d isciplin a : cu ltu ra co r po rale lu d icid adeda cr - pós

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d isciplin a : cu ltu ra co r po rale lu d icid adeda cr - pós
CURSO: MOTRICIDADE HUMANA E RECREAÇÃO
DISCIPLINA: CULTURA CORPORAL E LUDICIDADE DA CRIANÇA
PROF. MS. JOÃO BATISTA FRANCO BORGES
Instituto Superior de Educaçaçãodo Vale do Juruena
Associação Juinense de Ensino Superior do Vale do Juruena
Pós-Graduação Lato Sensu em MOTRICIDADE HUMANA E RECREAÇÃO
Prof. MS. JOÃO BATISTA FRANCO BORGES
Av. Gabriel Muller, 1065– Modulo 01 – Juina – MT – CEP 78320-000
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A BOLA
O pai deu uma bola de presente ao filho. Lembrando o prazer que
sentira ao ganhar a sua primeira bola do pai. Uma número 5 sem tento oficial
de couro. Agora não era mais de couro, era de plástico. Mas era uma bola.
O garoto agradeceu, desembrulhou a bola e disse “Legal!” Ou o
que os garotos dizem hoje em dia quando gostam do presente ou não querem
magoar o velho. Depois começou a girar a bola, a procura de alguma coisa.
― Como é liga? ― perguntou.
― Como, como é que liga? Não se liga.
O garoto procurou dentro do papel de embrulho.
― Não tem manual de instrução?
O pai começou a desanimar e a pensar que os tempos são outros.
Que os tempos são decididamente outros.
― Não precisa manual de instrução.
― O que é que ela faz?
― Ela não faz nada. Você é que faz coisas com ela.
― O quê?
― Controla, chuta...
― Ah, então é uma bola.
― Claro que é uma bola.
― Uma bola, bola. Uma bola mesmo.
― Você pensou que fosse o que?
― Nada, não.
O garoto agradeceu, disse “Legal” de novo, e dali a pouco o pai
o encontrou na frente da teve com a bola nova do lado, manejando os
controles de um videogame. Algo chamado ‘Monster Ball’, em que times de
monstrinhos disputavam a posse de uma bola em forma de blip eletrônico na
tela ao mesmo tempo que tentavam se destruir mutuamente. O garoto era bom no
jogo. Tinha coordenação e raciocínio rápido. Estava ganhando da máquina.
O pai pegou a bola nova e ensaiou algumas embaixadas. Conseguiu
equilibrar a bola no peito do pé, como antigamente, e chamou o garoto.
― Filho, olha.
O garoto disse “Legal” mas não desviou os olhos da tela. O pai
segurou a bola com as mãos e a cheirou tentando recapturar mentalmente o
cheiro de couro. A bola cheirava a nada. Talvez um manual de instrução fosse
uma boa idéia, pensou. Mas em inglês, para a garotada se interessar.
(Luis Fernando Veríssimo ― “Comedias da vida Privada”)
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A ESCOLA DO CAMALEÃO
O camaleão é um grande professor. Preste atenção. Quando ele toma uma direção, ele
não vira jamais a cabeça. Faça como ele. Tenha um objetivo em sua vida e que nada o faça
mudar de rumo.
O camaleão não vira a cabeça, mas é seu olho que ele vira. Ele olha para cima, para
baixo. Isto quer dizer: “informe-se. Não pense que você está sozinho na terra”.
Quando ele chega nalgum lugar, ele toma a cor do lugar. Isso não quer dizer hipocrisia.
Primeiro quer dizer tolerância e depois saber viver. Se bater uns com os outros não chega a
lugar nenhum. Nunca, nada foi constuido com brigas e querelas. É preciso sempre procurar
comprender o outro. Se nós existimos, é preciso admitir que o outro exista.
Se o camaleão avança, ele levanta um pé. Ele balança. Isto se chama prudência na
marcha.
Para se deslocar, ele fixa sua cauda, assim, se seus pés se prendem, ele fica suspenso.
Isso se chama assegurar sua retaguarda. Não seja, porém imprudente.
Logo que o camaleão vê uma presa, ele não se precipita em cima dela, mas ele envia sua
língua. Se sua língua pode puxar, ela puxa. Senão ele tem sempre a possibilidade de retirar sua
língua e de evitar o mal. Haja docemente em tudo o que você fizer.
Se você quiser uma obra durável, seja paciente, seja bom, seja humano. É isso aí!
Quando você se encontrar “no mato sem cachorro”, peça aos experientes que eles lhe contem
a lição do camaleão.
(Amadou Hampaté Bâ)
“Tradução livre do Prof. Cleomar Ferreira
Gomes”
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“As Técnicas Corporais”. In: Marcel Mauss, Sociologia e Antropologia, vol. 2. São Paulo:
EPU/EDUSP, 1974.
Capítulo 1
Noção de Técnica Corporal
Digo expressamente as técnicas corporais porque é possível fazer a teoria da técnica
corporal a partir de um estudo de uma exposição, de uma descrição pura e simples das técnicas
corporais. Entendo por essa palavra as maneiras como os homens, sociedade por sociedade e
de maneira tradicional, sabem servir-se de seus corpos. Em todo caso, é preciso proceder do
concreto ao abstrato, e não inversamente.
Desejo participar-lhe aquilo que creio constituir uma das partes de meu ensino que não
é encontrada em outros lugares e, repito, em curso de etnologia descritiva (os livros que
conterão as Instruções sumárias e as Instruções para uso de etnógrafos acham-se em via de
publicação), e que já coloquei em experiência por diversas vezes em meu magistério no
Instituto de Etnologia da Universidade de Paris.
Quando uma ciência natural faz progressos, é sempre no sentido do concreto, e sempre
em direção ao desconhecido. Ora, o desconhecido encontra-se nas fronteiras das ciências, ali
onde os professores “devoram-se entre si”, como diz Goethe (digo devorar, mas Goethe não é
polido assim). Geralmente, é nesses domínios mal partilhados que fazem os problemas
urgentes. Aliás, esses terrenos baldios trazem uma marca. Nas ciências naturais, tais como elas
existem, encontra-se sempre uma rubrica indigna. Há sempre um momento em que, não
estando ainda a ciência de certos fatos reduzida a conceitos, não sendo tais fatos sequer
agrupados organicamente, implanta-se sobre essas massas de fatos a baliza de ignorância:
“diversos”. É aqui que cumpre penetrar. Estamos certos de que é aqui que há verdades a
descobrir: inicialmente, porque não sabemos, e também porque tem-se o sentimento vivo da
quantidade de fatos. Por muitos anos, em meu curso de etnologia descritiva, tive que ensinar
arcando com esta desgraça e este opróbrio de “diversos” em um ponto em que a rubrica
“diversos”, em etnografia, era realmente heteróclita. Sabia muito bem que o caminhar, a
natação, por exemplo, todas as espécies de coisas deste tipo, são específicas de sociedades
determinadas; que polinésios não nadam como nós, e que minha geração não nadou como
nada a geração atual. Mas que fenômenos sociais eram esses?. Foram fenômenos sociais
“diversos”, e , com0 esta rubrica é uma abominação, tenho pensado frequentemente nesse
“diversos”, pelo menos cada vez que tenha sido obrigado a falar deles, e muitas vezes no
entretempo.
Desculpem-me se, para formar diante de vocês esta noção de técnicas corporais, relato
em que ocasiões persegui e como consegui colocar com clareza o problema geral. Para que isso
ocorresse uma série de passos foram dados consciente e inconscientemente.
Antes de tudo, em 1898, estive ligado a alguém cujas iniciais ainda me lembro bem, mas
cujo nome não me recordo. Tive preguiça de investigá-lo. Foi ele quem redigiu um excelente
artigo sobre a “Natação” na edição da British Encyclopaedia de 1902, então em curso. (Os
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artigos “Natação” das duas edições seguintes tornaram-se não tão bons.) Ele me mostrou o
interesse histórico e etnográfico da questão. Foi um ponto de partida, um quadro de
observação. Em seguida – eu mesmo tinha dado por isso – assisti à transformação das técnicas
de natação ainda durante o desenrolar de nossa geração. Um exemplo colocar-nos-á
imediatamente no meio do problema: nós, bem como os psicólogos, biólogos e sociólogos.
Outrora, ensinavam-nos a mergulhar, ensinavam-nos a fechar os olhos, depois abri-los na água.
Hoje em dia a técnica é inversa. Toda a aprendizagem é começada habituando a criança a
permanecer na água com olhos abertos. Assim, antes mesmo que elas nadem, são exercitadas
sobretudo a domar os reflexos perigosos, mas instintivos, dos olhos; elas são familiarizadas
antes de tudo com a água, inibem-se seus medos, cria-se uma certa segurança, selecionam-se
paradas e movimentos. Há, portanto, uma técnica de mergulho e uma técnica de educação do
mergulho que forma descobertas em minha época. E, como vêem, trata-se realmente de um
ensino técnico, havendo, como para toda técnica, uma aprendizagem da natação. Por outro
lado, nossa geração, aqui, assistiu a uma transformação completa da técnica: vimos o nado
“clássico” e com a cabeça para fora da água ser substituído pelos diferentes tipos de crawl.
Além disso, perdeu-se o costume de engolir água e cuspi-la. Em meu tempo, os nadadores
consideravam-se espécies de navios a vapor. Era cuspido, mas enfim, ainda faço esse gesto: não
posso desembaraçar-me de minha técnica. Eis, pois, uma técnica corporal específica, uma arte
gímnica aperfeiçoada de nossa época.
Mas esta especificidade é o caráter de todas as técnicas. Um exemplo: durante a guerra,
pude fazer numerosas observações sobre esta especificidade de técnicas. Uma delas foi a de
cavar. As tropas inglesas com as quais eu me encontrava não sabiam utilizar pás francesas, o
que me obrigava a trocar 8.000 pás por divisão quando substituíamos uma divisão francesa, e
assim inversamente. Eis, à evidência, como um giro da mão é lentamente aprendido. Toda
técnica propriamente dita tem sua forma.
Mas o mesmo acontece com toda atitude corporal. Cada sociedade tem hábitos que lhe
são próprios. Na mesma época, tive muitas ocasiões de perceber diferenças de um exército
para outro. Uma anedota a propósito da marcha. Todos sabem que a infantaria britânica
marcha com um passo diferente do nosso: diferente na frequência, de outro comprimento. Não
falo, por enquanto, nem do balanceio inglês, nem da ação do joelho, etc., Ora, o regimento de
Worcester, tendo realizado proezas consideráveis durante a batalha de Aisne, ao lado da
infantaria francesa, solicitou autorização real para ter toques e baterias francesas, um conjunto
de clarins e de tambores franceses. O resultado foi pouco encorajador. Durante seis meses, nas
ruas de Bailleul, muito tempo depois da batalha de Aisne, vi muitas vezes o seguinte
espetáculo: o regimento conservava a marcha inglesa e ritmava-a à francesa. Havia até, à frente
da bateria, um pequeno sargento dos caçadores, francês, que ia a pé e , sabendo tocar clarim,
tocava as marchas melhor que seus homens. O infeliz regimento dos grandes ingleses não
podia desfilar. Tudo era discordante em sua marcha. Quando tentava marchar num passo certo,
era a música que não marcava o passo. De forma que o regimento de Worcester foi obrigado a
suprimir os toques franceses. De fato, os toques que foram adotados pelo exército, outrora,
durante a guerra da Criméia, foram toques de “de repouso”, a “retirada”, etc. Assim, vi de
maneira bastante precisa e freqüente, não só no que dizia respeito à marcha, mas também à
corrida e ao restante, a diferença das técnicas elementares, bem como esportivas, entre
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ingleses e franceses. Curt Sachs, que viveu nesse momento entre nós, fez a mesma observação.
Falou dela em diversas conferências. Ele reconhecia a longa distância a marcha de um inglês e
de um francês. Mas tratava-se de simples aproximações ao tema.
Uma espécie de revelação me veio no hospital. Eu estava enfermo em Nova Iorque.
Perguntava-me onde já vira senhoritas caminharem como minhas enfermeiras. Tinha tempo
para refletir sobre o assunto e, afinal; descobri que fora no cinema. Ao voltar à França,
observei, sobretudo em Paris, a freqüência desse passo; as mocinhas eram francesas e
andavam também daquela maneira. De fato, as modas do caminhar americano, graças ao
cinema, começavam a chegar até nós. Era uma idéia que eu podia generalizar. A posição dos
braços, das mãos caídas enquanto se anda, formam uma idiossincrasia social, e não
simplesmente um produto de não sei o que agenciamentos e mecanismos puramente
individuais, quase que inteiramente psíquicos.
Exemplo: creio poder reconhecer também uma moça que tenha sido educada em
convento. Ela anda, geralmente, de punhos fechados. E recordo-me ainda do meu professor da
terceira série, interpelando-me: “Seu animal! O tempo todo com essas mãozorras abertas!”
Existe, portanto, igualmente uma educação do andar.
Outro exemplo: há posições da mão, no repouso, convenientes ou inconvenientes.
Assim, podem adivinhar com segurança que uma criança se senta à mesa com os cotovelos
junto ao corpo, e, quando não está comendo, com as mãos nos joelhos, que ela é inglesa. Um
jovem francês não sabe mais se dominar: ele abre os cotovelos em leque, apóia-os sobre a
mesa e assim por diante.
Enfim, na corrida, assisti também, como todos os senhores, à transformação da técnica.
Imaginem que meu professor de ginástica, um dos melhores saídos de Joinville, cerca de 1860,
ensinou-me a correr com os punhos junto ao corpo: movimento completamente contraditório a
todos os movimentos da corrida; foi necessário compreender que era preciso correr de outra
maneira.
Tive pois, durante numerosos anos, esta noção da natureza social do “habitus”. Peço
que observem que digo em bom latim, compreendido na França, “habitus”. A palavra traduz,
infinitamente melhor que “habito”, o “exigido”, o “adquirido” e a “faculdade” de Aristóteles
(que era um psicólogo). Ele não designa esses hábitos metafísicos, esta “memória” misteriosa,
tema de volumes ou de curtas e famosas teses. Esses “hábitos” variam não simplesmente com
os indivíduos e suas imitações, mas, sobretudo, com as sociedades, as educações, as
conveniências e as modas, com os prestígios. É preciso ver técnicas e a obra da razão prática
coletiva e individual, ali onde de ordinário vêem-se apenas almas e suas faculdades de
repetição.
