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entrevista entrevista
ENTRE
VISTA
ENTREVISTA
Por AnaCris Bittencourt*
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Carol Oliveira
Intencionalmente, a entrevista desta edição foge ao perfil
das pessoas entrevistadas pela revista. Em geral, buscamos
lideranças e militantes de movimentos sociais, ativistas ou
intelectuais que, por sua trajetória, se destacam no cenário
nacional e internacional. Desta vez, quisemos buscar uma
pessoa que representasse a maioria jovem identificada pela
pesquisa Juventude Brasileira e Democracia: Participação,
Esferas Públicas e Políticas. Nessa busca, chegamos a Ana
Carolina Oliveira da Silva.
Aos 22 anos, a dançarina e professora de pré-escola nasceu
na comunidade Parque João Paulo II, do Complexo do
Andaraí, na Grande Tijuca, Zona Norte carioca. A região
conta com sete bairros e 29 favelas. Carol – como gosta de
ser chamada – não é muito afeita a conversas sobre política,
mas tem vontade de participar de iniciativas cidadãs que
possam ajudar a mudar a vida da sua família, da sua
comunidade e, quem sabe, do Brasil. Tanto assim que, aos
19 anos, integrava o Geração (coletivo jovem formado pela
Agenda Social Rio, projeto do Ibase com atuação nas
comunidades da Grande Tijuca).
Carol não participa diretamente de um movimento social,
mas começou sua vida profissional na Companhia Étnica de
Dança e Teatro – uma organização que visa empoderar
meninas e meninos negros por meio da cultura. Seguindo
outro traço forte encontrado na pesquisa, foi mãe aos 18
anos, recebe ajuda do pai da criança, mas não vive com ele.
É negra e não se sente vítima de preconceito, mas esse era
o principal tema das aulas de cidadania que ministrava para
alunos(as) da Companhia Étnica. Acredita que o(a) jovem
deve se capacitar por vontade própria e que benefícios
como bolsas de estudo não podem ser a longo prazo para
não haver acomodação. Nesta entrevista, ela fala de
questões que marcam a trajetória de milhares de outros(as)
jovens brasileiros(as), como sexualidade, participação social
e política, trabalho, estudo e cultura.
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mar e fiz alguns cursos na área. Hoje, trabalho
como professora-recreadora numa creche
municipal do Morro do Andaraí.
Democracia Viva – Sua mãe ajudou
nos cuidados com sua filha?
Carol Oliveira – Quando a neném nasceu, minha mãe tinha um comércio na comunidade, mas teve alguns problemas e resolveu fechar. Eu trabalhava na Companhia
Étnica. Quando Alícia fez 1 ano, senti necessidade de ter outro emprego e fui reservar
uma vaga para ela na creche local. Acabei
arrumando a vaga e o emprego, estou lá até
hoje. Minha mãe me ajudou muito a cuidar
da Alícia no início, porque eu precisava ir
para a Companhia. Às vezes, nos fins de semana, tinha que levar as turmas de alunos
para o teatro e minha mãe ficava com ela, eu
sempre voltava tarde. Hoje, ela é acompanhante de dois idosos no Jardim Botânico,
passa a semana toda fora de casa. Fazendo
um paralelo com o que eu vejo onde moro,
para mãe de primeira viagem, me considero
boa mãe mesmo, cuido, educo, levo para
passear, brinco, me sujo, faço de tudo.
Democracia Viva – De alguma
forma, ser mãe mais cedo travou
algum processo na sua vida?
Democracia Viva – Você e sua
família sempre moraram no
Complexo do Andaraí?
Carol Oliveira – Sempre, nasci no Andaraí.
A vida toda morei com minha mãe, meus pais
são separados desde quando eu era pequena.
Comecei a namorar o pai da minha filha e acabei engravidando, fui mãe aos 18. Durante a
gravidez, continuei morando com minha mãe.
Depois, eu e o pai da minha filha conseguimos uma casa, fomos morar de aluguel. Só
que não deu certo, a química não era mais a
mesma. A gente se separou muito cedo, já tem
dois anos e pouco, quase a idade da Alícia.
Democracia Viva – Mesmo com a
gravidez, você concluiu os
estudos?
Carol Oliveira – Sim, sempre fui boa aluna.
