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ENTRE VISTA ENTREVISTA Por AnaCris Bittencourt* 50 DEMOCRACIA VIVA Nº 30 9 Carol Oliveira Intencionalmente, a entrevista desta edição foge ao perfil das pessoas entrevistadas pela revista. Em geral, buscamos lideranças e militantes de movimentos sociais, ativistas ou intelectuais que, por sua trajetória, se destacam no cenário nacional e internacional. Desta vez, quisemos buscar uma pessoa que representasse a maioria jovem identificada pela pesquisa Juventude Brasileira e Democracia: Participação, Esferas Públicas e Políticas. Nessa busca, chegamos a Ana Carolina Oliveira da Silva. Aos 22 anos, a dançarina e professora de pré-escola nasceu na comunidade Parque João Paulo II, do Complexo do Andaraí, na Grande Tijuca, Zona Norte carioca. A região conta com sete bairros e 29 favelas. Carol – como gosta de ser chamada – não é muito afeita a conversas sobre política, mas tem vontade de participar de iniciativas cidadãs que possam ajudar a mudar a vida da sua família, da sua comunidade e, quem sabe, do Brasil. Tanto assim que, aos 19 anos, integrava o Geração (coletivo jovem formado pela Agenda Social Rio, projeto do Ibase com atuação nas comunidades da Grande Tijuca). Carol não participa diretamente de um movimento social, mas começou sua vida profissional na Companhia Étnica de Dança e Teatro – uma organização que visa empoderar meninas e meninos negros por meio da cultura. Seguindo outro traço forte encontrado na pesquisa, foi mãe aos 18 anos, recebe ajuda do pai da criança, mas não vive com ele. É negra e não se sente vítima de preconceito, mas esse era o principal tema das aulas de cidadania que ministrava para alunos(as) da Companhia Étnica. Acredita que o(a) jovem deve se capacitar por vontade própria e que benefícios como bolsas de estudo não podem ser a longo prazo para não haver acomodação. Nesta entrevista, ela fala de questões que marcam a trajetória de milhares de outros(as) jovens brasileiros(as), como sexualidade, participação social e política, trabalho, estudo e cultura. JAN / MAR 2006 51 E N T R E V I S TA mar e fiz alguns cursos na área. Hoje, trabalho como professora-recreadora numa creche municipal do Morro do Andaraí. Democracia Viva – Sua mãe ajudou nos cuidados com sua filha? Carol Oliveira – Quando a neném nasceu, minha mãe tinha um comércio na comunidade, mas teve alguns problemas e resolveu fechar. Eu trabalhava na Companhia Étnica. Quando Alícia fez 1 ano, senti necessidade de ter outro emprego e fui reservar uma vaga para ela na creche local. Acabei arrumando a vaga e o emprego, estou lá até hoje. Minha mãe me ajudou muito a cuidar da Alícia no início, porque eu precisava ir para a Companhia. Às vezes, nos fins de semana, tinha que levar as turmas de alunos para o teatro e minha mãe ficava com ela, eu sempre voltava tarde. Hoje, ela é acompanhante de dois idosos no Jardim Botânico, passa a semana toda fora de casa. Fazendo um paralelo com o que eu vejo onde moro, para mãe de primeira viagem, me considero boa mãe mesmo, cuido, educo, levo para passear, brinco, me sujo, faço de tudo. Democracia Viva – De alguma forma, ser mãe mais cedo travou algum processo na sua vida? Democracia Viva – Você e sua família sempre moraram no Complexo do Andaraí? Carol Oliveira – Sempre, nasci no Andaraí. A vida toda morei com minha mãe, meus pais são separados desde quando eu era pequena. Comecei a namorar o pai da minha filha e acabei engravidando, fui mãe aos 18. Durante a gravidez, continuei morando com minha mãe. Depois, eu e o pai da minha filha conseguimos uma casa, fomos morar de aluguel. Só que não deu certo, a química não era mais a mesma. A gente se separou muito cedo, já tem dois anos e pouco, quase a idade da Alícia. Democracia Viva – Mesmo com a gravidez, você concluiu os estudos? Carol Oliveira – Sim, sempre fui boa aluna. Depois do primeiro grau, fui para a Escola