Assim, tudo me conduzia um pouco à posição de que nós somos, aqui, em nossa
Sociedade, um certo número que, sob influência do exemplo de Comte: - Dumas, por exemplo
– nas relações constantes entre o biológico e o sociológico não deixa grande lugar ao
intermediário psicológico. E conclui que não se poderia ter uma visão clara de todos esses fatos,
da corrida, do nado, etc., se não se introduzisse uma tríplice consideração em lugar de uma
única consideração , quer fosse ela mecânica e física, como em uma teoria anatômica e
fisiológica do andar, quer fosse, ao contrário, psicológica ou sociológica. È o tríplice ponto de
vista, o do “homem total”, que é necessário.
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Enfim, uma outra série de fatos se impunha. Em todos esses elementos da arte de
utilizar o corpo humano, os fatos de educação dominam. A noção de educação podia sobreporse à noção de imitação. Pois há crianças, em particular, que tem faculdades muito grandes de
imitação, outras que as tem bem fracas, mas todas passam pela mesma educação, de sorte que
podemos compreender a seqüência dos encadeamentos. O que se passa é uma imitação
prestigiosa. A criança, como o adulto, imita atos que obtiveram êxito e que ela viu serem bem
sucedidos em pessoas em quem confia e que tem autoridade sobre ela. O ato impõem-se de
fora, do alto, ainda que seja um ato exclusivamente biológico e concernente ao corpo. O
indivíduo toma emprestado a série de movimentos de que ele se compõem do ato executado à
sua frente ou com ele pelos outros.
É precisamente nesta noção de prestígio da pessoa que torna o ato ordenado,
autorizado e provado, em relação ao indivíduo imitador, que se encontra todo o elemento
psicológico e o elemento biológico.
Mas o todo, o conjunto, é condicionado pelos três elementos indissoluvelmente
misturados.
Tudo isso liga-se facilmente a um certo número de fatos de outra ordem. Em um livro de
Elsdon Best, aqui chegado em 1925, encontra-se um notável documento sobre a maneira de
andar da mulher maori (Nova Zelândia). (Não se liga que são primitivos: creio que em certos
aspectos, são superiores aos celtas e aos germânicos.) “As mulheres indíginas adotam um certo
“gait” (a palavra inglesa é deliciosa): ou seja, um balanceamento destacado e, não obstante,
articulado das ancas que nos parece desgracioso, mas que é extremamente admirado pelos
maori. As mães adestravam (o autor diz “drill”) as filhas nesta maneira de fazer o que se chama
de “onioi”. Ouvi mães dizerem às filhas {traduzo}: “tu não fazes o onioi”, quando uma menina
esquecia de fazer o balanceamento” (The Maori, I, pp.408-9, p. 135). Era uma maneira
adquirida, e não uma maneira natural de andar. Em suma, talvez não exista uma “maneira
natural” no adulto. Com mais forte razão quando outros fatos técnicos intervêm: no que tange
a nós, o fato de andarmos com sapatos transforma a posição de nossos pés; quando andamos
sem sapatos sentimos muito bem isso.
De um lado, esta mesma questão fundamental se colocava para mim, de um outro, a
propósito de todas essas noções concernentes à força mágica, à crença na eficácia não só da
física, mas também moral, mágica e ritual de certos atos. Talvez eu esteja aqui ainda mais em
meu terreno do que no terreno aventurosos da psicofisiologia dos modos de andar, pelo qual
aventuro-me diante de vós. Eis aqui um fato mais “primitivo”, australiano desta vez: uma
fórmula de ritual de caça e de ritual de corrida ao mesmo tempo. Sabemos que o australiano
consegue vencer por exaustão, na corrida, os cangurus, os casuares, os cachorros selvagens. Ele
consegue tirar o gambá do alto da árvore, embora o animal ofereça uma resistência
considerável. Um desses rituais de corrida, observado há cem anos, é o da corrida do cachorro
selvagem, o digno, nas tribos das cercanias de Adelaide. O caçador não pára de cantar a
seguinte fórmula:
Dê-lhe com tufo de penas de águia (de iniciação, etc.)
dê-lhe com cinto,
dê-lhe com faixa da cabeça,
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dê-lhe com o sangue da circuncisão,
dê-lhe com o sangue do braço,
dê-lhe com os mênstruos da mulher,
faça-o dormir, etc. (1).
Em uma outra cerimônia, a caça ao gambá, o indivíduo leva na boca um pedaço de
cristal de rocha (kawemukka), pedra mágica entre todas, e canta uma fórmula do mesmo
gênero, e é assim que pode desaninhar o gambá, que pode trepar e permanecer suspenso por
seu cinto na árvore, que pode cansar e afinal capturar e matar essa caça difícil.
As relações entre os procedimentos mágicos e as técnicas de caça são evidentes e
demasiado universais para que insistamos nelas.
O fenômeno psicológico que constatamos nesse momento é evidentemente, do ponto
de vista habitual do sociólogo, muito fácil de compreender. Mas que o que queremos salientar
agora é a confiança, o momentum psicológico que se pode associar a um ato que é, antes de
tudo, um fato de resistência biológica, obtido graças a palavras e a um objeto mágico.
Ato técnico, ato físico, ato mágico-religioso são confundidos pelo agente. São estes os
elementos de que dispomos.
Tudo isso não me satisfazia. Via como tudo poderia ser descrito, mas não organizado;
não sabia que nome, que título dar a tudo isso.
Era muito simples, e eu precisava somente referir-me à divisão de atos tradicionais em
técnicas e em ritos, que acredito fundamentada. Todos esses modos de agir eram técnicas; são
as técnicas corporais.
Comentemos, e cometi durante muitos anos, o erro fundamental de só considerar que
há técnica quando há instrumento. Cumpria voltar à noções antigas, aos dados platônicos sobre
a técnica, como Platão falava de uma técnica da música e, em particular, da dança, e estender
esta noção.
Chamo de técnica um ato tradicional eficaz (e vejam que, nisto, não difere do ato
mágico, religioso, simbólico). É preciso que seja tradicional e eficaz. Não há técnica e tampouco
transmissão se não há tradição. É nisso que o homem se distingue sobretudo dos animais: pela
transmissão de suas técnicas e muito provavelmente por sua transmissão oral.
Permita-me, pois, considerar que adotam minhas definições. Mas, qual é a diferença
entre o ato tradicional eficaz da religião, o ato tradicional, eficaz, simbólico, jurídico, os atos da
vida em comum, os atos morais, por um lado, e o ato tradicional das técnicas, por outro?. É que
este é sentido pelo autor como um ato de ordem mecânica, física ou físico-química, e é seguido
com tal fim.
Nessas condições, é preciso dizer muito simplesmente: devemos lidar com técnicas
corporais. O corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do homem. O mais exatamente,
sem falar de instrumento, o primeiro e mais natural objeto técnico, e ao mesmo tempo meio
técnico do homem é seu corpo. De imediato, toda a grande categoria daquilo que, em
sociologia descritiva, eu classificava como “diversos”, desaparece desta rubrica e assume forma
e corpo: sabemos onde encaixá-la.
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Antes das técnicas com instrumentos, há o conjunto de técnicas corporais. Não exagero
a importância desse gênero de trabalho, trabalho de taxonomia psico-sociológica. Mas ele é
alguma coisa: a ordem posta em certas idéias, onde não havia ordem alguma. Mesmo no
interior desse agrupamento de fatos, o princípio permitia uma classificação precisa. Esta
adaptação constante a um fim físico, mecânico, químico (por exemplo, quando bebemos) é
perseguida em uma série de atos montados, e montados no indivíduo não simplesmente por
ele mesmo, mas por toda a sua educação, por toda a sociedade da qual ele faz parte, no lugar
que ele nela ocupa.
Capítulo II
Princípios de classificação das técnicas corporais
Duas coisas eram imediatamente aparentes a partir dessa noção de técnicas corporais:
elas se dividem e variam por sexos e por idades.
1. Divisão de técnicas corporais entre sexos (e não simplesmente divisão do trabalho
entre sexos). A coisa é bastante considerável. As observações de Yerkes e de Köhler sobre a
posição dos objetos em relação ao corpo e em especial em relação ao regaço, no macaco,
podem inspirar observações gerais sobre a diferença de atitude dos corpos em movimento em
relação aos objetos em movimento dos dois sexos. Sobre esse ponto, aliás, há observações
clássicas no homem. Seria preciso completa-las. Tomo a liberdade de indicar a meus amigos
psicólogos esta série de pesquisas. Tenho pouca competência e, por outro lado, não teria
tempo. Tomemos a maneira de cerrar o punho. O homem normalmente cerra o punho com o
polegar para fora, a mulher já o faz com o polegar para dentro; talvez por não ter sido educada
para isso, mas estou certo de que, se a educassem, isso seria difícil. O soco, o golpear são
moles. E todo o mundo sabe que o atirar da mulher, o arremesso de uma pedra, não só é mole,
como também é sempre diferente do do homem: em plano vertical, em lugar de horizontal.
Talvez haja aqui o caso de duas instruções. Pois há uma sociedade de homens e uma
sociedade de mulheres. Creio, entretanto, que talvez hajam também coisas biológicas e
psicológicas a serem encontradas. Mas aqui, mais uma vez, o psicólogo sozinho poderá
somente dar explicações duvidosas; daí a necessidade da colaboração de duas ciências vizinhas:
fisiologia e sociologia.
2. Variação das técnicas corporais com a idade. A criança acocora-se normalmente. Nós
não sabemos mais nos acocorar. Considero um absurdo e uma inferioridade de nossas raças,
civilizações, sociedades. Um exemplo. Vivi na linha de frente com os australianos (brancos). Eles
tinham sobre mim uma vantagem considerável. Quando nos detínhamos no lamaçal ou na
água, eles podiam sentar-se sobre os calcanhares, repousar, e a “frota”, como dizíamos, ficava
sob seus calcanhares. Eu era obrigado a ficar de pé, de botas, com o pé na água. A posição
acocorada é, em minha opinião, uma posição interessante que pode ser conservada em uma
criança. O maior erro é privá-la disso. Toda a humanidade, exceto nossas sociedades, a
conservou.
Ao que parece, aliás, na seqüência de idades da raça humana, esta postura mudou
igualmente de importância. Recordam que, antigamente, considerava-se como sinal de
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degenerescência e arqueamento dos membros inferiores. Deu-se para esse traço racial uma
explicação fisiológica. Aquele que Virchow considerava ainda como um desgraçado
degenerado, e que não era nada menos que o homem de acocorado. Há, pois, coisas que
acreditamos ser de ordem hereditária, mas que, na realidade, são de ordem fisiológica,
psicológica e sociológica. Uma certa forma dos tendões, e mesmo dos ossos, não é outra coisa
se não a decorrência de uma certa forma de se comportar e de se dispor. Isso é bastante claro.
Por esse procedimento, é possível não só classificar as técnicas, como classificar suas variação
por idade e por sexo.
Sendo dada esta classificação em relação à qual todas as classes da sociedade se
dividem, podemos entrever uma terceira.
3. Classificação das técnicas corporais em relação ao rendimento. As técnicas corporais
podem classificar-se em relação a seu rendimento, em relação aos resultados do treinamento.
O treinamento, como a montagem de uma máquina, é a procura, a aquisição de um
rendimento. Trata-se aqui de um rendimento humano. Essas técnicas são pois as normas
humanas do treinamento humano. Os processos que aplicamos aos animais foram aplicados
pelos homens voluntariamente a si mesmos e a seus filhos. Estes foram provavelmente os
primeiros seres que foram assim treinados, que foi preciso primeiro domesticar, antes de todos
os animais.
Eu poderia, por conseguinte, compará-las em certa medida – elas mesmas e suas
transmissões – a treinamentos, e classificá-las por ordem de eficácia.
Coloca-se aqui a noção, muito importante tanto em psicologia como em sociologia, de
destreza. Mas, em francês, dispomos apenas de um termo ruim, “habile” (hábil), que traduz
imperfeitamente a palavra latina “habilis”, bem melhor para designar as pessoas que possuem
o sentido da adaptação de todos os seus movimentos bem coordenados aos fins, que têm
hábitos, que “sabem fazer” algo. É a noção inglesa de “craft”, de “clever” (destreza e presença
de espírito, hábil), é a habilidade em algo. Mais uma vez estamos bem no domínio da técnica.
4. Transmissão da forma das técnicas. Último ponto de vista: sendo o ensino das
técnicas essencial, podemos classificá-las em relação à natureza desta educação e deste
treinamento,. E eis um novo campo de estudos: inúmeros detalhes inobservados, e cuja
observação é preciso fazer, compõem a educação física de todas as idades e dos dois sexos. A
educação da criança é repleta daquilo que chamamos de detalhes, ,mas que são essenciais. Seja
o problema do ambidestrismo, por exemplo: observamos mal os movimentos da mão direita e
da mão esquerda, e sabemos pouco sobre como são todos eles aprendidos. Reconhecemos à
primeira vista um mulçumano piedoso: mesmo que ele tenha garfo e faca nas mãos (o que é
raro), fará o possível e o impossível para servir-se apenas com a mão direita. Para saber porque
ele fez este gesto, e não aquele outro, não basta nem a fisiologia nem a psicologia da
dissimetria motriz no homem; é preciso conhecer as tradições que lhe impuseram. Robert Hertz
colocou muito bem este problema1. Mas reflexões desse gênero ou de outros podem aplicar-se
a tudo que é escolha social de princípios de movimentos.
1
La prééminence de la main droite. Reimpresso em Mélanges de Sociologie religieuse et de folklore, Alcan.
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Convém estudar todos os modos de treinamento, de imitação e, em particular, essas
maneiras fundamentais que podemos chamar de modo de vida, o modus, o tônus, a “matéria”,
as “maneiras”, o “jeito”.
Expusemos aqui uma primeira classificação, ou antes, quatro pontos de vista.
Capítulo III
Enumeração Biográfica das Técnicas Corporais
Uma classificação inteiramente distinta, não direi mais lógica, é porém mais fácil para o
observador. É uma enumeração simples. Eu havia planejado apresentar uma série de pequenos
quadros, como fazem os professores americanos. Iremos, simplesmente, seguir
aproximadamente as idades do homem, a biografia normal de um indivíduo, para classificar as
técnicas corporais que se referem a ele ou que lhes são ensinadas.
