Luciana Gott - Universidade Católica de Brasília

Transcrição

Luciana Gott - Universidade Católica de Brasília
UNIVERSIDADE
CATÓLICA DE
BRASÍLIA
PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO
PROJETO DE PESQUISA DO TRABALHO
DE CONCLUSÃO DE CURSO
Direito
“A UTILIZAÇÃO TERAPÊUTICA DAS CÉLULAS-TRONCO, SOB AS PERSPECTIVAS
ÉTICAS E JURÍDICAS”
Autora: Luciana Gott
Orientador: Professor M. Sc Nilton Rodrigues da Paixão
BRASÍLIA
2008
LUCIANA GOTT
A UTILIZAÇÃO TERAPÊUTICA DE CÉLULAS-TRONCO,
SOB AS PERSPECTIVAS ÉTICAS E JURÍDICAS.
Monografia apresentada à Banca
Examinadora da Universidade Católica
de Brasília – UCB, como exigência
parcial para a obtenção do grau de
Bacharel em Direito.
Orientador: Professor M. Sc. Nilton
Rodrigues da Paixão Júnior.
Brasília
2008
LUCIANA GOTT
A UTILIZAÇÃO TERAPÊUTICA DE CÉLULAS-TRONCO,
SOB AS PERSPECTIVAS ÉTICAS E JURÍDICAS
Monografia
apresentada
à
Banca
Examinadora da Universidade Católica de
Brasília – UCB, como exigência parcial para
a obtenção do grau de Bacharel em Direito,
sob a orientação do Professor M. Sc. Nilton
Rodrigues da Paixão Júnior.
Aprovada pelos membros da Banca Examinadora em ____/ ____/
____, com menção ____
(____________________________________________).
Banca Examinadora:
___________________________________________________
Presidente: Professor M. Sc. Nilton Rodrigues da Paixão Júnior.
Universidade Católica de Brasília
___________________________________________________
Integrante: Professor
Universidade Católica de Brasília
___________________________________________________
Integrante: Professor
Universidade Católica de Brasília
Dedico este trabalho a cada um dos que
acreditaram neste projeto, envolvendo-se com
ele de maneira única. Ao meu pai Robinson
Gott, por seu empenho, dedicação e amor. À
minha irmã Luciene, minha sobrinha Ingrid,
minha cunhada Elmi. Ao Tiago, meu futuro
esposo, pelo cuidado e auxílio constantes, por
sempre me aguardar depois das aulas para me
“devolver” em casa com segurança.
Agradeço a Deus pela realização deste curso,
pois sem Ele a vida é impossível e improvável.
A Deus seja todo louvor. Agradeço ao meu pai
pelo incentivo constante.
Aos meus familiares (Luciene, Luiz e Rômulo)
pela força e credibilidade.
Aos amores eternos Ingrid e Nícolas.
Agradeço a Elmi, pelo inconfundível ‘abraço’ e
acolhimento.
E ao meu amado Tiago, por dividir tudo comigo:
alegrias, tristezas, derrotas e vitórias.
A ciência não apenas resolve, mas cria novos problemas que necessitam
de um posicionamento ético, pois nem tudo o que é possível é justificável.
Prof. Dr. Draiton G. de Souza (PUC-RS)
Prof. Dr. Bernardo Erdtmann (UFRGS)
RESUMO
GOTT, Luciana. A utilização terapêutica de células-tronco, sob as
perspectivas éticas e jurídicas. 2008. N de folhas: 69f. Tipo de documento
– trabalho de conclusão de curso – (graduação) – Faculdade de Direito,
Universidade Católica de Brasília, Águas Claras, 2008.
Pesquisa sobre a utilização terapêutica de células-tronco com enfoque nas
perspectivas éticas e jurídicas desta prática biotecnológica. Análise do voto
proferido pelo Ministro Relator da Adin 3510/2005 (Ministro Carlos Ayres
de Britto), ajuizada pelo Procurador-Geral da República, na qual pleiteia a
inconstitucionalidade da Lei de Biossegurança, que normatizou e autorizou
a utilização de células-tronco embrionárias, fecundadas in vitro, desde que
acondicionadas há mais de três anos. Abordagem ética e científica das
possíveis conseqüências da utilização de células-tronco embrionárias com
fins terapêuticos. Análise do conteúdo jurídico da Ação Direta de
Inconstitucionalidade, com o qual se questiona a inconstitucionalidade do
art. 5º da citada Lei de Biossegurança em detrimento da infringência do
Princípio da Dignidade Humana e do direito à vida. Apanhado jurídico e
biológico acerca do início da vida, com a apresentação de vertentes
diferenciadas tendo em vista a falta de consenso na determinação da fase
inicial da vida. Quanto à metodologia, a abordagem se deu conforme o
método dedutivo, o procedimento adotado foi o monográfico e, quanto às
técnicas, adotou-se a pesquisa bibliográfica e documental, em fontes
primárias e secundárias.
Palavras-Chave: células-tronco embrionárias, utilização terapêutica de
células-tronco, bioética, Lei de Biossegurança, dignidade da pessoa
humana, direto à vida.
LISTA DE ABREVIATURAS
Biol. - Biologia
Embr. - Embriologia
Gr. - grego
Histol. - Histologia
Med. - Medicina
LISTA DE SIGLAS
ADIN – Ação Direta de Inconstitucionalidade
CTNBio – Comissão Técnica Nacional de Biossegurança
ESchG – Embryonenschutzgesetz Gesetz – Ato pela Proteção dos Embriões
(Alemanha)
GIFT – Gametha Intra Fallopian Transfer – Transferência intratubária de gametas
OGM – Organismo Geneticamente Modificado
PNB – Política Nacional de Biossegurança
UFRJ – Universidade Federal de Rio de Janeiro
UNIFESP/EPM – Universidade Federal de São Paulo
ZIFT – Zibot Intra Fallopian Transfer – Transferência intratubária de zigotos.
SUMÁRIO
RESUMO..................................................................................................... 7
LISTA DE ABREVIATURAS....................................................................... 8
LISTA DE SIGLAS...................................................................................... 9
SUMÁRIO ................................................................................................. 10
INTRODUÇÃO .......................................................................................... 11
CAPÍTULO 1 ............................................................................................. 15
Células-Tronco ........................................................................................ 15
Conceito ............................................................................................ 15
Células-tronco embrionárias........................................................... 16
Células-tronco adultas..................................................................... 21
Células-Tronco do cordão umbilical .............................................. 23
Células-Tronco Mesenquimais........................................................ 24
Indiferenciação e diferenciação das células-tronco ..................... 25
A longevidade das células-tronco .................................................. 27
CAPÍTULO 2 ............................................................................................. 29
A FERTILIZAÇÃO IN VITRO E OS EMBRIÕES EXCEDENTES ............. 29
Perspectiva geral acerca das técnicas de reprodução humana
assistida............................................................................................ 29
A fertilização in vitro ........................................................................ 31
A polêmica dos embriões excedentes oriundos da fertilização in
vitro e a dificuldade de se determinar o início da vida ................. 32
CAPÍTULO 3 ............................................................................................. 41
ASPECTOS ÉTICOS E JURÍDICOS ACERCA DA UTILIZAÇÃO
TERAPÊUTICA DAS CÉLULAS-TRONCO.............................................. 41
Adi nº 3510/2005 ............................................................................... 41
O voto do Ministro Carlos Ayres de Britto – Um breve histórico. 46
A Lei de Biossegurança e a utilização de células-tronco no Brasil
........................................................................................................... 52
A eticidade da utilização terapêutica de células-tronco
embrionárias..................................................................................... 55
A Constituição da República e o Princípio da Dignidade Humana
em face da utilização terapêutica de células-tronco embrionárias
........................................................................................................... 58
CONCLUSÃO ........................................................................................... 63
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA.............................................................. 67
11
INTRODUÇÃO
Em 24 de março de 2005, o Brasil deu um passo largo em
direção à regulamentação das questões relativas à pesquisa sobre
organismos geneticamente modificados, os OGM’s, com a promulgação da
Lei nº 11.105/2005, nomeada Lei de Biossegurança. Essa lei tem como
foco estabelecer normas de segurança e fiscalização de atividades que
envolvam OGM’s, com a observância do que preconiza a Carta Magna. 1 .
Embora o Brasil tenha se manifestado há pouco tempo
acerca da engenharia genética, as pesquisas sobre o assunto vêm se
desenvolvendo já há certo tempo e causa polêmica.
A Lei de Biossegurança foi editada no Brasil com o
escopo de conceder ao país a oportunidade de acompanhar os avanços
tecnológicos, a fim de tentar melhorar, preliminarmente, a qualidade de
vida tanto dos já nascidos (terapia genética) quanto para os que ainda irão
nascer (terapia preventiva).
Para Thomas Hobbes “(...) a lei só foi trazida ao mundo
(...) de tal maneira que os indivíduos não possam causar danos aos outros,
mas para sim, se ajudarem (...)” 2 . Logo, pode-se concluir que a Lei de
Biossegurança teve, além de outros, o propósito de preservar o patrimônio
genético brasileiro 3 .
O artigo 5º da referida lei prevê a utilização de célulastronco embrionárias, fecundadas in vitro, acondicionadas há mais de três
anos ou que sejam inviáveis para fins de reprodução. Essas células podem
ser doadas para pesquisa e/ou utilização terapêutica, com o consentimento
dos genitores.
A técnica de fertilização in vitro, cujo objetivo é reproduzir
em laboratório as condições necessárias para que ocorra a fecundação e
as primeiras etapas do desenvolvimento humano embrionário fora do
1
Capítulo IV – Do meio Ambiente, Art. 225, CR/88.
MORRIS, Clarence (org.) Os grandes filósofos do Direito.São Paulo: Martins Fontes, 2002.
3
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro.8.ed. - São Paulo:
Saraiva, 2007.
2
12
útero, é um recurso de reprodução humana assistida responsável pela
sobressalência de embriões congelados atualmente, tanto no Brasil como
em outros países. Daí se desencadeia grandes questões, como o que
fazer com esses embriões, como utilizá-los, quais as formas mais eficazes
de conservá-los etc.
O homem científico tem à sua disposição, por intermédio
dessa tecnologia de reprodução humana assistida, o embrião em um
ambiente externo, sujeitando-o a uma série de experimentos e apreciações
que ultrapassam o simples desejo de descendência, inclusive usando-o de
forma indiscriminada e em desfavor da dignidade da vida humana. É por
isso que, ao se utilizar embriões para fins terapêuticos, deve-se buscar
uma ascensão ética, distanciada dessa visão mecanicista e mercadológica
da vida.
Como assevera Fiorillo, “a proteção à vida humana deve
ser observada em decorrência do parâmetro jurídico definido na Lei nº
9.434/97”, ou seja, a vida humana recebeu tanto a merecida proteção
constitucional quanto a infraconstitucional.
Inclusive, a citada Lei de Biossegurança, faz menção à Lei
nº 9.434/97 no tocante ao descarte indevido de embriões sobressalentes e
OGM’s.
Com a promulgação da Lei de Biossegurança, o então
Procurador-Geral da República, Cláudio Fontelles, ajuizou ação direta de
inconstitucionalidade (prevista formalmente na Constituição de 1988), para
efetuar o controle, por via de ação, do art. 5º da referida legislação. A ADI
nº 3510 foi ajuizada no ano de 2005 e ainda não houve decisão transitada
em julgado.
Com a regulação da prática de pesquisa e utilização
terapêutica de embriões no Brasil surgiram várias indagações da
comunidade científica, da Igreja e diferentes posicionamentos acerca do
início da vida, abordagens que certamente invadem o domínio da ética.
Para alguns, o embrião pode ser considerado como um amontoado de
células muito menos complexo que uma mosca. Porém nos 23
cromossomos paternos e 23 cromossomos maternos estão os 30 (trinta)
13
mil genes que determinarão os traços, a cor dos olhos, da pele, do cabelo,
além de já estarem presentes as características de qualquer doença que a
pessoa humana em potencial possa vir a ter na sua vida adulta.
Não cabe dizer neste momento, onde e como a vida
começa e para que ela começa. Observa-se somente que é com embriões
que se dá início ao processo da vida humana.
O confronto entre ciência, poder e direito cria uma tensão
dialética que se estabelece entre o direito à livre atuação científica e a
defesa de tantos outros direitos, como à saúde, a qual, inclusive, é uma
das garantias constitucionais previstas na Magna Carta. Norberto Bobbio 4
já havia alertado acerca dessa tensão, ao assinalar sobre os “efeitos cada
vez mais traumáticos da pesquisa biológica que permitirá manipulações do
patrimônio genético de cada indivíduo”.
Ele também previu o surgimento de novos direitos
(reprodutivos e genéticos), os quais comporiam uma geração de direitos,
em que, particularmente, o que está em jogo é a proteção da pessoa em
potencial, ainda que de forma rudimentar e frágil do embrião 5 .
Como fica a concessão de direitos subjetivos, se é o
direito que concede personalidade jurídica ao indivíduo e se os requisitos
para tal aquisição no ordenamento vigente não estão preenchidos pelo
embrião fecundado in vitro? Se ocorrer de o embrião ser dotado de
personalidade jurídica, estar-se-ia reconhecendo um direito inexeqüível?
Esses são alguns dos questionamentos jurídicos que a comunidade
científica tenta responder.
Coube ao Poder Judiciário a tarefa de delimitar o início da
vida, a fim de que seja atendida a vontade legis, em detrimento do princípio
da proteção da norma. Porém, dessa tarefa, o Estado se esquivou. Por
meio do voto do Ministro Relator da Adi nº 3510/2005 a manifestação é de
que o embrião fecundado in vitro “não é vida por estar fora do útero
materno”. Ressaltou ainda, que não se deve confundir fertilização com
4
5
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 1992, p. 6.
Idem nota 4.
14
concepção, sendo que esta última demonstra a existência de um ser
humano 6 .
A Carta Maior não faz menção a nenhuma forma de vida
extra uterina e conforme Carlos Ayres de Britto, “o teor dos direitos e
garantias fundamentais não se reportam a seres em tubos ou plaquetas de
laboratório”. Em detrimento do que há na Constituição, é juridicamente
impossível nivelar o embrião como um ser humano já nascido e dotado de
personalidade jurídica dada a ausência de proteção legal explícita à vida
antes da concepção, como fez o Pacto de San José da Costa Rica, em seu
artigo 4º 7 .
