da primeira parte do livro

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da primeira parte do livro
PARTE I
FINS DAS PENAS, CULPABILIDADE, MEDIDA
(antes, e especialmente depois do Código Penal 1982)
INTRODUÇÃO
Terminologia
§ 1. A determinação, individualização e escolha da pena poderia
considerar-se genericamente inserida na penologia, disciplina de natureza mista, fazendo parte das ciências penais, por alguns definida como
a que estuda os sistemas de repressão e prevenção directa do crime,
assim como os métodos e procedimentos legais de aplicação das penas
e a actuação pospenitenciária (1).
No estádio actual, mais seguro nos parece partir da terminologia
tradicional da medida da pena a aplicar em cada caso concreto pela
prática de um crime tendo em conta a escala variável prevista na lei.
Nela nos centraremos, vindo por arrastamento toda uma constelação de
questões que a rodeiam. Sabemos que aquela constitui um dos mais
delicados temas para a doutrina; para a jurisprudência, essa convive com
ela todos os dias e conhece-lhe as agruras.
(1)
Para PIERRETTE PONCELA, Droit de la peine, 2.e édition, PUF, 2001, p. 35, «o
uso do termo “penologia” corresponde a um movimento geral de política penal de
diversificação de formas das penas e de busca de “substitutos” para a prisão».
Para uma visão evolutiva e mais substancial — cfr. o interessante estudo de JOSÉ
ANTÓNIO VELOSO, Pena Criminal, Separata da ROA, Ano 59, Abril de 1999, revista
em Janeiro de 2000, pp. 530 e ss., onde se diz (p. 542): «Numa breve síntese final, a
lição da profunda revisão de ideias que ocorreu na criminologia e na penologia dos
últimos vinte e cinco anos poderia ser resumida do seguinte modo: reabilitação do
conceito de dissuasão penal; necessidade de explorar mais sistematicamente os efeitos
criminológicos da incapacitação; atenção às formas de desordem e desequilíbrio urbano
com significado para a ecologia do crime; e consciência reforçada dos efeitos — bons
e maus e péssimos — da legislação e da prática institucional para a formação de
hábitos de convivência social decente».
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
Contributo de ordem prática
§ 2. Depois de, nos alvores do século passado, esta ser uma
matéria resumidamente tratada pelos doutrinadores, longe de nós o risco
de submersão se, apesar de tudo, se quisesse ensaiar a tentativa vã de
abarcar, ainda que apenas no essencial, a doutrina estrangeira na sua
concatenação com os textos legais dos países de cultura mais próxima.
Por certo, ficar-se-ia perdido, sem chegar a qualquer contributo de síntese ou de mera opinião, ainda que árdua e despretensiosa (2).
Olharemos, por isso, o mais importante dos contributos nacionais,
com indulgência daqueles autores a quem não conseguimos aceder.
Perdoar-nos-ão o facto de privilegiar sobretudo um testemunho crítico,
fruto da experiência vivida.
Teoria e praxe
§ 3. Dizia Cavaleiro de Ferreira (3): «A medida da pena é problema de índole essencialmente prática, desdenhosamente referido nas
obras mais clássicas de Direito Penal em meia dúzia de linhas, e que
por sua vez os tribunais e homens do foro consideram reservado ao
domínio incontestado da praxe.»
«A tendência do espírito humano na sua actividade gnoseológica
impele-o para a unidade, … reduzindo a diversidade das espécies, destruindo nos conceitos a heterogeneidade da vida», mas «na apreciação
do caso individual o intérprete partindo das fórmulas gerais dos princípios e das leis deve aproximar-se da realidade. A direcção do esforço
é, portanto, inversa. A ciência jurídica usa de processos de abstracção,
de lógica; nela domina prevalentemente o conhecimento especulativo,
a inteligência. A praxe aprecia directamente e como que intuitivamente
o facto concreto… Nela predomina a recta vontade, o bom senso.»
(2)
Basta atentar na densidade da dissertação de M. N. PEDROSA MACHADO, Circunstâncias das Infracções e sistema do Direito Penal Português (Ensaio de introdução
geral), no BMJ n.º 383, 1989, pp. 5 a 120, particularmente nas referências contidas nas
notas (130) a (137).
(3)
A medida da pena, no Boletim dos Institutos de Criminologia, 1939, 2.º sem.,
pp. 55 e ss.