1. Técnicas do nascimento e da obstetrícia. Os fatos são relativamente mal conhecidos, e
muitas informações clássicas são discutíveis2. Entre as boas, acham-se as de Walter Roth, a
propósito de tribos australianas de Queensland e da Guiana Inglesa.
As formas de obstetrícia são muito variáveis. Buda nasceu estando sua mãe, Mâya,
agarrada, reta, a um ramo de árvore. Ela deu à luz em pé. Coisas que acreditamos normais, isto
é, o parto na posição deitada sobre as costas, não são mais normais do que as demais; por
exemplo, as posições de quatro. Há técnicas de parto tanto para a mão, como para seus
auxiliares; para a retida da criança, ligadura e secção do cordão; para os cuidados com a mão e
com a criança. Temos ai várias questões bastante consideráveis. E aqui estão outras; a escolha
da criança, a exposição dos defeituosos, a morte dos gêmeos são momentos decisivos na
história de uma raça. Na história antiga bem com em outras civilizações, o reconhecimento da
criança é um acontecimento capital.
2. Técnicas da infância. – Criação e alimentação da criança. Atitudes do dois seres em
relação à mãe e ao filho. Consideremos o filho: a sucção, etc., o transporte, etc. A história do
transporte é muito importante. A criança carregada junto da pele de sua mãe durante dois ou
três anos tem uma atitude inteiramente diferente face à mãe do que uma criança não
carregada3; ela tem um contato com a mãe inteiramente diferente das crianças entre nós. Ele
pendura-se ao pescoço, aos ombros, escarrancha-se na anca. É uma ginástica notável, essencial
para toda a vida. E, para a mãe, é uma outra ginástica carregá-la. Parece mesmo que há aqui o
nascimento de estados psíquicos desaparecidos em nossas crianças. Há contatos de sexos e de
peles, etc.
Desmame. Leva muito tempo, para ser feito geralmente demora de dois a três anos. É
obrigatório amamentar, e, às vezes, essa obrigação de amamnetar estende-se até mesmo a
2
3
Mesmo as últimas edições de PLOSS, Das Weib (edições de Bartels, etc.), deixam a desejar sobre esse ponto.
Começam a ser publicadas observações sobre esse ponto.
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animais. A mulher demora muito para perder o leite. Há, além disso, relações entre o desmame
e a reprodução, interrupções da reprodução durante o desmame4.
A humanidade pode muito bem dividir-se em pessoas que usaram berço e pessoas que
não usaram berço. Pois há técnicas corporais que supõem um instrumento. Nos ovos que
utilizam o berço, incluem-se quase todos os povos dos dois hemisférios norte, os da região
andina e certo número de populações da África central. Nesses dois últimos grupos, o uso do
berço coincide com a deformação craniana (que, talvez, possua graves conseqüências
fisiológicas).
A criança após o desmame. Ela sabe comer e beber; é educada para andar; exercita a
visão, a audição; ritmo, forma e movimento, o que é feito quase sempre pela dança e pela
música.
Recebe noções e costumes de relaxamento, de respiração. Adota certas posturas, que
amiúde lhe são impostas.
3. Técnicas da adolescência. Observa-se sobretudo no homem. Torna-se menos
importante entre as moças das sociedades para cujo estudo é destinado um curso de etnologia.
O grande momento da educação corporal é, com efeito, o da iniciação. Imaginemos, em virtude
do modo como nossos filhos e filhas são criados, que uns e outros adquiram as mesmas
maneiras e posturas, e que recebam em toda parte o mesmo treinamento. Esta idéia já é
errônea entre nós – e é totalmente falsa nos povos chamados primitivos. Além disso,
descrevemos os fatos como se estivessem sempre e por toda parte existido algo do gênero da
nossa escola, que começa muito cedo e deve proteger e treinar a criança para a vida. A regra é
o contrário. Por exemplo: em todas as sociedades negras, a educação do menino intensifica-se
em sua puberdade, enquanto que a adas mulheres permanece, por assim dizer, tradicional.
Não há escola para as mulheres. Estas estão nas escolas de suas mães e formam-se
constantemente aí para passarem, salvo as exceções, diretamente ao estado de esposas. A
criança de sexo masculino entra na sociedade dos homens, onde aprende sua ocupação, e
sobretudo sua ocupação militar. Entretanto, tanto para os homens como para as mulheres, o
momento decisivo é o da adolescência. É nesse momento que aprenderão definitivamente as
técnicas corporais que conservarão por toda a idade adulta.
4. Técnicas da idade adulta. Para inventariar estas, podemos seguir os diversos
momentos do dia quando se repartem os movimentos coordenados e parados.
Podemos distinguir o sono e a vigília, e, na vigília, o repouso e a atividade.
1. Técnicas do sono. A noção de que o dormir é algo natural é completamente inexata.
Posso dizer-lhe que a guerra ensinou-me a dormir em toda parte, sobre montes de pedras por
exemplo, mas que nunca pude mudar de leito sem ter um momento de insônia: somente no
segundo dia eu adormecia rapidamente.
O que é muito simples é que é possível distinguir as sociedades que nada têm para
dormir, salvo “a dura”, e outros que recorrem a instrumentos. A “civilização por 15° de
latitude”, de que fala Graebner5, caracteriza-se, entre outros costumes, por dormir com um
banco sob a nuca. O parapeito é muitas vezes um totem, às vezes esculpido com figuras
agachadas de homens, de animais totêmicos. Há povos de esteira e povos sem esteira (Ásia,
4
5
A grande coleção de fatos reunidos por Ploss, refeita por Bartels, é satisfatória no que se refere a esse ponto.
GRAEBNER, Ethnologie, Leipzig, 1923.
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Oceania, uma parte da América). Há povos de travesseiro e povos sem travesseiro. Há
populações que se põem comprimidas em círculo para dormir em torno do fogo, ou mesmo
sem fogo. Há maneiras primitivas de se aquecer e de aquecer os pés. Os fueguinos, que vivem
em um lugar muito frio, sabem aquecer somente os pés no momento de dormir, tendo uma
única coberta de pele (guanaco). Há, enfim, o sono de pé. Os masai podem dormir em pé. Eu
dormi em pé, na montanha. Muitas vezes dormi a cavalo, por vezes mesmo em marcha: o
cavalo era mais inteligente do que eu. Os antigos historiadores que tratavam das invasões,
representavam os hunos e mongóis dormindo a cavalo. Isso ainda é verdadeiro, e os cavaleiros,
ao dormir, não detêm a marcha dos cavalos.
Há os costumes do cobertor. Povos que dormem cobertos e não cobertos. Existe a maca
e a maneira de dormir suspenso.
Eis uma grande quantidade de práticas que são ao mesmo tempo técnicas corporais e
que são profundas em influências e efeitos biológicos. Tudo isso pode e deve ser observado na
área que lhe é própria, estando ainda centenas dessas coisas por serem conhecidas.
2. Vigília: Técnicas do repouso. O repouso pode ser um repouso perfeito ou simples
descanso: deitado, sentado, acocorado, etc. tentem acocorar-se. Vejam a tortura que lhes
inflingirá, por exemplo, uma refeição marroquina feita segundo todos os ritos. A maneira de
sentar é fundamental. Podem distinguir a humanidade acocorada e a humanidade sentada. E,
nesta, distinguir os povos de bancos e os povos sem bancos e estrados; os povos de assento e
os povos sem assento: o assento de madeira conduzido por figuras acocoradas é difundido,
coisa bastante notável, em todas as regiões a 15 graus de latitude norte e do Equador dos dois
continentes6. Há povos que têm mesas e povos que não as têm. A mesa, a “trapeza” grega, está
longe de ser universal. Normalmente, ainda é u tapete ou esteira, em todo o Oriente. Tudo isso
é bastante complicado, pois esses repousos comportam a refeição, a conservação, etc. certas
sociedades repousam em posições singulares. Assim é que toda a África nilótica e uma parte da
região do Tchad, até Tanganica, são povoadas por homens que se colocam sobre um único pé
sem mais nada, outros apóiam-se sobre um bastão. São verdadeiros traços de civilizações,
comuns a um grande número, a famílias inteiras de povos, que formam essas técnicas de
repouso. Nada parece mais natural a psicólogos; não sei se eles compartilham inteiramente a
minha opinião, mas acredito que essas posturas na savana são uma decorrência da altura das
ervas, da função de pastor, de sentinela, etc.; dificilmente serão adquiridas por educação e
conservadas.
Há o repouso ativo, geralmente estético; assim, é freqüente a dança no repouso, etc.
Voltaremos a isso.
3. Técnicas da atividade, do movimento. Por definição, o repouso é a ausência de
movimento, a ausência de repouso. Segue abaixo uma pura e simples enumeração.
Movimentos do corpo inteiro: rastejar, pisar, andar. O andar: habitus do corpo em pé
andando, respiração, ritmo do andar, balanceio dos punhos, dos cotovelos, progressão com o
tronco à frente do corpo ou avançando com os dois lados do corpo alternativamente (fomos
habituados avançar com todo corpo de uma vez). Pés para fora, pés para dentro. Extensão da
perna. Rimo-nos do “passo de ganso”. É o meio para o exército alemão obter o máximo de
6
Essa é uma das boas observações de GRAEBNER, ibid.
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extensão da perna, dado, sobretudo, que o conjunto dos homens do norte, de pernas altas,
gostam de tornar o passo o mais longo possível. Por falta desses exercícios, grande número de
nós, na França, ficamos de certa medida cambados do joelho. Eis uma dessas idiossincrasias
que são ao mesmo tempo da raça, de mentalidade individual e de mentalidade coletiva. As
técnicas como as da meia-volta são as mais curiosas. A meia-volta “por princípio” à inglesa é tão
diferente da nossa que exige todo um estudo para ser aprendida.
Corrida. Posição do pé, posição do braço, respiração, magia da corrida, resistência. Vi,
em Washington, o chefe da confraria do fogo dos índios hopi que vinha, com quatro de seus
homens, protestar contra a proibição de servir certas bebidas alcoólicas em suas cerimônias.
Certamente era o melhor corredor do mundo. Fizera 250 milhas sem parar. Todos esses
pueblos estão acostumados a altos feitos físicos de toda espécie. Hubert, que os vira,
comparava-os fisicamente aos atletas japoneses. Esse mesmo índio era dançarino
incomparável.
Enfim, chegamos às técnicas de repouso ativo que não respeitam simplesmente à
estética, mas também a jogos corporais.
Dança. Talvez tenham assistido às lições de von Hornbostel e de Curt Sachs.
Recomendo-lhes a belíssima história da dança desse último7. Admito a divisão feita por ele de
danças em repouso e de danças em ação. Admito menos, talvez, a hipótese que fazem sobre a
repartição dessas danças. São vítimas do erro fundamental no qual vive uma parte da
sociologia. Haveria sociedades de descendência exclusivamente masculina e outras de
descendência uterina. Umas, feminilizadas, dançariam de preferência no lugar; outras, de
descendência masculina, concentrariam seu prazer no deslocamento.
Curt Sachs classificou melhor essas danças extrovertidas e danças introvertidas. Estamos
em plena psicanálise, provavelmente bastante fundamentada aqui. Na verdade, o sociólogo
deve ver as coisas de uma maneira mais complexa. Assim, os polinésios, e os maori em
particular, saracoteiam muito, sem sair do lugar, ou deslocam-se muito quando têm espaço
para fazê-lo.
Devem-se distinguir a dança dos homens e das mulheres, amiúde opostas.
Enfim, é preciso saber que a dança enlaça é um produto da civilização moderna da
Europa. O que demonstra que coisas inteiramente naturais para nós são históricas. Aliás, elas
são objeto de horror para o mundo inteiro, exceto para nós.
Passo às técnicas corporais que cumprem mesmo a função de atividade e, em parte, de
atividades ou técnicas mais complexas.
Salto. Assistimos à transformação da técnica do salto. Todos nós saltamos de um
trampolim e, mais uma vez, de frente. Felizmente isso deixou de ser feito. Atualmente
saltamos, felizmente, de lado. Salto em altura, largura, profundidade. Salto de posição, salto de
vara. Aqui, reencontramos os temas de reflexão de nossos amigos Köhler, Guillaume e
Meyerson: a psicologia comparada do homem e dos animais. Deixo de falar do assunto. Essas
técnicas variam ao infinito.
Escalar. Posso dizer-lhes que, embora seja péssimo para subir em árvores, sou passável
na montanha e no rochedo. Diferença de educação, por conseguinte, de método.
7
CURT SACHS, Weltgeschichte des Tanzes, Berlim, 1933.
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Um método de subir na árvore com o cinto cingido a árvore e o corpo é capital entre
todos os chamados primitivos. Ora, entre nós não temos sequer o emprego deste cinto. Vemos
o trabalhador dos telégrafos subir apenas com seus grampos e sem cinto. O processo deveria
ser-lhe ensinado8.
A história dos métodos de alpismo é realmente notável. Ela fez progressos fabulosos
durante minha existência.
Descer. Não há nada mais vertiginoso do que ver um Kabyle descer com babuchas.
Como pode equilibrar-se sem perder as babuchas? Tentei ver, fazer, não compreendo.
Tampouco compreendo como as senhoras conseguem andar com saltos altos. Assim, há
tudo a observar, e não apenas a comparar.
Natação. Já vos disse o que penso a respeito. Mergulhar, nadar; utilização de meios
suplementares: bóias,, pranchas, etc. estamos na pista da invenção da navegação. Encontro-me
entre aqueles que criticam o livro de Rougé sobre a Austrália, mostraram seus plágios e cheguei
a acreditar em suas graves inexatidões. Com tantos outros, reputei como fábula seu relato: eles
haviam visto grandes tartarugas do mar cavalgadas pelo niol-niol (W. Austrália N.). Ora, temos
hoje excelentes fotografias em que se vêem essas pessoas cavalgarem tartarugas. Da mesma
maneira, a história do pedaço de madeira sobre mais, ela é certa para indígenas de quase todas
as lagunas da Guiné, de Porto-Novo, de nossas próprias colônias.
Movimentos de força. Empurrar, puxar, levantar. Todo mundo sabe o que é um coup de
rein. É uma técnica aprendida, e não uma simples série de movimentos.
Lançar, atirar ao ar, na superfície, etc.; o modo de segurar, nos dedos, o objeto a ser
arremessado é notável e comporta grandes variações.