Júlia Kubitschek fazer formação de professores, me formei aos 18 anos. Fiquei grávida quando estava no último ano, mas consegui me for- 52 DEMOCRACIA VIVA Nº 30 9 Carol Oliveira – Sim, travou. Quando perguntam se me arrependo, é óbvio que não, minha filha é meu motivo de sorrir hoje, é a minha vida. Mas claro que trava. Estava no fim do segundo grau, quase me formando, fiz prova para o vestibular da Uerj, mas não passei. Eu já poderia estar terminando ou já ter terminado a faculdade. Sonhava em fazer pré-vestibular, entrar em cursos, queria me dedicar um pouco mais à companhia de dança, ao trabalho de produção que gostava muito de fazer. Mas não podia fazer tanto quanto gostava porque tinha que ter um horário para ela. Para toda a vida, vai ser assim, para todos os momentos. Claro que tenho que pensar em mim, na minha capacitação, no meu crescimento profissional, mas vou ter que adaptar isso para ter tempo para Alícia porque ela também precisa de mim. Ela não pode só ficar na mão de outras pessoas, precisa da mãe. Democracia Viva – A pesquisa feita pelo Ibase apontou um grande número de mães adolescentes. Você acha que isso acontece por quê? Carol Oliveira – No meu caso, não foi falta de informação, acho que a sexualidade das meninas aparece muito cedo, é muito estímulo. Há CAROL OLIVEIRA falta de informação e também informação que não é passada de forma correta, informação que a colega dá. Ainda hoje, a gente encontra responsáveis que não jogam aberto com o filho. Também tem a questão de achar que nunca vai acontecer com a gente. Mas existem outras questões, o funk é uma delas. Não sou contra, acho o ritmo legal, mas as músicas... Não posso nem formular uma coreografia porque estaria fazendo praticamente um ato sexual. Dentro da comunidade, o estigma do baile funk é de uma coisa depravada, tem que ir para o baile de saia curta, de short curto, a polpa de fora, o corpo todo. A menina botou peitinho, o cara já está de olho, acha que ela já está pronta, é uma cantada atrás da outra. Tem também a questão da relação com o traficante mesmo, ele é o poder ali dentro. Mas não é ideal ter filho cedo, ser mãe demanda tempo, o ideal é estender isso para uns 20 e poucos anos. Democracia Viva – Não acha que a cultura, até mesmo o funk, pode ser uma forma de ampliar as perspectivas da juventude? Carol Oliveira – Charm é ótimo, mas funk... A gente percebe a influência da sexualidade exagerada até nas crianças da creche onde trabalho, e elas têm 3, 4 anos. Eu fico desesperada com isso porque vai chegar na adolescência reproduzindo aquilo tudo. Para quem tem um entendimento básico, sabe que a criança é pura sexualidade. Porém essa sexualidade não pode estar num nível fora do normal. No meu trabalho, procuro dar outras opções para eles. Por exemplo, a gente almoça ouvindo música clássica. Mas, se brincamos de caraoquê, só sai funk, ninguém canta MPB ou pagode. E isso porque são crianças, com adolescentes é ainda mais complicado. Quando dava aulas sobre cidadania na Companhia, trabalhei com os alunos a questão do funk, fizemos até matérias sobre isso. Mas chegou um ponto que cansamos de dramatizar situações envolvendo ritmo funk, passamos a cantar de outra forma. Na minha comunidade, percebo uma galera com vontade de se profissionalizar mesmo, de ser músico, conhecer música, saber tocar, fazer mixagem. Mas acho que o grande problema do funk é mesmo a letra que não evolui. Não entendo, antes não era assim. O funk falava de cartãopostal, de namoro, de amor, coisas que faziam a gente dançar e se sentir bem, mas hoje eu não me sinto bem e muitas outras amigas também não curtem. Democracia Viva – Há muitos garotos da sua comunidade que viraram MC ou DJ ou estão trabalhando como músicos? Carol Oliveira – Na minha comunidade, o forte mesmo é grupo de pagode. Diversos grupos de pagode conseguem espaço para tocar em barzinhos na Tijuca, no Grajaú. Foi o caso