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Introdução
E interroga: «Mas serão diversos os fins da teoria e da praxe?
Encontram-se elas em irredutível oposição de natureza ou podem
reconduzir-se à unidade, como fases ou «étapes» dum mesmo movimento em direcção ao ideal de justiça?»
«O fim do Direito é regular as acções humanas e todo o equipamento e aparelhagem técnica das leis depende necessariamente, no seu
valor intrínseco, no seu significado próprio, do princípio prático da
direcção que transluz da regra jurídica. A praticidade penetra todos e
cada um dos elementos que formam o contexto do preceito legal.»
Mais adiante acrescenta: «A teoria e a praxe não se opõem… na
sua natureza. São momentos diversos dum mesmo movimento que do
conhecimento especulativo da ordem jurídica, por graus sucessivos, se
dirige à realidade e que é dominado por uma mesma finalidade.»
Para rematar: «A medida da pena é o ponto crucial do direito
penal: nele convergem, colidem e se articulam todos os conceitos basilares da dogmática; nele se apreciam esses elementos não no seu rigor
lógico, enquadrados no sistema geral, mas através do seu conteúdo, no
seu valor ontológico, real, e se utilizam em vista da sua imediata serventia prática» (bold nosso).
Objectivos essenciais da abordagem
§ 4. O pragmatismo que aqui nos norteia aponta não para a veleidade da descoberta de uma «nova teoria» — estéril tarefa para praxistas — mas antes para a reflexão sobre os rumos que, especialmente a
jurisprudência nacional, vai seguindo nos últimos anos, e a crítica dos
seus métodos e dos resultados que vem obtendo. Entregamo-nos assim
também à ideia de que o direito pertence mais à ordem prática do que à
ordem especulativa. E as teorias valem na medida em que a sua aplicação prática leve a resultados razoáveis para a comunidade dos cidadãos,
as quais devem orientar-se por princípios eticamente apropriados, refinados ao longo do tempo e num caminho idealista de aperfeiçoamento.
E porque o desejo é de modesta ajuda à reflexão, sem tabus nem
atrevimentos supérfluos, assumimos sem dificuldade e com humildade
que muitas vezes vogámos perto das águas que agora por vezes criticamos, convencidos hoje de que algumas posições defendidas e aplicadas
enroupam, a nosso ver, soluções sem fundamentos válidos.
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
Mas também nos convencemos de que o misoneismo institucional
não porá imediatamente de lado posições discordantes, só pelo facto de
o serem (4).
Quanto à doutrina, lidar com a divergência sabemos ser o trivial.
Percurso
§ 5. Desenhámos o seguinte percurso, a frequentar de ora em
diante e até final: depois de historiar com algum pormenor o nascimento
e vigência dos principais (não muitos) normativos do Código Penal
implicados, particularmente depois da publicação do Código Penal 1982,
na sua ligação com a doutrina, passaremos do fundamento para os fins
das penas, com relevo para a culpabilidade e sua individualização.
Fixar-nos-emos ulteriormente, com alguma detença, nas correntes jurisprudenciais após a publicação daquele Código Penal 1982, com particular realce para as que se seguiram à Revisão de 1995, a fim de tentar
extrair as linhas mestras gerais que orientaram a medida e escolha da
pena, com relevo para alguns temas mais insistentemente abordados.
Intentaremos a sua discussão e ponderação críticas, finalizando por um
esquema de aplicação prática do modelo que preconizamos.
(4)
A formular votos de que Erasmo não tenha tido razão com tanta antecedência:
«Entre os eruditos, os jurisconsultos reivindicam o primeiro lugar, pois não há gente
mais vaidosa. Rolam assiduamente a pedra de Sísifo, revolvendo seiscentas leis para
interpretar um assunto a que elas se não referem, acumulando glosas sobre glosas,
opiniões sobre opiniões, trabalhando assim para que pareça dificílimo o estudo a que
se dedicam. Estimam que é meritório e preclaro tudo quanto é laborioso» —, ERASMO
DE ROTERDÃO — «Elogio da Loucura», Guimarães Editores, trad. 2001, p. 82.
