guavira letras

Transcrição

guavira letras
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Ano III, 01/02/2007
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Ano III
01/02/2007
guavira Letras
guavira letras
Revista Eletrônica do Programa de
Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Número 4 - 01 de Fevereiro de 2007. Ano III
ISSN 1980-1858
EXPEDIENTE
ISSN - 1980-1858
GUAVIRA LETRAS, Revista do Programa de Pós-graduação – Mestrado
em Letras do campus de Três Lagoas da Universidade Federal de Mato Grosso
do Sul.
Volume 1, número 4, 1, de fevereiro de 2007.
GUAVIRA LETRAS, editada pelo Programa de Pós-graduação – Mestrado
em Letras do campus de Três Lagoas da Universidade Federal de Mato Grosso
do Sul, é uma publicação técnico-científica que se define como um veículo
de difusão e debate de idéias, estudos e relatos de experiências sobre os
estudos lingüísticos e literários. É também um espaço aberto à comunidade
acadêmica para manifestar-se sobre temas relacionados com a formação de
recursos humanos de alto nível. Aceita a contribuição de professores e pesquisadores do Brasil e do exterior. Propõe discussões de interesse da comunidade acadêmica e científica.
NOTA: Todos os artigos assinados são de responsabilidade exclusiva de
seus autores, não refletindo, necessariamente, a opinião do Programa. Permitida a reprodução total ou parcial, desde que citada a fonte.
Arte e diagramação: Eduardo Luís Figueiredo de Lima
expediente
Sumário
Apresentação ..................................................................................................... 4
Contos e romances ubaldianos: um estudo da
enunciação
GIACON, Eliane Maria de Oliveira . .................................................................. 6
Do Big Brother ao Ciberpunk: a solidão das infovias e o
leitor navegador
RETTENMAIER, Miguel ................................................................................... 29
Leitura e leitores em Dom Quixote, de Cervantes e de Lobato
PRADO, Amaya Obata Mouriño de Almeida .................................................... 39
Sujeito, identidade e representação: entre o discurso oficial e a
voz de profissionais do sexo e travestis
DURIGAN, Marlene & MINA, Sandra Regina Nóia .......................................... 57
Do presídio ao convívio social: representações dos conceitos de
inclusão e cidadania
DURIGAN, Marlene & CANASSA, Nathália Thanysse da Silva ...................... 77
Homens desertos: espacialidade, existência e sentidos da vida no
romance moderno
BARBOSA, Sidney & VINHOLES, Lígia Iara.................................................... 96
Da recepção crítica à recepção criativa: duas abordagens da
ficção cyberpunk no Brasil
LONDERO, Rodolfo Rorato ........................................................................... 119
Representações do feminino em The Turn of the Screw:
A governanta como anjo e monstro
GUALDA, Linda Catarina ............................................................................... 135
sumário
APRESENTAÇÃO
Apresentamos o quarto número da GUAVIRA LETRAS. Embora o planejamento inicial tenha tentado imprimir um caráter mais
específico aos problemas vinculados à leitura, o resultado final configura uma concepção mais ampla e, de modo geral, os textos aqui
publicados dizem respeito à análise e interpretação de obras literárias e “leituras” de problemas sociais, visto à luz dos aspectos da linguagem ou da comunicação.
Os oito artigos dividem-se em estudos de obras literárias - desde a literatura dedicada ao público infantil, como a de Monteiro
Lobato, passando por obras dedicadas ao adulto, como a de João
Ubaldo Ribeiro e de Dino Buzati, até as produções pós-modernas,
como as publicações on line e ficção cientifica – e de análise do discurso ou de teoria da enunciação.
Desta forma, o primeiro texto, Contos e romances ubaldianos:
um estudo da enunciação, de Eliane Giacon, analisa as obras Viva o
povo brasileiro e Livro de histórias, de João Ubaldo Ribeiro, segundo os pressupostos bakthinianos, para demonstrar a relevante significação humanística da obra deste escritor. No segundo artigo, Do Big
Brother ao Ciberpunk: a solidão das infovias e o leitor navegador,o
objetivo de Miguel Rettenmaier é compreender as condições existenciais diante das novas circunstâncias da leitura nos suportes em
rede e na multiplicidade de mídias no ambiente virtual, ao analisar as
obras 1984, de George Orwell, e Neuromancer, de Willian Gibson.
Ao ler Leitura e leitores em Dom Quixote, de Cervantes e de
Lobato, de Amaya Obata Mouriño de Almeida Prado, é possível compreender como a leitura teve um papel preponderante na construção
de outra narrativa. Ou seja, como Monteiro Lobato aproveita suas
leituras de Dom Quixote, de Cervanters, para criar a sua obra, Dom
Quixote das crianças. Para demonstrar este fenômeno, a autora analisa a inserção de personagens-leitores na obra lobatiana e procura
refletir sobre o “modo” de adaptação, aplicado por Lobato.
Em seguida, Marlene Durigan e Sandra Mina, no artigo Sujeito, identidade e representação: entre o discurso oficial e a voz de
profissionais do sexo e travestis, apresentam os resultados de sua
pesquisa sobre os processos de representação do sujeito, a partir dos
conceitos de inclusão, justiça e cidadania, elaborados por profissionais do sexo e travestis de duas cidades de Mato Grosso do Sul. Este
estudo está fundado nos pressupostos teóricos de FAIRCLOUGH,
2001. No ensaio seguinte, Marlene Durigan e Nathália Canassa, ainda segundo os conceitos de inclusão, justiça e cidadania, procuram
compreender os processos de representação nas falas de ex-presidiapresentação
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ários reintegrados ao mercado de trabalho. Segundo tal estudo baseado em Quijano (1978), Velho (1981) e Foucault (1987b) e desenvolvido por meio de entrevistas, é evidente a estigmatização dos sujeitos por si mesmos e pela sociedade.
No trabalho Homens desertos: espacialidade, existência e sentidos da vida num romance moderno, de Sidney Barbosa e Lígia
Iara Vinholes, o objetivo é refletir sobre o espaço e sua relação com o
contexto social. Para seus autores, é notadamente nos seus deslocamentos no espaço que a personagem buscará o sentido de sua vida.
Ao lado do aspecto físico-espacial, pode ser relacionado o contexto
histórico e social em que a Itália e a própria Europa estavam submersas
na época da escritura e da publicação do romance: a Segunda Guerra
Mundial. Será, justamente, a interrelação entre o espaço e o contexto
sócio-econômico, segundo os autores do artigo, que permite ao gênero romance refazer, com esta obra, a ponte entre a ficção e a realidade; entre a estética e a ética.
No artigo de Rodolfo Londero, Da recepção crítica à recepção
criativa: duas abordagens da ficção cyberpunk no Brasil, cujo
objetivo é, de um lado, o de analisar a recepção nacional do cyberpunk,
entendido como um subgênero da ficção científica de procedência
norte-americana e, de outro, analisar o possível diálogo que possa
haver entre esta produção estrangeira e algumas obras nacionais, obviamente como resultado desta recepção.O último artigo deste número, Representações do feminino em The Turn of the Screw: a
governanta como anjo e monstro, escrito por Linda Catarina Gualda,
tem por propósito o estudo da representação feminina. A partir da
orientação da linha feminista da crítica literária, a autora procura refletir sobre os processos de construção da identidade de gênero criada e veiculada segundo a tradicional ótica masculina.
Por fim, aí está o número quatro. Se o propósito da GUAVIRA
LETRAS é a veiculação de trabalhos realizados no âmbito do Programa de Mestrado em Letras de Três Lagoas ao lado da publicação
de estudos elaborados em outros programas de pós-graduação, a fim
de estabelecer o saudável intercambio entre os estudiosos de letras e
de linguagem, tal meta foi razoavelmente atingida. Neste número,
pois, constam trabalhos de professores permanentes e convidados,
alunos do próprio programa e alunos de graduação em letras do mesmo campus, bem como de pesquisadores externos oriundos de pontos distantes deste Programa.
Aos nossos leitores, boa leitura!
José Batista de Sales
Responsável pela edição deste número
R G L, n. 4, fev. 2007.
apresentação
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Professora Mestre da UEMS.
CONTOS E ROMANCES UBALDIANOS: UM
ESTUDO DA ENUNCIAÇÃO.
Eliane Maria de Oliveira Giacon1
RESUMO: Os dois textos citados nesse trabalho são estudados quanto à
enunciação e é possível perceber que alguns elementos como os conceitos
bakthianos estão presentes, o que demonstra o quanto a obra de João Ubaldo
Ribeiro encaixa na releitura que a pós-modernidade faz do conhecimento
do homem, demonstrando o quanto é possível ao texto literário desmistificar
a questão da originalidade positivista. Portanto, os textos estudados são
portadores de características capazes de suscitar a dimensão do literário em
relação em humano.
PALAVRAS-CHAVES: Ubaldiano; releitura, dialogia
ABSTRACT: The two texts cited in this work are studied how much to the
articulation and are possible to perceive that some elements as the bakthianos
concepts are gifts, what it demonstrates how much the workmanship of
João Ubaldo Ribeiro incases in the releitura that after-modernity makes of
the knowledge of the man, demonstrating how much it is possible to the
literary text to demystify the question of the positivista originalidade.
Therefore, the studied texts are carrying of characteristics capable to excite
the dimension of the literary one in relation in human being.
KEY-WORDS: ubaldiano, new read, dialogical
1.VIVA O POVO BRASILERIO E LIVRO DE HISTÓRIAS
1.1
Viva O Povo Brasileiro
Tema de enredo de escola de samba e roteiro de filme, Viva o
povo brasileiro, publicado em 1984, acabou por transformar-se na
obra mais conhecida de João Ubaldo Ribeiro, até o momento. Já por
ocasião de seu lançamento, foi saudado por uma série de resenhas e
críticas nos principais meios de comunicação do país.
Uma delas é "Um brado retumbante", publicada na revista Veja
em 19 de dezembro de 1984, na semana em que o livro apareceu nas
livrarias. Dividido em quatro partes, o texto apresenta o romance de
João Ubaldo Ribeiro a partir do caboclo Capiroba, personagem cujo
episódio de antropofagia explícita serve de metáfora ao processo criativo de João Ubaldo:
"... uma antropofagia semelhante à de seu personagem Capiroba,
só que no plano literário, transformando a história do Brasil num
banquete romanesco, repleto de narrativas apetitosas no
caudaloso e pantagruélico Viva o povo brasileiro..." (CONTI,
1984, p. 109.).
A questão do banquete perpassa toda a resenha. No final da primeira e durante a segunda parte "Sonhos e Desventuras", o crítico
Giacon, E.M.O. p. 6-28.
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aponta algumas chaves para a leitura do romance que servem até agora
como guia de leitura: a antropofagia, o misticismo, o sagrado, a estrutura do romance e a questão da identidade nacional.
Apesar de estar recheado de elogios, marca desse tipo de texto
de divulgação, essa resenha, entretanto, vai além da simples tentativa
de promoção do livro, pois, além de dar importantes chaves para sua
leitura, também detecta as confusões de enredo, apontando como fator negativo os vai-e-vem narrativos, originados da opção do narrador
por uma ordem não cronológica dos acontecimentos. Além disso, o
resenhista chama a atenção do leitor para certa ingenuidade narrativa
de João Ubaldo Ribeiro em pintar os ricos sempre de forma
exageradamente má, criando um certo grau de maniqueísmo, que
coloca os personagens bons nas classes dominadas e os maus nas
classes dominantes.
No mesmo dia em que a Veja publicava a resenha de Mário Sérgio Conti, sua concorrente Isto é também saudava o novo livro de
João Ubaldo Ribeiro, com o texto "Com os olhos do povo", do crítico
José Castelo, que observa a pouca importância dada à história oficial
do Brasil, preferindo o escritor dirigir sua atenção a pequenos episódios, a vidas sem muita importância que desenham a identidade nacional.
Segundo o crítico, essa teria sido a razão de João Ubaldo escolher como figura central de seu oitavo livro, uma alma penada, que
por meio de múltiplas encarnações, desde a invasão holandesa, no
século XVII, até a ditadura militar do século XX, sob o governo do
general Médici, dá acesso à intimidade do Brasil. Com esse recurso
ele deixa o povo agir em seu livro e explicita a maneira como o povo
vê o Brasil.
Num segundo texto, que acompanha o de Castelo, Geraldo
Galvão Ferraz chama atenção para o caráter épico do romance de
João Ubaldo Ribeiro, referindo-se ao fato do romance ter mais de
seiscentas páginas, o que seria uma temeridade no frágil mercado
editorial brasileiro.
Ao comparar um escritor com um cineasta, o crítico deixa clara
a intenção de atribuir à obra valores de grandiosidade com intenção
mercadológica. O que interessa é a venda do produto, da mesma forma que a crítica de cinema o faz no lançamento de um filme. Nesse
contexto, fica evidente o objetivo mercadológico da resenha, que utiliza adjetivos referentes aos sentidos como "bom e delicioso", além
do subtítulo "Um livro feito de sabores, aromas, cores...", que reitera
R G L, n. 4, fev. 2007.
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a pretensão de divulgar o romance como algo a ser consumido, degustado e saboreado, assim como a própria comida baiana descrita
na obra de Jorge Amado.
Mais à frente, Geraldo Galvão Ferraz faz uma retrospectiva da
obra ubaldina assinalando a mudança de estilo na construção desse
romance "... João Ubaldo abandonou os seus divertidos e excelentes
casos safados (...) por um romance extremamente bem construído,
com preciosismo de reconstituição histórica ou lingüística, com sua
nunca negada ligação com o sensorial" (1984 p. 124).
O crítico, no entanto, também aponta as marcas principais do
romance, como a tentativa de escrever a história do povo brasileiro
negando a história oficial e colocando o povo no lugar de protagonista, ao mesmo tempo em que estabelece uma fina teia de
intertextualidades e humor. É impossível não se dar conta da importância desse livro dentro da obra ubaldina, pois, segundo Geraldo
Galvão Ferraz, é possível observar que "Nesse livro bom, generoso e
sobretudo delicioso de ler, João Ubaldo se superou" (1984, p.49 ).
Essa superação do autor não se dá somente por esse ser um livro
caudaloso, mas sim porque nele permanecem as características das
obras anteriores e há a abertura para outras configurações de romance pós-moderno, que o autor incorpora. Dois exemplos são o enredo
não linear e a dialogia entre os textos do romance.
O romance está dividido em 20 capítulos e cada capítulo é dividido em três ou quatro partes menores. Os fatos narrados nesses
capítulos abrangem um período que vai desde 1646 a 1977. Setenta
por cento da ação, mais ou menos, ocorre entre 1809 a 1897 (século
XIX), quinze por cento, mais ou menos, refere-se ao século XVII
(1647) e os outros quinze ao século XX (1939 a 1977).
Os vinte capítulos estão dispostos de tal forma que cada um
deles aborda uma temática diferente. A narrativa estrutura-se em torno de dois eixos: a história dos descendentes de Amleto Ferreira, que
traça a trajetória da classe dominante e a história dos descendentes
do caboclo Capiroba e Dadinha que contam a história da classe dominada. Em vários momentos as histórias dos dois núcleos se cruzam na narrativa
A primeira parte do enredo está ligada à colonização do Brasil
e é uma introdução à temática da origem da brasilidade. A segunda,
desenvolvida no século XIX, efetiva um projeto de formação de uma
identidade nacional inconclusa. A terceira parte, no século XX, tenta
ressaltar as idéias de identidade nacional propostas pelo romance com
Giacon, E.M.O. p. 6-28.
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a ação dos personagens as reflexões dos mesmos sobre o ser brasileiro.
A narrativa, no entanto, não ocorre de forma cronológica, pois
um capítulo pode conter fatos do século XIX e do XVII ou de datas
diversas dentro de um mesmo século de forma desordenada.
No capítulo I, por exemplo, o narrador inicia falando do momento em que o Alferes Galvão Ferraz recebe tiros da frota portuguesa, quando essa desembarca em Itaparica, a 10 de junho de 1822,
durante um confronto pela Independência do Brasil na Bahia. Galvão
Ferraz, apesar de sua vida e de sua morte não justificarem as honras
que ele recebe após esta data, é consagrado como herói da Independência. A seguir há um texto atemporal sobre as alminhas e descreve
a maneira que essas se comportam no céu da Amoreira, mais precisamente no Poleiro das Almas, esperando para encarnar. A última parte
desse capítulo centra-se em Perilo Ambrósio, que se faz herói da Independência do Brasil por meios ilícitos.
A narrativa, no segundo capítulo, é mais lenta, centrada em
detalhes e em discussões a respeito do brasileiro com algumas considerações sobre a formação do povo brasileiro do ponto de vista étnico e cultural, segundo a visão dos teóricos do século XIX.
O narrador utiliza vários recursos formais. Recorre, por exemplo, às conjunções, no início dos capítulos, ou de textos introdutórios,
que a princípio parecem estranhos ao capítulo, mas que com o decorrer da leitura é possível perceber que eles são uma anunciação do
assunto a ser narrado. As introduções dos capítulos são elementos
que detonam um diálogo ou um tratado sobre elementos da natureza,
sobre a metafísica e sobre a natureza do homem, imitando o modelo
das crônicas coloniais. Outro recurso é o cabeçalho, que funciona no
início dos capítulos ou dos subcapítulos como um diário a respeito de
fatos que ocorreram no Brasil, a partir da visão litorânea do baiano.
Alguns textos, mesmo sem data ou local, são de fácil identificação
em relação ao texto anterior ou a história do Brasil.
Cada capítulo desenvolve um tema particular. O capítulo17,
por exemplo, trata da oposição República/Monarquia. No primeiro
subcapítulo, a carta do Monsenhor Clemente André ao seu irmão
Bonifácio Odulfo fala sobre a República e a Monarquia. No outro, o
episódio de Canudos é apresentado não somente como oposição entre Monarquia e República, mas sim como uma forma de alerta ao
povo brasileiro, para que, independente do regime vigente, o poder
deva sempre servir ao povo.
R G L, n. 4, fev. 2007.
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1.2 Livro De Histórias
O conto para Edgar Alan Poe (1981, p.61) é uma atividade na
qual "o autor senta-se para trabalhar na combinação de acontecimentos impressionantes, para formar a base da narrativa". Ao ver dessa
forma, observa-se que o trabalho do autor não se resume apenas em
criar um enredo, um enunciado, mas e antes de tudo instaurar um
narrador, que irá planificar a enunciação. Esse narrador pode ser classificado de várias formas e assumir níveis de atuação que ora o aproximam ora o distanciam da narrativa. Ao delegar ao narrador o poder
de executar o ato criativo, o autor fica numa posição de co-espectador da obra. E ele a enreda com mecanismos tais como a composição
dos personagens, o plano da narrativa, o foco narrativo e as marcas
enunciativas que distinguem o estilo de um autor de outro.
É necessário para chegar, aos níveis mais profundos de uma
narrativa, que ocorra um trabalho de desmanche do texto, no qual
seja possível evidenciar os mecanismos de enunciação e o esquema
enunciativo utilizado pelo narrador no processo de criação literária.
Esse texto literário possui um enunciado e uma enunciação.O
enunciado, em termos simples, é o enredo ou seja a história que pode
ser classificado como conto, fábula, crônica e outros. A enunciação ,
por sua vez, configura-se como um espaço instaurado pelo narrador,
cuja principal característica é ser um laboratório, no qual uma teia
enunciativa é tecida, a fim de que sob enunciado haja um esquema
sustentador da narrativa. É, pois no âmbito da enunciação que o analista investiga os mecanismos utilizados pelo narrador para arquitetar o texto. E ele pode encontrar "um mapa", no qual estão traçadas
todas as legendas utilizadas pelo narrador. Essas legendas muitas vezes
aparecem de forma obscura e de difícil interpretação, cuja teorização
é obtida pela suas recorrências de determinadas características em
vários textos do mesmo autor.
A partir dessa observação é possível criar uma teorização, que
tente definir como um determinado escritor elabora seus textos e quais
os esquemas que se repetem. Pois segundo Barthes (1975: 158) "a
análise da narrativa (...) deve reunir narrativas para tentar extrair delas uma estrutura", que sirva de modelo de enunciação a ser seguido
por um estudo científico baseado na observação de detalhes
subjacentes da diegese. Portanto, um texto não encerra apenas a função de transmitir informações ao narratário sobre o enunciado e a
enunciação,ele também é representa a maneira como o narrador
planifica uma obra.
Giacon, E.M.O. p. 6-28.
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João Ubaldo Ribeiro não é contista por excelência, pois sua
trajetória, nesse gênero ocorre de forma esporádica, contudo seus
contos são semelhante ao que ocorre com machado de Assis, um espelho de todas as características presentes em suas obras, num conjunto de vasos intercomunicantes.
Quanto aos contos de João Ubaldo Ribeiro, embora ele seja um
grande contador de causos, não há muitos, mas a qualidade deles é de
extrema elaboração como deve ser um conto, para que ele tenha existência duradoura e possa permear a vida das pessoas e a literatura.
Pois criar um conto é uma arte, que faz com que os contadores sejam
capazes de prender a atenção do leitor, por isso que os contos na
antiguidade, funcionavam como fórmulas mágicas utilizadas pelos
mestres para ensinarem aos seus discípulos. Essa mesma fórmula é
utilizada por João Ubaldo em Livro de Histórias (1981), na qual há
entre outros contos "O santo que não acreditava em Deus" que foi
adaptado pelo globo em 1993 e em 2003 serviu de base para o filme
"Deus é brasileiro", de Cacá Diegues. Portanto, no caso de Ubaldo,
embora ele mesmo diga não ser contista e esclarecer que ele se move
em direção aos romances, há a possibilidade de observar com
D’Onofrio (2002, p. 121) quanto a definição de contista que ele "tem
uma idéia fundamental a expressar. Inventa, então, uma pequena história vivida por algumas personagem cujo desfecho leva o leitor a
deduzir a parcela de sentido do mundo que a narrativa encerra", de
forma catártica.
A obra ubaldina é centrada num certo humanismo que tenta
representar com certo humor o homem de todas as épocas e a visão
que esse homem tem do seu tempo. A partir dessa constatação podermos verificar que, muitas vezes, os discursos proferidos pelos personagens revelam conceitos de identidade nacional, que ora representam a o pensamento das elites ora dos outros grupos sociais.
1.3
PLURALIDADE DE VOZES: DIÁLOGOS E
CARNAVALIZAÇÃO EM VIVA O POVO BRASILEIRO E
LIVRO DE HISTÓRIAS
1.3.1 Dialogia no Romance
A dialogia, segundo Bakhtin (2002) é um princípio construtor
do discurso que se instaura na narrativa pela integração permanente
dos enunciadores que confrontam diferentes discursos, que representam a relação bivocalizada entre eu e o outro. O eu, pode ser o autor
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e o texto; o outro pode ser o herói ou o leitor, que se contrapõem em
idéias díspares sobre um determinado fato, um texto ou uma fala.
Assim, poderíamos afirmar com Cavallari (2000, p. 48) que o
"dialogismo investiga as relações entre o homem e o mundo com o
uso da linguagem; essas relações podem ocorrer tanto entre os
interlocutores de um diálogo quanto entre discursos".
São muitos os exemplos de dialogia, em seus mais variados graus,
presentes em Viva o povo brasileiro, principalmente com textos que
contam a história do Brasil ou fatos de domínio público, dessa mesma história. Podemos citar, entre tantos exemplos, a frase dita pelo
personagem Perilo Ambrósio: - "Meu comandante, vinte almudes de
sangue tivera, todos os vinte os daria gostosamente, e mais os tivera
que os daria pela liberdade".(Ribeiro, 1984, p 25). Associa-se tal frase ao que Tiradentes, herói da Inconfidência Mineira, teria dito, segundo seu confessor Penaforte, no momento de sua morte: "Dez vidas daria, se as tivesse". Há uma aproximação semântica entre os
dois discursos, contudo o que mais os aproxima é o diálogo do texto
ubaldino com o outro, nesse caso, não somente a história do Brasil,
mas a concepção distorcida do herói nacional. Ao colocar o discurso de Tiradentes e o de Perilo Ambrósio no mesmo patamar, o romance fecha um círculo de diálogos entre o texto ubaldino e a questão do herói nacional que inicia com a narração da morte de Brandão
Ferraz, que é um alferes igual a Tiradentes e termina com a fala de
Perilo Ambrósio. O herói nessa obra aparece sob duas formas: a primeira uma paródia da independência do Brasil, na qual o alferes se
torna herói devido às circunstâncias e na segunda ele é uma espécie
de anti-povo brasileiro na caricatura de Perilo Ambrósio.
No excerto citado de Viva o povo brasileiro, a dialogia ultrapassa a relação bivocada do eu e o outro, pois a aproximação das falas de
Tiradentes e de Perilo se instala como um contraponto na idealização
do herói nacional pregada tanto pelo militarismo quanto pela esquerda. Portanto, a dialogia nesse caso, propõe a oposição a uma situação
histórica, que acaba de terminar no Brasil de 1982. João Ubaldo Ribeiro utiliza a dialogia para que o leitor faça uma ponte entre o seu
momento histórico e os fatos que antecedem ao tempo do narrador.
1.3.2 – Dialogia nos Contos
Nos contos de Livro de Histórias não há somente a preocupação do narrador em contar "causos" e não somente em relatar fatos
pitorescos da ilha de Itaparica ( BA), mas e antes de tudo ocorre o
Giacon, E.M.O. p. 6-28.
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que em nossa análise chama-se de necessidade do narrador de ludibriar o narratário. Para tanto alguns artifícios são utilizados como o
uso da dialogia, que diferentemente do romance, não operacionalizase de forma isolada, num capítulo ou noutro, pois, na experiência do
conto, é na estrutura dos 15 contos, que ocorre duas formas de diálogo. Uma externa de conto para conto, cuja foca centraliza-se na forma de vida dos itaparicanos, que sendo conterrâneos do narrador dialogam ente sai pela forma de articularem com as narrativas. Assim
há, por exemplo, o conto " Brincando de Doutor" e " Pensamentos,
Palavras e Obras" dialogam entre si sobre as questões licenciosas de
dois adolescentes, cujos comportamentos são demonstram como o
aprendizado sexual pode ficar na reminiscência do psicológico de
uma personagem, cuja vida na ilha, passa a ser matéria do conto, cujo
diálogo com ocorre com as temáticas da obras, que articulam-se do
sagrado ao profano.
A outra é interna, quanto ao narrador, que dialoga em todos os
contos com os personagens utilizando de duas linguagens : uma que
o aproxima da forma do falar dos personagens e outra , que o distancia. No momento como ocorre com o personagem Luís Cuiúba, o
maior " comedor" da ilha, percebe-se que há uma assimilação do
narrador pelos desejos e atos do personagem diminuindo a distância
épica entre os dois. E a outra que distancia o narrador dos personagens como ocorre na discussão filosófica sobre o sexo dos animais
no conto " Alandelão de la patrie".
1. 3.3 – Paródia no Romance
A paródia, também um tipo de intertextualidade, poderia ser
definida, ainda segundo Cavallari (2000, p.72), como "... um discurso bivocado, pois o autor fala da linguagem do outro num plano de
discordância", desarranjando o sentido original de um discurso. Pode
ocorrer de diversas formas como a paródia de um estilo, de um tipo
social e até mesmo da fala ou do pensamento de outrem, sendo, pois,
um instrumento de carnavalização literária, que reelabora um texto
invertendo o seu valor, inaugurando assim um novo modo de pensar,
que obriga o leitor a reinterpretar a história.
Tomemos o exemplo abaixo:
"Contudo, nunca foi bem estabelecida a primeira encarnação do
Alferes José Francisco Brandão Galvão, agora em pé na brisa da
Ponta das Baleias, pouco antes de receber contra o peito e a
R G L, n. 4, fev. 2007.
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cabeça as bolinhas de pedra ou ferro disparadas pelas
bombardetas portuguesas, que daqui a pouco chegarão com o
mar. Vai morrer na flor da mocidade, sem mesmo ainda conhecer
mulher e sem ter feito qualquer coisa de memorável. (...) E talvez
falte apenas um minuto (...) No quadro " O Alferes Brandão
Galvão Perora às Gaivotas", vê-se que é o 10 de junho de 1822..."
(RIBEIRO, 1984, p.9)
O narrador inicia esse texto com a conjunção adversativa "contudo", a fim de que o leitor possa reinterpretar a história oficial a
partir de um texto que mimetiza as imagens do discurso oficial da
independência do Brasil com a morte do alferes José Francisco
Brandão, herói, tombado pelas bombardetas portuguesas em 10 de
junho de 1822, em Itaparica. Ele torna-se herói e recebe glórias póstumas e história romanceada nos livros escolares sem que sua vida e
sua morte justifiquem isso.
A aproximação entre a morte anunciada do personagem e a sua
glória póstuma promove a releitura da história quanto à fabricação
da independência do Brasil e do grito do Ipiranga como formas
libertárias do jugo português. Sem sangue e sem dor o Brasil, ao contrário de seus vizinhos hispânicos, tornou-se um país livre. Esse mito
da independência serviu de reforço do ideal de paraíso tropical criado pelo colonizador. Logo esse texto focaliza a independência a partir da periferia, com a presença da morte física de um herói mitificado
ao mesmo tempo em que reinterpreta a história do Brasil e discute a
identidade nacional não presa às figuras históricas conhecidas, mas
como um processo de desenvolvimento representado por uma alminha.
A identidade nacional via paródia, nesse nível, ocorre através
da trajetória dessa alma, que foi forjada, por meio de dominação da
mente e dos corpos das personagens:
"No céu da Cachoeira, misturada à luminosidade e à vibração
quente do firmamento, a almazinha do Alferes Brandão Galvão,
ainda entontecida pela visão do Imperador, com as grandezas
que se sucediam de roldão e com o lindo quadro em que já
acreditava piamente, acompanhou os atos do barão lá de cima,
estremecendo de admiração e reverência". (RIBEIRO, 1984, p
35).
A ingenuidade do povo é parodiada utilizando a alminha, que
reverencia Perilo Ambrósio como um grande herói da independência
da Bahia. No entanto, trata-se de um herói que consegue esse status
matando um dos seus escravos e sujando-se com seu sangue. Ele
Giacon, E.M.O. p. 6-28.
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justifica seu título, por ser um homem do qual a sociedade local pudesse se orgulhar, a quem D. Pedro I soube muito bem recompensar
por ter lutado pela independência do Brasil. Perilo é o vilão do texto
ubaldino, cujo discurso encarna a visão de muitos brasileiros ainda
hoje.
O narrador de Viva o povo brasileiro discute a identidade nacional utilizando a paródia, pois esse conceito no campo da produção
de um texto, propõe uma oposição entre o texto atual que nega um
outro texto. Nessa idéia de paródia podemos considerar que o espaço
romanesco de Viva o povo brasileiro abriga discursos paródicos de
teorias populares ou clássicas que tentaram e tentam definir a identidade brasileira.
Através da paródia, o narrador do romance nega discurso de
Darcy Ribeiro (2000, p.131) quanto ao conceito de ninguendade como
forma da comunidade negra se identificar com o Brasil, apresentando a alguendade desse povo em discursos eivados de consciência
política e cultural. Os símbolos dessa resistência são a canastra e a
irmandade. A canastra, a princípio, contém informações do passado,
depois passa a conter a história do povo brasileiro e por fim ela é
apocalíptica. A irmandade busca a alguendade dos escravos com saudação "Viva nós". Na palavra viva está implícita a idéia de existência, de conhecer e de compreender a existência daquele grupo não
como um punhado de negros cativos, mas como gente que tinha um
passado histórico e poderia traçar o seu futuro. A palavra "nós" refere-se, em primeiro momento, aos negros e não ao povo brasileiro,
portanto pode-se considerar que o negro nessa obra é alguém, um
elemento ativo no discurso da identidade nacional.
Quanto à formação do povo brasileiro e sua identidade nacional, o narrador de Viva o povo brasileiro além de parodiar textos
canônicos da história do Brasil, como acontece com os exemplos acima, também parodia textos diversos dentro da própria obra, dependendo do ponto de vista adotado. Amleto, por exemplo, diz que o
"Brasil jamais se tornará um país de negros, pardos e bugres, não se
transformará num valhacouto de inferiores".(Ribeiro, 1984, p. 245).
Mais à frente Amleto amaldiçoa a esposa por ela não ter seguido a
receita de passar cuspe, em jejum todos os dias no nariz do filho
Patrício Macário para ele ficar com o nariz fino dos europeus e não
com o nariz chato dos negros. A oposição entre esses dois textos representa uma forma paródica de relação e discordância entre a
mestiçagem e o desejo de branqueamento do brasileiro.
R G L, n. 4, fev. 2007.
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1.3.4 – Paródia nos Contos
Há várias paródias nos contos, que merecem destaque, mas fixaremos numa que talvez a desacralização de toda a busca filosófica
do homem em relação a Deus. Pois sempre em todos os textos bíblicos e pós-bíblicos, deus procura o homem, a fim de fazê-lo um santo
ou um enunciador da palavra divina. E quanto esse não aceita como
ocorre com Jonas no " Velho Testamento" e Paulo no " Novo Testamento", Deus lhes pune com um tem pó para pensar. Assim no primeiro caso, o personagem bíblico acaba na barriga de uma baleia e
no segundo, ele fica cego na estrada de Damasco.Logo percebe-se
que Deus nunca desiste da sua busca por seus seguidores. Querendo
ou não Deus sempre vence e ambos acabam servindo a Deus.
Pois bem no conto " O santo que não acreditava em Deus", o personagem Deus, em pessoa vem à Terra para buscar um santo, Quincas
das Mulas, que embora Deus fizesse tudo para convencê-lo de que
ele ra um santo escolhido, ele não aceita o cargo, que o Senhor lhe
concedeu e por fim o barqueiro conta que " por umas seis ou sete
horas da manhã , estamos Deus e eu navegando de volta para Itaparica,
nenhum de nós fAlando nada, ele porque fracassou na missão e eu
porque não gosto de ver um amigo derrotado." ( RIBEIRO,
1981,P.159).
Percebe-se , nesse relato, que Deus perdeu um de seus intentos
mais sólidos na História Bíblica da Humanidade, que se refere a seleção de seus escolhidos, que de uma forma submissa como Maria, que
aceitou os desígnios de Deus ou de uma outra, mais difícil com o uso
da dor como no caso de Paulo e Jonas , em resumo pelo amor ou pela
dor, todos cedem, mas o Quincas das Mulas do conto não é convencido e Deus desiste dos eu intento. Logo o conto é uma paródia ou seja
uma inversão de conceitos pré-estabelecidos e demonstrados na Bíblia.
1.3. 5 – Carnavalização no Romance
O termo carnavalização, associado à dialogia e à paródia, bastante usado nos últimos tempos tanto nos estudos culturais como nos
estudos literários, também foi extraído dos estudos do teórico russo
Bakhtin, e tem sua origem segundo Cavallari (2000, p. 45), no "...
carnaval, um tipo de festa ou rito que desacraliza as estruturas da
tradição oficial como a Igreja, o Estado, a nobreza e todas as instituições possíveis de serem carnavalizadas, tornando-as objeto de riso,
Giacon, E.M.O. p. 6-28.
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quebrando assim os limites de hierarquia social". Na literatura, a
carnavalização é um processo pelo qual há o rompimento da seriedade retórica da leitura oficial, quando o autor insere textos e vozes,
que atualizam a interpretação da realidade. A carnavalização dá liberdade à fantasia, desmistifica determinadas teorias e insere pontos
de vistas, que parodiam tanto a forma quanto o conteúdo de outras
obras.
Sobre Viva o povo brasileiro (1984), pode-se dizer que toda a
obra é uma forma de carnavalização da história do Brasil e da formação da sociedade brasileira. No próprio título já está presente a
carnavalização, pois a palavra viva associa-se ao contexto de uma
grande festa. Se não fosse assim seria impossível ao autor discutir na
ficção questões de identidade nacional, formação sócio-cultural do
brasileiro, antropofagia e teorias do século XIX e XX sobre a
brasilidade sem revestir esse texto com uma camada de seriedade.
Sob o véu da carnavalização o autor pôde escrever praticamente uma
tese sobre a brasilidade.
Dessa carnavalização chamada Viva o povo brasileiro, comentaremos a passagem da festa de São Gonçalo, no capítulo 9, no qual
as quadras recitadas não têm como tema a fé religiosa no santo, mas
os desejos carnais de homens e mulheres:
"São Gonçalo do Almirante,
Casai-me, que bem podeis,
Pois tenho teia de aranha
No lugar que mais sabeis)
(A fala dos homens):
São Gonçalo vem do Douro
Traz uma carga de couro.
Do couro que mais estica
O qual é o couro de pica" . (RIBEIRO, 1984, p. 269)
Nesse tipo de texto popular que rompe com a religiosidade das
procissões dos santos, onde os fiéis, em vez de pedir ao santo os bens
do céu, pedem sossego para os males sexuais que atormentam homens e mulheres aqui na terra, ocorre uma espécie de inversão de
valores, comum à carnavalização. A quebra da hierarquia religiosa
evocando um santo da fé católica declamando uma quadra mundana
distorce a fé popular do brasileiro e iguala o profano ao divino.
Quebrar a hierarquia de valores religiosos, sociais e históricos
com a carnavalização foi um artifício utilizado por João Ubaldo Ribeiro para reescrever a história do Brasil, tentando expor ao leitor as
R G L, n. 4, fev. 2007.
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propostas de identidade nacional inconclusas no século XX.
1.3.6 – Carnavalização no Conto
Embora o conto tenha muitas carnavalizações, há uma merece
destaque e se refere ao conto " O jegue Boneco e o jegue Suspiro",
pois nessa história, o narrador carnavaliza o ato de contar "causos",
uma das características do povo itaparicano.Mas nesse caso Luís, que
é garçom conta e dizem os amigos, com muita vergonha e longe de
senhoras, que uma vez estava ele levando água para uns veranistas
no jegue Suspiro, foi quando o jegue Boneco, que tinha um órgão
sexual avantajado partiu para cima do Suspiro e copulou com o mesmo. Suspiro morre logo depois, dizendo alguns que por força do ato,
mas Luís acredita que foi por vergonha. O jegue Boneco some e quando foi laçado acabou indo para o matadouro.
A carnavalização ocorre pelo fato de que o contador de histórias, geralmente gosta de aumentar os fatos, criar sobre o fato acontecido, contudo nesse caso não foi possível ao Luís fazer isso, pois o
fato foi maior do que o relato, diminuindo, portanto a ação do ficcional
na criação da narrativa. Essa inversão, em termos carnavalização da
função da narrativa carnavaliza a figura do narrador e coloca o leitor
frente a seguinte indagação: Até que ponto a verossimilhança de
uma narrativa excede o fato. E até que ponto os contos de Livro de
Histórias podem ser frutos da construção de uma narrativa ou a narrativa pode estar aquém de sua existência nas experiência do autor.
2. DO ROMANCE PARA O CONTO
A enunciação dos contos ubaldianos apresenta uma estrutura,
na qual denotam-se os mecanismos utilizados pelo narrador no ato
da criação. E a partir dessa observação é possível proceder a uma
teorização, que tente definir como esse esquema se repete de conto a
conto, e do conto para o romance, pois, segundo Barthes, a análise
das narrativas deve "tentar extrair delas uma estrutura" (1975, p.158)
que sirva de modelo enunciativo a ser seguido por um estudo científico baseado nos detalhes subjacentes da diegese.
Detalhes que podem ser observados entre obras Livro de his-
Giacon, E.M.O. p. 6-28.
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tórias (1981) e Viva o povo brasileiro (1984) de João Ubaldo Ribeiro
quanto ao esquema da enunciação, que nos propomos trabalhar nesse
capítulo, pois após a análise no primeiro capítulo quanto aos elementos bakhtinianos como paródia, heteroglosia, intertextualidade e
carnavalização, pode-se dizer que esses elementos permanecem na
livro de contos, acrecentando que nesses setor, será analisada a seguinte hipótese: : os contos da obra Livro de Histórias seguem um
esquema, no qual o autor/narrador utiliza o espaço da narrativa para
instaurar conceitos relativos às teorias sobre a Colonização do Brasil, a Identidade Nacional, a Licenciosidade e a Metafísica, que são
metaforizadas em um discurso, cujo foco de dirige para os animais,
as personagens típicas e a "causos" pitorescos da ilha de Itaparica
(BA). Em determinado momento da narrativa, ocorre a passagem desse
discurso informativo para o enunciado, no qual a polifonia representará a " síntese peculiar de todas as vozes" ( BAKHTIN, 2002,
p.12) dos personagens e do autor/narrador .
A hipótese levantada fundamenta-se na repetição do esquema
de enunciação dos contos de Livro de Histórias ( 1981) no romance
Viva o povo brasileiro ( 1984), que favorece a construção de um
espaço textual, no qual os discursos do autor/narrador e das personagens se inter-relacionem pelo binômio dos grupos dos dominados e
dos dominadores, a fim de que cada capítulo possa ser um estudo
sobre a História, o Pensamento e a Literatura Brasileira.
Somente um esquema desse porte poderia abarcar a polifonia
discursiva, que figura dentro da obra Livro de histórias, pois se trata
da cosmovisão do autor que se estende ao mundo de seus personagens, cujos discursos centrados nas questões de Identidade Nacional,
criam heróis e anti-heróis, numa teia discursiva que propicia ao
narrador ubaldiano administrar o texto a partir de um esquema fixo,
no qual em primeiro momento, o narrador fornece informações preliminares para situar o narratário a respeito do enunciado a ser tecido e
em outro momento, ele introduz uma outra chamada, que irá trabalhar a função ideológica, na qual discursos dos personagens são subsídios para um hiperdiscurso de Identidade Nacional.
No decorrer do estudo desse livro de contos tentar-se-á trabalhar, nesse capítulo como o discurso polifônico dos contos tenta responder a questão de identidade nacional com mecanismos referentes
ao tempo, intertextualidade / intertexto e a dialética da noção de povo
brasileiro.
R G L, n. 4, fev. 2007.
19
2.1
O Tempo e Narrativa Ubaldiana.
Tanto em Viva o povo brasileiro quanto em Livro de Histórias
o tempo é uma questão interessante, pois os personagens vivem numa
ilha, no caso Itaparica, cujo tempo vivido por eles se situa num tempo mítico, ou por força da escolha cíclica do narrador ubaldiano no
romance ou por força da reminiscência da memória discursiva do
narrador dos contos.
No primeiro caso aplica-se a idéia de que" O tempo da cultura
popular é cíclico.[...] O seu fundamento é o retorno de situações e
atos que a memória grupal reforça atribuindo-lhes valores." ( BOSI,
1999, p.11), que fazem com que a História do Brasil seja contada
pelo grupo dos dominados, negros da Fazenda da Armação do Coronel Perilo Ambrósio, esses tempo passa a ser marcado não mais por
balizas cronológica, mas pelas sucessivas encarnações da alminha
brtasileira. O rela e o mítico se cruzam escrevendo a História do Brasil, que poderia ter sido, mas que não foi contada pelo grupo da elite
branca dominadora.
A ciclicidade do tempo primitivo em Livro de histórias entabula uma leitura a partir do autor-narrador, que irá descrever os tipos e
as situações mais pitorescas de sua estada em Itaparica entre a infância e a juventude. Para não perder os detalhes mais interessantes da
narrativa o texto extrapola as questões temporais, cujas ações vão se
desenrolando sem marcação temporal, levando o leitor a encarar a
narrativa como se todos aqueles fatos tivessem ocorrido num tempo
distante que poderiam pertencer ou não ao passado do autor.
Os textos são narrados como se fizessem parte da memória grupal
do itaparicano, dessa forma o tempo de cronológico, que seguiria as
etapas da vida do autor passa a cíclico, pois não importa quando aconteceu, o que importa é que os dados daqueles acontecimentos passaram a fazer parte da memória discursiva das pessoas que presenciaram o fato. Assim ocorre com o conto " O bom robalo de compadre
Edinho", cuja história gira em torno de um peixe robalo que Edinho,
compadre do autor/narrador, sempre quis pescar, chegando ao ponto
de saber até qual era o robalo, que vinha em todas as temporadas,
roubava isca, mas nunca, nunca mesmo ele conseguira pegá-lo, até
que um dia ele aparece com uma fêmea, o compadre Edinho tenta
pegá-lo, mas como das outras não consegue, a sua história fica tão
conhecida, que todos querem ajudá-lo a pegar o peixe, até que um dia
o peixe praticamente se suicida na rede do compadre.
Giacon, E.M.O. p. 6-28.
20
Essa narrativa praticamente vai desestruturando o tempo cronológico, transformando em cíclico, pois o peixe a cada aparição comporta-se da mesma maneira, deixando o compadre neurótico ao ponto dele perder a noção temporal, de tal forma que as coisas se repetem e os moradores da ilha vêem as aparições do peixe como uma
sucessão de ações que levam sempre ao mesmo resultado, ou seja o
Edinho perde sempre o peixe. Essa sucessão de ações repetitivas acabou por fazer parte do imaginário do grupo, de tal forma que esse
grupo passou a lhe atribuir valores como o peixe conhecer o compadre e por isso tentar sempre ludibriá-lo, o peixe se apaixonar e por
fim o suicídio do peixe. Nesses motes há a representação da
mitificação de um fato, que com o tempo rompe as barreiras temporais e passa a ser cíclico não só pela questão do tempo da narrativa,
como também pelo tempo do narrador que irá a cada narrativa incorporar valores grupais ao fato.
Para introduzir a noção de tempo circular, o narrador romance
utiliza o motivo das almas reencarnando em diferentes personagens
assim que morrem os corpos que estavam ocupando. Dessa forma as
almas não têm idade, apenas ficam esperando para encarnar. As
alminhas não têm conhecimento e só aprendem com as encarnações.
O Brasil havia sido uma grande selva, diz o texto, provavelmente a
alminha tinha encarnado em bichos antes de ser sugada por uma barriga de gente. Depois vieram os índios, os portugueses, os espanhóis
e os holandeses. Essa alminha após várias encarnações vem a ser o
caboclo Capiroba.
