Modernidade e Tradição Gótica em Dois Poemas de Poe

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Modernidade e Tradição Gótica em Dois Poemas de Poe
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MODERNIDADE E TRADIÇÃO GÓTICA EM DOIS POEMAS DE POE
Deize Mara Ferreira Fonseca
Scorching my seared heart with a pain, not
hell shall make me fear again.
“Tamerlane”, Part 2
Resumo: Este trabalho discute a poética de Edgar Allan Poe como inauguradora da modernidade
literária, partindo de seu diálogo com o gótico em duas obras: os poemas “The bells” e “The city by
the sea”. O gótico literário deve ser compreendido como movimento artístico-literário portador de
características transgressoras e revolucionárias desde as suas origens na ascensão do romance inglês
no século 18, ao tratar de temas como o medo, a morte, a finitude e a transformação. A lírica de Poe,
rigorosamente elaborada, apresenta elementos que fundem a imaginação criadora e a postura críticoanalítica do poeta. A presença de elementos góticos na lírica de Poe é um aspecto fundamental para
a constituição de tais características, conforme será discutido a partir da leitura comparada dos poemas citados.
Palavras-chave: Poe · gótico · modernidade
Abstract: This paper discusses the role of Poe’s poetics in the inauguration of modernity in literature, departing from its dialogue with the Gothic in two works: the poems “The Bells” and “The City
by the Sea.” Gothic literature must be understood as an artistic and literary movement that presents
transgressive and revolutionary features since its origins in the rise of the English novel in the eighteenth century, as it deals with issues such as fear, death, finitude, and transformation. Poe’s rigorously designed poetry fuses the creative imagination and critical-analytical approach of the poet.
The presence of Gothic elements in Poe’s poetry is a fundamental aspect of the formation of such
features, as will be discussed in a comparative reading of the poems cited.
Keywords: Poe · Gothic · modernity
Este artigo discute a poética de Edgar Allan Poe como construtora da modernidade, tendo em vista o caráter desafiador de seu diálogo com a tradição romântica através do gótico,
na leitura comparada de dois de seus poemas: “The bells” e “The city by the sea”. Para isso,
pretendo explorar as ligações de Poe com o romantismo gótico, entendido aqui como uma
estética de perspectiva transgressora e ao mesmo experimental, sobretudo no que diz respeito ao uso da linguagem.
A novidade da poética de Poe não é apenas abordar a temática gótica, literariamente recorrente desde a ascensão do romance inglês. A questão é o sofisticado aparato teórico e
linguístico que o poeta utiliza em sua abordagem. O seu ponto de vista de crítico-poeta
torna-se fundamental para entendermos o porquê de seus poemas e contos terem sido consagrados.
A obra multifacetada de Poe por si só já garantiria sua inserção no campo da modernidade, dado o seu trânsito entre a poesia, a narrativa e a crítica. Se compreendermos que a
reflexão sobre o fazer literário pertence essencialmente à Modernidade, temos aí a obra de
Poe como legítima representante do moderno.
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A tradição artística do gótico nasce na arquitetura do século 18, nos contornos da basílica de Saint-Denis na então Île-de-France, hoje Paris; firma-se como romance, na Inglaterra
dos setecentos e atualiza-se na cultura de massa contemporânea. Nesse dinamismo reside a
sua força, sempre renovada. É uma tradição contestadora, como será visto a seguir.
A chamada literatura imaginativa sempre teve lugar à margem do cânone. Durante a
Idade Média, enquanto a historiografia oficial cuidava do religioso, a tradição oral urdia
histórias onde o fantástico e o macabro predominavam. Foram essas histórias da tradição
oral que ficaram presentes até hoje no imaginário popular, tendo sido depois aproveitadas
por vários escritores. Falar da morte, do medo e do horror, portanto, não é nenhuma
novidade. Na verdade, o predomínio da imaginação significa o predomínio do impulso
interior do homem e está ligado à essência e à busca das origens, de resto, temas bastante
caros ao Romantismo. O gótico, nascido arquitetura e transmutado em romance, vai
consolidar-se no Romantismo como sinônimo de contestação e de busca de respostas para
o misterioso e para o inexplicável. A imagem mestra é novamente arquitetônica: trata-se do
labirinto, que sugere um caminho, uma jornada em busca do desconhecido, das respostas
que não estão presentes no mundo racional e conhecido.