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CAPÍTULO I
LINHAS TEMÁTICAS GERAIS ANTES E DEPOIS
DO CÓDIGO PENAL 1982
O sistema anterior ao Código Penal 1982: o Código Penal 1886
§ 6. Já no Relatório da Comissão de 1861 (5) — nomeada para
revisão do Código Penal 1852 — e que serviu como uma das fontes
inspiradora da Lei de 1 de Julho de 1867, abolidora da pena de morte,
da própria Nova Reforma Penal de 1884, depois incorporada no Código
Penal 1886, se criticava a tendência (alemã) de as pautas e tabelas criminais medirem, analisarem e calcularem o dano, desprezando a intenção
e a imputação moral. Da fusão ou combinação do direito bárbaro, das
instituições germânicas e romanas, «nasceu a verdadeira theoria da criminalidade, que toma a intenção como base fundamental do delicto, e o
mal exterior, o damno material, como medida da pena». Aqui se reúnem
sem se confundirem o princípio subjectivo com o objectivo.
«Quando a lei, desprezando esta harmonia, tenta fazer exclusivamente
prevalecer qualquer d’esses principios, as consequencias, como a história
testemunha, são sempre funestas, já na classificação dos delictos e na
gradação da criminalidade, já na aplicação da pena correspondente».
Presidida pelo Conselheiro António de Azevedo Mello e Carvalho, tendo como
relator LEVY MARIA JORDÃO, e que produziu um documento que devia servir de exemplo a todos os «legisladores de gabinete» que pululam nestes dias — cfr. na magnífica
recuperação digitalizada da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, in
http://www.fd.unl.pt/, página onde constam ainda a doutrina coetânea. Daquele Relatório disse o insuspeito Prof. Eduardo Correia — Direito Criminal, I, 1963, p. 109 —,
representar «a mais perfeita obra de preparação legislativa que tem sido levada a cabo
entre nós».
(5)
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
No artigo 88.º do Código Penal 1886 veio impor-se que ao aplicar
uma pena temporária variável entre um máximo e um mínimo fixados
por lei, o juiz fixasse a pena entre esses limites «tendo em atenção a
gravidade do crime» (6). E quanto à gravidade das penas encontrava-se
mencionada nos artigos 95.º e 96.º
Em algumas normas aludia-se à «gravidade do dano causado»
como agravante da pena — artigos 365.º, § 4.º (danos contra pessoas), 434.º, § 1.º e 436.º, § 3.º (gravidade dos resultados da violência, no roubo).
Para além da fixação genérica de um critério de determinação
da medida da pena, em termos práticos, uma vez encontrado esse
quantum, funcionava o jogo das circunstâncias agravantes, de natureza taxativa («são unicamente circunstâncias agravantes, dizia-se no
artigo 34.º) ou das atenuantes, estas de ordem exemplificativa, no
artigo 39.º (7).
As alterações do Decreto-Lei n.º 39 688 — Revisão de 1954
§ 7. Porém, o passo mais importante foi dado pelo DL n.º 39688,
de 5 de Junho de 1954, ao estipular no artigo 84.º: «A aplicação das
penas, entre os limites fixados na lei para cada uma, depende da
culpabilidade do delinquente, tendo-se em atenção a gravidade do
facto criminoso, os seus resultados, a intensidade do dolo ou grau da
culpa, os motivos do crime e a personalidade do delinquente. § Único.
Na fixação da pena de multa, atender-se-á sempre à situação económica do condenado, de maneira que o seu quantitativo, dentro dos
limites legais, constitua pena correspondente à culpabilidade do delinquente».
Tal dispositivo actuaria independentemente das circunstâncias agravantes ou atenuantes gerais.
(6)
Regra que fora recuperada do artigo 60.º da Nova Reforma Penal de 14 de
Julho de 1884.
(7)
Elucidativo o n.º 23 desse artigo 39.º que classificava de atenuantes «Em geral,
quaisquer outras circunstâncias que precedam, acompanhem ou sigam o crime, se enfraquecerem a culpabilidade do agente ou diminuírem por qualquer modo a gravidade do
facto criminoso ou dos seus resultados».
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Cap. I — Linhas temáticas gerais antes e depois do Código Penal 1982
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Com efeito, disse-se no relatório de tal diploma:
«A renúncia à fixidez das penas, atribuindo ao juiz uma função
de individualização mais lata, implica a indicação do critério geral
de graduação da pena, independentemente do concurso de circunstâncias atenuantes e agravantes. Quando se verifique este concurso,
os limites mínimos da pena são ainda reduzidos para facilitar aquela
individualização… Completou-se, por isso, a regulamentação da
agravação e atenuação das penas, no caso de concurso de circunstâncias, dando-lhe maior flexibilidade, e resolvendo dúvidas quase
tão antigas como o próprio Código» (8).