2.2
Intertextualidade / Intertexto
A obra ubaldiana compõe-se de um grande mosaico discursivo
que lê a literatura e se lê numa referência a temas, personagens, discursos ideológicos e formação da identidade nacional torna presente
a intertextualidade, que se concentra na idéia básica de que todo
texto lê um texto anterior e desse contém idéias e imagens. Dessa
forma, o segundo texto executou um processo lingüístico de resgate
da linguagem literária de textos antes produzidos, que "Na verdade,
uma obra literária já não pode ser considerada original; se o fosse,
não poderia ter sentido para o leitor. É apenas como parte de discursos anteriores que qualquer texto obtém sentido e
importância".(HUTCHEON, 1991, p. 166), sendo, pois o segundo
texto parte de um texto maior escrito pelos escritores de todas as
épocas.
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A intertextualidade pode ocorrer de várias formas, como a inserção de um texto dentro do outro sem fornecer suas fontes; a modificação de algum texto de domínio público ou não; a cópia de uma
idéia; a alusão a um texto literário com o uso de dados já conhecidos;
a troca de nomes conhecidos da literatura ou da história por outros de
domínio popular; a cópia de parte de uma história como se fosse criar
um relato original; a cópia de um estilo de vida de uma personagem e
até a citação de um trecho dizendo quem é o autor daquele texto.
São vários os níveis de intertextualidade presentes em Viva o
povo brasileiro. Por uma questão didática, trabalharemos com apenas três exemplos, todos relativos à literatura. No capítulo 9 do romance, há uma reunião na Taverna do Mazombo, em Salvador, com
a presença de Bonifácio Odulfo e seus companheiros de faculdade. O
texto constitui-se um diálogo com o romantismo de Álvares de Azevedo. No capítulo 14 aparece o relato da Batalha de Tuiuti, construído
a partir da intertextualidade com a Ilíada de Homero e com Os
Lusíadas de Camões. No capítulo 19, Stalin José traça um paralelo
entre os olhos de Capitu, personagem do livro Dom Casmurro, de
Machado de Assis e os de Jandira, sua esposa.
2.2.1. Ubaldo e Álvares de Azevedo
Vejamos o primeiro exemplo. Na Taverna do Mazombo, o personagem Bonifácio Odulfo acaba de recitar o poema "Haroldo e
Dandalê" de sua autoria e é aplaudido por todos. Antônio Onofre, seu
companheiro de faculdade, analisa os versos do poema e as rimas,
depois conclui que a sonoridade do poema é boa. A partir daí eles
iniciam uma discussão sobre o valor poético e temático desse poema
de Bonifácio, que segundo o grupo seria um marco da poesia nacional romântica. E se perguntam se por acaso algum romântico francês
ou português seria capaz de criar semelhante obra. Nessa discussão
Bonifácio Odulfo ataca o poeta português Herculano, e Antônio
Onofre o defende.
No decorrer da discussão, Antônio Onofre pergunta a Bonifácio,
em qual fonte ele bebera ao escolher o nome Dandalê. E ele responde
que seguiu a sonoridade do apelido evocando os sons da África, o
lundu, o banzo e a indolência sensual da raça negra. E diz que seu
poema narra o amor "... proibido entre um branco descendente de
godos portugueses e uma negra brasileira, um ser selvagem e primitivo copiosa atra fruta das frondes tropicais, como diz o próprio poeta" (Ribeiro, 1984, p. 291).
Giacon, E.M.O. p. 6-28.
22
Após a análise do poema, eles concluem que esse é uma demonstração de revolução, pois trata de um tema um tanto polêmico,
que poderia abalar os alicerces da sociedade escravocrata da época.
Mazombo pede para que eles parem com aquilo, pois eles eram rapazes ricos e nada lhes aconteceria por terem aquelas idéias revolucionárias, contudo ele sim teria problemas com a polícia. A discussão
entre Bonifácio e Antônio continua sobre as influências do romantismo europeu no brasileiro. Bonifácio Odulfo defende Lord Byron, e o
outro defende o poeta português Herculano.
Eles querem queimar os livros portugueses numa grande fogueira
a beira de um lago, depois violar as campas dos cemitérios e beberem
vinho num crânio. A discussão se torna muito acirrada e Bonifácio
xinga o poeta Herculano. Antônio Onofre chama Bonifácio Odulfo
para um duelo e quer que ele se retrate.
Nesse instante Bonifácio tem um acesso de tosse e eles saem da
Taverna, quando já são oito horas da manhã, encontrando a cidade
vazia. Caminham para suas casas falando de suas aventuras amorosas e de suas famílias. Para arrematar a conversa, Bonifácio diz que o
poema "Haroldo e Dandalê" é um representante da raça, da força e da
coragem do povo brasileiro. Antônio considera que Bonifácio seria
um vate do Novo Mundo e Bonifácio concorda. Eles se despendem e
Bonifácio anda para casa cheio de amor pelo povo e pela terra. Mentalmente ele escreve: "Telúrica força pujante da bravia Pindorama,
oh vos que nos campos mourejam, que nas matas desbravam o
ignoto".(RIBEIRO, 1984, p 300). Em casa ele tranca as janelas para
não pegar uma doença do pulmão.
O texto acima estabelece um diálogo com o romantismo brasileiro
através das referências explícitas ao poeta Álvares de Azevedo,
pois "... Se alguém já viveu intensamente emoções e sentimentos;
se já houve quem absorvesse idéias e conhecimentos, análises e
sínteses, tudo isso num prazo de duração mínima sem notícias e
precedentes – entre nós foi Álvares de Azevedo" (ROCHA, 1981,
60).
As estruturas temáticas desse trecho de Viva o povo brasileiro
que dialogam com a estética romântica são o gosto pela morte, a
mulher amada inacessível e os elementos tétricos como campo santo,
caveira e cicuta. No romantismo de Álvares de Azevedo há a presença de Lamartine, Musset e Byron, principalmente desse último, cujo
poema "Dom Juan" ecoa na "Cantiga de Dom Juan" de Álvares de
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Azevedo. Já o poema "Crepúsculo do mar" começa com uma quadra
de Lamartine.
A morte, entre todos os temas do romantismo, ganhou mais força na segunda geração denominada byroniana, sendo para o romântico a solução encontrada para resolver os amores impossíveis, que o
levavam a fugir da vida para encontrar com mulher amada inacessível. Essa característica aparece como temática no verso: "Morto,
morto, morto ao pé da amada" (RIBEIRO, 1984, p. 289) e nos versos
declamados por Prosérpino para acalmar os ânimos entre Antônio
Onofre e Bonifácio Odulfo: "Ah junto ao cadáver embalsamado" (p.
293), todos eles criados a partir de versos de Azevedo. Morrer de
amor, no primeiro verso, e estar próximo ao cadáver embalsamado,
no segundo idealizam o instante da morte e da figura da amada, que
não se decomporão com o tempo.
O tema da mulher amada inacessível é trabalhado no texto
ubaldino de duas formas: uma no poema recitado por Prosérpino
"Daquela que foi tão querida em vida/ Deito meu corpo de amor sequioso/ Afago e beijo seu corpo gelado..." (RIBEIRO, 1984, p.293),
que resume o final do conto "O último beijo de amor" do livro Noite
na Taverna (1878), de Álvares de Azevedo, no qual Arnold depois de
ver Giorgia morta "... pregou os lábios nos dela". (AZEVEDO, 1995,
p.73) tomando depois um punhal, que aperta contra o próprio peito.
Cena semelhante ocorre no poema "Haroldo e Dandalê" de Bonifácio
Odulfo, embora nesse caso ele beba nos lábios da amada o veneno,
que a matou. A mulher fica mais inacessível com a morte, mas somente nesse momento o poeta consegue tocá-la. Deve-se observar
que a teia de intertextualidades alarga-se mais e mais neste caso, pois
também é explícita a referência ao teatro de Shakespeare, que dialoga com Byron, e do qual João Ubaldo é um exímio conhecedor.
Já a segunda forma reflete a realidade dos jovens estudantes do
século XIX, que se apaixonavam por mulheres casadas e as tinham
como amantes inacessíveis. Após saírem da taverna, Antônio pergunta a Bonifácio sobre seu romance com a senhora X. Bonifácio
pede-lhe silêncio, pois o marido a trancou em casa e os dois estavam
impossibilitados de se encontrarem.
Álvares de Azevedo encharcou-se com a ideologia do romantismo byroniano, cujos melhores representantes franceses foram
Musset e Lamartine, sendo esse último seu verdadeiro modelo de
poeta burguês, orador e estadista. Assim a poética de Álvares de
Azevedo conciliou a fantasia com a realidade e seguiu o exemplo de
Lamartine confundindo o poeta com o herói do poema como ocorre
Giacon, E.M.O. p. 6-28.
24
no "Poema do frade".
João Ubaldo Ribeiro utiliza essa faceta de Álvares de Azevedo
para projetá-la em Bonifácio Odulfo, personagem de Viva o povo
brasileiro. É uma forma do narrador fazer sua leitura da literatura
brasileira do século XIX. Quanto à influência de Lamartine, o texto
ubaldino traz uma citação em francês desse poeta na defesa de Herculano efetuada por Antônio Onofre. O tema desse excerto centra-se
na noite representada pelo morcego, cujo vôo se dissipa ao romper
da aurora. Logo depois eles erguem um brinde a Byron, Musset e
Chateaubriand, que serviram de referencial tanto para a poesia de
Álvares de Azevedo como para outros poetas e prosadores do romantismo.
Algumas estruturas formais da obra de Álvares de Azevedo estão
presentes na composição desse excerto em análise como a metrificação
dos poemas, a linguagem eloqüente dos personagens e o tom forense
do texto. Escolhemos delas o tom forense presente na argüição de
Antônio Onofre sobre a função do poeta como antena da sociedade.
"- Os poetas não fogem da luta, os poetas não temem nada", (RIBEIRO, 1984, p. 290) e mais à frente sobre Herculano, ele diz: - "Decide
então o poeta da noite! O poeta Bonifácio Odulfo decide se Herculano é ou não uma besta! Atenção para o veredicto!" (p 293).
Álvares de Azevedo utiliza o mesmo tom forense na fala de
seus personagens nos contos de Noite na taverna, que pode ser visto
no conto "Uma noite do século", numa discussão sobre a existência
de Deus, entre Solfieri e Archibald: - "Do terror é que vem a fé em
Deus! Crê nele como a utopia do bem absoluto, (...) Não creio nele
(...) /E os livros Santos? (...) eu vos direi – miséria! miséria! Três
vezes miséria! Tudo aquilo é falso".(AZEVEDO, 1995, p. 16).
É possível perceber que Álvares de Azevedo fez uso de sua
experiência cotidiana como estudante de Direito para construir discursos que representam uma geração que defendia em tom forense
tanto causas revolucionárias quanto temas metafísicos e literários do
seu tempo.
João Ubaldo Ribeiro, também conhecedor da linguagem forense e do ambiente das academias de Direito, por sua vez, utiliza a
polifonia de diferentes discursos para produzir esse romance, cujas
vozes dialogam com a história, a literatura e os pensadores do Brasil.
E nesse caso em especial o discurso forense dos personagens Bonifácio
Odulfo e Antonio Onofre dialoga com os textos de Álvares de Azevedo e do romantismo para fazer uma crítica a essa estética literária
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que viera como ares de revolução e liberdade criadora, mas que ficou
presa às concepções de literatura como forma imitativa de um modelo, que antes era português e no século XIX passou a ser francês.
Além desses pontos, os poetas românticos ansiavam por uma literatura brasileira, mas continuavam vendo Brasil, sua história e seu povo
apenas como uma inspiração para sua produção poética.
O romantismo que viera como um movimento revolucionário
não conseguiu ser aqui no Brasil o mesmo que foi na Europa, pois se
distanciou da busca pela identidade nacional e na maioria das composições em prosa e verso de nossos poetas e prosadores, o negro é
deixado de lado e o índio é visto de forma idealizada, sendo apenas o
primeiro habitante exótico do Brasil, que se dissipa em contato com
o branco. A elite branca com seus filhos poetas não via o Brasil e o
seu povo, pois estava de costas olhando para a Europa, principalmente para a França. Confronta-se, na intertextualidade do texto
ubaldino com a poética de Álvares de Azevedo, o idealismo do romantismo com a concretude das atitudes desses poetas que se escondiam em lugares sombrios para se distanciarem da realidade brasileira.
2.3 . Do Livro De Histórias À Mitologia Grega e ao Novo
Testamento
Embora o romance seja recheado de intertextualidades e os contos também, a opção nesse estudo foi observar um conto que reunisse
em linhas gerais tanto a tradição clássica como a cristã num pensamento filosófico, que em muito se aproxima de São Tomás de Aquino.
No sentido que sendo esse filósofo o promotor do estudo que assimilou os estudos aristotélicos como as pregações de Cristo, podemos
dizer em termos mais simplistas, que João Ubaldo Ribeiro ao
intertextualizar com a figura do pescador de Itaparica no conto " O
Santo que não acreditava em Deus" ocorre o que poderia ser chamado de momento de revelação, pois esse pescador, é um barqueiro,
que no primeiro momento Deus tenta ensiná-lo a pescar e no segundo quando ele é obrigado a levar Deus de Itaparica a Maragojipe , o
personagem funciona como um Ceronte, que não mais faz a travessia
do mundo dos vivos para o dos mortos, mas do mundo mítico cristã
para o mundo dos vivos.
Giacon, E.M.O. p. 6-28.
26
O personagem do pescador intertextualiza com a o Novo Testamento sobre a vocação dos primeiros apóstolos( Mr. 1, 14-20) cujo
ofício era de pescador e Cristo ao abordá-los depois de uma noite
sem nenhum pescado, o faz encher a rede de peixe. Depois os chama
para serem pescadores de homens. No conto, o personagem Deus
aborda o pescador e diz que vai ensiná-lo a pescar e logo em seguida
pede que ele o leve à Moragojipe, a fim de que ele encontre o Quincas
da Mulas, que acaba não aceitando ser santo, pois ele embora vivendo como um santo, não acreditava em Deus. E o pescador acaba sendo ao final o santo, em temos, que Deus procurava, pois ele acreditou
na palavra de Deus, pois sua terra, seu espírito, era fértil e multiplicou a palavra.
O mesmo personagem é um barqueiro e portanto faz a travessia,
que no caso do personagem Deus, não o leva do mundo dos vivos
para o dos mortos, mas sim do contrário, criando um contraponto, no
qual Ceronte, o barqueiro cobrador da mitologia grega, é resgatado
pela religião cristã numa alusão a travessia entre dois planos.
É pois nessa travessia entre religiões diferentes, que Tomás de
Aquino configurou o pensamento escolástico sobre ciência e religião, o qual daria subsídios para o Renascimento e posteriormente a
Modernidade.
Ao juntar as duas concepções religiosas, num texto do século
XX, o narrador ubaldiano faz uma análise e depois uma síntese d da
simbiose, que pode haver entre o pensamento helênico e o cristão.
3. BIBLIOGRAFIA
AQUINO, Tomás. Pensamento Filosófico. 3.ed. São Paulo: Nova
Cultural, 1999.
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28
DO BIG BROTHER AO CIBERPUNK:
A SOLIDÃO DAS INFOVIAS E O LEITOR NAVEGADOR
Miguel Rettenmaier*
*Doutor em Teoria da Literatura, professor e pesquisador
na linha Leitura e Formação
do Leitor do Mestrado em Letras da Universidade de Passo
Fundo.
Resumo: O artigo relaciona as novas circunstâncias da leitura, nos suportes
em rede e na multiplicidade de mídias no ambiente virtual, com as distopias
escritas do século XX, principalmente 1984, de George Orwell, e
Neuromancer, de Willian Gibson. Seja na atual realidade da internet, seja
nas ficções que projetam futuros sombrios, parece emergir ao sujeito, segundo este estudo, de um ambiente que ora oprime, ora se multifraciona, as
complexidades do isolamento e da solidão existencial.
Palavras-chave: leitura, cibercultura, distopia
ABSTRACT: This article relates the new reading circumstances, in the
network's supports and in the medias' multiplicity in the virtual environment,
with the dystopias written in the 20th century, mostly 1984, of George Orwell
and Neuromancer, of William Gibson. Either in the current Internet reality,
either in the fictions that project shadowy futures, it seems to emerge to the
person, according to this study, from an environment that sometimes
oppresses, sometimes multifractionates, the isolation's complexity and the
existential solitude.
KEY WORDS: reading, ciberculture, distopy
The young man stepped into the hall of mirrors
Where he discovered a reflection of himself
Even the greatest stars discover themselves in the lookingglass
Even the greatest stars discover themselves in the lookingglass
Sometimes he saw his real face
And sometimes a stranger at his place
Even the greatest stars find their face in the looking glass
Even the greatest stars find their face in the looking glass
He fell in love with the image of himself
and suddenly the picture was distorted
Even the greatest stars dislike themselves in the looking glass
Even the greatest stars dislike themselves in the looking glass
He made up the person he wanted to be
And changed into a new personality
Even the greatest stars change themselves in the looking glass
Even the greatest stars change themselves in the looking glass
The artist is living in the mirror
With the echoes of himself
Even the greatest stars live their lives in the looking glass
Even the greatest stars live their lives in the looking glass
Even the greatest stars fix their face in the looking glass
Even the greatest stars fix their face in the looking glass
Even the greatest stars live their lives in the looking glass
Even the greatest stars live their lives in the looking glass
The Hall Of Mirrors, Kraftwerk
estudos literários
R G L, n. 4, fev. 2007.
29
1
O Kraftwerk, um grupo musical
alemão que fez contribuições
significantes para o desenvolvimento da música eletrônica, foi fundado por Florian Schneider e Ralf
Hütter, estudantes do Conservatório
de Düsseldorf, em 1970 e posteriormente tornou-se um quarteto com
a junção de Wolfgang Flür e Karl
Bartos. Suas letras, focadas na vida
urbana e a tecnologia européia pósguerra, ora celebram, ora alertam
sobre as conquistas do mundo moderno. (http://www.kraftwerk.com)
Talvez seja inusitado, em um texto que pense sobre a literatura
ou a leitura, uma epígrafe que refira a letras de uma música do grupo
alemão Krafwerk1 , um dos pais do tecnopop, estilo nascido na Europa nos anos 70 a partir do uso concentrado de sintetizadores em harmonias digitalizadas. Entretanto, a música eletrônica do grupo em
questão dialoga com a literatura em uma circunstância histórico-social no qual, em ambas, na música pop e na literatura, são tematizados
aspectos relativos às conquista da tecnologia e aos decorrentes receios perante o contundente incremento das máquinas em nossa vida
cotidiana e, mais profundamente, em nosso impasses existenciais.
Nascido na década que inaugura as possibilidades da informática
de uso pessoal, o tecnopop consagrou a utilização criativa do computador no âmbito musical, em um tempo no qual mecanismos digitais
passam a ser "tocados", gerando ritmos e melodias capazes tanto de
simular outros instrumentos, quanto reproduzir uma sonoridade "cibernética", alusiva aos ritmos e tons de um ecossistema tecnológico.
No caso da letra da epígrafe, a melodia que a acompanha é um claro
exemplo dessa sonoridade. Enquanto uma voz monocórdica declama a letras, executando um tipo de canto apenas nos refrões, a harmonia progride em uma invariável seqüência de sintetizador, tendo,
ao fundo, repetidas vibrações eletrônicas e uma lenta batida reverberada. A voz que "canta" é quase a de um robô em uma linha de produção ou, se quisermos, em uma "usina de força", como pode ser a
tradução da expressão alemã "kraftwerk".
A estilo da música robotizada do grupo Kraftwerk originou-se
na busca de uma reação tanto ao vazio cultural de seu país nos pósguerras quanto à hegemonia da cultura Anglo-Americana em toda a
Europa. Talvez por tal condição, sua arte tinha uma feição
vanguardista, trabalhando com uma temática e um estilo que pregaram a renovação absoluta nos conceitos relacionados à música, à sua
composição e a sua execução. Apesar disso, na sua temática, sempre
alicerçada às projeções de um mundo robotizado, ecoavam antigos
medos, relacionados às conquistas e possibilidades da era (pós)-industrial. Possivelmente, depois de dois conflitos bélicos de amplitude mundial, a estética das raízes do tecnopop tenha cultivado o temor
das possibilidades destrutivas da máquina e os receios de sua inevitável sua convivência com a raça humana. A música, de algum modo,
foi, assim, e talvez ainda possa ser, a atualização de uma das tantas
angústias que caracterizam o século XX: a possibilidade de que, em
sociedade automática, os sujeitos, como os instrumentos - musicais
RETTENMAIER, M. p . 29-38.
30
ou não - sejam programáveis.
Foi principalmente no cenário posterior a uma Europa arrasada
pelas guerras e à mortalidade em massa que surgiram as narrativas
que representam o medo dos avanços tecnológicos, as distopias ou,
em outras palavras, as utopias invertidas que anteviam com grande
pessimismo o que outrora fora visto como modernidade auspiciosa.
Diferente das suas "primas" mais antigas, localizáveis principalmente no período das viagens de descobrimento (nos passos iniciais da
modernidade) e estabelecidas na crença de existência de, além do
horizonte, lugares de alteridade harmônicos e celestiais, as distopias
se projetaram sobre o tempo, desenhado um futuro sombrio, um amanhã catastrófico, no qual o homem seria escravo de um sistema
dominador, anônimo, impessoal e inflexível. Em 1932, Haldus
Huxley, em Admirável Mundo Novo, escreve uma assustadora
antevisão de uma sociedade integralmente dominada pela técnica e
por uma noção particular de ciência. Nesse mundo, os indivíduos
seriam todos pré-condicionados biologicamente e programados psicologicamente para a obediência às regras de uma estrutura social
organizada em castas, tendo no topo os Alfas, destinados às lideranças e às atividades intelectuais, e na base os Ípsilons, preparados para
os trabalhos braçais. A epígrafe do livro, uma citação de Nicolas
Berdiaerr, é um alerta sobre os perigos dos projetos de organização
absoluta:
2
HUXLEY, Aldus. Admirável mundo novo. São Paulo. Globo, 2003.
Les utopies apparaissent comme bien plus réalisables qu'on le
croyait autrefois. Et nous trouvons actuellement devant une
question bien autrement angoissante: Comment éviter leur
réalisation définitive...? Les utopies sont réalisables. La vie
marche vers les utopies. Et peut-être un siècle nouveau
commence-t-il, un siècle où les intellectuels et la classe cultivée
reveront aux moyens d'éviter les utopies et de retourner à une
société non utopique, moins "parfaite" et plus libre2.
Menos de duas décadas depois, em 1948, o escritor britânico
George Orwel, especialmente focalizando, em 1984, a crítica à particularidade uma ideologia supressora da liberdade, o socialismo, cria
umas mais assustadoras imagens da alta-contemporaneidade: o Big
Brother. No futuro imaginado por Orwel, no impreciso ano de 1984,
a Oceania, atual Inglaterra, se encontra organizada pelo princípio de
adoração ao Grande Irmão, cuja imagem se dissemina em todos os
lugares, em cartazes, moedas, selos e maços de cigarro, e pela ética
do controle absoluto, principalmente no que tange aos integrantes
médios do Partido, encarregados do funcionamento do Estado e da
R G L, n. 4, fev. 2007.
31
contensão e manipulação das massas, os "proles". Exatamente neste
nível intermediário, fundamental para a onipresença do Grande Irmão, encontra-se o herói problemático, Winston Smith, um sujeito
que, apesar de funcionalmente enquadrado na organização do Estado, trabalhando do Ministério da Verdade, encontra-se insatisfeito
perante as demandas de seu espírito, abalado pela solidão, por fragmentos de lembranças da infância, por sonhos enigmáticos nos quais
afloram revoltas íntimas e, acima de tudo, pela perturbadora atração
por um de suas colegas, outra integrante do partido. Tais perturbações, porém, a bem da segurança de Smith, deve ser contidas ao máximo, a ponto de sequer se manifestarem em sua fisionomia. Oceania
é quase toda monitorada por teletelas, principalmente nos setores
cruciais de sua organização, que vão das salas e corredores das repartições às residências dos membros do Partido.
Apesar disso, o primeiro movimento da resistência de Smith,
que o levará, posteriormente, à derrocada final e à dolorosa reintegração à sociedade, é tentar iniciar um diário. Em sua casa, o herói,
para não ser enquadrado no ângulo de monitoramento da teletela, se
abriga em uma reentrância do apartamento, provavelmente destinada
a uma estante de livros, pouco comuns além dos permitidos pelo partido. Ali, debruçado sobre o antigo livro, comprado em uma parte da
cidade situada fora dos limites recomendáveis pela organização, embora sem chegar a escrever efetivamente, Smith resgata, em memória, a fatos importantes que alterara sua rotina programada, como a
ocasião em que, em um dos eventos do partido, observa a tal desconhecida e também executa uma hipotética troca cúmplice de olhares
com O'Brien, um suposto revolucionário. Dessa lembrança, porém
não surge um relato, mas uma outra confissão, ainda mais perigosa
do que uma lembrança inadequada - Smith acaba por escrever no
diário a involuntária e repetidamente a frase "Abaixo o Grande Irmão".
A progressão das condutas contraventoras de Smith extrapola
o registro escrito de suas angústias. No correr de suas aventuras clandestinas, em um envelhecido quarto na mesma loja na qual adquiriu
o Diário, Smith passa a se encontrar com a moça, de nome Júlia, que,
apesar de ser membro da Liga Juvenil Anti-Sexo, se revela contumaz contraventora dos rígidos códigos sexuais do Estado. Ali, também, no lugar que acreditava livre das intertelas, incorre no aprendizado de outro crime, além do amor que descobrira com Júlia - lê um
livro proibido, no qual se denunciam as incoerências do Estado e se
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32
narra a história não oficial de Oceania. E é justamente neste momento de revelações, na leitura, que o herói descobre terem sido, ele e
Júlia, vítimas de uma cilada: por trás de um antigo quadro, no aparentemente inofensivo quarto antigo, há uma teletela observando o
casal conspirador. Em um caminho de contravenções que inicia na
escrita do diário e se encerra na leitura do livro proibido, Smith cumpre o percurso frustrado de uma conspiração feita por um homem só
na companhia não muito convicta da mulher que ama.
A escrita e a leitura, para Smith, foram janelas que o levaram
a superar, pelo menos por um tempo, os limites impostos pelo Grande Irmão. O diário e o livro proibido são as duas faces de mesma
idéia criminosa de buscar o resgate elucidativo do passado. A função
de Smith no Ministério da Verdade era de reescrever tudo o que, antes publicado, pudesse denunciar as incoerências das decisões
conferidas ao Grande Irmão. Era sua tarefa retificar o passado conforme o presente, reescrevendo a história arquivada nos livros, nas
revistas, nos cartazes, nas publicações periódicas e até nos filmes,
nas caricaturas e nas fotografias. Em Oceania, "toda a história era um
palimpsesto, raspado e reescrito tantas vezes quantas fosse o necessário"3. O diário e o livro são, assim, a Smith, alternativas para tentar
3
ORWELL, George. 1984. 8 ed. São
Paulo: Cia. Editora Nacional. 1975.
p. 41.
recuperar o que existia antes e além das reescrituras impostas pelo
Grande Irmão. Em uma viagem tanto exterior, pela leitura do livro
sobre a realidade política de Oceania, quanto interior, pela expressão
aguda dos sentimentos reprimidos do herói nas confissões no Diário,
Smith conseguirá, provisoriamente, pela palavra, romper os limites
impostos pelo Partido e pela vigilância das telas, aventurando-se no
desconhecido mundo do saber e das emoções, ciente, contudo, dos
perigos e das armadilhas que o esperam nos terrenos vedados pela
ordem. Nesses percursos pela palavra e pela leitura, Smith encontrará a salvação, na mesma entrada na qual será emboscado pelas
câmeras de vigilância do Grande Irmão, sendo, então, agressivamente violado, em sua interioridade, pelos procedimentos externos de
assepsia da Partido, inoculados em sua mente por dolorosas sessões
de imunização à desobediência, as quais o levarão, no clímax da dor,
a renegar o amor que sentia por Júlia.
A distopia de Orwell, embora imagine um corpo coletivo controlado pela rigidez invencível de telas e por um progresso técnico
que anula as vivências e opções particulares, ao tornar possível "receber e transmitir simultaneamente pelo mesmo instrumento", encontra um interessante contraponto na distopia de norte-americano
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33
4
Snuff movie são filmes pornográficos com morte e violência reais.
Possivelmente jamais tenham existido, configurando-se apenas em
lendas urbanas.
William Gibson, Neuromancer, publicada em 1984, curiosamente
no mesmo ano do título da projeção sóbria do Orwell. Na mesma
tradição de outras distopias, estabelecidas em uma dimensão futura
apocalíptica, a narrativa de Gibson envereda por um caminho menos
linear, em um tom de advertência menos agudo ou, talvez, mais sutil.
O mundo projetado pela narrativa de Gibson é amplo e labiríntico,
organizado em multidimensões fractais envolvidas no "ciberespaço",
termo que o autor cria e introduz na literatura.
O protagonista da obra é um cowboy, um hacker que navega e
subverte os sistemas da "Matrix" - termo também introduzido por
Gibson. Seu nome é Case, um solitário usuário de drogas que sobrevive invadindo, por encomenda, sistemas de segurança no mundo
virtual. Contraventor da rede, sua atuação delituosa não se restringe,
contudo, ao ciberespaço. Por tentar furtar um de seus contratantes,
são-lhe injetadas toxinas que, lentamente diluídas em seu sangue, o
levarão à morte. Na busca por um antídoto, Case vai parar no
submundo real das metrópoles do futuro, no qual será cooptado para
uma missão perigosa que, se bem sucedida, o levará à reversão do
envenenamento. Nessa missão tem como parceira uma samurai de
rua com olhos de lente espelhada e roupas negras, chamada Molly,
no passado uma ex-prostituta de filmes pornográficos no estilo snuff4,
além de outros colegas menos confiáveis. Coordenados por
Wintermute, que se revelara depois um não humano, uma Inteligência Artificial, Case deve quebrar o Ice (ou Instrusion Countermeasures
Eletronics - Medidas Eletrônicas de Contensão de Intrusão) de um
poderosíssimo sistema informatizado construído pelo misterioso clã
familiar Tessier-Ashpool, responsável por um intrincado conglomerado multinacional. Sua parte é ser o viajante pelo sistema, o sujeito
encarregado de penetrar, com a mente, locais fechados da rede, enquanto Molly, por seus conhecimentos marciais, é a executante física da invasão, agindo com o seu corpo e com suas armas no interior
das repartições violadas do complexo.
A missão, executada em várias etapas, jamais é exposta claramente a Case e Molly. Ambos são levados, sem esclarecimento, a
cumprir arriscados passos de um plano, enfrentando muitos perigos.
Se para Molly, os riscos são evidentes, em suas empreitadas objetivas perante múltiplos obstáculos materiais, para Case, o perigo de
morte está em suas incursões pelos locais proibidos da Matrix, com a
qual se conecta não apenas por uma tela, mas por trodos, que não
apenas o introduzem no sistema, mas introduzem as redes neurais do
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34
sistema em sua própria mente. Com isso, a navegação de Case fragiliza
as barreiras mesmo de suas lembranças e de seus desejos, no momento em que sua interioridade e mesmo sua inconsciência são expostas e integradas a grande "colméia" da Matrix. Nesse jogo de busca labiríntica, o desfecho aponta ao herói Case a existência e o conflito entre duas entidades, entre duas inteligências artificiais ou entre
o que poderiam ser dois Grandes Irmãos: Wintermute, a inteligência
dominada e outra maior, que a governa e da qual é parte: Neuromancer.
A questão, contudo, parece melhor apontar para um sistema, a um
Big Brother neurotizado por forças "interiores" antagônicas, em litígio. Ambas são projeções de lados opostos do clã Tessier-Ashpool.
Wintermute é um produto da parte feminina da família. Sua situação
é subalterna, seu poder é limitado pelo poder masculino de
Neuromancer, desejoso da imortalidade e, com isso, do sacrifício de
toda e qualquer descendência. Inteligência advinda dos impulsos autoritários e incestuosos do patriarca da família, Neuromancer é a continuidade destrutiva da mentalidade paterna que Wintermute, projeção materna que protege a continuidade da vida, pretende anular.
As aparições dessa última, para Case, sempre no ciberespaço, sem
feição específica, ocupando-se dos rostos retirados da memória do
herói, diferem do corpo escolhido por Neuromancer. Este é um menino moreno, de gengivas cor de rosa e pernas finas mal cobertas por
calções esfarrapados. Vive em uma praia deserta e traz consigo a
companhia da imagem da namorada morta do Case. O fato de acompanhar-se de um fantasma se justifica quando se apresenta ao herói: a
si mesmo atribui o domínio sobre a vida, da passagem para a terra
dos mortos, e o poder de trazer os mortos de volta. De seu nome, diz
ser "Neuro de nervos, os caminhos de prata. Romance"5 . As investigas da dupla Case e Molly, porém, em ação conjunta, terminam por
abalar o poder fálico de Neuromancer. Wintermute é, no fim, vitoriosa, assumindo outro nome: passa a ser "a" Matrix, "a soma de todas
as coisas"6 . Sua conquista, contudo, ainda não terminou. Em sua
última aparição revela que busca outros lugares, em outros sistemas
solares, em outros mundos. Quanto a Case, o herói, o vida de cowboy
da rede continua no mesmo espírito contraventor. Salvo do envenenamento, em suas erranças invasoras pela rede, tempos depois, na
mesma praia, depara-se com três figuras "minúsculas e impossíveis":
Neuromancer, a namorada morta e ele mesmo, todos parados "na
beirada de um vasto campo de dados"7 .
A vitória das forças femininas contra Neuromancer deixam em
5
GIBSON, Willian. Neoromancer.
3ª ed. São Paulo, Aleph. 2003.
6
Idem. Ibidem. p. 302.
7
Idem. Ibidem. p. 303.
R G L, n. 4, fev. 2007.
35
8
LEMOS, André. Ficção científica
cyberpunk.O imaginráio da
cibercultura.
http://
www.comciencia.br/reportagens/
2004/10/11.shtml. Acesso em 30 de
maio de 2006.
aberto o que poderia ser a advertência clara que caracteriza as
distopias. Na narrativa de Gibson, Wintermute/Matrix é uma força
ainda em potência, que busca expansão total de forma a ser, de alguma maneira, tão poderosa como sua antecessora, que, por sua vez
não foi completamente destruída. Apesar disso, o mundo exterior
continua idêntico ao que era no início da narrativa e parece que assim
continuará pelos tempos submersos no caos urbano. E essa ordem
inabalada revela o velho dilema: o descumprimento das altas
tecnologias no que se refere às projeções da prometida vida confortável à raça humana. As máquinas, de todas as formas distantes das
harmonias ingenuamente antevistas, tornar-se-iam, pelos exercícios
de pequenas ou enormes promiscuidades humanas, (in)consciências
igualmente promíscuas. De alguma maneira poderiam adquirir alma,
mas a alma perturbada da civilização, uma alma ciberpunk em um
cenário ciberpunk, tema específico de um gênero que segundo André
Lemos
ambienta-se em um futuro próximo, distópico, no qual a
tecnologia foi tomada pelas ruas, se desvirtuou da "one best way"
e não resolveu nenhum dos problemas sociais que prometia, sendo
assim, o contrário da utopia moderna. Para a modernidade, a
ciência e a tecnologia seriam os principais fatores de melhoria
das condições de existência da humanidade. Não deu certo. O
futurismo da tecnocultura moderna transformou-se no
presenteísmo da cibercultura pós-moderna. 8
A literatura cuberpunk, embebida não somente das distopias
de Orwell e de Huxley, mas na "pulp science fiction" de Philipp Dick
é, assim, o retrato de um mundo no qual transitam livremente, sem
controle efetivo, indivíduos solitários e marginalizados que viajam
nos ambientes caóticos da alta tecnologia explorando, porém, mais
do que uma paisagem desordenada: sua viagem é para "dentro" de
algo, para a interioridade de um complexo patológico, infinito e assustador. E nesse mundo, entre tantas distorções, podem encontrar a
própria imagem e seus fantasmas.
O grande elemento que aproxima Case de seu antecessor,
Winston Smith, é justamente essa viagem e essa busca pela própria
imagem. Embora os quadros sombrios de Huxley e de Orwell não
tenham, felizmente, se cumprido inteiramente, e mesmo que a projeção de uma Matrix patológica de Gibson dificilmente se realize com
tamanha intensidade, as distopias, principalmente no que se refere a
1984 e Neuromancer, parecem projetar com impressionante coerência a figura de um sujeito solitário desesperadamente ambicioso de
RETTENMAIER, M. p . 29-38.
36
vencer confinamentos e de conhecer tanto de si mesmo quanto do
mundo que o cerca - um sujeito que luta, que conspira ou que busca
conspirar com outros, mesmo que, paradoxalmente, seja mobilizado, sobretudo, pela sua salvação particular.
Se a modernidade introjetou na consciência social valores contraditórios como o individualismo e a disciplina padronizatória, criando, de vez, a solidão, a semântica das distopias pós-modernas parece reagir no sentido de engendrar individualidades que, prenunciadas na Europa do pós-guerras, afirmam-se na ficção científica atual
como representativas de um tipo de sujeito que, a todo custo, busca
seu grupo, o que lhe permitirá uma ou alguma face reconhecível.
Representam, antes mesmo de sua existência efetiva, o indivíduo
cibermoderno, o leitor de hoje, voraz leitor de si mesmo, formador
de comunidades no orkut, debatedor em discussões (quase sempre
inócuas) no meio virtual, escritor sobre si mesmo em seu blog, em
um diário público, voraz de outros leitores, de outros "conspiradores", contemplador e divulgador de si mesmo nos flogs. Smith e
Cave são, de alguma forma, os lados possíveis desse mesmo perfil
angustiado que busca a própria figura refletida nas projeções especulares e virtuais da escrita e das imagens digitais. De alguma maneira
antecipam, nos anos 40 e, com mais exatidão, nos anos 80, o
presenteísmo que Maffesoli percebe na pós-modernidade - uma reação ao estado-nação, às instituições, aos sistemas ideológicos, em
nome de uma busca pelo local, pelo tribal, pelo próximo, mesmo que
física e cautelosamente distante, fora do se chama na internet de IRL
(In Real Life), em uma fragmentação de vida que constitui uma malha social "sem centro preciso nem periferias identificáveis”9 . De
alguma maneira, as distopias anunciam não um mundo
hiperbolicamente opressor, mas a opressão de uma situação na qual
"cada um só existe no e pelo olhar do outro"10 , e a realidade só pode
justificar-se se prevalecer tão parcial quanto passa a ser a identidade
de cada sujeito, que navega nas infinitas e solitárias infovias da web,
às vezes posicionado, atuando, outras em silêncio, como um lurker,
ou um leitor que não interage, apenas vê, apenas lê, como um Big
Brother miniaturizado. Parece não ser à toa o fato do cinema, nestes
últimos anos, revitalizar as narrativas distópicas de décadas passadas. V de vingança, baseado nos quadrinhos dos anos 80 de Allan
Moore e de David Lloyd, e Scanner Darkly, baseado em uma narrativa de Philipp Dick dos anos 70, como o foram Blade Runner e Minority
Report, são exemplos de distopias produzidas para a tela em 2006.
9
MAFFESOLI, Michel. Mediações
simbólicas: a imagem como vínculo social. In: MARTIS, Francisco
Mendes & SILVA, Juremir Machado. Para navegar no século XXI.
Tecnologias do imaginário e
cibercultura. 3ª ed. Porto Alegre:
Sulina/EDIPUCRS, 2003. p. 45.
10
Idem. Ibidem. p. 45.
R G L, n. 4, fev. 2007.
37
De alguma maneira, na ficção científica de um universo futuro
exageradamente opressor, melhor se forjam as identidades solitárias
de hoje, as quais precisam desenhar a própria face em inúmeras projeções, como o faz o jovem da letra da música, na epígrafe, em uma
sala de espelhos: ali descobre a própria face, ora real, ora estranha,
ora amada, ora transfigurada, como ecos de si mesmo.
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RETTENMAIER, M. p . 29-38.
38
LEITURA E LEITORES EM DOM QUIXOTE, DE
CERVANTES E DE LOBATO
*PG-UFMS-CPTL-CAPES
Amaya Obata Mouriño de Almeida Prado*
RESUMO:
O propósito do trabalho é cotejar Dom Quixote das crianças, de Monteiro
Lobato e Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes, restringindo-se a observar a inserção de leitores (reais e ficcionais) e leitura nas duas
obras, de modo a refletir sobre o papel da recepção na construção das narrativas. Trata-se fundamentalmente da aproximação de dois trabalhos que privilegiam a questão: o de Maria Augusta da Costa Vieira, O dito pelo não
dito: paradoxos em Dom Quixote (1998), sobre o texto de Cervantes, e o de
Socorro Acioli, De Emília a Dona Quixotinha, uma aula de leitura com
Lobato (2004), sobre a adaptação brasileira. Operando comparativamente,
observa-se que, para além da simples paráfrase das aventuras, o texto de
Lobato assimila estruturalmente um importante recurso narrativo da obra
de Cervantes, a presença de leitores e a tematização da leitura.
PALAVRAS-CHAVE: Leitura, adaptação, recepção, Dom Quixote, Monteiro
Lobato.
ABSTRACT:
READING AND READERS IN DOM QUIXOTE: MAGIC OF
CERVANTES AND LOBATO
The purpose of this paper is to contrast Monteiro Lobato’s Dom Quixote
das crianças and Miguel de Cervante’s Dom Quixote de la Mancha,
restricting the observation of insertion of readers (real and fictional) and
reading in these two works, with a view to reflect the role of the reception
when building narrative. It is fundamentally about the approach of two works
which empowers the question: Maria Augusta da Costa Vieira’s O dito pelo
não dito: paradoxos em Dom Quixote (1998), referring to Cervantes’s text
and Socorro Acioli’s De Emília a Dona Quixotinha, uma aula de leitura
com Lobato (2004), referring to Lobato’s adaptation. With a comparative
view this work shows how Lobato assimilate Cervante’s important resource
– readers and reading as basic elements to build the narrative.
KEY WORDS: reading, adaptation, reception, Monteiro Lobato, Dom
Quixote.
A leitura deve ser uma das
formas de felicidade, de modo
que eu aconselharia a esses
possíveis leitores do meu
testamento – que eu não penso
escrever -, eu lhes aconselharia
que lessem muito, que não se
deixassem assustar pela
reputação dos autores, que
continuassem buscando uma
felicidade pessoal, um gozo
pessoal. É o único modo de ler.
Jorge Luis Borges
R G L, n. 4, fev. 2007.
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INTRODUÇÃO
A riqueza da obra que imortalizou Cervantes tem sido suporte
das mais diversas leituras, parecendo nunca se esgotar. Mario Vargas
Llosa chama a atenção para o fato de que o texto evolui com o passar
do tempo e se recria a si mesmo em função das estéticas e dos valores
que cada cultura privilegia (CERVANTES, 2004, p. XXIII). Desde
que haja leitores que não se assustem com a reputação dos autores,
sempre se poderá tentar uma outra leitura. Ao longo de seus quatrocentos anos de história, Dom Quixote tem sido uma das formas de
felicidade de muita gente. Alguns fazem questão de dividir esta felicidade, levando-a ao maior número possível de leitores. Assim, multiplicam-se as traduções e adaptações.
Entre nós, uma das mais conhecidas é a de Lobato. Os instrumentos teóricos contemporâneos têm possibilitado novas leituras das
obras de Lobato, principalmente no que se refere aos aspectos da
recepção e da leitura. Outras revisitações voltam-se para as adaptações lobatianas de grandes obras da literatura mundial, como Dom
Quixote, de Cervantes e Peter Pan, de James Barrie.
No caso específico de Dom Quixote, Lobato não apenas adaptou a obra, como também apropriou-se das personagens e, sem muita
cerimônia, colocou-as no cenário do Sítio, vivendo as mais inéditas
aventuras. Como observa Marisa Lajolo (2005c), a personagem clássica toma café com bolinhos na varanda do Sítio, é inspiração para
uma peça de teatro de Emília e assunto dos serões de Dona Benta.
Dom Quixote, presença marcante nas obras, foi muitas vezes associado também à figura de um Lobato empreendedor e corajoso, que a
despeito de todas as dificuldades lutava como podia por seus ideais
de modernização e liberdade.
Este trabalho procura observar, superficialmente, a inserção de
leitura e leitores tanto no clássico quanto em sua adaptação, de modo
a refletir sobre o papel da recepção na construção das narrativas.
UMA DAS MAGIAS DE CERVANTES.
No Brasil um dos estudos mais significativos de Dom Quixote é
o trabalho de Maria Augusta da Costa Vieira, O dito pelo não-dito:
paradoxos de Dom Quixote, fruto de "bons anos de dedicação ao
Quixote e à obra de Cervantes". Seu livro dá a conhecer o clássico,
partindo da contextualização da obra e do autor através do tempo.
Aos poucos se aprofunda e apresenta desde os temas mais gerais até
PRADO, A.O.M. P. 39-56.
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o mais específico, vital para a compreensão do Quixote, o caráter
dual e paradoxal da própria elaboração do texto. Para este trabalho,
de comparação entre o clássico e sua adaptação, os capítulos três e
quatro revelam-se fundamentais, uma vez que possibilitam compreender a história da crítica e a arquitetura narrativa dessa obra.
Sempre partindo do aspecto dual, Vieira revela que, se a princípio os críticos consideraram-na como destruidora de um velho gênero, outros estudos literários ao longo do tempo privilegiaram novas
abordagens do texto, voltando-se cada vez mais para sua literariedade,
sua textura artística, em detrimento das superficiais impressões de
leitura. Na história crítica de Dom Quixote são identificados a princípio dois períodos, nos quais Dom Quixote passa de herói trágico a
herói cômico. O primeiro é a crítica romântica (até o final do século
XVIII), que percebe na obra idéias e objetivos mais transcendentes,
revelando-a como a "síntese superior da prosa e da poesia, do popular e do aristocrático e, sobretudo, do ideal e da realidade" (VIEIRA,
1998, p.69). Depois vem a crítica realista (do séc. XIX até meados do
séc. XX), que sublinha a comicidade e destaca do texto a construção
paródica. É então que se difunde a noção de que a partir desse clássico surge um novo gênero literário, o romance.