Como era de se esperar, tanto a Igreja quanto a
comunidade
ética
posicionaram-se
desfavoravelmente
à
utilização
terapêutica de células-tronco embrionárias, por considerarem o embrião
como entidade viva, evocando a infringência do princípio da dignidade
humana e o da inviolabilidade do direito à vida humana, posições essas
claramente firmadas na audiência pública realizada no dia 05 de março de
2008 8 .
Para Alexy 9 , “tanto as regras como os princípios também
são normas, portanto, ambos se formulam com a ajuda de expressões
deônticas 10 fundamentais, como mandamento, permissão e proibição”.
A atitude do Príncipe ao se posicionar acerca de um tema
controverso como o exposto nunca será totalmente benéfica ou maléfica,
mas certamente alcançará a todos, indistintamente, seja para definir,
utilizar, acondicionar, congelar, descongelar, pesquisar, destruir ou
descartar embriões fertilizados in vitro e congelados além do lapso
temporal que a lei estabelece.
6
Voto do Ministro Carlos Ayres de Britto, proferido em audiência pública realizada em 05 de
março de 2008.
7
MAZZOULI, Valério de Oliveira (org). Constituição Federal: Coletânea de Direito
Internacional. 5.ed. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p.947.
8
Posicionamento da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e da entidade
Movimento em Prol da Vida (MOVITAE).
9
Theorie der Grundrechte, p.72 apud BONAVIDES, 2004, p.277.
15
CAPÍTULO 1
Células-Tronco
Conceito
Células-tronco,
segundo
a
definição
científica,
são
aquelas que têm o potencial de se transformar em diferentes tecidos do
corpo humano
11
. Enquanto se vive, elas servem como um reparo
automático do corpo, sem limite do abastecimento de outras células.
Quando uma célula-tronco se divide, tanto pode permanecer com as
mesmas características, quanto poderá se tornar um outro tipo de célula
com uma função mais especializada, como v.g., uma célula muscular, um
glóbulo vermelho sangüíneo ou, ainda, uma célula cerebral 12 .
A medicina tem desenvolvido inúmeras pesquisas, com
objetivo de ajudar pessoas que sofrem de doenças graves, enfermidades
auto-imunes, disfunções neurológicas, distúrbios hepáticos e renais,
osteoporose e traumas na medula espinhal. Essas pesquisas são
elaboradas e desenvolvidas com a utilização das denominadas célulastronco ou stem cells. Stem, em inglês, significa caule, haste; o verbo to
stem por sua vez significa Todo ser humano carrega consigo uma
quantidade de células-tronco, tidas como não-regenerativas, até as
pesquisas com as células-tronco embrionárias revelarem a possibilidade
regenerativa dos neurônios.
No restante do corpo é possível encontrar outros tipos de
células-tronco, que já são adultas, porém não desenvolvidas, ou seja, elas
mantêm o bom funcionamento dos órgãos, como ocorre no paladar: passase a vida inteira sentindo o gosto de tudo o que se come e desde o
10
Relativo a princípios filosóficos e morais.
Revista Época nº 475 de 25/06/2007. p.95.
12
Disponível em: <http://stemcells.nih.gov/info/basics/defaultpage.asp>. Acesso em: 27 set. 2007.
Tradução livre da autora.
11
16
primeiro contato com o alimento, é possível identificar o amargo, o doce, o
salgado ou o azedo.
Há basicamente dois tipos de células-tronco: as adultas e
as embrionárias, oriundas dos embriões.
As células-tronco adultas são mais especializadas (ou
diferenciadas) que as embrionárias e dão origem a tipos específicos de
células. São chamadas também de células multipotentes. Algumas
pesquisas sugerem que as células-tronco adultas podem se transformar
em tipos mais variados de células do que se supunha anteriormente 13 .
As células-tronco são classificadas como: (i)Totipotentes
ou embrionárias – são as que conseguem se diferenciar em todos os 216
tecidos bem como em anexos embrionários 14 que formam o corpo
humano; (ii) Pluripotentes ou multipotentes – são as que conseguem se
diferenciar em quase todos os tecidos humanos, exceto placenta e anexos
embrionários; (iii) Oligopotentes – as que conseguem diferenciarem-se em
poucos tecidos; e (iv) Unipotentes – as que se diferenciam em um único
tecido 15 .
Células-tronco embrionárias
As células-tronco embrionárias, como o próprio nome
sugere, são provenientes de embriões.
As primeiras clivagens (divisões) de ovos oligolécitos 16 e
heterolécitos 17 formam aglomerados compactos, com algumas dezenas de
13
LOTTENBERG, Cláudio L.; MOREIRA-FILHO, Carlos A. Aplicações terapêuticas das
células-tronco:
perspecitvas
e
desafios.
Disponível
em:
<http://
www.comciencia.br/reportagens/celulas/14/shtml,>. Acesso em: 19 fev. 2008.
14
Cordão umbilical.
15
RAMOS, Luiz de Carvalho. Células-tronco e a lei de Biossegurança. Disponível em:
<http://www.direitonet.com.br/artigos/x/20/95/2095/>. Acesso em: 19 fev. 2008.
16
Ovos com pequena quantidade de vitelo, distribuídos uniformemente pelo citoplasma. Também
chamados isolécitos. Encontrados em mamíferos placentários, que possuem desenvolvimento
embrionário longo e cujos embriões são nutridos pela mãe, por intermédio da placenta. Disponível
em
< http://www.biomania.com.br/bio/conteudo.asp?cod=1212>. Acesso em 06 de maio de 2008.
17
Ovos que possuem média quantidade de vitelo, podendo ser conhecidos por mediolécitos. O
vitelo distribui-se irregularmente, concentrando-se em um dos pólos.
17
células. Esse estágio do desenvolvimento é conhecido como mórula (do
latim morula, amora), pelo fato de o embrião apresentar forma semelhante
à de uma amora microscópica. Em determinado momento, no interior do
aglomerado celular começa a surgir uma cavidade cheia de líquido, a
blastocela. Nessa fase, o embrião deixa de ser chamado de mórula e
passa a ser chamado de blástula.
A etapa seguinte do desenvolvimento embrionário é a
transformação da blástula em gástrula, fase em que se define o plano
corporal do futuro indivíduo/animal. As células que darão origem aos
músculos e aos órgãos internos migram para o interior do embrião,
enquanto as células que originarão a pele e o sistema nervoso ficam na
superfície.
A migração de células para o interior do embrião faz com
que a blastocela desapareça, surgindo uma nova cavidade, denominada
glastrocela (do grego gastros, estômago, e cela, cavidade).
O plano de organização corporal dos animais/indivíduos
esboça-se no estágio da gástrula. Até essa fase do desenvolvimento, as
células do embrião são muito semelhantes entre si e têm capacidade de se
diferenciar em qualquer tipo celular, sendo por isso denominadas células
totipotentes.
No estágio da gástrula, as células totipotentes da blástula
iniciam a diferenciação em conjuntos celulares denominados folhetos
germinativos, assim chamados por serem lâminas de células e por
gerarem futuramente, todos os tecidos do corpo
18
. Na maioria dos grupos
animais, formam-se três folhetos germinativos: ectoderma, mesoderma e
endoderma.
Ectoderma (do grego ecto, fora) é o folheto mais externo,
que reveste o embrião. Ele origina a epiderme (camada externa da pele) e
estruturas associadas a ela: pêlos, unhas, glândulas sebáceas e glândulas
sudoríparas. O Ectoderma origina também o sistema nervoso.
Endoderma (do grego endo, dentro) é o folheto mais
interno. Além de originar o revestimento interno do tubo digestório, o
18
AMABIS, José Mariano; MARTHO, Gilberto Rodrigues. Fundamentos da Biologia. 4.ed.- São
Paulo: Moderna, 2006.
18
endoderma forma as estruturas glandulares associadas à digestão:
glândulas salivares, glândulas mucosas, pâncreas, fígado e glândulas
estomacais.
Esse
folheto
também
origina
representado pelas brânquias ou pulmões
19
o
sistema
respiratório,
.
Mesoderma (do grego meso, meio) é o folheto germinativo
que se localiza entre o ectoderma e o endoderma. Ele origina músculos,
ossos, sistema cardiovascular (coração, vasos sanguíneos e sangue),
sistema urinário (rins, bexiga e vias urinárias) e sistema genital, para citar
alguns órgãos importantes.
Enquanto o sistema nervoso se forma, o mesoderma
desenvolve-se e preenche todos os espaços entre o ectoderma e o
endoderma.
O desenvolvimento embrionário se dá na seguinte
seqüência: fecundação, que é a união de óvulo feminino com
espermatozóide masculino, dando origem ao zigoto, o qual sofre a
clivagem (ou segmentação). A segmentação leva à formação de
blastômeros e, em seguida, produz a mórula, que depois se transformará
em blástula, que por sua vez se transformará em gástrula, em cujo estágio
ocorre a formação dos folhetos germinativos: endoderma, mesoderma e
ectoderma.
No desenvolvimento humano, a partir do momento em
que ocorre a fecundação, o ovo ou zigoto formado é uma célula que é
ativada e que inicia seu próprio processo de divisão celular e diferenciação.
Portanto, nesses termos, a auto-organização é um dos pressupostos
fundamentais que caracteriza a vida, que começa nesse momento em que
se é uma única célula 20 .
Especificamente essas células podem ser o produto de
um embrião humano subdesenvolvido a partir de um ovo celular extraído
de uma fertilização in vitro, e conseqüentemente doada para a pesquisa
com o explícito consentimento de seus doadores 21 .
19
Idem nota 18..
KIPPER, José Délio; MARQUES, Caio Coelho; FEIJÓ, Anamaria (Org).Ética em
pesquisa: Refelxões. 2003. p. 72.
21
Disponível em: <http://stemcells.nih.gov/info/basics/defaultpage.asp>. Acesso em: 27 set. 2007.
Tradução livre da autora
20
19
Note-se que nos Estados Unidos e em outros países, a
denominação célula-tronco embrionária tem o subentendimento de que se
trata de células exclusivamente doadas para pesquisa, manipulação
genética e utilização terapêutica, esta última é o fim que se propõe
qualquer pesquisa nesta área, além da criação de medicamentos capazes
de controlar determinadas anomalias/doenças adquiridas ao longo dos
anos.
No entanto os projetos de pesquisa nessa área nos
Estados Unidos não podem receber dinheiro público. Em compensação, as
pesquisas científicas contam com enormes investimentos da iniciativa
privada 22 .
A Dra. Alice Teixeira Ferreira, conforme disposto na Adi n°
3510/2005, ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal, pelo ProcuradorGeral da República, define células-tronco embrionárias como:
As células-tronco embrionárias são provenientes da
massa celular interna do embrião (blastocito). São
chamadas de
células-tronco embrionárias
humanas
porque provêm do embrião e porque são células-mãe do
ser humano. Para se usar estas células, que constituem a
massa interna do [sic] blastocisto, é destruído do
embrião.
23
A grande polêmica em debate, gira em torno da
destruição dos embriões. Não se pode olvidar que todo ser humano advém
de uma fecundação, a qual é um processo contínuo de desenvolvimento.
Após o encontro do gameta masculino com o feminino, tem-se um ser
humano em pleno desenvolvimento e não somente um aglomerado de
células com vida meramente celular. Não obstante tem-se que a
fecundação, cujo fim é gerar um ser humano, ocorre no útero materno, e,
portanto, em condições totalmente diferentes das de uma técnica de
reprodução humana assistida.
22
VIEIRA, Vanessa. É preciso salvar vidas. Revista Veja, nº 2050, ano 41 nº9. 15.p., 5 de março
de 2008.
23
Adi nº 3510, 5.p.
20
As
células-tronco
embrionárias
podem
ser
obtidas
também por meio do mecanismo de clonagem terapêutica, configurando
outra técnica de reprodução humana externa-corporis, em que se funde
uma célula de um paciente que precise de terapia com células-tronco de
um óvulo doador. O núcleo é removido do ovo e substituído pelo núcleo da
célula do paciente. Esse ovo é estimulado a se dividir química ou
eletricamente e o embrião resultante carrega o material genético do
paciente, técnica que reduz significativamente os riscos de que o receptor
das células-tronco rejeite as implantadas.
24
Essa técnica de transplante celular, que envolve um
doador diferenciado do receptor, é conhecida como transplante celular
alogênico. Já o transplante com células do próprio receptor é denominado
transplante autólogo. Nos casos de tratamentos de doenças tais como
leucemia, imunodeficiências e anemia aplástica, verifica-se que o
transplante autólogo alcança resultado pior do que o alogênico, devido à
insuficiência de células-tronco sadias do paciente/receptor.
As células-tronco embrionárias são classificadas como
totipotentes por possuírem potência total para diferenciarem-se ao longo
do processo da terapia, em qualquer tecido ou órgão humano. Por tal
motivo, essas células chamam mais a atenção dos cientistas, médicos e
biomédicos que procuram a cura ou tentam diminuir os sintomas de
doenças como diabetes e mal de Alzheimer, por exemplo.
Como salientam Kipper, Marques e Feijó 25 “(...) tais
células são conhecidas como células-tronco, similares ao tronco de uma
árvore que se ramifica em muitas folhas (as células)”.
Segundo a doutora Mayana Zatz, uma das maiores
especialistas em células-tronco do Brasil, “(...) as células-tronco adultas só
formam alguns tecidos, como osso, gordura e cartilagem. Com elas, não se
consegue formar células nervosas, fundamentais para tratar doenças
neuromusculares, para regenerar a medula de alguém que ficou
24
WATSON, Stephanie. Como funcionam as células-tronco. Disponível em:
<http://ciencia.hsw.uol.com.br/celulas-tronco.htm> . Tradução de HowStuffworks do Brasil. Acesso
em: 19 fev. 2008.
25
KIPPER, Délio José; MARQUES, Caio Coelho; FEIJÓ, Anamaria (Org). Ética em
pesquisa: Refelxões. 2003, p.73.
21
paraplégico ou tetraplégico ou para tratar um parente que tem Parkinson.
Se não tivermos células-tronco embrionárias para formar neurônios, todas
essas pesquisas ficarão prejudicadas (...).” 26
Os países que permitem a pesquisa e utilização
terapêutica de células-tronco, especialmente as embrionárias, delimitam
que os embriões tenham no máximo catorze dias de desenvolvimento. Os
embriões congelados que se quer são usados no Brasil têm ainda menos
tempo, entre três e cinco dias 27 .