Caberá aqui deixar bem vincado que antes da ponderação das agravantes e atenuantes o juiz já devia ter apontado, com recurso àqueles
elementos, um primeiro ponto indicativo da concretização da pena a que
depois iria chegar com a adição das agravantes e das atenuantes.
2 — Medida da Pena
§ 8. Todavia, segundo Anabela Miranda Rodrigues (9), «pese
embora a clareza com que estava delineado o sistema legal de determinação da medida da pena, a verdade é que a jurisprudência, nem sempre
devidamente auxiliada pela doutrina — que, por um lado, algo contraditoriamente (…) insistia em «encarar o problema como sendo daqueles
em que verdadeiramente se revela a arte de julgar do juiz criminal»
(…) e, por outro lado, primava pela falta de esclarecimento aprofundado
sobre o modelo de determinação da medida da pena (…) —, não alcançou nesta matéria aquele grau de coerência e racionalidade desejável».
E isto porque, como bem observava aquela Autora, a jurisprudência
discutia a medida da pena com base nas agravantes e atenuantes sem
que previamente a determinasse de acordo com os critérios do
artigo 84.º, o que, como se viu, era preocupação de longa data. Por outro
(8)
Desta Reforma de 1954, disse Figueiredo Dias, O Código Penal Português
de 1982 e a sua reforma, in RPCC, Ano 3, 2.º a 4.º, 1993, p. 163: nela se «deram
passos significativos — e ainda hoje plenos de actualidade — em matéria de medida
da pena».
(9)
A determinação da medida da pena privativa de liberdade, Coimbra Editora,
1995, p. 121.
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
lado, o tribunal colectivo não especificava os fundamentos decisivos
para a convicção quanto aos factos dados como provados. E a «parca
ou nula fundamentação» das decisões do próprio STJ só veio a
modificar-se após a norma do artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal 1987, com a imposição expressa dessa obrigação de fundamentação.
O sistema no Código Penal 1982 e a doutrina
§ 9. Tentar compreender o sistema implantado pelo Código Penal
1982 torna-se importante para assim reflectir sobre o valimento das
críticas da doutrina quanto ao papel da jurisprudência na sua aplicação,
e também da dimensão das modificações que a Reforma de 95 visou
introduzir-lhe.
Lancemos, desde já e nesta parte, um olhar sobre o preâmbulo
do diploma de 1982, com vista a detectar a filosofia que lhe subjaz na
escolha e medida das penas.
9.1. Como princípio basilar — dizia-se em 1982 — «toda a pena
tem de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta» (10).
«O princípio nulla poena sine culpa, combatido ultimamente em
certos quadrantes do pensamento jurídico-penal, embora mais, ou quase
exclusivamente, contra a vertente que considera a culpa como fundamento da pena ganhou o voto unânime de todas as forças políticas
representadas no parlamento alemão, quando se procedeu à apreciação
dos grandes princípios orientadores da reforma daquele sistema penal.
Acrescente-se que mesmo os autores que dão uma maior tónica à prevenção geral aceitam inequivocamente a culpa como limite de pena».
O que corresponde a «uma larga e profunda tradição cultural portuguesa
e europeia».
«No entanto, o atribuir-se à pena um conteúdo de reprovação
ética não significa que se abandonem as finalidades da prevenção
geral e especial nem, muito menos, que se sugira o alheamento da
recuperação do delinquente. Quanto à prevenção geral, sabemos
(10)
O bold é nosso (tal como os anteriores e seguintes).
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Cap. I — Linhas temáticas gerais antes e depois do Código Penal 1982
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que não há verdadeira antinomia entre esta finalidade e a culpa,
já que, através da mediação axiológica que o direito penal exige a
todos os membros da comunidade jurídica, se ergue, deste modo, a
barreira inibidora da pena. Contudo, a sua força dissuasora não
nasce tanto da sua realidade heterónoma, mas antes da própria
autonomia do agente, que sabe ser a definição daquela pena fruto
da participação, num determinado momento histórico, de toda a
comunidade, ainda que filtrada pelos órgãos constitucionalmente
competentes.
