Etnicidade e itinerários de grupos étnicos no Sul do Brasil Arlene

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Etnicidade e itinerários de grupos étnicos no Sul do Brasil Arlene
Etnicidade e itinerários de grupos étnicos no Sul do Brasil
Arlene Renk
A região e a constituição do grupos étnicos
O texto é um exercício para repensar a questão da etnicidade e da
identidade étnica, no Oeste Catarinense, a partir de dados levantados em
diferentes momentos entre os anos de 1988 e 1997, junto a grupos de raízes
camponesas. Norteio-me pela seguinte indagação: como são construídas e
acionadas as identidades étnicas na região? A essa pergunta acopla-se uma
constelação de outras: como se entrelaçam? De modo a situacionalidade é
acionada e quem o faz? Quais as estratégias narrativas dos grupos?
Discuto o campesinato, sob o prisma da diferenciação étnica, tomando
como ponto de partida o processo de colonização no oeste catarinense.
Este significou diferentes itinerários. Aos brasileiros representou a
expropriação das terras, dos recursos materiais e foi o momento da
construção de sua identidade étnica. Aos colonos de origem1 a aquisição
das terras em Santa Catarina era uma estratégia de reprodução social
camponesa. Suas raízes são remetidas à imigração para colonização, com
entrada de camponeses alemães, italianos e poloneses, dentre outros. No
século passado imigraram ao Rio Grande do Sul e, nas gerações seguintes, no
processo de enxamagem (cf. Roche, 1969), avançaram em direção ao norte
(oeste de Santa Catarina, sudoeste do Paraná, Mato Grosso do Sul e Amazônia
Legal) e ao oeste (Paraguai e à Bolívia), para onde se espalharam os “galhos
1
Colonos de origem é uma categoria encompassadora construída contrastivamente em
relação aos brasileiros. É a forma pela qual os camponeses descendentes dos imigrantes
europeus, principalmente italianos, alemães e poloneses, se nominam. A condição de
colono é entendida como prerrogativa dos de origem. Estes se opõem aos sem origem, ou
seja, os nativos desclassificados como caboclos [brasileiros]. A construção da identidade
contrastiva em grupos camponeses foi objeto de trabalhos de Seyferth (1982, 1992,1993 e
1994).
1
das árvores” originadas no Rio Grande do Sul, na acepção de Woortmann
(1994 e 1995).
O modelo de colono almejado foi aquele da atualização do imigrante
europeu, esperado para civilizar este país, como já foi tratado por Seyferth
(1988) e Alencastro (1988).
Levo em consideração o processo de enxamagem, mas detenho-me e
analiso um de seus pontos, quando do deslocamento ao Oeste Catarinense e
aos desdobramentos que nele ocorreram.
Enfoco a identidade étnica na região (cf. Geertz, 1978), considerando
os mecanismos que a engendraram, dentro de uma determinada configuração
espacial. No que diz respeito à região2 , parto do suposto que história é
elemento constitutivo (cf. Bourdieu, 1989). Mais que as “fronteiras
naturalizadas”, foi o processo histórico quem delineou o que se convencionou
chamar de região oeste catarinense. Devem ser levados em conta os
processos de ocupação e de colonização, as disputas pelas fronteiras e as
representações formuladas a respeito do “interior”.
A ocupação ocorreu no século passado, quando fazendeiros de São Paulo
instalam suas fazendas de criar nas áreas de campos. Pari passu, representou
esbulho de terras indígenas e propiciou o surgimento do campesinato
brasileiro/caboclo, nas áreas florestais. Depois de diversas disputas pelas
fronteiras, primeiramente, com a Argentina e, posteriormente, entre Paraná e
Santa Catarina, inicia-se nas primeiras décadas deste século, o processo de
colonização, com agricultores vindos do Rio Grande do Sul. De outro lado,
havia um imaginário sobre a região, enquanto terra de barbárie, inóspita e
“paraíso” da criminalidade. Os escritos desde o império, contam-na como terra
de ninguém, daí os sucessivos esforços para colonizá-la.
A colonização, amparada pelo Estado mas executada por companhias
colonizadoras privadas, foi a solução encontrada pelo Estado para ser a
“missão civilizadora” na área. Os registros locais redigidos pela elite de
origem consideram-na um rito de passagem que trouxe “a ordem ao caos”.