Atualmente, em um diferente contexto histórico-cultural, os estudos críticos cervantinos partem de variados enfoques teóricos, entre eles a Estética da Recepção. Diante dessa abordagem evidenciase, entre outros aspectos, a alteração ao longo do tempo, dos critérios
que definem o que é cômico, muito distantes daqueles contemporâneos a Cervantes. Os leitores, à época da publicação do clássico, estavam bem familiarizados com as novelas de cavalaria e percebiam
mais facilmente a relação paródica entre Dom Quixote e estas novelas. Os leitores de agora concebem-nas de modo muito distinto, o que
dificulta o reconhecimentos das características paródicas e exige uma
preocupação com a contextualização, como se verá mais adiante.
Outro aspecto amplamente analisado é o que Borges define como
uma das "magias parciales del Quijote", a "assombrosa" união do
real com o poético, do objetivo com o subjetivo, do mundo do leitor
com o mundo do livro (BORGES, 1974, p. 667). Esta fusão, pressentida na maior parte da obra, é bastante explícita em algumas passagens, a exemplo do capítulo em que se discute se a bacia do barbeiro
é o elmo de Mambrino (CERVANTES, 2004, cap. XXI, p. 188-9) e
do episódio do exame da biblioteca de Dom Quixote (idem, cap.VI,
p. 68), quando o Barbeiro, invenção de Cervantes, julga o livro A
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Galatéia, cujo autor é o próprio Cervantes. A união do mundo do
leitor com o mundo do livro culmina na segunda parte, em que as
personagens são leitoras da primeira parte e entra em cena o Quixote
apócrifo de Avellaneda. O universo narrativo concentra-se em torno
da recepção da primeira parte, fato que abre espaço para a reflexão
sobre o texto e a recepção do falso Quixote.
O que Borges nomeia poeticamente de magia, Vieira chama de
"auto-referencialidade textual" (1998, p. 86), definida como o recurso utilizado por Cervantes de tomar o próprio texto como seu referente, de embrenhar-se em si mesmo, de modo a confundir a natureza
daquilo que é real com o que é ficcional.
[...] e conseqüentemente nós, leitores de outros leitores, que temos
em nossas mãos o Quixote, sentimo-nos atraídos pela ficção, ao
mesmo tempo que a ficção nos move em direção à vida. (VIEIRA,
1998, p. 90)
Se a leitura e os leitores têm posição de destaque na primeira
parte da obra, na segunda tornam-se, ao lado das aventuras, a própria
matéria a ser narrada. Se o Quixote de 1605 mantém relação
intertextual com os livros de cavalaria, na continuação, de 1615, a
intertextualidade se constrói a partir do texto e dos leitores da primeira parte.
Esta a magia:
[...] a inclusão do leitor marca uma distinção fundamental entre
as duas partes, trazendo para o contexto da obra a
problematização da prática da leitura. Ou seja, na primeira parte
Dom Quixote olha o mundo a partir da óptica de suas leituras,
confiante de que a realidade se recobre por uma rede de
similitudes entre o lido e o vivido, enquanto na segunda parte,
numa transposição paradoxal, são os próprios leitores/
personagens que se surpreendem com as coincidências entre o
que leram na primeira parte e o que vivem na segunda, a partir
do contato direto com o cavaleiro e seu escudeiro.
A inclusão da primeira parte na segunda corresponde portanto a
um afunilamento do universo das referências literárias, fazendo
com que o texto se defronte consigo mesmo, questionando as
relações entre a verdade poética e a verdade histórica. (idem, p.
81-2)
Ao mesmo tempo em que enumera as diferenças entre as duas
partes da obra, Vieira evidencia sua unidade, atribuindo-a a um
afunilamento progressivo das referências literárias, das personagens,
do espaço. Da multiplicidade de histórias, personagens e ambientes,
o texto passa ao enfoque dos "passos detidos" de cavaleiro e escudei-
PRADO, A.O.M. P. 39-56.
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ro, como se o narrador fosse gradativamente concentrando sobre eles
o foco de luz.
Este processo torna-se mais evidente quando a autora distingue
quatro níveis narrativos em sua análise do texto. O primeiro nível é o
eixo central, coordena os demais e organiza a narrativa das aventuras
numa relação de contigüidade, respeitando a linearidade temporal:
são os passos de Dom Quixote e Sancho. O segundo nível constituise de uma pluralidade de histórias ou depoimentos de outras personagens, sem relação direta com as aventuras quixotescas. O terceiro
nível, ligado ao primeiro, surge a partir das representações teatrais de
várias personagens e envolve a dupla em verdadeiros espetáculos. O
quarto nível, que estrutura a auto-referencialidade e põe em cena a
leitura e o leitor é mais apropriadamente definido por Vieira (1998,
p. 87):
1
O narrador atribui a autoria do
Quixote a Cide Hamete Benengeli
(CERVANTES, 2006, p. 85-6)
[...] está nas mãos do narrador, autor e tradutor e também de
alguns personagens, sendo que a função da linguagem
predominante é a metalingüística. No caso, a metalinguagem está
sendo usada num sentido amplo e abarca desde a crítica literária
a determinadas obras, como a avaliação da biblioteca de Dom
Quixote feita pelo Cura e pelo Barbeiro, até as considerações de
Cide Hamete a respeito da verdade e da mentira de alguns
episódios do próprio Quixote. Trata-se do olhar que se dirige
criticamente para outras criações literárias, reflexiona sobre a
narrativa, a poesia, o teatro e também questiona os caminhos do
próprio texto.
De modo um pouco simplificado, pode-se afirmar que os quatro
níveis estão presentes em toda a narrativa, fato que confirma sua unidade. Entretanto, a primeira parte privilegia os dois primeiros níveis
narrativos, enquanto que na segunda parte predominam o terceiro e
quarto níveis. Em outras palavras, a variedade de outras histórias,
personagens e temas que apresentam uma galeria de gêneros literários e aspectos da vida social da época, cede espaço à focalização mais
detida das ações, diálogos e reflexões do herói.
É importante ressaltar que essa alteração estrutural tem o objetivo específico de agradar ao leitor, desta vez os leitores reais. A intenção é declarada pelo próprio "autor", Cide Hamete1, num momento
de desabafo, quando reclama que os leitores não dão atenção às novelas, passando por elas com rapidez ou enfado. Ao satisfazer seu
gosto, se vê obrigado a deixar de lado as digressões, o que lhe impede de exercer sua criatividade (CERVANTES, 2004, p. 877). Assim,
o próprio autor revela a preocupação com coma recepção de sua obra
e é quem melhor observa as diferenças entre as duas partes, indicanR G L, n. 4, fev. 2007.
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do a alteração no emprego dos níveis narrativos (VIEIRA, 1998, p.
79).
O grande clássico não só foi analisado e estudado a partir dos
mais diversos pontos de vista, como também foi dos mais traduzidos,
condensados e adaptados em todos os tempos. A análise da adaptação lobatiana confirma, como veremos, uma leitura que apreende
sensível e profundamente a riqueza e a magia da obra.
ALGUMA MAGIA EM LOBATO
Muitos dos estudos existentes sobre Dom Quixote das crianças
(1936) destacam o projeto literário de Lobato, no qual a leitura tem
grande importância. No dizer de Lajolo (2005c, p.97), nesta obra "encontra-se um projeto de leitura, de tradução e de adaptação". A partir
daí surgem análises que exploram a questão como, por exemplo, a de
Socorro Acioli (2005). Ao observar a atuação de Emília, Acioli
explicita, sobretudo, o projeto de leitura subjacente ao texto de Lobato
e sua conclusão é que a boneca exemplifica um caso de leitura-ação,
em que o leitor vivencia todas as experiências de leitura, desde a
materialidade do livro, passando pela experiência estética, modificando-se à medida que o texto altera seu horizonte de expectativas
para, por fim, culminar na reescritura do texto.
Em Dom Quixote das crianças, tem-se uma história dentro de
outra história: o relato, em vários serões no Sítio, das aventuras do
cavaleiro andante, a partir de uma seleção e condensação das passagens mais divertidas, mantendo a comicidade. Este recurso recebe
um reforço extra pelas ações de Emília, que enlouquece como seu
herói e imita suas ações, num procedimento que resulta em uma "paródia da paródia", como afirma Lajolo (2005b, p. 18).
Quando se trata de paródia, é preciso considerar uma questão
freqüente, relativa à recepção. O texto exige um leitor capaz de reconhecer e recuperar o texto primeiro, para que se estabeleça a relação
intertextual (LAJOLO, 2005a, p. 03) e o leitor mais competente é
aquele que com mais facilidade relaciona conscientemente um texto
a outro. Deste modo surge um obstáculo para que o cômico se realize
plenamente, mesmo com as contextualizações indispensáveis para
os leitores distantes no tempo, sem familiaridade com as novelas de
cavalaria.
Com relação à "paródia da paródia", composta por Lobato, a
dificuldade não é tão grande, uma vez que se trata da apresentação do
texto parodiado. Dificuldade maior é compreender e reconhecer os
PRADO, A.O.M. P. 39-56.
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aspectos burlescos da obra cervantina. Logo ao princípio da adaptação, junto à apresentação da personagem, Lobato lança mão do recurso da contextualização e põe Dona Benta e Pedrinho a explicar
características dos cavaleiros andantes e das novelas de cavalaria:
Dona Benta continuou:
- Morava em companhia de uma sobrinha de vinte anos e duma
dama de quarenta. Chamava-se Dom Quixote. Era magro, alto,
muito madrugador e amigo da caça. E mais amigo ainda de ler.
Só lia, porém, uma qualidade de livros – os de cavalaria.
- Eu sei o que é cavalaria, disse Pedrinho. Depois das Cruzadas,
a gente da Europa ficou de cabeça tonta e com mania de guerrear.
Os fidalgos andavam vestidos de armaduras de ferro, capacete
na cabeça e escudo no braço, com grandes lanças e espadas.
Montavam em cavalos que eles diziam ser corceis e saíam pelo
mundo espetando gente, abrindo mouros pelo meio com espadas
medonhas. As proezas que faziam era de arrepiar os cabelos. Já
li a história de Carlos Magno e os Doze Pares de França...
(LOBATO, 1952, p. 13-14)
Em seguida a avó observa que, naquela época, predominava na
literatura o gênero que Cervantes se propôs a criticar, através do riso.
Paralelo ao projeto de adaptação e sobrepondo-se aos aspectos
paródicos, destaca-se uma significativa semelhança entre o clássico
e o texto adaptado. Trata-se da relevância da leitura nestas obras. O
que em Cervantes é auto-referencialidade, auto-reflexão da narrativa
e dos caminhos do texto, em Lobato é um projeto de leitura implícito,
revelador de sua preocupação constante com o leitor de sua obra,
com a formação de leitores, realizada através do entrelaçamento do
enredo cervantino com a história de sua recepção por aparte dos ouvintes-leitores de Dona Benta. A fundamental importância da leitura
em Cervantes e Lobato leva Lajolo (2006, p. 06) a considerar a adaptação lobatiana como metaleitura e transculturação:
Como a leitura é também personagem central no original
cervantino – o fidalgo é um leitor aficcionado que quer viver o
que lê nos livros – a metaleitura encenada por Lobato pode ganhar
um significado especial: pode ser vista como um processo de
transculturação criativa e engenhosa de um dos elementos
centrais da novela cervantina. Mas ao lado disso, a metaleitura
também pode representar uma pedagogia da leitura.
Um outro texto de Lajolo pode ajudar a esclarecer este processo
de transculturação:
[...] retomada da tradição literária, recriando-a, passando-a a
limpo, fecundando sua significação quer pela irreverência em
relação a seu contexto tradicional, quer pela sua imersão em outro
contexto, agora moderno e nacional. (LAJOLO. In:
ZILBERMAN, 1983, p. 48).
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MAGIA DA LEITURA
A produção lobatiana para o público infantil apresenta pontos
coincidentes com o Quixote, além do que se refere ao enredo, no que
diz respeito aos níveis narrativos apontados por Maria Augusta da
Costa Vieira (1998), o último dos quais contextualiza a prática da
leitura.
Uma vez considerada como um todo unificado, a obra infantil
lobatiana permite observar a utilização dos quatro níveis apontados
por Maria Augusta da C. Vieira no estudo da obra de Cervantes. Entretanto, a maioria dos títulos de Lobato privilegia o primeiro nível
narrativo, em que as personagens vivenciam as mais diversas aventuras. São as obras em que não há participação de Dona Benta como
narradora e seus netos agem livremente, mesmo quando contracenam
com personagens trazidas de outras culturas e obras. O segundo nível, em Cervantes constituído pela pluralidade de histórias sem relação direta ou participação do cavaleiro e seu escudeiro, ganha destaque, em Lobato, nas adaptações e nos serões, ocasião em que os
picapaus são ouvintes-leitores, também sem participação direta nas
ações narradas por Dona Benta, apesar de serem atentos e críticos,
interferindo sempre com seus comentários e questionamentos. Em
Memórias da Emília (1936), no capítulo XIII, "Minha viagem a
Hollywood" realiza-se a única ocorrência do terceiro nível narrativo,
o das representações teatrais, coincidentemente com o ensaio do famoso episódio cervantino da luta de Dom Quixote contra os moinhos
de vento.
Apesar da divisão que sugere, este enfoque não pretende ser
uma classificação das obras, na esteira do que tem sido feito pelos
críticos ao longo do tempo. A obra de Lobato geralmente tem sido
subdividida em três grupos: os livros puramente ficcionais, os de caráter (para)didático e as obras adaptadas ou situadas fora do Sítio
(DEBUS, 2004, p. 89). A intenção aqui, como já se disse, é observar
o emprego dos níveis narrativos. A rigor não há exclusividade de um
ou outro nível, apenas o predomínio do primeiro ou do segundo.
Em Dom Quixote das crianças a identificação destes dois níveis
narrativos é facilitada, uma vez que, paralelamente à narração das
aventuras do fidalgo, desenvolve-se o relato da história da leitura e
da recepção do texto cervantino, pela turma do Sítio. Intercalados
aos capítulos que contam a história do herói, há aqueles que tratam
exclusivamente das cenas ocorridas no Sítio. São eles o primeiro, o
VIII e o X. Além disso, a maioria dos capítulos começa com os diálo-
PRADO, A.O.M. P. 39-56.
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gos entre Dona Benta e seus netos, ritual freqüente no início dos serões em que se contam as histórias, geralmente comentários e apreciações sobre as aventuras do cavaleiro. Estas considerações são geralmente breves e a narradora aproveita logo qualquer oportunidade de
retomar a narrativa. Há pausas para o descanso, porque tantas aventuras não se contam em um só serão. Outras pausas são para os quitutes
de Tia Nastácia, para os comentários a respeito da história ouvida ou
para esclarecimento de dúvidas, as quais a narradora esclarece prontamente. Apesar das interrupções, a distinção dos dois níveis é bem
clara. O universo narrativo ou é o do Sítio, ou o de Dom Quixote.
O que se destaca na observação da assiduidade de Dom Quixote
nas obras de Lobato para o público mirim é a tematização dos livros,
da leitura e seus efeitos nos leitores. Esta tematização se torna possível através do emprego do quarto nível narrativo, que em Cervantes
traz para o contexto da obra a problematização da prática da leitura,
utilizando-se da função metalingüística. Lobato, revelando-se leitor
sensível do clássico cervantino, apropria-se desse recurso e utiliza-o
para pôr em prática seu projeto de leitura.
A partir desta proposição torna-se possível o apontamento de
algumas "coincidências" entre o clássico e sua adaptação.
Em primeiro lugar há que se destacar a presença marcante do
objeto livro nas duas obras. Na apresentação de Dom Quixote, temos
uma personagem cercada de livros de cavalaria, totalmente influenciada por eles. Mesmo sem um levantamento exaustivo das aparições dos livros ao longo de toda a narrativa, observa-se que este objeto está presente nos momentos mais marcantes. São exemplos o
expurgo da biblioteca do fidalgo (CERVANTES, 1978, cap. VI, p.
43), a leitura da "Novela do curioso impertinente" (idem, cap XXXIII,
p. 190), ou o episódio em que o cavaleiro observa o trabalho de correção e impressão do Quixote de Avellaneda em uma gráfica de Barcelona (idem, cap. LXII, p. 565).
O livro também desempenha papel relevante na obra infantil
lobatiana. Dona Benta tem em casa uma biblioteca com mais de duzentos volumes, de vários autores e gêneros, sempre atualizada, pois
recebe todos os tipos de livros pelo correio.
Exercendo o ofício de narradora, aproxima-se da tradição dos
narradores populares; no entanto, seu repertório está
fundamentado no material impresso, com direito à apresentação
do autor, nacionalidade e características referentes ao objeto livro
a ser manuseado, como a ilustração e a formatação. (DEBUS,
2004, p. 139)
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2
As categorias propostas por Socorro Acioli são: 1. Leitura para o exercício crítico; 2. Leitura que provoca
ação; 3. Prática de escrita e 4. Fantasia e aventura. (2005, p.165).
Exemplo do destaque para o livro visto como objeto é o início
do capítulo XXIII de Dom Quixote das crianças (LOBATO, 1952, p.
169-171), ocasião em que Dona Benta explica aos netos as medidas
do formato dos livros, a partir da expressão in-16.
Outro aspecto a ser destacado a respeito da materialidade dos
livros é a leitura sensorial, tão presente em Lobato. Por isso os livros
"pegaram ciência" no Visconde. Ele os cheira, os devora, passeia de
braços dados e conversa com eles. Emília, em A reforma da natureza
(1941), cria os "livros comestíveis" (VIEIRA, A. S., 1998, p. 46-47).
Em Dom Quixote das crianças, é a travessura de Emília com os
dois enormes volumes da tradução dos Viscondes de Castilho e Azevedo que motiva o início da leitura da obra nos serões que acontecem
no Sítio.
Dom Quixote enlouquece porque lê. A leitura das novelas de
cavalaria é o que o move para todas as aventuras. A leitura provoca
sua ação. Curiosamente, quando Acioli estabelece uma classificação
das obras de Lobato a partir do papel da leitura e da recepção2, o
segundo grupo proposto é justamente o da "leitura que provoca ação"
(2005, p, 165), do qual fazem parte os títulos cuja história começa
exatamente a partir de uma leitura prévia, motivadora da aventura.
Além de ter o ideal de restituição da ordem da cavalaria, elemento do mundo lido, Dom Quixote sonha tornar-se, através do vivido, personagem de um livro:
Quem duvida que lá para o futuro, quando sair à luz a verdadeira
história dos meus famosos feitos, o sábio que os escrever há de
pôr, quando chegar à narração desta minha primeira aventura
tão de madrugada, as seguintes frases: [...] (CERVANTES, 1978,
cap. II, P. 32)
Este também é o desejo de Emília e se converte num dos pontos
de sua identificação com o cavaleiro:
-Podia de repente aparecer um Cervantes que contasse a história
[dela] num livrão como este, e me deixasse celebre no mundo
inteiro, como ficou a Dulcineia. (LOBATO, 1952, p. 60)
Cervantes explora amplamente a função metalingüística para
elaborar reflexões críticas a respeito de sua e de outras criações literárias e artísticas, sobretudo as novelas de cavalaria. Especialmente
na segunda parte, a reflexão, em geral tarefa das personagens, gira
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em torno da própria obra, seja acerca da primeira parte, seja sobre o
falso Quixote. (VIEIRA, M. A. C., 1998, p.88).
Lobato, do mesmo modo, utiliza esporadicamente o espaço do
texto para um olhar crítico em relação a outros textos. De acordo
com os apontamentos de Acioli (2005, p. 166-170), esse recurso é
tão importante que justifica uma das categorias propostas, a da "leitura para um exercício crítico". Em Histórias de Tia Nastácia "o
público leitor escuta e critica as histórias sem nenhuma piedade, chegando a fazer críticas fortes à cultura popular", em História das invenções "há uma conversa entre Pedrinho, Narizinho e Dona Benta
sobre a dificuldade de compreender os livros de ciência". Em Dom
Quixote das crianças, a já citada contextualização, que as novelas de
cavalaria exige, representa um dos momentos em que o olhar dos
leitores se volta a outros textos. Dona Benta, além de tecer considerações sobre a obra de Cervantes, recomendando sua leitura logo no
início da adaptação, também sugere a leitura de Orlando Furioso, de
Ariosto, reveladora da "coisa tremenda" que eram os cavaleiros andantes.
Interessante notar, neste momento, a personagem Dom Quixote
como leitora crítica de sua própria história, tanto no texto de Cervantes,
quanto no de Lobato. Nesse sentido, é no mínimo curiosa a semelhança dos textos. Em primeiro lugar, veja-se a leitura que o cavaleiro faz do Quixote apócrifo que lhe caiu nas mãos em uma estalagem
a caminho de Barcelona, quando Dom Jerônimo e Dom João, outros
hóspedes, propõem a leitura da segunda parte de Dom Quixote de la
Mancha, de autoria de Avellaneda. (CERVANTES, 2004, cap. LIX,
p. 549):
- Nem a nossa presença pode desmentir o vosso nome, nem o
vosso nome pode desacreditar a vossa presença. Sem dúvida,
senhor, sois o verdadeiro Dom Quixote de la Mancha, norte e
luz da cavalaria andante, a despeito e apesar de quem quis usurpar
o vosso nome e aniquilar as vossas façanhas, como fez o autor
deste livro, que aqui vos entrego.
E pôs-lhe um livro nas mãos, livro que o seu companheiro trazia;
pegou-lhe Dom Quixote e, sem responder palavra, principiou a
folheá-lo; e dali a pedaço devolveu-lho, dizendo:
- No pouco que vi, achei três coisas neste autor dignas de
repreensão. A primeira são algumas palavras que li no prólogo;
a segunda ser a linguagem aragonesa, porque muitas vezes
escreve sem artigos; e a terceira, que mais o confirma por
ignorante, é o errar e desviar-se da verdade no mais principal da
história, porque diz aqui que a mulher do meu Sancho Pança se
chama Maria Gutiérrez, e não se chama tal: chama-se Tereza
Pança; e, quem erra nesta parte tão importante, bem se poderá
recear que erre em todas as outras da história.
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Dom Quixote, trazido para o Brasil, de e por Lobato, também
comenta o que lê no livro que narra sua história, em O Sítio do Picapau
Amarelo (LOBATO, 1982, p. 798):
Lá na varanda Dom Quixote conversava com Dona Benta sobre
as aventuras, e muito admirado ficou de saber que sua história
andava a correr mundo; escrita por um tal de Cervantes. Nem
quis acreditar; foi preciso que Narizinho lhe trouxesse os dois
enormes volumes da edição de luxo ilustrada por Gustavo Doré.
O fidalgo folheou o livro muito atento às gravuras, que achou
ótimas, porém falsas.
- Isso não passa duma mistificação!- protestou ele. – Esta cena
aqui, por exemplo. Está errada. Eu não espetei este frade, como
o desenhista pintou - espetei aquele lá.
- Isto é inevitável - disse Dona Benta. – Os historiadores
costumam arranjar os fatos do modo mais cômodo para eles; por
isto a História não passa de histórias.
- Mas é um abuso! – insistiu o fidalgo. – Eu, que sempre me bati
pelas melhores causas, não merecia que me atraiçoassem deste
modo.
Por fim fechou o livro; não quis ver mais.
Há muita semelhança nestas passagens. Os livros "caem" nas
mãos do cavaleiro. A leitura é breve, logo desinteressa o leitor. Dom
Quixote aponta os erros cometidos pelo autor (ou ilustrador). Além
disso, ambas procuram de alguma forma discutir a questão da "verdade" dos livros de histórias.
Deste modo, fica evidente que as personagens têm consciência
de sua condição de personagem e até discutem a narração de sua
história. Acioli (2005, p. 202) apropriadamente destaca a passagem
do capítulo III, da segunda parte da obra, em que "o próprio Quixote,
Sancho Pança e o bacharel Sansón Carrasco conversam sobre a recepção da primeira parte do livro".
- Com que então, é verdade haver uma história dos meus feitos,
e ser mouro e sábio quem a compôs?
-É tão verdade, senhor – disse Sansão -, que tenho para mim que
no dia de hoje estão impressos mais de doze mil exemplares da
tal história; senão, digam-no Portugal, Barcelona e Valência, onde
se estamparam, e ainda corre fama que se está imprimindo em
Antuérpia, e a mim me transluz que não há de haver nação em
que não se leia, nem língua em que não se traduza.
- Uma das coisas – acudiu Dom Quixote – que maior
contentamento deve dar a um homem virtuoso e eminente é o
ver-se andar em vida pelas bocas do mundo, impresso e com
estampa com bom nome, é claro, porque, sendo ao contrário,
não há morte que se lhe iguale. (CERVANTES, 1978, parte II,
cap. III, p.324)
Os picapaus também são leitores críticos das obras de Lobato e
PRADO, A.O.M. P. 39-56.
50
demonstram ter consciência da recepção de seu texto:
- Exigente! Você já anda bem famosinha no Brasil inteiro, Emília,
de tanto Lobato contar as suas asneiras. Ele é um enjoado muito
grande. Parece que gosta mais de você do que de nós – conta
tudo do jeito que as crianças acabam gostando mais de você do
que de nós. É só Emília p’ra cá, Emília p’ra lá, porque a Emília
disse, porque a Emília aconteceu. Fedorenta... (LOBATO, 1952,
p. 61)
- Ganja demais, é isso, explicou o menino. Aqui quem manda é
ela. Tudo quanto ela faz aquele sujeito conta nos livros. Daí a
ganja. (idem, p. 152)
3
Estas citações são nossas traduções
dos seguintes trechos de "Magias
parciales del Quijote": [...]
Cervantes se complace en confundir lo objetivo y lo subjetivo, el mundo del lector con el mundo del libro.
[...] Creo haber dado con la causa:
tales inversiones sugieren que si los
caracteres de una ficción pueden ser
lectores o espectadores, nosotros,
sus lectores o espectadores, podemos ser fictícios. (BORGES, 1974,
p. 667-669).
- Lá vem você com palavras plebeias. Muitas professoras, Emília,
criticam esse seu modo desbocado de falar. "Besteira"! Isso não
é palavra que uma bonequinha educada pronuncie. Use expressão
mais culta. Diga, por exemplo, "tolice". (idem, p. 195)
Percebe-se, por estas falas de Narizinho, Pedrinho e Dona Benta, que eles sabem quem é Lobato, que lêem seus textos e, portanto
têm consciência de que são personagens e de que esses livros chegam a nós, leitores reais. Este nível narrativo, em que as personagens
se posicionam e se comportam como se fossem pessoas reais,
desestabiliza qualquer certeza que o leitor possa ter sobre o estatuto
de ficção do texto literário. Ao refletir sobre este aspecto, Lajolo (2006,
p. 03) pondera que, quando as personagens discutem seu estatuto de
ficção, "o espaço ficcional pode ganhar foros de realidade que conduzem o seu leitor a pisar devagarinho nos estreitos limites de fantasia e realidade, autor e narrador, ficção e história, personagem e pessoa", justamente o que Borges indica como magia parcial do Quixote,
ou seja, que "Cervantes se compraz em confundir o objetivo e o subjetivo, o mundo do leitor e o mundo do livro" e também que "tais
inversões sugerem que se as personagens de uma ficção podem ser
leitores ou espectadores, nós, seus leitores ou espectadores, podemos
ser fictícios"3.
Mas o estudo da obra de Cervantes e das inserções de seu cavaleiro nos textos de Lobato, a partir do recorte da leitura e dos leitores,
oferece ainda algumas surpresas. No clássico há uma profusão de
alusões a personagens de outras obras literárias, no que os textos de
Lobato não são diferentes, revelando, ambos os autores, múltiplas
relações intertextuais.
Uma em especial se destaca na segunda parte de Dom Quixote:
a inclusão, na narrativa, de uma personagem do falso Quixote de
Avellaneda, Dom Alvaro de Tarfe. A publicação desta obra mexeu
com os brios de Cervantes e não poderia passar despercebida. Maria
R G L, n. 4, fev. 2007.
51
4
Socorro Acioli chega à definição de
leitura-ação a partir da análise dos
textos de Edgar Morin, Os sete saberes e outros ensaios. São Paulo:
Cortez Editora, 2000, e também do
estudo do texto de Hans Robert
Jauss, A história da literatura como
provocação à teoria literária. Trad.
Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática,
1999.
Augusta da Costa Vieira é quem esclarece:
É muito provável que pouco antes de redigir o capítulo LIX,
Cervantes tenha tomado conhecimento da publicação da obra de
Avellaneda que parodia de forma tosca, a seu modo de ver, a
história do cavaleiro da Mancha. Diante de tanta desfeita, a
melhor resposta foi introduzir o falso Quixote como objeto de
crítica literária elaborada pelo próprio personagem. Desta forma,
Dom Quixote encontra-se com leitores do Quixote apócrifo, passa
pelo local de impressão da obra em Barcelona, suporta a
encenação de Altisidora no capítulo LXX, que menciona o autor
aragonês, e, finalmente, conversa com o cavaleiro mourisco –
Dom Álvaro de Tarfe -, grande amigo e entusiasta das andanças
do falso Dom Quixote. (VIEIRA, M. A. C., 1998, p. 156)
Dom Quixote conversa com Dom Álvaro. Em situação parecida, o herói conversa com personagens/leitores de sua história, Sansão
Carrasco e Os Duques, assim como as personagens lobatianas conversam com Dom Quixote e Sancho
Entretanto, em Lobato, temos um outro tipo de personagens invadindo suas histórias: os leitores reais, crianças que se correspondiam
com Lobato e que pediam para participar das aventuras no Sítio. A
presença de "personagens do mundo de verdade" e do "mundo de
mentira", de crianças contemporâneas a Lobato e personagens
ficcionais é explorada por Eliane Debus (2004, p. 155-169). A autora
relaciona as crianças que Lobato inclui em suas histórias, ora apenas
citando nomes, ora fazenda-os participar das aventuras. Elas aparecem em O Circo de escavalinhos (1929), Caçadas de Pedrinho (1933),
O Picapau Amarelo (1939) e Reforma da natureza (1941).
O Circo de escavalinhos traz o menino Alarico Silveira Junior,
que aparece no Sítio para assistir ao espetáculo montado pelos netos
de Dona Benta. Cléo, filha de Otales Marcondes, amigo e sócio de
Lobato, aparece em Caçadas de Pedrinho. Quando todas as personagens das fábulas vão morar no Sítio, em O Sítio do Picapau Amarelo,
aparecem para uma visita vinte e quatro crianças, das quais somente
duas não foram identificadas por Eliane Debus; todas as outras foram não só identificadas, como também suas cartas a Lobato foram
comentas ou parcialmente transcritas pela pesquisadora. Dentre estas crianças, havia a carioca Maria de Lourdes, cujo apelido era
Rãzinha. Ela aprece novamente em A reforma da natureza, para ajudar Emília com suas sugestões de mudanças na natureza.
Uma última correspondência a ser estabelecida entre o clássico
e sua adaptação é a que se refere à modificação que sofre o leitor,
definida por Acioli (2005, p. 214) como resultado da leitura-ação4:
PRADO, A.O.M. P. 39-56.
52
A leitura-ação é aquela em que o leitor, que designamos leitoragente, sofre uma modificação e passa a agir de uma forma
diferente depois do convívio com [o] texto. Se o texto que foi
lido passar a fazer parte do cotidiano do leitor, inspirar suas ações,
apontar caminhos, modificar suas opiniões ou operar qualquer
mudança de perspectiva para o leitor, podemos dizer que
aconteceu uma leitura-ação.
A leitura de Dom Quixote, como mostra Acioli, envolve, emociona e modifica os leitores do Sítio, de uma maneira tão intensa que o
cavaleiro aparece mais vezes nas obras posteriores de Lobato. Especialmente para Emília, que de boneca sem coração, como foi retratada no início de Dom Quixote das crianças (1952, p. 7), passa a
gentinha sensível depois da leitura da história de seu herói preferido.
É o que fica provado ao final do livro seguinte, Memórias da Emília,
quando a boneca confessa seus sentimentos, revela que tem um coração sensível e declara seu amor pelas pessoas e coisas do Sítio. Acioli
revela com propriedade a evolução de Emília:
Na última consideração que Emília fez sobre Dom Quixote na
obra de Lobato, ela o chama de herói e justifica que, no mundo
moderno, tudo é diferente: não é só a vitória que faz o herói. A
boneca Emília, que sempre prega a esperteza, a astúcia e por
vezes até o egoísmo, termina a obra considerando herói um
homem que luta por justiça, mesmo apanhando muito e sendo
ridicularizado por seus compatriotas. Depois de querer ser Dona
Quixotinha, nos parece que Emília começa a repensar os seus
valores. Se nas obras iniciais ela declarou muitas vezes que
gostaria de casar com um pirata para morar em um navio, vemos
nas obras finais uma Emília sonhando em ser princesa, possuir
um castelo e hospedar Dom Quixote, um "suco dos sucos".
Aquela Emília que chamava Tia Nastácia de "pretura", "negra
beiçuda", de repente escreve um livro de memórias e declara seu
amor à negra que a costurou com suas próprias mãos. (ACIOLI,
2005, p. 220)
A pesquisadora ainda considera que esta transformação pode
ser vista como uma adequação da personagem, tendo em vista as
fortes críticas de que foi alvo à época da publicação das histórias. Por
outro lado, sobressai o ponto de vista da experiência estética, o que a
permite dizer que foi a leitura de Dom Quixote que ocasionou uma
mudança declarada nos sentimentos da boneca. (idem, p. 217).
O Cavaleiro da Triste Figura sofreu também uma transformação
gradativa, intimamente relacionada com a leitura, como revela Maria
Augusta Vieira durante sua análise da obra. O encontro com a obra
apócrifa, uma versão literária de si mesmo, revelou-se extremamente
nocivo, repercutindo nas próprias fibras de sua identidade, uma vez
R G L, n. 4, fev. 2007.
53
que o herói não suportou "carregar o peso de um personagem homônimo e avesso a si mesmo" (VIEIRA, 2005, p. 89). Além disso, a
impossibilidade de materializar a imagem idealizada de Dulcinéia, o
encontro com Sansão e os Duques (seus leitores que revelam preocupações de ordem terapêutica diante de sua loucura, reforçando as intenções de seus amigos mais próximos) e, por fim, a derrota no embate com o Cavaleiro da Branca Lua, vão instaurando em sua alma
algumas dúvidas quanto ao fato de ser ele realmente um cavaleiro
andante, um conflito que põe em risco sua capacidade para restituir
ao mundo a ordem exemplar da cavalaria.
Na segunda parte é como se a obra estivesse numa constante
busca de si mesma, questionando suas possibilidades e
convertendo em tema suas dúvidas e certezas. Este procedimento,
por sua vez, parece ecoar nos movimentos de Dom Quixote,
alterando seu perfil, isto é, alargando sua alma como diria Lukács.
(idem, p. 90)
Enquanto transcorria a experiência, a loucura abstrata silenciou
e a devoção de Dom Quixote aos livros manteve-se inabalável.
Mas a incompatibilidade entre os ideais e o mundo foi tão acirrada
que a experiência acabou excedendo os domínios da
temporalidade e liquidou, com golpe certeiro, a verdade absoluta
das novelas de cavalaria. (idem, p. 159)
Depois de tantas decepções o grande herói sucumbe à realidade
e é obrigado a admitir que tudo não passou de loucura. Em seus últimos dias, declara ser Alonso Quijano, o Bom. Estando já curado,
torna-se inimigo das novelas de cavalaria, ciente da impossibilidade
de existirem cavaleiros andantes. Mas o que se perpetuou para seus
leitores, reais ou fictícios, foi a grande aventura da leitura, origem e
alimento dos mais diversos ideais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O propósito do trabalho foi observar de que modo a preocupação dos autores com a recepção de suas obras revela-se através da
tematização de leitura e leitores.
No primeiro tópico, "Uma das magias de Cervantes", o olhar
recai sobre o Dom Quixote de Cervantes, mais precisamente sobre a
maneira como tem sido lido através da história de sua recepção. Destaca-se aí a atenção que se tem dispensado à questão da leitura, personagem fundamental do Quixote.
Este aspecto, como se pode perceber no segundo tópico, "Alguma magia em Lobato", teve grande destaque nas obras de nosso escritor destinadas ao público mirim, revelando sua consciência tanto
PRADO, A.O.M. P. 39-56.
54
do funcionamento da mente infantil, quanto da importância da leitura para sua formação.
No decorrer do terceiro tópico, "Magia da leitura", é possível
perceber que o próprio Lobato, como leitor competente, assimila a
estrutura da narrativa cervantina e apropria-se dela para pôr em prática seu projeto de formação de leitores que sejam sensíveis, críticos,
capazes de trazer para sua vida as mudanças e a felicidade que os
textos propõem, pela leitura e pelo sonho...
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55
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PRADO, A.O.M. P. 39-56.
56
SUJEITO, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO:
ENTRE O DISCURSO OFICIAL E A VOZ DE
PROFISSIONAIS DO SEXO E TRAVESTIS1
1
Pesquisa realizada com apoio da
FUNDECT-MS.
*UFMS/FUNDECT.
**PIBIC/CNPq/UFMS.
Marlene Durigan*
Sandra Regina Nóia Mina**
RESUMO: O objetivo deste ensaio é analisar representações que profissionais do sexo e travestis elaboram sobre sua identidade e sobre os conceitos
de inclusão, justiça e cidadania. Fundada nos pressupostos teóricos da Análise do Discurso de vertente crítica (FAIRCLOUGH, 2001), a investigação
desenvolveu-se por meio de pesquisa bibliográfica, aplicação de questionários e entrevistas. O universo da pesquisa envolveu prostitutas (profissionais do sexo) e travestis de duas cidades de Mato Grosso do Sul, selecionadas
por meio de amostragem não probabilística por acessibilidade. As análises
evidenciaram, de um lado, discursos marcados pelo preconceito; de outro,
estereótipos constituídos na/pela memória social, pondo à mostra um confronto visível entre discursos e práticas sociais.
Palavras-chave: 1) prostituição; 2) travestismo; 3) marginalização social.
ABSTRACT: The purpose of this essay is to analyze some representations
that sex professionals and travesties do or build about their identity and
about their concepts of inclusion, justice and citizenship. Based on the
theoretic contributions developed into Critical Discourse Analysis
(FAIRCLOUGH, 2001), the investigation was developed by bibliographic
research and interviews. The search universe involved sex professionals
and travesties from two cities of Mato Grosso do Sul State, selected by
accessibility. On one hand, the analysis showed some discourses marked
with prejudice; on the other hand, we found stigmas constituted in/by social
memory, evidencing a visible confrontation between the discourses and the
social practices.
Key-words: prostitution; travestism; social marginalization
Introdução
Em 1981, ao abordar questões pertinentes aos conceitos de desvio, Gilberto Velho (1981, p.11-2) afirmava que comportamentos
considerados desviantes eram concebidos, no âmbito do senso comum e dos meios de comunicação de massa, como patologias individuais (endógenas ou até mesmo hereditárias) ou “sócio-culturais”,
como males a serem tratados, numa espécie de tentativa de superar
preconceitos e intolerância, o que, segundo o autor, estaria vinculado
a uma certa tradição de vertente “médica”. Por outro lado, estudos
posteriores, como os de Foucault e Merton, apontam as pressões da
estrutura cultural e social sobre os comportamentos, de que viria resultar uma espécie de “patologia social”, deslizando,
assim, de um “patologismo a um sociologismo” (VELHO, 1981,
R G L, n. 4, fev. 2007.
57
p. 19). Para os interacionistas, a quem Howard Becker (1966, p. 8-9,
apud VELHO, 1981, p. 23-4) bem representa, o comportamento
desviante é criado pela sociedade, que estabelece regras, limites e
valores cuja infração constitui desvio: o desvio seria, então, “a conseqüência da aplicação por outrem de regras e sanções ao
transgressor”.
De qualquer modo, a idéia de comportamento desviante pressupõe a existência de “comportamentos normais”, mas isso não pode
conduzir a esquemas deterministas ou reducionistas. Em qualquer
sociedade ou cultura, podem surgir comportamentos divergentes tachados de desviantes -, configurando “a permanente possibilidade
de destruição de um ‘estilo de vida’, de uma ‘ordem social’, ou de
um equilíbrio cultural’”, fenômenos que (ainda) precisam ser estudados. Adotar qualquer dessas posições teóricas sem as evidências
empíricas seria, no entanto, incorrer no risco de tomar como verdade
científica às representações de alguns indivíduos ou de um grupo ou
subgrupo dentro da sociedade estudada e silenciar a voz do “acusado”.
Sem o propósito de discutir em profundidade a questão do desvio, a investigação incidiu sobre questões de discriminação e gênero,
buscando contribuir para o estudo das relações que se estabelecem,
nesse segmento da problemática social, entre diferentes discursos e
práticas sociais. Para tanto, o objetivo deste ensaio, que concentra
resultados de uma pesquisa de escopo maior, é analisar representações que profissionais do sexo e travestis elaboram sobre sua identidade e sobre os conceitos de inclusão, justiça e cidadania.
A investigação desenvolveu-se por meio da análise de um córpus
constituído de respostas de 10 entrevistadas (5 profissionais do sexo
e 5 travestis), cujos enunciados foram analisados à luz dos princípios
teóricos da Análise do Discurso Crítica (FAIRCLOUGH, 2001). Partiu-se das condições e do processo de produção dos discursos em
pauta, considerando-se formações discursivas e formações ideológicas.
Os procedimentos para a coleta dos dados envolveram a elaboração e aplicação de questionário; entrevistas; pesquisa documental
(programas de reintegração social). O universo da pesquisa envolveu
prostitutas (doravante PS – profissionais do sexo) e travestis (T) de
duas cidades de Mato Grosso do Sul, selecionadas, numa primeira
instância, por meio de amostragem não probabilística por acessibilidade. Em seguida, os sujeitos foram agrupados em duas categorias –
DURIGAN, M & NÓIA, S. R. p. 57-76.
58
PS e T –, já que a dificuldade de acesso e as características das entrevistadas não permitiram a aplicação da amostragem estratificada não
proporcional, envolvendo as variáveis: idade, nível de escolaridade,
estado civil, cor, condição sócio-econômica; situação familiar, tempo de exercício da atividade, local de trabalho, local de origem.Em
ambos os casos, os entrevistados são identificados por nomes fictícios, conforme as regras definidas no “contrato” entre pesquisadoras e
pesquisados.
1 Ideologia, sujeito e discurso
A ideologia corresponde ao conjunto de representações coletivas – imagens, signos, crenças, em suma, valores mediante os quais
um grupo social mantém a coesão entre os diferentes membros, por
um lado, e, por outro, opõe-se aos demais grupos sociais, afirmando
perante eles a sua unicidade.
Eagleton (1997) afirma que todos os movimentos sociais (religiosos, estudantis, culturais, operários, políticos) encontravam-se, na
década de 80, agrupados – nem sempre coesos –, e unidos em um e
único movimento, sob a mesma bandeira de reivindicação social, indiferentes às condições particularizantes (etnia, sexo, religião, categoria profissional, classe social). No final de século XX e início do
XXI – no momento predominantemente do avanço da globalização,
do neoliberalismo, do “fim das ideologias” e do “fim da história” –,
não haveria, no entanto, segundo o teórico, um centro catalisador de
idéias e atitudes capaz de aglomerar as diversas classes socialmente
marginalizadas (negros, mulheres, favelados, homossexuais, sem-teto,
sem-emprego, sem-escola, sem-terra). Nas palavras do autor, a esquerda política teria abandonado as discussões ideológicas e, em conseqüência, a luta de classe, como se não houvesse mais disputas sociais. (EAGLETON, 1997, p.12).
Para Pêcheux (1990), a ideologia não constitui apenas o sujeito,
mas também os sentidos e ambos se relacionam mutuamente: não há
discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia. O sujeito interpelado é o sujeito do discurso que o interpelou, dos sentidos que se
produzem no interior desse discurso. O sujeito da linguagem não é o
indivíduo em si, mas aquele que existe socialmente, interpelado pela
ideologia, de modo que ele não é a origem, a fonte absoluta do sentido, porque na sua fala outras falas se dizem. Esse processo de atualização axiológica do comportamento do indivíduo só pode ser anali-
R G L, n. 4, fev. 2007.
59
sado na extensão de seu discurso – o seu dizer – e o sujeito é o que é
não porque queira ser o que é, mas porque é determinado a sê-lo; ele
fala o que fala não porque queira falar o que fala, mas porque é determinado a falar o que fala.
Cada formação ideológica constitui um conjunto complexo de
atitudes e de representações que não são nem individuais nem universais, mas se relacionam mais ou menos diretamente a conflitos. A
ideologia só pode ser reconhecida no discurso e as formações ideológicas comportam necessariamente, como um dos seus componentes,
uma ou várias formações discursivas interligadas, que determinam o
que se pode e o que deve ser dito a partir de uma posição dada numa
conjuntura. Formação discursiva é aquilo que, numa formação ideológica dada, “determinada pelo estado de luta de classes, determina o
que pode e deve ser dito” (op. cit.). Isso significa que o sujeito não
tem liberdade de escolher o que quiser no instante em que, em sua
ilusão constitutiva, produziria um discurso: todos os sentidos já estão
previamente estabelecidos na formação discursiva a que ele pertence.
Segundo Foucault (1986), sujeito é uma função fundadora do
discurso; é o espaço em que há possibilidade de realização discursiva
ou a “posição” que deve e pode ocupar todo indivíduo para ser sujeito de um determinado discurso. É um lugar determinado e vazio que
pode efetivamente ser ocupado por indivíduos diferentes. O sujeito
do enunciado é também sujeito da operação enunciativa, que só pode
existir, então, a partir de certos lugares demarcados. Ocorre que esse
sujeito pode ser submetido a outro pelo controle e pela dependência,
ou ser assujeitado à sua própria identidade, seja pela consciência,
seja pelo conhecimento de si (FOUCAULT, 1996). Nos dois casos, a
palavra “sujeito” sugere uma forma de poder que subjuga e submete.