A esta luz, não será, pois, difícil de ver que também a tónica da
prevenção especial só pode ganhar sentido e eficácia se houver uma
participação real, dialogante e efectiva do delinquente. E esta só se
consegue fazendo apelo à sua total autonomia, liberdade e responsabilidade.
«É, na verdade, da conjugação do papel interveniente das instâncias
auxiliares da execução das penas privativas de liberdade e do responsável e autónomo empenhamento do delinquente que se poderão
encontrar os meios mais adequados a evitar a reincidência.»
E mais adiante:
«No sentido de superar esta visão tradicional (imposição de valores
pela administração sem participação do ex-delinquente), o presente
diploma consagra, articulada e coerentemente um conjunto de medidas
não institucionais que facilita e potencia, sobremaneira, aquele desejado
encontro de vontades». Assim se conseguirá a «desdramatização do
ritual» obrigando-se as instâncias de execução da pena privativa de
liberdade a serem «co-responsáveis no êxito ou fracasso reeducativo e
ressocializador.»
«Por outro lado, sabe-se que o princípio da culpa, tal como
está pressuposto no diploma, implica que medidas de segurança
privativas da liberdade só existirão para os inimputáveis. A solução
do problema dos chamados «imputáveis perigosos» é fundadamente
conseguida pela introdução da pena relativamente indeterminada»
(…).
9.2. Aceita-se a pena de prisão (n.os 7 e 8 da «Introdução») como
pena principal unicamente para os casos mais graves, só sendo legítima
a sua adopção quando outras reacções criminais não detentivas se não
mostrarem adequadas.
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
«Não se esgotam, porém, no conteúdo do artigo 71.º, os poderes
concedidos ao juiz para, através da escolha e graduação da pena, alcançar a justa punição do agente e a realização do objectivo geral da
prevenção do crime pelo tratamento do condenado.»
Salienta-se a atenuação especial da pena (artigos 73.º e 74.º) nos
casos em que circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou
contemporâneas dele, diminuam por forma acentuada a ilicitude do
facto ou a culpa do agente ou a necessidade da pena, passível de
substituição e de suspensão; a dispensa da pena (artigo 75.º) se a
culpa do agente for diminuta, o dano tiver sido reparado e a tal se não
opuserem as exigências da recuperação do delinquente e da prevenção
geral, podendo ainda o juiz nos casos em que não estejam cabalmente
realizados aqueles pressupostos adiar a sentença para momento posterior na esperança de um comportamento do delinquente justificativo
de tal dispensa.
9.3. Era a luta contra as curtas penas de prisão, bandeira de há
muito erguida em outros países.
Não nos parece, pois, descabido afirmar que o acento era colocado
na culpa como fundamento da retribuição, elemento essencial para a
escolha e a medida da pena, sem embargo do relevo a atribuir à prevenção geral de integração e à prevenção especial.
Veremos oportunamente como reagiu a jurisprudência.
Escolha e medida da pena no Código Penal 1982
§ 10. O Código Penal 1982 referia-se à escolha e medida da
pena no Título IV, capítulos I a IV, cumprindo destacar os artigos 71.º
e 72.º (11).
O primeiro ordenava que, no caso de ao crime serem aplicáveis
pena privativa ou não privativa da liberdade, o tribunal desse preferên-
(11)
As restantes normas gerais dispunham: o artigo 73.º sobre a atenuação especial da pena, o artigo 74.º, sobre os termos desta atenuação especial e o artigo 75.º
sobre a dispensa de pena. Vêm depois o capítulo II, relativo à reincidência (artigos 76.º
e 77.º), o capítulo III sobre a punição do concurso de crimes e do crime continuado
(artigos 78.º e 79.º) e o capítulo IV sobre o desconto da prisão e da multa anteriores à
condenação.
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cia fundamentada à segunda sempre que ela se mostrasse suficiente
para promover a recuperação social do delinquente e satisfizesse as
exigências de reprovação e de prevenção do crime.
Transcreve-se o artigo 72.º — sobre a determinação da medida da
pena —, pela sua importância:
«1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, far-se-á em função da culpa do agente,
tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros
crimes. 2. Na determinação da pena, o tribunal atenderá a todas
as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução
deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau
de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade
do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados na
preparação do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do
crime; f) A gravidade da falta de preparação para manter uma
conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser
censurada através da aplicação da pena. 3. Na sentença devem
ser expressamente referidos os fundamentos da medida da
pena.»
