(Frederick Schauer, Thinking Like a Lawyer, HUP, 2009. Tradução

Transcrição

(Frederick Schauer, Thinking Like a Lawyer, HUP, 2009. Tradução
(Frederick Schauer, Thinking Like a Lawyer, HUP, 2009. Tradução de Fábio Shecaira,
Noel Struchiner e Diego Werneck)
Capítulo Três
A Prática e a Problemática do Precedente
3.1
Precedente em Duas Direções
É característico do direito voltar-se para trás. Ao contrário da maioria das formas
de decisão sobre políticas públicas [policy-making], que se interessam pelas suas
consequências futuras, tomar decisões no âmbito do direito é estar sempre preocupado
em olhar por cima dos ombros. É comum no direito, e menos frequente em outras áreas,
que não seja suficiente para uma dada decisão produzir resultados desejáveis no futuro;
essa decisão deve também se originar de decisões anteriores sobre questões similares,
ou, no mínimo, ser consistente com essas decisões anteriores. Na verdade, o
compromisso do raciocínio jurídico em tomar decisões de acordo com precedentes vai
ainda mais longe. Ao tipicamente exigir que decisões judiciais sejam feitas de acordo
com precedentes, o direito se compromete com a noção de que, muitas vezes, uma
decisão que siga os precedentes é melhor do que uma decisão correta, e que,
frequentemente, é mais importante uma dada decisão seguir os precedentes do que ter as
melhores consequências.
A prática do precedente é mais complexa do que o esboço do parágrafo anterior,
e este capítulo se dedica a explorar as variações em torno do tema básico de que
esperamos que os tribunais sigam ou obedeçam precedentes – decisões do passado.
Mas, antes de entrarmos demais em detalhes complexos, é importante distinguir entre
duas maneiras diferentes pelas quais a obrigação de seguir precedentes surge em um
dado sistema jurídico. Uma delas nós chamamos de precedente vertical. Normalmente,
espera-se que tribunais inferiores sigam as decisões previamente tomadas por tribunais
superiores no âmbito de sua competência jurisdicional, e é útil compreender essa
relação entre inferior e superior na “cadeia de comando” como sendo vertical. Juízes
federais de primeira instância [Federal district courts] são obrigados a seguir os
precedentes dos tribunais recursais [courts of appeals] da sua região [circuit], e os
tribunais recursais são obrigados a seguir os precedentes da Suprema Corte. O mesmo
vale para os sistemas estaduais, que tipicamente possuem uma estrutura similar e
impõem obrigações equivalentes aos seus juízes e tribunais. De fato, nós nos referimos
aos tribunais como “inferiores” e “superiores” precisamente porque tribunais superiores
exercem autoridade sobre os inferiores, uma autoridade que se manifesta principalmente
na obrigação dos tribunais inferiores de tratar como vinculantes as decisões dos
tribunais superiores.
Além da obrigação de seguir as decisões dos tribunais que estão acima na
hierarquia judicial, também se espera dos tribunais que sigam suas próprias decisões
anteriores, embora isso seja menos óbvio e, às vezes, mais controvertido. A relação aqui
é horizontal, porque a obrigação se dá entre um dado tribunal hoje e o mesmo tribunal
no passado. Precedente horitontal não é, portanto, uma questão de tribunais inferiores
seguindo os superiores, mas sim uma hierarquia artificial, imposta, entre o antes e o
depois. A decisão anterior é superior não porque venha de um tribunal mais elevado; a
decisão anterior se torna superior só por ser anterior. Essa obrigação judicial de seguir
suas próprias decisões é tipicamente conhecida como stare decisis – um termo jurídico
que significa “mantenha o que foi decidido” [stand by the thing decided] – e é uma
forma distinta de limitação por precedentes. Pela doutrina do stare decisis, espera-se
que um tribunal decida questões da mesma forma pela qual ele próprio as decidiu no
passado, ainda que a composição do tribunal tenha mudado, ou mesmo se a composição
for a mesma, mas seus integrantes tiverem mudado de ideia. Da mesma forma que o
precedente vertical, stare decisis – precedente horizontal – diz respeito a seguir as
decisões de outros. Mas, ainda que ambos as formas de precedentes, vertical e
horizontal, envolvam seguir decisões de outros, a diferença entre um tribunal seguir a
decisão de um tribunal superior e seguir suas próprias decisões anteriores é, em muitos
contextos, suficientemente importante para merecer ser enfatizada desde já, mesmo
antes de vermos em detalhes quais são as implicações da obrigação de seguir outras
decisões, e antes de examinarmos os problemas que surgem na prática dessas
obrigações.
3.2
Precedente – A Ideia Básica
O princípio fundamental da tomada de decisão de acordo com precedente é o de
que tribunais devem seguir decisões passadas – isto é, dar as mesmas respostas às
mesmas questões jurídicas que tribunais superiores ou anteriores deram no passado. Boa
parte da nossa discussão girará em torno de saber o que conta como “a mesma questão
jurídica”, mas, primeiramente, precisamos examinar que tipo de obrigação é o dever de
seguir precedentes. Para tanto, será útil introduzir algumas clarificações terminológicas
adicionais. Embora no caso do precedente vertical a decisão anterior venha de cima, e
no caso do precedente horizontal – stare decisis – ela venha do mesmo tribunal, mas no
passado, em ambos se espera que o tribunal siga uma decisão de um caso anterior em
um novo caso. Para tornar a discussão mais clara, podemos chamar o tribunal que está
decidindo agora de tribunal atual [instant court] e a controvérisa que ele está
examinando de caso atual [instant case]. E podemos chamar o tribunal anterior
(inclusive quando se tratar do mesmo tribunal de hoje, mas em um caso anterior) de
tribunal precedente, e sua decisão de caso precedente. Dessa forma, questões
envolvendo a força e as consequências do precedente sempre envolverão o efeito, sobre
os problemas colocados no caso atual, diante do tribunal atual, de uma decisão tomada
pelo tribunal precedente no caso precedente.
Podemos agora tratar da natureza da obrigação de seguir precedents.
Inicialmente, compreender a ideia de precedente requer que diferenciemos aprender
com o passado, de um lado, e seguir o passado apenas pelo fato de ser passado, de
outro. Aprender com o passado não é, de modo algum, raciocinar com base em
precedentes. O tribunal atual pode aprender com um caso anterior, or ser persuadido
por uma decisão decisão passada, mas a decisão de fazer a mesma coisa que outro
tribunal fez em uma ocasião anterior não se baseia na atribuição de status de precedente
ao caso passado. Ao contrário, a decisão exemplifica a fundamental capacidade humana
de aprender com os outros e com o passado. Em diversos momentos, o tribunal atual vai
considerar persuasivo o raciocínio de um outro tribunal, mas, se o tribunal atual estiver
genuinamente convencido do mérito daquele raciocínio, não estará de forma alguma se
pautando por – obedecendo – precedentes.1 Para entendermos por que é esse o caso,
vamos pegar um exemplo não-jurídico simples: imagine que estou cozinhando um ovo.
Eu o cozinho por seis minutos e fico satisfeito ao descobrir que o ovo foi cozido
exatamente ao meu ponto preferido. Consequentemente, não é motivo de surpresa que,
na próxima vez que cozinhar um ovo, eu o farei por seis minutos. Aprendi com o “caso”
anterior, mas, quando cozinho o segundo ovo por seis minutos nas próximas vezes, não
estou fazendo isso porque cozinhei o ovo por seis minutos na primeira vez. Estou
cozinhando o ovo por seis minutos porque seis minutos é o tempo certo. Sei disso
1
A concepção de seguir ou obedecer apresentada aqui é consistente com aquela encontrada na literatura
de teoria do direito, muito da qual se concentra na questão de se há ou não uma obrigação moral de
obedecer o direito. Ver Donald H. Regan, Reasons, Authority, and the Meaning of “Obey”: Further
Thoughts on Raz and Obedience to Law, 3 Can. J.L. & Jurisp. 3 (1990).
porque aprendi com minha ação anterior, mas, em ocasiões subsequentes, tomarei essa
decisão por causa do que eu então já terei aprendido.
