isso mostra que a própria base de apoio a Presidente é contraria
a sua político-econômica. Enfim, então num quadro desse, o quê que a gente deve esperar
REUNIÕES-ALMOÇO DO IASP
PERSPECTIVAS ECONÔMICAS PARA O BRASIL - GUSTAVO LOYOLA
471
para 2015? Primeiro, o ajuste das contas públicas está sendo feito pelo Ministro Levy apesar
de todas as dificuldades politicas, etc., nós achamos que um cenário mais provável vai ser
capaz… esse ajuste vai levar ou vai evitar a perda do grau de investimento para o país, ou
seja, nós conseguimos manter aí o grau de investimento, o que evita o pior em termos de
crise para o país, como eu disse lá atrás, os mercados financeiros internacionais estão mais
avessos ao risco. Se o Brasil é colocado numa categoria de país de alto risco, de elevado risco
de inadimplência, de default, isso tem um efeito muito forte sobre os fluxos de capitais do
Brasil e sobre a própria trajetória da moeda brasileira. Então, acreditamos que num cenário
base isso será evitado pelas politicas do Ministro Levy, que evidentemente, penalizam muito
a atividade econômica domestica, porque são baseadas principalmente em aumento de
impostos e corte de investimentos do setor público.
Acreditamos também num cenário de 2015, na continuidade da subida de juros pelo
Banco Central, o Banco Central, embora preocupado com o crescimento da Economia, ele
tem que evitar a inflação, porque a inflação desgarra e muito das projeções, a inflação já
está projetada aí em torno de 8% esse ano, 7,9; 8% e qualquer descuido aqui poderia ser fatal
e o Banco Central, então, tem que subir os juros, num contexto muito adverso de economia
fraca, como suponho disse, essa situação de economia fraca com inflação é o pior dos
mundos para quem está na politica econômica.
O Banco Central sinaliza que vai deixar o cambio flutuar mais ainda, não vai intervir
tanto no cambio como o fez no passado, o que gera maior volatilidade no mercado cambial,
o governo já fez corretamente ao meu ver, os ajustes dos preços que estavam defasados, mas
isso num curto prazo, trouxe todos os grandes prejuízos e grandes problemas. Nós estamos
vendo aí, por exemplo, desequilíbrios econômicos… os desequilíbrios que foram introduzidos
em muitos contratos na Economia por forca desse aumento espetacular da energia elétrica
que nós tivemos esse ano, então é de fato, uma turbulência muito forte, embora, como eu
disse, eu acho que não adianta ficar praticando preço irrealista, em algum momento, a coisa
explode. E se a gente quer ser um pouquinho otimista, mas não dando uma de Cassandra,
ou seja, de Cassandra não, de Poliana, eu diria o seguinte: a gente pode esperar aí uma…
a politica do Ministro Levy mais uma atuação firme do Banco Central levem a reconstrução
do chamado tripé macroeconômico que assegurou a estabilidade da Economia nos últimos
ano, ou seja, um regime de cambio flutuante, uma situação fiscal melhor de superávit
fiscais, que é o suficiente para gerar uma dinâmica favorável da divida interna e de outro
lado, um Banco Central mais assertivo, mais afirmativo com relação à meta de inflação no
Brasil, que é de 4,5. Essa reconstrução, no entanto, ela vai ser lenta e como eu disse, muito
sujeita à chuvas e trovoadas em função do ambiente politico em que nos encontramos. Já se
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
nós olhamos um cenário mais negativo, ele seria deflagrado ao meu ver, pela saída do Levy,
se houver por alguma razão, a saída do Ministro, isso seria de fato, uma ducha de água fria
sobre aqueles que ainda têm alguma expectativa positiva e nós teríamos, de fato, o Brasil aí
passando por uma crise econômica mais severa. De todo modo, mesmo num cenário mais
negativo, eu acho que as nossas instituições são suficientemente fortes para evitar que o
Brasil entre num cenário de descontrole tipo Venezuela, tipo Argentina, acho que as nossas
instituições se encontrarão suficientemente fortes para aguentar um governo incompetente,
porque as instituições, elas só se mostram fortes quando são testadas. Eu acho que as nossas
instituições vão passar por um teste mesmo que se afigure uma situação de incompetência
na área econômica.