O labirinto apresenta-se desde a Antiguidade Clássica como metáfora de uma tensão
fundamental à condição humana. De fato, desde a aventura de Teseu, o labirinto surge como um caminho a ser vencido, através do qual um prêmio, uma descoberta, enfim, algum
tipo de compensação será alcançado. Essa imagem é tremendamente poderosa para se
compreender o gótico: é mergulhar no desconhecido, sem saber se o rumo tomado é o da
danação ou da salvação, mas com a certeza de que a busca é que trará o crescimento e a
elevação do espírito humano. Não é por acaso que Poe se torna o mestre e o criador das
tramas detetivescas: ele sabe que a tentativa de desvendar o desconhecido é, antes de tudo,
uma aventura que une o intelecto e o espírito. Conforme dito no parágrafo de abertura de
“The murders in the rue Morgue”, “[t]he mental features discoursed of as the analytical, are,
in themselves, but little susceptible of analysis. We appreciate them only in their effects”. 1
O ideário gótico-romântico presente na obra de Poe vai consolidar-se em sua poesia através da formação de imagens poderosas, que remetem ao mistério e à reflexão. É uma
poesia que, mesmo tratando de coisas irracionais, é feita com absoluta racionalidade, buscando sempre causar o efeito sobre o leitor. É nesta busca pelo efeito que reside a modernidade dessa poética transgressora. Vejamos como esse processo se realiza nos poemas. Tomemos como primeiro exemplo, “The bells”.
A primeira versão do poema teria sido escrita por volta de 1848 na residência de Marie
Louise Shew, onde Poe estaria hospedado. O poeta teria se queixado à anfitriã sobre a
necessidade de escrever um poema, embora estivesse sem sentimento, sensação ou
inspiração. Ao servir-se de chá, Poe confessou não ter conseguido conciliar o sono,
incomodado pelo som dos sinos de uma igreja nas vizinhanças. Admitiu não ter objeto para
escrever o poema e que se sentia exausto. Marie Louise teria dado a Poe uma pena e um
papel, onde teria escrito “The bells by E. A. Poe”. Também teria escrito “The bells, the litlle
silver bells”. A partir daí, teria surgido o primeiro esboço do poema, publicado como
curiosidade um mês após a publicação da obra final, em novembro de 1849.
1
POE. The complete illustrated works of Edgar Allan Poe, p. 75.
CONGRESSO INTERNACIONAL PARA SEMPRE POE · 2009 · Belo Horizonte
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Esse curioso episódio, bem como a diferença de elaboração e mesmo extensão entre o
rascunho e a obra final, exemplifica claramente a existência de um árduo processo de construção poética em Edgar Allan Poe.
O poema é composto de quatro estrofes, cada uma delas evocando diferentes situações e
graduações de emoções envolvendo os sinos. Os sinos são sempre mensageiros, anunciadores dos acontecimentos e, ao mesmo tempo, descrevem situações, dentro da melhor tradição romântica de pinçar elementos da natureza e a partir deles reconstruir (ou dissecar) o
universo humano. Em “The raven”, o corvo é esse elemento. Em “The bells”, embora inanimados, os sinos ganharão vida e protagonizarão o poema, conduzindo o leitor a uma espiral de emoções.