Células-tronco adultas
A
definição
de
células-tronco
adultas,
segundo
a
professora doutora Alice Teixeira Ferreira é a seguinte:
“As
células-tronco
adultas
são
aquelas encontradas em todos os órgãos e em maior
quantidade na medula óssea (tutano do osso) e no
cordão umbilical-placenta. No tutano dos ossos tem-se a
produção de milhões de células por dia, que substituem
as que morrem diariamente no sangue.” 28
As células-tronco adultas têm sido identificadas em muitos
órgãos e tecidos humanos. Um ponto importante para se entender mais
sobre elas é saber que delas, no organismo, existe um número reduzido
em cada tecido.
Essas células permanecem em uma área específica de
cada tecido e podem permanecer sem se dividirem por muitos anos, até
que sejam ativadas por causa de uma doença ou uma danificação no
tecido, onde continuam intactas e imóveis.
26
29
Revista Veja, nº 2050, ano 41 nº 9. 14.p.
WATSON, Stephanie. Como funcionam as células-tronco. Disponível em:
<http://ciencia.hsw.uol.com.br/celulas-tronco.htm> . Tradução de HowStuffworks do Brasil. Acesso
em: 19 fev. 2008.
28
Extraído da Adi. Nº 3510, 6.p.
29
Disponível em: <http://stemcells.nih.gov/info/basics/defaultpage.asp>. Acesso em: 27 set. 2007.
Tradução livre da autora.
27
22
Uma célula-tronco adulta é uma célula indiferenciada das
demais (no tópico 1.1.5 abordou-se o que vem a ser diferenciação e
indiferenciação das células-tronco), encontrada em um tecido ou órgão do
corpo humano, geralmente no cordão umbilical, placenta, tecidos ou na
medula óssea (células-tronco mesenquimais). Essa célula é capaz de
regenerar-se, e também de produzir a maioria dos tipos de células
especializadas de algum tecido ou órgão.
A função principal de uma célula-tronco adulta em um
organismo é mantê-lo vivo e reparar o tecido no qual se encontra. Alguns
cientistas usam o termo células-tronco somáticas ao invés de célulastronco adultas.
Diferentemente
das
células
embrionárias,
que
são
definidas pela sua origem (centro das células ou dos blastócitos 30 ), a
origem das células-tronco adultas em um tecido completamente formado é
desconhecida.
Tem-se que as maiores concentrações de células-tronco
adultas no organismo humano incluem o cérebro, a medula óssea, os
vasos sangüíneos, cartilagens, pele e fígado.
Cientistas têm tentado encontrar maneiras de crio
conservar células-tronco adultas a fim de manipulá-las e gerar tipos
específicos de células que poderão ser usadas para tratar doenças e
danificações em tecidos.
A utilização de células-tronco adultas é ineficaz para tratar
portadores de doenças genéticas como distrofias 31 musculares ou
atrofias 32 espinhais. Nas doenças genéticas o problema está em todas as
células, apesar de só se expressar em tecidos específicos 33 . Nesses
casos, faz-se necessário a utilização de células-tronco embrionárias para
as chances de cura ou amenização serem maiores.
30
Embr. Célula embrionária não diferenciada.
Med. Perturbação grave na nutrição, principalmente muscular.
32
Med. Insuficiência de nutrição, que se exterioriza por desgaste ou diminuição do tamanho da
célula, tecido, órgão ou estrutura do corpo.
33
CANTANA, Luciana L. T. Oliveira; SOUZA, Vinícius R. Prioli de. Células-tronco e o direito
brasileiro. 2006. Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/x/26/44/2644.>. Acesso
em: 19 fev. 2008.
31
23
Células-Tronco do cordão umbilical
O sangue contido no cordão umbilical e na placenta é
uma fonte extraordinária de células-tronco. As características especiais
dessas células – chamadas células da esperança – têm demonstrado
expressiva vantagem em sua eficácia terapêutica no tratamento de
inúmeras doenças onco 34 -hematólogicas, para as quais estaria indicado o
transplante de medula óssea.
Estudos recentes realizados em vários países, inclusive
no Brasil, têm apontado o potencial superior dessas células em se
transformarem em células do sistema nervoso, músculo cardíaco, ossos,
pele, entre outros tecidos, comparados com o potencial das células-tronco
embrionárias. Contudo há controvérsias acerca da potencialidade das
células-tronco do cordão umbilical 35 .
O sangue do cordão umbilical é fonte de células-tronco
hematopoiéticas, de fibroblastos 36 , de células-tronco vasculares e de
células
mesenquimais,
que
podem
ser
utilizadas
pela
Medicina
Regenerativa (Medicina Translacional) para a recuperação ou, até mesmo,
para a reprodução de órgãos lesados 37 .
O que se tem a favor da utilização terapêutica das célulastronco do cordão umbilical em determinadas doenças, é que essas células
não causam rejeição no receptor, desde que sejam próprias. Outro motivo
para o armazenamento e posterior utilização dessas células é a dificuldade
de se encontrar doadores compatíveis de medula óssea. Atualmente o país
soma 2.500 indicações anuais para transplante de medula óssea, das
quais 1.500 não encontram um doador com laços de parentesco e
compatibilidade genética.
34
Do gr. Ónkos, ou volume, massa, molécula. Elemento de composição. 1= tumor, volume, massa:
oncogene, oncologia. Doenças do sangue, tais como anemias, leucemias e distúrbios que dificultam
a coagulação.
35
GARCIA-OLMO, Dámian apud Petição Inicial da Adin 3510/2005, p. 06.
36
Histol. Célula jovem, comum no tecido conjuntivo que se constitui no principal responsável pela
formação do tecido fibroso e de material intercelular amorfo (sem forma).
37
JENSEN, André. Palavra do Especialista. Fontes alternativas de células-tronco. Disponível
em: http://www.cellpreserve.com.br/especialista.php. Acesso em: 07 mar. 2008.
24
A
preocupação
da
corrente
contrária
à
utilização
terapêutica das células-tronco (tanto embrionárias, adultas e do cordão
umbilical) é de que esse material genético se configure como um
instrumento, ou seja, que poderão ser transformados para atender
propósitos meramente utilitários.
Alguns prevêem o mercado de material genético, no qual
um óvulo terá grande valor comercial. Mulheres serão estimuladas à
superovulação e, em conseqüência disto, receberão pagamento em
pecúnia por seus óvulos. Trata-se esse aspecto da coisificação do ser
humano, como entendem os ativistas contrários à terapia com célulastronco como v.g., o grupo Brasil sem aborto 38 .
Células-Tronco Mesenquimais
As
células-tronco
mesenquimais
são
células
não-
hematopoiéticas, ou seja, não sangüíneas, as quais são multipotentes e
possuem alta capacidade de se renovarem e se diferenciarem em várias
linhagens
de
mesenquimais
tecido
conjuntivo 39
compreendem
o
especificamente.
tecido
conjuntivo,
o
Os
tecidos
ósseo
e
o
cartilaginoso, os vasos sangüíneos e linfáticos 40 e o tecido muscular.
Vale explicitar que o tecido conjuntivo é o que apresenta
diversos tipos celulares, separados por grande quantidade de material
intercelular constituído por fibras e por substância fundamentalmente
amorfa.
As células que formam esses tecidos são oriundas do
mesmo folheto germinativo (grupos de células embrionárias com a mesma
competência de multiplicação e indução), ou seja, do mesoderma, que
surge na terceira semana de vida intra-uterina, durante a embriogênese.
Sabe-se que, até as duas primeiras semanas, o embrião é formado por um
disco germinativo bidérmico, ou seja, por duas camadas de populações
38
<http://www.brasilsemaborto.com.br>
A
longevidade
das
células-tronco.
Disponível
em:
<http://www.cordcell.com.br/celulas_tronco.php?id=6&titulo=longevidade%20das%20célulastronco>. Acesso em: 26 out. 2007.
39
25
celulares, o ectoderma e o endoderma; na terceira semana, surge o
mesoderma, que se dispõe entre os dois já existentes e surge devido à
migração de células do ectoderma.
Esses três folhetos são a base da formação do indivíduo,
pois eles darão origem aos diversos tecidos do organismo. O ectoderma,
por exemplo, formará o sistema nervoso central 41 e periférico 42 e a
epiderme; já o endoderma dará origem ao epitélio do trato respiratório e ao
parênquima da glândula tireóide, da paratireóide 43 , do fígado e do
pâncreas.
O mesoderma originará o tecido conjuntivo, cartilagens,
ossos, musculatura, células e vasos sangüíneos e linfáticos. Durante a
diferenciação do mesoderma são formadas células chamadas de células
mesenquimais, as quais dão origem a outras células-tronco dos tecidos
supracitados.
A principal função da célula-tronco mesenquimal contida
no estroma medular (na sustentação da medula óssea) é regenerar o
sangue, porque as células sanguíneas se renovam constantemente.
Ademais elas ajudam no reparo de lesões ocorridas no corpo,
principalmente nos tendões e alguns tipos de conectivos.
Indiferenciação e diferenciação das células-tronco
Esclarece-se que a célula-tronco indiferenciada é uma
composição de células que não têm especialidade, ou seja, elas podem ser
utilizadas para qualquer fim, em qualquer tecido ou órgão, desde que
devidamente acondicionadas e cultivadas (cordão umbilical, por exemplo).
Porém se essas células forem agrupadas juntamente a outros tipos de
células, para formar corpos embrionários, então automaticamente elas se
diferenciarão espontaneamente, tornando-se células especializadas ou
diferenciadas.
40
Referente à circulação.
Para a anatomia, sistema nervoso central é composto do cérebro e da medula espinhal
(Wikipédia).
42
Nervos cranianos
43
Glândula responsável pelo controle de fósforo e de cálcio no metabolismo.
41
26
Assim
as
células-tronco
diferenciadas,
v.g.,
as
mesenquimais, podem formar células musculares, nervosas e muitos
outros tipos de células. Esse processo é chamado de diferenciação
espontânea. Embora a diferenciação espontânea seja uma indicação de
que a cultura de células embrionárias é uma prática tida como saudável,
porém esse não é o melhor caminho para produzir células de um tipo
específico 44 .
Para crio preservar tipos específicos de células-tronco
diferenciadas – células musculares cardíacas, células sanguíneas ou
nervosas, por exemplo – cientistas tentam controlar a diferenciação nas
células-tronco embrionárias, por meio da alteração de sua composição
química, alterando a superfície denominada ectoderma, ou modificam-nas
com a utilização da técnica de inserção de genes específicos.
Em um ser vivo, as células-tronco adultas podem se
dividir ao longo de um período, sendo capazes de dar origem à células que
têm formas características únicas e estruturas especializadas e funções
particulares de um tecido determinado.
Para exemplificar o parágrafo anterior, expõem-se as
seguintes hipóteses:
‰
No tecido hematopoiético são encontradas células, as
quais originam todos os tipos de células sangüíneas, tais, a saber:
glóbulos vermelhos, linfócitos, células do sistema imunológico dentre
outras.
‰
Células do estroma medular (células mesenquimais):
são células que originam outras como as células originárias dos ossos,
as das cartilagens, as células do tecido adiposo e outros tipos de
células conectivas, inclusive as células do tendão.
‰
As
células-tronco
adultas
do
tecido
epitelial
encontradas no trato digestivo dão origem, dentre outras, às células
enteroenócrinas 45 .
44
Disponível em: <http://www.stemcells.nih.gov/info/basics/defaultpage.asp>. Acesso em: 27 set.
2007. Tradução livre da autora.
45
Relativo às glândulas intestinais. Célula com grande dimensão e com prolongamento
citoplasmático distribuído em todas as direções.
27
‰
Células-tronco neurais formam três tipos de células: os
neurônios, que são células neurais propriamente ditas e que são
passíveis de regeneração e outros dois tipos de células, situadas no
cérebro, porém não neurais - as astrócitas 46 e as oligodendrócitas 47 .
Ainda nesse sentido, as células-tronco situadas no epitélio
desenvolvem as bases para os folículos capilares. As células epidérmicas
geram colágeno, que migram para a superfície da pele e formam uma
camada protetora 48 .
A diferenciação e indiferenciação das células-tronco nada
mais são do que um processo natural que ocorre para o funcionamento
dos órgãos e regeneração das células que o compõem.
A longevidade das células-tronco
As células-tronco podem ter vida longa, dependendo das
condições de preservação.
O tempo de vida de uma célula pode variar conforme a
espécie. No ser humano, existem células que vivem apenas alguns dias, e
outras que podem acompanhar o indivíduo por toda a vida.
Quanto à longevidade das células de um modo geral, elas
podem ser classificadas em lábeis (curta duração), estáveis (duram meses
ou anos) ou permanentes (duram toda a vida).
As células lábeis são pouco diferenciadas e possuem
grande capacidade de duplicação, como, por exemplo, as hemácias. O
tempo de vida de uma hemácia é de aproximadamente 90 dias.
As células estáveis se multiplicam durante o crescimento
do organismo, um exemplo são as epiteliais.
Diferente das células lábeis e estáveis, as células
permanentes possuem grande capacidade de diferenciação e se
46
Célula com grande dimensão e com prolongamento citoplasmático distribuído em todas as
direções.
47
Célula cuja potencialidade é muito baixa.
28
multiplicam apenas na fase embrionária 49 . As células-tronco podem ser
classificadas como permanentes, não só pela capacidade de diferenciação,
mas também por permanecerem no corpo do indivíduo durante toda a vida.
Segundo a professora doutora Alice Teixeira Ferreira: “(...)
há crianças sadias que vieram de embriões congelados havia muito
tempo” 50 . Por outro lado, de acordo com algumas pesquisas, a chance de
um embrião de laboratório produzir uma gestação é de apenas 28%.
O prazo para armazenamento de embriões, de modo
geral, tem sido estipulado em cinco anos. Esse foi o prazo estipulado no
Relatório de Warnock, em 1984, no Reino Unido. Com o referido relatório
surgiu a terminologia pré-embrião na tentativa de se criar um novo termo
que não gerasse resistências e possibilitasse a utilização de células-tronco
embrionárias 51 .
Procedimentos já realizados nos Estados Unidos, utilizando embriões
congelados por sete ou oito anos, com fins de reprodução humana
assistida, comprovou o perfeito desenvolvimento dos bebês, sem qualquer
anomalia 52 .
Em 1996 houve um debate na Inglaterra sobre a obrigatoriedade de todos
os embriões ingleses serem destruídos naquele ano, o que realmente foi
efetuado. Na Espanha, no ano seguinte, estimava-se a existência de mais
de
1000
embriões
congelados,
sem
destinação
específica
e
já
acondicionados por mais de cinco anos. No mês de novembro de 1997, a
Espanha se desfez de todos eles 53 .
No Brasil, o prazo normativo que determina a inviabilidade
de uma célula-tronco embrionária é de três anos, conforme a Lei de
Biossegurança.