Enfim, para concluir então, o quê que a gente pode esperar? Um cenário externo
desafiador, mas não se pode falar em crise, não é isso que o governo tá insistindo muito,
de que o Brasil tá nessa situação por causa do cenário externo, não. Nós não temos mais
aquele vento a favor que nos ajudava lá no passado, principalmente, nos dois primeiros
mandatos… durante o primeiro mandato do Presidente Lula, não existe mais. O maior
fator de incerteza domestico… o maior fator de incerteza econômico que nós temos hoje
é a fraqueza politica da Presidente, onde isso vai nos levar e evidentemente, isso vai gerar
uma grande turbulência no mercado nos próximos meses. Acreditamos que o Ministro Levy
tenha o apoio politico minimamente suficiente para fazer algumas reformas, apoio este que
é muito mais gerado por um certo instinto de sobrevivência do que pelo alinhamento de
convicções. Se bem sucedido, esse ajuste que o Ministro Levy tá levando adiante pode levar
a uma certa recuperação da Economia em 2016, mas nada de espetacular, quando a gente
fala em recuperação da economia em 2016, nós estamos falando de sair de uma queda de
1,2 esse ano para um crescimento de 1,5 no ano que vem, muito longe das taxas médias de
crescimento da economia que nós tivemos no inicio do ano 2000. E finalmente, eu acho que
é uma constatação triste, eu acho que falta a Presidente Dilma tanto a vontade, quanto a
capacidade politica para levar adiante as reformas necessárias para elevar a produtividade
do investimento no Brasil, ou seja, somente com essas reformas é que nós poderíamos
almejar trazer a taxa de crescimento de novo para patamares em torno de 3 a 4%, o modelo
de crescimento do consumo que nós tivemos no inicio dos anos 2000, vamos dizer assim,
potencializado por um cenário externo muito favorável, isso acabou, esse modelo não existe
mais, esse, vamos dizer assim, nós precisamos substituir os motores de crescimento do Brasil
e para isso, a gente precisa dessas reformas que ao meu ver, não serão feitas na gestão da
Presidente Dilma. Oxalá, eu esteja errado. Muito obrigado.
O QUE ESPERAR DO NOVO
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL?
TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER
Relatora-Geral do Anteprojeto da Comissão
de Juristas do Senado Federal. Professora.
Associada Efetiva do IASP.
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REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO
v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015
REUNIÃO-ALMOÇO IASP
TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER
RELATORA-GERAL DO ANTEPROJETO DA COMISSÃO DE
JURISTAS DO SENADO FEDERAL
17 DE ABRIL DE 2015
JOSÉ HORÁCIO HALFELD REZENDE RIBEIRO
PRESIDENTE IASP
Senhoras e senhores, muito boa tarde! Tarefa muito difícil. O Processo Civil por muito
tempo se tornou um vilão por conta da enorme quantidade dos mais de cem milhões
de Processos que nós temos no país, e que, evidentemente, por conta da nossa estrutura
fazem com que a resposta do cidadão, a resposta que o cidadão recebe do Poder
Judiciário seja tardia. O Instituto de advogados de São Paulo tem no seu DNA a questão
do Processo. O nosso primeiro presidente, um dos fundadores, o Barão de Ramalho, ele
era professor da matéria no Largo de São Francisco. Lá, foi o seu terceiro diretor e tinha
uma obra clássica que nós temos até um exemplar do nosso museu do Instituto que é
a práxis brasileira. A tarefa é difícil porque nós nos sentimos, efetivamente, num quarto
escuro. Os advogados não conhecem corretamente o posicionamento dos tribunais em
determinados assuntos e além disso, muitas vezes, esses tribunais rapidamente, mudam
as suas posições. Sem dúvida, acho que mais do que a questão da celeridade, o problema
da insegurança jurídica talvez seja, realmente, o grande problema desse país. Não se pode
responder para o investido, para o cidadão exatamente qual é a diretriz para inúmeros
assuntos. Mas eu não estou aqui, evidentemente, para apenas passar uma mensagem
de pessimismo em relação a esse quadro, mais do que isso, muito mais do que isso,