Depois do primeiro grau, fui para a Escola Júlia
Kubitschek fazer formação de professores, me
formei aos 18 anos. Fiquei grávida quando
estava no último ano, mas consegui me for-
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Carol Oliveira – Sim, travou. Quando perguntam se me arrependo, é óbvio que não,
minha filha é meu motivo de sorrir hoje, é a
minha vida. Mas claro que trava. Estava no
fim do segundo grau, quase me formando,
fiz prova para o vestibular da Uerj, mas não
passei. Eu já poderia estar terminando ou já
ter terminado a faculdade. Sonhava em fazer
pré-vestibular, entrar em cursos, queria me
dedicar um pouco mais à companhia de dança, ao trabalho de produção que gostava
muito de fazer. Mas não podia fazer tanto
quanto gostava porque tinha que ter um horário para ela. Para toda a vida, vai ser assim,
para todos os momentos. Claro que tenho
que pensar em mim, na minha capacitação,
no meu crescimento profissional, mas vou ter
que adaptar isso para ter tempo para Alícia
porque ela também precisa de mim. Ela não
pode só ficar na mão de outras pessoas, precisa da mãe.
Democracia Viva – A pesquisa feita
pelo Ibase apontou um grande
número de mães adolescentes. Você
acha que isso acontece por quê?
Carol Oliveira – No meu caso, não foi falta
de informação, acho que a sexualidade das meninas aparece muito cedo, é muito estímulo. Há
CAROL OLIVEIRA
falta de informação e também informação que
não é passada de forma correta, informação que
a colega dá. Ainda hoje, a gente encontra responsáveis que não jogam aberto com o filho.
Também tem a questão de achar que nunca vai
acontecer com a gente.
Mas existem outras questões, o funk é uma
delas. Não sou contra, acho o ritmo legal, mas
as músicas... Não posso nem formular uma coreografia porque estaria fazendo praticamente um ato sexual. Dentro da comunidade, o
estigma do baile funk é de uma coisa depravada, tem que ir para o baile de saia curta, de
short curto, a polpa de fora, o corpo todo. A
menina botou peitinho, o cara já está de olho,
acha que ela já está pronta, é uma cantada
atrás da outra. Tem também a questão da relação com o traficante mesmo, ele é o poder ali
dentro. Mas não é ideal ter filho cedo, ser mãe
demanda tempo, o ideal é estender isso para
uns 20 e poucos anos.
Democracia Viva – Não acha que a
cultura, até mesmo o funk, pode
ser uma forma de ampliar as
perspectivas da juventude?
Carol Oliveira – Charm é ótimo, mas funk...
A gente percebe a influência da sexualidade
exagerada até nas crianças da creche onde trabalho, e elas têm 3, 4 anos. Eu fico desesperada com isso porque vai chegar na adolescência reproduzindo aquilo tudo. Para quem tem
um entendimento básico, sabe que a criança é
pura sexualidade. Porém essa sexualidade não
pode estar num nível fora do normal. No meu
trabalho, procuro dar outras opções para eles.
Por exemplo, a gente almoça ouvindo música
clássica. Mas, se brincamos de caraoquê, só
sai funk, ninguém canta MPB ou pagode. E
isso porque são crianças, com adolescentes é
ainda mais complicado.
Quando dava aulas sobre cidadania na
Companhia, trabalhei com os alunos a questão do funk, fizemos até matérias sobre isso.
Mas chegou um ponto que cansamos de dramatizar situações envolvendo ritmo funk, passamos a cantar de outra forma. Na minha comunidade, percebo uma galera com vontade
de se profissionalizar mesmo, de ser músico,
conhecer música, saber tocar, fazer mixagem.
Mas acho que o grande problema do funk é
mesmo a letra que não evolui. Não entendo,
antes não era assim. O funk falava de cartãopostal, de namoro, de amor, coisas que faziam
a gente dançar e se sentir bem, mas hoje eu
não me sinto bem e muitas outras amigas também não curtem.
Democracia Viva – Há muitos
garotos da sua comunidade que
viraram MC ou DJ ou estão
trabalhando como músicos?
Carol Oliveira – Na minha comunidade, o
forte mesmo é grupo de pagode. Diversos
grupos de pagode conseguem espaço para
tocar em barzinhos na Tijuca, no Grajaú. Foi o
caso de um grupo de amigos meus. No início,
o dono do barzinho não queria pagode, depois concordou, mas não podia pagar nada.
