Transfusão em neonatologia: avaliação multicênctrica.

Transcrição

Transfusão em neonatologia: avaliação multicênctrica.
TRANSFUSÃO EM NEONATOLOGIA: AVALIAÇÃO MULTICÊNTRICA
Maria Rosales
Isabel Miranda n José António Duran n Manuel Figueiredo
António Marques n Jorge Condeço n José Barbot
n
RESUMO
ABSTRACT
CONTEXTO: Os recém-nascidos, quando são transfundidos
de forma intensiva, constituem um grupo etário com particularidades únicas, condicionando procedimentos transfusionais específicos. A sua longa expectativa de vida torna inexoráveis as manifestações de eventuais efeitos nefastos da
transfusão, tanto a nível de morbilidade como de mortalidade.
É neste contexto delicado que na história da medicina transfusional se vêm procurando procedimentos que dêem resposta às questões colocadas. Muitas das recomendações
publicadas baseiam-se num baixo grau de evidência científica resultado das limitações que se colocam em termos experimentais. Deste facto resulta uma reconhecida disparidade
entre os procedimentos seguidos pelos diferentes serviços
que trabalham nesta área. Partindo destas premissas, procurou-se, através de um inquérito a nível nacional dirigido aos
serviços de imuno-hemoterapia, avaliar o grau de discrepância na prática transfusional em neonatologia.
CONTEXT: Heavily transfused newborns are a group of patients with unique characteristics, conditioning specific
transfusion procedures. The eventual adverse effects of the
transfusion, both on a morbidity and mortality level, are
going to be inexorably patent, due to their long life expectancy. Within this delicate context, and throughout the history of transfusion medicine there have been attempts to find
procedures that answer the posed questions. Unfortunately,
MATERIAL E MÉTODOS: Realizou-se um estudo exploratório através do envio de um inquérito de resposta fechada para
autoaplicação a 72 serviços de imuno-hemoterapia abrangendo todo o território português, contendo um conjunto de
questões que se consideraram menos consensuais.
RESULTADOS: Responderam 29 serviços de 72 (40,3%).
As respostas recebidas representam um total de 3132 componentes ou fracções de componentes sanguíneos transfundidos. A maioria destes episódios (98,7%) referem-se a
serviços de hospitais em que existe uma unidade de cuidados intensivos neonatal. Isto levou a analisar unicamente as
respostas destes hospitais.
CONCLUSÕES: Constatou-se uma disparidade significativa em alguns procedimentos, que atinge proporções máximas no que respeita à irradiação de componentes celulares.
Este inquérito serviu para identificar diferentes opções e
procedimentos seguidos pelos diferentes serviços e poderá
constituir um contributo para a sua uniformização.
PALAVRAS-CHAVE: Recém-nascido, leucorredução, irradiação, transfusão permuta, validade, hematócrito
NÚMERO 29
many of the published recommendations are based on low
level scientific evidence, resulting from the experimental limitations. From this fact stems the well-known differences in
transfusion procedures among services working in this area.
Based on this premise, and using a survey aimed at Blood
Transfusion Services on a national level, we intended to
evaluate the degree of difference in transfusion practices in
newborns.
MATERIAL AND METHODS: An exploratory study was
carried out by means of a self-survey with closed-ended
questions sent to 72 Blood Transfusion Services throughout
Portugal, containing a series of questions on matters that
were considered less consensual.
RESULTS: 29 out of 72 services (40.3%) answered the survey. The answers received represent a total of 3132 blood
components or fractions of the blood components transfused. As was expected, the overwhelming majority of these
transfusions (98.7%) refer to hospitals where there is a Neonatal Intensive Care Unit. This fact led us to analyse only the
data received from such hospi
CONCLUSIONS: There are major differences in certain
transfusion practices among units, reaching a higher point
in the case of cellular component radiation. This survey
served to identify different options and procedures followed
by the different services and could contribute to their standardizatio
KEYWORDS: Neonate, leukorreduction, radiation, exchange
transfusion, validity, haematocrit.
