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Anais
do XII e XIII Encontros
dos Alunos de Pós-Graduação em Linguı́stica da USP
Maria de Fátima Almeida Baia
Livia Oushiro
Ivanete Belém do Nascimento
(organizadoras)
Anais
do XII e XIII Encontros
dos Alunos de Pós-Graduação em Linguı́stica da USP
Universidade de São Paulo
Reitor: Prof. Dr. João Grandino Rodas
Pró-Reitor de Pós-Graduação: Prof. Dr. Vahan Agopyan
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Diretora: Profa. Dra. Sandra Margarida Nitrini
Departamento de Linguı́stica
Chefe do departamento: Prof. Dr. Ronald Beline Mendes
Coordenador da Pós-Graduação: Prof. Dr. Waldir Beividas
Organizadoras
Maria de Fátima Almeida Baia
Livia Oushiro
Ivanete Belém do Nascimento
Diagramação
Livia Oushiro
Comissão Organizadora do XII ENAPOL
Bruna Paola Zerbinatti, Bruna Seixas Lima, Lı́dia Lima da Silva, Roberlei Alves
Bertucci, Sonia Rodrigues Rocha, Sueli Maria Ramos da Silva (Coordenadora)
Comissão Organizadora do XIII ENAPOL
Antonia Fernanda de S. Nogueira, Fernanda Canever, Ivan Rocha da Silva, Ivanete
Nascimento (Vice-coordenadora), Lara Frutos, Livia Oushiro, Maria de Fátima A.
Baia (Coordenadora), Mariana Santos de Resenes, Paula R. Gabbai Armelin
Seleção de textos proferidos durante os XII e XIII Encontros dos Alunos de Pós-Graduação em Linguı́stica da Universidade de São Paulo/ Maria de Fátima Almeida Baia, Livia Oushiro, Ivanete Belém do
Nascimento (orgs.)/ São Paulo: Editora Paulistana, 2012. Vários Autores. 182 p. ISBN 978-85-99829-639.
Imagem da capa: RGBStock.com.
Logo XII ENAPOL: Juliana Mendes de Oliveira.
Logo XIII ENAPOL: Tiago Penna.
Apresentação
O presente volume reúne um conjunto de 13 artigos, que correspondem
a uma seleção dos trabalhos apresentados no XII e no XIII ENAPOL –
Encontro de Alunos de Pós-Graduação em Linguı́stica, realizados em 2009 e
2010, respectivamente. Desde sua primeira edição em 1998, o ENAPOL tem
proporcionado um espaço de discussão a respeito dos diferentes trabalhos
desenvolvidos por mestrandos e doutorandos do Programa de Pós-Graduação
em Semiótica e Linguı́stica Geral da Universidade de São Paulo (USP).
A 12a edição do ENAPOL (17 a 19 de junho de 2009 – Anfiteatro das
Colmeias/USP) discutiu o estado da Linguı́stica em relação a diferentes
subáreas, sob o tema “Linguı́stica Contemporânea: Desafios e Tendências.”
O evento contou com a apresentação de 41 trabalhos de pós-graduandos,
distribuı́dos em onze sessões de comunicações; o debate se enriqueceu pela
participação de diversos professores – Prof. Dr. Sı́rio Possenti (UNICAMP),
Prof. Dr. Marcos Lopes (FFLCH-USP), Profa. Dra. Letı́cia Mansur (FMUSP), Profa. Dra. Esmeralda Negrão (FFLCH-USP), Profa. Dra. Renata
Mancini (UFF/RJ), Profa. Dra. Elizabeth Harkot-de La-Taille (FFLCHUSP), Profa. Dra. Norma Discini (FFLCH-USP), Profa. Dra. Roberta Pires
de Oliveira (UFSC/SC), Profa. Dra. Ana Muller (FFLCH-USP) e Prof. Dr.
Marcelo Ferreira (FFLCH-USP) –, que expuseram suas visões sobre os mais
recentes desenvolvimentos em suas respectivas áreas de pesquisa.
No ano seguinte, o XIII ENAPOL (16 a 18 de junho de 2010 – Casa de
Cultura Japonesa/USP) teve como tema central “Diálogos: a produção e
a circulação do conhecimento linguı́stico.” Entre as questões discutidas no
encontro estavam: Como anda a produção de pesquisa em Linguı́stica no
Brasil?, Como é o diálogo dentro das linhas de pesquisa e entre elas?, Qual é
a posição do Brasil atualmente na produção linguı́stica internacional?, e Por
que não exportamos mais ideias? O encontro contou com 44 apresentações
de trabalhos de alunos, distribuı́das em onze sessões de comunicações, além
da presença de professores conferencistas e debatedores – Profa. Dra. Mary
Aizawa Kato (UNICAMP), Prof. Dr. Ataliba Teixeira de Castilho (DLCVUSP), Profa. Dra. Cristina Altman (DL-USP), Profa. Dra. Esmeralda
Vailati Negrão, Profa. Dra. Cláudia de Lemos (UNICAMP), Prof. Dr.
Ronald Beline Mendes (DL-USP) e Profa. Dra. Luciana Raccanello Storto
(DL-USP).
Com um total de 85 comunicações, as duas edições do ENAPOL abrangeram diversas áreas de pesquisa em Linguı́stica: Fonética, Fonologia, Sintaxe,
Semântica, Semiótica, Neurolinguı́stica, Análise do Discurso, Historiografia
Linguı́stica, Lexicografia, Linguı́stica Computacional, Linguı́stica Cognitiva,
Lı́nguas Africanas, Lı́nguas Indı́genas, Lı́nguas Crioulas, Sociolinguı́stica e
Dialetologia, Morfossintaxe, Aquisição da Linguagem, Tradutologia, Teoria
da Gramática e Teoria Linguı́stica.
Esperamos que esses anais registrem a diversidade de pesquisas e as
reflexões dos pós-graduandos do Departamento de Linguı́stica da USP quanto
aos diálogos, desafios e tendências em nosso campo.
Maria de Fátima de Almeida Baia
Livia Oushiro
Ivanete Belém do Nascimento
(orgs.)
vii
Sumário
Apresentação
vi
A Prosódia das Emoções: Um Exercı́cio a partir da Fonologia
Prosódica
Aline Mara de Oliveira VASSOLER
1
Interrogativas-Q e Informações Compartilhadas
Livia OUSHIRO
13
Agentividade e Voz nos Padrões Nominais do Hebraico
Rafael Dias MINUSSI
26
Pares Antônimos e Prefixos de Negação em Português
Brasileiro
Sonia LINDBLOM
41
Faa Ningê Bê: Aspectos de uma Gramática Pedagógica para
a Lı́ngua Crioula Principense
Ana Livia AGOSTINHO
53
Os Mil e Um Verbos Árabes Mais Frequentes nos Corpora
Jornalı́stico e Literário: Uma Proposta segundo os
Parâmetros da Lexicografia Pedagógica
Elias Mendes GOMES
68
Algumas Caracterı́sticas da Palavra Sujeita a Apagamento de
Sı́laba em Sândi Externo
Eneida de Goes LEAL
81
Machado de Assis e o Uso da Bı́blia em sua Juventude de
Militante Liberal
Paulo Sergio de PROENÇA
95
Acontecimento em “Tubarões Voadores”
Carolina TOMASI
viii
110
Inacusatividade, Auxiliaridade e Propriedades de Alçamento
com Acabar
Aline Garcia RODERO-TAKAHIRA
124
Descrição e Análise Preliminar dos Pronomes Pessoais em
Pykobjê-Gavião (Timbira)
Talita Rodrigues da SILVA
142
A Modificação de Grau no Domı́nio Verbal em Karitiana
Luciana SANCHEZ-MENDES
150
Verbos Intransitivos Alternantes em Karitiana à Luz da
Teoria de Estrutura Argumental de Hale & Keyser (2002)
Ivan ROCHA
163
Anais dos XII e XIII Encontros dos Alunos
de Pós-Graduação em Linguı́stica da USP.
São Paulo: Paulistana, 2012, p. 1–12.
A Prosódia das Emoções:
Um Exercı́cio a partir da Fonologia
Prosódica
Aline Mara de Oliveira Vassoler∗
Resumo
A emoção está ligada à comunicação expressiva do falante, composta por sinais verbais e não verbais.
Diante das diversas classificações encontradas na literatura, adotaremos neste trabalho as “emoções
discretas” propostas por Scherer (1984): a alegria, a tristeza, o medo e a raiva. A entoação é um dos
aspectos da prosódia, cujos correlatos fı́sicos são a frequência fundamental (F0 ), a duração e a intensidade,
segundo o consenso de diversos autores (Banse & Scherer 1996). Esse trabalho busca segmentar as frases
de acordo com o modelo de Nespor & Vogel (1986). A amostra de fala foi produzida por uma atriz de
58 anos. A gravação foi capturada e analisada pelo software livre Praat. A atriz leu um texto (leitura
neutra) e interpretou a emoção triste. Para o traçado da curva de F0 (curva entoacional), utilizou-se o
WinPitch v.1.87m. Os dados encontrados mostraram que a curva entoacional da fala triste tende a ser
decrescente e as frases entonacionais correspondem com as mesmas fronteiras fonológicas da fala neutra.
As três curvas entonacionais são semelhantes entre si e todas iniciam com elevação de F0 e decrescem
logo em seguida. No entanto, outros parâmetros acústicos, como a duração e a intensidade, também
devem ser analisados. A literatura mostra que a tristeza é caracterizada também pela diminuição na
média de F0 , pouca variação de F0 , diminuição da intensidade, além da diminuição no contorno de F0
(Johnstone & Scherer 2000, Laukka 2004, Souza 2007). Outros sujeitos devem ser incorporados no estudo
para verificar se existe prevalência desses resultados.
Palavras-chave: fonética; prosódia; emoções.
Introdução
O estudo das emoções iniciou-se na Grécia Antiga, mas Aristóteles e Cı́cero
(polı́tico e orador, do séc. I a.C.) foram os precursores dos estudos do
∗
Departamento de Linguı́stica. Este trabalho faz parte da pesquisa de mestrado “Aspectos acústicos
da voz na representação teatral” (CNPq). E-mail: [email protected].
2
Aline M. O. Vassoler
comportamento vocal na expressão de diferentes emoções (Laukka 2004). Os
estudos desde então estavam voltados para as expressões faciais das emoções
e, recentemente, a investigação acerca das expressões vocais tem aumentado
e se destacado (Banse & Scherer 2003).
Apenas no século XIX Charles Darwin (1872) publicou a obra The
expression of the emotions in man and animals.1 Essa obra foi um marco
para a investigação das expressões humanas. O autor analisou a relação entre
as expressões faciais dos seres humanos e dos animais e a expressão funcional
das emoções durante a intenção dos movimentos. Como Darwin (1872) estava
preocupado com as caracterı́sticas biológicas e com os componentes inatos
das expressões faciais, seus estudos levaram a concluir que o comportamento
expressivo do ser humano e dos primatas são consequências da adaptação ao
meio nos quais estão inseridos, ou de respostas funcionais propriamente ditas.
Por isso, no momento da preparação de um movimento intencional, o sujeito
ou o animal realiza movimentos especı́ficos nos músculos faciais. No caso da
fuga de um odor desagradável, por exemplo, o indivı́duo realiza movimentos
especı́ficos para aquela ação.
Embora existam diversas teorias acerca das emoções humanas, não existe
ainda um consenso sobre sua real definição. Por esse motivo, adotou-se neste
trabalho o conceito de “emoções básicas”. As emoções básicas seriam aquelas
envolvidas com os problemas pertinentes da vida, como a competição (raiva),
o perigo (medo), a cooperação (felicidade) e a perda (tristeza) (Laukka 2004).
Neste trabalho, serão realizadas as análises das curvas entonacionais da
tristeza. De acordo com Scherer (1979), devem existir, pelo menos, dois tipos
de fala triste: a tristeza, com caracterı́stica quieta e passiva; e a tristeza
ativa, que ocorre quando o indivı́duo manifesta situações de luto (desespero).
Geralmente, a tristeza ativa não é descrita, dada a extrema dificuldade de
coletar dados nessas situações (Erickson et al. 2005).
A emoção e seus aparatos acústicos
A literatura tem estudado, já há algum tempo, a relação entre as emoções e
os parâmetros acústicos. Segundo Sherer (1989) e Banse & Scherer (1996), a
interferência das emoções no sinal acústico tem sido investigada há mais de
1
A obra de Charles Darwin (1872), The expression of the emotions in man and animals, foi traduzida
para o português como “Expressão das emoções no homem e nos animais”.
A Prosódia das Emoções
3
um século. Essas investigações confirmaram as relações entre os diferentes
estados emocionais e motivacionais com parâmetros acústicos vocais, já que
existem evidências que ao mudar a respiração, a fonação e a articulação, há
modificação do padrão do sinal acústico.
A fala carrega os fenômenos segmentais e os aspectos não segmentais,
como as sı́labas. A prosódia se encarrega desses aspectos não segmentais,
entre eles estão a duração, o pitch - sensação da frequência fundamental (F0 )
e a altura (sensação da intensidade), podendo ser analisados individualmente
ou associados.
A F0 está diretamente relacionada com a entoação da mensagem e pode
ser analisada por meio das medidas da F0 ao longo da fala. Fisiologicamente,
a frequência fundamental depende da taxa de vibração das pregas vocais
da laringe (Ladefoged 1974). Scherer (1984, 2001) propõe um modelo que
relaciona as variações fisiológicas do trato vocal e seus correlatos acústicos
no tocante às emoções humanas. Existem diversas teorias prosódicas que
tentam abarcar esses aspectos acústicos e fonológicos nas lı́nguas naturais.
Uma teoria que promove um cruzamento entre a Prosódia e a Fonologia
é a Fonologia Prosódica, proposta por Nespor & Vogel (1986), que dita
uma organização prosódica da linguagem obedecendo a alguns algoritmos,
permitindo criar constituintes prosódicos na própria lı́ngua. A organização
desses constituintes é hierarquicamente determinada, subdividindo-se em
sı́laba, pé, palavra fonológica, grupo clı́tico, frase fonológica, frase entoacional
e enunciado fonológico.
A organização prosódica realizada por Nespor & Vogel (1986) é utilizada
amplamente nos estudos fonológicos, pois envolve a interação entre os aspectos fonológicos e os aspectos de outros subsistemas gramaticais como o
morfológico, o sintático e o semântico.
Na proposta de Nespor & Vogel (1986), a representação mental está organizada hierarquicamente. Além das caracterı́sticas estruturais, as diferentes
pistas acústicas funcionam também como domı́nio de aplicação de regras
fonológicas especı́ficas e dos processos fonéticos (Gelamo 2006).
A hierarquia dos constituintes prosódicos abrange desde a sı́laba (menor
constituinte prosódico) até o enunciado fonológico (maior constituinte prosódico). Dividido numa hierarquia crescente: a sı́laba; o pé métrico; a palavra
fonológica; o grupo clı́tico; a frase (ou sintagma) fonológico; a frase (ou
4
Aline M. O. Vassoler
sintagma) entoacional e o enunciado fonológico. Os constituintes mais baixos
(a sı́laba e o pé) estruturam-se com informações fonológicas. Os constituintes
acima da palavra fonológica até o enunciado fonológico estruturam-se com as
informações fonológicas e com outros planos linguı́sticos.
A frase entoacional (I) é um constituinte importante no estudo da prosódia
dos enunciados. Nespor & Vogel (1986) definem esse constituinte prosódico
como:
(...) o domı́nio de um contorno de entoação e que os fins de frases
entonacionais coincidem com posições em que pausas podem ser
introduzidas. (Nespor & Vogel 1986)
Como vimos acima, a frase entonacional é hierarquicamente superior à
frase fonológica, podendo ser composta por uma ou mais frases fonológicas.
Apesar de esses nı́veis superiores aceitarem reestruturações com flexibilidade,
existem algumas restrições previstas em suas formulações que devem ser
obedecidas (ver em Nespor & Vogel 1986).
A entoação é um dos parâmetros da prosódia. A entoação é ao mesmo
tempo um traço universal e especı́fico das lı́nguas. Universal por manifestarse de maneira parecida em diferentes lı́nguas, e especı́fica, por exemplo, por
diferenciar as sentenças declarativas das interrogativas por meio da presença
ou ausência da queda da F0 (Orsini 2005).
O falante está atento não apenas ao discurso de seu interlocutor, mas
também às mudanças acústicas que o falante pode provocar na sua voz,
incluindo F0 , duração, intensidade e ritmo (Erickson et al. 2005).
A entoação é um dos aspectos da prosódia, cujos correlatos fı́sicos são a
frequência fundamental (F0 ), a duração e a intensidade (Scarpa 1999).
Os traços prosódicos podem ser vistos sob duas perspectivas: o acento, na
dimensão da palavra, e a entoação, na dimensão da frase (Souza 2007). Neste
trabalho, tentaremos segmentar as frases obedecendo à teoria de Nespor &
Vogel (1986), correlacionando esse aspecto com a curva entoacional.
A Prosódia das Emoções
5
Objetivos e Metodologia
O objetivo deste trabalho é o de comparar o comportamento da F0 da fala
triste com o da fala neutra2 a fim de identificar as fronteiras entoacionais.
Sujeito
A amostra de fala foi produzida por uma atriz com 36 anos de experiência
profissional, com 20 anos de experiência profissional e professora universitária.
Materiais e Método
A atriz leu um texto cientı́fico,3 composto por 226 palavras (Anexo 1). O
corpus já foi analisado anteriormente por Figueiredo (1993). Foram escolhidas
duas sentenças do texto como unidades de análise, sendo a primeira As
células do sangue que fabricam anticorpos são individualizadas e a segunda
participam das mesmas interações. A primeira está localizada no inı́cio do
texto e a segunda no final do texto.
A atriz leu o texto escolhido interpretando a emoção tristeza, repetindo
cinco vezes cada interpretação. O mesmo procedimento foi feito para a leitura
neutra.
A gravação da voz foi realizada numa cabina acústica do LAFAPE
(Laboratório de Fonética e Psicolinguı́stica) na Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP).
Para o traçado da curva da F0 (curva entoacional), utilizou-se o WinPitch
v.1.87m.4 Em seguida, analisamos comparativamente as curvas da F0 da
tristeza e da fala neutra.
2
Fala neutra, neste trabalho, se refere à leitura da atriz sem emoção intencional, isto é, apenas uma
leitura habitual.
3
O texto utilizado como corpus apresenta alguns erros gramaticais (do ponto de vista da gramática
normativa), porém estes foram desconsiderados, visto não ser esse o propósito da pesquisa.
4
Desenvolvido por Philippe Martin.
6
Aline M. O. Vassoler
Análises dos dados e discussão
Fala neutra
Na janela do programa Winpitch v.1.87m (ver na figura 1), o eixo x representa
o tempo em segundos(s) e o eixo y representa os valores da F0 . Como já
foi mencionado anteriormente, a curva da F0 expressa o comportamento
entoacional das sentenças, que nesse caso também será comparado à emoção
tristeza com a fala neutra.
A curva vermelha expressa o valor da F0 em cada ponto do espectrograma
ao longo do tempo, compondo a curva entoacional da sentença 1: As células
do sangue que fabricam anticorpos, são individualizadas.
Na Figura 1, podemos ver a curva entoacional da primeira sentença da
fala neutra (o texto lido pela atriz está no eixo x):
Figura 1 Curva entoacional da sentença As células do sangue que fabricam
anticorpos, são individualizadas na fala neutra.
Ao observar a figura acima, nota-se que os picos máximos da F0 estão
em torno de 220 Hz na palavra célula e por volta de 194 Hz na palavra
individualizadas. Ocorre um declı́nio no final de cada sentença, indicando
uma curva descendente nessa sentença. Esse comportamento é tı́pico das
sentenças declarativas do português brasileiro. É importante atentarmos
A Prosódia das Emoções
7
que as fronteiras acústicas ilustradas na figura acima coincidem com as
demarcações das frases entoacionais da Fonologia Prosódica, como podemos
ver abaixo:
[As células do sangue que fabricam anticorpos]I [são individualizadas]I
As pausas correspondem aos intervalos entre uma frase entoacional e
outra. A última é considerada como uma sentença parentética (situação
prevista na teoria da Fonologia Prosódica). As curvas entonacionais carregam
simultaneamente informações fonológicas e prosódicas, além dos outros
aspectos linguı́sticos não enfocados neste trabalho.
Na Figura 2 abaixo, encontra-se a ilustração da curva entoacional da
última frase do texto da fala neutra:
Figura 2 Curva entoacional da sentença participam das mesmas interações.
Ao analisarmos a Figura 2, nota-se que os picos da frequência fundamental
são mais baixos e menos acentuados que os da sentença 1. O pico mais
elevado está na palavra participaram e está em torno de 173 Hz, bem inferior
aos valores encontrados no inı́cio do texto.
Nesse caso, a frase entoacional do último trecho: [participam das mesmas
interações]I . Embora possa ser considerada uma frase entoacional, a curva
não apresenta picos proeminentes como na sentença 1. O contorno inicia-se
alto e decresce ao longo da frase.
8
Aline M. O. Vassoler
Fala triste
Visto o comportamento da fala neutra, iremos comparar o comportamento
da F0 encontrado nessa condição com a fala triste. Na Figura 3, podemos
ver a curva entoacional da primeira sentença interpretada pela atriz. Nesse
trecho, temos o enunciado inicial do texto lido pela atriz. O pico máximo da
F0 está em torno de 163 Hz na vogal “a”, na sentença 1. Já na sentença 2, o
valor da F0 foi de F0 137 Hz, que está concentrado na vogal “as”, logo no
inı́cio da frase. O acento nuclear da última frase está em “são”, que está em
torno de 141 Hz.
Figura 3 Curva entoacional da sentença As células do sangue que fabricam
anticorpos, são individualizadas na fala triste.
A figura 3 mostra que a curva entoacional dessa emoção apresenta elevação
de F0 na primeira tônica da sentença (“As”). O comportamento da curva
entoacional das duas últimas frases assemelha-se com a fala neutra, porém
numa faixa de frequência inferior.
As frases entonacionais dessa emoção correspondem com as mesmas
fronteiras fonológicas da fala neutra. As três curvas entonacionais são
semelhantes entre si e todas iniciam com elevação de F0 e decaem logo em
seguida, logo, a curva é descendente.
Erickson et al. (2005) analisaram o F0 na fala triste da lı́ngua inglesa
(variante americana) e da lı́ngua japonesa. Ambas apresentaram F0 alto
A Prosódia das Emoções
9
na fala triste espontânea e interpretada. No entanto, na leitura com a
representação teatral emotiva triste, os atores utilizaram o F0 baixo.
Na figura 4, podemos notar como a curva entoacional da frase é baixa,
até mesmo nula em diversos pontos do espectrograma:
Figura 4 Curva entoacional da sentença participam das mesmas interações na
fala triste.
Na fala triste, a curva entoacional encontrada foi decrescente, corroborando os dados da literatura pesquisada. Laukka (2004) mostrou também
essa caracterı́stica na lı́ngua inglesa. A literatura mostra que a tristeza é
caracterizada também pela diminuição na média de F0 , pela variação F0 , pela
diminuição da intensidade e pela diminuição do contorno da F0 (Johnstone
& Scherer 2000, Laukka 2004, Souza 2007).
As situações das frases entonacionais se repetem na emoção triste. Não
houve diferenças entre a fala neutra e a emoção triste, no que se refere à
frase entoacional, salvo a faixa de frequência. Como podemos ver abaixo, a
fala triste tem a média da F0 inferior à fala neutra.
Na figura acima, pode-se ver que a média da tristeza é inferior à fala
neutra (20 Hz). Como visto anteriormente, os dados da F0 dessa atriz são
semelhantes aos da literatura pesquisada.
10
Aline M. O. Vassoler
Figura 5 Média das cinco repetições da fala neutra e da tristeza.
Conclusão
Tanto na fala neutra como na tristeza, as curvas da F0 são descendentes.
O mesmo ocorre com na tristeza, salvo uma diferença importante que
contribuirá para a diferenciação da fala neutra e da tristeza. Enquanto o
primeiro pico da F0 na fala neutra está acima de 200 Hz, na tristeza esse pico
decai consideravelmente (abaixo de 150 Hz). Além disso, todo o contorno da
tristeza está numa faixa de frequência inferior (mais grave) ao da fala neutra.
As análises das curvas da F0 são fundamentais na diferenciação da tristeza
com a fala neutra.
Os dados encontrados neste trabalho mostram que a curva entoacional da
fala triste tende a ser decrescente. No entanto, outros parâmetros acústicos,
como a duração e a intensidade, também devem ser analisados. Assim como
na literatura, esses parâmetros parecem alterar significativamente em cada
emoção. Outros sujeitos também deverão ser incorporados no estudo para
verificar se existe prevalência desses resultados.
Abstract
The emotion manifested in the speaker’s voice and his expressive communication is
composed of verbal and nonverbal aspects. This paper will adopt Scherer’s (1984) “discrete
emotions”: joy, sadness, fear and anger. The intonation is one of the aspects of prosody,
whose physical correlates are the fundamental frequency (F0 ), duration and intensity,
according to the consensus of many authors. The aim of this work is the segmentation
of sentences according to Nespor & Vogel´s model (1986), Prosodic Phonology, through
the observation of the intonational curve. The speech sample produced by an actress
aged 58 was captured and analyzed with the free software Praat. The actress read a text
playing the sad emotion. To draw the F0 curve (intonational curve), we used the WinPitch
A Prosódia das Emoções
11
v.1.87m (developed by Philippe Martin). The data obtained in this work show that the
intonational curve of sad speech tends to decrease and the boundaries of intonational
phrases correspond to the neutral speech. The three curves are similar and start with an
increasing F0 and decrease soon. Other acoustic parameters such as duration and intensity
should be considered. The literature shows that sadness is also characterized by a decreasing
F0 , little variation in F0 , decreasing intensity, and decreasing F0 contour (Johnstone &
Scherer 2000, Laukka 2004, Souza 2007). Other subjects should be incorporated in this
study to verify the prevalence of these results.
Keywords: Phonetics; Prosody; Emotions.
Referências
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Personality and Social Psychology, v. 70, p. 614-636, 1996.
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study of some acoustic and articulatory characteristics of sad speech. Phonetica, 63, p.
1-25, September, 2005.
Figueiredo, R. M. A eficácia de medidas extraı́das do espectro de longo termo para a
Identificação de Falantes. Cadernos de Estudos Lingüı́sticos, vol. 25, p. 129-160, Jul-Dez.
1993.
Gelamo, R. P. Organização prosódica e interpretação de Canções: a frase entoacional em
quatro Diferentes interpretações de Na batucada da vida. Dissertação (Mestrado). São
José do Rio Preto: Universidade Estadual Paulista, 2006.
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J. Handbook of Emotions, 2 ed., p. 220-235, New York: Guilford Press, 2000.
Laukka, P. Vocal Expression of Emotion: Discrete Emotion and Dimensional Accounts.
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Ladefoged, P. Elements of acoustic phonetics. Chicago: University of Chicago, 1974.
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Orsini, M. T. Análise entoacional das construções de tópico. IX Congresso Nacional de
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Scarpa, E. Estudos de Prosódia. Campinas: Editora UNICAMP, 1999.
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Vaz, N. M., Idéias para uma nova imunologia. In: Ciência Hoje II, v. 7, p. 32-8, 1983.
Anexo
Texto I (extraı́do de Vaz 1983 [pág. 33, item 2]):
A reatividade dos linfócitos, as células do sangue que fabricam anticorpos, são
individualizadas. Em cada organismo, as células do fı́gado são provavelmente
iguais entre si, as da pele também, mas os linfócitos são diferentes uns do
outros. Cada um difere do seguinte por possuir na membrana diferentes
receptores, moléculas que garantem a aderência a certas estruturas (ou a
12
Aline M. O. Vassoler
capacidade de fixar certas substâncias). Assim, o linfócito seguinte adere
as estruturas diferentes. Para ser mais exato, as diferenças existem entre
clones de linfócitos. Quando um determinado linfócito se multiplica e gera
duas, quatro, oito milhares de cópias idênticas, este conjunto constitui um
clone linfocitário. Dentro de um mesmo clone, os linfócitos são iguais: têm
os mesmos receptores de membrana, aderem às mesmas coisas, participam
das mesmas interações.
Anais dos XII e XIII Encontros dos Alunos
de Pós-Graduação em Linguı́stica da USP.
São Paulo: Paulistana, 2012, p. 13–25.
Interrogativas-Q e
Informações Compartilhadas
Livia Oushiro∗
Resumo
Com base nos pressupostos teóricos e metodológicos da Sociolinguı́stica Variacionista (Labov 1966,
1972), este artigo argumenta em favor da possibilidade de analisar duas formas de Interrogativas-Q,
as interrogativas-qu (“O que você fez?”) e as interrogativas qu-in-situ (“Você fez o quê?”), como variantes de uma variável, e apresenta os resultados de uma análise quantitativa em que é testada a hipótese de
correlação entre a variável dependente - “Interrogativas-Q” - e um grupo de fatores discursivo-pragmático
- “Informações compartilhadas” (Stalnaker 2002, Pires & Taylor 2007). O estudo de variáveis sintáticas
dentro do paradigma laboviano tem sido controverso há mais de 30 anos. Pode-se questionar, por um
lado, a equivalência semântica entre diferentes estruturas sintáticas e, por outro, a opcionalidade de
emprego entre essas estruturas em diferentes contextos sintáticos e pragmáticos. Pires & Taylor (2007),
seguindo uma linha de análise formal, questionam a livre opcionalidade do emprego das interrogativasqu-in-situ no português brasileiro, argumentando que tais construções podem ser empregadas somente
em contextos em que a pressuposição da interrogativa já faz parte das informações compartilhadas (Stalnaker 2002) entre os interlocutores; as interrogativas-qu, além de poder ser empregadas nestas situações,
também poderiam ocorrer em casos em que a pressuposição da interrogativa não faz parte das informações compartilhadas pelos participantes da interação comunicativa. Este artigo reporta uma análise que
testou a hipótese de Pires & Taylor (2007) a partir do exame de um corpus sincrônico de lı́ngua oral,
composto de 48 entrevistas sociolinguı́sticas com informantes paulistanos. Propõe-se que as informações
compartilhadas devem ser analisadas com base em um contı́nuo e em termos de tendências de uso, em
vez de restrições categóricas, e demonstra-se que diferentes tipos de pressuposição (cultural, “universal”
ou do discurso) possuem uma influência no emprego variável de Interrogativas-Q.
Palavras-chave: interrogativas-Q; interrogativas-qu; interrogativas qu-in-situ; português paulistano;
variação sintática
∗
Departamento de Linguı́stica da Universidade de São Paulo. Este trabalho se vincula à pesquisa de
mestrado intitulada “Uma análise variacionista para as Interrogativas-Q”, financiada pela FAPESP
(Proc. no. 2009/03190-0). E-mail: [email protected].
14
Livia Oushiro
Introdução
Este artigo argumenta em favor da possibilidade de analisar diferentes
estruturas de Interrogativas-Q como variantes de uma variável sociolinguı́stica
(Labov 1972), e apresenta os resultados de uma análise quantitativa de
covariação entre a variável dependente e um grupo de fatores discursivopragmático, Informações Compartilhadas (Stalnaker 2002, Pires & Taylor
2007).
Interrogativas-Q são sentenças que contêm um pronome, advérbio ou
adjetivo interrogativo: (o) que, que + NP, qual (-is), qual (-is) + NP, quanto
(-a, -os, -as), quanto (-a, -os, -as) + NP, quem, como, quando, onde e por
que. No português paulistano atual, há quatro estruturas produtivas de
Interrogativas-Q:1
(1)
a.
b.
c.
d.
Interrogativas-qu: O que você fez?
Interrogativas qu-que: O que que você fez?
Interrogativas é-que: O que é que você fez?
Interrogativas qu-in-situ: Você fez o quê?
Esta análise constrasta o emprego de interrogativas qu-in-situ (1d) com o de
interrogativas-qu (1a)2 em um corpus sincrônico (2003-2008) composto de 48
entrevistas sociolinguı́sticas com informantes paulistanos, estratificados de
acordo com o seu sexo/gênero, a sua faixa etária e a sua escolaridade. Os
pressupostos teóricos e metodológicos são da Sociolinguı́stica Variacionista
(Labov 1966, 1972).
A variação linguı́stica pressupõe a opção de dizer “a mesma coisa” de
diversas formas (Labov 1972). De acordo com a formulação de Labov
(1966, 1972), certas variantes são semanticamente equivalentes quando sua
referência ou valor de verdade são idênticos. No entanto, o estudo da
variação sintática, dentro do paradigma da Sociolinguı́stica Variacionista,
tem sido controverso desde o artigo de Lavandera de 1978, que questiona
a possibilidade de estabelecer equivalência semântica entre unidades além
1
É possı́vel ainda citar duas outras estruturas de Interrogativas-Q atestadas no português brasileiro: Q
que é que - p.ex., “O que que é que você está querendo?” (Mioto, 1997); e É Q que - p.ex., “É o que
que ele quer?” (Lessa de Oliveira, 2005). No entanto, essas estruturas parecem ser pouco produtivas
no português paulistano; no corpus analisado, há apenas três ocorrências de Q que é que e apenas
uma de É Q que.
2
Como se discute adiante, a análise de diferentes estruturas sintáticas como variantes de uma variável
sociolinguı́stica envolve o estabelecimento de equivalência semântica e pragmática entre as variantes
em potencial. Esta discussão preliminar restringe-se a duas das quatro variantes a fim de desenvolver
uma análise mais aprofundada dos usos dessas formas na lı́ngua em uso.
Interrogativas-Q e Informações Compartilhadas
15
do nı́vel fonológico. Segundo a autora, unidades como morfemas, itens
lexicais ou construções sintáticas possuem, por definição, um significado,
ao contrário de fonemas que, igualmente por definição, não possuem uma
“constância de referência”. Diante dessa avaliação, Lavandera (1978) sugere
uma flexibilização do critério de equivalência semântica com base no valor de
verdade em favor de um critério funcional de comparabilidade: duas ou mais
formas seriam equivalentes se, dentro de um mesmo contexto discursivo, elas
exercem a mesma função, ainda que seu valor de verdade não seja idêntico.
Labov (1978), em resposta ao artigo de Lavandera, argumenta contra
a extensão do significado e afirma que o sociolinguista, ao contrário, deve
limitar o contexto variável ao máximo a fim de garantir a precisão de análise.
Assim, contextos em que a variação é neutralizada ou em que o emprego
de uma variante obedece a uma regra categórica devem ser descartados. A
questão da equivalência do valor de verdade - ou, como Labov prefere definir,
“estado de coisas” - é relevante para que se garanta a opcionalidade do falante
e, desse modo, para que se identifique adequadamente o peso que diferentes
variáveis independentes exercem na variação.
Ainda que se estabeleça a equivalência semântica de certas formas em determinados contextos sintáticos, também é possı́vel questionar a equivalência
pragmática dessas estruturas na lı́ngua em uso. Em um estudo comparativo
sobre as interrogativas qu-in-situ no inglês norte-americano, no português
brasileiro (PB) e no português europeu (PE), Pires & Taylor (2007) argumentam, ao contrário do que normalmente se assume, que tal construção
possuiria restrições discursivo-pragmáticas no PB; as interrogativas qu-in-situ
somente poderiam ser empregadas em contextos em que a pressuposição
da interrogativa já faz parte das informações compartilhadas (Stalnaker
2002) entre os falantes - em outras palavras, as interrogativas qu-in-situ não
poderiam ser empregadas em contextos de “perguntas de sopetão”, em que
a pressuposição da interrogativa não faz parte do conjunto de informações
compartilhadas entre os interlocutores. Se a hipótese de Pires & Taylor
(2007) estiver correta, o contexto variável de Interrogativas-Q no PB deve
excluir esse tipo de contexto discursivo-pragmático.
Assim, o estudo da variação entre diferentes estruturas sintáticas requer:
(a) a definição dos contextos em que as formas podem se alternar, ou seja,
em que o uso de uma determinada estrutura não se mostre categórico; (b)
16
Livia Oushiro
o estabelecimento de um critério de equivalência semântica entre as formas
que demonstravelmente se alternam em certos contextos; e (c) a discussão da
equivalência pragmática entre as formas, a fim de que se garanta de facto a
opcionalidade do falante.
Oushiro (2009) discute em detalhes os requisitos (a) e (b) acima, e
apresenta uma análise qualitativa do requisito (c). O envelope de variação
entre as diferentes formas de Interrogativas-Q é definido do seguinte modo:
Envelope de variação de Interrogativas-Q Sentenças que contêm
apenas um constituinte interrogativo em uma oração principal ou
em uma oração encaixada introduzida por um complementizador,
excetuando-se os casos em que o constituinte interrogativo exerce
a função sintática de sujeito. (Oushiro 2009: 2448)
A partir dessa definição, são excluı́das (i) ocorrências de Interrogativas-Q
com mais de um constituinte interrogativo, uma vez que, nesse contexto,
cada constituinte normalmente ocorre in situ (2); (ii) orações encaixadas
não introduzidas por um complementizador que ou se, que não permitem
a estrutura in situ (3); e (iii) orações em que o constituinte interrogativo
exerce a função sintática de sujeito, em que as estruturas in situ e -qu são
estruturalmente ambı́guas (4).
(2)
a. Joseane: quem vai trocar com quem? (F1S)3
b. *Quem com quem vai trocar?
(3)
a.
(4)
Claudia: o que mais marcou na minha infância?... (F1G)
Renata: você já sabe [em quem vai votar nas próximas eleições]?
(F2S)
b. *você já sabe [vai votar em quem nas próximas eleições]?
Dada a impossibilidade de atribuir um valor de verdade a formas interrogativas, estabelece-se como critério de equivalência semântica o conceito
de pressuposição do falante, tal como definido por Stalnaker (2002: 701):
“To presuppose something is to take it for granted, or at least act as if
one takes it for granted, as background information - as common ground
among the participants in the conversation.” (Grifo do autor). Desse modo,
3
Os exemplos retirados do corpus são seguidos da identificação do perfil do informante: seu sexo (M:
masculino; F: feminino); sua faixa etária (1: de 20 a 30 anos; 2: de 35 a 45 anos; 3: 50 anos ou mais);
e seu nı́vel de escolaridade (G: até Ensino Fundamental; S: curso superior).
Interrogativas-Q e Informações Compartilhadas
17
assume-se que tanto em sentenças “O que você fez?” quanto “Você fez o
quê?”, a pressuposição do falante é a mesma, a saber, que “o interlocutor
fez alguma coisa”, e que, portanto, essas estruturas podem ser consideradas
semanticamente equivalentes.4
Neste artigo, desenvolve-se a investigação a respeito da equivalência
pragmática entre as formas (requisito (c) acima) através de uma análise
qualitativa e uma análise quantitativa de covariação, feita com o auxı́lio
do programa de análises estatı́sticas VARBRUL (versão GoldVarb X). As
considerações de Pires & Taylor (2007) sobre possı́veis restrições discursivopragmáticas ao emprego de interrogativas qu-in-situ no PB foram tratadas
de modo empı́rico: através de uma análise das Interrogativas-Q na lı́ngua em
uso, argumenta-se que as informações compartilhadas entre interlocutores
devem ser analisadas em termos de um contı́nuo e não de modo categórico, diferentemente do que propõem os autores, e que diferentes tipos de
pressuposição têm uma influência no emprego variável de Interrogativas-Q.
Análise qualitativa e hipótese de correlação
Como já se mencionou, Pires & Taylor (2007) questionam a livre opcionalidade das interrogativas qu-in-situ no PB e argumentam que tais construções
possuem requisitos semânticos e pragmáticos, definidos em termos de “informações compartilhadas” (Stalnaker 2002) entre os interlocutores. Desse
modo, as interrogativas qu-in-situ ocorreriam no PB somente nas seguintes
situações:
(5)
perguntas [+especı́ficas]:
A: Eu fiz sobremesa.
B: Você fez que tipo de sobremesa?
(6)
perguntas esperadas, como em um interrogatório judiciário:
Advogado: Você pode me dizer o que aconteceu no dia 1o de janeiro de
2005, às 4 da tarde?
Réu: Eu estava dirigindo na Avenida dos Andradas.
Advogado: E você estava dirigindo em que direção?
Réu: Eu estava indo para o sul, na direção da biblioteca.
4
O conceito de pressuposição do falante também se aplica a perguntas retóricas: por exemplo, em
ocorrências como “O que eu vou fazer?” e “Eu vou fazer o quê?”, em que o falante quer dizer “Não
há nada a se fazer”, pode-se considerar que a pressuposição é a mesma: “Eu não vou fazer nada.” Cf.
Oushiro (2009) para uma discussão mais detalhada.
18
Livia Oushiro
Advogado: E o policial disse que você estava dirigindo a que velocidade?
(7)
perguntas de referência, que buscam a repetição ou paráfrase de um
antecedente imediato:
A: Eu não vendi aquelas pinturas estranhas.
B: Você não vendeu que pinturas estranhas?
(8)
em que certas caracterı́sticas do contexto extralinguı́stico satisfazem o
requisito de “informações compartilhadas”:
B vê seu amigo A lendo algo (informação compartilhada extralinguı́stica):
B: Você (es)tá lendo o quê?
(exemplos extraı́dos de Pires & Taylor 2007: 3-4.)
Perguntas “de sopetão”, em que a pressuposição não fazia parte das informações compartilhadas, seriam consideradas pragmaticamente infelizes (#) se
construı́das com o constituinte interrogativo in situ ((8), (9-a)). No entanto,
os autores afirmam que as mesmas perguntas seriam adequadas se fossem
construı́das com constituinte movido, como em (9-b):
(9)
a.
b.
Você aborda um colega de trabalho e pergunta, de sopetão:
B: # Você conhece quem em São Paulo?
Você está conversando com um estudante que disse ter interesse
em viajar (mas não disse se já viajou para qualquer lugar). Você
pergunta:
a. B: # Você (já) visitou que/quais paı́ses europeus?
b. B: Que/quais paı́ses europeus você (já) visitou?
(exemplos extraı́dos de Pires & Taylor 2007: 6-7)
Na intuição desta autora, ambas as construções (9-a) e (9-b) são pragmaticamente inadequadas, pelo fato de a pressuposição da interrogativa não fazer
parte das informações compartilhadas entre os interlocutores. Esses exemplos,
no entanto, demonstram como as intuições podem ser falı́veis (Labov, 1996);
nem sempre se pode confiar em julgamentos dos falantes, sobretudo quando
se trata de avaliações acerca de adequação discursivo-pragmática. A fim de
testar a hipótese de Pires & Taylor (2007), a análise qualitativa do corpus
buscou inicialmente verificar se perguntas “de sopetão”, em que a pressuposição da interrogativa não faz parte das informações compartilhadas entre
os interlocutores, de fato não ocorriam com a estrutura de interrogativas
qu-in-situ. No entanto, nas 48 entrevistas sociolinguı́sticas e em um total
de 228 ocorrências de Interrogativas-Q, não houve qualquer ocorrência de
Interrogativas-Q e Informações Compartilhadas
19
pergunta de sopetão. Por um lado, é possı́vel que a própria natureza do
corpus analisado não seja a mais propı́cia para a ocorrência desse tipo de
perguntas; por outro, no entanto, é possı́vel questionar quão frequente esse
tipo de pergunta ocorre, de fato, na lı́ngua em uso. A análise variacionista,
com base no paradigma quantitativo (Sankoff 1980; Guy 1993; Bayley 2002),
tem o objetivo de modelar quantitativamente padrões gerais de variação na
lı́ngua em uso em vez de idiossincrasias, e essas podem ser assim caracterizadas de modo mais apropriado através de uma análise que não se baseie em
instâncias isoladas (Labov 1969).
A partir da análise qualitativa, também é possı́vel identificar diferentes
graus de “compartilhamento de informações” entre os interlocutores. A
pressuposição da interrogativa, em vez de ser analisada em termos de ausência
ou presença, pode se dividir em três tipos: algumas interrogativas exigem um
grau mı́nimo de informações compartilhadas para que possam ser feitas sem
que haja inadequações pragmáticas; outras podem se basear em pressupostos
culturais; e outras, ainda, só podem ser feitas após o estabelecimento de
certas pressuposições no discurso. Considere-se o exemplo em (10):
(10)
Severino: (...) meu filho fazia remo... e tava todos os domingos na Cidade
Universitária e cedo (...) quatro e meia da manhã e a gente ia pro... pra
Cidade Universitária e aı́ ele fazia o remo né?
Gustavo : nossa por que ele começou a fazer remo? (M1S)
Severino: porque ele gostava né?
Nesta ocorrência, percebe-se que a pressuposição da interrogativa (“o seu
filho começou a fazer remo”) é estabelecida como informação compartilhada
entre os interlocutores depois que o falante Severino a coloca no discurso.
Supondo que esta informação não houvesse sido fornecida, a interrogativa
feita por Gustavo seria pragmaticamente anômala, e a probabilidade de
Severino negar essa pressuposição seria bastante alta. Para casos como esse,
pode-se considerar que a pressuposição advém do contexto discursivo.
Diferentemente do exemplo em (10), há certas interrogativas cuja pressuposição não precisa ser mencionada no discurso, pois ela é sempre verdadeira.
Exemplificando:
(11)
Marcelo: o rimbaud gente/ quantos anos cê tem? (M2S)
Daniel: dezessete
Marcelo: dezessete... o rimbaud com a sua idade... ou melhor aos dezesseis
20
Livia Oushiro
anos esse cara...
(12)
Marcia: e você nasceu quando? (F2G)
(13)
João: legal... e cê tá morando onde agora? (M3S)
Nos exemplos (11)-(13), os falantes pressupõem, respectivamente, que seu
interlocutor “tem uma certa idade”, “nasceu em algum momento” e “tá
morando em algum lugar”. Ora, tais pressupostos podem sempre ser assumidos como verdadeiros para todas as pessoas, pois a probabilidade de
que sejam negados é praticamente nula; para a pressuposição do falante,
portanto, pode-se assumir que são “naturalmente” compartilhados. Aqui se
denomina esse tipo de pressuposição de “universal”.
