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Os guerreiros correm perigo:
reflexões sobre Alencar
e os impasses da fundação nacional
Lucia Helena 
E se houvesse milhões de pessoas mais milhões do que
qualquer um pudesse imaginar, vivendo em campos, vivendo de esmolas, vivendo da terra, vivendo de fraudes,
se encolhendo pelos cantos para escapar de sua época [...]?
John Maxwell Coetzee. Vida e época de Michael K.
Resumo
O artigo trata da reavaliação das propostas do Romantismo e da obra de José de Alencar,
com enfoque específico no romance O guarani. Ambos são focalizados em seu caráter
de posicionamento cultural e estético renovador, ainda hoje oportuno, em especial pelo
componente de utopia. Procuramos demonstrar que, em um mundo que demite as utopias, Alencar e o Romantismo nacional e internacional de seu tempo – relidos hoje – incitam o
pensamento a colocar em pauta uma nova forma de formulação utópica: a que se articula à
precariedade e à finitude dos homens e que, sem abdicar da esperança, abole, no entanto, o
ufanismo e o totalitarismo.
Palavras-chave: José de Alencar. O guarani. Romantismo. Utopia. Crítica do ufanismo.
Fundamentalismo.
1 Introdução
Em tempos de uma nova cartografia do Capitalismo – que, voraz e
rapidamente, estende pelo globo suas crises agudas, acumulando dívidas e
dúvidas –, soa oportuno repensar a obra de Alencar, embora, segundo
Nelson Mota, aquele escritor – ainda que um baluarte – deva ser considerado um chato, além de um dos culpados pelo desapreço dos jovens acerca
da literatura, ao ter sua produção incluída nos currículos dos alunos do
ensino médio. Essa avaliação de Mota saiu nos jornais cariocas em março
de 2010 e, como se sabe, ele não está sozinho ao pensar assim.

Doutora em Teoria da Literatura pela UFRJ. Pós-Doutora em Literatura Comparada pela
Brown University, EEUU. Professora titular da Universidade Federal Fluminense, onde
leciona as disciplinas de Literatura Brasileira na Graduação e Teoria da Literatura e Literatura Comparada na Pós-Graduação. Pesquisadora 1-A do CNPq.
(E-mail: [email protected]).
Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 47, p. 87-105, jan./jun. 2010
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Afinal, vale ou não vale a pena pensar em Alencar, em sua obra e
no Romantismo brasileiro e no Romantismo de um modo em geral? Silviano Santiago tem um livro de título interessante (Vale quanto pesa), que
resgato nesta hora, para fazer-lhe um pastiche e uma brincadeira com o
nojo de Nelson Mota por um escritor que, quem sabe, ele poderia ler,
com sua inteligência e humor, de outra maneira. Ou seja: além da pendenga do vale ou não vale ficar parecendo pregão de leiloeiro, talvez se
pudesse contradizer Mota mencionando não o passadismo (não se poderia discordar de que há em seus textos um protocolo retórico romântico
hoje em desuso do ponto de vista do estilo e das convenções narrativas),
mas a atualidade de Alencar e do Romantismo, enquanto proposta cultural, teórica e filosófica, uma vez que nós mesmos e o mundo contemporâneo estamos mais próximos de questões que ambos nos lançaram do
que a opinião que se manifestou parece supor.
2 Alencar e os impasses da fundação nacional
Como ponto de partida para essa provocadora questão, podemos
dizer que
[...] de todas as contribuições do Romantismo, talvez a
principal e mais persistente para o mundo atual seja o ingrediente de utopia, marcando e pontuando nossas ações.
Enquanto as utopias existirem em algum recanto da sociedade, seremos românticos. É possível dizer que tudo o que
veio depois do Romantismo, foi romântico. (HELENA,
2006, p. 38).1
Como supor, diante de um mundo em que se despojaram de valor
as utopias, em nome de uma estupenda valorização do mercado, da virtualidade e da visualidade, que a atualidade de Alencar e do Romantismo resida justamente em seu potencial utópico? Pois é justamente nesse
potencial transformador das utopias que reside a atualidade de ambos –
o movimento literário e o autor – pela simples razão de que, carente das
utopias – é claro que não falamos da utopia ufanista, nem das utopias
grandiloquentes e totalitárias –, o mundo atual tem revelado uma lacuna
que vem sendo preenchida pela arte, pela filosofia e pela literatura, nas
quais a dimensão da precariedade e da finitude humanas se reúne à retomada da esperança.
Expliquemos melhor esse ponto de vista, que não é evidente por
si mesmo. Para tanto, é necessário inicialmente sublinhar que, após o
episódio ocorrido nos Estados Unidos em 11 de setembro de 2001, as
1 Cf. HELENA, Lucia. A solidão tropical: o Brasil de Alencar e da modernidade. Porto Alegre: EdPUC/RS, 2006.
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utopias (para o bem e para o mal) revelaram não estarem mortas, bem
como ficou claro que o Iluminismo não conseguiu exterminar, como
supúnhamos, o fantasma do fundamentalismo, que desabou tragicamente sobre nossas cabeças. Esse fundamentalismo provém não apenas
dos que planejaram a chacina como também dos que a perpetraram, do
mesmo modo que dele participa o governo do país-alvo, que determinou formas fundamentalistas de contra-ataque. A explosão das torres
gêmeas em Nova Iorque mostrou que o tempo das utopias2 não é linear,
nem homogêneo. Algo do remoto passado relampejou no ar e caiu na
terra, destruindo vidas, sonhos e convicções. E o fez também em nome
de vidas, sonhos e convicções. Em meio aos escombros, acendeu-se uma
advertência contra a arrogância, e ela fica piscando entre os despojos,
como uma labareda em meio à selva da alta tecnologia.