JAN/MAR 2007
19
TRANSFUSÃO EM NEONATOLOGIA: AVALIAÇÃO MULTICÊNTRICA
INTRODUÇÃO
Os
Recém Nascidos (RN) internados numa Unidade de
Cuidados Intensivos (UCI) são provavelmente o grupo de
doentes mais intensivamente transfundido. Constitui ainda
um grupo com particularidades fisiológicas não compartilhadas por qualquer outro. São disso exemplo a interacção recente com a circulação materna, a imaturidade dos
sistemas imunológico e metabólico, a volemia reduzida, a
susceptibilidade acrescida a infecções transmitidas pelo
sangue e a importância que a espoliação iatrogénica assume como causa de anemia. A sua longa expectativa de
vida condiciona a inevitabilidade de potenciais manifestações dos efeitos nefastos da transfusão tanto a nível de
morbilidade como de mortalidade.
É neste contexto delicado que se vem procurando encontrar procedimentos no âmbito da transfusão do RN que
dêem resposta a estas particularidades e preocupações.
Infelizmente, e essencialmente por motivos de ordem
ética que condicionam a experimentação neste grupo
etário, os procedimentos baseiam-se muitas vezes num
baixo grau de evidência científica resultando as recomendações publicadas muitas vezes de uma abordagem consensual. Resulta deste facto uma disparidade acentuada
nos procedimentos seguidos pelas diferentes unidades
que transfundem RN.
Em Portugal, este grau de discrepância ainda não é conhecido pelo que entendemos que deveria ser avaliado. Este
trabalho pretende assim ser um estudo exploratório desta
realidade, já que a falta de referências implicou o desenvolvimento de um trabalho de base. Pretendeu-se avaliar
a prática transfusional dos serviços de imuno-hemoterapia
relativamente à neonatologia, englobando questões com
menor grau de evidência.
Decidiu-se não realizar um pré-teste já que após a revisão por peritos se considerou que, sendo a população
alvo especialistas de imuno-hemoterapia e tendo em
atenção o baixo número de serviços de observação, este
procedimento poderia ser dispensado. Tratando-se de
um estudo exploratório foi também decidido à partida
que o inquérito serviria como ponto de partida para uma
melhoria posterior.
Os inquéritos foram enviados a 72 serviços de imunohemoterapia abrangendo todo o território português.
RESULTADOS
Responderam 29 serviços de 72 (40,3%). As respostas
recebidas representam um total de 3132 componentes ou
fracções de componentes sanguíneos transfundidos em
RN [Concentrado de Eritrócitos (CE), Concentrado de
Plaquetas (CP) e Plasma Fresco Congelado (PFC)]. A
grande maioria de transfusões (98,7%) referia-se a serviços de hospitais em que existe uma Unidade de Cuidados Intensivos Neonatal (UCIN) (n=14).
Esta constatação levou a realizar a análise de respostas
somente destes 14 hospitais, já que a análise da globalidade das instituições respondentes não se poderia considerar prática transfusional consistente, e assim não servindo ao objectivo proposto.
Os resultados foram sistematizados por questão, apresentando-se a seguir.
MATERIAL E MÉTODOS
20
ganizador das reuniões e os autores da apresentação. Este
grupo procedeu à elaboração do inquérito inicial, posteriormente submetido à apreciação de profissionais com
responsabilidade e experiência na área, trabalhando em
hospitais da região norte do país. As questões foram formuladas focalizando-se essencialmente em procedimentos de baixo grau de evidencia científica (Anexo1).
Procedeu-se a um estudo exploratório relativo aos dados
do ano de 2005. A metodologia utilizada para este estudo
foi a realização de um inquérito autoaplicado de resposta fechada. O esboço deste inquérito surgiu da apresentação do protocolo “Transfusion Guidelines for Neonates
and Older Children” do British Committee for Standards
in Haematology (BCSH) publicado em 2004 na reunião
de “Temas de Medicina Transfusional“ promovida pelo
Centro Regional de Sangue do Porto do Instituto Português do Sangue.
Na consequente discussão desse protocolo tornou-se claro o pouco conhecimento interinstitucional nacional dos
procedimentos transfusionais neste grupo etário. Constituiu-se um grupo de trabalho que englobou o núcleo or-
NÚMERO 29
ORIGEM
DE
COMPONENTES SANGUÍNEOS
A maioria dos serviços inquiridos (n=12) afirmaram contemplar esta preocupação através da selecção de dadores
de sangue regulares.