Contraditoriamente, o evento lido pelos colonizadores enquanto “processo
civilizador”, para os brasileiros representa uma uma ordem rompida.
Os grupos em questão, os de origem e os brasileiros, eram e
continuam dotados assimetricamente dos instrumentos de apropriação e dos
diversos capitais em jogo. Essas diferenças são traduzidas pelas posições
ocupadas num espaço social hierarquizado. As posições diferenciadas, os
2
Quando falo de região, situo-a espacialmente nos municípios de Cruzeiro e Chapecó,
criados em 1917 e que hoje desmembraram-se em mais de uma centena de municípios.
2
instrumentos e capitais desigualmente distribuídos entre os grupos fazem com
que a percepção do mundo social seja um constante embate, uma vez que as
categorias de percepção são, elas próprias, produtos de incorporação das
estruturas objetivadas no espaço social (Bourdieu, 1984:3).
A construção da identidade brasileira
A entrada dos de origem pode ser analisada como situação típica
do contexto colonial, no qual se defrontam grupos dotados desigualmente de
diferentes capitais, tais como o social, o econômico e escolar. A situação não
poderia ser considerada como uma “competição por recursos” (cf. Hoetnick,
1975). A competição supõe, minimamente, que haja um relativo equilíbrio
de forças, o que não ocorreu. Em razão da estratificação horizontal, parece-me
mais indicado entendê-la enquanto monopólio, no qual o acesso às terras e
aos recursos naturais eram de exclusividade dos de origem.
A população brasileira, posseira, foi contemplada com silêncio nesse
projeto. A exclusão dessa camada populacional encontra justificativa e
legitimação na ideologia da colonização, do modelo de colono que conviria a
um país “com vocação agrícola”. Há explicitações claras nesse sentido, como
ocorreu no município de Campos Novos, que fixou por legislação o
“imigrante” desejado (cf. Heinsfelder, 1996). Outros municípios não
chegaram a esse extremo, no entanto, as práticas das colonizadoras
trabalharam no mesmo sentido.
A colonização, ocupando as florestas e ignorando as posses dos
brasileiros, resultou na expropriação dessa população e desestruturando seu
modo de vida tradicional, o chamado sistema brasileiro. A condição de
inexistência civil, a não disponibilidade de recursos financeiros e a concepção
de terra e propriedade foram fundamentais para a sua expropriação. Para a
fração posseira a terra era do Brasil e dos brasileiros, logo não havia por que
comprá-la.
“Naquele tempo diziam ‘prá que comprar? É tudo do Brasil’. Ninguém
comprava. Tinha fartura de terra. Enjoava aqui, ira prá lá. Depois
foram entrando os gringos, com ganância de terra, e a terra foi
escasseando”.
Várias foram as estratégias empregadas pelas colonizadoras para a
retirada dos posseiros: assustando-os, “indo nas boas” ou com o uso de forças
3
policiais. Aqueles que resistiram, foram imobilizados, confinados em áreas
acidentadas ou nas encostas de rios.
Quanto ao destino dos expropriados, uma fração “foi adiante”, em área não
concorrida no mercado imobiliário naquele momento, como ao Paraná, onde
“acabaram se extraviando”. Outra fração permaneceu na região, voltando-se
ao trabalho assalariado, ou em pequenas franjas de terras, num agricultura de
subsistência e acessória.
A colonização consistiu numa fricção interétnica (cf. Cardoso de
Oliveira, 1976), resultando na condição de minoria étnica (cf. Banton,
1979) e na emergência da identidade étnica brasileira, em oposição aos
colonizadores. Expressam-se: “antes era só brasileiros” “agora com a entrada
da peste branca diferenciou tudo” e “os brasileiros ficaram pequenos”,
instaurando um novo tempo.
