Imprimindo - Revista Brasileira de Arbitragem
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Imprimindo - Revista Brasileira de Arbitragem
Doutrina Nacional O Instituto da Arbitragem na Dinâmica do Processo de Recuperação de Empresas RONALDO VASCONCELOS Advogado em São Paulo, Sócio do Escritório Lucon Advogados, Mestre e Doutorando em Direito Processual na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Professor do Departamento de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. RESUMO: O principal objetivo deste estudo foi o de analisar a interface estabelecida entre a arbitragem e o instituto de recuperação em três situações distintas: (i) recuperação extrajudicial com estipulação de cláusula arbitral; (ii) deferimento de recuperação judicial após processo arbitral já instalado; e (iii) processo arbitral para processar recuperação judicial a ser estabelecida entre devedor e credores. A inclusão de convenção de arbitragem em plano de recuperação extrajudicial traduz verdadeira faceta da autonomia da vontade das partes. Por outro lado, a falência e a recuperação judicial tutelam, em grande parte, interesses públicos, deixando espaço reduzido para a instituição da arbitragem, destinada à solução de litígios relativos a direitos disponíveis. ABSTRACT: The main objective of the present essay is to analyze the relationship between Arbitration and the Bankruptcy Institute on three distinct situations: (i) the extrajudicial recovery with the stipulation of an arbitral clause; (ii) the approval (granting) of the judicial recovery after the beginning of the arbitral procedure; (iii) an arbitral procedure to generate the judicial recovery as a private negotiation established between the debtor and the creditors. The possibility of convention on the extrajudicial recovery allows the parties involved in the litigation to negotiate a settlement to preserve her faculties and interests. On the other hand, the bankruptcy and the judicial recovery are institutes that protect the public interests, leaving a small space to the arbitral procedure, since the arbitration is a form of alternative dispute resolution related to unalienable rights. SUMÁRIO: 1 Apresentação; 2 Da autodefesa ao monopólio estatal; 3 A eficiência nos processos falimentares e de recuperação de empresas; 4 A lei de recuperação e falências e suas influências no mercado; 5 A arbitragem em questões relacionadas à falência e liquidações extrajudiciais; 6 A arbitragem em questões relacionadas à recuperação extrajudicial; 7 A arbitragem em questões relacionadas à recuperação judicial; Conclusões. 1 APRESENTAÇÃO O objetivo do presente artigo é desenvolver análise relacionando o instituto da arbitragem com a dinâmica do novo processo de recuperação de empresas instituído pela Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 (Lei de Recuperação e Falências), em ambas as modalidades de recuperação financeira do devedor - judicial e extrajudicial. Pretende-se examinar os efeitos jurídicos de eventual processamento da recuperação judicial em arbitragem já instaurada ou a instalar, bem como verificar a viabilidade de o processamento integral da recuperação judicial ser submetido à arbitragem. 30 RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL Portanto, a discussão acerca da recuperação judicial ligada à arbitragem envolve três situações distintas: (i) recuperação extrajudicial com estipulação de cláusula arbitral; (ii) deferimento de recuperação judicial após processo arbitral já instalado; e (iii) processo arbitral para processar recuperação judicial a ser estabelecida entre o devedor e seus credores. Para alcançar o objetivo desse estudo, procurou-se compilar, de modo ordenado, as conceituações e classificações ofertadas pela legislação concursal específica (Lei de Recuperação e Falências), bem como pela insipiente doutrina acerca da interface estabelecida entre a recuperação judicial e a arbitragem, fornecendo interpretações e conclusões a respeito dos temas e textos abordados. O que se percebe é que a doutrina ainda não se animou a desenvolver o tema da disciplina da crise econômica da empresa sob o prisma arbitral. Talvez por não vislumbrar espaço para a aplicação da arbitragem ao instituto da recuperação judicial. 2 DA AUTODEFESA AO MONOPÓLIO ESTATAL As situações da vida e o convívio entre pessoas acarretam conflitos que, muitas vezes, por não vislumbrarem uma solução negociada, acabam em impasses. Nas origens, visando a solucionar esses impasses, os indivíduos envolvidos utilizavam-se das próprias forças, impondo-se covardemente aos mais fracos. Inexistia, nessa época, qualquer ingerência do Estado nos negócios ou na vida das pessoas. Desconhecia-se a figura do Estado com poderes suficientes para substituir a vontade dos particulares e sujeitá-los às suas decisões. Para iniciar nosso estudo sobre os reflexos da arbitragem na recuperação de empresas é necessário realizarmos pequena digressão acerca da origem dos procedimentos concursais. Na antiguidade, a execução do devedor não se restringia apenas ao seu patrimônio, e o credor podia não só apossar-se de seus bens, como também da sua pessoa, reduzindo-o à condição de escravo. Na Roma antiga, quando vigorava a Lei das XII Tábuas, o credor detinha poder total, não só sobre os bens, mas também sobre a pessoa do devedor. A Tábua III proclamava: "Aeris confessi rebustque jure judicatis tringinta dies justi sunto. Post deinde manus injectio esto, in jus ducito" 1. RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL 31 Com o passar do tempo, porém, e com o crescente reforço da organização política, há um gradativo aumento da participação do Estado na solução de litígios, verificando-se, em consequência, uma paulatina restrição ao campo da autodefesa. Quanto mais o Estado se expande, por meio da jurisdição, impedindo a realização privada do direito, menor é a possibilidade de se exercer a ação de direito material sem invocação da proteção jurisdicional 2. Só no Norte da Itália, surge com extrema nitidez a execução de caráter coletivo, remanescendo ainda as penas severíssimas, para os devedores falidos, sendo que a falência, por si só, constituía-se crime. A finalidade primeira era a liquidação do patrimônio do devedor, por meio da execução coletiva 3. Hoje, diante de situações de insatisfação, o Estado oferece aos sujeitos envolvidos um caminho civilizado para a tentativa de solução, facultando às partes ou mesmo a uma única delas, independentemente da disposição da outra, socorrerem-se do Poder Judiciário mediante o processo. 32 RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL Com o passar dos tempos, inúmeras transformações operar-se-ão, não de maneira sucessiva, evolutiva ou linear, levando o instituto falimentar a se preocupar com a boa ou a má-fé por parte do falido, a criar instrumentos para prevenir ou remediar o estado de desequilíbrio nas contas do devedor (o que dá ensejo para o aparecimento das concordatas preventivas - sucedida pela atual recuperação), até à própria resolução de se submeter todo o processo de falência e de concordata à autoridade judicial, com progressiva perda de prerrogativas por parte dos credores e devedores em favor do juiz. O instituto da falência apresentou-se, desde o início, com caráter repressivo. Seu propósito era o de punir o devedor que iludira a confiança de outros, ficando marcado com a infâmia. O maior problema é que, com isso, agravava-se dia-a-dia a situação do devedor, principalmente aquele que sempre agira honestamente, o qual ficava apavorado com a simples e vaga ideia de cair em falência. Por esses e outros motivos passou-se a cogitar meios que moderassem a severidade para com os devedores honestos, mas que, ao mesmo tempo, não sacrificassem os direitos e interesses dos credores e de terceiros. Surgiram, então, os seguintes institutos: (i) moratória, traduzido na dilação de prazo concedida ao devedor para solver as suas obrigações; (ii) cessão de bens, consistente na entrega dos bens do devedor aos credores; (iii) liquidação judicial, que era processo congênere ao da falência, mas que não acarretava o desapossamento dos bens do devedor e, finalmente, (iv) a concordata preventiva, que consistia em um favor legal