Rememorar o passado um ato social do presente - NUSC
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Rememorar o passado um ato social do presente - NUSC
“Rememorar o passado é um ato social do presente”, assinala Inmanuel Wallesteini. Parafraseando, podemos dizer que analisar os filmes do Tomás Gutierrez Alea também constitui-se num ato social do presente. Na sua filmografia, que abrange de 1950 até 1995, encontramos não somente um dos mais importantes cineastas contemporâneos, mas também uma obra que procura a perturbação, a incomodidade, a crise e a confrontação, em qualquer um dos momentos histórico/culturais que compreende. Portanto, o cinema de Alea se constitui num discurso emblemático da Revolução Cubana, a partir do microcosmo de personagens que, de “dentro” e de “fora”, transitaram pela sua filmografia, representando a relação indivíduo/sociedade. Nos seus doze longa-metragens, e dentro do pensamento de Martin Jackson, Alea coloca-nos diante da questão, chave a meu ver, de que “ (...) o cinema deve ser considerado como um dos depositários do pensamento do Século XX, na medida em que reflete amplamente a mentalidade dos homens e mulheres que fazem os filmes (...) o cinema ajuda a compreender o espírito de nosso tempo” ii. Dessa maneira fica estabelecido o diálogo cinema/sociedade, diálogo inerente à toda a historia da cultura, na medida em que cada filme de Alea conversa com o presente. Sua filmografia é um lugar privilegiado para a subjetividade social e cultural, sem deixar de lado as bases materiais do processo social. Seu primeiro filme de ficção, “Historias de la Revolución”, de 1960, é considerado o primeiro longa-metragem da Revolução. Está constituído por três episódios: “El Herido”, que narra a epopéia da luta na cidade, através da necessidade de um ferido, de ser ocultado depois de uma ação militar urbana. A solidariedade e aceitação popular são o eixo da historia. O segundo episódio, Rebeldes, transcorre nas montanhas, no contexto da luta rural. Novamente encontramos a solidariedade e a questão duma nova moral. O último episódio, La batalla de Santa Clara, é um modelo da epopéia e da utopia dessa época. Narra a ação armada de 28 de dezembro de 1959, que define o trunfo da Revolução: a tomada do trem blindado que passava pela cidade de Santa Clara. Como em toda epopéia, o conjunto é o protagonista, neste caso o coletivo preparando o assalto e a conquista do trem, para logo festejar. O individual, a garota cujo namorado morre, se integra chorando. Neste episódio aparece um rebelde colhendo as armas no trem blindado. Era um assessor direto do Ché, destinado no filme a ajudar nas questões militares. Chamavase Alberto Fernández e morreu na Bolívia junto ao Ché. Penso que o fato serve para entender o “espírito da época”. Alea diz: “ (...) É preciso notar que nesse momento eram as nossas idéias as que tinham trunfado. Nós estávamos no poder (...). Pela 1 primeira vez, tínhamos ocasião de exercer o cinema, de fazer filmes, de fazer aquilo que sempre quisemos, e nada seria um obstáculo” iii. A dimensão utópica do momento histórico, na perspectiva de Magallón Anaya: “ (...) Na história do pensamento Latino-americano, podemos encontrar uma presencia permanente de utopias” iv. Depois de Memorias de la Revolución, e no mesmo ano, Alea realiza um curtametragem, emblemático desse período. Asamblea General registra o discurso de Fidel Castro, conhecido como Primeira Declaração da Havana, efetuado em 02 de setembro de 1960. O filme não cai no modelo simplista de registrar o texto da Declaração; “aborda a relação que se estabelece, a partir do mesmo, entre o povo e seu dirigente” v . Diz Alea: “Aquele ato, dentro de todas as concentrações que se realizaram em Havana, adquiriu uma importância especial porque representava o começo do bloqueio a que fomos submetidos e do isolamento de nosso próprio continente. O documentário começa de manhã cedo, quando a praça está sendo preparada para o ato. Pouco a pouco vão chegando as pessoas, o povo vai crescendo, até que o último plano - do monumento a Martí - é a imagem daquela multidão