Assim mesmo, eles foram lá, tocaram e a galera gostou. Aí,
eles combinaram
de tocar dois finais de semana
por mês com o
dono do bar dando uma ajuda de
custo.
Lá, agora, a galera também está
muito envolvida
com a rádio comunitária Nova Divinéia. Muita gente
que nunca tinha
visto como funciona uma rádio teve
oportunidade de
aprender a operar,
conhecer aqueles
mecanismos todos. Hoje, a rádio
tem programas
bem legais. Por
exemplo, tem um
programa de funk,
mas não é só funk,
eles chamam de
pagofunk, é muito bom, é toda
quinta-feira.
Na minha
comunidade,
percebo uma galera
com vontade de se
profissionalizar
mesmo, de ser
músico, conhecer
música, saber
tocar, fazer
mixagem. Mas
acho que o grande
problema do funk
é mesmo a letra
que não evolui
Democracia
Viva – A
Companhia
Étnica de
Dança e Teatro foi seu
primeiro trabalho?
Carol Oliveira – Antes eu trabalhava como
manicure, pois queria ganhar dinheiro, fazia
as unhas da família toda, aos sábados. Mas
sempre gostei de dançar e, quando estava no
segundo ano do segundo grau, em 1999, a
Companhia Étnica realizou uma oficina de
dança afro na Divinéia, comunidade que faz
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parte do Complexo do Andaraí. Estava com
16 para 17 anos. Participava de aulas de capoeira, mas o professor foi embora e passou
a dar aula em lugares mais distantes, não deu
para acompanhar. Parei de fazer capoeira e
logo veio a Companhia oferecendo a oficina
de dança afro e eu ingressei. Só que o contingente de alunos foi diminuindo a cada mês.
Fomos, então, para o Cemasi [Centro Municipal de Assistência Social Integrada] do
Andaraí. Lá, eu dançava, fazia coreografia, assistia às aulas, foi assim que comecei a trabalhar na Companhia. Dancei até os seis meses
de gravidez. Depois,
passei a realizar outros trabalhos. Acabei ficando cheia de
responsabilidades
na Companhia, comecei a receber uma
bolsa, e a Carmem
Luz m e c o n v i d o u
para ser funcionária
depois do nascimento do bebê.
Quando Alícia nasceu, não quis voltar
p a r a d a n ç a. Pa r a
isso, precisaria ter
uma dedicação maior, achei que não
daria. Preferi ficar na
produção da Companhia e, depois,
com o trabalho no
Geração. Saí da Companhia Étnica em
2003 para me dedicar mais à creche, é o
que eu mais gosto de
fazer: educar.
O tráfico dentro
da comunidade
é minoria,
apesar de muitos
jovens, meninos
e meninas, se
engajarem nesse
grupo. Mas a
comunidade é
muito maior
que eles,
muito maior
Democracia Viva
– Você entrou
na Companhia
Étnica como voluntária e acabou
se tornando funcionária. É muito
difícil para uma pessoa jovem
conseguir emprego?
Carol Oliveira – Algumas amigas e amigos reclamam muito das exigências para se
entrar no mercado de trabalho. Tem que ter
experiência, mas, se você nunca fez, se ninguém der essa oportunidade, nunca vai fazer, não vai poder mostrar o que sabe. Mas
não acho que também esteja tão difícil. É claro que tem muita gente se matando dentro
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de shopping, com horários imensos, mas hoje
está mais fácil, a gente consegue entrar através de parcerias, por exemplo. Foi o que aconteceu certa vez lá na comunidade. Uma loja
de roupas selecionou meninas novas, sem experiência, para capacitar e, depois, elas começaram a ser vendedoras.
Tem também a questão das associações de
moradores que procuram dar chance às pessoas mais novas. Por exemplo, quando abriram
vagas na creche Sá Viana, várias meninas da
comunidade que tinham feito curso normal
queriam concorrer, mas a diretora disse que precisava ter experiência. A associação negociou e
a diretora da creche permitiu que metade das
vagas fosse para quem não tinha experiência.
Acompanhei esse processo bem de perto.
