Artigos Técnico-Científicos
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Artigos Técnico-Científicos
Artigos Técnico-Científicos Kátia Torres Ribeiro - Jaqueline Serafim do Nascimento - João Augusto Madeira - Leonardo Cotta Ribeiro Aferição dos limites da Mata Atlântica na Serra do Cipó, MG, Brasil, visando maior compreensão e proteção de um mosaico vegetacional fortemente ameaçado Kátia Torres Ribeiro1 • ICMBio Jaqueline Serafim do Nascimento • Conservação Internacional do Brasil João Augusto Madeira • ICMBio Leonardo Cotta Ribeiro • Instituto Guaicuy / SOS Rio das Velhas RESUMO. A Serra do Cipó (Cadeira do Espinhaço, MG) é famosa pela riqueza e endemismo dos campos rupestres, complexo vegetacional sobre solos quartzosos, incluídos oficialmente no Bioma Cerrado. Forte contraste climático é imposto pelo maciço montanhoso – fitofisionomias de Cerrado predominam nas partes baixas a oeste, e as vertentes orientais sustentam fragmentos de Mata Atlântica, antes contínua em todo o vale do rio Doce, com embaúbas-brancas (Cecropia hololeuca), palmitos-juçara (Euterpe edulis) e indaiás (Attalea oleifera). Mesmo sem espécies características do Cerrado, mapas oficiais consideram essas encostas como campos limpos ou sujos, erro devido, possivelmente, ao difícil discernimento em imagens de satélite de fisionomias abertas sobre solos arenosos, à degradação das matas ou à escala empregada na delimitação dos biomas. Com base em testemunhos científicos antigos e recentes, mapeamento em campo da distribuição das espécies arbóreas citadas acima, indicadoras de Mata Atlântica, de fácil visualização, da contigüidade das matas e posicionamento de frentes estacionárias, redelimitamos o bioma Mata Atlântica na região em escala 1:100.000, com acréscimo de 49.856 ha (Parque Nacional da Serra do Cipó: 8.067 ha; APA Morro da Pedreira, que o circunda: 41.789 ha), ainda sob forte pressão de desmatamento, recomendando sua inclusão nas ações e planejamentos dirigidos à Mata Atlântica e subsidiando o zoneamento e gestão das duas UCs. Enxergar os campos rupestres, já considerados como fitocória autônoma, como inseridos entre dois biomas ricos e dinâmicos auxilia, ainda, na compreensão da sua evolução. Palavras-chave: Biogeografia, Campos Rupestres, Legislação Ambiental, Mata de Neblina, Sensoriamento remoto. nição de categorias e a distribuição dos elementos nas categorias criadas é uma atividade complexa e com forte componente de subjetividade, o que a torna sujeita a debates e discordâncias recorrentes (Durkhein & Mauss, 1981). Tal consideração não é nenhuma novidade, mas freqüentemente as categorias e suas delimitações são entendidas como verdades INTRODUÇÃO A classificação do mundo natural é uma tarefa essencial e básica para a construção do conhecimento, seja ele científico ou não. A defi- 1 [email protected] Artigos Técnico-Científicos 30 Natureza & Conservação - vol. 7 - nº1 - Abril 2009 - pp. 30-49 Aferição dos limites da Mata Atlântica na Serra do Cipó, MG, Brasil, visando maior compreensão e proteção de um mosaico vegetacional fortemente ameaçado em si, e não como tentativas humanas de organizar sua compreensão do mundo natural, problema agravado quando estas classificações precisam servir de base para leis. Mas os componentes do mundo natural não costumam respeitar fronteiras por nós criadas, de modo que as revisões com base em novas informações são sempre necessárias. do o domínio acima referido da Mata Atlântica, confirmaram a afinidade florística de todas as matas atlânticas – montanas, interioranas, litorâneas; do sul ao nordeste – distanciadas das amostras de floresta amazônica e cerradão, fosse no conjunto de espécies, de gêneros ou de famílias de plantas arbóreas. Não foram encontrados argumentos para deixar as matas estacionais fora dos limites do domínio da Mata Atlântica, uma vez que elas constituem um continuum na distribuição das espécies em direção ao interior do continente (Oliveira-Filho & Fontes, 2000). Em Minas Gerais, esta posição foi reiterada em 2005 no workshop “Definição e delimitação dos domínios e subdomínios das paisagens naturais do estado de Minas Gerais” (Oliveira-Filho et al., 2006). Apesar de aceitarem, de forma pragmática, os limites propostos no mapa de biomas do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), os autores defenderam claramente que as disjunções florestais nos domínios do Cerrado e da Caatinga deveriam ser considerados como partes integrantes da Mata Atlântica devido à afinidade florística e estrutural e à alta relevância destas formações disjuntas para a conservação da biodiversidade (Oliveira-Filho et al., 2006). No caso da Mata Atlântica, bioma extremamente diverso e dos mais ameaçados do mundo (Myers et al., 2000), tema deste trabalho, afirma Câmara (2005) que se trata de “um termo popular sem significado científico preciso”. O nome faz alusão à sua proximidade com o Oceano Atlântico, em toda a costa brasileira, mas não é suficiente para contemplar toda a variedade de situações encontradas. Para fins legais e conservacionistas, desde a década de 1980 são muitos os esforços em busca de consensos quanto à delimitação da Mata Atlântica, processo este dificultado por sua característica diversidade de composições e fisionomias, por sua devastação, que dificulta ou impede a reconstituição da continuidade florestal ou das fisionomias originais, e pelas pressões políticas pela restrição da abrangência da denominação. Em 1990, foi realizado um workshop com 40 especialistas que concordaram que a expressão ‘mata atlântica’ deveria designar as “florestas pluviais do litoral, as matas sulinas mistas com araucária e lauráceas, as florestas estacionais decíduas e semidecíduas interioranas; e os ecossistemas associados (...)” (Câmara, 2005). A definição ampla de Mata Atlântica foi incorporada à legislação, e o Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA) incluiu em 1993, através da Resolução 010/93, todas as referidas formações no Domínio da Mata Atlântica. Esta compreensão, que se apoiava em dados consistentes de flora e fauna, foi posteriormente corroborada de forma ainda mais sólida pelo trabalho analítico de Oliveira-Filho & Fontes (2000) que, comparando no âmbito de espécies, gêneros e famílias a composição florística de 125 levantamentos fitossociológicos realizados na Amazônia, no domínio dos Cerrados e em to- Artigos Técnico-Científicos Muitos pesquisadores concordam que porções expressivas da Mata Atlântica ficaram fora dos limites oficiais do bioma, como se depreende de Hirota (2005), quando diz que “é importante destacar os esforços da Fundação SOS Mata Atlântica e do INPE no sentido de mapear os remanescentes florestais das áreas anteriormente não avaliadas, como as matas secas, especialmente os encraves e as florestas estacionais decíduas e semidecíduas, nos estados do Piauí, Bahia e Minas Gerais”. Como enfatiza Sutherland (2000), o conhecimento da abundância e distribuição dos diferentes tipos de hábitat e seu grau de conservação, em diferentes escalas, é uma das ferramentas essenciais de gestão e definição de prioridades. Tal tarefa exige definição precisa de cada hábitat, o que não é tarefa tão banal, e requer o reconhecimento em campo na maior quantidade possível de áreas, de modo 31 Natureza & Conservação - vol. 7 - nº1 - Abril 2009 - pp. 30-49 Kátia Torres Ribeiro - Jaqueline Serafim do Nascimento - João Augusto Madeira - Leonardo Cotta Ribeiro a se conhecer a gama de ambientes e sua correspondência em imagens. bacia do São Francisco, recebem