O aspecto mais óbvio do poema é o sentido onomatopaico: as palavras e seu ritmo formam um conjunto inequivocamente pensado para que o leitor “ouça” o badalar dos sinos. A
própria repetição de várias palavras (notadamente “bells, bells”) é uma prova do efeito buscado pelo poeta. O primeiro verso de cada estrofe (ou parte, como prefiro chamá-las), iniciase com o vocativo “Hear... bells”, um óbvio apelo ao leitor para que concentre sua atenção na
presença hipnótica e na materialização dos sons dos sinos na obra escrita. Sem dúvida, é um
poema que justifica uma das máximas de Poe: “music, when combined with a pleasurable
idea is poetry”. E é poesia para ser lida, falada, declamada em voz alta, interpretada.
Algumas leituras resumem a divisão em quatro partes do poema a uma leitura simplista,
de que seriam as quatro idades do homem, com o poema descrevendo um ciclo do nascimento à morte, sempre com o sino como pano de fundo, fazendo uma nova cronologia da trajetória da vida humana. Essa leitura em minha opinião é bastante reducionista, pois deixa escapar vários aspectos eminentemente góticos do poema, os quais constituem sua maior riqueza.
O primeiro destes aspectos é a presença constante da noite. O ambiente do poema é
sempre noturno, mesmo na parte inicial, em que os sinos pertencem a mundo de alegria
(“world of merriment”). Podemos perceber o ambiente desta primeira parte como sendo
natalino: há trenós e sinos, e ar gélido da noite, com céu cintilante. O Natal, simbolicamente, é uma data contraditória, visto por muitos como plenamente alegre e por outros como
profundamente triste. Dessa forma, atrás da aparente alegria escondem-se o pungente e o
melancólico. Pela primeira vez no poema surge um refrão que irá repetir-se no seu final:
“the runic rhyme”. As runas têm vários significados, desde antigo alfabeto escandinavo até
método divinatório. Rimas rúnicas, além do óbvio ganho rítmico e sonoro, formam uma
imagem que ajuda a criar um mundo fantasioso e onírico.
A segunda parte fala de melodiosos sinos nupciais, que prenunciam um mundo de
harmonia e felicidade. A atmosfera é de volúpia e encantamento, que se desenvolve de
modo ascendente, curiosamente apontando não para o presente, mas para o futuro. Os sinos não são jubilosos por pertencerem àquele ambiente, mas por, à luz da lua, potencializarem o desejo de felicidade além daquele momento.
A terceira parte/estrofe, além de mais longa que as anteriores, traz os sinos de bronze (é
conveniente assinalar que há uma graduação do material dos sinos ao longo das estrofes,
prata-ouro-bronze-ferro), que dessa vez não anunciam alegria ou júbilo, mas sim alarme. As
imagens góticas surgem com toda a força: “tale of terror”, “turbulency”. Os sinos se transformam em arautos de um mundo assustador e indizível – “too much horrified to speech” –
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novamente a idéia do mundo subterrâneo como sendo horrendo demais para ser descrito –
sujeito apenas a ser sentido, mas sempre por intermédio da imaginação alimentada pelo
fantástico. O fogo, em contraste com a pálida face da lua, surge como elemento que reforça
os esguichos de terror que inundam o ar. Não há mais a espiral ascendente da segunda parte,
mas um movimento de fluxo e refluxo, que denota a instabilidade do momento. A sensação
de desequilíbrio e desconforto configura, desta forma, um cenário gótico em sua plenitude.
A última estrofe poderia compor um poema independente, tal a riqueza de imagens e situações. Ao contrário da agitação da estrofe anterior, há agora um silêncio solene na noite.
A melodia dos sinos conduz, enfim, à reflexão silenciosa, mas que é uma “ameaça melancólica”. Os sons dos sinos transformam-se em gemidos que saem das gargantas.
É preciso ressaltar que há uma interessantíssima passagem de personificação dos sinos
nessa estrofe. Paralelamente, surgem as pessoas, “que moram sozinhas nos campanários”.