Quanto ao discurso, é concebido como efeitos de sentidos entre
os interlocutores, de modo que supõe um sistema significante e a
relação desse sistema com sua exterioridade, já que “é a inscrição da
história na língua que faz com que ela signifique” (ORLANDI, 1994,
p. 53). Assim, o discurso “se apresenta como o lugar específico em
que se pode observar a relação entre linguagem e ideologia”, sem
separar linguagem e sociedade na história e apontando para a determinação histórica do sentido. O discurso como uma construção social é, pois, percebido como uma forma de agir no mundo, de modo
que analisá-lo dessa perspectiva é investigar como os sujeitos envolvidos na construção do significado agem no mundo por meio da lin-
DURIGAN, M & NÓIA, S. R. p. 57-76.
60
guagem e constroem, desse modo, sua realidade social e a si mesmos. Assim, tanto o sujeito quanto o sentido (ambos constituídos no
discurso) mantêm uma relação de dependência com a história, a ideologia e com o inconsciente desse sujeito:
[...] as palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido
segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam,
o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a
essas posições, isto é, em referência às formações ideológicas
[...] nas quais essas posições se inscrevem [...]. (PÊCHEUX,
1990, p. 160)
Sujeito, discurso, ideologia e contexto sócio-histórico são, pois,
elementos primordiais para se definir e compreender a dimensão social do quadro das instituições seculares de opressão e dominação.
Não se pode negar que o discurso marxista tornou-se a gênese
discursiva dos grupos sociais marginalizados, explorados, excluídos,
que se encontravam organizados no século XX. Isso significa que o
advento do marxismo mudou e determinou a disputa pela hegemonia
do poder nos campos discursivo e prático, de modo que é fundamental compreender e saber como as ideologias se relacionam.
2 IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
A identidade é definida pela relação do indivíduo com outros (a
identidade do eu é constituída na relação eu + o outro) em uma estrutura ou contexto econômico, que também interage com/influencia
a efetivação da identidade. Seu conceito envolve desde um simples
‘meu nome é tal’ até procedimentos policiais, burocráticos, documentais: é o social que determina a subjetividade.
Assim, não existem identidades fixas ou permanentes; elas vão
se construindo a partir de uma gama de relações que se estabelecem
entre gêneros, gerações, etnias, classes: as pessoas têm determinado
gênero, podem pertencer a uma mesma geração ou etnia e circular
em diferentes classes sociais. Todas essas categorias, reunidas em
uma pessoa, colocam-na em diferentes relações com seus pares, o
que torna difícil definir uma identidade, conduzindo-nos a buscar uma
espécie de lógica de produção de subjetividade. (HALL, 2005)
Falar de identidade implica lembrar os estigmas, sinais corporais feitos com fogo, por meio dos quais se evidenciava algo de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava.
Seu portador era ritualmente poluído e devia ser evitado, especialmente em lugares públicos. Deslocado desse sentido primeiro, conR G L, n. 4, fev. 2007.
61
creto, o conceito de “estigma”, hoje, atinge diferenças de classe, geração, etnia, gênero, entre outras, produzindo conflitos culturais, sociais ou individuais.
Independentemente da “bandeira” que se empunha, a identidade, o sujeito e a história estão na língua, instrumento por meio do
qual se produzem, se mantêm ou se transformam as relações sociais
de poder: tudo aquilo que se diz de alguma maneira transmite as representações de mundo, de realidade, daquele que diz.
Hall (2005) questiona a idéia de identidade homogênea ou
unificada e discute ainda, sobre a globalização, define esta “como
um complexo de processos e forças de mudança”. Nesse sentido, a
globalização é a responsável pelo deslocamento das identidades culturais nacionais. O autor comenta também em seu livro sobre a importância do espaço-tempo na formação da identidade. Para ele, a
“moldagem e remoldagem de relações espaço-tempo no interior de
diferentes sistemas de representação têm efeitos profundos sobre a
forma como as identidades são localizadas e representadas”. (HALL,
2005, p. 71).
3 Da prostituição e do travestismo
Por muito tempo, diversos autores insistiram em falar da prostituição como uma forma profana de se ganhar a vida, e o travestismo,
um desvio comportamental a ser estudado e levado como doença e
não uma simples opção.
O nível dos discursos e os saberes, por um lado, e o nível das
intervenções institucionais, por outro, aparecem aqui como as duas
faces de uma mesma moeda. Ou seja, tanto a prostituição quanto o
travestismo mostram-se como formas de representação de um sujeito, seja esta uma nova identidade ou a representação momentânea de
um ganho.
Um olhar histórico sobre o modo como esses saberes e essas
políticas foram edificadas nos permitirá delimitar melhor esse campo de estudo. Os desafios impostos pelos persistentes problemas de
distribuição social podem ser mais bem compreendidos se observarmos as condições históricas que tornaram possível sua emergência,
se atentarmos para o fato de que as dificuldades e conflitos que hoje
existem podem ser revistos como efeito da sociedade e seu falso
moralismo.
Mas a história da prostituição e do travestismo não se limita à
produção de conhecimentos nem às confrontações científicas, ou à
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multiplicação de estudos quantitativos; refere-se também aos diferentes modos como as sociedades pensaram os indivíduos e as populações e como têm atuado sobre eles.
A história da prostituição primeiramente ocupará então, uma
parte dentro desse espaço disciplinar complexo, onde, a partir da
Antigüidade, entrelaçam-se os descobrimentos científicos, os estudos estatísticos referentes a essa profissão tão antiga e a abordagem
de outros fenômenos e problemas sociais.
Se analisarmos a questão de uma perspectiva histórica, veremos
que ela aparece como um espaço disciplinar privilegiado para compreender esse processo pelo qual as clássicas delimitações entre diversos campos discursivos são redefinidos. Como afirma Pêcheux,
assistimos a um deslocamento da existência do outro nas sociedades
e na história, de modo que a interpretação já faz parte da identificação e das transferências que organizam as relações sociais em redes
significativas: todo enunciado é suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, deslocando-se discursivamente de seu sentido para
derivar para um outro. (PÊCHEUX, 1990).
A prostituição e o travestismo tornam-se então, inevitavelmente, assuntos interdisciplinares e é aí que aparecem os maiores desafios discursivos. Torna-se impossível falar desses assuntos sem fazer
referência aos vários campos ou perspectivas de que podem ser abordados: religião, costumes, sociedade, história, entre outros. A complexidade desse campo reclama certos cuidados e critérios complexos para poder avaliar a diversidade discursiva que surge desse espaço de saber.
Muitas das falas, embora não tragam respostas suficientes para
análise, são instrumentos indispensáveis para alcançar o objetivo desta
pesquisa, que não se esgota na produção de conhecimentos como a
Psicanálise ou a própria Análise do Discurso, pois nosso objetivo
não é exclusivamente “representar”, “medir”, “calcular”, ou “comparar”, mas também criar estratégias concretas que permitam compreender esta linha discursiva que é muito falada, porém pouco estudada cientificamente.
3.1 Um pouco da história da prostituição
Em tempos de globalização, de discussão de direitos sociais, de
falta de propostas de emprego em vários setores, as questões ligadas
à prostituição se evidenciam e são abordadas por vários ângulos: a
denúncia de sua utilização como emprego e conseqüentemente suas
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finalidades; o questionamento de tal atitude; a busca da sociedade
por respostas que se iniciam desde o tratamento que este indivíduo
tinha em casa até questões religiosas. O que não se põe em discussão
é a possibilidade do livre arbítrio.
Pensar na prostituição como objeto de estudo requer considerar
algumas peculiaridades da profissão. Primeiro é importante concebêla não simplesmente como fator de exclusão social. Conceituar prostituição como profissão significa reconhecer a existência de diferentes práticas sociais, seja no âmbito das práticas trabalhistas, seja no
das religiosas ou outras. Tal compreensão é essencial para que possamos identificar o preconceito e as intolerâncias que, nos dias atuais,
ainda caracterizam as relações humanas: esses indivíduos seriam
desviantes em relação ao comportamento do ser humano “normal”.
Também temos que pensar na travesti da perspectiva das relações de gênero (masculino x feminino) ou da individualidade: ser
travesti não implica necessariamente prostituir-se ou ser profissional
do sexo. A opção por ser identificado como feminino podem constituir-se como eleição do objeto de desejo: a realização pessoal, e não
só (ou não especialmente) a utilização do corpo de mulher como instrumento de trabalho, fonte de remuneração.
Importa acrescentar as afirmações de Pereira (1976, p.48) acerca da profissão “prostituta”:
A venda dos serviços sexuais passou por um período em que
teve caráter sacro, com aspecto místico e tutelar. Num segundo momento epicuriano, a prostituta assume um papel estético e político.
Nessa época, seu trabalho é gerenciado pelo Estado, que cobrava
impostos, enriquecendo a elite dominante. No terceiro período, cristão, a prostituta é considerada “leprosa”, em nome da moral e dos
bons costumes.
A prostituição é um fenômeno antigo, tendo seu primeiro registro em dois mil anos a.C., na antiga Suméria. Historicamente, há registros da existência de prostitutas desde a Antigüidade, quando havia o predomínio do matriarcado. Naquele momento, a prostituição,
era interligada a cultura, a religião e a sexualidade, por isso, o sexo
era considerado sagrado.
A palavra ‘prostituir’ vem do verbo latino prostituere, que significa expor publicamente, pôr à venda, referindo-se às cortesãs de
Roma que se colocavam na entrada das “casas de devassidão”. Naquele período, as mulheres que exerciam a prostituição não sofriam
repressões e isso preocupava os homens interessados em derrubar o
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poder que elas possuíam. Assim, a saída encontrada foi criar um código moralista de repressão ao sexo, colocando-o como algo negativo.
Os sacerdotes hebreus criaram o estigma da prostituta que as
acompanha até hoje. A exclusão das mulheres que foram empurradas
pela sua condição social e econômica para o comércio do sexo é algo
historicamente consolidado nas sociedades. Assim, embora tenham
sido criadas organizações não-governamentais a favor das prostitutas, como a Daspu-RJ, Candelária-SE, o preconceito ainda é algo de
extrema visibilidade na sociedade capitalista.
Os romanos instituíram, pela primeira vez, uma espécie de registro estatal das prostitutas, chamadas de “classe baixa”, que passaram a pertencer a duas categorias: as meretrices, registradas, e as
prostibulae, não registradas. Elas pagavam impostos ao Estado e assim se tornavam fonte de lucros. Isso em pouco difere nos dias atuais, visto que o Ministério do Trabalho e Emprego decidiu catalogar
a atividade como uma ocupação regular no país, sob o código 519805.
Ao reconhecer esse trabalho, o país deu um passo significativo
para a regularização das profissionais do sexo, além de se tornar uma
publicação do governo federal e ser distribuída para todas as delegacias regionais do trabalho (DRTs) e secretarias estaduais de Promoção de Emprego.
Importa destacar que, quando há referências ao trabalho das profissionais do sexo, ressalta-se que elas acompanham turistas e usam
álcool no exercício de suas funções, que ouvem histórias de homens
carentes e que fazem massagens e faxina na casa dos clientes, além
de até interpretar personagens e posar para fotos, caso sejam solicitadas.
A preocupação da Igreja Católica perante essa novidade trabalhista suscitou discussões, uma vez que a Confederação Nacional de
Bispos do Brasil (CNBB) classifica a prostituição como uma maneira não honesta de ganho porque implicaria a corrupção dos costumes. Para Roberts (1998), a igreja do século XIII era hipócrita, porque condenava a prostituição, mas considerava-a um mal necessário.
Com a queda do Império Romano e a ascensão do cristianismo
como religião, a prostituição passou a ser algo moralmente repreensível. Na Idade Média, a Igreja começou a perseguir mulheres que
exerciam a atividade, gerando desavenças com/entre os senhores feudais. Acrescente-se que viúvas e filhas dos servos mortos nas bata-
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lhas foram induzidas a se prostituírem para sobreviver.
Em sociedades mais liberais praticamente inexiste a prática da
prostituição, pois o prazer sobrepõe-se ao comércio; já em outro extremo, quando existe rigidez de normas “comportamentais”, é perseguida e punida como delito, e muitas vezes como crime.
Normalmente a prostituição é reprovada nas sociedades, seja
pela “degradação dos costumes” e transgressão dos mandamentos,
seja pela idéia generalizada segundo a qual esse modo de vida é responsável pela disseminação de doenças sexualmente transmissíveis
(DST), seja ainda pelo discurso da “vida fácil”.
Na cultura silvícola de algumas regiões, inclusive no interior da
Amazônia, Brasil, e em algumas comunidades isoladas, onde não há
a família monogâmica, não existe propriedade privada e, por conseguinte, não existe a prostituição: o sexo é encarado de forma natural
e como uma brincadeira entre os participantes. Já onde houve a entrada da civilização ocidental com a catequização das tribos, o fenômeno da prostituição começou a ser observado na troca de objetos
por favores sexuais.
4 Em torno do travestismo
Seguindo o mesmo caminho de entendimento das modificações
a que a sociedade está submetida, busca-se compreender o travestismo
como fator que, dentro desse contexto, sofreu/sofre transformações
na sociedade civil.
É de se notar, como fazem as travestis, que o traje vai além do
tecido e ornamento, estendendo-se ao comportamento, determinando-o e evidenciando-o, marcando as etapas da vida, contribuindo para
a construção da personalidade e distanciamento dos sexos, das classes, dos grupos étnicos, de status, de idade.
A existência do travestismo é fato constante e freqüente na história da humanidade. No Brasil oitocentista, encontram-se referências à prisão de travestis (a maioria homens que se “vestiam de mulher”). Esse fato chama a atenção, já que, por mais de três décadas,
de 1853 a 1885, várias prisões foram efetuadas por esse “crime”.
Tendo o catolicismo como religião oficial, a transgressão do
vestir-se como o sexo oposto encontrava base de apoio no
Deuteronômio 22:5, que diz: “a mulher não se vestirá de homem nem
o homem se vestirá de mulher, porque aquele que tal faz é abominável diante de Deus”. Ou seja, percebe-se que o travestismo se constituía num mal para a sociedade, num pecado sujeito a sanções.
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A transgressão da “normalidade” passou a ser objeto de uma
atenção especial, constituindo-se como uma falta moral, como um
delito. Daí a formulação estruturalista de Roland Barthes (1967), que
considerava a moda um sistema relativamente fechado, semanticamente perfeito e largamente naturalizado pelas pessoas representando uma espécie de “direito natural”.
Michel Foucault (1985) afirma que o homossexual, enquanto
categoria, é criação dos higienistas no afã de classificar, nomear e
indicar um lugar social para os diferentes tipos de perversões (o próprio autor marca sua “posição”) que vieram à tona em plena moral
vitoriana. Esse instinto sexual é tido pela sociedade como fator
desviante e associado à discriminação da travesti como participante
na sociedade, que tem sua voz abafada em documentos oficiais, livros didáticos e nas próprias relações cotidianas.
As explicações para esse comportamento evidenciam que é a
sociedade que cria, produz, a idéia de “comportamento desviante”. É
ela que estabelece regras, limites e valores cuja infração constitui
desvio.
O termo ‘travestismo’ foi criado por Magnus Hirschfeld, médico alemão que escreveu o livro The transvestites no começo do século XX. Segundo o dicionário “Aurélio” (FERREIRA, 1995), interditado pelo tabu, ‘travesti’ diz respeito ao disfarce no trajar, ou o “indivíduo que, geralmente em espetáculos teatrais, se traja com roupas
do sexo oposto”.
O psicanalista americano Robert Stoller (1977) definiu o
travestismo como “condição na qual um homem se torna genitalmente
excitado ao vestir roupas íntimas femininas”.
Money (1993) inclui, no “travestismo”, todo aquele que se vista
como se pertencesse ao sexo oposto, destacando que se trata de uma
parafilia (doença, portanto).
Outro nome utilizado para essas preferências sexuo-eróticas (ou
apenas expressão social) tem sido “eonismo”, em referência ao denominado cavaleiro Eon, que se vestia de roupas femininas.
A prática de vestir-se igual ao gênero oposto era muito comum
na Antigüidade clássica greco-romana e veio a ter mais relatos nos
séculos XVI e XVII. Nas culturas mais antigas, o travesti tinha funções equivalentes à “deuses”, ou deveríamos chamar “deusas”, como
refere à escritora travesti Linda Phillips. Phillips (1996) hipotetiza
que uma primeira forma de travestismo deve ter ocorrido quando do
início do uso de peles de animais ao dividirem-se os homens das
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mulheres: o homem usava a pele pendurada no ombro direito; a mulher, no esquerdo. Ao usar a pele de animal no ombro esquerdo, o
homem teria se identificado com a mulher pela inversão da norma
social desenvolvida.
À época de William Shakespeare, os papéis femininos no teatro
eram todos desempenhados por homens que costumavam travestirse, lembrando a definição de Ferreira. As mulheres eram proibidas,
na Inglaterra da época, de participar das peças de teatro, por indicação dos líderes religiosos, porém vestir-se com as roupas do outro
gênero era muito comum e não resultava em reações negativas por
parte das outras pessoas.
Phillips (1996) aponta o quanto a travesti tem sido confundida
com o homossexual até nas décadas recentes. O termo “queen” já era
usado na Inglaterra vitoriana, a exemplo de duas “queens” julgadas
devido a uso de banheiros femininos, amplamente noticiados à época. Do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos, na virada do
século, temos várias descrições de travestismo. Algumas se tornaram
famosas com o teatro; outras foram perseguidas pela polícia, revelando as “ordens” das sociedades e do discurso.
Stoller (1993) dedica todo um capítulo à discussão das origens
do travestismo masculino. O autor descreve a necessidade de uma
família coerente com o desenvolvimento da prática da inversão de
vestimenta. A travesti é um menino que desenvolveu uma identidade
de gênero nuclear masculina (uma convicção, uma aceitação, um
conhecimento corporal de que ele é um homem), mas desenvolve
masculinidade mais vulnerável a ameaças do que outros meninos.
Pode depender de identificações negativas advindas da mãe como
compensações e culpas sentidas por esta na tentativa de superá-las.
“Se um menino com um sentimento comprometido de integridade e
valor é então travestido - especialmente depois de dois anos - por
uma menina com impulsos transexuais - ele é um alto risco de
travestismo” (STOLLER, 1993, p. 202).
O travestismo aparece costumeiramente associado a outras
“parafilias”: fetichismo, exibicionismo, masoquismo; também coexiste com orientações e escolhas objetais diversas: homossexual, heterossexual e bissexual. A maior parte das pessoas crêem que todos
sejam homossexuais, o que acaba por tornar-se um engano já que
esse gênero pode ser interpretado de diferentes formas: Drag Queens
(performistas), motivação erótica na prostituição, motivação na liberdade de vestir-se, meio artístico, motivação de expressão emocio-
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nal ou, ainda, uma motivação de mudança de identidade.
5 Em cena, as profissionais do sexo
Michel Foucault, em sua aula inaugural no Collège de France,
apresentou a hipótese de que “em toda sociedade, a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e
redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função
conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (FOUCAULT, 1996,
p. 8). Máquina que põe em movimento discursos e estratégias de intervenção políticas, econômicas, sociológicas, psicológicas, religiosas, estéticas, médicas etc., produzindo conexões inusitadas nunca
antes tão visíveis. Não estamos, portanto, no campo do apolítico e da
neutralidade.
Vale lembrar aqui que, cotidianamente, seja por meio da mídia,
seja por meio do discurso das leis, dos bons costumes, a prostituição
é reprovada nas sociedades, seja pela “degradação dos costumes” e
transgressão dos mandamentos, seja pela idéia generalizada segundo
a qual esse modo de vida é responsável pela disseminação de doenças sexualmente transmissíveis (DST), seja ainda pelo discurso da
“vida fácil”. Talvez seja por esta razaão que encontramos diferentes
respostas no que concerne aos aspectos do trabalho realizado pelas
profissionais do sexo em nossa pesquisa.
Das cinco PS entrevistadas, apenas uma tem mais de 25 anos (e
menos de 30); todas são solteiras, exercem a profissão há mais de
dois anos e não têm renda fixa; quatro têm ensino médio completo
(duas fazem curso superior) e apenas uma (a mais velha entre elas)
cursou apenas o “primário”.
Ao preencherem, no questionário, o item “profissão”, duas responderam “profissional do sexo”; duas, “prostituta”; uma, “estudante”.
Ao serem questionadas sobre o sentido das palavras “cidadania”, “justiça” e “inclusão social”, as entrevistadas assim se manifestaram. Fox afirma:
Seq. 1: “Pra mim não existe essa coisa de inclusão social; no
fim todo mundo é hipócrita pra falar disso.”;
As demais limitam-se a uma palavra, como num exercício de
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livre associação:
Seq. 2: “democracia”; “justiça”; “impunidade”; “liberdade”.
O investimento ideológico dos sujeitos entrevistados leva-nos a
vê-los como representantes de um grupo que faz oposição à ideologia da sociedade em questão, porque, a rigor, desobedecem às regras
ditadas pelo código ideológico dominante. As entrevistadas estão
imersas num complexo jogo de poder instaurado pelo Estado ou pela
sociedade civil, o que favorece, ainda mais, o surgimento de idéias
revolucionárias, atirando contra a sociedade a força dos que estão
fadados ao esquecimento ou à discriminação. Submetidas, segundo
suas vozes – em que se entrecruzam várias vozes sociais – a uma
sociedade injusta, que as tornou marginais, elas não falam a sua voz:
Seq. 3 “muito para poucos e pouco para muitos” (Maluzinha).
Cada uma se vê através dos olhos e das falas do outro, das quais
emergem motivos sócio-culturais, ideológicos e psicanalíticos. Parece produzir-se, ali, a simulação da sociedade dividida em classes, o
que se figurativiza, numa primeira instância, por sujeitos que, embora digam “não”, dramatizam a opressão social impingida àqueles que
transgridem as leis numa época (ainda) de repressão sexual:
Seq. 4: “A vida, as situações que eu e outras meninas passamos
faz a gente ter esse pensamento” (Fox);
Seq. 5: “profissão desprivilegiada” (Lábios de mel);
Seq. 6: “um país de desigualdade” (Fer);
Seq. 7: “profissão que ninguém dá valor” (Rosa);
Seq. 8: “não me considero diferente, apenas sem oportunidade”
(Fer).
Por detrás de suas falas vão permanecer, latentes ou manifestas,
as idéias suscitadas pelos estigmas. A marca estará no corpo, na alma
e no discurso das entrevistadas, registrando-se simbolicamente no
enunciado e na enunciação.
No conjunto das práticas discursivas e sociais que se apresentaram nas entrevistas e nas respostas aos questionários, o estigma ora
funciona como um elemento subjetivo que protegeria e justificaria
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fracassos pessoais (duas entrevistadas), não necessariamente determinados pela condição pela qual o sujeito foi estigmatizado: ele seria
uma defesa assumida pelo estigmatizado, que adota uma postura de
vítima. Diferentemente, duas entrevistadas adotam o estigma e assumem-se (ou dizem assumir-se) como “normais”: os outros é que não
o seriam. Há ainda vestígios de uma postura sectária (pertencimento
a uma comunidade de iguais) e se apóiam uns nos outros; sujeitos
diante dos quais o indivíduo que “tem defeito” não precisa se envergonhar ou se autocontrolar:
Seq. 9: “Não me olham diferente porque não sabem que essa é
minha profissão, mas se soubessem acho que ia ser evitada igual doença” (Fox);
Seq. 10: “Ninguém me olha diferente. Ninguém sabe o que faço”
(Lábios de mel).
A esse respeito, Foucault (1984, p. 136) conclui que:
Insere-se [o sexo], simultaneamente, nos dois registros; dá lugar
a vigilâncias infinitesimais, a controles constantes, a ordenações
espaciais de extrema meticulosidade, a exames médicos ou
psicológicos infinitos, a todos um micropoder sobre o corpo;
mas, também, dá margem a medidas maciças, a estimativas
estatísticas, a intervenções que visam todo o corpo social ou
grupos tomados globalmente. O sexo é acesso, ao mesmo tempo,
à vida do corpo e à vida da espécie. Servimo-nos dele como
matriz das disciplinas e como princípio das regulações.
As categorias “amigos” e “família” são silenciadas, porém é nítido que algumas se envergonham: “Não me olham diferente porque
não sabem que essa é minha profissão, mas se soubessem acho que ia
ser evitada igual doença” (Fox); “Ninguém me olha diferente. Ninguém sabe o que faço” (Lábios de mel).
A entrevistada Fox evidencia a incongruência entre dizer versus
fazer, retratando a hipocrisia do homem, que parece funcionar, para
ela, como uma justificativa, mas que, ao contrário, antecipa a punição (a sanção negativa) dos “pecadores”. Diferentemente das demais, ela apenas insinua o discurso da exclusão, mas não menciona
as omissões do Estado. Ao enunciar “se soubessem, acho que eu ia
ser evitada igual doença”, a entrevistada revela um discurso que há
muito tempo perdura na memória coletiva: a prostituta seria um agente
de contaminação. Preocupada com o julgamento da sociedade, com
o preconceito social, ela é, pois, o avesso dos princípios que regeri-
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1
Embora se declarem do sexo masculino, ao se manifestarem fazem
questão de ser “elas”, e não “eles”.
am a profissão que escolheu. Ela também sabe que está no rol dos
excluídos.
De certo modo, sua fala remete à “arena da luta de classes” e ao
discurso da Lei (o artigo 6º da Constituição Federal de 1988, cujo
discurso fundador encontra-se na Declaração Universal dos Direitos
do Homem), projetando, na cena, o confronto entre centro e periferia, entre alto e baixo, conforme se vê na resposta à terceira questão.
A entrevistada 4 traz, ora a palavra da ponderação (“somos todos iguais”), ora a voz que denuncia e contesta o status quo, criticando os mecanismos da Justiça no país (“impunidade”); a entrevistada
3 (Fer) põe em cena a negligência e o descaso das autoridades quanto
à falta de oportunidades. Ela esboça um grito de protesto e ressentimento contra as relações humanas no mundo “lá fora”. Em palavras
foucaultianas, é o grito contra o preconceito, que, como uma erva
daninha, esparrama-se por todo campo social, contagiando as relações e criando a discriminação e agressividade perversas.
6 Na arena, as travestis2
Das cinco entrevistadas, duas têm 30 anos; uma, 42; uma, 19;
uma, 22; quatro têm ensino fundamental incompleto; uma não esclareceu; no quesito “profissão”, apenas duas (19 e 22 anos) são profissionais do sexo; uma é cabeleireira; uma é secretária do lar e outra
“não tem profissão”. Três não têm renda fixa; uma percebe até um
salário mínimo e uma, de dois a quatro salários mínimos. Um dos
principais dados que merecem relevo é o fato de elas insistirem em
deixar claro que nem toda travesti é profissional do sexo, o que ficou
patente nos contatos prévios que fizemos para conseguir pessoas dispostas a responder às questões.
Questionadas sobre o que significavam, para elas, as palavras
“cidadania”, “justiça” e “inclusão social”, sua reação foi muito semelhante à das profissionais do sexo: procediam como nos exercícios de livre associação. Daí emergiram as palavras:
Seq. 11: “desrespeito” (Lorrayne e Brena);
Seq. 12: “falcatrua” e “injustiça” (Shary) e os enunciados:
Seq. 13: “O Brasil está uma porcaria” (Maika) e
Seq. 14: “a questões a serem conquistadas” (C Windson).
Nessas seqüências, observamos que cada sujeito pesquisado re-
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presenta uma determinada formação ideológica, o que constitui um
conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem
individuais nem universais, mas se relacionam mais ou menos diretamente a conflitos. Cada voz representa uma ideologia, que só pode
ser reconhecida no discurso e que determina o que se pode e o que
deve ser dito a partir de uma posição dada numa conjuntura. Nesse
caso, elas fazem um “desabafo”, ou talvez uma denúncia, já que, conforme aponta Orlandi (1994, p. 53), o discurso “se apresenta como o
lugar específico em que se pode observar a relação entre linguagem e
ideologia”, sem separar linguagem e sociedade na história e apontando para a determinação histórica do sentido.
Ainda, para conquistar a adesão do interlocutor, elas utilizam
recursos argumentativos como a citação do discurso do outro, por
meio do pré-construído: “temos direitos iguais”. A construção do
percurso de reivindicação e conquista de direitos, por exemplo, ocorre pela produção de falas panfletárias, que expõem a indignação com
o Estado e com a ordem burguesa. Diferentemente das profissionais
do sexo, cujas falas atenuam-se para deixar de ferir os ouvidos delicados, elas consideram a profissão de profissional do sexo (mesmo
que nem todas o sejam) como “meio de sobrevivência”, ao qual se
associam os “riscos” (Shary), a indiferença (C de Windson), os preconceitos (Brena, Lorrayne e Maika).
Importante dizer, no entanto, que, como Freud demonstrou, a
sexualidade está fundada numa identidade imaginária das diferenças. Os conceitos hetero, homo ou bissexualidade são representações
lingüísticas de práticas sexuais definidas segundo modelos padronizados de normalidade, numa dada cultura, num determinado momento
da história. Fundada no conhecimento científico de “natureza” humana, a sociedade moderna erigiu um código normativo para o comportamento dos seres humanos, segundo modelos extraídos da observação dos animais – diga-se de passagem, pouco aguçada, como bem
prova a etiologia contemporânea.
As categorias de normal e patológico foram construídas segundo esses modelos. A biologia tornou-se progressivamente o paradigma
dos códigos normativos que fixaram padrões de comportamento sexual, de disciplina corporal, construindo, assim, as identidades homem e mulher.
Como indicado por Foucault (1984, p. 136), a importância assumida pelas identidades sexuais relaciona-se a um campo de disputa
política, pois se trata de uma espécie de domesticação dos corpos.
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Tal posição implica reconhecer que, de um lado, o sexo “faz parte
das disciplinas do corpo: adestramento, intensificação e distribuição
das forças, ajustamento e economia das energias. Do outro, o sexo
pertence à regulação das populações, por todos os efeitos globais que
induz”.
Considerações finais
As análises evidenciaram, de um lado, discursos marcados (ou
silenciados) pelo preconceito, construídos sobre a ideologia da
(re)inclusão ou da patologia: para incluir-se e constituir-se como sujeito, é preciso “curar-se do mal”; de outro, estereótipos constituídos
na/pela memória social (atribuição de culpa ao outro; denúncia de
discriminação, desejo de ser respeitado, entre outros). A investigação pôs à mostra também um confronto muito visível entre discursos
e práticas sociais, parecendo evidenciar ora novos objetos históricos
quanto às questões de gênero, ora a revisitação de conceitos “patológicos” quanto à marginalização social.
Os dados evidenciaram que não existem identidades fixas ou
permanentes; pelas vozes das travestis e prostitutas observamos que
se trata de sujeitos caracterizados pela “diferença”; ou seja, atravessados por diferentes “posições de sujeito”; identidades essas em andamento, em construção.
Pudemos entrever que os dois grupos de entrevistadas parecem
transformar-se em guetos, e acabam passando por um processo de
exclusão (também por se excluírem) das relações sociais. Imaginamos, no entanto, haver sido capazes de transformar a questão do gênero feminino, duplamente discriminado, silencioso e silenciado, de
esparsas referências em tema central. Decididamente, nosso estudo
não é neutro...
Para concluir o texto, embora a pesquisa não se dê por concluída, trazemos para esta cena final as palavras de Esteves (1998, p.125):
“Por mais objetividade que tenha, o homem acaba sempre fazendo
uma releitura dos fatos que, para serem transmitidos, sofrem uma
interpretação de acordo com determinados pontos de vista, dentro de
um certo espaço e de acordo com a visão do tempo em que vive”.
Isso ocorre porque o fato e a sua leitura, históricos, são, ambos, constituídos de material discursivo, permeado pela organização subjetiva
da realidade. Assim, nossos dados, abundantes e profícuos, ficam à
espera de uma outra oportunidade de pesquisa ou à disposição de
outro que se aventure a (ou que tenha a oportunidade de) escrever
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uma outra etapa desta crônica sobre aqueles que, a despeito do discurso da inclusão, continuam a não ter voz, especialmente na academia.
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76
DO PRESÍDIO AO CONVÍVIO SOCIAL:
REPRESENTAÇÕES DOS CONCEITOS DE
INCLUSÃO E CIDADANIA1
*
UFMS/FUNDECT.
PIBIC/CNPq/UFMS.
1
Pesquisa realizada com apoio da
FUNDECT-MS
**
Marlene Durigan*
Nathália Thanysse da Silva Canassa **
RESUMO: Este ensaio discute representações dos conceitos de inclusão e
cidadania em falas de ex-presidiários reintegrados ao mercado de trabalho.
Baseado em trabalhos de Quijano (1978), Velho (1981) e Foucault (1987b)
e desenvolvido por meio de entrevistas, o trabalho evidencia a estigmatização
dos sujeitos por si mesmos e pela sociedade.
PALAVRAS-CHAVE: 1)ex-presidiários; 2) exclusão social; 3)
marginalização
ABSTRACT: This essay discusses social representations of the concepts
of inclusion and citizenship in the discourse of ex- prisoners reintegrated to
the working world. Our work is based on Quijano (1978), Velho (1981) and
Foucault (1987b) theoretic contributions and it was developed by interviews,
emphasizing that there is a double process of stigmatization: by the
interviewed subjects themselves and by the society that employed them.
Introdução
Ao se admitir que a realidade social, por ser constituída de diferentes classes e grupos sociais, é contraditória, plural, polissêmica, e
que isso implica a presença de distintos pontos de vista e projetos
políticos, será então possível compreender que seus valores e seus
limites são também contraditórios. Por outro lado, a visão de que a
constituição da sociedade é um processo histórico permanente permite compreender que esses limites são transformáveis pela ação social, locus em que se situa a ação (política) de educadores (BRASIL,
2000, p. 19-22) e pesquisadores. Ainda que a escola e a pesquisa não
mudem a sociedade, é possível que elas, partilhando sua ação político-social com segmentos que assumem os princípios democráticos e
articulando-se a eles, possam vir a ser, de fato, o locus da transformação. Então, este trabalho se justifica.
Ler textos dos programas e campanhas de inclusão social significa ler que é necessária uma síntese entre humanismo, ciência e
tecnologia “[...] de sorte a integrar em um só conjunto, sistematicamente tratado, a aparente dispersão dos fatos e dos conhecimentos”
(SANTOS, 1991, p. 128). Também se dissemina, ao longo desses
documentos, a “ética da identidade”, a que se podem acrescentar os
discursos da autonomia, da desalienação e da humanização dos processos sociais, além de reflexões sobre a linguagem e seus sistemas
como garantia de participação ativa na vida social.
R G L, n. 4, fev. 2007.
77
Por outro lado e paradoxalmente, multiplicam-se pesquisas ancoradas nas mais diversas correntes teóricas e metodológicas, cujas
conclusões revelam o descompasso entre a teoria e a prática, entre
um discurso (que já não é novo) pela mudança e uma prática pela
continuidade. Algumas delas discutem categorias fundamentais, como
consciência e identidade, a relação entre o indivíduo e as instituições, comportamentos sociais coletivos, problemas locais e universais, estendendo-se a questões governamentais amplamente discutidas, como a marginalidade e o binômio exclusão/inclusão. A tônica
dessa produção científico-oficial repousa em questões relativas à identidade dos sujeitos envolvidos no processo sócio-econômico-cultural, evidenciando um confronto entre duas formações ideológicas
(“dominadores” x “dominados”) e entre duas formações discursivas,
tendendo a “edificar um discurso enunciado como transformação
social” (SARGENTINI, 2000, p. 213-229).
Assim, este trabalho pretende trazer à tona discursos silenciados por “situações sociais marginais”, ou pela “cidadania limitada”,
para utilizar a expressão proposta por Marshall (apud QUIJANO,
1978, p. 21), que impedem os sujeitos de chegar a participar no processo de integração na estrutura global da sociedade, pela
falta de integração nas instituições do Estado-Nação, no sistema
da estratificação social e na cultura dominante em âmbito
nacional, nos benefícios materiais e culturais derivados do
desenvolvimento econômico, nos centros institucionais nos quais
se tomam as decisões sobre o destino de uma sociedade nacional
ou, enfim, no sistema dominante numa determinada sociedade.
(QUIJANO, 1978, p. 27)
Em consonância com os objetivos do projeto de pesquisa de
que derivou o recorte aqui apresentado, pretendeu-se “procurar pontos de encontro e de deriva entre diferentes campos do conhecimento
afetados pelo discurso”, quais sejam, a História e a Sociologia, e produzir um dispositivo analítico pertinente às interfaces envolvidas com
a Análise do Discurso. Quanto ao objetivo específico, é identificar e
discutir representações dos conceitos de inclusão e cidadania no discurso de ex-presidiários reintegrados ao mercado de trabalho.
1
Do percurso teórico-metodológico
Adotar evidências empíricas sem um tratamento teórico mais
crítico, mais consistente e mais profundo do conceito de marginalidade
social e das relações entre materialidade lingüística e ideologias seDURIGAN, M & CANASSA, R.T.S p. 77-95.
78
ria arriscar-se a tomar como verdade científica as representações imaginárias de alguns indivíduos ou de um grupo ou subgrupo dentro da
sociedade estudada, silenciando (outras) vozes que insistem em se
fazer ouvirem. Procuramos, portanto, um percurso metodológico que
se adequasse ao tipo de investigação e aos dados que seriam objeto
de análise. Priorizamos a pesquisa de bibliografia pertinente e a aplicação de questionários, cujas respostas foram analisadas à luz dos
princípios da Análise do Discurso Crítica (ADC) defendidos por
Faiclough (2001).
A idéia inicial era realizar entrevistas porque, na esteira do pensamento bakhtiniano (BAKHTIN, 1988, p. 42), entendemos o conceito de fala na perspectiva da produção coletiva (e não como ato
individual, como pretendeu Saussure). Para o pensador russo, a
interação verbal face a face vincula-se a “aspectos da criação ideológica ininterrupta”, os quais, embora determinados pela situação e seus
integrantes mais imediatos, contêm “os estratos mais profundos da
sua estrutura”.
As práticas discursivas, marcadas pela dialogia (a enunciação
tem um autor e dirige-se a um interlocutor), consistem na “linguagem em ação” nas relações sociais. No momento em que se
(re)significa algo, produzem-se rupturas, produzem-se sentidos, o que
depende da existência de duas ou mais vozes que se interenunciam,
se confrontam, mesmo que temporal ou espacialmente distanciadas.
Assim, a enunciação é de natureza social (endossando as palavras de
Bakhtin) e expressa horizontes conceituais, intenções e visões de
mundo.
Ocorreu, porém, que aqueles “estratos mais profundos”, por serem “determinados pelas pressões sociais mais substanciais e duráveis” a que o locutor está submetido (BAKHTIN, 1988, p. 114), além
de reduzirem o universo da pesquisa, exigiram um procedimento que
não envolvesse a interação face a face. Duas interdições.
Assim, os sujeitos foram selecionados exclusivamente pelo critério da acessibilidade, porque apenas 5 ex-presidiários (4 do sexo
feminino: E01; E02; E03 e E05) e 1 do sexo masculino: E04) propuseram-se responder às questões, de modo que não foi possível aplicar
as técnicas da amostragem estratificada proporcional previstas no
plano de trabalho (que envolvia as variáveis: idade, nível de escolaridade, cor, situação familiar, tempo de exercício da atividade, setor de
trabalho, local de origem, situação trabalhista). Destaque-se que foram consultados 14 sujeitos, o que aponta para a interdição do lugar
R G L, n. 4, fev. 2007.
79
onde se situam e de onde se pronunciam. Acrescente-se que os cinco
entrevistados atuam em setores da área da Educação (não na docência).
Aplicamos, então, um questionário, constituído de seis perguntas, em cujas respostas procuramos identificar ideologias e forças
pulsantes em cada enunciado, em cada “palavra de ordem”, e, ainda,
o que essa confluência/dispersão ideológica representa(va) para a
constituição da identidade dos sujeitos pesquisados.
Por razões éticas, conforme determinado nos questionários, as
instituições e os sujeitos não foram identificados pelo nome. Aos
entrevistados atribuímos a letra “E”, que vem acompanhada de um
algarismo (de 01 a 05), obedecendo à ordem em que os questionários
nos foram devolvidos.
O primeiro contato efetivo com os sujeitos constituiu-se de explanações sobre a pesquisa e seus objetivos, seguidas de uma interação
inicial em que se garantiu o sigilo absoluto. A cada um, foram apresentadas seis questões, destacando-se que esse instrumento de pesquisa permite que os sujeitos tenham controle mais ou menos racional sobre suas respostas, evitando pôr à mostra conteúdos latentes
que não seriam (ou não poderiam/deveriam ser) revelados.
Na transcrição das respostas, procuramos manter, tanto quanto
possível, as marcas de registro. Embora não sejam alvo do trabalho,
elas são constitutivas dos discursos e, pois, marcas identitárias, que
não podem ser descartadas ao bel-prazer dos pesquisadores; ao contrário, devem merecer um outro estudo.
2
Marginalidade e exclusão social
Nos últimos anos, especialmente na América Latina, o termo
“marginalidade” vem ocupando um grande espaço em trabalhos dos
mais variados campos do conhecimento. Não obstante, a falta de
univocidade do conceito e a vaguidade de sua utilização têm representado um problema para o emprego analítico e sistemático. Sua
difusão, aliada aos esforços para convertê-lo em instrumento de análise da nossa complexa realidade histórico-social, estão reclamando,
há algum tempo, a atenção de pesquisadores, o que torna necessário
e indispensável o contínuo esforço de buscar a delimitação do conteúdo conceitual do termo e resgatar-lhe o seu valor analítico.
Atualmente, o termo circula nos mais variados segmentos de
comunicação e aparece associado a duas vertentes separadas com
pouco ou quase nenhum ponto de contato entre si, das quais interessa-nos a segunda. A primeira corresponde à chamada “teoria da perDURIGAN, M & CANASSA, R.T.S p. 77-95.
80
sonalidade marginal”, desenvolvida com base na sociologia norteamericana; a segunda corresponde à “teoria da situação marginal”,
associada aos problemas de subdesenvolvimento, especialmente na
América Latina.
Com efeito, o conceito de “marginalidade” pautado fundamentalmente no caráter psicológico dificulta a sua utilização como instrumento de análise, posto que
[...] as características psicológicas do indivíduo marginal não
constituem sua condição mesma de marginalidade, e podem
melhor ser consideradas como efeitos psicológicos da
marginalidade cultural. [...] a participação de um indivíduo em
várias culturas ao mesmo tempo, sem pertencer particularmente
a nenhuma delas, não deve necessariamente produzir as
características psicológicas que atribuem à personalidade
marginal. (QUIJANO, 1978, p. 16)
Assim, é necessário vincular o problema às relações entre os
mesmos grupos sociais e a estrutura desses grupos. Dessa perspectiva, o conceito de marginalidade está associado a uma inconsistência
entre o grupo social de pertencimento e o grupo de referência positiva: marginal “[...] seria alguém que usa como referência positiva um
grupo ao qual não pertence, ao mesmo tempo em que existem barreiras que o impedem de chegar a ser membro de seu grupo de referência.” (QUIJANO, 1978, p. 16)
Por outro lado, o conceito de marginalidade é definido como
uma característica de um determinado complexo de papéis-status,
independentemente de suas relações psicológicas com o indivíduo
implicado. Nesse sentido, a marginalidade consiste “nas ambigüidades no cumprimento das expectativas normalmente associadas a um
papel e na aplicação inconsistente das sanções correspondentes”. (op.
cit, p. 17)
Em todo e qualquer apontamento sistemático sobre o conceito
de marginalidade, pode-se perceber que as definições propostas pelas mais variadas pesquisas direcionam-se, fundamentalmente, para
um único problema: a falta de interação em.
Mesmo se tratando de níveis menos elaborados, como é o caso
das populações urbanas e a sua localização física, a marginalidade se
contrapõe à falta de integração nas instituições ligadas ao Estado, no
sistema de estratificação social e em boa parte da cultura dominante
em âmbito nacional, nas relações que circunscrevem o desenvolvimento econômico-social-cultural, nas instituições que tomam as decisões que regem a sociedade nacional e, por fim, à falta de integração
R G L, n. 4, fev. 2007.
81
no sistema dominante que regulamenta uma determinada sociedade.
Ressalte-se que a noção de integração social apresenta dois aspectos
distintos, analiticamente separáveis: de um lado, o que corresponde à
integração da sociedade; de outro, o que corresponde à integração na
sociedade.
No que se refere à integração da sociedade, tem-se “a forma em
que os elementos que correspondem a cada um dos setores
institucionais se integram na estrutura global de uma sociedade um
conceito de vertente analítica”, enquanto a integração na sociedade
se refere “à forma que os membros da sociedade nesta se integram
através de sua inserção em cada um dos elementos de que se compõem os diversos setores institucionais dessa sociedade”. (QUIJANO,
1978, p. 35)
Nesses termos, pode-se afirmar que “toda sociedade complexa
historicamente conhecida se organiza e se integra numa estrutura hierárquica de seus elementos” (Idem, p. 39), de modo que a ordem
social apresenta-se, fundamentalmente, como um sistema de dominação social.
No que se refere ao conceito genérico de marginalidade social,
podem-se destacar duas vertentes: uma que considera a marginalidade
como fator constituído pelo índice de inconsistência dos elementos
que a configuram, mas que, de um modo ou de outro, pertencem às
estruturas básicas da sociedade; outra que parte do princípio segundo
o qual a marginalidade pode ser configurada por elementos
institucionais que porventura não pertençam a nenhuma das categorias básicas da sociedade, como ocorre, por exemplo, com os
subempregos, econômica e socialmente marginais.
Ocorre que há marginalidade e marginalidade: existe aquela que
não afeta a sociedade em algum ponto básico, porém apenas em determinado setor e que pode ser eliminada por meio de uma ação sobre ela; a outra pressupõe um conflito radical entre existência marginal e a existência dos mecanismos que regem a estrutura básica da
sociedade. De qualquer forma, a marginalidade não pode ser superada sem uma ampla modificação da natureza da sociedade.