concedido pelo Estado para os comerciantes em crise financeira. No direito romano, não havia a concordata com o devedor insolvente 4. Houve, todavia, dois institutos que se aproximavam da concordata judicial, quais eram: o (i) inducioe quinquennales e (ii) o pactum ut minus solvatur, este último colocado pela doutrina como o que mais se assemelha ao instituto da concordata preventiva 5. Por meio desse instituto, os credores decidiam a concessão ou não do benefício por maioria computada pelo valor dos créditos. Ressalte-se que para se operar a validade e a eficácia desse acordo, necessária a homologação pelo magistrado, atingindo tanto os credores quirografários, como aqueles que gozassem de privilégios (garantia real, por exemplo) 6. RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL 33 Tudo isso porque se verificou que era mais vantajoso deixar o devedor à frente de seus negócios, sendo que nesse caso a minoria teria que acatar a concessão do benefício pela maioria (princípio da comunhão de interesses), desde que o prazo de moratória não excedesse cinco (5) anos. Em resumo: chegou-se à conclusão de que era sempre mais seguro cobrar uma quantia menor ou conceder prazos ao devedor, do que correr o risco de nada receber. Atualmente, mostra-se inaceitável aos olhos do leigo, como aos do iniciado na ciência jurídica, que o titular de um direito de crédito, a despeito de aguardar o moroso curso do processo de recuperação, muitas vezes não consiga, ao final, receber o que a lei lhe assegura, mercê da prática do ato ímprobo do devedor e do dano marginal do processo 7. Tal conjuntura, ora vulgarmente expressa no pensamento popular "ganha, mas não recebe", contribui para a descrença na justiça e, consequentemente, para o aumento da chamada situação de litigiosidade contida 8, a qual, além de atormentar o convívio em sociedade, coloca em cheque a serventia do processo e a autoridade do ordenamento jurídico 9. A duração dos processos, considerada excessiva, explica a preferência de inúmeros litigantes pela utilização de vias extrajudiciais, encaradas sob a nomenclatura de "Resolução Alternativa de Conflitos" (ADR’s). 34 RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL A existência de meios alternativos de solução de conflitos, por meio dos quais os impasses são colocados perante terceira pessoa (que não o Poder Judiciário), tal como ocorre com a arbitragem, a conciliação e a mediação, apresentam grande utilidade social 10 . É certo também que o direito estimula a autocomposição dos sujeitos em embate, seja por meio da transação, seja por meio da renúncia ou da submissão. Dentro desse contexto, a ideia de resolver conflitos de direitos e de interesses mediante arbitragem, como alternativa para a solução judicial, vem sendo muito enfatizada em diferentes partes do mundo 11. Entretanto, conforme será exposto no desenvolvimento do presente estudo, questiona-se veementemente a possibilidade de se submeter integralmente o processo de recuperação judicial à arbitragem. 3 A EFICIÊNCIA NOS PROCESSOS FALIMENTARES E DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS A eficiência do sistema deve ser o objetivo norteador de qualquer processo em que se pretenda um mecanismo justo, célere e que preserve, na medida do possível, a maximização da riqueza social. A reforma de qualquer lei concursal, diploma central na preservação dos direitos de propriedade, deve necessariamente ser acompanhada de alguns fatores, tais como o treinamento dos juízes, a implantação de mecanismos de governança corporativa na administração da empresa em recuperação (ou até mesmo falida), bem como o fortalecimento dos direitos de propriedade ao longo do processo, entre tantas outras prioridades. E o assunto é relevante para a economia, em especial em épocas de crise como a que enfrentamos desde o final de 2008. As companhias precisam falir porque, em alguns momentos, sofrem da incapacidade crônica de honrar seus compromissos financeiros, e isso, naturalmente, é parte do sistema capitalista. Nas situações de falência, classicamente, somente duas hipóteses de solução se apresentam aos credores: (i) ou podem executar suas respectivas garantias; (ii) ou podem vender todos os ativos para que se efetue pagamento proporcional ao passivo. É nesta última que a antiga lei falimentar brasileira se concentrava (Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945), principalmente em razão de ter como objeto o comerciante da década de 40 - muito distinto do empresário do século XXI. RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL 35 Aliás, a maior prova da inadequação do mencionado instituto aos seus objetivos é o fato de a experiência da economia moderna permitir colher o testemunho de que, quando a insolvência (ou mesmo a insolvabilidade) atinge um empreendimento do porte de uma grande empresa, todos se convencem (credores, governo e a coletividade em geral) de que a pior solução para o caso será a falência. O consenso indica que, instaurando-se a falência, todos os valores sociais, todos os interesses econômicos, estarão definitivamente perdidos. Portanto, a doutrina comercialista de forma uníssona aponta para que todos os esforços sejam desenvolvidos em favor da preservação da empresa, e, com isso, dos empregos diretos e indiretos que ela gera, dos tributos que ela recolhe e da circulação de riquezas que propicia. Afinal, como lembra Giuseppe Ragusa Maggiore, a empresa constitui o ponto de encontro de vários interesses e "que a falência destrói na maior parte dos casos" 12. Para tanto, segundo a doutrina econômica especializada 13 , podem ser estabelecidas três metas principais concernentes a bons procedimentos concursais: (i) deve resultar em uma solução eficiente; (ii) deve preservar os efeitos vinculantes das dívidas e penalizar os administradores e acionistas causadores do problema aos credores nas várias fases do processo; (iii) deve oferecer, no entanto, incentivos de modo que, ao preservar as prioridades relativas, conte com o apoio dos acionistas e dos trabalhadores, ou, ao menos, que os interessados não atrapalhem uma solução em que, ao término do processo, haja mais ganhadores do que perdedores. Nesse sentido, duas sugestões se mostram importantes. Em primeiro lugar, revisitar o instituto do concurso de credores (o que efetivamente ocorreu na Lei de Recuperação e Falências ao privilegiar os créditos com garantia real em detrimento dos créditos tributários art. 83, II e III), principalmente se a interrupção da atividade econômica da empresa em crise for mais prejudicial ao interesse público do que a habilitação de seu crédito tributário. Em segundo lugar, permitir maior participação dos credores (os verdadeiros interessados no processo), com vistas a garantir que sejam capazes de definir o destino daquilo que passou a ser deles. Isso também foi adotado na Lei de Recuperação e Falências, tendo em vista a adoção de um regime de comunhão de interesses para a deliberação sobre a concessão ou não do instituto da recuperação. 