Democracia Viva – Mas essas
experiências não conseguem dar
vazão à maioria das pessoas
jovens. Você concorda com a tese
que diz que é o tráfico de drogas
que mais emprega jovens na
comunidade?
Carol Oliveira – Não concordo. É claro que
existe uma dinâmica e há momentos terríveis,
como a chacina que aconteceu no Andaraí no
início de 2005, mas não acho que a maioria faz
parte, isso não. O tráfico dentro da comunidade
é minoria, apesar de muitos jovens, meninos e
meninas, se engajarem nesse grupo. Mas a comunidade é muito maior que eles, muito maior.
Democracia Viva – O que atrai a
juventude para o tráfico?
Carol Oliveira – É o luxo e a luxúria também, é o consumo, querer entrar naquele
padrão passado pela televisão e também
pelos próprios traficantes, que andam muito bem vestidos e calçados. Eles querem roupa de marca, tênis caros, querem que as
meninas fiquem atrás. Pedem para a mãe,
que não pode dar. Como ela vai dar R$ 300
em um tênis? Eles percebem que os caras do
tráfico não estudam, têm namoradas, dormem o dia inteiro e só trabalham à noite.
Parece fácil para quem está ainda na ilusão,
fácil e prático.
Democracia Viva – Mas o cotidiano
de violência não desestimula?
Carol Oliveira – Não desestimula, digo
isso com certeza. Eu não sei como, mas eles
não têm medo. Isso aconteceu com um cara
que jogou capoeira comigo. Quando o professor não podia dar aula, pedia para ele orientar a turma, ele era muito bom. Mas se envolveu de uma forma, ninguém entendeu o
CAROL OLIVEIRA
motivo. Chegamos a conversar com ele, questionar a nova postura, e ele dizia que estava
tudo bem. Um dia, ele estava num grupo e
um dos garotos foi baleado, conseguiu escapar, não foi levado nem para a delegacia nem
para o hospital. Ninguém sabia dele. Falamos
com ele de novo: “Você estava lá, não viu o
cara estatelado ali? Muda, cara, vai embora,
desaparece”. Mas ele só dizia que estava
numa boa, achava que com ele não aconteceria. Engravidou duas garotas, as duas tiveram
os filhos na mesma época. O que vai ser dessas crianças agora e de suas mães? Sinceramente, não consigo entender.
Democracia Viva – Se você
pudesse traçar um perfil dos
garotos e das garotas que se
envolvem com o tráfico,
qual seria?
Carol Oliveira – Posso falar sobre as pessoas com quem convivi. Esse menino de que
falei conseguiu sair. Ele estava no primeiro
grau ainda. A família realmente passava por
dificuldades. Mas ele trabalhava numa empresa de ônibus, por isso não entendo. Talvez ele mesmo não visse seu potencial na capoeira, não visse isso como algo que pudesse
dar dinheiro. Eu não sei o que mais ele queria. Será que era só mulher? Sei que não usava drogas. Não sei dizer por que eles se envolvem nisso. Você está vendo o que acontece
com as outras pessoas e vai querer aquilo para
você? Está faltando alguma coisa, mas não
sei dizer o quê.
teatro, show, cinema. Não tem nenhum perto da comunidade e também tem a questão financeira. A Companhia Étnica sempre
organizava festivais de teatro, apresentações de dança, lotava, a comunidade toda
participava. Acho que isso ainda acontece
pelo menos duas vezes por ano, em junho
e em dezembro. O ruim para a pessoa da
comunidade é quando tem que sair por
conta própria. Quando eu era da Companhia, muitas vezes organizava grupos, ia
pai, mãe, primo, botava todo mundo no
ônibus, levava e trazia, fazia tudo para facilitar e para que a galera tivesse motivo
de sobra para ir.
Democracia Viva – E você, o que
gosta de fazer para se divertir?
Carol Oliveira – Gosto de sair para ouvir música, para sambar. A quadra do Salgueiro para mim é tudo. Gosto de ir ao
teatro, ao cinema, acho legal. Mas o que
faço com mais freqüência é ir para a quadra do Salgueiro. Eu desfilo também na
escola, adoro! Este ano, além de desfilar,
Democracia Viva – O que faz quem
não consegue emprego e não fica
no tráfico?