de um grupo de amigos meus. No início, o dono do barzinho não queria pagode, depois concordou, mas não podia pagar nada. Assim mesmo, eles foram lá, tocaram e a galera gostou. Aí, eles combinaram de tocar dois finais de semana por mês com o dono do bar dando uma ajuda de custo. Lá, agora, a galera também está muito envolvida com a rádio comunitária Nova Divinéia. Muita gente que nunca tinha visto como funciona uma rádio teve oportunidade de aprender a operar, conhecer aqueles mecanismos todos. Hoje, a rádio tem programas bem legais. Por exemplo, tem um programa de funk, mas não é só funk, eles chamam de pagofunk, é muito bom, é toda quinta-feira. Na minha comunidade, percebo uma galera com vontade de se profissionalizar mesmo, de ser músico, conhecer música, saber tocar, fazer mixagem. Mas acho que o grande problema do funk é mesmo a letra que não evolui Democracia Viva – A Companhia Étnica de Dança e Teatro foi seu primeiro trabalho? Carol Oliveira – Antes eu trabalhava como manicure, pois queria ganhar dinheiro, fazia as unhas da família toda, aos sábados. Mas sempre gostei de dançar e, quando estava no segundo ano do segundo grau, em 1999, a Companhia Étnica realizou uma oficina de dança afro na Divinéia, comunidade que faz OUTUBRO/2000 JAN / MAR 2006 53 E N T R E V I S TA parte do Complexo do Andaraí. Estava com 16 para 17 anos. Participava de aulas de capoeira, mas o professor foi embora e passou a dar aula em lugares mais distantes, não deu para acompanhar. Parei de fazer capoeira e logo veio a Companhia oferecendo a oficina de dança afro e eu ingressei. Só que o contingente de alunos foi diminuindo a cada mês. Fomos, então, para o Cemasi [Centro Municipal de Assistência Social Integrada] do Andaraí. Lá, eu dançava, fazia coreografia, assistia às aulas, foi assim que comecei a trabalhar na Companhia. Dancei até os seis meses de gravidez. Depois, passei a realizar outros trabalhos. Acabei ficando cheia de responsabilidades na Companhia, comecei a receber uma bolsa, e a Carmem Luz m e c o n v i d o u para ser funcionária depois do nascimento do bebê. Quando Alícia nasceu, não quis voltar p a r a d a n ç a. Pa r a isso, precisaria ter uma dedicação maior, achei que não daria. Preferi ficar na produção da Companhia e, depois, com o trabalho no Geração. Saí da Companhia Étnica em 2003 para me dedicar mais à creche, é o que eu mais gosto de fazer: educar. O tráfico dentro da comunidade é minoria, apesar de muitos jovens, meninos e meninas, se engajarem nesse grupo. Mas a comunidade é muito maior que eles, muito maior Democracia Viva – Você entrou na Companhia Étnica como voluntária e acabou se tornando funcionária. É muito difícil para uma pessoa jovem conseguir emprego? Carol Oliveira – Algumas amigas e amigos reclamam muito das exigências para se entrar no mercado de trabalho. Tem que ter experiência, mas, se você nunca fez, se ninguém der essa oportunidade, nunca vai fazer, não vai poder mostrar o que sabe. Mas não acho que também esteja tão difícil. É claro que tem muita gente se matando dentro 54 DEMOCRACIA VIVA Nº 30 9 de shopping, com horários imensos, mas hoje está mais fácil, a gente consegue entrar através de parcerias, por exemplo. Foi o que aconteceu certa vez lá na comunidade. Uma loja de roupas selecionou meninas novas, sem experiência, para capacitar e, depois, elas começaram a ser vendedoras. Tem também a questão das associações de moradores que procuram dar chance às pessoas mais novas. Por exemplo, quando abriram vagas na creche Sá Viana, várias meninas da comunidade que tinham feito curso normal queriam concorrer, mas a diretora disse que precisava ter experiência. A associação negociou e a diretora da creche permitiu que metade das vagas fosse para quem não tinha experiência. Acompanhei esse processo bem de perto. Democracia Viva – Mas essas experiências não conseguem dar vazão à maioria das pessoas jovens. Você