uma mensagem de otimismo, porque o instituto escolheu, dentre os inúmeros e ilustres
processualistas que nós temos no nosso quadro, a querida Professora Teresa Arruda Alvim
Wambier para expor o que se pretende e o que se espera de um novo Código de Processo
Civil. Eu conversava com a Professora muito mais por uma questão do cargo, mesmo ela
tendo sido a relatora geral na Comissão de Juristas do Senado, mas sem dúvida é por
conta da inteligência fulgurante dela, do berço que tem, do seu currículo como Bacharel,
Mestre, Doutor e Livre Docente pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, os seus
trabalhos, os seus estudos que transcendem o nosso país, sem dúvida, nos dará hoje um
alento em termos de instrumento para se ter uma Justiça mais efetiva no país. Senhoras e
senhores, recebam a Professora Teresa Arruda Alvim Wambier.
[Palmas]
REUNIÕES-ALMOÇO DO IASP
O QUE ESPERAR DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL? - TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER
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PROFESSORA TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER
RELATORA-GERAL DO ANTEPROJETO DA COMISSÃO DE
JURISTAS DO SENADO FEDERAL
Boa tarde a todos vocês. Em primeiríssimo lugar, eu gostaria de agradecer o José Horácio
pela gentileza de ter montado esse almoço, de ter me convidado. Quero agradecer a presença
de todos, gente muito amiga, gente queridíssima, ex-alunos, alunos e quero dividir essa
homenagem com o Paulo Lucon, porque na verdade, ele também trabalhou no Projeto e ele
desempenhou uma função que eu seria incapaz de desempenhar que é a função politica. Eu
sou tremendamente desajeitada politicamente e eu tenho certeza de que sob esse aspecto,
eu não conseguiria fazer nem metade do que ele fez. Peço uma salva de palmas para ele.
[palmas].
Bom, vou falar vinte minutos no máximo, vinte e cinco, não quero estragar o almoço
de ninguém estou me sentindo extremamente inadequada por falar de Processo Civil num
momento tão festivo, véspera de feriado, sexta-feira, mas enfim, ordens são ordens, nosso
Presidente determinou e assim eu farei. Eu olhei para a Marcia agora e me lembrei de que
quando eu era bem menina, como os meus pais são processualistas, eu cresci escutando
conversas dos meus pais com Barbosa Moreira, Candido Dinamarco, Ada Grinover, etc.,
e uma coisa que sempre me invejou do Professor Dinamarco foi o fato de ele falar sem
papel, ele chega, pega o microfone e fala uma hora, uma hora e meia sem olhar nem um
esqueminha. Eu pensava com os meus botões: “Eu vou chegar lá um dia”, pois é, não cheguei
e estou aqui com um pequeno rascunho, porque eu sem papel não consigo falar.
Agora começa o meu tempo. Vou dizer para vocês rapidamente, algumas coisas sobre
os quatro objetivos que nortearam as Comissões da Câmara e do Senado. Os objetivos
foram fixados num primeiro momento pelo povo do Senado, que foram os primeiros que
trabalharam com o texto e o primeiro deles, que seria no meu entender bastante importante,
foi infelizmente abandonado pela Câmara, que foi o Projeto de simplificar o Processo,
justamente o que o José Horácio estava dizendo, o Processo brasileiro é complicado, o que
a gente pensou num primeiro momento, logo nas primeiras reuniões é: existe no Brasil
uma deformação, o Processo é mais importante do que o direito material, muitas vezes,
toda energia que o Juiz tem para gastar, ele gasta resolvendo o problema do Processo e
não do mérito, quando na verdade isso é uma deformação que se percebe sempre porque
há um Congresso de Direito Civil, aparecem 200 pessoas. Há um Congresso de Processo,
graças a Deus, né, Lucon, aparecem mil pessoas, o que de alguma maneira, a gente
percebe, que em alguma dimensão, isso não deveria ser assim, mas para nós que somos
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processualistas é ótimo, sempre tem alguém que ganha com a desgraça dos outros, somos
nós, os processualistas. Então, a primeira coisa que se pensou foi justamente em simplificar
o sistema.