a umidade proveniente do oceano Atlântico, umidade esta que permite o crescimento de florestas e florestas anãs até mesmo sobre superfícies rochosas no estado de Minas Gerais (OliveiraFilho et al., 2006). A América do Sul como um todo se destaca pela riqueza de epífitas da vegetação, e justamente na faixa nebular há grande diversificação, mesmo em locais com baixa precipitação (Sugden & Robins, 1979), uma vez que a contribuição da nebulosidade para o balanço geral de umidade da vegetação é muito elevada (Cavelier & Goldstein, 1989), principalmente para formas de vida com maior capacidade de absorver a umidade atmosférica (Smith, 1972; Lüttge, 1997). As matas estacionais são muito diversificadas, e agrupadas em um único conjunto em função da devastação – dos 635.552 Km2 estimados de cobertura original (ou 48,65% da área total de Mata Atlântica), restam apenas 3%, que recobrem desde as ricas terras roxas até solos quartzosos extremamente pobres e arenosos (Câmara, 2005), como é o caso da vertente oriental do Espinhaço. Esta antiga cadeia montanhosa se estende por 1.000 km na direção N-S, desde a porção central de Minas Gerais até o estado da Bahia, na Chapada Diamantina. Nela predominam solos arenosos originados de rochas quartzosas. Ao longo destas montanhas, de composição geológica heterogênea e complexa (AlmeidaAbreu, 1995), a distinção de fisionomias vegetacionais é uma tarefa árdua, tanto pela heterogeneidade em si, com amplas variações em pequenos espaços, como pelo fato de a reflectância observada nas imagens de satélite combinar os efeitos de um amplo conjunto de tipos de solos e formações vegetacionais, cuja rarefação dos elementos lenhosos pode ser relacionada tanto a fatores antrópicos quanto a influências edáficas, e combinações destas. As formações abertas de toda a região foram incluídas no Domínio do Cerrado, seja como ‘campos’, ‘campos rupestres’ ou ‘cerrado típico’ no recente mapeamento apresentado por Scolforo & Carvalho (2006), independentemente da composição florística, imprecisão relacionada ao fato deste mapeamento ter recoberto todo o estado, de grandes dimensões, utilizando sensoriamento remoto. A importância da umidade como explicadora de limites até certo ponto abruptos entre Cerrado e Mata Atlântica se depreende do trecho a seguir, extraído de Rizzini (1997): “Cerrado e Mata Atlântica vegetam sob o mesmo clima geral dominado por uma estação seca. Por isso, tão freqüentemente ocorrem juntos, em mosaico. No segundo, porém, o ambiente aéreo é muito mais úmido. (...) A floresta atlântica é indiscutivelmente uma formação climática nas serras litorâneas; no Planalto Central, as suas porções são formações edáficas – porque, sendo o ambiente mais seco, ela aí subsiste nos pontos onde o solo é favorável: neste caso o solo compensa o clima”. Na Serra do Cipó encontram-se os dois tipos de contraste – seja pela variação abrupta em umidade, seja pela distribuição em mosaico dos tipos de solo, gerando um mosaico vegetacional. Toda a região é afetada por incêndios (Ribeiro, 2007), mas os remanescentes florestais, além do fogo, estão sob forte pressão de desmatamento para produção de carvão para indústria siderúrgica e conversão da vegetação nativa em pastos de capim-braquiária e outras gramíneas africanas, bem como plantios de eucalipto, transformações observadas até mesmo em áreas onde antes predominava a exploração de candeia (Eremanthus erythropappa e E. incanus), espécie nativa comum nos solos pedregosos e alvo de planos de manejo florestal (Scolforo et al., 2006). Tais explorações são facilitadas por se considerar esta região como bioma Na Serra do Cipó, ao sul da Serra do Espinhaço, a delimitação oficial dos biomas começou a ser questionada e revista a partir dos primeiros estudos para elaboração dos planos de manejo do Parque Nacional da Serra do Cipó e da Área de Proteção Ambiental Morro da Pedreira, as duas unidades de conservação federais da região. As vertentes orientais, a barlavento, que englobam vales integrantes da bacia hidrográfica do Rio Doce bem como alguns vales integrantes da Artigos Técnico-Científicos 32 Natureza & Conservação - vol. 7 - nº1 - Abril 2009 - pp. 30-49 Aferição dos limites da Mata Atlântica na Serra do Cipó, MG, Brasil, visando maior compreensão e proteção de um mosaico vegetacional fortemente ameaçado Cerrado, mas os programas de fomento para o Cerrado não são adequados, por outro lado, a esta região. Itabira, Nova União e Taquaraçu de Minas (FIGURA 1). O Parque abarca partes dos quatro primeiros municípios e sua sede, em Jaboticatubas, dista apenas 100 Km do centro da capital do estado, Belo Horizonte, cuja região metropolitana tem cinco milhões de habitantes. A região montanhosa é bem delimitada ao sul por um breve hiato nas elevações, seguido pelas montanhas da Serra do Caraça, e ao norte o maciço montanhoso se estende continuamente até a região de Diamantina (18oS). Neste estudo propõe-se uma revisão da fronteira entre a Mata Atlântica e o Cerrado na região da Serra do Cipó. Não existe neste caso um conflito entre conceitos e definições correntes e aceitas, mas sim a possibilidade de trabalhar localmente com maior nível de precisão, visando melhor conhecimento da vegetação, subsídios à expansão da pesquisa e ferramentas mais adequadas para proteção de uma porção surpreendentemente pouco conhecida da famosa Serra do Cipó. Os seguintes indicadores e ferramentas foram utilizados como base para a redelimitação: A. relatos antigos sobre a cobertura vegetal original e épocas de destruição; B. testemunhos de pesquisadores contemporâneos; C. localização de espécies indicadoras da Mata Atlântica que sejam facilmente observáveis a distância; D. distribuição da canela-de-ema gigante (Vellozia gigantea), indicadora de região diretamente afetada pela condensação da umidade; E. presença de remanescentes de matas; F. formação de nebulosidade estacionária ao longo da vertente oriental do maciço montanhoso. A complexidade geológica da região (Almeida-Abreu, 1995) se reflete na heterogeneidade de solos e tipos vegetacionais. Latossolos são comuns sobre as formações cársticas a oeste do maciço montanhoso (Formação Bambuí), entremeados com solos rasos e inférteis, que sustentam campos sujos e outras formações abertas. As montanhas são edificadas principalmente por rochas do Supergrupo Espinhaço, com preponderância de quartzitos, que geram solos arenosos e de baixíssima fertilidade, e com padrões de drenagem bastante variáveis conforme a existência de diques rochosos e conforme a declividade. Exceções nos planaltos são os solos mais férteis e desenvolvidos formados sobre dispersas intrusões de rochas metabásicas (Almeida-Abreu, 1995). A leste do maciço montanhoso, cambissolos e latossolos se desenvolvem sobre rochas do embasamento cristalino. Não há estações meteorológicas oficiais na região, mas o clima é classificado de forma genérica como tropical de altitude (Cwb de acordo com Köppen), com verões muito chuvosos e invernos secos, com precipitação concentrada entre os meses de novembro e março, e média anual em torno de 1.500 mm (Madeira & Fernandes, 1999). No entanto, situações muito contrastantes são encontradas ao longo da região, considerando as diferenças entre vertentes a barlavento e a sotavento do maciço e o efeito da variação altitudinal de 800 a 1670 m a.s.l. Nebulosidade quase constante prevalece nas vertentes orientais (FIGURA 2), enquanto as vertentes ocidentais enfrentam até sete meses de seca. Da Serra do Cipó, à altura do paralelo 19oS, em direção ao