impressionante. Entre esse princípio e esse final, o que se desenvolve são imagens que mostram a relação das pessoas com as palavras de Fidel. Digo a você que algumas pessoas não estavam de acordo com não termos incluído uma narração” vi. Assim, e sendo que as soluções de linguagem estão pautadas historicamente, Asamblea General se nega a utilizar a “estética soviética” do documentário; se nega a remarcar o óbvio com uma voz em off e deixa a imagem evoluir sem temor ao dito e não dito que implica o audiovisual de maneira acentuada, sem temor à idéia de assumir o documentário como representação. Alea realizou um filme exemplar sobre a relação povo/líder/utopia, que marcou esses anos. Em 1962 estreia seu segundo longa-metragem, Las doce sillas, que traz a “novidade” de ser uma comédia disparatada, com toques de humor negro. Sintetiza a mudança das relações de poder, através da “sociedade” de um inútil burguês com o seu exempregado, um pícaro espertinho que tem a arte de sobreviver a tudo. Dita sociedade tenta recuperar uns diamantes escondidos numas cadeiras inglesas expropriadas. Na parceria, as relações patrão/ex-empregado se invertem. É nessa busca que se entrelaça uma situação de mudanças rápidas e vertiginosas. Tanto é assim, que se recorremos à fonte de produção-realização do filme, encontramos um dado precioso: “ (...) um outro problema existia com as locações, que após escolhidas, quando chegávamos para filmar - em poucos dias - tinham mudado radicalmente, ou não existiam mais. Numa oportunidade escolhemos uma casa da burguesia, desabitada, e quando chegamos para filmar, tinha sido convertida numa escola. Uma outra vez, precisávamos filmar um cartaz que anunciava viagens a Miami, e quando nos deslocamos até lá o cartaz tinha sido substituído por uma consigna revolucionária. Dado o ritmo dos acontecimentos da Revolução, todo mudava muito rapidamente no 2 país (...) mas era normal que nos primeiros tempos da Revolução se produzissem mudanças nas aparências das coisas todos os dias” vii. É em 1962 que aparecem alguns alarmes de descontentamento popular perante o andamento adverso da economia, a partir de 1961. Portanto e durante toda a década, a ação irá se concentrar em achar um modelo para o socialismo cubano, radicalizando o processo e optando pelo social. A partir de 1963, como assinala Halperin Donghi: “ (...) ia se admitir que qualquer que fosse a linha fixada para o futuro desenvolvimento da economia cubana, os recursos necessários para impulsá-la deviam provir do velho setor predominante, o açucareiro, cuja profunda crise produtiva era reconhecida como a consequência, talvez a mais grave, dos erros acumulados na primeira etapa da gestão revolucionária” viii. Portanto em 1963, Fidel Castro anuncia que o processo de reconstrução da economia, culminaria em 1970 com uma safra de 10 milhões de toneladas. É com essa finalidade que se organizam as micro-brigadas, e como diz Halperin Donghi, o pais converteuse numa grande micro-brigada ix. Em Las doce sillas existe uma sequência exemplar sobre o assunto; quando as personagens, procurando os diamantes, entram num caminhão cheio de jovens que vão cortar cana. E acabam, em virtude da sobrevivência, se unindo aos da brigada. É nessa sequência, através da ingenuidade e voluntarismo dos “brigadistas”, que nos é revelado, num filme, e antes do fracasso da meta da safra dos 10 milhões, as limitações da proposta “de salvação”, e a fragilidade econômica cubana. O quarto longa-metragem de Alea, La muerte de un burócrata, de 1966, é uma outra sátira de humor negro. Um operário exemplar morre inventando uma máquina para produzir maior quantidade de esculturas socialistas, e é enterrado com seu cartão sindical. A viuva e o sobrinho, para tramitar a pensão, necessitam desse documento. Começa, então, o via crucis burocrático do sobrinho para exumar o cadáver, recuperar o cartão e voltar a enterrar o defunto. O sobrinho termina assassinando o burocrático diretor do cemitério e fica maluco. O filme coloca, durante toda a narração, a dicotomía indivíduo/Estado a través da insensibilidade burocrática para