Carol Oliveira – Não sei, acho que fica à
toa mesmo. Tenho uma amiga que não está
trabalhando e há muito tempo tenta, mas não
está conseguindo trabalho, não sei exatamente
o motivo. Ela depende de pai e mãe, mas estuda e faz curso na Nação Mangueirense, que
tem informática, inglês, telemarketing, espanhol. Muitas amigas participam desses cursos.
Não estão trabalhando, mas estão se capacitando. Mas não sei se todos pensam dessa
forma, de repente, alguns preferem ficar jogando bola ou só ir à escola e voltar para casa
para ver televisão.
Democracia Viva – Quais são as
opções de lazer dentro da sua
comunidade ou no entorno?
Carol Oliveira – O pessoal fica na praça
mesmo. Como lazer, tem futebol, vôlei e
ficar à toa, batendo papo. Não vão muito a
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fiquei com a responsabilidade de organizar a ala mirim da Flor da Mina, uma escola
de samba do Andaraí. Fico cercada de crianças todo sábado.
Democracia Viva – Você tem
alguma formação religiosa? Acha
que a religião ajuda na formação
da juventude?
Carol Oliveira – Minha família é voltada
para o catolicismo. Mas, depois que cresci,
não sou muito ligada, não. Tenho amigo na
umbanda, mas também assisto à missa e,
noutro dia, uma amiga me chamou para ir a
um centro espírita. Eu não estou presa a
uma só religião. A religião pode ajudar, mas
depende muito. Na igreja onde eu assistia
às missas, não tinha nenhuma discussão política, era só questão religiosa mesmo. Mas
existem outros exemplos. Dois integrantes
do Geração eram da Igreja dos Capuchinhos,
faziam um trabalho muito legal, discutiam,
participavam de fóruns, existia um
engajamento. Acho que a religião tem peso
quando é dessa maneira, quando a instituição tem um caráter não só religioso, mas
também quer engajar o jovem num movimento político, social e cultural. Aí é diferente, mas onde eu participei não tinha isso.
Não vou obrigar minha filha a ter uma religião. Enquanto for pequena, ela vai aonde
eu for e, depois, se quiser, vai se decidir por
uma. Ah, detalhe: ela é batizada, a família
cobra isso.
Democracia Viva – Estava com
quantos anos quando entrou para
o Geração?
Carol Oliveira – Com 18, estava grávida.
Trabalhava na Companhia Étnica, que sempre recebia contatos do Ibase. Um dia, recebi um comunicado da Patrícia [Patrícia
Lânes, pesquisadora do Ibase] sobre uma
reunião de jovens no Sobrado Cultural, em
Vila Isabel. A idéia era oferecer capacitação
para jovens aprenderem a fazer um jornal
que seria o elo de comunicação de uma rede
de juventude na Grande Tijuca, e eu me interessei. A capacitação foi realizada no Sobrado, mas também na reserva florestal do
Grajaú. A discussão foi crescendo, as pessoas foram demonstrando vontade, e o Geração foi nascendo. Escrevi muitas matérias
para o Geração, todo mundo discutia sobre
as pautas, a diagramação, participávamos
de todo o processo. Depois, o jornal passava pelas mãos de jornalistas que finalizavam o trabalho.
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Democracia Viva – Algum rapaz ou
alguma moça da Companhia Étnica
aceitou o convite?
Carol Oliveira – Não, tentamos inserir alguns alunos das turmas que eu ensinava, só
que o foco da Companhia é a dança e o teatro,
eles não tinham tempo. Eu só consegui participar porque levava minhas atividades do Geração para serem feitas durante as minhas aulas, meus alunos me ajudavam a produzir e
assinávamos juntos.
Democracia Viva – O que a
motivou a participar do Geração?
Carol Oliveira – Eu jamais estaria aqui dando esta entrevista se não tivesse passado pela
Companhia Étnica e pelo Geração, jamais. Eu
tinha uma dificuldade extrema de expressar
minhas idéias, minhas opiniões. Lá no Geração muita gente falava bem. Já na Companhia era a Carmem Luz que brigava comigo
porque eu só respondia: “hum, hum”. Participando de reuniões, de encontros, percebi
que, quando chegava, ninguém se conhecia,
mas todo mundo se apresentava e acabava
fazendo amizade. Todo mundo discutia, pensava junto, expressava seus pensamentos. E
eu sentia muita vontade de aprender a fazer
isso, aprender a falar, a discutir, foi o que me
motivou. Outro ponto que pesou foi a chance
de protagonizar um trabalho, de participar
do início ao fim, de ter minha opinião respeitada, como era no Geração.