Por fim, é possı́vel identificar um terceiro tipo de pressuposição para a
qual existe uma expectativa cultural de que seja verdadeira (ainda que possa
ser negada). É o caso dos exemplos abaixo:
(14)
Daniela: e ela trabalha com o quê... a sua irmã? (F1S)
(15)
Francisco: tá certo... e cê votou em quem pra presidente... na última
eleição? (M1S)
Nas ocorrências (14) e (15), não havia qualquer menção prévia, até aquele
momento da entrevista, de que “a irmã do interlocutor trabalha” e que
“o interlocutor votou em alguém na última eleição”. No entanto, tais
interrogativas não são consideradas pragmaticamente inadequadas. Ao
mesmo tempo, não é possı́vel afirmar que tais pressupostos sejam dados
universalmente, pois nem todas as pessoas trabalham e nem todos os eleitores
votaram na última eleição. Pode-se dizer que existe uma expectativa social de
que pessoas de determinada idade tenham um trabalho ou uma profissão, e
que elas cumpram o dever constitucional de votar nos pleitos para governantes.
Considera-se, então, que a pressuposição nesses casos é “cultural”.
Assim, identificam-se pelo menos três tipos de pressuposição de acordo
com o grau de informações compartilhadas exigidas para que a interrogativa
seja considerada pragmaticamente adequada: do discurso, “universal” e
cultural. É certo que aquilo que um falante pressupõe pode não corresponder
àquilo que os demais interlocutores pressupõem acerca da mesma situação.
No entanto, descobrir exatamente o que cada falante assume como “compartilhado” a cada momento da interação parece uma tarefa não só fadada
Interrogativas-Q e Informações Compartilhadas
21
ao fracasso como desnecessária. Aqui, assume-se que a reação/resposta do
interlocutor confirma se a pressuposição da interrogativa de fato fazia parte
das informações compartilhadas.
A partir desses três tipos de pressuposições, analisou-se se o emprego
de interrogativas-qu e interrogativas qu-in-situ pode estar correlacionado às
informações compartilhadas entre os interlocutores. Essa hipótese foi testada
através de uma análise quantitativa de covariação com o auxı́lio do programa
de análises estatı́sticas VARBRUL (versão GoldVarb X), cujo resultado se
apresenta a seguir.
Análise quantitativa
Todas as ocorrências de interrogativas-qu e interrogativas qu-in-situ nos 48
inquéritos do corpus sincrônico que se enquadram no envelope de variação
foram codificadas de acordo com um dos três tipos de pressuposição - do
discurso, “universal” ou cultural. Na amostra analisada, houve um total
de 228 dados de interrogativas-qu e de interrogativas qu-in-situ; o grupo de
fatores “Tipo de pressuposição” foi selecionado com um range (diferença
entre o maior e o menos peso relativo) de 42 (p < 0,002. Input: 0,377.). Os
resultados dessa análise quantitativa, em que se verifica correlação entre as
variáveis, são apresentados na tabela a seguir:5
Tabela 1 Distribuição de Interrogativas-Q e pesos relativos de interrogativas
qu-in-situ quanto ao tipo de pressuposição
Tipo de Pressuposiçao
cultural
“universal”
do discurso
Total
-qu
N
12/36
33/57
97/135
142/228
%
33,3
57,9
71,9
62,3
qu-in-situ
N
%
24/36 66,7
24/57 42,1
38/135 28,1
86/228 37,7
P.R.
0,79
0,61
0,37
Range: 42
p < 0,002. Input: 0,377.
A Tabela 1 mostra que as interrogativas qu-in-situ são favorecidas em
contextos em que a pressuposição da interrogativa é cultural (P.R. 0,79),
5
Na mesma rodada, foram incluı́dos os grupos de fatores Sexo/Gênero, Faixa Etária e Escolaridade.
22
Livia Oushiro
assim como nos contextos de pressuposição “universal” (P.R. 0,61). Inversamente, quando a pressuposição da interrogativa advém do discurso, o seu
emprego é desfavorecido (P.R. 0,37). Esse resultado parece indicar que as
informações compartilhadas entre os interlocutores têm um papel no uso
variável de interrogativas-qu e interrogativas qu-in-situ: estas são favorecidas
em contextos em que as informações compartilhadas são dadas cultural ou
universalmente, ou seja, que podem ser assumidas de antemão e têm certa
independência do contexto especı́fico da interação comunicativa; por outro
lado, as interrogativas qu-in-situ são desfavorecidas em contextos em que as
informações compartilhadas advêm do discurso.
Tal resultado requer uma interpretação; aqui se avança apenas um esboço
do que pode ser uma explicação mais completa: as interrogativas de pressuposição cultural ou universal, por possuı́rem certa independência do contexto
imediato de interação comunicativa, podem ter a tendência de aparecer na
conversação como informações novas, diferentemente de interrogativas de
pressuposição do discurso, mais claramente ancoradas no contexto imediato.
Diversos trabalhos (Cf. p.ex. Du Bois 2003; Langacker 1991) apontam para
uma preferência por postergar a introdução de novas informações para a última parte da sentença, o que pode explicar o favorecimento de interrogativas
qu-in-situ nos casos de interrogativas de pressuposição cultural ou universal: apesar de fazer parte do conjunto de informações compartilhadas, tais
pressuposições (p.ex. “Você mora em algum lugar”, “Você tem certa idade”,
“Você votou em alguém nas últimas eleições”) podem não estar ativadas no
fluxo de informações da situação comunicativa especı́fica e, portanto, podem
aparecer no discurso como informações novas.
De modo mais geral, este estudo indica que informações compartilhadas entre interlocutores não se dividem simplesmente entre “presentes” ou
“ausentes”, mas em diferentes graus de compartilhamento. Os resultados
da análise quantitativa mostram que os falantes são sensı́veis a diferentes
tipos de pressuposição de acordo com o grau de informações compartilhadas
exigidas para que as perguntas sejam pragmaticamente adequadas, e que
esses diferentes graus, por sua vez, têm uma influência no emprego variável
de Interrogativas-Q.
Interrogativas-Q e Informações Compartilhadas
23
Considerações finais
Este artigo fez uma análise qualitativa e quantitativa do uso de interrogativasqu e interrogativas qu-in-situ em relação às informações compartilhadas
(Stalnaker 2002) entre os falantes da interação comunicativa, a partir da
perspectiva da Sociolinguı́stica Variacionista e da lı́ngua em uso, a fim de
testar a hipótese de Pires & Taylor (2007) a respeito de restrições discursivopragmáticas para o emprego de interrogativas qu-in-situ no PB. A análise
qualitativa relevou a improdutividade de perguntas “de sopetão” no corpus
de entrevistas sociolinguı́sticas, ao mesmo tempo em que identificou diferentes graus de “compartilhamento” de informações entre interlocutores: a
pressuposição da interrogativa pode advir do discurso, de um fundo comum
cultural ou, ainda, “universal”. A análise quantitativa testou se esses diferentes tipos de pressuposição possuem uma influência no emprego variável de
duas estruturas sintáticas de Interrogativas-Q, in situ ou -qu; nessa análise,
constatou-se que perguntas de pressuposição cultural e “universal” são aquelas que mais favorecem o emprego de interrogativas qu-in-situ. Propôs-se,
como uma primeira interpretação, que esses resultados devem-se a tendências
mais gerais de organização da informação do discurso, como a preferência por
postergar a introdução de novas informações à última parte da sentença.6
O presente trabalho, além de fornecer um exemplo de como uma variável
discursivo-pragmática pode ser instrumentalizada em uma análise quantitativa de covariação, contribui para a investigação de variáveis linguı́sticas
além do nı́vel fonológico, questão de relevo para os estudos variacionistas
desde os artigos de Lavandera e Labov em 1978.
Abstract
Based on the theory and methods of Variationist Sociolinguistics (Labov 1966, 1972), this
paper defends the possibility of analyzing two structures of Wh-interrogatives, “simple”
wh-interrogative (“O que você fez?”) and wh-in-situ (“Você fez o quê?”), as variants of
a sociolinguistic variable, and presents the results of a quantitative analysis which tested
if there is a correlation between the dependent variable - “Wh-interrogatives” - and a
discourse-pragmatic factor group - “Common ground” (Stalnaker 2002, Pires & Taylor
2007). The study of syntactic variables within the Sociolinguistics paradigm has been
controversial for over 30 years. Questions are raised, on the one hand, about the semantic
6
A fim de investigar mais profundamente essa interpretação, foi elaborada, na continuidade desta
pesquisa, uma nova hipótese de correlação, “Grau de ativação do fundo comum”, que investiga se
pressuposições recentemente ativadas na conversação possuem uma influência no emprego variável de
Interrogativas-Q (cf. Oushiro 2010, 2011).
24
Livia Oushiro
equivalence between different syntactic structures and, on the other, about the optional use
between these structures in different syntactic and pragmatic contexts. Pires & Taylor
(2007), within a formal framework of analysis, question free choice of use of wh-in-situ
in Brazilian Portuguese, arguing that this structure can only be employed in contexts in
which the presupposition of the wh-interrogative is part of common ground (Stalnaker
2002) among interlocutors. “Simple” wh-interrogatives could be employed instead in these
situations, as well as when the presupposition is not part of speakers’ common ground.
This article reports an analysis that tested Pires & Taylor’s (2007) hypothesis through
the examination of a synchronic spoken language corpus, consisting of 48 sociolinguistic
interviews with paulistano speakers. We propose that common ground should be analyzed
as a continuum and in terms of tendencies of use instead of a categorical restriction, and
we show that different types of presupposition (cultural, “universal”, and discourse) have
an influence on the variable use of Wh-interrogatives.
Keywords: Wh-interrogatives; ‘simple’ wh-interrogatives; wh-in-situ; Paulistano Portuguese; syntactic variation
Referências
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Labov, W. Contraction, deletion, and inherent variability of the English copula. Language
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Agentividade e Voz nos Padrões
Nominais do Hebraico
Rafael Dias Minussi∗
Resumo
Este artigo tem como objetivo principal discutir a seleção de argumentos com base nas nominalizações do
hebraico. Como arcabouço teórico para esse estudo, tomamos a Morfologia Distribuı́da (MD) (Cf. Halle
& Marantz 1993; Marantz 1997), a qual afirma que tanto palavras quanto sentenças são formadas durante
a derivação sintática. Assim, por meio da descrição dos dados, notamos a existência de dois padrões de
nominalizações, que possuem diferentes tipos de restrições para os elementos que as acompanham. Além
disso, refletimos sobre as estruturas de um dos padrões vocálicos.
Palavras-chave: Núcleos funcionais; núcleos lexicais; nominalizações; raı́zes abstratas; Morfologia Distribuı́da.
Introdução
Este trabalho, ainda em andamento, tem como objetivo maior estudar a
estrutura argumental nas nominalizações e, por consequência, entender que
tipo de núcleo faz a seleção de argumentos, ou seja, se são núcleos lexicais
(raı́zes) ou núcleos funcionais. A questão de que tipo de núcleo faz a seleção
dos argumentos é colocada, uma vez que tratamos do fenômeno da seleção
argumental numa teoria não lexicalista. Por sua vez, como objetivo especı́fico
dessa pesquisa, estudaremos as nominalizações do hebraico. O estudo da
lı́ngua hebraica nos interessa porque tal lı́ngua apresenta um sistema de
formação de palavras, que envolve raı́zes triconsonantais, que nos permitirão
estudar os chamados núcleos lexicais, e padrões vocálicos, que nos permitirão
estudar os núcleos funcionais, que são os responsáveis pela categorização das
∗
Departamento de Linguı́stica da Universidade de São Paulo. Este trabalho faz parte de pesquisa de
doutorado financiada pelo CNPq. E-mail: [email protected].
Agentividade e Voz nos Padrões Nominais do Hebraico
27
raı́zes triconsonantais. O estudo desses padrões vocálicos categorizadores
permitirá entendermos melhor qual a contribuição semântico-sintática dos
núcleos chamados funcionais na formação das sentenças. Dessa forma, por
meio dos estudos desses dois tipos de núcleos, levantamos uma questão
principal neste estudo: a estrutura argumental de uma determinada palavra
mantém-se nos diversos contextos categoriais em que a sua raiz formadora se
encaixa?
√
Observemos uma raiz triconsonantal gdl que pode receber padrões
vocálicos de diversas categoriais:
(1)
√
gdl (Raiz)
Padrão Vocálico
a. CaCaC1 (v)
b. CiCCeC (v)
c. hiCCiC (v)
d. CaCoC (a)
e. CoCeC (n)
f. miCCaC (n)
g. CCuCa (n)
h. CCiCa (n)
Palavra formada
gadal (crescer)
gidel (elevar, criar, cultivar (padrão causativo))
higdil (aumentar)
gadol (grande)
godel (tamanho)
migdal (torre)
gdula (grandiosidade)
gidla (crescimento)
Podemos verificar por meio desse paradigma que, de acordo com o padrão
vocálico recebido pela raiz, essa toma um significado único, além de uma
categoria. Desse modo, alguns autores que estudaram o hebraico (Cf. Glinert
1989, Arad 2004, Minussi 2008 etc.) afirmam que as raı́zes do hebraico
possuem um conceito e adquirem um significado próprio de acordo com o
padrão vocálico que as categoriza. Bem, essa ideia pode ser relacionada
à ideia de fases dentro de palavras defendida por Arad (2004) e Marantz
(2001). Ambos os autores desenvolvem suas ideias dentro do quadro teórico
da Morfologia Distribuı́da, teoria que utilizaremos como arcabouço teórico
nesta pesquisa.
A Morfologia Distribuı́da (MD) (Cf. Halle & Marantz 1993, Marantz
1997, Halle 1997) não prevê a existência de um léxico gerativo e um de
seus pressupostos é o de que tanto palavras quanto sentenças são formadas
28
Rafael Dias Minussi
durante a derivação sintática, ou seja, estão sujeitas aos mesmos princı́pios
e às mesmas operações como merge, move, copy etc. Sendo assim, não
há entradas lexicais formadas ao inı́cio da derivação. Essa teoria postula
ainda a existência de três Listas: Lista A, que contém as raı́zes abstratas2
e os morfemas abstratos; a Lista B, localizada no caminho para PF, que
contém o material fonológico para as raı́zes e morfemas, de forma que a
união entre o feixe de traços abstratos e o som se dá por meio de regras,
também chamadas de Itens de Vocabulário; a Lista C, também chamada de
Enciclopédia, que contém os significados especiais dados contextualmente
para as raı́zes e o conhecimento de mundo do falante. A sintaxe busca na
Lista A os elementos primitivos para serem manipulados. Pode-se, portanto,
colocar como questão para uma teoria não-lexicalista: onde se encontram as
informações, por exemplo, sobre a estrutura argumental, que em um quadro
teórico como a GB, estavam localizadas nas entradas lexicais?
Ainda de acordo com o paradigma em (1), percebemos que uma raiz
√
gdl pode entrar em padrões vocálicos verbais, nominais e adjetivais e que
essa pode entrar em mais de um padrão de mesma categoria, por exemplo,
se considerarmos apenas a formação de nomes. Preliminarmente, se nossas
observações estão corretas, o fato de a mesma raiz se enquadrar em mais
de um padrão de mesma categoria pode sugerir que tais padrões devam se
comportar de modo diferente, que possuam restrições sintáticas e aspectos
semânticos diversos.
Para verificar a hipótese lançada acima, além de olharmos com mais
atenção para a seleção de argumentos, tomemos os dados de um verbo e suas
nominalizações em (2).
(2)
a.
b.
c.
d.
2
ha-‘ikarim
gidlu
‘et ha-‘agvaniot
DEF-fazendeiros cultivaram MO DEF-tomates
‘Os fazendeiros cultivaram os tomates’
gidul
ha-‘agvaniyot (‘al yedey ha-‘ikarim)
cultivo.CS.m.sg DEF-tomates (por DEF-fazendeiros)
‘O cultivo dos tomates pelos fazendeiros’
ha-‘agvaniot gadlu
DEF-tomates cresceram
‘Os tomates cresceram’
gdilat
ha-‘agvaniot
crescimento.CS.fem.sg DEF-tomates
Consideramos que tanto as raı́zes quanto os morfemas abstratos não possuem conteúdo fonológico, de
forma que ambos estarão condicionados ao princı́pio de Inserção Tardia (Cf. Harley & Noyer 1999).
Agentividade e Voz nos Padrões Nominais do Hebraico
29
‘O crescimento dos tomates’
√
Em (2a), temos uma sentença transitiva, na qual temos a raiz gdl
inserida em um padrão vocálico verbal causativo, que permite, portanto, a
presença de um agente. Já em (2b), temos uma nominalização correspondente
ao padrão verbal causativo e que permite, como observamos no padrão
vocálico verbal, a presença de um agente. Por sua vez, em (2c), temos uma
√
sentença com a mesma raiz gdl inserida em um padrão vocálico verbal,
mas não causativo, de modo que não se projeta a posição de agente. De
modo paralelo, temos, em (2d), uma nominalização correspondente ao padrão
verbal não causativo. Ora, por meio desses dados, podemos começar a
hipotetizar que, se temos uma mudança na estrutura argumental de nomes e
verbos, quando inserimos a raiz em diferentes padrões vocálicos de nome ou
verbo, a informação sobre a estrutura argumental desses nomes e verbos deve
estar contida na parte dessas palavras em que ocorre a alteração, ou seja, a
parte correspondente aos núcleos funcionais, aqui expressos pelo conjunto
vocálico e não pelas raı́zes.
Dessa forma, na próxima seção, investigaremos a natureza desses itens
funcionais: (i) quantos são?; (ii) que tipo de informação sintático-semântica
eles possuem?; e (iii) verificar se há um paralelo entre os padrões verbais e
suas nominalizações: seriam os padrões de nominalização originados a partir
dos padrões verbais? Há resquı́cios morfológicos dos padrões verbais nos
padrões nominais?
Os padrões vocálicos do hebraico
Como já dissemos brevemente na seção anterior, o hebraico é uma lı́ngua em
que a estrutura das palavras pode ser decomposta em raı́zes consonantais e
padrões vocálicos. Segundo Arad (2004), a maioria das raı́zes contém três
√
consoantes, aqui representadas como CCC. Esses padrões vocálicos são
combinações de vogais e, segundo os estudiosos do hebraico, são atômicos,
ou seja, indivisı́veis. Há combinações de vogais que dão origem a verbos,
a nomes e a adjetivos. Nas próximas seções, iremos discutir dois tipos de
padrões que o hebraico apresenta: os padrões para verbos e os padrões para
nomes.
30
Rafael Dias Minussi
Os padrões verbais do hebraico
De acordo com alguns especialistas (Cf. Arad 2004, Glinert 1989, Bat-El
1994, 2001, Doron 2003), o hebraico possui exatos sete padrões de combinação
vocálica para os verbos. Tais padrões são chamados em hebraico de binyanim.
Na tabela 1, podemos observar os padrões, algumas raı́zes em que eles são
inseridos e o significado do verbo formado.
Tabela 1 Padrões verbais do hebraicoa
RAIZ
√
lmd
√
lmd
√
spr
√
spr
√
qlt
√
qlt
√
pll
a Tabela
Forma morfo-fonológica do padrão
1 CaCaC
2 niCCaC
3 CiCeC
4 CuCaC
5 hiCCiC
6 huCCaC
7 hitCaCeC
lamad
nilmad
siper
supar
hiqlit
huqlat
hitpalel
Verbo
estudar
ser estudado
dizer/narrar
ser dito/narrado
gravar
ser gravado
rezar
adaptada de Arad (2004:47).
O padrão verbal 1 é um padrão de voz ativa. Já o padrão 2 é um
padrão de voz passiva que está relacionado ao padrão 1, isto é, as raı́zes que
podem ser inseridas no padrão 1 são inseridas no padrão 2, quando ocorrem
na voz passiva.3 Por sua vez, o padrão 3 é um padrão de voz ativa e é
considerado causativo por alguns autores como Glinert (1989). Já o padrão
4 está relacionado ao padrão 3, porém seu significado é de voz passiva. O
padrão 5 é um padrão de voz ativa e o padrão 6 é sua contraparte na voz
passiva. Por fim, o padrão 7 é um padrão que forma verbos com significado
reflexivo e também um padrão utilizado com o significado de voz média.
Como pudemos observar, os padrões verbais, além de contribuir para o
significado das raı́zes, trazem informações sobre a voz dos verbos formados.
Na próxima subseção, descreveremos os padrões de nominalização.
3
Segundo Arad (2004), o padrão 2 não é um padrão exclusivamente passivo, ele pode hospedar verbos
inacusativos, inergativos e verbos com complemento oblı́quo.
Agentividade e Voz nos Padrões Nominais do Hebraico
31
Os padrões nominais do hebraico
Ao falar dos padrões vocálicos nominais, chamados em hebraico de mishqalim,
Arad (2004) defende que existe uma assimetria nome-verbo no hebraico. A
autora afirma que os nomes devem ser separados em dois grupos: os que
podem ser alocados em um mishqal (um padrão vocálico nominal) e os que
não podem ser alocados em um mishqal. A fim de mostrar que esses dois tipos
de padrão são diversos, a autora ressalta que existe uma diferença quanto
ao número de padrões nominais e verbais: enquanto os padrões verbais são
limitados a sete, os padrões nominais são numerosos.
O gramático Glinert (1989) faz uma descrição detalhada e pormenorizada
dos padrões nominais. O autor, por exemplo, cita cerca de trinta tipos de
combinação de vogais, com e sem afixos e, diferentemente de Arad (2004),
faz algumas generalizações quanto ao significado desses padrões.
Ao observarmos os dados de nominalizações eventivas, como em (2d) e
(2b), notamos que essas se enquadram nos dois primeiros padrões descritos
por Glinert (1989).
(3)
(4)
CCiCa
a. mexina
b. harisat
c. sgira
d. štifa
e. pšita
f. bxira
g. gdila
CiCuC
a. ibud
b. gidul
c. sikum
‘apagamento’
‘destruição’
‘fechamento’
‘enxágue’
‘esticação’
‘seleção’
‘crescimento’
‘processamento’
‘crescimento/cultivo’
‘reabilitação’
Os padrões em (3) e (4), segundo Glinert (1989), contêm um grande número
de nomes e são padrões atualmente produtivos, sendo o padrão em (3) ainda
mais produtivo. Na classificação feita por Glinert (1989), podemos encontrar
os nomes de ‘ação’ ou ‘resultado (concreto ou abstrato) da ação’ localizados
em cinco mishqalim, descritos abaixo:
(5)
CCiCa é mais comum com raı́zes que podem entrar no padrão 1 de verbos.
bHina ‘exame’, ‘examinação’
(6)
hiCaCCut é mais comum com raı́zes que podem entrar no padrão 2 de verbos.
32
Rafael Dias Minussi
hidabrut ‘diálogo’
(7)
CiCuC é mais comum com raı́zes que podem entrar no padrão 3 de verbos.
tipul ‘tratamento’
(8)
hitCaCCut é mais comum com raı́zes que podem entrar no padrão 7 de verbos.
hitbagrut ‘maturação’, ‘amadurecimento’
(9)
haCCaCa é mais comum com raı́zes que podem entrar no padrão 5 de verbos.
hagrala ‘rifa’, ‘sorteio’
Percebemos pelo trabalho de Glinert (1989) que o autor sugere que exista
uma correspondência entre os padrões verbais e as nominalizações formadas
a partir de um determinado padrão verbal, porém o autor não aprofunda
sua análise, de modo a mostrar que tal correspondência possui evidências
sintáticas, semânticas ou morfológicas.
Ainda sobre os padrões vocálicos, podemos citar o trabalho de Bat-El
(2001), o qual faz uma defesa das raı́zes e dos padrões vocálicos, seja de
verbos ou de nomes, como morfemas separados. A sugestão de distinção
morfêmica entre as raı́zes e os padrões é bastante interessante para este
trabalho, uma vez que podemos traçar um paralelo entre as raı́zes hebraicas e
as raı́zes abstratas propostas pela MD4 (Cf. Halle & Marantz 1993, Marantz
1997, Arad 2004) de um lado, e podemos aproximar os padrões vocálicos aos
núcleos funcionais categorizadores presentes na Lista A, por outro lado.
Na seção a seguir, mostraremos que o uso de um ou de outro padrão
nominal pode provocar algumas diferenças na modificação do sintagma
nominal, além de restrições em relação ao movimento dos nomes. Dessa
forma, defendemos que os padrões nominais, primeiramente, podem ser
estudados do mesmo modo que os padrões verbais o são; em segundo lugar,
que os padrões nominais, assim como os verbais, contêm traços semânticosintáticos e não são apenas meros categorizadores.
Efeitos e restrições dos padrões nominais
Esta seção possui como ponto principal defender que os diferentes mishqalim interferem nos aspectos semânticos e sintáticos do sintagma nominal,
contra Arad (2004), a qual argumenta em favor do fato de os mishqalim
4
O fato de defender que as raı́zes abstratas equivalham às raı́zes hebraicas não implica dizer que, para
cada raiz abstrata da Lista A, exista uma raiz hebraica equivalente (Cf. Minussi 2008), mas que as
raı́zes hebraicas equivalem a certa raiz abstrata da Lista A.
Agentividade e Voz nos Padrões Nominais do Hebraico
33
não colocarem nenhuma restrição sobre os nomes em que aparecem. Para
tanto, traremos uma discussão sobre a modificação adverbial e adjetival nos
sintagmas nominais.
Os argumentos das nominalizações do hebraico podem aparecer de duas
formas. Em (10a), temos uma nominalização em um Construct State (CS),
com seu argumento interno marcado pela Marca Diferencial de Objeto ‘et
(MO), também considerada por alguns autores como Caso acusativo (Cf.
Borer 1999; Danon 2001, 2002). Já em (10b), temos a mesma nominalização
em um CS, com seu argumento na posição de segundo membro do construto
(posição do membro associado) e com o sujeito da nominalização introduzido
por uma by-phrase.
(10)
a.
b.
sgirat
ha-mankal ‘et ha-misrad
fechamento.CS.f.sg DEF-diretor MO DEF-escritório
‘O fechamento do escritório pelo diretor’
sgirat
ha-misrad
(alyedey ha-mankal)
fechamento.CS.f.sg DEF-escritório prep
DEF-diretor
‘O fechamento do escritório pelo diretor’
No que se refere à modificação adverbial, Hazout sugere que os advérbios
que ocorrem nas construções com nominalizações não são licenciados simplesmente pela interpretação de processo ou de ação associada a tais construções,
mas são condicionados sintaticamente. Isso quer dizer que um advérbio só
pode aparecer se ele estiver de acordo com todo o sistema requerido pelo
verbo correspondente ao nome que ele modifica. Em (11b), a nominalização
aparece sem um argumento.
(11)
a.
b.
ha-harisa
nimšexa šaatayim
DEF-destruição durou duas horas
‘a destruição durou duas horas’
ha-harisa
be-axzariyut
DEF-destruição em-crueldade (=cruelmente)
Se considerarmos os tipos de advérbios que são admitidos, observaremos que
advérbios sentenciais são excluı́dos, como vemos em (12).
(12)
a.
lelo safek
Dan katav
‘et ha-avoda
duvidosamente Dan escreveu ACC DEF-trabalho
‘Duvidosamente Dan escreveu o trabalho’
b. *ktivat
Dan ‘et ha-avoda
lelo safek
escrita.CS Dan ACC DEF-trabalho duvidosamente
34
Rafael Dias Minussi
A afirmação de que a distribuição dos advérbios nas nominalizações do
hebraico é sintática, em vez de semanticamente determinada, apóia-se, em
primeiro lugar, no fato de que adjetivos podem seguir o núcleo em construções
genitivas com a preposição, porém advérbios não podem seguir o nome.
(13)
a.
axilat-o
ha-menumeset šel Dan ‘et ha-uga
comida-seu DEF-polida de Dan ACC DEF-bolo
‘a “começão” polida de Dan do bolo’
b. *axilat-o
be-nimus
šel Dan ‘et ha-uga
comida-seu em-polidez(=polidamente) de Dan ACC DEF-bolo
Outro fato que chama a atenção é que adjetivos, ao contrário de advérbios,
são ruins em posição final.
(14)
a.
ktivat
Dan ‘et ha-avoda
bi-mehirut
escrita.CS Dan ACC DEF-trabalho em-rapidez
‘a escrita do trabalho por Dan rapidamente’
b. *ktivat
Dan ‘et ha-avoda
ha-mehira
escrita.CS Dan ACC DEF-trabalho DEF-rápida
Resumindo, para Hazout, os fatos observados indicam que a configuração
subjacente destas construções envolve a distinção entre um domı́nio verbal,
que permite a ocorrência de advérbios e exclui adjetivos e, controversamente,
um domı́nio nominal que permite a ocorrência de adjetivos e exclui advérbios.
Assim sendo, Hazout (1995) postula um nı́vel verbal para todas as nominalizações. Contudo, para uma teoria como a MD, a postulação de um nı́vel
verbal anterior a um nı́vel nominal não é necessária, embora ainda muito
utilizada (Cf. Harley 2008).
Voltemos um pouco a discussão para o ponto em que fizemos a distinção
das duas formas em que podem aparecer os argumentos das nominalizações.
No que diz respeito à modificação por advérbios e adjetivos, a construção
com by-phrase é possı́vel com ambos, porém a construção em que a MO
ocorre, a modificação por advérbios não é possı́vel, como vemos em (15b).
(15)
a.
mexikat
ha-maxšev
‘et ha-kvacim
apagamento.CS.fem.sg DEF-computador MO DEF-arquivos
bi-mhirut
em-rapidez
‘O apagamento dos arquivos pelo computador com rapidez’
b. *mexikat
ha-maxšev
‘et ha-kvacim
apagamento.CS.fem.sg DEF-computador MO DEF-arquivos
Agentividade e Voz nos Padrões Nominais do Hebraico
35
maher
rapidamente
Como notou Siloni (1997), bi-mhitut (literalmente: em-rapidez) deve ser
analisado como um sintagma preposicional em vez de um advérbio. Advérbios
verdadeiros, como maher ‘rapidamente’, não podem ocorrer com os nominais
numa construção com ‘et (MO). Esse fato leva Siloni (1997) a defender a
análise de que os nominais de ação são nomes puros, sem uma camada verbal.
Contudo, Engelhardt (1998) traz exemplos em que os chamados advérbios
“verdadeiros” ocorrem em construções com ‘et. Observemos o exemplo em
(16):
(16)
a.
ibud
ha-mumxim ‘et ha-kolot
processamento.CS.masc.sg DEF-peritos MO DEF-votos
yadanit
manualmente
‘o processamento manual dos votos pelos peritos’
O que nenhum autor notou ainda é o fato de que o padrão vocálico é diferente
nas nominalizações em (15) e (16). Em (15), temos uma nominalização no
padrão CCiCa, já citado anteriormente no trabalho, que não permite a modificação por advérbios “verdadeiros” e, em (16), temos uma nominalização
com o padrão CiCuC, que permite a modificação por advérbios ditos “verdadeiros”. Outras diferenças precisam ser averiguadas em relação a esses dois
padrões, porém é fatal dizer que certas restrições existem, contrariamente ao
que Arad (2004) defende.
Uma análise preliminar para os nominais CCiCa
Nesta seção, exporemos uma análise preliminar para os nominais com o
padrão CCiCa. Nessa análise, em primeiro lugar, defendemos que os padrões
vocálicos do hebraico, sejam eles verbais ou nominais, são a realização de
núcleos funcionais que possuem em si: sabores diversos (aspecto, seleção de
argumentos, voz), diferentes restrições (quanto ao movimento dos sintagmas,
quanto à modificação adjetival ou adverbial), entre outras caracterı́sticas.
Em segundo lugar, argumentamos que esses núcleos são os responsáveis pelo
licenciamento argumental. Voltemos aos dados.
36
Rafael Dias Minussi
(17)
a.
b.
gidul
ha-‘agvaniyot (‘al yedey ha-‘ikarim)
cultivo.CS.m.sg DEF-tomates (por DEF-fazendeiros)
‘O cultivo dos tomates pelos fazendeiros’
gdilat
ha-‘agvaniot
crescimento.CS.fem.sg DEF-tomates
‘O crescimento dos tomates’
Propomos que na estrutura de formação para as nominalizações com o padrão
CCiCa não haja uma camada verbal, contrariando Hazout (1995). Desse
fato decorre que tal padrão: (i) não permite modificação por advérbios
verdadeiros; (ii) não permite alçamento. Contudo, há dois tipos de estrutura
para essas nominalizações, levando em consideração o ambiente de Construct
State 5 (CS). A estrutura em (18a) tem o argumento interno da nominalização
marcado com a Marca Diferencial de Objeto (MO) e o agente está dentro do
CS. Já em (18b), temos o argumento interno da nominalização dentro do CS,
enquanto o outro elemento é precedido de uma preposição šel ‘de’.
(18)
a.
b.
harisat
Picasso ´et yerušalayim
destruição Picasso MO Jerusalém
‘a destruição de Jerusalém por Picasso’
harisat
yerušalayim šel Picasso
destruição Jerusalém prep Picasso
‘a destruição de Jerusalém de Picasso’
Assumimos que é o licenciamento dos elementos na estrutura sintática pelo
núcleo funcional ou por preposições que provoca uma determinada ordem dos
constituintes na sentença. Assim sendo, na estrutura, temos o padrão CCiCa
ocupando o lugar de um núcleo categorizador n que, por sua vez, sempre
projeta duas posições: uma de complemento e outra de especificador. Tais
posições carregam em si os traços de [+tema] e [+agente] respectivamente.
O padrão vocálico não é derivado de um padrão verbal, ou seja, não
encontramos resquı́cios morfológicos de um padrão verbal, tal como encontramos em outros padrões nominais, como, por exemplo, histalek ‘deixar-se’,
cujo padrão verbal é hitCaCeC e histalkut ‘demição’, cujo padrão nominal é
hitCaCCut. Em ambos, podemos notar uma parte comum: hitCa.
5
Sobre o Construct State conferir Minussi 2008, Borer 1999.
Agentividade e Voz nos Padrões Nominais do Hebraico
37
O fato de não haver resquı́cios morfológicos de um padrão verbal em
CCiCa pode ser comprovado olhando para as vogais do padrão verbal ao
qual ele corresponde, isto é, o padrão CaCaC. A primeira vogal do padrão
nominal, que corresponderia a uma primeira fase verbal, não é idêntica a
do padrão verbal. No padrão nominal temos a vogal i, enquanto no padrão
verbal temos a. Observemos, assim, a estrutura em (19):
(19)
DP
D0
nP
-t
nP
AP
n
NP
(+agente)
Picasso
n
PP
CiCaC
√
hrs
´et yerušalayim
Na estrutura, postulamos que o sintagma que ocupa a posição de especificador da projeção nominal possui o papel temático de agente da nominalização, o que explica a única possibilidade de interpretação que Picasso tem
em harisat Picasso et yerušalaim ‘A destruição de Jerusalém por Picasso’,
mesmo que o falante saiba que Picasso é um pintor.
Ainda podemos prever que nessa estrutura haja duas posições de modificação por adjetivo, uma posição depois do CS formado e outra depois de
todo o sintagma determinante, com o adjetivo adjungido no DP.
Quanto à atribuição/checagem de Caso, o DP yerušalayim recebe Caso
não do nome harisat ‘destruição’, mas de uma preposição ´et, que só aparece
quando temos um DP com o traço de [+DEF] na posição de complemento,
seja quando temos um complemento de um nome ou o complemento de
um verbo. Tal argumentação vai contra autores que defendem que ‘et seja
38
Rafael Dias Minussi
uma marca de Caso acusativo morfológico (Cf. Minussi 2008). Já o DP
Picasso está checando seu Caso dentro do CS e recebe Caso também de uma
preposição -t, a qual só aparece em um contexto de CS.
A análise para harisat yerušlayim šel Picasso ‘A destruição de Jerusalém
de Picasso’ é a de que, novamente, CCiCa projete duas posições: uma
posição para o complemento, esse sempre licenciado pelo núcleo funcional, e
uma posição de especificador, a qual pode ser ocupada ou não. Vejamos a
estrutura em (20):
(20)
DP
DP
PP
D0
šel Picasso (+possessivo)
nP
-t
nP
AP
n
n
DP
CiCaC
√
hrs
yerušalayim
Não há papéis temáticos fixos, prontos, e que são atribuı́dos por um ou
outro núcleo, mas a interpretação da expressão é dada de acordo com o
preenchimento das posições pelos elementos na estrutura (Cf. Borer 2005).
O DP Picasso na posição de adjunto possui uma gama de interpretações
maior do que quando se encontra na posição de segundo membro do CS.
Ambas as estruturas possuem dois fatos em comum: (i) o primeiro está
ligado à natureza do padrão vocálico CCiCa que não se liga a um nı́vel
verbal anterior, de modo que ambas as estruturas não possuem um nı́vel
verbal anterior ao nı́vel nominal; (ii) o segundo fato diz respeito à atribuição
de Caso dentro do Construct State. Na estrutura em (20), o DP yerušalayim
Agentividade e Voz nos Padrões Nominais do Hebraico
39
recebe Caso dentro do CS. O Caso oblı́quo é atribuı́do por um atribuidor, no
caso dos dados acima é -t, que ocupa a posição do núcleo Do , o que provoca
como consequência a não ocorrência do ha-, realização fonológica do traço
[+DEF], provocando o fenômeno da Definitude Espraiada e a operação de
Agree entre o núcleo Do e Especificador da projeção n na estrutura em (19),
e entre Do e o alvo mais próximo, no caso, o complemento do núcleo n na
estrutura em (20).
Abstract
This paper aims at discussing the selection of arguments, based on Hebrew nominalizations.
The theoretical background of this study is the Distributed Morphology (DM) (cf. Halle
& Marantz 1993, Marantz 1997), which claims that both sentences and words are formed
during the syntactic derivation. Thus, through the description of the data, we note the
existence of two nominalization patterns, which have different types of restriction to the
elements that accompany them. Furthermore, we reflect on a type of possible structure for
vocalic patterns.
Keywords: Functional heads; lexical heads, nominalizations; abstract roots; Distributed
Morphology.
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40
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Pares Antônimos e Prefixos de
Negação em Português Brasileiro
Sonia Lindblom∗
Resumo
O meu foco neste trabalho é discutir o processo de formação de palavras em português. Mais especificamente, eu discuto as propriedades dos prefixos de negação e as diferentes formas antonı́micas relacionadas
a eles. Eu examino três prefixos de negação: in-, des- e a-. Os três prefixos são operadores de negação
padrão, e, como tal, discuto o que está sob o escopo desses operadores e, consequentemente, o significado
das palavras em que eles aparecem. Para explicar as diferentes relações antonı́micas com esses prefixos,
eu baseio minha análise basicamente no modelo teórico da Morfologia Distribuı́da (MD). Assim, assumo
que palavras, assim como unidades maiores, são formadas na sintaxe (Halle & Marantz 1993). Além do
aparato teórico da MD, eu trabalho com as noções de antonı́mia presentes em Lyons (1968). Ao fim da
discussão, argumento que o prefixo in- forma pares contrários (antônimos) com sua base, ao passo que
os prefixos a- e des- aparecem em diferentes contextos. Quando em contexto nominal, o prefixo a- forma
pares complementares com a palavra base, e pares contrários (antônimos), quando em contexto verbal.
O prefixo des-, por sua vez, apresenta antonı́mia do tipo recı́procra quando em contexto verbal do tipo
de desligar, e contraditória quando em contextos verbais do tipo de desobedecer, em que, argumento, o
prefixo se anexa à base antes da categorização.
Palavras-chave: Afixos de negação; formação de palavras; morfossitaxe; antonı́mia.
Introdução
O objetivo geral deste trabalho, como parte da pesquisa de doutorado,
é investigar o processo de formação de palavras em português brasileiro
para discutir a natureza e função dos afixos nessa lı́ngua. A discussão que
farei no decorrer deste trabalho está pautada nos prefixos de negação, mais
especificamente na relação desses prefixos com a formação de antônimos
nessa lı́ngua.
∗
Trabalho suportado pela Bolsa Capes PDEE (2009/2010). E-mail: [email protected].
42
Sonia Lindblom
Os prefixos a-, in- e des- são prefixos que, segundo a tradição gramatical,
agregam significado de negação às palavras da lı́ngua. É possivel dizer que
uma das consequências da produção de negação é que palavras com tais
afixos podem, com facilidade, formar pares antônimos com a palavra que
forma base para a prefixação. Como os pares abaixo mostram:
(1)
normal : a; feliz: in; humano : des
Há, entretanto, casos em que a formação de antonı́mia através da prefixação não é possı́vel. A palavra negativa acéfalo, por exemplo, não corresponde
à versão negativa da base *céfalo, uma vez que essa não é uma palavra livre
possı́vel (ou correntemente existente) na lı́ngua portuguesa.1
A partir da observação e dos dados iniciais, as questões que norteiam
este trabalho se referem às propriedades negativas dos citados prefixos, assim
como a relação destes com a formação de antônimos, quando este é o caso.
Para investigar tais pontos de discussão, apresento a seguir uma descrição
dos prefixos de negação do português brasileiro. O objetivo final será, dessa
forma, propor uma análise inicial para os processos de prefixação na lı́ngua
com os prefixos de negação.
A proposta de análise apresentada neste trabalho se baseia no quadro
teórico da Morfologia Distribuı́da (MD) (Halle & Marantz 1993, entre outros).
Dentro desse modelo, é possı́vel analisar a formação de palavras como se
analisam estruturas frasais maiores. Essa abordagem será particularmente
relevante na medida em que a hipótese inicial deste trabalho é a de que
cada afixo tem escopo sobre uma parte diferente da estrutura do predicado,
originando diferentes significados de acordo com sua posição na estrutura.
Este trabalho está organizado da seguinte forma: na próxima seção,
apresento a definição de antonı́mia que norteia esta discussão, assim como
apresento os pares antônimos do português brasileiro. Apresento em seguida
a proposta de formação de antônimos na sintaxe, trazida por Heim (2008) e,
logo após, a minha análise para antônimos formados a partir de prefixação.
As considerações finais, com um resumo da discussão trazida neste trabalho,
trago na seção final.
1
É sempre necessário atentar-se à questão de palavras existentes ou palavras possı́veis numa lı́ngua.
Para o presente trabalho, essa questão não vai ser de alta relevância, assim vou considerar a existência
da palavra documentada em dicionários ou textos, para considerá-la como válida.
Pares Antônimos e Prefixos de Negação
43
Antônimos
Para orientar a discussão que se seguirá, farei, primeiramente, uma breve
apresentação da noção de antonı́mia adotada neste texto. Essa noção se
baseia nomeadamente na discussão sobre relações lexicais presentes em Lyons
1968 (pp. 460ss). Ali, o autor define três tipos de antônimos, que apresento
a seguir:
No primeiro tipo, encontram-se as relações Complementares. Nesse grupo,
estão as palavras, que quando justapostas, a negação de uma implica a
afimação de outra. Este é o caso, por exemplo, do par morto : vivo, em
que, ao se negar de um indivı́duo que ele não está morto, se afirma, por
conseguinte, que ele está vivo. No segundo tipo de relação antonı́mica,
definem-se as palavras antônimas. São consideradas antônimas duas palavras
em que, quando em relação de oposição, a afirmação de uma implica na
negação de outra, mas a negação de uma não implica na afirmação de outra.
Nesse caso, encontram-se pares como quente : frio. Uma substância que está
fria, não estará, ao mesmo tempo, quente. Mas, em não estando quente, não
é verdade que esta esteja fria. O terceiro e último tipo de antônimos definido
por Lyons (1968) é aquele que engloba palavras recı́procras. Pares do tipo
de dar : receber são representativos desse último tipo, em que a afirmação
de um termo implica a existência de outro, bidirecionalmente. Assim, ao se
afirmar dar, implica-se a existência de receber, e vice-versa. A relação de
reciprocidade unidirecional é também possı́vel, como no caso de pares do
tipo vender : comprar, em que ao afirmar-se de um indivı́duo que ele vende
algo, não há existência necessária de uma compra efetuada.
Pares antônimos em português
As formas antonı́micas do português podem ser expressas de duas maneiras
diferentes: por dois radicais diferentes, como em pares como bonito : feio; ou
por marcação afixal, com prefixos de negação, como em feliz : infeliz. Pares
antonı́micos do último tipo é que serão de interesse direto para a presente
discussão, uma vez que eles serão de relevância para o estudo da afixação
na lı́ngua portuguesa. A seguir, apresento contextos mais detalhados de
formação de antônimos agrupados segundo os três prefixos de negação, a
começar pelo prefixo a-:
44
(2)
Sonia Lindblom
Antônimos com prefixo aAdjetivo: anormal : normal ; acrı́tico : crı́tico
Nome: anormalidade : normalidade,
Verbo: assexualizar : sexualizar
A oposição existente entre assexual e sexual é nomeadamente uma oposição de complementariedade, em que, ao se dizer de um indivı́duo que ele é
sexual, nega-se que ele seja assexual, e vice-versa. Essa relação, entretanto,
não é observada no par verbal assexualizar : sexualizar.
(3)
Os psicanalistas sexualizam as brincadeiras infantis.
(4)
Os psicanalistas assexualizam as brincadeiras infantis.
Ao passo que a afirmação de (3) implica a negação de (4), não é possı́vel
dizer que a negação de (3) implica a afirmação presente em (4) nem o
caminho contrário é possı́vel, com a negação de (4) implicando na afirmação
de (3). Portanto, o par assexualizar : sexualizar não forma um par de
complentares, mas sim um par de antônimos.