36 RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL Aliás, em um dos trinta e cinco objetivos marcados para a eficiência do processo falimentar nas "diretrizes" formuladas pelo World Bank, propõe-se a conversão de dívida em participação acionária, "debt equity swap" (com classes de acionistas diferenciados e com opções de ações aos credores menos privilegiados), o que é um incentivo interessante para a recuperação da empresa 14 . Em outras palavras, vai-se o empresário, mas permanece o negócio, conforme adotado no art. 50, X e XVI, da Lei de Recuperação e Falências 15. Até mesmo porque, com a preservação da entidade econômica, deliberada de acordo com um regime de comunhão de interesses, os credores poderiam trocar dívida por capital (saindo da condição de credores para a de sócios); o que, em muitos casos, traduz uma situação mais vantajosa do que se fossem apenas credores. A aproximação entre Direito e Economia é uma dinâmica que se impõe por conta das novas e relevantes questões que emergem do cotidiano. Implica reconhecer que a distância entre as duas ciências é cada vez menor. Isso leva à conscientização de que o processo judicial não vale tanto pelo que é, mas, fundamentalmente, pelos resultados que produz, determinando o reexame dos institutos jurídicos, a fim de sintonizá-los com a realidade do mercado. Esse, por sua vez, também é uma instituição que necessita de ordenamentos previsíveis para garantir a tão almejada segurança, racionalidade e eficiência alocativa do capital. Assim, o legislador disponibilizou no art. 50 um rol exemplificativo de instrumentos econômico-financeiros, administrativos e jurídicos, que normalmente são empregados na reorganização voluntária de empresas, com o objetivo de, com isso, propiciar "fôlego" para o devedor continuar presente e atuante no mundo econômico. RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL 37 Em realidade, esses instrumentos previstos no art. 50, se aplicados isoladamente, talvez não sejam aptos a propiciar a recuperação da empresa em crise. Já, se combinados, poderão permitir uma efetiva recuperação. Isso posto, a primeira e tradicional modalidade é a "concessão de prazos e condições especiais para pagamento das obrigações vencidas ou vincendas". Logicamente, é a que mais se aproxima do antigo instituto da concordata preventiva, por se tratar da prorrogação de prazos e remissão parcial das obrigações. Tal modalidade tem o condão de efetivamente permitir a reestruturação da atividade empresarial, com a redução de custos com empréstimos bancários e a consequente disponibilização de recursos em caixa para novos investimentos. Destacam-se, como novas modalidades, a utilização dos conhecidos institutos da "cisão, incorporação, fusão ou transformação de sociedade, constituição de subsidiária integral, ou cessão de cotas ou ações", reguladas pela lei societária (Lei nº 6.404/1976). Outro significativo meio de recuperação previsto pelo referido art. 50 é de "constituição de sociedade de credores". Tal instituto tem por objetivo criar sociedade credora única com o propósito específico de organizar a administração dos múltiplos créditos, mediante sua conferência ao capital da nova sociedade. Essa medida propicia aos acionistas o eventual recebimento de dividendos, na proporção dos créditos aportados, e, sobretudo, a capacidade de intervir na recuperação de forma mais efetiva e uniforme, inclusive com aporte de capital-financeiro a favor da empresa em crise. Enfim, muitos são os instrumentos disponibilizados pelo relevante art. 50 para viabilizar a recuperação da empresa em dificuldades. Insista-se que são instrumentos que, isoladamente, não levam à recuperação da empresa. De qualquer forma, impõe-se sua contextualização com a efetiva viabilidade econômica do plano de recuperação, mediante planos de negócios e operações muito bem discriminados para salvar a empresa em virtude da importância do ente na comunidade onde atua. 4 A LEI DE RECUPERAÇÃO E FALÊNCIAS E SUAS INFLUÊNCIAS NO MERCADO Com quase doze anos de tramitação no Congresso Nacional, mais de cinco substitutivos e quatrocentas e oitenta emendas depois, entrou em vigor, no dia 9 de junho de 2005, a Lei de Recuperação de Empresas e Falências (Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005). 38 RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL Por meio dela há uma mudança substancial nos efeitos da insolvência, se comparada com a antiga Lei Falimentar de 1945, que pelo seu caráter sancionatório punia não somente o empresário, mas, sobretudo, a própria empresa, que era imediatamente fechada e lacrada, levando à deterioração de seus ativos (transformados em carcaça nos longos anos que precediam a sua venda judicial). Nessa punição, todos os empregos eram cancelados, bem como afastada toda a variada atividade profissional dos terceiros que girava em torno da empresa judicialmente destruída. O caráter draconiano da antiga lei, que se viu encerrada nos sessenta anos de sua aplicação, destruiu empresas da maior importância para o país, pois o instituto da concordata não se adequava à realidade das rápidas relações comerciais, não fazendo a adequada separação da culpa do empresário e a sobrevivência da empresa, esquecendo-se que o ente produtivo não comete crimes falimentares atribuíveis aos seus donos. Tinha o antigo diploma, portanto, um caráter medieval e patrimonialista. Além de punitivo, não levava em conta o valor dos intangíveis das empresas falidas, fazendo desaparecer com elas as suas marcas e o seu nome comercial. Mas a Lei de Recuperação e Falências não visa somente à continuação do negócio ou à preservação da empresa. Seus princípios foram substancialmente alterados, apontando para conceitos modernos, utilizados por legislações de países de economia pujante, tais como a França, EUA, Espanha e Portugal. Portanto, deve ser encarada dentro de um novo contexto, não somente liquidatório, mas principalmente como uma "nova disciplina jurídica das empresas em crise", como bem afirmado por Nelson Abrão já em 1985 16. Enfim, não se pode aceitar que a empresa é um ente descartável. Tanto isso é verdade que a valiosa jurisprudência de nossos Tribunais vinha destoando das disposições legais do diploma legal anterior, garantindo muitas vezes a continuação dos negócios para a realização da função social da empresa. Mas a jurisprudência, por mais valiosa que fosse, não era capaz de garantir a mudança que o mercado desejava. Isso porque o mercado, assim como qualquer outra instituição jurídica, necessita de comportamentos previsíveis para garantir a tão almejada eficiência alocativa do capital. Tudo isso porque o risco da atividade empresarial deve residir na jogada do agente e não nas "regras do jogo" 17. RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL 39 Finalmente, depois de várias tentativas, o Brasil está diante de uma concreta perspectiva de tratamento positivo das crises econômico-financeiras das empresas. A Lei de Recuperação e Falências, agora em vigor, procura, sempre que possível, evitar o desaparecimento de unidades produtivas. A razão de seu surgimento está no art. 47, que assim dispõe: "A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica". A Lei de Falências revogada previa o instituto da concordata preventiva que consistia em um favor legal concedido pelo Poder Judiciário para aqueles empresários que se encontravam em situação de crise financeira. Tratava-se de uma verdadeira "moratória legal", concedida pelo período de dois (2) anos e que geralmente se estendia por outros anos a fio, sem qualquer pagamento aos credores, finalizando com a inevitável decretação da quebra. Com a edição da Lei de Recuperação e Falências, em lugar da vetusta concordata preventiva, o legislador disponibilizou institutos para a efetiva recuperação da empresa e a superação de crises econômico-financeiras. São eles: a recuperação judicial e a extrajudicial. Em realidade, todo o sistema foi significativamente alterado, na medida em que, pelo sistema anterior, o sacrifício imposto aos credores já vinha definido pelo legislador e era de escolha unilateral do devedor (prazo de pagamento em dois anos e correção dos valores com juros de até 12% a. a.), enquanto, na recuperação, o sacrifício será delimitado pelo plano de recuperação, que impõe a efetiva concordância e participação dos credores. No instituto da recuperação extrajudicial se verifica um modelo que visa a negociar os créditos dos mais relevantes credores. Trata-se de instituto eminentemente contratual. Já na recuperação judicial, verifica-se um processo mais formal e controlado pelo Poder Judiciário, objetivando que os credores aprovem um plano de recuperação apresentado pelo devedor de acordo com o regime de comunhão de interesses (prevalência da maioria). Não obstante a adoção desse princípio da conservação da empresa, não se pode aceitar um mecanismo indiscriminado para manter qualquer atividade econômica. A experiência mostra que a extinta concordata preventiva era, muitas vezes, ajuizada justamente para preparar a empresa para o processo falimentar. Logo, a afirmação, até hoje tida como verdadeira, de que "ninguém ganha com a falência" é relativa. Isso porque, no presente regime normativo, a rápida liquidação da empresa pode ser benéfica à comunidade. 