Democracia Viva – O trabalho no
Geração repercutiu, de alguma
forma, na sua comunidade?
Carol Oliveira – Em cada uma das edições
do jornal, a gente organizava um debate sobre os temas tratados na edição. Uma vez foi
no Andaraí, outra vez foi na Igreja dos
Capuchinhos e na comunidade da Casa Branca. Mas não dá para dizer porque alguns se
engajam e outros não, às vezes acho que isso
tem a ver com a própria política. Por exemplo,
hoje muitos projetos oferecem bolsa-auxílio
para o jovem participar, então, quando vem
um projeto que não oferece bolsa, muitos não
querem participar.
Democracia Viva – A juventude só
participa quando os projetos
oferecem bolsas?
Carol Oliveira – Sim, tem que ter ajuda
de custo, acho isso errado, mas acontece.
Antes de o jovem querer o dinheiro da passagem, para lanche, tem que saber o que
quer de verdade. Se eu quero aprender
informática e estão abertas as inscrições, vou
lá e me inscrevo porque quero aprender a
mexer em computador. Isso independe de
eu ter R$ 50, R$ 30, R$ 20, R$ 10 de bolsa ou
lanche, se meu objetivo é esse, é o que importa. O apoio da família também é importante. Quando perguntei a opinião da minha mãe sobre o Geração, ela falou: “Carol,
em toda a minha vida, ninguém me ofereceu
nem R$ 1 pra eu fazer um curso”. Ela não
entendia quase nada desses assuntos, mas
disse: “Vai, sim, se você gosta. Caramba, minha filha vai ser
jornalista!”.
Democracia
Viva – Você
acha errado o
Estado
oferecer
bolsa para
mais pessoas
terem acesso
aos estudos?
Eu jamais estaria
aqui dando esta
entrevista se não
tivesse passado
pela Companhia
Étnica e pelo
Geração, jamais.
Eu tinha uma
dificuldade
extrema de
expressar minhas
idéias, minhas
opiniões
Carol Oliveira –
Dar bolsa não é errado. O problema é
simplesmente a permanência, a pessoa
acaba se acomodando, acha que é
só aquilo. Há projetos na comunidade
com garotos e garotas da minha idade que ganham
R$ 240 por mês e
acham que a vida
deles é só isso.
Pode até ser que
eles estejam descobrindo o que gostam de fazer. A bolsa tem um sentido
positivo quando
vem como uma recompensa, mas não
pode passar de três
meses, não pode ser contínua. Depois disso,
a pessoa tem que ir à luta, buscar um trabalho, um emprego, fazer um curso, tentar um
estágio. A pessoa tem que demonstrar o que
aprendeu. Não adianta ficar um ano participando e no ano seguinte fazer a mesma coisa. É preciso dar sentido ao trabalho, produzir mais. Não gostaria que os jovens da
minha idade pensassem que é só isso que
eles podem ter, produzir e receber. Eles po-
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dem buscar um emprego que dê muito mais
grana ou que não dê grana, mas que dê prazer no fazer, no executar. Por isso, acho que a
bolsa tem sentido negativo e positivo. O dinheiro, a bolsa, tem que ser conseqüência,
não pode ser o motivo, o estímulo.
Democracia Viva – Quando a loja
recrutou pessoas em sua
comunidade, você sentiu algum
preconceito na hora de oferecerem
essas vagas?
Carol Oliveira – Não, eles não fizeram exigências. Eu não conheço todos que foram selecionados, mas conheço uma menina. Ela foi
lá, fez a inscrição e não pediram absolutamente nada. Só que estivesse estudando e
que tivesse documentos, só isso, nem perguntaram se tinha experiência.
Democracia Viva – Mas isso não é
comum, não é? Você já ouviu
algum relato de meninas que
tenham sido preteridas por
serem negras ou por não
seguirem um determinado
padrão de beleza?
Carol Oliveira – Não, mas percebo que
o perfil das pessoas que atendem em lojas
está mudando, trabalham mais pessoas negras agora. Antes, era aquela maquiagem
leve, rosada, tipo Barbie Girl. Agora, eu até
estimulo outras meninas a enviarem currículo para as lojas.