COMPONENTES CELULARES SEROLOGICAMENTE NEGATIVOS
PARA O CITOMEGALOVÍRUS
Relativamente a esta questão, 6 serviços admitiram recorrer a produtos Citomegalovírus (CMV) negativos em circunstâncias particulares. De salientar que apenas 2 res-
JAN/MAR 2007
TRANSFUSÃO EM NEONATOLOGIA: AVALIAÇÃO MULTICÊNTRICA
postas afirmativas se referiam a situações de maior frequência (RN <1500g e RN prematuros filhos de mães
CMV negativas).
As restantes respostas afirmativas referiram-se a uma ou
mais situações raras [Imunodeficiência (ID) n=2, Tranfusão Intrauterina (TIU) n=5, receptores de transplantes de
progenitores hematopoiéticos n=2]. Será de admitir que
os 8 serviços que responderam negativamente o tenham
feito pelo facto de estas situações raras não terem ocorrido na sua prática (Figura 1).
Figura 2 - Situações particulares de irradiação
SELECÇÃO DE CONCENTRADO DE ERITRÓCITOS
TRANSFUSÃO DE PEQUENO VOLUME
RN <1500g
Figura 1 - Situações de componntes celulares CMV negativos
IRRADIAÇÃO
DE
COMPONENTES CELULARES
No que respeita a esta questão, verificou-se uma disparidade acentuada de respostas consubstanciada no facto
de 3 serviços afirmarem irradiar sistematicamente todas
as unidades dirigidas a RN, enquanto 3 outros afirmaram
não o fazer nunca. Os restantes 8 serviços referiram recorrer à irradiação em circunstâncias particulares. É de
salientar que apenas algumas destas respostas se referiam às circunstâncias mais frequentes [Transfusão Permuta (TP) n=4, RN <1500 g n=4, RN <1000 g n=1]. As
restantes referiram-se a situações raras (ID n=11, dador
HLA seleccionado n=6, TIU n=6, TIU prévia n=6, dador
familiar n=5). Também aqui se pode colocar a interrogação se os 3 serviços que responderam não irradiar nunca
o fizeram pelo facto de estas situações raras não terem
ocorrido na sua actividade (Figura 2).
Todos os serviços afirmaram proceder à subdivisão do
saco mãe de CE em fracções para cada episódio transfusional. Em caso de indicação para irradiação, a maioria
(n=8) afirmou irradiar separadamente cada uma das fracções, enquanto 3 afirmaram irradiar primariamente o
saco mãe, com a consequente limitação do prazo de validade.
NÚMERO 29
PARA
Relativamente à questão da eventual presença no RN de
anticorpos (Ac) anti-A/-B de origem materna, seis dos
serviços inquiridos afirmaram resolver esta questão através da utilização sistemática de CE do grupo O. Os restantes 8 afirmaram transfundir preferencialmente sangue
isogrupal no caso de não existir discrepância ABO mãefilho. Nesta circunstância, apenas um hospital admitiu a
possibilidade de transfundir sangue isogrupal com titulação prévia de Ac anti-A/-B no plasma do RN.
Relativamente à questão da susceptibilidade do RN à
hemólise provocada pela transfusão de Ac anti-A/-B
existentes nas unidades de CE do grupo O, dois serviços
revelaram preocupar-se com ela através da titulação prévia de Ac anti-A/-B nas unidades transfundidas do grupo
O, quando não isogrupais. Sete responderam não o fazer, enquanto os restantes 5 não responderam a esta
questão.
Nove dos 14 serviços afirmaram optar pela utilização
preferencial de CE sem salino-adenina-glucose-manitol
(SAG-M).
ENCURTAMENTO DO PRAZO DE VALIDADE VERSUS
R EDUÇÃO DA EXPOSIÇÃO A DADORES
A totalidade dos 14 serviços afirmou recorrer a metodologias com este objectivo. Seis responderam recorrer a colheita especial de forma a dispor de sacos satélite, enquanto 6 responderam recorrer a dispositivo de conexão
estéril. Dois admitiram o recurso às duas metodologias em
alturas diferentes.
