Clínica do Social

Transcrição

Clínica do Social
55
Clínica do Social
55
Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, 55-65
Freud, a cultura e a política
Gisálio Cerqueira Filho
C
om base em referências fragmentárias, discutimos a relação entre psicanálise,
política e uma persistente marca na cultura ocidental: a marca da misoginia.
Esta, aqui comparece na qualidade de indício e sintoma. A senha é Aleto, a
mulher fálica semelhante a uma Górgona, indiretamente invocada por Freud na
citação de abertura de A interpretação dos sonhos, que foi publicado no início
do século XX e revolucionou o pensamento científico e mesmo a história social
da cultura, especialmente no Ocidente. Trata-se da legenda latina Flectere si
nequeo superos, Acheronta movebo (se não posso dobrar os poderes superiores,
moverei o inferno, ou seja, o rio Aqüeronte).
Palavras-chave: Psicanálise, cultura, política, misoginia, ideologia
B
ased on fragmented references, the author of this article discusses the
relationships between psychoanalysis, politics and a certain persistent aspect
of Western culture: the attitude of misogyny, seen here as a symptom. One of the
mythological figures involved is Aleto, the phallic woman seen as a gorgon,
indirectly alluded to by Freud in the opening of his “The interpretation of
dreams,” published in 1900. This book was responsible for a revolutionary
change in scientific thinking, as well as in the social history of culture, especially
in the West. Relevant in this context is the Latin phrase “Flectere si nequeo
superos, acheronta movebo [If I can’t take over power, I’ll move hell” – hell
represented here by the River Acqueront].
Key words: Psychoanalysis, culture, politics, misogynist behaviour, ideology
Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, mar. 2002
56
Gisálio Cerqueira Filho
Costumamos ser a realidade de um sonho
ou talvez o sonho dos outros.
Jorge Luis Borges
N
o dia 17 de julho de 1899, S. Freud
relata, por meio de carta a Fliess,
que escolhera o lema, isto é a citação de
abertura, para o seu A interpretação dos
sonhos que seria publicado no início do
século XX e iria revolucionar o pensamento científico e mesmo a história social da cultura, especialmente no Ocidente. Tratava-se da legenda latina Flectere
si nequeo superos, Acheronta movebo
(se não posso dobrar os poderes superiores, moverei o inferno, ou seja, o Rio
Aqueronte). São palavras retiradas da
Eneida, de Virgílio, e pronunciadas por
Juno, protetora divina da semita Dino,
contra Enéas, fundador de Roma. Não
tendo conseguido dobrar os superiores
poderes de Júpiter, mas conseguindo
consentimento para que Enéas desposasse Dino, Juno invoca Aleto, Fúria do inferno, para desencadear emoções possessivas de sexo e ataque militar no lado
de Enéas e seus aliados. A descrição de
Virgílio é aterradora: trata-se de um
monstro bissexuado, na verdade uma
mulher fálica, semelhante a uma Górgona fervilhante de serpentes negras e retorcidas. Em A interpretação dos sonhos, Freud não oculta, antes assinala,
que com esta comparação legendária ele
quer representar as pulsões reprimidas.
Esta citação de Virgílio, como uma espécie de senha para falar do emprego de
meios ameaçadores com implicações fortes de mudança, já fora utilizada ante-
riormente pelo socialista Ferdinand
Lassalle na página de rosto do volume de
sua autoria e intitulado A Guerra Italiana e a tarefa da Prússia, 1859. Não se
sabe se Freud apreciava ou até se teria
lido esta obra. De todo modo, na referida carta a Fliess, ele menciona que estava levando “Lassalle para as férias de
verão” e é muito provável que fosse essa
obra. Embora Freud não a mencione nominalmente, e tão-somente refira-se a
Lassalle, o fato é que coletâneas de textos políticos de Ferdinand Lassalle circulavam à época, e pelo menos uma, organizada por Erich Blum, incluía A Guerra Italiana e a tarefa da Prússia e fora
publicada em Leipzig, 1899, ocasião em
que Freud concluía, nos arredores de
Grinzing, Viena, no castelo de Bellevue,
o manuscrito de A interpretação dos sonhos. Claro, Freud não precisava de
Lassalle para referir-se a Virgílio, pois
conhecia bem Eneida, mas não deixa de
ser uma pista sugestiva, até mesmo
como sintoma, indício, na linha do que
propõe o historiador italiano Carlo Ginzburg, esta afinidade eletiva entre o ativista, militante político Lassalle e o psicanalista que, como Édipo, realiza uma
busca pessoal, moral e intelectual, aparentemente alheio à política e ao fato de
que Édipo era um rei. Por aqui, no real,
no real da realeza – o que de mais imaginário neste simbólico? –, pega-se a
intrincada tríade “lacaniana” RSI
(Real, Simbólico, Imaginário), um dos fios
da meada na relação entre psicanálise e
política, Édipo e poder, Oedipus Rex,
na plenitude da cultura grega, fratura
Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, mar. 2002
57
Clínica do Social
exposta na tragédia de Sófocles.