Esse tipo de aprendizado a partir de experiências passadas pode ser encontrado
em muitos outros processos de tomada de decisão na esfera pública [pervades public
decision-making]. Quando Ronald Reagan concorreu à Presidência em 1980, ao
contrário de candidatos anteriores do Partido Republicano, ele procurou enfatizar em
sua campanha questões potencialmente atraentes para sindicalistas ligados ao Partido
Democrata e para os Democratas do Sul, assumindo posições compatíveis com as
preferências desses grupos.* A estratégia deu certo e foi posteriormente adotada por
outro candidatos do Partido Republicano. Mas esses outros candidatos seguiram a
estratégia de Reagan não porque Reagan a tivesse utilizado, mas sim porque o sucesso
de Reagan os convencera de que essa era a estratégia certa.
O mesmo fenômeno existe no direito.2 No caso Henningsen v. Bloomfield
Motors, Inc.,3 a Suprema Corte de Nova Jersey considerou a disparidade de poder de
barganha entre uma concessionária de automóveis e o típico consumidor de carros tão
grande que considerou inválida a renúncia, por parte de um comprador – ainda que por
escrito e assinada –, do que seriam as garantias usuais para esse tipo de contrato. Uma
vez que Henningsen tenha sido decidido, imagine que um desembargador de um outro
estado leia a decisão em Henningsen e fique convencido de que ela expressa a
concepção mais razoável possível sobre como lidar com renúncias de responsabilidade
contratual em uma era de negociações empresariais e impessoais transações de
consumo. Antes de ler a decisão, ele nunca havia pensado na possibilidade de o poder
de barganha entre as partes ser desigual, nem imaginado que os termos de um contrato
poderiam ser afastados fora das hipóteses de fraude, força maior [duress] ou
incapacidade. Mas a leitura de Henningsen o convenceu a modificar suas crenças sobre
o caráter supostamente sagrado dos contratos. Ele agora acredita que há circunstâncias
em que cláusulas contratuais escritas e assinadas devem ser afastadas mesmo quando
não há fraude explícita nem qualquer outro dos fundamentos tradicionais para se recusar
aplicabilidade a um contrato. Nesse sentido, quando surge a oportunidade, ele chega a
*
N.T.: Schauer está se referindo aos chamados Southern Democrats, políticos sulistas que, embora
membros do partido Democrata e favoráveis à expansão dos poderes regulatórios estatais e das
competências da União Federal, característicos da coalizão do New Deal formada nos anos 30,
mantiveram certas posições mais próximas do partido Republicano em temas como igualdade racial.
2
Ver Larry Alexander, Constrained By Precedent, 63 S. Cal. L. Rev. 1 (1989); Lon L. Fuller, Reason and
Fiat in Case Law, 59 Harv. L. Rev. 376 (1946): Frederick Schauer, Precedent, 39 Stan. L. Rev. 571
(1987).
3
161 A.2d 69 (N.J. 1960).
uma conclusão consistente com a decisão do caso Henningsen e elabora uma decisão
que basicamente segue o raciocínio daquele caso. Graciosamente reconhecendo a fonte
com a qual aprendeu, e também para fornecer orientação para as pesquisas de outros, ele
faz referência à decisão de Nova Jersey. Mas a sua decisão de hoje não é ditada pela
existência do caso de Nova Jérsey – ele não está obedecendo a decisão de Nova Jersey.
Ele chegou à sua decisão atual porque, tendo sido persuadido pelo raciocínio de
Henningen, passou a acreditar que cláusulas contratuais leoninas [unconscionable]
baseadas em disparidades extremas no poder de barganha das partes em relações de
consumo não devem ser aplicadas pelo Judiciário. Da mesma forma que o meu
aprendizado sobre o tempo de cozimento de um ovo a partir de minha tentative anterior,
e da mesma forma que candidatosa cargos politicos aprendendo com estratégias bemsucedidas de seus antecessors, o juiz nesse caso hipotético não tomou sua decisão no
caso atual apenas porque foi assim que o tribunal de Nova Jersey decidiu, nem por estar
de qualquer forma obrigado a seguir um tribunal de Nova Jersey. Ele chegou a essa
decisão porque havia aprendido algo com um caso anterior – algo que agora
genuinamente reflete suas convicções atuais. Isso não é muito diferente de ter aprendido
sobre o tema em um livro de economia ou filosofia, ou mesmo em uma conversa na
academia de ginástica.. O fato de a fonte do aprendizado ter sido um tribunal de outro
estado é pouco ou nada além de uma coincidência.
Esses exemplos ilustram uma maneira comum pela qual juízes usam casos mas
que não é, em sentido estrito, uma forma de raciocinar com base em precedente – na
verdade, o status de decisão judicial do caso anterior não fez diferença alguma. Em
contraste, raciocinar com base em precedente – e talvez seja até mesmo um erro chamar
isso de “raciocínio” – é seguir uma decisão anterior não porque o tomador de decisão
neste caso tenha sido convencido pelo raciocínio do caso precedente. Raciocinar com
base em precedente implica seguir ou obedecer uma decisão anterior unicamente por
causa do seu status de decisão de um tribunal superior ou de decisão passada do mesmo
tribunal. Um juiz de primeira instância em Nova Jersey, por exemplo, pode ler
Henningsen e ainda assim acreditar que todas as cláusulas contratuais não-fraudulentas
devem ser estritamente aplicadas nos seus próprios termos, e que a preocupação com os
consumidores expressas pelo tribunal em Henningsen está fora de lugar. Mesmo após a
leitura
da
decisão
Henningsen,
ele
não
está
convencido.
Ainda
assim,
independentemente do quanto continue a acreditar na estrita aplicabilidade de cláusulas
contratuais escritas, e ainda que acredite que o caso Henningsen foi decidido de forma
equivocada, ele ainda está obrigado, enquanto juiz de primeira instância dentro da
mesma jurisdição, a seguir Henningsen, apesar de estar convencido de que a decisão foi
um erro. E o mesmo ocorre com o stare decisis. Se, em 1970, dez anos após
Henningsen, a maioria da Suprema Corte de Nova Jersey fosse composta por juízes que
não integravam o tribunal na época do caso Henningsen, e se esses novos ministros
acreditassem que Henningsen foi decidido de forma equivocada, as obrigações relativas
ao stare decisis ainda assim os teriam obrigado a decidir a mesma questão de forma
idêntica. Eles teriam sido forçados a seguir uma decisão que consideravam errada só
pelo fato de ela existir como decisão anterior do mesmo tribunal. Como colocou de
forma direta o teórico do direito britânico P.S. Atiyah , “o conceito de um sistema de
precedente é tal que obriga os juízes a seguirem em alguns casos decisões com as quais
não concordam.”4
Neste ponto, a ideia básica já deve ter ficado clara. Quando tribunais estão
limitados por precedentes, têm a obrigação de seguir um precedente não porque
concordam com essa decisão, mas inclusive quando acham que ela foi um erro. É a
fonte ou status do precedente que lhe dá a sua força, e não a solidez do seu raciocínio 5,
nem a convição, por parte do tribunal atual, de que o resultado indicado pelo precedente
estava certo. Quando se argumenta, por exemplo, que mesmo os Ministros da Suprema
Corte que acreditam que o caso Roe v. Wade6 *foi decidido de forma incorreta devem
seguir esse precedente em casos subsequentes, o argumento não é (ou não é somente) o
de que esses Ministros deveriam mudar de opinião quanto a Roe v. Wade. Ao contrário,
o argumento é que esses Ministros devem seguir Roe mesmo se continuarem achando
que esse caso foi decidido de forma incorreta.
3.3
Uma Ideia Estranha
Agora que vimos como seguir precedentes obriga os juízes a tomar decisões
diferentes daquelas que, no seu melhor entendimento, teriam tomado na ausência do
precedente, podemos perceber como a vinculação a precedentes é em vários aspectos
4
P.S. Atiyah, Form and Substance in Legal Reasoning: the Case of Contract, in The Legal Mind: Essays
for Tony Honoré 19, 27 (Neil MacCormick & Peter Birks, orgs., 1986).
5
“Se o precedente for verdadeiramente vinculante [para o juiz], e se ele é fiel ao princípio do state
decisis, nem por um instante chegará a considerar que razões substantivas poderiam ser dadas para
sustentar uma decisão oposta” Atiyah, supra nota 3, p. 20.