48
Department of Health and Human Services (DHHS).Disponível em:
<http://stemcells.nih.gov/info/basics/defaultpage.asp>. Acesso em: 27 set. 2007. Tradução livre da
autora.
49
Universidade Federal do Mato Grosso . Tempo de vida das células. Disponível em
http://www.ufmt.br/bionet/curiosidades/15.07.04/long_cel.html. Acesso em: 07 mar. 2008.
50
SEGATTO, Cristiane. O que fazer com embriões congelados?. Revista Época nº 467. p. 109.
51
GOLDIM, José Roberto. Pesquisa em embriões. Disponível em <
http://www.ufrgs.br/bioetica/embrpes.htm>. Acesso em 13 de março de 2008.
52
Kipper, Marques e Feijó organizadores, 2003, p.57.
53
Ibidem nota 52.
29
CAPÍTULO 2
A FERTILIZAÇÃO IN VITRO E OS EMBRIÕES EXCEDENTES
Perspectiva geral acerca das técnicas de reprodução humana
assistida
Antes de abordar a temática do que vem a ser reprodução
humana assistida, é importante esclarecer qual o significado da palavra
fecundação, sob a perspectiva bioética: significa e comporta o fato de
realizar um novo ser, um novo indivíduo. Quando se trata do homem, a
fecundação é sinônimo de procriação.
A reprodução humana assistida é o conjunto de
operações para unir artificialmente os gametas feminino e masculino,
dando origem a um ser humano e poderá dar-se pelos métodos ZIFT ou do
GIFT, os quais são diferentes técnicas de reprodução humana assistida e a
primeira se reporta à fertilização in vitro.
A técnica GIFT - Gametha Intra Fallopian Transfer 54 – é a
conhecida inseminação artificial intracorpórea, ou seja, é a inoculação do
sêmen na mulher, sem que haja qualquer manipulação externa do gameta
masculino.
Ao abordar o tema, há que se observar bem a distinção
entre fertilização e inseminação. Na primeira, a pré-concepção ocorre fora
do útero, de forma mecânica, enquanto que na segunda introduz-se o
material genético masculino na mulher, para que a fecundação aconteça
pelo próprio corpo.
A GIFT, previamente definida, é uma técnica de
fecundação artificial que importa na transferência simultânea, mas em
separado, dos gametas masculinos e femininos para dentro da trompa de
falópio.
54
Transferência Intratubária de Gametas
30
Ela é indicada em algumas formas de esterilidade
feminina (v.g.endometriose 55 pélvica) ou masculina (oligoastenospernia 56 )
que não sofrem agressão com a inseminação artificial, sob condição de
que a mulher tenha ao menos uma das trompas.
57
Essa fecundação pode ser homóloga, se feita com
componentes genéticos advindos do casal ou heteróloga, se com material
fertilizante de terceiro (sêmen do marido e óvulo de outra mulher; sêmen
de terceiro e óvulo da esposa; sêmen e óvulos estranhos), cujo embrião
poderá ser implantado no útero da esposa ou de terceira pessoa. É
aconselhável evitar a fertilização heteróloga pelos sérios problemas éticojurídicos que traz. Porém não vamos adentrar nesse assunto, tendo em
vista não ser o foco do presente trabalho.
A título de exemplificação do que ocorre na Inglaterra por
causa da fertilização heteróloga, filhos de pais não sabidos ou
desconhecidos vão em cadeia nacional, mostram suas características
físicas e proferem a seguinte frase: “Olá, meu nome é (...), sou filho de
inseminação artificial e gostaria de conhecer meu pai. Se você se acha
parecido comigo, por favor me procure por meio desse programa de
televisão 58 .
Tem-se com o exposto que as técnicas de reprodução
humana assistida, ao serem desenvolvidas e experimentadas, tinham
apenas o escopo de tentar auxiliar casais inférteis a realizarem o sonho da
paternidade/maternidade. Porém com o passar dos anos, e especialmente
com a fertilização in vitro, os cientistas, pesquisadores, laboratórios e
doadores de material genético se deparam com uma outra realidade: a
sobressalência de material genético fertilizado sem perspectiva de
utilização para o fim a que se propunha.
Um tipo de intervenção biomédica ou técnica de
procriação não pode ser avaliada do mesmo modo que qualquer ato
fisiológico ou técnico, como poderia ser, v.g., a diálise renal (filtragem que
55
Doença que causa dor e infertilidade que acomete mulheres em idade reprodutiva e que consiste
na presença de endométrio em locais fora do útero.
56
Insuficiência de esperma.
57
SGRECCIA, Elio. Manual da Bioética. – Edições Loyola, 1993.
31
os rins realiza de todos os líquidos ingeridos pelo indivíduo, exceto do
sangue), que não podendo acontecer dentro do organismo de maneira
orgânica, é praticada artificialmente, sem que esse fato, por si, acarrete
problemas éticos 59 .
Atualmente surgem as mais diversas reações acerca do
assunto: ganância dos investidores, temor pelos bem alinhados, excitação
nos ativistas e um nó nos neurônios dos meios de comunicação que
precisam retransmitir algo que seus integrantes muitas vezes não
entendem 60 .
A fertilização in vitro
A fertilização in vitro ocorre com a utilização da técnica
denominada ZIFT, da sigla em inglês Zibot Intra Fallopian Transfer, que
significa transferência intratubária de zigotos e consiste na retirada do
óvulo da mulher para fecundá-lo na proveta, com sêmen do marido ou de
outro homem, para depois introduzir o embrião no útero da esposa ou
companheira, ou, ainda, no de uma terceira mulher (útero de aluguel.)
61
.
Verifica-se com essa técnica que a fertilização do óvulo se dá fora do útero
materno, ou seja, inseminação artificial extracorpórea.
As técnicas de fertilização extracopórea requerem um
controle, por meio de vários exames, da saúde do casal, tais como a
verificação da normalidade do útero e a acessibilidade dos ovários.
Dentre outras etapas da fertilização in virto, incluem-se: a
indução da ovulação, a punção folicular (retirada os óvulos do corpo
feminino), coleta e preparação do esperma, completando-se com a
inseminação e cultura de embriões 62 .
58
NAT GEO - National Greographic Channel. Who’s my father? Programa exibido em 12 de
agosto de 2007.
59
SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética. Edições Loyola. 3.ed. 1993. Trad.Orlando Soares
Moreira.399.p.
60
SOUZA de, Draiton Gonzaga, Erdtmann, Bernardo – organizadores. Ética e genética. p.7
61
DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. – São Paulo: Saraiva, 2001.
62
MACHADO, Maria Helena. Reprodução humana assistida – aspectos éticos e jurídicos.
Curitiba: Juruá, 2006. p.41.
32
Em 1978, Louise Brown foi a primeira criança nascida no
mundo por meio da fertilização in vitro. No Brasil, no dia 07 de outubro de
1984, foi a vez de Ana Paula Caldeira, no Estado de São Paulo.
Atualmente existem mais de 5.000 bebês de proveta no país 63 .
Vinte anos após o primeiro nascimento utilizando a
técnica, descobriu-se que as células-tronco mais potentes, capazes de se
transformar em qualquer um dos 216 tecidos humanos e se replicar com
grande velocidade, são as originais, ou seja, o resultado da fecundação do
óvulo com o espermatozóide. Desse resultado tem-se um embrião.
Em 1994, o aparecimento no jornal Times de Londres de
um anúncio publicitário do Genetics and Ivf Institute, que prometia
fecundação rápida e seletiva a um preço equivalente a 25 milhões de liras,
provocou a maior indignação na época. Imediatamente as autoridades
britânicas alertaram a população sobre os riscos das incursões ao
“McDonald’s” da fecundação 64 .
Em outubro de 1999, a imprensa mundial anunciou que
estava ocorrendo um “leilão”, via internet, de óvulos de modelos para
candidatos a pais que sonham com filhos bonitos. Não que a idéia fosse
particularmente nova: há tempos que o ramo da reprodução humana
assistida apontava para o caminho de uma crescente mercantilização 65 .
A polêmica dos embriões excedentes oriundos da fertilização in vitro
e a dificuldade de se determinar o início da vida
É
da
técnica
de
reprodução
humana
assistida
denominada fertilização in vitro que excedem embriões, os quais podem
ficar guardados indefinidamente (enquanto seus genitores tenham
condições financeiras para mantê-los congelados) ou por até três anos,
como versa a Lei de Biossegurança, desde que aqueles autorizem a
utilização terapêutica ou não desse material.
63
SOUZA de, op.cit., p.8.
BERLINGUER, Geovanni; GARRAFA, Volnei. O mercado humano: estudo bioético da
compra e venda de partes do corpo. Brasília: Ed. UnB, 1996. p.70.
65
BARBOZA, Heloísa Helena; BARRETO, Vicente de Paulo (org). Temas de Biodireito e
Bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. pp. 106 e 107.
64
33
De um lado, com a criação dessa técnica resolveu-se o
problema da infertilidade de uma série de casais que sofriam com a
impossibilidade de uma gestação sem intervenção médica, por outro cria
novos problemas que necessitam de um posicionamento ético, pois nem
tudo o que é possível é justificável 66 . Alexandre de Moraes esclarece que o
direito à vida é uma garantia constitucional preciosa, mas que o início dela
deverá ser dado pelo Biologia, cabendo ao jurista dá-la o enquadramento
legal. De qualquer forma, o autor assevera que do ponto de vista biológico,
não há dúvidas que o início da vida se dá com a fecundação do óvulo com
o espermatozóide, resultando um zigoto 67 .As questões controversas
oriundas da utilização de embriões excedentes fertilizados in vitro exigem
um distanciamento temporal e emocional para uma avaliação sóbria
68
.
Alguns autores defendem que a terminologia embrião é
equivocada, por ser utilizada de formas distintas. Esclarece-se que em
biologia, antes da implantação, o óvulo fecundado chama-se zigoto em vez
de embrião.
Observa-se que:
“Embrião é a entidade em desenvolvimento a partir da implantação no
útero até oito semanas após a fecundação; no começo da nona semana começa a ser
denominado feto e conservará essa denominação até nascer. Os termos doação de
embriões, transferência embrionária e experimentação embrionária, são, portanto,
inapropriados, já que em todos os casos estamos falando de um zigoto e não embrião” 69.
Outras disposições normativas utilizam uma variedade de
expressões para designar o zigoto, tais como células-viáveis (Áustria);
óvulos fecundados (Noruega); ovócitos fecundados (Dinamarca) 70 . Porém
o que se pretende analisar neste tópico é a excedência de embriões ou
zigotos.
66
SOUZA de, Draiton Gonzaga; Erdtmann, Bernardo – organizadores. Ética e genética II. 2003.
8.p
67
MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais: teoria geral. 5.ed. –2003, p.88.
68
SOUZA de, op cit., p. 8.
69
CASABONA, Carlos María Romeo, (org). 2002. p.117.
70
CASABONA, op.cit., p. 177.
34
As academias de 66 (sessenta e seis) países, entre elas a
brasileira, assinaram um documento em que defendem a liberação das
pesquisas com células-tronco embrionárias, área tida atualmente na
ciência como uma das mais promissoras.
71
Segundo a geneticista e pró-reitora de pesquisa da
Universidade de São Paulo, Mayana Zatz: ”a Lei de Biossegurança nos
deu o direito de fazer as mesmas pesquisas feitas no exterior. Deu-nos o
direito de não sermos apenas espectadores”
72
. Para ela, a Lei de
Biossegurança trouxe novos horizontes, antes impossíveis de serem ao
menos testados em favor de muitas vidas humanas em curso.
Decidir o que fazer com embriões congelados há mais de
três anos não é uma tarefa simples.
Entra-se no campo da dignidade humana, nos limites para
a intervenção sobre a vida humana, do direito à vida e inclusive do direito
ao direito à vida, ou seja: se o embrião é titular de direitos fundamentais ou
se é apenas protegido no seu direito à vida pelas normas objetivas da
Constituição, devido à falta da sua capacidade jurídica e da sua
capacidade de ser titular de direitos fundamentais 73 .
Mais que a promessa de tratamentos, cientistas também
enxergam nessas células uma ferramenta para a realização de
experimentos da ciência básica, ou seja, os cientistas serão capazes de
entender como ocorre a diferenciação dessas células e qual a maneira
mais eficaz de explorar esse potencial na cura de doenças genéticas.
Uma reflexão adicional surge e é a seguinte: o Código
Penal brasileiro não classifica como crime a conservação de embriões
sobressalentes, nem tampouco a utilização deles para fins terapêuticos. E
caso ocorra a declaração de constitucionalidade da Lei de Biossegurança,
a utilização e pesquisa de células embrionárias advindas da fertilização in
vitro adquirirão aplicabilidade e eficácia.
Matar um ser humano que possui um interesse próprio na
sobrevivência configura uma grave violação do direito. Recusar a
71
Revista Época, nº 467 de 30/04/2007. 108.p.
Ibidem., p.108.
73
SOUZA de, Draiton Gonzaga; ERDTMANN, Bernardo (org.). Ética e Genética II. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2003.
72
35
solidariedade da espécie e com isso a proteção da vida a um ser que ainda
não pode ter tal interesse e que, além disso, não pode e nunca pôde ter
até agora vivenciar nada, pode ser, no caso normal, desagradável ou
criticável 74 .
A bioquímica Lenise Martins Garcia, da Universidade de
Brasília, defende que o embrião é um indivíduo original e irrepetível,
inclusive participou da primeira audiência pública do STF acerca da Adi. nº.
3510/2005, mostrando aos presentes uma foto de um embrião usado em
pesquisas, que, segundo ela, foi estourado. Acrescenta ainda que muitos
pais nos Estados Unidos deixaram de doar seus embriões para a pesquisa
ao ver a foto 75
Não é nada fácil pesquisar embriões congelados. Isso
ocorre porque eles são congelados no terceiro dia após a fecundação,
quando têm apenas oito células. Depois do descongelamento, apenas 40%
chegam à fase de 150 células (blastocisto), justamente a etapa que
interessa aos cientistas 76 .
Os embriões excedentes precisam sobreviver à cultura e,
além disso, ainda têm que se multiplicar em milhões de células. Quando
tudo isso acontece, o cientista ou pesquisador tem nas mãos uma
linhagem celular. No entanto, para fazer com que ela vire músculo,
neurônio ou tecido hepático é uma jornada.