Consideremos, agora, as palavras formadas com o prefixo des-:
(5)
Antônimos formados a partir do prefixo desAdjetivo: descontente : contente; desleal : leal ; desonesto : honesto;
Nome: descontrole : controle; desamor : amor ; desafeto : afeto;
Verbo: desligar : ligar ; desinchar : inchar ; descalçar : calçar.
A observação das relações de oposição de des- em (5) mostra que as
formações com esse prefixo podem ser de dois tipos: tanto complementares
quanto antonı́micas. O primeiro tipo é observado em pares do tipo desobedecer
: obedecer, mostrado em (6), o segundo é visto em pares do tipo desligar :
ligar, em (7).
(6)
O chefe deu uma ordem, você obedece ou desobedece/ não obedece.
(7)
Se você ligar o rádio, eu vou desligar / # não ligar.
Como pode ser visto em (6), desobeder pode aparecer no mesmo contexto que
não obedecer, o que significa, portanto, que ao negarmos obedecer, afirmamos
desobedecer. A partir dessa observação, é possı́vel dizer que desobedecer está
em relação de complementaridade com obedecer, seguindo a classificação de
Pares Antônimos e Prefixos de Negação
45
Lyons (1968). Essa relação, contudo, não se observa entre desligar e ligar,
em (7). Na sentença em questão, desligar não pode ser usado no mesmo
contexto em que não ligar. Assim, é possı́vel dizer que a negação de ligar não
implica a afirmação de desligar. Por outro lado, a afirmação deste implica a
existência daquele, ou seja, ato de desligar só pode se dar a partir de algo
que esteja ligado:2
(8)
Se você desligar o rádio, eu vou ligar de novo.
O tipo de relação entre desligar e ligar é, portanto, do tipo das relações que
Lyons (1968) chamou de recı́procras. Essa não é uma relação do tipo da
observada em (3) e (4), uma vez que, ali, para assexualizar algo, é preciso
que tal seja sexual, e não que precise ser sexualizado primeiro.
Finalmente, apresento o terceiro e último grupo de antônimos, que é
aquele formado a partir do prefixo in-:
(9)
Antônimos com o prefixo inAdjetivo: infeliz : feliz ; incapaz : capaz ; insatisfeito : satisfeito
Nome: incapacidade : capacidade; infelicidade : felicidade ; inexistência :
existência.
Verbo: invalidar : validar ; inadmitir : admitir ; incapacitar : capacitar.
As palavras com o prefixo in-, em geral, formam oposição antônima com as
palavras são base para a prefixação. Importante observar, como aponta Lyons
(1968), que uma sentença contendo um membro de um par de antônimos está
em relação de contrariedade - e não de contraditoriedade, portanto - com a
sua contraparte. É o que se observa em (10) e (11), em que incapacitar tem
significado diferente de não capacitar
(10)
O treino não capacitou o atleta porque foi insuficiente/ # porque ele se
machucou.
(11)
O treino incapacitou o atleta porque ele se machucou/ #porque foi
insuficiente
É possı́vel dizer, a partir da sentença em (11), que incapacitar tem o
significado de tornar incapaz. Relação antonı́mica, então, pode-se dizer que
2
A necessidade da existência de um ato de ligar anterior pode ser controversa ou diferenciada de acordo
com o verbo prefixado. Para efeitos desta argumentação, entretato, vou assumir que para chegar a um
estado s representado pelo particı́pio, o evento denotado pelo verbo precisa ter acontecido de alguma
forma, em algum momento do passado.
46
Sonia Lindblom
se dá entre os adjetivos incapaz e capaz, e não entre os verbos incapacitar e
capacitar. Essa observação vai de encontro à proposição de Lehrer & Lehrer
(1982) de que relações de antonı́mia puras se dão apenas entre adjetivos (Cf.
Charles & Miller 1989).
Antonı́mia e formação de palavras
Trabalhos anteriores já propuseram tratar as relações antonı́micas para
a investigação dos processos de formação de palavras. Entre eles, vale
citar o trabalho de Heim (2006). A autora aponta a possibilidade de
as especificações antonı́micas estarem codificadas no item lexical. Tais
relações são determinadas por operações de negação (de predicado). Segundo
tal perspectiva, tais relações não têm nenhuma relevância sintática. Essa
proposta pode ser válida apenas ao se considerar as relações antonı́micas
opacas e não dá conta das especifidades de cada prefixo de negação e suas
consequências para a formação de antônimos.
Posteriormente, e seguindo proposta presente anteriormente em Büring
(2007), Heim (2008) propõe o que a ela chama de syntactical negation theory
of antonymy (teoria da negação sintática da antonı́mia). Neste trabalho,
assim como no trabalho de Büring (2007), a autora defende que a relação
antonı́mica de pares de adjetivos graduáveis como slow (devagar) e fast
(rápido) se daria composicionalmente a partir da associação da forma fast,
considerada pela autora neutra, com um item abstrato little. Assim, o
significado de slow se deriva de little + fast.
(12)
Pollyi needs [to i drive er little fast] than Larry needs to drive
Polly precisa [dirigir comp.3 little rápido] que Larry precisa dirigir
A sentença em (12) é considerada, pelos autores, como a base para
formação tanto de (13) quanto de (14).
(13)
Polly needs to drive less fast than Larry needs to drive.
‘Polly precisa dirigir menos rápido que Larry’
(14)
Polly needs to drive more slowly than Larry needs to drive.
‘Polly precisa dirigir mais devagar que Larry’
3
COMP. = comparativo
Pares Antônimos e Prefixos de Negação
47
A proposta de Heim (2008) funciona para adjetivos graduáveis opacos em
contextos comparativos, mas não é muito atrativa para explicar sentenças
com tais adjetivos em contextos atributivos simples, como (15):
(15)
Polly’s car is slow.
O carro de Polly é devagar.
Além de não ser atrativa para explicar (15), a proposta de Heim (2008)
também não explica os casos de antonı́mia formados por meio de negação.
Isso se dá por conta da natureza visivelmente negativa dos prefixos em
português, pelo menos nos casos de contraditoriedade e antonı́mia, o que
é incompatı́vel com o morfema abstrato little que tem caracterı́stica mais
comparativa.
Formação de antônimos na sintaxe a partir de
prefixação
Considerando o objetivo central deste trabalho de estudar as relações de
oposição que se originam da prefixação com prefixos de negação, passo agora
a discutir tal processo de formação de palavras. O processo de formação de
palavras assumido nesta discussão se dá também sintaticamente e é norteado
pelos mesmos princı́pios que regulam a formação de estruturas maiores
(Marantz 1997). A negação expressa pelos prefixos a-, in- e des- será, assim,
representada em estruturas sintáticas especı́ficas e, dessa forma, geram-se os
diferentes tipos de antonı́mia observados na subseção “Pares antônimos”. O
quadro teórico que norteia essa discussão, a MD, assume que as regras de
formação de palavras são, na verdade, regras transformacionais e as mesmas
estruturas hierárquicas para frases complexas se aplicam a palavras (Halle &
Marantz 1993). Nesse modelo, apenas informações sintaticamente relevantes
são encontradas na sintaxe. Isso é dizer que para um elemento aparecer
na sintaxe, ele tem de ter traços e/ou requerimentos de importância para
o componente sintático. Excluem-se da sintaxe, assim, sons e informações
exclusivamente relativas à interpretação. Os sons são inseridos tardiamente,
pelo processo chamado de Spell-out ou inserção de vocabulário, em que
itens de vocabulário combinam os nós sintáticos aos sons que melhor os
realizam. Nesta seção, primeiro apresento com mais detalhes as ferramentas
48
Sonia Lindblom
desse modelo teórico que serão úteis para a discussão que se segue sobre as
estruturas em que se inserem os prefixos de negação.
Proposta
Ao abrir este trabalho, duas questões foram colocadas. Em primeiro lugar,
apontei o questionamento a respeito das formas antônimas com os prefixos
de negação, a segunda, como se dá o processo de formação de palavras a
partir desses prefixos de negação. À primeira delas, acredito, ter já uma
resposta razoável, ao passo que a segunda questão será discutida no decorrer
desta seção.
Quanto à relação dos prefixos de negação com antonı́mia, primeiramente
mostrei acima que o prefixo a- resulta em adjetivos complementares à forma
não afixada, e em verbos antônimos à base. Em seguida, as formas com
prefixo in- são antônimas às suas bases. Por último, as formas verbais com
prefixo des- apresentam dois tipos de antonı́mia: formas complementares e
formas recı́procras.
O segundo questionamento, decorrente do tema discutido neste trabalho
e do quadro teórico escolhido para a análise é: Como explicar negação
interna a palavras numa proposta não-lexicalista como é a da MD? Duas
afirmações são base para a resposta: (i) o prefixo de negação necessita entrar
em relação hierárquica com outros componentes da palavra ou do predicado
formado; (ii) diferentes estruturas e especificações resultam na inserção de
itens de vocabulário diferentes, assim como em diferente interpretação para
tais estruturas.
Duas hipóteses podem apontar um caminho para explicação dos fatos
observados até agora e para responder à segunda pergunta desta discussão.
A primeira delas é a de que existem estruturas sintáticas para cada um dos
contextos antonı́micos com prefixos de negação. A outra hipótese que vou
seguir é a de que o prefixo des- é uma forma vaga, que não tem especificação
para um ou outro tipo de antonı́mia (cf. Halle 1997 sobre o princı́pio do
subconjunto). Ou seja, des- seria uma forma negativa menos especificada do
que os prefixos a- e in-, e assim, pode ocorrer nos contextos de negação em
que esses dois outros prefixos não se aplicam. Uma importante vantagem
dessa solução é a de que as relações antonı́micas podem ser explicadas de
Pares Antônimos e Prefixos de Negação
49
forma sistemática e as diferenças semânticas observadas para tais prefixos,
incluindo-se as diferentes interpretações para des-, podem ser observadas na
sintaxe.
Posição Sintática
Para explicar os dados apresentados acima, sigo um percurso diferente do de
Heim (2008) e Büring (2007), em argumentando que as relações de antonı́mia,
enquanto sintaticamente construı́das, são expressas a partir da combinação
da base neutra a um nó neg (negação). A aplicabilidade dessa análise para
antônimos sem prefixos deve ser alvo de outro estudo, já em andamento, no
âmbito da tese que estou desenvolvendo. Por ora, basta-me a observação de
que esse nó neg é realizado por um dos prefixos discutidos neste trabalho.
A relação entre os diferentes tipos de antonı́mia relacionados aos prefixos
de negação pode ser explicada pela identificação do elemento sobre o qual o
prefixo de negação em questão tem escopo. Mioto & Silva (2009) argumentam
que os prefixos de negação in- e des- fazem seleção da categoria à qual eles se
anexam, estando a presença do prefixo in- condicionada a adjetivos; enquanto
o prefixo des- aceita tanto adjetivos quanto verbos. Na mesma linha de
raciocı́nio, Rocha (2009) mostra que a categorização da raiz, realizada durante
a derivação sintática, tem efeito direto sobre o signficado do predicado e
sobre a realização do prefixo de negação.
Palavras formadas pela adição do prefixo a-, em geral, são adjetivos que
significam privação da base. Em assexual, por exemplo, tem-se um atributo
de ser sem sexo; em anormal, tem-se algo ou alguém que está fora da norma.
O prefixo a-, portanto, nega um nome n. Como não é possı́vel haver meio
termo entre a presença ou ausência de um nome, é natural que as relações
antonı́micas com tais nomes sejam do tipo complementar, em que a negação
de nome, significa a afirmação de a+nome (sem nome), e vice-versa.
Não é mera coincidência que o prefixo in- forme geralmente antônimos
com suas bases. Esse prefixo está relacionado a adjetivos e, como apontado
por Lehrer & Lehrer (1982), os antônimos prototı́picos são adjetivos. Lehrer
(1985) aponta a gradabilidade (caracterı́stica de certos adjetivos) como uma
caracterı́stica forte desses antônimos que formam relações de contrariedade
com o seu par positivo. Nos dados apresentados em (9), mostro o prefixo
in- em relação com nomes, adjetivos, assim como verbos. O que acontece,
50
Sonia Lindblom
entretanto, é que nomes e verbos, naquela lista, são formados a partir de
bases adjetivais já contendo a negação. Observe, por exemplo, o caso do
nome inacababilidade. Não é verdade que esse nome seja o par contrário
(antônimo) de *acababilidade, uma vez que tal palavra não existe. A estrutura
para palavras formadas com prefixo in- deve ser algo que preveja a afixação
desse prefixo a uma estrutura adjetival, essa estrutura deve ser semelhante a
(16):
(16)
inacababilidade: [N [NEG in[ [ã acab ]ADJ avel ] ]idade ]
Na estrutura acima, o prefixo se adjunge a um adjetivo, antes da estrutura
receber. Isso é dizer que o que o prefixo nega é, na verdade, as propriedades
adjetivais da palavra. O prefixo des-, por outro lado, modifica/nega certas
propriedades dos verbos, quando em contextos como desligar ; e propriedades
da raiz, quando em contextos como desobedecer. Em pares como desligar
: ligar, o membro prefixado sempre implicará a existência do membro sem
prefixo ou o estado resultante desse membro. Assim, desligar pressupõe a
existência de ligar ou do estado ligado, uma vez que não é possı́vel desligar
algo que não esteja no estado ligado. Nesse sentido é que esta ocorrência
do prefixo des- forma antônimos recı́procos com seu par não prefixado. A
estrutura simplificada para uma palavra com esse prefixo seria algo como
(17):4
(17)
desligar: [NEG des[V [lig ] ar ] ]
A segunda ocorrência de des-, como apontada acima, forma pares contraditórios, isto é, antônimos complementares, com a palavra base. Nesses contextos,
o prefixo nega não um estado derivado de um evento, mas nega-se o conceito
central do verbo ele mesmo. Em outras palavras, a negação se anexa direto à
raiz, antes que esta seja categorizada:
(18)
desobedecer: [V [NEG des[obed ] ecer5 ] ]
Essa solução permite ainda explicar a ocorrência desse sentido do prefixo
4
Em discussão mais detalhada, em Lindblom (a sair), sobre a estrutura de predicados com des-,
demonstro que o nó que esse prefixo realiza é, na verdade, núcleo de uma projeção ResP, seguindo o
modelo de Ramchand (2003).
5
Para esta discussão, não me atentarei às minúcias do sufixo -ecer, apenas assumo que ele é componente
da forma verbalizada desobedecer.
Pares Antônimos e Prefixos de Negação
51
des-, em nomes do tipo desamor, e adjetivos como descontente, uma vez que
não se identifica (ao menos em primeira instância) nenhum sentido verbal
nessas palavras. Explica ainda porque nos contextos nominais como desamor,
o prefixo a- não é possı́vel, uma vez que não é o nome que está sob o escopo
desse prefixo, e assim, des- e a-, ambos significando complementariedade não
concorrem entre si para formação de palavras.
Considerações Finais
No decorrer do trabalho, duas questões foram discutidas: a formação de
antônimos a partir de prefixos de negação em lı́ngua portuguesa e as consequências dessa relação para os estudos de prefixação. Como a descrição dos
dados mostrou esses prefixos resultam em diferentes relações antonı́micas. O
prefixo in-, tipicamente adjetival, forma antônimos contrários (antônimos
propriamente ditos) com suas bases. Os prefixos a- e des-, por sua vez,
podem aparecer em dois contextos. O primeiro forma antônimos complementares (contraditórios) com as bases em contexto de adjetivo (denominal), e
antônimos contrários em contextos verbais (verbos deadjetivais). O último,
por sua vez, prefixo des-, forma antônimos recı́procros com as bases em
contextos verbais e antônimos complementares quando anexados a raı́zes.
Os verbos, nesse último caso, devem ser eles todos formados a partir da
anexação de des- à estrutura.
As observações a partir da descrição dos dados permitiram suportar a
hipótese aventada no inı́cio da discussão de que a diferença entre tais prefixos
se explicaria sintaticamente. Cada prefixo, ou ocorrência deles, realiza o
nó neg em uma posição diferente na estrutura sintática, como demonstrado
na seção anterior. Alguns pontos não ficaram resolvidos nesta discussão.
Eles estão sendo alvo de investigação no âmbito mais amplo da pesquisa de
doutorado. É necessário explicar como se dá o fato de o prefixo a- formar
adjetivos, a partir de sua prefixação a bases nominais. É necessário também
analisar se a solução para formação de antônimos a partir de prefixação se
aplica também a antônimos opacos do tipo alegre : triste.
Abstract
My focus in this paper is to discuss the word formation process in Brazilian Portuguese
52
Sonia Lindblom
(BP). More specifically, I discuss the properties of negation affixes and examine three
different negation affixes in BP: des- as in descansar ‘to rest,’ in- as in infeliz ‘unhappy,’
and a- as in anormal ‘abnormal.’ The three of them are standard negation operators and,
as such, I discuss what is under the scope of such negation and, consequently, the meaning
of the words in which they appear. In order to explain the different meanings triggered
by these prefixes, this analysis is mainly based on the Distributed Morphology framework;
I assume that words, as well as bigger units, are built in the syntax (Halle & Marantz
1993). I also work with the notions of antonymy as in Lyons (1968). I argue that the
prefix in- forms antonyms (contrary pairs) with its base word, whereas the prefixes a- and
des- appear in different contexts: a- has complementary meaning when attached to a noun
and antonymic when in verbal contexts; des- forms reciprocal antonymy when in verbal
contexts such as in desligar, and contradictory when in verbal contexts such as desobedecer
‘to disobey,’ in which the prefix is attached to the base before categorization.
Keywords: negation affix; word formation; morphossyntax; antonymy.
Referências
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Charles, W. G.; Miller, G. A. Contexts of antonymous adjectives. Applied Psycholinguistics
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in Focus. Lund: Lund University, 2009. (Handout)
Anais dos XII e XIII Encontros dos Alunos
de Pós-Graduação em Linguı́stica da USP.
São Paulo: Paulistana, 2012, p. 53–67.
Faa Ningê Bê: Aspectos de uma
Gramática Pedagógica para a Lı́ngua
Crioula Principense
Ana Livia Agostinho∗
Resumo
O objeto deste artigo é elaborar uma gramática pedagógica da lı́ngua principense, lı́ngua crioula de base
portuguesa falada na Ilha do Prı́ncipe. A lı́ngua principense tem sido ensinada nas escolas da ilha desde
2009, porém não há material didático, método pedagógico nem ortografia unificados. Dessa maneira,
será possı́vel disponibilizar instrumentos linguı́sticos tanto para a comunidade cientı́fica como para os
habitantes do local, servindo, sobretudo, de auxı́lio aos falantes da lı́ngua, pois preenche, assim, a lacuna
em relação à inexistência de material bilı́ngue principense/português. A gramática contém vinte e quatro
capı́tulos com textos em principense (diálogos, letras de música, folclore etc.), seguidos de tradução para
o português, vocabulário da lição, tópicos gramaticais e tópicos de cultura, vocabulário temático, além
de exercı́cios focalizando os tópicos gramaticais.
Palavras-chave: lı́ngua principense; gramática pedagógica; lı́nguas crioulas; São Tomé e Prı́ncipe.
Introdução
O objetivo deste trabalho é apresentar uma gramática pedagógica do principense que poderá auxiliar o aprendizado dessa lı́ngua nas escolas da Ilha do
Prı́ncipe, além de servir como material linguı́stico para pessoas interessadas
em aprender essa lı́ngua crioula. A lı́ngua principense, também chamada
de lung’ie (literalmente, ‘lı́ngua da ilha’), é uma lı́ngua crioula de base
portuguesa falada na Ilha do Prı́ncipe, na República de São Tomé e Prı́ncipe.
Todo o material audiovisual deste método foi gravado com falantes nativos in loco, em trabalho de campo original. Os falantes também auxiliaram
∗
Programa de Filologia e Lı́ngua Portuguesa, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo, Fapesp (processo 2011/06107-6). E-mail: [email protected].
54
Ana Livia Agostinho
na elaboração dos textos sobre a cultura e puderam revisar os diálogos e
as traduções. Ao fim da gramática, apresentaremos um glossário principense/português e outro português/principense, contendo todas as palavras
utilizadas nas lições; um ı́ndice gramatical remissivo, contendo os tópicos
gramaticais expostos nas lições; e as respostas dos exercı́cios.
Há algumas descrições do principense, abordadas adiante, mas é válido
ressaltar que nenhuma dessas descrições tem função pedagógica. A gramática
pedagógica aqui apresentada contém vinte e quatro capı́tulos com textos
(diálogos, letras de música, etc.) em principense, seguidos de tradução para
o português, vocabulário da lição, tópicos gramaticais e tópicos de cultura,
além de exercı́cios focalizando os tópicos gramaticais. Além disso, cada
ponto gramatical é explicado de forma simplificada. O material foi transcrito
utilizando o Alfabeto Unificado para as lı́nguas de São Tomé e Prı́ncipe
(ALUSTP), a partir do material gravado.
Há duas gramáticas prévias da lı́ngua principense: Günther (1973) e
Maurer (2009). Essas gramáticas não servem como instrumentos pedagógicos
para o uso escolar, já que são gramáticas cientı́ficas, com termos especializados e análises complexas. Além disso, a primeira tem o alemão como
lı́ngua-veı́culo, e a segunda o inglês. A gramática pedagógica ora apresentada
tem como lı́ngua veı́culo o português, lı́ngua oficial de São Tomé e Prı́ncipe.
Esta gramática pedagógica faz parte de um projeto em andamento na
Universidade de São Paulo que conta também, desde 2008, com a elaboração
de um dicionário principense/português. Dessa maneira, será possı́vel disponibilizar instrumentos linguı́sticos tanto para a comunidade cientı́fica como
para os habitantes da ilha do Prı́ncipe, servindo, sobretudo, de auxı́lio aos
falantes da lı́ngua, pois preenche, assim, a lacuna em relação à inexistência
de material didático principense/português. Este material também poderá
mostrar aos falantes que sua lı́ngua é objeto de interesse fora de seu paı́s
(cf. Vaux et al. 2007:4) e, ao mesmo tempo, servirá como um instrumento
linguı́stico para apoiar futuros projetos educacionais. Por fim, a gramática
também poderá ser útil para o público que tiver interesse em aprender a
lı́ngua. Apesar de pedagógica, esta é uma gramática cientı́fica, ou seja, sem
julgamentos de valor em relação a formas linguı́sticas.
Faa Ningê Bê
55
História e demografia
As ilhas de São Tomé e Prı́ncipe foram descobertas por João de Santarém
e Pedro Escobar, que chegaram a São Tomé em 21 de dezembro de 1470
e ao Prı́ncipe em 17 de janeiro de 1471 - até então, áreas desabitadas. O
povoamento de São Tomé - por portugueses, outros europeus e escravos - foi
uma ordem da coroa portuguesa e começou a ser contı́nuo a partir de 1493
(Cardoso 2007); e o povoamento do Prı́ncipe, provavelmente a partir de São
Tomé, se iniciou a partir de 1500 (Maurer 2009).
A República de São Tomé e Prı́ncipe, um paı́s africano situado no golfo
da Guiné, possui cerca de 1.000 km2 de área. Trata-se de um arquipélago
formado por duas ilhas, São Tomé e Prı́ncipe, este com um sexto da área
daquele (Cardoso 2007).
Quanto ao número de habitantes de São Tomé e Prı́ncipe, os dados são
muitas vezes dı́spares. Assim, a população atestada nesse paı́s pode variar de
100 mil a 200 mil habitantes, dependendo da fonte. A população da Ilha do
Prı́ncipe varia entre 6 mil a 13 mil. Cardoso (2007) informa que a população
de São Tomé, em 2000, era de 133.624 habitantes, enquanto a do Prı́ncipe,
de 6.036 - somando 139.660 habitantes para todo o arquipélago. No entanto,
o CIA factbook estima que a população do arquipélago seja de 175.808 (dado
de julho de 20101 ).
O número de falantes para cada lı́ngua do arquipélago também varia. Para
o principense, dependendo da fonte, o número de falantes varia de 20 (Maurer
2009) a 1300. Valkhoff (1966: 85) mencionou ter dificuldade para encontrar
informantes desta lı́ngua já em 1958. Günther (1973: 50), por sua vez, aponta
que o principense estaria em processo de extinção, sendo substituı́do pelo
santomé e pelo português, já que a mı́dia e a escolarização (fenômenos pósindependência) dão ao português um prestı́gio que não podia ser rivalizado.
Durante o trabalho de campo, pude constatar que o principense é falado
por menos de 100 pessoas, geralmente com mais de sessenta anos e não há
falantes monolı́ngues.
Por volta de 1900, houve uma epidemia de doença do sono que dizimou
a população nativa do Prı́ncipe (Maurer 2009). Segundo Günther (1973),
apenas 300 pessoas sobreviveram. Sendo assim, devido à situação de despovo1
https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/geos/tp.html.
56
Ana Livia Agostinho
amento e escassez de mão de obra, foram levados para as roças2 do Prı́ncipe
trabalhadores assalariados de outras regiões, principalmente de Cabo Verde.
Ainda hoje, é possı́vel ouvir kaboverdianu pelas ruas, principalmente em
comunidades próximas às roças. Há inúmeros falantes de kabuverdianu como
primeira lı́ngua, inclusive falantes monolı́ngues. Pude também observar que,
mesmo os falantes inteiramente competentes naquela lı́ngua utilizam em seu
cotidiano predominantemente o português.
Planejamento e polı́tica linguı́stica
Não há estatuto oficial para o principense. Em São Tomé e Prı́ncipe, o
português é a lı́ngua do Estado, da escolarização e, majoritariamente, da
mı́dia. A situação do Prı́ncipe é particular pelo convı́vio, como membro
minoritário, em um ambiente com falantes de outras lı́nguas crioulas (há
também um número alto de falantes de santomé, crioulo de São Tomé, além
dos falantes de kabuverdianu) e pelo perigo de extinção da lı́ngua.
Uma das questões que surge no processo de padronização dos crioulos é a
dificuldade de passar do crioulo para a lı́ngua lexificadora com competência
em ambas (Appel & Verhoeven 1995); mas, no caso do Prı́ncipe, o problema
é justamente o oposto, já que praticamente todos os nativos falam português.
Meyn (1983, apud Garrett 2008) se questiona se aprender a lı́ngua dominante
não-crioula não é colocar a identidade cultural e histórica do falante do
crioulo em perigo. Além disso, muitas das crianças que estão sendo obrigadas
a aprender principense na escola são de origem cabo-verdiana e falantes de
kabuverdianu, não tendo qualquer identificação com a lı́ngua do Prı́ncipe.
Há também pouco interesse no aprendizado da lı́ngua mesmo por parte das
crianças de famı́lia principense.
Segundo Appel & Verhoeven (1995), a polı́tica linguı́stica se manifesta em
dois principais domı́nios: na mı́dia e na educação. Podemos, então, analisar
o caso do Prı́ncipe em cada um destes domı́nios.
A televisão local tem três canais, sendo um são-tomense (que não tem
programação o dia todo) e dois portugueses - todos transmitidos em português. Cerca de duas vezes por semana são transmitidos programas de rádio
em principense. Os programas consistem em conversas informais sobre a
2
No português de São Tomé e Prı́ncipe, ‘fazendas’ são chamadas de ‘roças’.
Faa Ningê Bê
57
lı́ngua, sobre a vida no Prı́ncipe, sobre polı́tica, apresentações musicais etc.
Além disso, há transmissões de músicas em principense, mas a maioria da
programação musical é em português, kabuverdianu e santomé.
Durante o trabalho de campo, notei que alguns jovens têm um conhecimento passivo da lı́ngua, mas não têm competência linguı́stica para falá-la.
É possı́vel observar que a lı́ngua não é, portanto, transmitida há cerca de
duas ou três gerações. Um dos motivos apontados pelos próprios habitantes
da Ilha do Prı́ncipe é a relutância que os pais apresentavam em transmitir
a lı́ngua, pois pensavam que o aprendizado do principense atrapalharia o
aprendizado do português. No entanto, segundo Garrett (2008), mesmo que
qualquer lı́ngua seja percebida por seus falantes como inferior em relação à
lı́ngua oficial, ela pode servir também como um sı́mbolo de sua identidade.
Desde 2009, a lı́ngua está sendo ensinada nas escolas. Severing & Weijer
(2008), ao falarem sobre o planejamento linguı́stico do Papiamentu nas ilhas
de Aruba, Bonaire e Curaçao, consideram que o canal mais eficiente na área
de planejamento linguı́stico é a escola e o sistema de ensino. No entanto, no
Prı́ncipe não há professores qualificados para lecionar a lı́ngua, nem material
didático.
A cada quinzena, os professores se reúnem para programar as aulas,
porém a discussão sempre é focalizada na ortografia, já que o principense
ainda não tinha uma ortografia padrão e a discussão sobre a escolha entre
uma escrita fonética ou etimológica ainda não havia sido resolvida. Auroux
(1992) sugere que: “com a imprensa e a estandardização, a ortografia se torna
um problema, às vezes acidamente discutido”. Com a implementação do
ALUSP, que estará em perı́odo experimental até 2015, todos os instrumentos
linguı́sticos deverão utilizar a mesma ortografia.
Em geral, os professores de principense ensinam somente listas de vocabulário; e os alunos apenas decoram estas listas. Não há aulas de morfologia
e sintaxe. Apesar dos encontros quinzenais, cada professor define sozinho de
que forma e com quais materiais ministrará suas aulas. A falta de instrumentos linguı́sticos é, portanto, um grande problema para o aprendizado do
principense nas escolas, já que estes instrumentos permitem notadamente
uma maior estabilidade no método de ensino (Auroux 1998).
58
Ana Livia Agostinho
Trabalhos prévios
Nesta seção, abordaremos os trabalhos prévios acerca do principense. Como
dito anteriormente, há duas gramáticas da lı́ngua: Günther (1973) e Maurer
(2009). Além dessas, há alguns outros trabalhos em que a lı́ngua é descrita
ou citada.
A primeira descrição do principense foi feita em 1888, por Manuel Ferreiro
Ribeiro - base para a publicação de Schuchardt, em 1889 (Maurer 2009). Um
segundo trabalho, publicado em 1966 por Valkhoff, continha alguns dados
de principense. Em 1973, Günther publicou a primeira gramática com uma
descrição cientı́fica da lı́ngua, trabalho que será abordado adiante.
Luis Ivens Ferraz publicou, em 1975, um artigo sobre a influência africana
no principense e, em 1981, juntamente com Anthony Traill, um trabalho
sobre os tons em principense. Seu livro The Creole of São Tomé, de 1979, traz
alguns dados do principense, mas é dedicado majoritariamente ao santomé.
Em 1997, Philippe Maurer publicou um artigo sobre o sistema de tempo,
modo e aspecto e, em 2009, uma gramática cientı́fica do principense. O
trabalho de Maurer (2009) é, possivelmente, o único trabalho ao qual a
população do Prı́ncipe teve acesso. Na ocasião de sua publicação, houve
uma palestra do autor na sede do Governo Regional; e há alguns exemplares
disponı́veis para consulta no Centro Cultural do Prı́ncipe.
A seguir, retomarei os trabalhos de Günther e Maurer, por serem os mais
completos sobre o principense. A gramática de Wilfried Günther (1973) é a
primeira gramática cientı́fica da lı́ngua principense. O texto é dividido em três
partes: gramática, crestomatia (coleção de passagens literárias) e glossário.
Além disso, há uma introdução na qual o autor faz uma breve descrição
histórica e sociolinguı́stica das ilhas do Golfo da Guiné (São Tomé e Prı́ncipe
e Anobom), comentando também sobre as lı́nguas santomé, anobonense
e angolar, bem como definindo o termo “crioulo”. Na parte denominada
‘gramática’, propriamente dita, Günther descreve a fonologia, a morfologia e
a sintaxe do principense. Na seção da fonologia, descreve a realização das
vogais orais, vogais nasais, semivogais, bem como a formação de ditongos
e hiatos. Descreve também a realização das consoantes oclusivas, lı́quidas,
fricativas e africadas. Finalmente, há a descrição da prosódia. Segundo o
autor, esta lı́ngua é tonal. Ele argumenta que o tom pode provir da lı́ngua de
Faa Ningê Bê
59
substrato, Bini. Segundo Günther, há três tons no principense: alto (´), baixo
(não marcado) e ascendente (ˆ). O autor afirma que não há oposição entre o
tom baixo e o tom ascendente. A crestomatia traz uma coleção de textos em
principense. Entre eles, há histórias, ditados populares e canções. O glossário
contém 77 páginas. O autor utiliza o Alfabeto Fonético Internacional (IPA),
com algumas modificações, para transcrever as palavras fonologicamente.
Inicialmente, Maurer (2009) apresenta uma introdução com informações
sobre a história, a situação linguı́stica e a variação do principense. Há,
em seguida, descrições da fonologia e da morfossintaxe da lı́ngua. Maurer
rejeita a hipótese sobre a tonicidade do principense apresentada em Günther
(1973), bem como a de Ferraz & Traill (1981). Dessa forma, o autor
apresenta uma visão diferente acerca dos tons e do acento em principense.
Em 1997, Maurer havia descrito o sistema de tempo, modo e aspecto do
principense e retoma os mesmos argumentos para definir a tipologia dos
verbos. Maurer também apresenta um capı́tulo com traços variados como
interjeições, onomatopéias, reduplicação e ideofones. Após os capı́tulos de
análise linguı́stica, há uma coleção de dez textos com glosa e tradução. Por
fim, há um glossário principense/inglês e inglês/principense. O livro também
reproduz o manuscrito de Ribeiro, de 1888.
Material e métodos
Como este trabalho é sobre uma lı́ngua falada na África, é essencial que o
trabalho de campo seja feito no local, já que seria muito difı́cil obter dados
de qualidade no Brasil. Segundo Vaux et al. (2007:5), o trabalho de campo é
obviamente necessário a foneticistas e sintaticistas que não estão trabalhando
com sua lı́ngua materna, já que julgamentos sobre a gramaticalidade dos
dados dependem da intuição do falante-nativo. Assim, uma longa estadia
permite uma coleta de dados variada, a checagem destes dados junto aos
falantes nativos, bem como a possibilidade de documentar ocasiões singulares
do uso da lı́ngua e da interação linguı́stica com os falantes. Além disso,
Crystal (2000) afirma que é crucial para os estudos linguı́sticos contar com
descrições de lı́nguas em extinção.
Durante o mestrado, foram realizados dois trabalhos de campo. No meu
primeiro trabalho de campo, realizado em 2009, com duração de quatro
60
Ana Livia Agostinho
meses, estudei a fonologia do principense, além de sua morfossintaxe. Em
fevereiro de 2010, realizei o segundo trabalho de campo, com duração de 40
dias. Nesta segunda etapa, preparei, traduzi e revisei os textos utilizados
na gramática pedagógica, além de desenvolver sua estrutura. Nesta ocasião,
coletei todos os arquivos de áudio e vı́deo de cada lição.
Esta gramática foi inspirada no método de Quint (2009) para o kabuverdianu. Elaborei 16 diálogos focando os itens gramaticais que apareceriam em
cada lição. Dessa forma, há muito vocabulário e pontos gramaticais básicos
nas primeiras lições; e menos vocabulário e pontos gramaticais mais complexos nas lições mais avançadas. A primeira etapa foi montar os diálogos em
português já com os pontos gramaticais esquematizados para cada lição. Nas
duas primeiras semanas do trabalho de campo, pude traduzir os diálogos para
o principense com auxı́lio de falantes nativos. Os textos foram produzidos
pelos próprios falantes e traduzidos para o português. Todas as sessões de
tradução foram gravadas em áudio e vı́deo. Com os diálogos prontos, fiz
as gravações dos falantes lendo os textos com o gravador de voz Olympus
WS-210S e com a filmadora HD digital Sony. Cada diálogo foi gravado pelo
menos cinco vezes, a fim de garantir arquivos sem problemas de leitura ou
pronúncia. Também foram gravadas todas as sessões de traduções dos textos,
de vocabulário extra e de cultura. A seguir, podemos ver um exemplo da
primeira lição da gramática, modificado devido ao tamanho do original.
Exemplo: Lição 1 - Faa ningê bê
Mene- Modi a?
2 Sabina- Malmêntê ô. I atxi bê?
Mene- Pô patxi me, malmêntê ô.
4 Sabina- Ine kaxi tê bê, modi a?
Mene- Ah môsu, no sa lala na zuda dêsu. Dêsu paga txi da mi.
6 Sabina- Nhan. Nômi tê modi a?
Mene- Mene, i atxi?
8 Sabina- Sabina.
Mene- Atxi ningê Putuga a?
10 Sabina- Ade ô! Ami ningê Baji. N fo Baji. I atxi, kumin txi sa ta a?
Mene- Ami sa ta na Pican. I atxi a? Kaxi tê ba?
61
Faa Ningê Bê
12
Sabina- Kaxi me sa ta na Santantoni. Ami biolôgu, i atxi?
Mene- Ami sêradô.
Cumprimentar alguém
M- Como vai?
2 S- Mais ou menos. E você?
M- Quanto a mim, mais ou menos.
4 S- E a sua famı́lia, como vai?
M- Ai, estamos bem, graças a deus, obrigado.
6 S- Sim. Como é seu nome?
M- Manuel, e o seu?
8 S- Sabrina.
M- Você é portuguesa?
10 S- Não! Sou brasileira. Vim do Brasil. E você, onde você mora?
M- Eu moro no Picão. E você? Onde é a sua casa?
12 S- Minha casa fica em Santo Antônio. Eu sou bióloga, e você?
M- Eu sou marceneiro.
Vocabulário
A
Ade
Ami
Atxi
Ba
Fo
I
Ine
Kumin
Lala
malmêntê
part.
adv.
pro.
pro.
adv.
v.
conj.
pro.
n.
adv.
adv.
partı́cula interrogativa
Não
1PS.IND
2PS.IND
estar em algum lugar
vir de
e (entre orações)
2PP.SUJ/OBJ/IND/POSS
Caminho
Lá
mais ou menos
me
mene
mi
modi
n
na
pô
sa
ta
tê
txi
pro.
n.
pro.
adj.
pro.
prep.
prep.
cop.
v.
v.
pro.
1PS.POSS
Manuel
1PS.OBJ
como
1PS.SUJ
em
por
ser
ser (locativo)
ter
2PS.SUJ/OBJ
Notas Gramaticais
Nesta lição, abordaremos os pronomes pessoais, a cópula e sua ausência,
a posse e pronomes possessivos, partı́culas e pronomes interrogativos, a
ausência de gênero e a conjunção - i.
62
Ana Livia Agostinho
1. Pronomes pessoais
Nesta lição, veremos alguns pronomes pessoais de 1a e 2a pessoa do
singular. Em principense, os pronomes podem assumir diferentes formas
de acordo com sua função. Os pronomes podem ser: sujeito, objeto direto,
objeto indireto, pronomes possessivos, ou aparecerem em função de tópico.
A ordem canônica das sentenças em principense é sujeito-verbo-objeto, como
veremos a seguir. Os pronomes pessoais sujeito de 1a pessoa n ‘eu’ e de 2a
pessoa txi ‘você’ que servem para conjugar o verbo e sempre são antepostos
à forma verbal. Note que o emprego do pronome pessoal sujeito é obrigatório.
O pronome pessoal objeto de 2a pessoa li ‘você’ que aparece na sentença
como objeto é sempre posposto ao verbo.
(1)
N
ø
fo Baji.
1PS.SUJ PASS vir Brasil
‘Eu vim do Brasil’.
(2)
Txi
ø
tê kaxi.
2PS.SUJ PRES ter casa
‘Você tem uma casa’.
(3)
N
ø
vê li
1PS.SUJ PASS ver 3PS.OBJ
‘Eu vi ele’.
Os pronomes pessoais tônicos iniciais de 1a e de 2a pessoa (ami ‘eu’ e
atxi ‘você’) exercem função discursiva de tópico e são empregados no inı́cio
ou fim das sentenças:
(4)
Ami,
n
ø
fo Bajı́
1PS.TOP 1PS.SUJ PASS vir Brasil
‘Eu, eu vim do Brasil’.
(5)
Ami
ø
biólogu, i atxi?
1PS.TOP COP biólogo e 2PS.OBJ
‘Eu, eu sou bióloga, e você?’
Os pronomes de tópico servem para enfatizar a pessoa designada por eles. O
pronome sujeito pode ou não aparecer após o tópico. Podemos, então, ter:
Ami, n fo Bajı́ e Ami fo Bajı́. O essencial é que algum deles apareça.
63
Faa Ningê Bê
Tabela 1 Pronomesa
1PS
2PS
3PS
a Nas
Argumento
Sujeito Objeto
direto
n
txi
txi
li
Objeto
indireto
Ami
Atxi
Não argumento
Adjunto do nome /
possessivos
Me
Tê
Posição discursiva
Tópico
ami
atxi
lições seguintes preencheremos as lacunas.
2. Cópula e ausência de cópula
A cópula é a forma verbal que liga o sujeito da sentença com seu predicado
ou complemento. Em principense, pode ser expressa pela forma sa para
o presente e era para o passado. A cópula sa aparece em predicados que
apresentam ideia de lugar, como em kumin txi sa ta vêvê a? ‘onde você
vive?’/ ami sa ta vêvê na Pican ‘eu vivo no Picão’/ kaxi me sa ta na
Santantoni ‘minha casa fica em Sãnto Antônio’. O ta aqui é usado como
locativo. A cópula no presente não ocorre em construções predicativas, como
ami biolôgu ‘eu sou biólogo’/ ami seradô ‘eu sou marceneiro’. Assim,
não é possı́vel dizer *ami sa biolôgu / *ami sa seradô. Já a cópula no
passado pode ocorrer em construções predicativas, como ami era biolôgu /
ami era seradô.
3. Posse e pronome possessivo
A relação de posse entre dois nomes é obtida colocando-se o possuidor
seguido pelo possuı́do, como em zuda Desu ‘ajuda de Deus’, kaxi Maa
‘casa da Maria’.
A posse entre pessoa e nome se dá pospondo o pronome pessoal possessivo
ao objeto possuı́do, como em kaxi me ‘minha casa’.
4. Partı́culas e pronomes interrogativos
Nesta lição, temos a partı́cula interrogativa a e os interrogativos de lugar,
kumin e ba.
• a: em principense, a partı́cula interrogativa a deve aparecer no final de
frases interrogativas, como em modi a ‘como vai’ ? Com esta partı́cula,
a entonação é decrescente no final da frase. A partı́cula pode ser quase
64
Ana Livia Agostinho
sempre omitida, mas, nestes casos, a entonação é crescente.
• kumin: quando utilizado como nome, pode ser traduzido por ‘caminho’
ou ‘lugar’. Se colocado no inı́cio da frase interrogativa, como em kumin
txi sa ta vêvê a? ‘onde você mora?’, tem função interrogativa ‘onde’.
• ba: é um locativo (significa ‘estar em algum lugar’) e pode ser usado
no final das sentenças, como em kaxi te ba? ‘onde é sua casa?’. É
usado somente em sentenças interrogativas.
5. Gênero
O gênero normalmente não é marcado morfologicamente nem sintaticamente. Nesta lição, temos, por exemplo, a palavra biolôgu e seradô
para ambos os gêneros, ou seja, podendo se referir a um homem ou a uma
mulher. Há algumas poucas palavras em que encontramos oposição marcada
na terminação, como em kunhadu e kunhada. Outra maneira de distinguir
gênero é colocando os termos omi ‘homem’ e mye ‘mulher’ pospostos às
palavras. Temos, então, ugatu omi ‘gato’ e ugatu mye ‘gata’. Há também
casos em que verificamos uma palavra diferente para cada gênero, como are
‘rei’ e ranha ‘rainha’.
6. Conjunção - i
A conjunção aditiva i ‘e’ inicia a sentença coordenada aditiva. Em
principense, essa conjunção é somente usada para introduzir orações. A
conjunção aditiva usada entre nomes será vista mais adiante. Ela pode ser
omitida.
(6)
I
atxi
bê?
CONJ.e 2PS.IND também
‘E você?’
(7)
Mene, i
atxi?
Manuel CONJ.e 2PS.IND
‘Manuel, e você?’
Faa Ningê Bê
65
Exercı́cios
I- Verta para o principense as seguintes frases.
1. Você mora em Santo Antônio?
2. Onde você mora? - Eu moro no Picão.
3. Qual é o seu nome? - Meu nome é Sabrina.
4. Você, você mora no Picão.
5. Eu, eu moro em Portugal.
6. Você, você se chama Manuel.
7. Eu, eu sou a Sabrina.
8. A sua casa fica em Portugal?
9. A casa de Manuel fica no Picão.
10. Onde é a casa dele?
11. A minha casa fica no Brasil.
12. Onde está a Sabrina?
13. Cadê o Manuel?
14. Onde é a sua casa?
II- Como você costuma cumprimentar seus pais e amigos? E uma pessoa que
acabou de conhecer? Pergunte a seu professor como dizer isso em lung’ie.
III- Escreva um diálogo utilizando os cumprimentos e apresentações vistos
na lição. Utilize o texto de Cultura como apoio.
Cultura - Cumprimentos
Nesta lição, vimos algumas formas de se cumprimentar em principense,
como modi a? ‘como vai?’. No português local, temos a forma ‘como’, usada
para cumprimentar alguém. A resposta para esta pergunta em principense é
muitas vezes malmêntê, que significa, ‘mais ou menos’, também utilizado
no português local. Essa é a resposta mais comum, tanto em principense
como no português local, e corresponde a ‘tudo bem’. Outras expressões de
cumprimento aparecerão mais adiante em outras lições.