6
410 U.S. 113 (1973).
*
N.T. Trata-se do famoso caso, decidido em 1973, no qual a Suprema Corte dos EUA afirmou que a
constituição do país contém um direito implícito à “privacidade” que, em linhas gerais, garante às
mulheres a liberdade de realizar aborto até o fim do primeiro trimestre de gestação.
contra-intuitiva, ao menos do ponto de vista dos juízes vinculados. Da perspectiva deles,
a obrigação de seguir precedentes – sejam eles verticais ou horizontais – frequentemente
os orienta a tomar uma decisão que acreditam estar errada.7 Mas por que razões o direito
funcionaria dessa forma, e por que o sistema jurídico exigiria dos seus juízes qualquer
coisa diferente de tomar decisões de acordo com o seu melhor entendimento
profissional?
Com relação ao precedente vertical, as justificativas para vinculação são
razoavelmente óbvias. Assim como se espera que crianças obedeçam seus pais mesmo
quando não concordam com eles, assim como se espera que soldados obedeçam às
ordens dos sargentos, ainda quando acreditem que elas estão erradas, assim como se
espera dos católicos que sigam as determinações do Papa mesmo se essas determinações
lhes parecem equivocadas, e assim como se espera dos empregados que sigam as
instruções dos seus superiores, espera-se de juízes de tribunais inferiores que sigam as
“instruções” dos tribunais acima deles, dentro do que os militares chamam de “cadeia de
comando”. Qualquer que seja nossa opinião sobre a obrigação que até mesmo os
Ministros da Suprema Corte que discordem de Roe v. Wade têm de obedecer essa
decisão anterior da Corte, dificilmente pode causar surpresa a expectativa de que
tribunais inferiores devem seguir Roe enquanto aquela decisão não for anulada
[overruled]8. Com relação ao precedente vertical, a vinculação não parece ser nada além
de uma versão, dentro do sistema jurídico, do mesmo tipo de autoridade hierárquica
existente na maioria das instituições governamentais e não-governamentais.
Os argumentos em favor dos precedentes horitontais, porém, são menos óbvios.
A presença do princípio do stare decisis é generalizada no common law,9 mas é bem
menos frequente em contextos não-jurídicos. Não esperamos dos cientistas, por
exemplo, que cheguem às mesmas conclusões que seus predecessores pelo simples fato
de que seus predecessores chegaram àquelas conclusões. Seria motivo de surpresa se o
7
O Ministro Scalia [N.T.: da Suprema Corte dos EUA], que discorda da aplicação de state decisis no
nível da Suprema Corte, já afirmou que “[a] função da idéia de [stare decisis] é fazer com que nós
digamos que aquilo que é falso em uma análise adequada deve não obstante ser tomado como verdade.”
Antonin Scalia, A Matter of Interpretation: Federal Courts and the Law 139 (Amy Guttman, org. 1997).
8
Foi em um caso envolvendo aborto, por exemplo, que o Juiz Emilio Garza observou que “[p]ela segunda
vez na minha carreira judicial, sou forçado a seguir uma decisão da Suprema Corte que eu considero
ofensiva à Constituição” Causeway Medical Suite v. Ieyoub, 109 F.3d 1096, 1113 (5 th Cir. 1997) (Garza,
J., voto concorrente).
9
Nem sempre foi assim. Embora as obrigações relativas a precedentes verticais datem dos primórdios dos
tribunais recursais no século XVIII ou até antes disso, as limitações impostas pelo stare decisis não foram
aceitas antes do século XIX. Ver Thomas R. Lee, Stare Decisis in Historical Perspective, 52 Vand. L.
Rev. 647 (1999); Edward M. Wise, The Doctrine of Stare Decisis, 21 Wayne L. Rev. 1043 (1975).
Congresso começasse a tomar certas decisões apenas porque Congressos anteriores as
tomaram. E ninguém crê que Presidentes devam seguir decisões de seus predecessores
com as quais estão em desacordo.
De fato, livros de lógica tipicamente tratam
argumentos baseados em precedentes como falácias, porque o fato de que alguém
chegou a uma determinada conclusão no passado não diz nada sobre se esta conclusão é
ou não correta no presente.10 Mesmo no direito, a ideia de vinculação ao precedente
com frequencia soa estranha, e Oliver Wendell Holmes observou certa vez que era
“revoltante” que tribunais se vissem vinculados a precedents que “persistem... por
nenhuma boa razão além do fato de que... foi assim que se decidiu no tempo de
Henrique IV.”11 E Jeremy Bentham, que era muito bom em odiar coisas, reservou um
ódio especial para o sistema de precedentes em geral e para o stare decisis em
particular, descrevendo-o como “agir sem razão, em declarada exclusão da razão, e
portanto em oposição à razão.”12
Entretanto, como Holmes reconheceu em outros momentos, ao contrário de
Bentham, há coisas a serem ditas a favor do princípio do stare decisis. Um argumento a
seu favor foi reconhecido pelo Ministro Brandeis em sua famosa observação de que “na
maioria dos casos é mais importante que [a questão] seja resolvida [settled] do que que
ela seja resolvida corretamente.”13 Na vida, e em especial no direito, é importante que
as coisas estejam resolvidas para que outros possam se pautar por essas decisões e guiar
seu comportamento de acordo com elas. Uma empresa que planeje realizar uma
operação comercial precisa saber quais transações são legalmente permissíveis e quais
não são, e essa confiança e segurança [confidence and reliance ] seria perdida se
houvesse um risco muito grande de que as regras jurídicas aplicáveis estivessem
continuamente sujeitas a mudanças.
Da perspectiva daqueles que se sujeitam aos
limites do direito, os ganhos obtidos com aperfeiçoamentos marginais nas regras
jurídicas raramente são suficientes para compensar as perdas causadas por não se poder
contar nem com um sistema de regras jurídicas imperfeitas e precedentes imperfeitos.
Mesmo da perspectiva do tribunal vinculado, stare decisis traz consigo as
vantagens da eficiência cognitiva e decisória [cognitive and decisional efficiency].
10
Ver, p.ex., D.Q. Mcinerny, Being Logical: A Guide to Good Thinking 142 (2005); Christopher W.
Tindale, Fallacies and Argument Appraisal 201 (2007).
11
Oliver W. Holmes, The Path of the Law, 10 Harv. L. Rev. 457, 469 (1897).
12
Jeremy Bentham, Constitutional Code, in 1 Collected Works of Jeremy Bentham 434 (F. Rosen & J.H.
Burns, orgs, 1983).
13
Burnet v. Coronado Oil & Gas Co., 285 U.S. 393, 406 (1932) (Brandeis, J., voto divergente).
Nenhum de nós é capaz de manter tudo em aberto ao mesmo tempo, e mal poderíamos
funcionar no mundo se nossas decisões fossem constantemente passíveis de redefinição.
Sobretudo em um tribunal, onde o estreitamento do escopo da discussão aumenta nossa
capacidade de argumentar de maneira precisa, tratar algumas coisas simplesmente como
resolvidas facilita a vida do tribunal, da mesma forma em que facilita a vida de quem
precisa planejar sua vida e suas atividades em torno das decisões tomadas por tribunais.
O Ministro Cardozo, quando ainda era um juiz do Tribunal de Apelação de Nova York
[New York Court of Appeals], observou que “a carga de trabalho dos juízes aumentaria a
um ponto insustentável [would be increased to the breaking point] se cada decisão
passada pudesse ser reaberta in todo e qualquer caso,”14 e nessa expressiva frase ele
registrou o fato de que nossa capacidade de ação é limitada, e de que, para fazer bem
algumas coisas, precisamos deixar outros problemas para uma outra ocasião.
Ao reconhecer que definição e consistência na solução de controvérsias são por
si só importantes, a regra do stare decisis promove uma série de valores que estão de
alguma forma relacionados à ideia de estabilidade. Estabilidade não é a única coisa
importante, é claro, e mesmo Brandeis reconhecia que, da mesma forma que às vezes é
mais importante que as coisas estejam resolvidas do que que sejam resolvidas
corretamente, às vezes é mais importante que sejam resolvidas corretamente do que
sejam imperfeitamente resolvidas só para encerrar a discussão. Entretanto, por mais
importante que seja decidir de forma correta em alguns momentos, seguir o passado
sem levar conta a sua correção ou erro é central para o funcionamento do direito. Na
verdade, longe de ser um tolo apêndice a um sistema de tomada de decisões cujo
propósito é chegar à decisão mais correta neste exato momento, stare decisis reflete
algo profundo e duradouro sobre um sistema de tomada de decisões que frequentemente
serve aos valores da estabilidade, consistência, definição [settlement], e respeito ao
passado, ao mesmo tempo em que outras instituições do governo e outros sistemas de
tomada de decisão permanecem sendo mais flexíveis, menos estáveis, menos previsíveis
e mais focados no futuro.