resolver uma questão simples para o Estado, mas dolorosa para o indivíduo/sobrinho. Foi outra vez em que o cinema precedeu a realidade. Estreado em 24 de julho de 1966, dois dias depois, durante o ato do 26 de julho, Fidel Castro fez seu discurso contra a burocracia. Por outro lado, Alea comenta: “ (...) Muito tempo após a estreia, o filme voltou a ser projetado, e me contaram que uma moça saiu chorando do cinema. Era uma coisa esquisita, pois se tratava duma comédia. Mas tinha acontecido 3 coisa semelhante com um familiar seu. Neste caso, a realidade veio depois da ficção reafirmar uma conjectura que fizéramos no plano humorístico”x. Acredito importante assinalar a possibilidade de Alea trabalhar uma crítica feroz, sem a proposta estética sombria realista da idéia de questionar. O faz com um humor dilapidador, e também não é censurado. Isso numa conjuntura em que para levar enfrente a proposta socialista, isolada do continente e do resto do mundo não socialista, Cuba está concentrando um enorme poder político estatal. E também, como assinala Nestor Almendros xi, no relativo à exibição e à crítica de filmes, Les quatre cents coups, de Trauffaut de 1959, estreado em Cuba passados uns três anos, era mal visto; enquanto que o cinema soviético, aceito e aplaudido. Retomo Las doce sillas citando Jorge Ruffinelli, quando narra: “ (...) Alguma vez, Gutierrez Alea assinalou que o seu filme não parecia corresponder-se com o ânimo otimista e épico do cinema nos começos da Revolução; mais ainda, o filme zombava das consignas chaves da época (“alcançar as metas”), quando não representavam a realidade e sim a inabilidade e ineficiência de funcionários (...)” xii. Desta forma, o cinema se nos apresenta como um texto-discurso onde a sociedade fala e se ouve pela relação de uns autores e um público. Seguindo Panowsky podemos dizer que o filme é uma figura simbólica, que informa simbolicamente xiii; e portanto nos permite compreender os caminhos humanos em sociedade. Memorias del subdesarrollo, de 1968, é o quinta longa-metragem de Alea, e como diz Ruffinelli xiv, “um dos filmes mais complexos e fascinantes dos primeiros cem anos do cinema”. Sergio é um intelectual pequeno-burguês que não vai para Miami com sua família e fica em Cuba, OBSERVANDO, ANALISANDO. La trama do filme é a confrontação entre os novos valores e Sérgio, que não acredita neles, e tampouco nos valores do passado. A personagem é um anti-herói que não segue os princípios heróicos Aristotélicos e do realismo socialista. Foi, é e será um espectador inteligente. Memorias del subdesarrollo corta o esquema narrativo tradicional; a personagem não é um elemento com o qual o espectador pode se identificar, mas um pretexto para estruturar uma collage da nova sociedade através dos olhos de Sergio. Alea decodifica uma linguagem/realidade para incorporar um “mural” de temas fundamentais da discussão político-cultural dos anos 60. Esse mural está formado por diferentes formas estéticas: desde o documentário, ao registro de anúncios socialistas, à reconstrução do olhar do estrangeiro sobre Cuba em ficção, ao cinema-verdade. 4 O filme integra pontos de vista diferentes e formas estéticas diferentes. Rompe com qualquer fórmula estabelecida, e se constitui numa representação exemplar da aproximação cultura-política que marca os anos 60 xv. Dita representação é emblemática em duas das collages que construem o filme. Uma se chama: A verdade do grupo reside no assunto; e a outra: Literatura e Revolução. A primeira está baseada no livro Moral burguesa y Revolución, de León Rozitchner xvi . A idéia ética do mesmo: “Nenhuma das pessoas do grupo se reconhece como parte integrante do sistema que os engendrou”, e a idéia se desenvolve através de um documentário sobre o juízo aos invasores da Baía dos Porcos, em 196l. É então que a responsabilidade social do indivíduo, discussão hegemônica da época, fica sintetizada através do ponto de vista dos implicados na invasão. Já Godard, em 1962, tinha trazido ao cinema essa questão, com Vivre sa vie, quando Anna Karina, sentada no balcão dum bar, diz: “Se movimento a