O fisiologista Luiz Eugênio Mello, pró-reitor de graduação
da Universidade Federal de São Paulo, afirmou que cada terapia com
célula-tronco vai ter uma receita secreta 77 . Ele pesquisa o uso de célulastronco embrionárias no tratamento da esclerose lateral amiotrófica, a
doença do físico Stephen Hawking. Em entrevista para a Revista Época,
Mello afirma que o Brasil não tem uma massa suficiente de pesquisadores
74
SOUZAde, op.cit., p.63
Nos vinte minutos concedidos aos interessados, a Drª Lenise mostrou aos presentes uma imagem
de um embrião, que segundo ela foi destruído para fins terapêuticos.
76
SEGATTO, Cristiane. O que fazer com embriões congelados? Revista Época, 30 de Abril de
2007. p. 110.
77
Revista Época nº 475. p.104
75
36
para o desenvolvimento dessa área e que não se conseguirá criar
tecnologias e registrar patentes tão cedo 78 .
A título exemplificativo da previsão do fisiologista Mello,
nas investigações sobre o genoma humano, um dos aspectos que mais
suscitou o debate foi a proteção jurídica de seus resultados 79 . Quem
propôs sua proteção estava visando os efeitos econômicos que podem
provir da investigação.
Como se vê, a questão do que fazer com embriões
congelados vai além de possíveis entraves jurídicos, “os quais poderiam
ser superados [...], mas antes, trata-se de interesses econômicos
contrapostos e da confrontação de concepções culturais e sociais
diferentes, em cujos extremos, habitualmente situam-se, de um lado, a
incidência de uma norma com dispositivos claros acerca da personalidade
jurídica do ente embrião, e de outro, milhões de pessoas que depositam a
esperança, nesta nova tecnologia e medicina, de voltarem a ter a saúde
que um dia já tiveram ou sonham em tê-la” 80 .
A livre atividade científica tem aplicação por meio da atual
Constituição, o que implica dizer, no tocante às pesquisas com célulastronco embrionárias, que se elas forem proibidas, o Estado estará
cerceando o direito à pesquisa, respaldado em vários debates anteriores,
inclusive no Congresso Nacional.
Outra controvérsia que envolve o que fazer com embriões
excedentes é saber o exato instante em que a vida começa. Dentre outros
fatos, a existência de embriões excedentes instiga a querer saber onde,
como e quando a vida começa, para que não se cometa o engano de
exterminar milhões de vidas, mesmo que seja apenas em potencial.
Sobre o problema do início do ser humano, são duas as
teses que norteiam e ao mesmo tempo se contrapõem, em virtude das
argumentações biológicas e filosóficas: a tese do momento da fecundação
e a tese das fases sucessivas.
78
SOUZA de, op.cit. p.74.
The Danish Council of Ethics, Patenting Human Genes. A report, Copenhagen, 1994.
80
CASABONA, Carlos María Romeo, organizador. 2002. p.30
79
37
Segundo a primeira tese, personalista, o ser humano tem
início no momento da fecundação do óvulo feminino com o espermatozóide
masculino. Essa tese se funda na racionalidade biológica, porque a fusão
de gametas representa o verdadeiro e único salto de qualidade, que não se
repete. Essa síntese gera uma nova e autônoma individualidade humana,
que se desenvolve sem solução de continuidade e sem necessidade de
estímulos externos até o nascimento.
Com uma imagem arquitetônica, o zigoto é, ao mesmo
tempo, projetista, encarregado e construtor do novo ser humano. A mãe
provê o ambiente de trabalho e o material necessário para a construção.
Zigoto, blastocisto e embrião indicam, convencional e
descritivamente, somente fases diferentes do desenvolvimento humano
antes do nascimento, tal como no recém-nascido, na criança, no menino,
no adolescente, no adulto e no velho indicam somente as diferentes fases
da vida do homem depois do nascimento, sem nada acrescentar e nada
deixar faltando à sua humanidade.
Em contrapartida, segundo as teses utilitaristas, o início
do ser humano se pospõe, convencionalmente, às fases sucessivas do
desenvolvimento embrionário.
Por meio de diferentes argumentos, as fases sucessivas
são individualizadas em termos biológicos: Na nidação do óvulo fecundado
no útero materno;
•
Aparição da linha primitiva, que representa o
primeiro esboço do sistema nervoso e do início à
sensibilidade à dor;
•
Suspensão
de
totipotencialidade
das
células
embrionárias, isto é, de sua capacidade de dar vida
a outros embriões e, portanto, à possibilidade de
gêmeos monovulares;
•
Nascimento cerebral, no momento da formação do
sistema nervoso central; e
•
81
CASABONA, op.cit. p. 188.
Organogênese: formação dos órgãos principais 81 .
38
Inevitavelmente surgem algumas divergências sobre o
momento do início do ser humano: depois da fecundação, depois da
primeira semana, depois do dia quatorze, depois da oitava semana etc.
No plano filosófico, as diversas fases do início do ser
humano
são
individualizadas
nos
denominados
indicadores
de
humanidade, que segundo opiniões, consistem em:
•
No reconhecimento alheio da humanidade do
concebido (embrião), no sentido de ser humano e
seu direito à vida dependem de a mãe aceitar o
concebido e querer procriar;
•
Presença
de
determinadas
capacidades
ou
faculdades, que consistem na: capacidade de
relação com a mãe; boa qualidade de vida;
capacidade
vida
autônoma,
quer
dizer,
de
sobreviver fora do útero da mãe; autoconsciência,
racionalidade etc.
82
Quais são as críticas a essas teses? Objeta-se que elas
se baseiam numa ideologia expressamente utilitarista e convencional. São
elaboradas com a finalidade de criar uma fase em que o embrião é
considerado uma coisa e, por isso, pode ser livremente instrumentalizado:
para a pesquisa científica, a experimentação ou o transplante de tecidos;
para a produção de pré-embriões em excesso para a fecundação assistida
(com a supressão ou conservação de embriões residuais); para as
manipulações genéticas com finalidades não terapêuticas e para a
produção e uso dos embriões em cosméticos ou na indústria 83 .
Fiorillo destaca que “a legislação brasileira adota o critério
específico no sentido de definir juridicamente quando a vida termina.
Relembra, ainda, que o Conselho Federal de Medicina, por meio da Lei nº
9.434/1997 em seu artigo 3º, que o fim da vida é determinado com a morte
encefálica 84 . Logo, o referido Conselho, ao estabelecer que a morte
82
_________. op. cit., p. 78.
CASABONA, loc.cit.
84
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 2007, p.236)
83
39
encefálica seja caracterizada através de exames clínicos complementares
durante intervalos de tempo variáveis [...] considera que a parada total e
irreversível das funções encefálicas equivale à morte, ou seja, observada a
parada total e irreversível das funções do cérebro, e por via de
conseqüência as funções neurais, a vida termina 85 .
Na visão do referido jurista ambientalista supracitado:
“Se a vida humana termina quando
pára a atividade nervosa, podemos concluir que a vida
humana começa quando se inicia a atividade nervosa. Daí
ser possível afirmar, em face da legislação vigente, que a
vida humana se inicia quando começa o sistema nervoso,
a saber, a partir do 14º dia de gestação”. 86 .
O mesmo posicionamento foi adotado pelo Ministro
Relator da ADI nº 3510/2005.
A preservação de embriões requer seja praticado um ato
de lealdade legislativa, no sentido de que os legisladores de distintos
países possam resolver, no exercício de seu poder soberano e em
conformidade com suas Constituições, fazendo prevalecer a tutela do
concebido (embrião) ou dos interesses científicos, da indústria de
cosméticos etc.
Alexandre de Moraes entende que o embrião representa
um ser individualizado, com uma carga genética própria, que não se
confunde com a do pai e nem com a da mãe 87 .
No caso do Brasil, deu-se prioridade em tutelar a
liberdade de pesquisa, já prevista no ordenamento em vigor, resguardando
assim, a saúde de milhares de pessoas que podem ter qualidade de vida
melhor por meio das denominadas terapias gênicas.
85
Resolução nº 1.480, de 08 de agosto de 1997.
Vide “células-tronco adultas e embrionárias”, artigo da Profa. Dra. Mayana Zatz, in Revista
Brasileira de Direito Ambiental, coordenação de Celso Antonio Pacheco Fiorillo, ano 1,n.1, Editora
Fuiza apud FIORILLO, 2007, p. 236.
87
MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais: teoria geral. São Paulo: Atlas,
2003. p. 88.
86
40
Por outro lado, Peter Singer defende tacitamente a
salvaguarda de embriões, como se segue:
“É possível dar à expressão ‘ser humano’ um
significado
exato.
Podemos
usá-lo
como
equivalente a ‘membro da espécie homo sapiens’.
Pode-se
determinar
cientificamente
se
um
indivíduo é, ou não, membro de determinada
espécie, mediante o exame da natureza dos
cromossomos
presentes
nas
células
dos
organismos vivos. Nesse sentido, não resta
dúvida de que é um ser humano, desde os
primeiros momentos de sua existência, um
embrião concebido do esperma e do óvulo de
88
seres humanos” .
88
SINGER, Peter. Vida Ética. Tradução de Alice Xavier. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. p.163.
41
CAPÍTULO 3
ASPECTOS ÉTICOS E JURÍDICOS ACERCA DA
UTILIZAÇÃO TERAPÊUTICA DAS CÉLULAS-TRONCO
Adi nº 3510/2005
A matéria versada na Adi nº 3510/2005 é de tão alto
relevo social que o Ministro Relator, Carlos Ayres de Britto, determinou que
a audiência fosse pública para a efetiva participação da sociedade. A
última audiência pública foi realizada no dia 05 de março de 2008.
A peça processual ajuizada pelo então Procurador-Geral
da República, Cláudio Fontelles, alegou elementos inconstitucionais, os
quais ele alude terem sido inobservados pela Lei de Biossegurança Lei nº
11.105, de 24 de março de 2005, quais sejam: a inviolabilidade do direito à
vida, contido no art. 5º, caput, além do descumprimento do princípio da
dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III).
Ao evocar o posicionamento de um especialista em
ginecologia, o Procurador transcreve “que o embrião é ser humano na fase
inicial de sua vida”, sendo ele um ser humano em virtude de sua
constituição genética ser própria do ser humano, oriunda de um casal
humano, por meio da doação de seus gametas 89 . Estende o entendimento
do desenvolvimento humano “iniciar na concepção, com a formação do
zigoto na união dos gametas até completar a oitava semana de vida 90 ”.
Classifica que o momento dessa união entre os gametas masculino e
feminino é o princípio da existência de um novo ser, o qual já tem suas
características pessoais fundamentais delimitadas.
Demonstra que o descobridor da Síndrome de Dawn
(Jérome Lejeune) afirma ser a fecundação o marco do início da vida 91
89
Adin 3510/2005, p. 2.
FIORILLO, op.cit., p. 237.
91
Jérôme Lejeune, professor da Universidade de René Descartes, em Paris, apud Adin 3510/2005,
p. 3.
90
42
Outro parecer, também incluso na peça, do Dr. Dalton
Luiz de Paula Ramos, esclarece que embora não seja possível distinguir
nas fases iniciais os formatos humanos em um embrião, este se encontra
com vida e carrega consigo todas as informações, a saber, o código
genético, intrínsecas para o seu desenvolvimento sem que haja
necessariamente intervenção humana. Nem mesmo a própria mãe pode
interferir nesse processo, no sentido de ajudar o embrião a se multiplicar e
tornar-se feto e assim por diante 92 .
Com isso, o Procurador afirma que o embrião “não se
trata de um simples amontoado de células. O embrião é vida humana” 93 .
Ao passo que o embrião gradativamente se desenvolve,
quando alcança maior tamanho, reconhecem-se os traços físicos de um
ser humano: cabeça, tronco, mãos, braços, pernas, pés, etc. e o antes
chamado embrião passa agora a ser chamada do feto.
Na Ação Direta de Inconstitucionalidade, o ProcuradorGeral da República à luz o entendimento da Dr.ª Alice Teixeira Ferreira,
Professora associada de Biofísica da UNIFESP/EPM, na área de biologia
celular-sinalização celular, a explicação do termo embriologia, que quer
dizer o estudo de embriões e atualmente este termo se reporta ao estudo
do desenvolvimento de embriões e fetos 94 .
Continua ainda a supracitada Professora, em consulta a
textos referentes à embriologia, par quem todos são unânimes em afirmar
que:
“O desenvolvimento humano se inicia
quando o ovócito é fertilizado pelo espermatozóide. Todos
afirmam que o desenvolvimento humano é expressão do
fluxo irreversível de eventos biológicos ao longo do tempo
que só para com a morte”.
Acrescenta o raciocínio, afirmando que todo o ser humano
passa pela mesma fase de desenvolvimento: ovócito, mórula, depois
92
RAMOS, Luiz de Paula Dalton, membro Interdisciplinar de bioética da UNIFESP apud Adin
3510/2005. pp. 3 e 4.
93
FONTELLES, Cláudio, 2005 apud Adin 3510/2005, p.4.
43
blastocisto e feto. Aqui a referência é a mesma da citação anterior. Eu
realmente preciso colocá-la novamente já que comecei o parágrafo com a
palavra”acescenta”
Outra pesquisadora utilizada
pelo Procurador (Dr.ª
Elizabeth Kipman Cerqueira, perita em sexualidade humana), assevera
que:
“O zigoto, constituído por uma única
célula
produz
imediatamente
proteínas
e
enzimas
humanas e não de outra espécie. É biologicamente um
indivíduo
único
e
irrepetível,
um
organismo
vivo
95
pertencente à espécie humana” .
Como a ADI nº 3510/2005 não versa somente acerca do
início da vida para defender a não utilização de células-tronco
embrionárias, o Procurador apresentou soluções biologicamente viáveis
para o conflito entre a Lei de Biossegurança, a Constituição e a ciência,
apontando as pesquisas com células-tronco adultas como a solução
atualmente mais eficaz para a cura de doenças genéticas em questão.
Em um estudo realizado pela Universidade Autônoma de
Madrid (Espanha), comandada pelo Dr. Damián Garcia-Olmo, percebeu-se
que há avanços das pesquisas científicas muito mais promissores com
células-tronco adultas, do que com as embrionárias 96 .
O Dr. Damían explica, em entrevista, que a terapia com
células-tronco adultas permite o transplante autólogo, sem problemas de
recusas ou rejeições e não causa problemas clínicos nem éticos como o
uso das células-tronco embrionárias 97 .
O Dr. Damían esclarece que “o tratamento com célulastronco adultas é mais procedente do que com as células embrionárias, por
causa dos enormes riscos em potencial passíveis de serem efetivados, tais
como tumores, problemas de rejeição, necessidade de terapia etc., por fim,
menciona três programas de uso clínico das células-tronco adultas para
94
FERREIRA, Alice Teixeira apud Adin 3510/2005, p. 4.