3.4
Sobre a Identificação de um Precedente
É fácil falar que um tribunal deve seguir uma decisão passada – seja a sua
própria, no caso de stare decisis, seja a de um tribunal superior, no caso de precedente
14
Benjamin N. Cardozo, The Nature of the Judicial Process 149 (1921).
vertical – mas quase nunca é fácil determinar o que conta como uma decisão passada.
Em algumas ocasiões, essa será uma tarefa simples e direta. Por exemplo, um caso da
Suprema Corte envolvendo a permissibilidade de um estado eliminar qualquer
possibilidade de se realizar um aborto dificilmente escaparia de um confronto direto
com Roe v. Wade como precedente relevante. Se alguém alegasse em Nova Jersey que
consumidores adquirindo automóveis de concessionárias devem obedecer de forma
estrita ao que está escrito no contrato assinado, incluindo cláusulas de renúncia de
garantias, o caso Henningsen dominaria as discussões. E, se a questão envolver qual de
duas leis conflitantes deve ser aplicada a uma série específica de casos,15 a determinação
feita pelo tribunal sobre essa questão abstrata de interpretação jurídica vai estabelecer o
direito aplicável a casos futuros. Mais comumente, porém, não chegamos nem perto
desse nível de clareza quanto a quais casos contam como precedentes. Mais importante
ainda, quase nunca é óbvio o significado da decisão nesses casos [it is rarely obvious
what those cases will be taken to stand for.]
A tarefa de identificar o precedente relevante e a regra de decisão que ele
expressa [holding]* é problemática principalmente porque não existem dois eventos
exatamente iguais. Ou seja, jamais haverá dois casos exatamente iguais. No caso Raffles
v. Wichelhaus,16 por exemplo, a Court of the Exchequer** na Inglaterra concluiu que não
havia encontro de vontades e, portanto, não havia contrato formado quando um
comprador de algodão pensou que estava comprando algodão sendo transportado em
um navio chamado Peerless, enquanto o vendedor pensou que estava vendendo um
carregamento de algodão em um navio diferente, mas que por acaso também se
chamava Peerless. Os casos posteriores a Raffles serão diferente em alguns aspectos, no
mínimo quanto à época em que ocorreram. Mesmo assim, seria tolice argumentar que
Raffles não foi um precedente para casos similares que ocorreram em Londres em vez
de Liverpool, ou nos quais os navios se chamavam Excelsior em vez de Peerless, ou nos
15
Ver Anastasoff v. United States, 223 F.3d 898 (8 o Cir. 2000), extinto por perda do objeto, 235 F.3d
1054 (8o Cir. 2000).
*
N.T. O termo holding e seu equivalente ratio decidendi serão explicados mais adiante neste capítulo.
Aqui, como ainda não houve nenhuma explicação nesse sentido e o termo é possivelmente desconhecido
do leitor brasileiro, optou-se por traduzir o termo por “regra de decisão”, já que holding designa a regra –
mais geral que o caso sendo decidido – que teria servido de premissa maior para fundamentar o resultado
da decisão do tribunal. Ao longo deste capítulo, porém, após o termo ser explicado por Schauer, será
mantida a expressão original em inglês “holding”.
16
2 H. & C. 906, 159 Eng. Rep. 375 (Ex. 1864).
**
N.T. A Court of Exchequer era um tribunal superior do sistema jurídico inglês, com jurisdição e
competências variadas ao longo de sua existência, que foi formalmente dissolvido em 1880 por um ato do
Parlamento.
quais o carregamento era de chá em vez de algodão. Quando há um caso precedente que
é tão semelhante ao caso atual a ponto de as eventuais diferenças parecerem triviais,
juízes e advogados costumam dizer que o precedente “está firme no chão”[“on all
fours,”] e, nesses casos, a identificação do precedente raramente gera maiores
problemas.
Tipicamente, porém, as diferenças entre o caso atual e um possível caso
precedente são mais substanciais que aquelas entre Raffles e um caso similar em que as
únicas diferenças sejam os nomes dos navios, os portos de chegada e o tipo de
carregamento. Quando isso ocorre, surgem dois problemas inter-relacionados. O
primeiro diz respeito à identificação inicial do precedente relevante. Há alguma decisão
anterior que mereça ser tratada como caso precedente? O segundo envolve definir o
significado desse caso precedente para a decisão do caso atual. Em um mundo no qual
não há identidade completa entre dois ou mais casos ou eventos, essas tarefas envolvem
determinar se há similaridade relevante entre um dado caso precedente possível e o
caso atual, pois somente quando a resposta for afirmativa é que o tribunal atual estará
obrigado a seguir o que o tribunal precedente dispôs.
O problema da determinação da similaridade relevante pode ser ilustrado com
dois casos frequentemente usados para explorar a natureza da decisão baseada em
precedentes. O primeiro é a decisão do Juiz Cardozo no Tribunal de Apelações de Nova
York [New York Court of Appeals] no caso MacPherson v. Buick Motor Company.17
Com um significativo nível de particularismo, a decisão no caso MacPherson dispôs
que a Buick Motor Company, fabricante de automóveis de passeio, seria responsável,
perante um comprador de um carro da marca Buick, por danos causados por rodas
defeituosas fabricadas por uma outra companhia, mas incorporados pela Buick na
fabricação de seus automóveis, apesar da ausência de liame contratual [privity of
contract]* entre o comprador e a Buick Motor Company. Mas ainda que MacPherson
possa ser um precedente bastante óbvio para um caso envolvendo um Oldsmobile ou
um Toyota com o mesmo defeito, e para um caso envolvendo outras partes defeituosas
em vez das rodas, a maioria dos casos futuros não será tão similar. Se o dano em um
17
111 N.E. 1050 (N.Y. 1916).
N.T.: A doutrina de privity of contract nos EUA determinava originalmente que um contrato só criava
direitos e obrigações para as partes contraentes, impedindo assim que um terceiro processasse ou fosse
processado por uma das partes por questões relacionadas com o contrato. Com o passar dos anos, a
doutrina passou a incorporar uma série de exceções. Além disso, sobretudo a partir do caso MacPherson,
as regras relativas a responsabilidade civil extra-contratual passaram a abranger várias situações que antes
não poderiam ser levadas ao judiciário por força da noção de privity of contract.
*
caso subsequente tiver sido causado por uma substância estranha [foreign substance] em
um produto normalmente menos perigoso que um carro, por exemplo, ainda deveríamos
considerar MacPherson como o precedente aplicável [controlling]? Imagine que, algum
tempo depois de 1916, ano em que MacPherson foi decidido, surge em Nova York um
caso que lembra Donoghue v. Stevenson, o análogo britânico do caso MacPherson.18 No
caso Donoghue, a consumidora, Sra. Donoghue, estava no Café Wellmeadow, na cidade
de Paisley, Escócia, quando seu acompanhante pediu um copo de cerveja de gengibre**
para ela. Sra. Donoghue já tinha bebido metade do copo, e o proprietário o encheu mais
uma vez. Nesse momento, pedaços de um caramujo morto rolaram da opaca garrafa de
cerveja para dentro do copo da Sra. Donoghue. A aparência e o cheiro do caramujo em
decomposição causaram desconforto gástrico e choque mental na Sra. Donoghue, que,
posteriormente, processou o fabricante (que também tinha engarrafado a bebida) da
cerveja de gengibre.
Assim como no caso MacPherson, o fabricante processado no caso Donoghue
alegou que a Sra. Donoghue não poderia acioná-lo dada a ausência de liame contratual
entre fabricante e consumidor. Se esse caso tivesse surgido em Nova York, após o caso
MacPherson, a autora da ação certamente teria argumentado que essa questão já tinha
sido decidida no passado, obrigado assim o tribunal a chegar à mesma conclusão do
caso MacPherson. Mas, por sua vez, o réu teria argumentado que os casos eram
diferentes, e que MacPherson não teria adotado a proposição de que a existência de
algum liame contratual [privity] era desnecessária em um caso que não involvesse
maquinário inerentemente perigoso, como automóveis. E, sendo essas as duas posições
em conflito, como é que o tribunal atual – no caso da cerveja de gengibre pósMacPherson – poderia definir se MacPherson deve ou não ser encarado como um
precedente, e o que exatamente está disposto nesse precedente?