Diferentemente do que se imaginava, nem o século XVIII, nem o
Iluminismo – com seu racionalismo e tecnologia para o progresso, nem
mesmo com sua Revolução Industrial e com a Revolução Francesa, eventos de magnitude – conseguiram extinguir o fundamentalismo. Ele anda
vivíssimo e destruidor, pois ideias e utopias não falecem como corpos.
Elas migram, insistem, persistem. São imortais como os espectros.
Ao falarmos da permanência e do vigor das utopias, tratamos de
uma forma especial de pensamento utópico, próximo a um determinado
sentimento das fronteiras e do mundo, comum às utopias que compreendem que a precariedade e o sentimento de que somos finitos são dimensões pertinentes à humanidade. Essas são as forças utópicas que permanecem no ar da atualidade, e piscam como vaga-lumes da esperança, em
meio ao ceticismo de nosso tempo.
A atualidade do Romantismo, supostamente ultrapassado, pode
ser constatada, do mesmo modo, na leitura de Revolta e melancolia: o Romantismo na contramão da modernidade. Nesta obra, Michel Löwy,
também conhecido por seu livro seminal Redenção e utopia, e seu co-autor
Robert Sayre afirmam que o Romantismo, pelo caráter fabulosamente
contraditório de que se reveste, é simultaneamente
[...] individualista e comunitário, cosmopolita e nacionalista, realista e fantástico, retrógrado e utopista, revoltado e
melancólico, ativista e contemplativo, republicano e monarquista, vermelho e branco, místico e sensual. Tais contradições permeiam não só o fenômeno romântico no seu
conjunto, mas a vida e a obra de um único e mesmo autor,
e por vezes de um único e mesmo texto. (LOWY; SAYRE,
1995, p. 9).3
2
Cf. o segundo capítulo de HELENA, 2006, p. 58.
3
Cf. a obra: LOWY, Michel; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia: o romantismo na contramão da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1995.
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Temos, portanto, em Alencar e no Romantismo, não só no brasileiro, a articulação da mudança com o impasse. Nossos heróis românticos,
nos romances de costumes, não são nada heroicos, revelam-se homens de
todo-dia, homens brancos e jovens comuns que dissipam heranças (pequenas, é verdade), como o Jorge de A viuvinha (1857). Ou então são indígenas corajosos e cheios de valores, como o Peri de O guarani, que celebra
o nacional. Tais personagens, contraditórios quando comparados entre si,
traduzem, no entanto, a própria ambivalência e inquietação de um estado
nacional também inseguro e muitas vezes idealizado de forma ufanista
sem que para isto houvesse lastro cultural, econômico e político em uma
sociedade que se dizia liberal para uso externo, mas que, para uso interno, restava paradoxal, posto que ancorada no escravismo.
No Estado-nação que se forma no Brasil durante o século XIX, é
visível a permanência de formas autoritárias e escravagistas oriundas da
tradição colonial, que não se extinguem quando da Independência. Dessa
maneira, no imaginário da liderança política e intelectual brasileira dos
Oitocentos, um contingente de escritores formula, na prosa, no teatro e na
poesia, a literatura nacional, com a qual se pretendia plasmar um cânone
estético novo e um novo país ainda condicionado a uma paradoxal articulação entre conservadorismo e liberalismo.
Como já dissemos em nosso livro A solidão tropical,4 a busca de recuperar a memória da vida selvagem e fazê-la interagir com o mal-estar
da colonização nas Américas foi um dos desafios que José de Alencar
tomou a cargo. A semente filosófica da reflexão de vanguarda descortinada pelo primeiro romantismo alemão do final do século XVIII, no qual
se teorizou sobre a arte, a poesia, o romance e o teatro, ficou, no Brasil,
aguardando na fila do conjunto de projetos para o século XIX.
Desencadeada pelo primeiro romantismo alemão, essa semente
consistia em salientar a realidade e o fascínio da liberdade criadora da
imaginação. E em formular “a instituição teórica [...] da literatura mesma [...]”.5
Enquanto isso, no Brasil de meados do século XIX, a literatura começa a ser focalizada como uma formulação nacional e, assim mesmo,
não de um ponto de vista teórico, mas localista, ou seja, pondo-se ênfase
na paisagem e na cor local brasileiras. Em nossa sociedade, no período
inicial do Romantismo,
[...] o deslumbramento com o progresso e o verniz da civilização encobrem problemas graves, como a escravidão –
tratada quase em surdina – e o vazio demográfico de i4 Cf. o capítulo “A solidão tropical e os pares à deriva”, In: HELENA, Lucia. A solidão
tropical: o Brasil de Alencar e da modernidade. Porto Alegre: Ed. PUCRS, 2006, pp. 63-88.
5 Cf. “Avant-propos”. In: LACOUE-LABARTHE; NANCY, 1978. p. 11, (grifo dos autores).
In: LACOUE-LABARTHE, Philippe; NANCY, Jean-Louc. L’absolu littéraire: Théorie de la
littérature du romantisme allemand. Paris: Seuil, 1978. (Grifo dos autores).
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mensas regiões [...]. Esses assuntos [...] começavam a inquietar as novas gerações que cursavam as academias de
Direito de São Paulo e Pernambuco. (MACHADO, 2001,
p. 19-20).6
Nossos intelectuais apresentavam um rosto homogêneo para o país que nascia híbrido e lacerado, e promoviam uma leitura quase pragmática da ficção. Neste panorama, destacam-se as relações, muito desiguais,
entre o excluído e o dominante – nas quais o indígena, ainda que homenageado, não figura como elemento formador do Estado-nacional. Em
O guarani a crítica custou a ver que, nas páginas finais, em um diálogo em
discurso direto, passado ao leitor via narrador, Peri afirma que não pode
ir com Ceci para a cidade, pois nesta seria apenas um cativo dos cativos.
Ou seja, por não se prestar ao trabalho escravo, o personagem indígena
valeria menos do que um cativo.