concorda com a tese que diz que é o tráfico de drogas que mais emprega jovens na comunidade? Carol Oliveira – Não concordo. É claro que existe uma dinâmica e há momentos terríveis, como a chacina que aconteceu no Andaraí no início de 2005, mas não acho que a maioria faz parte, isso não. O tráfico dentro da comunidade é minoria, apesar de muitos jovens, meninos e meninas, se engajarem nesse grupo. Mas a comunidade é muito maior que eles, muito maior. Democracia Viva – O que atrai a juventude para o tráfico? Carol Oliveira – É o luxo e a luxúria também, é o consumo, querer entrar naquele padrão passado pela televisão e também pelos próprios traficantes, que andam muito bem vestidos e calçados. Eles querem roupa de marca, tênis caros, querem que as meninas fiquem atrás. Pedem para a mãe, que não pode dar. Como ela vai dar R$ 300 em um tênis? Eles percebem que os caras do tráfico não estudam, têm namoradas, dormem o dia inteiro e só trabalham à noite. Parece fácil para quem está ainda na ilusão, fácil e prático. Democracia Viva – Mas o cotidiano de violência não desestimula? Carol Oliveira – Não desestimula, digo isso com certeza. Eu não sei como, mas eles não têm medo. Isso aconteceu com um cara que jogou capoeira comigo. Quando o professor não podia dar aula, pedia para ele orientar a turma, ele era muito bom. Mas se envolveu de uma forma, ninguém entendeu o CAROL OLIVEIRA motivo. Chegamos a conversar com ele, questionar a nova postura, e ele dizia que estava tudo bem. Um dia, ele estava num grupo e um dos garotos foi baleado, conseguiu escapar, não foi levado nem para a delegacia nem para o hospital. Ninguém sabia dele. Falamos com ele de novo: “Você estava lá, não viu o cara estatelado ali? Muda, cara, vai embora, desaparece”. Mas ele só dizia que estava numa boa, achava que com ele não aconteceria. Engravidou duas garotas, as duas tiveram os filhos na mesma época. O que vai ser dessas crianças agora e de suas mães? Sinceramente, não consigo entender. Democracia Viva – Se você pudesse traçar um perfil dos garotos e das garotas que se envolvem com o tráfico, qual seria? Carol Oliveira – Posso falar sobre as pessoas com quem convivi. Esse menino de que falei conseguiu sair. Ele estava no primeiro grau ainda. A família realmente passava por dificuldades. Mas ele trabalhava numa empresa de ônibus, por isso não entendo. Talvez ele mesmo não visse seu potencial na capoeira, não visse isso como algo que pudesse dar dinheiro. Eu não sei o que mais ele queria. Será que era só mulher? Sei que não usava drogas. Não sei dizer por que eles se envolvem nisso. Você está vendo o que acontece com as outras pessoas e vai querer aquilo para você? Está faltando alguma coisa, mas não sei dizer o quê. teatro, show, cinema. Não tem nenhum perto da comunidade e também tem a questão financeira. A Companhia Étnica sempre organizava festivais de teatro, apresentações de dança, lotava, a comunidade toda participava. Acho que isso ainda acontece pelo menos duas vezes por ano, em junho e em dezembro. O ruim para a pessoa da comunidade é quando tem que sair por conta própria. Quando eu era da Companhia, muitas vezes organizava grupos, ia pai, mãe, primo, botava todo mundo no ônibus, levava e trazia, fazia tudo para facilitar e para que a galera tivesse motivo de sobra para ir. Democracia Viva – E você, o que gosta de fazer para se divertir? Carol Oliveira – Gosto de sair para ouvir música, para sambar. A quadra do Salgueiro para mim é tudo. Gosto de ir ao teatro, ao cinema, acho legal. Mas o que faço com mais freqüência é ir para a quadra do Salgueiro. Eu desfilo também na escola, adoro! Este ano, além de desfilar, Democracia Viva – O que faz quem não consegue emprego e não fica no tráfico? Carol Oliveira – Não sei, acho que fica à toa mesmo. Tenho uma amiga que não está trabalhando e há muito tempo tenta, mas não está conseguindo trabalho, não sei exatamente