É precisamente essa questão que tem sido objeto de debate por gerações e
gerações. Segundo uma visão comum, o caso precedente funciona como um precedente
não apenas para casos mais ou menos idênticos que possam surgir no futuro, mas
também para casos semelhantes – casos que envolvam fatos similares. Mas o que é que
torna similares duas situações de fato não-idênticas? Não temos dúvida de que casos
envolvendo Toyotas são similares a casos envolvendo Buicks, mas devemos considerar
18
[1932] A.C. 562 (H.L.).
N.T. No original, ginger beer (um tipo de bebida criada no século XVIII, originalmente alcóolica, mas
hoje produzida apenas como refrigerante).
**
que um recipiente opaco, contendo uma substância estranha e repugnante, é similar ou
diferente de um carro com uma roda defeituosa? Não existe nada de “naturalmente”
similar, é claro, entre as duas situações de fato, como tampouco existe qualquer coisa de
“naturalmente” diferente. Elas têm em comum o fato de serem transações de consumo,
e de que, em ambos os casos, um defeito causou dano ou mal-estar, sendo que esse
defeito não era imediatamente aparente (e é por isso que o fato de a garrafa ser opaca é
importante no caso Donoghue). Elas são diferentes porque carros são diferentes de
cerveja de gengibre; porque carros são caros e cerveja de gengibre não é; e porque
carros são vendidos em concessionárias específicas de um determinado fabricante, mas
cerveja de gengibre é vendida em cafés que vendem todo tipo de bebida. Como
quaisquer dois conjuntos de fatos, os fatos do caso MacPherson e os fatos do caso da
cerveja de gengibre são semelhantes em alguns aspectos e diferentes em outros. E, se
esse é o caso, como deve o tribunal atual decidir se os dois são suficientemente
semelhantes a ponto de o primeiro ser um precedente (vinculante) para a decisão no
segundo?
[...]
Se o caminho da semelhança natural é falso, devemos buscar uma outra coisa
que possa nos dizer se e quando um caso passado que se pretende tomar como
precedente é de fato um precedente para o caso atual sendo examinado pelo tribunal. E
essa outra coisa é com frequência identificada com o que se chama, especialmente em
jurisdições de common law fora dos Estados Unidos, de ratio decidendi do caso
precedente – o fundamento ou razão da decisão do tribunal.19 Precisamos saber não
apenas o que o tribunal precedente decidiu, mas também por que o tribunal decidiu
daquela forma. Nesse ponto, uma visão comum na Inglaterra e em outros países é a de
que, da mesma forma que as regras, os precedentes têm justificativas ou razões
subjacentes ao resultado afirmado na decisão, e um caso precedente é um precedente
válido [good], e portanto vinculante, para todos os casos futuros que caiam no âmbito
da ratio decidendi do caso precedente. Até aqui, tudo bem, mas e como devemos fazer
para sabermos por que o tribunal precedente decidiu da forma que decidiu? Como
podemos saber qual foi a ratio decidendi? Uma possibilidade é olhar para os fatos do
caso precedente, conforme descritos pelo tribunal precedente, e pegar esses fatos, em
conjunto com o resultado do caso, como sendo a ratio decidendi – e, de fato, foi nesse
19
Ver Geoffrey Marshall, What is Binding in a Precedent?, in Interpreting Precedents: A Comparative
Study 503 (D. Neil MacCormick & Robert S. Summers, orgs., 1997).
sentido a influente proposta do teórico do direito Arthur Goodhart.20 Mas, no fim das
contas, a solução de Goodhart não é de muita valia. Suponha que os fatos foram os
seguintes: o Sr. MacPherson comprou um Buick de um revendedor que comprara o
carro da Companhia Buick Motor, e a roda do Buick quebrou, causando ferimentos no
Sr. MacPherson, e o resultado do caso foi que o Sr. MacPherson venceu a disputa contra
a Companhia Buick Motor. Com essas informações, nós continuaremos sem saber o
nível de abstração, ou nível de generalidade, no qual esses fatos devem ser
compreendidos, e sem mais elementos não podemos saber por que o tribunal decidiu do
jeito que decidiu.21 Foi por causa de alguma coisa relativa aos Buicks, ou aos carros em
geral, ou por algo relativo às rodas, ou a relações de consumo, ou a produtos
inerentemente perigosos (como eram tratados os carros em 1916), ou ainda por outro
elemento completamente diferente. Sozinhos, os fatos e o resultado não vão fornecer as
razões para a decisão do tribunal precedente, e sem as razões, nós não temos como dizer
se MacPherson é um caso sobre Buicks, um caso sobre rodas de carros, um caso sobre
carros, um caso de relações de consumo, ou ainda algo totalmente diferente. De maneira
semelhante, se um tribunal decide que uma pessoa que vende ilegalmente bebidas
alcóolicas a um menor de idade é responsável por danos relativos ao consumo de álcool
que venham a ser causados por aquele menor de idade,22 devemos entender isso como
sustentando (ou determinando) a imposição desse tipo de responsabilidade por ato de
terceiro [vicarious liability] a alguém que legalmente vende bebida alcóolica a um
adulto? Ou a alguém que vende ilegalmente uma arma que posteriormente vem a ser
utilizada em um roubo? Ou que legalmente vende uma arma que vem a ser utilizada
para o mesmo propósito? E o caso Donoghue v. Stevenson pode ser um precedente para
um caso em que a garrafa é transparente e, portanto, passível de inspeção por parte do
consumidor? Apesar da concepção de Goodhart, em nenhum desses casos podemos
20
Goodhart, que era Americano, foi Professor de Teoria do Direito em Oxford de 1931 a 1951. Sua tese
de que a ratio decidendi consistiria na combinação dos fatos relevantes, conforme expressos pelo tribunal,
com o resultado do caso foi apresentada em Arthur L. Goodhart, Determining the Ratio Decidendi of a
Case, 40 Yale L. Rev. 161 (1930). A tese de Goodhart deu origem a um vigoroso debate alguns anos
mais tarde. Ver Arthur L. Goodhart, The Ratio Decidendi of a case, 22 Mod. L. Rev. 117 (1959); J.L.
Montrose, Ratio Decidendi and the House of Lords, 20 Mod. L. Rev. 124 (1957); J.L. Montrose, The
Ratio Decidendi of a Case, 20 Mod. L. Rev. 587 (1957); A.W.B. Simpson, The Ratio Decidendi of a
Case, 20 Mod. L. Rev. 413 (1957); Julius Stone, The Ratio Decidendi of the Ratio Decidendi, 22 Mod. L.
Rev. 597 (1959).
21
Ver John Bell, The Acceptability of Legal Arguments, in The Legal Mind: Essays for Tony Honoré 45,
47 (Neil MacCormick & Peter Birks, orgs., 1986).
22
Ver, p.ex, Congini v. Portersville Valve Co., 470 A.2d 515 (Pa. 1983).
dizer que a descrição dos fatos feita pelo tribunal combinada com o resultado do caso
nos fornece uma resposta.