mão, sou responsável”. Literatura y Revolución é uma mesa redonda, sobre o tema, na Casa das Américas. Os latino-americanos David Viñas, René Deprestes e Edmundo Desnoes - autor da novela “Memorias del Subdesarrollo”, no qual foi baseado o filme -, discutem com os europeus Gianni Toti e Salvador Bueno. A discussão sintetiza outra questão chave da época: a ruptura com o marxismo ortodoxo e os Partidos Comunistas tradicionais. Os latino-americanos representam o novo, os comunistas italianos, a ortodoxia. O interessante é que o final da mesa redonda, totalmente improvisado, é uma pergunta do dramaturgo americano Jack Gelber, que estava na platéia, que de-constrói, seguindo a proposta do filme, porém casualmente, à mesa redonda como um todo. A pergunta é: “Por que a Revolução está utilizando, para discutir, um método tão arcaico como o da mesa redonda?” O conjunto de intelectuais latino-americanos na Casa das Américas responde nitidamente à seguinte análise de Halperin Donghi: “Sem dúvida o influxo cubano se fez sentir ainda de outros modos no continente: a ilha rebelde, politicamente isolada do mesmo, estava obsessivamente presente nele através da imaginação coletiva, e a imagem fortemente estilizada que a mesma acolhia, gravitou decisivamente na renovação cultural e ideológica, tão intensa nesses anos” xvii. O mesmo autor diz que na primeira década da Revolução, a imaginação tinha chegado ao poder xviii. Aí está a filmografia de Alea, incluindo seu terceiro filme, Cumbite, de 1964, para somar a essa idéia e, emblemáticamente, fechar a década com Memorias del subdesarrollo. Chamaria aos três seguintes longa-metragens como os do período da reflexão pessoal de Alea com relação ao cinema e à Cuba. São os filmes de um “impasse” pessoal e 5 uma “distância” pensada do processo; são filmes “entre parêntese”, com procura e estilos diferentes entre si e com respeito à filmografia da década anterior. São filmes que precisam tratar do passado longínquo e recente, para poder entender o presente. Na década de 70 se produz uma separação entre os intelectuais e a Revolução. O apoio cubano aos tanques soviéticos na Tcheco-Eslováquia, em 1965, foi o primeiro fato que alienou à “intelligentzia” européia e latino-americana. Pelo outro lado, o bloqueio fazia à Revolução se aproximar de governos latino-americanos questionáveis, como o de Isabel Perón na Argentina. Em 1971 explode o caso Padilla; o poeta cubano é preso pela polícia militar e obrigado a fazer autocrítica. O fato foi decisivo para o início do divorcio dos intelectuais cubanos e o poder revolucionário. Não questionavam o socialismo, mas a “forma soviética” que a direção estava impondo para garantir as reformas sociais realizadas e sua própria sobrevivência. Una pelea cubana contra los demonios, de 1971, vai até o século XVII, para narrar uma história de luta pelo poder, baseada no livro do historiador Fernando Ortiz “Historia de una pelea cubana contra dos demonios”. A idéia era ir ao século XVII para, conforme Alea, “(...) trazer à luz alguns problemas da nossa historia” xix. A narração e resolução formal do filme se baseia no trabalho de Glauber Rocha: câmara na mão e alegorias político-culturais. Uma proposta que fica longe, nesse sentido, do cinema de Alea. Nessa perspectiva o filme funciona como uma evidência a mais, de todas as proporcionadas pelo cinema, para entender a relação Alea/sociedade na década de 70. Relação que procurava um lugar “perdido”, frente à distância utópica, e que não estava isolada do contexto. A última cena, de 1976, está baseado num ensaio do historiador Manuel Moreno Fraginals, “El ingenio”. Entra no século XVIII para narrar uma Semana Santa no contexto de aumentar o trabalho escravo para aumentar a produção de açúcar. O conde dono do engenho, resolve sentar na sua mesa 12 escravos, tal qual o rito cristão. A “humildade” desse momento entra em contradição com sua crueldade para acabar com a sublevação final. Alea diz: “Um filme histórico - para mim - não é reconstruir de maneira espetacular o fato em si. Não me interessa o trabalho arqueológico, mas aproveitar algo