Descobre-se, portanto, nesse momento, que os sinos não são sinos: são gente, que a cada
momento de suas vidas mostram-se feitas de um material diferente. Ao mesmo tempo, o
poema diz que as pessoas perderam a essência humana: emitem um som abafado e monótono e sentem glória em ter no peito não um coração humano, sujeito a dores e alegrias,
mas sim uma pedra. O poema opera aqui um grande momento gótico: esses seres não são
homens nem mulheres, nem brutos nem humanos: são vampiros, cujo “rei” é aquele que
toca os sinos.
A imagem do vampiro, altamente recorrente na cultura gótica, traz a essa passagem do
poema uma inesperada força, pois reforça a idéia de despersonalização. Nega-se, portanto,
a essência humana aparentemente presente nos rituais anteriormente citados (Natal, casamento) e admite-se que ela é dissolvida por um elemento externo (talvez de existência subterrânea), que dilui os sentimentos e os transforma em apenas sensações. O poeta assinala
o triunfo dessa despersonalização vampírica, ao pedir uma canção elegíaca (“paean”) aos
sinos, guardiões de um tempo suspenso do qual as pessoas não têm o poder de escapar – tal
qual o eu-lírico do poema “The raven”.
Quanto à “The city by the sea”, cuja versão final foi publicada em 1845, de imediato
chama-nos à atenção o nome do poema: a cidade está in the sea: uma indicação de lugar
gótico, recôndito e misterioso. Neste lugar, no qual todas as coisas se misturam (o bom e
mau, o pior e o melhor), a Morte ergueu seu trono e do alto dele tudo observa, paira tal
qual o Corvo do poema homônimo. É preciso aqui destacar o aspecto igualador da visão
gótica do mundo: a Morte abarca para si todos os aspectos possíveis, dado ser ela o destino
inevitável da existência humana.
As imagens criam uma religiosidade profana (“shrine”, “fanes”), repleta de lugares nos
quais é negado o acesso do racional: torres que não se movem, que não se parecem com nada
conhecido, um lugar em que a noite é eterna – os raios celestiais não o alcançam. Novamente, noite e mistério estão presentes. A minúcia da descrição, tal como em “The bells”, vem
aliada a um ritmo constante. O efeito hipnótico sobre o leitor mais uma vez é perseguido e
alcançado, pois este é um poema que também foi seguidamente reescrito, a exemplo de “The
bells” (a versão anterior, intitulada “The doomed city”, foi publicada em 1831). A quietude
do lugar torna-se assustadora e fantasmagórica: os mares são “hideously serene” – o gótico,
estética transgressora por definição, subverte o sentido da palavra serenidade.
CONGRESSO INTERNACIONAL PARA SEMPRE POE · 2009 · Belo Horizonte
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A estrofe final guarda a transformação: finalmente surge um movimento, uma agitação
no cenário.Tal como na terceira parte de “The bells”, percebe-se o sofrimento tomando
forma: a cidade submerge em um mar enevoado, em meio a gemidos. A descida é vertiginosa: “Down, down that town shall settle hence”, e o próprio inferno presta reverência à cidade-fantasma, que agora jaz no fundo do mar.
Ambos os poemas subvertem valores e temáticas tradicionais (sinos de igrejas, a aparente calma de uma cidade), transformando esses cenários em instâncias de questionamento e
angústia, em uma estratégia explicitamente gótica. Citando Fred Botting: “Gothic condenses the many perceived threats to these values, threats associated with supernatural
and natural forces, imaginative excesses and delusions, religious and human evil, social
transgression, mental disintegration and spiritual corruption”. 2
Na reinterpretação de espaços e objetos realizada por esses poemas, concebidos de forma a causar a um só tempo o estranhamento e a reflexão, está constituída uma visão gótica
do mundo, que desafia e transforma até hoje o imaginário de leitores de todas as épocas e
lugares. E nisso reside sua relevância e sua modernidade.
REFERÊNCIAS
BOTTING, Fred. Gothic. New York: Routledge, 1996.
POE, Edgar Allan. The complete illustrated works of Edgar Allan Poe. London: Chancelor
Press, 2003.
2
BOTTING. Gothic, p. 2.
Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 80-84.

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