O pensamento de conciliação, tantas vezes em vigor em uma sociedade que se formava de modo mais conservador do que liberal, leva a
que as narrativas do romance nacional – seja ele de costumes, indianista,
regional ou histórico –, sejam diluídas em histórias de amor entre contrários, num pensamento que parece conferir uma origem edênica à identidade. Imaginava-se a nação como se fosse possível cancelar, apenas com
os novos símbolos, o conjunto de divergências e desequilíbrios que nos
diziam, e ainda dizem respeito. Assim, no traçado da particularidade
brasileira, se pretendia apresentá-la, de um lado, como cor local fascinante; de outro, sob a forma do Estado-nação.7
O primeiro romantismo alemão pensava a natureza como construção do sujeito,8 na esteira de uma reflexão pujante desencadeada por
Rousseau. Em contraposição, e ainda que não fizesse só isso, o Romantismo brasileiro se extasia diante da natureza vista como cor local, tor6
MACHADO, Ubiratan. A vida literária no Brasil durante o Romantismo. Rio de Janeiro:
EdUERJ, 2001.
7
O século se abre repleto de mudanças bruscas, passando-se de colônia a nação independente sem instituições sólidas. Em teoria, a principal característica da burguesia europeia
dos oitocentos é a de ser “a primeira classe na história a ganhar proeminência econômica
sem aspirar ao domínio político” (Hannah Arendt, As origens do totalitarismo. II. Imperialismo, a expansão do poder, uma análise dialética. Intr. Oliveiros Litrento. Trad. Roberto
Raposo. Rio de Janeiro: Documentário, 1976, p. 15). No Brasil, a prática definia excessiva
contaminação entre o público e o privado, não existindo com propriedade um Estado-nação
que de fato governasse “uma sociedade dividida em classes, colocando-se acima e além
delas” (Idem, ibidem).
8
Cf. LACOUE-LABARTHE; NANCY, 1978, p. 12. Os organizadores da antologia argumentam que a atenção à natureza, por parte dos primeiros românticos alemães, não consiste
apenas em apreender a paisagem diante da qual se experimenta um sentimento sublime, ou
de grandeza épica passada, ou os dois misturados. Também não consistia em só produzir
uma sensibilidade capaz de responder a este “espetáculo” e de “fantasiar” o que ele evoca.
O primeiro romantismo se constituirá, antes, numa leitura irônica das obras que exploram o
“Romantismo romanesco”, inaugurando um projeto teórico muito mais amplo, que tratará
de uma crise não só na literatura, mas social, moral, religiosa e política.
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nando-a categoria identitária quase hegemônica. De uma forma própria,
com isso retoma o exotismo com que fomos cotados pelos europeus, de
fora para dentro, invertendo-lhe o sinal, de dentro para fora. Boa parte de
nosso Romantismo parece dizer que sendo exóticos, como se fôssemos
habitantes de outro lugar, nos daria a condição de autenticidade e identidade, o que nos distinguiria de uma Europa que, na figuração da paisagem, teria ficado para trás. No entanto, sabe-se, descolar paisagens, ressaltando o cromo, não liberta o imaginário, nem encaminha a discussão
da alteridade e da subjetividade.
Um fio de ranço ficava preso ao passado, arrastando pedaços de
um jarro quebrado que se ocultavam debaixo do tapete. No plano explícito, parecia haver concordância: nossa terra tinha mais terra, mais beleza,
mais amores. E sob a capa de um ufanismo promissor, o fundamento da
nacionalidade se fazia raso. A ideia do lugar tomava o lugar das ideias.
A busca de fazer mais, ou melhor, que a Antiguidade, e ao mesmo
tempo superá-la e completá-la no que ela tem de inacabado ou no que ela
não conseguiu realizar do ideal clássico que entrevia (LACOUELABARTHE; NANCY, 1978, p. 20), uma aspiração considerada no projeto
do grupo do primeiro romantismo alemão, implicava uma meditação que
as ações urgentes necessárias à sociedade brasileira adiavam e que o preconceito das elites dificultava.
Só para ficar num exemplo, mesmo a crítica de José Bonifácio de
Andrada e Silva9 sobre o destino catastrófico que prevê para o Brasil, por
ser conduzido por uma elite despreparada, conta como elementos a destacar os mesmos parceiros da cena colonial: aristocratas, magistrados e
clero.
A arraia miúda, coadjuvante quando muito, é peça rara na constituição das tramas romanescas principais e também na reflexão dos ideólogos da nacionalidade, mesmo quando se aventuram no pensamento
crítico sobre a literatura. A reflexão teórica sobre a literatura em si mesma, ou a literatura, como queriam os jovens do primeiro romantismo
alemão, comparece nos bastidores. Nesse sentido, avulta o papel de
Alencar.
Avanço a hipótese de que em seus textos, ainda que sob o peso de
algumas concessões e imperfeições, entrelaçam-se cintilações e reflexões
que conduzem atilada perspectiva teórica e de consciência crítica tanto da
literatura como um fazer em si mesma, quanto da prática social do segundo Império. Sob as sombras que apagam a tonalidade ufana com que
louva o localismo e institui-lhe a presença, urde-se uma rede de reflexão
pertinente, por vezes melancólica, sobre a paisagem e a terra, o sujeito e a
subjetividade como construções de linguagem.
9
ANDRADA e SILVA, José Bonifácio de. Projetos para o Brasil. Miriam Dollnikoff (Org.).
São Paulo: Cia. das Letras, 1998. p. 30.
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Muitas vezes lido de forma preconceituosa, colando-se diretamente ao escritor de ponta o político (conservador) e a seus escritos a realidade, sua narrativa surpreende pela aguda perspicácia diante dessas questões. Aparentemente ele teria embarcado, supõem alguns críticos, no
mesmo roldão, podendo-lhe serem apontadas contradições visíveis. Falta
examinar, todavia, o que ressalta de material latente, na forma como sua
ficção trata dos impasses com que se defrontava a sociedade daquele
momento para construir uma imagem que a habilitasse não só ao exercício da cidadania (sonho acalentado pela vontade-de-ser-nação da elite),
mas também ao questionamento solitário do que era a literatura do ponto
de vista teórico, enquanto operação com a linguagem.