naquele momento histórico que possa repercutir sobre nosso presente (...) xx. Los sobrevivientes - 1978 - recorre a uma metáfora localizada nos primeiros anos da Revolução. Uma família burguesa se fecha na sua mansão para esperar o vendaval passar. E assim, ficam sem dinheiro, pois a inflação é alta. É então que as relações da família se transformam e as forças produtivas entram em processo de regressão. A 6 clausura começa no capitalismo, depois passa ao feudalismo, escravidão, comunismo primitivo e finalmente chegam ao estado selvagem, quando comem a tia assada. O filme, na década de 90, adquiriu uma vigência assustadora perante a crise econômica cubana, com a queda da União Soviética. Realizam-se re-leituras constantes do filme, e quando passa na Cinemateca, o público delira, ao contrário do público da época da estréia. Vale a pena lembrar Marc Ferro, quando diz que toda sociedade recebe as imagens conforme sua culturaxxi. A questão da inflação e a falta de valor do peso cubano, pesou mais no público na época de lançamento do filme, do que as etapas históricas. Esse público tinha mais experiência com a questão que assinala Vania Bambirra, de que “A herança deixada pelo capitalismo dependente tornou inevitável que a política revolucionária, que procurava elevar o nível de vida do povo tivesse de ser executada com base em grandes déficits orçamentais e no desencadeamento de um processo revolucionário” xxii. O público do presente tem uma maior experiência com a questão da sobrevivência diária. Passaram-se 5 anos para que Alea tornasse a dirigir. Irá fazer 4 filmes entre 1983 e sua morte, em 1996. São os filmes onde volta a encontrar um lugar, o do desencanto xxiii . Diz Alea: “(...) Com a Revolução, a mentalidade do nosso povo tem sofrido uma mudança radical. Tem dado um salto gigante, (...) todo o que vislumbrava-mos como uma possibilidade ao alcance da mão, está mais longe do que parece a primeira vista. A nova verdade é radical. Pressupõe não só uma nova sociedade, uma nova mentalidade, mas requer também um homem novo. E isso parece que requer também mais tempo (...). Existe uma raça especial de gente com a que devemos conviver, com a que temos que contar, para nosso desgosto cotidiano (...). São os que se acreditam únicos depositários do legado revolucionário; os que sabem qual é a moral socialista, e tem institucionalizado a mediocridade e o provincianismo; os burocratas (com ou sem burô); os que conhecem a alma do povo e falam dele como se fosse uma criança, de quem pode-se esperar muito (...); são os mesmos que dizem como devemos falar com o povo, como temos que nos vestir, e como devemos brigar (...); envergonhamse do nosso atraso e tem complexo nacional de inferioridade (...)”. Alea, paradoxalmente, assinala isto nas notas de trabalho das Memorias del subdesarrollo. Ao invés do desencanto que ocupa a última fase da sua filmografia, trabalha com uma proposta dramática Aristotélica, relacionada à sintaxe clássica do cinema, fazendo com que seu herói/protagonista funcione empáticamente com o público, através de uma posição individual e crítica com a realidade. A exceção disto é Cartas del parque, filme de 1988, que é um jogo de narração realizado em função da sobrevivência econômica. 7 Lina em Hasta cierto punto, Diego em Fresa y chocolate y Gina em Guantanamera duas mulheres e um homosexual - podem ser lidos inter-textualmente como cidadãos honestos, pessoas irrequietas, em confronto individual com a díada Estado burocrático/mentalidade atrasada. Diz Alea sobre a conjuntura: “(...) Assim, às nossas limitações naturais de país subdesenvolvido em todo sentido, com uma alta percentagem de analfabetos e uma evidente pobreza cultural, uniram-se as limitações impostas pelo bloqueio de fora e, o que é pior, as limitações que às vezes nos impunha um bloqueio de dentro. Isto último, é bom dizé-lo, não foi a linha da Revolução. Foi tão somente uma manifestação aguda de uma das tendências que iam aparecendo ao longo do processo (...). Começou-se por idealizar ao homem, e (...) os mecanismos econômicos que obrigam ao homem a trabalhar no