Se, nesses casos, a mera descrição dos fatos e o resultado não são suficientes
para nos dizer o que o caso precedente realmente “significa” [“stands for”], então é
tentador dizer que a questão de semelhança jurídica é ela mesma determinada pelo
direito. E é por isso que análises sobre precedentes, incluindo a de Goodhart, geralmente
falam não em fatos, mas em fatos relevantes [material facts]. Quando concluíam que o
holding do caso – termo mais usual do que ratio decidendi nos EUA, embora haja
pequenas diferenças de significado entre os dois termos – seria uma combinação dos
fatos relevantes e o resultado, Goodhart e outros resolveram o problema do nível de
generalidade, mas, em contrapartida, minaram o cerne da sua concepção. Para
Goodhart, teria sido um equívoco dizer que o carro ser um Buick era um fato relevante,
porque a “Buick-dade” [“Buick-ness”] não era mais relevante que o fato de o sobrenome
do Sr. MacPherson começar com a letra “M”. Nessa perspectiva, um fato é relevante
quando uma regra jurídica o torna juridicamente importante. É uma regra jurídica que
nos diz quando duas coisas são semelhantes, e, portanto, é uma regra jurídica que nos
diz qual o nível de generalidade em que os fatos devem ser compreendidos e descritos
pelo tribunal em questão. Seria uma regra jurídica, portanto, que nos diria que
“automóvel” é uma categoria juridicamente relevante, enquanto “Buick”, não. Contudo,
embora muitas vezes seja esse o caso, contar com uma regra jurídica para nos dizer
quais casos são materialmente semelhantes e quais não são é fugir da própria questão
que estamos tentando responder. Se o critério para definir relevância vem de fora do
caso precedente – de uma lei, por exemplo – então é a lei que está fazendo todo o
trabalho, e isso não seria de modo algum uma situação de vinculação a precedentes. Isto
é, se uma lei diz que as propriedades p, q, e r são relevantes, e se o caso precedente
exibe essas propriedades, então a busca por essas propriedades no caso atual é uma
busca pelas propriedades que a lei, e não o caso precedente, tornaram juridicamente
relevantes. O mesmo se aplica a determinações de relevância feitas por um ou vários
casos diferentes do caso precedente. Se uma regra jurídica pré-existente se torna parte
do caso precedente relevante, então devemos olhar para a fonte de tal regra e
simplesmente aplicá-la, em vez de imaginarmos que é o caso precedente que está
exercendo um efeito limitador sobre nossa decisão. Se é uma regra jurídica que nos diz
por que “Buick-dade” não é uma propriedade juridicamente relevante, então um tribunal
em um caso pós-MacPherson deveria estar seguindo essa regra, e não qualquer coisa
relativa ao caso MacPherson em si.
É difícil compreender, portanto, de que forma a relevância pode se originar da
mera descrição de fatos, ainda que de fatos materiais. Se uma regra externa a esses fatos
determina a relevância, então é essa regra, e não o caso precedente, que está
desempenhando a tarefa. E se a determinação de materialidade não vem de uma regra
externa ao caso, então é como se a idéia de vinculação por precedente fosse ilusória,
porque não existe nada que impeça o tribunal atual de sair apontando semelhanças
sempre que quiser chegar a um resultado consistente com o obtido em um caso anterior,
e sair apontando diferenças sempre que quiser chegar ao resultado oposto. E, como duas
situações de fato quaisquer sempre serão semelhantes uma à outra em alguns aspectos e
diferentes em outros, responder que é o direito que determina a relevância é na verdade
não dar resposta alguma.
Contudo, antes de nos desesperarmos por completo e chegarmos à conclusão de
que, na verdade, precedentes não limitam de forma alguma as decisões, é preciso
lembrar que, na esmagadora maioria dos casos, o tribunal precedente não apenas nos dá
os fatos e o resultado, ou conclusão, mas também nos diz por que chegou àquela
conclusão específica. Em outras palavras, a questão não é tanto fazer a extração da ratio
decidendi de um caso, como de simplesmente ler o que o tribunal disse que seria a ratio
decidendi naquele caso.23 Se, no caso MacPherson, o Juiz Cardozo tivesse dito algo
como “temos que chegar a esse resultado porque consumidores têm uma capacidade
menor de detectar ou corrigir defeitos de fabricação, e porque fabricantes como Buick
tem uma capacidade maior de suportar e se proteger contra esse prejuízo”, então ficaria
muito mais fácil dizer que MacPherson é um precedente para qualquer caso envolvendo
uma relação entre um consumidor e um fabricante, e isso ocorreria porque teriam sido
exatamente essas as palavras do Juiz Cardozo.
23
A extração da ratio decidendi é muito mais importante na Grã-Bretanha do que nos EUA, porque, na
prática adotada pelos tribunais recursais Britânicos, assim como em alguns outros países da
Commonwealth, não há nenhuma exigência de que o tribunal produza uma única decisão majoritária ou
uma decisão em nome da instituição como um todo. Os três, cinco ou mais juízes que apreciam um caso
tipicamente elaborarão suas próprias decisões individuais. O resultado obtido pela maioria desses juízes é
o resultado do caso, mas determinar o que a decisão realmente significa é inevitavelmente um processo de
determinar quais proposições jurídicas e quais razões foram capazes de angariar o apoio da maioria dos
juízes. Dessa forma, se o Juiz A decide a favor do autor pelas razões x, y, e z, o o Juiz B decide a favor do
autor pelas razões p, q, e x, e se o Juiz C decide a favor do réu, então a ratio decidendi é x, a única razão
compartilhada pela maioria dos juízes. Nos sistemas em que essa prática de decisões individuais não
existem, como é o caso dos Estados Unidos (exceto na medida em que uma Suprema Corte cada vez mais
dividida parece estar se movendo nessa direção) , a questão de se determinar a ratio decidendi é menos
complexa.
Às vezes, um tribunal vai ser ainda mais claro e simplesmente anunciar qual é a
regra expressa no caso. Se o Juiz Cardozo tivesse dito, “entendemos que, em todos os
casos envolvendo um consumidor
e um fabricante, o fabricante tem o dever de
indenizar o consumidor por defeitos de fabricação, independentemente do liame
contractual entre fabricante e consumidor”, a questão relativa ao que foi decidido no
caso – isto é, em relação ao que deve ser tratado como um precedente – iria
virtualmente desaparecer, já que haveria uma regra gerada pelo tribunal e que poderia
ser aplicada a casos futuros.24 Mas mesmo quando a regra decisória [holding] não é
sinalizada de forma tão explícita, as palavras do tribunal continuam sendo a estrela guia
nessa busca. Quando solicitado a dizer por que chegou a um determinado resultado, o
tribunal vai descrever os fatos do caso como exemplos de um tipo [type]* mais geral do
que aquele exemplo particular – chamado pelos filósofos de “instância” [“token”] –
que acabou surgindo naquele caso específico. Dessa forma, quando, por exemplo, a
Suprema Corte decidiu o caso New York Times Co. v. Sullivan,25 que, tomando como
base a Primeira Emenda, reformou dramaticamente o direito dos EUA sobre difamação
[libel]** , ela não estava descrevendo o autor da ação, o Comissário Sullivan, apenas
como um oficial de polícia (o que, por si só, já teria sido uma abstração de Sullivan
como indivíduo e do trabalho específico que ele desempenhava), mas como um “agente
público". E a Corte descreveu o New York Times não apenas como o singular New York
Times, e nem mesmo como apenas um jornal, mas sim como “a imprensa”. Como
resultado, New York Times v. Sullivan se apresentou desde o início como um precedente
para todo e qualquer caso de difamação iniciado por agentes públicos contra veículos de
imprensa, e isso ocorreu precisamente porque, e apenas porque, foi exatamente o que a
Suprema Corte disse. Se a Corte tivesse descrito Sullivan como um oficial de polícia, e
se, em um caso subsequente, alguém argumentasse que New York Times v. Sullivan teria
sido um precedente para casos em que a vítima fosse um agente público, sendo ou não
um policial, um dos lados teria argumentado que a melhor leitura de Sullivan é a que vê
o caso como aplicável a todos os agentes públicos, enquanto o outro lado recomendaria
uma interpretação mais estrita, mas nenhum dos lados teria sido capaz de sustentar que
24
Ver Larry Alexander, Constrained By Precedent, nota 2 supra.
N.T.: Nessa frase, Schauer está usando “tipo” no sentido de categoria relativamente geral.
25
376 U.S. 254 (1964).
**
N.T.: O crime de libel nos EUA é comparável ao tipo penal de “difamação” previsto no Código Penal
Brasileiro. Mais especificamente, libel refere-se apenas à difamação praticada por meio escrito ou
impresso. Nos EUA, a difamação por meio de expressão oral é chamada de slander.
*
a sua intepretação preferida seria obrigatória [compelled] por força do caso anterior,
tendo em vista a formulação efetivamente empregada na decisão da Suprema Corte.26
3.4
Sobre Holdings e Dicta
O leitor atento certamente notará alguma tensão entre a discussão acima e a
tradicional distinção entre o que é o holding de um caso e o que são os dicta que podem
acompanhá-lo.27 Na perspectiva tradicional,28 o holding – que é muito próximo, mas
não idêntico, à ratio decidendi – é a regra jurídica que determina o resultado do caso.