Democracia Viva – Você ou alguém
da sua família já sofreu algum
tipo de preconceito?
Carol Oliveira – Se eu passei, não percebi,
não foi nada marcante, não.
Democracia Viva – Quando você
estava na Companhia Étnica,
como era abordada a questão
do racismo?
Carol Oliveira – Isso era discutido. Lá tem
bastante negro, mas também tem muita gente que não é. A Companhia aceita qualquer
pessoa que demonstre ter perseverança, competência, vontade de participar, presença. Em
relação à forma como o grupo era conduzido, nunca senti nenhum tipo de divisão, separação. Cada espetáculo organizado é debatido lá dentro, não só pelos negros, mas
por toda a Companhia. Mas como eu ficava
na produção, não participava muito desse
tipo de discussão.
Democracia Viva – Mas você não
dava aulas de cidadania também?
E o tema do preconceito racial
não entrava?
Carol Oliveira – Sim, eu dava aulas de cidadania. Esse era o tema das minhas aulas, claro.
Discutia com a galera, eles colocavam as suas
opiniões, relatavam situações em que achavam que tinham sofrido preconceito ou até
outras em que tinham se comportado de forma racista com alguém.
Democracia Viva – Qual a sua
opinião sobre as cotas para
negros e negras?
Carol Oliveira – Penso que é preciso mexer na qualidade do ensino para que todos
possam competir de igual para igual. Não
adianta tentar colocar a pessoa lá dentro
através de uma cota se ela não vai ter condições de permanecer. Pode até dar certo se,
durante a educação básica, ela aprender para
poder competir com uma pessoa de colégio
particular, aí tudo bem. Mas, se a qualidade
do ensino público no Brasil fosse boa, não
teria necessidade disso. Essa não é a forma
mais adequada de entrar na faculdade. Temos condições de competir como todos os
outros seres humanos de tudo quanto é cor.
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CAROL OLIVEIRA
das comunidades para ajudar
nas campanhas. Nunca
recrutaram você?
Carol Oliveira – Não, nunca fui recrutada
para trabalhar assim, não. Aos 16 anos, fiz
questão de tirar o título e, desde a primeira
eleição, tenho sido recrutada pelo TRE, trabalho como suplente vogal.
Democracia Viva – É filiada a
algum partido?
Carol Oliveira – Sou filiada, mas não
participo, discussão de partido não me anima muito. Me filiei quando participava do
Geração. No Sobrado Cultural, aconteciam
discussões em grupo sobre política e achei
que, se quisesse participar, seria melhor me
filiar. Fui a algumas reuniões e alguns encontros, mas vi que não era daquela maneira que eu queria participar, discutindo
política. Não era bem daquela forma como
o grupo conduzia.
Democracia Viva – Se não é em
partido, qual é a melhor forma de
discutir política e aprender a
participar?
Democracia Viva – Se entrasse
para uma universidade pública,
acha que sofreria preconceito?
Você tentaria as cotas?
Carol Oliveira – Não sei que tipo de preconceito eu poderia sofrer, não sei como as
pessoas agem umas com as outras lá dentro.
Quero acreditar que não, espero que não,
mesmo que entrasse pelas cotas. Não sei, mas
acho que entraria pelas cotas, é uma facilidade, tentaria já que existe essa chance. Mas, se
eu tivesse certeza da minha condição de passar, deixaria a cota.
Democracia Viva – Antes de entrar
para a Companhia Étnica, quando
era estudante, participava de
grêmio, de alguma associação?
Carol Oliveira – No primeiro grau, a escola
não tinha grêmio. Eu gostava muito de jogar e
ajudava a organizar as olimpíadas da escola.
No segundo grau, foi uma loucura tão grande
na minha vida que eu não queria nem olhar
para grêmio. De manhã, tinha estágio, de tarde ia para a escola, saía de lá direto para a
Companhia, de onde saía quase meia-noite
para às 6h30 sair de casa novamente. Por isso,
não participei do grêmio do Júlia Kubitschek.
Até tinha vontade, mas não deu.