66
Ana Livia Agostinho
Kutwa - Modi di faa bêê
Na lisan sê, no sa vê modi ki a ka faa bêê na lung’ie. ?a sê ‘modi a?’. Isê
modi ki a ka faa bêê na salasa êntê kolêsan. Modi ôtô ê ora ki a ka faa ningê
ta mwin bêê ‘bensa same’ pu omi i ‘bensa same’ pu mye. Ora ki a ka faa
bêê na salasa, a ka kudi malimêntê, ora ki a ka faa bêê pa ningê ta mwin, a
ka kudi ‘bensa di dêsu’. Na modi sê di faa bêê, êli axi mesu na lung’ie i na
putugêzê ie: ‘como vai’, ‘mais ou menos’, ‘benção, senhor/senhora’, ‘deus te
abençoe’. Na modi ôtô bêê di faa ê ‘nunxya da no’, i a ka kudi kwisê mesu,
‘bensa’. Isê modi ki ningê dinora tava sa faa bêê. Modi ôtô di faa bêê ka podi
vika sa pô diêntxi.
Abstract
The purpose of this study is to display the pedagogical grammar of Principense, a
Portuguese-based Creole language spoken on the island of Prı́ncipe. Principense has been
taught on the island schools since 2009, however there are no teaching materials, teaching
method nor unified orthography. That being said, it will be possible to make language
tools available for the academic community as well as to the inhabitants of the island of
Prı́ncipe in order to assist native speakers by filling the gap in relation to the absence of
bilingual Principense/Portuguese material. The grammar contains twenty-four chapters
with texts in Principense (dialogues, songs, folklore tales, etc.), followed by a Portuguese
translation, vocabulary of the lesson, grammatical topics and topics of culture, thematic
vocabulary, and exercises on grammar.
Keywords: Principense language; pedagogical grammar; Creole languages; São Tomé and
Prı́ncipe.
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Faa Ningê Bê
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Os Mil e Um Verbos Árabes Mais
Frequentes nos Corpora Jornalı́stico e
Literário: Uma Proposta segundo os
Parâmetros da Lexicografia
Pedagógica
Elias Mendes Gomes∗
Resumo
Embora a lı́ngua árabe - com a prosa e a poesia altamente desenvolvida na época da Jāhiliyya (perı́odo
que antecede ao Islã) - tivesse seu indiscutı́vel lugar na Penı́nsula Arábica, foi somente com o advento e
expansão do Islamismo que ela ganhou a projeção que a levou para além de suas fronteiras linguı́sticas
históricas. Através dos séculos, a religião continuou a desempenhar um papel primordial na expansão
da lı́ngua árabe, visto ser esta a lı́ngua litúrgica do islamismo, mas, ultimamente, outros fatores têm
contribuı́do para um interesse maior pelo idioma; pouco, porém, tem sido feito para facilitar a sua
aprendizagem, especialmente entre os lusófonos. Esta pesquisa, preocupada com a falta de apoio didático
para a aprendizagem e o aprofundamento no conhecimento linguı́stico que, via de regra, se adquire com
a decodificação de textos no idioma almejado, propõe a elaboração de um dicionário monodirecional de
verbos árabe-português. O esteio teórico é a convergência da linguı́stica de corpus com a lexicografia
pedagógica, sob a ótica da Escola de Filologia de Kufa que considerava o verbo como o “originador” do
universo léxical árabe. O levantamento do corpus verbal será primordialmente baseado nos trabalhos
de Moshe Brill (1940) e Jacob Landau (1959) que, seguindo os parâmetros da linguı́stica de corpus,
compilaram as palavras mais frequentes na mı́dia jornalı́stica e literatura árabes. O dicionário proposto
nesse artigo será compilado tendo por base a lexicografia pedagógica de Welker (2004, 2008). Welker
(2008:39) discute a Lexicografia pedagógica (LP), apresentando técnicas que, se seguidas, auxiliarão os
consulentes em sua tarefa de compreensão e decodificação de textos em lı́ngua estrangeira. A LP é
definida como tendo “o genuı́no objetivo de satisfazer as necessidades de informação lexicograficamente
relevantes que têm os estudantes em uma série de situações extra-lexicográficas durante o processo de
aprendizagem de uma lı́ngua estrangeira” (Welker 2008:39).
Palavras-chave: Lı́ngua árabe; lexicografia bilı́ngue; dicionário pedagógico; verbos árabes.
∗
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Lı́ngua, Literatura e Cultura Árabe. FFLCH/DLOUSP. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected].
Os Mil e Um Verbos Árabes Mais Frequentes
69
Introdução
A linguagem - o principal veı́culo através do qual os seres humanos se
comunicam - sempre encantou e mistificou a humanidade. Devido a isso,
teorias, hipóteses e especulações sobre a sua origem e desenvolvimento
remontam-se há milhares de anos. Nesse passado remoto, os seres humanos
transmitiam suas tradições para as próximas gerações através de dois meios
básicos: oralidade (palavra falada) e representações gráficas (pinturas nas
cavernas, por exemplo). Mas, foi somente com o advento da escrita que se
tornou possı́vel a compilação de dicionários. A primeira obra lexicográfica
de que se tem notı́cia trata-se de uma produção assı́ria que remonta há
muitos séculos antes de Cristo. Esta obra, composta por alguns tabletes
de argila com as palavras organizadas em colunas e grafadas com a escrita
cuneiforme, foi encontrada na cidade de Elba (agora parte da Sı́ria), e
registrava palavras na lı́ngua suméria com equivalentes no idioma acádico
(Bready 2004). Haywood (1960:5), avaliando esse documento lexicográfico,
retrata-o como um “protótipo” do dicionário como é conhecido nos dias
atuais: “o germe da ideia de dicionário era conhecido na Assı́ria quase mil
anos antes de Cristo”.
As evidências históricas apontam que a tradição ocidental da confecção
de dicionários começou com os gregos. Porém, como sugere Read (2002),
esse interesse somente ocorreu depois que a linguagem tinha alterado tanto,
que se faziam necessárias explicações e comentários para que pudesse ser
entendida.
Para os árabes, entretanto, a lexicografia desempenhou - desde cedo - um
papel muito importante, pois, com o advento e expansão do Islamismo, a
lı́ngua árabe ganhou a projeção que a levou para além de suas fronteiras
linguı́sticas históricas. Esposito (1999) e Versteegh (1997) atestam que o
papel preponderante que o árabe desempenhava na recém-criada liturgia
islâmica, bem como o domı́nio polı́tico da nação árabe nos territórios conquistados, requeriam uma inadiável estruturação linguı́stica. Respondendo
a essa necessidade, o filólogo Khalil Ibn-Ahmad (ca.718-791), procedente
da provı́ncia onde se encontra o moderno Sultanato de Oman, compilou o
“inteiro” vocabulário árabe em uma única obra, o Kitāb al-Ayn (o livro [da
letra] cayn). Khalil Ibn-Ahmad também fundou a primeira escola de filologia
70
Elias Mendes Gomes
do mundo árabe, onde seus discı́pulos analisaram a lı́ngua e fixaram sua
gramática.
A trajetória da lı́ngua árabe é caracterizada por etapas definidas: ascensão,
apogeu, declı́nio e revitalização. Durante o perı́odo de declı́nio (ou, na opinião
de alguns, estagnação), ela permaneceu isolada, em especial durante partes
do Califado Otomano (1299-1922), que é conhecido entre os árabes sob o
epı́teto a “Era da decadência”. O isolamento foi rompido com a invasão
francesa ao Egito em 1798 e, desde então, o mundo de expressão árabe tem
estado em contı́nuo contato com o Ocidente. Esse contato tem se manifestado
de diferentes formas e em esferas distintas dependendo do perı́odo investigado,
mas inclui a colonização franco-britânica de quase toda a região, a Guerra
do Golfo, a invasão norte-americana ao Iraque e Afeganistão, alcançando os
dias atuais, com o envolvimento da OTAN na Lı́bia.
A partir de 1989, com a implosão do sistema socialista soviético e a
explosão do capital em nı́vel mundial que seguiu em seu encalço (com todas
suas transformações e consequências), inaugurou-se o perı́odo da moderna
globalização - como um fenômeno que demanda um conhecimento maior
do outro. Dessa forma, os recentes “gritos” por reforma nos paı́ses árabes,
conhecido como a Primavera Árabe, têm instigado o mundo ocidental a
uma compreensão dos fenômenos polı́ticos e sociais do mundo árabe e
islâmico contemporâneo, compreensão essa que ultrapassa os estereótipos tão
midiatizados, mas tão pouco analisados com profundidade. A importância
geopolı́tica da região salienta a necessidade desses estudos; e a aprendizagem
da lı́ngua árabe é essencial para esse entendimento de maneira imparcial.
Esta pesquisa está particularmente preocupada com a falta de apoio didático para a aprendizagem e o aprofundamento no conhecimento linguı́stico
que, via de regra, se adquire com a leitura no idioma almejado; por isso
esta pesquisa propõe à elaboração de um dicionário bilı́ngue de verbos árabeportuguês, privilegiando os verbos mais frequentes nos corpora jornalı́stico e
literário.
O verbo e sua função no universo lexical árabe
Tradicionalmente, os gramáticos árabes dividiram a lı́ngua em três partes:
substantivo, verbo e partı́culas (que incluem os advérbios, preposições, prono-
Os Mil e Um Verbos Árabes Mais Frequentes
71
mes, etc.). Ainda nos séculos VII e VIII d.C., duas escolas filológicas, Basra
e Kufa - ambas no atual Iraque - surgiram para explicar o funcionamento
do árabe e preservar sua estrutura e coesão lexical, uma vez que o contato
com as demais nações através da conquista islâmica tinha comprometido a
“pureza” da lı́ngua do Alcorão.
A Escola de Kufa, tendo como fundamento o aspecto morfológico da
lı́ngua, posicionou-se advogando que o verbo era a mola propulsora do léxico
árabe (Elamrani-Jamal 1983). Esse parecer tem sido aceito por muitos
orientalistas e arabistas no decorrer da história. Quando as lı́nguas semı́ticas
(da qual o árabe faz parte) são estudadas, percebe-se que uma de suas
marcas distintivas é a maneira pela qual os vocábulos são formados. Trata-se
do sistema de derivação analógico. Embora, na lı́ngua árabe, nem todas
as palavras possam ser rastreadas a uma raiz verbal, a maioria de seus
lexemas deriva-se de um verbo simples que designa uma expressão escrita
constituı́da de três letras destinada a representar uma ideia (Cowan 2006).
Essa combinação de grafemas traz em seu bojo uma noção especı́fica. Assim,
a composição /k-s-r/ representa a ideia de “quebrar”, enquanto que /d-r-s/
exprime o conceito de “estudar”, e /q-w-l/ o de “falar”, e assim por diante.
Prefixos, sufixos e infixos acoplados a essa raiz dão origem a novos termos
(sejam eles verbos ou substantivos) relacionados à ideia principal. Com
relação às derivações verbais, convencionou-se, entre os arabistas, catalogálas com numerais romanos. Essa mudança dá novas nuanças de significado
aos verbos. Assim, o radical /K-T-B/, que denota a ideia de escrever, é
usado nas formas I, II, III, IV, VI, VII, VIII e X. Algumas dessas formas
conservam o mesmo significado, mas, por exemplo, as formas III /Ka:TaBa/
e VI /taKa:TaBa/ significam “corresponder”, enquanto que as formas IV
/‘aKTaBa/ e X /astaKTaBa/ significam “ditar”.
Com relação às derivações não-verbais, o acréscimo do grafema “m” ao
trigrama gera a noção de “escritório” ou “escrivaninha” /maKTaB/, ou
seja, o local onde se escreve. /KiTa:B/1 refere-se a um livro, enquanto que
/maKTaBa/ representa a ideia de biblioteca, ou o lugar onde os escritos
são armazenados. /Ka:TiB/ é aquele que performa a ação de escrever, ou
escritor, escriturário; enquanto que /maKTu:B/ é a obra produzida, ou seja,
o “escrito”, “carta”. Uma segunda acepção a essa palavra traz a ideia de
1
Os “dois pontos” indicam o alongamento da vogal.
72
Elias Mendes Gomes
destino, aquilo que foi escrito/decretado (por Deus) para alguém. Em sua
forma deverbal (o primeiro substantivo derivado da forma verbal), /KiTa:Ba/
refere-se à escrita em si. Observe-se que o radical permanece inalterado
/K-T-B/.
Por analogia, potencialmente quase toda raiz verbal pode originar novos
vocábulos se for seguida a estrutura descrita acima (El-Mouloudi 1986). Esse
processo é conhecido em árabe como /ichtiqa:q/, ou seja, derivação analógica
(El-Khafaifi 1985, Aryam 2001, Tarazi 2005). Al-Qahtani (2000) ilustra esse
processo com o seguinte exemplo: /maKTaB/ “escritório, ou lugar onde se
escreve”, em contraste com /maQRa’/ “lugar onde se lê”. Nota-se que o
vocábulo /maQRa’/ não existe oficialmente em árabe, mas, se houvesse a
necessidade, a denominação poderia ser cunhada. Esse é o método mais
usado pelas academias de lı́ngua árabe para a inserção de neologismos ao
léxico.
Assim, um dicionário de verbos poderia, potencialmente, cobrir uma
ampla extensão do universo lexical árabe, já que, uma vez que o estudante
esteja familiarizado com a convenção e os paradigmas árabes, poderá deduzir
o significado de palavras que não fossem verbos, mas que se derivam de um,
simplesmente por consultar o radical do vocábulo.
Esteio teórico: Lexicografia pedagógica e
Lı́nguı́stica de corpus
Como aludido no tı́tulo deste artigo, a pesquisa é de caráter interdisciplinar,
focalizando na intersecção da Linguı́stica de corpus e da Lexicografia pedagógica. Barbosa (1990) postula que os princı́pios de interdisciplinaridade das
ciências básicas e aplicadas também são notados nas ciências da linguagem;
nela, cada área mantém uma cooperação estreita e recı́proca com as outras,
sem deixar de ter, individualmente, suas especificidades epistemológicas.
Abaixo, exploram-se essas duas ciências. Cabe ressaltar, entretanto, que
como este artigo é muito conciso, seu propósito não é apresentar discussões
teóricas aprofundadas sobre a questão do fazer lexicográfico; a fundamentação exposta não é de natureza propriamente analı́tica ou investigativa, mas
apenas descritiva.
Os Mil e Um Verbos Árabes Mais Frequentes
73
Lexicografia pedagógica
A lexicografia está intimamente relacionada à lexicologia. Para alguns autores,
como Crystal (1988) e Barbosa (1990), a lexicografia pode ser considerada
como um ramo da “lexicologia aplicada”. De acordo com Welker (2004, 2008),
a lexicografia engloba dois sentidos: lexicografia prática, ou seja, a técnica ou
arte da confecção de dicionários; e a lexicografia teórica ou metalexicografia,
que trata da problemática do fazer lexicográfico, da lexicografia histórica, da
tipologia de dicionários, e pesquisa sobre o uso de dicionários (Zucchi 2010).
A lexicografia, como técnica de elaboração de obras lexicográficas, envolve
a compilação, análise, classificação, definição (ou, no caso de dicionários
que contemplam duas lı́nguas ou mais, a equivalência) e o processamento
de unidades lexicais da lı́ngua ou parte dela, uma vez que, como afirmam
Haensch et al. (1982), os dicionários podem elencar uma porção maior ou
menor do léxico de uma lı́ngua (ou seja, todos os tipos de itens lexicais) ou
apenas um tipo especı́fico (verbos, sinônimos, etc.), ou podem restringir-se a
fraseologias (expressões idiomáticas, provérbios, etc.).
Dessa maneira, os critérios de confecção de obras lexicográficas são determinados pela natureza da obra e pela “audiência” (público alvo) que o
dicionário pretende atingir. Os dicionários especificamente produzidos para
estudantes têm uma abordagem diferenciada, já que responde às necessidades
desse público. Welker (2008) discute a Lexicografia pedagógica (LP), apresentando técnicas que, se seguidas, auxiliarão os consulentes em sua tarefa de
compreensão e decodificação de textos em lı́ngua estrangeira. A LP é definida
como tendo “o genuı́no objetivo de satisfazer as necessidades de informação
lexicograficamente relevantes que têm os estudantes em uma série de situações extra-lexicográficas durante o processo de aprendizagem de uma lı́ngua
estrangeira” (Tarp 2006:300, apud Welker 2008:39). Exploram-se abaixo os
dois principais critérios para a confecção de dicionários: macroestrutura e
microestrutura.
Macroestrutura
O conjunto das entradas, ou seja, a menor unidade autônoma de um dicionário, comumente denominado de nomenclatura e arrolado em forma vertical,
como já visto, recebe o nome de macroestrutura (ou nominata). A inserção
74
Elias Mendes Gomes
de uma palavra à macroestrutura, como mencionado anteriormente, segue
critérios pré-estabelecidos. Para o proposto dicionário, as entradas serão
escolhidas com base na Linguı́stica de corpus, considerando sua frequência
em diferentes corpora: o jornalı́stico e o literário.
A lista de frequência de Brill (1940), como indica o tı́tulo, foi retirada de
corpus jornalı́stico publicados no Egito, Palestina, Lı́bano e Iraque, consistindo de 136.089 vocábulos corridos, dos quais 5.981 são vocábulos especı́ficos.
Os jornais datam de 1937 a 1939. A lista de Landau (1959) foi retirada de
um corpus literário egı́pcio, contendo 60 livros de diferentes gêneros: ensaio,
biografia, crı́tica literária, romance, filosofia popular, livro de viagens, história
islâmica e estudos sociais. Foram arrolados 11.284 vocábulos especı́ficos da
lista total de 136.089 (como em Brill), uma vez que o plano original era, entre
outros fatores, comparar o uso da linguagem nos dois diferentes gêneros.
Os verbos arrolados nas duas listas somam 3.407, incluindo os 900
hapax legomenae (verbos com apenas uma ocorrência nos corpora). Desses,
privilegiaram-se os 1001 mais frequentes.
Microestrutura
A microestrutura - o conjunto de informações que segue a entrada - contará
com a transcrição fonológica, apontará se o verbo é transitivo ou intransitivo,
decodificará o significado da entrada provendo equivalentes paralelos em
português e, se o verbo muda de sentido se seguido por uma preposição, além
dos equivalentes em português, contará também com abonações retiradas de
corpora jornalı́stico e literário.
Levando em consideração o público alvo do dicionário, a microestrutura
do verbete deverá facilitar a tarefa do estudante de árabe de perceber as
nuanças nos significados dos verbos árabes, especialmente quando estes são
seguidos por preposição. Cada verbete terá um tratamento tentativamente
exaustivo, fornecendo ao consulente diferentes equivalências em português à
raiz em questão (parassinônimos).
A fim de manter-se fiel ao propósito de registrar os verbetes que fazem
parte da linguagem atual, sempre que possı́vel, procurar-se-á aboná-los com
exemplos reais, retirados do banco de dados da Brighan Young University.
O “ArabiCorpus” é um programa que contém diferentes corpora em árabe,
incluindo os dois que serão usados para as abonações: o jornalı́stico e o
Os Mil e Um Verbos Árabes Mais Frequentes
75
literário. Esses corpora cobrem uma extensa área do mundo árabe: Arábia
Saudita, Argélia, Egito, Kuait, Lı́bano, Marrocos, Palestina, Sı́ria e Sudão.
Linguı́stica de corpus
“Corpus” tem sido definido como uma coletânea de dados linguı́sticos baseados em textos (que também podem incluir a oralidade, desde que transcrita
em forma de texto), geralmente com o objetivo de verificar hipóteses acerca
de uma dada lı́ngua. Essa metodologia tem sido bastante usada no âmbito
da lexicografia bilı́ngue para a identificação da frequência vocabular em um
dado conjunto de textos. Uma das ferramentas da Linguı́stica de corpus
é a compilação de listas de frequência, tendo em vista, principalmente, a
confecção de livros, textos e dicionários para aprendizes de lı́nguas (materna
ou estrangeira).
É comum e acordado que uma cuidadosa seleção de vocábulos pode
conduzir a uma maior eficiência no ensino (e aprendizagem) de um idioma.
Por isso decidiu-se utilizar duas das mais conhecidas listas de frequência
produzidas em árabe que, embora não sendo as únicas, podem ser consideradas as mais representativas, já que são poucas as listas publicadas que são
sistemáticas e mantêm reconhecido rigor acadêmico: a lista de frequência de
corpus jornalı́stico (Brill 1940) e a de corpus literário (Landau 1959). As
duas listas se complementam e são usadas aqui para prover uma referência
para aprendizes de árabe.
Lista de frequência de Brill
Embora Moshe Brill não tenha sido o primeiro a apresentar a lexicometria
como ferramenta que auxilie no ensino/aprendizado de uma lı́ngua, sua
aplicação deste princı́pio à lı́ngua árabe demonstra grande originalidade,
particularmente devido às caracterı́sticas sui-generis do árabe.
Brill (1940) contou e registrou a maioria dos vocábulos de seu corpus
jornalı́stico por meio de amostragem. Aproximadamente metade de todas
as palavras arroladas por ele (aproximadamente 70.000) foi retirada de dois
periódicos no Oriente Médio: Al-Ahram (Egito) e Filastin (Palestina), entre
os anos de 1937 e 1939. O método utilizado foi contar os vocábulos nas
primeiras e últimas linhas dos editoriais, das notı́cias locais e estrangeiras, e
76
Elias Mendes Gomes
das reportagens de destaque. Outros 40.000 vocábulos foram enumerados dos
mesmos jornais, mas em uma data posterior para determinar a estabilidade
da lista de frequência.
Para acentuar ainda mais a objetividade da obra, Brill contou todas as
palavras de seis jornais (em lugar de apenas as primeiras e últimas linhas de
artigos selecionados) durante o perı́odo de 11 de dezembro de 1938 a 15 de
janeiro de 1939. Essa contagem retornou aproximadamente 20.000 palavras
corridas. O corpus deixou de ser apenas os dois jornais já mencionados
acima para incluir Al-Misri (Egito), Al-Jamiia Al-Islamiyya (Palestina),
Sawt Al-Ahrar (Lı́bano) e Al-Istiqlal (Iraque).
Uma vez tabulados os resultados, o número de palavras corridas chegou a
136.089 ocorrências. Destes, foram encontrados 5.981 vocábulos especı́ficos
que foram organizados em duas listas: uma em ordem alfabética pelas raı́zes
árabes (juntamente com sua respectiva frequência), e uma segunda lista em
frequência decrescente, começando com o vocábulo mais comum (a preposição
“em”, com 5870 ocorrências) e finalizando com os hapax legomenae.
O resultado da análise de Brill sugere que o conhecimento das 500
palavras mais frequentes assegura o entendimento de aproximadamente
61.1% do conteúdo dos jornais árabes modernos, enquanto que 1.000 palavras
cobririam 75.4% do vocabulário utilizado pela imprensa hoje.
Obviamente, deve-se levar em conta que uma lista de frequência é uma
“radiografia” de sua época e da realidade de onde o material consultado
procede. Dessa maneira, a lista de Brill retrata bem a realidade do fim da
década de 30, às vésperas da II Guerra Mundial, perı́odo no qual abundavam nos jornais com discussões sobre fascismo, nazismo, rearmamento, etc.
Vocábulos como “comunismo”, “socialista”, e “telegrama” também aparecem
com frequência muito alta, o que provavelmente não refletiria a realidade dos
dias atuais. O verbo /sarraha/ “dar um comunicado, declarar” e o adjetivo
/qawmiyy/ “nacional” também poderiam ser caracterizados como frequências
de validade questionável, pois suas ocorrências são incomuns.
Lista de frequência de Landau
Jacob Landau interessou-se pela abordagem de Brill, mas achava a linguagem
da imprensa muito restrita. Ele procurou complementar a obra de Brill
através da elaboração de uma lista de palavras presentes em corpus literário
Os Mil e Um Verbos Árabes Mais Frequentes
77
que, certamente, configuraria mais palavras utilizadas no cotidiano.
Na introdução a seu livro, Landau questiona alguns aspectos da abordagem de Brill, em especial o curto perı́odo que a amostragem cobre (aproximadamente dois anos) e a pluralidade de paı́ses representados. Por fim,
ele decide percorrer um caminho alternativo onde expande o perı́odo da
amostragem (obras escritas nas últimas duas décadas) e concentra-se em
um único paı́s (Egito), cuja prosa é mais conhecida do que a literatura
proveniente de outras partes do mundo árabe:
A literatura egı́pcia moderna é amplamente lida no Sudão, Sı́ria,
Jordânia e Iraque e, aparentemente, também no noroeste africano,
Iêmen e Arábia Saudita. Lı́bano parece ser uma exceção. A restrição
dessa pesquisa à literatura egı́pcia deixa aberto o caminho para a
preparação de listas de frequências de literatura árabe moderna em,
digamos, Lı́bano, Sı́ria, ou Iraque numa data futura. (Landau 1959:X)
Landau limitou seu corpus a sessenta obras literárias e os dividiu em
dois grupos. O primeiro grupo consistia de dez obras que incluı́am ensaios,
autobiografia, crı́tica literária, romances, história islâmica, filosofia popular e
um livro de viagens. Nesses, foram contadas todas as palavras que apareciam
nas dez primeiras e últimas páginas da obra em questão.
O segundo grupo (as cinquenta obras restantes), além dos gêneros mencionados acima, também incluı́a assuntos como sociologia, ciência popular,
história geral, história militar, história da filosofia árabe, antologia literária,
islamismo, reforma islâmica, personalidades islâmicas, romances históricos,
peças teatrais, coleção de preleções sobre economia e finanças, coleção de
documentos sobre julgamentos famosos, tratados de problemas sociais e
religiosos, e conduta na vida marital. Nessas obras, foram contadas todas as
palavras das cinco primeiras e últimas páginas. Em obras onde havia prefácio
e/ou conclusão, a contagem começou depois do prefácio e terminou antes da
conclusão, visto que, via de regra, o vocabulário utilizado nessas sessões é
estereotipado e atı́pico.
Uma vez que os 136.089 vocábulos corridos da prosa egı́pcia foram
enumerados, chegou-se a 11.284 vocábulos especı́ficos, um número bem maior
do que aquele encontrado por Brill (5.981) - o que era de se esperar, visto
que a linguagem da prosa é muito mais variada do que a da imprensa.
O sistema de organização dos resultados de Brill foi parcialmente adotado
por Landau. Os 11.284 vocábulos especı́ficos foram apresentados em duas
78
Elias Mendes Gomes
listas: uma em ordem alfabética pelas raı́zes árabes (juntamente com suas
respectivas ocorrências no corpus literário, jornalı́stico e a soma das ocorrências nos dois corpora). Landau também acrescentou duas outras colunas
(uma com a transcrição das palavras em caracteres romanos, e a segunda
onde apresenta os equivalentes em inglês dos vocábulos em questão). A
segunda lista foi organizada em frequência decrescente, começando com o
vocábulo mais comum (também a preposição “em”, com 6001 ocorrências) e
terminando com os hapax legomenae.
A tabulação de resultados da lista de frequência de Landau indica que a
apreensão dos 500 vocábulos mais frequentes possibilitaria o entendimento
de aproximadamente 58.53
As listas combinadas
Em sua versão combinada (272.178 vocábulos), foram arrolados 12.400
vocábulos especı́ficos, um número muito inferior à soma dos vocábulos
especı́ficos das duas listas. Essa caracterı́stica indica que muitos vocábulos
são comuns às duas listas. Entretanto, pode-se perceber que cada corpus
mantém seu vocabulário próprio (em grande parte). A palavra /’adab/
“polidez, cortesia, boas-maneiras; belas artes” tem uma frequência altı́ssima
no corpus literário e inexiste no corpus jornalı́stico. O mesmo acontece com a
palavra /’umm/ “mãe”. Já o adjetivo /ra:di:ka:liyy/ “radical” (no sentido de
extremista) e o substantivo /qana:sil/ “cônsules” somente aparecem no corpus
jornalı́stico. Conclui-se que, embora os corpora tenham grande intersecção
vocabular, eles mantêm, individualmente, suas próprias especificidades.
Com relação ao alvo primordial para a produção de listas de frequência,
ou seja, auxiliar na escolha de vocábulos para livros, textos e dicionários para
aprendizes, Landau chega à conclusão que sua obra cumpre esse objetivo.
Para ele, se o aprendiz domina os 1.000 vocábulos mais frequentes na lista
de frequência combinada, ele/ela tem uma chance real de obter 70-75.4
Considerações finais
O interesse que a lı́ngua árabe tem despertado no mundo em geral, e no Brasil
em particular, justifica a elaboração de materiais de apoio à sua aprendizagem.
Os Mil e Um Verbos Árabes Mais Frequentes
79
Esta pesquisa procurou apresentar aspectos considerados importantes para a
produção de uma ferramenta importante para essa aquisição linguı́stica, o
dicionário monodirecional de verbos árabe-português.
Abstract
Even though the Arabic language - with the poetry highly developed during the Age of
Jāhiliyya (period that precedes the coming of Islam) - had its indisputable place in the
Arabian Peninsula, it was only with the advent and expansion of Islam that it gained the
projection to beyond its historical borders. Through the centuries, religion continued to
play a primordial role in the expansion of the Arabic language, as this is the liturgical
language of Islam. Recently, other factors have contributed to a greater interest in the
language, few things, however, have been done to facilitate its learning, especially among
the Portuguese speaking people. This research is concerned with the lack of didactic support
for the learning and deepening of linguistic knowledge that, as a general rule, is acquired
with the decoding of texts in the desired language. This study proposes the elaboration
of a mono-directional dictionary of Arabic-Portuguese verbs, which is interdisciplinary
in nature, focusing the intersection of Corpus Linguistics and Pedagogical Lexicography.
The dictionary is interpreted through the view of the Philological School of Kufah that
considered the verb as the “originator” of the Arabic lexical universe. The verbal corpus
will be based on the works of Moshe Brill (1940) and Jacob Landau (1959), who, following
the parameters of the Corpus Linguistics, compiled a list of the most frequent words
in the Arabic media and literature. The proposed dictionary will be compiled having
as foundation the Pedagogical lexicography of Welker (2004, 2008). Welker (2008:39)
discusses the Pedagogical lexicography (PL), presenting techniques that, if followed, will
help the dictionary user in the task of comprehending and decoding texts in foreign language.
The PL is defined as having the “genuine objective of meeting the needs of information
lexicographically relevant, which the students might have in extra-lexicographical situations
during the learning process of a foreign language”(Welker 2008:39).
Keywords: Arabic; Bilingual lexicography; Pedagogical dictionary; Arabic verbs.
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Algumas Caracterı́sticas da Palavra
Sujeita a Apagamento de Sı́laba em
Sândi Externo
Eneida de Goes Leal∗
Resumo
Com base na geometria de traços (Clements & Hume 1995) e no modelo da sociolinguı́stica variacionista,
analiso neste trabalho as seguintes caracterı́sticas da palavra sujeita a apagamento de sı́laba (como sândi
externo): Consoante, Vogal, Estrutura da Sı́laba, Número de Segmentos da Palavra Sujeita à Queda,
e Caracterı́stica do Item (lexical/morfológico) Sujeito à Queda. O corpus é composto de 3 horas de
gravação, com 2 mulheres de Capivari e 1 de Campinas, todas estudaram até o fundamental e têm mais
de 50 anos de idade. A análise estatı́stica dos dados foi feita com o GoldVarb X. Para Consoante, a
hipótese levantada foi a de que há uma tendência para o apagamento com coronais. Esta tendência foi
confirmada com três consoantes (/t/, /d/ e /z/), visto que as coronais /S, Z/ são neutras ao processo; /s/
e a coronal nasal /n/ desfavorecem a queda de sı́laba. As labiais /f, v/ favorecem o processo, enquanto
que as lı́quidas inibem-no, e a nasal /m/ é neutra. Houve baixo número de contextos com labiais /p/
e /b/, dorsais orais /k/ e /g/ e para a dorsal nasal /ñ/, de onde não pudemos tirar conclusões. Parece
haver bloqueio do processo com as lı́quidas, uma vez que houve uma taxa de aplicação muito baixa do
processo com estas consoantes. Os resultados apontam que Vogal e Estrutura da Sı́laba parecem não
importar para a aplicação do processo. Para o grupo de fatores Número de Segmentos da Palavra Sujeita
à Queda, verificou-se que, quanto maior é a palavra, maior é a tendência para a aplicação de queda
de sı́laba. Finalmente, para Caracterı́stica do Item (lexical/morfológico) Sujeito à Queda, nenhum dos
fatores (sejam palavras, sejam morfemas) apresentaram resultados quantitativos que pudessem indicar
que pode haver aplicação de queda de sı́laba com contextos consonantais que diferem em ponto de C
e/ou [contı́nuo].
Palavras-chave: Fonologia; sândi externo; contexto segmental; geometria de traços; estrutura silábica;
sociolinguı́stica.
∗
Departamento de Linguı́stica da Universidade de São Paulo (DL-USP). Este trabalho faz parte da
pesquisa de doutorado “Teoria fonológica e variação: A queda de sı́laba em Capivari e em Campinas”,
financiada pela CAPES. E-mail: [email protected].
82
Eneida de Goes Leal
Introdução
Neste trabalho, apresento os resultados relativos ao apagamento de sı́laba
em fronteiras maiores do que a palavra (sândi externo), com base num
estudo piloto em que se compararam as propriedades de queda de sı́laba em
Capivari e em Campinas (duas cidades do interior paulista). O piloto foi uma
primeira aproximação aos dados; e foram examinados os seguintes grupo de
fatores linguı́sticos, relacionados à primeira palavra do contexto de queda
de sı́laba: Consoante, Vogal, Estrutura da Sı́laba, Número de Segmentos e
Caracterı́stica do Item Sujeito à Queda. A única restrição para coletar os
dados foi que a primeira sı́laba do contexto deve ser fraca (cf. a proposta de
Tenani 2002, para a haplologia).
Geralmente, divide-se a queda de sı́laba em dois tipos, definidos de acordo
com seu o contexto consonantal: na elisão silábica (Leal 2006), as consoantes
têm traços diferentes (cf. (1)); quanto à haplologia (Bisol 2000, Tenani 2002,
Battisti 2004, Pavezi 2006, Leal 2006), as consoantes podem ser idênticas ou
similares (neste caso, há diferença, no máximo, no traço [sonoro], cf. (2)):
(1)
/s + Z/ Ela tem uma cabe(SA) GIgante - elisão silábica (Leal 2006)
(2)
/t + d/ Moro na fren(TE) DAquela loja - haplologia (Leal 2006)
Em (1), o contexto consonantal é formado por duas coronais [+contı́nuo],
sendo que /s/ é [-vozeado] e /Z/ é [+vozeado], havendo outra diferença
entre elas: a primeira é [+anterior, -distribuı́do] e a segunda é [-anterior,
+distribuı́do]; no exemplo (2), também há duas coronais, desta vez, ambas são
[-contı́nuo] e diferem também no traço [sonoridade]: a primeira é [-vozeado] e
a segunda é [+vozeado]. Como se pode observar nos exemplos (1) e (2), se
as consoantes tiverem traços diferentes (isto é, se houver uma diferença de
mais traços do que apenas [vozeamento]), caracteriza-se a elisão silábica; se
as consoantes forem iguais ou semelhantes (neste caso, a diferença é somente
no traço [vozeamento]), o processo é a haplologia.
Leal (2006) verificou que os dois processos têm as mesmas caracterı́sticas
segmentais, prosódicas e métricas, ou seja, são um mesmo processo fonológico,
e a exigência segmental é que as consoantes devem ter um mesmo ponto de
C e um mesmo valor para [contı́nuo]. Em outras palavras, há variação de
queda de sı́laba somente se as consoantes tiverem ponto de C e valor para
Palavra Sujeita a Apagamento de Sı́laba em Sândi Externo
83
[contı́nuo] iguais; outras combinações de contextos consonantais bloqueiam o
processo - são casos categóricos, em que nunca há aplicação do processo.
No entanto, houve algumas exceções para esta regra geral, e Leal (2006)
verificou que estas exceções (aplicações de queda de sı́laba em que o contexto
consonantal é diferente em ponto de C e/ou [contı́nuo]) dizem respeito a
determinados itens lexicais ou morfológicos. Por exemplo:1
(3)
... em frente à ca(SA) DE mamãe.
(4)
... minha mãe fala(VA) JOão Prego.
O contexto segmental de (3) é /za + de/, em que há duas consoantes coronais
que diferem em contı́nuo: /z/ é [+contı́nuo] e /d/ é [-contı́nuo]; em (4), as
consoantes são diferentes tanto em ponto de C quanto em [contı́nuo]: /v/ é
uma labial [+contı́nuo] e /Z/ é uma coronal [-contı́nuo]. Em ambos os casos,
há variação de queda de sı́laba. Segundo Leal (2012), há variação em (3)
devido à primeira palavra do contexto: casa é um item lexical que pode
sofrer o processo, independentemente da consoante que a segue; em (4), o
item morfológico {-va} é o que permite a variação, também sem importar a
consoante que o segue.
Em resumo, a queda de sı́laba pode ser definida pelo ponto de C e pelo
valor para contı́nuo do contexto consonantal, que devem ser iguais, segundo
Leal (2006, 2012). Outros contextos bloqueiam o processo (não há variação),
com exceção de certos itens lexicais ou morfológicos (cf. a lista de itens de
exceções na Tabela 6).
Dois objetivos principais de Leal (2012), ao conduzir um estudo piloto
foram: (i) verificar se, de fato, a regra de queda de sı́laba depende de as
duas consoantes serem iguais em ponto de C e [contı́nuo] (ou seja, buscar as
variações de queda de sı́laba), observando quais contextos são categóricos
(em que nunca há aplicação do processo); e (ii) examinar se houve algum
contexto de exceção que, por acaso, não tenha sido capturado em Leal (2006).
Apresento a seguir os resultados:
Como se observa na Tabela 1, a queda de sı́laba não é muito frequente,
com apenas 4,3% de aplicação total do processo - note que os dados estão
ortogonais: no contexto a, com consoantes iguais em ponto de C e em
contı́nuo, houve 22,6% de ocorrências; em b, sequências com ponto de C igual
1
Ambos os exemplos foram retirados do piloto de Leal 2012.
84
Eneida de Goes Leal
Tabela 1 Variação e bloqueio de queda de sı́laba, de acordo com o contexto
consonantal
a.
b.
c.
d.
contexto consonantal
ponto de C igual, [contı́nuo] igual
ponto de C igual, [contı́nuo] diferente
ponto de C diferente, [contı́nuo] igual
ponto de C diferente, [contı́nuo] diferente
Total
N
121/909
27/881
21/1209
30/04/25
174/4024
%apl
13,3
3,1
1,7
0,5
4,3
%total
22,6
21,9
30,0
25,5
e [contı́nuo] diferente, houve 21,9% de ocorrências; para c e d (contextos
com ponto de C diferente e [contı́nuo] igual e com ponto de C e [contı́nuo]
diferentes), houve 30% e 25,5% das ocorrências, respectivamente.
Podemos também verificar na Tabela 1 que a maior frequência de aplicação é no contexto a, em que as consoantes têm ponto de C e [contı́nuo]
iguais, com 13,3% (N=121/909) e a porcentagem de todos os outros contextos
somados é de apenas 5,3%.
No entanto, não podemos deixar de observar que, mesmo com um baixo
número de tokens, há contextos de aplicação de queda de sı́laba em que ponto
de C e contı́nuo não são iguais: se o ponto de C for igual, mas [contı́nuo]
for diferente, houve 3,1% de aplicação (ver contexto d na Tabela 1); com
ponto de C diferente e [contı́nuo] igual, houve 1,7% de aplicação da queda
de sı́laba; e ponto de C e [contı́nuo] diferentes, a aplicação foi apenas de
0,5%. Portanto, temos que o piloto corrobora os resultados de Leal (2006),
pois há variação somente se as consoantes tiverem um mesmo ponto de C e
um mesmo valor para [contı́nuo]; ainda, pode haver variações que fogem a
esta regra que, somadas, representam 5,3% de aplicação do processo, como
veremos com mais detalhes na seção em que apresento os resultados de queda
de sı́laba.
A principal teoria fonológica utilizada neste trabalho é a de Clements &
Hume (1995), pois é a partir da geometria de traços que se define o processo.
A geometria a seguir representa o contexto de queda de sı́laba /s + Z/ do
exemplo (1), adaptado de Clements & Hume (1995: 292).
Como se pode observar na Figura 1, a cavidade oral das consoantes /s
+ Z/ é a mesma: há duas coronais [-contı́nuo, -anterior, +distribuı́do] e o
Palavra Sujeita a Apagamento de Sı́laba em Sândi Externo
85
Figura 1 Organização interna de traços do contexto de queda de sı́laba /s + Z/
processo pode ser aplicado.
Foi utilizada também a metodologia da sociolinguı́stica variacionista,
com a qual trabalhamos quais efeitos (relacionados à primeira palavra do
contexto) podem agir na queda de sı́laba em Capivari e em Campinas.2
A escolha de se estudar Capivari foi feita a partir dos resultados obtidos
em Leal (2006) - neste trabalho, verificou-se que o contexto segmental de
queda de sı́laba neste dialeto é mais abrangente (em termos de traços fonológicos) do que aqueles reportados na literatura (cf. Bisol 2000, Tenani 2002,
Battisti 2004, Pavezi 2006, Leal 2006). Ainda, houve contextos segmentais
de variação em Capivari, mas que eram categóricos (nunca eram aplicados)
em variedades de cidades próximas. O dialeto de Campinas foi o eleito,
pois a aplicação de queda de sı́laba nesta cidade se dá de modo semelhante
àquele descrito pela literatura. Interessantemente, as duas cidades são muito
próximas (a 54 km de distância) e têm uma mesma herança dialetal.3
Na seção a seguir, está a metodologia utilizada no piloto; em seguida, os
resultados dos grupos de fatores analisados estão apresentados; na última
seção, está apresentada a conclusão deste trabalho.
2
O programa utilizado para a computação dos dados foi o Goldvarb X (cf. Sankoff, Tagliamonte &
Smith 2005).
3
A exploração do ouro no final do século XVII foi uma das principais razões para a formação das
cidades de Capivari e Campinas. Exploradores e bandeirantes saı́am da região de São Paulo em
direção ao estado do Mato Grosso (região em que havia jazidas de ouro), formando-se acampamentos
pelas matas, ao longo das margens dos rios. Estes acampamentos acabavam por se tornar vilarejos e,
mais tarde, cidades - algumas das áreas em que hoje estão Campinas e Capivari.
86
Eneida de Goes Leal
Metodologia
Foram analisadas 3 gravações de 1 hora cada, com 3 mulheres: 2 são de
Capivari e 1 delas é de Campinas; todas estudaram, no máximo, até o ensino
fundamental e têm mais de 50 anos de idade.
Os dados foram analisados no programa GoldVarb X (Sankoff, Tagliamonte & Smith 2005); e a hipótese geral investigada foi a de que contextos
consonantais com ponto de C e/ou [contı́nuo] diferente bloqueiam a queda.
Em outras palavras, buscamos tanto dados em que há pouca ou nenhuma
variação (os casos categóricos) quanto aqueles em que há aplicação/não
aplicação de queda de sı́laba (as variações do processo). Os grupos de fatores
linguı́sticos, todos relacionados à palavra sujeita a apagamento, foram:
• Consoante: a hipótese levantada é que há um favorecimento de apagamentos com as coronais (com base na subespecificação de coronais - cf.
Paradis & Prunet 1991); procuramos também quais consoantes podem
favorecer ou desfavorecer o processo, bem como se há algum tipo de
consoante que pode bloquear a queda de sı́laba;
• Vogal: não houve uma hipótese especı́fica, mas verificamos quais vogais
favorecem, desfavorecem ou bloqueiam a queda de sı́laba;4
• Estrutura da Sı́laba: a hipótese é de que sı́labas CV favoreçam o
processo, com base na definição de haplologia de Alkmim & Gomes
(1982) (para quem a primeira deve ser CV; caso contrário, o processo é
bloqueado);
• Número de Segmentos da Palavra Sujeita à Queda: também não temos
uma hipótese, mas o objetivo foi verificar se o tamanho da palavra
sujeita à queda tem influência no processo, com base em estudos
que apontam que o tamanho pode interferir nas aplicações de regras
fonológicas - como em Tenani 2002, para quem há mais aplicações de
haplologia em enunciados maiores; e em Nespor & Vogel (1986), que
explicam que a aspiração de plosivas surdas intervocálicas no italiano
4
Há vogais que não são marcadas em diversas lı́nguas, como /i/, incluindo o português, como apontam
Mateus & d’Andrade (2000). Os autores explicam (pp. 33-4): “(...) the distinctive features on
the unmarked segment are left blank in the lexical representation. (...) phonological rules triggered
by underspecified segments in phonological processes are filling-rules and not changing-rules.” Esta
possibilidade não foi explorada neste artigo, mas será em futuros trabalhos. Agradeço ao parecerista
anônimo por me apontar esta possibilidade.
Palavra Sujeita a Apagamento de Sı́laba em Sândi Externo
87
tende à aplicação em constituintes pequenos (a regra Georgia Toscana);
e
• Caracterı́stica do Item (lexical/morfológico) Sujeito à Queda: a hipótese
para este grupo de fatores é a de que a implementação da queda de
sı́laba com consoantes com ponto de C e/ou valor para [contı́nuo]
diferentes depende de caracterı́sticas especı́ficas a itens morfológicos ou
lexicais.5
Na tabela a seguir, apresento um resumo das 3 rodadas e seus respectivos
grupos de fatores:
Tabela 2 Resumo das 3 rodadas: os grupos de fatores utilizados
Rodada 1
C1 - fonemas
V1 - fonemas
C2 - fonemas
V2 - fonemas
Estrutura σ 1
Estrutura σ 2
Número de Segmentos
Caracterı́stica do Item
Rodada 2
C1 C2 traços
V1 - traços
V2 - traços
Estrutura σ 1
Estrutura σ 2
Número de Segmentos
Caracterı́stica do Item
Rodada 3
σ 1 σ 2 - traços
Estrutura σ 1
Estrutura σ 2
Número de Segmentos
Caracterı́stica do Item
Como está apresentado na Tabela 2, a diferença entre as três rodadas é
que, na primeira, as consoantes e as vogais foram rodadas separadamente,
como fonemas; na segunda rodada, a codificação foi feita substituindo-se
os fonemas das consoantes e das vogais por traços fonológicos, e as duas
consoantes foram unidas como um único fator; na terceira rodada, a primeira
e a segunda sı́labas estão unidas num mesmo grupo de fatores. O objetivo
de unir em um fator as consoantes (rodada 2) e as sı́labas (rodada 3) foi
verificar qual(is) configuração(ões) captura(m) melhor o processo.