capitalismo, foram substituídos por púdicas morais e consignas políticas. Ao mesmo tempo, incrementou-se a vigilância e a prensa nos informava, dia após dia, que vivíamos no melhor dos mundos possíveis” xxiv. Hasta cierto punto, de 1983, narra o conflito de classes e as questões da mentalidade machista. O romance entre a operária Lina e o roteirista Oscar, muito embora ele seja um indivíduo sensível, está destinado a um final ruim. Alea diz que pretendia com este filme “uma estória que implicasse um confronto dentro da Revolução: a do intelectual com o operário” xxv. Existe uma sequência que nos brinda um vestígio precioso da conjuntura econômica cubana: quatro personagens estão conversando num terraço. Quando um deles pega uma cadeira, a anfitriã diz: “Essa não, que está quebrada”. Já estamos no momento da explosão da aguda crise político/econômica, e frente à uma colocação corriqueira na sociedade cubana, que pode reduzir-se ao “isto não que está quebrado”. A deterioração dos objetos cotidianos funciona como o sintoma de um deterioro maior: o da política econômica. Alea assinala que: “(...) a Revolução deu-se o luxo de cometer os mais variados erros na elaboração duma política econômica cujos rasgos essenciais, mantidos insistentemente, tem sido o idealismo, o paternalismo, o voluntarismo e a falta de senso prático” xxvi. A sequência inicial é magistral. Operários do porto opinam sobre a igualdade mulher/homem, para um documentário que está sendo filmado. O machismo e a rigidez de mentalidade ficam, emblematicamente plasmados quando perante a pergunta “o que você pensa da igualdade homem/mulher?”, um simpático trabalhador responde, com jeitinho cubano: “Está bem, mas até certo ponto”. As pressões de longa data funcionando de maneira exemplar. Quando Lina pergunta ao roteirista como vai acabar o filme que está escrevendo, e ele responde que não sabe, mas que pode acabar mal; a mulher responde: “Para qué 8 acabar mal, como na vida? As pessoas necessitam que, ao menos no cinema, as coisas acabem bem”. Nos deparamos com um sujeito que reivindica a fantasia, a necessidade de recreio, perante a dura realidade. Isto é novo no cinema e no pensamento cubanos: os sonhos também são realidade. Fresa y chocolate, de 1993, narra a questão da diferença e da intolerância para com a mesma, a través de Diego, homosexual, e David, estudante de ciências sociais e membro da Juventude Comunista. E da mesma forma que Alea toma partido pela mulher em Hasta cierto punto e Guantanamera, neste caso o faz pelo homosexual.. Quando David lhe comenta a um companheiro que “conheci um cara esquisito, olha que tinha chocolate (na sorveteria Copelia), e pediu fresa”; fica assinalada a dicotomia singular/plural, ja que o simples gosto pessoal por um sabor, coloca Diego no banco dos réus. Plasma-se exemplarmente a questão diferença/prejuizo; cultura homogênea/verdade. Diego ama a Cuba, através de Severo Sardui, de Lezama Lima, da Virgem da Caridade do Cobre, de Ogum, da fotografia que tem do Martí. David a ama através de consignas abstratas. A paulatina amizade entre os dois homens, até o abraço final de despedida, funciona na perspectiva das mudanças individuais. A utopia geral mudada pelo homem de carne e osso. Diz Alea: “(...) O objetivo fundamental da Revolução é o homem, o melhoramento do homem, o aperfeiçoamento da condição humana. Ou, como se tem repetido tantas vezes, a criação de um homem novo, mais humano, que possa viver numa sociedade mais justa (...). Por um legítimo afã de justiça social, de pureza ideológica, a revolução chegou quase que a ignorar os interesses pessoais do homem, suas necessidades individuais. Pelo menos tendeu à minimizar esses interesses, e quis fazes coincidir, à força de consignas, prédicas morais e exortações, o homem que somos com um modelo ideal, concebido como produto das melhores intenções” xxvii. Guantanamera, de 1995, é uma comédia de humor negro que retoma La muerte de un burócrata. A idéia do filme foi em 1984, após ver na TV um discurso de Fidel Castro, anunciando cortes de gasolina perante a crise econômica. A retoma anos