CERQUEIRA, Elizabeth Kipman apud Adin 3510/2005. p. 5.
96
OLMO-GARCIA, Damían apud Adin 3510/2005. pp. 6 e 7.
95
44
tratamento de patologias humanas, cujos resultados demonstram que o
uso de células adultas é seguro” 98 .
No tocante ao direito comparado, o Procurador menciona
que na Alemanha é proibido o uso de embriões humanos para fins distintos
da concepção, por isso, naquele país, os embriões não são objeto de
pesquisa científica. Além de proibir a utilização de embriões para fins
diferentes do da concepção, a lei proíbe a clonagem humana 99 . Porém a
legislação alemã faz diferenciação entre célula embrionária totipotente e
pluripotente. As totipotentes podem se transformar em qualquer um dos
216 tecidos que compõem o corpo humano, já as células pluripontentes
podem se desenvolver em todos os tecidos humanos, exceto anexos
embrionários 100 .
Assim sendo, a legislação alemã permite que as célulastronco embrionárias pluripotentes podem ser utilizadas para fins de
pesquisa científica. Dessa permissão advém a problemática de distinguir
quando uma célula embrionária pode ser considerada toti ou pluripotente.
Para assentar de maneira mais eficaz o entendimento de que o embrião
humano já possui vida, o Procurador colheu o posicionamento da Dr.ª
Cláudia M.C. Batista, Professora Adjunta da UFRJ, a qual disserta:
“Todo o desenvolvimento humano
tem como marco inicial a fecundação e, após este evento,
têm-se um ser humano em pleno desenvolvimento e não
somente um aglomerado de células com vida meramente
‘celular’. Trata-se, a partir deste evento, de um indivíduo
humano em um estágio de desenvolvimento específico e
bem caracterizado cientificamente” 101 .
No tocante ao princípio da dignidade da pessoa humana,
o Procurador reforça a idéia de que o embrião humano é vida humana,
igual a um ser que já está em convívio social e destaca o entendimento do
97
______.______. p. 6.
Idem nota 94.
99
ESchG, §6, Abs.1 apud Adin nº 3510/2005, p.09
100
SEGATTO, Cristiane; BUSCATO, Marcela. Por dentro dos novos tratamentos com célulastronco. Revista Época, p. 95, 25 de junho de 2007.
101
BATISTA, Cláudia M.C. apud Adin 3510/2005, p. 10.
98
45
Dr. Gonzalo Herranz, Diretor do Departamento de Humanidades
Biomédicas da Universidade de Navarra, o qual defende, in verbis:
“O núcleo ético do argumento é este: todos os seres humanos
são iguais, pois não têm mais valor e mais dignidade do que
outros. Em concreto, certos seres humanos e os embriões
humanos congelados inviáveis se contam entre eles, valem
muito pouco e podemos intercambiá-los por coisas mais
valiosas. Não têm nome, nem são pessoas como as outras.
Estão condenados a morrer e ninguém chorará nem celebrará
funerais por suas mortes, inevitáveis e autorizadas pela lei” 102
Como todo e qualquer desfecho de uma peça processual,
o
Procurador-Geral
da
República
pede
pela
declaração
de
inconstitucionalidade da Lei de Biossegurança, em detrimento da
inobservância de garantias e princípios constitucionais previstos na Carta
Magna de 1988.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade é ajuizada por
causa de seu teor enérgico, pela agressividade e radicalismo; pela sua
natureza fulminante 103 . Pois uma vez que a lei é declarada como
inconstitucional, é retirada do ordenamento jurídico vigente, por ser
considerada incompatível com a ordem jurídica da qual fazia parte 104 .
Trata-se de um controle de constitucionalidade abstrato,
ou seja, de um controle direto, cuja oponibilidade é erga omnes.
Segundo Bonavides:
“O controle por via da ação não
parece ser aquele que melhor se presta a resguardar os
direitos individuais, os quais encontrariam proteção bem
superior, de ponto de vista da eficácia, no remédio
jurisdicional da via de exceção.”
102
HERRANZ, Gonzalo apud Adin 3510/2005, p. 11.
BONAVIDES, 2004, p. 307.
104
BONAVIDES, op.cit., p. 308.
105
BONAVIDES, Paulo. 2004, p. 308.
103
105
46
Esse controle, por sua vez, fica reservado apenas
algumas autoridades públicas, numa vedação que tem tornado a
aplicabilidade
das
garantias
individuais
constitucionais
dos
seus
jurisdicionados, muito deficiente perante a leis infraconstitucionais, voltado,
sobretudo, para resolver conflitos entre poderes políticos 106 .
O voto do Ministro Carlos Ayres de Britto – Um breve histórico
De início, o Ministro Relator da Ação Direta de
Inconstitucionalidade em questão identificou a contraposição de duas
correntes de opinião.
A primeira, “deixa de reconhecer às células-tronco
embrionárias virtualidades, ao menos para fins de terapia humana,
superiores às das células-tronco adultas”. Essa mesma corrente atribui ao
embrião uma função progressiva de auto-constitutividade, ou seja, o
embrião se constitui por si só, mas para isso, é necessário que haja um
ambiente propício e secundário para tal: o útero materno. 107
Tem-se, nesse contexto, o embrião como unidade
personalizada, cuja utilização o destrói por completo, provocando assim,
um disfarçado aborto, mesmo que essa unidade seja produto de uma
concepção realizada em laboratório, pois já existe uma criatura ou
organismo humano, o qual deve ser visto de forma igualitária àquele que
se desenvolve no útero de sua mãe.
Considera-se que o embrião seja vida humana em estágio
embrionário e não um estágio da vida humana. O certo é que se considere
uma pessoa no seu estágio embrionário e não um embrião a caminho de
ser pessoa. A consideração de que zigoto fecundado apenas seja embrião
humano é reducionista.
106
Têm legitimidade para propor Ação Direta de Inconstitucionalidade, conforme a Constituição de
1988: o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, A
Mesa da Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal, o Governador do
Estado ou do Distrito Federal, o Procurador-Geral da República, O Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil, Partido político com representação no Congresso Nacional e confederação
sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
107
Voto do Ministro Carlos Ayres de Britto, 2008.
47
A segunda corrente de opinião é a que propõe a utilização
de embriões excedentes, oriundos da fertilização in vitro, atendidas as
exigências legais.
Descreve o Relator que essa corrente “padece de dores
morais ou de incômodos de consciência”, pois, para ela, o embrião
fertilizado em laboratório é extremamente diferente do embrião que
percorre seu caminho até chegar ao útero, de forma laboriosa, dentro de
um lapso temporal 108 . O Ministro faz uma clara distinção entre utilização
terapêutica de células-tronco embrionárias e aborto. Para isso, acosta
parte da explanação da Professora de Genética da Universidade de São
Paulo, Dr.ª Mayana Zatz, a qual defende não haver vida no embrião
congelado caso não haja intervenção humana:
“É preciso haver intervenção humana
para a formação do embrião, porque um dado casal não
conseguiu ter um embrião por fertilização natural [...]”. 109
Explicita o Ministro Relator que tanto a corrente favorável
quanto a contrária à utilização terapêutica de células-tronco embrionárias
reconhecem o princípio da dignidade humana para respaldarem suas
argumentações.
A lei é bem clara ao tratar de células advindas de
manipulação humana, produzidas em laboratório e não espontaneamente.
Essas células produzidas in vitro são o foco da terapia celular, por meio da
qual se busca a substituição de células ou tecidos lesados, a fim de que se
restaure a função original do órgão/tecido, devolvendo a saúde e a
dignidade da pessoa humana com vida em curso.
Ao destrinchar a legislação ora atacada pela Adi nº
3510/2005, o Relator ressalta as condições impostas pela lei para
utilização das células embrionárias. Não se trata de uma posse clandestina
das células por parte dos cientistas e pesquisadores, mas sim de evitar
que elas sejam descartadas em detrimento da dignidade humana e da
108
Voto proferido pelo Ministro Carlos Ayres de Britto, em audiência pública realizada em 05 de
março de 2008
109
ZATZ, Mayana apud Voto do Ministro Relator da Adin 3510/2005.
48
saúde pública do país 110 . Em seu voto o Relator destaca que a
inviabilidade
empírica
dos
embriões
é
constatada
por
meio
de
procedimento médico seguro, cujo resultado é atestar a impossibilidade de
o embrião se desenvolver. Diferente da utilização terapêutica, os únicos
caminhos para essas células inviáveis são: (i) o congelamento por prazo
indeterminado, (ii) o descarte ou (iii) a pesquisa científica 111 . A Lei de
Biossegurança traz em seu bojo o caráter de compromisso com a bioética,
ao determinar que todos os projetos que versem acerca de atividade de
pesquisa com células-tronco embrionárias ou da utilização com fins
terapêuticos, sejam apreciados por comitês de ética em pesquisa. Também
é de caráter bioético a proibição de toda e qualquer espécie de
comercialização do material coletado, cujo desrespeito é comparado ao
tráfico de órgãos e tecidos.
A questão em análise pelo Supremo Tribunal Federal é
sobre um conjunto de normas constitucionais para que se realizem
pesquisas no campo da medicina celular regenerativa em paralelo àquelas
que já se vêm desenvolvendo com outras fontes de células-tronco
humanas, no caso as adultas, as quais podem ser retiradas do cordão
umbilical, no líquido amniótico, na medula óssea, em células de gordura,
no sangue menstrual e até mesmo na pele, esta última a mais recente
descoberta científica acerca das células-tronco adultas.
O Relator faz uma crítica ao teor da Adi nº 3510/2005, que
taxa o art. 5º da Lei de Biossegurança contrário, de forma frontal, ao
magno texto republicano, desconsiderando a maior versatilidade das
células-tronco embrionárias para se converterem em qualquer dos 216
tipos de células que compõem o corpo humano. A Adin expressa, in verbis:
“Reação até mesmo à abertura da lei
de Biossegurança de que as células-tronco embrionárias
constituem tipologia celular com melhores possibilidades
de recuperação da saúde de pessoas físicas ou naturais,
em situações de anomalias ou graves incômodos
110
111
Extraído do Voto do Ministro Relator da Adin 3510/2005.
BONAVIDES, loc.cit.
49
genéticos,
acidentes”
adquiridos,
112
ou
em
conseqüência
de
.
O Ministro justifica a menção aos termos pessoa física ou
pessoa natural, não no que diz respeito às teorias da personalidade
adquirida no momento do nascimento, ou pela teoria da personalidade
condicional ou da concepcionista, mas “de quem é pessoa numa dimensão
geográfica, mais do que simplesmente biológica” 113 . Considera o conceito
de vida constitucional, trazendo o testemunho do publicista José Afonso da
Silva, in verbis:
“Vida, no texto constitucional (art. 5º,
caput), não será considerada apenas no seu sentido
biológico de incessante auto-atividade funcional, peculiar
à matéria orgânica, mas na sua acepção biográfica mais
compreensiva (...)” 114
Tem-se que embrião não está agregado à espécie
humana, não possuindo personalidade jurídica numa dimensão biográfica,
tendo em vista ser incompatível ao embrião ser-lhe imputados direitos em
seu próprio nome. Além disso, o embrião não é dotado de sanidade
mental, e nem pode contrair obrigações nem se pôr como endereçado de
normas que já signifiquem imposição de “deveres“ propriamente.
Tudo isso em razão de o embrião nem ser nativivo, nem
tão pouco ser perceptível a olho nu. Sua vida, portanto, é incessantemente
relacional.
Entretanto as normas jurídicas alcançam aqueles que
estão biograficamente qualificados pela legislação em vigor a receberem
direitos e deveres, e serem, pelo direito, classificados como imputáveis
desses direitos e deveres.
O ordenamento jurídico vigente contempla a forma de vida
pré-natal, resguardando-lhe os direitos desde a concepção. Porém a
112
Voto do Ministro Relator da Adin 3510/2005.
Extraído do Voto do Ministro Relator da Adin 3510/2005, item 19.
114
SILVA, José Afonso de. Curso de Direito Constitucional Positivo apud Voto do Ministro
Relator da Adin 3510/2005.
113
50
Constituição não prevê a existência de embriões acondicionados ou
fecundados in vitro como bens jurídicos tutelados pelo direito à vida. O
embrião não é sujeito passivo do direito à vida. Há ausência de
normatividade para esse caso.
Conclui-se, pelo exposto, que nem todo estágio da vida
humana é considerado como bem jurídico, merecedor ou passível de ser
tutelado pelo princípio da dignidade da pessoa humana e pelo direito à vida
humana.
A inviolabilidade do direito à vida, declarada pela
Constituição de 1988, no seu art. 5º, caput, é “exclusivamente reportante a
um personalizado indivíduo”. Aqui, o Ministro Relator dissociou a discussão
sobre
início
da
vida,
tão
conclamado
na
Ação
Direta
de
Inconstitucionalidade ajuizada pelo Procurador Cláudio Fontelles, pois no
momento cabia-se delimitar “que aspectos ou momentos dessa vida estão
validamente
protegidos
pelo
Direito
Infraconstitucional
e
em
que
medida” 115 . Ronald Dworkin, constitucionalista americano, apresenta uma
maneira de se escalonar a proteção para os diferentes estágios do
desenvolvimento humano:
“A
proteção
vai
aumentando
a
medida que as tais etapas do evolver da criatura vai
adensando a carga de investimento nela: investimento
natural ou da própria natureza, investimento pessoal dos
genitores e familiares” 116 .
O
Ministro
intitula
essa
figura
de
“tutela
jurídica
proporcional” das etapas e do investimento que se faz para a chegada da
vida humana. Quanto maior o investimento, mais incidência da tutela
jurídica 117 .
A legislação infraconstitucional, ao prever que os direitos
do nascituro estão a salvo desde a concepção, expõe direitos que são
aplicados a quem está a caminho do nascimento. O embrião fertilizado in
115
Voto proferido pelo Ministro Relator da Adin 3510/2005. Item 24.
______.Item 25.
117
Extraído do voto do Ministro Relator da Adin 3510/2005.
116
51
vitro não está a caminho do nascimento, nem tão pouco há perspectivas de
desenvolvimento no ambiente o qual está inserido.
O direito penal, ao reconhecer que, apesar de nenhuma
realidade ou forma de vida pré-natal ser uma pessoa física ou natural,
ainda assim faz-se protetora de uma dignidade que importa reconhecer e
proteger, nas condições e limites da legislação ordinária infraconstitucional.