5
Cf. itens lexicais na Tabela 6.
88
Eneida de Goes Leal
Os resultados
A distribuição geral de aplicação de queda de sı́laba foi de N=174/4024
tokens, ou seja, apenas 4,3% de apagamento. Este baixo número de tokens
aponta para a necessidade desta análise, já que, se o ponto de C e o valor para
[contı́nuo] forem diferentes, não há variações, havendo bloqueio ao processo.
Os grupos de fatores Vogal e Estrutura da Sı́laba não foram selecionadas
em nenhuma rodada, o que pode indicar que a vogal da primeira sı́laba e sua
estrutura parecem não exercer quaisquer interferências no processo.
Para a Consoante, houve knockouts em 3 segmentos na rodada 1 (cf.
Tabela 2 para um resumo dos grupos de fatores de cada rodada), todos de
não aplicação de queda de sı́laba: /f/, /h/ e /Z/, com 2, 11 e 35 ocorrências,
respectivamente. Não podemos afirmar terminantemente que nunca há queda
de sı́laba com esses segmentos em posição de C1 devido ao baixo número de
tokens: de 4024 dados, houve apenas 48 ocorrências com /Z/, /f/ e /h/. O
fonema /Z/ foi recodificado com /S/, /f/ foi passou a fazer parte do fator/v/
e /h/ não entrou na análise multivariada, pois não há uma consoante que
tenha caracterı́sticas semelhantes a esta laringal. Assim, a frequência total
para a Consoante foi N=174/4013, como vemos na Tabela 3 a seguir, em
que apresento as frequências e os pesos relativos para este grupo de fatores
- as células em cinza indicam fatores que tiveram baixo número de tokens;
na Figura 2, estão os pesos relativos em forma de gráfico, para uma melhor
visualização dos dados:
Figura 2 Pesos relativos para Consoante
Primeiramente, observamos que a frequência das labiais [-contı́nuo] /p/
e /b/ foram baixas: os números de tokens obtidos foram de N=62 e N=75
Palavra Sujeita a Apagamento de Sı́laba em Sândi Externo
89
Tabela 3 Pesos relativos para Consoante
C1
t
d
s
z
SZ
p
b
fv
k
g
n
m
ñ
liq.
total
N
48/607
44/525
4/288
14/147
2/144
1/62
5/75
13/222
2/127
1/58
2/135
6/293
29/311
3/1019
174/4013
%apl
7,9
8,4
1,4
9,5
0
1,6
6,7
0
1,6
1,7
1,5
2
9,3
0,3
4,34
p-R1
0,768
0,769
0,383
0,761
0,499
0,337
0,801
0,710
0,483
0,378
0,369
0,528
0,769
0,128
para /p/ e /b/, respectivamente; quanto às dorsais, também foi baixa a
quantidade de dados: N=127 para /k/ e N=58 para /g/. Devido aos poucos
tokens, estes resultados não puderam ser interpretados.
Com relação às coronais orais, podemos observar na Figura 2 que as
consoantes /t/, /d/ e /z/ favorecem a queda de sı́laba (com pesos relativos
p=0,768, p=0,769 e p=0,761, respectivamente); o peso relativo para /S/ e
/Z/, unidas num fator, indica uma neutralidade ao processo, com p=0,499;
finalmente, a coronal /s/ desfavorece o apagamento (p=0,383). O resultado
para as labiais orais /f/ e /v/ unidas num fator aponta que o processo é
favorecido com estes segmentos, com p=0,71. No que concerne às nasais,
podemos observar que as coronais desfavorecem (p=0,369), as labiais são
neutras (p=0,528) e as dorsais favorecem muito (p=0,769). Olhando mais de
perto estes 311 dados com /ñ/, temos a Tabela 4.
Do total de 311 dados em que a primeira consoante é /ñ/, houve aplicação
de queda de sı́laba em 29 deles (9,3% de aplicação) e, destas aplicações, 28 são
da campineira m. Estas aplicações do processo podem ser uma idiossincrasia
da informante, o que não nos permite tirar conclusões destes dados.
Finalmente, podemos notar que as consoantes lı́quidas /l/, /L/ e /r/,
90
Eneida de Goes Leal
Tabela 4 Informantes e ocorrências de queda de sı́laba com /ñ/
informante
a
b
m
total
N
0/59
1/104
28/148
29/311
%apl
0
1
18,9
9,3
Cidade
Capivari
Capivari
Campinas
idade
escolaridade
gênero
acima de 50
ens. fund.
feminino
unidas num fator, desfavorecem bastante o processo, com p=0,128. Já que
há um número alto de ocorrências (1019 dados) e pouquı́ssima aplicação com
estes tipos de consoantes, uma possı́vel interpretação é que o traço [silábico]
nas consoantes lı́quidas seja a causa do bloqueio.6
No que concerne a Número de Segmentos da Palavra Sujeita à Queda,
este grupo de fatores foi selecionado nas três rodadas, e podemos interpretar
que o tamanho da palavra tem um papel importante na aplicação da queda
de sı́laba. Apresento a seguir as frequências e pesos relativos na Tabela 5 e,
em seguida, os pesos relativos no Figura 3, para uma melhor visualização dos
resultados.
Tabela 5 Pesos relativos para Número de Segmentos da Palavra Sujeita à Queda
#seg
10 ou mais
9 segs.
8 segs.
7 segs.
6 segs.
5 segs.
4 segs.
3 segs.
total
N
8/104
6/92
18/201
25/364
25/569
49/924
41/976
01/02/94
174/4024
%apl
7,7
6,5
9
6,9
4,4
5,3
4,2
0,3
4,3
p-R1
0,734
0,655
0,681
0,649
0,55
0,512
0,523
0,266
p-R2
0,722
0,621
0,684
0,668
0,565
0,553
0,544
0,211
p-R3
0,714
0,637
0,659
0,625
0,549
0,533
0,546
0,253
Não houve knockouts para Número de Segmentos da Palavra Sujeita à
Queda, como se observa na Tabela 5. Os únicos fatores com baixa frequência
6
A primeira restrição para a coleta de dados apresentada em Leal (2012: 65) foi que “as sı́labas
do contexto de queda devem ter, pelo menos, uma consoante no ataque, uma vez que o processo é
entendido como condicionado pelas consoantes do ataque. Ademais, contextos V # V podem produzir
outros processos fonológicos que não a queda de sı́laba (...)”.
Palavra Sujeita a Apagamento de Sı́laba em Sândi Externo
91
Figura 3 Pesos relativos para Número de Segmentos da Palavra Sujeita à Queda
de tokens são para as palavras que têm mais de 9 segmentos (a frequência do
fator para palavras de 10 segmentos ou mais foi N=8/104; e para palavras
com 9 segmentos foi N=6/92), o que pode tornar os pesos relativos destes
fatores pouco confiáveis - veja que a grande maioria dos fatores teve uma
distribuição ortogonal. Como podemos observar na Tabela 5 e na Figura 3,
os pesos relativos para palavras com 8 e 7 segmentos indicam que há um
favorecimento de queda de sı́laba; palavras com 6, 5 e 4 segmentos parecem
ser neutros ao processo; e palavras menores, com 3 segmentos, desfavorecem
a queda de sı́laba. Assim, podemos concluir que quanto maior a palavra,
maior é a tendência ao processo.
Com relação à Caracterı́stica do Item Sujeito à Queda, três fatores
(todos de itens lexicais) resultaram em knockouts, quais sejam: quase, precisa(va)/preciso e pode(m) - com 2, 9 e 19 ocorrências, respectivamente.
Na tabela 6, apresento as frequências e pesos relativos para este grupos de
fatores.7
Nessa tabela, as células marcadas em cinza representam baixas frequências
de tokens nos fatores de (1)-(8). Assim, não podemos tirar quaisquer
conclusões da grande maioria dos fatores deste grupo, pois as ocorrências
foram muito baixas.
As frequências mais altas foram 2,8% para -iñ morfológico (N=22/113),
4,9% para /-iñ/ não morfológico (N=7/198) e 3,9% para os morfemas {-va}
ou {-vam} (com N=9/156) e, mesmo sendo as frequências mais altas do
corpus, mais uma vez, não pudemos interpretar estes fatores. Especificamente
para os segmentos /-iñ/, tanto morfológicos quanto não morfológicos, como
7
Na Tabela 6, “outros” é uma variante em que estão todos os casos sem especificação do item sujeito
à queda.
92
Eneida de Goes Leal
Tabela 6 Pesos relativos para Caracterı́stica do Item Sujeito à Queda
Item
(1) negócio(s)
(2) causa
(3) quando
(4) coisa(s)
(5) sabe(m)
(6) casa(s)
(7) pastp/adj
(8) {-ndo} gerúndio
(9) {-iñ} morf.
(10) /-iñ/ não morf.
(11) {-va} ou -vam
(12) outros
total
N
2/3
6/15
1/27
1/34
3/34
6/42
7/56
8/86
22/113
01/07/98
01/09/56
102/3230
174/3994
%apl
66,7
40
3,7
2,9
8,8
14,3
12,5
9,3
19,5
4,8
5,8
3,2
4,36
p-R2
0,997
0,977
0,48
0,88
0,777
0,934
0,552
0,616
0,648
0,383
0,443
0,478
p-R3
0,994
0,981
0,443
0,883
0,896
0,939
0,57
0,624
0,659
0,356
0,411
0,478
vimos anteriormente, dos 311 contextos com /-iñ/, houve 29 aplicações, e
destas, 28 foram aplicações somente da informante m (cf. Tabela 4), o que
pode ser uma idiossincrasia desta campineira.
Assim, podemos concluir que, se há a possibilidade de aplicação de
queda de sı́laba com consoantes diferentes em ponto de C e/ou valor para
[contı́nuo], não são casos que podem intervir na regra geral de queda de
sı́laba (as consoantes devem ter um mesmo ponto de C e um mesmo valor
para [contı́nuo]).
Conclusão
A partir de um estudo piloto de Leal (2012), primeiramente, buscamos
neste trabalho contextos segmentais em que há variação de queda de sı́laba,
partindo da generalização de Leal (2006) (para quem somente pode haver
aplicação do processo com consoantes iguais em ponto de C e contı́nuo). Os
resultados apontam que:
• Consoante: a hipótese levantada de que há um favorecimento com
coronais foi confirmada somente com as consoantes /t/, /d/ e /z/; por
outro lado, as coronais /S, Z/ (unidas num único fator) são neutras
Palavra Sujeita a Apagamento de Sı́laba em Sândi Externo
93
ao processo; e /s/ e a coronal nasal /n/ desfavorecem o processo.
Favorecem a queda de sı́laba as consoantes /f, v/ (também unidas
num único fator), enquanto que as lı́quidas inibem-na e as nasais
labiais /m/ são neutras. Quanto às labiais /p/ e /b/, às dorsais
orais /k/ e /g/ e às dorsais nasais /ñ/, não pudemos tirar conclusões
devido ao baixo número de tokens e, especificamente para /ñ/, as
aplicações podem ser atribuı́das a uma idiossincrasia da informante m,
pois 96,6% de aplicação com este segmento de todo o corpus foi desta
informante campineira. Quanto ao bloqueio do processo, talvez haja
esta possibilidade com as consoantes lı́quidas, uma vez que houve uma
frequência confiável para estes segmentos e baixa aplicação do processo
(N=3/1019).
• Vogal e Estrutura da Sı́laba: parecem não importar para o processo,
pois ambos os grupos de fatores não foram selecionados nas rodadas.
• Número de Segmentos da Palavra Sujeita à Queda: no corpus, houve
um número baixo de tokens para palavras com mais de 9 segmentos, e
não interpretamos estes resultados. Com os outros fatores, pudemos
verificar que a aplicação de queda de sı́laba é diretamente proporcional
ao seu tamanho, isto é, quanto maior a palavra, maior é a aplicação do
processo.
• Caracterı́stica do Item (lexical/morfológico) Sujeito à Queda: de uma
frequência de 174/4024 tokens, não houve resultados para este grupo de
fatores que pudessem ser interpretados como exceções de aplicação de
queda de sı́laba. Assim, parece não haver itens lexicais ou morfológicos
que afetem a regra (geral) consonantal, pois não há uma relevância
quantitativa de onde se possa interpretar que haja interferências na
queda de sı́laba de determinados itens lexicais ou morfológicos - o que
vai ao encontro dos resultados de Leal (2006).
Abstract
In this paper I analyze the following characteristics of the word undergoing syllable deletion
(as an external sandhi rule): consonant, vowel, syllable structure, number of segments, and
characteristics of the (lexical/morphological) Item. The theoretical background used in this
paper is Feature Geometry (cf. Clements & Hume 1995) and Variacionist Sociolinguistics.
94
Eneida de Goes Leal
As for consonant, we hypothesized that the process is favored with coronals. This is true
for /t/, /d/ and /z/, since /S, Z/ (as a single factor) are neutral to the process; /s/ and
the nasal coronal /n/ inhibit the process. Labials /f, v/ (also considered in a single factor)
favor the process, while liquids disfavor it; the process is neutral with nasal labial /m/.
As for labials /p/ e /b/, oral dorsals /k/ e /g/ and the nasal dorsal /ñ/, the data were
not sufficient to draw any conclusion. Liquid consonants appear to block syllable deletion,
given that the process occurs very rarely. Factor groups vowel and syllable structure were
not considered relevant to the process. As for number of segments of the first word, the
results suggest that the larger the word size is, the more frequently the process occurs.
Finally, characteristics of the (lexical/morphological) item of the first word shows that
none of the factors (neither words nor morphemes) interfere in the general rule proposed
by Leal (2006): internal feature of the consonants must be the same C place and the same
value for [continuous], since the frequency of application with some lexical/morphological
items were too low to be accounted for.
Keywords: Suprassegmental phonology; Segmental context; Feature Geometry; Syllable
structure; Sociolinguistics.
Referências
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18, 36, 2004.
Bisol, L. O troqueu silábico no sistema fonológico (Um adendo ao artigo de Plı́nio Barbosa).
D.E.L.T.A. Vol.16, 2: 403-13, 2000.
Clements, G.N.; Hume, E. The Internal Organization of Speech Sounds. In: Goldsmith, J.
(ed). The Handbook of Phonological Theory. Oxford: Basil Blackwell, pp. 245-306, 1995.
Leal, E.G. Elisão silábica e haplologia: aspectos fonológicos do falar da cidade paulista de
Capivari. Dissertação de mestrado. São Paulo: FFLCH-USP, 2006.
Leal, E.G. Teoria fonológica e variação: A queda de sı́laba em Capivari e em Campinas.
Tese de doutorado. São Paulo: FFLCH-USP, 2012.
Nespor, M.; Vogel, M. Prosodic phonology. Dordrecht: Foris Publications, 1986.
Pavezi, V.C. A haplologia na variedade paulista. Dissertação de mestrado. São José do
Rio Preto: Unesp, 2006.
Sankoff, D.; Tagliamonte, S.; Smith, E. Goldvarb X: A variable rule application for
Macintosh and Windows. Department of Linguistics, University of Toronto, 2005.
Tenani, L.E. Domı́nios prosódicos no português do Brasil: implicações para a prosódia
e para a aplicação de processos fonológicos. Tese de doutorado. Campinas, Unicamp,
2002.
Anais dos XII e XIII Encontros dos Alunos
de Pós-Graduação em Linguı́stica da USP.
São Paulo: Paulistana, 2012, p. 95–109.
Machado de Assis e o Uso da Bı́blia
em sua Juventude de Militante
Liberal
Paulo Sergio de Proença∗
Resumo
Jovem jornalista, Machado escrevia crônicas, nas quais costumeiramente criticava polı́ticos, religiosos
e figuras eminentes do mundo social, com coragem. Denunciou a invasão do México, no começo dos
anos 1860 e defendeu a liberdade religiosa, contra o periódico católico A Cruz. Uma das invectivas
contra o jornal religioso foi motivada pela defesa da obra A vida de Jesus, do pensador francês Renan,
que aplicou os princı́pios de crı́tica histórica para a interpretação dos escritos bı́blicos. A disposição de
Machado para a polêmica era grande. Um aspecto notável na leitura de Machado é a projeção de suas
leituras bı́blicas para a realidade local, ampliadas, às vezes, para a dimensão continental, como no caso
da invasão do México, ocasião em que usou um texto bı́blico que evoca o êxodo dos hebreus. O Êxodo
relata a libertação dos escravos do Faraó; por isso, tem potencial revolucionário sustentado no ideal de
liberdade, fundamentado na Bı́blia que, por sua vez, preconiza a justiça social, o direito, a liberdade, a
proteção aos desamparados - temas muito caros a um jovem liberal.
Palavras-chave: Machado de Assis; Bı́blia; liberalismo; juventude.
Considerações iniciais
Jean-Michel Massa e Raimundo Magalhães Júnior, biógrafos de Machado,
registram que, em sua juventude, o escritor brasileiro desenvolveu significativa
atividade liberal, em crônicas que escrevia para diversos periódicos, como
jornalista. Eram tratados temas de natureza diversa, inclusive polı́tica,
nacional e internacional. A Bı́blia foi motivação para a defesa da liberdade,
em seu sentido mais amplo. Apreciaremos essas caracterı́sticas do autor,
com a intenção de assinalar a importância e o papel que a Bı́blia teve nesse
processo.
∗
Este trabalho fez parte de pesquisa de doutorado orientada pelo Prof. Dr. Izidoro Blikstein. E-mail:
[email protected].
96
Paulo Sergio de Proença
Amizades e influências importantes
Machado teve a fortuna de cultivar amizades com as quais trocou influências.
É compreensı́vel que, na fase inicial de sua carreira literária, ele tenha sido
beneficiário dessas relações. Duas influências foram decisivas na formação de
suas ideias liberais: Charles Ribeyrolles e Ernest Renan. Machado conheceu
o primeiro pessoalmente; do segundo, leu A vida de Jesus, obra que seria
decisiva para a formação do Machado liberal leitor da Bı́blia.
Charles Ribeyrolles
Ribeyrolles, polemista de primeira ordem, é “republicano feroz, emigrado,
depois exilado, enfim proscrito - chegara ao Brasil em julho de 1858” (Massa
2009:187). Foi redator do periódico A Reforma, folha polı́tica que apoiou
a revolução de 1848. Em junho de 1849, Ribeyrolles foi condenado à
deportação, chegando ao Brasil em 1858, para escrever o texto francês do
Brasil Pitoresco,1 a convite do fotógrafo Victor Frond.
O revolucionário francês era defensor incansável do ideal de liberdade.
Morreu em junho de 1861. Quintino Bocaiúva empenhou-se em prestar
justa homenagem ao amigo, a quem muito admirava. Vitor Hugo escreveu o
epitáfio para Ribeyrolles. O epitáfio, escrito pelo célebre poeta francês, em
homenagem ao amigo morto, é o seguinte:
Ele aceitou o exı́lio, ele amava as aflições;
Destemido, ele tentou todos os livramentos;
Ele serviu bem por todas as virtudes
Porque a idéia é uma espada e a alma é uma força
E a pena de Wilberforce
Sai da mesma forma que a de Brutus (Ribeyrolles 1980, vol. 1:17).2
Nessa época, a poesia machadiana já tinha leve tonalidade polı́tica e
social, acentuada com a chegada, contato e amizade de Ribeyrolles, graças a
quem Machado “descobriu alguns escritores ou os leu com novos olhos [...]
1
Visconde de Taunay, que prefacia a obra, diz dela: “suas páginas constituem precioso documento para
o estudo da época da opulência cafeeira fluminense [...] E nelas se expressou com grande liberdade
de opiniões e isenção de ânimo, embora delicadamente, acerca do problema servil brasileiro, então
assunto melindroso, como nenhum outro” (Ribeyrolles 1980, vol. 1:16).
2
William Wilberforce (1759-1833), polı́tico britânico, destacou-se como lı́der abolicionista, tendo também se envolvido na reforma evangélica da Inglaterra. No parlamento inglês, liderou a campanha que
extinguiu o tráfico negreiro.
Machado de Assis e o Uso da Bı́blia
97
Ribeyrolles acendeu um fogo que só pedia para queimar [...] Machado de
Assis encontrou um ideal à altura de seu temperamento. Imediatamente o
expôs e o defendeu com paixão” (Massa 2009:189).3 O jornalista estrangeiro,
que gozava de reconhecimento entre seus compatriotas e entre seus colegas do
Brasil, influenciou Machado decisivamente. Conforme Magalhães Jr. (2008,
vol. 2:95–96):
A identificação de Machado com os exilados Charles Ribeyrolles e
Victor Frond foi decisiva para a formação de sua mentalidade liberal
[...] Seu livro ia, logo no primeiro volume, dar inı́cio a uma coisa
que poderı́amos chamar de tiradentismo, isto é, a glorificação de um
herói nacional, que fora levado à forca e esquartejado, por aspirar à
independência [...].
Percebe-se o ideal libertário e a aspiração à independência, associados a
um herói nacional, em cuja figura esses valores são inspirados. Ribeyrolles era
abolicionista, por exigências de seus pendores polı́ticos; elogiava os mestiços e
considerava que “os pardos livres do Rio formam uma classe ativa, inteligente,
que já ocupa seus postos [...] Tomam parte, e parte considerável, na obra
de seu paı́s e de sua época. O Brasil é um campo aberto a todos, negros,
mulatos, ı́ndios ou mestiços“ (apud Magalhães Jr. 2008, vol. 2:97).4
O Espelho publica “A um proscrito”, em homenagem a Ribeyrolles,
escrito em 20 de julho 1859, no qual aparece a figura do Jordão. Essa figura,
associada ao batismo, é significativa. Parece que pode ser comparada a
seu próprio batismo polı́tico, como sinal de adesão às ideias democráticas
e liberais de Ribeyrolles, conforme indica a estrofe a seguir, de um poema
dedicado ao amigo (Assis 2008, vol. 3:749):
Glória a ti, cujos lábios não cuspiram
Da liberdade no lustral Jordão.
A água desse batismo é-nos sagrada;
Vergonha ao que na fronte batizada
Selou de proscrição!
3
Por essa época, surgiu um novo núcleo de amizades para Machado, composto por “camaradas” com
a mesma ideologia e dispostos ao mesmo combate, do qual Ribeyrolles era o fermento do ideal
democrático e liberal. Do grupo, participavam Manuel Antonio de Almeida, Quintino Bocaiúva,
Emı́lio Zaluar, mais os portugueses Reinaldo Carlos Montoro, Francisco Ramos Paz, Remı́gio de Sena
Pereira (Massa 2009:192).
4
Dos mestiços, o Brasil Pitoresco diz: “É um forte e numeroso exército, rico de energias, adequado ao
clima, apto aos trabalhos rudes, que deve à sua origem as duas qualidades essenciais em todo o paı́s
velho ou novo: a inteligência e o vigor [...] Os mestiços, porém, hı́bridos quanto à cor, têm o espı́rito
ativo e forte o músculo. Natureza complexa maravilhosamente dotada, filha do trabalho, ela apresenta
o germe de todas as forças; congênere superior, está aberta a todas as culturas” (Ribeyrolles 1980,
vol. 2:92–3).
98
Paulo Sergio de Proença
Machado tinha então vinte anos; estava experimentando uma mudança
significativa: “mudou de alma, renegou-se a si mesmo e, num nobre movimento de sacrifı́cio, queimou tudo aquilo que adorara [...] Machado de Assis
encontrou seu caminho de Damasco” (Massa 2009:194). Passou a viver um
perı́odo de euforia intelectual.
Ernest Renan
Machado travou disputa com o periódico católico A Cruz em torno de
Ernest Renan, contra quem houve reação em redutos conservadores, com
a publicação de La vie de Jésus. Como o jornal católico se manifestava
contrário a Renan, a polêmica esquentava, sem trégua:
A Cruz é realmente cruz. Serve para experimentar a fé dos católicos;
se, no fim de um mês de leitura, o católico não tem perdido a fé em
que vive, está livre de tornar-se herege. Isto é o que acontece nas
outras partes, com outros jornais do mesmo gênero, quer se chamem
o Universo, a Nação ou a Cruz (Assis 2008, vol. 4:150).
Ernest Renan publicou A Vida de Jesus em 1863. Promoveu na França
difusão ampla da exegese protestante liberal alemã, em particular de David
Friedrich Strauss (1808-1874), que foi discı́pulo de Hegel. Os hegelianos
pretendiam fundar a religião cristã sobre uma base exclusivamente racional.
Strauss publicou, em 1835, sua Vida de Jesus, em que explicava o sucesso do
cristianismo pelo mito Jesus, forjado pela mentalidade dos tempos apostólicos,
o que não era compatı́vel com a ciência moderna. Strauss e Renan adotaram
os princı́pios de crı́tica histórica para a interpretação dos escritos bı́blicos.
Aplicada de forma radical ao estudo do Novo Testamento, esses preceitos
resultaram na ideia de que os milagres de Jesus seriam criações mı́ticas.
Renan afirma que “os Evangelhos são em parte lendários, isso é evidente,
porque estão cheios de milagres e de sobrenatural”. Acrescenta, ainda:
“muitas narrações, mormente de Lucas, são inventadas para darem vivo
realce a certos traços da fisionomia de Jesus. E mesmo essa fisionomia sofria
alterações de dia para dia” (Renan s/d:XVII; XLIV).
Renan cita, não somente na “Introdução”, mas também ao longo da sua
obra os principais testemunhos do mundo antigo: evangelhos, apócrifos do
Antigo e do Novo Testamentos, Filon, Flávio Josefo, o Talmude, pais da
Igreja, além de menções de caráter histórico e literário a religiões do mundo
Machado de Assis e o Uso da Bı́blia
99
antigo com as quais experimentou permutas e influências. Ele demonstra
sólidos conhecimentos de análise comparativa, crı́tica da redação e crı́tica
textual. Discute a formação dos evangelhos (fases de redação) e os principais
elementos que dizem respeito à questão sinótica. Da comparação desses
documentos, elabora conclusões precisas: “se Jesus falava como quer Mateus,
não podia falar como quer João” (Renan s/d:XXX). Comentando o Evangelho
de Lucas, Renan afirma que a obra é “de um homem que escolhe, suprime e
combina” (Renan s/d:XVIII). Quanto à crı́tica textual, são várias as ocasiões
em que dá mostras de sua erudição. Ao comentar Mt 9.16s, assinala: “eu
leio ergon, como está no manuscrito B do Vaticano, e não tekhnon” (sic)
(Renan s/d:173). Já em relação a Jo 4.21-23, diz que o verso 22 “parece
ter sido interpolado. Não se deve insistir muito na realidade histórica dessa
conversação...” (Renan s/d:213).
Em 1o de novembro de 1864, Machado retoma a polêmica com a Igreja, a
propósito de Renan. “A pior prosa deste mundo é a clerical”, diz o cronista;
e continua: “Estou plenamente convencido de que as iras do clero, as injúrias
dos livros e dos púlpitos tiveram grande parte no sucesso obtido pela obra
de Renan [...] fora da fogueira e do doesto, não há salvação para a Igreja”
(Assis 2008, vol. 4:219).5
A obra de Renan causou furor nas hostes eclesiásticas. Basta ler a crônica
de 8 de novembro de 1864, em que Machado publica carta do monsenhor
Pinto de Campos, em resposta a uma consulta do Gabinete Português de
Leitura, sobre a conveniência de a obra de Renan figurar no acervo da
biblioteca do Gabinete. Uma parte da carta é transcrita a seguir:
Podia ir longe na demonstração dos erros heréticos de Renan, se me
permitissem os estreitos limites de uma carta escrita sob a pressão
da urgência. Insisto, porém, em estabelecer como uma verdade, de
consciência, que a leitura e o apreço do livro de Renan é um tributo
involuntário, se não sincero, ao prı́ncipe das trevas, que aliás, mais
lógico que Renan, reconhece, ainda que a seu pesar, a divindade de
Jesus Cristo, o melhor, e o mais extremoso amigo e benfeitor dos
homens (Assis 2008, vol. 4:220–1).
Finalizando essas considerações sobre Renan, reproduzimos trecho de
um comentário sobre a morte dele, feito por Machado, no qual pode ser
5
Machado alude à expressão extra ecclesiam nulla salus, invertendo-a de forma irônica.
100
Paulo Sergio de Proença
constatada a admiração que o autor brasileiro nutria pelo pensador francês.
A crônica é de 9 de outubro de 1892:
[...] podemos crer que os homens, como os livros, têm os seus destinos.
Recordo-me do efeito, que foi universal; a audácia produziu escândalo,
e a punição foi pronta. O professor desceu da cadeira para o gabinete
[...] o professor morre professor, após uma obra vasta e luminosa,
universalmente aclamado como sábio e como artista. Os seus próprios
adversários não lhe negam admiração, e porventura lhe farão justiça.
“J’ai tout critiqué (diz ele em um dos seus prefácios) et quoi qu’on en
dise, y j’ai tout maintenu.” O século que está a chegar criticará ainda
uma vez a crı́tica, e dirá que o ilustre exegeta definiu bem a sua ação
(Assis 2008, vol. 4:925).
É sintomático que Machado tenha defendido Renan de forma veemente.
Isso se explica pelas afinidades na leitura e na interpretação da Bı́blia, ainda
que por motivação diferente. Renan, em seu trabalho, aplicava princı́pios
históricos, filosóficos, teológicos e exegéticos; Machado tinha seu olhar literário, que, por isso mesmo, não descurava dos outros elementos suscitados pelo
texto bı́blico, além do meramente religioso.
Afirmação no jornalismo
A participação na equipe de redatores de O Paraı́ba foi fundamental. Quintino Bocaiúva, nas páginas do jornal, exigia mais justiça e mais liberdade.
Zaluar fez-lhe coro, advogando que a base do desenvolvimento e da civilização
estava na instrução pública (Massa 2009:200). O jornal pugnava pela criação
de ensino profissionalizante e demonstrava sua opinião sobre temas polı́ticos,
sem esconder sua inspiração liberal.
O Espelho, outro jornal em que o escritor atuou, deu destaque à crı́tica
teatral. As artes estavam conquistando a cidadania. “No século XIX, o
teatro, que não constituı́a divertimento puro, começava a sê-lo, porquanto
a cena tornou-se logo lugar preferido para os ataques contra a sociedade
da época” (Massa 2009:223). Machado foi espontâneo, “sem as máscaras
com que se cobriu mais tarde. Aos vinte anos, é-se franco e sincero” (Massa
2009:223).
O Machado jovem tinha espı́rito subversivo; defendia as classes socialmente menos favorecidas. Criticou os receios dos aristocratas diante dos
Machado de Assis e o Uso da Bı́blia
101
movimentos populares. Diz ele: “Graças a Deus, se há alguma coisa a
esperar é das inteligências proletárias, das classes ı́nfimas; das superiores,
não” (Massa 2009:233).
Em O Espelho, Machado refletia, aos poucos, sua evolução intelectual.
Quintino Bocaiúva propôs que ele se juntasse à redação do Diário do Rio
de Janeiro,6 no inı́cio de 1860, e a entrada para o Diário foi decisiva. Em
“O Velho Senado”, texto de reminiscências, diz Machado, referindo-se àquele
ano, que suas ideias “não as teria fixas nem determinadas”. Suas convicções
polı́ticas estavam em evolução. A partir de 1860, passou para a oposição.
De sua atividade jornalı́stica, sobretudo nessa época - entre 1861 e 1862
-, não se pode falar de absenteı́smo. Pelo menos no que diz respeito a esse
momento, é preciso desfazer um mito elaborado pelos biógrafos e crı́ticos,
segundo o qual Machado, “amargurado, teria conservado, sem interrupção,
distância em relação aos seres e às coisas. Esse mito é ilusório, porque
deixa de lado um perı́odo essencial - a juventude de Machado de Assis”
(Massa 2009:257). Ele era, ao contrário, um homem marcado “por grande
generosidade, calor, amor e uma fraternidade, se não franciscanos, pelo menos
humanos” (Massa 2009:257).
Disposição para polêmicas
A combatividade de Machado era levada às últimas consequências. Desmascarou, por exemplo, o favorecimento ilegal que concedia aposentadoria, sem
o tempo mı́nimo de serviço, a Cândido Borges Monteiro, da Faculdade de
Medicina. Critica, também, o ministro Souza Ramos, que propunha novo
sistema de concessão de condecorações (Assis 2008, vol. 4:39):
Benza-o Deus, o Sr. Ministro do Império não é, nunca foi, e muito
menos espera ser uma águia. Adeja na sua esfera comum, tem por
horizonte a beira dos telhados da sua secretaria, e deixa as nuvens e
os espaços largos a quem envergar asas de maiores dimensões que as
suas.
Os ataques eram diretos e irônicos: “O Sr. Senador Pena, que ali ejaculou
alguns discursos notáveis” (Assis 2008, vol. 4:21). O escritor investiu contra
6
“Suas ideias sobre o teatro, a sociedade, a vida eram, em suma, as de um pequeno grupo de homens
decididos a fazer entrar seu ideal no plano da realidade” (Massa 2009:238).
102
Paulo Sergio de Proença
grandes figuras polı́ticas do seu tempo, como é o caso do senador baiano
Barão de São Lourenço, que criticou a nomeação de jovens recém-saı́dos da
Faculdade de Direito de São Paulo para presidências de provı́ncias. E, pior
se fossem poetas, pois o senador considerava incompatı́veis a polı́tica e a
poesia. Citando exemplos como Chateaubriand, Dante, Lamartine e Garret
(Assis 2008, vol. 4:118–9), Machado defende os jovens, enumerando casos
em que poetas serviram seus paı́ses na polı́tica. O senador pede desculpas,
admitindo o erro. O cronista aceita: “explicar um erro é sempre honroso”,
acrescentando que o senador tinha algum “estro”, embora lhe faltasse o
talento da rima; em todo caso, as musas não deveriam “pensar mal de s.
ex.”: “Pode ficar certo o ilustre senador que há mais alegria no Parnaso por
um pecador que se arrepende do que por um justo que nunca pecou” (Assis
2008, vol. 4:122). Trata-se da evocação de um trecho bı́blico (Evangelho de
Lucas, 15.7–10), adaptado àquela circunstância: “[...] haverá maior júbilo no
céu por um pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que
não necessitam de arrependimento [...] há júbilo diante dos anjos de Deus
por um pecador que se arrepende”.
A citação de Machado faz corresponder céu a parnaso. Isso sugere que
pecador não era o poeta que se aventurava na polı́tica, mas o polı́tico que não
aceitava isso. A polı́tica deveria ser não um território demarcado e controlado
pelos caciques e coronéis, mas aberto à renovação dos jovens e aos sonhos
dos poetas. Para alegria dos anjos do Parnaso, haveria perdão ao pecador
arrependido, reconhecedor do lugar da Poesia e de sua compatibilidade com
as funções públicas. Machado era, “aos 25 anos, um observador sagaz e um
comentador malicioso, a quem não escapavam os ridı́culos dos nossos homens
públicos e a mediocridade da vida polı́tica brasileira do Segundo Reinado”
(Magalhães Jr. 2009, vol. 1:345).
Em 28 de agosto de 1864, Machado ataca o ministério Zacarias: “o
ministério andou de Herodes para Pilatos - do Senado para a Câmara,
onde inventou um superlativo... coisı́ssima” (Assis 2008, vol. 4:173). O
cronista não se intimidava diante dos poderosos: “pode o atual ministério
ter a pretensão de dirigir seriamente os negócios do Estado?” (Assis 2008,
vol. 4:175). Evocam-se personagens do evangelho. Tais figuras bı́blicas são
sugestivas. Ambas são negativas: Herodes pela sede de poder e pelo emprego
de todos os meios para consegui-lo e mantê-lo; Pilatos, por não exercê-lo de
Machado de Assis e o Uso da Bı́blia
103
forma plena, pela falta de coragem. O cronista aplica ao mundo e aos atores
polı́ticos de sua época a tradicional herança dessas figuras bı́blicas pelo que
elas têm de negativo.
Pode-se admitir que houve uma fase combativa do jovem Machado, na
qual ele se envolveu em polêmicas com autoridades e atuou na defesa da
liberdade e da justiça, liberal que era. Ganhou um estilo mais vigoroso:
tornou-se “mais enérgico, radical, jacobino [...] O homem que surgiu é o
inverso do Machado de Assis que a crı́tica nos legou [...] é, ponto por ponto,
o contrário do mito: corajoso, ativo, engajado, idealista” (Massa 2009:269).
Defesa da liberdade, inclusive religiosa
No ano de 1864, nas páginas do Diário do Rio de Janeiro, reagiu contra
o periódico católico A Cruz, que apoiou a investida imperialista da França
em nosso continente. Mas, não era só isso. Em 10 de julho do mesmo ano,
crı́ticas ao periódico brasileiro A Cruz atingiram também o jornal católico
francês Monde, que defendia a pena de morte. Como A Cruz fez referências
simpáticas ao jornal francês, que dizia não prezar a guilhotina, reivindicando
a substituição do suplı́cio, Machado toma da pena de forma inclemente, além
de irônica:
A Cruz de Paris não quer a guilhotina, por ser invento revolucionário,
quer outro suplı́cio de invento católico. A fogueira, por exemplo? [...]
A Cruz de Paris entende que é impiedade matar com a guilhotina? O
que ela quer é que se mate mais catolicamente, mais piedosamente,
com um instrumento das tradições clericais, e não com um instrumento
das tradições revolucionárias (Assis 2008, vol. 4:139).
O jornal católico considerava o general Pélissier7 um modelo de bom
católico. A propósito do assalto a Sebastopol, marcado para o dia da virgem,
o general insistiu na coincidência, afirmando que isso seria caso para a
proteção da virgem. A isso Machado reage:
Ora, para mim é ponto de fé que a Virgem não intervém de forma
alguma nesta coisa inı́qua, ridı́cula, bárbara e grotesca, que se chama
7
Militar francês que atuou na conquista da Argélia, foi também comandante em chefe na Guerra
da Crimeia.
Tomou parte, em 1839, na campanha contra o emirado de Mascara, Abdelkader, o que lhe deu notoriedade; ele matou uma população local inteira, por intoxicação
com gás, em cavernas.
Disponı́vel em http://www.britannica.com/EBchecked/topic/449225/
Aimable-Jean-Jacques-Pelissier-duc-de-Malakoff. Acesso em 26 de março de 2010.
104
Paulo Sergio de Proença
- Guerra [...] A força e a perı́cia dos aliados é que venceram a batalha;
o dia não produziu a vitória, como a bênção do papa não legitimou o
império mexicano [...] (Assis 2008, vol. 4:158).8
A polêmica volta em 22 de novembro de 1864. Em Niterói, houve excessos
contra um vendedor de Bı́blias protestantes. O Cruzeiro 9 (novo nome de A
Cruz ) publicou artigo reprovando a ação do governo, favorável ao protestante.
Machado defende a liberdade da palavra: “Mas, a Constituição garante a
liberdade religiosa, e não há liberdade religiosa como bem lembra a Imprensa
Evangélica,10 sem proselitismo - de outro modo fora burlar o princı́pio” (Assis
2008, vol. 4:229). O jornal católico queria que o governo proibisse a atividade
dos metodistas: “O procedimento de uma religião que é a verdade devia ser
outro; em vez de apelar para a força do governo, deveria apelar para a palavra
do clero, a quem incumbe combater as doutrinas que se vão propagando.
Serão estas o erro? Tanto melhor para os que defendem a verdade [...]”.
O metodista em questão era um certo Dr. Kelly. Machado evoca a
Constituição, em favor dos protestantes (29 de novembro de 1864): “A força
da civilização está na consciência e não nos dogmas” (Assis 2008, vol. 4:276).
Na mesma crônica, faz referência ao epı́teto - O BÍBILIA - aplicado ao
Dr. Kelly, e diz que seria uma pena o Dr. Kelly não continuar com sua
pregação (Assis 2008, vol.4:233). O cronista, que cita Ribeyrolles, critica
a Constituição: “o defeito da constituição está em não ter completado a
liberdade, tirando os entraves que lhe impõe, e em declarar a religião católica
como religião do Estado” (Assis 2008, vol.4:231). É citado também um
fragmento do Cruzeiro para maior fidelidade ao pensamento da folha: “É
porém lı́quido que o autor de semelhante aranzel não é mais nem menos do
que o Bı́blia que por ali anda a amotinar o povo”.11
8
Na crônica de 1o de janeiro de 1878, há uma profissão de fé contra a guerra: “[...] lavro daqui o
meu protesto, diante das potências deste e do outro mundo (o velho) e declaro, alto e bom som, à
posteridade, que não creio nos armamentos, ou pelo menos na eficácia deles” (Assis, 2008:396).
9
Em 3 de outubro de 1864, a propósito da mudança de nome do jornal, diz o cronista: “terminarei
anunciando uma transmigração; morreu A Cruz, mas a alma passou para O Cruzeiro do Brasil,
continuando assim a mesma Cruz” (Assis 2008, vol. 4:200). Trata-se de alusão ao espiritismo, que
mereceu alguns comentários.
10
A Imprensa Evangélica, fundada em 5 de novembro de 1864, sobrevive, ainda, sob o nome O Estandarte (fundado em 7 de janeiro de 1893), órgão de comunicação oficial da Igreja Presbiteriana
Independente do Brasil.
11
Há uma ligeira, mas importante, variante textual na sequência: “É porém lı́quido que o autor de
semelhante aranzel não é mais nem menos do que o Bı́blia que por ali anda a amotinar o povo”. A
última edição da obra completa do autor, da Editora Nova Aguilar (2008: 233) traz “a Bı́blia [...]”. O
portal da ABL não apresenta a crônica digitalizada. A versão eletrônica do portal do MEC (domı́nio
público) traz “o Bı́blia [...]”. Disponı́vel em http://machado.mec.gov.br/arquivos/html/cronica/
macr04.htm. Acesso em 28 de fevereiro de 2010. A mudança do artigo faz diferença.
Machado de Assis e o Uso da Bı́blia
105
Bı́blia e realidade: inspiração profética?
Machado fez uso da Bı́blia para apoio de seus argumentos e ideias, alinhado
às conquistas da exegese europeia. Ele se destaca, de forma arrebatada,
na crı́tica à invasão do México (com apoio e interesse de Napoleão III). O
pretexto foi a suspensão do pagamento dos juros e da amortização da dı́vida
externa do México, aprovada pelo Congresso. Forças armadas estrangeiras
apoderaram-se das alfândegas mexicanas. A França decidiu criar no México
um império sob sua proteção. Em 12 de junho, Maximiliano e sua esposa
Carlota foram coroados imperadores do México. A reação de Machado não
tardaria:
Em casos tais, não se escolhem expressões, nem se dissimulam sentimentos; fala-se franca e rudemente, como o permitem a dor e a
irritação [...] É a comoção do momento que domina tudo, como no
cântico dos hebreus, ao escaparem das hostes do Faraó; a um tempo e
tumultuariamente celebra Israel o poder do Senhor e a submersão do
inimigo:
Quem dentre os heróis é semelhante a ti, Senhor?
Estendeste a tua mão e o mar os devorou... 12
Ah! Que não pudesse o poeta repetir as mesmas palavras de Israel!
Não se abriu o mar; antes, cúmplice da violação, deu livre caminho às
naus dos invasores [...] (Magalhães Jr. 2009, vol. 1:296).
A Bı́blia inspira justiça e indignação contra a opressão. Alude-se ao
cântico de Moisés (Ex. 15), que exalta Deus pelo livramento concedido. O
júbilo pelo êxodo dos hebreus transforma-se, agora, em lamento. O mar não
se abriu para engolir os opressores. O livramento bı́blico não se repetiu; a
opressão triunfou.
Em outro episódio semelhante, Machado também se destacou: a questão
Christie. Entre 7 e 8 de junho de 1861, a barca inglesa Prince of Wales
naufragou perto de Romeiro, a 16 léguas do porto do Rio Grande. O
navio foi saqueado por habitantes do local - foram encontrados 10 mortos
por afogamento. O caso se agravou com um incidente na Tijuca entre
policiais brasileiros e três oficias ingleses. O ministro Christie ameaçou o
governo brasileiro. Em 31 de dezembro de 1862, houve bloqueio do porto
do Rio de Janeiro, que durou até 6 de janeiro de 1863. Navios ingleses
12
Tudo indica que se trata de Ex 15.11-12, embora haja a mudança de "terra"para "mar"; alterações
de citação são comuns em Machado.
106
Paulo Sergio de Proença
apresaram embarcações brasileiras. Medidas foram tomadas para impedir
acesso a nossos portos e houve represálias contra os comerciantes ingleses. A
reação dos brasileiros foi de causar orgulho. Veementes foram os protestos
de Atualidades, dirigido por jovens jornalistas liberais. Machado de Assis
escreveu um hino patriótico, na Semana Ilustrada, de 18 de janeiro de 1863.
Magalhães Jr. (2009 vol. 1:212) registra:
A questão Christie foi não apenas um episódio rumoroso. Foi um
acontecimento de grande significação, numa década decisiva para a
vida do Império. Com o seu entusiasmo de moço, Machado de Assis
esteve, de espı́rito e coração, associado em horas tão crı́ticas à vibração
cı́vica do povo, às reações patrióticas que então agitaram as multidões
do Rio de Janeiro imperial.