norte, o relevo montanhoso di- MATERIAIS E MÉTODOS Área de estudo O nome Serra do Cipó vem sendo apropriado por crescente número de localidades por razões turísticas e de mercado, daí a necessidade de se delimitar a área aqui enfocada. Considerou-se como Serra do Cipó toda a região abrangida pelo Parque Nacional da Serra do Cipó, com 31.632 ha, e pela Área de Proteção Ambiental Morro da Pedreira, com 100.107 ha (coordenadas: 19o03’-36’S; 43o22’42’W), que circunda inteiramente o Parque Nacional, funcionando como sua “zona-tampão”, como já previsto em seu decreto de criação. Inclui as partes mais elevadas dos municípios de Jaboticatubas, Santana do Riacho, Morro do Pilar, Itambé do Mato Dentro, Artigos Técnico-Científicos 33 Natureza & Conservação - vol. 7 - nº1 - Abril 2009 - pp. 30-49 Kátia Torres Ribeiro - Jaqueline Serafim do Nascimento - João Augusto Madeira - Leonardo Cotta Ribeiro Rodovia MG 010 Limite de Municípios Limite PARNA Limite APA Vegetação-GEOMINAS Classificação Caatinga Campo Rupestre Cerrado Floresta Atlântica Bimas IBGE Classificação Cerrado Caatinga Floresta Atlântica Fonte: Limite Municípios e UC’s – IBAMA Proteção UTMSAD69: Fuso 23K Limites Biomas: IBGE FIGURA 1: Localização da região da Serra do Cipó, com limites dos municípios e das duas unidades de conservação federais: Parque Nacional da Serra do Cipó e APA Morro da Pedreira. Representa-se ainda o limite oficial atual entre os biomas Mata Atlântica e Cerrado na região conforme o IBGE (zonas hachuradas) e limites vegetacionais conforme GEOMINAS (em cores). No mapa menor, no canto superior esquerdo, apresentam-se as duas unidades de conservação em relação aos biomas Cerrado (verde-claro), Mata Atlântica (verde-escuro) e Caatinga (laranja), no estado de Minas Gerais. Artigos Técnico-Científicos 34 Natureza & Conservação - vol. 7 - nº1 - Abril 2009 - pp. 30-49 Aferição dos limites da Mata Atlântica na Serra do Cipó, MG, Brasil, visando maior compreensão e proteção de um mosaico vegetacional fortemente ameaçado A D B E C F FIGURA 2: Prancha de fotografias – A. Fragmento florestal cercado por pastagens de capim-braquiária, em Cabeça de Boi, no município de Itambé do Mato Dentro, porção leste da APA Morro da Pedreira; B,C. Epífitas sobre a canela-de-ema gigante (Vellozia gigantea), ilustrando a alta umidade comumente verificada – musgos no alto dos ramos e um exemplar de Sophronites brevipedunculata, característica de Mata Atlântica, indicada pela seta preta; D. Fragmento de mata a 1200 metros de altitude no município de Morro do Pilar com Cecropia hololeuca (embaúba-branca), indicada pela seta branca e Attalea oleifera (indaiá) despontando no dossel. E. Árvore queimada, junto a indivíduo de candeia, testemunhando conversão da paisagem de mata para candeial, sobre solos arenosos. F. Visão do Travessão, no fundo do Vale da Bocaina (Parque Nacional da Serra do Cipó), que divide as drenagens do Rio das Velhas e Rio Doce. Podem-se ver as nuvens provenientes da vertente leste, que se rarefazem na vertente oeste, de onde se tirou a fotografia (fotos de K.T. Ribeiro) das e corrigidas com informações de campo. vide a Mata Atlântica, para leste, dos Cerrados, para oeste. Os municípios de Itabira, Itambé do Mato Dentro, Morro do Pilar e Conceição do Mato Dentro são parcialmente incluídos nos limites oficiais da Mata Atlântica (de acordo com critérios do Ministério do Meio Ambiente, baseados em dados do IBGE e Fundação SOS Mata Atlântica), mas todo o território incluído na APA Morro da Pedreira ficou fora desta delimitação, sendo justamente a região com maior porcentagem de vegetação preservada na vertente leste. Relatos antigos e testemunhos contemporâneos Procedeu-se a um levantamento de relatos de naturalistas que percorreram a região, sobretudo no século XIX, que contivessem informações de interesse para uma tentativa de reconstituir um quadro da paisagem original da região, sobretudo da vertente leste da Serra do Cipó. Da mesma forma, procurou-se levantar informações científicas atuais, seja na literatura ou em contatos pessoais. As análises e mapas foram feitos em ambiente ArcGIS® 9.0 (ESRI). A base vetorial para altimetria, hidrografia, sistema viário e divisão política foi obtida a partir das cartas topográficas do IBGE em escala 1:100.000, digitaliza- Artigos Técnico-Científicos Mapeamento de espécies indicadoras Utilizou-se um conjunto pequeno de espécies indicadoras da Mata Atlântica, mas que, por 35 Natureza & Conservação - vol. 7 - nº1 - Abril 2009 - pp. 30-49 Kátia Torres Ribeiro - Jaqueline Serafim do Nascimento - João Augusto Madeira - Leonardo Cotta Ribeiro serem conspícuas, permitiram uma varredura extensa e suficientemente homogênea da região de estudo. Foram elas o palmito-juçara (Euterpe edulis), a embaúba-branca (Cecropia hololeuca), e a palmeira indaiá (Attalea oleifera), esta última comum nas matas semidecíduas. A palmeira macaúba (Acrocomia aculeata), associada a solos férteis (Motta et al., 2002), porém não claramente afetada pela variação em precipitação dentro da área de estudo, e comum nas formações mesofíticas nos domínios da Mata Atlântica e do Cerrado, também foi incluída no mapeamento como uma comparação com as duas outras palmeiras, indicativas de mata atlântica, mas sem associação exclusiva com solos férteis. Esta área foi por sua vez subdividida em quatro porções, de acordo com delimitação derivada da proposta do GEOMINAS (SEA, 1980; ver FIGURA 1): Mata Atlântica (64.218,8 ha), faixa de Cerrado a leste dos campos rupestres (Cerrado Leste: 61.334,9 ha), Campos Rupestres (217.638,7 ha) e faixa de Cerrado a oeste (Cerrado Oeste: 158.141,2 ha). Não se trata de uma divisão de biomas, e sim uma proposta de divisão de grandes conjuntos vegetacionais. Utilizou-se a classificação da vegetação de Scolforo & Carvalho (2006; Mapa de Vegetação do estado de Minas Gerais), e calculou-se a proporção de cobertura florestal em cada uma destas faixas. Para as análises, considerando a baixa acurácia da classificação, foi feito o agrupamento de todas as feições florestais - matas secas, semidecíduas e mesmo matas que podem vir a ser consideradas como ombrófilas, após estudos pertinentes. Todas as trilhas e estradas no interior do Parque, bem como trilhas e estradas que conectam o Parque a vilas no sopé da montanha, foram percorridas e mapeadas entre janeiro de 2003 e julho de 2006, durante os estudos para os planos de manejo ou em ações cotidianas de gestão das unidades de conservação. A ocorrência das espécies indicadoras ao longo de cada pequena drenagem cortada pelas trilhas foi registrada com uso de GPS, sendo os pontos marcados no leito da própria trilha, no ponto de onde a planta foi avistada. A precisão é razoável, uma vez que o terreno é bastante acidentado, e os pontos marcados não são muito distantes da localização mesma das plantas. A partir destes dados fez-se um mapeamento da região de ocorrência de cada espécie, considerando as drenagens acima referidas, inventariando todos os vales em torno do parque nacional. Distribuição geográfica de Vellozia gigantea A canela-de-ema gigante (Vellozia gigantea) é a maior dentre as Velloziaceae (Menezes & Mello-Silva, 1999), família com grande número de espécies endêmicas dos campos rupestres e estreitamente associada a ambientes rochosos (Ayensu, 1973). V. gigantea tem hábito dracenóide e sustenta grande densidade de epífitas em seus muitos ramos, inclusive orquídeas de gêneros característicos da Mata Atlântica como Grobya (Barros & Lourenço, 2004) e Sophronites, ausentes ou