40 RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL E o art. 75 da nova Lei confirma esse entendimento ao pontuar que "a falência, ao promover o afastamento do devedor de suas atividades, visa a preservar e a otimizar a utilização produtiva dos bens, ativos e recursos produtivos, inclusive os intangíveis, da empresa". Portanto, deve-se ter em mente que a recuperação só será oportuna se os custos sociais e econômicos com a conservação da empresa forem menores do que sua rápida liquidação. Desse modo, somente a real viabilidade econômica da empresa em dificuldade pode legitimar a aplicação de um plano visando à sua recuperação. Assim é que, em face do relevante interesse público que a preservação da atividade econômica organizada ostenta, a atuação do juiz no processo deverá ser fundada no referido art. 47 da Lei de Recuperação e Falências, no seu amplo alcance, capaz de até mesmo suspender a execução de garantias vinculadas aos empréstimos e contratos financeiros, desde que essa suspensão seja imprescindível para a recuperação da empresa em crise. Ademais, deve sempre ser levado em conta o regime de comunhão de interesses dos credores adotado pela Lei de Recuperação e Falências, fazendo com que a vontade da maioria prevaleça sobre a minoria, sempre visando ao bem maior do interesse coletivo da preservação da empresa. 5 A ARBITRAGEM EM QUESTÕES RELACIONADAS À FALÊNCIA E LIQUIDAÇÕES EXTRAJUDICIAIS A questão que ora se coloca, a fim de pontuar a linha de raciocínio a ser desenvolvida no presente artigo, especialmente no que diz respeito à análise da eventual interface a ser estabelecida entre a arbitragem e o instituto da recuperação, diz respeito à possibilidade de algumas questões incidentais do processo falimentar serem ou não solucionadas por meio da arbitragem 18. Com isso não se discute, eventualmente, que o próprio processo falimentar seja submetido ao procedimento arbitral. Até mesmo porque, em se tratando de processo falimentar pendente, com a consequente perda pelo falido da disponibilidade da administração de seus bens (LRF, art. 103), não há como celebrar convenção de arbitragem válida, uma vez que esta inequivocadamente exige que os seus objetos sejam direitos patrimoniais disponíveis 19 . Como se isso não bastasse, a própria arrecadação dos bens da empresa falida acarreta a indisponibilidade desses direitos 20. RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL 41 Discute-se especificamente nessa oportunidade a posição devidamente fundamentada em artigo denominado "A arbitragem, a falência e a liquidação extrajudicial", publicado pelo Professor Donaldo Armelin, por meio do qual afirma peremptoriamente que a decretação da falência não impediria a massa falida, representada por seu administrador, de cumprir o pactuado em cláusula compromissória firmada antes da decretação da quebra pelo falido para solucionar conflito de interesse estabelecido com terceiro 21. Assim, ainda segundo o ilustre autor, não haveria motivo para extinguir ou sobrestar a arbitragem em curso na dependência do desenvolvimento do processo de falência, bastando a mera sucessão da parte contratante (falido) por aquela que a sucedeu nos direitos e obrigações decorrentes da íntegra convenção de arbitragem pactuada (administrador judicial). No que diz respeito às arbitragens ainda não iniciadas, mas com convenção de arbitragem firmada antes do advento da falência, impor-se-ia o direito adquirido à instauração da arbitragem, seu processamento e conclusão com a prolação da sentença arbitral, competindo ao tribunal arbitral decidir se mantém ou não sua competência para solucionar o litígio 22. À luz dos interesses multifacetários do processo falimentar, bem como da disciplina dos contratos bilaterais firmados pelo devedor antes da decretação da falência, ousamos discordar dessa posição. A convenção de arbitragem é o acordo de vontades pelo qual as partes se vinculam à solução de litígios determinados ou determináveis, presentes ou futuros, por meio de juízo arbitral, sendo derrogada, em relação aos mencionados litígios, a jurisdição estatal. Em outras palavras: a convenção de arbitragem pode ser considerada como a forma pela qual se institui o juízo arbitral, sendo suas duas espécies (compromisso arbitral e cláusula compromissória - LA, arts. 4º e 9º) modos distintos de visualização do mesmo fenômeno 23. 42 RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL Na convenção de arbitragem, sem dúvida existe um negócio jurídico celebrado entre as partes, tendo como pressuposto um acordo de vontade entre elas, dizendo respeito a objetos estipulados pelas partes de acordo com o ordenamento jurídico utilizado 24. O compromisso arbitral é a forma de instituição da arbitragem tradicionalmente utilizada quando o litígio já existe, isto é, existindo o conflito entre as partes, ela pode definir a arbitragem como forma de solução. Já a cláusula compromissória se caracteriza como a convenção de arbitragem anterior ao litígio, por ser prevista no momento em que as partes celebram um contrato e cujo cumprimento se espera. Não se nega, portanto, o caráter contratual da convenção de arbitragem, assim entendida a cláusula compromissória e o compromisso arbitral, nos termos dos arts. 3º, 4º e 9º da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996 (Lei de Arbitragem) 25. No entanto, com o objetivo de sustentar a divergência manifestada no presente estudo, verifica-se que o art. 117 da Lei de Recuperação e Falências estabelece a regra geral dos contratos bilaterais, os quais não se resolvem com a decretação da quebra e podem ser cumpridos pelo administrador judicial para evitar prejuízos à massa falida 26. RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL 43 Talvez resida aí o ponto central para a melhor interpretação da questão, uma vez que a técnica legislativa reservou ao administrador judicial a decisão sobre a resolução da relação contratual, a qual deve se pautar pela conveniência ou não da manutenção do contrato para a liquidação e a conservação dos ativos 27. Isso não quer dizer que a opção outorgada ao administrador judicial em continuar a execução dos contratos bilaterais seja livre, posto que a autorização somente se dará nas hipóteses em que o cumprimento for capaz de reduzir ou evitar o aumento do passivo da massa falida. Ou, ainda, quando se mostrar necessário à manutenção e preservação dos ativos da massa falida. Seguindo a tendência geral da lei de aumento da participação dos credores nas decisões que envolvem questões da falência (regime da comunhão de interesses), verifica-se que o administrador necessitará de autorização do Comitê de Credores, quando formado, para dar cumprimento a contrato bilateral. Na inexistência de tal órgão, a interpretação cumulada dos arts. 28 e 117 da Lei de Recuperação e Falências outorga ao juiz a tarefa de anuir ou não com a pretensão do administrador de declarar a resolução ou manutenção do "contrato" (LRF, arts. 28 e 117) 28. Portanto, diferentemente da premissa adotada pelo Professor Donaldo Armelin, no sentido de estar "pouco importando o estado atual da liquidação da empresa, o tribunal arbitral será sempre competente para prolatar a sentença arbitral" 29 , verifica-se que a competência da fundamentada decisão de levar a cabo ou não a cláusula compromissória ou o compromisso arbitral previamente estabelecido será resolvida no âmbito da falência e não do Tribunal Arbitral. Para infirmar esse conceito, aqueles que defendem a possibilidade de aplicação da arbitragem nesses casos destacam, com base no postulado da kompetenz-kompetez, que questões atinentes à existência, validade e eficácia da cláusula compromissória deverão ser apreciadas pelo árbitro, a teor do que dispõem os arts. 8º, parágrafo único, e 20 da Lei de Arbitragem. 