Um aspecto notável na leitura de Machado é a projeção de seu foco de
aplicação das leituras bı́blicas para a realidade local, ampliada, às vezes,
para a dimensão continental, como no caso da invasão do México, ocasião
em que usou um texto bı́blico que evoca o êxodo dos hebreus, num corajoso
libelo contra a opressão estrangeira. Em certo sentido, Machado utiliza-se da
Bı́blia como a Teologia da Libertação o faria, cem anos mais tarde, em toda a
América Latina (opressão econômica do capitalismo internacional), adotando
como eixo hermenêutico uma releitura do Êxodo e dos profetas.13 Aquele, por
relatar a libertação dos escravos do Faraó e por ter um potencial revolucionário sustentado no ideal de liberdade; estes, por denunciarem a injustiça social
e econômica como resultado de “pecado estrutural”, decorrente da recusa em
cumprir a vontade de Deus, fundamentada na Torah dos hebreus que, por
sua vez, preconizava a justiça social, o direito, a liberdade, a proteção aos
desamparados - temas muito caros a um jovem liberal-democrata.
Machado de Assis, nessa fase juvenil, faz uso da denúncia como meio de
intervenção, denúncia que reivindica reforma e justiça a seus ouvintes ou
leitores, sobretudo às autoridades polı́ticas ou religiosas sobre quem recaem
tais responsabilidades. A denúncia era a estratégia dos profetas clássicos
bı́blicos, como Isaı́as, Amós e Jeremias, para citarmos apenas três. Era a
forma utilizada pelo jovem Machado, cuja pena foi meio de defesa de ideais
liberais.
13
Uma das principais caracterı́sticas dos profetas clássicos bı́blicos era a invectiva, a coragem para
denunciar a corrupção e para reivindicar justiça. Os profetas inspiraram a Teologia da Libertação
também por isso.
Machado de Assis e o Uso da Bı́blia
107
Isaı́as esforça-se especialmente em fazer coincidir os ditames da fé em Deus
com as exigências éticas disso, consubstanciadas na Torah; já no primeiro
capı́tulo (1.7), lemos essas imprecações: “[...] atendei à justiça, repreendei
ao opressor; defendei o direito do órfão, pleiteai a causa das viúvas”. Amós
condena a injustiça, principalmente quando protegida pelo manto da religião;
era requerido o exercı́cio da justiça, e não a pompa do culto (Am 5.11,24).
Jeremias denuncia, corajosamente, a injustiça; afinal, o manto da religião
não pode ocultar a opressão econômica. No capı́tulo sétimo, por exemplo,
diz que o templo não seria garantia para os injustos (Jr 7.6, 9–11).
Essas invectivas proféticas destinavam-se também aos lı́deres religiosos
e polı́ticos. Já vimos que o Machado jovem não se intimidou diante de
autoridades polı́ticas e religiosas. Em 1o de março de 1863, ao comentar uma
procissão religiosa, o escritor incorpora reflexões sobre a religião, reivindicando reformas que passavam pelo clero, retratado de forma negativa como
tacanho e mesquinho:
Para acreditar possı́vel uma reforma completa que faça do culto uma
coisa séria, tirando-lhe o aparato e as empoeiradas usanças, era preciso
admitir no clero certa elevação de vistas que infelizmente não lhe coube
na partilha da humanidade. Sem exageração, o nosso clero é tacanho
e mesquinho; nada enxerga para fora das paredes da sacristia, metade
por ignorância, metade por sistema (Assis 2008, vol. 4:96).
A crı́tica, severa e corajosa, volta na crônica do dia 1o de julho de 1863. O
ataque vigoroso ao clero evoca não apenas desvios de formação, mas também
de conduta: “[...] o que indigna hoje, não é só a intolerância, e o ridı́culo
[...] ridı́culo funesto aos verdadeiros interesses da Igreja. E o que mais dói é
ver que esta intolerância reside em um clero pela maior parte ignorante, sem
prestı́gio, é verdade, mas também sem escrúpulos” (Assis 2008, vol. 4:113).
Há diferenças entre o escritor e os profetas, contudo.14 Eles eram motivados pelo carisma da posse do espı́rito de Deus e agiam em nome dele
para uma reforma, para o futuro, para um novo mundo. Eram os profetas
movidos pelo sonho da regeneração do homem, pela utopia segundo a qual
haveria uma época em que o lobo habitaria com o cordeiro (Is 11.6). O
14
Profeta não é alguém que prediz o futuro. O profeta clássico bı́blico é um porta-voz de Deus. Ele
enxerga o que é mau na realidade social e atua para mudá-la. Na tradição bı́blica posterior aos
profetas clássicos, pode-se falar em apocalı́pticos; como os profetas, enxergam a realidade má, mas
não acreditam que os homens podem para mudá-la, pois há poderes demonı́acos que atuam no mundo.
Somente as forças divinas podem vencê-los; daı́ a necessidade de um combate cósmico supra-humano
(Ehrman 2000:227).
108
Paulo Sergio de Proença
jovem Machado, se não motivado por esse mesmo ideal, era consciente de
que a intervenção militante tinha como meta mudanças estruturais e de
comportamento, como se pode ver neste trecho: “O que é certo é que eu
tenho a vaidade de supor que já vou melhorando A Cruz ; a respeitável folha
da Candelária já não apresenta aquelas notı́cias e observações com que eu
procurei distrair muitas vezes os meus leitores” (Assis 2008, vol. 4:178). A
diferença a ser notada é que Machado não tinha nenhuma motivação de
ordem religiosa para essa atuação liberal. É razoável supor, contudo, que o
jovem escritor tinha, ainda, alguma aceitação de que a atividade jornalı́stica
seria produtiva em algum sentido e provocaria as mudanças almejadas.
Observações finais
Machado conhecia a Bı́blia desde a juventude, pelo menos é o que se pode
deduzir da vinculação dela a seus ideias liberais. Ele criticou e atacou a
injustiça, o capricho e o abuso dos poderosos; defendeu a liberdade religiosa contrariando e atacando autoridades e publicações religiosas oficiais; combateu o imperialismo, provavelmente inspirado nos profetas e, particularmente,
no Êxodo dos hebreus.
A leitura de Renan despertou interesse e atenção. Por meio dela, Machado
teve contato com princı́pios básicos da exegese moderna: crı́tica histórica e
literária e noções de crı́tica textual. Detectaram-se elementos mı́ticos das
narrativas bı́blicas, particularmente no que diz respeito aos evangelhos, mas
esse princı́pio pode ser aplicado ao conjunto dos escritos bı́blicos, que se
configuram em fontes significativas, já na juventude do escritor.
Abstract
As a young journalist, Machado wrote chronicles in which he usually criticized politicians,
religious people and prominent individuals of the social context, with no reservations. He
denounced the invasion of Mexico in the early 1860’s and defended the religious freedom
against the Catholic paper A Cruz (The Cross). One of the invectives against this religious
paper was motivated by the defense of the literary work A vida de Jesus (The Life of
Jesus) by the French thinker Renan, who applied the principles of the historical criticism
to the interpretation of the biblical writings. Machado had a great tendency towards
controversy. A remarkable aspect in the reading of Machado’s works is the projection of his
biblical readings focusing on the local reality, which is extended sometimes to a continental
dimension as is the case of the invasion of Mexico. In such occasion, he used a biblical
text that evoked the exodus of the Hebrews. The Exodus narrates the deliverance of the
Machado de Assis e o Uso da Bı́blia
109
Pharao’s slaves, the reason why it has a revolutionary potential supported by the ideal of
freedom based on the Bible. On the other hand, the Bible advocates the social justice, the
rights, the liberty, the protection of the outcasts. Such themes were very important to this
broad-minded young man.
Keywords: Machado de Assis; Bible; liberalism; youth.
Referências
Assis, Machado de. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
2008.
Bı́blia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Barueri, SP: Sociedade Bı́blica do
Brasil, 1993.
Ehrman, Bart D. The New Testament: A historical introduction to the early Christian
writings. 2a Edição. New York/Oxford: Oxford University Press, 2000.
Magalhães Jr., Raimundo. Vida e obra de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira; Brası́lia: INL/MEC, 2009.
Massa, Jean-Michel. A juventude de Machado de Assis, 1839-1870 : ensaio de biografia
intelectual. São Paulo: Editora Unesp, 2a Edição, 2009.
Renan, Ernest. A vida de Jesus. Tradução de Eduardo Augusto Salgado. Porto: Lello &
Irmão Editores, s/d.
Ribeyrolles, Charles. Brasil Pitoresco. 2 volumes. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1980.
Anais dos XII e XIII Encontros dos Alunos
de Pós-Graduação em Linguı́stica da USP.
São Paulo: Paulistana, 2012, p. 110–123.
Acontecimento em “Tubarões
Voadores”
Carolina Tomasi∗
Resumo
Com base na Semiótica Tensiva, este artigo focaliza uma história em quadrinhos (“Tubarões Voadores”,
de Luiz Gê), que foi musicada por Arrigo Barnabé. Nosso objetivo é examinar como se dá o acontecimento nessa narrativa. A análise apoia-se na verificação dos enunciados verbal, visual e musical,
abordando inicialmente a narrativa, marcada pela velocidade do “relâmpago passageiro”, razão pela qual
percorremos os sentidos de tubarão, voador e voar a fim de estabelecer o andamento desse objeto semiótico. Justificam-se, então, as preocupações com o inesperado e com a tonicidade - elementos que se
interseccionam com a música de Arrigo Barnabé. Ao final da análise, verificamos que, em “Tubarões
Voadores”, há uma dissensão de linguagens, em que a sobreposição dos textos dos balões à música de Arrigo revela uma disputa entre os elementos verbais e musicais. Finalmente, examinamos as relações entre
ética e estética; enquanto as falas seriam ordenadas pelo dever, pela ética, funcionando como elemento
de preservação do sujeito na rotina do cotidiano, a música e o plano visual seriam ambos da ordem do
acontecimento e, portanto, da ordem do estético. Brota do jogo de dever e querer a figura do destinador
na fala dos balões, que salienta não haver espaço para o inesperado, o artı́stico (invasão de tubarões) se
predominam de forma absoluta valores do mundo utilitário, pragmático.
Palavras-chave: Semiótica Tensiva; Estética; Ética; Música; História em Quadrinhos.
Introdução
“Tubarões voadores”,1 segunda história em quadrinhos do livro Território
de bravos (1993), de Luiz Gê, foi elaborada pelo artista plástico em 1983.
Em 1984, Arrigo Barnabé lança o disco Tubarões voadores, em que a história
de Luiz Gê aparece musicada como faixa 1 do vinil. O texto da história
em quadrinhos (HQ), que contava apenas com as linguagens verbal e visual,
∗
Departamento de Linguı́stica da Universidade de São Paulo (DL-USP). Este trabalho faz parte da
pesquisa de mestrado “A missividade: por uma gramática tensiva da Semiótica de HQs”, financiada
pelo CNPq. E-mail: [email protected].
1
Esta HQ sob análise encontra-se na ı́ntegra no livro Território de bravos, de Luiz Gê; ou disponı́vel
em http://youtu.be/qTLlnY4WSSY.
Acontecimento em “Tubarões Voadores”
111
passou a contar com a contribuição do músico. Na Apresentação do livro
Território de bravos, Luiz Gê (1993:10), ator da enunciação,2 afirma:
Nesta história, uma das intenções era desenhar a cidade de uma certa
altura, não a do “voo de pássaro”, na qual a observamos inteira,
ligeiramente de cima, nem de muito alto, visão que acaba por achatar
tudo num “mapa”. Mas como no voo de um tubarão, numa altura em
que ainda estamos dentro dela, se esgueirando por entre os prédios,
altura em que uma cidade como São Paulo deve ser realmente vista.
A visão que temos normalmente do chão é muito, digamos, pedestre,
rasteira, sem grandeza, cotidiana demais; acaba por ser banal. Morase em um lugar que tem um espaço único sem que nos apercebemos
disso. Já a verticalidade provoca essa atração do abismo. É como se
houvesse um vazio, um vácuo, que necessitasse ocupação. Por isso
o voo, que proporciona o caráter dinâmico da narrativa, através do
ritmo de enquadramentos (destaque nosso).
A partir dos elementos do enunciado acima citado, dois pontos podem
ser destacados em “Tubarões voadores”: (i) no nı́vel discursivo, temos a
presença de dois espaços: o rasteiro, cotidiano dos moradores da cidade
de São Paulo, e o mediano (“voo dos tubarões”, que não é alto como o
dos pássaros), ambos proporcionando uma visão do espaço dos habitantes
da metrópole - tubarões e pessoas, portanto, passam a conviver no mesmo
espaço; (ii) por meio do termo caráter dinâmico, utilizado pelo ator da
enunciação na manifestação, podemos depreender a cifra tensiva que move a
escolha do sujeito enunciador: a rapidez, a dinamicidade.
O primeiro ponto a ser investigado, portanto, nesta análise será a escolha
dos valores tensivos feita pelo enunciador.
Voo do Tubarão: uma narrativa marcada pela
velocidade do relâmpago passageiro
Em “Tubarões voadores”, no nı́vel discursivo, assistimos a uma invasão da
cidade de São Paulo por tubarões voadores. Sabemos que se trata da cidade
de São Paulo por revelação do ator da enunciação. Nessa HQ, vários atores,
2
Segundo Greimas & Courtés (1983:35), “do ponto de vista da produção do discurso, pode-se distinguir
o sujeito da enunciação, que é um actante implı́cito logicamente pressuposto pelo enunciado, do ator
da enunciação: neste último caso, o ator será, digamos, ‘Baudelaire’, enquanto se define pela totalidade
de seus discursos”.
112
Carolina Tomasi
bem como figuras, desfilam aos nossos olhos, mostrando-nos uma hierarquia
de valores que serão analisados no decorrer deste trabalho.
Três figuras nos chamam a atenção na HQ de Luiz Gê: a metrópole,
os habitantes da cidade e os tubarões. Tomemos, inicialmente, a figura do
tubarão (escolhida em primeiro lugar por já constar do tı́tulo) e vejamos a
definição do dicionário:
1. Designação comum aos peixes condrictes, elasmobrânquios e eusseláquios, de pequeno e médio porte, corpo fusiforme e fendas branquiais
laterais; cação [são predadores, e grande parte das espécies não oferecem perigo ao homem; embora de discutida qualidade, sua carne é
muito consumida].
2. Empresário cúpido, sem escrúpulos, que só visa aos próprios lucros.
3. Pequeno monte ou serra.
4. Pessoa que tem vários empregos rendosos (Houaiss 2001).
Para efeito deste trabalho, a acepção 1 (peixe predador) e a acepção 2
(empresário sem escrúpulos, que só visa aos próprios lucros) poderiam nos
conduzir a um outro ponto de vista analı́tico, visto que poderı́amos, por meio
do conector de isotopias3 (o termo tubarão), apontar uma pluri-isotopia,4
que nos permitiria também a passagem para o tema da exploração humana
em uma metrópole. O adjetivo voador pode configurar a isotopia da fantasia
(voo do tubarão), do “tirar os pés do chão”, da banalidade do cotidiano, que
encaminharia os habitantes daquele espaço para fora do cotidiano, para um
momento de estesia.
O leitor pode verificar em “Tubarões Voadores” a presença de um destinador em vários enunciados: (1) “Pois no coração do prudente descansa a
sabedoria” (frase proverbial bı́blica, Prov. cap. 14, versı́culo 33); (2) “pânico
não resolve”; (3) “esta é a harmonia da vida”. Parece-nos que esse destinador
recusa a ultrapassagem do cotidiano, isto é, refuta o voo momentâneo, a apreensão estética, visto que a prudência (da ordem da implicação) evitaria a
junção de tubarão e homem (ver Fig.1).
O contrário da prudência seria da ordem da concessão, que é o lugar privilegiado do voo para uma escapada do cotidiano. Para Zilberberg
3
Conector de isotopia é a “unidade do nı́vel discursivo que introduz uma ou várias leituras diferentes:
o que corresponde, por exemplo, à ‘codificação retórica’ que C. Lévi-Strauss aponta em mitos que
jogam ao mesmo tempo com o ‘sentido próprio’ e com o ‘sentido figurado’ ” (Greimas & Courtés
1983:72).
4
Na pluri-isotopia, é “o caráter polissêmico da unidade discursiva com papel de conector que torna
possı́vel a superposição de isotopias diferentes” (Greimas & Courtés 1983:72). “Entende-se por pluriisotopia a superposição, num mesmo discurso, de isotopias diferentes” (Greimas & Courtés 1983:336).
Acontecimento em “Tubarões Voadores”
113
Figura 1 Homem dentro do tubarão: conjunção (apaga-se a diferença entre
sujeito e objeto).
(2006:197), “passamos subitamente da ordem enfadonha da regra para a ordem tonificante do acontecimento”. Embora tubarões não voem, o enunciador
os faz voarem.
Vejamos agora as acepções de voador, presente no tı́tulo “Tubarões
voadores”:
1. Que voa ou pode voar; voante, volante.
2. Que se coloca ou corre com enorme rapidez; rápido, veloz.
3. Aquele que voa.
4. Acrobata que salta de um trapézio para outro mais ou menos
distante (Houaiss 2001).
Dessas acepções, fiquemos com a 1 e 2. A acepção 1 nos leva ao verbete
voar :
1. Sustentar-se ou mover-se no ar por meio de asas ou algum meio
mecânico.
2. Deslocar-se velozmente pelo ar.
3. Elevar-se ou flutuar no ar; ascender, pairar. [...]
7. Correr ou deslizar com grande velocidade.
8. Ser impelido ou atraı́do com força.
9. Passar, decorrer rapidamente.
10. Ir para algum lugar com grande rapidez; correr. [...]
13. Desligar-se da realidade; elevar-se, vagar.
114
Carolina Tomasi
Dessas acepções, fiquemos com a última, bem como com as 2, 3, 7, 9 e
10, visto que o próprio ator da enunciação, como vimos na introdução deste
trabalho, informa-nos que o voo dos tubarões figurativiza a possibilidade
de sair do chão para uma altura média, que nos permite ausentar-nos do
cotidiano (ver acepção 13). A velocidade (ver acepção 2 das palavras voador
e voar ) do voo dos tubarões, a mesma da apreensão estética, é como um
“relâmpago passageiro” que se introduz no discurso da cotidianidade dos
homens (cf. Greimas 2002:26). O enunciador vale-se aqui de um modelo
espacial em que a altura média, o sair do chão, do espaço inferior, carrega a
marca eufórica, enquanto manter-se no plano inferior, no rés da calçada da
cidade, carrega a marca disfórica.
Ainda não tratamos das duas outras figuras da HQ: a cidade e seus
habitantes. A primeira remete-nos ao cotidiano, às ações comezinhas, banais,
ao viver sem destaque, sem ênfase, que se opõe à estesia. E os habitantes
são os sujeitos desse fazer banal, mergulhados que estão na continuação da
continuação, um relaxamento estéril. Para Tatit (2001:178),
toda situação retratada num texto é passageira e portanto sua significação depende das orientações sugeridas pelo processo de denegação
que, afinal, apresenta os valores excluı́dos ou desvalorizados como
horizontes para a evolução tensiva e narrativa da trama.
No caso de nossa análise, no relaxamento do cotidiano, convocam-se os
valores antes desprestigiados, isto é, os valores da continuação da continuação
dão lugar aos valores da parada da continuação. O marasmo do cotidiano
cede lugar a uma contenção quando do acontecimento da invasão dos tubarões voadores. A cifra tensiva do léxico voar instaura um andamento rápido
no nı́vel profundo. A interrupção inesperada, porque veloz, “dessa periodicidade (parada da continuação) figurativiza a parada do tempo cotidiano e,
simultaneamente, a cristalização do espaço” (Tatit 1999:199). Por exemplo,
na Figura 1, a parada da continuação na narrativa que orienta a leitura para
a dimensão do ser, cristalizando o espaço. A primeira aparição do tubarão
voador marca pontualmente a fratura tanto no quadrinho de Luiz Gê, como
na vida humana nele representada. A apreensão estética compreende um
“breve lapso de tempo”; daı́ a cifra tensiva da aceleração,5 que inesperada e
5
Zilberberg (2006:198) afirma que o andamento do acontecimento é mais rápido do que o homem pode
experimentar.
Acontecimento em “Tubarões Voadores”
115
velozmente cristaliza um instante, um momento de distensão que perdura
entre sucessivos programas narrativos meticulosos e banais6 que “traduzem a tensão da rotina diária” (Tatit 1999:200). O ataque dos tubarões
distende as ações quotidianas.
O efeito estético produzido pela surpresa do ataque dos tubarões vislumbra a possibilidade da plenitude da junção de sujeito e objeto. O
estranhamento7 do voo dos tubarões (tubarões não voam) configura apenas
uma criação discursiva que produz o efeito de sentido de pavor (excluı́mos
aqui a possibilidade de terror). O Dicionário Houaiss (2001) define pavor
como:
1. Grande susto ou temor.
2. Comoção, agitação, turbação; susto, espanto, medo, horror,
terror.
3. Repulsão.
A entrada dos tubarões voadores no campo visual do sujeito (atores da
cidade) provoca avanço ou recuo diante do objeto. Todavia, há uma ativação
do objeto tubarão que, subjetivado, “manifesta um querer recı́proco de
conjunção entre os dois actantes, como se um tendesse ao outro, encontrandose a meio caminho” (Tatit 1999:201). A ativação do objeto, tubarões
voando no espaço dos homens, e a passivação do sujeito (atores humanos)
produzem um efeito de sentido de “emoção estética”.8 A acepção 2 da
paixão pavor mostra-nos, pelas definições “comoção, agitação, turbação...”,
as caracterı́sticas de tal emoção estética.
Fiorin (1999:101–117) ressalta várias caracterı́sticas da experiência estética do acontecimento que vão ao encontro da análise deste trabalho. Na
Tabela 1, a primeira coluna contempla as considerações teóricas extraı́das do
artigo “Objeto artı́stico e experiência estética” do autor mencionado anteriormente, enquanto a segunda coluna contempla o nosso objeto de análise,
com base em Greimas (2002).
6
Pessoas dentro de casa, movimento dos automóveis pela cidade.
Todo discurso é criador de mundos, uma vez que a realidade é discursiva. Semioticamente, não
há razão para distinguir mundo ficcional e mundo da realidade, pois ambos são efeitos de sentido
discursivos. Um discurso, como o jornalı́stico, por exemplo, cria efeito de realidade e de verdade. Ora,
todas as verdades são recortes do mundo produzidos pela linguagem. Não há razão para falar em
mundo da realidade e mundo da fantasia. Tubarões voarem não é uma propriedade que opõe dois
mundos, o ficcional e o da realidade, mas um discurso que provoca “efeito” de fantasia, enquanto
tubarões “nadarem” provoca o efeito de simulação do mundo natural.
8
Cf. Zilberberg (2006:144–145).
7
116
Carolina Tomasi
Tabela 1 Caracterı́sticas do objeto estético em análise
Excertos retirados do artigo de Fio- Análise de “Tubarões voadores”
rin (1999:101–117).
com base no estudo do artigo citado
e no texto de Greimas (2002), Da
imperfeição.
A experiência estética é um evento extra- Tubarões voadores englobados pela cotidiordinário englobado pela cotidianidade.
anidade.
A experiência estética é uma surrealidade Tubarões voando em São Paulo é uma
englobada pela realidade.
surrealidade englobada pela realidade.
Nessa experiência estética, o tempo cessa No quadrinho 3, o tempo cessa (para),
(para), o espaço fixa-se e ocorre um sin- o espaço fixa-se e ocorre um sincretismo
cretismo entre sujeito e objeto, que estão entre tubarão e homem engolido (Figura
disjuntos na temporalidade de todos os 1). No plano do conteúdo, há uma zona de
dias.
intersecção em que é difı́cil precisar onde
começa o corpo do homem e onde começa
o do tubarão: corpo de homem e corpo
de tubarão confundem-se. Normalmente,
tubarões ficam no mar, homens na cidade;
são, portanto, disjuntos na temporalidade
do cotidiano.
Natureza do objeto estético.
O objeto que se deu a perceber e que ganhou subjetividade na HQ é de natureza
natural (animal do mar) e não cultural.
O sujeito (atores-homens) afasta-se da re- O sujeito deixa a realidade da existência
alidade enfraquecida e é absorvido pelo para viver durante o tempo dessa experimundo da ilusão. Há uma fusão do sujeito ência estética uma surrealidade, uma secom o objeto, como vimos.
gunda vida (Cf. Fiorin 1999:101-117).
Os atores-homens da cidade passam a con- Na fratura da cotidianidade, o sujeito, iniviver com atores de outro lugar, de outro cialmente ator pertencente ao dia a dia
tempo. Alteram-se a actorialidade, a espa- da metrópole, libera-se desse cotidiano, vicialidade e a temporalidade do cotidiano. vendo um acontecimento extraordinário: a
chegada dos tubarões voadores à cidade.
Recepção do enunciatário.
O enunciatário, ao ler “Tubarões voadores”, também se depara com uma leitura
que configura um acontecimento extraordinário, fraturando a mesmice do cotidiano
e instaurando outra realidade, que passa
a ser vivida no momento da leitura dos
quadrinhos (Cf. Fiorin 1999:107).
Objeto estético modificador.
Para Fiorin (1999:109), “é preciso modificar a ordem do mundo para torná-la mais
expressiva”.
Acontecimento em “Tubarões Voadores”
117
Trataremos a seguir do andamento do acontecimento em “Tubarões
voadores”.
Invasão do espaço: o andamento da HQ
“Tubarões voadores”
Zilberberg (2006:198) define, de acordo com Le Robert Micro, a palavra
acontecimento: “aquilo que acontece e tem importância para o homem”.
Para o Dicionário Houaiss (2001), acontecimento é
1. O que acontece; fato, ocorrência.
2. O que acontece ou se realiza de modo inesperado; acaso, eventualidade.
3. Pessoa ou fato digno de nota, que produz viva sensação [...].
Pelas definições, temos uma primeira pista para encontrar o andamento
de “Tubarões voadores”: a invasão do espaço da cidade de São Paulo
por tubarões voadores é a primeira indicação “da ordem do sobrevir, da
subtaneidade, ou seja, do andamento mais rápido que o homem possa
experimentar” (Zilberberg 2006:198). É de notar que não apenas esse
acontecimento se dá de forma rápida, como também os próprios tubarões
voadores já possuem essa caracterı́stica de rapidez. O adjetivo voador, como
vimos na seção 3, conta, em uma de suas acepções, com as definições de
rapidez, rápido, veloz. As escolhas do sujeito da enunciação recaem sobre um
objeto veloz que se subjetiva, invade a cidade, com andamento acelerado,
provocando no enunciatário o mesmo impacto que causou nos sujeitos, atores
da cidade. A segunda pista está no fato de que todo acontecimento é
carregado de importância para o sujeito; daı́ ser tônico.
Zilberberg (2006:198) ressalta que “o sujeito, instalado na ordem racional,
programada e compartilhada do conseguir [parvenir ], senhor de suas esperas
sucessivas, vê-se desviado de seus caminhos habituais e projetado em sua
devastação”. Tomando “Tubarões voadores”, verificamos que, antes da
invasão (acontecimento), os sujeitos permaneciam mergulhados na ordem
do racional. Eles tinham controle de suas esperas. O acontecimento dos
tubarões quebra esse equilı́brio, o que só pode dar-se de forma rápida e
tônica.
118
Carolina Tomasi
Por um lado, o andamento e a tonicidade atuam em conjunto sobre
o sujeito, mobilizando-o; por outro lado, o surgimento repentino de andamento e tonicidade causa “desmantelamento modal instantâneo” no sujeito,
desarranjando-o. Zilberberg (2006:198) chama o acontecimento de semiose
fulgurante, pois este último “arrebata para si todo o agir, não deixando
ao sujeito nada além do suportar”. Passando para nosso objeto de análise, o evento tubarões arrebata para si as ações, e os sujeitos da cidade,
impactados pelo acontecimento, são passivados.
A seguir, examinaremos a música de Arrigo Barnabé que foi acrescida à
HQ de Luiz Gê.
A Música de Arrigo Barnabé na HQ
“Tubarões voadores”
A música9 “Tubarões voadores” de Arrigo Barnabé foi composta, como já
dissemos, em 1984, com base no texto verbo-visual (“Tubarões voadores”)
do artista plástico Luiz Gê. Trata-se de uma música dodecafônica, ou seja,
que não tem uma tonalidade definida, e que se apropria dos doze semitons
da escala, dispostos de maneira não hierarquizada. Segundo o Dicionário
Houaiss (2001), dodecafonia é “um sistema musical baseado na divisão da
oitava em doze meios-tons sem quaisquer relações tonais”. É diferente da
canção em que encontramos uma relação da letra com a melodia, estudo
desenvolvido por Tatit (1997, 1999) na área de semiótica da canção.
No caso de nosso objeto, não é possı́vel estabelecer relação de junção,
mas relação de dissensão10 entre os textos dos balões do quadrinho com
a música de Arrigo. Vejamos o porquê: a música dodecafônica, não sendo
considerada melodia, não é ritmada nem cantada, de forma que podemos
verificar que o texto dos balões está sobreposto à música de Arrigo
que vem no fundo; os balões dessa história em quadrinho simulam,
portanto, a fala utilitária do cotidiano daquele espaço.
Todavia, é de notar que há três frases que não pertencem à fala utilitária,
mas contêm elementos musicais:
9
A música está disponı́vel em: www.cliquemusic.uol.com.br/discos/ver/turar~oesvoadores. Acesso
em 20 de outubro de 2009.
10
Embora às vezes haja também o sentido de concorrência, optamos pela relação de disputa, dissensão,
divergência.
Acontecimento em “Tubarões Voadores”
119
• As frases (1) “tubarões voadores” e (2) “pânico não resolve nada”
(Figura 1, no começo deste artigo; e Figura 2 a seguir) são faladas no
ritmo da música e distorcidas por um modulador de voz ou, talvez,
um sampler. Este último é um tipo de aparelho que imita sons,
reproduzindo um som artificial, eletrônico. Por exemplo, pode-se imitar
a voz humana, como no caso citado.
• A terceira frase, a do quadrinho 20 (Figura 3), é melódica e ritmada:
“afinal, esta é a harmonia da vida”.
Figura 2 No balão: “Pânico não resolve nada”.
Figura 3 No balão: “Afinal, esta é a harmonia da vida”.
Outros aspectos constantes da descrição da música é que ela faz uso de
figuras rı́tmicas aceleradas, breves e subsequentes. Além disso, é de notar
que o sujeito da enunciação utiliza um recurso semelhante a um ostinato
120
Carolina Tomasi
clássico, ou seja, é composto de um motivo rı́tmico repetitivo, ao qual são
sobrepostas melodias dodecafônicas11 e contrapontos.
No Dicionário Houaiss (2001), ostinato é
figura melódica ou rı́tmica repetida obstinadamente ao longo de toda
uma composição que serve de base a formas clássicas, como chacona,
folia [...]; breve figuração melódica constantemente repetida durante
uma composição; ostinarsi, persistir em um propósito insistentemente.
Na música de Arrigo, temos um pseudo-ostinato, uma vez que a
célula rı́tmica constante é executada alternadamente por diferentes sons
reproduzidos por teclado e instrumentos de percussão: tambores e pratos.
Estes últimos reforçam a pulsação acelerada em alguns trechos da música. Tal
pulsação12 subjaz à música, ou seja, é a sua base rı́tmica e está estabelecida
num andamento rápido. Com a ajuda de um metrônomo, constatamos
que o andamento da música é allegro, considerado acelerado, porque se
encontra em torno de 128 pulsações por minuto. Além disso, essa pulsação
está presente em toda a cadeia musical, observando que os ataques dos
tubarões na HQ são precedidos, como no filme de Spielberg, pelo motivo
melódico inspirado na música-tema do filme Tubarão. Aqui, temos uma
intertextualidade.13
É de notar uma quebra do andamento acelerado quando da intervenção
da frase melódica “afinal essa é a harmonia da vida” em ritmo de valsa: o
andamento desacelera-se e, nesse ponto, aproxima-se da canção em que há
uma relação entre melodia e letra. Na música de Arrigo até o quadrinho
20, as frases são faladas e não há relação entre texto verbal e música.
Basicamente, há uma cadeia musical que subjaz ao texto, que é constituı́do
de fala utilitária tão somente. Todavia, no momento da valsa, instrumentos,
ritmo, melodia e letra caminham juntos: é um momento pontual, sem
duração; instaura-se uma parada da continuação na aceleração da música
principal. A desaceleração introduzida por essa valsa (essa é a harmonia da
11
No caso da música sob análise, é de se observar que não há melodia cantada, mas há melodias
executadas pelos instrumentos musicais.
12
Pulsação musical “é a unidade abstrata de medida do tempo musical a partir da qual se estabelecem
as relações rı́tmicas” (Houaiss 2001).
13
No filme Tubarão, os atores-tubarões encontram-se em seu meio natural. O percurso desse sujeito
figurativizado pelos tubarões é natural: o ato de engolir homens seria a forma fisiológica de matar a
fome. Todavia, na história de Luiz Gê, a fome é da ordem da estesia. Nela, ocorre a inversão dos
papéis de sujeito e objeto: os tubarões voadores viram sujeitos de um percurso paralelo ao percurso
dos homens da cidade.
Acontecimento em “Tubarões Voadores”
121
vida) é uma tentativa de reconstrução de um sujeito abalado pelo impacto do
acontecimento estético acelerado dos tubarões voadores voando pela cidade.
Logo após essa pontualidade descrita, recupera-se o andamento acelerado
da música. A seguir, veremos a relação de disputa entre a música e a fala
utilitária dos balões.
Relação de dissensão entre a música e os
textos dos balões
No inı́cio deste artigo, comentamos sobre a presença na narrativa de um
destinador ético cujo objetivo é desacelerar, devolver o comedimento que
foi subtraı́do pela estesia do acontecimento (cf. Zilberberg 2006:198). No
nı́vel discursivo, as frases utilitárias do destinador ético são aquelas que
estão no fundo da música. Uma vez que as frases faladas por tal destinador
não revelam relação entre melodia e letra, elas parecem concorrer com a
música de Arrigo. A fala dos balões é ordenada pelo eixo do dever, da ética;
tem a função de preservar o sujeito na rotina do cotidiano, é implicativa,
preventiva, do bem; tal fala ética concorre com a música dodecafônica e o
plano visual, ambos acelerados, concessivos, da ordem do acontecimento, do
artı́stico, portanto.
Tomamos como exemplo algumas dessas falas do destinador: “Qualquer
movimento os atrai”, “De nada adianta fugir”, “Gritar não é recomendável”,
“Por isso, feche portas e janelas, Joãozinho”, “Não adianta nada deixar a
janela apenas entreaberta”, “As janelas devem ter grades”, “E as portas,
trancas” [...] “Pois no coração do prudente descansa a sabedoria”. Todas
as intervenções desse destinador revelam preocupação ética que procura
restabelecer a ordem suprimida pelo acontecimento, como se quisesse devolver
ao sujeito o controle da situação, repelindo a estesia. De um lado, então,
temos a música dodecafônica e de outro, a simulação da fala: ambos em
disputa. A música obstinadamente procurando se conservar no fundo à
medida em que é diluı́da a fala sobreposta do destinador.
Para tubarões voando, a “voz da experiência” no fundo recomenda que
se “feche portas e janelas, Joãozinho”. É como se devesse proteger o espaço
para que nenhum revés sobreviesse, não se podendo, desse modo, voar (a
fuga do cotidiano). Todavia, embora haja trancas e cadeados nas janelas,
122
Carolina Tomasi
os tubarões penetram assim mesmo, e a vida entra pela janela com seus
acontecimentos e sobressaltos. A sintaxe da fantasia: [embora isso, aquilo].
Finalmente, tomemos a frase utilizada pelo destinador: “No coração
do prudente descansa a sabedoria”, que é uma intertextualidade de um
provérbio bı́blico. Todavia, na Bı́blia a frase é um pouco diferente: “a
sabedoria descansa no coração prudente, mas também se faz sentir no meio
dos insensatos”.14 Mantenedor da ordem, da banalidade do cotidiano, o
destinador é sábio, de modo que tubarões não teriam vez no espaço, ou
seja, qualquer voo além do tradicional seria de alto risco. A sabedoria,
portanto, encontra morada na prudência, na ética, na implicação, na previsão
da vida: “feche a janela”, “gritar não é recomendável”, “não adianta nada
deixar a janela apenas entreaberta”, “as janelas devem ter grades”, “as
trancas, cadeados”, “e os cadeados, fechos de segurança”. Mas talvez seja na
concessão que a fantasia e o artı́stico encontrem seu espaço (“no meio dos
insensatos”), podendo, nesse caso, os planos da expressão da música e do
visual serem mais resistentes do que o plano da expressão da fala cotidiana.
Abstract
Taking as a reference the Tensive Semiotics, this paper focuses on a comic (Luiz Gê’s
“Tubarões Voadores” - Flying Sharks), which was set to music by Arrigo Barnabé. Our
purpose is to examine how events occur in this narrative. The analysis leans on the
verification of verbal, visual and musical enunciations, approaching at first the narrative,
which is marked by the quickness of the “ephemeral lightning flash,” reason why we run
through the senses of the terms shark, flying and to fly in order to set the timing of this
semiotic object. Concerns about suddenness and tonicity, elements that intersect Arrigo
Barnabé’s music, are thus justified. At the end of the analysis, we verify that there is in
“Tubarões Voadores” a dissent between languages in which an overlapping of texts in the
speech bubbles and Arrigo’s music reveals a contest between verbal and musical elements.
Lastly, we examine the connections between ethics and aesthetics; while speeches would be
ordered by obligation, by ethics, acting as an element that preserves the subject in everyday
routine, both music and visual field would lie in the realm of events and therefore in the
realm of aesthetics. From the game played between obligation and desire, the figure of the
addresser issues in the speech bubble. It is pointed out that there is no room for suddenness
and art (invasion of sharks) when values of a utilitarian, pragmatic world prevail.
Keywords: Tensive Semiotics; Aesthetics; Ethics; Music; Comics.
14
No provérbio bı́blico, a sabedoria não descansa apenas no coração do prudente (implicativo), mas
também no coração do insensato, imprudente (concessivo). A sabedoria está, portanto, tanto no
cotidiano quanto no artı́stico, no bem e no bom.
Acontecimento em “Tubarões Voadores”
123
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semiótica, n. 25, jun. 2006, p. 163-204.
Anais dos XII e XIII Encontros dos Alunos
de Pós-Graduação em Linguı́stica da USP.
São Paulo: Paulistana, 2012, p. 124–141.
Inacusatividade, Auxiliaridade e
Propriedades de Alçamento com
Acabar
Aline Garcia Rodero-Takahira∗
Resumo
Neste trabalho, buscamos investigar as caracterı́sticas sintático-semânticas de sentenças com o verbo
acabar e procuramos identificar que tipo de estrutura sintática melhor representa sua formação. Analisamos sentenças nas quais esse verbo traz uma ideia de resultado ou fase final de um evento, com uma
leitura de que algo aconteceu e, no final das contas, a situação terminou de tal forma, como em O João
acabou na cadeia. Buscamos identificar se, nesses casos, acabar é um verbo auxiliar, semi-auxiliar, ou um
aspectualizador. Vários testes foram feitos para definir o estatuto desse verbo com base em Lunguinho
(2005, 2009), Ferreira (2009), Wachowicz (2005), Davies & Dubinsky (2004), Jaeggli (1986), entre outros.
Observamos que o verbo acabar em foco nesta pesquisa funciona como um verbo inacusativo, assim,
apresenta caracterı́sticas de alçamento, além de várias propriedades de verbos auxiliares. A propriedade
de operar sobre um intervalo de tempo denotado pelo verbo principal, restringindo esse intervalo para
sua fase final ou para seu resultado nos fez classificar esse verbo como um aspectualizador. Prevemos
que acabar esteja em uma intersecção entre os subgrupos de verbos que subcategorizam uma SC, um
CP, um DP, e as propriedades de verbos auxiliares, caracterizando-se, possivelmente, como um verbo
semi-auxiliar. Assim, propomos uma análise do verbo acabar e de algumas das sentenças em que ele
pode aparecer à luz de modelos formais para a análise linguı́stica.
Palavras-chave: Aspectualizador; Semi-auxiliar; Auxiliar; Alçamento; Inacusativo.
Introdução
É muito comum encontrarmos tratamentos do verbo acabar em seu sentido
pleno ou lexical, no qual ele traz a leitura de terminar ou ser concluı́do, independentemente de acabar funcionar como um verbo inacusativo, selecionando
∗
Este trabalho fez parte da pesquisa de mestrado “Construções com o verbo acabar no português
brasileiro”, financiada pela CAPES, sob a orientação da Professora Doutora Ana Paula Scher. Departamento de Linguı́stica da Universidade de São Paulo (DL-USP). Agradeço à CAPES por financiar a
pesquisa e à Profa. Dra. Ana Paula Scher pela orientação. E-mail: [email protected].
Acabar
125
apenas um argumento interno, como em (1), ou como um verbo transitivo,
selecionando um argumento interno e outro externo, como em (2):
(1)
O leite acabou.
(2)
Eu acabei a lição de casa.
Ainda, em sentenças com acabar de, traz a leitura de muito recente, como
em:
(3)
O João acabou de chegar.
(4)
A Maria acabou de fazer a lição de casa.
Em (3), a interpretação que se tem é a de que o evento descrito aconteceu
agora mesmo, em um passado recente: a leitura é aspectual retrospectiva.
Em (4), a interpretação é ambı́gua entre a leitura aspectual retrospectiva, e
a leitura de que o evento descrito já acabou, terminou, foi concluı́do: leitura
aspectual completiva.
Essas sentenças com acabar de já foram estudadas por vários autores,
entre eles: Bertucci (manuscrito 2008), Ferreira (2009), Lunguinho (2005,
2009), Travaglia (2004b), Wachowicz (2007).
Neste trabalho, analisamos sentenças como as que apontamos abaixo,
nas quais o verbo acabar traz uma ideia de resultado ou fase final de um
evento, com uma leitura de algo aconteceu e, no final das contas, a situação
terminou de tal forma.
(5)
O João acabou na cadeia.
(6)
O João acabou dono de restaurante.
(7)
A Ana demorou tanto que o João acabou furioso.
(8)
O João acabou enfurecido pela Ana.
(9)
A demora da reunião acabou enfurecendo os participantes.
(10)
A demora da reunião acabou por enfurecer os participantes.
Fizemos esse recorte, escolhendo apenas o verbo acabar que traz a leitura
apontada acima, pois, observamos que essa ocorrência desse verbo ainda não
foi muito estudada. As sentenças de que nos ocuparemos, neste trabalho, são
tratadas parcialmente, ou apenas mencionadas, em Ferreira (2009), Henriques
126
Aline Garcia Rodero-Takahira
(2008), Rodero (2009), Travaglia (2004a, 2004b), Wachowicz (2007), e Wlodek
(2003).
As sentenças apontadas acima: (a) são formadas por acabar + sintagma
preposicional / sintagma nominal / adjetivo / particı́pio / gerúndio / [por]
infinitivo; (b) se houver realização do sujeito, ele poderá ser interpretado
como uma entidade que experiencia alguma situação, ou, em alguns casos,
como um evento ou uma entidade que faz com que uma segunda entidade
experiencie alguma situação; e (c) acabar seleciona apenas um argumento
interno, bem como ocorre com verbos inacusativos. Sendo assim, o argumento
que aparece na posição de sujeito terá o papel-θ que lhe é atribuı́do pela
predicação que o seleciona.1
Com base nesses dados, levantamos as seguintes questões:
A. Quais são as propriedades do verbo acabar nas sentenças apresentadas
acima?
B. Acabar é um verbo auxiliar? Se sim, que tipo de auxiliar ele seria? Se não
for um auxiliar, que tipo de verbo é acabar ?
Como observamos acima, acabar nesses contextos é um verbo inacusativo.
Ferreira (2009) trata os verbos inacusativos como uma subclasse dos verbos
de alçamento; assim, mais uma questão se coloca:
C. Tratar as sentenças com acabar como construções de alçamento dá conta
da formação das sentenças apresentadas?
D. A leitura não-agentiva observada para as sentenças com acabar, associada
à possibilidade de ocorrerem em contextos tı́picos de construções de alçamento, remete a estudos que relacionam estruturas passivas (não-agentivas)
a estruturas de alçamento - cf. van Noord & Kordoni (2005) e Fokkens
& Kordoni (2006), para um tratamento de sentenças passivas do holandês
e do alemão como construções de alçamento. É possı́vel estabelecer essa
mesma relação entre a leitura não-agentiva dessas sentenças e as estruturas
de alçamento em que podem ocorrer?
Nas próximas seções, aplicamos vários testes para definir o estatuto
desse verbo como auxiliar ou como aspectualizador, conforme Lunguinho
1
Para uma análise mais esmiuçada dessas construções, veja Rodero (2010).
Acabar
127
(2005, 2009) e Wachowicz (2005). Também aplicamos testes para identificar
construções de alçamento, como proposto por Davies & Dubinsky (2004);
discutimos o trabalho de Ferreira (2009) sobre os verbos inacusativos; e,
ainda, comparamos as propriedades de acabar com algumas propriedades das
passivas das lı́nguas naturais, com base em Jaeggli (1986).
Nesta seção, apresentamos alguns testes para definir o estatuto de acabar
enquanto um verbo auxiliar ou não. Esses testes foram feitos com base em
Lunguinho (2009)2 e seguindo os exemplos apresentados de (5) a (10) acima.
O primeiro é quanto à impossibilidade de complementação finita: verbos
auxiliares não permitem complementação finita. Para que esse critério possa
ser verificado, consideramos apenas os exemplos das sentenças em análise
que apresentam verbos, ou seja, aquelas de (8) a (10):
(11)
a.
b.
O João acabou [que foi enfurecido pela Ana].
A demora da reunião acabou [que enfureceu os participantes].