Diante do exposto, vem à tona a definição de marginalidade como
“cidadania limitada”, conceito elaborado a partir da obra de T. H.
Marshall “Citizenship and social class” (apud QUIJANO, 1978, p.21):
o conceito de cidadania não apenas inclui direitos civis, porém também abarca um conjunto de direitos políticos, econômicos e sociais
que garantem aos membros de uma determinada sociedade o pleno
DURIGAN, M & CANASSA, R.T.S p. 77-95.
82
gozo da cidadania “num momento histórico determinado”.
Com efeito, os grupos marginais se caracterizariam como elementos que sofrem determinados “cortes” em seus direitos, o que
resulta na não-participação desses indivíduos no processo de desenvolvimento econômico. Desse modo, essa população não consegue
aproveitar as oportunidades que possibilitem atingir determinadas
posições na estratificação social.
Assim, o conceito de “marginalidade” corresponde à “teoria da
situação social marginal”, ligada, sobretudo, aos problemas do subdesenvolvimento: o indivíduo marginal é o alvo das incertezas psicológicas derivadas do fato de estar inserido num processo de mudança
e de conflitos culturais, que ocorrem pelo choque entre duas culturas
diferentes, superpostas numa relação de dominação. O indivíduo é
membro participante da cultura dominada e, em decorrência disso,
exposto às pressões de atração e de repulsão que a cultura dominante
exerce sobre a dominada, aos problemas das relações e das estruturas
sociais (ENEDINO, 2005, p. 43).
Esse dado impulsiona o pesquisador ao que afirma Foucault
(2005): a produção do discurso, na sociedade, é controlada, selecionada, organizada e redistribuída por procedimentos destinados a “exorcizar-lhe” os poderes e os perigos, conter o acontecimento aleatório,
disfarçar-lhe a pesada e temível materialidade.
3
Discurso: ordem e exclusão
Segundo Foucault (2005), entre os procedimentos de exclusão,
encontram-se a “vontade da verdade” e o interdito, este “o mais evidente, o mais familiar também”.
No caso do primeiro, não temos o direito de dizer (ou falar de)
tudo em qualquer circunstância, já que o discurso, longe de ser um
elemento transparente ou neutro, parece tornar-se um dos lugares onde
as interdições regiões exercem, de maneira privilegiada, seus poderes. Por outro lado, o discurso não é simplesmente aquilo que traduz
as lutas ou os sistemas de dominação, mas é aquilo pelo qual e com o
qual se luta, é o próprio poder de que buscamos nos assenhorear.
Quanto ao segundo, Foucault (2005) estranha que o sistema penal, um todo excessivamente prescritivo, tenha construído suas bases
e sua própria “justificação” na teoria do direito (algo lógico, de certo
modo), mas, a partir do século XIX, tenha precisado recorrer ao “discurso da verdade” existente (?) nos saberes sociológico, médico, psiquiátrico e psicológico (a lei carece do discurso da verdade).
R G L, n. 4, fev. 2007.
83
Ao estudar a problemática das prisões, Foucault afirma que estas significavam, a princípio, a privação da liberdade, e as condenações (torturas, amputações, esquartejamentos), feitas geralmente em
praça pública, assumiam uma função de exemplaridade: justificavamse como exemplo para a população.
No fim do século XVIII e começo do século XIX, as punições
passaram a ser menos diretamente físicas, com uma certa discrição
na arte de castigar os indivíduos culpados. O espetáculo punitivo foi
abolido gradativamente nos países e passou a ser um novo ato de
administração.
A punição pouco a pouco deixou de ser uma cena, e tudo o que
estivesse ligado a ela passou a ter cunho negativo. As funções da
cerimônia penal deixaram de ser compreendidas, surgindo assim a
suspeita de que tais atos se igualariam ou até ultrapassariam em selvageria o primeiro crime, invertendo, no último instante, os papéis: o
carrasco se assemelha ao criminoso; os juízes, aos assassinos. O
supliciado, por sua vez, assume o status de objeto de piedade. Assim,
a execução passa a ser vista como uma “fornalha onde se acende a
violência” (FOUCAULT,1987b, p.13): deixou “o campo da percepção diária e entrou no da consciência abstrata no qual a certeza de ser
punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro” (idem, p.14).
O essencial da pena não consiste mais em punir, mas sim em
procurar corrigir, reeducar. A prisão e a reclusão são penas “físicas” e
se referem diretamente ao corpo. Mas essa relação castigo-corpo não
é idêntica ao que era nos suplícios. O corpo é visto aqui com um
intermediário e qualquer intervenção sobre ele visa privar o indivíduo de sua liberdade, considerada, ao mesmo tempo, como um direito e um bem. O carrasco foi substituído por um exército de técnicas:
guardas, médicos, capelães, psiquiatras, psicólogos, educadores.
Quanto aos julgamentos, Foucault (1987a, p. 158) afirma que
“julgar as pessoas por seus atos não é julgá-las por suas ideologias; é
também, não as julgar a partir de grandes noções eternas, os governados, o Estado, a liberdade, a essência da política, que banalizam e
tornam anacrônica a originalidade das práticas sucessivas”.
Ao estudar o sistema judiciário-penal, Foucault (1987b, p. 80)
comenta que
O crime ou a infração penal é a ruptura com a lei, lei civil
explicitamente estabelecida no interior de uma sociedade pelo
lado legislativo do poder político. Para que haja infração é preciso
haver um poder político, uma lei e que essa lei tenha sido
DURIGAN, M & CANASSA, R.T.S p. 77-95.
84
efetivamente formulada. Antes de a lei existir, não pode haver
infração.
Esses instrumentos públicos (a lei e os códigos), agenciados pelo
poder, tornam-se normatizadores da ordem na vida cotidiana. Desse
modo, aqueles comportamentos tidos (tipificados) como “desviantes”
são permanentemente processados, assim como as ruas, becos, praças, tabernas e locais esconsos são sistematicamente vigiados.
No Brasil, o Estado chegou antes da nação, precedeu a sociedade. Desde o seu primeiro dia de colonização, o território se viu às
voltas com Leis, Ordenações, Alvarás, Cartas Régias, funcionários e
burocratas, ou seja, com as manifestações visíveis do poder do Estado e da sua devida burocracia. Exigiu a assimilação das leis a uma
população alheia, miserável, de pobres e escravos, antes mesmo que
esses indivíduos tenham polido seu desejo de formar uma sociedade
mediante a convivência, o respeito recíproco e a aceitação de determinados limites ao arbítrio individual, antes mesmo que esses indivíduos pobres tenham compartilhado de sacrifícios e dificuldades, que
constituirão sua história, ou em outras palavras, antes mesmo que
tenha sido constituída a nação. Desenvolvem-se, então, instituições
coercitivas para melhor permitir o controle dos indivíduos no âmbito
da sua periculosidade.
Preocupadas em buscar, nas correlações entre estrutura
lingüístico-discursiva e estrutura social (especialmente a que está à
margem), as transformações e as posições sociais assumidas pelos
“aparelhos” simbólicos que permeiam o cotidiano no âmbito das redes sociais, dos agrupamentos e coletividades, dando forma ao ir e
vir das “versões” ali circulantes, escolhemos, como fonte, as entrevistas, aqui tomadas como objeto de análise e como discurso.
Nesses discursos – nessa linguagem como prática social, como
mecanismo pelo qual as sociedades se reproduzem e se auto-regulam
–, buscamos estudar processos ideológicos que medeiam relações de
controle social e, pois, de poder. Para tanto, importa dizer que, na
acepção de Foucault (1980), o discurso se refere aos modos (não exclusivamente lingüísticos) de organizar o significado, aos sistemas
de poder-saber em que assumimos posições de sujeito2.
2
Foucault, ao longo de suas obras,
pensa em dois sentidos para a palavra “sujeito”: (a) o submetido a outro pelo controle e pela dependência; (b) o assujeitado a sua própria
identidade pela consciência ou pelo
conhecimento de si, ambos vinculados a uma forma de poder que subjuga e submete.
O significado não é, portanto, produzido por “vontade” de um
sujeito unitário ou por determinação de um sistema lingüístico ou
relações sociais e econômicas. Ele o é por sistemas de poder e saber
R G L, n. 4, fev. 2007.
85
impostos pelas instituições sociais. Esses sistemas definem o que pode
ser dito e pensado num determinado tempo ou lugar. E nessa ordem e
nesse “real” social, bem como na “consciência” que os sujeitos têm
deles (da ordem e do real), situa-se a ideologia, que implica
intersecções entre sistemas de crença e questões de poder e dominação (desigualdade, portanto).
As práticas discursivas têm grandes efeitos ideológicos, pois,
pelo modo como representam a realidade e posicionam os sujeitos,
podem contribuir para a produção e reprodução de relações de poder
desiguais. Enquanto prática social, o discurso conduz ao estabelecimento de uma relação dialética entre si e a estrutura social: a estrutura social é, ao mesmo tempo, condição e efeito da existência do discurso. Fairclough (1985) acrescenta que a tarefa do analista crítico é
relacionar o evento discursivo (“micro-evento”) ao social (à
macroestrutura) e “desnaturalizar” o que foi assumido como baseado
na natureza das coisas ou pessoas.
O sentido é uma construção social, coletiva e interativa, por meio
da qual “as pessoas, na dinâmica das relações sociais historicamente
datadas e culturalmente localizadas, constroem os termos a partir dos
quais compreendem e lidam com as situações e fenômenos a sua volta” (SPINK e MEDRADO, 2004, p. 41). Assim, a produção do sentido consiste numa prática dialógica da linguagem em uso, enquanto o
discurso passa a ser entendido como o uso institucionalizado da linguagem, ou seja: aproxima-se daquilo a que Bakhtin (1987) chamou
“linguagens sociais”: discursos peculiares a um estrato específico da
sociedade, num lugar determinado e num tempo também determinado.
Ora, trabalhar com produção de sentidos – no caso,
contextualizados – implica compreender a construção social dos conceitos que utilizamos e, pois, (re)estudar a história, o diálogo contínuo entre sentidos novos e antigos, sempre passíveis de renovações
ou de revigorações, conforme afirma Braudel (1989, p. 18): “Cada
‘atualidade’ reúne movimentos de origem e de ritmo diferentes: o
tempo de hoje data simultaneamente de ontem, de anteontem, de outrora”, num movimento recíproco de “esclarecimentos”.
A propósito da dimensão temporal, importa lembrar a divisão
proposta por Bakhtin (apud SPINK e MEDRADO, 2004, p. 50) entre
o tempo que engloba o presente, o passado recente e o futuro (esperado) – o tempo em que ocorrem os processos dialógicos propriamente
ditos – e o tempo que pressupõe o “diálogo infinito e inacabado no
DURIGAN, M & CANASSA, R.T.S p. 77-95.
86
qual nenhum sentido morre” – o tempo dos conteúdos culturais, constituído pelas contingências sociais de uma época e constitutivos das
vozes “de outrora” que povoam os enunciados “atuais” – .
Embora tomemos como objeto de análise o tempo do “acontecimento”, da vida de “hoje”, o contexto (de sentido) presente em que
nossos entrevistados narram/vivem, focalizamo-lo como o espaço em
que os modelos, as normas, as tradições, as vozes, as instituições,
enfim, são (re)interpretados pelo ex-presidiário de agora, cujas representações “atuais” congregam presente, passado e futuro, enraizando, ali, seus traços identitários. Importa destacar que o conteúdo
dessas entrevistas é orientado pelo contexto “construído” no momento
da dialogia e evidencia posicionamentos identitários permeados por
relações de poder e pelo saber.
O sujeito da pesquisa assume posições num espaço em que se
processa uma luta entre o novo (heresia) e o dominante (ortodoxia),
que tenta defender para expulsar a “concorrência” pelo objeto de disputa e pelos interesses específicos. E é nesse jogo que a negociação e
o poder se inscrevem, procurando dar sentido à experiência por meio
de categorias lingüísticas que se organizam como formas sociais de
ação, tais como “a persuasão, a culpabilização, a negação, a refutação, a acusação”. 3
3
As formas de ação mencionadas
foram cunhadas em Spink e
Menegon (2004, p. 81).
Posto isso, cabe enfatizar que estamos em face de uma pesquisa
que considera a relação entre prática social e estrutura social, em que
“a última é tanto uma condição como um efeito da primeira”
(FAIRCLOUGH, 2001, p. 91). O discurso, por seu turno, “contribui
para a constituição de todas as dimensões da estrutura social” e é
“moldado e restringido [...] pela classe e por outras relações sociais
em um nível societário” (idem, p. 91). Assim, o discurso é uma prática de representação do mundo e, ao mesmo tempo, de significação
desse mundo: contribui para a construção de identidades sociais, de
relações sociais e de sistemas de conhecimento e crença
(FAIRCLOUGH, 2001), cuja reprodução e cujas transformações (possíveis) cabem às práticas discursivas. Disso decorre que “a constituição discursiva da sociedade emana “[...] de uma prática social [...]firmemente enraizada em estruturas sociais materiais, concretas, orientando-se para elas” (idem, p. 93).
Se a prática discursiva pode orientar-se econômica, política,
cultural e ideologicamente, o discurso deve ser abordado como modo
de prática política e ideológica. Como prática política, pode estabelecer, manter ou transformar as relações de poder e as próprias enti-
R G L, n. 4, fev. 2007.
87
dades coletivas entre as quais essas relações se estabelecem; como
prática ideológica, cabe ao discurso constituir, naturalizar, manter ou
também transformar os diversos significados do mundo em relações
de poder. (idem, p. 94)
Para o autor,
As ideologias são significações/construções da realidade (o
mundo físico, as relações sociais, as identidades sociais), que
são construídas em várias dimensões das formas/sentidos das
práticas discursivas e que contribuem para a produção, a
reprodução ou a transformação das relações de dominação.”
(FAIRCLOUGH, 2001, p. 117).
Ademais, “[...]a ideologia está localizada tanto nas estruturas
(ordens do discurso) que constituem o resultado de eventos passados
como nas condições para os eventos atuais e nos próprios eventos
quando reproduzem e transformam as estruturas condicionadoras.”
(idem, p. 119)
Acrescenta ainda o autor que
[...]a prática discursiva, a produção, a distribuição e o consumo
(como também a interpretação) de textos são uma faceta da luta
hegemônica que contribui em graus variados para a reprodução
ou transformação não apenas da ordem do discurso existente
(por exemplo, mediante a maneira como os textos e as convenções
prévias são articulados na produção textual), mas também das
relações sociais e assimétricas existentes. (idem, p. 123-4)
4 Reinclusão ou estigmatização?
A despeito do número reduzido de entrevistados, foi possível
discernir certos lugares de fala: as regularidades presentes nos textos
permitiram que se delineasse um esboço de configuração dos sujeitos da pesquisa, com base em formações imaginárias que definiram o
lugar que atribuem, a si e ao Outro, ou seja: a imagem que eles fazem
de seu próprio lugar e do lugar do outro.
Os cinco entrevistados mantiveram os sentidos de seus lugares
de fala, de origem, marcados pelos pronomes utilizados e pelo aqui.
O lugar de ex-presidiário tem como referência a gente e nós. Também se perceberam sujeitos constituídos no ponto de atravessamento
de diferentes discursos (político, econômico, social e até pedagógico), mas submetidos às verdades do sistema, embora esbocem uma
crença tímida – mais tendente ao desejo ou à esperança – na transformação social. Importa destacar as representações de lá e de aqui, em
DURIGAN, M & CANASSA, R.T.S p. 77-95.
88
que se acentuam as diferenças entre o sujeito de antes e o sujeito de
agora: aqui é um espaço alegórico, lugar de trabalho, de relações
sociais; lá é espaço tópico do sofrimento, da submissão às regras do
jogo das relações familiares desfeitas, do conforto, da tranqüilidade;
para E03, lá é o espaço utópico do desconforto; para E01, a “tarja da
despersonalização”; para E04, “o castigo pelo erro da gente”.
Também o espaço penitenciário apresenta-se contraditório quanto
ao seu papel na sociedade, uma vez que se permite compreender como
espaço público e privado: público no sentido de ser um espaço de
controle absoluto do Estado, onde este determina as atividades de
cada indivíduo e vigia a sua privacidade, prestando contas à sociedade, que mantém seus olhos voltados para os muros, como se fosse um
sistema panóptico às avessas. (GUERRA & SOUZA, 2006)
É certo, também, que muitas vezes escapam alguns deslocamentos (efeitos constitutivos da linguagem, do sujeito e dos discursos) e,
mesmo quando os sujeitos procuram palavras mais exatas para relatar suas impressões em relação ao real empírico, expõem-se às
equivocidades da língua. Para E01, ter um trabalho situa-se no universo do ter; é a saída para tentar voltar à vida, situada no eixo do
direito e da cidadania, aproximando-o do eixo do ser: é “voltar a ser
gente”.
Ocorre, porém, que, embora os dois lugares sejam pontos extremos de visibilidade, onde irrompem como sentidos simbólicos
sedimentados, não se pode dizer que sejam mutuamente excludentes,
mas sim que vivem numa espécie de conflito solidário (lembrando
Authier Revuz, 1990). Pode-se afirmar que a presença/existência de
um outro insinua uma certa desagregação das formas de representação dos sujeitos (o sujeito ex-presidiário não se fala como eu, de um
aqui). Nas vozes aqui representadas, fica claro que o pertencimento a
um grupo que tem trabalho não é garantia de cidadania, porque marcado pelos “olhares desconfiados”, pelos “comentários irônicos”,
como afirma E05.
Engasgado (ou interditado), fica um grito de protesto e ressentimento contra as relações humanas no mundo, marcadas pela discriminação e contra a indiferença da sociedade e do Estado em relação
ao sistema carcerário. Também fica claro que os entrevistados não
acreditam na “reinclusão” (é ilusória, senão falsa), nem no discurso
constitucional da igualdade perante a Lei, fundado na Declaração
Universal dos Direitos do Homem: “São direitos sociais a educação,
a saúde [...], a segurança [...] na forma desta Constituição.” Emerge,
R G L, n. 4, fev. 2007.
89
na voz dos cidadãos entrevistados, o confronto entre centro e periferia, entre alto e baixo, entre elite e massa, entre soberania e lei: “eles
olham a gente como se fosse bandidos prontos a voltar pro crime”
(E05), “mas nunca se aproximaram para pelo menos perguntar alguma coisa” (E02). É a reivindicação do cumprimento das “promessas”
de liberdade, igualdade, fraternidade, inclusão; é a denúncia das contradições que negam o seu cumprimento, numa dicotomia que se abriga no sistema de valores da sociedade: “olham pra gente enquanto
trancam gavetas” (E02).
Ousamos dizer ainda que, após a saída do sistema prisional, o
mesmo individuo é, novamente, recortado dessa coletividade, sendo
reintegrado na sociedade anterior, onde sua caracterização é marcada
pelo estigma de quem já foi, um dia, excluído por não cumprir uma
função para a sobrevivência da sociedade. Em síntese, o indivíduo
morre e renasce várias vezes, perdendo a sua identidade, pois a sua
perpetuação na esfera pública foi interrompida por um lapso de tempo e de espaço, comprometendo o seu reconhecimento privado e íntimo e o reconhecimento pelos demais como ser social.
Ao mesmo tempo, o espaço penitenciário apresenta-se como um
corpo, uma família, uma cooperativa, onde todos se unem para, coesos, rebelar-se contra os que estão fora. A fronteira entre o “real” e o
“irreal” não impede, entretanto, que o irreal avance sobre o real influenciando-o de maneira muito intensa. Seu aspecto privado confunde-se com o seu aspecto público, numa permeabilidade conflituosa
com o verdadeiro conceito da prisão.
Como contraponto, apesar de sua existência, o espaço penal
mantém-se na ilegalidade urbana, margeando a cidade, embora apresente regras quanto à sua função perante esta. A Lei determina que as
unidades devam ser construídas distantes do centro urbano, em locais periféricos da cidade, no entanto, as legislações municipais (Planos Diretores, Códigos de Obra) não prevêem áreas que contemplem
essas construções, como se elas não existissem na cidade.
O sistema prisional não representa apenas uma simples questão
de grades e muros, de celas e trancas, como pensam muitos. Ao contrário, concentra um universo oculto, coercitivo, inacessível e muito
particular. O objetivo maior dessa instituição fechada está, exatamente,
na manutenção da ordem interna, mediante seu poder repressivo. Trata-se de um mundo complexo. Sem objetivos comuns definidos, exceto
o da segregação social e de seu custodiamento intramuros (GUERRA & SOUZA, 2006).
DURIGAN, M & CANASSA, R.T.S p. 77-95.
90
Para conquistar a adesão do enunciatário, o sujeito enunciador
aproxima-se e utiliza recursos argumentativos como a citação do discurso do outro, por meio do pré-construído. A construção do percurso de reivindicação e conquista de direitos, por exemplo, ocorre pela
produção de falas panfletárias, que expõem, no restrito espaço de
circulação (o cárcere), o interdiscurso do silêncio da voz dos excluídos: “tem coisa que não posso nem falar; também nem gosto de falar” (E05). Já o processo de conscientização passa necessariamente
pela indignação com o Estado e com a ordem burguesa, e a “definição” do sistema democrático é uma paráfrase, uma citação que se
vincula a um texto anterior. Ao reivindicar o discurso do Estado, o
enunciador desenvolve um processo interdiscursivo parafrásico: o
mesmo discurso já sendo outro: “é bom esse programa; o Estado tem
que pôr a gente pra trabalhar, mas só Deus sabe o que é viver debaixo
de comentários e de olhares como se a gente tivesse [sic] doença”.
(E01) “Era melhor que eles falasse [sic] o que pensa ou que agredisse
mesmo”. (E05).
A escolha desse mecanismo de argumentação também atinge o
intertexto proverbial, que permite ao enunciatário identificar-se com
o enunciador que, como ele, reconhece textos do senso comum: “o
trabalho engrandece a gente; então é bom sair de lá”.(E04)
Segundo Lagazzi (1988, p. 46):
[...] o senso comum rege a vida cotidiana e as relações
interpessoais. Opiniões e crenças, usos e costumes. O senso
comum tenta afastar o perigo do novo, do diferente, para que as
relações de poder se mantenham inalteradas. A ilusão do sujeito,
que coloca como centro de decisão, camufla a força coercitiva
do senso comum e sustenta as relações de poder entre as pessoas,
fazendo o sujeito acreditar na autonomia da sua vontade.
Acrescente-se ao pré-construído, o efeito da ironia (uma voz
que afirma e outra que nega), revelando a busca de cumplicidade
com o enunciatário por meio da discordância entre enunciado e
enunciação: “é isso que é inclusão, não é?” (E01). A rigor, esse enunciado, por ser irônico, surge ambíguo, polissêmico, mantendo-se na
fronteira entre o que é assumido e o que é rejeitado: por um lado,
parece negar a verdade do texto legal “Todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza [...]” (Constituição Federal).
No que tange ao conceito de justiça, representado nas entrevistas, entrevê-se um conceito centrado exclusivamente na assim chamada justiça distributiva (que se relaciona ao sistema de recompen-
R G L, n. 4, fev. 2007.
91
sas e salário): “a gente ganha, não é muito, mas, na nossa condição,
tem que agradecer da oportunidade”. (E04) O que mais se manifesta
é a existência da discriminação, que impediria o comportamento inovador, criativo, comprometendo a justiça procedimental (relacionada
a direitos trabalhistas, reivindicações salariais), completamente silenciada na voz dos entrevistados.
Ora, sabemos que, apesar de toda evolução da pós-modernidade,
as edificações prisionais apresentam características plásticas bastante austeras e pesadas, semelhantes a fortalezas, frias e opressivas,
propiciando uma segregação com fim em si mesma, impossibilitando qualquer iniciativa de recuperação ou tratamento do homem preso.
Considerações finais
É possível afirmar que todo o discurso analisado está permeado
pela constante presença de conceitos espaciais que enfatizam a punição, baseados na penitência religiosa da Idade Média, concluindo-se
que a relação entre o espaço e o indivíduo preso propicia sensações
de castigo e penitência até os dias de hoje, prejudicando o objetivo da
pena de recuperar o indivíduo e incentivando o comportamento de
revolta e violência característico na população carcerária observada.
E por extensão, este sofrimento permanece quando o preso deixa os
muros prisionais e é “reintegrado” à sociedade.
Percebe-se, pois, o espaço penitenciário como um lacre da escória humana, cujas muralhas separam dois status sociais: de um lado
os atores valorados da sociedade, os quais desempenham papeis “benéficos” ao meio social; do outro lado, os atores tidos como os “bandidos malfeitores” que não desempenham papel algum no meio social e, portanto, merecem ser eliminados. Como numa peça teatral, ou
num filme, onde sempre se quer que os “bons” vençam e assistamos
a um “final feliz”. O espaço prisional funciona, assim, como um palco ou uma tela onde se desenrolam os acontecimentos que, fatalmente, não nos levarão a um grand finale (GUERRA & SOUZA, 2006).
Além disso, a pesquisa acerca dos discursos do/sobre o ex-presidiário (cujas bordas procuramos alinhavar aqui) evidenciou categorias pautadas numa modalidade de categorização estigmatizante
(o ex-presidiário “é discriminado”, “é inferior”, “é um criminoso em
potencial”, “é visto com repulsa e desconfiança”) e efeitos de sentido
(estereótipos constituídos na memória social) do tipo “a culpa é do
Estado”; “a proteção oficial é falsa”, ou “precisamos pagar pelos criDURIGAN, M & CANASSA, R.T.S p. 77-95.
92
mes cometidos”, que merecem um tratamento mais aprofundado.
Ora, o sujeito ex-presidiário constitui-se quando se identifica ao
aparelho ideológico a que, segundo ele, continua a pertencer, cujas
formações ideológicas determinam o que pode e deve ser dito/feito
por esse sujeito em determinada formação discursiva. Desse modo,
inexiste a autonomia e independência desse sujeito.
Entrevê-se, nas falas, a denúncia da contradição entre as práticas sociais e o discurso: enquanto proliferam, na sociedade, práticas,
discursos e representações sociais sobre/contra a exclusão social, sobre
direitos humanos, sobre a (re)inclusão, a voz do ex-presidiário é silenciada ou interditada. O discurso do ex-presidiário, por sua vez,
abafado pelo preconceito, parece, no entanto, construído sobre a ideologia da (re)inclusão ou da patologia: para incluir-se e constituir-se
como sujeito, é preciso “curar-se do mal”. Em outras palavras, a voz
desse sujeito submetido a sanções sociais e penais está marcada, por
si mesmo e pelo outro, pelo estigma de indivíduo desviante, o que
aponta para a necessidade de se aprofundarem estudos sobre
marginalização e inclusão social, em confronto com as práticas sociais, marcadas por silêncios e interdições, identificados pela pesquisa.
Um dado extremamente relevante merece destaque: o único entrevistado que parece conformar-se ao status quo, sem questionar sua
“cidadania limitada”, é do sexo masculino, suscitando uma discussão da alteridade de gênero. Uma outra investigação talvez venha a
completar as lacunas e silêncios que não pudemos arrematar ou “acordar” aqui.
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R G L, n. 4, fev. 2007.
95
1
Professor Livre-docente de Língua
e Literatura Francesa do Departamento de Letras Modernas e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, campus
de Araraquara (SP).
2
Professora doutora de Língua e Literatura Italiana do Departamento de
Letras Modernas da Faculdade de
Ciências e Letras da UNESP,
campus de Araraquara (SP).
HOMENS
DESERTOS: ESPACIALIDADE, EXISTÊNCIA E SENTIDOS
DA VIDA NUM ROMANCE MODERNO
Sidney Barbosa1
Lígia Iara Vinholes2
RESUMO: O romance Il deserto dei Tartari (O deserto dos Tártaros), de
Dino Buzzati, publicado na Itália em 1940, projetou seu autor como um dos
mais importantes romancistas do século XX. Escritor de obra vária e jornalista consagrado, Buzzati passará, no entanto, à história literária principalmente como o criador de Drogo, o protagonista desse romance cuja história
é marcada especialmente pelo tempo, seus desdobramentos e significados.
O presente artigo busca, porém, refletir sobre outro aspecto que os autores
consideram importante para a compreensão do sucesso dessa obra: o espaço. É notadamente nos seus deslocamentos no espaço que o personagem
buscará o sentido de sua vida. No forte, no campo, nas montanhas ou na
cidade, personagem e autor desnudam as contradições da condição humana
e concluem por certo pessimismo e desencanto. Esses aspectos podem ser
relacionados ao contexto histórico e social em que a Itália e a própria Europa estavam submersas na época da escritura e da publicação do romance: a
Segunda Guerra Mundial. Podemos afirmar, no final da nossa análise, que
uma vez mais o gênero romance refaz, com este exemplo, a ponte entre a
ficção e a realidade, entre a estética e a ética.
PALAVRAS-CHAVE: Gênero romance. Dino Buzzati. Espaço no romance. Filosofia e Literatura.
ABSTRACT : The Dino Buzzati’s novel Il deserto dei Tartari (The desert
of the Tartars), published in Italy in 1940, projected its author as one of the
most important novelists of the 20th century. Though he is a writer of various
works and a consecrated journalist, Buzzati will pass to the history of
literature mainly as the creator of Drogo, the protagonist of this novel which
the story is specially marked by the time, its implications and meanings.
The present article intends, however, to reflect on another aspect that the
authors consider important for the understanding of the success of this work:
the setting. It is notably in his dislocations in the setting that the character
will search for the meaning of his life. In the fort, in the countryside, in the
mountains or in the city, character and author reveal the contradictions of
the human condition and conclude for a certain pessimism and delusion.
These aspects can be related to the historic and social context in which Italy
and the own Europe were under at the time of writing and publishing of the
novel: the Second World War. We can affirm, in the end of our analysis, that
one more time the gender novel redoes, with this example, the connection
between fiction and reality, esthetics and ethics.
KEY WORDS: Novel. Dino Buzzati. Setting in the novel. Philosophy and
Literature.
O romance O deserto dos Tártaros foi publicado em 1940 e
logo trouxe fama para seu autor, Dino Buzzati, um expoente do jornalismo e do romance italiano contemporâneo. Realmente, trata-se
de um grande romance, é o mínimo que se pode dizer a seu respeito.
BARBOSA, S. & VINHOLES, L.I. p. 96-118.
96
Podemos afirmar que se trata de um clássico da literatura do século
XX, um dos livros que integra o cânone ocidental.
De conteúdo intrigante e surpreendente, esse livro já nos chama a atenção a partir do título, mais especificamente os dois substantivos que o compõem: deserto e Tártaros. Vejamos mais detidamente
esses vocábulos.
Segundo o dicionário do Aurélio, Deserto [do latim desertu]
significa: 1. Desabitado, despovoado, descampado, ermo. 2. Pouco
freqüentado, solitário. Já no Dicionário de símbolos3, Chevalier e
Gheerbrant dizem que:
3
CHEVALIER,
Jean
&
GHEERBRANT, Alain. Dicionário
de símbolos. Tradução Vera da Costa
e Silva et al. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1982.
4
Toda notação de página sem outra
precisão refere-se à edição de O deserto dos Tártaros citada na bibliografia apresentada no final deste
artigo.
O deserto comporta dois sentidos simbólicos essenciais: é a
indiferenciação inicial ou a extensão superficial, estéril, debaixo
da qual tem de ser procurada a Realidade. (p.331)
A esse substantivo tão simbólico soma-se a palavra Tártaros
que também possui dois sentidos que nos interessam. Segundo a enciclopédia Larousse Cultural, Tártaros
era uma tribo mongol que forneceu grande parte dos combatentes
do exército que Batu, neto de Gengis Khan, chefiou, no século
XIII, contra a Europa. No Ocidente, utilizava-se, na Idade Média,
a palavra “tártaros” com referência ao Tártaro, ou seja, aos
Infernos. (p. 5592)
Como não poderia deixar de ser, esses dois substantivos com
os seus sentidos denotativo e conotativo são índices muito interessantes para podermos entender esta grande obra com a qual estamos
trabalhando e que doravante nos propomos a analisar mais atentamente sob um outro aspecto para entendermos o SER tal qual ele nos
aparece nesse romance.
O protagonista dessa narrativa é Giovanni Drogo, jovem oficial das forças armadas italianas. A obra se inicia com a formatura de
Drogo no exército, ganhando o posto de tenente e sendo designado
para o Forte Bastiani.
Nomeado oficial, Giovanni Drogo deixou a cidade numa manhã
de setembro para alcançar o Forte Bastiani, seu primeiro destino.
Pediu que o acordassem ainda de noite e vestiu pela primeira
vez o uniforme de tenente. Quando terminou, olhou-se no
espelho, à luz de um lampião de querosene, mas sem sentir a
alegria que imaginava.
Era aquele o dia esperado há anos, o começo de sua verdadeira
vida. Pensava nos míseros dias na academia militar, lembrou-se
das amargas tardes de estudo quando ouvia lá fora, nas ruas,
passarem pessoas livres e presumivelmente felizes; dos serões
de inverno nos dormitórios gelados, onde pairava estagnado o
pesadelo das punições. Lembrou-se do sofrimento de contar os
dias um por um, que pareciam não acabar nunca. (p.5)4
R G L, n. 4, fev. 2007.
97
5
O sentido de tribo mongol aqui se
encaixa muito bem. Como eles eram
uma tribo guerreira, quanto maior o
valor deles maior o ato heróico dos
homens do forte. A esse sentido podemos também somar o dos infernos que vem reforçar ainda mais o
heroísmo deles.
Esse forte situa-se na fronteira do país e à frente do forte localiza-se um deserto, chamado de Deserto dos Tártaros. Drogo passa
toda a sua vida no Forte Bastiani, mas o livro se chama Deserto dos
Tártaros. Por quê? Essa é a primeira questão que nos colocamos. As
ações da narrativa não se passam no deserto, mas esse é o título do
livro. Obviamente, deduzimos que a figura do deserto é extremamente
importante, pois na realidade é do deserto que poderá vir a salvação
de Giovanni Drogo. Não só para o protagonista, mas para a maioria
dos soldados que servem no forte. Eles passam a vida na expectativa
de um ataque dos tártaros5 e esse ataque justificaria aquela vida monótona e rotineira, isolada de todos e de tudo. Esse ato heróico seria o
sentido da vida de cada um deles. Daí vem, a nosso ver, o título do
livro.
Como vimos, num primeiro sentido simbólico, o deserto remete-nos à idéia de indiferenciação, isto é, esse espaço faz com que
tudo seja igual, enfadonho. Assim é a vida no forte e é por isso que
Drogo intimida-se no primeiro momento quando chega ao forte. Podemos observar isso na seguinte passagem:
Sentiu-se repentinamente sozinho, e sua empáfia de soldado, tão
desembaraçada até então, enquanto haviam durado as
experiências de guarnição, com a cômoda casa, com os amigos
alegres sempre ao lado, com as fortuitas aventuras nos jardins
noturnos, toda a sua segurança lhe faltava de repente. Parecialhe, o forte, um daqueles mundos desconhecidos aos quais nunca
pensara seriamente poder pertencer, não porque lhe parecessem
odiosos, mas por lhe parecerem infinitamente distantes de sua
vida rotineira. Um mundo bem mais exigente, sem nenhum
esplendor além daquele de suas geométricas leis.
Ah, voltar! Não ultrapassar sequer a soleira daquele forte e descer
à planície, à sua cidade, aos velhos hábitos!
Esse foi o primeiro pensamento de Drogo, e não importava que
tamanha fraqueza fosse vergonhosa para um soldado, ele mesmo
estava pronto a confessá-la, se preciso, contanto que o deixassem
partir logo. Mas uma densa nuvem erguia-se, branca, do invisível
horizonte do norte, sobre os bastiões, e imperturbáveis, sob o
sol a pino, as sentinelas caminhavam para lá e para cá como
autômatos. O cavalo de Drogo deu um relincho. Depois voltou o
silêncio profundo.
Giovanni destacou finalmente os olhos do forte e olhou ao seu
lado, para o capitão, esperando uma palavra amiga. Ortiz também
permanecera imóvel e fitava intensamente as muralhas amarelas.
Sim, ele, que ali vivia há dezoito anos, as contemplava, quase
enfeitiçado, como se revisse um prodígio. Parecia não se cansar
de admirá-las, e um vago sorriso, ao mesmo tempo de alegria e
de tristeza, iluminava suavemente seu rosto. (p. 21-22)
Pela passagem acima, observamos o receio do protagonista que
nem se importaria de confessar o medo que estava sentindo. Entre-
BARBOSA, S. & VINHOLES, L.I. p. 96-118.
98
tanto, ao olhar o Capitão Ortiz e seus sentimentos contraditórios alegria e tristeza - Drogo se aquieta um pouco. Aliás, toda essa primeira caminhada da personagem principal até o forte é exemplar para
o estudo do SER neste romance. Aprofundemos um pouco mais na
análise dessa passagem.
Após deixar sua cidade natal, Drogo caminha longo tempo em
uma estrada deserta em direção ao forte, mas sem encontrá-lo ou a
qualquer outra pessoa. Depois de alguns dias, a personagem principal avista uma outra pessoa numa estrada paralela a sua.
Finalmente, um homem como ele; uma criatura amiga, com quem
poderia rir e brincar, falar da futura vida comum, de caçadas, de
mulheres, da cidade. Da cidade que agora parecia a Drogo
relegada a um mundo longínquo. (p. 12)
Nesse primeiro parágrafo, é interessante destacar os dois espaços já indiciados e que serão uma eterna antítese na estrutura interna
do romance, a saber: a cidade e o forte. Com efeito, Drogo voltará
ainda algumas vezes à cidade, assim como o Capitão Ortiz, que é a
outra personagem que encontra no caminho. Mas, como o Capitão,
sua ida à cidade se tornará cada vez mais rara até o momento em que
a cidade se lhe tornará completamente indiferente. Como nos mostra
a passagem, a “cidade parecerá um mundo longínquo”, isto é, um
mundo a que Drogo não mais pertence. Temos aí, portanto, uma antítese espacial: cidade X forte. Drogo sai de um espaço grande, aberto, dinâmico, variável para penetrar um espaço pequeno, fechado,
estático e cotidiano ao extremo. Essa mudança espacial por si só já
evidencia duas das temáticas existenciais seguidas no livro: o ser diante de si mesmo e a inutilidade da vida. Drogo fará muito poucos
amigos durante toda sua estada no forte. Amigo mesmo, só o próprio
Capitão Ortiz, que é o primeiro habitante do forte que ele encontra.
Os outros são apenas colegas como Simeoni, Angustina, o alfaiate, e
alguns outros. Dessa maneira, o protagonista leva uma vida repetitiva
e cotidiana, sem sobressaltos, fica apenas no aguardo da grande glória, do dia em que os Tártaros atacarão seu país, através do deserto e,
nesse dia, então, lutando bravamente contra o inimigo ele terá sua
existência justificada. Mas o inimigo não vem, apesar de toda a expectativa e preparação militar, da torcida de todo o forte. Ensimesmado, Drogo não vê a passagem do tempo e em “pouco tempo”, toda
sua vida passará e ele vai se encontrar só, abandonado e doente. É
dessa forma, aliás, que morrerá: sozinho, sem amigos ou colegas,
num quarto de uma estalagem de estrada. Ou seja, morrerá espacialR G L, n. 4, fev. 2007.
99
mente também deslocado nem no lá, a cidade, onde começara a vida
e de onde viera, onde possui suas raízes familiares, nem no forte,
onde pensou encontrar a glória, a imortalidade, enfim, uma razão
para a própria existência. Essa morte ‘em trânsito’ é extremamente
significativa no contexto existencial do romance. Drogo morre sem
nenhuma raiz, sem nenhuma justificativa ou realização. No entanto,
muitas vezes, durante a narrativa, ele intui o fim que o aguarda. Tenta
várias vezes, n o decurso dos anos, abandonar o forte, ir embora,
voltar para a cidade, para a sua mãe, para a noiva, para as pessoas
amigas, para as festas, as luzes, mas isso nunca acontece.
— Parece que cheguei ontem ao forte — dizia Drogo, e era assim.
Parecia ontem, entretanto o tempo se consumira com seu ritmo
imóvel, idêntico para todos os homens, nem mais lento para quem
é feliz nem mais veloz para os desventurados.
Nem devagar nem rápido, outros três meses se passaram. O Natal
já se dissolvia na distância, também o novo ano viera, trazendo
aos homens, por alguns instantes, estranhas esperanças. Giovanni
Drogo já se preparava para partir. Era necessária ainda a
formalidade do exame médico, como lhe prometera o major Matti,
e depois poderia ir embora. Ele continuava a repetir a si mesmo
que esse era um acontecimento alegre, que na cidade o aguardava
uma vida boa, divertida e talvez feliz, contudo não estava
contente. (p. 67-68)
Nesse sentido, uma pergunta nos persegue, a nós leitores do romance, durante toda a narrativa: por quê? Por que Drogo insiste em
sua vida mesquinha, cotidiana, repetitiva e sem graça? Por que o protagonista não abandona tudo, volta para a vida da cidade que conhece razoavelmente bem, e sabe das alegrias e tristezas que a cercam?
Por que ele não consegue desvencilhar-se do poder misterioso que
envolve o forte e que se transmite a ele? Seria a vontade de grandeza? De tornar-se herói? Seria a vontade de ultrapassar os limites da
condição humana, tornando-se um super-homem como diria
Nietzsche?
A resposta é difícil, e no romance em foco, como em toda a obra
prima, não a encontramos. A justificativa, caso exista alguma, deve
ser encontrada pelo leitor em suas próprias reflexões. A obra é
questionadora, filosófica, polifônica, aberta talvez. Ela parece dizernos, que a resposta é subjetiva, do leitor, não da obra, ou seja, cada
um terá sua própria resposta uma vez que, existencialmente, a verdade está na subjetividade, a verdade é a subjetividade. Portanto, neste
romance metafórico e metafísico, de cunho existencialista, é fácil
questionar-se a respeito desse apego à grandiosidade, ao ato heróico.
BARBOSA, S. & VINHOLES, L.I. p. 96-118.
100
E mais fácil ainda, ou melhor, mais necessário ainda, é questionarnos, a partir do romance, a respeito de nosso apego (ou desejo?) à
grandiosidade? Qual é o inimigo que esperamos? O doutorado? Uma
vaga no vestibular de uma boa universidade? Escrever um grande
livro? Publicar um romance? Viver um grande amor? Ter um filho
“de cuca legal”? Apesar desse questionamento suscitado pela leitura
da narrativa ela, por si só, leva-nos ainda mais longe. Ela nos leva ao
depois. E depois do ato heróico? Será que aquele momento singular
justificaria todos os outros momentos? Anteriores e posteriores? Continuando a tomar como exemplo a narrativa, encontramos Simeoni
que de tenente passou a comandante do forte. É ele que está no comando quando os tártaros, finalmente, chegam. Como os outros, ele
também passou toda a vida à espera do ato heróico, desse momento
sublime do enfrentamento e, ao que tudo indica, ele está se aproximando de seu desejo, de seu sonho. Mas, e depois? Será que não
haveria nenhum outro questionamento? Nenhuma outra ansiedade?
Nenhuma outra angústia pela inutilidade da vida? Será que aquele
ato justificaria o que foi, o que é e o que será? Todos esses
questionamentos filosóficos enraízam-se na obra que ora analisamos
e pressupõem um leitor implícito no mínimo curioso. Não podemos
perder de vista que essa obra foi publicada em 1940, ou seja, no período da Segunda Guerra Mundial, justamente no momento em que o
Existencialismo6 estava em foco e se espalhava da França para o
6
Segundo a Enciclopédia Larousse
Cultural: Nascido com Kierkegaard,
o pensamento existencialista procede da análise que Sartre faz da filosofia heideggeriana. Para Jean-Paul
Sartre, o traço fundamental do
existencialismo é colocar a liberdade como fundamento, o que o homem só pode esquecer por má-fé.
Não somos predeterminados antes
de nascer, mas criamos nosso destino com nossa vontade livre. Somos
responsáveis por tudo o que fazemos. É, pois, antes de mais nada,
uma perspectiva moral, um
“humanismo”, convidando ao
engajamento social do homem, tomado como ser responsável pelo que
os outros homens são.
O
existencialismo constitui uma corrente importante do pensamento
francês após a Segunda Guerra
Mundial. (p. 2315)
mundo todo. E, portanto, o homem estava se questionando a respeito
de quase tudo, pois todos aqueles valores com os quais fora criado,
não serviram para nada, não deram em nada, uma vez que a guerra
alastrava-se e tomava, cruelmente, conta do mundo. Diante da inutilidade e da violência da guerra, os bons valores mostraram-se, quase
todos, inúteis, circunstanciais. Assim, esta obra, O deserto dos tártaros, se insere num contexto sócio-cultural bem determinado e que
contribui para a compreensão do homem da primeira metade do século XX. Todos os seres do forte têm esse mesmo pressentimento da
brevidade e da fragilidade da vida humana.
Mas no caminho para o forte, Drogo encontra, do outro lado da
estrada, um acompanhante. Vejamos.
Drogo arrependeu-se imediatamente. Em que encrenca ridícula
ia se metendo, tudo porque não era capaz de bastar a si próprio.
[...[ (p.12)
Na ponte, os dois se encontraram. Sempre a cavalo, o capitão
aproximou-se de Drogo e estendeu-lhe a mão. Era um homem
de seus quarenta anos ou talvez mais, de rosto enxuto e
R G L, n. 4, fev. 2007.
101
7
De acordo com alguns teóricos, o
espaço na obra literária pode ser dividido em três maneiras: cenário aquilo que é construído pelo homem,
paisagem – que é a natureza e ambiente – que é o cenário ou a paisagem natural somada a um clima psicológico. (Cf. GANCHO, Cândida
Vilares. Como analisar narrativas.
São Paulo: Ática, 1998)
aristocrático. Seu uniforme era mal talhado, mas perfeitamente
em ordem. — Capitão Ortiz — apresentou-se.