Mas com certeza as afinidades eletivas
entre Lassalle e Freud não se esgotam
na coincidência da citação evocada de
Virgílio. Em ambas as obras, política e
psicanálise se atam e desatam, encontram-se e desencontram-se em temas,
questões, preocupações e ansiedades
políticas de fim do século que atestam a
“catexe de Lassalle” e as “opções políticas de Freud”; assim mesmo, invertidas
expressões a consagrar o fluido intercâmbio entre preferências político-ideológicas e vivências afetivas inscritas na
matriz edipiana.
Tanto em A Guerra Italiana... quanto
em A interpretação dos sonhos podemos
anotar e buscar:
1) Uma certa adoção afetiva e políticocultural do sentimento nacional alemão
sem que se assuma uma postura propriamente nacionalista ou pangermanista;
2) um certo desdém e mesmo uma posição contrária em relação ao sentimento austríaco aristocrático, que cultiva
um “ethos” guerreiro;
3) uma certa posição contrária aos Habsburgo como bastiões do conservadorismo e reacionarismo político. (Após o
furacão da II Grande Guerra, da ocupação soviética do leste europeu e da experiência socialista, as dinastias reais reaparecem em público, mesmo onde já haviam sido derrotadas e banidas. Por
exemplo, casaram-se, no último dia 18
de outubro de 2000, em Budapeste, na
basílica de São Estevão, Gyorgy de Habsburgo, 32 anos, neto do último imperador da Áustria, Carlos I, com a duque-
sa alemã Elika von Oldebourg, 24 anos,
em meio a festas solenes e comemorações; para não falar do retorno do ex-rei,
Boris, da Bulgária, na qualidade de primeiro-ministro após vitória eleitoral em
meados de 2001);
4) uma certa vinculação entre Garibaldi
(italiano) e os húngaros de então (mais
ou menos submetidos à Áustria no Império austro-húngaro) como protagonistas liberais;
5) um certo ódio latente e larvar em relação à Roma católica e ao catolicismo.
Uma postura afetiva francamente anticlerical;
6) uma boa dose dos sentimentos e
idéias relativas ao par subordinação/insubordinação; uma busca obsessiva por
autonomia e independência tanto no
campo existencial quanto político;
7) uma certa estratégia intelectual comum em ambos os autores: jogar com
as forças reprimidas, da pulsão, no caso
da psicanálise, e do povo, da classe operária, no caso da política.
Tais afinidades eletivas serão compulsadas tendo em vista o mote de Virgílio,
mas também dois sonhos referidos, narrados e interpretados por Freud: o do
confronto com o Conde Thun, com evidente conotação de poder, e aquele em
que aparece a expressão autodidasker,
palavra composta referida, segundo Freud,
ao político militante Eduard Lasker, um
dos fundadores do Partido Nacional Liberal na Alemanha. Ambos os sonhos têm,
portanto, alguma conotação política.
Com base nestes três indícios fragmentários discutiremos a relação entre psi-
Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, mar. 2002
58
Gisálio Cerqueira Filho
canálise, política e uma persistente marca na cultura ocidental: a marca da misoginia, que aqui comparece na qualidade de indício e sintoma. A senha é Aleto, a mulher fálica semelhante a uma Górgona.