Quero abordar um dos aspectos dessa questão, o que me afasta do
exame específico e mais demorado da obra de Alencar como um todo,
para construir uma base nova com que interrogar e interpretar sua ficção.
Esta consiste em pressupor, como ponto de partida, que o romance tem,
na matriz, o indivíduo em solidão. Sendo um tema, mas também uma
forma interior da economia romanesca, a solidão é provocadora do mergulho no território da intimidade, fazendo-se condutora do movimento
pelo qual a subjetividade se reconhece e se abole, quando aliada à ironia,10 tornando-se instrumento de reflexão e crítica.
Focalizarei um momento especial do conceito de solidão. Sua história mais completa, ainda que noutra direção e com diferente objetivo,
foi empreendida por Edward Engelberg, em seu Solitude and its ambiguities in modernist fiction (A solidão e suas ambiguidades na ficção modernista).
Engelberg11 mostra que o Ocidente focalizou a solidão, ao longo da história do conceito, como uma sedutora trajetória de escape em face à angústia do mundo, e como forma de autoconhecimento e autodesenvolvimento (ENGELBERG, 2001, p. 8).
O apagamento da totalidade épica abre o pensamento para a discussão das categorias do indivíduo, da identidade e da liberdade na relação entre os homens e o mundo, preocupações que dão vida à narrativa
de Alencar, que, desde as “Cartas sobre A confederação dos Tamoios”, tem
consciência de que é preciso encontrar, findo o tempo das epopeias, o
impulso poético que permita engendrar outra linguagem, ou a forma
com que dizer do nascimento de uma entidade nova – o brasileiro –, num
mundo novo. Enlaçar a narrativa do autor ao conceito de solidão como
forma interna do romanesco implica, pois, necessária e primeiramente,
refletir sobre a importância deste conceito na fundação da modernidade.
10
LUKÁCS, George. A teoria do romance. Trad. Alfredo Margarido. Lisboa: Presença, [s.d]. p. 74.
11
Cf. ENGELBERG, Edward. Solitude and its ambiguities in modernist fiction. New York:
Palgrave, 2001. p. 7-19. Trata-se, nas páginas referidas, da introdução do livro, na qual o
autor faz um resumo das principais concepções do tema da solidão, a partir do mundo
clássico até o século XVIII.
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Investigar como a solidão se mostra nas cores verdes e amarelas,
suscitando a revelação do que significou e como fez fermentar a construção da literatura no viés da aspiração da nacionalidade tem por objetivo
primeiro construir um novo patamar conceitual que permita a releitura
do projeto narrativo que Alencar esboça, na intenção de compreender o
que nos dizem seus personagens acerca da pergunta: – O que é ser brasileiro no século XIX?
Peri e Ceci, Iracema e Martim, Jorge e Carolina são alguns dos
pares à deriva de uma relação em que presente e passado desenham um
conflito: há um mundo anterior que não se coaduna com o presente, e
vem marcado pela iminência do perigo. Em A viuvinha, apaixonado por
Carolina, na véspera do casamento, Jorge se encontra com o Sr. Almeida, velho amigo de seu pai, e seu tutor. Este lhe avisa: “– O senhor está
pobre!”
Como casar, sem lastro, o presente com o passado?
A escolha do tema da solidão, nesse contexto, adquire razão quase
óbvia: os impulsos de mudança traziam a necessidade de figurar a ideia
de um reinício, sob a forma da alegorização da origem de uma coisa e de
uma causa nova. O tema da solidão cai como uma luva na mão de Alencar. “Tudo passa sobre a terra”, frase final de Iracema, pode ser um mote
em seu percurso narrativo que do nada12 procura criar mitologia e mundo novos, rasurando e reescrevendo o já inscrito no palimpsesto de uma
cultura. A solidão é potente agenciadora de sentidos e de questionamento, na forma e no conteúdo dos romances de Alencar. Ela produz, por
vezes, um interessante efeito de estranhamento.
A solidão é quase sempre evocada na obra de Alencar de maneira
dúplice. Num primeiro nível, é forma de expressão das dúvidas e isolamento do novo país diante da incerteza de rumos. A procura de desprender-se do complexo colonial de que fizera parte vincula-se ao destino
dos personagens. Indígenas cheios de virtudes, eles problematizam os
dilemas vividos, em nosso século XIX, por um eu cindido entre a cidadania e os desejos individuais. Num segundo nível, no novo pacto brasileiro, a solidão tematiza a busca de um novo código e dos tropeços para
definir, implantar e administrar a “hipótese Brasil”, a partir de modelos
ao mesmo tempo autóctones e importados.
12
Em “O mais antigo programa sistemático do idealismo alemão” (o manuscrito tem a
letra de Hegel e é datado de 1796, mas teria sido copiado de um texto redigido por Schelling), encontra-se a proposta de uma ética que não seria outra coisa senão um sistema completo de todas as Ideias, ou de todos os postulados práticos. A primeira ideia mencionada é
da representação do moi-même como um ser absolutamente livre. Com esta liberdade, consciente de si, surge ao mesmo tempo um mundo - a partir do nada – única verdadeira e pensável criação a partir do nada. Cf. LACOUE-LABARTHE; NANCY, 1978, p. 39-40 e 53.
A concepção se nutre da mesma suposição que faz com que os primeiros românticos alemães considerem que sua atividade reflexiva e sua produção consistem em “algo de inédito”. (Cf. Idem, ibidem, p. 21).
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Há uma melancolia recalcada na forma romanesca de Alencar. Ela
nos lembra a nostalgia de que fala Novalis, que o viajante, o exilado e o
deslocado conhecem e carregam e que se assemelha à saudade de uma
aspiração que não se atinge: a vontade de estar em toda a parte como em
sua casa, como indica Alencar na carta ao Dr. Jaguaribe, apensa ao final
do romance Iracema, e na qual o narrador diz que aspira à modorra da
rede e ao à-vontade nordestino perdido.