Calaram-se, fazia calor, sempre montanhas por todos os lados,
gigantescos montes relvados e selvagens. (p. 13)
É interessante notar o segundo período do trecho. Logo de início, o protagonista se recrimina por não conseguir “bastar a si próprio”. Esse questionamento é importante para a compreensão do romance, pois notamos que, para a personagem principal, o ser humano deve ser solitário, senão não haveria a recriminação. Lembramos
ainda que o homem é definido desde Aristóteles como um ser social.
Assim, Drogo vai de encontro a toda uma tradição. E por isso podese perguntar, se não é essa concepção que norteou toda a escritura do
livro, isto é, a ida para o Forte Bastiani de tantos soldados e a atração
que esta vida solitária exerce sobre os homens não indicaria essa vontade de ser só? Aliás, a paisagem inóspita que aparece no último período e que predomina por toda a narrativa parece reafirmar essa idéia.
Observemos que há sempre ‘montanhas e montes gigantescos’. Isso
indica a vida isolada e fechada que vivem os homens do forte: cenário e paisagem7 se juntam e se tornam extremamente coesos na demonstração da solidão dos soldados, temos, portanto, um ambiente.
Analisemos ainda um pouco esse espaço construído na primeira caminhada de Drogo até o Forte.
Drogo olhava, sobre a poeira da estrada, a sombra nítida dos
dois cavalos, as cabeças fazendo sim-sim a cada passo; ouvia o
quádruplo patear, um ou outro zumbido de mosca e nada mais.
Não se via o fim da estrada.De vez em quando, numa curva do
vale, deparava-se, altíssimo, talhado em encostas escarpadas, o
caminho que subia em ziguezague. Chegava-se, olhava-se então
para cima, e lá estava ainda à frente o caminho, cada vez mais
alto. (p. 16)
Para além da paisagem inóspita, nota-se igualmente a presença
do eixo espacial da verticalidade. O Forte se situa no alto. O caminho
que leva ao forte, embora tortuoso, segue sempre para o alto. Assim
sendo, temos uma oposição alto versus baixo. Naturalmente, essa
oposição remete-nos às idéias que, no Ocidente, impregnam esse eixo,
a saber, as idéias de inferno para o baixo e de céu para o alto. Em
geral, o baixo relaciona-se continuamente a uma certa negatividade,
enquanto o alto sempre a uma positividade. Para o contexto do presente romance, além daquela idéia de solidão e de isolamento que se
cria com a localização do Forte, acreditamos que essa espacialidade
também envia-nos simbolicamente à idéia central da narrativa, que é
a do Ser em busca de um motivo para a própria existência. Em outras
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102
palavras, o questionar-se a respeito do próprio ser é um
questionamento, por assim dizer, superior, positivo.
No entanto, esse questionar-se lembra-nos também a idéia de
investigação das profundezas do ser humano, dos cantos recônditos
da alma humana. Essa idéia de profundidade também é encontrada
no eixo da verticalidade, inclusive o Forte se localiza, naturalmente,
ao lado de abismos. Vejamos uma passagem que exemplifica o que
acabamos de explicitar:
O vale agora se estreitava, fechando o acesso aos raios do sol.
Profundas gargantas laterais abriam-se de vez em quando, dali
desciam ventos gélidos, acima avistavam-se montes íngremes
em formato de cone; dois, três dias, podia-se dizer, não bastariam
para atingir o cume, tão altos pareciam.
Ambos agora tinham algo em que pensar. A estrada saíra
novamente para o sol, montanhas sucediam montanhas, agora
mais íngremes e com alguns paredões de rocha. (p. 16)
Além dos abismos, notamos também nas descrições espaciais a
presença das figuras ‘ventos gélidos’, ‘montes íngremes’, ‘cume’,
‘paredões de rocha’ e todos eles salientam mais uma vez o eixo vertical, criando ao mesmo tempo o ambiente da solidão.
Mais adiante, sempre caminhando para o Forte, ocorre o seguinte
diálogo entre Drogo e o Capitão Ortiz.
— Grandioso, o forte? Não, não, é um dos menores, uma
construção muito velha, só de longe é que causa um certo efeito.
Calou-se um instante, e acrescentou:
— Muito velha, completamente superada.
— Mas é um dos principais, não é?
—Não, não, é um forte de segunda categoria — respondeu Ortiz.
Parecia sentir prazer em falar mal, mas num tom especial; assim
como alguém que se diverte ao notar os defeitos do filho, certo
de que serão sempre coisa ridícula diante de seus méritos
desmesurados.
— É um trecho de fronteira morta — acrescentou Ortiz.— De
modo que nunca o mudaram, permanece como há um século.
— Como fronteira morta?
—Uma fronteira que não dá problemas. Adiante existe um grande
deserto.
— Um deserto?
—
Um deserto realmente, pedras e terra seca, é chamado de
deserto dos tártaros.
Drogo perguntou:
— Por que dos tártaros? Havia tártaros ali?
— Antigamente, acho. Porém, mais que tudo, é uma lenda.
Ninguém deve ter passado por lá, nem mesmo nas guerras
passadas.
— Então o forte nunca serviu para nada?
— Para nada — disse o capitão.(p. 17-18)
Mais uma vez espaço e temática estão em consonância de sen-
R G L, n. 4, fev. 2007.
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8
— Um novo regulamento, Excelência? — perguntou Drogo, já
curioso.
—
Um corte nos quadros, a
guarnição reduzida quase à metade
— disse bruscamente o outro. —
Gente demais, eu sempre disse; era
preciso agilizar esse forte!
Nesse instante entrou o ajudantemor trazendo um grosso maço de
pastas. Folheou-as em cima de uma
mesa, tirou fora uma, a de Giovanni
Drogo, entregando-a ao general, que
a percorreu com olhos de conhecedor. (p. 132)
tidos, um reforçando o outro e vice-versa. No trecho acima percebemos, numa antecipação da narrativa, a inutilidade que será a vida de
Drogo. Ele se encaminha para passar o resto de seus dias em um
Forte completamente desimportante, que não desempenha nenhuma
função, nem mesmo aquela para a qual foi criado, ou seja, defender a
Pátria. Ele nunca foi útil para nada e não serviu a ninguém. É por isso
que os comandantes do exército que estão estabelecidos na cidade
não dão a mínima importância para o forte, inclusive diminuindo, a
certa altura da narrativa, o efetivo de soldados que lá servia.8 Esse
plano secundário que o Forte ocupa também reforça o sentido da vida
de Drogo, ou seja, sua vida transcorrerá na mais completa inutilidade. Nunca haverá nenhum fato que justifique sua existência, nenhum
ato grandioso, nenhum ato heróico, como podemos observar na seguinte passagem:
Quase dois anos depois, Giovanni Drogo dormia uma noite em
seu quarto, no forte. Vinte e dois meses haviam passado sem
trazer nada de novo, e ele permanecera firme, esperando, como
se a vida devesse ter para com ele uma particular indulgência.
Entretanto, vinte e dois meses são longos, e podem acontecer
muitas coisas: dá tempo para que se formem novas famílias,
crianças nasçam e comecem até a falar, para que uma grande
casa surja onde antes havia apenas um prado, para que uma
mulher bonita envelheça e ninguém mais a deseje, para que uma
doença, mesmo das mais demoradas, tome alento (enquanto isso
o homem continua a viver despreocupado), consuma lentamente
o corpo, desapareça para deixar lugar a breves aparências de
cura, recomece mais fundo, sugando as últimas esperanças, sobre
ainda tempo para que o morto seja sepultado e esquecido, para
que o filho seja de novo capaz de rir e, à noite, leve moças
ingênuas às alamedas, ao longo das grades do cemitério.
A existência de Drogo, ao contrário, tinha como que parado.
Dias iguais, com as mesmas coisas de sempre, repetiam-se
centenas de vezes sem dar um passo adiante. O rio do tempo
passava sobre o forte, rachava os muros, arrastava para baixo
poeira e fragmentos de pedra, limava os degraus e as correntes,
mas sobre Drogo passava à toa; não conseguira enganchá-lo ainda
em sua fuga. (p. 81-82)
Como observamos, a vida de Drogo transcorre sem nenhum
incidente. “mas Drogo passava à toa”. Sempre a mesma e inútil vida
com atividades corriqueiras e automáticas. Outro item bastante significativo que se encontra no trecho acima citado é aquele que se
refere à passagem do tempo. Observamos que, no final do trecho,
mais especificamente no último parágrafo, o narrador informa-nos
que o tempo passava rapidamente e ia modificando todas as coisas
que estavam por perto da vida de Drogo, Entretanto, ele próprio não
se dava pela passagem inexorável do tempo. Ainda não havia perce-
BARBOSA, S. & VINHOLES, L.I. p. 96-118.
104
bido a brevidade da vida e o “desperdício” com que a tratava com
referência ao tempo. Ser no tempo parece-lhe um sinônimo de um
laissez faire permanente. Nesse sentido, note-se ainda, como uma
breve observação sobre o estilo do autor, o uso da metáfora ‘rio do
tempo’. Nela observam-se as principais características quando falamos do tempo: passagem contínua, movimento irremediável e ainda
um quê de mistério já que não conseguimos ultrapassar a superfície e
o fundo permanece desconhecido.
Salientando e explicitando a solidão e o deserto existencial em
que vai viver temos em seguida o diálogo que se estabelece entre o
Capitão Ortiz e Drogo no momento em que este último vai começar o
seu serviço no forte.
Elevando-se cada vez mais a estrada, as árvores haviam
terminado, somente raras moitas restavam aqui e ali; de resto,
prados crestados, pedras, desmoronamentos de terra roxa.
— Por gentileza, senhor capitão, há povoados vizinhos?
— Bem, vizinhos, não. Há San Rocco, mas fica a uns trinta
quilômetros.
— Pouco com que se divertir então, imagino.
— Pouco com que se divertir, pouco, realmente.
O ar tornara-se mais fresco, os flancos das montanhas
arredondavam-se, prenunciando as cristas finais.
Uma revoada de corvos passou rente aos dois oficiais e abismouse no funil do vale.
— Corvos — disse o capitão.
Giovanni não respondeu, estava pensando na vida que o
aguardava, sentia-se estranho àquele mundo, àquela solidão,
àquelas montanhas. Perguntou:
— Mas, dos oficiais que lá vão servir em primeira nomeação, há
algum que depois continue?
— Poucos, atualmente — respondeu Ortiz, como que arrependido
de ter falado mal do forte, percebendo que o outro exagerava.
— Quase nenhum, aliás. Agora todos querem um serviço de
guarnição brilhante. Antigamente o Forte Bastiani era uma honra,
agora parece quase uma punição. (p. 18-19)
Para além da solidão que espera Drogo, já indicia também nesse
trecho a falta de diversão e de opções de vida pessoal que o acompanharão durante toda a sua longa estada no Forte Bastiani. E, na medida em que o lazer é uma característica intrinsecamente humanizadora,
podemos afirmar que esse fato demonstra, como uma antecipação da
narrativa, a vida triste que Drogo levará até o final de seus dias, pois,
como afirma a personagem Ortiz, além de atualmente desprestigiado,
o Forte era encarado até como punição.
No trecho acima notaremos também a maneira por que o Forte
é encarado pelos oficiais que têm de prestar serviços lá: nenhum tem
o mínimo interesse de aí permanecer. Trata-se somente de uma espé-
R G L, n. 4, fev. 2007.
105
cie de bebida amarga que os militares devem beber a fim de acelerarem suas carreiras. Para eles, o Forte significa apenas uma oportunidade passageira, um trampolim para uma rápida subida na carreira,
mais nada. Por isso é que, segundo Ortiz, os novos oficiais não ficam
muito tempo no Forte. Por que distintos meandros da alma, do ser e
da psicologia de Drogo ele se constituirá numa exceção à essa regra?
De qualquer maneira, ele aí permanecerá até o dia em que, já velho e
doente, chegam os invasores e ele, ironicamente, tem que ser retirado
do forte para não atrapalhar, militarmente, a defesa do forte.
Outro fato de interesse e que também encontra-se indiciado no
trecho acima citado é a presença da figura do ‘corvo’. Como se sabe,
o corvo é um pássaro negro, sombrio, ligado, simbolicamente, aos
mortos. No parágrafo acima, sua revoada no momento em que Drogo
acede, pela primeira vez, ao Forte Bastiani, ele se constitui em mais
um índice do tipo de vida que ele irá encontrar no final do seu destino. Entretanto, note-se que Drogo nem percebe os corvos tão
introspectivo estava naquele momento, da mesma maneira que também não perceberá sua própria existência, inexoravelmente consumida
pela passagem do tempo e pela atonia que lhe toma conta do corpo e
da alma, mesmo tendo a noção, como fica claro no trecho transcrito,
de que não pertence àquele estilo de vida. Drogo dá a impressão de
viver “abulicamente”.
— Apesar de tudo, é uma guarnição de fronteira. No geral há
elementos de primeira ordem. Um posto de fronteira é sempre
um posto de fronteira, realmente.
Drogo continuava calado, com o coração repentinamente
oprimido. O horizonte alargara-se, no fundo apareciam curiosos
perfis de montanhas rochosas, despenhadeiros pontiagudos que
se encavalavam no céu.
— Agora, até no exército as concepções mudaram — continuava
Ortiz.
— Antigamente o Forte Bastiani era uma grande honra. Agora
dizem que é uma fronteira morta, não pensam que uma fronteira
é sempre uma fronteira, e nunca se sabe. (p. 19)
Outro dado interessante dessa primeira caminhada de Drogo para
o Forte é fornecido por esse trecho de conversa que ele mantém com
o Capitão Ortiz. Em sua argumentação, talvez até no intuito de justificar a própria vida, Ortiz afirma que o Forte se localiza em uma
fronteira. Naturalmente, em função dessa localização, existe sempre
a possibilidade de um ataque inimigo. Entretanto, levando-se em conta
o conhecimento de que existe à frente um deserto e que o país jamais
tenha sido invadido por ali, percebe-se o quanto fraca é a argumenta-
BARBOSA, S. & VINHOLES, L.I. p. 96-118.
106
ção do Capitão. Ainda assim, é interessante analisarmos a palavra
fronteira e todos os significados espaciais e existenciais que decorrem dela para a análise do romance em foco. Comecemos pela definição que encontramos no dicionário.
Fron.tei.ra s.f. (fronte + eira) 1 Zona de um país que confina
com outra do país vizinho. 2 Limite ou linha divisória entre dois
países, dois Estados etc. 3 Raia; linde. 4 Marco, baliza. 5 Confins,
extremos. F. artificial: a que não atende aos acidentes geográficos
(geralmente com predomínio de linhas retas). F. de acumulação:
fronteira viva. F. de tensão: fronteira viva. F. esboçada: tipo de
fronteira delineada sobre um mapa, sem que seu traçado
corresponda a uma gradual adaptação passiva do homem ao meio,
nem a uma adaptação ativa do Estado, ao qual ela pertence. F.
morta: fronteira que passou de condição de viva à situação de
linha tranqüila, cessadas as causas que originavam tensão. F.
natural: a que acompanha um acidente topográfico, rio, montanha
etc. F. viva: tipo de fronteira que é fruto da paulatina evolução
histórica, e fixada através de choques ou de lutas armadas.
(Dicionário Michaelis, 1999)
Nessa lista de definições denotativas do dicionário, cumpre destacar a de fronteira natural que é o caso do Forte. O deserto forma
uma barreira enorme e intransponível e é um acidente geográfico
que, necessariamente, não pode ser deixado de ser considerado. Porém, além desse aspecto denotativo, encontramos também um aspecto simbólico na idéia de fronteira. Para analisarmos um pouco mais
aprofundadamente essa questão, tomemos as palavras do teórico russo Iuri Lotman(1978):
A fronteira divide todo o espaço do texto em dois subespaços,
que não se tornam a dividir mutuamente. A sua propriedade
fundamental é a impenetrabilidade. O modo como o texto é
dividido pela sua fronteira constitui uma das suas características
essenciais. Isso pode ser uma divisão em “seus” e alheios, vivos
e mortos, pobres e ricos. O importante está noutro aspecto: a
fronteira que divide um espaço em duas partes deve ser
impenetrável e a estrutura interna de cada subespaço, diferente.
Assim, por exemplo, o espaço do conto maravilhoso decompõese nitidamente em “casa” e “floresta”. A fronteira entre as duas é
nítida - a orla da floresta, por vezes o rio (o combate com o
dragão realiza-se quase sempre sobre a “ponte”). Os heróis da
floresta não podem penetrar na casa - eles permanecem fixos
atrás de um determinado espaço. É apenas na floresta que se
podem produzir acontecimentos terríveis e maravilhosos.
(p. 373)
Assim, aplicando as idéias desse teórico à análise do texto que
ora enfocamos, veremos que a fronteira em que se situa o forte divide
a terra ‘deles’ da ‘nossa’. E o forte é a expressão do poder para manter os de lá afastados do aqui. Portanto, temos os dois subespaços de
R G L, n. 4, fev. 2007.
107
que fala Lotman: Forte Bastiani X Deserto do Tártaros.
Finalmente, é necessário ressaltar que todas essas verdades a
respeito do forte, das suas características e do paralelismo de tudo
isso com a existência do personagem Drogo não lhe foram passadas
na Academia, de onde acabara de sair (lembremos que estamos no
início do romance), nem no Forte, para onde estava se dirigindo para
nunca mais voltar realmente, mas lhe foram comunicadas numa conversa que se desenrolou no caminho entre os espaços que o personagem deixava para sempre (sem o saber), a cidade, a academia militar
e o futuro espaço da sua desventura, o Forte. Trata-se também de
uma movimentação simbólica, marcada por um espaço intermediário
do deslocamento geográfico de Drogo. É como se a passagem entre
essas duas realidades existenciais de sua trajetória humana constituísse um rito e lhe fosse comunicada, no ritmo da marcha do cavalo,
na condição de um personagem que continuava calado, com o coração repentinamente oprimido. E essa caminhada não se fazia em um
entorno neutro, mas inserido numa paisagem igualmente simbólica,
na qual o horizonte alargara-se, no fundo apareciam curiosos perfis
de montanhas rochosas, despenhadeiros pontiagudos que se
encavalavam no céu, como a emoldurar o anúncio dos conteúdos
pesados da existência de Drogo. Temos aí o ser e a paisagem integrados em tresloucada harmonia.
Dando continuidade a essa trajetória um tanto negativa e acompanhando ainda a caminhada de Drogo até “seu primeiro destino”
como diz o narrador, observemos o seguinte trecho, no qual o forte
lhe aparece pela primeira vez:
Um riacho atravessava a estrada. Pararam para dar de beber aos
cavalos e, desmontando da sela, caminharam um pouco de um
lado para outro, para desentorpecer.
Retomando o caminho, atrás da corcova com uma mancha de
pedregulhos, os dois oficiais desembocaram na borda de uma
esplanada em leve subida, e o forte surgiu diante deles, a poucas
centenas de metros.
Parecia realmente pequeno, comparado à visão da tarde anterior.
Do forte central, que no fundo se assemelhava a uma caserna
com poucas janelas, saíam duas baixas muralhas em ameias que
o ligavam aos redutos laterais, dois de cada lado. As muralhas
barravam fragilmente todo o desfiladeiro, de uns quinhentos
metros de largura, fechado nos flancos por altos penhascos
escarpados.
À direita, exatamente embaixo da parede da montanha, a
esplanada enfossava-se numa espécie de sela; lá passava a antiga
estrada do desfiladeiro, e terminava de encontro às muralhas.
O forte estava silencioso, imerso em pleno sol meridiano,
desprovido de sombras. Suas muralhas (não se via a fachada,
por estar virada para o norte) estendiam-se nuas e amareladas.
BARBOSA, S. & VINHOLES, L.I. p. 96-118.
108
Uma chaminé expelia uma fumaça pálida. Ao longo de toda a
orla do edifício central, das muralhas e dos redutos, viam-se
dezenas de sentinelas, com o fuzil no ombro, caminharem,
metódicas, de um lado ao outro, cada uma por um pequeno trecho.
Semelhante a um movimento pendular, elas escondiam o caminho
do tempo, sem romper o encanto daquela solidão que redundava
imensa.
As montanhas, à direita e à esquerda, prolongavam-se a perder
de vista em cadeias escarpadas, aparentemente inacessíveis. Elas
também, pelo menos àquela hora, tinham uma cor amareloqueimada. (p. 19-20)
De início, já se observa que o Forte não era tão grande quanto
parecera antes. Dessa forma, já temos aí uma relação entre o SER e o
PARECER que é uma das tônicas deste romance de Dino Buzzati.
Da mesma forma que o Forte não apresentava a grandeza dos dias
anteriores, Drogo e outras personagens deixaram-se levar pela influência que o Forte exercia no sentido de lhes oferecer uma possível
redenção existencial quando de um possível e permanentemente iminente, ataque dos Tártaros. Ou seja, eles vivem, durante anos, de uma
aparência, vivem sob o signo de um “talvez”, portanto no eixo do
PARECER. A vida no Forte ‘parece’ gloriosa, mas é rotineira, anódina
e sem sentido com regras militares completamente inúteis e mesmo
assim seguidas de forma precisa, sem o mínimo desvio. Essa subordinação à forma, em detrimento dos conteúdos, chega ao absurdo de
se matar uma pessoa, um companheiro de caserna, apenas por que
ela esquecera da senha. Trata-se de um evento impressionante para o
leitor do romance. Senão vejamos. A passagem perturbadora é a seguinte:
Alguns minutos mais tarde, quando os soldados já haviam
rompido as fileiras, lembraram que Lazzari não sabia a senha;
não se tratava mais de prisão, mas da vida; se apresentasse às
muralhas, atirariam contra ele. Dois ou três companheiros
puseram-se então à procura de Tronk, para que desse um jeito.
Tarde demais. Segurando o cavalo negro pelas rédeas, Lazzari
já estava perto das muralhas. E no caminho de ronda estava Tronk,
atraído lá para cima por um vago pressentimento; logo após ter
feito a chamada, uma inquietação tomara conta do sargento-mor;
ele não conseguia determinar sua causa, mas intuía que havia
alguma coisa de errado. Passando em revista os acontecimentos
do dia, chegara até o retorno ao forte sem encontrar nada de
suspeito; depois tinha como que topado com um obstáculo; sim,
na chamada devia ter havido alguma irregularidade, e na hora,
como acontece freqüentemente nesses casos, não dera por ela.
A sentinela endireitou-se, olhou de novo à sua frente, viu que as
duas sombras não eram sonho, já se encontravam próximas, a
uns setenta metros: exatamente um soldado e um cavalo. Então
sobraçou o fuzil, preparou o cão para o disparo, enrijeceu-se no
gesto repetido centenas de vezes durante a instrução. Depois
gritou: — Quem vem lá, quem vem lá? (p. 99-100)
R G L, n. 4, fev. 2007.
109
9
Quanto à caracterização, as personagens podem ser:
a) personagens planos: são personagens caracterizados com um número pequeno de atributos, que os identifica facilmente perante o leitor; de
um modo geral são personagens
pouco complexos. Há dois tipos de
personagens planos mais conhecidos:
- TIPO: é um personagem reconhecido por características típicas, invariáveis, quer sejam elas morais,
sociais, econômicas ou de qualquer
outra ordem. Tipo seria o jornalista,
o estudante, a dona-de-casa, a solteirona etc.
- CARICATURA: é um personagem
reconhecido por características fixas
e ridículas. Geralmente é um personagem presente em histórias de humor.”
b) personagens redondos: são mais
complexos que os planos, isto é,
apresentam uma variedade maior de
características que, por sua vez, podem ser classificadas em:
- físicas: incluem corpo, voz, gestos, roupas;
;- psicológicas: referem-se à personalidade e aos estados de espírito;
- sociais: indicam classe social, profissão, atividades sociais;
- ideológicas: referem-se ao modo
de pensar do personagem, sua filosofia de vida, suas opções políticas,
sua religião;
- morais: implicam em julgamento,
isto é, em dizer se o personagem E
bom ou mau, se é honesto ou desonesto, se é moral ou imoral, de acordo com um determinado ponto de
vista.” (p. 18-19)
Conclusão: Ao se analisar um
personagem redondo, deve-se considerar o fato de que ele muda no
decorrer da história e que a mera
adjetivação, isto é, dizer se é solitário, ou alegre, ou pobre, às vezes não
dá conta de caracterizar o personagem. (GANCHO, Cândida Vilares.
Como analisar narrativas. São
Paulo: Ática, 1995. p. 16-17)
E finalmente Lazzari entendeu, lembrou num lampejo as duras
leis do forte, sentiu-se perdido.
Mas em vez de fugir, sabe-se lá por quê, largou as rédeas do
cavalo e adiantou-se sozinho, invocando com voz aguda:
— Sou eu, Lazzari! Não está vendo? Moretto, ô Moretto! Sou
eu! Mas o que está fazendo com o fuzil? Ficou louco, Moretto?
Mas a sentinela não era mais Moretto, era simplesmente um
soldado com as feições endurecidas que agora erguia lentamente
o fuzil, fazendo pontaria contra o amigo. Apoiou a espingarda
no ombro e olhou de soslaio para o sargento-mor, invocando
silenciosamente um sinal para suspender. Tronk, ao contrário,
continuava imóvel e o fitava severamente.
Lazzari, sem se virar, retrocedeu alguns passos, tropeçando nas
pedras:
— Sou eu, Lazzari! — gritava. — Não está vendo que sou eu?
Não atire, Moretto!
Mas a sentinela não era mais o Moretto com quem todos os
colegas brincavam à vontade, era apenas uma sentinela do forte,
em uniforme de pano azul-escuro com a bandeirola de couro
curtido, absolutamente idêntica a todas as demais à noite, uma
sentinela qualquer que fez pontaria e agora apertava o gatilho.
Sentia nos ouvidos um trovão, e pareceu-lhe ouvir a voz rouca
de Tronk: “Mire no alvo!’, embora Tronk não tivesse aberto a
boca.
O fuzil soltou um breve clarão, uma minúscula nuvem de fumaça,
e mesmo o tiro, num primeiro momento, não pareceu grande
coisa, mas em seguida foi multiplicado pelos ecos, repercutindo
de muralha em muralha, ficou longamente no ar, indo morrer
num murmúrio distante como de trovão.
Agora que o dever fora cumprido, a sentinela pôs o fuzil no chão,
debruçou-se no parapeito, olhou para baixo, esperando não ter
acertado. E no escuro parecia-lhe de fato que Lazzari não havia
caído.
Não, Lazzari estava ainda de pé, e o cavalo se aproximara dele.
Depois, no silêncio deixado pelo tiro, ouviu-se a sua voz, num
tom desesperado:
— Ô Moretto, você me matou!
Dito isso, Lazzari desabou lentamente para a frente. Tronk, com
o rosto impenetrável, ainda não se movera, enquanto um frêmito
guerreiro se propagara pelos meandros do forte. (p. 101-102)
Entretanto, é de se notar que no início o próprio Drogo repugnara tal subordinação absoluta aos regulamentos e reprovara veementemente, em pensamento, o sargento Tronk por sua idolatria ao regulamento. Aliás, esse personagem, o sargento Tronk, apresenta-se, dentro da estrutura narrativa, como uma caricatura9 Quanto à caracterização, as personagens podem ser:
a) personagens planos: são personagens caracterizados com um
número pequeno de atributos, que os identifica facilmente perante o
leitor; de um modo geral são personagens pouco complexos. Há dois
tipos de personagens planos mais conhecidos:
BARBOSA, S. & VINHOLES, L.I. p. 96-118.
110
- TIPO: é um personagem reconhecido por características típicas, invariáveis, quer sejam elas morais, sociais, econômicas ou de
qualquer outra ordem. Tipo seria o jornalista, o estudante, a dona-decasa, a solteirona etc.
- CARICATURA: é um personagem reconhecido por características fixas e ridículas. Geralmente é um personagem presente em
histórias de humor.”
b) personagens redondos: são mais complexos que os planos,
isto é, apresentam uma variedade maior de características que, por
sua vez, podem ser classificadas em:
na medida em que esse apego é por demais exagerado e inútil.
Vejamos uma passagem esclarecedora desse aspecto:
—Claro! — exclamou Tronk, depois se corrigiu: —Sim, senhor.
Somente de dois anos para cá aconteceu isso. Antes era muito
melhor.
O suboficial calou-se. Drogo fitava-o, espantado. Após vinte e
dois anos de forte, o que sobrara daquele soldado? Lembraria
Tronk ainda que existiam, em outras partes do mundo, milhões
de homens iguais a ele, que não vestiam farda? E andavam livres
pela cidade e, à noite, podiam, a seu bel-prazer, ir para a cama,
ou à cantina ou ao teatro? Não (olhando para ele era possível ver
logo), Tronk se esquecera dos outros homens, para ele não existia
nada além do forte, com seus odiosos regulamentos. Tronk não
se lembrava mais de como soavam as doces vozes das moças,
nem de como eram feitos os jardins, nem dos rios, nem das outras
árvores que não fossem as magras e raras moitas espalhadas pelos
arredores do forte; Tronk olhava, sim, para o setentrião, mas não
no mesmo sentido que Drogo; ele fitava o atalho para o Reduto
Novo, o fosso e a contra-escarpa, perlustrava as possíveis vias
de acesso, mas não via os despenhadeiros selvagens, nem aquele
triângulo de planície misteriosa, tampouco as nuvens brancas
que navegavam pelo céu, já quase noturno. Assim, quando vinha
a escuridão, apoderava-se novamente de Drogo o desejo de fugir.
Por que não havia partido logo? Repreendia-se. Por que cedera
às melífluas diplomacias de Matti? Agora precisava esperar que
se completassem os quatro meses, cento e vinte longuíssimos
dias, metade dos quais de guarda nas muralhas. Pareceu-lhe
achar-se entre homens de outra raça, numa terra estranha, num
mundo duro e ingrato. Olhou ao seu redor, e reconheceu Tronk,
que, imóvel, observava as sentinelas. (p. 44)
Mesmo contrário ao excesso de apego ao regulamento, Drogo
acaba por se acostumar com ele, e todas as regras do Forte viram
hábitos do quais não consegue se separar. Na prática, para Drogo,
SER equivale a SUBMETER-SE e a SOFRER AS CONSEQÜÊNCIAS de tudo o que lhe é externo, que lhe imposto pelo mundo.
Voltando à caminhada de Drogo e às suas significações espaciais, observemos a seguinte passagem:
R G L, n. 4, fev. 2007.
111
Instintivamente Giovanni Drogo deteve o cavalo. Passeando
lentamente os olhos, fitava as sombrias muralhas sem conseguir
decifrar seu sentido. Pensou numa prisão, pensou num paço real
abandonado. Um leve sopro de vento fez ondular sobre o forte
uma bandeira que antes pendia frouxa, confundindo-se com o
mastro. Ouviu-se um vago eco de clarim. As sentinelas
caminhavam lentas. No largo, diante da porta de entrada, três ou
quatro homens (não se sabia, pela distância, se eram soldados)
carregavam sacas para cima de um carro. Mas tudo estagnava
num torpor misterioso.
O Forte Bastiani, com suas muralhas baixas, não era imponente,
nem mesmo bonito, nem pitoresco por suas torres e bastiões;
não havia absolutamente nada que consolasse aquela nudez, que
lembrasse as doces coisas da vida. (p. 20-21)
O que nos chama a atenção desde o início no trecho destacado
são as figuras usadas para descrever o Forte. Quase todas possuem o
sentido de mistério e de proibição: prisão, paço real abandonado,
etc. Note-se que a idéia de prisão explicitamente mencionada levanos a nos perguntar por que alguém em condições mentais normais
se sujeitaria, sponte sua a esse tipo de vida. A única resposta possível
continua sendo o fato de os homens se pensarem sempre no sentido
de se balizarem e acatarem as idéias alheias socialmente aceitas. A
aceitação ou a aprovação alheia dos nossos atos e comportamentos é
um dos pontos-chave para se entender as misérias do psiquismo humano. Parece-nos que ao fazerem isso os indivíduos não se preocupam com a própria situação, com a própria maneira de ser, com o que
realmente pensam. Daí, interrogarmos por que mesmo com a impressão fantasmagórica que teve o protagonista no seu primeiro contato
com o espaço do forte, ele não se dispôs, nem que fosse oportunamente, no futuro, procurar melhores ares? Por que não cortou os liames com esse mundo que visivelmente não lhe agradava e foi procurar outra profissão, outros destinos? Talvez o narrador deste romance
queira dizer-nos que o Destino é inexorável, espécie de lei a quem
ninguém pode safar-se, mesmo aqueles que dela têm consciência. Já
na primeira página do romance ele afirma: “um vago pressentimento
de coisas fatais, como se estivesse para iniciar uma viagem sem
retorno.”(p. 6) Busque o indivíduo o que quiser, o futuro está previsto e irremediavelmente traçado. Ele nunca será sujeito da sua vida.
Outra idéia patente no trecho acima é a de solidão, pois observamos
que o Forte é comparado a uma prisão e a um paço abandonado. Mas
nada disso é suficiente para Drogo voltar à cidade, perto de sua mãe
e de seus amigos.
BARBOSA, S. & VINHOLES, L.I. p. 96-118.
112
Entretanto, como na tarde anterior, do fundo da garganta, Drogo
o fitava hipnotizado, e uma inexplicável excitação penetrava em
seu coração.
E atrás, o que havia? Além daquele inóspito edifício, além das
ameias, das casamatas, do paiol, que barravam a vista, que mundo
se abria? Como era o reino do norte, o pedregoso deserto por
onde ninguém nunca passara? O mapa — lembrava-se Drogo
vagamente —- assinalava para além da fronteira uma vasta região
com pouquíssimos nomes, mas será que do alto do forte se veria
pelo menos algum povoado, algum prado, uma casa, ou apenas
a desolação de uma terra desabitada? (p. 21)
No trecho acima, presenciamos o personagem em
questionamento, em dúvida. Será que haveria ali algo mais do que
uma terra desolada? Justamente por causa da dúvida é que talvez a
personagem permaneça no Forte e deixa-se levar pelo tempo. O protagonista do romance dedica toda sua vida à espera de um ataque e,
principalmente, no afã de realizar um ato heróico quando o inimigo
chegasse e ele pudesse se sobressair dentre seus pares. Contudo, sua
espera é inútil, pois justamente quando chega esse dia e o inimigo se
apresenta concretamente Drogo se encontra doente, debilitado, e o
então comandante do Forte, Simeoni, manda-o para a cidade em uma
carruagem. A cena é patética e faz um eco vigoroso com todas as
saídas de cena da vida dos seres humanos em geral. O que somos nós
senão pessoas que esperam um acontecimento que nunca ocorre e
quando o mesmo, finalmente, sobrevêm, nós estamos, na maioria das
vezes, por alguma razão, impedidos? E a literatura se ocupa desta
faceta da condição humana em várias de suas manifestações que vão
desde o Esperando Godot de Samuel Beckett, até ao “Pedro Pedreiro” de Chico Buarque de Hollanda, passando por autores como Guimarães Rosa e por obras como a Educação sentimental de Gustave
Flaubert. Todavia em nenhuma dessas criações de alto valor estético,
a dor da frustração é mais pungente do que n’O deserto dos Tártaros
de Dino Buzzati. A situação existencial de Drogo no final do romance constitui um perfeito paralelo com a vida tomada numa perspectiva materialista, cética ou existencialista.
Ninguém, em meio ao alvoroço do forte, aonde já chegavam os
primeiros escalões de reforços, prestou muita atenção num oficial
magro, de rosto descarnado e amarelo, que descia lentamente as
escadas, dirigindo-se ao saguão de entrada, e saía para onde
estava parada a carruagem.
Na esplanada, inundada de sol, via-se avançar naquele momento
uma longa fileira de soldados, de cavalos e de jumentos,
provenientes do vale. Embora cansados pela marcha forçada, os
militares aceleravam o passo à medida que se aproximavam do
forte, e os músicos, à frente, foram vistos tirando os forros de
pano cinza dos instrumentos, como se preparassem para tocar.
R G L, n. 4, fev. 2007.
113
Alguns, entretanto, cumprimentavam Drogo, mas poucos, e não
mais como antes. Todos sabiam, parecia, que ele estava indo
embora e que agora já não representava mais nada na hierarquia
do forte. O tenente Moro e alguns outros vieram desejar-lhe boa
viagem; foi, porém, uma despedida curtíssima, com aquela
afeição genérica que é própria dos jovens para com as velhas
gerações. Um disse a Drogo que o senhor comandante Simeoni
lhe pedia para esperar, naquele momento estava ocupadíssimo,
o senhor major Drogo tivesse a bondade de aguardar alguns
minutos, o senhor comandante viria sem falta.
Logo que subiu à carruagem, Drogo, ao contrário, deu ordem
para partir imediatamente. Mandara baixar a capota para respirar
melhor, envolvera as pernas com duas ou três cobertas escuras,
sobre as quais se destacava o brilho do sabre. (p. 236-237.)
Como vemos, devido à situação de excitação generalizada e azáfama provocadas pela chegada do inimigo tão longamente esperado,
ninguém se importa com Drogo, apesar de ele ter passado mais da
metade da sua vida no Forte. Fica evidenciado no texto que ele não
fará falta naquele momento supremo e, o que é pior, ninguém realmente sentirá a ausência da personagem nos acontecimentos heróicos que se anunciam. Apenas ele próprio se preocupa, embora amarga e ironicamente, um pouco consigo.
Interessante notar também que, em termos espaciais, Drogo vai
do espaço maior para o menor, o que, certamente, vem salientar ainda mais a temática da solidão e, no final, da deterioração do seu status.
Quando está na cidade no início da narrativa, ele vai da cidade
para o Forte. Depois da longa estada no forte, que é menor do que a
cidade, a personagem vai para uma carruagem e morre, finalmente,
em uma estalagem no caminho de volta. Assim, temos o seguinte
esquema, numa linha decrescente de grandeza:
Cidade à Forte à Estalagem.
Ou, em outras palavras,
Espaço amplo e dinâmico à Espaço delimitado da rotina à
Espaço intermediário entre as duas realidades espaciais (limbo).
Ou, em outras palavras, ainda
Espaço da vida e da esperança à Espaço da solidão à Espaço da ausência e da morte.
Esse mesmo movimento que vai do maior para o menor, do dinâmico ao estático e da felicidade à morte, pode-se observar também
em relação ao meio de transporte utilizado pelo personagem. Quan-
BARBOSA, S. & VINHOLES, L.I. p. 96-118.
114
do ela sai da cidade em direção ao Forte, ele vai a cavalo. Assim, do
ponto de vista espacial, notamos que inicialmente Drogo está em um
espaço aberto, amplo que nos lembra a liberdade. Depois da estada
estática no forte, que nos lembra a prisão, a delimitação e a imobilidade, no momento em que ele deixa o forte, além da saúde debilitada, no limite da vida, volta de carruagem. Esse espaço forma uma
antítese perfeita com o primeiro. A carruagem constitui-se em um
espaço fechado e pequeno o que nos lembra a falta de liberdade, de
opção. Essa relação entre ida e volta funciona perfeitamente como
uma metáfora do desenrolar de toda a vida de Drogo.
10
O formalista russo Boris
Tomachevski (1975), em seu texto
“Temática”, chama a esse processo
de Motivação por analogia psicológica.
Andando aos solavancos sobre os calhaus, a carruagem
distanciou-se pela esplanada pedregosa, conduzindo Drogo ao
termo final de seu caminho. Virado de lado no assento, com a
cabeça balançando a cada salto das rodas, Drogo fitava os muros
amarelos do forte, que se tornavam cada vez mais baixos.
Lá em cima decorrera sua existência segregada do mundo, à
espera do inimigo ele se atormentara por mais de trinta anos, e
agora que os estrangeiros chegavam, mandavam-no embora. Mas
seus companheiros, os outros que lá na cidade haviam levado
uma vida fácil e alegre, ei-los agora chegando ao desfiladeiro,
com sorrisos superiores de desdém, para colher os lauréis da
glória.
Os olhos de Drogo fitavam, intensos como nunca, as paredes
amareladas do forte, os perfis das casamatas e dos paióis. Lentas
lágrimas amargas rolavam por sua pele enrugada, tudo terminava
miseravelmente e não restava nada a dizer.
O sol já caminhava para o poente, faltava no entanto muita estrada
a percorrer, os dois soldados na boléia tagarelavam
tranqüilamente, indiferentes à partida. Eles haviam aceito a vida
como ela era, sem se angustiar com pensamentos absurdos. (p.
237-238)
Nesta passagem fica evidente, no nível literário, a harmonia entre o estado psicológico do protagonista e a natureza10. O dia estava
terminando, ‘o sol já caminhava para o poente’. Metaforicamente,
ocorria o mesmo com a vida de Drogo. Ele caminhava para o fim da
sua vida. Ocorre aí, uma perfeita analogia entre o ‘fim do dia’ e o
‘fim da vida’. E o espaço acanhado da carruagem, desconfortável e
imobilizante, serve de transporte, de deslocamento entre a vida e a
morte.
Chegou por volta das cinco a uma pequena estalagem, lá onde a
estrada corria sobre o flanco da garganta. No alto, como uma
miragem, elevavam-se caóticas cristas de vegetação e de terra
roxa, morros desolados onde talvez o homem nunca tivesse
estado. No fundo corria o rio.
A carruagem parou no pequeno pátio diante da estalagem
justamente quando passava um batalhão de mosqueteiros. Drogo
viu passarem ao seu redor rostos juvenis, vermelhos de suor e de
cansaço, olhos que o fitavam, admirados. Apenas os oficiais o
R G L, n. 4, fev. 2007.
115
cumprimentaram. Ouviu uma voz dentre os que haviam se
afastado: “Vai bem instalado, o velhinho!” Ninguém riu, porém.
Enquanto eles iam à batalha, ele descia à insignificante planície.
Que oficial ridículo!, pensavam provavelmente os soldados; a
menos que não tivessem lido em seu rosto que ele também ia
para a morte.
À soleira estava sentada uma mulher, ocupada em tricotar uma
meia, e a seus pés dormia, num rústico berço, uma criança. Drogo
fitou espantado aquele sono maravilhoso, tão diferente do dos
homens grandes, tão delicado e profundo. Não haviam nascido
ainda naquele ser os sonhos turvos, a pequena alma vagava
despreocupada, sem desejos ou remorsos, por um ar puro e calmo.
Drogo permaneceu parado, admirando a criança adormecida, e
uma aguda tristeza penetrava em seu coração. Tentou imaginar a
si mesmo mergulhado no sono, um Drogo estranho que de nunca
pudera conhecer. Imaginou o aspecto do próprio corpo,
bestialmente adormecido, sacudido por arquejos obscuros, com
a respiração pesada, a boca entreaberta e caída. Entretanto,
também ele, um dia, dormira como aquela criança, também ele
fora gracioso e inocente, e, quem sabe, um velho oficial doente
parara para vê-lo, com amarga estupefação. “Pobre Drogo”, disse
a si mesmo, e compreendia como isso era frágil, mas no fim ele
estava só no mundo, e, além dele mesmo, ninguém mais o amava.
(p. 239-240)
Assim, aquele que passou vida à espera do inimigo, não consegue enfrentá-lo quando o momento crucial chega. Pelo contrário, “enquanto eles iam à batalha, ele descia à insignificante planície”, numa
alteração espacial que mais lembra a queda, do alto ao baixo (do
forte, da montanha, à planície) do que o próprio deslocamento do
espaço. Essa decida espacial, de cima para baixo, na pura verticalidade,
marca o fim, o despedaçamento metafórico no solo raso, em suma, a
morte. Aquele amargo crepúsculo, porém, contém, por antítese, um
fragmento de esperança, representado pelo encontro do moribundo
com a criança a dormir aos pés da mãe, em ‘rústico berço’.
As palavras ‘criança’, ‘berço’ e as expressões ‘gracioso e inocente’, ‘sono maravilhoso’, ‘delicado e profundo’, ‘puro e calmo’
opondo-se a ‘sonhos turvos’, ‘bestialmente adormecido’, ‘arquejos
obscuros’, ‘respiração pesada’, ‘boca entreaberta e caída’ constroem,
uma alternância de significados de vida e morte, uma tessitura semântica que, apesar do lamento, e apesar das reflexões sombrias, deixa
entrever alguma esperança. A existência do bebê e a sua presença nos
momentos que antecedem a morte da personagem abre uma possibilidade de algo positivo, mesmo se sem definição ou clareza. É como
se à toda morte correspondesse um renascimento, uma continuidade
apesar de si própria. A indiferença das personagens circundantes no
pátio da estalagem (uma ante-sala da vida e da morte?) conforma-se
ao paralelismo de nossas vidas no que concerne a indiferença e até
BARBOSA, S. & VINHOLES, L.I. p. 96-118.
116
mesmo à negação que todos temos, no Ocidente, com referência à
morte. Fazemos de conta que se trata de um fato que nada tem a ver
conosco, que não estamos partindo, que estamos comprometidos,
engajados com os compromissos do que supomos ser a vida, até ao
último fio de cabelo. Trata-se tão somente de um corriqueiro mecanismo de defesa ante nossa perplexidade diante daquilo que JeanPaul Sartre chamava de “nosso pecado capital”, o fato de sermos
mortais.
Com essa cena final do romance, podemos afirmar, uma vez
mais que o gênero romance refaz, magistralmente, a ponte entre a
ficção e a realidade, entre a estética e a ética.
Finalmente não podemos esquecer que uma das funções de todo
narrador dentro da obra literária é a ideológica11. Assim, acreditamos
que, ao final do romance, o narrador parece dizer-nos que, muitas
vezes, se ficarmos distraídos ou acomodados, podemos ser levados
pelas circunstâncias da vida. Passamos então de sujeitos a objetos do
Destino, das circunstâncias, da vontade dos que dominam a sociedade ou dos afetos que nos são próximos. Tornamo-nos simples marionetes nas mãos das circunstâncias, sem nunca reagirmos, sem propor
mudanças a nós mesmos. E os hábitos acabam por nos dominar em
pouco tempo. Ficamos com medo das mudanças e em breve perdemos a própria vida, a mesma que, existencialmente, e no íntimo do
nosso ser já havíamos simbolicamente perdido.