escassas na vertente ocidental. Era conhecida até recentemente por uma única população, ocupando área de cerca de 1 ha, em afloramentos rochosos próximos à rodovia MG-010, dentro do Parque Nacional da Serra do Cipó (Menezes & Mello-Silva, 1999), em drenagem já inserida na bacia do Rio Doce. Mapeamento detalhado desta espécie ao longo das vertentes orientais da Serra do Cipó começou em 2004 (L.C. Ribeiro et al., em preparação), e os resultados elevaram sua distribuição conhecida para cerca de 2.200 ha, em áreas descontínuas de difícil acesso. Consideramos esta espécie, endêmica da Serra do Cipó, como indicadora de Proporção de remanescentes florestais Para caracterizar a distribuição espacial dos remanescentes florestais na região da Serra do Cipó, e avaliar a importância e urgência de conservação dos remanescentes inseridos nas duas unidades de conservação em estudo, calculou-se a área absoluta e a proporção dos remanescentes dentro de uma área de 501.333 há, correspondente à faixa de 20 km em torno da APA Morro da Pedreira. Artigos Técnico-Científicos 36 Natureza & Conservação - vol. 7 - nº1 - Abril 2009 - pp. 30-49 Aferição dos limites da Mata Atlântica na Serra do Cipó, MG, Brasil, visando maior compreensão e proteção de um mosaico vegetacional fortemente ameaçado vegetação associada à neblina na região (FIGURA 2), e sua ocorrência ajuda a localizar a área diretamente afetada pela condensação da umidade. jantes dirigiam-se em sua maioria ao Arraial do Tejuco, atual Diamantina, seja pelo caminho a oeste, cruzando os cerrados, seja pela vertente leste da Serra, passando pelos atuais municípios de Itambé do Mato Dentro e Morro do Pilar, chegando então a Conceição do Mato Dentro (FIGURA 1). Frente de nebulosidade estacionária Linhas delimitadoras da nebulosidade estacionária foram definidas para 10 imagens Landsat 7, sensor TM (Thematic Mapper), obtidas entre 2000-2003, disponíveis em formato .jpg na internet (http://www.engesat.com.br), escolhidas por apresentarem elevada cobertura por nuvens. Extraiu-se uma linha representando a posição média no limite de nebulosidade, para subsidiar a definição do limite entre biomas. A cidade de Morro do Pilar, sede do município de mesmo nome, era então conhecida como Gaspar Soares, ou Morro do Gaspar. Auguste de Saint-Hilaire, em seu trajeto de Itambé à vila do Príncipe, diz que: “Toda a região que se estende até Vila do Príncipe é ainda montanhosa, e as florestas, que a cobriam outrora, deram lugar, em muitos pontos, a imensas pastagens de capim-gordura. Não se vislumbra, por assim dizer, o menor sinal de cultura”. Entre a localidade de Ponte Alta e o Morro do Gaspar Soares, diz ainda: “ (...) não se avistam senão imensas campinas de capim-gordura com alguns feixes de bosques. Por estas pastagens vêem-se, de um lado, alguns indaiás, cujas folhas largas se agitam à menor aragem. Esse lugar não apresenta o menor vestígio de lavagens, e, pelo que me disseram, foi outrora cultivado; a aparição, porém, do capim-gordura decidiu os proprietários a procurar alhures matos ainda por destruir”. Para verificar o limite proposto com uso de outra técnica, a cobertura por nuvens foi extraída de três imagens CBERS (China-Brazil Earth Resources Satellite), sensor CCD (Charge-Coupled Device), dos anos de 2003, 2004 e 2005 (http://www.cbers.inpe.br). Elas foram modeladas com uso do algoritmo NDVI (normalized difference vegetation index), com a intenção de amplificar o contraste entre os elementos vegetacionais, as nuvens e outros elementos físicos (técnica em Chuvieco, 1996). Com uso do programa Multispec as nuvens foram extraídas da imagem por meio de classificação não supervisionada, e nestas imagens fez-se outra delimitação da linha de nebulosidade estacionária, bastante coincidente com a anterior. Seguindo o mesmo caminho de Saint-Hilaire, Spix e Martius, que visitaram o Brasil entre 1817 e 1820, informam que “há quarenta anos passados [toda a região de montanhas entre Gaspar Soares e a referida Vila] era revestida de densa mata virgem sem interrupções, continuando as matas do Rio Doce”, mas que àquela altura, grandes trechos já haviam sido abatidos. Gardner, que viajou pelo Brasil de 1836 a 1841, ao se dirigir a Gaspar Soares a partir de Conceição do Mato Dentro, diz ter atravessado uma região “de densas florestas virgens semelhantes às da Serra dos Órgãos e, como nesta, abundantes em fetos arborescentes, pequenas palmeiras e grandes bambus”. Ao passar pelo Arraial de Gaspar Soares, Gardner registra que “não havia sinal de plantações, embora ao que me informam, todos estes campos nus tivessem sido cultiva- RESULTADOS Relatos antigos sobre as formações florestais e sua destruição Em artigo que trata da ocupação histórica da região de Santana do Riacho, como parte da contextualização das pesquisas arqueológicas realizadas na região, Guimarães (1991), resgatou informações sobre a ocupação do território a partir principalmente dos relatos de naturalistas e viajantes do século XIX. Estes via- Artigos Técnico-Científicos 37 Natureza & Conservação - vol. 7 - nº1 - Abril 2009 - pp. 30-49 Kátia Torres Ribeiro - Jaqueline Serafim do Nascimento - João Augusto Madeira - Leonardo Cotta Ribeiro dos até que o capim gordura os invadiu. Derrubando florestas virgens, fizeram-se a alguma distância novas plantações, que por sua vez terão de ser abandonadas pela mesma causa” (textos citados em Guimarães, 1991). Cipó poderia ser considerada como um divisor biogeográfico de espécies de Callithrix, com C. penicilata a oeste e C. geoffroyi a leste. Recentemente, no I Seminário Interdisciplinar de Pesquisadores da Serra do Cipó (maio de 2007), organizado para estruturar a consulta à comunidade científica acerca das propostas dos planos de manejo do Parque Nacional da Serra do Cipó e da APA Morro da Pedreira, os pesquisadores presentes, muitos com dados inéditos, ratificaram unanimemente a proposta de considerar a vertente leste como Mata Atlântica, incluindo os vales de Nova União e Taquaraçu de Minas, que drenam para a bacia do rio das Velhas, mas são voltados para sul/ sudeste (ICMBio, 2007). Fortes transformações da paisagem (FIGURA 2) também podem ser depreendidas do depoimento de Georg von Langsdorff ao passar pela Serra do Cipó em 1824: “No inverno, ou seja, julho e agosto, as matas se congelam; árvores, gramíneas e folhas mortas e secas estão prontas para serem queimadas, como preparação para futuras plantações. O fogo, no entanto, atinge proporções terríveis e acaba arrasando e destruindo matas, campos e terras. (...) Era até perigoso sair de casa. O fogo ardia em toda a região, espalhando-se até mesmo sobre o Rio Cipó, que tem 20 braças de largura, e sobre outros menores. Não há canais, água, leis, nada que proteja a região contra as queimadas” (Silva, 1997). Mapeamento de espécies indicadoras e dos remanescentes florestais O palmito-juçara (Euterpe edulis), pode ser encontrado, de forma esparsa, em toda a vertente oriental da Serra do Cipó, principalmente junto aos cursos d’água que drenam as vertentes de Conceição do Mato Dentro, Morro do Pilar e Itambé do Mato Dentro. Nas encostas de Itabira torna-se mais raro. A embaúbabranca (Cecropia hololeuca) é encontrada em todos os vales voltados para leste, inclusive aqueles cujos rios drenam para a bacia do Rio das Velhas, afluente do São Francisco. É o caso dos vales de Altamira (município de Nova União) e do Sete (município de Taquaraçu de Minas), totalmente recobertos por mata semidecídua ou capoeiras destas, ou ainda por extensos bananais que