As formulações de Keyes (1976:205-6) – dos fatos de nascimento – são
exemplares para pensar a situação dos brasileiros. A ancestralidade partilhada
é expressa nas formulação nativa “nossa gente”, os troncos velhos que
estavam na área anterior à colonização. No levantamento das genealogias,
constata-se um deslocamento espacial dos troncos, não obstante isso, o que
atua como aglutinador dessa ascendência é a experiência partilhada de
colonização e expropriação vivenciada. A consciência étnica origina-se nessa
experiência comum. Ainda, apoiada em Keyes, recorro ao “lugar de
nascimento” para fundamentação do grupo grupo étnico. Neste caso,
“nasceram no Brasil”, uma vez que anteriormente à colonização “só havia
brasileiros e era tudo igual”. Poderia acionar, igualmente, a fenotipia que,
segundo Keyes é um dos elementos constitutivos do grupo étnico, asseverando
não se tratar de raças. A partir dos colonizadores, todos os brasileiros são
englobados numa categoria caboclos. Em grau mais extremo, são
classificados de negros, “a negrada”.
A etnia e sua construção, neste caso, assumem o papel de uma
categoria discursiva e de uma categoria organizadora das formas de falar, dos
sistemas de representações e das práticas. Os brasileiros, manifestam um
sentimento de brasilidade construído por exclusão, que não deixa de
apresentar paradoxos: os mais brasileiros, pela ancestralidade no solo, mas
muitas vezes sem os direitos políticos assegurados, e quem dirá os direitos
sociais? Empiricamente, carrega um fardo: além da expropriação das terras, do
declínio de camponeses em trabalhadores sazonais e da desestruturação de um
modo de vida tradicional foram transformados na condição de minoria étnica
e caracterizados enquanto bárbaros e antônimos de “civilização”. As
estratégias narrativas desse grupo centram-se no passado, num passado
4
idealizado. Não falam de projetos, mas das perdas. Voltam-se ao tempo
d’antes para escapar às penúrias de hoje.
Não obstante a condição de minoria, a exclusão social a que são
submetidos, silêncio a seu respeito na historiografia local, a violência
simbólica manifesta-se no conflito étnico latente, quando os de origem
traçam uma fronteira, através de um idioma, o do trabalho, acionado como
uma prerrogativa sua.
A sociodicéia dos de origem
Os de origem detêm os mecanismos para “impor sua visão e divisão
de mundo”. Acionam seus feitos colonizadores enquanto marco zero da
história oficial da região. Para esses colonos, a migração insere-se na lógica
da reprodução social camponesa. Marcaram sua distintividade calcados em
metáforas práticas (Bourdieu, 1979)3, expressas em um ethos de trabalho, na
estilização de vida, no trabalho familiar na pequena propriedade, além das
naturalizações das virtudes étnicas.
A partir da inserção na região acionam a etnicidade, tomando dois
pontos de referência. De um lado, situam os brasileiros que ocupavam as
áreas anteriormente. Ao contrário do habitus daqueles, naturalizam suas
virtudes étnicas. Invocam, na sua positividade, a experiência partilhada de
colonização, no trajeto de descolamento a uma área inóspita, transformando
“natureza em cultura”. Nessas narrativas acionam estratégias
representacionais, tais como “a missão civilizadora”, “os construtores do
progresso”, as suas virtudes étnicas, as metáforas práticas, os idiomas da
etnicidade, expressos no tripé: família, religião e trabalho. Centro-me nesse
último, tomando-o enquanto idioma da etnicidade. O discurso prescritivo
elaborado pelas elites governamentais, nas primeiras décadas do século, foi
apropriado pelas elites locais para construir a identidade regional, identidade
essa construída em relação ao litoral e passou a ser empregada no sentido
de transformar o estigma da terra da barbárie no emblema de terra de
3
Segundo Bourdieu (1979:192), a dialética do opus operatum / modus operandi,
engendra continuamente metáforas práticas, isto é, “as transposições sistemáticas impostas
pelas condições particulares de sua tomada em prática...” .
5
trabalho4. Enfim, o trabalho passa a ser o idioma da etnicidade e com o qual
se distinguem dos brasileiros locais e do centro de poder distante.
No que consiste esse trabalho? É, por excelência, a categoria
empregada para se representarem e enaltecerem: avançaram no espaço
geográfico, venceram as matas, plantaram colônias e cidades. Respalda as
trajetórias ascendentes, numa deslocamento transversal, enquanto fruto do
trabalho. Esse seria o trabalho duro, “esse que adoça a vida” do ditado
alemão, de sol a sol, intensificando as jornadas de trabalho, auto-explorando
as suas forças plenas e marginais (Tepicht, 1973). É tomado na sua
positividade, num ethos que os diferenciava tanto dos brasileiros quanto da
fração urbana egressa da colônia. Estes não trabalham, ou seja, a atividade
laborativa não se reveste de penosidade.