A obra romanesca de José de Alencar nos conduz, portanto, de
volta à matriz das solidões. E se manifesta como sintoma de uma laceração do eu entre o interior e o exterior, significativa de uma diferença essencial que se estabelece entre o eu e o mundo, e de uma inquieta inadequação entre os sonhos dos homens, sua alma, e a ação que lhes permite a
máquina do mundo textualizada, por exemplo, na saudade e na solidão
que atingem, por razões e com rendimentos distintos, no romance Iracema, a dupla de protagonistas, Martim e Iracema e, também, a Peri e Ceci,
no romance O guarani, primeiro dos três textos da série históricoindianista que escreveu.
Ao escolher nosso título, “Os guerreiros correm perigo”, queremos
ressaltar a construção do nacional a título precário, posto que marcada de
advertências argutas sobre a insegurança de nossa formação, que nos
legou Alencar. Se ele foi lido apenas como ufanista e conservador, ou
mesmo como um fabuloso herói, em nítido exagero, a causa não está em
uma precariedade de seu texto, mas nos olhos dos que assim o contemplaram, sem uma angulação mais ampla.
Sobejas demonstrações de risco e perigos encontram-se disseminadas em seus textos. Ou seja, são fortes os sinais de que a fundação do
nacional não deveria ser vista como algo tão alvissareiro. Personagens
janotas que querem casar por dinheiro, ou simulam a morte para não
desonrar as noivas, justo no dia do casamento, não são raros para seu
leitor. E mesmo os personagens históricos e indígenas de O guarani, bem
como a localização da casa de D. Antonio de Mariz, estão sempre na iminência do abismo.
Associado às águas do rio que não deságua no mar, Peri (como
Iracema) não se abre ao comércio das nações, nem ao da urbanidade. Pelo
conluio obscuro da vida natural com a razão social, encontra-se impedido
de radicar-se num espaço que não o da natureza selvagem. E nela é condenado a ficar retido pelo código de um processo civilizatório que confere apenas a Ceci (e aos de sua casa, de Mariz) o poder de dupla mobilidade. Estabelecer moradia na selva e na cidade, ou nos espaços internos e
externos ao mundo citadino, é prerrogativa vedada ao homem natural,
excluído.
Muito mais do que como se fosse uma cor local que exageradamente pintasse, o espaço em que Alencar situa suas personagens – entre a
serra, a selva e o litoral – pode ser visto como um padrão de formação da
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nossa nacionalidade em que o eu individual, o social e o natural, postos
na sua geografia, têm contas a ajustar na problemática construção da
identidade romântica.
É de extrema força a imagem de Peri e Ceci, ambos suspensos no
tronco da palmeira, ilhados pelas águas, em O guarani. Que águas são
estas que marcam de incógnitas o destino dos personagens?
As primeiras águas abrem o livro. São as do rio Paquequer, saltando de cascata em cascata, desde a Serra dos Órgãos. “No começo é um
fio que se dirige para o Norte e, engrossado com os mananciais, torna-se
rio caudal”.13 As últimas águas fecham a obra. São as do dilúvio, e elas
anunciam o cruzamento de mito e história, ao figurarem a junção da história de Noé, adaptada ao mundo indígena brasileiro. Tal como o rio
Paquequer, que é apenas um rio afluente que não alcança o mar, o indígena Peri não chegará ao oceano nem à cidade, vedados àquele que só na
selva – o deserto da civilização – tem lugar.
O encontro de Peri com Ceci, como par de amigos ou de enamorados, só pode se consolidar na solidão ameaçadora das águas incontroladas e imensas. Nessa solidão, ecoa um projeto de construção social ambíguo e frágil, de pouco lastro, digamos assim, no qual o natural se alia
toscamente ao social. Os gentis guerreiros de que falava Gonçalves Dias,
apesar de gentis, são “barrados no baile” da fundação, pois esta não os
pode, enquanto excluídos, abrigar em regime de igualdade, numa relação
que só se efetiva na base do infortúnio, do risco e da exclusão. São histórias de uma união que, no caso de O guarani, se dá em meio às intempéries. Para os dois personagens não é possível o “leito gentil de folhas
verdes”, pois “Tudo era água e céu.” (ALENCAR, 1964, p. 273, v. 2).
Discutir a articulação da vida selvagem, a individualidade pretérita e a partir dela representar o Brasil como eu social foi o desafio que José
de Alencar tomou a seu cargo. Suas obras, que por vezes surpreendem
pela perspicácia disfarçada de histórias palatáveis, dão forma e conteúdo
à representação do país nascente, buscando construir a “memória” do
cidadão que ocuparia o lugar das mitologias da origem, na construção da
história pátria. Preside essa empresa a intenção de dizer o que era ser
brasileiro no século XIX.
A colônia em que se era o outro, dera lugar ao país que não sabia o
que era. Entre esses dois momentos, gente nascera, trabalhara e morrera,
com um mal-estar semelhante a uma doença crônica. A sensação de solidão se avoluma. E vem tematizada na imagem da ilha deserta em que o
homem, por si mesmo, há de reconstruir o mundo. A nação travava “luta
terrível, espantosa, louca, esvairada” (ALENCAR, 1964, p. 275, v. 2) como
a que se propõe Peri, em busca de Ceci, desenterrando do seio da terra
um tronco de palmeira, que “resvalou pela flor d’água como um ninho
13
ALENCAR, José de. O guarani. In:______. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1964.
p. 27, v. II.
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de garças ou alguma ilha flutuante” (ALENCAR, 1964, p. 275, v. 2, grifo
nosso). Sobreviventes das águas turvas das revoluções identitárias, a
construção de Peri e sua incerta parceria com Ceci, sob o ícone das águas
do mito de Tamandaré e as águas das escrituras, as de Noé, podem ser
vistas como figurações românticas do dilúvio de incertezas diante do
futuro da nova nação.