44 RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL Não se desconsidera esse entendimento adequado; no entanto, ao analisar a questão sob o prisma objetivo do melhor proveito econômico para a massa falida, deverá o administrador judicial submeter sua pretensão ao Comitê de Credores, o qual concordará ou não com a decisão, extrajudicialmente. Na hipótese de inexistir Comitê de Credores instaurado, cabe ao juiz analisar essa questão. Se a resposta for negativa, ainda assim resta ao sujeito interessado no cumprimento da cláusula compromissória o ajuizamento do processo judicial estipulado no art. 7º da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996 (Lei de Arbitragem) 30 , visando a compelir a massa falida à instituição da arbitragem por meio de sentença. No entanto, é de se ressaltar que a competência para a demanda é do próprio juízo universal falimentar, competente para todas as novas ações sobre as quais haja interesse da massa falida (LRF, art. 76). Sendo assim, caberá ao juiz da falência presidir os trabalhos em audiência e julgar a pretensão, o que pode figurar um tanto quanto peculiar, em se tratando que o próprio juiz já poderá ter se manifestado contrariamente. Tudo dependerá da força dos argumentos técnicos do requerente no sentido de demonstrar a vantagem da instituição da arbitragem ou inexistência de prejuízo para a massa falida. Ainda que eventual posição favorável ao cumprimento da cláusula compromissória seja emitida pelo administrador judicial, devidamente corroborada pelo Comitê de Credores ou juiz, ainda assim penderá óbice à celebração do compromisso arbitral. Isso porque um dos requisitos do compromisso arbitral é o de justamente estabelecer a "declaração da responsabilidade pelo pagamento dos honorários e das despesas com a arbitragem" e "a fixação dos honorários do árbitro, ou dos árbitros" (LA, art. 11, V e VI). RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL 45 Portando, via de regra, o procedimento arbitral acarretará custos para a massa falida. Custos esses destinados à satisfação da pretensão de um único credor, em detrimento dos demais, uma vez que toda a despesa será arcada com o ativo da massa falida. Assim é que diante da objetiva proibição econômica estabelecida no art. 117 da Lei de Recuperação e Falências, praticamente impossível será o preenchimento de condições fáticas tais que permitam a instauração do processo arbitral. Somente se mostrará possível nas remotas e cumulativas hipóteses de: (i) o sujeito interessado no cumprimento da cláusula compromissória arcar com todos os custos do processo arbitral; (ii) os órgãos de administração da massa falida (administrador judicial, Comitê de Credores e juiz) verificarem existir vantagem ou inexistir prejuízo na solução do impasse por meio da arbitragem; (iii) serem observados os meios necessários para a garantia do tratamento paritário das partes no procedimento arbitral, de modo a evitar que o poder econômico de uma parte concorra favoravelmente ao deslinde da questão 31 ; e (iv) que a sentença arbitral não implique risco de tratamento discriminatório entre credores, ou seja, que se limite a declarar a existência ou não do direito patrimonial questionado, viabilizando apenas a regular formação de título judicial ensejador de habilitação de crédito no processo falimentar (CPC, art. 475-N, IV) 32. Portanto, diferentemente do quanto afirmado pelo Professor Donaldo Armelin em sede doutrinária, compete ao juízo falimentar, e não ao tribunal arbitral, a decisão pela instauração ou não da arbitragem com base em cláusula compromissória firmada pelo falido antes da decretação da quebra. Como se isso não bastasse, figura-se praticamente impossível a superação dos óbices fáticos à instauração do procedimento arbitral, à luz dos interesses multifacetários do processo falimentar, bem como da disciplina dos contratos bilaterais firmados pelo devedor antes da decretação da falência. 46 RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL No entanto, importante se faz ressaltar que no mesmo sentido sustentado pelo Professor Donaldo Armelin em sede doutrinária, algumas manifestações da jurisprudência corroboram a possibilidade e o interesse da utilização da arbitragem para a massa falida 33 . O mesmo entendimento já foi aplicado às liquidações extrajudiciais previstas para instituições financeiras (Lei nº 6.024/1974), planos de saúde (Lei nº 9.656/1998), sociedades cooperativas (Lei nº 5.764/1971), entre outras 34. RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL 47 6 A ARBITRAGEM EM QUESTÕES RELACIONADAS À RECUPERAÇÃO EXTRAJUDICIAL A Lei de Recuperação e Falências (Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005) contemplou instituto que vinha sendo praticado há algum tempo por empresas brasileiras em crise: a recuperação extrajudicial. Em realidade, a possibilidade da recuperação extrajudicial pode ser considerada a maior e mais benéfica inovação trazida pela Lei de Recuperação e Falências. Consiste na possibilidade concedida ao devedor em situação de crise de convocar seus credores para oferecer-lhes forma de composição para pagamento dos valores devidos. Trata-se de verdadeira legalização da denominada "concordata branca", em detrimento da maléfica disposição legal constante da Lei de Falências anterior. Isso porque na revogada Lei Falimentar de 1945, a infrutífera convocação dos credores para renegociação das dívidas gerava a caracterização dos denominados atos de falência, possível ensejador de quebra. Era o que determinava o antigo art. 2º, III, da Lei de Falências Antiga: "Art. 2º Caracteriza, também, a falência, se o comerciante: [...] III - convoca credores e lhes propõe dilação, remissão de créditos ou cessão de bens". Portanto, de grande importância foi a abertura da possibilidade de convocação dos credores para a renegociação das dívidas, não implicando qualquer risco para a empresa devedora, pois é dado a ela assim proceder por meio da recuperação extrajudicial. Senão vejamos: "Art. 161. O devedor que preencher os requisitos do art. 48 desta Lei poderá propor e negociar com credores plano de recuperação extrajudicial". Logo, a recuperação extrajudicial regulamentou e ampliou a possibilidade de o devedor convocar seus credores para buscar soluções, visando à recuperação e evitando-se a falência. A negociação entre devedor e credores será traduzida em um plano de recuperação, de natureza contratual, que estabelecerá as condições acordadas pelas partes. Negociadas as condições do plano de recuperação extrajudicial e firmado o contrato, os credores signatários estão vinculados a este, devendo respeitar suas condições. Em caso de descumprimento pelo devedor, o plano de recuperação extrajudicial poderá ser executado, podendo até mesmo resultar na falência. Pode ainda o devedor, se desejar, requerer a homologação do plano de recuperação extrajudicial. A homologação judicial do plano de recuperação pode interessar ao devedor, na medida em que, se deferida, vinculará eventuais credores que negociaram e optaram por rejeitar a proposta. No entanto, ressalte-se que aqueles credores que sequer foram convocados ou não compareceram à reunião, não sofrerão qualquer limitação em seus direitos 35. 48 RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL Observa-se que para a ocorrência da vinculação de credores dissidentes, deverá o plano de recuperação extrajudicial ser aprovado por credores que representem mais de 3/5 (três quintos) dos créditos de determinada espécie. Nesse contexto, fica claro que legislador primou pela participação dos credores, permitindo a negociação com o devedor e extinguindo a concordata preventiva, instituto em desacordo com as atuais práticas de mercado e, na maioria das vezes, insuficiente ou incapaz de recuperar a empresa. Portanto, a recuperação extrajudicial, diante da atual realidade do mercado brasileiro, muito mais consistente e maduro, será alternativa viável para a efetiva recuperação da empresa, sem grandes intervenções do Estado. Mas ressalte-se novamente que a homologação em Juízo não é indispensável e a composição pode se dar por qualquer meio e a qualquer momento, seja por contrato, concessões de prazo, abatimentos, dações em pagamento, entre outros. Em realidade, a homologação em juízo da recuperação extrajudicial se mostra interessante à luz dos efeitos decorrentes desse ato, quais sejam: a) a constituição de título executivo judicial, nos termos do art. 584, III, do Código de Processo Civil e a possibilidade de sua execução; b) dá publicidade e oficialidade ao procedimento; c) suspende ações e execuções em andamento e impossibilita pedido de falência dos credores sujeitos ao plano, nos termos do art. 161, § 4º, da Lei de Recuperação e Falências; d) impossibilidade de os credores que aderiram ao plano extrajudicial desistirem da