O sonho do conde Thun é um dos mais
famosos narrados por Freud e possivelmente um dos mais estudados e analisados não só pelo próprio Freud quanto
por outros psicanalistas e críticos. Passou-se em agosto de 1898, momento
político particularmente tenso. Havia problemas de variadas ordens: a obstrução
política no Parlamento, pelos partidos
alemães, paralisava as deliberações legislativas; tchecos e alemães haviam vivido
um início de ano de escaramuças e violência sobretudo em torno dos direitos e
regulamentos lingüísticos. Em meados
do mesmo ano a Galícia viu-se envolvida em movimentos sociais anti-semitas
e, evidentemente, havia o magno problema da renovação dos acordos de 1867
tendo em vista as relações entre as partes austríaca e húngara da monarquia
dualista que vigorava então.
O referido conde Thun (Franz Thun) era
ministro-presidente da Áustria desde 7
de março de 1898. Aristocrata, nascido
em 1847, líder do partido que representava a alta nobreza da Boêmia, proprietário de terras, configurava-se, na crônica política, como político conservador e
tradicional que intentava submeter alemães e húngaros à sua visão política.
Tornou-se alvo de concentrado ódio, especialmente por parte dos alemães, e
isso coincidia com a paralisia do Parla-
mento e também com as comemorações
do qüinquagésimo aniversário da ascensão do imperador Francisco José.
O conde Thun aparece no sonho de
Freud como figura central e proeminente, pano de fundo político contra o qual
construir-se-á o projeto de autonomia
psíquica via-a-vis, a figura tirânica do
pai. Na interpretação deste sonho, Freud
negligenciará por completo o componente político, embora tão vivo, como logo
veremos. Assim faria também com relação ao Édipo. Apesar da adjetivação Rei,
Oedipus Rex, a qualidade intrinsecamente
política estaria sempre obscurecida pela
saga do filho contra a figura paterna. Entretanto, Freud nomeou este sonho com
o conde Thun “sonho revolucionário”,
onde a conotação política é fortíssima.
No dia do “sonho revolucionário”, Freud
estava indo passar as férias com os familiares em Aussee. Ele estava esperando o trem na estação Westbahnhof e então reconheceu o conde Thun, altivo e
até mesmo um tanto arrogante, aguardando na plataforma. Ele, muito provavelmente, viajava para a localidade de
Ischl, onde então se elaboravam os acordos preliminares austro-húngaros. Freud
refere-se a ele “como um senhor feudal
dos pés à cabeça. Alto, magro, vestido
com elegância requintada, mais parecia
um inglês... Seu monóculo nunca sai do
olho... Embora não tivesse o bilhete,
fez um aceno para o bilheteiro e entrou
numa cabine luxuosa”. Um grande ressentimento contra a aristocracia vem à
tona, pois Freud vê-se assobiando a melodia Casamento de Fígaro, de Mozart:
Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, mar. 2002
59
Clínica do Social
“Se o conde quer dançar, eu dou o tom”.
Feudal-herr (senhor feudal) é expressão
que cristaliza o sentimento de hostilidade que boa parte das classes médias devotavam à aristocracia. Já a expressão
“mais parecia um inglês” demonstra o
ressentimento que a hegemonia da Inglaterra ensejava especialmente aos alemães
que viviam no Império austro-húngaro.
Na sua interpretação, Freud projetou
seus sentimentos políticos para cenas
passadas e imagens políticas históricas.
Na abertura do sonho, viu-se numa reunião estudantil onde o conde Thun reprovava o nacionalismo germânico. No sonho, a arrogância aristocrática, reacionária e mesmo anti-semita do conde Thun
condensa-se na afirmação desdenhosa
em que o conde declara ser a huflattice
(tussilagem, unha-de-cavalo, em português) uma das flores favoritas dos alemães. Tratava-se de uma referência à
flor simbólica dos nacionalistas alemães.