Segurar. Segurar com os dentes. Uso dos dedos do pé, das axilas, etc.
Todo este estudo dos movimentos mecânicos foi bem iniciado. É a formação de pares
mecânicos com o corpo. Lembrem-se bem da grande teoria de Reulaux sobre a formação
desses pares. E recordamos aqui o grande nome de Farabeuf. Quando me sirvo do punho, e
com mais forte razão desde que o homem teve nas mãos “o soco de pedra chellense”, formamse “pares”.
Aqui, colocam-se todas as proezas manuais, a prestidigitação, o atletismo, a acrobacia,
etc. devo confessar que tive, e ainda não deixei de ter, a maior admiração pelos
prestidigitadores e ginastas.
4. Técnicas de cuidados corporais. Esfregamento, lavagem, ensaboamento. Esse dossiê é
praticamente de ontem. Os inventores do sabão não foram os antigos, que não se ensaboavam.
Foram os gauleses. E, por outro lado, independentemente, toda a América Central e do Sul
(nordeste) ensaboavam-se com o pau-brasil, donde o nome desse império.
Cuidados com a boca. Técnica de tossir e de cuspir. Eis uma observação pessoal. Uma
menina não sabia cuspir e cada catarro que tinha era agravado por isso. Fui informado do fato.
Na aldeia de seu pai e na família de seu pai em particular, em Berry, não sabem cuspir. Ensineilhe a cuspir. Dava-lhe vinte centavos por cada cuspada. Como ela tinha vontade de ter uma
bicicleta, aprendeu a cuspir. Foi a primeira da família a saber fazê-lo.
Higiene das necessidades naturais. Poderia enumerar aqui inúmeros fatos.
8
Acabo de vê-lo enfim utilizado (primavera de 1935).
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5. Técnica do consumo. Comer. Decerto estão lembrados da anedota do xá da pérsia,
repetida por Höffding. O xá, convidado de Napoleão III, comia com os dedos; o imperador
insistiu para que ele se servisse de um garfo de ouro. “Não sabe o prazer que está perdendo”,
respondeu-lhe o xá.
Ausência e uso da faca. Um grave erro foi de fato o de Mac Gee, que acreditou ter
observado que os seri (quase ilha de Madeleine, Califórnia), por serem desprovidos do uso da
faca, eram os mais primitivos dos homens. Eles não têm faca para comer, é tudo.
Beber. É muito útil ensinar às crianças a beberem na própria fonte, do jato, etc.; ou em
vestígios de água, etc., a beber sem tocar com os lábios no copo, etc.
6. Técnicas da reprodução. Nada é mais técnico do que as posições sexuais.
Pouquíssimos autores tiveram a coragem de falar deste assunto. É preciso ser grato a Krauss
por ter publicado sua grande coleção de Anthropophyteia. Consideremos, por exemplo, a
técnica da posição sexual que consiste no seguinte: a mulher tem as pernas suspensas pelos
joelhos nos cotovelos do homem. É uma técnica específica de todo o Pacífico, desde a Austrália
até o Peru, passando pelos estreitos de Behring – e, por assim dizer, muito rara em outros
lugares.
Há todas as técnicas de atos sexuais normais e anormais. Contatos por sexo, mistura de
hálitos, beijos, etc. Aqui, as técnicas e a moral sexuais estão em intima ligação.
7. Há, enfim, as técnicas dos cuidados, do anormal: massagens, etc. Mas passemos
adiante.
Capítulo IV
Considerações Gerais
Talvez questões gerais sejam para os senhores mais interessantes do que essas
enumerações de técnicas que trarei por longo tempo.
O que ressalta com muita clareza destas, é que estamos em toda parte em presença de
montagens fisio-psico-sociológicas de várias séries de atos. Esses atos são mais ou menos
habituais da sociedade.
Vamos mais longe: uma das razões pelas quais essas séries podem ser montadas mais
facilmente no indivíduo é, precisamente, o fato de serem montadas pela e para a autoridade
social. Quando eu era cabo, ensinava a razão do exercício em formação cerrada, a marcha por
quatro e no passo. Proibia-lhes que marchassem no passo e que se pusessem em formação e
em duas filas por quatro, e obrigava o esquadrão a passar entre duas árvores do pátio. Eles
andavam uns por cima dos outros. Perceberam que o que lhes mandavam fazer não era tão
tolo assim. Há em todo o conjunto da vida em grupo uma espécie de educação dos movimentos
em formação cerrada.
Em toda sociedade, todos sabem e devem saber ou aprender aquilo que devem fazer
em todas as condições. Naturalmente, a vida social não é isenta de estupidez e de
anormalidades. O erro pode ser um princípio. A marinha francesa há pouco tempo começou a
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ensinar seus marinheiros a nadar. Mas exemplo e ordem – eis o princípio. Há pois uma forte
causa sociológica para todos esses fatos. Dar-me-ão, espero, razão.
Por outro lado, visto que são movimentos corporais, tudo supõe um enorme aparelho
biológico, fisiológico. Qual é a espessura da roda de engrenagem psicológica? Disse
propositalmente roda de engrenagem. Um comtiano diria que não há intervalos estreo o social
e o biológico. O que posso dizer-lhe é que vejo aqui os fatos psicológicos como engrenagem e
que não os vejo como causas, salvo nos momentos de criação ou de reforma. Os casos de
invenção, de posições de princípios são raros. Os casos de adaptação são uma coisa psicológica
individual. Mas são geralmente comandados pela educação, e pelo menos pelas circunstâncias
da vida em comum, do contato.
Por outro lado, há duas grandes questões, na ordem do dia da psicologia: a da
capacidade individual, da orientação técnica, e a da característica, da biotipologia, que podem
concorrer para esta breve investigação que acabamos de fazer. Os grandes progressos da
psicologia nos últimos tempos não foram feitos, em minha opinião, a propósito de nenhuma
das pretensas faculdades da psicologia, mas em psicotécnica, e na análise de “todos” psíquicos.
Aqui é etnólogo encontra as sérias questões das possibilidades psíquicas desta ou
daquela raça e tal ou qual biologia deste ou daquele povo. Essas são questões fundamentais.
Acredito que também aqui, não importa o que pareça, estamos em presença de fenômenos
bio-sociológicos. Acredito que a educação fundamental de todas essas técnicas consiste em
fazer adaptar o corpo e seu emprego. Por exemplo, as grandes provas de estoicismo, etc., que
constituem a iniciação na maior parte da humanidade, têm por fim ensinar a sangue-frio, a
resistência, a seriedade, a presença de espírito, a dignidade, etc. a principal utilidade que vejo
em meu alpinismo de outrora foi esta educação de meu sangue-frio que me permite dormir em
pé sobre a menor plataforma à beira de um abismo.
Acredito que toda esta noção de educação de raças que se selecionam em vista de um
rendimento determinado é um dos momentos funda mentais da própria história: educação da
vista, educação do andar - subir, descer, correr. Ela consiste, em particular, na educação do
sangue-frio. E este é, antes de tudo, um mecanismo de retardamento, de inibição de
movimentos desordenado; esse retardamento permite uma resposta posteriormente
coordenada de movimentos coordenados, partindo então na direção do fim escolhido. Esta
resistência à emoção avassaladora é algo de fundamenta na vida social e mental. Ela separa
entre si – e chega a classificar – a sociedades ditas primitivas: conforme as reações sejam mais
ou menos brutais, irrefletidas, inconscientes, ou, ao contrário, isoladas, precisas, comandadas
por uma consciência clara.
É graças à sociedade que há uma intervenção da consciência. Não é graças à
inconsciência que há uma intervenção da sociedade. É graças à sociedade que há segurança de
movimentos pronto, domínio do consciente sobre emoção e a inconsciência. É por essa razão
que a marinha francesa abrigará seus marinheiros a prenderem a nadar.
Daí chegaríamos facilmente a problemas muito mais filosóficos.
Não sei se prestaram atenção ao que nosso amigo Granet já indicou acerca de suas
importantes pesquisas sobre as técnicas corporais, da respiração em particular. Fiz muitos
estudos nos textos sânscritos da ioga para saber que os mesmos fatos se encontram na Índia.
Acredito que, precisamente, há, mesmo no fundo de todos nossos estados místicos, técnicas
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corporais que não estudamos e que foram perfeitamente estudadas pela China e pela Índia
desde épocas muitas antigas. Este estudo sócio-psicobiológico da mística deve ser feita. Penso
que há necessariamente meios biológicos de entrar “comunicação com Deus”. Enfim, embora
técnica da respiração, etc. seja o ponto de vista fundamental apenas na Índia e na China,
acredito que esteja espalhada de uma forma muito mais geral. Em todo caso temos a cerca
desse ponto meios para compreender um grande número de fatos que não compreendemos
até agora. Acredito até que todas as descobertas recentes em reflexo-terapia mereçam atenção
de nós sociólogos, depois da dos biólogos e dos psicólogos... muito mais competentes do que
nós.
EMERGÊNCIA
É fácil identificar o passageiro de primeira viagem. É o que já entra no avião
desconfiado. O comprimento da aeromoça, na porta do avião, já é um desafio para a sua
compreensão.
______ Bom dia...
______ Como assim?
Ele faz questão de sentar num banco de corredor, perto da porta, para ser o primeiro a
sair no caso de alguma coisa dar errado. Tem dificuldade com o cinto de segurança. Não
consegue atá-lo. Confidência para o passageiro ao seu lado:
______ Não encontro o buraquinho. Não tem buraquinho?
Acaba esquecendo a fivela e dando um nó no cinto. Comenta, com um falso riso
descontraído: “Até aqui, tudo bem”. O passageiro ao lado explica que o avião ainda está
parado. Mas ele não ouve. A aeromoça vem lhe oferecer um jornal, mas ele recusa.
______ Obrigado. Não bebo.
Quando o avião começa a correr pela pista antes de levantar vôo, ele é aquele com os
olhos arregalados e a expressão de santa mãe do céu! No rosto. Com o avião no ar, dá uma
espiada pela janela e se arrepende. É a ultima espiada que dará pela janela.
Mas o pior está por vir. De repente ele ouve uma misteriosa voz descarnada. Olha para
todos os lados para descobrir de onde sai a voz. “Senhores passageiros, sua atenção, por favor.
A seguir, nosso pessoal de bordo fará uma demonstração de rotina do sistema de segurança
deste aparelho. Há saídas de emergências na frente, nos dois lados e atrás”.
______ Emergência? Que emergência? Quando eu comprei a passagem ninguém falou nada em
emergência. Olha, o meu é sem emergência.
Uma das aeromoças, de pé ao seu lado, tenta acalmá-lo.
______ Isto é apenas rotina, cavalheiro.
______ Odeio a rotina. Aposto que você diz isso para todos. Ai meu santo. “No caso de
despressurização da cabina, máscaras de oxigênio cairão automaticamente de seus
compartimentos”.
______ Que história é essa? Que despressurização? Que cabina? “Puxe a máscara em sua
direção. Isto acionará o suprimento de oxigênio. Coloque a mascara sobre o rosto e respire
normalmente”.
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______ Respirar normalmente?! A cabina despressurizada, máscaras de oxigênio caindo sobre
nossa cabeças ____ E ele quer que a gente respire normalmente?! “Em caso de pouso forçado
na água...”
______ O quê?! “Os assentos de suas cadeiras são flutuantes e podem ser levados para fora do
aparelho e...”
______ Essa não! Bancos flutuantes, não! Tudo, menos bancos flutuantes!
______ Calma, cavalheiro.
______ Eu desisto! Parem este troço que eu vou descer. Onde é a cordinha? Parem!
______ Cavalheiro, por favor. Fique calmo.
______ Eu estou calmo. Calmissimo. Você é que está nervosa e, não sei por quê, está tentando
arrancar as minhas mãos do pescoço deste cavalheiro ao meu lado. Que, aliás, também parece
consternado e levemente azul.
______ Calma! Isso. Pronto. Fique tranqüilo. Não vai acontecer nada.
______ Só não quero mais ouvir falar em banco flutuante.
______ Certo. Ninguém mais vai falar em banco flutuante.
Ele se vira para o passageiro ao lado, que tenta desesperadamente recuperar a
respiração, e pede desculpas, perdeu a cabeça.
______ É que banco flutuante foi demais. Imagine só. Todo mundo flutuando sentado. Fazendo
sala no meio do Oceano Atlântico!
______ A aeromoça diz que lhe vai trazer um calmante e ai mesmo é que ele dá um pulo:
______ Calmante, por quê? O que é que está acontecendo?
Vocês estão me escondendo alguma coisa! Finalmente, a muito custo conseguem
acalmá-lo. Ele fica rígido na cadeira. Recusa tudo que lhe é oferecido. Não quer o almoço.
Pergunta se pode receber a sua comida em dinheiro. Deixa cair a cabeça para trás e tenta
dormir. Mas, a cada sacudida do avião, abre os olhos e fica cuidando a portinha do
compartimento sobre sua cabeça, de onde, a qualquer momento, pode pular uma máscara de
oxigênio e matá-lo do coração.
De repente, outra voz. Desta vez é a do comandante.
______ Senhores passageiros, aqui fala o comandante Araújo. Neste momento, à nossa direita,
podemos ver a cidade de ...
Ele pula outra vez da cadeira e grita para a cabina do piloto:
______ Olha para frente, Araújo! Olha para frente!
Lindos contos...
Autor:
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Título em português: A CULTURA DA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR
Título abreviado:
CULTURA E EDUCAÇÃO FÍSICA
Título em inglês: THE CULTURE OF PHYSICAL EDUCATION IN SCHOOL
Título em português: A CULTURA DA EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR
Autor: JOCIMAR DAOLIO
Faculdade de Educação Física da UNICAMP
Endereço para Correspondência:
Faculdade de Educação Física da UNICAMP
Cid. Univ. Zeferino Vaz – Barão Geraldo
Caixa Postal 6134
Campinas – SP
CEP: 13083-970
Endereço eletrônico: [email protected]
Obs: Esse trabalho constitui-se em parte da tese de livre- docência intitulada “A cultura
DA/NA educação física”, defendida junto à Faculdade de Educação Física da
UNICAMP em Agosto de 2002.