Por esse critério de auxiliaridade, acabar não poderia ser considerado um
verbo auxiliar, já que permite complementação finita.
O segundo teste é sobre a exigência de sujeito único: verbos auxiliares
apresentam um único sujeito.
(12)
a. *O João acabou [a Maria na cadeia].
b. *O João acabou [o Pedro dono de restaurante].3
Já por esse critério de auxiliaridade, poderı́amos incluir o verbo acabar na
classe dos auxiliares, pois há um sujeito único. O sujeito da oração principal
parece ser alçado da proposição selecionada por acabar, de forma que outro
sujeito não caberia naquela posição.
O terceiro teste diz respeito à impossibilidade de negação com escopo sob
a forma não flexionada com verbos auxiliares. Para que esse critério possa
ser verificado, também consideramos apenas os exemplos das sentenças em
análise que apresentam verbos:
(13)
2
a.
b.
O João acabou [não enfurecido pela Ana].
A demora da reunião acabou [não enfurecendo os participantes].
Para mais informações sobre os critérios de auxiliaridade, veja também Pontes (1973), Lobato (1975),
Longo (1991), Gonçalves (1996), Corso (2002), Gonçalves & Costa (2002) e Longo & Campos (2002).
3
Os demais exemplos também ficaram agramaticais nesse teste, mas não apresentamos todos aqui por
uma razão de espaço.
128
Aline Garcia Rodero-Takahira
c.
A demora da reunião acabou [por não enfurecer os participantes].
Esses dados são gramaticais com a negação com escopo sob a forma não
flexionada. Assim, perante esse critério, acabar não parece se comportar
como um verbo auxiliar.
O quarto teste se refere à impossibilidade de adjuntos adverbiais com
valores temporais diferentes com verbos auxiliares:
(14)
a. *Hoje, o João acabou na cadeia amanhã.
b. *Hoje, o João acabou dono de restaurante amanhã.4
Por esse critério, podemos incluir o verbo acabar na classe dos auxiliares. O
quinto teste se refere à impossibilidade de adjuntos adverbiais modificarem
parte da sequência verbal com um verbo auxiliar:
(15)
a.
b.
c.
d.
e.
f.
(Em 1999) O João acabou (em 1999) na cadeia (em 1999).
(Em 2001) O João acabou (em 2001) dono de restaurante (em 2001).
A Ana demorou tanto que (ontem) o João acabou (?ontem) furioso
(ontem).
(No sábado) O João acabou (no sábado) enfurecido pela Ana (no
sábado).
(Ontem) A demora acabou (?ontem) enfurecendo os participantes
(ontem).
(Ontem) A demora acabou (?ontem) por enfurecer os participantes
(ontem).
Não temos um resultado conclusivo para esse teste, pois apesar de muitos
exemplos serem gramaticais, um dos exemplos em c, e, e f é agramatical.
O sexto teste é sobre a transparência de voz. Por esse critério, se acabar
for um auxiliar, devemos esperar que a apassivação de seu complemento
conserve o conteúdo da sentença ativa correspondente. Os dois primeiros
exemplos não apresentam um verbo que possa ser passivizado junto ao
auxiliar, então, para esse critério, consideraremos apenas aqueles exemplos
de (7) a (10):
(16)
4
5
a.
b.
c.
A Ana demorou tanto que o João acabou ficando furioso.
O João acabou sendo enfurecido pela Ana.
Os participantes acabaram sendo enfurecidos pela demora da reunião.5
Idem.
Mesma forma para (9) e (10).
Acabar
129
Nos casos em que é possı́vel a apassivação do complemento de acabar, a
sentença conserva o conteúdo da sentença ativa correspondente. Assim, mais
uma vez acabar apresenta comportamento de um verbo auxiliar.
O sétimo teste é sobre a ausência de restrições de seleção quanto ao
sujeito: verbos auxiliares não impõem restrições de seleção ao sujeito.
(17)
a. *A pedra acabou na cadeia.
b. *O chiuaua acabou dono de restaurante.6
O verbo acabar não está impondo restrições de seleção ao sujeito, mas sim o
predicado que o segue. Por mais esse critério, acabar pode ser considerado
um auxiliar.
O oitavo teste diz respeito à ausência de restrições de seleção quanto ao
tipo aspectual do complemento para verbos auxiliares:
(18)
O João acabou correndo (atividade) / lendo o livro (accomplishment) /
descobrindo a solução (achievement) / sendo o herói da turma (estado).
Esse é mais um critério de acordo com o qual acabar parece apresentar
comportamento de verbo auxiliar.
O nono teste é sobre a ausência de flexão no infinitivo com verbos
auxiliares. Esse teste se aplica apenas a sentenças que tenham o infinitivo
como complemento. Então, consideraremos apenas a sentença em (10) para
observarmos se esse critério se verifica:
(19)
a. *Os atrasos da reunião acabaram [por enfurecerem os participantes].
Mais uma vez, então, o verbo acabar em foco neste trabalho apresenta
caracterı́stica compatı́vel com o que é posto para os verbos auxiliares.
O décimo teste é sobre a seleção de objeto NP: verbos auxiliares selecionam um NP sem manter o sentido que teriam como verbo pleno. Para
esse critério, consideramos apenas o exemplo em (6), no qual acabar tem
um NP como complemento, mas não mantém seu sentido de verbo pleno, de
terminar algo. Parece, então, funcionar como verbo auxiliar.
O décimo primeiro teste se refere à ausência de forma imperativa com
verbos auxiliares:
6
Idem.
130
(20)
Aline Garcia Rodero-Takahira
a. *Acabe o João na cadeia! / *João, acabe na cadeia.
b. *Acabe o João dono de restaurante / João, acabe dono de restaurante.7
Nessas sentenças a leitura de sujeito que é experienciador, ou, em alguns
casos, como um evento ou uma entidade que faz com que uma segunda
entidade experiencie alguma situação, se perde. Mais especificamente, a
leitura de que algo aconteceu e, no final das contas, a situação terminou
de tal forma se perde. Assim, tem-se mais uma caracterı́stica dos verbos
auxiliares que se mostra compatı́vel com o verbo acabar.
Aspectualizador ou auxiliar? - mais testes
Nesta seção, apresentamos mais alguns testes para definir o estatuto de
acabar enquanto um verbo aspectualizador ou auxiliar. Esses testes foram
feitos com base em Wachowicz (2005).
O primeiro diz respeito ao fato de que “Perı́frases com auxiliar movem-se
em bloco na transformação para passiva..., enquanto outras locuções não
aceitam a passiva...” (Perini 1989:228–239). Nos exemplos que apresentam
um verbo que aceita ser passivizado, vemos que a perı́frase com acabar
move-se em bloco. Dessa forma, podemos dizer que acabar se comporta como
um auxiliar perante esse teste, quando acompanhado por um verbo que pode
ser passivizado:
(21)
a.
a".
b.
O João acabou enfurecido pela Ana.8
O João acabou sendo enfurecido pela Ana.
Os participantes acabaram sendo enfurecidos pela demora da
reunião.
O segundo e terceiro testes apresentados por Wachowicz (2005) já foram
tratados no segundo e terceiro testes abordados na seção anterior.
O quarto teste é sobre a impossibilidade de haver alterações semânticas
de V1 (do verbo auxiliar para uma leitura plena do mesmo verbo) com
intercalações de locativos:
7
8
Idem.
O particı́pio no complemento de acabar com uma by-phrase indica a natureza passiva desse complemento.
Acabar
(22)
a.
b.
c.
d.
e.
f.
131
O João acabou aqui nos Estados Unidos na cadeia.
O João acabou aqui no México dono de restaurante.
A Ana demorou tanto que o João acabou aqui em SP furioso.
O João acabou aqui no RJ enfurecido pela Ana.
A demora da reunião acabou aqui em Miami enfurecendo os participantes.
A demora da reunião acabou aqui em Salvador por enfurecer os
participantes.
Vemos que não há alteração de V1 com intercalações do locativo nos exemplos
em (22a–d), ou seja, o sentido de verbo pleno do verbo acabar não é retomado
nessas sentenças. Temos, sim, a mesma leitura aspectual que terı́amos
sem esse elemento. Então, nesses exemplos, o verbo acabar não exibe o
comportamento de verbos auxiliares. Já nos exemplos em (22e–f), o sentido
de verbo pleno de acabar pode, sim, ser recuperado, mostrando que, nesses
exemplos, ele parece se comportar como um verbo auxiliar em processo
de gramaticalização, podendo exibir diferentes fases em um mesmo corte
sincrônico.9 Dessa forma, esse teste se mostra inconclusivo para verificarmos
o estatuto de acabar.
O quinto teste apresentado mostra que os aspectualizadores promovem
uma restrição na predicação da sentença e operam sobre o intervalo de
tempo denotado pelo verbo principal. Os aspectualizadores de valor pontual,
principalmente, são verbos que ‘diminuem’ o tamanho desse intervalo. Aqui,
observamos que nossos exemplos de (8) a (10) mostram que o verbo acabar
com sua leitura aspectual de fim de fase opera sobre o intervalo de tempo
denotado pelo verbo principal, restringindo o intervalo de tempo para sua
fase final ou para seu resultado. Não é necessário que os aspectualizadores
estejam em perı́frases para promover essa restrição. Aqui, podemos relacionar
também nossos exemplos de (5) a (7), nos quais o verbo acabar apresenta
a mesma leitura aspectual fora de uma perı́frase, também restringindo o
intervalo de tempo para sua fase final ou para seu resultado. Assim, perante
essa distinção proposta por Verkuyl (1999, apud Wachowicz 2005), o verbo
acabar se comporta como um aspectualizador.
O sexto teste discute que tanto os verbos auxiliares como os verbos
aspectualizadores ocorrem como verbo pleno quando em estruturas mono9
Ressaltamos que, no caso de (22e), há a necessidade de uma entonação especı́fica para que o sentido
de verbo pleno do verbo acabar seja recuperado. Seria algo como A demora da reunião aqui em
Brası́lia terminou e isso enfureceu os participantes.
132
Aline Garcia Rodero-Takahira
sentenciais, mas os aspectualizadores apresentam alternância causativa. Para
acabar, temos:
(23)
a. *Na cadeia acabou com o João.
b. *Dono de restaurante acabou com o João.10
Vemos, então, que o verbo acabar não apresenta estrutura causativa, comportandose de forma similar aos verbos auxiliares perante esse teste.
Resumindo os testes apresentados acima
Acabar não apresenta um comportamento uniforme, ora comportando-se
como um verbo auxiliar, ora como um aspectualizador.
Consideramos o verbo acabar em foco neste trabalho como um verbo
aspectual (ou aspectualizador, na terminologia de Wachowicz 2005), uma vez
que é clara a leitura aspectual que esse verbo traz, de que aconteceu alguma
coisa e no fim das contas a situação terminou de tal forma, o que leva a
uma restrição temporal, focando na fase final do evento ou, ainda, em seu
resultado. Em outras palavras, o verbo acabar com sua leitura aspectual de
fim de fase opera sobre o intervalo de tempo denotado pelo verbo principal,
restringindo o intervalo de tempo para sua fase final ou para seu resultado,
como Lunguinho (2009) já havia descrito para os verbos que chamou de
auxiliares aspectuais.
Por conta do número de testes que confirmaram que acabar seria um
verbo auxiliar, consideramos o verbo aspectual acabar um verbo semi-auxiliar,
ou seja, um verbo que apresenta algumas caracterı́sticas dos verbos auxiliares,
mas não todas. Além disso, esse verbo figura não só nas construções em
foco neste trabalho, mas também em outras construções, como verbo pleno
ou com acabar de, por exemplo. Talvez essa seja uma propriedade dos
aspectualizadores em geral. De qualquer forma, essa é uma questão que não
será aprofundada neste trabalho e deverá ser abordada em trabalho futuro.
10
Os demais exemplos também ficaram agramaticais nesse teste, mas não apresentamos todos aqui por
uma razão de espaço.
Acabar
133
Propriedades de alçamento
Nesta seção, apresentamos as caracterı́sticas de construções de alçamento
e controle apresentadas em Davies & Dubinsky (2004). A primeira é que
construções de controle e alçamento têm estruturas temáticas diferentes.
Testamos essa caracterı́stica com as sentenças com acabar, considerando os
exemplos apresentados de (5) a (10) acima:
(24)
a.
b.
c.
d.
e.
f.
Acabou que o João foi parar/ficou na cadeia.
Acabou que o João tornou-se/virou dono de restaurante.
A Ana demorou tanto que acabou que o João ficou furioso.
Acabou que o João foi enfurecido pela Ana.
Acabou que a demora da reunião enfureceu os participantes.
Acabou que a demora da reunião enfureceu os participantes.
Esses exemplos já mostraram que O João, em (24a–d), e a demora da
reunião, em (24e–f), não são argumentos de acabar, mas sim do predicado no
complemento de acabar. O verbo acabar não seleciona argumento externo e,
portanto, se comporta como verbo de alçamento.
A segunda forma de testar se uma construção é de alçamento ou controle é
relacionada às passivas. Nas construções de alçamento, uma sentença com um
complemento passivo é sinônima da mesma sentença com um complemento
ativo. Já vimos que acabar das sentenças (5) a (7) não apresenta um
verbo ao qual se aplique o processo de passivização. Por esse motivo, essas
sentenças não serão submetidas a esse teste. Também não aplicaremos o
teste à sentença em que o complemento de acabar contém um particı́pio,
como em (8), pois esse complemento já está na forma passiva. Esse teste
poderá, então, comprovar o caráter de alçamento das sentenças em que
acabar seleciona uma proposição com um gerúndio ou com ou por+infinitivo
como seu complemento, como em (9) e (10) testados abaixo:
(25)
a.
b.
Os participantes acabaram sendo enfurecidos pela demora da
reunião.
Os participantes acabaram sendo enfurecidos pela demora da
reunião.
Nesses exemplos, a sentença com um complemento passivo é sinônima da
mesma sentença com um complemento ativo. Assim, novamente acabar
nessas sentenças apresenta comportamento de um verbo de alçamento.
134
Aline Garcia Rodero-Takahira
O terceiro argumento é sobre as restrições de seleção do predicado da
oração encaixada. Nas construções de alçamento, quando as restrições
selecionais do predicado da oração encaixada são satisfeitas, a sentença é bem
formada, caso contrário, ela não o é. Como já vimos nos exemplos em (17),
é o predicado encaixado, e não o verbo acabar, que seleciona o argumento
externo.
A quarta caracterı́stica mostra que it utilizado em expressões meteorológicas e there existencial podem ser o sujeito do predicado de alçamento
intransitivo. Não podemos aplicar esse teste já que o português não dispõe
desses tipos de expletivos. No entanto, para alguns autores (cf. Duarte 2003),
em português, expressões meteorológicas e existenciais são licenciadas por
uma categoria vazia do tipo pro que funciona como um expletivo nulo:
(26)
a.
pro Choveu. / b. pro Tem muita gente matriculada no curso.
As sentenças com acabar, correspondentes às formações acima parecem se
comportar da mesma forma, aceitando a ocorrência de um pro expletivo em
posição de sujeito:
(27)
a.
pro Acabou chovendo. / b. pro Acabou que tem muita gente
matriculada no curso.
Dessa forma, mais uma vez, acabar se comporta como um verbo de
alçamento.
O último argumento mostra que construções de alçamento não perdem
seu significado com expressões idiomáticas, enquanto construções de controle
perdem:
(28)
a.
b.
c.
A vaca foi pro brejo. = A vaca acabou indo pro brejo. = Acabou
que a vaca foi pro brejo.
A situação ficou preta. = A situação acabou ficando preta. =
Acabou que a situação ficou preta.
A cobra fumou. = A cobra acabou fumando. = Acabou que a cobra
fumou.
Acabar
135
Small Clauses
Em todos os casos com o verbo acabar em estudo, esse verbo está selecionando
uma small clause como seu complemento, e o argumento interno ou externo
do predicado dessa small clause alça para a posição de sujeito para receber
Caso nominativo e satisfazer EPP, deixando apenas um vestı́gio.
(29)
a.
b.
c.
d.
e.
f.
[IP Os homensi acabaram [SC t i na cadeia]].
[IP O Joãoi acabou [SC t i dono de restaurante]].
[IP O Joãoi acabou [SC t i furioso]].
[IP O Joãoi acabou [SC t i enfurecido pela Ana]].
[IP Os rumos da reuniãoi acabaram [SC t i enfurecendo os participantes]].
[IP A demora da reuniãoi acabou [SC t i por enfurecer os participantes]].
Inacusatividade, auxiliaridade, e propriedades
de alçamento com acabar
Ferreira (2009) estabelece relações entre verbos de alçamento, inacusativos e
auxiliares, considerando os verbos auxiliares como uma subclasse dos verbos
inacusativos, e tratando-os como verbos de alçamento. Ela os divide como
ilustramos abaixo, para melhor visualização:11
(30)
11
Figura feita por nós para melhor visualização da proposta de Ferreira (2009) e localização de acabar
entre os subgrupos.
136
Aline Garcia Rodero-Takahira
Em A, estão os verbos que subcategorizam um CP; em B, aqueles que
subcategorizam um DP; em C, aqueles que subcategorizam uma SC; em D,
estão os verbos auxiliares; em E, os inacusativos; e, em F, estão os verbos de
alçamento.
Dadas as propriedades já descritas das construções com acabar, ao assumirmos a proposta de Ferreira (2009) para a categorização de verbos de
alçamento, inacusativos e auxiliares, precisaremos determinar como, exatamente, o verbo acabar em foco neste trabalho deve ser classificado, visto
que os verbos auxiliares (e aqui assumiremos também os semi-auxiliares /
aspectualizadores) são uma subclasse dos verbos inacusativos, que, por sua
vez, são construções de alçamento.
Primeiramente, já vimos que acabar seleciona apenas um argumento
interno, tratando-se de um verbo inacusativo; e também já vimos que ele
deve ser tratado como um verbo de alçamento padrão nas construções
que analisamos. Assim, ele será representado pela estrutura de verbos de
alçamento.
A autora aponta como inacusativos verbos que subcategorizam um DP,
uma SC, um CP, um VP/infinitivo, gerúndio ou particı́pio ativo ou passivo.
Já mostramos nos exemplos em (29) que acabar seleciona uma SC como
complemento, podendo ter como núcleo uma preposição (um PP), um
substantivo (um NP), um adjetivo (um AP), ou um particı́pio, gerúndio
ou [por] infinitivo. Assim, até aqui, acabar se comporta como um verbo
inacusativo.
Nossos exemplos em (9) e (10) são casos de inacusativos que têm um
complemento nucleado por uma preposição e apresentam uma paráfrase com
uma forma gerundiva. No caso de (10), observamos que a preposição não
barra a subida do argumento externo do verbo encaixado, pois a estrutura
que temos para tal sentença é aquela apresentada em (29f) acima. Assim,
o argumento externo do verbo no complemento de acabar pode ser alçado
para a posição de sujeito superficial. Pelas sentenças que vimos em (9) e
(10), que têm o mesmo significado, acreditamos que a preposição deva ter
um valor aspectual, não barrando a subida do argumento externo do verbo
no complemento de acabar.
Quanto à classificação do verbo acabar entre os verbos que ilustramos em
(30), acreditamos que terı́amos algo como se vê na figura abaixo:
Acabar
137
(31)
O verbo parecer é um verbo ao qual acabar se assemelha bastante
no sentido de apresentar os mesmos tipos de alçamento que aquele verbo
apresenta, o que nos possibilita chamá-los de verbos de alçamento prototı́picos.
Sem muita pretensão, posicionamos esse verbo na intersecção entre A, B e
C, ou seja, excluindo as propriedades de auxiliar representadas em D. Sendo
assim, parecer pode subcategorizar uma SC, um CP ou um DP, porém esse
verbo deve ser melhor avaliado.
Já para o verbo acabar, verificamos haver algumas semelhanças e diferenças com verbos auxiliares e aspectualizadores, como ressaltamos acima.
Portanto, acreditamos que esse verbo deva abranger as mesmas propriedades
que o verbo parecer exibe mais algumas propriedades de verbo auxiliar, o
que deve caracterizá-lo como semi-auxiliar de um tipo aspectual. Sendo
assim, acabar está na intersecção entre A, B, C e D. Logo, acabar pode
subcategorizar uma SC, um CP ou um DP, e apresentar propriedades de
verbos auxiliares. Especulamos, ainda, que talvez seja aı́ que se definem
os aspectualizadores, como um verbo semi-auxiliar, mas pesquisa adicional
precisa ser feita em trabalho futuro para uma definição decisiva acerca de
tais verbos.
Passivas
Comparamos as propriedades de acabar com algumas propriedades das
passivas das lı́nguas naturais, como discutido em Jaeggli (1986). Duas das
três propriedades apontadas por aquele autor são também propriedades dos
verbos inacusativos e, logo, dos verbos de alçamento:
138
Aline Garcia Rodero-Takahira
i) o NP na posição de sujeito não recebe papel-θ; e,
ii) o NP na posição de VP não recebe Caso verbal. É possı́vel estabelecer uma relação entre as sentenças passivas e as estruturas de
alçamento em que acabar pode ocorrer, devido ao fato de verbos
auxiliares e inacusativos apresentarem propriedades de verbo de alçamento, como explicado em Ferreira (2009), e as passivas apresentarem
algumas caracterı́sticas comuns àquelas construções. Assim, obtemos
uma leitura parecida para todas essas construções.
Conclusões
Neste trabalho, analisamos sentenças apresentadas de (5) a (10) acima,
nas quais o verbo acabar traz uma ideia de resultado ou fase final de um
evento, com uma leitura algo aconteceu e, no final das contas, a situação
terminou de tal forma. Mostramos vários testes feitos para definir o estatuto
desse verbo, como auxiliar ou como aspectualizador, porém, esses testes não
apontaram para uma mesma direção. Observamos que acabar não apresenta
um comportando uniforme, ora comportando-se como um verbo auxiliar, ora
como um aspectualizador.
Consideramos o verbo acabar em foco neste trabalho como um verbo
aspectual, uma vez que é clara a leitura aspectual de fim de fase que opera
sobre o intervalo de tempo denotado pelo verbo principal, restringindo o
intervalo de tempo para sua fase final ou para seu resultado. E por conta
do número de testes que confirmaram que acabar seria um verbo auxiliar,
consideramos o verbo acabar aspectual como um verbo semi-auxiliar. Assim,
observamos que o caráter semi-auxiliar pode ser caracterizado por verbos
que apresentam algumas caracterı́sticas dos verbos auxiliares, mas não todas.
Ressaltamos que talvez essa seja uma propriedade dos aspectualizadores em
geral, o que é uma questão que deverá ser abordada em trabalho futuro.
Ainda, há a necessidade de se verificar se todo aspectualizador deve ser um
verbo semi-auxiliar, e se essa classe de verbos semi-auxiliares pode, de fato,
se sustentar como uma classe de verbos. Esse ponto fica para pesquisa futura.
Ainda, o verbo acabar apresenta todas as caracterı́sticas de alçamento
perante os testes propostos por Davies & Dubinsky (2004). Esse verbo está
selecionando uma proposição em todos os exemplos em foco neste trabalho,
uma small clause, e o sujeito lógico da predicação no núcleo dessa small
clause alça para a posição de sujeito superficial.
Acabar
139
O verbo acabar funciona como um verbo inacusativo, selecionando apenas
um argumento interno. Ferreira (2009) prevê que um verbo inacusativo funcione como uma construção de alçamento. Essa autora considera os auxiliares
como um subgrupo dos verbos inacusativos e esses, por sua vez, como um
subgrupo dos verbos de alçamento. Assumimos que os aspectualizadores e
semi-auxiliares encontram-se em uma intersecção, pegando propriedades dos
verbos auxiliares, já que apresentam algumas caracterı́sticas desses verbos.
Por conta disso, prevemos que acabar esteja em uma intersecção entre os
subgrupos de verbos inacusativos, que selecionam uma SC, um CP ou um
DP, e os verbos auxiliares.
Comparamos as propriedades de acabar com algumas propriedades das
passivas das lı́nguas naturais, como discutido em Jaeggli (1986). Duas das
três propriedades apontadas por aquele autor são também propriedades dos
verbos inacusativos e, logo, dos verbos de alçamento: (i) o NP na posição
de sujeito não recebe papel-θ; e (ii) o NP na posição de VP não recebe
Caso verbal. É possı́vel estabelecer uma relação entre as sentenças passivas
e as estruturas de alçamento em que acabar pode ocorrer, devido ao fato
de verbos auxiliares e inacusativos apresentarem propriedades de verbo de
alçamento, como explicado em Ferreira (2009), e as passivas apresentarem
algumas caracterı́sticas comuns àquelas construções. Assim, obtemos uma
leitura parecida para todas essas construções.
Abstract
In this paper, we investigate the syntactic-semantic characteristics of sentences with the
verb acabar and we try to identify the syntactic structure that best represents its formation.
We analyse sentences in which this verb brings the idea of result or final phase of an event,
with the reading something happened and, in the end, the situation ended up in such way,
like in O João acabou na cadeia (‘John ended up in jail’). We try to identify whether, in
these cases, acabar is an auxiliary, semi-auxiliary or aspectual verb. Many tests were done
to define this verb, following Lunguinho (2005, 2009), Ferreira (2009), Wachowicz (2005),
Davies & Dubinsky (2004), Jaeggli (1986), among others. We observe that the verb acabar
considered in this research works as an unacusative verb, then, presents characteristics of
raising verbs, besides a great number of characteristics of auxiliary verbs. The property
of being able to operate over the time interval denoted by the main verb, restricting this
interval to its final fase or its result made us classifying this verb as an aspectualizer. We
predict that acabar is in an intersection among the subgroups of verbs that subcategorizes
a SC, a CP, a DP, and the properties of auxiliary verbs, being possibly characterized as a
semi-auxiliary verb. Then, we propose an analysis for the verb acabar and some sentences
in which it can occur considering formal models for the linguistic analysis.
140
Aline Garcia Rodero-Takahira
Keywords: Aspectualizer; Semi-auxiliar; Auxiliar; Raising; Unnacusative.
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Acabar
141
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Descrição e Análise Preliminar dos
Pronomes Pessoais em
Pykobjê-Gavião (Timbira)
Talita Rodrigues da Silva∗
Resumo
Segundo Rodrigues (2002:49), o Pykobjê-Gavião constitui uma das sete lı́nguas membros do grupo étnico Timbira (Tronco Macro-Jê, Famı́lia Jê). O povo homônimo aprende o Pykobjê-Gavião como lı́ngua
materna. Atualmente, ele é falado por cerca de seiscentas pessoas, divididas em quatro aldeias, situadas
na micro-região de Imperatriz (Maranhão-MA). Ao longo deste artigo, buscaremos descrever e analisar
alguns aspectos morfossintáticos e pragmáticos de uma das classes de palavras distinguı́veis em PykobjêGavião, isto é, a classe fechada dos pronomes. Descreveremos os usos apenas de pronomes pessoais,
que, por sua vez, dividem-se em: pronomes dependentes, pronomes independentes e pronomes enfáticos.
Veremos que os pronomes dependentes sempre se manifestam prefixados a uma base lexical nominal,
verbal, ou, então, prefixados a uma partı́cula marcadora de Caso ergativo ou dativo. A ergatividade, em
Pykobjê-Gavião, é cindida, tendo seu uso canônico relacionado ao tempo passado. Os pronomes independentes tendem a se relacionar aos demais tempos, isto é, presente e futuro, sempre fonologicamente
independentes da base lexical mais próxima. Já os pronomes enfáticos podem aparecer em quaisquer
tempos, desde que a função de foco precise ser marcada. Seus usos mais atestados são em resposta
simples a um pergunta cujo enfoque esteja no sujeito ou em foco contrastivo de sujeito sentencial. Por
fim, observaremos que os pronomes pessoais do Pykobjê-Gavião se distinguem nas marcas de pessoa (1a ,
2a e 3a ) e de número (singular e plural), com a singularidade de apresentar oposição entre 1a pessoal
plural inclusiva e 1a pessoa plural exclusiva.
Palavras-chave: Lı́ngua indı́gena brasileira; Tronco linguı́stico Macro-Jê; Grupo Timbira; Pronomes
pessoais.
∗
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo (DLCV-USP). Este
trabalho foi realizado a partir da pesquisa de mestrado intitulada “Descrição e análise morfossintática
do nome e do verbo em Pykobjê-Gavião (Timbira)”, financiada pela FAPESP (Processo: 2009/038120). E-mail: [email protected].
Pronomes Pessoais em Pykobjê-Gavião (Timbira)
143
Os pronomes pessoais em Pykobjê-Gavião
(Timbira), uma abordagem morfossintática
Para o entendimento da classe dos pronomes, Schachter (2007) esclarece:
O termo proforma é um termo para cobrir diversas classes de palavras fechadas que, dentro de certas circunstâncias, são usadas como
substitutas para palavras pertencentes a classes abertas, ou para
constituintes maiores. De longe, o tipo mais comum de pró-forma
é o pronome, uma palavra utilizada como substituta para um nome
ou um sintagma nominal. Vários subtipos de pronomes podem ser
distinguidos, entre eles, pronomes pessoais, reflexivos, recı́procos, demonstrativos, indefinidos e relativos.1 (Schachter 2007:24. Tradução
nossa.)2
O Pykobjê-Gavião apresenta três subtipos de pronomes pessoais: pronomes prefixais ou dependentes (ligam-se a uma partı́cula, a um verbo ou a um
nome), pronomes livres ou independentes e pronomes enfáticos.3
O pronome dependente (doravante PD) é o que cobre o maior número de
contextos em Pykobjê-Gavião. Um PD pode aparecer prefixado a partı́culas
marcadoras de Caso,4 como {te} e {mỹ} - exs. (1) e (2). Como {te} é a
marca de Caso ergativo cindido a tempo passado, podemos concluir que PD
é a forma canônica para marcar as pessoas do discurso no tempo passado em
contraponto ao tempo presente e futuro, cujas formas pronominais canônicas
serão discutidas adiante.
(1)
aa-te
xoore pro
2PD-ERG raposa pegar
‘Você pegou a raposa’5
(2)
mam
co-mỹ
cö xen
PAS/REM 3PD-DAT água gostar
1
2
3
4
5
Texto original: “The term pro-form is a cover term for several closed classes of words which, under
certain circumstances, are used as substitutes for words belonging to open classes, or for larger
constituents. By far the commonest type of pro-form is the pronoun, a word used as a substitute for
a noun or a noun phrase. Various subtypes of pronouns may be distinguished, among them personal,
reflexive, reciprocal, demonstrative, indefinite and relative.”
Segundo o autor, outras pró-formas possı́veis nas lı́nguas naturais seriam: pró-frases (pro-sentences),
pró-orações (pro-clauses), pró-verbos (pro-verbs), pró-adjetivos (pro-adjectives), pró-advérbios (proadverbs) e pró-formas interrogativas (interrogative pro-forms).
Manteremos a notação ‘pronomes enfáticos’. Seu uso é de tópico oracional, atribuindo a função de
foco.
Para saber melhor como as partı́culas marcadoras de Caso se dispõem em Pykobjê-Gavião, sugerimos
a leitura de Silva (2011).
ERG indica Caso ergativo.
144
Talita Rodrigues da Silva
‘Antigamente ele gostava de água’67
O PD também poderá estar ligado a um membro da classe dos verbos. Neste
caso, ocupará a posição de sujeito se o verbo for intransitivo, como visto em
(3), e de objeto, caso se trate de sujeito transitivo cuja teia semântica aceite
objeto [+humano], tal qual em (4), cujo predicador é popo, que significa ‘ver
pessoa’.
(3)
e’no’ny
aa-te a’cët cỹm
PAS/LEX 2PD-ir mata LOC
‘Ontem você foi à mata’8
(4)
a’craare-te e’-popo
criança-ERG 3PD-ver
‘A criança o viu’
O Pykobjê-Gavião divide os nomes em duas classes principais: nomes
alienáveis e nomes inalienáveis, o que corresponde a uma lı́ngua de tipo 3,9
de acordo com a classificação proposta por Payne (1997) para avaliar a posse
nas lı́nguas naturais. Sobre esta estratégia gramatical de distinção de posse,
o autor esclarece:
Todos os nomes podem ser possuı́dos, mas cada nome se submete a
apenas uma das estratégias. Normalmente os dois tipos de posse são
denominadas posse alienável vs. posse inalienável. A posse inalienável
é usada por praticamente a mesma classe de substantivos possuı́dos
das lı́nguas de tipo 1 como Maasai, e inerentemente possuı́dos nas
lı́nguas de tipo 2 como Seko Padang.10 (Payne 1997:41. Tradução
nossa.)
Quando o nome é de posse inalienável torna-se indispensável que ele
receba um complemento, para que possa ser plenamente interpretado. A
6
7
8
9
10
No tempo futuro, por causa da partı́cula de irrealis ha, a marca de dativo será apagada, como vemos
abaixo:
awca’te ny ce ha co xen
‘Amanhã ele gostará de água’
FUT/LEX PT 3PI IRR água gostar
PAS/REM indica forma lexicalizada para marcar passado remoto. DAT indica Caso dativo.
PAS/LEX indica passado marcado por item lexical. LOC indica locativo.
Payne (1997:40) afirma que há três tipos de lı́nguas no que se refere à marca de posse nominal. São
elas:
Lı́nguas de Tipo 1 distinguem ‘possuı́do’ de ‘não-possuı́do’;
Lı́nguas de Tipo 2 distinguem ‘inerentemente possuı́do’ de ‘opcionalmente possuı́do’;
Lı́nguas de Tipo 3 distinguem ‘posse alienável’ de ‘posse inalienável’.
Texto original: “All nouns can be possessed, but each noun undergoes only one of the strategies.
Usually the two kinds of possession are termed alienable vs. inalienable possession. Inalienable
possession is used for roughly the same class of nouns that are possessable in type 1 languages like
Maasai, and inherently possessed in type 2 languages like Seko Padang.”
Pronomes Pessoais em Pykobjê-Gavião (Timbira)
145
esse tipo de complemento chamamos de “marca de genitivo”. A marca de
genitivo, em Pykobjê-Gavião, pode corresponder a um PD11 (exs. 5 e 6):
(5)
ẽj-kry
hy
1PD-cabeça doerINTR
‘Minha cabeça dói’12
(6)
aa-pejõje cator
2PD-genro sairINTR
‘Meu genro saiu’
Apresentamos abaixo um quadro (ver Tabela 1)13 com todos os pronomes
dependentes recolhidos no Pykobjê-Gavião. Para saber mais sobre a interação
destes pronomes com demais classes de palavras, sugerimos a leitura de Silva
(2012).
Tabela 1 Pronomes dependentes
1a sg.
2a sg
3a sg.
1a pl.
inclusivo
1a pl.
exclusivo
2a pl.
3a pl.
Sujeito
ẽjaae’- / ∅- / come ẽj-
Objeto Direto
ẽjaae’- / ∅me ẽj-
Objeto Indireto
ẽjaacome ẽj-
Marca de Genitivo
ẽjaae’- / ∅me ẽj-
me ẽj-
me ẽj-
me ẽj-
me ẽj-
me aame e’-/∅-/me co-
me aame e’-/me ∅-
me aame co-
me aame e’-/me ∅-
O pronome independente (doravante PI) será usado sempre que o morfema
de tempo/aspecto for não-passado, ou seja, presente ou futuro. Comparemos,
então, o uso do PD (ex. 7) ao do PI (exs. 8 e 9):
(7)
aa-te
xoore pro
2PD-ERG raposa pegar
‘Você pegou a raposa’
(8)
ca xoore pro
2PI raposa pegar
‘Você pega a raposa’
11
Amado (2004:75) aponta para uma distribuição morfofonológica restrita à 3a pessoa, que encontra
relação com fatores lexicais diacronicamente difı́ceis de serem recuperados não só nessa lı́ngua, mas
em outras lı́nguas Timbira e Jê, como Krahô e Suyá. Para conhecer melhor essa discussão, sugerimos
a leitura dessa tese.
12
INTR indica que se trata de verbo monoargumental ou intransitivo.
13
Apresentamos o paradigma de PD de acordo com a distribuição morfossintática que se observa. Os
demais pronomes não parecem sofrer qualquer influência determinada por contexto morfossintático,
por isso não julgamos relevante distinguir seus usos por função sintática.
146
(9)
Talita Rodrigues da Silva
ca ha xoore pro
2PI IRR raposa pegar
‘Você pegará a raposa’14
A subclasse dos PIs será a única permitida para verbo intransitivo estativo
com semântica adjetival (ex. 10), e para frases com predicado não-verbal (ex.
11). Nestes contextos, tempo/aspecto não será relevante:
(10)
mam
wa me caprëc
PAS/REM 1PI PL ser.vermelho/vermelho
‘Antigamente, éramos vermelhos’15
(11)
wa Emperatrex cỹm
1PI Imperatriz LOC
‘Eu estou em Imperatriz’
Além disso, observamos que a subclasse dos PIs atua na distinção Sa (sujeito
de verbo intransitivo com caracterı́stica [+agente]) vs Sp (sujeito de verbo
intransitivo com caracterı́stica [+experienciador]). Enquanto Sa (verbo
intransitivo simples ou estendido16 ) pode aceitar PI (uso canônico, ex. 12)
ou PD (ex. 13) ou ambos (ex. 14):
(12)
cormy wa cato
ASC 1PI partirINTR
‘Acabei de partir’17
(13)
cormy ẽj-cato
ASC 1PD-partirINTR
‘Acabei de partir’
(14)
cormy wa ẽj-cato
ASC 1PI 1PD-partirINTR
‘Eu é que acabei de partir’
Já Sp, exceto aqueles com semântica de adjetivo atributivo, exemplificado
acima (ex. 10), só aceitará PD (ex. 15) ou PD combinado com PI como
argumento (ex. 17):
(15)
14
ry’my’ ẽj-pỹm
DUR 1PD-estar.caı́do/caı́do
IRR indica modo irrealis.
PL indica marca de plural para nomes ou pronomes pessoais.
16
Citaremos apenas exemplos dos predicados simples, para manter a simetria da análise comparativa.
17
ASC indica aspecto semi-completo, similar ao just do inglês.
15
Pronomes Pessoais em Pykobjê-Gavião (Timbira)
147
‘Estou caindo’18
(16)
(17)
*ry’my’ wa pỹm
DUR 1PI estar.caı́do/caı́do
‘Estou caindo’19
ry’my’ wa ẽj-pỹm
DUR 1PI 1PD-estar.caı́do/caı́do
‘Eu é que estou caindo’20
Abaixo, destacamos um quadro com todos os PIs encontrados em PykobjêGavião:
Tabela 2 Pronomes independentes
1a
2a
3a
1a
1a
2a
3a
sg.
sg.
sg.
pl. inclusivo
pl. exclusivo
pl.
pl.
wa
ca
cë / ∅
wa me
co me
ca me
cë me / ∅ me
Por fim, há a subclasse dos pronomes pessoais enfáticos (doravante PE),
cuja função é a de foco. Atestamos dois contextos em que o uso de tais
pronomes pessoais é mais recorrente: resposta simples a uma pergunta qu(ou pergunta de conteúdo, para distingui-la de pergunta polar ou sim/não),
cuja ênfase recaia sobre o sujeito (ex. 18); e foco contrastivo de sujeito
sentencial (exs. 19 e 20) ou de objeto (ex. 21). Em todos os casos observados
parece não haver relevância na distinção de tempo/aspecto.
(18)
18
Pa
jõm-pë cë ha profëssör tow?
WH-PF 3PI IRR professor ser.novo/novo 1PE
‘Quem será o novo professor? Eu’21
DUR indica aspecto durativo.
Utilizaremos * (asterisco) para dizer que tal frase não faz parte do uso difundido pela maioria da
comunidade de fala, o que não quer dizer que a mesma seja totalmente inconcebı́vel ou ininteligı́vel,
devido a restrições de qualquer espécie.
20
Comparando esta frase com (18), observamos que o duplo uso de pronome pessoal confere uma
interpretação de foco ao sujeito sentencial.
21
WH indica pergunta qu- ou wh-, em inglês, para uso de formas como who, what, when, where, etc.
PF indica partı́cula fonte.
19
148
Talita Rodrigues da Silva
(19)
ca aa-te
rop coran
2PE 2PD-ERG onça matar
‘Foi você que matou a onça’
(20)
pa wa ha Emperatrex cỹm
1PE 1PI IRR Imperatriz LOC
‘Eu é que estarei em Imperatriz’
(21)
Ta a’craare-te e’-popo
3PE criança-ERG 3PD-ver
‘Foi ele quem a criança viu’
Apresentamos abaixo o paradigma completo dos pronomes enfáticos.22
Tabela 3 Pronomes enfáticos
1a
2a
3a
1a
1a
2a
3a
sg.
sg.
sg.
pl. inclusivo
pl. exclusivo
pl.
pl.
Pa
ca
ta
me
me
me
me
paa
paa
ca
ta
Conforme observamos a partir do paradigma completo dos três tipos de
pronomes pessoais do Pykobjê-Gavião, eles se distinguem morfossintaticamente em pessoa (1a , 2a e 3a ) e número (singular é o não-marcado, plural é
marcado com {me}). A primeira pessoa do plural pode apresentar distinção
inclusivo/exclusivo, no quadro de PIs, sendo que nos demais casos parece
ocorrer homofonia entre estas duas formas. Por primeira pessoa do plural
inclusiva entende-se falante e ouvinte (pode ou não incluir a terceira pessoa,
descrita na literatura como a não pessoa do ato discursivo). Já o plural
exclusivo refere-se ao falante e não à pessoa do discurso, excluindo, portanto,
o ouvinte.
Algumas considerações
Ao longo dessa seção, exemplificamos e analisamos o quadro dos três subtipos
de pronomes pessoais distinguı́veis em Pykobjê-Gavião, a saber: pronomes
22
Concordamos que a 1a pessoa do sg. manifesta-se foneticamente tal qual Amado (2004) descreveu, no
entanto, parece que sua contraparte plural apresenta alongamento vocálico.
Pronomes Pessoais em Pykobjê-Gavião (Timbira)
149
dependentes (PD), pronomes independentes (PI) e pronomes enfáticos (PE),
com a observação de seus contextos canônicos de uso. Concluı́mos, assim, que
o Pykobjê-Gavião tende a distinguir 1a , 2a e 3a pessoas e número singular
ou plural. Além disso, há diferenciação entre 1a pessoa inclusiva do plural
e 1a pessoa exclusiva do plural no que diz respeito aos pronomes pessoais
independentes.
Abstract
According to Rodrigues (2002:49), Pykobjê-Gavião is one of seven members of the Timbira
family (Macro-Jê Branch, Jê Family). The Gavião people learn it as their first language.
Nowadays, Pykobjê-Gavião is spoken by about six hundred people, who live in four villages,
all of them located in the same Indigenous Territory (Imperatriz, Maranhão-MA). In this
article, we aim to describe and analyze some aspects of the morphosyntax and pragmatics of
pronouns in Pykobjê-Gavião.We will limit our work to a description of personal pronouns,
which constitute a closed class. They can be divided in bound pronouns, free pronouns or
emphatic ones. We will notice that bound pronouns always occur prefixed to a nominal
or a verbal stem, or to a Case marker, which can be ergative or dative. Ergativity in
Pykobjê-Gavião is split in the past tense, therefore, canonical bound pronoun use is linked
to the past tense. Free pronouns tend to be related to non-past tenses, i.e. present or future,
keeping a phonological independency from the stem. Emphatic pronouns may appear in
any tense as long as focus is involved. The most attested uses are as an answer to a simple
question whose focus is on the subject, or, even, as contrastive focus of the sentential
subject. We notice that personal pronouns in Pykobjê-Gavião have distinct person (1st,
2nd or 3rd) and number (singular or plural) forms, and make an opposition between 1st
plural inclusive person and 1st plural exclusive person.
Keywords: Brazilian indigenous language; Macro-Jê Branch; Timbira Group; Personal
Pronouns.
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A Modificação de Grau no Domı́nio
Verbal em Karitiana
Luciana Sanchez-Mendes∗
Resumo
O objetivo deste artigo é apresentar as propriedades semânticas da modificação de grau com o advérbio
pitat ‘muito’ na lı́ngua Karitiana. Defende-se que pitat não se comporta exatamente como outros modificadores de grau investigados na literatura linguı́stica, como o beaucoup ‘muito’ do francês e a lot ‘muito’
do inglês e que a modificação de grau em Karitiana fornece evidências a favor de uma análise escalar
para esse tipo de construção.
Palavras-chave: advérbios; grau; escalas; lı́nguas indı́genas.
Introdução
O objetivo deste artigo é apresentar as propriedades semânticas de uma
construção verbal especı́fica da lı́ngua Karitiana: a modificação de grau com
o advérbio pitat ‘muito’, em sentenças como (1) abaixo:1
∗
Departamento de Linguı́stica da Universidade de São Paulo (DL-USP). Este trabalho faz parte da
pesquisa de doutorado “A expressão adverbial da quantificação de grau em Karitiana”, financiada
pela FAPESP (Proc. no. 2009/17185-8). Agradeço à Luciana Storto pela ajuda na eliciação e análise
dos dados do Karitiana, sem a qual este trabalho não seria possı́vel. Agradecimentos especiais aos
membros do Grupo de Estudos de Semântica Formal da USP e à audiência do Workshop Scalarity in
Verb-Based Constructions pelas valiosas contribuições a este trabalho. Agradeço também à Fapesp e
ao CNPq pelo apoio financeiro. E-mail: [email protected].