o motivo. Ela depende de pai e mãe, mas estuda e faz curso na Nação Mangueirense, que tem informática, inglês, telemarketing, espanhol. Muitas amigas participam desses cursos. Não estão trabalhando, mas estão se capacitando. Mas não sei se todos pensam dessa forma, de repente, alguns preferem ficar jogando bola ou só ir à escola e voltar para casa para ver televisão. Democracia Viva – Quais são as opções de lazer dentro da sua comunidade ou no entorno? Carol Oliveira – O pessoal fica na praça mesmo. Como lazer, tem futebol, vôlei e ficar à toa, batendo papo. Não vão muito a OUTUBRO/2000 JAN / MAR 2006 55 E N T R E V I S TA fiquei com a responsabilidade de organizar a ala mirim da Flor da Mina, uma escola de samba do Andaraí. Fico cercada de crianças todo sábado. Democracia Viva – Você tem alguma formação religiosa? Acha que a religião ajuda na formação da juventude? Carol Oliveira – Minha família é voltada para o catolicismo. Mas, depois que cresci, não sou muito ligada, não. Tenho amigo na umbanda, mas também assisto à missa e, noutro dia, uma amiga me chamou para ir a um centro espírita. Eu não estou presa a uma só religião. A religião pode ajudar, mas depende muito. Na igreja onde eu assistia às missas, não tinha nenhuma discussão política, era só questão religiosa mesmo. Mas existem outros exemplos. Dois integrantes do Geração eram da Igreja dos Capuchinhos, faziam um trabalho muito legal, discutiam, participavam de fóruns, existia um engajamento. Acho que a religião tem peso quando é dessa maneira, quando a instituição tem um caráter não só religioso, mas também quer engajar o jovem num movimento político, social e cultural. Aí é diferente, mas onde eu participei não tinha isso. Não vou obrigar minha filha a ter uma religião. Enquanto for pequena, ela vai aonde eu for e, depois, se quiser, vai se decidir por uma. Ah, detalhe: ela é batizada, a família cobra isso. Democracia Viva – Estava com quantos anos quando entrou para o Geração? Carol Oliveira – Com 18, estava grávida. Trabalhava na Companhia Étnica, que sempre recebia contatos do Ibase. Um dia, recebi um comunicado da Patrícia [Patrícia Lânes, pesquisadora do Ibase] sobre uma reunião de jovens no Sobrado Cultural, em Vila Isabel. A idéia era oferecer capacitação para jovens aprenderem a fazer um jornal que seria o elo de comunicação de uma rede de juventude na Grande Tijuca, e eu me interessei. A capacitação foi realizada no Sobrado, mas também na reserva florestal do Grajaú. A discussão foi crescendo, as pessoas foram demonstrando vontade, e o Geração foi nascendo. Escrevi muitas matérias para o Geração, todo mundo discutia sobre as pautas, a diagramação, participávamos de todo o processo. Depois, o jornal passava pelas mãos de jornalistas que finalizavam o trabalho. 56 DEMOCRACIA VIVA Nº 30 9 CAROL OLIVEIRA Democracia Viva – Algum rapaz ou alguma moça da Companhia Étnica aceitou o convite? Carol Oliveira – Não, tentamos inserir alguns alunos das turmas que eu ensinava, só que o foco da Companhia é a dança e o teatro, eles não tinham tempo. Eu só consegui participar porque levava minhas atividades do Geração para serem feitas durante as minhas aulas, meus alunos me ajudavam a produzir e assinávamos juntos. Democracia Viva – O que a motivou a participar do Geração? Carol Oliveira – Eu jamais estaria aqui dando esta entrevista se não tivesse passado pela Companhia Étnica e pelo Geração, jamais. Eu tinha uma dificuldade extrema de expressar minhas idéias, minhas opiniões. Lá no Geração muita gente falava bem. Já na Companhia era a Carmem Luz que brigava comigo porque eu só respondia: “hum, hum”. Participando de reuniões, de encontros, percebi que, quando chegava, ninguém se conhecia, mas todo mundo se apresentava e acabava fazendo amizade. Todo mundo discutia, pensava junto, expressava seus pensamentos. E eu sentia muita vontade de aprender a fazer isso, aprender a falar, a