JAN/MAR 2007
21
TRANSFUSÃO EM NEONATOLOGIA: AVALIAÇÃO MULTICÊNTRICA
Relativamente ao prazo de validade dos CE, 9 serviços
admitiram a utilização das unidades até ao limite, enquanto 5 afirmaram o contrário. Dificuldades na interpretação das respostas, resultado de uma formulação menos
clara da questão, não permitiram determinar as circunstâncias em que estes 5 serviços optavam pelo encurtamento do prazo de validade.
SELECÇÃO
DE
CONCENTRADO
DE
PLAQUETAS
Treze serviços afirmaram utilizar como primeira opção
CP isogrupal. Um referiu a utilização preferencial de CP
do grupo AB.
Oito serviços afirmaram como segunda opção recorrer a
CP do grupo AB, embora não referindo qual opção alternativa, conhecida que é a baixa frequência deste grupo.
Um serviço respondeu utilizar CP do grupo O como segunda opção. Os 5 restantes ou não responderam ou fizeram-no de uma forma não interpretável.
Apenas um serviço referiu proceder à titulação prévia de
anticorpo anti-A,-B em CP do grupo O quando não isogrupal. Oito referiram não o fazerem embora um deles
tenha afirmado contemplar esta questão através da redução de volume do plasma da unidade. Cinco não
responderam.
SELECÇÃO
DE
PLASMA FRESCO CONGELADO
Oito serviços referiram utilizar PFC/SD. Os restantes 6
revelaram usar preferencialmente PFC de quarentena.
Relativamente a compatibilidade ABO, 9 serviços referiram a utilização de PFC isogrupal como primeira opção
enquanto 5 afirmaram recorrer a PFC de grupo AB.
22
Uma deficiente elaboração do inquérito não permitiu
discriminar atitudes face à disponibilidade ou não de
amostra de sangue materno.
SISTEMA UTILIZADO PARA ADMINISTRAÇÃO DE
CONCENTRADO DE ERITRÓCITOS, CONCENTRADO
DE PLAQUETAS E PLASMA FRESCO CONGELADO
A maioria dos serviços (n=10) referiu a utilização preferencial dos calibres 23/25G das cânulas usadas na transfusão do RN. Dois referiram utilizar calibre 26G e 3 não
responderam. Relativamente à metodologia de transfusão de CE, 9 serviços afirmaram utilizar bomba perfusora
com filtro incorporado e 4 bomba perfusora após aspiração para seringa. Um serviço admitiu recorrer aos 2 métodos em alturas diferentes.
Relativamente à transfusão de CP, 6 afirmaram utilizar
bomba perfusora após aspiração para seringa e 6 afirmaram transfundir por gravidade. Um serviço afirmou utilizar bomba perfusora com filtro e outro não respondeu.
Relativamente à transfusão de PFC, 8 afirmaram utilizar
bomba perfusora com filtro, 5 bomba perfusora após
aspiração para seringa. Um serviço não respondeu.
ESPECIFICIDADES CONTEMPLADAS
NA
TRANSFUSÃO PERMUTA
Na TP, a maioria das questões levantadas adquirem
maior pertinência dado o elevado volume de sangue
transfundido.
Apenas se verificou unanimidade no que respeita ao encurtamento do prazo de validade de unidades de CE
utilizadas.
Dois serviços referiram recorrer a CE serologicamente
negativos para CMV, embora um realce que o faz apenas
quando possível e outro quando a mãe se revela serologicamente negativa.
TESTES PRÉ -TRANSFUSIONAIS
A totalidade dos serviços revelou contemplar particularidades específicas de este grupo etário, verificando-se
unanimidade no que respeita à determinação do grupo
ABO da mãe e do RN, à realização do teste antiglobulina
humana directo (TAD) no RN e teste antiglobulina humana indirecto (TAI) na mãe. Apenas 2 serviços referiram
proceder ao TAD na mãe e 3 ao TAI no RN. Relativamente às provas de compatibilidade, a totalidade afirmou
utilizar plasma/soro da mãe. Oito afirmaram fazer também provas de compatibilidade com plasma/soro do RN.