Nós fizemos um Código mais enxuto, mais coeso que a gente imaginou, pudesse trazer
alguma simplificação em termos de rito, mas a Câmara, infelizmente, tenho certeza de que
não por culpa do professor Paulo Lucon, porque havia outros integrantes nesse grupo que
trabalhou o Projeto na Câmara, ela tornou o Processo, enfim, não digo mais complexo, mas
disciplinou de uma forma mais ampla situações que a gente tinha deixado para ser disciplinada
por um dispositivo genérico, por exemplo. Não posso começar a dar exemplos, senão eu vou
sair do meu tempo, mas esse exemplo é bom, Jurisprudência Defensiva, nós colocamos lá no
Projeto um dispositivo que ficou, no sentido de que sempre que houver alguma causa que
possa, eventualmente, gerar inadmissibilidade de um recurso especial extraordinário, ela deve
ser, se não for considerada grave e se o recurso for tempestivo, ela deve ser ou afastada, ou
corrigida. Nós achamos que com esse dispositivo genérico já estava claro que o Código pretende
desestimular a Jurisprudência Defensiva e a Câmara, graças a Deus, deixou esse, mas colocou
outros: carimbo borrado… carimbo borrado não tem, mas tem: recurso interposto antes do
prazo não é intempestivo, guia mal preenchida deve gerar necessariamente a determinação
do órgão jurisdicional, no sentido de dar um prazo para a parte consertar, etc., etc. então, foi
nesse sentido, qual é o perigo que eu vejo nisso? Que eu espero em Deus que não aconteça,
porque é lógico que eu não estou torcendo contra, estou torcendo a favor, mas o perigo que
existe é que o texto tem que ser interpretado e na interpretação, surgem as dúvidas. Então,
quem sabe, um Código com menos textos não geraria menos problemas? Não sei, espero que
eu não esteja certa, porque por outro lado, essa ideia que houve na Câmara muito presente
sempre no sentido de resolver todos os problemas, gera uma sensação de alívio quando a
gente lê o Código e a gente fala: “Olha que interessante, esse problema está resolvido”, aí você
começa assim: “Olha aqui, outro problema que está resolvido”, eu tenho a impressão de que
isso pode ser positivo.
Segundo objetivo das duas comissões, começou no Senado e foi aprimorado pela
Câmara, realmente aprimorado: constitucionalizar o Código, quer dizer, hoje a leitura
do Código deixa muito claro que ele, de fato, se insere num conjunto normativo maior em
que a Constituição ocupa o papel de diploma jurídico principal, que enfim, a luz do qual
todos os outros, devem ser compreendidos, interpretados, etc. e com isso, se colocaram
alguns dispositivos que deixou evidente que princípios constitucionais estão visivelmente
concretizados no Código. Vou dar dois exemplos, muito rapidamente, o primeiro, o
contraditório; o contraditório é pleno, o contraditório se reflete nessa regra no sentido de
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O QUE ESPERAR DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL? - TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER
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que não pode haver decisões surpresa, mesmo em se tratando daqueles temas sobre os
quais o Juiz pode decidir de oficio, deve decidir de oficio, ele deve proporcionar, às partes, a
oportunidade de exercer o contraditório e mais, isso é uma coisa de que as pessoas não falam
muito, mas eu acho tão interessante, aquele dispositivo que vocês, com certeza, já conhecem
que está sendo bastante criticado, que determina ao Juiz como ele deve fundamentar a sua
decisão, dizendo que o Juiz não deve colocar na sua decisão exclusivamente os elementos
que seriam de base à conclusão, mas também os elementos que teriam servido de base à
conclusão diferente, esse dispositivo é o contraditório para o Juiz, porque que sentido tem
o contraditório se eu não suponho a existência de um observador neutro que vai avaliar o
que as partes estão falando? É lógico! E isso está justamente nesse dispositivo que diz como
tem que ser a fundamentação da sentença. Outro exemplo é o incidente de resoluções
repetitivas, que, mais ou menos, na mesma linha do que já ocorre hoje com os artigos
543, B e C proporciona a aplicabilidade plena do princípio da isonomia, pessoas que têm
problemas idênticos devem estar submetidos a uma decisão igual do Poder Judiciário e já
vou chegar exatamente na observação que você fez na tua exposição.