O novo pacto imaginado engendra identidades que, por um lado,
sinalizam o melancólico complexo de inferioridade de uma sociedade
escravocrata na qual Peri não pode viver na cidade, pois nela “o selvagem seria um escravo dos escravos” (ALENCAR, 1964, p. 266, v. 2). Por
outro lado, essas imagens identificadoras urdem o complexo de superioridade de uma elite que, incerta de seu destino, reserva a si mesma o
papel do patriarca de glórias futuras.
Mapeando uma cultura complexa, na dialética de memória e esquecimento, em busca de rastrear o rosto da identidade, Alencar tem
consciência de que o Brasil, historicamente descoberto pelo expansionismo no século XVI, leva três séculos à procura de sua identidade como
nação. Ele sabe também que a independência não trouxe o afrouxamento
total dos liames coloniais, o que acresce de mérito a difícil tarefa que se
impôs, de produzir romances para uma burguesia pouco letrada que,
quando era culta, participava do gosto pelo romance europeu e esperava
que o texto nacional o referendasse. A criação de tipos comuns, a tentativa de achar um “tamanho fluminense” para seus personagens não foi
manobra de fácil execução, dentre outras razões pelo fato de que as elites
brasileiras da época demonstravam dificuldade em incorporar o povo
como categoria social de direito pleno.
No contraste entre a euforia com que credita ao homem natural a
transparência da sinceridade (os heróis indígenas sempre puros e valorosos) e a melancolia com que “pinta” o destino de Peri, nas páginas finais
do romance, Alencar faz com que o indígena mergulhe nos “estados
d’alma”, do que resulta um diálogo com Ceci acerca de sua impossibilidade de viver na cidade, onde seria, como já indicamos, um “cativo dos
cativos”.14
O recurso, apesar de simples, opera uma revolução narrativa, pois
lança no imaginário oitocentista brasileiro, através da reflexão de Peri,
um contraponto entre a sociabilidade e a solidão, que se inscreverá no
rosto mutante do Romantismo.
14
Refiro-me, especialmente, à passagem em que o narrador afirma sobre Peri: “No meio de
homens civilizados, era um índio ignorante, nascido de uma raça bárbara, a quem a civilização repelia e marcava o lugar de cativo. Embora para Cecília e D. Antônio fosse um amigo, era apenas um amigo escravo.” (Cf. ALENCAR, 1964, p. 261-262). A questão prossegue
discutida, nas páginas seguintes de O guarani, com a repetição de que “Peri não pode viver
junto de sua irmã na cidade dos brancos [...]” (Op. cit. p. 269).
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Dos termos em conflito – o mundo e o eu – o devaneio melancólico
do narrador nas páginas finais de O guarani cede lugar a um movimento
que visa restaurar a integridade ameaçada da existência pessoal e social
do brasileiro nos oitocentos.
Fechar-se para o mundo e abrir-se para a extrema intimidade do
eu (e para o homem natural ficcionalizado e problematizado no indígena)
é uma forma, retomada pelos personagens românticos de Alencar, de
contornar o peso insuportável que passa a custar a vida em sociedade.
Voltar-se para dentro de si mesmo passa a ser não um meio, mas um fim.
E a escrita romântica será, em sua obra, aquilo que fixa o devaneio e fornece o suporte do encontro do eu consigo mesmo e com o outro.
Focalizada nessa rede, a linguagem perfaz um exercício de escrita
do limiar da subjetividade, veio que Alencar descortina com ênfase.
A partir dele tematiza-se, para a narrativa nacional, o perigoso pacto do
eu com a linguagem e desta com a realidade, como se pode observar nas
repetidas discussões sobre a verossimilhança, que Alencar coloca em seus
prefácios, posfácios e notas, mostrando sua preocupação com estatuto
diferencial que confere à linguagem literária.
E, ainda, sob o impulso e o impacto da solidão, a escrita de Alencar abre novas considerações teóricas, nas quais se antevêem múltiplas e
suplementares concepções de identidade e se faz surgir um novo tipo de
texto – o romance de fundação.
O mundo, por uma estratégia de que Peri não tem a chave, apresenta, na cidade, significação para a qual sua voz está desorientada. Refletir sobre isto, como faz o narrador ao final da obra, e como faz com que
suas personagens também o façam, é a contrapartida reflexiva de Alencar
para um problema social cuja solução lhe escapa. Resta-lhe evocar a solidão, resposta que anuncia uma forma de resistência. Falar da solidão é,
nesse sentido, “uma forma de restabelecer a razão onde impera o preconceito” (STAROBINSKI, 1997, p. 272-273).
O romance de Alencar deixa vazios sob os quais se engendram estigmas de uma sociedade voltada ao mandonismo e à violência que, por
vezes, se oculta sob o véu de uma aparência harmoniosa, como a da casa
de Estácio, em As minas de prata. Quando o livro termina, o país nasce,
entre o arvoredo, a felicidade (com nódoa) de Elvira e a modesta, “mas
graciosa habitação de Estácio situada à margem de um rio, [...], formando
uma quase ilha15 [...]” (ALENCAR, 1964, p. 880, v. 2).
Cabe notar a reiteração da referência à ilha, em pelo menos dois
fragmentos da obra de Alencar, citados neste texto. Os exemplos reme15
É interessante notar a presença da referência à ilha e à casa nos textos de Alencar. Poderíamos ver, nos jogos de linguagem com os quais submete os dois temas a oposições e conjunções sutis, a indicação do caráter fundacional que perpassa muitas de suas narrativas. Cf.
ALENCAR, José de. Minas de prata. In: ______. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1964.
p. 879-880, v. II, grifo nosso.
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tem a dois romances: O guarani, que abre o circuito indianista da produção de Alencar; e Minas de prata, de 1867, publicado na penúltima década
em que o autor escreve. Nesses e noutros textos, a presença não só da
ilha, mas também da casa revela-se elemento fundamental.