O desdém vinha por conta de ser uma
planta flexível demais, flácida... sem firmeza. Na sua interpretação, Freud traduziu huflattice para o francês utilizandose do vocábulo pissenlit. Ele vinculou,
por associação verbal, a expressão
huflattice com flatus e concluiu que o
orador afirmava que a militância estudantil não passava de flatos, vento, puro
ar... Freud, surpreendentemente, levanta-se em reação às afirmações provocativas e se identifica com Adolf Fischhof,
líder estudantil que participara da Revolução de 1848 e que mais tarde, já médico, ganharia a posição de interno no
Hospital Geral Imperial Real de Viena
que, posteriormente, seria ocupada por
Freud. Recorda-se ainda de outro político, médico judeu e seu colega, Victor
Adler (na casa de quem, na Bergasse 19,
acabaria morando por longos anos), por
quem nutria sentimentos de inveja e rivalidade e a quem desafiara numa organização estudantil nacionalista germânica a
que ambos pertenceram lá pelos idos de
1870. Estes desafios entre homens eram
muito comuns, sobretudo na forma de
duelos. Segundo Norbert Elias (1977, p.
52-117) eles se inscreviam no ethos juvenil alemão.
No sonho, Freud abandona o cenário
político da universidade, tão importante
em meados do século XIX na Alemanha,
e se vê novamente na estação ferroviária onde o sonho começara. Lá encontrase com um velho cego em quem reconhece, pela análise, ser o seu pai moribundo, segurando um urinol para que ele
urinasse. Freud estava seguro de que o
bilheteiro olharia para outro lado e não
veria a cena, enfim, humilhante para o
velho desamparado.
No final, Freud dá sentido geral ao sonho. O sentimento duplo de revolta em
relação à autoridade política, a aristocrática (conde Thun, ministro) mas também a socialista (Victor Adler tornara-se,
em 1898, líder da social-democracia
austríaca e veio a ser expressivo intelectual vinculado ao austro-marxismo e
mesmo fundador do partido social-democrata) tinha, na verdade, mobilizado
um sentimento de revolta mais arcaico,
aquele em relação à autoridade paterna,
forma primeira de toda autoridade.
Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, mar. 2002
60
Gisálio Cerqueira Filho
Freud, curiosamente, ignorou os componentes políticos do sonho dito revolucionário e centrou a análise na cena final.
Recordou-se então de um episódio da
infância, quando seu pai o repreendera
(“você nunca dará para nada”) por ter
urinado no quarto dos pais. Assim,
Freud vinga-se do pai pois é ele quem
segura o urinol para o pai idoso e moribundo, numa cena agora humilhante para
quem previra que o filho não seria nada
por ter urinado no quarto dos pais.
Aqui a tradução do vocábulo francês
pissenlit condensa duplamente a questão
porquanto, por um lado, pissenlit, que é
nome de uma planta (unha-de-cavalo,
em português), significa literalmente urinar na cama e, por outro, a correspondência adequada com o vocábulo em alemão não é exatamente com huflattice,
mas com lowenzahn (dente-de-leão, em
português). Conquanto o lapso de Freud
tenha permitido a evocação da cena infantil de urinar no quarto dos pais, ambas as expressões pissenlit ou lowenzahn,
quando consideradas em português, simbolizam apropriadamente a ameaça de
castração. O que ocorre com a expressão alemã lowenzahn, recalcada.
Freud, assim, livrou-se dos fantasmas e
espectros simbolizados nos ídolos das
confrarias estudantis: Adolf Fischhof, em
1848 e, cinqüenta anos depois, Victor
Adler, em 1898. Aparentemente, livrouse da política; o parricídio em vez do regicídio, Oedipus sem adjetivação e não
mais Rex.
Mas a citação de Virgílio, provavelmente
via Lassalle, resgata, ao menos em par-
te, a dívida não paga ao pai como médico doutor e político revolucionário.
Flectere si nequeo superos, Acheronta
movebo permanece como ameaça latente, tal como espada de Dâmocles, a toda
autoridade, inclusive a paterna, que se
constitua. De um certo modo a fonte da
autoridade política reside na função parental e na autoridade do pai. O recurso
à política está como que subsumido, mas
permanece como alternativa latente, associado aos supostos poderes fálicos da
mulher (Górgona) e do inferno
(Acheronte). Aqui, mulher e inferno estão em correspondência e estabelecem
relação de contigüidade.