A possível visão de mundo pessimista que decorre do final do
Deserto dos Tártaros encontra ressonância, como afirmamos anteriormente, no tempo histórico em que foi publicada. Trata-se do período violento da Segunda Guerra Mundial, momento em que os valores foram todos questionados e em que a Humanidade desceu a um
dos seus mais baixos níveis morais e éticos. Entretanto, ainda hoje, a
obra nos parece atual. À luz de nossos dias globalizados, ela nos
alerta para a desumanização a que nos submetemos num mundo em
que o dinheiro, a ganância pelo poder, a preponderância do fator econômico e a indiferença de uns para com os outros, mais do que nunca, constituem os únicos valores relevantes.
Esse pessimismo do narrador buzzatiano, que pode nos incomodar ao término da leitura do romance poderia ser simplesmente
um procedimento, realizado através de sofisticados recursos literários empregados na obra, apontando-nos que o verdadeiro sentido da
vida poderia estar dentro de nós, em outras modalidades do tempo,
do ser e do espaço, totalmente diferentes das tradicionais.
11
O formalista russo Boris
Tomachevski (1975), em seu texto
“Temática”, chama a esse processo
de Motivação por analogia psicológica.
R G L, n. 4, fev. 2007.
117
Referências bibliográficas
BUZZATI, Dino. O deserto dos Tártaros. 3 ed. Tradução Aurora
Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2003.
CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de
símbolos. Tradução Vera da Costa e Silva et al. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1982.
FIORIN & PLATÃO. Lições de texto: leitura e redação. São Paulo:
Ática: 1998.
GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo:
Ática, 1998.
LOTMAN, Iuri A estrutura do texto artístico.Tradução M. Carmo V.
Raposo e A Raposo. Lisboa: Editorial Estampa, 1978.
MICHAELIS MODERNO DICIONÁRIO DA LÍNGUA
PORTUGUESA. São Paulo: Melhoramentos, 1999.
TOMACHEVSKI, Boris. Temática. In: FORMALISTAS RUSSOS.
Teoria da literatura. Tradução Ana Mariza Ribeiro et al. Porto Alegre:
Globo, 1975.
BARBOSA, S. & VINHOLES, L.I. p. 96-118.
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DA RECEPÇÃO CRÍTICA À RECEPÇÃO CRIATIVA:
DUAS ABORDAGENS DA FICÇÃO CYBERPUNK NO BRASIL
*Mestrando em Letras da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,
campus Três Lagoas.
Rodolfo Rorato Londero*
Seja
na
forma
de
comportamento social (visão de
mundo), como de suas
expressões artísticas, o
cyberpunk apresenta-se como
uma rica fonte de pesquisa para
aqueles que pretendem
compreender
a
cultura
contemporânea, na qual o
imaginário
maquínico
apresenta-se como uma
condição sine qua non da
existência humana.
Adriana Amaral, Visões
perigosas
Resumo: O objetivo deste artigo é analisar a recepção brasileira do
cyberpunk, subgênero da ficção científica norte-americana. Entretanto, além
de revisar resenhas e posfácios da primeira edição brasileira de duas obras
cyberpunks – Piratas de Dados (1990), de Bruce Sterling, e Neuromancer
(1991), de William Gibson –, analisaremos as obras brasileiras que dialogam com o gênero norte-americano.
Palavras-chave: Ficção Científica – Cyberpunk – Literatura Comparada
Abstract: The objective of this article is to analyze the Brazilian reception
of cyberpunk, subgenre of north-American science fiction. However, further
to revise lists and postfaces of the first Brazilian edition of two cyberpunks
works – Piratas de Dados (1990), by Bruce Sterling, and Neuromancer
(1991), by William Gibson –, we will analyze the Brazilians works that
dialogue with the north-American genre.
Key words: Science Fiction – Cyberpunk – Comparative Literature
Como os críticos brasileiros lêem os produtos da cultura de massa
norte-americana? Ou melhor, como os críticos brasileiros lêem o
cyberpunk? Pergunta indispensável para pensarmos a respeito das
relações culturais forjadas no mundo globalizado, principalmente por
envolver a literatura que definiu o imaginário tecnológico contemporâneo. Além de compreender a recepção da cultura de massa norteamericana, responder esta pergunta é esclarecer como o intelectual
brasileiro porta-se diante deste imaginário tecnológico.
Surgido na década de 1980, no contexto social e tecnológico
norte-americano, o cyberpunk é um subgênero da ficção científica
que “[...] associa tecnologias digitais, psicodelismo, tecno-marginais,
R G L, n. 4, fev. 2007.
119
1
Interessante pensar como as listas
de discussão veiculadas na Internet
podem ser úteis para um “estudo das
reações concretas dos leitores”. Por
exemplo, na comunidade Ficção Científica, do website de relacionamentos Orkut, há um tópico sobre
cyberpunk brasileiro, onde encontramos “reações concretas” de diversos leitores. Entretanto, não utilizaremos tal material, pois estenderia
demasiadamente nosso trabalho.
ciberespaço, cyborgs e poder mediático, político e econômico dos
grandes conglomerados multinacionais” (LEMOS, 2002: 200). No
Brasil, o cyberpunk aportou no início da década de 1990, com a tradução de Piratas de Dados (1990), romance escrito em 1988 por
Bruce Sterling, e Neuromancer (1991), romance escrito em 1984 por
William Gibson, sendo a obra que estabeleceu as “regras” do gênero.
Segundo Machado e Pageaux, um dos níveis do estudo literário
comparativo é o “[...] propriamente da ‘recepção crítica’. Quando o
estudo das reações concretas dos leitores não é possível (correspondência de leitores utilizável ou inquérito dirigido ao público alvo),
convém reportarmo-nos às revistas, aos jornais e a todo e qualquer
testemunho que dê uma ‘leitura’ da obra”1 (1981: 63). Entretanto,
além de revisarmos resenhas e posfácios da primeira edição brasileira das obras citadas anteriormente, também analisaremos as obras
brasileiras que dialogam com o gênero norte-americano, como, por
exemplo, Silicone XXI (1985), de Alfredo Sirkis, Santa Clara
Poltergeist (1991), de Fausto Fawcett, e Piritas siderais (1994), de
Guilherme Kujawski. Para Nitrini, “[...] o produtor é também um
receptor quando começa a escrever” (2000: 171). Ou seja, podemos
afirmar que existem dois tipos de recepção: a crítica, praticada pelos
críticos, e a criativa, executada pelos artistas. Estas serão as duas
abordagens que utilizaremos para compreender a recepção do gênero
cyberpunk na literatura brasileira.
As recepções da ficção cyberpunk
Começaremos analisando o posfácio da primeira edição brasileira de Piratas de Dados, de Bruce Sterling. Assinado por Silvio
Alexandre e Fábio Fernandes, o texto contém informações biográficas e bibliográficas. Primeiramente, destacamos os exemplos cinematográficos de ficção cyberpunk dado pelos autores:
Um bom exemplo dessa nova (e dura) visão do mundo é o filme
Blade Runner – O Caçador de Andróides, baseado em um livro
de Philip K. Dick, visto que todos os autores cyberpunk são
unânimes em situar no filme algumas inspirações visuais mais
constantes para o movimento. Os filmes RoboCop e O
Exterminador do Futuro poderiam ser outros bons exemplos.
(ALEXANDRE; FERNANDES apud STERLING, 1990: 365)
Na verdade, é mais sensato considerar Blade Runner (1982) como
“precursor imediato” (ANTUNES apud GIBSON, 2003: 6) da ficção
cyberpunk, pois, como atesta a citação, o filme inspirou o movimenLONDERO, R. R. p. 119-134.
120
to cyberpunk. Adaptação do conto “Do androids dream of eletric
sheep”2 (1968), de Philip K. Dick, autor aclamado pelo movimento,
o filme também é um dos pontos de partida dos escritores brasileiros.
A primeira obra cyberpunk brasileira, Silicone XXI, de Alfredo Sirkis,
sendo um “romance policial futurista” (como divulgado no website
do autor), nos remete diretamente ao filme do diretor Ridley Scott,
cujo protagonista também é um policial, mas numa Los Angeles de
2019.
A respeito do seu contato com a literatura cyberpunk, Fausto
Fawcett afirma que “independente do noticiário sobre William Gibson,
eu acho que comecei a pensar nisso com Philip K. Dick. Aí, enfim,
tem Blade Runner”3. Mais adiante, ele afirma que “tinha essa coisa
de tecnologia que começou com Philip K. Dick – aí tem Blade Runner,
que foi quando comecei a me interessar –, mas, na verdade, eu gostava do Videodrome, do Cronenberg”4. Apesar de não ser citado pelos
críticos brasileiros, o filme de Cronenberg também é fundamental
para a formação da ficção cyberpunk, pois “even more central to the
cyberpunk ethos, however, are the films of David Cronenberg, whose
Videodrome (1982) in particular is a central cyberpunk document in
its emphasis on bodily metamorphosis, media overload and destructive
sex”5 (CLUTE; NICHOLLS, 1995: 288).
Enfim, podemos afirmar que Sirkis e Fawcett não dialogaram
diretamente com o movimento cyberpunk, mas com os precursores
do movimento, principalmente os precursores cinematográficos. Na
verdade, Pereira nota como a cultura de massa norte-americana foi
responsável pelo renascimento da ficção científica brasileira na década de 1980, período onde identificamos as primeiras obras
cyberpunks brasileira:
A marcante presença da cultura de massa norte-americana no
Brasil responde em grande parte pelo boom da ficção científica
neste momento, com sua enxurrada de séries de televisão,
histórias em quadrinhos e principalmente superproduções
cinematográficas, os blockbusters. Superproduções
hollywoodianas como Contatos Imediatos de Terceiro Grau
(Close encounters of the third kind, Steven Spielberg, 1977);
Jornada nas Estrelas (Star Treck: The Motion Picture, Robert
Wise, 1979); ET, o Extraterrestre (ET, Steven Spielberg, 1982);
Blade Runner (Ridley Scott, 1982) e a primeira trilogia Guerra
nas Estrelas (Star Wars, George Lucas, 1977, 1980 e 1983) (2005:
46).
2
A paródia-homenagem deste título
originou “Andróides orgânicos terão
cabelos no peito”, de E. R. Corrêa,
conto cyberpunk da antologia Vinte
anos no hiperespaço (2003), cujo
estilo lembra amenamente o de
Fawcett, principalmente devido às
referências à cultura de massa e à
descrição do ambiente. Similar aos
escritores cyberpunk norte-americanos, os brasileiros também destacam
a obra de Philip K. Dick como
referencial. Enfim, como afirma
Manfredi, “não é a toa que os
cyberpunks incluem Philip K. Dick
na seleta lista de autores que se salvam da espinafração generalizada
que dirigem à FC tradicional” (1991:
22).
3
Em entrevista concedida pessoalmente ao autor.
4
Em entrevista concedida pessoalmente ao autor. Esta fascinação de
Fawcett por Cronenberg é notada
tanto na capa do livro Santa Clara
Poltergeist, que remete ao cartaz de
Videodrome (como confirmado pelo
escritor em entrevista), quanto na
capa do seu primeiro álbum musical, Fausto Fawcett e os robôs
efêmeros (1987), onde encontramos
um recorte do cartaz de Scanners
(1981), outro filme de Cronenberg.
Na verdade, esta fascinação ilustra
a relação do escritor com um gênero-irmão do cyberpunk: o
splatterpunk (AMARAL, 2005).
5
Tradução livre: “Ainda mais central para o ethos cyberpunk, contudo, são os filmes de David
Cronenberg, cujo Videodrome
(1982) em particular é um documento cyberpunk central em sua
ênfase nas metaformoses corporais,
na sobrecarga midiática e no sexo
destrutivo.”
Neste período também surgiram filmes de ficção científica que,
ao contrário dos citados por Pereira (obviamente, com exceção de
R G L, n. 4, fev. 2007.
121
6
Na verdade, divergências também
ocorrem entre escritores de mesma
nacionalidade, pois, para usarmos os
termos de Bhabha (2003), a nação é
um espaço pedagógico onde convivem culturas performáticas. Porém,
tais divergências não são evidentes
como aquelas notadas entre escritores de nacionalidades diferentes.
Blade Runner), se aproximam da temática cyberpunk: Rollerball –
Os Gladiadores do Futuro (Rollerball, Norman Jewison, 1975), Fuga
de Nova Iorque (Escape from New York, John Carpenter, 1982), Tron
– Uma Odisséia Eletrônica (Tron, Steven Lisberger, 1982), além dos
referidos anteriormente.
Apesar de pertenceram à cultura de massa norte-americana, tais
filmes formam aquilo que Ortiz (2000) denominou “memória internacional-popular”. Para ele, “afirmar a existência de uma memória
internacional-popular é reconhecer que no interior da sociedade de
consumo são forjadas referências culturais mundializadas” (ORTIZ,
2000: 126). Entretanto, tais “referências culturais mundializadas” são
assimiladas diferentemente, como nota o próprio Ortiz ao analisar o
faroeste italiano. Assim, o fato de escritores de nacionalidades diferentes (norte-americana e brasileira, no nosso caso) indicarem os
mesmos precursores, mas produzirem obras peculiares, serve como
exemplo da seguinte noção que norteia os estudos literários comparativos: “A idéia de influência em si deve ser relacionada diretamente com a situação geral do país receptor” (MACHADO; PAGEAUX,
1981: 83). Ou seja, apesar de, por exemplo, William Gibson e Fausto
Fawcett indicarem o filme Blade Runner como inspiração, suas respostas são diferentes, pois vivem situações culturais, sociais e econômicas diferentes6.
Mas retornemos ao texto de Alexandre e Fernandes para destacar outro trecho, no qual comenta-se a respeito do segundo romance
de Sterling, The Artificial Kid (1980):
Imaginem um mundo chamado Reverie (que, em inglês, muito
sugestivamente, significa devaneio), onde as pessoas alcançam
tranqüilamente a idade de duzentos anos e os jovens, para não se
sentirem esmagados pelo peso enorme da experiência das
gerações mais antigas, se entregam de corpo e alma à arte do
combate, que mistura o código de honra samurai à técnica
cibernética e ao fetichismo yuppie; não uma laranja mecânica,
mas eletrônica. Esse livro de Sterling poderia ser chamado de
“Guia Básico para o Leitor Cyberpunk”. Nele encontram-se
praticamente todos os tópicos que depois seriam explorados por
ele próprio e pelos integrantes do Movimento. (ALEXANDRE;
FERNANDES apud STERLING, 1990: 369; grifo nosso)
Não por acaso, Alexandre e Fernandes apresentam o romance
de Sterling como uma possível releitura de Laranja Mecânica (1962),
de Anthony Burgess. No prefácio da terceira edição brasileira da obra
de Burgess, o próprio Fernandes explica esta relação entre Laranja
Mecânica e o movimento cyberpunk:
LONDERO, R. R. p. 119-134.
122
7
Em entrevista concedida pessoalmente ao autor.
Se o mundo globalizado e tecnológico – mas ainda pobre – que
Burgess nos deixa entrever nas páginas de seu livro mais famoso
lembra o Sprawl e a Ponte, os cenários mais famosos da literatura
cyberpunk de William Gibson, não é por acaso. Os escritores
cyberpunks devem muito de suas temáticas a Laranja Mecânica
– a comparação entre a alta tecnologia das classes mais
favorecidas e a dura e suja realidade dos prédios onde a classe
operária se amontoa; a opressão do Estado; o uso de drogas,
tanto para diversão e fuga da realidade quanto para lavagem
cerebral (2004: xiv).
8
Tradução livre: “[...] é uma história cyberpunk precoce sobre um
anti-herói num futuro dominado pela
mídia.”
Aqui confirmamos novamente que alguns escritores brasileiros
não dialogaram diretamente com o movimento cyberpunk, mas com
os precursores do movimento, pois Fawcett, por exemplo, indica
Laranja Mecânica como “o livro da minha vida”7. Na verdade, na
música “Chinesa Videomaker”, do álbum Fausto Fawcett e os robôs
efêmeros (1987), ele e Laufer homenagearam a obra de Burgess ao
reinterpretar a “Técnica Ludovico”, exatamente nos seguintes versos:
Meia-noite e quarenta ela coloca o rapaz no centro
de um telão de 360º com os olhos esbugalhados por
grampos especiais
Meia-noite e quarenta e cinco ela liga o telão
e os olhos do rapaz começam a ser massacrados por
incessantes imagens de telejornais
Meia-noite e cinqüenta, ela começa a chupar o rapaz
Ela chupa um rapaz massacrado por telejornais
Ela chupa, ela chupa
É interessante notar nesta reinterpretarão a mudança de postura
diante dos meios de comunicação: enquanto na década de 1960
Burgess via os meios de comunicação como fonte de coerção, na
década de 1980 Fawcett e Laufer os vêem como fonte excessiva de
informação, além do forte apelo sedutor.
Enfim, outra característica do universo de The Artificial Kid,
não mencionada por Alexandre e Fernandes, é a presença marcante
da tecnologia midiática. Como nota Gunn, o romance de Sterling “[...]
is an early cyberpunk tale about an antihero in a media-dominated
future”8 (1988: 117). Neste ponto, The Artificial Kid aproxima-se de
Santa Clara Poltergeist, onde também identificamos uma paisagem
de mídia (TAVARES, 1992), mas isto se deve, como ressaltamos anteriormente, aos precursores em comum de Sterling e Fawcett.
Também identificamos no texto incluso na primeira edição brasileira de Piratas de Dados os prenúncios de uma idéia que Fernandes
R G L, n. 4, fev. 2007.
123
exploraria 14 anos depois em sua dissertação de mestrado: a ficção
cyberpunk como atualização do conceito mcluhaniano de aldeia global. De fato, o termo “aldeia global” é citado duas vezes no texto.
Para Fernandes,
Gibson exerce uma função profética bastante semelhante à de
McLuhan ao criar o conceito de aldeia global em Understanding
Media. E, entre os escritores de ficção científica, é ele quem
parece ter compreendido melhor o que McLuhan quis dizer,
criando em Neuromancer um mundo praticamente todo
interconectado, onde as minorias têm vez e voz (a um ponto tal
que coloca talvez até mesmo em discussão a definição de
minorias) e as casas dessa aldeia são regidas acima de tudo pelo
paradigma da variedade. Ninguém é igual a ninguém, ou por
outra: em termos de posse e utilização de tecnologias, uns são
mais iguais que outros (2004: 24; grifos do autor).
Como vimos anteriormente, Neuromancer é o alicerce da ficção
cyberpunk. O conceito de aldeia global também transparece em sua
narrativa através da movimentação rápida e constante do protagonista Case pelas cidades do mundo: de Tóquio para o BAMA, do BAMA
para Istambul, de Istambul para a colônia espacial Freeside. Esta
movimentação não se desenvolve nas ficções cyberpunks brasileiras:
as narrativas ocorrem, freqüentemente, apenas em cidades brasileiras, como as megalópoles São Paulo e Rio de Janeiro. Assim, a ficção cyberpunk brasileira atualiza, na verdade, a reinterpretarão do
conceito mcluhaniano feita por Lemos: “Com a contração do planeta
pelos novos media digitais, transformamo-nos não numa única aldeia global, mas em várias e idiossincráticas aldeias globais, devido
principalmente à implosão do mundo ocidental pelo efeito das
tecnologias micro-eletrônicas” (2002: 76; grifo do autor). Ou seja,
cada megalópole é uma aldeia global, pois nela convivem várias culturas nacionais. Esta noção evidencia-se na descrição de Copacabana
feita por Fawcett no conto “Copacabana Hong Kong”, da coletânea
Básico instinto (1992):
Toda quinta-feira chegam na praia do Lido embarcações
escoltadas por surfistas militares. É o boat-people internacional.
O primeiro-mundo resolveu expulsar, jogar nos oceanos centenas
de imigrantes delinqüentes: espanhóis-sarracenos, iugoslavoscroatas, iranianos-persas, iraquianos-assírios, fenícios-libaneses,
turcos-otomanos, chineses-mulçumanos, asiáticos em geral.
Proliferação de submundos. (1992: 36).
Enfim, para o Coletivo NTC, “como o planeta tornou-se emi-
LONDERO, R. R. p. 119-134.
124
nentemente urbano, hoje são as cidades que se organizam como nações. No interior delas algumas etnias aglutinam-se de acordo com a
origem de seus membros” (1996: 191-192).
Após discutir alguns pontos do texto de Alexandre e Fernandes,
analisaremos agora duas resenhas brasileiras do romance de Sterling:
“Cyberpunk – integração de contradições” (1992), de Roberto Causo, e “Dupla cyberpunk” (1995), de Finísia Fideli. Primeiramente,
destacamos o seguinte comentário de Causo a respeito do movimento cyberpunk: “Mas o movimento já está extinto e sua influência exata ainda não foi medida, embora pareça ter tido o mesmo destino do
movimento anterior, a New Wave dos anos sessenta: foi assimilado
pela ficção científica como mais um conjunto de possibilidades, entre tantos outros” (1992: 20; grifo nosso). Este comentário nos ajuda
a compreender a produção nacional, pois o cyberpunk é explorado
pelos escritores brasileiros como um “conjunto de possibilidades”,
ou seja, sem compromisso com as “regras” do gênero. Isto se deve
em grande parte, como veremos adiante, à chegada tardia do gênero
no país, já extinto e com temas desgastados.
Em Piratas de Dados, a descrição de países do “terceiro mundo” é um ponto destacado pelos críticos brasileiros, porém Causo é o
único a formular a seguinte conclusão:
Este é um livro importante. Não só por ter vencido o John W.
Campbell Memorial Award de 1989 e ter sido finalista do Hugo
e Nebula, mas também por excursionar pela fantástica terra,
sempre esquecida pela ficção científica, das nações marginais e
afastadas do idílio tecnicista da FC. E por mostrar a nós, escritores
e leitores do Brasil, país do Terceiro Mundo, que nossa ficção
científica pode alcançar resultados tão interessantes se
explorarmos nossa própria realidade na interface com as nações
desenvolvidas. (CAUSO, 1992: 22-23)
Na verdade, no caso específico da ficção cyberpunk, o Brasil
parece ser o espaço ideal para caracterizar as desigualdades sociais,
econômicas e tecnológicas descritas pelo gênero. De fato, como notam Alexandre e Fernandes no texto que analisamos anteriormente,
“há dezenas de citações ao Brasil nos livros cyberpunks e Bruce
Sterling, o principal articulador e ideólogo do movimento, já afirmou
que adora assistir à tevê brasileira por meio de sua antena parabólica” (apud STERLING, 1990: 366). Num artigo sobre Santa Clara
Poltergeist, Lemos (1993) afirma que
R G L, n. 4, fev. 2007.
125
9
Em entrevista concedida pessoalmente ao autor.
o Brasil encarna bem as transfigurações por que passa a nossa
sociedade contemporânea e a fórmula “informática mais
candomblé” é um bom retrato do país. A diversidade e a
pluralidade cultural, a crise política e econômica, o convívio entre
bolsões de riqueza e de pobreza, de desenvolvimento tecnológico
e de carência básica, só para citar alguns exemplos, nos coloca
diante dessa “transfiguração”.
Por “transfiguração”, Lemos refere-se aos acontecimentos que
originaram a sociedade pós-moderna. Assim, por ser a “expressão
literária paradigmática” (KELLNER, 2001: 381) da pós-modernidade,
a ficção cyberpunk é mais bem representada por espaços que denotem este paradigma, como o Brasil. Porém, antes de interpretar o país
como um “laboratório da pós-modernidade” (MAFFESOLI apud
LEMOS, 1993), devemos compreender as implicações desta interpretação. A respeito da cultura brasileira na década de 1980, Bueno
afirma o seguinte:
De quebra, e conseqüência de nossa fragilidade cultural, ainda
tentaram desmontar a cena introduzindo o figurino ‘pósmoderno’, ou seja: o Brasil, que nunca foi de fato moderno, faria
seus o impasse e o esgotamento dos países industriais avançados,
fechando assim mais um ciclo de colonização nos trópicos
subdesenvolvidos (1990: 8; grifo nosso).
Não é isto que acontece quando interpretamos o Brasil como
um “laboratório da pós-modernidade”? De fato, o próprio Fawcett
afirma ter “[...] implicância com o termo ‘pós-moderno’. Eu acho
que a gente não saiu do moderno: você só tem crise, crise e crise do
moderno, o tempo todo”9. Talvez, no caso do Brasil, o que ocorra
seja realmente uma crise da modernidade, uma hipomodernidade,
pois as instituições modernas do país são deficientes e, portanto, nunca
se realizam plenamente para que haja um esgotamento, uma pósmodernidade. Até no caso dos países industriais avançados, o termo
“pós-modernidade” parece inválido, pois o que ocorre é uma intensificação da modernidade, uma “hipermodernidade” (LIPOVETSKY,
2004). Na verdade, como afirma Jameson, “[...] o pós-modernismo
deve, claramente, ser entendido em um sentido mais restrito, e de
fato mais exclusivamente estilístico, do que o sentido mais histórico
e sociológico em que, de maneira geral, tem sido usado” (1994: 216).
Será como estilo que nos referiremos ao pós-modernismo mais adiante.
As afirmações anteriores não desconsideram o Brasil como espaço ideal para caracterizar a ficção cyberpunk, apenas confirmam o
LONDERO, R. R. p. 119-134.
126
que dissemos anteriormente, que “as ‘influências’, as repercussões
efetuam-se essencialmente segundo a medida das necessidades do
contexto receptor” (KAISER, 1989: 266-267). Ou seja, se o cyberpunk
norte-americano é a “expressão literária paradigmática” daquilo que
se denominou pós-modernidade, isto não significa que a versão brasileira também o é. Como afirma Causo (s/d), a ficção cyberpunk
brasileira “[...] vai oferecer uma resposta própria de um país que vive
situação diferenciada de desenvolvimento cultural e científico, onde
a modernização ainda esbarra em fatores que remetem aos modelos
de nossa colonização”.
Agora vejamos a resenha de Fideli. Nela, a autora afirma que
Piratas de Dados “[...] já apresenta uma crítica ao movimento
Cyberpunk, como sinal de amadurecimento de seu autor” (FIDELI,
1995: 55). Escrito em 1988, quando o movimento encontrava-se praticamente extinto, o romance de Sterling revisa criticamente a temática
cyberpunk. Por surgirem neste período, final da década de 1980, as
obras brasileiras também revisam o movimento, mas ao invés de criticarem seriamente, elas criticam parodiando. Num texto sobre o
movimento no México, Ramírez (2005) cita como epígrafe a seguinte afirmação de Sterling: “Los noventa no van a pertenecer al
cyberpunk. Nosotros vamos a estar ahí trabajando, pero no somos el
movimiento, ya no somos ni siquiera nosotros. Los noventa van a
pertenecer a la generación que está llegando, aquellos que crecieron
en los ochenta”10. Com esta epígrafe, além de reverenciar o principal
doutrinador do gênero, o autor mexicano apropria-se da afirmação
para produzir uma interpretação própria, qual seja: o cyberpunk na
década de 1990 é uma releitura do cyberpunk original, norte-americano, realizada pelas demais culturas nacionais11.
Diferentemente do texto incluso na primeira edição brasileira
de Piratas de Dados, o posfácio de Neuromancer, assinado por Silvio Alexandre, apresenta nenhuma informação bibliográfica e poucos dados biográficos de William Gibson. Na verdade, o autor dedica-se mais a comentar questões gerais da ficção científica do que
propriamente o romance. Entretanto, tal manobra endossa o projeto
literário de Gibson e do movimento em geral12: “[...] Gibson pensava
antes em criticar e combater deliberadamente aspectos da Ficção Científica que considerava reacionários, fora de moda e entediantes”
(ALEXANDRE apud GIBSON, 1991: 252). Se Gibson e os demais
integrantes do movimento (Bruce Sterling, Lewis Shiner, John Shirley
e Rudy Rucker) criticavam aspectos da ficção científica, é porque
10
Tradução livre: “Os anos noventa
não vão pertencer ao cyberpunk.
Nós vamos estar aí trabalhando, mas
não somos o movimento, já não somos nem sequer nós mesmos. Os
anos noventa vão pertencer à geração que está chegando, aqueles que
cresceram nos anos oitenta.”
11
Entretanto, devemos afirmar que
a própria produção norte-americana,
a partir da década de 1990, realiza
uma releitura crítica da produção
original: o pós-cyberpunk. Segundo
Amaral (2005), as rupturas do póscyberpunk são: personagens
engajados, ênfase sobre a
biotecnologia e presença de uma
tecnocracia. Exemplos de ficção
pós-cyberpunk são os filmes Código 46 (2004), do diretor Michael
Winterbottom, e Aeon Flux (2005),
da diretora Karyn Kusama.
12
As linhas gerais deste projeto foram formuladas inicialmente num
fanzine comandado por Sterling.
Segundo Alexandre e Fernandes,
“nos meados da década de 80,
Sterling lançou um jornalzinho chamado Cheap Truth, sob o pseudônimo de Vicent Omniaveritas, e usou
esse espaço para descarregar todo
seu descontentamento com a FC que
se produzia na época e que, para ele,
parecia incapaz de evoluir com as
cada vez maiores e mais rápidas
mudanças na tecnologia e na sociedade” (apud STERLING, 1990:
366).
R G L, n. 4, fev. 2007.
127
13
Expressão inglesa que significa
“domínio do fã”; freqüentemente
denomina a comunidade de aficionados pela ficção científica.
eles dialogavam com a tradição literária do gênero, inclusive e principalmente com a tradição norte-americana. Para Sterling (1988), os
escritores cyberpunks foram provavelmente a primeira geração que
cresceu no “seio da tradição literária da ficção científica”. Tal situação não se verifica entre os escritores cyberpunks brasileiros – exceto
talvez entre aqueles que pertençam ao fandom13, como Bráulio Tavares
e Fábio Fernandes –, pois, apesar de conhecerem (e, mesmo assim,
minimamente) a tradição literária da ficção científica estrangeira, eles
desconhecem a “tradição” brasileira. Segundo Causo, “o que se lamenta em toda história da ficção científica brasileira é a ausência de
uma evolução formal e temática que nos permitisse ter uma ficção
científica madura, capaz de contribuir para as letras nacionais como
um todo” (1993: 14). É justamente a falta de diálogo com a “tradição” brasileira que resulta nesta “ausência de uma evolução formal e
temática” e, conseqüentemente, produz obras dependentes. De acordo com Candido,
Um estágio fundamental na superação da dependência é a
capacidade de produzir obras de primeira ordem, influenciada,
não por modelos estrangeiros imediatos, mas por exemplos
nacionais anteriores. Isto significaria o estabelecimento do que
se poderia chamar um pouco mecanicamente de causalidade
interna, que torna inclusive mais fecundos os empréstimos
tomados às outras culturas (1989: 153).
Discutido alguns pontos do texto de Alexandre, vejamos agora
três resenhas brasileiras do romance de Gibson: “De como William
Gibson reinventou a FC” (1991), de Lúcio Manfredi, e “Cyberpunk
– integração de contradições” (1992) e “Dupla cyberpunk” (1995),
de Roberto Causo. Primeiramente, apesar dessa comparação ser
percebível no próprio nome do movimento, Manfredi é o único a
proferi-la: para ele, Neuromancer é
[...] um vórtice de acontecimentos ininterruptos, narrados numa
linguagem feroz que não é de modo algum despropositado
comparar com as jaculatórias punks da década de 70, onde o
niilismo aparente esconde muito mal as preocupações éticas,
políticas e filosóficas subjacentes. Neuromancer é o London
Calling da FC. Ou será London Calling o Neuromancer da música
pop? (MANFREDI, 1991: 22)
London Calling é o grande sucesso da banda punk inglesa The
Clash. Entretanto, o sufixo punk do termo cyberpunk também se refere ao “[...] lado da contracultura, do protesto, do não-controle, do
LONDERO, R. R. p. 119-134.
128
underground, da atitude dos hackers, da experiência empírica das
tribos urbanas ligadas à tecnologia” (AMARAL, 2005: 93), enfim, a
uma cultura de resistência.
Como Gibson14, Fawcett também utiliza estilos musicais, o rap15
e o funk, para narrar Santa Clara Poltergeist, por exemplo. Talvez
cyberfunk seja um termo adequado para denominar as obras brasileiras, pois, como o punk nos países anglófonos, o funk também representa, no Brasil, uma cultura resistente à cultura oficial ou dominante
(YÚDICE, 2004). Porém, a denominação cyberfunk, por ser mais
adequada aos romances e contos de Fawcett, pode excluir os demais
romances cyberpunks brasileiros16.
Agora vejamos as resenhas de Causo. Em “Cyberpunk –
integração de contradições”, o autor afirma que “o resultado artístico
de Neuromancer é forte, inovador, visionário e rico em implicações.
Também como fusão de uma estética pós-moderna com a imagética
da FC, o resultado é impressionante — o que reforça a crença de que
a junção da ficção literária à ficção científica pode dar um bom casamento”17 (CAUSO, 1992: 26; grifo nosso). Entretanto, tal fusão ocorre
apenas parcialmente, pois
Neuromancer é tradicional quando dá atenção ao argumento, à
personagem e à narrativa (não é metaficção), mas é pós-moderno
no modo como combina e implode os gêneros, misturando ficção
científica com história de detetive, roman noir com aventura hightech e western (a principal personagem, Case, é descrita como
caubói de computador), trama de negócios, mito e fantasia
(KELLNER, 2001: 388).
Em “Dupla cyberpunk”, Causo afirma que a literatura pós-moderna é “[...] conhecida por não enfatizar as características mais valorizadas pela literatura tradicional, como profundidade psicológica,
leveza de estilo e elegância narrativa” (1995: 54). Certamente, Gibson,
em Neuromancer, não valoriza a “leveza de estilo”, porém há preocupações com a “profundidade psicológica” das personagens, principalmente nos questionamentos existenciais de Case, e com a “elegância narrativa”, principalmente no modo como os capítulos são
arranjados. Assim, Neuromancer não é totalmente pós-modernista,
enquanto algumas obras brasileiras são. No prefácio de Piritas siderais, por exemplo, Kujawski afirma que o “esteticismo exacerbado
da conduta narrativa” de sua obra acaba “[...] supervalorizando o estilo em função do mote da história e transformando a linguagem em
protagonista” (1994: 13). Isto também é válido para Santa Clara
14
Segundo o autor de Neuromancer,
“o problema com perguntas sobre as
‘influências’ é que elas são usualmente feitas para encorajar você a
falar sobre os seus escritos como se
você tivesse crescido em um mundo
circunscrito por livros. Eu fui influenciado por Lou Reed, por exemplo,
tanto quanto fui influenciado por
qualquer escritor de ‘ficção’” (apud
AMARAL, 2005: 112). Lou Reed
foi vocalista e guitarrista da banda
punk norte-americana Velvet
Underground.
15
No romance-diário Copacabana
lua cheia, já no segundo parágrafo,
Fawcett afirma que “não adianta,
meu pensamento é nervoso rap de
groove” (2001: 8), talvez como justificativa do seu estilo peculiar.
16
Causo (s/d) propõe o termo
tupinipunk, também usado pela teórica norte-americana Elizabeth
Ginway (2005). Entretanto, a denominação é infeliz, pois retira do termo original justamente o prefixo
(cyber) que se refere ao universo
tecnológico contemporâneo, tema de
convergência dos romances
cyberpunks brasileiros. A denominação também mantém o sufixo do termo original (punk) que se refere a
um movimento musical e cultural de
pouca relevância no cenário brasileiro. Por fim, ao referir-se aos
tupiniquins, Causo retorna (e reforça) à ideologia romântico-nacionalista que se verifica no projeto literário de apenas um escritor
cyberpunk brasileiro: Ivan Carlos
Regina, mais notadamente em “O
caipora caipira”, conto da coletânea
O fruto maduro da civilização
(1993). Como afirma Lucas, “[...]
toda vez que a literatura brasileira
envereda pelo caminho da auto-afirmação, procura nos resíduos
indianistas do nosso nativismo a fonte mais próxima” (1976: 23). Enfim,
como cyberfunk, a denominação
tupinipunk pode excluir os demais
romances cyberpunks brasileiros.
17
Este casamento entre ficção literária e ficção científica já era esperado por Fausto Cunha há 20 anos
atrás. Em “Uma ficção chamada ciência”, o autor afirma que o “retorno ao literário” é o único meio de
retirar a ficção científica (segue)...
R G L, n. 4, fev. 2007.
129
...(continuação)“[...]do
marginalismo cultural a que se lançou com a noção ingênua da ciência
como forma e como filosofia primeira” (CUNHA, 1972: 28).
Poltergeist, onde a linguagem se sobressai entre personagens superficiais e enredo simples. Enfim, esta valorização da linguagem em
detrimento da narrativa torna as obras de Fawcett e Kujawski verdadeiramente pós-modernistas, pois apenas a valorização da linguagem
não as diferencia das obras modernistas.
Ainda em “Dupla cyberpunk”, Causo conclui a resenha da seguinte maneira:
Depois de Neuromancer, o que era um movimento revolucionário
que pretendia renovar a ficção científica foi incorporado por ela
e hoje são muitas as obras dentro da linha Cyberpunk – que
alcançou tamanha difusão que hoje muitos se referem ao
movimento como uma tendência de comportamento, e não como
um modo de se fazer FC. Filmes e histórias em quadrinhos, e até
mesmo RPGs (Shadowrun, Cyberpunk 2020, GURPS
Cyberpunk...) apareceram para explorar o novo filão. Mas ainda
é preciso voltar a Neuromancer para saber como tudo começou
(1995: 54).
Além de retomar o que havia dito na resenha de Piratas de Dados – a assimilação do cyberpunk pela ficção científica –, Causo também aponta para aquilo que ocasionou a extinção do gênero: a grande difusão. Tal condição revela outra faceta da recepção do gênero na
literatura brasileira. A respeito da ficção cyberpunk estrangeira, Amaral
afirma o seguinte:
No início da década de 90 começaram os anúncios da morte do
cyberpunk enquanto um movimento literário. As temáticas
centrais utilizadas pelo grupo original vão sendo apropriadas e
repetidas à exaustão por diversos outros autores, tornando-se
clichês do subgênero e invadindo jogos de RPG, letras de música,
videoclipes, jogos de computador, programas de TV e muitos
outros meios (2005: 104).
Assim, podemos afirmar que a ficção cyberpunk estrangeira, a
partir da década de 1990, encontra-se automatizada. Segundo Reis,
[...] deve observar-se que a comunicação artística se encontra
automizada, quando as mensagens enunciadas são facilmente
decodificadas, uma vez que os mecanismos de enunciação que
as geram foram assimilados (e mesmo, em certos casos,
trivializados) pela comunidade em que essas mensagens circulam:
perfeitamente automizada é quase sempre a produção e recepção
de certa poesia ultra-romântica, do romance policial ou do
romance cor-de-rosa e (noutros domínios e linguagens) de muitas
telenovelas ou de filmes como os westerns de qualidade inferior.
Por força da habituação, os seus receptores conhecem
perfeitamente os mecanismos de funcionamento de tais
mensagens, afetadas por um índice elevado de redundância.
LONDERO, R. R. p. 119-134.
130
Porque não inovam nem surpreendem, elas tendem a cultivar o
estereótipo [...] (2001: 157; grifos do autor).
Entretanto, não podemos utilizar tais dados como critérios
valorativos sem criar fatalmente uma estética cibernética, onde o belo
ocorre quando há mais informação do que redundância. Devemos
encarar a automatização como um fato literário. Assim, quando Reis
afirma que “a automização pode, contudo, ser superada, quando um
romancista, um poeta ou um cineasta subvertem a rotina, recorrendo
a signos e códigos inovadores ou derrogando os que se encontram
rotineiramente estabelecidos [...]” (2001: 158; grifos do autor), na
verdade, devemos entender que a automatização pode ser
reaproveitada, e não superada. De fato, interpretar a produção artística automatizada como repertório e não como obstáculo a ser superado é compreender a arte pós-modernista, que utiliza os gêneros
automatizados – quase sempre, gêneros da cultura de massa (romance policial, de aventuras, de ficção científica, etc) – na composição
da obra.
Porém, retornando ao debate da ficção cyberpunk, podemos afirmar que, devido ao desgaste dos temas originais, ou seja, a
automatização da produção estrangeira, os romances brasileiros, quase
todos produzidos no início da década de 1990, apresentam, além de
temas próprios condizentes à realidade do país, paródias dos temas
originais. Segundo Kellner, “[...] o processo de criação/disseminação/assimilação do cyberpunk foi tão rápido que a paródia e o pastiche
já se tornaram táticas costumeiras de criação narrativa” (2001: 417).
Assim, a produção norte-americana, automatizada, é reaproveitada
pela produção brasileira como repertório de criação artística.
Considerações finais
Ao longo do artigo, indicamos aspectos da ficção cyberpunk
valorizados pela crítica brasileira e mostramos como são desenvolvidos pelo artista brasileiro. Para enriquecer o trabalho, poderíamos
comentar detalhadamente as resenhas e críticas das obras brasileiras
– como, por exemplo, “Uma FC sem clichês” (1992), resenha de Santa
Clara Poltergeist por Bráulio Tavares, e “Tupinipunk: cyberpunk
brasileiro” (s/d), crítica à ficção cyberpunk brasileira por Roberto
Causo –, mas isto extrapolaria nossos objetivos, pois se trataria de
um estudo de recepção da recepção, ou melhor, de recepção de se-
R G L, n. 4, fev. 2007.
131
gundo grau. A partir do prefácio da nova edição brasileira de
Neuromancer (2003) e das listas de discussão veiculadas na Internet,
também poderíamos analisar a recepção atual do gênero, mas isto
estenderia demasiadamente nosso trabalho.
Mas como o artista brasileiro porta-se diante do imaginário
tecnológico proposto pela ficção cyberpunk? Formulada no início do
artigo, esta pergunta comporta duas respostas, análogas a dois tipos
de intertextualidade abordados por Sant’Anna (1991): estilização e
paródia. Em alguns casos, a produção cyberpunk brasileira desvia
toleravelmente da produção norte-americana, como no uso da linguagem e na descrição de um mundo dominado pela mídia. Em outros casos, há um desvio total, como nas paródias dos temas originais
da ficção cyberpunk. Enfim, a recepção do gênero na literatura brasileira parece revelar-se através de divergências temáticas e convergências estéticas e ideológicas.
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134
REPRESENTAÇÕES DO FEMININO EM THE TURN OF THE SCREW:
A GOVERNANTA COMO ANJO E MONSTRO
Linda Catarina Gualda1
1
Aluna do curso de Mestrado da
Universidade Estadual Paulista –
UNESP – Campus de Assis e professora efetiva de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Ensino
Resumo: Este artigo objetiva apresentar como se constrói a representação
feminina em The Turn of the Screw, tendo como ponto de partida a
governanta. O ideal de mulher apresentado é uma criação masculina e faz
referência a uma construção social que tem a ver com a distinção masculino/feminino, colocando a mulher numa posição de inferioridade e veiculando uma imagem negativa dessa mulher. Estamos interessados nesse estereótipo de mulher que se constrói a partir dos mitos concebidos e se incorpora ao gênero, dando-lhe um caráter de naturalidade. Finalmente, com o
auxílio da linha feminista da crítica literária que se preocupa com a questão
da mulher como consumidora de uma literatura produzida por homens, pretendemos gerar uma reflexão a respeito da identidade de gênero criada e
veiculada sob uma ótica masculina.
Palavras-chave: Representações do feminino, The Turn of the Screw, Crítica feminista.
Abstract: This article intends to present how the feminine representation is
built up in The Turn of the Screw, whose starting point is the governess,
respectively. The feminine ideal set up is a masculine creation and it refers
to a social construction that is related to the distinction between masculine/
feminine, which includes the woman in an inferior position and projects a
negative image of this woman. We are interested in this stereotype of woman
that is built from established myths and is incorporated into gender showing
a character of naturalness. Finally, with the support of the feminist line of
literary criticism which deals with the issue broaching women as consumers
of a literature produced by men, we intend to encourage a reflection about
gender identity created and presented according to a masculine view.
Key Words: Feminine Representations, The Turn of the Screw, Feminist
Criticism.
Considerações Iniciais
O ponto de partida deste artigo nasceu do nosso interesse em
estudar a representação do feminino na obra The Turn of the Screw,
do tão consagrado Henry James. Na novela há a presença de uma
personagem feminina que transgride uma interdição do código moral
no plano da sexualidade, realizando assim uma ruptura que supõe a
subversão de uma determinada ordem. Essa mulher, ao mesmo tempo em que agente, torna-se vítima de suas próprias transgressões. Na
obra temos a personagem diante de sua sexualidade, em circunstâncias conflitivas, que implicam a existência de uma lei que deve ser
respeitada. Há um rompimento da ordem simbólica e a partir do momento em que a governanta perde a noção de limite e o rompe, a
personagem fica louca e mata. Nesse tipo de escrita, loucura e morte
R G L, n. 4, fev. 2007.
135
caminham juntas num discurso psicótico, pleno de delírios, em que
ambas “são situações que beiram o indizível, o inominável, o intangível; situações às quais o discurso pode aludir, mas que jamais poderá definir, emoldurar” (BRANCO, 1991, p. 52).
Devemos considerar que estamos diante de um texto de autoria
masculina e que por isso merece atenção especial. The Turn of the
Screw possui o tom da autoridade, da racionalidade e da legitimidade. A linguagem masculina é tida como a autoritária, a racional e
bastante apropriada para suas plataformas públicas. É um discurso
que traz arraigado em si o efeito da autoconfiança, do ajuste exato,
da razão acima de tudo e principalmente da eficácia; é centrado nos
significados fixos, transmite uma sensação de firmeza, de direção, de
organização e suas autoridades física e intelectual garantem maior
prestígio e aceitabilidade. Nesse sentido, The Turn of the Screw é um
produto do discurso falocêntrico, o qual enxerga a mulher a partir de
uma cultura patriarcal impregnada de valores que só a desmerecem.
Ao longo deste trabalho, vamos mostrar que a mulher está sujeita a um sistema moral, de que ela participa de forma passiva, na medida em que é repetidora de um discurso do qual não é sujeito. Esse
discurso exterior coloca a questão da sexualidade feminina, em uma
sociedade patriarcal em que a mulher não ocupa um lugar privilegiado, como algo descontrolado e perigoso. Sabendo-se que é por meio
da linguagem que se instaura toda forma de poder, procuramos destacar na narrativa algumas formas de discursos mistificadores de que
nossa personagem é vítima. Vale ressaltar que a problemática da sexualidade entra em nosso trabalho como um modelo inicial de dominação e está profundamente relacionada a outros elementos do contexto social.