depois, quando a situação se deteriora perante a queda do bloco comunista, do qual Cuba dependia umbilicalmente. O filme narra a idéia de um burocrata para o traslado de defuntos. O mesmo inventou uma forma de relevos, de estado em estado, quando alguém morre fora da sua cidade e deve ser trasladado de volta. Dessa forma, o planejador burocrático pensa em 9 economizar gasolina e, claro, aumentar seu prestigio no Partido. A ascensão social do burocrata versus o respeito ao defunto e seus familiares. Alea comenta que : “(...) quando as contradições no plano da realidade não eram devidamente encaixadas, se eliminavam no plano da propaganda. A partir de então a Revolução ficou enlaçada no seu próprio mito. E a partir desse momento senti que se perdia algo muito valioso e que a Revolução começava a parecer-se perigosamente à caricatura que seus inimigos tinham feito dela” xxviii. Adolfo, o burocrata, sintetiza as relações poder/morte e burocracia/pensamento autoritário; assim como a necessidade de sobrevivência da classe dirigente.- Diz Baczko: “Todo poder rodeia-se de representações, símbolos, emblemas, etc., que o legitimam, o engrandecem, e do qual necessitam para garantir sua posição” xxix. No primeiro filme de Alea, Memorias de la Revolución, a imagem final é a de uma mulher chorando seu drama individual, no meio da multidão. Em Guantanamera, a última imagem é o burocrata abandonado no cemitério e o casal, sozinho, rumo à possibilidade da sua felicidade. Sorlin diz: “os filmes são proposições sobre a sociedade; para um historiador trabalhar sobre o cinema quer dizer compreender como se construem essas proposições” xxx. O cinema de Alea, segundo a idéia de Ferro de que o cinema é uma contra-imagem da história xxxi, representa a utopia e contra-utopia da Revolução Cubana, atravessando sua historia até o presente. Se Lucien Febvre propõe uma Historia Problema, o cinema de Tomás Gutierrez Alea é uma Filmografia Problema. 10 NOTAS i Wallerstein, Inmanuel. ii Jackson, Martin A. El historiador y el cine. Em La historia y el cine. Joaquin Romaguera e Esteve Rimbau. Ed. Fontanamara. Espanha, 1983. iii Oroz, Silvia. Tomás Gutierrez Alea: Os filmes que não filmei. Ed. Rio Fundo. RJ, 1985. iv Magallón Anaya, Mario. Filosofía y Utopía en América Latina. Em: La utopía en América. Ed. UNAM. México, 1991. v Oroz, Silvia. Ibid. vi Oroz, Silvia. Ibid. vii Oroz, Silvia. Ibid. viii Halperin Donghi, Tulio. Historia contemporanea de América Latina. Ed. Alianza Editorial. Madrid, 1997. ix Halperin Donghi, Tulio. Ibid. x Oroz, Silvia. Ibid. xi Almendros, Nestor. Cinemanía - Ensayos sobre cine. Ed.Seix Barral. Espanha, 1992. Obs. Almendros foi um dos mais importantes diretores de fotografia. Radicado na França e nos Estados Unidos fotografou, entre outros, Adele H.,de François Truffaut, 1975. xii Rufinelli, Jorge. xiii Panowsky, Edwin. xiv Refinelli, Jorge. xv Para uma maior aprofundização sobre o tema, ver: Braghini Junior, Lunde. Implicações estruturais do subdesenvolvimento no debate dos anos 60 sobre comunicação. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Comunicação - UNB -, 1997. xvi Rozitchner, León. xvii Halperin Donghi, Tulio. Ibid. xviii Halperin Donghi, Tulio. Ibid. xix Oroz, Silvia. Ibid. 11 xx Oroz, Silvia. Ibid. xxi Ferro, Marc. Cinema e historia. Paz e Terra, 1993. xxii Bomberra, Vera. A Revolução Cubana, uma reinterpretação. Ed. Centelho. Coimbra, 1975. xxiii El término “desencanto” foi acunhado pela autora no artigo: Guantasnamera: o desencanto de Alea. Em: Historia e imagem. Org. Francisco Carlos Teixeira da Silva. Ed. UFRJ - IFIES - Programa de Post-graduação em História Social - Copes. RJ, 1998. xxiv Gutiérrez Alea, Tomás. Em: Évora, José Antonio. Ed. Cátedra. Madrid, 1996. xxv Oroz, Silvia. Ibid. xxvi Em: Évora, José Antonio. Ibid. xxvii Em: Évora, José Antonio. Ibid. xxviii Em: Évora, José Antonio, Ibid. xxix Baczko, B. Los imaginarios sociales. Ed. Nueva Visión. Buenos Aires. xxx Sorlin, Pierre. Sociología del Cine. La apertura para la historia del mañana. Fondo de Cultura Econômica. México, 1985. xxxi Ferro, Marc. Ibid. ~~* ~~ 12