Importa ainda relembrar que, no imaginário ocidental, desde o Robinson Crusoe (de Daniel Defoe, 1719), a ilha colou-se à significação de um
novo habitat em que o indivíduo se instalava na construção a que o impeliam os valores da modernidade. Esse tópico, em voga no século XVIII
europeu, principalmente na Inglaterra e na França, retorna no Brasil acrescido de significações de fundação de cultura num país que fora colonizado, fenômeno que não escapou ao olhar de nosso romancista.
Se em O guarani encontramos a casa portuguesa de D. Antônio de
Mariz, em Minas de prata temos a casa brasileira de Estácio Correia:
Entanto o grupo de amigos se dirigia entre o arvoredo à
modesta, mas graciosa habitação de Estácio situada à
margem de um rio, que a abraçava carinhosamente formando uma quase ilha, do feitio do coração. (ALENCAR,
1964, p. 880, v. 2).
Nos dois romances a casa revela-se uma forma de simultaneamente remeter à ideia de pátria (o espaço público do nacional), à duplicidade
de culturas (portuguesa e brasileira) e ao lar (o espaço individualizado e
privado).
A casa brasileira em O guarani vem marcada pela intempérie e pela dominação; enquanto a que está situada em Minas de prata apresenta
uma ambiência de domesticidade, bem-estar e tranquilidade, amparada
pelo arvoredo e embalada pelo rio. Isso manifesta uma diversidade de
formas de figurar a casa (nação, pátria, estado e lar) nos textos de Alencar,
acentuando a instabilidade de sentidos da cidadania, urbanidade e individualidade nas relações sociais do país àquele momento.
De modo sintomático, a casa portuguesa e mesmo a casa brasileira
por vezes se localizam na selva, à beira do abismo,16 numa situação de
risco, insegurança e perigo iminente. Outras vezes, a casa brasileira ganha contornos de incerteza, ao juntar Peri e Ceci, e, deste modo, reunindo
duas raças. Nesse momento, a narrativa “de fundação da cultura”, paradoxalmente remete os dois personagens ao abrigo da natureza, já que a
“casa cultural” não está aberta a ambos, como aparece registrado no texto
de O guarani. Ela é aqui também figurada sob o formato de ilha: na feição
de um tronco da palmeira, espécie de nau sem rumo em meio ao temporal, no qual estão à deriva Peri e Ceci, à mercê da torrente das águas.
16
Em O tronco do ipê, a cabana de pai Benedito é sustentada na encosta de um penhasco.
(Cf. ALENCAR, 1965, p. 540, v. III). Em O guarani, a casa de Dom Antonio de Mariz também
se localiza à beira de um abismo (Cf. ALENCAR, 1964, p. 27-28, v. II).
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Se a diferença entre a localização das casas, a de D. Antonio de Mariz e a de Estácio Correia (a casa portuguesa e a casa brasileira), pode indicar um voto de “bom augúrio” dado à construção do imaginário do estado-nação, no entanto há que reparar que, se ela não se encontra à beira de
nenhum penhasco, são “modestos” os meios de que Estácio dispõe. Também é modesta a retórica romântica que acentua tanta afetividade à casa de
Estácio. O fragmento se enche de signos que sublinham o sema do afeto –
tais como “coração”, “carinho”, “abraço” – ao qual o texto reiteradamente
recorre. Tal campo semântico carregado de intimidade destoa da ideia (que
remete à ordem da coisa pública) de que a morada de Estácio (a casa pessoal, o domínio do privado) é, paradoxalmente, usada também como uma
metonímia da pátria e do nacional. Isto vem corroborar com a semântica da
ambiguidade de um Estado nacional em que o público e o privado embaçam os seus domínios e borram suas fronteiras.
Nesse sentido, a “modéstia” da casa de Estácio (sublinhemos: a casa brasileira, o Brasil) pode ser interpretada como uma falta, uma carência de recursos, de lastro, o que não se coaduna com a tarefa, subjacente,
de levar adiante a fundação do nacional, matéria não da vida privada,
mas da convivência com as instituições públicas.
Se o bom augúrio, sugerido pela afetividade, funciona como lenitivo, por outro lado, ele não se desvencilha da precariedade, da ausência
de meios, da solidão e da ausência de lastro que, como se observou anteriormente se torna um ponto crítico na vida de Jorge, protagonista de
A viuvinha e também nas desavenças amorosas dos protagonistas de Senhora, Fernando Seixas e Aurélia Camargo.
Pode-se imaginar que o espaço público (dentre outras possibilidades significando a dimensão do estado nacional), visto como algo além de
nós e que nos envolve no coletivo, convive com uma lacuna, que o empenho em ressaltar a força do coração tenta compensar, como também ocorre em Senhora. Isto acentua, cremos, a precariedade de construção do
espaço público entre nós (que, mesmo hoje, costuma ser tratado pelo
poder como uma extensão de seus desejos privados).
Na trama romanesca de Alencar, o recurso ao protocolo romântico
não consegue ocultar certo contrassenso (e mal-estar) entre a intenção, o
desejo, o projeto do narrador e dos personagens e os dados materiais (e
históricos) da ambiência a que aludem. Isso tudo contrasta, também, com
a primeira referência clara ao tema da fundação, feita em Iracema (1865).
Martim traz, na viagem de retorno à terra do Ceará, após a morte de Iracema, milícia e clero e faz rezar uma “primeira” missa.
Pompa e circunstância revestem a cerimônia em Iracema, além de
nela ecoar uma ideia de ruptura, com o peremptório “tudo passa sobre a
terra”. E tudo, de fato, se passa como se, junto com o corpo morto da
personagem Iracema, se houvesse enterrado uma possibilidade cultural
que não chegou a ser, porque podada pela violência da colonização.