Também nós colocamos dispositivos no Código que têm por objetivo tornar o sistema
mais eficiente, na medida em que, por exemplo, o Processo tem que andar para frente e não
para trás, etimologicamente é isso: pro/cesso, movimento para frente, não retrocesso. Então,
de fato, há algumas mudanças meramente procedimentais, mas elas são interessantes,
que evitam que o Processo volte, por exemplo, quando se permite aos tribunais superiores
julgarem as outras causas de impedir que não foram objeto do recurso, que não foram
objeto do pré-questionamento, porque não foram, na verdade, nem objeto de decisão,
então, imaginem, eu entro com mandado de segurança dizendo que eu não quero pagar
determinado tributo porque ele é inconstitucional, aliás a alíquota está errada e, no meu
caso, também houve prescrição. O Juiz de primeiro grau diz assim: “Não pague, seu tributo
é inconstitucional”, o tribunal repete a decisão: “Não tem que pagar mesmo, o tributo é
inconstitucional”, eu não posso recorrer, estou de mãos atadas, porque eu estou ganhando.
Aí, o FISCO recorre e diz: “O tributo é constitucional”, e o STF diz: “É, o tributo é constitucional,
sim”, mas isso não pode significar para a parte, então, pague, porque eu tenho outras duas
outras causas de pedir que não foram examinadas, então nós acolhemos no Projeto, uma
corrente doutrinaria, que na verdade, ela foi lançada pelo Ministro Eduardo Ribeiro, ele diz:
“O tribunal pode, sim, decidir as outras causas de pedir. Porque isso é re-julgar a causa e
isso é o que está na súmula 456 do STF. Esse é um exemplo que eu acho bom, porque hoje o
que se faz? Hoje, se manda voltar o processo de segundo grau para ele examinar as demais
causas de pedir, mas há outros, há também os embargos de declaração, se encampou no
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Projeto, no Código a posição que prevalece maciçamente no STF no sentido de considerar
que a parte, em termos de pré-questionamentos, fez o que lhe cabia quando entrou com o
embargo de declaração, não precisa voltar para o Tribunal de segundo grau completar.