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RESUMO
A partir de referenciais das Ciências Humanas, especificamente da Antropologia Social,
este trabalho discute o conceito de “cultura” e algumas de suas implicações para a área de
Educação Física, com ênfase em sua atuação escolar. Discute a questão do corpo como
expressão cultural; a prática escolar de Educação Física como eminentemente simbólica e
contextual; o trato dos conteúdos escolares e a necessária mediação por parte do professor.
Conclui afirmando que a Educação Física trata da cultura relacionada aos aspectos corporais,
negando a exclusividade das explicações biológicas na área. Assim, a Educação Física pode ser
considerada como a área que estuda e atua sobre a CULTURA CORPORAL DE MOVIMENTO.
Palavras-chave: Educação física escolar; cultura corporal de movimento; educação física;
cultura.
ABSTRACT
Based on references in Human Sciences, and specifically in Social Anthropology, this
work discusses the concept of “culture” and some of its implications in the area of Physical
Education, with emphasis on its educational application. The subject of the body as cultural
expression, the practice of Physical Education in school as eminently symbolic and contextual,
the treatment of the scholastic syllabus, and the necessary teacher mediation are discussed. In
conclusion it is affirmed that Physical Education deals with the body-related culture, refusing
the exclusivity of biological explanations in this field. Therefore, Physical Education can be
considered as a field of study that involves research and work related to the BODY CULTURE OF
MOVEMENT.
Key words: Physical Education in school; body culture of movement; physical education;
culture.
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Pensar a Educação Física a partir de referenciais das Ciências Humanas, e em particular
da Antropologia Social, traz necessariamente a discussão do conceito de “cultura” para uma
área em que isso era até há pouco tempo inexistente. Os currículos dos cursos de graduação
em Educação Física somente há poucos anos vêm incluindo disciplinas próprias das Ciências
Humanas e isso parece estar sendo útil para a ampliação da discussão cultural na área. As
publicações que utilizam como base de análise da Educação Física conhecimentos das Ciências
Humanas têm aumentado nos últimos vinte anos. Não causa mais polêmica afirmar que a
Educação Física lida com conteúdos culturais.
Evidentemente ainda se vê muita confusão no uso da expressão “cultura” na Educação
Física. O termo ainda é confundido com conhecimento formal, ou utilizado de forma
preconceituosa quantificando-se o grau de cultura, ou como sinônimo de classe social mais
elevada, ou ainda como indicador de bom gosto. Ouve-se com freqüência afirmações de “mais
ou menos cultura”, “ter ou não ter cultura”, “cultura refinada ou desqualificada” e assim por
diante.
Enfim, pode-se falar atualmente em cultura da Educação Física e creio que a
contribuição das Ciências Humanas, em geral, e da Antropologia Social, especificamente, foram
importantes. Uma contribuição importante dos estudos antropológicos para a área de
Educação Física parece ter sido a revisão e ampliação do conceito de corpo. É por demais
sabido que a Educação Física no Brasil, originária dos conhecimentos médicos higienistas do
século XIX, foi influenciada de forma determinante por uma visão de corpo biológica, médica,
higiênica e eugênica. Essa concepção naturalista atravessou praticamente todo o século XX –
com variações específicas em cada momento histórico –, estando ainda hoje presente em
currículos de faculdades, publicações e no próprio imaginário social da área.
A conseqüência dessa exclusividade biológica na consideração do corpo pela Educação
Física parece ter sido a construção de um conceito de intervenção pedagógica como um
processo somente de fora para dentro do indivíduo, que atingisse apenas sua dimensão física,
como se ela existisse independentemente de uma totalidade, desconsiderando, portanto, o
contexto sócio-cultural onde esse homem está inserido. As concepções de Educação Física
como sinônimas de aptidão física, a opção por metodologias tecnicistas, o conceito biológico de
saúde utilizado pela área durante décadas, apenas refletem a noção mais geral de ser humano
como entidade exclusivamente biológica, noção essa que somente nesses últimos anos começa
a ser ampliada.
Essas concepções parecem ter sido determinantes para a tendência à padronização da
prática de Educação Física, sobretudo a escolar. Segundo essa lógica, se todos os seres
humanos possuem o mesmo corpo – visto exclusivamente como biológico –, composto pelos
mesmos elementos, ossos, músculos, articulações, tendões, então a mesma atividade proposta
em aula servirá para todos os alunos, causando neles os mesmos efeitos – tomados como
benefícios. Isso talvez explique a tendência da Educação Física em padronizar procedimentos,
tais como voltas na quadra, metragens, marcação de tempo, repetição exaustiva de gestos
esportivos, coreografias rígidas, ordem unida etc.
É óbvio que a partir dessa concepção de corpo e de Educação Física não havia espaço
nem interesse em aspectos estéticos, expressivos ou subjetivos. A tendência era de uma ação
sobre a dimensão física, passível de treinamento visando à repetição de técnicas de
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movimento, sejam as esportivas, de ginástica ou de atividades rítmicas. Era como se a Educação
Física fosse responsável pela intervenção sobre um corpo tido como natural e sem técnica, a
fim de dar a ele padrões mínimos de funcionamento para a vida em sociedade. Se se falava na
consideração dos aspectos psicológicos individuais ou na dimensão estética dos gestos, isso era
desvinculado da dimensão física, como se o corpo fosse a expressão mecânica de uma
superioridade psíquica ou mental.
A Educação Física, a partir da revisão do conceito de corpo e considerando a dimensão
cultural simbólica a ele inerente, pode ampliar seus horizontes, abandonando a idéia de área
que estuda o movimento humano, o corpo físico ou o esporte na sua dimensão técnica, para vir
a ser uma área que considera o homem eminentemente cultural, contínuo construtor de sua
cultura relacionada aos aspectos corporais. Assim, a Educação Física pode, de fato, ser
considerada como a área que estuda e atua sobre a CULTURA CORPORAL DE MOVIMENTO.
Em relação à Educação Física Escolar, a discussão cultural oriunda da Antropologia Social
também contribuiu de forma significativa para aprofundamento e qualificação dos debates.
Primeiramente porque o ser humano passou a ser considerado além de sua dimensão biológica.
Sendo um indivíduo que se localiza num determinado contexto e num determinado momento
histórico, qualquer intervenção pedagógica sobre ele deve levar em conta esses aspectos. Em
segundo lugar, porque a própria dinâmica escolar passou a ser considerada como prática
cultural, sugerindo que a Educação Física não deveria mais ser vista como componente isolado
das outras disciplinas, nem sua prática como meramente técnica.
Em outro trabalho afirmei que considerar a prática escolar de Educação Física a partir de
referencial oriundo da Antropologia Social implica ir além de uma visão determinista de
instituição escolar, para a qual cada componente curricular apenas reproduz o que a Escola
prega como princípio. Implica também superar a idéia de que os professores apenas
reproduzem o que aprenderam em sua formação universitária. Implica ainda ampliar a idéia de
que a qualificação profissional dos professores depende unicamente de melhoria salarial ou de
valorização por parte do governo.
Todos esses pontos são importantes e sua discussão necessária para a Educação Física
escolar, mas, isolados, não permitem a consideração da área como fenômeno social,
historicamente situado, culturalmente localizado e constantemente atualizado por meio de
práticas significativas. Não permitem olhar para a Educação Física na escola como prática
dinâmica, dotada, inclusive, de alta eficácia simbólica.
Se, por um lado, a Educação Física escolar, nas discussões acadêmicas, vem sendo
criticada por ser vazia de conteúdo, por ainda se caracterizar pelo tecnicismo, por não possuir
especificidade pedagógica, pelo fato de seus profissionais preferirem atuar com as atividades
extra-curriculares ao invés de se preocuparem com as curriculares, por outro, a Educação Física
responde de forma eficaz à demanda colocada pela própria comunidade escolar, incluindo aí,
pais, alunos, diretoras, coordenadoras pedagógicas, professores de outras disciplinas e os
próprios professores da área. Eficácia essa que parece estar diretamente proporcional ao
caráter repetitivo, monótono e pouco útil atribuído pelos alunos às outras disciplinas escolares
e à Escola como um todo.
Essa eficácia simbólica foi sendo construída ao longo do tempo e pode ser comprovada
no relato de muitos alunos, para quem as aulas de Educação Física, apesar de tudo, são as mais
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interessantes da escola. Pode também ser observada no relato de professores da área, para os
quais sua disciplina é gratificante na medida em que alcança aprovação por parte dos alunos.
Em pesquisa realizada pude observar entre professores de Educação Física a distância entre
aquilo que as discussões teóricas dos últimos vinte anos esperam deles e aquilo que realmente
eles fazem e por meio do qual se justificam na dinâmica escolar.
A consideração de que a Educação Física escolar é dotada de eficácia simbólica é
importante para revalorizar a figura do professor, muitas vezes criticado por sua prática
alienada e a-crítica, consoante ao quadro político ditatorial e militar brasileiro dos anos 70 e
início dos anos 80. Segundo essa lógica de raciocínio, bastava conscientizar os professores para
que a Educação Física viesse a se tornar uma disciplina transformadora da sociedade brasileira.
Entretanto, se a conscientização do professor de Educação Física era condição necessária para a
melhoria de sua prática, não era suficiente para a transformação de suas ações. Isso porque o
conjunto de fazeres do professor de Educação Física está imbricado com as representações
sociais que ele possui, muitas delas inconscientes.
O professor que atua na escola, além de um conjunto de conhecimentos técnicos
provindos de sua formação acadêmica, lida com um conjunto de valores, hábitos, com uma
tradição, com um determinado contexto, enfim, atualiza significados continuamente. É um ator
encenando uma trama, juntamente com outros atores, num determinado cenário, sob uma
direção. Possui uma história de vida, que o fez escolher a Educação Física em detrimento de
outras carreiras profissionais; possui um jeito de dar aulas; relaciona-se com professores de
outros componentes curriculares; lida com uma expectativa que sobre ele é colocada pela
direção da escola e pela coordenação pedagógica; lida cotidianamente com os alunos e suas
motivações e interesses; é influenciado pela mídia; participa da dinâmica sócio-política
cotidiana. Possui, enfim, um imaginário social que orienta e dá sentido aquilo que faz.
É nesse sentido que se pode considerar a cultura escolar da Educação Física como
processo dinâmico, repleto de nuanças, sutilezas e representações sociais. Não considerar esses
aspectos da Educação Física é correr o risco de se perder, ou numa discussão reducionista de
competência técnica, ou num idealismo teórico e dogmático. Essa discussão sugere também
que a desejada transformação da prática precisa considerar o nível das representações sociais
ancoradas nas ações dos professores.
A abordagem cultural na discussão da Educação Física escolar permite também,
questionando a ênfase ao caráter exclusivamente biológico humano, pensar uma intervenção
que se paute pelas diferenças presentes no grupo de alunos. Como vimos, se a Educação Física
considerar outros aspectos além da dimensão física do homem, terá que criar condições
metodológicas para trabalhar com todos os alunos. O Princípio da Alteridade, conceito usual e
fundante da Antropologia Social contemporânea, mostra-se determinante para a revisão do
papel da Educação Física. Colocar-se no lugar do outro implica considerar que o outro pode ser
diferente e que as relações humanas – incluindo as pedagógicas – devem se pautar pelas
diferenças. Se a Educação Física priorizar a dimensão exclusivamente física do homem, ela
continuará a objetivar em suas aulas padrões atléticos, visando a homogeneizar todos os
alunos. E aqueles que não conseguirem atingir tais padrões, serão considerados menos aptos
ou sem talento ou congenitamente incapazes. Por outro lado, se a Educação Física considerar
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toda e qualquer diferença humana, terá que reavaliar seu papel pedagógico, seus objetivos e
estratégias de ensino. Terá que fazer a aula atingir todos os alunos.
Foi nesse sentido que em alguns trabalhos utilizei a expressão Educação Física Plural,
procurando enfatizar a necessidade de inclusão de todos os alunos na prática escolar de
Educação Física, por meio da revisão de determinados princípios tradicionais da área. Em
trabalho anterior afirmei que a Educação Física Plural parte da consideração de que os alunos
são diferentes e que a aula, para alcançar todos os alunos, deve levar em conta essas
diferenças. Pois, a pluralidade de ações implica aceitar que o que torna os alunos iguais é
justamente sua capacidade de se expressarem diferentemente.
A discussão cultural na Educação Física, por levar em conta as diferenças manifestas
pelos alunos e pregar a pluralidade de ações, sugere também a relativização da noção de
desenvolvimento dos mesmos conteúdos da mesma forma em todos os contextos. Entendo
que a Educação Física escolar deva tratar pedagogicamente de conteúdos culturais
relacionados à dimensão corporal. Porque o ser humano, desde o início de sua evolução, foi
construindo certos conhecimentos ligados ao uso do corpo, aos conceitos de higiene, de saúde,
formas lúdicas, sempre estimulado pelo meio e pela necessidade de sobrevivência, por vezes,
em condições adversas. É nesse sentido que se afirma que a Educação Física trata da cultura
relacionada aos aspectos corporais, expressas nos jogos, nas formas de ginástica, nas danças,
nas lutas e, mais recentemente, nos esportes.
Ora, se pensarmos a Escola como uma instituição que deve, explicitamente e de forma
valorativa, discutir, sistematizar, aprofundar e transformar os conhecimentos da chamada
cultura popular, no caso da Educação Física isso também seria possível. Como a Matemática
deve aprofundar o conhecimento popular sobre os números e operações, chegando ao
desenvolvimento da lógica e do raciocínio matemáticos... como a Educação Artística deve
organizar e ampliar o conhecimento popular sobre as expressões artísticas... como a Língua
Portuguesa deve partir dos conhecimentos de senso comum sobre os usos das formas
lingüísticas para atingir a chamada linguagem elaborada... a Educação Física também deveria
partir do riquíssimo e variado conhecimento popular sobre as manifestações corporais
humanas em seus diversos contextos para propiciar um maior conhecimento que leve a
melhores oportunidades de prática corporal e possibilidades concretas de crítica,
transformação e ampliação desse patrimônio humano relacionado à dimensão corporal.
Porém, se assumimos que o conhecimento popular corporal ocorre diferentemente em
função do contexto, possuindo significados específicos, não é possível defender o
desenvolvimento dos conteúdos da Educação Física de forma unilateral, centralizada e
universal. Entendo que a Educação Física escolar deva trabalhar com grandes blocos de
conteúdo, resumidos no jogo, ginástica, dança, luta e esporte. Isso parece consensual devido ao
fato de que qualquer manisfestação corporal humana traduz-se num ou mais de um desses
cinco grandes temas da cultura corporal. A própria tradição da Educação Física escolar mostra a
presença desses conteúdos – ou, pelo menos, de parte deles – em todos os programas
escolares.