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No conluio entre o natural, o social e a dimensão da intimidade,
as relações entre o público e o privado se realizam nas narrativas de
Alencar de forma tensa e permeada de antíteses, contradições e impossibilidades, como que acentuando o que, no discurso proferido ao receber o prêmio Nobel de Literatura, em 1982, Gabriel Garcia Márquez
denominou de “insuficiência de recursos convencionais para tornar
acreditável nossa vida”. Em solidão (e é enorme esta solidão), o homem
natural (o indígena), o homem comum e mesmo a arraia miúda que
compõem o nosso “tamanho fluminense” não gozam da prerrogativa de
integração, nem de igualdade, em uma sociedade que sem eles se arregimenta. Todos eles, como os índios que “fitaram” a primeira missa, em
Iracema, aparecem à guisa de figurantes de um contrato que os ultrapassa. Nesse caso, os sentimentos, o abraço carinhoso e o coração de que
nos fala a narrativa de Minas de prata, ao traçar o perfil da casa de Estácio Correia, resultam numa compensação precária para um estado cuja
estabilidade da fundação estaria abalada desde o nascedouro.
No desconcerto dos eus do Romantismo, a ficção dá ao leitor uma
forma de verificar o descompasso entre a missa, a milícia, a semente dos
brancos (a mairi dos cristãos) e a solidão do desamparo, melancólica precariedade do dominado, como ocorre na cena em que Iracema, quase
morta, entrega Moacir a Martim.
3 Conclusão
É uma operação difícil, como se vê, para a narrativa de Alencar,
discutir e explicitar, de modo ainda mais problematizador, as forças que
se organizam nas sombras das formas do poder. A solução encontrada
foi cercar a casa brasileira de sentimento, carinho, abraço, aconchego.
Isso nos permite supor (no conjunto dos textos que a repetição da casa e
da ilha acaba por constelar) o quanto (além da precariedade) de renúncia e resignação, do ponto de vista do narrador em Alencar, entretece o
tecido da fundação da “hipótese Brasil”.
Resignação diante do obstáculo promovido pelo recalque de uma
descoberta aterradora: ainda que morta Iracema, “tudo passa sobre a
terra”. Resignação, ainda, em face da descoberta aterradora de que “tudo” fora usurpado à heroína: a cultura indígena e o direito de estar e
restar na própria terra.
Renúncia, no sentimento que manifesta a face ilusória de uma
harmonia (e do tom de outra forma ufano) que se apresenta como sucedâneo da falta de meios (com que linguagem narrar a narrativa da exclusão?) de pressão diante do estupor,
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[...] por assim dizer, que não deixa de lembrar o abatimento de povos colonizados por homens que, para o bem ou
para o mal, tinham atingido uma época histórica que era
diferente daquela em que ainda se agitavam os invadidos
cuja civilização era superada pela outra. Os valores ultrajados dos indígenas tornavam-se inoperantes no próprio
local em que se tinham desenvolvido [...].17
Oscilando no fio problemático e nos dilemas de uma fundação
“a título precário”, na segunda metade do século XIX, Alencar empreende a complexa articulação dos três eus nos quais a dinâmica da identidade romântica se encenava: o eu natural, o eu social, o eu profundo.
No mundo atual, o sujeito burguês, configurado pelo Romantismo, tem suas marcas de identidades solapadas por uma máquina voraz,
produtora de simulacros a partir de uma mídia inestancável, incansável,
produtiva, que se dissemina por toda parte e produz os participantes do
reality show Big Brother Brasil, ou seja, os BBBs, e que lança novos produtos para o mercado, seres empacotados, verdadeiros instantâneos de celebridades e identidades que se compram no pay per view. Nada menos
individual, menos natural, menos profundo. Por alguma razão, no entanto, permanece entre nós a necessidade de discutir a impossibilidade e a
desvalorização de identidades e identificações, quando não se convive
mais com o mito fundador do capitalismo, em ascensão no século XVIII,
o mito do homem empreendedor, o Robinson Crusoé, na ilha deserta
construindo um mundo novo com as ruínas de outro, que naufragava.
No capitalismo líquido, de que nos fala Zygmunt Bauman, defrontamonos com as vidas, os eus, desperdiçados/as. Recupera-se, no mundo contemporâneo, para temor das massas de miseráveis que insistem em
ocupar o planeta, uma figura do antigo direito romano: o homem que
pode ser assassinado, o homo sacer, sem que o perpetrante dessa chacina
seja condenado por homicídio.
Se o Romantismo brasileiro perguntava, bem como o Modernismo,
quem é/era afinal esse eu nacional e individual, perguntamos hoje: como
é possível ser e estar no mundo atual, ocupando-se um espaço de cidadania? Talvez nisso repouse, como propomos, a atualidade do Romantismo,
a nos assinalar o componente de utopia – ainda que do precário – da busca humana pela vida, não aquela baseada na razão instrumental que só
vê progresso e técnica no horizonte do provável, mas uma vida que torne
possível reunir, como vislumbravam Rousseau e Alencar, a razão e o
coração.
Recebido em maio de 2010.
Aprovado em maio de 2010.
17
FORRESTIER, Viviane. O horror econômico. Trad. Álvaro Lorencini. São Paulo: Ed.
UNESP, 1997. p. 139.
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The Warriors are in Danger: Reflections on Alencar and the Impasse of the National Foundation
Abstract
This article reevaluates the purpose of Romanticism and the works by José de Alencar,
focusing on, more specifically, the novel O Guarani. Both are focused on their nature of
cultural position and aesthetic renewal, still timely, especially due to the utopian component. We seek to demonstrate that in a world that dismisses the utopias, Alencar as well as
the national and international romanticism of his time –reread today – incite us to discuss a
new way of utopian formulation: the one which is linked to the precariousness and finitude
of the human condition and, without giving up hope, abolishes chauvinistic nationalism
and totalitarianism
Key words: José de Alencar. O Guarani. Romanticism. Utopia. Chauvinistic nationalism
critique. Fundamentalism.
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