Democracia Viva – Em períodos
pré-eleitorais, é comum
políticos recrutarem jovens
Carol Oliveira –
Busco uma maneira
mais gostosa de discutir, você diz o que
pensa, eu digo o
que penso. Isso
pode acontecer até
na escola. Se a professora abre uma
discussão sobre métodos anticoncepcionais, por exemplo, quem conhece
fala. Ou, se ela organiza uma espécie de
fórum dentro da
sala de aula, os alunos estarão aprendendo a participar.
Da mesma forma, se
acontece um problema no trabalho, o jovem tem que saber
colocar suas opiniões, não é? E na própria comunidade
também acontece
isso, se um grupo de
moradores acha que
tem que colocar
uma iluminação na
Não sei que tipo
de preconceito eu
poderia sofrer,
não sei como as
pessoas agem
umas com as
outras na
universidade.
Quero acreditar
que não, espero
que não, mesmo
que entrasse
pelas cotas
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*AnaCris
Bittencourt
Jornalista, subeditora da
revista Democracia Viva
Participaram desta
rua e outro não, temos que opinar. São em
pequenos fóruns, em pequenas discussões
que o jovem aprende a participar e também
em encontros, palestras, seminários, quando
há essa oportunidade.
Democracia Viva – Os rapazes
e as moças que você conhece
têm oportunidade de participar
de fóruns e seminários?
entrevista: Dulce
Pandolfi, Eliane Ribeiro,
Iracema Dantas, Itamar
Silva e Patrícia Lânes.
Fotos: Marcus Vini
Carol Oliveira – Nem todos. Mas até
quando pessoas de um partido querem recrutar jovens para fazer uma passeata sempre tem um discurso e o cara tem que ouvir
e, às vezes, aquele assunto pode ser levado
para o grupo dele na comunidade, na associação. Essa também é uma forma de participar. Há também os encontros de juventude, de grupo de jovens, é uma oportunidade
que eles têm. Na minha comunidade, esse
espaço vem mais da associação de moradores, quando fazem reunião para dar algum
informe. Por exemplo, já discutimos sobre
o Favela-Bairro, quem se sentiu prejudicado ou favorecido com o programa foi lá, é
um espaço de participação.
Democracia Viva – Você participa
da associação de moradores no
Andaraí?
Carol Oliveira – Participei um tempo,
mas não é a minha praia. As atribuições de
quem participa não têm a ver comigo.
Quando participei, fazia parte do secretariado. Abria correspondência, atendia telefone, anotava denúncia de morador. Tem
gente que topa fazer esse trabalho, mas
eu não. Às vezes, chega um projeto para
organizar, isso é até legal, mas separar carta é chato.
Democracia
Viva – Você
acha que
a juventude
se sente
atraída
por algum
movimento
social?
Carol Oliveira –
Não vejo muito
isso na minha comunidade, não. Alguns jovens sim,
mas não a maioria.
Eu me envolvi um
pouco com o movimento de mulhe-
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DEMOCRACIA VIVA Nº 30
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res, com o pessoal do Camtra [Casa da Mulher Trabalhadora], participei com elas de
uma mobilização no dia 8 de março [Dia
Internacional da Mulher], mas não pude
levar adiante.
Democracia Viva – E do
Fórum Social Mundial, você
já participou?
Carol Oliveira – Nunca participei das edições em Porto Alegre, mas fui ao I Fórum
Social Brasileiro, em Belo Horizonte. Geralmente, quem vai ao Fórum já está engajado,
já está participando de alguma instituição.
Participei, também, em Brasília, da Semana
da Juventude Brasileira com o Geração. Apresentamos o trabalho realizado pelo Geração,
conversamos com pessoas que trabalham
com juventude de outras formas, com imagem, com artesanato.
Democracia Viva – Falando sobre
as perspectivas da juventude,
como você se imagina daqui a dez
anos? Acha que terá oportunidade
de melhorar sua vida?
Carol Oliveira – Sim, com certeza, estou
buscando muito isso. Me imagino formada,
trabalhando, dando aulas e participando de
algum grupo ou de alguma organização na
área da educação.
Democracia Viva – Se tivesse
que mandar uma mensagem
para os rapazes e moças do Brasil,
o que diria?
Carol Oliveira – Que estudem, que se capacitem, que busquem crescimento pessoal,
que se valorizem, que busquem alguém ou
algo para se espelharem e subirem.
CAROL OLIVEIRA
OUTUBRO/2000
JAN / MAR 2006
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