Isso valeria para todas as séries e para todas as escolas. Entretanto, há que se levar em
conta as características e os significados inerentes à cada manifestação de cada bloco de
conteúdo nos variados locais e contextos onde será trabalhado. Em outras palavras, o
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momento de aplicação, a forma de desenvolvimento e o sentido de cada bloco de conteúdo
serão variados, fato que transforma o professor, de um mero executor de um programa escolar
para uma determinada série numa determinada escola, em mediador de conhecimentos. E
quando me refiro à mediação de conhecimentos, incluo necessariamente a dimensão dos
significados desses conhecimentos para o público específico e a representação social dos atores
em questão em relação a esses conhecimentos.
A mesma modalidade esportiva, como o basquetebol, por exemplo, adquire matizes
diferentes em função da dinâmica cultural específica de determinado contexto. Um programa
de aulas que imponha que o basquetebol deva ser ensinado a partir da quinta série, no
segundo bimestre do ano, seguindo a mesma estrutura pedagógica tida como universal, estará,
no mínimo, desconsiderando as especificidades locais. Não estará respeitando a tradição
histórica e a dinâmica cultural do grupo. Nesse sentido, há várias formas de praticar o
basquetebol, assim como há várias formas culturalmente determinadas de compreender e
praticar a dança, o jogo, a ginástica, a luta. O conhecimento de uma modalidade esportiva não
deve ser tomado como rígido objetivo das aulas de Educação Física, mas como ilustração de
uma manifestação cultural específica de um bloco de conteúdo, no caso o Esporte. Em outros
termos, o que deve necessariamente estar presente em todos os programas escolares de
Educação Física são os blocos de conteúdo.
Nas minhas aulas no curso de graduação em Educação Física da UNICAMP, a fim de
justificar para os alunos o sentido de uma disciplina sobre Antropologia Social no currículo,
costumo ilustrar essa questão dizendo que um professor formado em Educação Física na cidade
de Campinas teria condições de trabalhar em qualquer região brasileira, desde que fosse capaz
de fazer as leituras de significados dos conteúdos (jogo, ginástica, esporte, dança, luta) da
região específica, a fim de fazer as mediações necessárias entre o conhecimento popular
específico e o conhecimento elaborado.
Essa questão da mediação necessária de conhecimentos tem me tornado avesso à
elaboração e utilização de rígidos programas e planejamentos, pois um empreendimento desse
tipo, além de não contemplar todas as realidades, poderia ser utilizado como modelo estanque
para o desenvolvimento de aulas, negando todos os pressupostos que a discussão cultural da
Educação Física defende. Não que os planejamentos não sejam importantes. Defendo que são
necessários quando tomados como referência, atualizados constantemente, construídos e
debatidos com os próprios alunos, compartilhados com o projeto escolar, enfim, dinâmicos e
mutantes, considerando os contextos onde serão aplicados.
Para isso, os professores devem assumir outra característica para o desenvolvimento de
suas aulas que não a ordem, a rigidez de comportamentos, a padronização de corpos e de
atitudes e a expectativa que todos os alunos, ao final do processo, conheçam os conteúdos
desenvolvidos e os pratiquem da mesma maneira. Devo ressaltar que boa parte dessas
afirmações serve também para os professores de outras disciplinas escolares que, talvez mais
que os professores de Educação Física, vêem-se reféns de cartilhas, livros-texto e manuais que
desconsideram a cultura de cada grupo e impedem o desenvolvimento da criatividade dos
alunos, tornando a escola monótona, desagradável e, por vezes, inútil.
Acredito que a área de Educação Física brasileira, sobretudo nos últimos vinte anos, já
formulou críticas contra a chamada prática escolar tradicional, além de, nos últimos dez anos,
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vir apresentando proposições interessantes e originais. Resta, agora, a proliferação de
pesquisas de aplicação, nas quais as propostas deixem os laboratórios, os livros e as teses e
sejam testadas em realidades concretas. Diferentemente dos ratos brancos, os homens agem
de forma diferente das simulações em laboratório e, muitas vezes, de forma inesperada.
Entretanto, não basta somente afirmar que os professores em atuação devem ser treinados ou
estimulados a estudar a fim de que sua prática se qualifique. A partir das pesquisas oriundas da
Antropologia, e utilizando a prática etnográfica, vejo a possibilidade de melhor compreender
esse “nativo” da Educação Física em atuação na dinâmica de sua “tribo”. Talvez, assim, possa se
compreender de forma mais clara a dificuldade do profissional de Educação Física em
transformar sua prática. Isso porque, para interpretar a lógica de significados que dá sentido à
qualquer prática, deve-se tomar como pressuposto o caráter cultural de toda ação humana e o
caráter por vezes inconsciente de determinadas ações. Talvez, a partir da etnografia se possa
chegar mais próximo do nível das representações sociais que oferecem suporte, dão sentido e
orientam a prática do profissional de Educação Física.
Uma ação transformadora na Educação Física escolar só será efetiva se conseguir
penetrar o universo de representações dos professores, decifrar os significados de sua prática,
entender a mediação com os fatores institucionais até chegar ao nível dos seus
comportamentos corporais.
Em resumo, entendo que a Educação Física – quer como área acadêmica, quer como
prática pedagógica escolar – trata da cultura, não de toda e qualquer cultura, mas da parte dela
relacionada aos aspectos corporais, aos cuidados com a saúde, às formas lúdicas. Com
freqüência tenho observado manifestações de que o objeto de estudo da Educação Física é o
movimento humano. Algumas pessoas reconhecem a cultura como o meio onde o movimento
se expressa, mas insistem nele como sendo o principal conceito da área.
Creio não ser essa apenas uma questão terminológica diletante, como se as expressões
“cultura” e “movimento” pudessem ser intercambiáveis. Afirmar que a Educação Física trata da
cultura implica negar a exclusividade do componente biológico na explicação das condutas
humanas afetas à Educação Física e fincar a raiz da área nas Ciências Humanas. Por outro lado,
aceitar que a Educação Física trata do movimento humano consiste em secundarizar a
dimensão cultural em relação ao aspecto biofísico humano, afirmando a base biológica como
primordial para a compreensão da área, como se a cultura fosse conseqüência ou produção das
atividades cerebrais. Enfim, insistir que a Educação Física trata da cultura corporal faz com que
priorizemos a dinâmica sócio-cultural na explicação das ações humanas.
Concluindo, procurei nesse trabalho, ainda que rapidamente, discutir o corpo como
componente e expressão culturais, podendo ampliar a visão tradicional e o uso que a Educação
Física faz desse conceito. Em seguida, pude discutir a atuação da Educação Física Escolar como
prática cultural, compreendendo seu caráter simbólico, dinâmico e contextual. Discuti também
a questão do trato dos conteúdos escolares pela Educação Física e sua necessária atualização e
mediação em relação aos contextos específicos onde ela se realiza.
Citei também a abordagem etnográfica, característica e originária da Antropologia,
como importante e necessária atualmente nas pesquisas em Educação Física, objetivando a
análise dos significados de atuação dos profissionais da área. Compreender a atuação dos
profissionais “por dentro” parece fundamental para uma área que vem propondo nos últimos
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anos a revisão de sua ação tradicional, mas que não pode mais acreditar que a transformação
da prática ocorrerá apenas com proposições teóricas. Há que se compreender o caráter cultural
– e, por vezes, inconsciente – de atuação dos profissionais de Educação Física, procurando
alcançar o nível das representações sociais que orientam sua prática.
Acredito que a abordagem antropológica tem contribuído e pode ainda muito contribuir
para uma revisão da Educação Física, tornando-a uma área mais dinâmica, mais original, mais
plural. A análise cultural tem procurado compreender a imensa e rica tradição da área que,
durante anos, a definiu como ela se apresenta hoje e, ao mesmo tempo, tem procurado
entender suas várias manifestações como expressões de contextos específicos. Além disso, a
perspectiva cultural faz avançar na Educação Física a consideração de aspectos simbólicos,
estimulando estudos e reflexões sobre a estética, a beleza, a subjetividade, a expressividade, a
relação com a arte, enfim, o significado.
Afirmei em outro texto:
Qualquer abordagem de Educação Física que negue esta dinâmica
cultural inerente à condição humana, correrá o risco de se distanciar
do seu objetivo último: o homem como fruto e agente de cultura.
Correrá o risco de se desumanizar9.
Bibliografia
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publicado em 1987).
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RITOS CORPORAIS ENTRE OS NACIREMA
O antropólogo está tão familiarizado com a diversidade das formas de comportamento
que diferentes povos apresentam em situações semelhantes, que é incapaz de surpreender-se
mesmo em face dos costumes mais exóticos. De fato se nem todas as combinações logicamente
possíveis de comportamento foram ainda descobertas o antropólogo pode conjeturar que elas
devam existir em alguma tribo ainda não descrita. Deste ponto de vista, as crenças e práticas
mágicas dos Nacirema apresentam aspectos tão inusitados que parece apropriado descrevê-los
como um exemplo de extremos a que pode chegar o comportamento humano.
Foi o professor Linton, em 1936, o primeiro a chamar atenção dos antropólogos para o
ritual dos Nacirema, mas a cultura deste povo permanece insuficientemente compreendida
ainda hoje. Trata-se de um grupo Norte Americano que vive no território entre os Cree e os
Yanque e Tarahumaré do México e os Carib e Arawak das Antilhas. Pouco se sabe sobre sua
origem, embora a tradição relate que vieram do leste. Conforme a Mitologia dos Nacirema, um
Herói cultural de nome Notgnihsaw deu origem a sua nação; ele é, por outro lado, conhecido
por duas façanhas de força: ter atirado um colar de conchas, usado pelos Nacirema como
dinheiro, através do rio Pa-to-Mac e ter derrubado uma cerejeira na qual residia o espírito da
verdade.
A Cultura Nacirema caracteriza-se por uma cultura de mercado altamente desenvolvida,
que evoluiu em um rico habitat natural. Apesar do povo dedicar muito de seu tempo às
atividades econômicas, uma parte de seus frutos destes trabalhos e uma considerável porção
do dia são dispensados em atividades rituais. O foco destas atividades é o corpo humano, cuja
aparência e saúde surgem como o interesse dominante no éthos deste povo. Embora tal tipo de
interesse não seja, por certo, raro, seus aspectos cerimoniais e a filosofia a ele associada são
singulares.
A crença fundamental subjacente a todo o sistema parece ser a de que o corpo humano
é repugnante e que sua tendência natural é para a debilidade e a doença. Encarcerado em tal
corpo a única esperança do homem é desviar esta característica através do uso de poderosas
influências do ritual e do cerimonial. Cada moradia tem um ou mais santuários devotados a
este propósito. Os indivíduos mais poderosos desta sociedade têm vários santuários em suas
casas e, de fato, a alusão à opulência de uma casa, muito freqüentemente, é feita em termos
do número de tais centros rituais que possuía. Muitas casas são feitas de madeira tosamente
pintadas, mas as câmaras de culto das mais ricas são feitas de pedra. As famílias mais pobres
imitam as mais ricas aplicando placas de cerâmicas às paredes de seu santuário.
Embora cada família tenha pelo menos um de tais santuários, os rituais a eles associados
não são cerimônias familiares, mas sim cerimônias privadas e secretas. Os ritos, normalmente,
são discutidos apenas com as crianças e, neste caso, apenas quando estão sendo iniciadas em
seus ministérios. Eu pude, no entanto, estabelecer contato suficiente com os nativos para
examinar seus santuários e obter descrições dos rituais.
No ponto focal do santuário é uma caixa embutida na parede. Nesta caixa são
guardados os inúmeros encantamentos e poções mágicas sem os quais nenhum nativo acredita
9
DAOLIO, Jocimar. A antropologia social e a educação física: possibilidades de encontro, 2001, p.38.
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que poderia viver. Tais preparados são conseguidos através de uma série de profissionais
especializados, os mais poderosos dos quais são os médicos feiticeiros, cujo auxílio deve ser
recompensado com dádivas substanciais. Contudo, os médicos feiticeiros não fornecem aos
seus clientes as poções de cura, somente decidem quais devem ser seus ingredientes e então
os escrevem em sua linguagem antiga e secreta. Esta linguagem é entendida apenas pelos
médicos feiticeiros e pelos ervatérios, os quais, em troca de outra dádiva providenciam o
encantamento necessário.
Os Nacirema não se desfazem do encantamento após seu uso, mas o colocam na caixa
de encantamento do santuário doméstico. Como tais substâncias mágicas são específicas para
certas doenças do povo, reais ou imaginárias, e estas doenças são muitas, a caixa de
encantamento está geralmente a ponto de transbordar. Os pacotes mágicos são tão numerosos
que as pessoas esquecem quais são as suas finalidades. Embora os nativos sejam muito vagos
sobre esse aspecto, só podemos concluir que aquilo que os levam a conservar todas as
substâncias é a idéia de que sua presença na caixa de encantamentos, em frente a qual são
efetuados os ritos corporais, irá, da mesma forma proteger o adorador.
Abaixo da caixa-de-encantamentos, existe uma pequena pia batismal. Todos os dias
cada membro da família, um após o outro, entra no santuário, inclina a cabeça para perto da
pia, mistura algumas poções sagradas entre as mãos e procede um breve ritual de ablução. A
água sagrada que utilizam vem do templo de água da comunidade, onde os sacerdotes
executam elaboradas cerimônias para torná-la totalmente pura.
Na hierarquia dos mágicos profissionais, logo abaixo dos médicos feiticeiros no que diz
respeito ao prestígio, estão os especialistas cuja designação pode ser traduzida por “sagrados
homens da boca”. Os Nacirema tem um horror quase que patológico, e ao mesmo tempo,
fascinação pela cavidade bucal, cujo estado acreditam ter influência sobrenatural em todas as
relações sociais. Acreditam que se não fosse pelos rituais bucais, seus dentes cairiam, suas
gengivas sangrariam, suas mandíbulas se contrairiam, seus amigos os abandonariam e seus
namorados os rejeitariam. Acreditam também na existência de uma forte relação entre as
características orais e as morais: existe, por exemplo, uma ablução ritual da boca para as
crianças, que se supõe aprimorar sua fibra moral.