Há outros exemplos, mas a ideia foi essa, fazer com que o Processo caminhe para frente e
não volte para trás. Outra ideia que se procurou prestigiar no Código ainda, nesse contexto,
em que se quis dar mais eficiência ao sistema, foi a necessidade de que o Juiz profira uma
sentença de mérito, isso pode aparecer obvio, o Processo existe para que haja uma sentença
de mérito, mas muito comumente, o Juiz brasileiro profere sentenças extinguindo Processos
sem julgamento de mérito quando na verdade, não teria sido o caso. Isso é uma posição
doutrinaria que o Bedaque sustenta, que eu sempre sustentei, as nulidades no Processo Civil
assim como no Direito Publico em geral, são sempre sanáveis, então não é como no Direito
Privado em que as nulidades absolutas são, por definição, insanáveis, não, as nulidades do
Processo devem se sanar ou devem ser relevadas se o vicio não for grave, não gerar prejuízo,
no caso concreto, embora seja um vicio teoricamente grave ou devem ser corrigidas. O
Código está repleto de artigos em que ele recomenda no primeiro grau, no segundo grau,
que os vícios sejam sanados, porque o que se quer do Processo é a prestação jurisdicional. Se
vocês pensarem um pouquinho na verdade, a respeito desse assunto, que é um assunto que
sempre chamou a minha atenção, os vícios do Processo, as nulidades, esse principio existe
hoje, qual o vicio mais grave que pode padecer um Processo? A falta de citação, uns dizem
que isso gera inexistência jurídica, outros dizem que gera nulidade absoluta, o fato é que
apropria lei diz que se o réu padecer e contestar, o vício some, o vício se sana, ele pode ser
concretamente consertado.
O Código chega ao ponto de dizer, mesmo em relação as condições da ação, aos
pressupostos processuais, se houver possibilidade de um Juiz mandar corrigir o vicio, ou
relevá-lo, ele deve proferir a sentença de mérito, isso tem tudo a ver com a jurisprudência
defensiva também. O que a parte quer? Quer o julgamento do mérito do recurso, não
quer uma decisão de inadmissibilidade do recurso. O que a parte quer? Uma decisão que
extingue o Processo com base no 267 sem julgar o mérito? Não, a parte quer uma decisão do
269, eu estou naquela fase que eu não consegui ainda decorar os artigos do Código novo,
e já consegui esquecer alguns do Código em vigor, o que pode ser muito grave porque esse
Código ainda está em vigor durante um ano. Bom, e se quer também que o Processo não
volte para trás, se quer que o Processo gere condições para que o Juiz decida o mérito e se
quer que o Processo gere condições para que o Juiz decida o mérito de vez e por isso que
se criou a regra e não vou me aprofundar sobre ela, evidentemente, porque é uma regra
complexa e nova, no sentido de que a autoridade de coisa julgada, a ação abarca não só
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o deciso mas também as prejudiciais, também o fundamento se a respeito do fundamento
houver contraditório e decisão expressa.
Isso de uma certa maneira, acaba evitando que aquela controvérsia sobre outra forma
volte ao Judiciário para que ele decida de novo, no fundo, o mesmo problema e no direito
brasileiro, a gente sabe, nós latinos, somos muito conceitualistas, estou sendo injusta porque
os alemães também são, então nós falamos se a causa de pedir é outra, é outra ação, se o
pedido é outro, mas no fundo, é o mesmo problema. E com essa regra no sentido de que
a coisa julgada também estende a sua autoridade para as prejudiciais, aquilo também
fica selado, congelado, não pode mais discutir. Então, se um contrato é considerado válido
para fins de incidência de juros e se isso, problema da validade do contrato é amplamente
discutido no Processo e o Juiz decide expressamente também essa questão, essa causa de
pedir não pode ser mais usada em nenhum outro Processo para outro efeito, porque vai ficar
acobertado pela coisa julgada tanto quanto o problema dos juros.
O quarto objetivo que esteve presente de uma forma extremamente nítida, nesse primeiro
momento em que se trabalhou no Projeto, foi o momento em que atuava a comissão de
que eu fiz parte, embora eu também tenha participado das reuniões enquanto o Projeto
estava na Câmara. Acho que fui a única sobrevivente da Comissão do Senado, mas o que
sempre se entendeu, de uma forma quase unanime é que na verdade, o processo brasileiro
é lento, moroso não em decorrência de algum efeito de rito, não há nada de errado com o
procedimento no Brasil, porque não poderia ser mesmo muito diferente do que é. O quê que
existe no Brasil, é uma versão inicial, uma contestação, provas, sentença e recursos, como é
que o Processo pode ser diferente disso? Acho que nem na Arábia Saudita é muito diferente
disso. Então, o que se pensou desde as primeiras reuniões foi que na verdade, algum outro
tipo de alteração deveria ser feita no Código para que ele pudesse gerar esses efeitos relativos
à celeridade dos feitos, porque a realidade é que os processos brasileiros não andam porque
há Processo demais, então o rito pode ser uma maravilha, mas o Juiz pega no Processo hoje
e vai pegar no mesmo Processo daqui a dois anos, quando der, quando tiver tempo.