NÚMERO 29
Todos os serviços referiram proceder ao ajustamento
prévio do hematócrito da unidade de CE utilizada. Dois
afirmaram fazê-lo preferencialmente com plasma solidário, 2 com plasma de quarentena, 1 com albumina e 4
com PFC/SD. Três admitiram a utilização em alturas diferentes das duas primeiras modalidades (plasma solidário
e plasma de quarentena), enquanto 2 admitiram a utilização em alturas diferentes das duas últimas (albumina e
PFC/SD) (Figura 3).
JAN/MAR 2007
TRANSFUSÃO EM NEONATOLOGIA: AVALIAÇÃO MULTICÊNTRICA
Confirmou-se a necessidade de em futuras avaliações
melhorar algumas questões, já que se constatou algumas
interpretações menos correctas e/ou precisas do que era
solicitado, mas que são justificadas pelo caractér do estudo e do seu âmbito, descritos no capítulo de materiais
e métodos.
com albumina e PFC-SD
com plasma solidário e
plasma de quarentena
com PFC-SD
com albumina
No entanto, apesar destas limitações, pensamos que este
estudo constitui uma mais valia para a realização de trabalhos posteriores.
com plasma de quarentena
com plasma solidário
Figura 3 - Ajustamento do hematócrito
Verificaram-se maiores discrepâncias relativamente à irradiação de unidades de CE (8 sim/ 6 não) e à utilização de
unidades de CE sem soluções aditivas (10 sim/ 4 não).
PROTOCOLOS R EFERENTES
AO
SERVIÇO
DE
NEONATOLOGIA
Apenas um Serviço de Imuno-hemoterapia referiu não
existir na respectiva UCIN um protocolo de transfusão
específico para RN. De referir, no entanto, que apenas 8
afirmaram ter tido parte activa na sua elaboração.
Onze serviços referiram existirem nas respectivas UCI
protocolos de utilização de eritropoietina (EPO), embora
apenas um refira ser parte activa, quer na sua elaboração, quer na avaliação dos respectivos resultados.
Relativamente à existência de registos de espoliação iatrogénica, 6 serviços afirmaram possuir esses registos, 5
não os possuírem e 3 não responderam. De referir que
os 6 serviços que responderam afirmativamente, disseram não ser a quantificação da espoliação iatrogénica
utilizada como critério transfusional.
DISCUSSÃO
Ao analisar os resultados deste trabalho não nos podemos esquecer do seu carácter exploratório, que explica
algumas das deficiências e lacunas metodológicas encontradas. São exemplos disto o facto de os autores do inquérito rapidamente se terem apercebido do carácter
residual das transfusões, neste grupo etário, em hospitais
não dispondo de UCIN. Este facto conduziu-nos, já depois da recepção das respostas, a estruturar a análise dos
dados só dos hospitais com este tipo de unidades. Este
achado indica também claramente que em estudos posteriores a focalização nos Serviços de Imuno-hemoterapia de hospitais com UCIN obterá a parte representativa
da informação.
NÚMERO 29
Neste estudo constatou-se, como de alguma maneira seria
de esperar, uma disparidade acentuada de procedimentos,
que atinge proporções máximas no que respeita à irradiação de componentes celulares. Verificou-se, com efeito,
existirem serviços que irradiam sistematicamente todas as
unidades na transfusão de pequeno volume (TPV) enquanto que outros não o fazem nunca. Embora rara, a
Doença de Enxerto Contra Hospedeiro (DECH) é geralmente uma complicação fatal, e desde há muito se sabe
que a forma mais eficaz de a prevenir, e actualmente a
única aceite, é a irradiação dos produtos celulares no sentido de eliminar os linfócitos T. No entanto, não existe
evidência científica irrefutável que permita seleccionar
com precisão as situações em que o grau de défice imunitário determina a indicação absoluta para irradiação1,2,3,4,6.
Este facto, associado a dificuldades objectivas em conseguir irradiação em tempo útil, que diferem de unidade
para unidade, poderá estar na origem desta discrepância.
A reconhecida susceptibilidade acrescida do RN a eventuais infecções transmitidas pelo sangue, assim como a
inevitabilidade das suas manifestações a curto, médio ou
longo prazo, justificam alguma exigência especial na selecção de dadores. Ainda que de forma não consensual,
alguns peritos recomendam que os componentes sanguíneos provenham de dadores que tenham efectuado no
mínimo uma dádiva de sangue com todos os testes de
marcadores víricos negativos nos 2 anos anteriores1,2,3,4.