Essa concepção de trabalho encontra recorrência, como a situação
estudada por Delbos (1982:749), quando trata da agricultura tradicional
enquanto sportive, sportiveté, denotando orgulho na força física, o prazer no
trabalho. A autora, no contexto estudado, remeteu a Bourdieu (1980:198),
no que diz respeito ao esforço físico, quando o camponês não trabalha no
estrito senso da palavra, ele trabalha como na distinção feita por Hesíodo entre
ponos e ergon. Trabalho é labuta e penosidade. Aqui se insere a crença da
excelência da condição camponesa, como a grande virtude étnica.
A história oficial local/ regional naturaliza a concepção de trabalho
dos camponeses descendentes de alemães, italianos e poloneses e exclui
aqueles que não partilham da mesma. Evidências dessa naturalização e
exclusão são encontradas nos registros de caráter utilitarista, apresentados no
discurso, nos “programas de percepção” (cf. Bourdieu 1996a:82), ou nos
marcos da “história feito monumento”, no amanho da terra, nos prédios, nas
placas, nas ruas, nas homenagens, etc. São mantidos no limbo aqueles que não
partilham dessa perspectiva. Silencia-se a respeito dos ofícios do campesinato
expropriado.
De modo esquemático, afirmaria que no Oeste Catarinense o espaço social
dos campesinatos locais traz a marca das oposições polares, do ponto de vista
étnico: de origem versus brasileiros. A estes últimos, enquanto minoria
social e numérica, pesa-lhes o silêncio oficial, e foram acionados unicamente à
medida que são o contraponto para a história utilitarista do colonizador. Tem
4
A resposta local, foi a ênfase ao trabalho, tomando oeste em relação à capital. Há um
silêncio em relação às demais áreas de Santa Catarina, tais como o Vale do Itajaí, ou o sul
do estado, áreas de colonização européia. Reivindicar-se como portador de um ethos de
trabalho não é exclusividade deste grupo. Os trabalhos de Seyferth (1982) apontam que na
região do vale do Itajaí tem ocorrido o mesmo.
6
mantido silêncio a respeito das alteridades regionais, ou seja, daqueles que
não partilham do mesmo código, daqueles que foram expropriados, daqueles
que ficaram à margem.
A respeito dos colonos de origem sulistas há farta produção
etnológica, históricas, sejam elas de cunho acadêmicas, sejam aquelas
laudatórias e/ou comemorativas. Além de escreverem a história local, do seu
ponto de vista, os descendentes de alemães e italianos, nos últimos anos, têm
manifestado uma revivescência étnica, no melhor estilo da “invenção da
tradição” (cf. Hobsbawm, 1984). Esta é verificada no aprendizado formal das
línguas alemã e italiana, da formação de corais cujo repertório privilegia
canções étnicas, com festivais de gastronomia e danças, com horários nos
programas de radiodifusão locais, com presença de cônsules alemão e italiano
nos diversos municípios.
A condição de colono-proprietário - de origem - esteve próxima a
uma sociodicéia, ou seja, na justificativa de sua situação, avaliada
positivamente. Advogava-se a qualidade de “construtor do progresso”, de ser
portador de “virtudes étnicas” e enaltecia a liberdade decorrente da
condição de colono, em oposição aos demais ofícios laborativos,
principalmente ao assalariamento. Igualmente, enaltecia sua condição de
pequeno agricultor em oposição à população dependente da grande
propriedade rural.
Aos colonos esse processo de colonização
assegurou a
possibilidade de obtenção de terras para permanecer na condição de pequeno
proprietário. No entanto, para além da ocupação física do espaço, uma fração
ascendeu, com trajetórias de reconversão, alcançando posições no espaço
social, político e econômico. De modo geral, colonos e ex-colonos
passaram a advogar-se construtores do “progresso”, narrando e registrando as
sagaranas de seus feitos e erguendo monumentos de auto-homenagem.