evidenciam a maior umidade nestes vales em comparação com a banda ocidental. A palmeira indaiá (Attalea oleifera) é encontrada apenas na região do Município de Morro do Pilar e parte setentrional do município de Itambé do Mato Dentro, e é bastante conspícua em locais onde a cobertura florestal foi claramente removida, terrenos em grande parte ocupados por pastagens de braquiária (Urochloa spp.). Já a palmeira macaúba (Acrocomia aculeata) tem ampla ocorrência em todas as porções mais baixas da área de estudo, sempre associada a solos mais férteis, como apontado por Motta et al. (2002), em avaliação das preferências da espécie no Testemunhos recentes Do amplo conjunto de pesquisadores que trabalharam na Serra do Cipó, alguns se dirigiram aos vales que drenam para a bacia do Rio Doce, distanciando-se um pouco da estrada principal (MG-010), ou estudaram os capões de mata em elevada altitude, dispersos na matriz graminóide, e reconheceram a afinidade florística e faunística destes com a Mata Atlântica. Giulietti et al. (1987), ao sintetizarem e apresentarem os levantamentos florísticos realizados durante décadas na região, caracterizaram explicitamente as vertentes orientais como afins à Mata Atlântica. MeloJunior et al. (2001) realizaram um amplo levantamento ornitológico na Serra do Cipó, e nas matas com grande predominância de candeias, que consideraram como transição entre campos rupestres e mata atlântica, encontraram 14 espécies de aves endêmicas da Mata Atlântica, representando 5,1% das espécies registradas, e enfatizaram o elevado grau de destruição das formações florestais na região. Oliveira et al. (2003) encontraram o sagüi Callithrix geoffroyi nos capões de mata altimontanos e conjecturaram que a Serra do Artigos Técnico-Científicos 38 Natureza & Conservação - vol. 7 - nº1 - Abril 2009 - pp. 30-49 Aferição dos limites da Mata Atlântica na Serra do Cipó, MG, Brasil, visando maior compreensão e proteção de um mosaico vegetacional fortemente ameaçado Estado. Na direção oeste, está sempre presente sobre solos associados às formações calcárias do Grupo Bambuí, que bordejam o maciço montanhoso; na direção leste, associa-se aos solos mais ricos oriundos de rochas do embasamento cristalino (FIGURA 3). anãs, um correspondente da mata de neblina associado aos afloramentos rochosos e solos quartzosos, ou nas palavras de Oliveira-Filho et al. (2006) para ambientes comparáveis em Minas Gerais, “representam uma transição dinâmica [dos campos rupestres ou de altitude] para as florestas Ombrófila Densa, Ombrófila Mista e Estacional Semidecidual”. Ocorre em todos os municípios a leste, com exceção daqueles com drenagem para o rio das Velhas. Em relação à distribuição dos remanescentes florestais ao longo das faixas de vegetação conforme a classificação do GEOMINAS (Mata Atlântica, Cerrado Leste, Campo Rupestre e Cerrado Oeste), tem-se respectivamente as seguintes porcentagens de leste para oeste: 46%; 35%, 20% e 1%, e 19% da área total analisada (FIGURA 4). Limite estacionário de nuvens A análise das imagens com maior nebulosidade mostrou uma constância na região de condensação de umidade na porção leste da Serra do Espinhaço. O efeito orográfico resulta em uma linha de disposição de nebulosidade a barlavento da Serra (FIGURA 3), desde o município de Itabira, seguindo sempre o contorno do maciço até o município de Diamantina. O acúmulo de nuvens se deve à influência da massa tropical atlântica, com expressão variável ao longo do ano. A menor ou maior atuação da massa tropical atlântica leva a maior ou menor incidência de nebulosidade, no decorrer das estações do ano. No entanto, a umidade permanece estacionária com condensação de nebulosidade, mesmo nos períodos secos, com registro de chuviscos, evidenciando um caráter totalmente orográfico do clima na região, em intenso contraste com a região melhor estudada, que fica na sombra das chuvas, com menor precipitação que a capital Belo Horizonte. Evidencia-se a concentração dos remanescentes a leste e o contraste entre as faixas consideradas como de cerrado a leste e a oeste da faixa classificada como de campo rupestre (35% e 1% respectivamente). Esta comparação ficaria ainda mais enfática se não houvesse equívocos no mapa de vegetação elaborado por Scolforo & Carvalho (2006), em função da abrangência do estudo (todo o estado). Em vistorias em campo do referido mapa e a partir de comparações com mapa de vegetação elaborado especificamente para o plano de manejo das unidades de conservação a partir de classificação não supervisionada de imagem ICONOS (agosto de 2005) e verificações em campo (ICMBio, 2008), pode-se constatar que no mapa para o estado, diversas áreas de floresta semidecidual em regeneração foram classificadas como cerrado típico, e as áreas invadidas por samambaia (Pteridium aquilinum), características de solos anteriormente sob mata, não foram classificadas, ou foram interpretadas como áreas de campo, genéricas. Os capões de mata sobre solos férteis no seio dos campos rupestres também foram interpretados como encraves de vegetação de cerrado. Proposição de novos limites entre biomas A proposta de novo limite entre os biomas considera conjuntamente a série de fatores e indicadores analisados. A linha de condensação de umidade localizou-se ligeiramente a oeste da linha de cumeada que divide as duas grandes bacias hidrográficas da região – São Francisco a oeste e Doce a leste. O posicionamento de linha de nebulosidade, que corresponde a uma média entre várias imagens, pode variar dependendo das imagens usadas para compô-la. Já a linha de cumeada apre- Mapeamento de Vellozia gigantea A ocorrência de V. gigantea está associada a afloramentos rochosos quartzíticos entre 1200 e 1400m de altitude, faixa em que há a condensação da umidade proveniente de leste (FIGURA 3). Podem ser vistas como florestas Artigos Técnico-Científicos 39 Natureza & Conservação - vol. 7 - nº1 - Abril 2009 - pp. 30-49 Kátia Torres Ribeiro - Jaqueline Serafim do Nascimento - João Augusto Madeira - Leonardo Cotta Ribeiro INDICADORES Embaúba Indaiá Macaúba Palmito INDAIÁ PALMITO MACAÚBA EMBAÚBA VELLOZIAS PARMA Cipó Limite APA Neb. Estacionária MA - Limite proposto Projeção UTMASD69 - Fuso 23K FIGURA 3: Apresentação do novo limite entre os Biomas Mata Atlântica e Cerrado na região da Serra do Cipó, Minas Gerais, baseado nos divisores de águas, e o conjunto de variáveis que apoiaram a delimitação. Representa-se a distribuição das espécies indicadoras de Mata Atlântica na região de estudo conforme mapeamento: palmito: Euterpe edulis, embaúba: Cecropia hololeuca, indaiá: Attalea oleifera, bem como a macaúba: Acrocomia aculeata, esta indicadora de fisionomias florestais sobre solos mesotróficos, na região da Serra do Cipó. As manchas sólidas indicam as populações mapeadas de Vellozia gigantea e pode-se ver sua associação com a nebulosidade. Os hachurados em diferentes padrões referem-se às áreas de ocorrência das espécies indicadoras tendo como referência os vales visitados. A oeste só se registra a ocorrência da macaúba. A mancha em tom de cinza indica o limite da nebulosidade estacionária proveniente de leste, que foi usada com auxílio, mas não como única base para delimitação entre biomas, uma vez que o limite por bacias não é fluido como as nuvens, e mais facilmente reconhecível em campo e em mapas. Artigos Técnico-Científicos 40 Natureza & Conservação - vol. 7 - nº1 - Abril 2009 - pp. 30-49 Aferição dos limites da Mata Atlântica na Serra do Cipó, MG, Brasil, visando maior compreensão