discutir, foi o que me motivou. Outro ponto que pesou foi a chance de protagonizar um trabalho, de participar do início ao fim, de ter minha opinião respeitada, como era no Geração. Democracia Viva – O trabalho no Geração repercutiu, de alguma forma, na sua comunidade? Carol Oliveira – Em cada uma das edições do jornal, a gente organizava um debate sobre os temas tratados na edição. Uma vez foi no Andaraí, outra vez foi na Igreja dos Capuchinhos e na comunidade da Casa Branca. Mas não dá para dizer porque alguns se engajam e outros não, às vezes acho que isso tem a ver com a própria política. Por exemplo, hoje muitos projetos oferecem bolsa-auxílio para o jovem participar, então, quando vem um projeto que não oferece bolsa, muitos não querem participar. Democracia Viva – A juventude só participa quando os projetos oferecem bolsas? Carol Oliveira – Sim, tem que ter ajuda de custo, acho isso errado, mas acontece. Antes de o jovem querer o dinheiro da passagem, para lanche, tem que saber o que quer de verdade. Se eu quero aprender informática e estão abertas as inscrições, vou lá e me inscrevo porque quero aprender a mexer em computador. Isso independe de eu ter R$ 50, R$ 30, R$ 20, R$ 10 de bolsa ou lanche, se meu objetivo é esse, é o que importa. O apoio da família também é importante. Quando perguntei a opinião da minha mãe sobre o Geração, ela falou: “Carol, em toda a minha vida, ninguém me ofereceu nem R$ 1 pra eu fazer um curso”. Ela não entendia quase nada desses assuntos, mas disse: “Vai, sim, se você gosta. Caramba, minha filha vai ser jornalista!”. Democracia Viva – Você acha errado o Estado oferecer bolsa para mais pessoas terem acesso aos estudos? Eu jamais estaria aqui dando esta entrevista se não tivesse passado pela Companhia Étnica e pelo Geração, jamais. Eu tinha uma dificuldade extrema de expressar minhas idéias, minhas opiniões Carol Oliveira – Dar bolsa não é errado. O problema é simplesmente a permanência, a pessoa acaba se acomodando, acha que é só aquilo. Há projetos na comunidade com garotos e garotas da minha idade que ganham R$ 240 por mês e acham que a vida deles é só isso. Pode até ser que eles estejam descobrindo o que gostam de fazer. A bolsa tem um sentido positivo quando vem como uma recompensa, mas não pode passar de três meses, não pode ser contínua. Depois disso, a pessoa tem que ir à luta, buscar um trabalho, um emprego, fazer um curso, tentar um estágio. A pessoa tem que demonstrar o que aprendeu. Não adianta ficar um ano participando e no ano seguinte fazer a mesma coisa. É preciso dar sentido ao trabalho, produzir mais. Não gostaria que os jovens da minha idade pensassem que é só isso que eles podem ter, produzir e receber. Eles po- OUTUBRO/2000 JAN / MAR 2006 57 E N T R E V I S TA dem buscar um emprego que dê muito mais grana ou que não dê grana, mas que dê prazer no fazer, no executar. Por isso, acho que a bolsa tem sentido negativo e positivo. O dinheiro, a bolsa, tem que ser conseqüência, não pode ser o motivo, o estímulo. Democracia Viva – Quando a loja recrutou pessoas em sua comunidade, você sentiu algum preconceito na hora de oferecerem essas vagas? Carol Oliveira – Não, eles não fizeram exigências. Eu não conheço todos que foram selecionados, mas conheço uma menina. Ela foi lá, fez a inscrição e não pediram absolutamente nada. Só que estivesse estudando e que tivesse documentos, só isso, nem perguntaram se tinha experiência. Democracia Viva – Mas isso não é comum, não é? Você já ouviu algum relato de meninas que tenham sido preteridas por serem negras ou por não seguirem um determinado padrão de beleza? Carol Oliveira – Não, mas percebo que o perfil das pessoas que atendem em lojas está mudando, trabalham mais pessoas negras agora. Antes, era aquela maquiagem leve, rosada, tipo Barbie Girl. Agora, eu até estimulo outras meninas a enviarem currículo para as lojas. Democracia Viva – Você