O ritual do corpo executado por cada Nacirema diariamente inclui um rito bucal. Apesar
de serem tão escrupulosos no cuidado bucal, este rito envolve uma prática que choca o
estrangeiro não iniciado, que só pode considerá-lo como revoltante. Foi-me relatando que o
ritual consiste na inserção de um pequeno feixe de cerdas de porco na boca, juntamente com
certos pós mágicos, e em movimentá-los então numa série de gestos altamente formalizados.
Além do ritual bucal privado, as pessoas procuram o mencionado sacerdote-da-boca
uma ou duas vezes por ano. Estes profissionais têm uma impressionante coleção de
instrumentos, consistindo de broca, furadores, sondas e aguilhões. O uso destes objetos no
exorcismo dos demônios bucais envolve, para o cliente, uma tortura ritual quase inacreditável.
O sacerdote-da-boca abre a boca do cliente e, usando os instrumentos acima citados, alarga
todas as cavidades que a degeneração possa ter produzido nos dentes. Nestas cavidades são
colocadas substâncias mágicas. Caso não existam cavidades naturais nos dentes, grandes
seções de um ou mais dentes são extirpadas para que a substância sobrenatural possa ser
aplicada. Do ponto de vista do cliente, o propósito destas aplicações é tolher a degeneração e
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atrair amigos. O caráter extremamente sagrado e tradicional do rito evidencia-se pelo fato de
os nativos voltarem ao sacerdote-da-boca ano após ano, não obstante o fato de seus dentes
continuarem a degenerar.
Esperamos que quando for realizado um estudo completo dos Nacirema, haja um
inquérito cuidadoso sobre a estrutura de personalidade destas pessoas. Basta observar o fulgor
nos olhos de um sacerdote-da-boca, quando ele enfia um furador num nervo exposto, para se
suspeitar que este rito envolve uma certa dose de sadismo. Se isto puder ser comprovado,
teremos um modelo muito interessante, pois a maioria da população demonstra tendências
masoquistas bem definidas. Foi a estas tendências que o prof. Linton se referiu na discussão de
uma parte específica do rito corporal que é desempenhada apenas por homens. Esta parte do
rito envolve raspar e lacerar a superfície da face com um instrumento afiado. Ritos
especificamente femininos têm lugar apenas quatro vezes durante cada mês lunar, mas o que
lhes falta em freqüência é compensado em barbaridade. Como parte desta cerimônia, as
mulheres assam suas cabeças em pequenos fornos por cerca de uma hora. O aspecto
teoricamente interessante é que um povo que parece ser preponderantemente masoquista
tenha desenvolvido especialistas sádicos.
Os médicos feiticeiros têm um templo imponente, ou latipso, em cada comunidade de
certo porte. As cerimônias mais elaboradas, necessárias para tratar de pacientes muito
doentes, só podem ser executadas neste templo. Estas cerimônias envolvem não apenas o
taumaturgo, mas um grupo permanente de vestais que, com roupas e toucados específicos, se
movimentam serenamente pelas câmaras do templo.
As cerimônias latipso são tão cruéis que é de surpreender que uma boa proporção de
nativos, realmente doente, que entra no templo se recupere. Sabe-se que as crianças
pequenas, cuja doutrinação ainda é incompleta resistem às tentativas de levá-las ao templo
porque “é lá que se vai para morrer”. Apesar disto, adultos doentes não apenas querem, mas
anseiam por sofrer os prolongados rituais de purificação, quando possuem recursos para tanto.
Não importa quão doente esteja o suplicante ou quão grave seja a emergência, os guardiões de
muitos templos não admitirão um cliente se ele não puder dar uma dádiva valiosa para a
administração. Mesmo depois de ter-se conseguido a admissão e sobrevivido às cerimônias, os
guardiões não permitirão ao neófito abandonar o local se não fizer ainda outra doação.
O suplicante que entra no templo é primeiramente despido de todas as suas roupas. Na
vida cotidiana o Nacirema evita a exposição de seu corpo e de suas funções naturais. As
atividades excretoras e o banho, enquanto parte dos ritos corporais, são realizados apenas no
segredo do santuário doméstico. Da perda súbita do segredo do corpo quando da entrada no
latipso, podem resultar traumas psicológicos. Um homem, cujo a própria esposa nunca o viu em
um ato excretor, acha-se subitamente nu e auxiliado por um vestal, enquanto executa suas
funções naturais em um recipiente sagrado. Este tipo de tratamento cerimonial é necessário
porque os excreta são usados por um adivinho para averiguar o curso e a natureza da
enfermidade do cliente. Clientes do sexo feminino, por sua vez, tem seus corpos nus
submetidos ao escrutínio, manipulação e aguilhada dos médicos feiticeiros.
Poucos suplicantes no templo estão suficientemente bons para fazer qualquer coisa
além do jazer em duros leitos. As cerimônias diárias, como os ritos do sacerdote-da-boca,
envolvem desconforto e tortura. Com precisão ritual, as vestais despertam seus miseráveis
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fardos a cada madrugada e os rolam em seus leitos de dor enquanto executam abluções, com
os movimentos formais nos quais estas virgens são altamente treinadas. Em outras horas, elas
inserem bastões mágicos na boca do suplicante ou o forçam a engolir substâncias que se supõe
serem curativas. De tempos em tempos o médico-feiticeiro vem ver seus clientes e espeta
agulhas magicamente tratadas em sua carne. O fato de que estas cerimônias de templo possam
não curar, e possam mesmo matar o neófito, não diminui de forma alguma a fé das pessoas no
médico-feiticeiro.
Resta ainda um outro tipo de profissional, conhecido como “ouvinte”. Este doutor-bruxo
tem o poder de exorcizar os demônios que se alojam nas cabeças das pessoas enfeitiçadas. Os
Nacirema acreditam que os pais enfeitiçam seus próprios filhos, particularmente, temem-se
que as mães lancem uma maldição sobre as crianças enquanto lhes ensinam ritos corporais
secretos. A contra-magia do doutor-bruxo é inusitada por sua carência de ritual. O paciente
simplesmente conta ao “ouvinte” todos os seus problemas e temores, principiando pelas
dificuldades iniciais que consegue rememorar. A memória demonstrada pelos Nacirema, nestas
sessões de exorcismo é verdadeiramente notável. Não é incomum um paciente deplorar a
rejeição que sentiu, quando bebê, ao ser desmamado e uns poucos indivíduos reportam a
origem de seus problemas aos efeitos traumáticos de seu próprio nascimento.
Como conclusão, deve-se fazer referência a certas práticas que têm suas bases na
estética nativa, mas que decorrem da aversão profunda ao corpo natural e suas funções.
Existem jejuns rituais para pessoas gordas e banquetes cerimoniais para engordar pessoas
magras. Outros ritos são usados para tornar maiores os seios das mulheres que os têm
pequenos, e torná-los menores quando são grandes. A insatisfação geral com o tamanho do
seio é simbolizado no fato da forma ideal estar virtualmente além da escala de variação
humana. Umas poucas mulheres, dotadas com um desenvolvimento hiper mamário quase
inumano são tão idolatradas que podem levar uma boa vida simplesmente indo de cidade em
cidade e permitindo aos embasbacados nativos, em troca de uma taxa, contemplarem-nos.
Já fizemos referência ao fato de que as funções excretoras são ritualizadas, rotinizadas e
relegadas ao segredo. As funções naturais de reprodução são, da mesma forma, distorcidas. O
intercurso sexual é tabu enquanto assunto e é programado enquanto ato. São feitos esforços
para evitar a gravidez, pelo uso de substâncias mágicas ou pela limitação do intercurso sexual a
certas fases da lua. A concepção é, na realidade, pouco freqüente. Quando grávidas, as
mulheres vestem-se de modo a esconder o estado. O parto tem lugar em segredo, sem amigos
ou parentes para ajudar, e a maioria das mulheres não amamenta seus rebentos.
Nossa análise da vida ritual dos Nacirema certamente demonstrou ser este povo
dominado pela crença da magia. É difícil compreender como tal povo conseguiu sobreviver por
tão longo tempo sob a carga que impôs sobre si mesmo. Mas até costumes tão exóticos quanto
estes aqui descritos ganham seu real significado quando são encarados sob o ângulo revelado
por Malinovski, quando escreveu:
“Olhando de longe e de cima de nossos altos postos de segurança na civilização
desenvolvida, é fácil perceber toda a leveza e irrelevância da magia. Mas sem
seu poder e orientação o homem primitivo não poderia ter dominado, como o
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fez, suas dificuldades práticas, nem poderia o homem ter avançado aos estádios
mais altos da civilização”.
MINER, Horace
RITOS CORPORAIS ENTRE OS NACIREMA
FONTE: A. K. Honney e P. L. DE Vore (Org.) You and others Readings in Introdutory Antropology
(Cambridge Winthrop Publishers, 1973.) pp. 72-77.
Negrinha∗
Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos
ruços e olhos assustados.
Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos, vivera-os pelos cantos
escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não
gostava de crianças.
Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com
lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma
cadeira de balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando
audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora em suma ― “dama de grandes virtudes
apostólicas, esteio da religião e da moral”, dizia o reverendo.
Ótima, a dona Inácia.
Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva. Viúva sem
filhos, não a calejara o choro da carne de sua carne, e por isso não suportava o choro da carne
alheia. Assim, mal vagia, longe, na cozinha, a triste criança, gritava logo nervosa:
― Quem é a peste que está chorando aí?
Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe da criminosa
abafava a boquinha da filha e afastava-se com ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em
caminho beliscões de desespero.
― Cale a boca, diabo!
No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre, ou frio, desses
que entanguem pés e mãos e fazem-nos doer...
Assim cresceu Negrinha ― magra, atrofiada, com os olhos eternamente assustados.
Órfã aos quatro anos, por ali ficou feito gato sem dono, levada a pontapés. Não compreendia a
idéia dos grandes. Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, a
mesma palavra provocava ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas quase não andava.
Monteiro Lobato in “Os cem melhores contos do século”. (org.) Italo Moriconi, Rio de Janeiro: Editora Objetiva,
2000.
∗
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Com pretexto de que às soltas reinaria no quintal, estragando as plantas, a boa senhora punhaa na sala, ao pé de si, num desvão da porta.
― Sentadinha aí, e bico, hein?
Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas.
― Braços cruzados, já, diabo!
Cruzava os bracinhos a tremer, sempre com o susto nos olhos. E o tempo corria. E o
relógio batia uma, duas, três, quatro, cinco horas ― um cuco tão engraçadinho! Era seu
divertimento vê-lo abrir a janela e cantar as horas com a bocarra vermelha, arrufando as asas.
Sorria-se então por dentro, feliz um instante.
Puseram-na depois a fazer crochê, e as horas se lhe iam a espichar trancinhas sem fim.
Que idéia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha,
diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata-choca, pinto gorado, mosca-morta, sujeira, bisca,
trapo, cachorrinha, coisa-ruim, lixo ― não tinha conta o número de apelidos com que a
mimoseavam. Tempo houve em que foi a bubônica. A epidemia andava na berra, como a
grande novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada assim ― por sinal que achou linda a palavra.
Perceberam-no e suprimiram da lista. Estava escrito que não teria um gostinho só na vida ―
nem esse de personalizar a peste...
O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa
todos os dia, houvesse ou não houvesse motivo. Sua pobre carne exercia para os cascudos,
cocres e beliscões a mesma atração que o ímã exerce para o aço. Mãos em cujos nós de dedos
comichasse um cocre, era mão que se descarregaria dos fluidos em sua cabeça. De passagem.
Coisa de rir e ver a careta...
A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de criança. Vinha da escravidão,
fora senhora de escravos ― e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o
bacalhau. Nunca se afizera ao regime novo ― essa indecência de negro igual a branco e
qualquer coisinha: a polícia! “Qualquer coisinha”: uma mucama assada ao forno porque se
engraçou dela o senhor; uma novena de relho porque disse: “Como é ruim, a sinhá!”...
O 13 de maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não tirou da alma a gana. Conservava
Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Inocente derivativo:
― Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!...
Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade. Cocres: mão
fechada com raiva e nós de dedos que cantam no coco do paciente. Puxões de orelha: o
torcido, de despegar a concha (bom! bom! bom! gostoso de dar) e o a duas mãos, o sacudido. A
gama inteira dos beliscões: do miudinho, com a ponta da unha, à torcida do umbigo,
equivalente ao puxão de orelhas. A esfregadela: roda de tapas, cascudos, pontapés e safanões a
uma ― diverjdíssimo! A vara de marmelo, flexível, cortante: para “doer fino” nada melhor!
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Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá de quando em quando vinha um castigo
maior para desobstruir o fígado e matar as saudades do bom tempo. Foi assim com aquela
historia do ovo quente.
Não sabem! Ora! Uma criada nova furtara do prato de Negrinha ― coisa de rir ― um
pedacinho de carne que ela vinha guardando para o fim. A criança não sofreou a revolta ―
atirou-lhe um dos nomes que a mimoseavam todos os dias.
― “Peste?” Espere aí! Você vai ver quem é peste ― e foi contar o caso à patroa.
Dona Inácia estava azeda, necessitadíssima de derivativos. Sua cara iluminou-se.
― Eu curo ela! ― disse, e desentalando do trono as banhas foi para a cozinha, qual
perua choca, a rufar as saias.
― Traga um ovo.
Veio o ovo. Dona Inácia mesmo pô-lo na água a ferver; e de mãos à cinta, gozando-se na
prelibação da tortura, ficou de pé uns minutos, à espera. Seus olhos contentes envolviam a
mísera criança que, encolhidinha a um canto, aguardava trêmula alguma coisa de nunca visto.
Quando o ovo chegou a ponto, a boa senhora chamou:
―Venha cá!
Negrinha aproximou-se.
― Abra a boca!
Negrinha abriu a boca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa, então, com uma
colher, tirou da água “pulando” o ovo e zás! na boca da pequena. E antes que o urro de dor
saísse, suas mãos amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse. Negrinha urrou surdamente,
pelo nariz. Esperneou. Mas só. Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo. Depois:
― Diga nomes feios aos mais velhos outra vez, ouviu peste?
E a virtuosa dama voltou contente da vida para o trono, a fim de receber o vigário que
chegava.