1
Sı́mbolos usados: PERF = perfectivo, 3 = concordância de 3a pessoa, DECL = modo declarativo,
NFUT = não futuro, 1 = concordância de 1a pessoa, 1s = pronome de 1a pessoa, 2 = concordância de
2a pessoa, 2s = pronome de 2a pessoa, FUT = futuro, PART = particı́pio, ABS = absolutivo, DUPL
= duplicação, COP = cópula. Todos os exemplos do Karitiana que não apresentam referência foram
coletados por mim com falantes nativos da lı́ngua por meio de elicitação controlada. Trata-se de um
método bastante comum em trabalhos deste tipo, que lidam com questões como gramaticalidade, valor
de verdade e adequação das sentenças. Para maiores informações sobre o método, ver Matthewson
(2004). Agradeço a todos os meus informantes, especialmente Claudiana Karitiana, Cláudio Karitiana,
Edelaine Karitiana, Elivar Karitiana, Inácio Karitiana, Luiz Karitiana, Maria de Fátima Karitiana,
Mauro Karitiana e Nelson Karitiana.
A Modificação de Grau no Domı́nio Verbal em Karitiana
(1)
151
João ∅-na-pytim‘adn-∅
pitat.
João 3-DECL-trabalhar-NFUT muito
‘O João trabalhou muito‘
Os dados da lı́ngua mostram que somente predicados verbais atélicos podem
ser modificados por pitat e que sentenças com esse advérbio são adequadas
em diferentes situações associadas a diferentes dimensões (duração no tempo,
quantidade de vezes, intensidade, velocidade, distância, esforço). Uma
sentença como (1), por exemplo, pode ser usada para descrever que o João
trabalhou muito tempo, ou que o João trabalhou muitas vezes, ou ainda que
o João trabalhou intensamente.
A partir de dados como esse, a questão que se coloca é: quais componentes
de significado de pitat permitem a variabilidade de situações como a descrita
acima? Este trabalho pretende responder a essa questão utilizando como
paradigma teórico a Semântica Formal, tal como descrito em Heim & Kratzer
(1998).
A Semântica Formal investiga o significado das sentenças das lı́nguas
naturais levando em consideração o significado de suas partes e sua estrutura
sintática. O significado de uma sentença está, segundo esse paradigma,
associado a suas condições de verdade. Saber o significado de uma sentença
é saber quais as condições que permitem que essa sentença seja verdadeira.
Não é relevante para a análise o valor de verdade de uma sentença, ou
seja, saber se ela é verdadeira ou falsa, mas saber quais as condições que
fazem a sentença verdadeira. Para expressar o significado das sentenças, a
Semântica Formal utiliza como metalinguagem as ferramentas da lógica e da
matemática (cf. Heim & Kratzer 1998). Portanto, um trabalho como esse
pretende relacionar as sentenças gramaticais de uma lı́ngua às situações nas
quais essa sentença é verdadeira por meio de uma expressão formal, ou seja,
através de sua forma lógica.
Uma vez que este trabalho faz uma investigação semântica de um modificador de grau (pitat ‘muito’), ele está inserido especificamente numa
teoria semântica que envolve escalas e graus (cf. Kennedy 1999, Kennedy &
McNally 2005). Sob essa perspectiva, as teses que se pretende defender aqui
são: (i) pitat não se comporta como outros modificadores de grau analisados
pela teoria linguı́stica, como o beaucoup ‘muito’ do francês e a lot ‘muito’ do
inglês; (ii) a modificação de grau em Karitiana fornece evidências em favor
152
Luciana Sanchez-Mendes
de uma análise escalar para esse tipo de construção; e (iii) a formalização
utilizada nos trabalhos que lidam com escalaridade no domı́nio verbal pode
ser aplicada na análise da modificação de grau de verbos atélicos como
trabalhar, correr e esperar.
Este artigo está estruturado da seguinte forma: na próxima seção, são
apresentadas algumas caracterı́sticas da lı́ngua Karitiana para que o leitor
se familiarize com os dados da lı́ngua; na seção seguinte, são apresentados
os dados do Karitiana com a modificação de grau; e, finalmente, na última
seção a proposta de análise é discutida.
Karitiana
O objetivo desta seção é apresentar algumas caracterı́sticas da lı́ngua Karitiana para que o leitor fique familiarizado com os dados da lı́ngua. Karitiana é
uma lı́ngua indı́gena brasileira do tronco Tupi e da famı́lia Arikém, falada
por aproximadamente 320 pessoas numa reserva localizada no estado de
Rondônia (Storto e Vander Velden 2005). A ordem básica das sentenças na
lı́ngua é complemento-núcleo, ou seja, o padrão dos sintagmas na lı́ngua é de
núcleo à direita. Sentenças não-finitas possuem, portanto, verbo na posição
final. O exemplo (2) abaixo apresenta uma sentença encaixada em que o
verbo oky ‘matar’ aparece não flexionado e na última posição.2 Em orações
finitas, por outro lado, o verbo aparece na segunda posição da sentença. Essa
posição é derivada do movimento do verbo para o núcleo de CP (Sintagma
Complementizador) associado à checagem de traços de pessoa e de tempo
(Storto 1999). O exemplo (3) mostra o mesmo verbo oky ‘matar’ flexionado
e na segunda posição da sentença.
(2)
(Boroja taso
oky tykiri) ∅-naka-hyryp-∅
õwã.
(cobra homem matar PERF) 3-DECL-chorar-NFUT criança
‘Quando o homem matou a cobra, a criança chorou’ (Storto 1999:125)
(3)
Taso ∅-na-oky-t
boroja.
homem 3-DECL-matar-NFUT cobra
‘O homem matou a cobra’ (Storto 1999:125)
2
Segundo Storto (1999), AspP (Sintagma Aspectual) é a única projeção funcional possı́vel em sentenças
encaixadas, como em (2).
A Modificação de Grau no Domı́nio Verbal em Karitiana
153
Todos as sentenças do Karitiana utilizadas como exemplo neste artigo
apresentam o verbo no modo declarativo e tempo não-futuro.3 O modo
declarativo é expresso pelos morfemas {na(ka)-} e {ta(ka)-}. {Na(ka)-} é
o alomorfe usado quando a concordância verbal é de terceira pessoa (que é
expressa pelo morfema zero), enquanto que {ta(ka)-} é usado nos outros casos.
Em sentenças declarativas, os morfemas de não-futuro são: {-t} se o verbo
termina em vogal; e {-∅}, se o verbo termina em consoante. Nas construções
declarativas, os verbos apresentam marcas de concordância, modo declarativo
e tempo na seguinte ordem: pessoa-modo.declarativo-verbo-tempo.4
Em Karitiana, nominais nus aparecem livremente como argumentos. A
lı́ngua não possui artigos (definidos ou indefinidos) nem quantificadores de
domı́nio nominal (como todo ou algum). Os nomes na lı́ngua não possuem
tampouco marcas de plural/singular ou classificadores (Müller et al. 2006). O
exemplo (4) ilustra que tanto nomes contáveis, como jonso ‘mulher’, quanto
nomes massivos, como ese ‘água’, aparecem nus sem qualquer flexão de
número ou quantificador nominal. Os nomes e os verbos têm denotação
cumulativa na lı́ngua (Müller et al. 2006; Müller & Sanchez-Mendes 2008).
Isso quer dizer que eles são neutros em relação a número, podendo ter
denotação singular ou plural. Uma sentença como (4) é apropriada numa
variedade de contextos em que haja uma ou mais mulheres, uma quantidade
indefinida de água, e um ou mais de um evento do tipo buscar.
(4)
Jonso ∅-naka-ot-∅
ese.
mulher 3-DECL-buscar-NFUT água
‘Mulher buscou água’
Literalmente: Um número não especı́fico de mulheres buscou uma
quantidade não especı́fica de água uma quantidade não especı́fica de
vezes.
Modificação de Grau em Karitiana
O objetivo desta seção é apresentar os dados de modificação de grau no
domı́nio verbal em Karitiana com o advérbio pitat ‘muito’. Pitat pode
ser utilizado apenas em sentenças que possuem predicados verbais atélicos.
3
4
As marcas possı́veis de tempo na lı́ngua, segundo Storto (2002), são futuro e não-futuro.
As construções com modo declarativo são consideradas por Everett (2006) como construções de participante de ato de fala (do inglês Speech Act Participant). Como essa questão foge do escopo deste
trabalho, não será discutido qual é o modo mais apropriado de analisar essas construções.
154
Luciana Sanchez-Mendes
Predicados télicos são aqueles que possuem um telos (um final) determinado
lexicalmente, enquanto que os atélicos são os que não o possuem (Vendler
1957). Predicados atélicos podem ser descritos também como verbos que
não estão envolvidos em eventos de mudança (Rothstein 2004). Predicados
atélicos estendı́veis são considerados uma ‘atividade’, enquanto que os não
estendı́veis são chamados de ‘estados’ (Rothstein 2004).5 Os dados (5) e (6)
mostram o uso de pitat com verbos de atividade intransitivos (como pykyn
‘correr’) e transitivos (como pimbik ‘empurrar’).6
(5)
Inácio ∅-na-aka-t
i-pykyn-<a>-t
pitat.
Inácio 3-DECL-COP-NFUT PART-correr-ABS. Muito
‘O Inácio correu muito’
(6)
João ∅-na-pimbik-∅
pitat gooj.
João 3-DECL-empurrar-NFUT muito barco
‘O João empurrou muito o barco’
As sentenças (7) e (8) abaixo apresentam predicados de estado stage-level
e individual-level, respectivamente. Verbos stage-level são predicados que
apresentam estágios temporais. A sentença (7), por exemplo, apresenta o
estágio de Luciana querer água. Predicados individual-level, por outro lado,
representam propriedades gerais de um determinado indivı́duo. O exemplo
em (8) representa um tipo de propriedade de Luciana, que é acreditar em
Deus.
(7)
Luciana ∅-na-aka-t
i-siki’y-t
pitat ese ty.
Luciana 3-DECL-COP-NFUT PART-querer-ABS. muito água OBL
‘A Luciana quis muito água’
(8)
Luciana ∅-na-aka-t
i-kywytidna-t
pitat Botyj?
Luciana 3-DECL-COP-NFUT PART-acreditar-ABS. muito Deus
ty
OBL
‘A Luciana acredita muito em Deus’
5
Essa caracterização baseada no traço estendı́vel ou não está longe de ser incontroversa. Sem entrar muito profundamente na questão, este artigo assume a classificação mais comum encontrada na
literatura semântica sobre o assunto.
6
A sentença (5) apresenta uma construção de cópula. Storto (2009) defende que as sentenças copulares
em Karitiana são bioracionais nas quais o verbo de cópula aka seleciona uma minioração nominalizada
como complemento. Essas sentenças são entendidas como sentenças de alçamento do sujeito da
minioração para uma posição de foco. Seria muito interessante investigar a relação das construções
de foco com a modificação de grau na lı́ngua; no entanto, este será um trabalho futuro.
A Modificação de Grau no Domı́nio Verbal em Karitiana
155
A coleta de dados mostrou que pitat não pode ser usado com predicados
verbais télicos. Predicados télicos podem ser instantâneos (achievements)
ou não (accomplishments). A sentença (9) apresenta um tı́pico verbo de
achievement - horop ep opy ty ‘alcançar o topo da árvore’. O exemplo
em (10) apresenta um predicado verbal de accomplishment que possui uma
duração e um telos determinado.7
(9)
(10)
*João ∅-na-aka-t
i-horop-∅
pitat ep
opy
João 3-DECL-COP-NFUT PART-alcançar-ABS muito árvore topo
ty.
OBL
‘O João alcançou muito o topo da árvore’
*João ∅-na-kaejat-∅
pitat escola.
João 3-DECL-pintar-NFUT muito escola
‘João pintou muito a escola’
Os dados acima mostraram que pitat tem uma distribuição bastante comportada no domı́nio verbal em Karitiana. Ele pode ocorrer com predicados
verbais atélicos (atividades e estados), mas não ocorre com predicados télicos.
Essa distribuição é semelhante à encontrada com outros modificadores de
grau, como a lot ‘muito’ do inglês. No entanto, pitat apresenta uma caracterı́stica não-esperada: ele pode ser usado numa variada gama de situações, ou
seja, as sentenças com pitat podem ser usadas adequadamente em contextos
diversos.
Situações nas quais a sentença (5) pode ser usada: (i) O Inácio correu por
muito tempo (em uma ocasião); (ii) O Inácio correu em alta velocidade (em
uma ocasião); (iii) O Inácio correu uma longa distância (em uma ocasião);
(iv) O Inácio correu muitas vezes; (v) O Inácio correu uma vez, com muita
intensidade, fazendo muito esforço.
Situações nas quais a sentença (6) pode ser usada: (i) O João empurrou
o barco por muito tempo (em uma ocasião); (ii) O João empurrou o barco
em alta velocidade (em uma ocasião); (iii) O João empurrou o barco por
uma longa distância (em uma ocasião); (iv) O João empurrou o barco muitas
vezes; (v) O João empurrou o barco uma vez, fazendo muita força.
7
Nesse tipo de predicado accomplishment, a medida do evento está relacionada à medida do objeto.
Assim, um evento de pintar a Escola da Aldeia (kaejat escola) estará terminado quando a escola
estiver toda pintada.
156
Luciana Sanchez-Mendes
Situações nas quais a sentença (7) pode ser usada: (i) ‘A Luciana quis
água por muito tempo (em uma ocasião)’; (ii) ‘A Luciana quis água muitas
vezes’; (iii) ‘A Luciana quis muito água (estava com muita sede)’.
Situações nas quais a sentença (8) pode ser usada: (i) ‘A Luciana acreditou
em Deus por muito tempo’; (ii) ‘A Luciana acreditou em Deus muitas vezes’;
(iii) ‘A Luciana acreditou em Deus com muita fé’.
É importante notar que as interpretações descritas acima são independentes, ou seja, não é o caso de que uma pode ser derivada da outra. Por
exemplo, em uma situação em que o Inácio correu em alta velocidade, mas
por uma curta distância e apenas uma vez, a sentença (5) pode ser usada.
Um outro fato surpreendente que se nota na análise das leituras e da
distribuição de pitat é a sua possibilidade de estar associado a leituras
iterativas com predicados atélicos, mas não com predicados télicos - que são
mais comumente associados com a iteratividade, como será demonstrado
abaixo.
Esta seção apresentou a distribuição de pitat em Karitiana, bem como as
interpretações possı́veis das sentenças em que este ocorre. Pitat só ocorre
em sentenças com predicados verbais atélicos e seu uso está associado a uma
variedade de interpretações possı́veis. Portanto, uma análise apropriada para
esse advérbio tem que explicar essas duas caracterı́sticas: (i) restrição de uso
com predicados atélicos; e (ii) capacidade de expressar um grau acima do
normal em diversas dimensões escalares. A próxima seção explora algumas
hipóteses e apresenta uma análise para essas propriedades.
Proposta
Esta seção apresenta uma proposta de análise para o advérbio de grau pitat
que visa a explicar as suas caracterı́sticas apresentadas na seção anterior. A
primeira parte da seção explora e descarta a hipótese de que esse tipo de
modificação de grau em Karitiana possa ser explicada por meio da distinção
contável-massivo do domı́nio verbal. Na segunda parte, uma análise baseada
numa semântica de graus e escalas é apresentada. Defende-se que pitat é um
modificador de grau de predicados de escalas abertas que possuem dimensões
indeterminadas.
Modificadores com noção de grau normalmente possuem uma distribuição
A Modificação de Grau no Domı́nio Verbal em Karitiana
157
sensı́vel à distinção contável-massivo do domı́nio ao qual se aplicam. Much
e many ‘muito’, do inglês, são os exemplos clássicos: much é utilizado com
nomes massivos, enquanto many ocorre com nomes contáveis (Chierchia
1998). Assim, pode-se sugerir que a distribuição de pitat possa ser explicada
por uma regularidade similar. O advérbio beaucoup ‘muito’, do francês, foi
analisado por Doetjes (2007) nesses termos.
Segundo Doetjes (2007), beaucoup pode ser usado tanto com predicados
verbais télicos quanto atélicos. Ela assume, seguindo Bach (1986), que predicados verbais télicos são contáveis enquanto que os atélicos são massivos.
Quando beaucoup é usado com predicados télicos, a sentença tem interpretação iterativa devido à natureza contável do predicado verbal. A sentença
(11) apresenta o predicado télico aller au cinema ‘ir ao cinema’ e possui
interpretação iterativa, ou seja, de ocorrência de muitos eventos.
(11)
Sylvie va beaucoup au cinema.
‘Sylvie vai muitas vezes ao cinema’
(Doetjes 2007:1)
Por outro lado, sentenças com beaucoup e predicados atélicos podem ter
tanto interpretação iterativa quanto interpretação de grau.8 A sentença (12),
por exemplo, com o verbo pleuvoir ‘chover’ pode ser usada num contexto em
que choveu muitas vezes ou em que choveu intensamente (por muito tempo).
(12)
Il a plu beaucoup.
‘Choveu muitas vezes’ / ‘Choveu intensamente’
(Doetjes 2007:2)
Segundo Doetjes (2007), quando sentenças como (13) possuem interpretação
de grau, ela está disponı́vel por meio da natureza massiva do predicado verbal
e, quando possuem interpretação iterativa, é porque ocorreu uma mudança
no predicado de massivo pra contável.
A análise oferecida para o beaucoup não é totalmente adequada para
explicar os dados do Karitiana. Beaucoup possui um comportamento dicotômico nas suas interpretações; logo, faz sentido que ele seja explicado por uma
regra binária, como a distinção contável-massivo. Pitat, por outro lado, não
possui um comportamento semelhante. Em primeiro lugar, ele possui uma
distribuição restrita a predicados atélicos, considerados massivos na proposta
8
Não está claro o que exatamente a autora quer dizer com interpretação de grau. Ao que parece, ela
está associada a algo como intensidade. No entanto, num exemplo como (13), a interpretação mais
proeminente, segundo falantes nativos do francês consultados, é a de que choveu por muito tempo.
158
Luciana Sanchez-Mendes
de Doetjes (2007), e é incapaz de derivar uma leitura iterativa com verbos
télicos. Além disso, seu uso com esses predicados não está associado a um par
de interpretações, mas a pelo menos três.9 Não parece apropriado dizer que
uma interpretação, a iterativa, seja explicada por uma regra de mudança de
predicado e as demais por outra regra. A proposta que se pretende defender é
a de que todas as interpretações são geradas por meio da modificação de grau.
A interpretação iterativa é apenas mais uma interpretação presente nesse
tipo de operação, tanto quanto as outras. A iteratividade será considerada
uma dimensão escalar, e não uma operação no domı́nio verbal que compete
com a modificação de grau.
Defende-se aqui que uma proposta baseada em estruturas escalares é
o modo mais apropriado para se analisar as sentenças do Karitiana com
molificação de grau.10 A modificação de grau pode ser entendida como
uma operação sobre predicados que são graduáveis. Predicados graduáveis
possuem uma estrutura escalar. No modelo de Kennedy (1999), uma escala é
metaforicamente uma reta formada por graus ordenados numa determinada
dimensão (que pode ser peso, altura, temperatura, comprimento, entre
outras).
As escalas são divididas em dois tipos: abertas e fechadas. Escalas abertas
são aquelas que não possuem um grau mı́nimo ou máximo. Alto, por exemplo,
é um adjetivo de escala aberta, uma vez que não há lexicalmente definido
um grau mı́nimo ou máximo para algo ser considerado alto. Por outro
lado, as escalas fechadas possuem um grau mı́nimo e um grau máximo. Por
exemplo, cheio e vazio são adjetivos de escala fechada. A escala associada a
esses adjetivos - suponhamos que seja ocupação - possui um grau mı́nimo,
associado a vazio, e um grau máximo, associado a cheio.11
Predicados verbais télicos, por possuı́rem um ponto final determinado
lexicalmente, podem ser associados a predicados de escala fechada; enquanto
que os atélicos, por sua vez, a predicados de escala aberta (Caudal & Nicolas
2005). Uma vez que pitat ocorre apenas com predicados atélicos, pode-se
dizer que esse modificador de grau tem uma restrição em sua distribuição.
9
Como será defendido mais adiante, pelo menos três interpretações estão disponı́veis nas sentenças com
pitat: duração no tempo, muitas ocorrências do evento e intensidade.
10
É importante lembrar que a interpretação de grau já era analisada com uso da noção de escalas em
Doetjes (2007).
11
Há adjetivos de escala fechada que têm apenas um dos polos fechados. Por exemplo, silencioso e
barulhento são fechados apenas no grau mı́nimo representado pelo silencioso, enquanto que perigoso
e seguro são fechados apenas no grau máximo representado por seguro.
A Modificação de Grau no Domı́nio Verbal em Karitiana
159
Ele só pode aparecer com predicados de escala aberta. Esta é exatamente a
mesma restrição do advérbio very ‘muito’ do inglês, que só pode modificar
adjetivos deverbais de escala aberta (Kennedy & McNally 2005).12
Essa restrição quanto ao tipo de escala associada ao predicado ajuda a
entender porque pitat não é apropriado pra descrever contextos iterativos
com sentenças com predicados verbais télicos. O que ocorre é que sentenças
com esse tipo de predicado mais pitat simplesmente não derivam nenhuma
leitura, pois são agramaticais. A restrição, nesse caso, é distribucional, e não
semântica.
Uma vez identificada uma forma de se explicar a distribuição de pitat de
acordo com uma classificação escalar, é preciso tentar explicar como as diversas interpretações são geradas nas sentenças em que ocorre. Intuitivamente,
há uma diferença entre a modificação de grau no domı́nio adjetival e no
domı́nio verbal. Quando se faz uma modificação do tipo ‘muito bonito’, está
claro que a dimensão da escala é dada pelo significado lexical do adjetivo: a
escala de beleza. No entanto, em sentenças como ‘O homem trabalhou muito’,
a escala apropriada para avaliação das condições de verdade da sentença não
é óbvia, mas deve ser buscada no contexto.
Essa intuição é adequadamente capturada pela teoria linguı́stica que
assume graus e estruturas escalares. As escalas formadas em construções com
adjetivos são escalas que estão disponı́veis por meio do léxico (cf. Kennedy
1999).13 Já os verbos de atividade,14 como é o verbo trabalhar, não codificam
lexicalmente uma escala (cf. Rappaport Hovav & Levin 2010). Não há uma
escala “trabalharidade” lexicalmente associada ao predicado verbal trabalhar.
Isso não quer dizer, no entanto, que as construções verbais desse tipo não
possam ser relacionadas a uma escala. A proposta adotada aqui é a de que
as escalas, nesse caso, são construı́das contextualmente. No caso de trabalhar,
as escalas podem ser, por exemplo, tempo de duração, quantidade de vezes
ou empenho.
Essa variedade de escalas, embora pareça ampla demais, está disponı́vel
pelo instrumental formal dos estudos de grau pelo que Kennedy & McNally
12
Ver Kennedy & McNally (2005) para mais detalhes.
É por isso que há uma semelhança entre os adjetivos e as escalas a eles relacionadas. O adjetivo alto,
por exemplo, está associado à escala de altura; já o adjetivo feliz à escala de felicidade; e assim por
diante.
14
As autoras trabalham apenas com os verbos de atividade, mas sua proposta será adotada aqui também
para os verbos estativos.
13
160
Luciana Sanchez-Mendes
(2005) chamam de indeterminância. Esta última é entendida como a possibilidade de um predicado ser compatı́vel com escalas de várias dimensões,
que são estabelecidas pelo contexto. Os vários aspectos do significado de um
verbo que podem ser medidos podem ser usados para fixar os parâmetros das
dimensões das escalas.
Para formalizar a interpretação de pitat, assume-se que os verbos atélicos
podem possuir um argumento de grau, embora ele não esteja presente em
seu léxico (cf. Caudal & Nicolas 2005). O argumento de grau é fornecido
pela função DegP (13), que pega um predicado de eventos simples e devolve
uma relação entre graus e eventos. Para capturar a indeterminância da
escala, a função de medida µ é a variável da dimensão que é preenchida
contextualmente (cf. Krifka 1998, Thomas 2009).15 Logo, um verbo simples
como pykyn ‘correr’ pode ter uma forma graduável (Vdeg) como em (14),
em que a função µ pode ser substituı́da por duração temporal, iteratividade,
velocidade, distância ou intensidade.16
(13)
[[ DegP ]] = λP<s,t> . λd. λe. P(e) & µ(e) = d
(14)
[[ pykyndeg ]] = λd. λe. correr (e) & µ(e) = d
A função DegP é necessária porque funciona como restrição no domı́nio
do modificador de grau pitat em Karitiana. Como demonstrado acima,
pitat pode ocorrer apenas em sentenças com predicados atélicos. Assume-se,
portanto, que DegP é uma função que pode ser aplicada aos predicados
atélicos a fim de fornecer-lhes um argumento de grau. Propõe-se, finalmente,
a seguinte entrada lexical para o modificador de grau pitat:
(15)
[[ pitat ]] = λG<d,<s,t» . G ∈ Vdeg . λe. ∃d [ d > N & G (d) (e) ]
onde: N = grau normal da escala
Conclusões
Embora os verbos atélicos não sejam tradicionalmente investigados pelos
estudos de escalas, analisamos a modificação de grau nesses contextos for15
Thomas (2009) utiliza a função µ para dar conta dos usos das estruturas comparativas da lı́ngua
Mbyá em diferentes domı́nios. Acreditamos que sua ideia pode ser usada aqui para representar a
indeterminância da escala.
16
Estou assumindo a proposta de Kratzer (2006) de que o argumento externo é inserido na sintaxe, por
isso o argumento evento e o argumento de grau são os únicos argumentos do predicado na fórmula.
A Modificação de Grau no Domı́nio Verbal em Karitiana
161
necendo argumentos de que é possı́vel explicar os dados do Karitiana por
meio de uma semântica de grau. A distribuição de pitat com predicados de
escala aberta e seu uso em uma variedade de situações mostrou evidências
para uma análise com escalas, em vez de uma proposta baseada na distinção
contável-massivo do predicado verbal (cf. Doetjes 2007).
Abstract
This article presents the semantic properties of degree modification with the adverb pitat
‘a lot’ in Karitiana. The main claims are that pitat does not have the same behavior of
other degree modifiers already analyzed in the linguistic literature as beaucoup ‘a lot’ in
French and a lot in English and that the degree modification in Karitiana supports a scalar
analysis for this kind of construction.
Keywords: adverbs, degree, scales, indigenous languages.
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Verbos Intransitivos Alternantes em
Karitiana à Luz da Teoria de
Estrutura Argumental de Hale &
Keyser (2002)
Ivan Rocha∗
Resumo
Este trabalho é uma análise formal fundamentada na proposta teórica de Hale & Keyser (2002) para
verbos intransitivos em Karitiana. Tem-se como meta fazer uma descrição morfossintática dos verbos
intransitivos alternantes, orientada por uma teoria formal de estrutura argumental. Pretende-se mostrar
que todos os verbos intransitivos nesta lı́ngua apresentam uma estrutura alternante que realiza a alternância causativo-incoativa, de modo que não há distinção entre verbos do tipo inergativo e inacusativo
em Karitiana. Essses verbos intransitivos causativizam-se com o auxı́lio de um morfema causativo {m-}
que permite a adição de um argumento externo à estrutura, aumentando-lhes a valência verbal.
Palavras-chave: Karitiana; Estrutura Argumental; Alternância Verbal.
Introdução
A meta deste trabalho é mostrar que todos os verbos intransitivos em
Karitiana (lı́ngua do grupo Tupi, famı́lia Arikem, falada em Rondônia por
aproximadamente 400 falantes) são alternantes. Essa é uma lı́ngua na qual
todos os verbos intransitivos têm o mesmo comportamento sintático, de modo
que verbos como otam ‘chegar’ e terektek ‘dançar’ têm a mesma estrutura.
Assim, a lı́ngua não faz distinção sintática entre verbos do tipo inacusativo
e inergativo, que na literatura especializada é conhecida como a distinção
inacusativo-inergativa. Esse é o fato que delineia a pergunta central do artigo
∗
Departamento de Linguı́stica da Universidade de São Paulo (DL/USP). Este trabalho faz parte da
pesquisa de mestrado orientada pela Professora Dra. Luciana Storto, financiada pelo CNPq (Proc.
No 134949/2009-9). E-mail: [email protected].
164
Ivan Rocha
e também o que justifica usar a proposta teórica de estrutura argumental de
Hale & Keyser (2002) para responder a essa pergunta.
Contudo, ressalta-se que foram descritos por Rocha (2011a) dois tipos
de verbos intransitivos alternantes: (i) os intransitivos alternantes ‘simples’,
por exemplo, otam ‘chegar’, ke’on ‘esfriar’, tarak ‘andar’ etc.; e (ii) os verbos
intransitivos que projetam um objeto oblı́quo opcional com sujeito experienciador, por exemplo, so’oot ‘ver’, hõroj̃ ‘mentir’, sondyp ‘saber’ e pyting
‘querer’, entre outros. Esses verbos intransitivos com objeto oblı́quo são analisados como sintaticamente intransitivos, mas semanticamente transitivos; e,
por tratar-se de uma subclasse especial de verbos intransitivos alternantes
em Karitiana, será discutida em outro trabalho (cf. Rocha 2011b). Portanto,
ater-se-á apenas à primeira subclasse de intransitivo.
Pressuposto teórico
Assume-se a proposta teórica de Hale & Keyser (2002), na qual são propostos
quatro tipos de projeções lexicais para as lı́nguas naturais. Dentre essas
quatro estruturas, apresentar-se-á a estrutura de projeção lexical diádica composta (composite dyadic). A relação estrutural estabelecida nesta estrutura
é de um núcleo que projeta um especificador e um complemento, formando
uma estrutura complexa na qual o especificador do núcleo verbalizador V2 é
projetado por exigência semântica do complemento R. Verbos com este tipo
de estrutura são formados a partir de raı́zes predicativas:
(1)
O dia clareou.
(2)
O Sol clareou o dia.
(3)
O pote quebrou.
(4)
Pedro quebrou o pote.
165
Verbos Intransitivos Alternantes em Karitiana
(4)
(a)
V2
DP
o dia
(b)
V2
V2
clarear
V1
V1
clarear
clarear
V2
DP
o dia
V2
V2
R
clarear
A estrutura exposta em (4a) descreve a contraparte intransitiva (1).
Uma raiz R predicativa, que projeta um especificador (DP de V2 ) interno à
estrutura, funde-se ao núcleo V2 , formando o verbo do tipo clarear intrans . A
estrutura (4b) descreve o processo de formação da contraparte transitiva de
clarear. Nesta última, o verbo clarear trans em V2 funde-se com V1, núcleo
mais alto na estrutura. O elemento presente no DP especificador de V2 faz a
função sintática de sujeito quando se trata de uma estrutura intransitiva, mas
passa a funcionar como objeto na versão transitiva. Ressalta-se que o par (3)
e (4) apresenta o mesmo processo visto no par (1) e (2). A operação sintática
de fusão de núcleos e complementos em c-comando mútuo é chamada de
operação de conflation por Hale & Keyser (2002).
Conflation é um processo proposto por Hale & Keyser, semelhante ao
processo de incorporação de Baker (1988). O núcleo no qual o complemento
funde-se deve ser vazio ou fonologicamente defectivo (afixal). O processo é
utilizado tanto para derivação de um verbo a partir de uma raiz (R) como
para o processo de aumento de valência verbal.1 Esclarece-se que conflation
não é movimento e, portanto, não deixa vestı́gio (trace).
Nesta proposta teórica, o argumento externo (Agente ou Causa) está fora
da estrutura argumental, e é adicionado ao verbo na sintaxe via adjunção ao
VP para cumprir um requerimento sintático. Este posicionamento teórico é
adotado por vários autores formalistas, tais como Chomsky (1995), Kratzer
(1996) e Pylkkänen (1999), que apresentam uma visão compátivel com a de
Hale & Keyser (2002).
Conforme a proposta teórica utilizada, um verbo é formado a partir de
uma raiz R e de um ou mais núcleos verbais (V1 e V2). A raiz carrega
1
Não serão discutidos os processos de derivação e de aumento de valência verbal no presente trabalho.
166
Ivan Rocha
os traços semânticos e fonológicos do verbo. As propriedades de uma raiz
associadas às propriedades dos núcleos verbais vão projetar as estruturas de
um verbo. São essas propriedades que irão determinar se um verbo realizará
alternância de transitividade ou não. Esses núcleos verbais e as estruturas
nas quais eles ocorrem estão diretamente relacionados à valência dos verbos
e ao seu comportamento sintático (cf. Hale & Keyser, 2002).
Alternância verbal em Karitiana
Os verbos intransitivos, em Karitiana, concordam com o sujeito (marca de
concordância absolutiva) e sempre permitem a alternância do tipo causativoincoativo. As evidências morfossintáticas para definir se um verbo é transitivo
nesta lı́ngua, além da marca de concordância absolutiva, são a causativização
(um tipo de transitivização) de verbos intransitivos; a agramaticalidade de
sua ocorrência com o morfema de passiva {a-}; e sua ocorrência no núcleo
do complemento da cópula (Rocha 2011a).
A causativização via morfema {m-}, identificado por Landin (1984) e
descrito por Storto (2001), é utilizada para transitivizar verbos intransitivos,
permitindo a adição do argumento externo à sentença via adjunção sintática,
aumentando a valência verbal dos verbos alternantes (cf. Rocha 2011a).
A construção de cópula em Karitiana é apontada por Storto (2002),
e depois confirmada por Rocha (2011a), como uma das evidências para
classificar vebos na lı́ngua. Storto assume que as sentenças copulares são
bioracionais em Karitiana, já que o verbo cópula seleciona um complemento
oracional na forma de uma minioração (Small Clause), tendo como núcleo
um nome (N), um adjetivo (A) nominalizado ou um verbo sintaticamente
intransitivo também nominalizado (cf. Storto 2008, 2010).
Dados para análise
Verbo intransitivo otam ‘chegar’ no modo assertivo (VS):
(5)
2
a.
Ø-pyry-otam-<y>n
João
3-DECL-chegar-NFUT João
‘João chegou’2
Glosas: ASSERT: modo assertivo; CAUS: morfema causativo; PASV: morfema de passiva; NFUT:
Verbos Intransitivos Alternantes em Karitiana
167
Verbo intransitivo otam com morfema de passiva {a-} no modo assertivo
(VS):
(6)
a. *pyraotamyn
João
Ø-pyr-a-otam-<y>n João
3-asser-PASV-chegar-NFUT João
Verbo intransitivo otam sendo transitivizado via {m-} no modo assertivo
(VOS):
(7)
a.
Ø-pyry-m<b>-otam-<y>n
João yn
3-ASSERT-CAUS-chegar-NFUT João eu
‘Eu fiz João chegar’
Verbo intransitivo otam sendo passivizado via {a-} no modo assertivo:
(8)
a.
João
Ø-pyry-a-m<b>-otam-<y>n
3-ASSERT-PASV-CAUS-chegar-NFUT João
‘Fizeram o João chegar’
No paradigma verbal acima (5)–(7) para o verbo otam ‘chegar’, foi apresentado como um verbo intransitivo do tipo ‘inacusativo’ alternante. O verbo
otam alterna via morfema {m-}, tal como pode ser visto ao comparar o
par (5) e (7). Nota-se que, em (7), foi adicionado o argumento externo
(Causa) ao verbo intransitivo em (5). A um verbo intransitivo, não é possı́vel
aplicar uma passivização {a-}, pois ao fazê-lo a construção fica agramatical,
conforme apresentado em (6). No entanto, é possı́vel aplicar o morfema {a-}
a um verbo do tipo otam, como em (8), após ter sido causativizado como em
(7).
Verbo intransitivo terekterek ‘dançar’ no modo assertivo (VS):
(9)
a.
Ø-py-terekterek-a-n
taso
3-ASSERT-dançar-VT-NFUT homem
‘O homem dançou’
Verbo intransitivo com morfema de passiva {a-} no modo assertivo:
(10)
a. *pyraterekteregngan
taso
Ø-pyr-a-terekterek-a-n taso
3-ASSERT-dançar-VT-NFUT homem
marca de tempo não-futuro; 1,2,3: marcas de concordância, primeira, segunda e terceira pessoa,
respectivamente; VT: vogal temática; V: verbo; S: sujeito; O: objeto.
168
Ivan Rocha
Verbo intransitivo sendo transitivizado via {m-} no modo assertivo (VOS):
(11)
a.
y-py-m-terekterek-a-n
yn taso
1-ASSERT-CAUS-dançar-VT-NFUT eu homem
‘O homem me fez dançar’ / contexto: ‘o homem me dançou’
Verbo intransitivo transitivizado via {m-} no modo assertivo (VOS):
(12)
a.
y-py-m-terekterek-a-n
hyryj̃ hãraj̃
1-ASSERT-CAUS-dançar-VT-NFUT música boa
‘A boa música me fez dançar’
A lı́ngua Karitiana não apresenta a distinção inacusativo-inergativa; nesse
caso, todos os verbos intransitivos têm o mesmo comportamento sintático.
Assim, todos os intransitivos nesta lı́ngua comportam-se, sintaticamente,
como os verbos inacusativos alternantes. O verbo terekterek ‘dançar’, assim
como o verbo tarak ‘andar’, kĩkin ‘gritar’ - que são verbos descritos na
literatura formal como inergativos -, têm o mesmo comportamento que os
verbos otam ‘chegar’, oky ‘morrer’, ke’on ‘esfriar’, kerep ‘crescer’ - que são
verbos tipicamente inacusativos. Ao comparar o exemplo (9) com os exemplos
(11) e (12), verificar-se-á que eles se comportam como um verbo do tipo otam
em (5). Adicionou-se um Agente (11) ou Causa (12) ao verbo por meio do
morfema causativo {m-}.
A seguir, estão listados em uma tabela os verbos intransitivos com o
mesmo comportamento dos verbosotam e terekterek, cujos paradigmas foram
apresentados acima, todos esses verbos apresentam um comportamento
sintático dos inacusativos do tipo alternante:
Número
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
11.
Raiz intransitiva
´a
´edn
´ywyn
ahy
aky
amy
andyj
angat
anin
boryt
botit
tradução/significado da raiz
‘fazer’
‘engravidar’
‘desaparecer’
‘beber’
‘estourar’
‘vestir’
‘sorrir’
‘levantar (-se)’
‘acender’
‘sair’
‘abandonar’
Verbos Intransitivos Alternantes em Karitiana
12.
13.
14.
15.
16.
17.
18.
19.
20.
21.
22.
23.
24.
25.
26.
27.
28.
29.
30.
31.
32.
33.
34.
35.
36.
37.
38.
39.
40.
41.
42.
43.
44.
45.
46.
47.
48.
49.
50.
51.
52.
53.
54.
by´a
eng
geryt
haadn
haap
hadn okoki
hej
heren
hibmin
hip
hop
hy´yt
hydnyn sara´it
hyrygnim
hỹryj̃
hyryp
hyt
hywa
indo
jẽ´yn
jygng
kaj
karan
ke´on
kerep
kĩkin
kirigng
kyrysir
kyyt
moj̃
mojt̃yj̃
nam
neng
non
nyryj̃
õgon
ohit
oky
ongowot
opi´owop
opipydn
osoposiik
otidn
‘fazer’
‘vomitar’
‘sangrar’
‘falar’
‘amanhecer’
‘emudecer’
‘ir embora’, ‘deixar’, ‘abandonar’
‘aparecer’
‘assar’
‘cozinhar comida em geral’
‘quebrar (1 objeto - em vários pedaços)’
‘envelhecer’
‘cheirar mal’
‘engasgar’
‘cantar’
‘chorar’
‘cheirar bem’
‘brilhar’
‘ficar pronto’, ‘aprontar’
‘roncar’
‘ficar’
‘sonhar’
‘virar’
‘esfriar (-se)’
‘crescer’
‘gritar’
‘assustar’
‘amarelar’
‘derramar’
‘anoitecer’
‘entardecer’
‘feder’
‘deitar (-se)’
‘contorcer’, ‘entortar’, ‘ficar torto’
‘acordar (-se)’
‘engrossar’
‘pescar’
‘morrer’, ‘apagar’
‘entristecer’
‘ensurdecer’
‘ter fome’
‘pentear cabelo’
‘doer’
169
170
Ivan Rocha
55. otidn
‘arder’
56. owi
‘morrer (plural)’
57. pa´it
‘brigar’
58. pakõrong
‘endurecer’, ‘criar crosta’
59. pakybm
‘suar’
60. pikowogng
‘deslizar’
61. pipogon(a)
‘clarear’
62. pipop
‘queimar (lenha, etc.)’
63. pok
‘secar’
64. pom
‘beijar’
65. pon
‘atirar’, ‘caçar’
66. poom
‘brincar’
67. pop
‘apagar (fogo)’, ‘morrer’
68. pot
‘quebrar (objeto em 2 pedaços)’
69. potpot
‘ferver’
70. py´ej
‘estudar’, ‘ler’, ‘escrever’
71. py´ỹwyt
‘desmaiar’
72. pyhĩriwa
‘apontar’, ‘mirar’
73. pyke
‘buscar’
74. pyki
‘buscar (variante de {pyke})’
75. pymyn
‘ficar ocupado’
76. pyndak
‘pilar (milho)’
77. pyt´y
‘comer’
78. pyyk
‘acabar’
79. sara´it
‘cansar’
80. se´ak
‘ter sede’
81. se´y
‘beber’
82. sembok
‘molhar’
83. signg
‘vencer’
84. siik
‘pentear’, ‘alisar’
85. sikirip
‘enlouquecer’
86. so
‘ficar’
87. som
‘avermelhar’ / ‘amadurecer’
88. syk
‘azedar’
89. syypowop
‘cegar’
90. taktagng
‘nadar’
91. tam
‘voar’
92. tarak
‘andar’
93. tat
‘ir’, ‘ir embora’
94. tepyk
‘mergulhar’
95. terekteregng ‘dançar’
96. timtim(a)
‘tossir’
97. yryt
‘chegar’, ‘vir’, ‘trazer’
98. yt
‘nascer (pessoas e animais-animados)’
(Tabela adaptada de Rocha 2011a)
171
Verbos Intransitivos Alternantes em Karitiana
Análise formal dos dados
Os verbos da lı́ngua Karitiana apresentados podem ser descritos pela estrutura diádica composta, dentro da proposta teórica de Hale & Keyser (2002).
Consideram-se as sentenças em Karitiana já representadas em (5) e (7), e repetidas abaixo, renumeradas para análise como (13) e (14), respectivamente:
(13)
pyryotamyn João
(14)
pyrymbotamyn João yn
(15)
(a)
(b)
V2
NP
João
V2
V2
V1
V2
V1
R
otam otam
m-otam
NP
João
V2
V2
R
otam
A estrutura diádica composta (15a) descreve verbos do tipo em (13).
O verbo otam é derivado a partir de uma raiz do tipo Rotam , que, por ser
uma raiz predicativa, projeta um especificador (interno) no Spec de V2 por
exigência semântica. A versão intransitiva (15a) é formada por uma operação
de conflation, onde o complemento R funde-se ao núcleo V2 , gerando a versão
intransitiva no núcleo mais baixo. A contraparte transitiva origina-se por
uma segunda operação de conflation de V2 com o núcleo mais alto (V1 );
nesse caso, em Karitiana, existe uma marca morfológica na versão transitiva,
a saber, o morfema causativo {m-} que permite a adição do argumento
externo.
Núcleos como aqueles de modo, aspecto, tempo são adicionados pela operação sintática de movimento, portanto, não-visı́veis no módulo da estrutura
argumental. O argumento externo Agente ou Causa também não é visı́vel
nete módulo. Assim sendo, não há necessidade de representá-los em estrutura
argumental.
Conforme exposto, o verbo terekterek apresenta também a estrutura
diádica composta exemplificada abaixo:
172
Ivan Rocha
(16)
pyterekteregngan taso
(17)
ypymterekteregngan (yn) taso
(18)
(a)
V2
NP
taso
(b)
V2
V1
V1
V2
R
terekterek
terekterek
m-terekterek
V2
NP
(yn)
V2
V2
R
terekterek
Nos casos apresentados acima, nota-se que o elemento sintático em
Karitiana na posição de especificador interno (Spec de V2 ) é o sujeito da
contraparte intransitiva e o objeto da versão transitiva, conforme previsto na
proposta teórica de Hale & Keyser (2002).
Os traços semânticos e fonológicos das raı́zes Rotam e Rterekterek são inseridos nos núcleos verbais com a operação de conflation. As propriedades dessas
raı́zes associadas às propriedades dos núcleos verbais projetam as estruturas
nas quais elas ocorrem, formando verbos alternantes do tipo descrito neste
trabalho.
Considerações finais
Apresentou-se o fenômeno a ser estudado neste trabalho. Em seguida, a
proposta teórica que foi utilizada para analisar os verbos alternantes em
Karitiana foi exposta com seus instrumentais teóricos. Uma análise descritiva
dos verbos alternantes em Karitiana foi apresentada com base em evidências
morfossintáticas na lı́ngua. Neste ı́nterim, mostrou-se que os dados descritos
na lı́ngua corroboram a proposta teórica adotada, ao mesmo tempo em
que esta proposta torna-se uma ferramenta teórica de suma utilidade na
descrição dos verbos em Karitiana e nas lı́nguas indı́genas em geral. Por fim,
foi demonstrado que os verbos intransitivos têm o mesmo comportamento
sintático, já que todos participam do mesmo processo de alternância. Além
disso, a teoria adotada dá conta do fato descrito neste artigo, conforme
Verbos Intransitivos Alternantes em Karitiana
173
análise na parte 5.
Abstract
This paper aims at discussing verbal alternation in Karitiana (a Tupi language) based
on Hale and Keyser’s (2002) theoretical proposal for intransitive verbs. Its goal is to
offer a morphosyntactic description of alternating intransitive verbs, guided by a formal
theory of argument structure. All intransitive verbs in this language have the alternating
structure that performs the causative-inchoative alternation. These intransitive verbs
can be causative by adding a causative morpheme {m-}, which allows the addition of an
external argument to the structure, increasing the verbal valence.
Keywords: Karitiana; Argument Structure; Verbal Alternation.
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