Então, quando dizemos que o holding no caso International Shoe Co. v. Washington29 é
o de que os estados podem exercer jurisdição pessoal sobre réus que estejam fora do
estado, desde que exista um mínimo de contatos com o estado, de modo a não ofender o
devido processo legal, teremos afirmado uma regra jurídica. Às vezes, o tribunal está
criando uma regra nova, e às vezes está simplesmente ecoando uma expressão de uma
regra encontrada em um caso anterior ou destilada a partir de múltiplos casos
precedentes. Não há nada de muito misterioso na noção de holding – é a regra jurídica
que, quando aplicada aos fatos do caso específico, gera o resultado. Então, não é errado
dizer que, no caso International Shoe, a Corte entendeu que deve haver contatos
mínimos entre o réu e o estado onde tramita a ação para justificar a aplicação de
jurisdição pessoal, mas tampouco é errado incluir na noção de holding as razões
subjacentes à regra e a aplicação dessa regra aos fatos do caso específico. Nesse sentido,
poderíamos descrever o holding no caso International Shoe como sendo a combinação
da exigência de um mínimo de contato com a afirmativa da Corte de que seria injusto
esperar que um réu se defenda em um processo movido em um estado com o qual não
possui praticamente nenhuma ligação, sendo essa afirmativa geral por sua vez
combinada à conclusão de que, dado que os vendedores da International Shoe Company
tinham feito negócios em Washington, haveria contatos sufficientes para sustentar a
aplicação de jurisdição pessoal.
Não há nada na descrição de holdings feita acima que seja por si só
problemático. O tribunal afirma a regra de direito na qual baseia sua decisão, aplica essa
26
Isso não significa que a versão hipoteticamente menos abrangente da decisão em New York Times v.
Sullivan não teria sido relevante para um caso subsequente que procurasse justamente ampliar o alcance
daquela decisão, e a natureza de argumentos desse tipo será objeto do Capítulo Cinco.
27
Voltaremos ao tópico de holdings e dicta no Capítulo Nove, que analisa ainda mais de perto a natureza
das decisões judiciais.
28
Ver, p.ex., Glanville Williams, Learning the Law 62-88 (10a ed., 1978).
29
326 U.S. 310 (1945).
regra aos fatos diante de si, e proclama um resultado. E isso é o holding. Os problemas
começam quando um tribunal não diz explicitamente qual é o seu holding, e deixa por
conta dos leitores a tentativa de determiná-lo. Na perspectiva tradicional, isso pode ser
feito por meio da combinação entre o relato judicial dos fatos relevantes e o resultado
afirmado pelo tribunal, mas, pelos motivos vistos acima, isso é insatisfatório. Se o
tribunal não diz por que os fatos relevantes são relevantes, tudo que nos resta é um
relato dos fatos que pode ser interpretado em numerosos níveis de abstração. Ficamos
sem nenhuma noção sólida de qual teria sido o entendimento do tribunal, e sem
nenhuma maneira de aplicar a decisão precedente no futuro de forma confiável.
Somente ao afirmar o seu holding é que o tribunal permite que tribunais subsequentes
efetivamente se pautem por (e obedeçam a) seu holding, pois, sem essa declaração, o
holding pode ser praticamente qualquer coisa. Mas, com essa declaração, e com nosso
entendimento do papel central que ela cumpre na definição do holding, a própria ideia
do que é um holding, assim como a idéia de ratio decidendi, torna-se bem menos
misteriosa.
Tradicionalmente, tudo que não integre o relato dos fatos, e nem o holding é
considerado obiter dictum – uma expressão latina que significa literamente “algo dito
de passagem”. É algo extra, não estritamente necessário para atingir, justificar ou
explicar o resultado do caso. Usualmente designadas pela forma abreviada dicta, essas
afirmações desnecessárias usualmente são observações do tribunal sobre questões que
não foram de fato colocadas pelo caso, ou conclusões sobre pontos que são
desnecessários para o resultado efetivamente atingido pelo tribunal, ou explicações
abrangentes acerca de toda uma área do direito, ou simplesmente adendos em larga
medida irrelevantes. No caso Marbury v. Madison,30 o Presidente da Suprema Corte
John Marshall entendeu que a Lei de Organização Judiciária de 1791, que havia sido
invocada para justificar a jurisdição da Corte naquele caso, era inconstitucional. Mas ele
também disse que a Supreme Corte possuía o poder necessário para exercer jurisdição
sobre o Presidente dos Estados Unidos, uma conclusão que enfureceu o Presidente
Thomas Jefferson, sobretudo porque era totalmente desnecessária para a conclusão da
Corte e, portanto, tinha claro caráter de dicta. Se, no fim das contas, a Corte não tinha
jurisdição sobre a matéria, então não havia qualquer necessidade de se dizer qualquer
coisa que fosse sobre quem poderia estar sujeito à sua jurisdição hipotética. Em um
30
5 U.S. (1 Cranch) 137 (1803).
exemplo de impacto muito menor, no caso Flood v. Kuhn31, que manteve a histórica
imunidade do baseball profissional ao direito antitruste, o Ministro Blackmun incluiu na
decisão várias páginas sobre história, poesia, literatura e grandes nomes do baseball ao
longo dos tempos, conteúdo cuja desnecessidade para a decisão do tribunal – e,
portanto, cujo status de dicta – seria difícil de negar.
[...]
3.5
Sobre a Força do Precedente – Anulação, Distinção e Outros Tipos de Escape
Um dos objetivos de se distinguir entre precedente vertical e precedente
horizontal foi o de preparar o terreno para a explicação de como os dois limitam de
maneiras diferentes as decisões de tribunais subsequentes. Normalmente, referimo-nos a
precedentes verticais como vinculantes [binding]. Isto é, geralmente se entende que um
tribunal inferior não tem escolha senão obedecer um precedente de um superior.
Tribunais estaduais de primeira instância em Nova York não podem decidir ignorar
MacPherson v. Buick, da mesma forma que não podem ignorar uma lei estadual
aprovada pela assembléia legislativa daquele estado, e tribunais federais e estaduais nos
Estados Unidos devem tratar decisões da Suprema Corte em casos como Roe v. Wade e
International Shoe v. Washington como atos de formulação do direito [laying down the
law], tanto figurativa, quanto literalmente .32
Do caráter vinculante das decisões de tribunais superiores não se segue que não
haja nenhuma margem de manobra [play in the joints]
na esfera dos tribunais
inferiores, mesmo quando parece haver um precedente bem “no alvo” [“on point”] . Às
vezes, pode-se argumentar que a decisão do tribunal superior é simples dicta, e que não
há nenhuma parte do holding que seja vinculante para os tribunais inferiores. Esse é um
argumento teoricamente possível, porque mesmo a doutrina do precedente vertical tem
sido tradicionalmente entendida como restrita ao que o tribunal superior de fato decidiu,
sem incluir as outras coisas que ele acabou também mencionando no caminho. Na
prática, porém, um advogado que defenda, perante um tribunal inferior, um resultado
claramente inconsistente com as palavras de uma decisão de um tribunal superior tem
uma íngreme escalada pela frente. Os argumentos no sentido de que as palavras
31
407 U.S. 258 (1972).
Na realidade, é claro, o direito que está sendo definido aqui incluiria as mais recentes decisões sobre o
tema, incluindo Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania v. Casey, 505 U.S. 833 (1992), no
caso do aborto, e Burnham v. Superior Court, 495 U.S. 604 (1990), Bendix Autolite Corp. v. Midwesco
Enterprises, Inc., 486 U.S. 888 (1988), e World-Wide Volkswagen v. Woodson, 444 U.S. 286 (1980), no
que se refere à jurisdição pessoal.
32
inconvenientes são simples dicta, e não parte da ratio decidendi, geralmente são malsucedidos.
O mesmo não ocorre, porém, quando o advogado ou o juiz podem distinguir o
caso atual do caso precedente. Embora se possa dizer que a existência de um precedente
vinculante decidido por um tribunal superior obriga o tribunal inferior a segui-lo, o mais
preciso seria dizer que a existência de um precedente vinculante obriga o tribunal
inferior a segui-lo ou a distingui-lo do caso atual. Na prática, boa parte da argumentação
jurídica envolve a tentativa de um dos lados de afirmar que um dado caso de um
tribunal superior determina a decisão no caso atual, enquanto o outro lado insiste que os
dois casos são suficientemente diferentes para que o resultado no caso precedente não
precise ser também o resultado no caso atual.
Por exemplo, lembre-se do caso Riggs v. Palmer,33 no qual o Tribunal de
Apelações de Nova York decidiu que Elmer Palmer, por ter assassinado seu avô, não
poderia receber sua parte na herança prevista no testamento do avô, apesar do
literalmente disposto na Lei de Testamentos de Nova York. Muitos anos depois, o efeito
de Riggs como precedente veio a ser central para um caso chamado Youssoupoff v.