adesão, marcando o cunho contratual do vínculo, nos termos do art. 161, § 5º, da Lei de Recuperação e Falências; e) possibilidade de inclusão (submissão) de outros credores que não acataram a proposta de recuperação extrajudicial, desde que ocorra a aprovação por mais de 3/5 de todos os créditos de cada espécie por ele abrangidos, nos termos do art. 163 da Lei de Recuperação e Falências. Por conta disso, na recuperação extrajudicial, nada impede que os credores e o devedor prevejam a arbitragem como forma de solução de conflitos provenientes da interpretação ou da falha de cumprimento das disposições estabelecidas no plano de recuperação extrajudicial, justamente pelo fato de esse instituto viabilizar a escolha daqueles credores que com o devedor deseja "contratar". RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL 49 Dentro desse contexto, a inclusão de convenção de arbitragem em plano de recuperação extrajudicial traduz verdadeira faceta da autonomia da vontade das partes 36. O ponto chave, no entanto, reside na necessidade de segregação dos direitos patrimoniais disponíveis daqueles direitos indisponíveis definidos pela Lei de Recuperação e Falências, notadamente os créditos de natureza tributária, derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes do trabalho, nos termos do art. 161, § 1º, da Lei de Recuperação e Falências. Outra questão que se coloca sobre o tema é a capacidade de uma cláusula compromissória arbitral, não acordada por todos os credores, mas apenas por aqueles que representam mais de 3/5 de todos os créditos de cada espécie, ser imposta àqueles credores que não a aceitaram. Respeitosamente, discordamos desse posicionamento, uma vez que a questão central consiste em saber se a maioria votante, independentemente da vontade minoritária, pode afastar a competência da jurisdição estatal e, em seu lugar, adotar o juízo arbitral. Dentro desse contexto, temos que o consentimento é indispensável para que se possa, validamente, suprimir o conflito da apreciação da jurisdição estatal e submetê-lo à jurisdição convencional. A cláusula arbitral só pode ser imposta àqueles credores que houverem expressamente aderido a ela, ainda que o quorum qualificado previsto no art. 163 da Lei de Recuperação e Falências seja alcançado. A minoria, apesar de vencida, não pode ser obrigada a aceitar a cláusula arbitral porque não a teria subscrito expressamente, por força do art. 4º, § 1º, da Lei de Arbitragem. Até mesmo porque o compromisso em adotar a chamada jurisdição convencional para solução de controvérsias é uma opção, uma escolha do indivíduo: ato essencialmente voluntário. Dessa forma, não poderão subsistir quaisquer incertezas sobre a intenção da parte em adentrar no juízo arbitral, sob pena de se macular a autonomia da vontade 37. 50 RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL A cláusula de previsão de arbitragem para a solução dos conflitos decorrentes do vínculo social não é uma cláusula direcionada aos interesses gerais da coletividade de credores, e sim às partes que a compõem. O princípio da maioria vigente no instituto da recuperação não pode reduzir um direito essencial do credor de se socorrer do Poder Judiciário. Mesmo reconhecendo a existência de abalizadas opiniões em sentido contrário 38, sem a adesão de todos os credores não há a possibilidade de se impor a cláusula compromissória de arbitragem aos demais credores. 7 A ARBITRAGEM EM QUESTÕES RELACIONADAS À RECUPERAÇÃO JUDICIAL Depois do clamor doutrinário existente desde 1960, no sentido da necessária reforma do direito falimentar brasileiro, e não obstante algumas mal sucedidas tentativas, o Brasil está diante de uma concreta perspectiva de tratamento das crises econômico-financeiras das empresas. De forma até mesmo programática, a Lei de Recuperação e Falências procura, sempre que possível, evitar o desaparecimento de unidades produtivas. Para tanto, basta verificar a redação do art. 47 da mencionada lei, a qual deixou bem claro que a recuperação judicial é medida judicial destinada a sanar crise econômico-financeira da empresa, manter a fonte produtora de riquezas, pagadora de tributos e de emprego, salvaguardar o interesse dos credores e realizar a função social da empresa. Ademais, de acordo com a redação do art. 49, caput, da Lei de Recuperação e Falências, estão sujeitos a ela todos os credores anteriores ao pedido de recuperação, senão vejamos: "Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos". Por outro lado, não estão sujeitos à recuperação judicial, em regra: (a) credores decorrentes de contratos de alienação fiduciária, arrendamento mercantil (leasing) e contratos com reserva de domínio (LRF, art. 49, § 3º); (b) credores decorrentes de contratos de compra e venda de imóveis (LRF, art. 49, § 3º); (c) créditos bancários decorrentes de adiantamento a contrato de câmbio para exportação (art. 49, § 4º); (d) créditos trabalhistas ou decorrentes de acidentes do trabalho; (e) créditos tributários, pois as ações fiscais não se suspendem; (f) créditos garantidos por penhor, uma vez que sua substituição também depende da vontade do credor; e (g) as instituições financeiras credoras por adiantamento aos exportadores não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial. RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL 51 Ressalte-se que esses credores, via de regra excluídos dos efeitos da recuperação judicial, não são atingidos pela medida e podem continuar exercendo seus direitos reais e contratuais nos termos das leis próprias. Podem ainda, desde que desejem, participar do processo de recuperação, na medida em que a lei, ao mesmo tempo em que os exclui, não vedou sua participação no processo de recuperação de judicial. Entretanto, durante o período de 180 dias (denominado "stay period"), não poderá ser realizada qualquer venda ou retirada de bens de capital essenciais à atividade do devedor por execução de referidas demandas. Isso porque ocorre a suspensão das execuções individuais dos credores pelo prazo improrrogável de 180 dias (art. 6º, § 4º). Ademais, durante o processamento da recuperação judicial há o prosseguimento das ações ordinárias para discutir valores ilíquidos (LRF, art. 6º, § 1º). O legislador deixou aos credores o encargo de aprovar, modificar ou rejeitar o plano de recuperação apresentado pelo devedor. Até mesmo porque os credores reunidos em torno de uma execução coletiva ou recuperação judicial possuem alguns interesses convergentes e muitos divergentes. Na recuperação judicial, cada classe de credores deve arcar com a parcela de sacrifícios que lhe foi imposta no plano de recuperação, e as divergências certamente ocorrerão quando o assunto disser respeito ao modo de distribuição dos "prejuízos" entre as classes. No emaranhado dessa complexa trama de interesses é preciso que se identifique a solução que melhor atenda ao conjunto de credores. Assim é que deve ser levada em conta a aplicação do regime de comunhão de interesses, fazendo com que a vontade da maioria prevaleça sobre a minoria, sempre visando a um bem maior do que o direito de crédito individualmente considerado. Desse modo, os credores são chamados a se reunir sob o regime de comunhão de interesses em assembleia-geral de credores. Trata-se, portanto, de um órgão da falência ou da recuperação judicial, tal como o administrador judicial, o comitê de credores e o gestor judicial. A assembleia-geral tem como fundamento formar a vontade majoritária do grupo a partir das vontades individuais. Para tanto, pressupõe uma confrontação de interesses. Não é, portanto, a assembleia-geral foro de consulta aos credores, como ocorre com o voto por correspondência. O conclave proporciona, ao menos teoricamente, um confronto de ideias mediante a discussão das matérias pelos presentes, com a possibilidade de surgirem explicações e apreciações do mérito das propostas. 