O trabalho tem sido o idioma de etnicidade acionado pelos
colonos de origem (Renk, 1997). Invocam suas atividades laborativas
enquanto trabalho, principalmente o ofício de colono. A categoria trabalho é
acionada enquanto fronteira étnica, pelos colonos de origem e por seus
descendentes, que ocupam as posições dominantes do espaço social. Utilizam
essa categoria para marcar sua distintividade social, afastando-os daqueles que
não trabalham.
Mesmo que para o colono o citadino de origem não trabalhe, este vale-se da
campesinidade internalizada. Aciona-na enquanto categoria étnica, plena de
virtudes. Insere-se aqui a migração de jovens da área rural para São Paulo e
outros centros, trabalhando em restaurantes. Há indicativos de reserva de
7
mercado para os filhos de colonos de Santa Catarina e Rio Grande do Sul:
atuarem como garçons nos restaurantes de São Paulo. “O pessoal das
churrascarias são todos de Santa Catarina ou do Rio Grande”, costumam dizer.
As preferências recaem nos filhos de colonos brancos. “Não querem muito
morenos”, afirmam. As alegações para a reserva de mercado, do ponto de
vista dos empregadores, estaria na preferência “por pessoas espertas e
trabalhadoras, porque os paulistas não gostam de trabalhar”. A preferência por
estes jovens rurais reside num aspecto constitutivo da cultura camponesa: a
auto-exploração (trabalhada por Tepicht, 1973) de suas forças plenas e
marginais e por serem reconhecidos como “bons trabalhadores”. Este
aspecto é similar ao já apontado (Renk, 1991), nas agroindústrias em Chapecó
e região. Hoje, a escolarização pode ser um elemento restritivo para o
ingresso no mercado de trabalho das agroindústrias, à medida em que exigem
a escolarização mínima de segundo grau. A crescente complexificação da
indústria faz com que estas dispensem os braços viris e passem a privilegiar
a formação escolar.
Por parte dos jovens que migram a São Paulo, para trabalhar em
restaurantes, a recusa à condição camponesa não deixa de ser contraditória.
Deixam a roça, negando a condição de colono, a subordinação e a renda
familiar indivisa. Para o empregador, a excelência do recrutamento está
exatamente na incorporação dos valores e das práticas camponesas, dentre
esses o da intensificação das atividades, resultando em alto grau de
auto-exploração. A socialização e a incorporação do habitus camponês será o
valor-mór. Esse capital incorporado, fruto da educação difusa, familiar, será
usado emblematicamente no contexto urbano, principalmente em grandes
centros, para se oporem àqueles socializados na cidade. É lícito tomar a
atitude frente ao recrutamente como uma reatualização das virtudes étnicas,
avaliadas como inerentes aos de origem. Este aspecto mantém parentesco
com outras situações, como no setor fabril, analisada por Seyferth, no vale
do Itajaí.
A jornada de trabalho não deixa de ser árdua, de doze a dezesseis
horas, em alguns casos, entrando às oito ou nove da manhã e com saída
após a meia-noite ou na madrugada. O recrutamento leva em conta a
disciplina internalizada a exemplo do que também ocorre nos quartéis. No
entanto, “os mais antigos” (avós) queixam-se de que os jovens não são
“obedientes”, como esperam. Há um consenso, na área urbana
que os
egressos da área rural são “obedientes”, “não respondem”, “cumprem ordens”.
Sempre haverá espaço para as exceções. No entanto, é um juízo formulado
relacionalmente, e a percepção é sempre relacional.
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O desenclave do mundo
Nas últimas décadas, a paisagem rural apresentou uma série de
modificações, alterando sua morfologia. Abreviadamente, aponto algumas
práticas que contribuíram para as novas incursões, no sentido de mão dupla,
num processo de circularidade (Ginzburg, 1987), onde mutuamente
modifica-se o espaço do colono e este contribui para alterar o da sociedade
circundante.