Um outro pensador político, militante e
célebre, lateja também presente no sonho
do conde Thun. Trata-se de Émile Zola,
Embora Freud não considerasse mais a
opção política, apaziguado que estava
consigo mesmo a partir do “sonho revolucionário”, ele era um observador atento
de toda a cena social. Dois anos após a
publicação de A interpretação dos sonhos, quando fora nomeado professor
adjunto, descrevera em carta a Fliess, de
11/3/1902, e em tom de blague, a sua
promoção como uma vitória política. “O
entusiasmo público é imenso. Chovem
congratulações e ramalhetes de flores,
como se o papel da sexualidade tivesse
sido repentinamente reconhecido por Sua
Majestade, a interpretação dos sonhos
ratificada pelo Conselho de Ministros e a
necessidade da terapia psicanalítica da
histeria aprovada por maioria de dois terços no Parlamento”. O tom é de franca
ironia pois, vivia-se uma época em que
Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, mar. 2002
61
Clínica do Social
praticamente nada era aprovado no Parlamento, sequer por maioria simples.
Freud era um observador atento da política e isto é facilmente explicado. Judeu, de formação liberal, pertencia ao
grupo social talvez mais ameaçado pelas
forças conservadoras e autoritárias. Ele
acompanhava a ascensão da direita ao
poder na Áustria e no exterior. Assistia,
certamente com ansiedade, os movimentos de Karl Lueger e presenciava o desenrolar do caso Dreyfus na França. Não
escondia sua admiração por Émile Zola,
que defendera Dreyfus no célebre artigo
intitulado J’accuse. Zola desafiara não
apenas o poder político secular, representado pelo exército, mas também pelo
poder clerical, representado pela Igreja.
Tanto assim que, em 1907, convidado a
listar dez bons livros por um editor de
Viena incluiu o volume Fecondité, do escritor francês. Recorde-se que no romance, traduzido para o português como
Germinal, forte denúncia da exploração
capitalista de mineiros que trabalham nas
profundezas da terra, há uma cena onde
uma criança colhe pilssenit por recomendação materna. Já no romance La
terre, a crítica se faz ao conservadorismo francês cristalizado no mundo rural.
Neste, La terre, os filhos do velho
Fouan acabam por espancá-lo e matá-lo
por asfixia, sendo o seu corpo incendiado. Naquele, Germinal, o pai violento e
ditatorial aparece na pele do comerciante Maigrat, que não só explora os habitantes da localidade como abusa sexualmente das mulheres. Sua sorte é sintomática. Os mineiros revoltados acabam
também por matá-lo e castrá-lo. Passeiam pela mina ostentando o pênis ensangüentado do comerciante como um
troféu. Há, pois, identificação com Zola
e Dreyfus. São símbolos marcantes para
Freud. Ele cita explicitamente Émile Zola
em carta ao então amigo Fliess. Alude ao
fato de que Émile Zola “o faz ficar com
a respiração suspensa”. Assim, no sonho
do conde Thun é inequívoco o comparecimento da política em cores fortes,
mas esta não sai plenamente vitoriosa.
Ela é enquadrada e, de certa forma, neutralizada pela experiência infantil do comportamento humano. Mas está lá... onda
pulsante que flumeia nos rubros sulcos
do Acheronte e que adquire forma em
Aleto, mulher fálica aterradora. A política passa a ser associada a Aleto. A mulher é vista como dotada de poderes infernais, maquiavélicos. A expressão maquiavélico, em português, tem a conotação de
diabólico, tal como na língua inglesa old
Nick (o velho Nick, abreviação para Nicola Maquiavel) significará demônio, diabo.
No outro sonho, que está a nos interessar, Freud o associa ao neologismo autodidasker, que deveria representar um
significado composto... Vinculava-se a
uma fantasia no sentido de que quando
Freud encontrasse o professor N. deveria dizer-lhe: “O paciente sobre cujo estado eu o consultei recentemente está de
fato sofrendo apenas de uma neurose,
justamente como o senhor suspeitava”.
Tratava-se aqui de uma reparação.