52 RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL É o instrumento eficaz que tem o credor para trocar suas opiniões com a dos demais. É na assembleia-geral que pode ocorrer a intervenção minoritária, na medida em que, ao arguir as questões propostas, não se considera a representatividade do seu crédito diante do montante total da dívida. Diferentemente do voto por consulta, que isolaria os credores, a deliberação em assembleia-geral os reúne para formar a vontade coletiva. No contexto da legislação concursal vigente, a assembleia-geral se caracteriza como a reunião de credores da empresa em recuperação ou da falida, devidamente convocada (LRF, art. 36) e instalada (LRF, art. 37, § 2º), para deliberar sobre os assuntos de sua competência, observados os quóruns legais (LRF, arts. 45 e 58). Cabe, ainda, destacar que, diferentemente do que ocorre na Lei de Sociedades Anônimas (Lei nº 6.404/1976), a assembleia-geral da Lei de Recuperação e Falências não pode ser considerada órgão soberano, uma vez que seu poder não sobrepõe ou substitui o jurisdicional, que detém a competência decisória, permanecendo a assembleia-geral com o poder deliberativo. Nos termos do art. 53 da Lei de Recuperação e Falências, o plano de recuperação judicial deve ser apresentado no prazo improrrogável de sessenta (60) dias contados do deferimento do processamento da recuperação judicial, ao qual pode se opor qualquer credor (LRF, art. 55). Ocorrendo uma objeção ao plano de recuperação, compete ao juiz convocar a assembleia-geral para aprovação (LRF, art. 56, § 2º), modificação (LRF, art. 56, § 3º) ou rejeição (LRF, art. 56, § 4º) do plano inicialmente apresentado. Assim, a realização da assembleia-geral de credores é facultativa, salvo na hipótese de apresentação de objeção ao plano de recuperação por parte de qualquer dos credores, quando será obrigatória. Na ausência de objeção, o juiz concederá a recuperação judicial sem a convocação de qualquer assembleia (LRF, art. 57). De tudo isso, se extrai que o mais importante elemento do processo de recuperação judicial é o plano de recuperação, e a Lei de Recuperação e Falências atribui competência exclusiva da assembleia para sua análise. Depende exclusivamente do plano a realização ou não dos objetivos precípuos do instituto da recuperação, quais sejam, a preservação da atividade econômica e o cumprimento de função social da empresa (LRF, art. 47). Se o plano de recuperação é consistente, há chances efetivas de a empresa se reestruturar e superar sua crise. Mas, se o projeto for inconsistente, tenderá a cumprir mera formalidade processual e o futuro desse processo certamente será a decretação da quebra. Desse modo, um bom plano de recuperação não é, por si só, garantia absoluta de reerguimento da empresa em crise. Fatores macroeconômicos globais ou nacionais, acirramento da concorrência no segmento de mercado ou mesmo imperícia na sua execução podem comprometer a reorganização pretendida. RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL 53 Assim é que os órgãos da administração da recuperação judicial devem produzir um plano viável e tecnicamente consistente, para que todos os esforços e providências adotadas se justifiquem. Tudo isso para que os meios aplicados não frustrem as expectativas de reerguimento da atividade econômica em foco. É dentro desse complexo panorama que se insere o seguinte questionamento: Existe espaço para a utilização da arbitragem no mecanismo legal de recuperação de empresas? Em primeiro lugar, não haverá surpresas se, na fase de cumprimento do plano de recuperação, surjam divergências entre o devedor e a comunidade de credores. Não é possível se imaginar que o plano de recuperação apresentado em juízo contenha um grau de detalhamento tal que cada credor possa, de antemão, prever com razoável certeza os obstáculos que terá de enfrentar a partir da sua respectiva aprovação. É justamente aí que, teoricamente, abre-se o espaço para a utilização da arbitragem no processo de recuperação judicial, uma vez que a solução de controvérsias surgidas por meio da arbitragem poderá abreviar o tempo de resolução das questões relativas ao descumprimento de obrigações. Para tanto, necessário se faz que os credores e o devedor tenham incluído cláusula compromissória no plano de recuperação. A arbitragem poderia ser utilizada nesse contexto como forma de se amenizar o risco de conversão da recuperação em falência, com a solução privada de conflitos decorrentes do cumprimento do plano de recuperação judicial entre credores e devedor. No entanto, todas essas frases são colocadas no condicional, na medida em que compete exclusivamente à justiça estatal processar os pedidos de recuperação judicial e falência, não havendo, portanto, lugar para a arbitragem 39. O foro estabelecido na Lei de Recuperação e Falências, no qual deverão ser processados os pedidos de recuperação judicial e falência é cogente e improrrogável, nos termos do art. 3º da Lei Concursal. 54 RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL Sob qualquer dos ângulos que comporta, a competência funcional é sempre absoluta, ou seja, instituída de acordo com o interesse público e não por conveniência das partes 40 . Por conta disso, não tolera modificação, legal ou convencional 41. Constitui razão histórica da formação e desenvolvimento da recuperação judicial como instituto jurídico a necessidade de se assegurar, por um único juízo, o conhecimento de todas as ações, dos diversos credores, que se relacionem com aquele devedor 42 . Como corolário natural da necessidade de garantir tratamento igualitário aos credores perante um mesmo órgão jurisdicional, o legislador instituiu a universalidade e indivisibilidade do juízo falimentar (LRF, arts. 3º e 76, respectivamente). A universalidade do juízo é tipicamente falimentar e da sua essência, não podendo ser afastada, salvo naquelas hipóteses previstas na legislação (LRF, art. 6º) 43 , quais sejam, as demandas relativas a créditos trabalhistas e tributários, os quais devem ser reconhecidos nos próprios juízos, para ulteriormente serem admitidos 44 . RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL 55 A indivisibilidade do juízo da recuperação é decorrência lógica da unidade de juízo, ditada por razões de economia processual e fruto da necessidade de uma solução igualitária e eficaz para os conflitos envolvendo a empresa em recuperação em todos os seus aspectos e interesses 45 . Até mesmo porque, no que concerne à competência funcional abrangente do juízo falimentar, tem-se que a unidade e a universalidade do órgão jurisdicional são relevantes para a eficácia e a agilidade das decisões sobre as variadas questões submetidas à sua apreciação 46. Por seu turno, o art. 6º da Lei de Recuperação e Falências não estipula regra de competência, mas tão somente impõe a suspensão das ações e execuções individuais em que figure no polo passivo a empresa em recuperação, justamente para evitar que tramitem processos relativos a interesses e negócios da empresa em juízos diversos do falimentar. Define também regra de prevenção, por meio da qual a distribuição do primeiro pedido previne a jurisdição para novos pedidos em face do devedor, de falência ou recuperação judicial (LRF, art. 6º, § 8º c/c CPC, arts. 106 e 219). Há de se destacar, porém, que, em relação ao órgão funcionalmente incompetente, o fenômeno da prevenção não traz nenhuma repercussão relevante, uma vez que a incompetência absoluta não se prorroga e a prevenção não tem o condão de fazer prevalecer uma competência que não existe 47. Por conta disso, o que já foi dito em relação à falência, no item 5 do presente artigo, tem plena eficácia para a recuperação judicial, na medida em que não detectamos qualquer espaço para a arbitragem no processo de recuperação judicial disciplinado pela Lei de Recuperação e Falências (Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005), independentemente do fato de se tratar de litígio entre o devedor e os seus credores ou entre os próprios credores do devedor. Ou seja, a falência e a recuperação judicial tutelam, em grande parte, interesses públicos, deixando espaço reduzido para a instituição da arbitragem, destinada à solução de litígios relativos a direitos disponíveis. 