ou alguém da sua família já sofreu algum tipo de preconceito? Carol Oliveira – Se eu passei, não percebi, não foi nada marcante, não. Democracia Viva – Quando você estava na Companhia Étnica, como era abordada a questão do racismo? Carol Oliveira – Isso era discutido. Lá tem bastante negro, mas também tem muita gente que não é. A Companhia aceita qualquer pessoa que demonstre ter perseverança, competência, vontade de participar, presença. Em relação à forma como o grupo era conduzido, nunca senti nenhum tipo de divisão, separação. Cada espetáculo organizado é debatido lá dentro, não só pelos negros, mas por toda a Companhia. Mas como eu ficava na produção, não participava muito desse tipo de discussão. Democracia Viva – Mas você não dava aulas de cidadania também? E o tema do preconceito racial não entrava? Carol Oliveira – Sim, eu dava aulas de cidadania. Esse era o tema das minhas aulas, claro. Discutia com a galera, eles colocavam as suas opiniões, relatavam situações em que achavam que tinham sofrido preconceito ou até outras em que tinham se comportado de forma racista com alguém. Democracia Viva – Qual a sua opinião sobre as cotas para negros e negras? Carol Oliveira – Penso que é preciso mexer na qualidade do ensino para que todos possam competir de igual para igual. Não adianta tentar colocar a pessoa lá dentro através de uma cota se ela não vai ter condições de permanecer. Pode até dar certo se, durante a educação básica, ela aprender para poder competir com uma pessoa de colégio particular, aí tudo bem. Mas, se a qualidade do ensino público no Brasil fosse boa, não teria necessidade disso. Essa não é a forma mais adequada de entrar na faculdade. Temos condições de competir como todos os outros seres humanos de tudo quanto é cor. 58 DEMOCRACIA VIVA Nº 30 9 CAROL OLIVEIRA das comunidades para ajudar nas campanhas. Nunca recrutaram você? Carol Oliveira – Não, nunca fui recrutada para trabalhar assim, não. Aos 16 anos, fiz questão de tirar o título e, desde a primeira eleição, tenho sido recrutada pelo TRE, trabalho como suplente vogal. Democracia Viva – É filiada a algum partido? Carol Oliveira – Sou filiada, mas não participo, discussão de partido não me anima muito. Me filiei quando participava do Geração. No Sobrado Cultural, aconteciam discussões em grupo sobre política e achei que, se quisesse participar, seria melhor me filiar. Fui a algumas reuniões e alguns encontros, mas vi que não era daquela maneira que eu queria participar, discutindo política. Não era bem daquela forma como o grupo conduzia. Democracia Viva – Se não é em partido, qual é a melhor forma de discutir política e aprender a participar? Democracia Viva – Se entrasse para uma universidade pública, acha que sofreria preconceito? Você tentaria as cotas? Carol Oliveira – Não sei que tipo de preconceito eu poderia sofrer, não sei como as pessoas agem umas com as outras lá dentro. Quero acreditar que não, espero que não, mesmo que entrasse pelas cotas. Não sei, mas acho que entraria pelas cotas, é uma facilidade, tentaria já que existe essa chance. Mas, se eu tivesse certeza da minha condição de passar, deixaria a cota. Democracia Viva – Antes de entrar para a Companhia Étnica, quando era estudante, participava de grêmio, de alguma associação? Carol Oliveira – No primeiro grau, a escola não tinha grêmio. Eu gostava muito de jogar e ajudava a organizar as olimpíadas da escola. No segundo grau, foi uma loucura tão grande na minha vida que eu não queria nem olhar para grêmio. De manhã, tinha estágio, de tarde ia para a escola, saía de lá direto para a Companhia, de onde saía quase meia-noite para às 6h30 sair de casa novamente. Por isso, não participei do grêmio do Júlia Kubitschek. Até tinha vontade, mas não deu. Democracia Viva – Em períodos pré-eleitorais, é comum políticos recrutarem jovens Carol Oliveira – Busco uma maneira mais gostosa de discutir, você diz