Freud nos dá conta de que o termo autodidasker relacionava autor com autodidata (autodidakt) e ainda com Lasker,
Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, mar. 2002
62
Gisálio Cerqueira Filho
Eduard (1829/1844), nascido em
Jarotschin, próximo a Breslau, de origem
judaica e um dos fundadores do Partido
Nacional Liberal da Alemanha. Por esta
via o associava, também, com Lassalle,
Ferdinand (1825/1864), nascido em
Breslau, de origem judaica, fundador do
Movimento Social Democrático Alemão.
A primeira destas palavras levara à causa precipitadora do sonho. Assim Freud
(1901, p. 319-20) narra o sucedido:
... eu dera à minha esposa vários volumes
de autoria de um conhecido escritor (austríaco) que era amigo de meu irmão, e que,
conforme soube, era natural de meu próprio
torrão natal: J.J. David. Certa noite ela me
falara da profunda impressão que lhe causara a trágica história de um dos livros de
David, de como um homem de talento se
arruinou; e nossa conversa passara a girar
sobre um exame dos dotes intelectuais dos
quais víamos indícios em nossos próprios
filhos. Sob o impacto do que estivera a ler,
minha esposa externou preocupação pelas
crianças e eu a consolei com a observação
de que aqueles eram os próprios perigos
que podiam ser afastados por meio de uma
boa educação. Meus pensamentos continuaram a preocupar-me durante a noite;
meditei sobre aquilo que preocupava minha
mulher e formulei nisso muitas outras idéias.
Uma observação feita pelo autor a meu irmão, sobre o tema do casamento, indicou
aos meus pensamentos um caminho pelo
qual eles poderiam vir a ser representados
no sonho. Esse caminho nos levou a Breslau, onde uma senhora, com quem mantínhamos grandes laços de amizade, para
lá se dirigira a fim de fixar residência. A
preocupação que senti pelo perigo de vir a
lamentar por uma mulher – pois isso era o
núcleo de meus pensamentos oníricos –
encontrou um exemplo em Breslau nos casos de Lasker e Lassalle que tornaram possível apresentar um quadro simultâneo das
duas formas pelas quais essa influência fatal podia ser exercida”.
Freud diz que esses pensamentos podiam ser resumidos na frase cherchez la
femme. Aqui a mulher aparece como fonte da fatalidade, isto é, da infelicidade e
até da morte. Por este sinuoso percurso
refere-se ao irmão Alex (Alexandre) e diz
que a forma abreviada do nome próprio
tem quase o mesmo som do anagrama
de “Lasker” e tudo isto o levava pelos
caminhos de Breslau.
Por trás da infelicidade e do sofrimento
de Lasker, que morreu de ataxia locomotora como resultado de uma sífilis,
está uma mulher, por intermédio de
quem a infecção teria sido contraída.
Por trás da morte igualmente infeliz de
Lassalle estaria outra mulher, uma vez
que este morrera abatido num duelo por
causa de uma paixão por Hele von
Dönniges, comprometida com o príncipe valáquio Janko von Rakowitz; episódio imortalizado na obra Tragic
Comedians, de Georges Meredith. A expressão cherchez la femme era, pois,
uma espécie de palavra de ordem que revelava um alto grau de misoginia envolvendo os sentimentos de preocupação
com o irmão Alex a fim de que ele pudesse ter uma vida doméstica feliz.
Doença orgânica, a ataxia locomotora ou
psíquica, (a neurose), tinham a mesma
raiz: a mulher.
Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, mar. 2002
63
Clínica do Social
É ainda Freud quem introduz aqui o escritor francês Émile Zola. No volume
intitulado L’Oeuvre, a personagem Sandoz vive este drama da felicidade doméstica e Freud declara que o tema estava
próximo aos seus pensamentos oníricos.
Escrito de trás para frente Zola revelase como Aloz. Substituindo-se “Al”
(que é a primeira sílaba de Alexandre)
por “Sand” que é a terceira sílaba do
mesmo nome, chega-se à efetiva existência de “Sandoz”, personagem de Zola.
Para Freud o neologismo “Autodidasker”
teria surgido da mesmíssima forma.