e proteção de um mosaico vegetacional fortemente ameaçado Limite PARNA Limite APA Vellozias Divisor de Bacias VEGETAÇÃO-IEF Classificação Cerrado Denso Cerrado Ralo Cerrado Típico Floresta Semidecídua Source: Instituto Estadual de florestas _ IEF/2005 Protection UTMSAD69: Fuso 23K FIGURA 4: Apresentação do novo limite entre Mata Atlântica e Cerrado na região da Serra do Cipó, Minas Gerais, e sua relação com a distribuição de remanescentes florestais. A figura apresenta os limites do Parque Nacional da Serra do Cipó, da APA Morro da Pedreira além de uma ampla zona no entorno das duas unidades de conservação para permitir sua contextualização. Vê-se a distribuição dos remanescentes de acordo com classificação de Scolforo & Carvalho (2006), e as manchas em cor-de-rosa mostram a área de ocorrência da Vellozia gigantea. A linha em azul limita as duas grandes bacias hidrográficas – dos rios Doce e São Francisco. A área marcada em cinza, na porção direita da figura, refere-se à área total a ser considerada como Mata Atlântica na cena visualizada, conforme presente proposta. Observação: na bacia do Rio São Francisco, a oeste, vêem-se áreas de vegetação de cerrado. O mesmo padrão a leste, na bacia do Rio Doce, embora classificado como cerrado, corresponde na verdade a áreas com dominância de candeia, possivelmente antigas áreas de mata atlântica. As grandes áreas brancas no centro do mapa correspondem à região de predomínio dos campos rupestres, pontuados por capões de mata com freqüência classificados erroneamente como cerrado – há enclaves de cerrado, mas geralmente as áreas assim classificadas naquela porção do território são matas em estágios iniciais de regeneração. Artigos Técnico-Científicos 41 Natureza & Conservação - vol. 7 - nº1 - Abril 2009 - pp. 30-49 Kátia Torres Ribeiro - Jaqueline Serafim do Nascimento - João Augusto Madeira - Leonardo Cotta Ribeiro senta maior facilidade de identificação em campo e não tem o problema da fluidez das nuvens (ver TABELA 1). Já os demais fatores (ocorrência de espécies indicadoras) coincidiram perfeitamente com este limite por grandes bacias hidrográficas. As exceções são os vales do Sete e de Altamira (municípios de Taquaraçu de Minas e Nova União, respectivamente), ambos na bacia do São Francisco, porém voltados para leste, também sob forte influência da massa de umidade verificada. 12.055 ha no Parque Nacional da Serra do Cipó e 46.574 ha na APA Morro da Pedreira. O cálculo da área a ser inserida na Mata Atlântica a partir de nova delimitação foi feito, a título de exercício, para a região da Serra do Cipó, até o município de Diamantina (paralelo 18oS). Na porção analisada, a Mata Atlântica passaria de 810,9 mil para 914,1 mil ha, constituindo um acréscimo de 12,7%, utilizando-se os divisores de águas como limites entre os biomas, e passaria para 949,5 mil ha, se fosse utilizada a frente estacionária de nebulosidade como referência para a delimitação dos biomas. Assim, optou-se por delimitação definida pelas cumeadas, sendo que nos vales do Sete e de Altamira foram usadas as cumeadas de seus respectivos vales, o que concorda tanto com a linha de condensação de umidade quanto com a fitofisionomia florestal ali verificada (FIGURA 3). Apresenta-se a área de bioma Mata Atlântica a ser acrescida às duas Unidades de Conservação conforme as duas formas de delimitação (TABELA 1). DISCUSSÃO Fortes contrastes vegetacionais entre vertentes montanhosas é fenômeno comum, como é o caso emblemático das Ilhas Canárias (Fernández-Palacios & de Nicolás, 1995), mas também de tantas outras regiões como as montanhas andinas (Smith, 1972; Lüttge, 1997), as ilhas do Havaí (Nogushi, 1992), florestas subtropicais asiáticas (e.g. Chen et al., 1997), dentre outras. Em geral, as vertentes a barlavento, que recebem maior umidade, apresentam vegetação de maior porte, e com maior diversidade. Em outros casos, a intensidade do vento, como nas altas montanhas, Com a divisão dos biomas, tendo como base as drenagens, o Parque Nacional da Serra do Cipó conteria 8.067 hectares de Mata Atlântica (25% da área da UC) e a APA Morro da Pedreira conteria 41.722 hectares (41,7%). Uma eventual delimitação com base na nebulosidade estacionária resultaria em valores maiores, uma vez que a umidade avança sobre os extensos planaltos, não se limitando exatamente às vertentes orientais: seriam Tabela 1. Área a ser acrescida ao bioma Mata Atlântica na porção sul da Serra do Espinhaço de acordo com a nova delimitação proposta, apresentando separadamente os cálculos para o Parque Nacional da Serra do Cipó, Área de Proteção Ambiental Morro da Pedreira e Região desde a Serra do Cipó até a altura da cidade de Diamantina. Região A. Parque Nacional da Serra do Cipó (31.632 ha) B. Área de Proteção Ambiental Morro da Pedreira (100.007 ha) C. Serra do Cipó até Diamantina Proposta formalizada por este estudo: limites de acordo com divisão entre bacias (ha); (% da unidade de conservação) Limites de acordo com a nebulosidade como base par ao limite entre biomas (ha); (% da unidade de conservação) 0 8.067 ha (25,5%) 0 12.055 ha (38,5%) 968 41.722 ha (41,7%) 968 46.574 ha (46,5%) 810.869 914.119 ha 810.869 949.448 ha Artigos Técnico-Científicos 42 Natureza & Conservação - vol. 7 - nº1 - Abril 2009 - pp. 30-49 Aferição dos limites da Mata Atlântica na Serra do Cipó, MG, Brasil, visando maior compreensão e proteção de um mosaico vegetacional fortemente ameaçado que causam estresse mecânico e dessecação, ou o efeito da salinidade em ambientes a beira-mar, levam à situação oposta - formações mais complexas e estruturadas são encontradas em locais mais protegidos (Crawford, 1989; Nogushi, 1992; Lüttge, 1997). Ao longo de uma mesma vertente podem ocorrer fortes contrastes vegetacionais/ climáticos entre a faixa diretamente afetada pela condensação de umidade (faixa nebular) e a faixa acima desta, em geral caracterizada por forte dessecação (e.g., Fernández-Palacios & de Nicolás, 1995). no município de Itabira, resultem em tão pouco conhecimento biológico na região diretamente afetada. A Vellozia gigantea e sua comunidade de epífitas, com espécies características da Mata Atlântica, parcialmente protegida do fogo por crescer em afloramentos rochosos diferencialmente alcançados pelos incêndios, e não afetada diretamente pela demanda por carvão e lenha, persiste como testemunho da vegetação potencial associada à faixa nebular, com espécies capazes de absorver a umidade atmosférica, favorecidas pelas chuvas orográficas. Nesta faixa podem ser encontradas variadas fisionomias, conforme condições edáficas e climáticas (Sugden & Robins, 1979). Os caminhos a leste utilizados pelos antigos naturalistas não são mais usados com freqüência pelos pesquisadores contemporâneos, o que também explica a concentração das pesquisas a oeste. Nas últimas décadas, o acesso mais utilizado para a Serra do Cipó, a partir de Belo Horizonte, é o que segue pela rodovia MG-010, atravessa a região cárstica de Lagoa Santa em meio à mais famosa vegetação de cerrado, estudada por Eugene Warming (Warming, 1973), até a borda da serra, quando então uma estrada sinuosa e estreita segue até Diamantina, passando por extensas áreas de campos rupestres, e pelas cidades de Conceição do Mato Dentro e Serro. Esta é a região mais conhecida e estudada da Serra do Cipó, que concentrou levantamentos botânicos (ver Giulietti et al., 1987, 1997 e Pirani et al., 2003), bem como diversos estudos de fauna (e.g., Câmara & Murta, 2003; Eterovick & Sazima, 2004, Rodrigues et al., 2005). A