Hoje, o mundo tornou-se mais acessível que há alguns anos. Há maior
número de colonos e filhos destes que têm mundo. Para isto contribuíram as
novas formas de associativismo, a circularidade urbano-rural, as migrações
dos filhos de colonos, a face pública dos agricultores, através das inserções
nos movimentos sindicais e populares5. Ou seja, trata-se de movimento de
mão dupla: colonos inserindo-se no mundo e este imiscuindo-se na vida dos
colonos, desencadeando uma série de ações que afetam o substrato
morfológico, os vários sentidos e momentos da vida cotidiana na colônia.
Não pode ser desprezado o papel dos egressos da área rural de origem,
principalmente na formação de uma regional voltada para a recuperação das
histórias familiares com raízes na Europa. Nos últimos anos, essas frações
com maior grau de escolarização e ocupando espaços de relevância social,
têm demonstrado maior preocupação no “resgate” de suas origens. Nesse
sentido, há troncos familiares que
reúnem comemorativamente os
descendentes de um ancestral comum, rememorando os feitos da imigração e
da trajetória da família na América, pois, nesses eventos, são integrados os
descendentes que já migraram aos diversos Estados, ou à Argentina, ao
Paraguai e à Bolívia. Qualificam-se todos como parentes, pois descendem de
um tronco comum.
As frações letradas e elitizadas, têm demonstrado interesse em traçar as
genealogias 6 dos ancestrais, como uma tentativa de costurar os vínculos
5
Woortmann (1990:51), ao estudar as migrações enquanto estratégias de reprodução
social, apontou à dissolução da dicotomia rural-urbano, na unificação de experiências.
Movimento similar acontece no Oeste Catarinense.
6
Similar ao observado por Woortmann, também aqui se observa entre alemães e
italianos: “A memória dos membros da elite local é também um processo ideológico. Sua
construção, como disse, é encomendada ou orientada por genealogistas profissionais e
9
cortados com o país de origem, por ocasião da imigração. Similar ao
observado por Woortmann, também aqui se observa entre alemães e
italianos:
“A memória dos membros da elite local é também um processo
ideológico. Sua construção, como disse, é encomendada ou orientada
por genealogistas profissionais e difere daquela dos colonos ainda de
outra forma: ela redescobre a Alemanha e dela extrai um herói
particularizado, o herói de uma família específica. Ela é escrita,
formando livretos cujo conjunto se soma a “histórias da colonização
alemã”, isto é, do processo imigratório em geral desde o ponto de vista
dos descendentes atuais dos imigrantes, onde o herói é a cultura
germânica, responsável pelo progresso”(Woortmann, 1994:116).
Por parte dos italianos, trata-se daqueles que numa trajetória
transversal voltaram-se ao comércio e indústria local. Através de órgãos de
classe, com apoio do Estado, inspirados nos resultados de desenvolvimento da
“Terceira Itália”, vem recebendo assessoria de Institutos italianos, no intento
de “fortalecer a região”, a exemplo da Emília Romagna. Além dos “fóruns” de
desenvolvimento regional” que esse movimento tem inspirado a preocupação
na trajetória de imigração e constituição do grupo, do aprendizado da língua
italiana e outros congêneres.
Principalmente, dentre os italianos, passa a haver o acionamento da
identidade regional européia de procedência. Se, enquanto agricultores eram
genericamente italianos e de origem, para a elite urbana, enquanto forma de
distinção, vale-se da regional: friulano, vêneto, lombardo, etc. Acresce a
região de origem, após investigação de suas raízes na Europa. Lembro, o
presidente da atual Associação Vêneta, local, há sete anos, numa história de
vida coleta, em nenhum momento referia-se à identidade regional, unicamente
à “condição italiana”, reiterada várias vezes, com todas as virtudes étnicas
inerentes, naturalizadas. Posteriormente, houve a reconversão à identidade
vêneta. Ou seja, as identidades se entrelaçam: de origem, italiano e vêneto.
Dentre os camponeses, em nenhum momento foi acionada identidade
regional ou faccional. Vieram da Europa, e aqui italianos ou de origem. Nas
tentativas de reafirmar essa identidade, passavam a utilizar decalques nos
difere daquela dos colonos ainda de outra forma: ela redescobre a Alemanha e dela extrai
um herói particularizado, o herói de uma família específica. Ela é escrita, formando
livretos cujo conjunto se soma a “histórias da colonização alemã”, isto é, do processo
imigratório em geral desde o ponto de vista dos descendentes atuais dos imigrantes, onde o
herói é a cultura germânica, responsável pelo progresso”(Woortmann, 1994:116).