― Ah!, monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela pobre órfã,
filha da Cesária ― mas que trabalheira me dá!
― A caridade é a mais bela das virtudes cristãs, minha senhora ― murmurou o padre.
― Sim, mas cansa...
― Quem dá aos pobres empresta a Deus.
A boa senhora suspirou resignadamente.
― Inda é o que vale...
Certo dezembro veio passar as férias com Santa Inácia duas sobrinhas suas,
pequenotas, lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas.
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Do seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as irromperem pela casa como dois anjos
do céu ― alegres, pulando e rindo com a vivacidade de cachorrinhos novos. Negrinha olhou
imediatamente para a senhora, certa de vê-la armada para deferir contra os anjos invasores o
raio dum castigo tremendo.
Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era crime brincar? Estaria
tudo mudado ― e findo o seu inferno ― e aberto o céu? No enlevo da doce ilusão, Negrinha
levantou-se e veio para a festa infantil, fascinada pela alegria dos anjos.
Mas a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a alma. Beliscão no umbigo, e
nos ouvidos, o som cruel de todos os dias: “Já para o seu lugar, pestinha! Não se enxerga?”
Com lágrimas dolorosas, menos de dor física que de angústia moral ― sofrimento novo
que se vinha acrescer aos já conhecidos ― a triste criança encorujou-se no cantinho de sempre.
― Quem é, titia? ― perguntou uma das crianças, curiosa.
― Quem há de ser? ― disse a ja, num suspiro d vítima. ― Uma caridade
minha. Não me corrijo, vivo criando essas pobres de Deus... Uma órfã. Mas brinquem, filhinhas,
a casa é grande, brinquem por aí afora.
Brinquem! Brincar! Como seria bom brincar! ― refleju com suas lágrimas, no canto, a
dolorosa martirzinha, que até ali só brincara em imaginação com o cuco.
Chegaram as malas e logo:
― Meus brinquedos! ― reclamaram as duas meninas.
Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos.
Que maravilha! Um cavalo de pau!... Negrinha arregalava os olhos. Nunca imaginara
coisa assim tão galante. Um cavalinho! E mais... Que é aquilo? Uma criancinha de cabelos
amarelos... que falava “mamã”... que dormia...
Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome
desse brinquedo. Mas compreendeu que era uma criança artificial.
― É feita?... ― perguntou, extasiada.
E dominada pelo enlevo, num momento em que a senhora saiu da sala a providenciar
sobre a arrumação das meninas, Negrinha esqueceu o beliscão, o ovo quente, tudo, e
aproximou-se da criatura de louça. Olhou-a com assombrado encanto, sem jeito, sem ânimo de
pegá-la.
As meninas admiraram-se daquilo.
― Nunca viu boneca?
― Boneca? ― repeju Negrinha. ― Chama-se Boneca?
Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade.
― Como é boba! ― disseram. ― E você como se chama?
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― Negrinha.
As meninas novamente torceram-se de riso; mas vendo que o êxtase da bobinha
perdurava, disseram, apresentando-lhe a boneca:
― Pegue!
Negrinha olhou para os lados, ressabiada, com o coração aos pinotes. Que ventura,
santo Deus! Seria possível? Depois pegou a boneca. E muito sem jeito, como quem pega o
Senhor menino, sorria para ela e para as meninas, com assustados relances de olhos para a
porta. Fora de si, literalmente... era como se penetrara no céu e os anjos a rodeassem, e um
filhinho de anjo lhe tivesse vindo adormecer ao colo. Tamanho foi o seu enlevo que não viu
chegar a patroa, já de volta. Dona Inácia entreparou, feroz, e esteve uns instantes assim,
apreciando a cena.
Mas era tal a alegria das hóspedes ante a surpresa extática de Negrinha, e tão grande a
força irradiante da felicidade desta, que o seu duro coração afinal bambeou. E pela primeira vez
na vida foi mulher. Apiedou-se.
Ao percebê-la na sala Negrinha havia tremido, passando-lhe num relance pela cabeça a
imagem do ovo quente e hipóteses de castigos ainda piores. E incoercíveis lágrimas de pavor
assomaram-lhe aos olhos.
Falhou tudo isso, porém. O que sobreveio foi a coisa mais inesperada do mundo ―
estas palavras, as primeiras que ela ouviu, doces, na vida:
― Vão todas brincar no jardim, e vá você também, mas veja lá, hein?
Negrinha ergueu os olhos para a patroa, olhos ainda de susto e terror. Mas não viu mais
a fera antiga. Compreendeu vagamente e sorriu.
Se alguma vez a gratidão sorriu na vida, foi naquela surrada carinha...
Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma ― na princesinha e na
mendiga. E para ambos é a boneca o supremo enlevo. Dá a natureza dois momentos divinos à
vida da mulher: o momento da boneca ― preparatório ―, e o momento dos filhos ― definijvo.
Depois disso, está extinta a mulher.
Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma. Divina
eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que desabrochava, afinal, como
fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à altura de ente humano. Cessara de ser coisa ― e
doravante ser-lhe-ia impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava!
Assim foi ― e essa consciência a matou.
Terminadas as férias, partiram as meninas levando consigo a boneca, e a casa voltou ao
ramerrão habitual. Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se outra, inteiramente transformada.
Dona Inácia, pensativa, já não a atazanava tanto, e na cozinha uma criada nova, boa de
coração, amenizava-lhe a vida.
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Negrinha, não obstante, caíra numa tristeza infinita. Mal comia e perdera a expressão
de susto que tinha nos olhos. Trazia-os agora nostálgicos, cismarentos.
Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu trevas adentro do seu doloroso
inferno, envenenara-a.
Brincara ao sol, no jardim. Brincara!... Acalentara, dias seguidos, a linda boneca loura,
tão boa, tão quieta, a dizer mamã, a cerrar os olhos para dormir. Vivera realizando sonhos de
imaginação. Desabrochara-se de alma.
Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Jamais,
entretanto, ninguém morreu com maior beleza. O delírio rodeou-a de bonecas, todas louras, de
olhos azuis. E de anjos... E bonecas e anjos remoinhavam-lhe em torno, numa farândola do céu.
Sentia-se agarrada por aquelas mãozinhas de louça ― abraçada, rodopiada.
Veio a tontura; uma névoa envolveu tudo. E tudo regirou em seguida, confusamente,
num disco. Ressoaram vozes apagadas, longe, e pela última vez o cuco lhe apareceu de boca
aberta.
Mas, imóvel, sem rufar as asas.
Foi-se apagando. O vermelho da goela desmaiou...
E tudo se esvaiu em trevas.
Depois, vala comum. A terra papou com indiferença aquela carnezinha de terceira ―
uma miséria, trinta quilos mal pesados...
E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica, na memória
das meninas ricas.
― “lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca?”
Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia.
― “Como era boa para um cocre!...”
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O FUTEBOL
O Alceu combinou para hoje à tarde um encontro com uma porção de colegas da classe
no terreno baldio que fica perto de casa. O Alceu é meu amigo, ele é gordo, gosta muito de
comer, e ele marcou encontro com a gente porque o pai dele deu uma bola de futebol novinha
para ele e a gente ia fazer um jogo incrível. O Alceu é legal.
A gente se encontrou no terreno às três horas da tarde, nós éramos dezoito. Primeiro
tivemos que decidir como formar os times para ficar o mesmo número de jogadores de cada
lado.
Escolher o juiz foi fácil. Nós escolhemos o Agnaldo. O Agnaldo é o primeiro da classe, a gente
não gosta muito dele, mas como ele usa óculos a gente não pode bater nele, e isso para um
juiz até que dá certo. E também nenhum time queria o Agnaldo, porque ele não é muito
bom em esportes e chora à toa. Discussão teve mesmo quando o Agnaldo pediu para a
gente dar um apito para ele. O único que tinha apito era o Rufino, que tem o pai que é da
polícia.
“Eu não posso emprestar o meu apito de bolinha pra ele”, o Rufino disse, “é lembrança de
família”. Ninguém podia fazer nada. No fim a gente decidiu que o Agnaldo avisava e o Rufino
apitava no lugar do Agnaldo.
“Como é? A gente vai jogar ou não? Eu já estou ficando com fome!” gritou o Alceu.
Mas o que complicou foi que, se o Agnaldo era o juiz, então nós éramos só dezessete
jogadores e na hora de dividir sobrava um. Mas aí nós descobrimos um jeito: um ia ser juiz
de linha e ia agitar uma bandeirinha cada vez que a bola saísse do campo. O escolhido foi o
Max. Um bandeirinha só não chega pra vigiar o campo todo, mas o Max corre muito
depressa, ele tem as pernas muito compridas e magras com joelhos gordos e sujos. O Max
não queria nem saber, ele queria jogar bola, isso sim, e além disso ele falou que não tinha
bandeira. Mesmo assim ele aceitou ser o bandeirinha no primeiro tempo. Em vez de
bandeira ele ia agitar o lenço dele, que não estava muito limpo; mas é claro que, quando ele
saiu de casa, não sabia que o lenço dele ir servir de bandeirinha.
“Bom, vamos lá? Gritou o Alceu.
Depois ficou mais fácil, nós éramos só dezesseis jogadores.
Precisava de um capitão para cada equipe. Só que todo mundo queria ser capitão. Todo
mundo menos o Alceu, que queria ser goleiro, porque ele não gosta de correr. A gente
concordou, o Alceu é bom goleiro; ele é muito largo e cobre bem o gol. Mesmo assim ainda
eram quinze capitães, e por isso iam sobrar muitos.
“Eu sou o mais forte”, o Eudes gritava, “o capitão tem que ser eu e vou dar um soco no nariz
de quem não concordar!” “O capitão sou eu, eu sou o mais bem vestido!” gritou o
Godofredo, e o Eudes deu um soco no nariz dele.
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O Godofredo estava bem vestido mesmo; o pai dele, que é muito rico, tinha comprado um
uniforme completo de jogador de futebol para ele, com uma camisa vermelha, branca e
azul.∗
Aí o Rufino gritou: “Se eu não for o capitão vou chamar o meu pai e ele prende todo
mundo!”
Eu tive a idéia de tirar a sorte com uma moeda. Com duas moedas, porque a primeira caiu na
grama e nunca mais ninguém achou. O Joaquim é que tinha emprestado a moeda e ele não
gostou nada de ter perdido ela e ficou procurando a moeda mesmo depois que o Godofredo
prometeu que o pai dele ia mandar um cheque para reembolsar o Joaquim. Afinal os dois
capitães foram escolhidos: o Godofredo e eu.
“Escuta, eu não estou querendo chegar atrasado para o jantar”, o Alceu gritou. “Vamos
jogar?”
Depois a gente teve que formar os times. Não deu problema com ninguém, só com o Eudes.
O Godofredo e eu, nós dois queríamos o Eudes, porque quando ele corre com a bola
ninguém segura. Ele não joga muito bem, mas dá medo. O Joaquim estava muito contente
porque ele tinha achado a moeda, então nós pedimos ela emprestada para sortear o Eudes,
e perdemos a moeda de novo. O Joaquim começou a procurar de novo, louco da vida, e o
Godofredo ganhou o Eudes no par ou ímpar. O Godofredo escalou o Eudes de goleiro, ele
achou que ninguém ia ter coragem de chegar perto da trave e muito menos de enfiar a bola
dentro. O Eudes fica zangado à toa. O Alceu estava comendo bolachas, sentado entre as
pedras que marcavam o gol dele. Ele não parecia nada contente. “Como é, vai começar ou
não?” ele gritava.
Tomamos posição no campo. Como era só sete de cada lado, sem contar os goleiros, não foi
nada fácil. Nos dois times começou a sair discussão. Uma porção de gente queria ser
centroavante. O Joaquim queria ser zagueiro esquerdo, mas era porque a moeda dele tinha
caído naquele lugar do campo e ele queria continuar procurando enquanto jogava.
No time do Godofredo tudo se organizou logo porque o Eudes deu um montão de socos e os
jogadores foram para o lugar sem reclamar, esfregando o nariz. É que o Eudes bate com
força!
No meu time, ninguém chegava a um acordo até que o Eudes disse que ia vir dar uns socos
nos nossos narizes também: aí a gente se colocou.
O Agnaldo disse para o Rufino: “Apita!” e o Rufino, que jogava no meu time, apitou a saída.
Godofredo não gostou. Ele disse: “Espertinho, hem! Nós estamos jogando contra o sol! Não
sei por que o meu time tem que jogar no lado ruim do campo!”
Eu disse pra ele que se ele não gostava do sol que fechasse os olhos e que era capaz até que
ele jogasse melhor assim. Aí nós brigamos. Rufino começou a soprar no apito de bolinha.
∗
Cores da bandeira da França: país de origem do autores do texto.
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“Eu não dei ordem pra apitar”, gritou o Agnaldo, “eu é que sou o juiz!” O Rufino não gostou
e disse que ele não precisava de permissão do Agnaldo para apitar, que ele ia apitar quando
quisesse, e que só faltava essa. E ele começou a apitar que nem um doido. “Você é mau, é
isso que você é!” gritou o Agnaldo, e começou a chorar.
“Ei, gente!” disse o Alceu lá do gol dele.
Mas ninguém escutava ele. Eu continuava a brigar com o Godofredo, tinha rasgado a linda
camisa vermelha, branca e azul dele, e ele dizia; “Ha, ha, ha! Não faz mal! Meu pai vai
comprar uma porção de camisas novas pra mim!” E ele me dava pontapés nas canelas. O
Rufino corria atrás do Agnaldo, que gritava: “Eu uso óculos! Eu uso óculos!” O Joaquim não
ligava pra ninguém, ele estava procurando a moeda dele, mas não tinha achado nada. O
Eudes, que tinha ficado quieto no gol, ficou cheio e começou a dar socos nos narizes que
estavam mais perto dele, quer dizer, nos do time dele. todo mundo gritava e corria. Estava
divertido mesmo, estava legal!
“Parem!” gritou o Alceu de novo.
Então o Eudes ficou furioso. “Você estava com tanta pressa de jogar”, ele disse para o Alceu,
“então estamos jogando. Se quiser dizer alguma coisa, espera o intervalo!”
“O intervalo do quê?” perguntou o Alceu. “Acabei de me lembrar que a gente não tem bola,
eu esqueci a bola em casa!”
Sempé – Goscinny, “Le Petit Nicolas”, Paris, Éditions Denoël, 1960.
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