Columbia Broadcasting System, Inc.34 Neste caso, um homem que havia sido um coconspirador no assassinato de Rasputin (o conselheiro da família real Russa) em 1916,
alegou invasão de privacidade por conta de um filme televisivo da CBS em que ele
figurava como personagem. A ação foi ajuizada na justiça estadual de Nova York, de
modo que Riggs seria determinante [controlling] se fosse aplicável. A CBS alegou que a
inegável participação de Youssoupoff no assassinato de Rasputin o trouxe para o âmbito
de aplicação do princípio de que “ninguém pode se beneficiar de sua própria torpeza”
anunciado em Riggs. Youssoupoff contra-argumentou que os casos deveriam ser
diferenciados porque o ato que praticara não estaria relacionado com a quantia que ele
agora buscava obter judicialmente. E, concordando com Youssoupoff, o tribunal negou
a Riggs o caráter de precedente com força vinculante neste caso, dizendo que a situação
de fato no caso atual era suficientemente distinguível da do caso precedente para não
haver obrigação alguma, por parte do tribunal, de chegar ao mesmo resultado a que o
tribunal superior havia chegado em Riggs.
33
34
115 N.Y. 506 (1889).
265 N.Y.S. 754 (Sup. Ct. 1965).
Um outro exemplo, mais uma vez de Nova York, pode ser encontrado nos casos
Campo v. Scofield35 e Bravo v. C.H. Tiebout & Sons, Inc.36 Ambos são casos de
tribunais inferiores envolvendo usuários “em cadeia” [“downstream”]* de um produto
defeituoso fabricado negligentemente que lhes causou dano, exatamente como em
MacPherson v. Buick. E, em ambos, os autores das ações alegaram que McPherson
seria determinante. Mas, em cada um dos casos, os réus alegaram que MacPherson seria
distinguível dos casos atuais, e os tribunais concordaram. No caso Campo, o tribunal
concluiu que MacPherson seria aplicável somente a defeitos que não poderiam ter sido
razoavelmente identicados pelo usuário, e, portanto, um defeito “óbvio e patente” não
poderia embasar um pedido de indenização contra um distante fabricante, mesmo que o
fabricante tenha sido negligente. E, no caso Bravo, o fato de o autor não ter instalado
um dispositivo de segurança exigido por lei tornou mais uma vez MacPherson
distinguível, mesmo sendo um caso de negligência do fabricante, e mesmo que, caso a
ação tivesse sido proposta por um consumidor direto, teria havido responsabilidade do
fabricante, independentemente da violação da exigência legal de segurança por parte do
consumidor.
Nesses e em inúmeros outros casos, o advogado de uma partes alega que o caso
atual está situado no âmbito de um precedente vinculante, enquanto o advogado da outra
parte tenta distingui-lo. E os argumentos tomam essa forma precisamente porque o
tribunal inferior é forçado [compelled] a chegar, no caso atual, ao mesmo resultado do
caso precedente sempre que os fatos não forem distinguíveis. No que se refere ao stare
decisis, porém, as coisas são diferentes. Aqui, os argumentos costumam lembrar os que
aparecem em casos de precedente vertical, com uma das partes se embasando em uma
decisão anterior do tribunal, enquanto a outra parte tenta distingui-la. Mas, mesmo
quando não existe fundamento plausível para se distinguir os casos, a obrigação de
obedecer uma decisão anterior raramente é absoluta no mesmo sentido que a obrigação
de obedecer uma decisão de um tribunal superior. Diferentemente do que ocorre com
tribunais inferiores diante de decisões vindas de cima, tribunais enfrentando suas
decisões passadas têm a capacidade de anulá-las [overrule them] ocasionalmente.37
35
95 N.Y.S.2d 610 (App. Div. 1950).
243 N.Y.S.2d 335 (Sup. Ct. 1963).
*
N.T.; A expressão “downstream” é empregada aqui para destacar o fato de que não houve contato direto
e imediato entre o fabricante original do produto e o usuário que sofreu o dano.
37
Antes da Declaração de Práticas sobre Precedente Judicial de 1966, mesmo a Câmara dos Lordes na
Inglaterra estava proibida de anular seus próprios precedentes, sob o argument de que esse poderia
caberia exclusivamente ao Parlamento. E a prática continua sendo bem menos comum na Inglaterra do
36
Eles podem admitir que o caso atual apresenta a mesma questão decidida no caso
precedente, mas, mesmo assim, decidem rejeitar a decisão anterior.
Embora tribunais possam ocasionalmente anular suas próprias decisões, essa
prática requer mais do que a simples convicção de que a decisão anterior estava errada.
Se essa convicção fosse suficiente, stare decisis perderia totalmente o sentido, já que o
ponto central dessa prática é precisamente o de que um tribunal deve tratar uma decisão
anterior como vinculante tão somente pelo fato dessa decisão existir, e não por
considerá-la correta. Se um tribunal pudesse anular uma de suas decisões passadas
sempre que achasse que ela estava equivocada, então não haveria de fato um princípio
de stare decisis nesse sistema jurídico.
Em algumas situações, porém, um tribunal vai estar convencido de que uma de
suas decisões passadas é extremamente errada, ou que as consequências de um holding
anterior equivocado são tão graves a ponto de exigir a anulação do precedente. Quando,
no caso Brown v. Board of Education38, a Suprema Corte anulou Plessy v. Ferguson,39
que determinou que instalações públicas segregadas, mas iguais*, eram compatíveis
com a constituição, os Ministros que decidiram Brown embasaram sua ação na
existência do que estavam convencidos que seria uma grave injustiça constitucional. O
mesmo ocorreu quando a Suprema Corte, no caso Mapp v. Ohio40 , anulou Wolf v.
Colorado41, determinando que provas obtidas de forma ilícita seriam inadmissíveis
tanto em processos criminais na justiça federal, quanto na justiça estadual. Nesses e em
outros casos, o ato de anular se baseia não na percepção de hoje de que um erro foi
cometido no passado, mas na percepção de hoje de que foi cometido no passado um erro
que extrapola totalmente o alcance dos erros normais, seja no seu tamanho, seja na
gravidade das suas consequências. Ao decidir anular uma de suas decisões passadas, a
Suprema Corte dos Estados Unidos descreveu esse acentuado ônus como uma exigência
que nos Estados Unidos, indicando que a norma de stare decisis é mais forte lá do que aqui. Ver Rupert
Cross, Precedent in English Law (3a ed., 1977).
38
347 U.S. 483 (1954).
39
163 U.S. 537 (1896).
*
N.T.: Na decisão no caso Plessy v. Ferguson, de 1896, a maioria dos membros da Suprema Corte
entendeu que a segregação racial em acomodações públicas, especialmente em vagões de trem, não
violava a Décima Quarta Emenda (Cláusula de Igualdade) da Constituição dos EUA, sob o argumento de
que a separação física não expressaria um juízo de inferioridade dos negros em relação aos brancos. Isto
é, se a qualidade das acomodações fosse equivalente, brancos e negros seriam “separados, mas iguais”
[separate, but equal]. Plessy foi uma das mais criticadas decisões na história da Suprema Corte dos EUA
e a veio a ser anulada em 1954 ,no caso Brown v. Board of Education, também mencionado por Schauer.
40
367 U.S. 643 (1961).
41
338 U.S. 25 (1949).
de “justificativa especial” [“special justification”]42. Na Inglaterra, o critério é o de que
a decisão passada deve ser “manifestamente equivocada” [“manifestly wrong”].43 Os
qualificativos – “especial” e “manifestamente” – são importantes, porque deixam claro
que o princípio de stare decisis perde o sentido se um tribunal se sentir livre para anular
toda e qualquer decisão passada que considere errada. Ao expressarem critérios mais
rigorosos para identificação e avaliação da suas consequências de um erro passado,
esses qualificativos garantem que a obrigação de um tribunal de seguir suas próprias
decisões passadas será um genuíno limite à atuação desse tribunal, ainda que não seja
uma obrigação absoluta, nem insuperável.
42
43
Dickerson v. United States, 530 U.S. 428, 443 (2000); Arizona v. Rumsey, 467 U.S. 203 (1984).
Vee William Twining & David Miers, How to Do Things with Rules 318 (4 a ed., 1999).

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