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automóveis, com os dizeres grafados em dialeto, cuja ortografia causa arrepios
aos letrados italianos: “Somos italianos, graças a Deus”.
Movimento similiar encontra-se entre os alemães, sem acionar a
identidade regional européia. Esses movimentos, tem intensificado os
intercâmbios entre elementos da região com alemães e italianos. Tornam-se
frequentes as visita de alemães e italianos à região, para reaprender a
“tradição” européia perdida e aqui encontrada com 100 anos de atraso, num
certo “bucolismo” de aldeias alemãs e italianas que não mais existem, somente
enquanto formas discursivas. Desse intercâmbio resultou na constituição de
um grupo, com criação de símbolos e a preocupação desses descendentes
“reinvenção de suas tradições” e de resgatar a história da imigração e
colonização do grupo.
Na área comercial e industrial intensificam-se os intercâmbios com
órgãos e empresas alemãs e italianas. Criam-se círculos friulanos, vênetos,
trentinos na região oeste, recebendo recursos financeiros das regiões italianas,
para o aprendizado da língua e distribuição de bolsas de estudo, para as quais
exigem a comprovação de emigração de ancestrais da região. Enfim, são
regiões italianas financiando atividades culturais locais, criando um
sincretismo cultural e identitário. Em alguns municípios é prática nos
momentos cívicos, tais como os desfiles escolares de 7 de Setembro, alunos
marcharem com símbolos nacionais e distintivos dos Círculos Friulano,
Trentinos e outros. Esses momentos são registrados, para envio aos órgãos
financiadores europeus.
Há, de certa forma, um movimento duplo: de um lado, as regiões italianas
enviam recursos para os círculos, para ensino da língua, de atividades
folclóricas e, de outro lado, “vêm ao Brasil para aprender tradições já
esquecidas na Itália”.
Localmente, observa-se um esforço enorme em “resgatar as tradições”,
mas que estão no mais perfeito estilo de “invenção das tradições”. A camada
urbana vem adquirindo instrumentos para manuseio para fabrico de vinho
caseiro, pães caseiros, a exemplo dos ancestrais. Há uma procura desenfreada
por objetos que retratem a cultura material dos ancestrais, numa verdadeira
peregrinação e disputas pelos mesmosd.
A identidade regional assume uma situacionalidade que serve de base
para a construção de uma identidade nacional, híbrida, etnocêntrica, no
estilo: “Se o Brasil fosse unicamente de alemães e italianos, seria diferente”.
Quem a emite, entende-a enquanto a fala autorizada, prescritiva e
fundamentada na história do grupo. A linha divisória passa pela ideologia
de colonização em voga, no modelo e ethos de colonizador. O papel da etnia
adquire um valor de categoria discursiva e organizadora das formas de
11
falar, dos sistemas de representações e das práticas dos de origem. Não deixa
de ser uma “ficção bem fundamentada” de uma “comunidade imaginada”.
Cabe a pergunta, de que modo teto político (cf. Gellner) pode abrigar o
híbrido? Quando a fala é emitida pela elite regional, com capital e
possibilidades de acionar as suas diversas identidades étnicas, há uma
tendência encompassadora em excluir a hibridez, em tornar a categoria
discursiva homogêna.
No entanto, se a fala partir de frações egressas da área rural de origem,
vinculados à Igreja Católica e à Igreja Evangélica Luterana [protestantismo de
imigração] há um esforço enorme em trazer à tona a fala, a história, a cultura na sua positividade – dos brasileiros. A Igreja Católica, através da CNBB,
nas Semanas Sociais que ocorreram na região, tem feito esforço em pôr em
evidência sua “dívida social” para com os caboclos. Por parte da Igreja
Evangélica [protestantismo de imigração] ocorre o mesmo. Participa das
Semanas Sociais, numa perspectiva ecumênica, e tem subsidiado pesquisas
locais para “resgatar a história dos índios e caboclos. São indicadores de que
os elementos híbridos possam encontrar abrigo nas narrativas locais, na
construção da identidade regional e nacional dos grupos.
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Arlene Renk
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