Mas como a fantasia da reparação ao
professor N. se insinua no sonho? Freud
atendera a um paciente que frustra seu
diagnóstico de neurose rejeitando, com
veemência, a história sexual que Freud
estabelecia como vinculada à neurose. O
paciente sofria de grave doença orgânica, possivelmente alguma degeneração
da medula espinhal. Perplexo diante da
possibilidade de erro no seu diagnóstico,
Freud procura o professor N. a quem
pede opinião. Este sugere ainda assim:
“... conserve o homem sob observação;
deve ser uma neurose”. Freud sabia que
o professor N. não concordava com
suas opiniões sobre a etiologia das neuroses. Não chega a contra-argumentar,
mas manifesta seu ceticismo. Ato contínuo, Freud dispensa o paciente sob o
argumento de que nada podia fazer por
ele, recomendando procurar outra pessoa. Para seu assombro, este conta terlhe mentido, estivera envergonhado e
narra precisamente o fragmento de etiologia sexual que Freud vinha esperando.
Fica naturalmente aliviado, mas diz: “...
fiquei humilhado porque meu consultante, não tendo sido induzido a erro por
considerar a anamnese, vira mais nitidamente do que eu”. Daí a motivação para
a reparação: ele estava certo (embora errado); eu estava errado (embora certo).
No caso havia alguma alegria na reparação pois, afinal, o engano de Freud revelava-se acerto. Havia, na circunstância, a mesma alternativa (engano/acerto)
no que tange “ao dano orgânico e funcional causado por uma mulher, ou, mais
apropriadamente, pela sexualidade: paralisia progressiva ou neurose? (O tipo de
morte de Lassalle podia ser imprecisamente classificada, talvez, na segunda
categoria)”.
Esta última referência de Freud nos permite interrogar acerca do lugar da misoginia nesta cerrada trama. Em alguma
medida, mulher e sexualidade parecem
ser intercambiáves. Que tipo de vínculo
estaria a aproximar a mulher e a neurose? Aleto seria esta cristalização? Mulher, sexualidade e tentação? Mulher, sexualidade e inferno?
O professor N., devido a suas ligações
com Breslau e com a família que ali fixara residência, desempenhara o seu papel por causa desta analogia, mas não
apenas por isso. De fato, ocorrera um
outro episódio ao fim da consulta. Assim
Freud (1901, p. 322) se pronuncia:
Quando ele dera sua opinião e assim encerrou sua discussão médica, (logo) passou a
assuntos mais pessoais:
— Quantos filhos tem agora?
Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, mar. 2002
64
Gisálio Cerqueira Filho
— Seis! (ele então fez um gesto de admiração e interesse).
— Meninas ou meninos?
— Três e três, eles são meu orgulho e meu
tesouro.
— Bem, agora fique de guarda! As meninas são bastante seguras, mas educar meninos leva a dificuldades mais tarde.
Freud narra que protestou que os seus
haviam se comportado muito bem até
então. Evidentemente, este segundo diagnóstico sobre o futuro dos meninos, não
agradara mais do que o primeiro, de
acordo com o qual o paciente estava sofrendo de uma neurose. Assim, estas
duas expressões estavam ligadas por sua
contigüidade pelo fato de terem sido experimentadas simultaneamente; e, ao inserir a história da neurose em seu sonho, Freud interpreta que a estava substituindo pela conversa sobre educação,
que tinha mais ligação com os pensamentos oníricos, visto que se referia tão
de perto às preocupações posteriormente
externadas pela esposa. E arremata dizendo que mesmo o (meu) temor de que
N. tivesse razão naquilo que disse sobre
a dificuldade de educar meninos; aquele
receio encontrou um lugar no sonho,
pois jazia oculto por trás da representação do (meu) desejo de que (eu próprio)
poderia estar enganado ao abrigar tais
temores. A mesma fantasia serviu, sem
alterações, para representar ambas as alternativas opostas.
Por que as meninas são mais seguras?
Por que educar os meninos seria mais
difícil? Elas são mais fáceis de serem
“seguras” em casa? Sempre poderia ha-
ver uma figura de mulher fatal a desviar
os meninos? Não residiria aqui, neste temor, uma forte dose de misoginia?