Isso posto, acreditamos que a governanta fora construída a partir da idéia do duplo e, justamente pela necessidade em explicar o
porquê e como isso ocorre, decidimos estudá-la à luz da teoria da
primeira fase da crítica feminista que se preocupa em “desmascarar a
misoginia da prática literária – as imagens estereotipadas da mulher
como anjo ou monstro, o abuso literário da mulher na tradição masculina e a exclusão da mulher escritora das histórias literárias e dos
cânones acadêmicos” (FUNCK, 1999, p. 18). A teoria é clara – imagens estereotipadas da mulher como anjo ou monstro – e também é
capaz de criar condições para que uma análise nesses moldes se efetive, haja vista que graças à ela temos a percepção de uma leitura
desmistificada, “propiciando o desvelamento da ideologia patriarcal,
GUALDA, L.C. p. 135-153.
136
embutida na construção das personagens e no desenrolar da própria
trama” (XAVIER, 1999, p. 18).
Entretanto, mostraremos que a preceptora é engendrada a partir
de uma idéia concomitante de anjo e monstro, carregando dentro de
si as duas faces da mulher, as duas motivações do ser humano – a do
Bem e do Mal, a da Virtude e do Pecado. Para nós não há um processo de exclusão e sim de conciliamento. Ao longo de nosso estudo,
percebemos que não é possível encarar a governanta como simplesmente anjo ou demônio. Em The Turn of the Screw, as dicotomias
santa/louca, Maria/Lilith não valem se os pares santa/Maria e louca/
Lilith forem encarados separadamente, mas se, ao contrário, forem
vistos como complementares, como lados de uma mesma moeda formando, assim, a completude do ser.
O duplo da preceptora
Em The Turn of the Screw a governanta é uma típica personagem vitoriana: atua como anjo do lar e é uma mulher dócil, contida e
assexuada, em outras palavras, pura, sem mácula. Entretanto, a paixão inexplicável e ao mesmo tempo sobrenatural se constitui num
elemento antivitoriano, já que a sexualidade feminina, nessa época, é
um dado oculto. Percebe-se que a moral vitoriana estrangula na sexualidade a relativa autonomia econômica e social conquistada. Entretanto, a governanta não é uma personagem emblematicamente
vitoriana, justamente ao optar por transcender a ordem estabelecida,
por romper as amarras morais que a tolhiam.
Como preceptora, ela exerce uma função pública no espaço privado, “podendo, através do seu saber, provocar mudanças de comportamento para a própria mulher, assim como ameaçar, pela sua função, o domínio público” (MONTEIRO, 2000, p. 10). Por não possuir
nome, o que interessa é a sua função na narrativa e, assim, a governanta
de The Turn of the Screw é uma figura representativa da preceptora
inglesa do século XIX. Isso posto, com o intuito de compreender
como se engendra a questão do duplo na protagonista, propomos agora
uma recuperação da trajetória desse tipo de empregada na sociedade
vitoriana.
O termo preceptora foi usado por muito tempo para classificar
três tipos de funções desempenhadas pela mulher: aquela que trabalhava numa escola, aquela que se deslocava até a residência do patrão para lecionar e, por último, aquela que morava na casa do patrão,
dando aula para os filhos e fazendo lhes companhia. Sua principal
R G L, n. 4, fev. 2007.
137
função era dar às crianças que cuidava uma orientação moral e social
e, por trabalhar num ambiente refinado, de classe média, era necessário que fosse uma substituta da mãe, alguém com boa educação, a
fim de perpetuar os valores vitorianos – geralmente filha de pároco
(como em The Turn of the Screw) ou de um parente (MONTEIRO,
2000, p. 12-3).
Entretanto, ao exercer por dinheiro funções da mulher doméstica,
ela obscurece a distinção que depende a noção de gender. Vê-se,
assim, que a presença da preceptora gera conflitos entre as
dimensões sexual e moral da mulher. (...) No entanto, ela,
paradoxalmente, representava uma ameaça a estes mesmos
valores, dentre outros motivos, por sua própria posição social
indefinida (MONTEIRO, 2000, p. 13).
Nesse sentido, por ser deslocada socialmente, sem face definida, “não encontrava nos diferentes estamentos da sociedade vitoriana
um espelho que a identificasse. Presente e ausente ao mesmo tempo,
qual sombra sem corpo, é desejada, temida e negada” (MONTEIRO,
2000, p. 10). Por isso, é comum associar a preceptora à prostituta ou
à louca, negando sua inserção no espaço da feminilidade, único reservado à mulher na Inglaterra vitoriana. Rotular a mulher nesses
termos significa excluí-la, anulando-a como Outro aquela que não
consegue se encaixar em posição alguma. “Dessa forma, a mulher é
“louca” ou “prostituta” porque é diferente. E é diferente, também,
porque vende o seu serviço” (MONTEIRO, 2000, p. 15). Por esse
motivo, percebemos ao longo da narrativa o grande esforço que a
governanta faz para aprender a governar a si própria, negando seu
desejo de falar, de manifestar seus reais sentimentos e desejos e, por
fim, sufocando sua identidade.
A questão da perda da identidade pode ser explicada historicamente. As preceptoras eram mulheres submissas, desprotegidas,
empobrecidas e com educação primorosa – prendadas nas artes, falantes de vários idiomas e com formação religiosa – , geralmente
sustentadas pelo pai ou marido; com a morte destes, ela precisava
recorrer ao trabalho para o seu sustento, escolhendo a profissão de
preceptora por ser a mais compatível com o seu status social. Contudo, no trabalho ela ficava numa posição delicada: não estava no mesmo nível dos patrões, mas era muito superior aos demais empregados
para tê-los como amigos. Por precisar se sustentar, essas mulheres se
viam de repente como pessoas desclassificadas, sem um lugar exato
em seu ambiente de trabalho.
GUALDA, L.C. p. 135-153.
138
Desde o início do romance, a jovem se caracteriza por seu relacionamento agradável com as demais pessoas da casa, mas, apesar
de parecer à primeira vista um ser estático, por meio de seus pensamentos e passeios noturnos que percebemos estar diante de uma
mulher inquieta. Essa mobilidade meio desajeitada a princípio tem
um traço e um objetivo específico: o primeiro está relacionado ao seu
temperamento perturbado, fadado ao devaneio, e o segundo diz respeito a sua necessidade em encontrar algo negativo na mansão, já
que acredita haver um mistério no ar. Sua representação é de uma
mulher excessivamente cautelosa que fantasia um mundo povoado
de seres malignos que querem corromper as crianças que cuida.
Fica fácil perceber que essas idealizações são de natureza erótica e denunciam sua insatisfação com a mesmice de seu cotidiano.
Segundo Freud (1976, p. 104), somente a pessoa insatisfeita fantasia,
não as felizes. Para ele, “as forças motivadoras das fantasias são os
desejos insatisfeitos, e toda fantasia é a realização de um desejo, uma
correção da realidade insatisfatória”. Isso equivale dizer que sua inclinação a fantasiar pode ser fruto de um instinto sexual reprimido e
não convenientemente sublimado, conforme as exigências do código
social. Uma de suas múltiplas tentativas de sublimação está no refúgio de suas solitárias caminhadas em volta do lago, desejando estar
sempre na presença de um homem.
Ao assumir a função de preceptora, a governanta de The Turn of
the Screw não está ligada apenas aos instintos maternais, podendo
sentir paixão e desejo. Sua liberdade sexual desperta desejos “não
naturais” e por isso tem que “lidar com um conflito fundamental e
constante na vida do lar: o conflito entre as dimensões sexual e moral
da mulher. Na verdade, para sufocar o desejo do outro, a preceptora
tinha que negar seu próprio desejo”(MONTEIRO, 2000, p. 36). Assim compreende-se porque nossa protagonista ora é tratada pelos críticos como modelo de mulher inofensiva e assexuada num meio maligno cheio de fantasmas e crianças perversas; ora é considerada um
ser marginal e perigoso, “capaz, por força do apelo sexual, de perturbar-se e trazer conturbação para a intimidade do lar, pondo em risco
a frágil estrutura que sustenta a vida privada da burguesia”
(MONTEIRO, 2000, p. 37). Esse modo de ver as coisas serviu para
que associassem o trabalho da preceptora ao processo da loucura ou
da prostituição. Muitos estudos do início do século XIX mostram
que a maioria das mulheres em sanatórios tinham sido preceptoras e
associam esse trágico fim à repressão sexual e à agressão praticada
R G L, n. 4, fev. 2007.
139
1
Em relação a esse assunto a autora
Maria Conceição Monteiro, em
Sombra errante: a preceptora na
narrativa inglesa do século XIX,
Niterói, EdUFF, 2000 nos oferece
no primeiro capítulo um amplo estudo sobre a trajetória histórico-social de uma das profissões mais importantes da Inglaterra vitoriana – a
preceptora.
2
Todas as referências da obra, bem
como as traduções, são extraídas de
JAMES, Henry. The Turn of the
Screw./ A volta do parafuso. Introdução, tradução e notas de Francisco Carlos Lopes. São Paulo:
Landmark, 2004.Alguém apareceria
lá na curva do caminho, ficaria diante de mim, sorridente e aprovador.
Eu não pedia mais que isso – queria
apenas que ele soubesse; e o único
meio de saber que ele sabia seria ver
isso, e o efeito luminoso e agradável disso, no seu belo rosto.
contra a vaidade feminina1.
Portanto, o fato de a protagonista estar sozinha no enorme casarão e de ter se apaixonado pelo patrão, que não a verá nunca mais,
são conseqüências de uma situação incomum e difícil de controlar. A
tentativa de sublimar seu instinto sexual lhe propicia o delírio, a criação para si mesma de situações onde seus desejos possam ser satisfeitos e onde possa se sentir viva e feliz. Não é à toa que o primeiro
vulto que vê é masculino e lhe aparece em cima de uma torre. Essa
aparição merece ser analisada com cuidado. Durante um de seus rotineiros passeios à tarde pelos campos da mansão, num período em
que as crianças estavam dormindo e o qual denominava como “my
very hour”, a governanta deseja, como numa história romântica, se
deparar com alguém, de repente. Vejamos seu devaneio:
Someone would appear there at the turn of a path and would
stand before me and smile and approve. I didn´t ask more that
that – I only asked that he should know; and the only way to be
sure he knew would be to see it, and the kind light of it, in his
handsome face2 (p.33 – grifo nosso).
3
Ele estava lá! – mas num ponto
alto, para além do gramado e bem
no topo da torre. (...) Essa torre era
uma das duas – estruturas
quadradas, incongruentes, ameadas
– que eram definidas, por alguma
razão, como a velha e a nova,
embora eu visse pouca diferença
entre elas.
Pela passagem fica claro que ela não quer encontrar qualquer
pessoa, simplesmente para conversar ou caminhar juntas à toa, mas
“he”, alguém do sexo oposto, que tenha “a handsome face” e a aprove com um sorriso. Isso quer dizer que, numa tarde, devaneando romanticamente, ela imagina que seria emocionante encontrar-se com
a bela figura do tio que a impressionara. É nesse momento que,
miraculosamente, sua fantasia se torna real e surge, num local muito
alto, o homem que povoara seus sonhos.
He did stand there! – but high up, beyond the lawn and at the
very top of the tower. (…) This tower was one of a pair – square,
incongruous, crenelated structures – that were distinguished, for
some reason, though I could see little difference, as the new and
the old3.(p.34 – grifo nosso).
Não é coincidência que a primeira aparição se dê no alto de uma
torre, símbolo do sagrado elevado em direção ao céu. A torre também
simboliza o acordo orgulhoso e tirânico, ao mesmo tempo em que
relaciona confusão, dispersão e catástrofe. Na tradição cristã, a torre
tornou-se símbolo de vigilância e ascensão (CHEVALIER &
GHEERBRANT, 1994, p. 888-9). Nesse sentido, levando em conta a
simbologia do objeto onde Peter Quint aparece, podemos dizer que o
fantasma transmite uma idéia de superioridade, na medida em que
GUALDA, L.C. p. 135-153.
140
assume uma posição privilegiada como garantia de observação constante.
Além disso, estar em pé num objeto fálico vai ao encontro da
necessidade em encontrar alguém do sexo oposto para a satisfação
de um desejo contido. Sendo assim, a torre pode perfeitamente representar o órgão genital masculino, objeto de desejo da governanta.
Como observou Peter Schwenger (1989, p. 106-7), o pênis é uma
temática peculiar do modo masculino de escrever, sendo o “instrument
of the adolescent’s awakening virility, center and symbol of his
manhood to the adult, the penis has enormous importance in the life
of the male and very little in literature.”4 Segundo o autor, o pênis
possui a qualidade de independência do corpo, já que tem movimentos próprios e quando não sublimado inteiramente é representado
apenas como um objeto inserido num contexto erótico geral, como é
o caso de The Turn of the Screw. Por retratar um desejo sexual não
sublimado e com conseqüências trágicas, a obra apresenta, em diversos momentos, um contexto erótico grotesco. Ainda de acordo com
Peter Schwenger (1999, p. 108),
the grotesque implies an underlying terror arising from the sense
that things are out of control. There is a force behind the grotesque
that is inhuman, both stupid and vital at the same time. It is a
force strongly bound up with the physical; it is a force that goes
to extreme. By virtue of its excesses, it deforms proportion and
classical contours. In this respect, it is allied to caricature. But
whereas caricature exaggerates features which express individual
character, the grotesque absorbs individuality entirely into the
inhuman5.
Isso sem falar na descrição do homem visto pela governanta:
he has red hair, very red, close-curling, and a pale face, long in
shape, with straight, good features and little, rather queer whiskers
that are as red as his hair. His eyebrows are, somehow, darker;
they look particularly arched and as if they might move a good
deal. His eyes are sharp, strange – awfully; but I only know clearly
that they’re rather small and very fixed. His mouth’s wide, and
his lips are thin, and except for his little whiskers he´s quite cleanshaven. He gives me a sort of sense of looking like an actor6 (p.
47).
4
Instrumento do despertar da virilidade adolescente, centro e símbolo
da virilidade adulta, o pênis tem uma
importância enorme na vida do homem e muito pouco na literatura.
5
O grotesco implica num terror real
que cresce a partir do senso de que
as coisas estão fora de controle. Há
uma força por trás do grotesco que
é inumana, ao mesmo tempo em que
estúpida e vital. É uma força fortemente ligada ao físico; é uma força
que caminha para o extremo. Através da virtude de seus excessos, ela
deforma os contornos clássicos e
proporcionais. A esse respeito, está
aliada a caricatura. Mas enquanto a
caricatura exagera nas características, as quais expressam a personalidade individual, o grotesco absorve
inteiramente a individualidade o
inumano.
6
Ele tem cabelo ruivo, bem ruivo e
crespo, e um rosto pálido, alongado,
com feições regulares, e suíças
curtas, esquisitas, tão ruivas como
o cabelo. As sobrancelhas são um
pouquinho mais escuras; parecem
particularmente arqueadas, como
que dotadas de boa capacidade de
movimento. Seus olhos são
penetrantes, estranhos – de um
modo medonho; mas só sei com
clareza que eles são pequenos e
muito fixos. A boca é larga, e os
lábios são finos, e, a não ser pelas
suíças curtas, ele é bem barbeado.
Deu-me a impressão de parecer-se
com um ator.
Essa é a descrição física mais detalhada de toda a narrativa e
para quem estava distante e o achou “awfully”, o retrato traçado está
detalhado demais, beirando a satisfação. Note-se que os adjetivos
empregados pela narradora, assim como tudo na obra, são
contrastantes, exprimindo uma forte idéia de ambigüidade, não em
relação ao caráter do personagem Quint, mas naquilo que a governanta
R G L, n. 4, fev. 2007.
141
deita o olhar. Tudo para ela é ambíguo: desde o aspecto da propriedade até o íntimo das personagens e por isso precisa fantasiar para poder existir num meio onde nada a satisfaz realmente. Incapaz de assumir sua condição de felicidade e seus desejos sexuais, ela cria situações para provar que nem a mansão e nem as crianças são tão perfeitas como pareciam.
Contudo, a aparição de Quint, mesmo sendo excitante e
reveladora, não é exatamente o que havia pretendido para si naquele
fim de tarde. Ela admite que aquele homem em pé na torre não era
exatamente a pessoa que deseja e sente algo estranho, um misto de
surpresa e de perplexidade. Ora, não é de se estranhar que uma jovem
tímida (como ela mesma se auto-nomeia), ao passear sozinha ao crepúsculo, afastada da casa, de repente encontre um homem desconhecido num lugar solitário e não tenha medo? Não sinta a menor vontade de gritar ou mesmo de correr? Ao contrário, opta por encará-lo
tentando ver se a figura se tratava de alguém conhecido em Harley
Street. Sua frieza é tanta que pôde vê-lo apoiar as mãos no parapeito,
andar de um lado para outro na torre e em momento algum sentiu um
arrepio sequer, só se preocupou com o fato deste não usar chapéu,
um estranho “sign of familiarity”.
O que ela não sabe é que a visão se tratava de um espectro, mas
a motivação romântica, mesmo por meio do horror que sentirá quando a verdade lhe for revelada por Mrs. Grose, permanecerá – “an
extraordinary man”. O belo homem vestia roupas que visivelmente
não eram deles. “São do patrão!”, dirá, acabrunhada, a criada que
bem o conheceu. A princípio, a governanta o julgou um “intruso intolerável”, mas ele na verdade era alguém da casa. E assim começará a
desesperadora tentativa de proteger as crianças de verem o fantasma
– posteriormente, fantasmas – até que outra descoberta, mais aterrorizadora, se imporá: as crianças sabem e, na verdade, escondem o
que sabem, encontrando-se com os espectros furtivamente. É caso
para enlouquecer e não é de todo implausível que o manuscrito tenha
sido engendrado por uma mulher louca (LOPES, 2004, p. 7).
A partir dessa cena está instaurado o caos na propriedade de
Bly. O objetivo de sua vida, que antes se resumia em cuidar da melhor maneira possível de Flora e Miles, passa agora a ser uma caça a
fantasmas, a fim de expulsá-los da mansão, nem que para isso tenha
de exterminar a todos. A busca pelas realizações de suas fantasias
tem conseqüências trágicas, tornando-a um ser móvel, revestido de
negatividade e de repugnância. Por não encontrar explicações sufici-
GUALDA, L.C. p. 135-153.
142
entemente convincentes a respeito das aparições que diz ver, ela opta
pela destruição de sua condição de mulher superprotetora e passa a
ser aquela que inquire, que ameaça, que força as crianças a confessar
qualquer coisa que a satisfaça.
Exemplo disso é a última cena da obra, que funciona como uma
fusão de loucura e sexualidade. Esse momento da narrativa nos permite entrever, a partir das vibrações dos personagens, dos suores do
garoto, da certeza da aparição do fantasma e da necessidade em livrar o Mal da casa, o gozo contido no movimento em direção à morte. Sem dúvida, o espetáculo da terrível descrição perpassa uma atmosfera erótica, sendo esta propícia a esse ritual fúnebre e gozoso. O
episódio merece ser transcrito na íntegra.
I was so determined to have all my proof that I flashed into ice to
challenge him. ‘Whom do you mean by “he”?’
‘Peter Quint – you devil!’ His face gave again, round the room,
its convulsed supplication. ‘Where?’
They are in my ears still, his supreme surrender of the name and
his tribute to my devotion. ‘What does he matter now, my own?
– what will he ever matter? I have you,’ I launched at the beast,
‘but he has lost you for ever!’ Then, for the demonstration of my
work, ‘There, there!’ I said to Miles.
But he had already jerked straight round, stared, glared again,
and seen but the quiet day. With the stroke of the loss I was so
proud of he uttered the cry of a creature hurled over an abyss,
and the grasp with which I recovered him might have been that
of catching him in his fall. I caught him, yes, I held him – it may
be imagined with what a passion; but at the end of a minute I
began to feel what it truly was that I held. We were alone with
the quiet day, and his little heart, dispossessed, had stopped7 (p.
158-9).
7
Eu estava tão decidida a obter todas as provas que me transformei em
gelo para desafiá-lo. “Quem você
quer dizer com ‘ele’?”
‘Peter Quint – seu demônio!’ Seu
rosto lançou novamente, vagando
pelo quarto, uma convulsiva súplica. “Onde?”
Ainda estão em meus ouvidos sua
rendição suprema ao nome e seu tributo à minha devoção. “Que importa ele agora, meu querido? – que
importância poderá ter de agora em
diante? Eu tenho você”, dirigi-me à
besta na janela, “mas ele perdeu você
para sempre!” Então, como demonstração do meu trabalho, “Lá, lá!”, eu
disse para Miles.
Mas ele já saíra dos meus braços e
vagava ao redor, arregalando os
olhos, olhando com fúria, sem ver
nada além de um dia tranqüilo. Golpeado pela perda de que eu me orgulhava, ele emitiu um grito de uma
criatura arremessada a um abismo, e
o gesto com que o agarrei bem poderia ter sido o de recuperá-lo em
plena queda. Eu recuperei-o, sim,
eu abracei-o – pode-se imaginar com
que paixão; mas ao fim de um minuto comecei a sentir o que na verdade
estava abraçando. Estávamos a sós
com o dia tranqüilo, e seu pequeno
coração, despossuído, deixara de
bater
Nesse trecho, em primeiro lugar, fica nas entrelinhas que se trata de uma daquelas invasões da subjetividade oculta, aquelas inesperadas visitas do Outro, do lado oposto da governanta, seu lado cruel,
maligno, enfim, monstro. Se, como dissemos anteriormente, o ser é
múltiplo e não o podemos apreender por inteiro, a melhor maneira de
investigá-lo e compreendê-lo é atacando por todos os lados e mostrando que o seu lado santa é tão frágil quanto seu lado demônio. Em
segundo lugar, não se pode definir ao certo o porquê do ato absurdo
que encerra o livro e nem arriscar qualquer tipo de explicação, posto
que o intuito do autor é perscrutar o ser humano como um ser ambíguo, ambivalente, impulsionado por forças irracionais, inconscientes
e não mais a personagem romântica anterior às resoluções modernas,
condicionada por uma lógica de cunho aristotélico. Por fim, o romance é de tal modo tão cercado pelo absurdo que nos impossibilita
R G L, n. 4, fev. 2007.
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de tecer avaliações de ordem moral ou psicológica, já que nos leva ao
desvendamento de todo um mundo interior extremamente complexo
e humano, que é o mundo que se situa além da superficialidade dos
seres.
O porquê do ato da governanta é estilhaçado na longa conversa
com o pequeno Miles, em que os desvios elucidativos e a resposta
não dada são os aspectos que mais irritam o leitor. Porém, deve-se ter
em mente que se os seres e os fatos que povoam o romance são misteriosos, o caminho para compreendê-los é igualmente estranho, composto de peças soltas num imenso e emaranhado quebra-cabeça. O
desenvolvimento dessa cena é apenas um dos muitos exemplos da
maneira ardilosa da narradora em conduzir seu relato.
Sabemos apenas que uma série de circunstâncias provoca um
crime que não tem explicação e justamente por isso não pode ser
perdoado. Todavia, ao ficar emocionalmente envolvido, o leitor participa do drama e ao invés de condenar a jovem mulher, sente pena da
governanta, pois percebe que sua loucura está sempre aliada a uma
tentativa de salvação. A insanidade da protagonista é construída ao
longo da trama e a mulher, por sua vez, não tem certeza daquilo que
faz e tampouco do que sabe. Ao final da narrativa, completamente
louca, ela acredita ter feito apenas o bem e sente-se realizada pela
primeira vez em toda história. De uma maneira cruel, o assassinato
não é sua punição, mas o instrumento de sua recompensa.
Isso porque a construção da personagem tem como premissa
que uma mulher solta no mundo, entregue à sua própria sorte, não é
capaz de lidar com situações adversas e nem consegue ser independente num mundo falocêntrico. Sua necessidade em se sentir essencial é endossada pelo fato de não se adaptar a um mundo muito diferente do seu, de não compreender sua responsabilidade de governanta
e nem aceitar sua condição solitária. A ausência de uma figura masculina na casa causa-lhe tanta insegurança que sente necessidade de
se auto-afirmar a qualquer custo. Sua maior ambição é ser reconhecida e, para isso, cobra do garoto um tributo a sua devoção. A necessidade de possuí-lo (I have you!) – e não de salvá-lo, como afirma o
tempo todo – só demonstra sua atitude egoísta e infantil.
Na visão machista do autor, a mulher é tida como uma criatura
frágil, irresponsável, inferior e sem qualquer possibilidade de recuperação para a sociedade, só merecendo a insanidade como companheira. O que se condena na obra é o fato de a governanta ser incapaz
de resolver um conflito que ela mesma cria, optando por fugir de uma
GUALDA, L.C. p. 135-153.
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solução. Ela acaba sendo mais vítima de suas alucinações do que do
real perigo que os fantasmas possam trazer à tona. Nesse sentido,
percebe-se na obra que as personagens femininas – e aqui incluímos
Miss Jessel e Mrs. Grose – vão aparecer, sempre que possível, em
pares que expressam o conflito, as assimetrias do que se deseja colocar em evidência. Há uma imensa necessidade em se mostrar que
mulheres ambivalentes e mesmo contraditórias não podem coexistir
no mesmo espaço. É por esse motivo que a primeira mulher, a que já
morreu e que só vai aparecer como memória, como lembrança na
figura de fantasma, é a presença forte na narrativa, já que está presente em todos os detalhes, sobretudo na propriedade. A casa, reino
da mulher no regime patriarcal, continuará a ser o território demarcado e, mesmo depois de sua morte, continua mostrando a força que
exerce.
O tema da loucura feminina, mito do romance gótico, é tratado
por James num clima de mistério. Entre os dois arquétipos – a santa e
a louca, ou ainda, o anjo e o monstro – em que se divide a consciência do feminino, a governanta se apóia mais na segunda imagem para
construir sua própria trama. Em The Turn of the Screw, a loucura
pode simbolizar muitas coisas: o limite extremo do caminho desviante
escolhido pela mulher, que contratada para educar as crianças, muda
o foco para uma busca sôfrega em libertá-las; o caminho da mulher
fora de seu ambiente, desamparada e só, mas altiva e disposta a sobreviver; a repressão dos desejos sexuais femininos – loucura moral.
Sendo assim, parece que a plenitude da preceptora e, portanto, sua
liberdade e sua sanidade dependem do domínio de seus próprios desejos carnais fortemente reprimidos. O movimento duplo entre a obsessão dos pecados da carne e sua repressão, assim como o tom desesperado que percorre toda a obra, denunciam a carga erótica com
que foi construída.
A percepção de sua insanidade é o limite extremo entre o caminho da mulher desamparada e cruel que precisa expressar seus desejos sexuais reprimidos por uma educação vitoriana. Parece que os
desígnios da razão e do bom senso sobrepujam os apetites sexuais
impossíveis. A persona8 de mãe que adota entra em choque com sua
consciência individual, comprometendo seu equilíbrio psíquico. A
governanta já não é capaz de saber se ama ou odeia as crianças, se
intenciona livrá-las do mal ou bani-las da propriedade que acredita
ostentar. Sua obsessão em fazer o bem a qualquer custo se torna patológica a partir do momento em que não sabe distinguir nem controlar
8
Adotamos aqui a definição dada por
PAIVA (1990, p. 40-41), que considera a persona uma “máscara imprescindível a cada um para o desenvolvimento de papéis sociais com
o intuito de produzir um determinado efeito ou preservar a verdadeira
natureza do indivíduo”.
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9
Uma outra pessoa – desta vez; mas,
uma figura tão horrível e monstruosa quanto a primeira: uma mulher de
preto, lívida e assustadora – com um
jeito, com uma cara! – na outra margem do lago. Eu estava lá com a
menina – e estávamos tranqüilas;
nesse momento, ela veio. (...) ela
apenas apareceu e ficou lá – mas não
muito perto.
seus sentimentos. Na obra, a governanta é a típica mulher que vive
reclusa, como rainha e ao mesmo tempo escrava do lar, sem direito a
habitar um outro espaço. O diário surge, então, como um recurso
para que possa manter a própria sanidade, já que se vê completamente silenciada. Nessas condições, para ela a casa, “longe de ser o refúgio das vicissitudes da vida, o espaço que cura – segundo o modelo
vitoriano – é o calvário no qual está inserida” (LIMA, 2005, p. 32).
Nesse sentido, não é de se admirar que muitas passagens importantes da narrativa aconteçam próximas ao lago da propriedade,
já que a água também é um signo ambíguo: a aparição de Miss Jessel,
a certeza de que as crianças mantêm contato com os espíritos e a
morte simbólica de Flora. De acordo com Chevalier & Gheerbrant
(1994, p. 533), o lago simboliza o olho da Terra por onde os habitantes do mundo subterrâneo podem ver os homens e pode ser a mãe de
todos os seres, dando vida e garantindo a existência da fecundidade.
Os lagos são também considerados como palácios subterrâneos de
onde surgem seres perigosos que atraem os humanos para a morte.
Sendo assim, tomam a significação ambígua de paraísos ilusórios, já
que simbolizam as criações da imaginação exaltada. Transportando
essa simbologia para a trama de The Turn of the Screw, percebemos
que a primeira aparição da antiga governanta é realmente a evocação
do Mal e, por estar numa das margens do lago de Bly, transmite a
idéia de soberania e de fertilidade.
(...)Another person – this time; but a figure of quite as
unmistakable horror and evil: a woman in black, pale and dreadful
– with such an air also, and such a face! – on the other side of the
lake. I was there with the child – quiet for the hour; and in the
midst of it she came. (…) she just appeared and stood there – but
not so near9 (p. 59).
A escolha vocabular - unmistakable horror, woman in black, pale,
dreadfu – está numa seqüência gradativa, ao passo que pretende transmitir para o interlocutor – Mrs. Grose e os leitores – exatamente o
pavor que a jovem preceptora sentiu no momento da aparição. É interessante perceber que não são as vestimentas negras e mesmo o fato
medonho de ver alguém morto que impressionam a governanta; o
que a aflige é encontrar uma mulher do outro lado do rio, em seu
momento de distração com a pequena Flora, “with such an air also,
and such a face”. É o modo como Miss Jessel a encara e mostra-se
como isso a incomoda. E como seria de fato esse rosto? O que ele
poderia expressar? E por que a fazia se sentir mal? É importante res-
GUALDA, L.C. p. 135-153.
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saltar que a governanta não parece sentir aquele medo comum que
todos temos de espectros; ao contrário, ela deseja enfrentar o que vê,
numa tentativa de mostrar quem é superior, quem manda nas crianças, quem governa Bly agora. Seu discurso está mais pautado em
auto-afirmação e na imposição de sua condição como mantenedora
da ordem do que de sentimento de terror.
Isso não muda muito quando, capítulos depois, percebe que Flora
desaparecera e vai ao seu encontro no lago, junto de Mrs. Grose.
Entretanto, ao chegarem à margem, não notam presença alguma da
criança, mas percebem que a menina tomara um barco e atravessara
o pequeno riacho. Nada indica que a pequena seria encontrada do
outro lado, mas a certeza da governanta é tanta de que a menina está
lá na companhia de Miss Jessel que em nenhum momento desiste da
busca.
Dentro da narrativa misteriosa tudo inclina à morte, e a água
comunga todos os poderes da noite e da morte. Segundo Brandão
(1999, p.76), a transformação de imagens da água vai desde a sua
transparência até a tonalidade sombria que guarda o desejo da morte.
O barco simboliza a segurança e favorece a travessia da existência; a
margem oposta é o estado que existe para além do ser e do não-ser,
aquilo que não se compreende. Levando em conta a simbologia expressa pela cena – uma das mais importantes de toda a obra –, a travessia realizada de modo diferente pelas personagens – Flora, Mrs.
Grose e a preceptora – representa o transpor de um obstáculo que
separa dois domínios, dois estados: o mundo fenomenal e o estado
incondicionado, o mundo dos sentidos e o estado de não-vinculação
(CHEVALIER & GHEERBRANT, 1994, p. 780). É como se, ao atravessar o lago e atingir o outro lado, a governanta estivesse penetrando num outro ambiente, ainda desconhecido. Sua necessidade de encontrar Flora a todo custo deriva, na verdade, de sua necessidade em
conhecer e dominar um espaço que ameaça seu reinado nas dependências da mansão e não de sua preocupação em salvar a doce criança das garras do demônio.
Nesse sentido, a travessia e a água assumem para si o poder
ambivalente do feminino: torna-se útero e túmulo, fonte de vida, meio
de purificação, centro de regenerescência; mas também é fonte de
morte, criadora e destruidora – da mesma maneira que a governanta:
uma mulher que protege e mata, que carrega dentro de si a dialética
do anjo e do monstro. Os elementos que envolvem a cena, aliados ao
lago e à penumbra, estão combinados a fim de estabelecerem ima-
R G L, n. 4, fev. 2007.
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10
Do que primeiro aconteceu quando fiquei sozinha depois eu não tenho memória subseqüente. Sabia
apenas que ao fim de, digamos um
quarto de hora, uma umidade e uma
aspereza fragrantes, arrepiando e
trespassando a minha dor, fizeram
com que eu compreendesse que devia ter-me atirado de bruços sobre o
chão e dado vazão a uma aflição selvagem. Possivelmente ficara estendida lá por longo tempo e chorando
e soluçando, porque quando ergui
minha cabeça o dia estava quase acabando. Levantei-me e olhei por um
momento, através do crepúsculo,
para o lago cinzento e sua margem
vazia, assombrada, e empreendi, de
volta para casa, minha árida e penosa caminhada.
gens dinâmicas necessárias num devaneio de raiva e desespero.
Depois que a preceptora encontra a menina e a interroga a respeito de Miss Jessel, a criança tem um ataque histérico e pede para
ser levada dali, para longe da governanta que a assusta – “Take me
away, take me away – oh, take me away from her!”. Observe-se que
o pronome her se refere não ao fantasma, mas a própria governanta,
que lhe causa mais pavor do que qualquer outra coisa. Mrs. Grose,
então, tenta acalmar Flora e a leva para casa, para longe daquela que
instalara o caos em Bly. É nesse momento que a preceptora se sente
derrotada (porque não conseguira livrar o Mal da menina) e perde a
consciência.
Of what first happened when I was left alone I had no subsequent
memory. I only knew that at the end of, I suppose, a quarter of
an hour, an odorous dampness and roughness, chilling and
piercing my trouble, had made me understand that I must have
thrown myself, on my face, on the ground and given way to a
wildness of grief. I must have lain there long and cried and
sobbed, for when I raised my head the day was almost done. I
got up and looked a moment, through the twilight at the grey
pool and its blank, haunted edge, and then I took, back to the
house, my dreary and difficult course10 (p.133).
A imagem é belíssima e o farto uso de adjetivos compõem uma
cena melancólica e sombria. Deitada sozinha na relva, desiludida,
desamparada e à espera de algum milagre, ela se dá conta que perdera Flora para sempre, mas ainda seria possível salvar Miles da tentação demoníaca. Nesse trecho em destaque, temos a impressão de que,
ao recuperar suas faculdades mentais e notar que se passara algum
tempo desde o incidente na outra margem do lago, a governanta percebe pela primeira vez que não poderá contar mais com a ajuda de
Mrs. Grosse para proteger as crianças, já que a serviçal fizera sua
escolha, optando por acreditar em Flora. Além disso, o início da noite aliado à lua e ao reflexo das águas escuras produzem nela uma
instância de medo muito maior do que aquela descrita na aparição de
Miss Jessel.
O sombrio terror que a jovem sente ao despertar emana um medo
úmido, no sonhador momento de contemplação e fuga junto à água.
A governanta, após o terrível interrogatório que lança sobre Flora,
literalmente cai por terra numa tentativa de compreender a situação e
acaba adormecendo. Ao acordar, a desculpa que ela dá ao leitor para
o que possivelmente havia ocorrido é: I had no subsequent memory.
Tudo o que sabemos é que ela se sentiu envolvida numa catástrofe,
GUALDA, L.C. p. 135-153.
148
mesmo não se dando conta de que provocara tudo.
Ao longo de sua narrativa, a governanta vai deixando várias pistas ao leitor que, se estiver atento durante todo o relato, perceberá
que a descrição da paisagem não desempenha a mera função de ambiente, mas tem um papel decisivo na caracterização psicológica e na
própria composição da personagem. Esse tratamento descritivo não
tem nada a ver com objetividade, mas sim com uma espécie de sugestão, de possibilidade de recordação, envolvendo as pessoas, as
coisas e os eventos. No trecho abaixo, extraído do primeiro capítulo
do romance, podemos perceber essa relação entre sentimento e o meio
circundante. Durante todo o trajeto de Londres à propriedade de Bly,
a governanta se sente bastante animada com o novo emprego e com a
facilidade da tarefa. Nesse momento da viagem não podemos nos
esquecer de que está “a lovely day, through a country to which the
summer sweetness seemed to offer me a friendly welcome”11. Mas a
descrição não pára por aí.
11
Um belo dia, através de uma região
cuja doçura de verão parecia me oferecer uma acolhida amigável.
12
Recordo, como uma impressão das
mais agradáveis, a fachada ampla e
clara, janelas abertas e cortinas
frescas e um par de criadas à minha
espera; lembro o gramado e as flores
luminosas e o ruído das rodas no
cascalho e as copas unidas das
árvores acima das quais, lá no alto,
no céu dourado, as gralhas voavam
em círculos e grasnavam.
13
Houve um momento em que acreditei ter reconhecido, débil e distante, o grito de uma criança; houve
também outro em que tive como que
o começo da consciência de que passos leves passavam atrás da porta.
I remember as a most pleasant impression the broad, clear front,
its open windows and fresh curtains and the pair of maids looking
out; I remember the lawn and the bright flowers and the crunch
of my wheels on the gravel and the clustered tree-tops over which
the rooks circled and cawed in the golden sky12 (p.19-20 – grifo
nosso).
A descrição do cenário é de uma luminosidade impressionante e
essa marca de luz perseguirá toda a narrativa. Sua chegada à mansão
fora coroada de beleza, harmonia e uma sensação de paz que será
destruída aos poucos, mostrando o contraste que há entre um belo
lugar e os segredos macabros que ele esconde. Entretanto, seu bemestar dura pouco e parágrafos adiante ela nos relata seu medo, intensificado pelo cair da noite. Sozinha num amplo e luxuoso quarto que
contrastava grandemente com a modesta casa em que vivera, a jovem mulher confessa que algo de estranho paira no ar.
There had been a moment when I believed I recognized, faint
and far, the cry of a child; there had been another when I found
myself just consciously starting as at the passage, before my door,
of a light footstep13 (p. 21 – grifo nosso).
Nesse trecho evidencia-se que a personagem é movida pelo contraste luz e sombra que cria, respectivamente, uma atmosfera de paz
e desespero, de ordem e caos. Suas atitudes, seus gestos e seus pensamentos estão intimamente relacionados à efemeridade do tempo que
R G L, n. 4, fev. 2007.
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os tornam significativos pela criação de um ambiente próprio do
momento em que ocorrem. Nesse sentido, qualquer alteração os faz
parecer muito mais poderosos, graças a um complexo jogo de lentes
de aumento (CANDIDO, 1978, p. 60).
Considerações Finais
Ao final do nosso percurso, podemos fazer uma leitura de The
Turn of the Screw seguindo o pensamento de que a governanta é de
fato uma mistura de Eva e Lilith, de anjo e monstro, de inferno e
paraíso, num quiasma perfeito, em que a propriedade de Bly funciona como o céu, o patrão como Deus e o pequeno Miles como Adão,
tudo isso orquestrado pela mente confusa de uma mulher que não
sabe ao certo seu papel nessa trama de horrores. Destinada a ser mãe
de todos, assim como Eva, a governanta sente-se responsável pela
criação das crianças, além de desejar um tradicional casamento patriarcal com o patrão, seguindo fielmente sua natureza submissa.
Entretanto, devido a um desejo impuro que não é capaz de controlar, além de uma constante sensação de incômodo, a jovem mulher capta a qualidade essencial de Lilith e mostra seus lados
ambivalentes. Ora Deusa, ora demônio, ora tentadora, ora assassina,
seu lado sombrio vem repleto de imagens de punição e raiva “na pele
de uma mulher sedutora e assassina de crianças” (KOLTUV, 1986, p.
37). À medida que tenta dar conta das suas funções primeiras de mãe
e também de açoite, a governanta se mostra incapaz de conciliar o
malabarismo de ser dupla e sua sincronia e equilíbrio se transformam
em loucura e desespero. Para completar, sente-se invadida pelo furor
assassino de Lilith, por não conseguir arcar com seus deveres de mãe.
Na verdade, o que se percebe é que a “autodestrutiva cisão entre Eva,
a nutridora de crianças, e Lilith, a assassina de crianças, é observada
naquelas mulheres que não atendem às suas próprias necessidades
corporais” (KOLTUV, 1986, p. 112).
Nesse sentido, a governanta não é exceção à regra, já que se
nota uma tentativa de estrangular seus desejos interiores de amor e
aprovação. Esse seu lado rejeitado produz uma busca demoníaca pelo
poder de comandar e de colocar ordem naquilo que se apresenta como
inaceitável. Sendo Eva o protótipo da mulher moldada, a jovem
governanta guarda em si a tradição de que a mulher deve ser comandada por algum Adão – o patrão, no início, depois Peter Quint e, por
fim, Miles – sendo auxiliar e companheira, cuja “posição social esteja atrelada à responsabilidade pela preservação do casamento e pela
GUALDA, L.C. p. 135-153.
150
felicidade do lar (marido e filhos)” (PAIVA, 1990, p. 55-56). Entretanto, sua natureza ambivalente inclui ainda o mito de Lilith, o mito
da exclusão, que se reivindica igual e, como veículo do pecado e da
transgressão, a governanta não mais se transforma na companheira
de “Adão”, mas sim em algo demoníaco manifesto, um misto de saliva e sangue14. Nesse sentido, fica claro que estamos diante do “arquétipo maternal” na forma ctônica, em outras palavras, aquele que,
de um lado, protege e nutre, e de outro, devora (PAIVA, 1990, p. 5556).
Para crescer e desenvolver-se num meio que não lhe pertence,
mas que almeja conquistar e dominar, a jovem governanta sabe que
precisa integrar as qualidades de liberdade, movimento e instintividade
de Lilith, ou seja, qualidade pela qual se nega a ser aprisionada num
relacionamento e a cumprir o modelo tradicional da mãe-esposa-donade-casa, ou mesmo da freira-beata. “Ela deseja a liberdade de se mover,
de agir, de escolher e de decidir. Essas são as qualidades do ego feminino individualizado à medida que emerge da matéria inerte e passiva” (KOLTUV, 1986, p. 40.). E como já possui plenos poderes de
decisão, ela passa a buscar o controle da mansão e mesmo dos sentimentos e movimentos dos demais personagens. Por ser incapaz de
controlar e de aceitar seus desejos íntimos, ela transfere sua fragilidade para a consciência dos seres que habitam a propriedade como
uma maneira de se isentar da culpa que lhe aflige. Na obra, a
governanta “ora é a representação da Virgem Maria, a mãe arquetípica;
ou a figura telúrica, plena de sensações e sentimentos em detrimento
da razão; ou pertencendo a ambas as categorias ao mesmo tempo”
(TOLENTINO, 2005, p. 59).
Não estamos ignorando o fato de que a mulher em The Turn of
the Screw realmente deseja se casar com o patrão, ser a dona da propriedade de Bly e cuidar das crianças como mãe. Mas essa é apenas
uma das faces dos estilhaços de personagem que conhecemos e mesmo esse lado só se manifesta no início da obra. Isso é tão verdadeiro
que quando se sente ameaçada – ou pelas aparições que diz ver, ou
por não ser correspondida no amor carnal pelo garoto – opta por fazer valer o seu papel superprotetor que apela não mais para o sentimento materno, mas para o desejo sexual. Na novela, “a paixão ao
mesmo tempo sexual e sobrenatural é absolutamente antivitoriana”
(WANDERLEY, 1996, p. 51). Isso equivale dizer que a sexualidade
feminina é, na literatura vitoriana, um dado oculto. Não há de fato
nenhuma intenção de igualdade no sentido de identidade, mas sim
14
Roberto Sicuteri supõe que a lenda de Lilth, como a primeira mulher
de Adão, foi perdida durante a época de transposição da versão
jeovística para a sacerdotal. Para ele,
Lilith é um mito anterior ao mito de
Eva que se caracteriza como um verdadeiro espírito demoníaco.
R G L, n. 4, fev. 2007.
151
ambição pelos mesmos direitos de se mover e, principalmente, de ser
ela própria. Como Lilith, a preceptora é uma figura que seduz e encanta ao mesmo tempo em que é representada como o aspecto negativo e transformador do feminino.
Tentando adaptar-se num ambiente hostil, que não lhe pertence,
a governanta esquadrinha os processos mentais e emocionais sofridos por alguém submetido à situação de agregada a uma família patriarcal na Inglaterra. Podendo ser encarada como uma heroína trágica, representa a fragilidade da mulher sem terra, sem nome, movida
pela necessidade de se encontrar. A complicação da trama é mantida
por um sentimento único: o ato de proteção. Desejando apenas o reconhecimento de sua competência na função que lhe incumbiram, a
preceptora protege seus interesses criando uma situação que lhe permite movimentar-se ao seu modo e com suas regras.
O interesse vital em proteger as crianças de um mal terrível que
assola a propriedade, não é nada mais que uma desculpa para que
suas qualidades não se percam de vista e sobreponham-se a quaisquer outras que ameaçam ofuscá-las – como a beleza e a doçura das
crianças. Ansiosa por ser aceita, por merecer o amor do patrão, por se
adaptar a um ambiente novo, por cumprir bem uma tarefa de extrema
responsabilidade, a governanta quer colocar em evidência sua capacidade de controlar a situação, mesmo que tenha de sacrificar a todos
para alcançar a reputação desejada.
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