Esta preocupação revelou-se comum à maioria dos serviços que responderam ao inquérito.
Relativamente ao recurso de componentes serologicamente negativos para o CMV, o facto de apenas 2 respostas afirmativas se referirem a situações de maior frequência, leva-nos a concluir tratar-se de um procedimento de
opção rara na globalidade das transfusões nas nossas
unidades. Esta atitude é legitimada pelo facto de a leucorredução ser hoje reconhecida como eficaz sendo que
o Conselho da Europa e a Associação Americana dos
Bancos de Sangue (AABB) afirmam a equivalência em
termos de risco entre unidades seronegativas e leucorreduzidas. Apesar disso, por exemplo, o Irish Blood Trans-
JAN/MAR 2007
23
TRANSFUSÃO EM NEONATOLOGIA: AVALIAÇÃO MULTICÊNTRICA
fusion Service continua a seleccionar para a transfusão
do RN produtos celulares provenientes de dadores seronegativos1,2,3,4,5.
Existem, por outro lado, procedimentos de indicação
mais consistente em que se verificou uma uniformidade
que é de salientar. É o caso dos testes pré-transfusionais
executados. Nos receptores de transfusão menores de 4
meses, os testes realizados apresentam algumas particularidades, fundamentalmente devidas à imaturidade imunológica pela qual o RN não desenvolveu ainda Ac e,
também, à transferência passiva de Ac maternos para o
feto durante a gravidez1,2,3,4,9.
Noutro tipo de questões, a disparidade de procedimentos
estará relacionada com a pouca evidência científica que
existe em torno delas. É o caso, por exemplo, da dificuldade na avaliação de eventuais efeitos nefastos de Ac
existentes no plasma que acompanha produtos celulares
(CE e CP). Relativamente à transfusão de CE, de salientar
que a totalidade dos serviços, embora não obrigatoriamente através de procedimentos semelhantes, demonstrou contemplar os riscos que coloca a transmissão materna de Ac anti-A,-B em caso de discrepância ABO devido à
interacção recente com a circulação materna. O mesmo
não aconteceu relativamente ao receio de hemólise provocada pela transfusão de eventuais Ac anti-A,-B existentes nas unidades de CE do grupo O transfundidas, já que
apenas 2 serviços procedem à respectiva titulação prévia.
Trata-se de questões cuja resposta varia também com as
metodologias utilizadas na separação de componentes.
Este facto é justificável pelo actual muito reduzido volume
de plasma existente nas unidades de CE.
24
Existe um terceiro grupo de questões em que seria importante uma uniformização de procedimentos, já que
estarão em causa eventuais efeitos nefastos difíceis de
avaliar no imediato. Referimo-nos a que a imaturidade
do sistema metabólico do RN coloca a questão da eventual toxicidade de solutos conservantes e soluções aditivas utilizadas no CE, nomeadamente o manitol1,2,3,4, ou
de produtos de inactivação viral. Esta questão coloca-se
de forma mais pertinente na TP, em que o volume transfundido é muito maior. Nesta questão, aparentemente
importante, e talvez contra o que seria de esperar, verificou-se uma discrepância importante de atitudes. O beneficio da utilização do PFC/SD relativamente à utilização
do plasma fresco congelado de quarentena está ainda
por esclarecer. À luz dos conhecimentos actuais, não é
possível contabilizar o risco de uma exposição a uma
metodologia de inactivação vírica, e de eficácia discutível
nos vírus sem envelope lipídico, que implica uma exposição a múltiplos dadores, versus uma metodologia que,
NÚMERO 29
embora não recorrendo à inactivação vírica, condiciona
a exposição a um único dador1,2,3,4,8. Ainda sobre receios
decorrentes desta imaturidade, de salientar que a maioria
dos serviços demonstrou desvalorizar eventuais efeitos
nefastos de alterações metabólicas das unidades de CE
decorrentes do seu tempo de armazenamento. Esta atitude está de acordo com as recomendações actuais que
privilegiam a redução da exposição a dadores através da
utilização, nas TPV, da mesma unidade de CE até ao limite do seu prazo de validade para diferentes episódios
transfusionais do mesmo RN1,2,3,4. É de salientar, aliás,
que a totalidade dos serviços contempla esta questão
através de metodologias de subdivisão das unidades de
CE até ao limite do seu prazo de validade.
