CRÍTICA AO FILME POR JORGE LEITÃO RAMOS Ilich Ramírez

Transcrição

CRÍTICA AO FILME POR JORGE LEITÃO RAMOS Ilich Ramírez
CRÍTICA AO FILME POR JORGE LEITÃO RAMOS
Ilich Ramírez Sánchez, mais conhecido por Carlos, é um combatente revolucionário
venezuelano que, nos anos 70/80 levou a cabo alguns espetaculares atos terroristas na Europa,
o mais conhecido dos quais o sequestro dos ministros da OPEP reunidos em Viena, em 1975.
Com a queda do Muro de Berlim, a implosão da União Soviética e o consequente fim da Guerra
Fria, a atividade de Carlos esfuma-se, ao mesmo tempo que, sempre perseguido pelos serviços
secretos do Ocidente, tenta refúgio em vários países árabes. Capturado em Cartum, no Sudão,
em 1994, de onde é raptado pelos franceses, que o levam para Paris, Carlos acaba julgado em
1997 e condenado a prisão perpétua, pena que, atualmente, cumpre.
Estes são os factos que perturbaram o mundo durante muitos anos, sumarizados em voo
rápido para efeitos de contexto. Devem parecer arqueológicos, a esta distância - e, sobretudo,
para quem não os viveu e, entretanto, se habituou a tomar Osama bin Laden como emblema
do terrorismo do século XXI. Evidentemente, a realidade política na Europa é, hoje, muito
diversa da dos anos 70/80. Mas não é possível compreendermo-nos sem o que então
aconteceu.
O filme de Olivier Assayas é uma soberana oportunidade de nos aproximarmos dessa
compreensão. Antes de mais, o filme dá-nos a ver um momento traumático no seio da
esquerda europeia, quando muita gente, descrente dos velhos partidos comunistas, se
radicalizou numa luta revolucionária armada que depressa se confundiu com terrorismo. Carlos
é um produto desse caldo cultural. Estudou em Londres e em Moscovo, tornou-se poliglota e
ainda não tinha 25 anos quando se foi oferecer ao líder do braço armado da Frente Popular de
Libertação da Palestina. É a soldo dessa organização que leva a cabo os primeiros atentados,
incluindo o assalto à reunião da OPEP em Viena. Move-se em território europeu e na sua rede
de contactos e pontos de apoio vão estar vários movimentos esquerdistas do velho continente,
com destaque para a Alemanha Federal. O filme dá-nos a ver essa teia e até o recorte
romântico com que, a partir de certa altura, Carlos se aureola - a boina à Guevara, o olhar
sedutor -, como se ele fosse um combatente pela liberdade. Assayas ousa mesmo chegar à
erotização da violência (arrepiante - e não apenas no sentido medonho da palavra - a
fetichização sexual das armas) e a criar efeitos de suspense que invocam, à boa maneira
hitchcockiana, uma empatia do público com o protagonista. Tememos por ele, por exemplo,
durante a operação OPEP ou quando os polícias franceses entram pelo apartamento em Paris,
desejamos, no íntimo, que ele se safe (até porque a ambiência é cordial, fraterna, musical) mas eis que a violência rebenta e ficamos paralisados com a ferocidade. Magnífico resultado de
um trabalho fílmico onde se quer perceber como foi possível (no fundo, como é que gente
decente pôde andar por tais caminhos), ao mesmo tempo que não se vira a cara ao horror
inteiro.
"Carlos" é um filme épico com um protagonista, mas sem herói. Matiza-se a personagem
principal com uma gama de cambiantes que a excelente interpretação de Édgar Ramírez e a
extensa duração tornam possíveis (e estamos em presença de uma versão curta, esperemos
poder ver em Portugal a versão integral de mais de cinco horas!). É um filme onde a política
internacional aparece como uma coisa viscosa, despida de dignidade. É uma tragédia onde um
homem sem escrúpulos é conduzido por vários poderes em presença que jogam com ele (e
com quem ele joga) num eixo que vai de Tripoli a Beirute, a Damasco, a Bagdade, a Moscovo e
a Berlim. Um homem que, um dia, se apaga, quando os franceses lhe deitam a mão - e já
estava reduzido a has been. Daí que o desfecho do filme, brutalmente seco e abrupto, seja
como que uma pedra sobre o assunto e a personagem. Como quem diz que aquilo acabou e
acabou mesmo. Com um suspiro de alívio.
.Jorge Leitão Ramos, Expresso