56 RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL Como se isso não bastasse, teríamos grande dificuldade de formar o polo de demandantes e demandados em um processo arbitral que viesse a ser instaurado para reger o processo de recuperação judicial. Até mesmo porque, em sua origem, o processo arbitral seria constituído pelos credores e o devedor. No caso em tela, estaríamos diante de um caso de arbitragem multiparte no polo ativo, com as sabidas dificuldades inerentes a essa hipótese. Uma vez notificado ao devedor acerca do pedido de instauração da arbitragem pelos credores ou vice-versa, poder-se-ia questionar qual a atitude que poderia ser adotada por outros credores diante da controvérsia alegada. Discute-se, nessa oportunidade, a possibilidade de ocorrer a intervenção de outros credores, que não aqueles que já figuram em um dos polos, em procedimento arbitral que decide a recuperação da empresa. Ocorre que a intervenção de terceiros no procedimento arbitral não está regulada em lei e dependerá sempre da concordância das partes e dos árbitros para que possa se efetivar 48. Assim é que diante dos interesses multifacetários do processo de recuperação judicial, mostra-se praticamente impossível a obtenção desse consenso no caso concreto, de modo a viabilizar a instituição da arbitragem como técnica capaz de regular integralmente o processo de recuperação judicial. No entanto, diferentemente do que ocorre para o caso de decretação de falência, os processos arbitrais já iniciados anteriormente ao processamento da recuperação não sofrerão significativa alteração, na medida em que a empresa mantém sua regular atividade e capacidade de contratar, viabilizando a plena atuação no processo arbitral. Assim é que poderá ocorrer o desenvolvimento paralelo entre os processos arbitrais e o processo de recuperação, sendo que o resultado do processo arbitral poderá importar melhora ou piora da situação da empresa que está em recuperação. CONCLUSÕES O presente estudo está longe de ter a pretensão de esgotar assunto tão fecundo quanto a análise do instituto da arbitragem com a dinâmica do novo processo de recuperação de empresas instituído na Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 (Lei de Recuperação e Falências), em ambas as modalidades de recuperação financeira do devedor - judicial e extrajudicial RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL 57 O principal objetivo deste trabalho, conforme proposta estampada na introdução, foi o de analisar a interface estabelecida entre a arbitragem e o instituto de recuperação em três situações distintas: (i) recuperação extrajudicial com estipulação de cláusula arbitral; (ii) deferimento de recuperação judicial após processo arbitral já instalado; e (iii) processo arbitral para processar recuperação judicial a ser estabelecida entre devedor e credores. Antes, porém, importante se fez destacar o posicionamento adotado em relação à possibilidade de algumas questões incidentais do processo falimentar serem (ou não) solucionadas por meio da arbitragem. Com isso não se discute que o próprio processo falimentar seja submetido ao procedimento arbitral. Até mesmo porque, em se tratando de processo falimentar pendente, com a consequente perda pelo falido da disponibilidade da administração de seus bens (LRF, art. 103), não há como celebrar convenção de arbitragem válida, uma vez que essa inequivocadamente exige que o seu objeto seja direitos patrimoniais disponíveis. Nesse contexto, discordamos da posição doutrinária defendida pelo Professor Donaldo Armelin, no sentido de que a decretação da falência não impediria a massa falida, representada por seu administrador, de cumprir o pactuado em cláusula compromissória firmada antes da decretação da quebra pelo falido para solucionar conflito de interesse estabelecido com terceiro. À luz dos interesses multifacetários do processo falimentar, bem como da disciplina dos contratos bilaterais firmados pelo devedor antes da decretação da falência, ousamos discordar dessa posição, uma vez que a técnica legislativa reservou ao administrador judicial a decisão sobre a resolução da relação contratual, a qual deve se pautar pela conveniência ou não da manutenção do contrato para a liquidação e a conservação dos ativos 49. Portanto, diferentemente da premissa adotada pelo Professor Donaldo Armelin, verifica-se que a competência da fundamentada decisão de levar a cabo ou não a cláusula compromissória ou o compromisso arbitral previamente estabelecido será resolvida no âmbito da falência e não do Tribunal Arbitral. 58 RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL Até mesmo porque, via de regra, o procedimento arbitral acarretará custos para a massa falida. Custos esses destinados à satisfação da pretensão de um único credor, em detrimento dos demais, uma vez que toda a despesa será arcada com o ativo da massa falida. Assim é que diante da objetiva proibição econômica estabelecida no art. 117 da Lei de Recuperação e Falências, praticamente impossível será o preenchimento de condições fáticas tais que permitam a instauração do processo arbitral. No que diz respeito à recuperação extrajudicial, nada impede que os credores e o devedor prevejam a arbitragem como forma de solução de conflitos provenientes da interpretação ou da falha de cumprimento das disposições estabelecidas no plano de recuperação extrajudicial, justamente pelo fato de esse instituto viabilizar a escolha daqueles credores que com o devedor deseja "contratar". Dentro desse contexto, a inclusão de convenção de arbitragem em plano de recuperação extrajudicial traduz verdadeira faceta da autonomia da vontade das partes. O ponto chave, no entanto, reside na necessidade de segregação dos direitos patrimoniais disponíveis daqueles direitos indisponíveis definidos pela Lei de Recuperação e Falências, notadamente os créditos de natureza tributária, derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes do trabalho, nos termos do art. 161, § 1º, da Lei de Recuperação e Falências. No entanto, outra questão que se coloca sobre o tema é a capacidade de uma cláusula compromissória arbitral, não acordada por todos os credores, mas apenas por aqueles que representam mais de 3/5 (três quintos) de todos os créditos de cada espécie, ser imposta àqueles credores que não a aceitaram. Respeitosamente, discordamos desse posicionamento, uma vez que a questão central consiste em saber se a maioria votante, independentemente da vontade minoritária, pode afastar a competência da jurisdição estatal e, sem seu lugar, adotar o juízo RBAr Nº 25 - Jan-Mar/2010 - DOUTRINA NACIONAL 59 Por outro lado, na medida em que compete exclusivamente à justiça estatal processar os pedidos de recuperação judicial e falência, não se encontra espaço para a utilização do processo arbitral como competente para processar recuperação judicial a ser estabelecida entre devedor e credores. O foro estabelecido na Lei de Recuperação e Falências, no qual deverão ser processados os pedidos de recuperação judicial e falência, é cogente e improrrogável, nos termos do art. 3º da Lei Concursal. Sob qualquer dos ângulos que comporta, a competência funcional é sempre absoluta, ou seja, instituída de acordo com o interesse público e não por conveniência das partes 50 . Por conta disso, não tolera modificação, legal ou convencional 51. Ademais, constitui razão histórica da formação e desenvolvimento da recuperação judicial como instituto jurídico a necessidade de se assegurar, por um único juízo, o conhecimento de todas as ações, dos diversos credores, que se relacionem com aquele devedor, mostrando-se contraproducente qualquer técnica que instale regimes diferenciados para credores diferenciados. A falência e a recuperação judicial tutelam, em grande parte, interesses públicos, deixando espaço reduzido para a instituição da arbitragem, destinada à solução de litígios relativos a direitos disponíveis. Como se isso não bastasse, teríamos grande dificuldade de formar o polo de demandantes e demandados em um processo arbitral que viesse a ser instaurado para reger o processo de recuperação judicial. Estaríamos diante de um caso de arbitragem multiparte no polo ativo, por meio do qual a inclusão de terceiros dependeria da concordância das partes e dos árbitros. Diante dos interesses multifacetários do processo de recuperação judicial, mostra-se quase impossível a obtenção desse consenso no caso concreto, de modo a viabilizar a instituição da arbitragem como técnica capaz de regular integralmente o processo de recuperação judicial.