Algumas discrepâncias verificadas estarão, por certo, relacionadas com a falta de uniformidade relativa a estas
questões na literatura. Damos como exemplo a questão
do grupo ABO das unidades de CP a transfundir. Se o
recurso a unidades isogrupais como primeira opção é
unânime (apenas um serviço afirma recorrer a CP do
grupo AB por razões consensuais), mais controversa é a
questão da segunda opção. As recomendações do BCSH
referiam o uso preferencial de unidades do grupo O
quando o receptor é do grupo A e unidades do grupo A
quando o receptor é do grupo B. Referiam, no entanto,
a conveniência em seleccionar unidades com baixo título
de Ac naturais. Esta recomendação foi alterada numa
emenda recente a partir do momento em que o Serious
Hazards of Transfusion (SHOT) referiu 2 casos de hemólise intravascular grave em RN transfundidos com CP do
grupo O não isogrupal. As recomendações actuais deste
organismo são compartilhadas por outras recomendações e referem os CP grupo O como a opção menos
aconselhável para RN de grupo não O1,2,3,4,7.
São escassas as referências aos calibres das cânulas usadas na transfusão do RN. O manual técnico do AABB
refere os calibres 23/25G como sendo aqueles que mais
minimizam a hemólise mecânica1,2,3,4.
Seria de esperar uma maior participação dos Serviços de
Imuno-hemoterapia na elaboração dos critérios transfusionais e dos protocolos de utilização de EPO nas respectivas UCI. No caso da EPO10, apenas um serviço refere
intervenção na elaboração do protocolo assim como na
avaliação dos respectivos resultados. Esta situação é particularmente contraditória na medida em que o que está
em causa é uma redução do número de transfusões e em
que a totalidade dos serviços demonstra preocupar-se
com esta questão, através da implementação de metodologias dirigidas à minimização da exposição a dadores.
JAN/MAR 2007
TRANSFUSÃO EM NEONATOLOGIA: AVALIAÇÃO MULTICÊNTRICA
CONCLUSÕES
Este estudo revelou uma significativa disparidade em alguns dos procedimentos e serviu para identificar diferentes opções seguidas pelos diferentes serviços. Apesar de
algumas deficiências de formulação que dificultaram a
interpretação de algumas perguntas, o inquérito poderá
constituir um instrumento de trabalho no sentido da normalização de procedimentos e servir como ponto de partida para uniformizar atitudes transfusionais a nível nacional, no que respeita a um grupo etário que coloca problemas tão delicados como é o do RN. Nesta matéria seria
importante que, à luz dos conhecimentos actuais, fossem
elaboradas normas por entidades competentes de forma a
não deixar a decisão para cada serviço individualmente.
REFERÊNCIAS
1. Irish Blood Transfusion Service. National Blood User’s Group
Review and Guidelines for the Transfusion of Blood Components for infants under four months – Draft. Version 1. (online). 06 February 2006. (Capturado em 15 de Maio de 2006).
Disponível em http://www.ibts.ie/docs/Fetal%20and%20neon
atal%20guidelines%2006%2002%2006.pdf .
2. Gibson BE, Todd A, Roberts I, Pamphilon D, Rodeck C, BoltonMaggs P, Burbin G, Duguid J, Boulton F, Cohen H, Smith N,
McClelland DB, Rowley M, Turner G. British Committee for
Standards in Haematology Transfusion Task Force: Writing
group. Transfusion guidelines for neonates and older children.1: Br J Haematol. 2004 Feb;124(4):433-53.
10. C Chacon Aguilar R, Escorial Briso-Montiano M, Sopetran Rey
Garcia M, Garcia Sanz C, Ruperez Lucas M, Lopez-Herce Cid
J.Erythropoietin treatment in critically ill children. An Pediatr
(Barc). 2004 Nov;61(5):398-402. Spanish.