O embrião não é parte, pois não está normatizado
infraconstitucionalmente como pessoa humana embrionária, e sim como
célula embrionária humana. O embrião não faz parte de um todo social,
nem é um todo à parte.
O ordenamento jurídico brasileiro, no voto do Ministro
Relator da Adi nº 3510/2005, preceitua que o início da vida é uma
realidade distinta daquela constitutiva da pessoa física ou natural.
O Ministro não quis negar o início da vida humana com a
coincidência do instante da fecundação de um óvulo feminino com o
espermatozóide masculino, apenas distinguiu o embrião humano de
pessoa física ou natural “simplesmente porque esse modo de irromper em
laboratório e permanecer confinado in vitro, é para o embrião, insuscetível
de progressão reprodutiva” 118 .
Para o embrião não há possibilidade do desenvolvimento
contínuo, contrariando a afirmação textual contida na inicial da Adi º
3510/2005.
Cabe ressaltar que a Lei de Biossegurança não autoriza
extirpar do corpo feminino zigoto a caminho do útero, ou nele já fixado. A
Lei de Biossegurança autoriza um procedimento extra-corporis: pinçar
embriões humanos, obtidos artificialmente e acondicionados in vitro. Essas
células não precisam de cópula humana, nem do corpo feminino para que
sejam entidades biológicas ou material genético.
Portanto nutri-se esperança para uma determinada
parcela da sociedade brasileira em encontrar vida saudável para filhos,
pais, irmãos que pelejam em restaurar suas vidas por meio da utilização
terapêutica de células-tronco embrionárias fecundadas artificialmente ao
invés de serem descartadas meramente como material genético qualquer,
52
evitando, assim, o desperdício de uma grande solução para aqueles que
aguardam por anos nas filas de doação de órgãos, na tentativa de se
restabelecer a saúde.
Por fim, o voto do Ministro Relator Carlos Ayres de Britto
foi pela total improcedência da Ação Direta de Inconstitucionalidade por
todos os motivos acima aludidos.
A Lei de Biossegurança e a utilização de células-tronco no Brasil
A Lei de Biossegurança, ao regulamentar os incisos II, IV
e V do § 1º do art. 225 da Constituição da República, entendeu por bem
estabelecer normas de segurança e mecanismos de fiscalização de
atividades vinculadas aos denominados organismos geneticamente
modificados – OGM – e seus derivados, dispondo sobre a Política Nacional
de Biossegurança – PNB.
A nova PNB visa preservar a diversidade, bem como a
integridade do patrimônio genético do Brasil, definindo critérios normativos
destinados a estabelecer a incumbência constitucional indicada ao Poder
Público, no sentido de fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e
manipulação de material genético, além de fixar as normas jurídicas
destinadas a controlar a produção, a comercialização, assim como o
emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a
vida, a qualidade de vida e o meio ambiente constante no art. 225, §1º, II e
V, da Constituição, in verbis:
“II - preservar a adversidade e a integridade do patrimônio
genético do País e fiscalizar entidades dedicadas à pesquisa e
à manipulação de material genético;
IV – exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade
potencialmente causadora de significativa degradação do meio
ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará
publicidade;
V – controlar a produção, a comercialização e o emprego de
técnicas, métodos e substâncias que comportem riscos para a
vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”.
118
Extraído do voto do Ministro Relator da Adin 3510/2005.
53
Essa lei passa a organizar normas de segurança e
mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos
geneticamente modificados – OGM e seus derivados, quais sejam:
construção, cultivo, produção, manipulação, transporte, transferência,
importação, exportação, armazenamento, pesquisa, comercialização,
consumo, liberação no meio ambiente e descarte de organismos
geneticamente modificados – OGM’s.
Vale ressaltar que a Lei de Biossegurança, ao ser votada
pelo Senado Federal, obteve 366 (trezentos e sessenta e seis) votos
favoráveis, contra 59 (cinqüenta e nove) desfavoráveis
119
.
Apesar de sancionada a Lei de Biossegurança, ela
necessitava ainda de regulamentação. E a regulamentação só ocorreu em
23 de novembro de 2005, pelo Decreto nº 5.591.
No artigo 5º da Lei de Biossegurança, é liberado o uso de
embriões estocados há no mínimo 3 (três) anos em clínicas de fertilização,
para a obtenção de células-tronco embrionárias, desde que esse uso seja
autorizado por seus genitores, in verbis:
“Art. 5º É permitida para fins de pesquisa e terapia, a utilização
de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos
produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo
procedimento, atendidas as seguintes condições:
I – sejam embriões inviáveis; ou
II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na
data de publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da
publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos,
contados a partir da data de congelamento.
§1º Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos
genitores.
§2º Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem
pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas
deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos
respectivos comitês de ética em pesquisa.
§3º É vedada a comercialização do material biológico a que se
refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art.
15 da Lei nº 9434, de 4 de fevereiro de 1997.”
Verifica-se a preocupação do legislador em proteger os
embriões do descarte indiscriminado.
No entanto, a constitucionalidade desse artigo está sendo
questionada por uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin nº
119
Dados do relato em Audiência Pública no STF realizada dia 05 de março de 2008.
54
3510/2005), proposta pelo, na época, Procurador-Geral da República,
Cláudio Fontelles, e ainda não julgada, contando apenas com dois votos
dos onze que compõe a plenária do STF.
Segundo ele, a inconstitucionalidade do artigo está no fato
de que o embrião é ser humano, desse modo não se pode estabelecer
gradação constitucional ao conceito de inviolabilidade da vida, pois esse
conceito concede tutela completa. E ainda, que a vida tem início com a
fecundação, sendo assim não pode ser liberada a utilização de embriões,
ainda que cultivados em laboratório.
Até a Lei de Biossegurança, o embrião produzido em
laboratório não era tratado pelo direito brasileiro. A Constituição de 1988
assegura a inviolabilidade do direito à vida. Segundo o Código Civil, porém,
“a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida. Mas a
lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.
Em contrapartida, o Ministério da Saúde alega que não é
possível a inconstitucionalidade da lei, pois a Constituição Federal, em
momento algum, faz menção sobre embriões que não se fixaram no útero,
sendo que a Lei de Biossegurança é a única regulamentação sobre o
assunto. E, por fim, em defesa contra a citada Adin, o Ministério da Saúde
assevera que os Códigos Civil e Penal tratam somente da gestação, ou
seja, do embrião dentro do útero.
A Lei de Biossegurança não explicita acerca da maneira
como deve ocorrer a autorização para a utilização de embriões
excedentes: se por escrito, verbal, ou com escritura registrada.
Outra determinação legal é que os embriões devem estar
acondicionados há mais de três anos para serem utilizados ou
pesquisados, sempre com o consentimento de seus genitores.
Segundo a Dra. Alice Teixeira, da Universidade Federal
de São Paulo, não há como saber com certeza se os embriões são
inviávies. A pesquisadora assevera existir dados estatísticos de que há
crianças sadias nascidas de embriões congelados havia muito tempo. Tal
prazo é subjetivo, pois não existem mecanismos tecnológicos no Brasil
suficientes para avaliar a possível potencialidade ou impotencialidade de
55
um embrião congelado há mais de três anos vir ou não a ser um ser
humano dotado de personalidade civil 120 .
A Revista Época, nº 467, publicada em abril de 2007,
trouxe um dado intrigante: não se sabe ao certo quantos embriões
congelados existem no Brasil. A Sociedade Brasileira de Reprodução
Assistida fez um levantamento em 42 clínicas responsáveis por mais de
85% das fertilizações in vitro no Brasil. A pesquisa concluiu que de três a
cinco mil embriões poderiam ser utilizados em pesquisas. E esses
embriões se enquadrariam nas três exigências da Lei de Biossegurança:
foram doados com o consentimento do casal, são inviáveis ou estavam
congelados há mais de três anos na data da promulgação da lei 121 .
A eticidade da utilização terapêutica de células-tronco embrionárias
Em primeiro lugar, cabe denominar o que vem a ser
bioética. Para Pessini e Barchifontaine 122 bioética “é um neologismo que
significa ética da vida”. Esse primeiro sentido já indica um conteúdo de
enorme abrangência: tudo o que é vida lhe compete.
Kipper, Marques e Feijó definem que:
“[...] a bioética era uma reflexão
muito ampla sobre a utilização dos recursos tecnológicos
disponíveis sobre todas as formas de vida no planeta. Em
1978, W.T Reich assim a definia: ‘é o estudo sistemático
da conduta humana na área das ciências da vida e dos
cuidados com a saúde, enquanto esta conduta é
examinada à luz dos valores e dos princípios morais’. Aos
poucos, esta ciência se dirige mais especificamente para
os cuidados com a saúde dos seres humanos [...]”
120
123
.
SEGATTO, Cristiane. Revista Época. p. 109 .30 de abril de 2007.
______. _______.p.110.
122
1996, pp. 30 e 31.
123
KIPPER, Délio José; MARQUES, Caio Coelho e FEIJÓ, Anamaria organizadores. Ética em
pesquisa: reflexões. 2003, p.14
121
56
O uso de células-tronco embrionárias oferece grandes
promessas no tratamento de muitas doenças em várias áreas da clínica
médica. Entretanto a realização de pesquisas com células-tronco
embrionárias abre um debate ético muito grande e que tende a crescer nos
próximos dias 124 .
Pode-se dizer que o debate sobre as questões éticas e
legais do uso de células-tronco embrionárias na pesquisa e clínica humana
está quase chegando ao fim com o julgamento da Adi nº 3510/2005.
Conforme destacam Kipper, Marques e Feijó :
“A história da civilização humana
mostra que a produção do conhecimento científico
humano é de uma riqueza, de uma complexidade e de
uma variedade grandiosa. A história da ciência está
recheada de exemplos de muitos pesquisadores, que,
seguindo
caminhos
diferentes,
intelectuais
chegaram
a
e/ou
experimentais
conclusões
ou
ao
desenvolvimento de tecnologias similares [ao da utilização
terapêutica de células-tronco] (grifos acrescentados).” 125
Pode-se citar quatro argumentos éticos em favor de um
autêntico direito fundamental subjetivo à vida e dignidade humana da
mórula 126 . Eles são também discutidos nos fóruns internacionais de ética
médica, quais sejam:
1. O fato de ela (a mórula) pertencer à espécie homo
sapiens;
2. O continuum sem graus do desenvolvimento ulterior
até o ser humano nascido (contanto que ele não seja
morto);
124
KIPPER, Délio José; MARQUES, Caio Coelho e FEIJÓ, Anamaria organizadores. Ética em
pesquisa: reflexões.-Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.
125
KIPPER, Délio José; MARQUES, Caio Coelho e FEIJÓ, Anamaria organizadores. Ética em
pesquisa: reflexões. 2003 p. 76.
126
Embr. Massa compacta, constituída por dezesseis ou mais blastômeros e proveniente da
segmentação de ovo fecundado.
57
3. O potencial já existente no primeiro estágio de vida do
embrião para esse e qualquer outro desenvolvimento;
e finalmente,
4. Uma determinada identidade já do embrião com todos
os seus futuros estados de ser humano e existência
possível 127 .
O argumento da espécie é simples. Na visão de Reinhard
Merkel:
“A
proteção
da
proibição
de
homicídio valeria para o embrião já unicamente por ele
pertencer biologicamente à espécie humana. Como todos
os nascidos pertencentes a essa espécie possuem
indubitavelmente um direito fundamental à vida, o
princípio do tratamento igual ordenaria também a proteção
do embrião. Porém, quem aduz unicamente o fato de
determinada qualidade biológica, para fundamentar uma
norma, a saber, o direito do embrião à vida e com isso o
dever de todas as outras pessoas de não mata-lo,
demonstra exemplarmente o que os filósofos denominam
falácia naturalista”
128
.
Para ele, não faz sentido no mero plano conceitual
conceder-lhe nesse tocante um direito subjetivo de proteção – quer dizer,
uma proteção contra uma lesão que não poderá ser cometida contra o
embrião.
127
128
SOUZA de, Draiton Gonzaga; Erdtmann, Bernardo – organizadores. Ética e genética, p.59
MERKEL, Reinhard apud Ética e genética II, 2003, p. 60.
58
A Constituição da República e o Princípio da Dignidade Humana em
face da utilização terapêutica de células-tronco embrionárias
O princípio da dignidade humana, presente na Carta
Magna no art. 1º, inciso III, exerce alcance, sobretudo, nos chamados
direitos e garantias fundamentais, os quais, por sua vez, não incidem
diretamente sobre a pessoa humana em seu aspecto físico, mas ainda no
desdobramento de sua personalidade.
Ainda no art. 6º encontram-se desdobramentos do
princípio da dignidade humana, pois ninguém tem existência digna sem
educação, saúde, moradia, proteção à maternidade e à infância, dentre
outros. Por fim, a família guarda estreita relação com a dignidade da
pessoa humana, isso expressamente declarado no § 7º do art. 226.
O princípio jurídico da dignidade da pessoa humana exige
como pressuposto a intangibilidade da vida humana. Sem vida, não há
pessoa, e sem pessoa, não há dignidade. O preceito da intangibilidade da
vida humana não admite exceção, é absoluto e está, de resto, confirmado
pelo caput do art. 5º da Constituição da República. Um exemplo disto é a
proibição da eutanásia. O próprio suicídio fere a intangibilidade da vida
humana, embora não esteja capitulado como antijurídico no Código Penal
brasileiro.
Maria Helena Diniz explica que a capacidade (agente
capaz) advém de uma série de requisitos que o homem (pessoa humana)
preenche aos olhos da lei; esta por sua vez, confere àquele personalidade
jurídica para agir por si, ora como sujeito passivo, ora como sujeito ativo de
uma relação jurídica 129 . Por esse ângulo, o embrião não tem capacidade
por não agir por si só. No entanto, nos deparamos com um paradigma: se
avaliarmos o embrião apenas segundo o seu status quo atual, não será
possível fundamentar para ele um direito subjetivo à vida 130 .
Kelsen ensina que:
129
DINIZ, Maria Helena. 2003, p.117.
59
“Ser pessoa ou ter personalidade
jurídica é o mesmo que ter deveres jurídicos e direitos
subjetivos. A pessoa como suporte de deveres jurídicos e
direitos subjetivos, não é algo diferente dos deveres
jurídicos e dos direitos subjetivos dos quais ela se
apresenta como portadora – da mesma forma de uma
árvore da qual dizemos, numa linguagem substantivista,
expressão de um pensamento substancializador, que tem
um tronco, braços, ramos, folhas e flores, mas apenas o
todo, a unidade destes elementos. A pessoa física [...] tem
deveres jurídicos e direitos subjetivos e estes formam um
complexo
de
direitos
e
deveres
cuja
unidade
é
figurativamente expressa no conceito de pessoa. A
pessoa é tão-somente a personificação desta unidade” 131
Pelo entendimento Kelsiano, pode-se afirmar que o
embrião humano não é pessoa, pois a ele ainda não foi conferida
personalidade civil. No ordenamento jurídico vigente, a personalidade
jurídica é adquirida no nascimento com vida 132 . A personalidade é
produzida pela norma jurídica 133 e as normas jurídicas vigentes não
prevêem personalidade jurídica para o embrião.