o que pensa, eu digo o que penso. Isso pode acontecer até na escola. Se a professora abre uma discussão sobre métodos anticoncepcionais, por exemplo, quem conhece fala. Ou, se ela organiza uma espécie de fórum dentro da sala de aula, os alunos estarão aprendendo a participar. Da mesma forma, se acontece um problema no trabalho, o jovem tem que saber colocar suas opiniões, não é? E na própria comunidade também acontece isso, se um grupo de moradores acha que tem que colocar uma iluminação na Não sei que tipo de preconceito eu poderia sofrer, não sei como as pessoas agem umas com as outras na universidade. Quero acreditar que não, espero que não, mesmo que entrasse pelas cotas OUTUBRO/2000 JAN / MAR 2006 59 E N T R E V I S TA *AnaCris Bittencourt Jornalista, subeditora da revista Democracia Viva Participaram desta rua e outro não, temos que opinar. São em pequenos fóruns, em pequenas discussões que o jovem aprende a participar e também em encontros, palestras, seminários, quando há essa oportunidade. Democracia Viva – Os rapazes e as moças que você conhece têm oportunidade de participar de fóruns e seminários? entrevista: Dulce Pandolfi, Eliane Ribeiro, Iracema Dantas, Itamar Silva e Patrícia Lânes. Fotos: Marcus Vini Carol Oliveira – Nem todos. Mas até quando pessoas de um partido querem recrutar jovens para fazer uma passeata sempre tem um discurso e o cara tem que ouvir e, às vezes, aquele assunto pode ser levado para o grupo dele na comunidade, na associação. Essa também é uma forma de participar. Há também os encontros de juventude, de grupo de jovens, é uma oportunidade que eles têm. Na minha comunidade, esse espaço vem mais da associação de moradores, quando fazem reunião para dar algum informe. Por exemplo, já discutimos sobre o Favela-Bairro, quem se sentiu prejudicado ou favorecido com o programa foi lá, é um espaço de participação. Democracia Viva – Você participa da associação de moradores no Andaraí? Carol Oliveira – Participei um tempo, mas não é a minha praia. As atribuições de quem participa não têm a ver comigo. Quando participei, fazia parte do secretariado. Abria correspondência, atendia telefone, anotava denúncia de morador. Tem gente que topa fazer esse trabalho, mas eu não. Às vezes, chega um projeto para organizar, isso é até legal, mas separar carta é chato. Democracia Viva – Você acha que a juventude se sente atraída por algum movimento social? Carol Oliveira – Não vejo muito isso na minha comunidade, não. Alguns jovens sim, mas não a maioria. Eu me envolvi um pouco com o movimento de mulhe- 60 DEMOCRACIA VIVA Nº 30 9 res, com o pessoal do Camtra [Casa da Mulher Trabalhadora], participei com elas de uma mobilização no dia 8 de março [Dia Internacional da Mulher], mas não pude levar adiante. Democracia Viva – E do Fórum Social Mundial, você já participou? Carol Oliveira – Nunca participei das edições em Porto Alegre, mas fui ao I Fórum Social Brasileiro, em Belo Horizonte. Geralmente, quem vai ao Fórum já está engajado, já está participando de alguma instituição. Participei, também, em Brasília, da Semana da Juventude Brasileira com o Geração. Apresentamos o trabalho realizado pelo Geração, conversamos com pessoas que trabalham com juventude de outras formas, com imagem, com artesanato. Democracia Viva – Falando sobre as perspectivas da juventude, como você se imagina daqui a dez anos? Acha que terá oportunidade de melhorar sua vida? Carol Oliveira – Sim, com certeza, estou buscando muito isso. Me imagino formada, trabalhando, dando aulas e participando de algum grupo ou de alguma organização na área da educação. Democracia Viva – Se tivesse que mandar uma mensagem para os rapazes e moças do Brasil, o que diria? Carol Oliveira – Que estudem, que se capacitem, que busquem crescimento pessoal, que se valorizem, que busquem alguém ou algo para se espelharem e subirem. CAROL OLIVEIRA OUTUBRO/2000 JAN / MAR 2006 61