PERITOS QUE COLABORARAM NA REVISÃO E DISTRIBUIÇÃO
DO INQUÉRITO
Margarida Amil, Fernando Araújo, Isabel Lobo, Conceição Malcata
HOSPITAIS PARTICIPANTES
Hospital Maria Pia (Porto), Hospital Pedro Hispano (Matosinhos),
Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, Centro Hospitalar de Póvoa de Varzim/ Vila do Conde, Hospital São Marcos (Braga), Hospital Padre Américo (Vale do Sousa), Maternidade Júlio Dinis
(Porto), Hospital São João de Deus (Famalicão), Hospital São Sebastião (Santa Maria da Feira), Hospital Santo António (Porto),
Hospital Senhora da Oliveira (Guimarães), Hospital São Teotónio
(Viseu), Centro Hospitalar da Cova da Beira, Hospital São Pedro
(Aveiro), Hospital Pediátrico (Coimbra), Hospital Fernando Fonseca (Amadora), Hospital São Francisco Xavier (Lisboa), Hospital
CUF Descobertas (Lisboa), Maternidade Alfredo da Costa (Lisboa),
Centro Hospitalar do Barlavento Algarvio, Hospital Dona Estefânia
(Lisboa), Hospital da Horta, Hospital Central (Funchal), Hospital
de Angra do Heroísmo.
3. American Association of Blood Banks. Technical Manual. 15th
edition. 2005.
4. Ramón Salinas i Argente. Abordaje práctico de las alteraciones
hematológicas en la mujer embarazada y en el neonato. Asociación Española de Hematología y Hemoterapia 2004.
5. Council of Europe. Guide to the preparation, use and quality
assurance of blood components. 12th edition. Council of Europe Publishing. 2006.
6. British Committee for Standards in Haematology, Blood Transfusion Task Force. Guidelines on gamma irradiation of blood
components for the prevention of transfusion-associated graftversus-host disease. Transfus Med. 1996 Sep;6(3):261-71.
7. British Committee for Standards in Haematology, Blood Transfusion Task Force. Guidelines for the use of platelet transfusions. Br J Haematol. 2003 Jul;122(1):10-23.
8. O’Shaughnessy DF, Atterbury C, Bolton Maggs P, Murphy M,
Thomas D, Yates S, Williamson LM. British Committee for Standards in Haematology, Blood Transfusion Task Force. Guidelines for the use of fresh-frozen plasma, cryoprecipitate and
cryosupernatant. Br J Haematol. 2004 Jul;126(1):11-28.
9. Chapman JF, Elliott C, Knowles SM, Milkins CE, Poole GD.
Working Party of the British Committee for Standards in Haematology Blood Transfusion Task Force. Guidelines for compatibility procedures in blood transfusion laboratories. Transfus
Med. 2004 Feb;14(1):59-73.
NÚMERO 29
25
AUTORES: Maria Rosales , Isabel Miranda , José António Duran , Manuel Figueiredo3, António Marques4, Jorge Condeço2, José Barbot5.
1
Departamento de Imuno-Hemoterapia do Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil, EPE; 2Centro Regional de Sangue
do Porto; 3Serviço de Imuno-Hemoterapia do Centro Hospitalar de
Vila Nova de Gaia; 4Serviço de Imuno-Hemoterapia do Hospital São
Marcos de Braga; 4Serviço de Hematologia Clínica do Hospital Central
Especializado de Crianças Maria Pia do Porto.
1
2
2
Correspondência: Dr. José Barbot, Serviço de Hematologia Clínica,
Hospital Central Especializado de Crianças Maria Pia, Rua da Boavista
827, 4050-111 Porto (Portugal).
E-mail: [email protected]
JAN/MAR 2007
TRANSFUSÃO EM NEONATOLOGIA: AVALIAÇÃO MULTICÊNTRICA
ANEXO 1
26
NÚMERO 29
JAN/MAR 2007
TRANSFUSÃO EM NEONATOLOGIA: AVALIAÇÃO MULTICÊNTRICA
27
NÚMERO 29
JAN/MAR 2007
TRANSFUSÃO EM NEONATOLOGIA: AVALIAÇÃO MULTICÊNTRICA
28
NÚMERO 29
JAN/MAR 2007