Para Adriano de Cupis:
“A personalidade é geralmente definida como uma
susceptibilidade de ser titular de direitos e obrigações, e
nem é mais do que a essência de uma simples qualidade
jurídica. A personalidade não se identifica com os direitos
e obrigações jurídicas; constitui a pré condição deles, ou
seja, o seu fundamento e pressuposto” 134 .
Toda nova tecnologia gera polêmicas, que, nessa
questão, somente impedem que pessoas com doenças neuromusculares,
renais, cardíacas, hepáticas ou diabetes sejam tratadas, impedindo, dessa
130
SOUZA, Draiton G. de; ERDTMANN, Bernardo (org). Ética e Genética II. – Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2003. p.65.
131
KELSEN. Teoria Pura do Direito, pp. 242 e 243.
132
Código Civil Brasileiro, art. 2º.
133
CUPIS Adriano de. apud SUNDFELD, Carlos Ari. 2005, p. 61
134
1961, p. 13 apud SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite (org), 2001, p. 156.
60
forma, que médicos e cientistas descubram a cura para uma série de
doenças.
Como a espada da justiça, a tecnologia tem dois fios.
Pode ser usada para o bem ou para o mal. As tecnologias que resultarão,
e que já resultaram, dos avanços da genética humana podem aliviar o
sofrimento e a miséria dos humanos. Cabe, porém, aos leigos, e não aos
profissionais, controlar o novo conhecimento e sua aplicação tecnológica
sob o viés ético.
A dignidade humana é o valor constitucional supremo que
agrega em torno de si a unanimidade dos demais direitos e garantias
fundamentais do homem, expressos na Constituição, tais como direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, entre outros, direitos que são
conferidos a todos de modo igual, segundo consta o caput do artigo 5º.
Alexandre de Moraes define o direito à vida o mais
fundamental de todos os direitos, “já que se constitui em pré-requisito à
existência e exercício de todos os demais direitos” 135 .
Tem-se com isso que sem o reconhecimento do direito à
vida ao embrião, é impossível a tangibilidade dos demais direitos à pessoa
humana ou ao embrião fertilizado in vitro.
É mister que se busque um ponto de equilíbrio entre as
duas posições antiéticas: ou a proibição total de toda e qualquer atividade
biomédica, o que significa uma freada no processo científico em curso, ou
a permissividade plena, que pode gerar prejuízos éticos, humanos e
sociais inimagináveis. E esse ponto de equilíbrio deve ser buscado num
dos princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito, isto é, a
dignidade da pessoa humana.
Para o jusnaturalismo de Kant, sendo racional e livre, o
homem é capaz de impor a si mesmo normas de conduta, designadas por
normas éticas, válidas para todos os seres racionais que, por sua
racionalidade, são fins em si e não meios a serviço dos outros. A norma
básica de conduta moral que o homem pode-se prescrever é que em tudo
135
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional.- 14.ed. – São Paulo: Atlas, 2003. p.63.
61
o que faz deve sempre tratar a si mesmo e a seus semelhantes como fim e
nunca como meio 136 .
A concepção Kantiana a respeito da dignidade é essencial
à atribuição de significado jurídico ao termo embrião, e logicamente, para a
determinação do sentido do alcance do Princípio da Dignidade Humana.
No art. 208 da Carta Magna vislumbra-se o incentivo, pelo
Estado, do desenvolvimento científico, da pesquisa e da capacitação
tecnológica.
O texto constitucional protege todas as formas de vida,
inclusive a uterina.
O patrimônio genético da pessoa humana tem proteção
ambiental constitucional observada em face do que determina o art. 225,
§1º, incisos II e V, iluminada pelo art 1º, inciso III, Carta Magna, sendo
certo que a matéria foi devidamente regulamentada pela Lei de
Biossegurança, que define no âmbito infraconstitucional a tutela jurídica
dos mais importantes materiais genéticos vinculados à pessoa humana
137
.
Ocorre que células-tronco embrionárias utilizadas em
pesquisas ou para fins terapêuticos são criadas in vitro, ou seja, cultivadas
em laboratório, não são introduzidas em um útero humano, o que
diferencia a crio conservação terapêutica de uma reprodutiva. Os
argumentos de pessoas que se opõem à crio conservação terapêutica,
dentre outros, é que esta abrirá caminho para a clonagem reprodutiva e
que isso geraria um comércio de óvulos e embriões. Nesse caso, é
essencial lembrar que, para a ocorrência dessa hipótese, existe um
obstáculo insuperável, qual seja a necessidade de um útero. Para isto
bastaria proibir a transferência desses embriões criados por meio de
clonagem terapêutica para um útero.
Cabe ainda salientar as diferentes definições do direito à
vida, para quem tem em casa um portador de moléstia degenerativa ou
alguém que perdeu os movimentos. Por vezes a definição do direito à vida
136
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. São Paulo: Saraiva,
1995. p.39.
137
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 8.ed. ver., atual.e
ampl. – São Paulo: Saraiva, 2007.
62
se consubstancia em livrar o filho do respirador, suturar-lhe a fenda na
barriga, por onde se alimenta, e resgatar-lhe a dignidade humana.
A vida é o bem jurídico mais importante a ser tutelado. O
uso de células-tronco embrionárias é uma técnica, não um pecado, e toda
técnica após descoberta ganha vida própria e pode fugir ao controle. No
entanto a técnica e sua descoberta não são os verdadeiros problemas, e
sim o uso que a civilização faz, para o bem ou para o mal, de suas
invenções.
63
CONCLUSÃO
É inegável que a descoberta científica acerca do poder
das células-tronco foi um grande salto dado pela ciência, especialmente no
Brasil.
Até então doenças tidas como incuráveis, tais como mal
de alzheimer, parkinson, diabetes tipo 2, agora têm chances de não
produzirem seus sintomas, e se forem produzidos, serão reduzidos a um
nível quase imperceptível.
O verdadeiro início dessas pesquisas se deu há muito
tempo. Época essa em que os microscópios não possuíam as lentes tão
potentes quanto as de hoje. Porém a tecnologia não permitiu grandes
avanços. Mas a insistência dos cientistas de então é que propiciou a visão
atual: o mapeamento genético e as promessas de saúde nunca possíveis
como hoje.
Toda pesquisa descortina uma gama de segredos. Com o
passar do tempo, foram descobertos outros tipos de células-tronco. Mais
tarde percebeu-se a presença delas em lugares não pensados antes: no
tecido hematopoiético (tecido que origina o sangue) em adultos, no cordão
umbilical e no tecido epitelial (pele).
Com o avanço do conhecimento concomitante ao da
tecnologia, foi possível visualizar alguns comportamentos celulares, no
sentido de definir qual a maneira escolhida pelas células para se
desenvolverem.
Entre uma pesquisa e outra, surge a necessidade de
atender a casais atingidos pela anomalia da infertilidade. Os cientistas
esmeram-se em elaborar uma técnica capaz de ajudar esses casais e
promovem uma conquista intitulada fertilização in vitro.
Essa técnica promete àqueles que sofrem com a
infelicidade de não conseguirem fecundar gametas femininos com os
masculinos de modo natural, a efetiva e concreta fecundação com auxílio
de mãos humanas, com o fim de atingir a concepção, e, logo após, o
nascimento de uma criança saudável.
64
Toda pesquisa descortina uma gama de segredos, repitase. Ao passar do tempo, foram sobrando gametas fecundados, sem
perspectiva de serem inseminados, em razão da alta eficácia da
fecundação in vitro.
Contudo nascem várias dúvidas: o que fazer com esse
material genético congelado, ora denominado comumente de embrião?
Seria essa técnica saudável? Guardar embriões virou moda? Pode-se usálos para outros fins que não seja a reprodução humana? Existe licitude
nesse
pensamento?
Existe
eticidade
no
tocante
à
prática
de
acondicionamento de embriões humanos? Pode-se trocá-lo? Vendê-lo?
Doá-lo a outros que queiram exercer o direito à paternidade? Descartá-los?
No Brasil o costume imperante é de criar leis para que
elas resolvam os problemas sociais. Pois bem, foi sancionada a Lei de
Biossegurança no ano de 2005. E mais um segredo é incorporado no rol
de revelações: a possibilidade de os embriões congelados serem
pesquisados ou utilizados em fins terapêuticos, desde que sejam
considerados inviáveis (a lei não determina como se dá essa inviabilidade)
e haja o consentimento dos genitores em doá-los, independentemente para
qual dos dois fins apontados previamente.
E aqui surgem barreiras éticas, morais, espirituais,
religiosas, políticas, econômicas, financeiras e jurídicas. Há um alvoroço.
Uns concordam, outros discordam. Não há consenso.
Como
uma
paródia,
“a
alegria
dos
cientistas
e
pesquisadores durou pouco”. Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade é
ajuizada pelo então Procurador-Geral da República, Cláudio Fontelles,
contra a Lei nº 11.105/2005, cujo teor versa sobre o art. 5º da referida
legislação, o qual, no entendimento do Procurador, fere princípios
constitucionais irrevogáveis e intransmissíveis, sugerindo, assim, que a Lei
de
Biossegurança
seja
declarada
inconstitucional,
extirpando
do
ordenamento jurídico vigente toda sua eficácia, validade, aplicabilidade e
tangibilidade.
Para dar o direito àqueles que o invocam, ao Supremo
Tribunal Federal, pela Carta Magna, coube solucionar todos os impasses
oriundos dessa relação jurídica imprevisível: de um lado milhões de
65
brasileiros às filas dos hospitais à espera de um tratamento para suas
anomalias e patologias. De outro, milhões de células recém pesquisada e
consideradas a chave que abrirá a porta da cura na vida dessas pessoas
acometidas por tanto sofrimento.
Juridicamente, de um lado do conflito a norma que prevê
o direito à saúde dos cidadãos brasileiros, como garantia constitucional do
Estado, e, de outro, uma figura ainda não inserida no ordenamento jurídico,
a qual não se sabe ainda como classificá-la. Afinal as opiniões
consideradas se dividem. E novamente não há consenso.
O início da vida, ninguém se atreve a dizê-lo, ou por não
ser determinável aos humanos, ou por medo de errar. Mas arrisca-se muito
mais ao determinar o que não é vida. O conceito negativo pressupõe o
conhecimento do positivo. Enfim instaura-se uma guerra de conceitos.
Uma mídia manipulada orienta sua massa sobre qual posicionamento é
melhor. Especialistas espanhóis aparecem timidamente em folhas de papel
A4 esclarecendo a verdadeira bomba que se esconde por detrás das
pesquisas com células-tronco embrionárias 138 .
Ao cair da noite, o assunto esfria e todos dormem. De
repente, os flashes lampejam, os carros voam e a audiência pública
começa. Sob a mira de lentes, testemunhas e esperançosos de todo o
país, uma renomada pesquisadora mostra a crueldade executada em um
embrião utilizado para fins terapêuticos, e, antes disso, tido como inviável
para os fins propostos inicialmente.
Alguns meses depois, e mais uma audiência. Essa mais
esperada que a primeira pelo fato de a solução para o caso estar prestes a
ser dada. Alvoroço. Nervosismo. Ceticismo. Impaciência. Um voto lido em
aproximadamente três horas e trinta minutos. O Ministro Relator, soube-se
que houvera feito uso de medicamentos para conseguir dormir em paz, e
por ironia do que quer que seja, proferiu um voto filosófico, jurídico,
138
Os meios de comunicação têm mostrado muitas soluções oriundas da utilização terapêutica de
células-tronco embrionárias. Por outro lado, eles não divulgam como, onde e quando essas células
podem ser implantadas ou transplantadas. E ainda, não esclarecem acerca dos possíveis riscos da
recepção deste material genético, tal como a rejeição das células implantadas e/ou transplantadas.
Vale ressaltar que implante refere-se à transferência autóloga, que significa dizer que as célulastronco recebdias são do prórpio receptor, ao passo que células transplantandas subentende-se serem
de doador diverso/desconhecido.
66
deôntico, biológico, com a total incidência da vontade legis e político. No
desfecho, todas as vênias são apresentadas aos que contrário pensam e
defendem.
Nesse
momento,
os
muros
da
Ação
Direta
de
Inconstitucionalidade começaram a ruir. O voto foi pela improcedência da
iniciativa. A Ministra Ellen Gracie, no momento Presidente do Egrégio
Tribunal, acompanhou o Ministro Relator. Para a angústia de alguns, um
dos Ministros pediu vistas dos autos do processo, para que tenha
condições de votar conscientemente.
Dúvidas foram aclamadas, questionando-o: seria esse
pedido de vista meramente protelatório? Será que o Ministro não vê a
urgência do assunto, enquanto milhões de pessoas sofrem? Ele não tem
filhos à espera dessa solução?
Os que aguardam ansiosamente pelo desfecho dessa
intempérie jurídica torcem para que o restante dos Ministros façam o papel
de maria-vai-com-as-outras e votem seguindo o Relator. É óbvio que
copiar é menos prejudicial e arriscado do que criar.
A vida se tornou um bem móvel, o qual pode ser trocado
por um pouco de incerteza. O embrião ganha outros nomes: mórula,
blástula, gástrula, folheto germinativo. Todas as denominações são dadas
para que a ética seja vislumbrada nessa prática e as pesquisas sigam seus
rumos sem culpa. Culpa? É instituto do direito penal, diriam os menos
avisados (ou intencionalmente retóricos).
“Conceder um direito inexeqüível é auto-negação do
Poder do Estado” 139 . Fechar os olhos para a verdade não é sinônimo de
imparcialidade. Imparcialidade? É ficção jurídica no caso em tela. E
embrião? O embrião, como lembra Emerson Ike Coan é alcançado pelo
direito à vida que se manifesta desde a concepção – ainda que artificial –
até a morte – “com proteção exigida quanto mais insuficiente for seu titular,
não sendo direito sobre a vida, mas à vida” 140 ..
139
140
Extraído do Voto do Ministro Relator da Adin 3510/2005.
COAN, Emerson Ike apud SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite Santos (org). 2001.p.259.
67
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