estrada margeia os limites ocidentais do Parque Nacional da Serra do Cipó e atravessa toda a porção ocidental da APA Morro da Pedreira (FIGURA 1). O levantamento e georreferenciamento de dados de pesquisa da Serra do Cipó (Madeira et al., 2008) mostram que das coletas listadas por 513 publicações, com pontos que puderam ser georreferenciados, 75% foram realizadas nas proximidades de estradas, principalmente a MG-010, que cruza o cerrado e os campos rupestres a oeste, o que resulta em grande lacuna na vertente oriental, e apenas 17% dos pontos no interior do Parque Nacional. Tais formações na faixa nebular e as matas montanas na Serra do Cipó permanecem bastante desconhecidas pela comunidade científica, lacuna alarmante considerando o grau de devastação das vertentes orientais em função da exploração mineral e carvão. É compreensível que em país das dimensões do Brasil persistam lacunas imensas no conhecimento, mas é inaceitável que décadas de exploração mineral pela Cia Vale do Rio Doce, As vertentes orientais da Serra do Cipó, estendendo-se em grande parte até Diamantina, sempre foram incluídas no Bioma Cerrado (SEA, 1980, SOS Mata Atlântica, 1990, SOS Mata Atlântica/ISA/INPE, 1998, SOS Mata Atlântica/INPE, 2002, IBGE 1988, 1993, Scolforo & Carvalho, 2006). De acordo com os mapas acima referidos, a cobertura por floresta atlântica deveria começar aproximadamente no ponto de inflexão entre o fim das ver- Na Serra do Espinhaço, e especificamente na Serra do Cipó, é bem claro que formações florestais, arbustivas e campestres são favorecidas pela umidade proveniente do atlântico, a leste. O padrão torna-se um pouco mais complexo em função da influência edáfica, resultando por vezes no desenvolvimento de campos a leste, mesmo onde há maior umidade, e de florestas estacionais a oeste, associadas a latossolos. Contribui para o mosaico a elevada degradação das formações florestais. Artigos Técnico-Científicos 43 Natureza & Conservação - vol. 7 - nº1 - Abril 2009 - pp. 30-49 Kátia Torres Ribeiro - Jaqueline Serafim do Nascimento - João Augusto Madeira - Leonardo Cotta Ribeiro tentes montanhosas e as porções mais planas deste território. Mas esta suposta linha não tem qualquer correspondência com uma eventual mudança na geologia, na tipologia dos solos, no clima ou qualquer outro parâmetro objetivo. Não há tampouco descontinuidade vegetacional a leste ou a oeste desta linha delimitadora que a justifique. proposta, que se pauta na linha de cumeada da serra, levaria a um acréscimo de 41.722 ha na área considerada como Mata Atlântica na APA Morro da Pedreira e 8.067 ha no interior do Parque Nacional da Serra do Cipó. Aumenta-se a área do bioma Mata Atlântica dos municípios de Itabira, Itambé do Mato Dentro e Morro do Pilar e dois municípios antes não incluídos no Bioma – Nova União e Taquaraçu de Minas – passariam a ter extensa representatividade deste em seus territórios. O exercício feito para toda a vertente leste da Serra do Espinhaço meridional, desde a Serra do Cipó até o paralelo 18oS, à altura de Diamantina, com base na nebulosidade e divisores de bacias, aponta um incremento de ca. 100.000 hectares ao bioma Mata Atlântica (TABELA 1) nesta região. Aferições em campo, detalhadas, com informações sobre espécies indicadoras e solos em toda esta extensão podem levar a ajustes mais finos na área até Diamantina. O presente estudo mostra que o uso do palmito-juçara e da palmeira indaiá como indicadores de Mata Atlântica mostrase uma opção efetiva de balizamento, porém mais conservadora do que o uso da embaúbabranca, que ocorre de forma também abundante nas áreas mais transicionais. Na presente proposta consideramos as áreas vastamente ocupadas pela embaúba-branca como parte do domínio da Mata Atlântica em função, inclusive, da total continuidade com áreas nele já oficialmente incluídas. Na região da Serra do Cipó, a fronteira entre o Cerrado e a Mata Atlântica pode ser, em alguns trechos, bastante abrupta, e coincide em geral com o divisor de águas entre as bacias dos rios Doce e das Velhas, como reconhecem de modo trivial os moradores dos diversos vales, por exemplo, ao mostrar saudades de frutos que existem em apenas uma das vertentes (K.T. Ribeiro, obs. pess.). Nas cumeeiras das vertentes orientais, mesmo nas partes mais altas da serra, vêem-se esparsos indivíduos remanescentes de palmito-juçara (Euterpe edulis) junto aos pequenos córregos, inteiramente ausentes do lado ocidental (capões florestais a oeste inventariados por Meguro et al., 1996), atestando a mudança drástica nas condições ambientais. Nas encostas orientais não são encontradas quaisquer das espécies mais características do Cerrado, como pequi (Caryocar brasiliense) ou cagaiteira (Eugenia dysentherica), abundantes a oeste. Já nos locais com planaltos mais extensos, as descontinuidades verificadas já não se dão na forma de transição abrupta e visível entre Cerrado e Mata Atlântica. Na ampla faixa de Campos Rupestres, constituídos por um conjunto de fisionomias que variam de campos graminóides a feições arbustivas, com pontuações de capões de mata, fisionomias estas determinadas por fatores predominantemente edáficos e muito afetadas por incêndios há mais de 200 anos (Warming, 1973; Silva, 1997; Ribeiro, 2007), tem-se uma gradação florística de leste para oeste ainda não documentada de forma sistemática – por exemplo, arbustos de Myrsine spp. a leste e de Sthryphnodendrum adstringens a oeste, pontuando os campos abertos (K.T.Ribeiro, obs. pess.). O Decreto No 750 de 1993, conhecido como Decreto da Mata Atlântica, trouxe indiscutíveis avanços em termos de conservação do bioma ao reduzir amplamente as possibilidades de uso direto, remoção da floresta e das formações sucessionais. Levantamentos subseqüentes dos remanescentes florestais, realizados a cada cinco anos, que utilizaram tecnologia progressivamente melhor, permitiram detalhar o mapeamento e o reconhecimento de remanescentes (SOS Mata Atlântica/ INPE: 1991 – 1:250.000; 1995 – 1:50.000), mas manteve-se sempre a delimitação originalmente proposta entre os biomas, delineada em escala de 1:1.000.000 (Hirota, 2005). Nesta escala, uma linha já representa A nova delimitação da Mata Atlântica aqui Artigos Técnico-Científicos 44 Natureza & Conservação - vol. 7 - nº1 - Abril 2009 - pp. 30-49 Aferição dos limites da Mata Atlântica na Serra do Cipó, MG, Brasil, visando maior compreensão e proteção de um mosaico vegetacional fortemente ameaçado grande imprecisão, e ampliações de cartas deveriam idealmente ser acompanhadas por estudos e amostragens em campo, ou pelo menos, interpretadas com parcimônia. Na ação cotidiana em campo, para a aplicação da lei, estas linhas, corretas ou não, acabam se consagrando. deira e para extração de óleo. Dada a intensidade da exploração e os incêndios freqüentes, é muito provável que esta seja uma formação não-climácica, e que na ausência de distúrbios uma formação florestal mais diversa a suceda. O esquecimento de que esta região era recoberta por mata atlântica pode ser entendido pelo que Jared Diamond (2005) chamou de ‘amnésia de paisagem’, para denominar a acomodação com a degradação e com a modificação contínua dos locais que habitamos. Como visto nos relatos dos naturalistas do século XIX, o capim-gordura ou meloso (Mellinis minutiflora), de origem africana, foi um problema grave na região, porque ocupava as áreas de lavoura e os sitiantes não dispunham de ferramentas para combatê-lo. Por outro lado, ainda havia muita mata a derrubar e terra a ocupar com gado - o que era condição para se pleitear sua posse - alimentando-se assim o desmatamento. Atualmente, no início do século XXI, o capim-gordura já é visto como espécie nativa por toda a população rural e novos processos de invasão biológica extremamente agressivos estão ocorrendo. Os campos nativos antropizados estão sendo ocupados por capim-braquiária (Urochloa spp.) e outras forrageiras de origem africana. Esse processo é alimentado pelo imenso êxodo rural que leva à substituição da agricultura pela pecuária, de baixo rendimento, mas menos trabalhosa que a lavoura. Do ponto de vista conservacionista, a delimitação atual entre os biomas já representa um ganho imenso em contraste a situação anterior (Pinto et al., 1996), uma vez que inclui as florestas estacionais, as florestas mistas de araucária e diversos ambientes ‘marginais’ da Mata Atlântica (sensu Scarano, 2002), como os costões rochosos, vegetação de restingas e campos de altitude. Mas na Serra do Cipó esta imprecisão na delimitação resulta em omissão e falta de instrumentos adequados para se lidar com o intenso processo de desmatamento de matas montanas e matas de neblina ainda não inventariadas, de diversidade sequer estimada (Madeira et al., 2008), vizinha aos ricos campos rupestres do Parque Nacional da Serra do Cipó. As limitações existentes na interpretação de imagens de satélite sem a verificação detalhada das verdades de campo e as dificuldades impostas pelas escalas de trabalho, e que se justificam muitas pela falta de recursos e dimensão do território, devem ser explicitadas ao se publicarem mapas de vegetação, para que o leitor tenha noção do grau de incerteza envolvido no mapeamento. Neste ponto, surge a questão de como foram classificadas e de como tratar as áreas recobertas pela candeia (Eremanthus spp. ). As candeias são plantas heliófitas, pioneiras, que tendem a crescer em formações densas nas áreas desmatadas, principalmente em regiões de solos com pouca umidade e menor fertilidade (Perez et al., 2004). Nas imagens de satélite, a textura dos candeais se assemelha à encontrada para fisionomias de Cerrado, tendo sido classificadas no mapeamento de Scolforo & Carvalho (2006) em grande parte como campos (FIGURA 4). Os candeais ocupam quase toda a encosta oriental da Serra do Cipó, e são intensamente explorados para fornecimento de ma- Artigos Técnico-Científicos Campos rupestres ou campos de altitude? Um fator que dificulta discussão sobre a inclusão da vertente leste da Serra do Cipó no bioma Mata Atlântica é o entendimento, com respaldo na legislação, de que os Campos Rupestres estão inseridos no Cerrado e os Campos de Altitude na Mata Atlântica, estes associados a topos de morro e temperaturas baixas. Neste caso, teríamos na Serra do Cipó uma situação peculiar, que não pode ser entendida por estes conceitos – na bacia do Rio Doce teríamos campos de altitude que, virando a linha divisória, se transformariam em campos rupestres. Outro exemplo de que as 45 Natureza & Conservação - vol. 7 - nº1 - Abril 2009 - pp. 30-49 Kátia Torres Ribeiro - Jaqueline Serafim do Nascimento - João Augusto Madeira - Leonardo Cotta Ribeiro categorias e suas definições são tantas vezes insuficientes para abarcar as situações reais. A terminologia proposta por Semir (1991) auxilia a tarefa de classificação - propõe que os campos rupestres sejam chamados de ‘complexos vegetacionais sobre quartzito’, vegetação sob forte influência edáfica, composta pelas mais diversas fitofisionomias – campos graminóides, vegetação arbustiva, capões de mata; cuja fisionomia varia de acordo com a qualidade e profundidade do solo, a disposição das rochas, padrões de drenagem, clima e intrusões de rochas distintas, que favorecem o desenvolvimento de encraves de cerrado ou de mata. A influência do clima sobre esta vegetação e sobre a distinção das fitofisionomias é secundária em relação aos efeitos edáficos, mas também pode ser mensurada e refletida na composição florística. ção específica da mata atlântica em toda a borda leste. Existe ainda uma especificidade na região – o decreto de criação da APA Morro da Pedreira, de 1990, estabelece que os campos rupestres sejam considerados como Zona de Vida Silvestre, não sendo permitidas construções a não ser com caráter de proteção. Para o manejo das unidades de conservação tornou-se fundamental também, portanto, a delimitação dos campos rupestres, e em consulta à comunidade científica referendou-se o limite tendo como referência a cota de 900 m de altitude a oeste e de 1200 m a leste (ICMBio, 2007). Com base nestes limites, tem-se que apenas 12,5% da área de 130 mil hectares das duas unidades de conservação corresponderiam a fisionomias de Cerrado propriamente. Apesar de toda a preocupação, justificada, com a Mata Atlântica, percebe-se, mais uma vez, que a proteção do Cerrado é negligenciada, e mesmo sem se ter consciência, a Mata Atlântica foi favorecida na delimitação das unidades de conservação no mosaico vegetacional da Serra do Cipó. Por fim, têm-se já fortes evidências de que os campos rupestres devem ser vistos como uma vegetação bem individualizada tanto pela fisionomia como pelas características florísticas de elevada riqueza de espécies e, principalmente de elevada especificidade e endemismo, mas que incorpora influências múltiplas, sendo transição entre Cerrado e Mata Atlântica e afetada por forte variação altitudinal, que lhe confere por vezes características de vegetação tropical e também traços de vegetação com características temperadas. Tamanha variação climática, aliada à diversidade topográfica e edáfica, pode explicar em parte a destacada riqueza dos campos rupestres, sem considerar os mecanismos evolutivos subjacentes à forte especiação simpátrica, ainda pouco compreendidos. Agradecimentos: Este trabalho é parte dos estudos para elaboração dos planos de manejo do Parque Nacional da Serra do Cipó e da Área de Proteção Ambiental Morro da Pedreira, conduzidos pelo ICMBio/IBAMA em parceria com Conservação Internacional do Brasil, Instituto Guaicuy / SOS Rio das Velhas (Projeto Manuelzão) e Fundação O Boticário de Proteção à Natureza (projeto no 0624 20042). As discussões com Carlos Schaefer, Mauro Ribeiro, Marcos Rodrigues e Paulo T. Sano em muito enriqueceram a compreensão do sistema estudado, e as contribuições de três revisores anônimos foram importantes para maior clareza do trabalho. Mesmo nesta gradação é possível uma delimitação mais precisa entre Mata Atlântica e Cerrado, como a aqui proposta. Tal aumento de precisão pode e deve resultar em ações mais adequadas para cada um dos biomas que compõem a Serra do Cipó, sejam de fiscalização e adequação da legislação, sejam de estímulo de práticas sustentáveis considerando as especificidades biológicas e culturais. No plano de manejo das duas unidades de conservação, propõe-se a aplicação da legisla- Artigos Técnico-Científicos 46 Natureza & Conservação - vol. 7 - nº1 - Abril 2009 - pp. 30-49 Aferição dos limites da Mata Atlântica na Serra do Cipó, MG, Brasil, visando maior compreensão e proteção de um mosaico vegetacional fortemente ameaçado vas.[or. fr. 1903]. In: Mauss, M. Ensaios de Sociologia. Perspectiva. São Paulo. REFERÊNCIAS Almeida-Abreu, P.A. 1995. O Supergrupo Espinhaço na Serra do Espinhaço Meridional (Minas Gerais): O rifte, a bacia e o orógeno. Geonomos 3 (1): 1-18. Eterovick, P.C., Sazima, I. 2004. Anfíbios da Serra do Cipó Minas Gerais, Brasil. Editora PUCMinas, Belo Horizonte. Ayensu, E.S. 1973. 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