Embora presentes enquanto alternativas
opostas (acerto/engano) na fantasia,
ambas parecem não ser capazes de lidar,
no sonho Autodidasker, com o espectro
da misoginia que a figura da mulher enseja. Já no sonho do conde Thun, a dificuldade de lidar com a política é transferida pela mesma via da misoginia para
o poder, enfim, demoníaco, da mulher.
Talvez em tom de blague e carregado de
senso de humor, mas também eivado de
misoginia, Freud (1937, p. 257) assim se
refere, naquele que é considerado seu
“texto-testamento”, aos impasses mais
significativos relativos ao sucesso do tratamento psicanalítico:
... temos que chamar a Feiticeira em nosso
auxílio, a metapsicologia da feiticeira. Sem
especulação e teorização metapsicológica,
quase disse fantasiar, não daremos outro
passo à frente. Infelizmente, aqui como
alhures, o que a Feiticeira nos revela não é
muito claro nem minucioso.
Muito provavelmente trata-se, aqui, de
uma alusão à personagem presente na literatura de Goethe, de que Freud era admirador. Os desafios que, em alguma medida, os poderes – secular e clerical – impõem; aquele, através da autoridade política, e, este, através da Igreja, só poderão
ser adequadamente enfrentados se forem
capazes de levar em conta que ambos estão historicamente assentados numa concepção altamente misógina que está a merecer análise crítica e completa revisão. „
Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, mar. 2002
65
Clínica do Social
REFERÊNCIAS
ANZIEU, Didier. A auto-análise de Freud e
a descoberta da psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.
CERQUEIRA FILHO, Gisálio. Máquina mortífera II (sobre a intolerância). Niterói:
LCP/UFF, 2001. Na Internet ver
www.espacoacademico.com.br, n. 8,
jan./2002.
____ & NEDER, Gizlene. Emoção e política: (a)ventura e imaginação sociológica para o século XXI. Porto Alegre:
Sérgio Fabris Editor, 1997.
ELIAS, Norbert. Duelo e filiação na classe
dominante imperial: exigir e dar satisfação. In: Os alemães: a luta pelo poder
e a evolução do habitus nos séculos
XIX e XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. p.
52-117, Parte B.
FREUD, Sigmund. Coleção Standard Brasileira (ESB) das Obras Psicológicas
Completas de Freud. 2a ed. Rio de Janeiro: Imago, 1987.
____ (1901). A interpretação dos sonhos. Op. cit. v. IV e V.
____ (1909). Cinco lições de psicanálise.
Op. cit. v. XI.
____ (1937). Análise terminável e interminável. Op. cit. v. XXIII.
GINZBURG, Carlo. Mitti, emblemi, spie: morfologia e storia. Torino: Einaudi, 1986.
____ A micro-história e outros ensaios.
Rio de Janeiro: Difel, 1989.
____ Olhos de madeira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
RODRIGUÉ, Emílio. Sigmund Freud: o século da psicanálise (1895-1995). São
Paulo: Escuta, 1995.
ROTH, Michael S. Freud: conflito e cultura.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. Especialmente John E. Toews, “Ter e ser”, p.
68-9. Também “Oedipus Politicus”, de
José Brunner, na mesma obra, p. 76-86).
ROUANET, Sérgio Paulo. Freud e o caso
Dreifuss. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 7/12/1998. Caderno do Livro .
SCHORSKE, Carl. Viena fin-de-siècle: política e cultura. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989. cap. IV.
____ Pensando com a história: indagações na passagem para o modernismo.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
SINOPSES da Standard Edition (ESB) da
Obra Psicológica Completa de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Salamandra, 1979.
ZIZEK, Slavoj. O superego pós-moderno.
Folha de S. Paulo, São Paulo, 23/5/
1999. Caderno MAIS!. (originalmente
publicado no London Review of Books.)
Artigo recebido em janeiro/2002
Aprovado em fevereiro/2002
A redação da Pulsional Revista de Psicanálise recebe até o dia 15 as notícias a
serem veiculadas no mês subseqüente. O
cumprimento deste prazo é primordial
para a sua divulgação.
Pulsional Revista de Psicanálise, ano XV, n. 155, mar. 2002