Então, não adianta… eu costumo usar uma comparação que não é jurídica, mas eu acho que
é bastante expressiva, quando falo disso para os meus alunos, eu digo que o Processo brasileiro,
em termos de procedimento, é como uma marginal, se você explica para um estrangeiro ou para
alguém que não mora em São Paulo, não precisa ser estrangeiro que aqui no Brasil existe uma
rua larga que não tem cruzamento, não tem farol, ele vai dizer: “Puxa, que beleza, então o transito
flui que é uma maravilha, não tem porque parar”. Então por quê que para? Por quê que certos
dias da semana, certas horas desses determinados dias, ninguém anda na marginal? A resposta
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é simples, tem carro demais. Eu, às vezes, tenho vontade de pegar um helicóptero e olhar o que
acontece que não anda se a rua é larga, se no tem cruzamento, por que não anda? É o mesmo
problema do Poder Judiciário Brasileiro, não adianta fazer modificação no rito, no procedimento.
Na verdade, as modificações necessárias naquilo, evidentemente, em que o Processo pode ajudar
alguma coisa, porque os americanos dizem que o Brasil é uma litigious society, é uma sociedade
briguenta, as pessoas brigam e tudo vai parar no Judiciário, as tais ADR estão começando aqui
no Brasil, é algo que está ainda numa fase bastante, eu diria, embrionária e, de qualquer modo,
eu tenho impressão de que isso no Brasil não vai servir para desafogar o Poder Judiciário. Mas
enfim, essa é uma outra história, uma outra discussão. Mas o fato é que algo que evidentemente
estimula a propositura de ações e torna inexorável a multiplicidade de recursos que se interpõem
nos Processos todos os dias; é justamente a dispersão da Jurisprudência; então, no Brasil existe
esse fenômeno, que eu acho que a gente não deve nem chamar de divergência jurisprudencial,
porque não é que um Tribunal decida A e outro decida B, não! Um decida A, outro decide AX,
outro decide B1, porque há variáveis.
Eu acho que um exemplo bem expressivo dessa situação, em que não havia duas decisões
sobre o mesmo problema, havia várias era a incidência de INSS sobre leasing: devolve o VRG,
não devolve o VRG… então era uma bagunça nos Tribunais de segundo grau que só poderia
se acalmar, só poderia deixar de ser tão expressiva como era, e é nociva, porque isso gera
insegurança para o Juiz, para o jurisdicionado, para os próprios tribunais, para o Juiz de primeiro
grau se houvesse estabilização da Jurisprudência nos tribunais superiores. Vamos pegar de novo
esse exemplo do ISS, da incidência de ISS sobre leasing, o quê que aconteceu? O STJ entendia a
situação de um jeito X, sumulou, a súmula não tinha nem dois anos, ele passou a decidir de um
jeito diferente daquele que havia sumulado e no final lavou as mãos e falou: “Quer saber, não é
comigo, é com o STF, esse assunto não é da nossa competência”, isso depois de muito, muito
tempo decidindo de um jeito, depois de outro jeito, quer dizer, onde fica a segurança jurídica?
Então na verdade, esses dois fenômenos são unanimemente considerados extremamente nocivos
internamento e até externamente, porque há países que pensam duas vezes em investir no Brasil
porque sabem que a Jurisprudência aqui é oscilante, principalmente, em matéria tributária, que
é justamente um campo em que a Jurisprudência não poderia oscila, porque o Direito Tributário
tem princípios que privilegiam de uma forma escancarada a segurança jurídica e a previsibilidade
e se os Juízes decidem a respeito de Direi