O desaparecimento das circunstâncias gerais
§ 11. Relativamente à revisão de 1954, uma mudança aparentemente valiosa consistiu na inclusão de todos os factores influenciadores
da medida da pena no mesmo preceito, e também a redução da nomenclatura das circunstâncias agravantes e atenuantes.
Porventura daí terá resultado que a maior generalidade do Código
Penal 1982 se tenha traduzido numa menor ponderação dos vários
elementos circunstanciais pela jurisprudência, uma vez que desapareceu o «bordão» que sempre significava a obrigatoriedade de ponderação de cada uma das agravantes ou atenuantes invocadas, aquelas
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
especialmente pela acusação e estas pela defesa. E o apelo à fundamentação seria potenciador dessa destrinça (12).
Assim como assim, não deixava de ser bem visível que a entonação
era colocada na culpa, quer no n.º 1 do preceito quer na explicitação
do n.º 2.
A determinação da pena far-se-ia primordialmente em função da
culpa e só depois se teria «ainda em conta as exigências de prevenção
de futuros crimes».
Nesta perspectiva importa destacar o que se afirma no citado n.º 2
sobre a intensidade da modalidade da culpa, os sentimentos manifestados na preparação do crime e os fins ou motivos que o determinaram,
as condições pessoais do agente, a conduta anterior e posterior, especialmente quando destinada a reparar as consequências do crime, a
gravidade da falta de preparação para manter uma conduta lícita,
manifestada no facto, o que logo fazia recordar a «culpa na formação
da personalidade» tão cara ao autor do projecto, Eduardo Correia.
Estes são elementos que ainda se poderiam filiar, ao menos em
parte, na matriz de Levy Maria Jordão, quando tomava a intenção como
base fundamental do delito, e o mal exterior como componente essencial
da medida da pena.
(12)
Cfr. JOSÉ ANTÓNIO VELOSO, Pena Criminal, op. cit., p. 549. Numa crítica ao
Código Penal 1982, afirma: «O princípio da legalidade sofreu importantes modificações,
sendo agora concebido pelo legislador de modo muito menos preciso do que o que
entre nós havia sido norma desde a revolução liberal. As estreitas medidas legais da
pena do Código de 1886 (nunca mais de 4 anos entre mínimos e máximos de prisão,
para cada forma típica de crime) foram substituídas por uma definição de penas entre
limites de grande latitude — por ex. 8 a 16 anos de prisão no homicídio simples, 12
a 25 no homicídio agravado… O articulado e formalmente muito preciso sistema de
critérios de graduação judicial da pena do Direito anterior, nomeadamente o excelente
quadro analítico de atenuantes e agravantes, foi posto de parte (sem que isso signifique, aliás, impedimento para a sua conservação como precioso instrumento
Jurisprudencial) e sacrificado a um enunciado muito vago e genérico de regras com
escasso valor de orientação (arts. 71.º e 72.º), e que permitem, por exemplo, a livre
consideração de agravantes pelo juiz, antes vinculado a uma lista numerosa mas
taxativa. Consequência imediata desta infeliz reforma foi uma explosão da disparidade
e imprevisibilidade das penas, que se mantêm em dimensão excessiva apesar de alguma
melhoria que entretanto tem promovido a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça
(v. Santos e Ribeiro 1998)» (bold nosso).
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Cap. I — Linhas temáticas gerais antes e depois do Código Penal 1982
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§ 12. Dessa «Introdução» cabe ainda dar conta de uma mais
alargada pormenorização, no que concerne à culpabilidade:
«3. Por outro lado, sabe-se que o princípio da culpa, tal
como está pressuposto no diploma, implica que medidas de
segurança privativas da liberdade só existirão para os inimputáveis. A solução do problema dos chamados «imputáveis perigosos» é fundadamente conseguida pela introdução da pena
relativamente indeterminada. Deste jeito, satisfaz-se a unidade
compreensiva do diploma e dá-se resposta aos anseios legítimos
— tanto mais legítimos quando se vive num Estado democrático — da comunidade jurídica, de ver protegido o valor da
segurança, que, como facilmente também se depreenderá, só
deverá ser honrado nos casos especialmente consagrados na lei.
E não pode deixar de ser assim porque os homens a que este
diploma se dirige são compreendidos como estruturas «abertas» e dialogantes capazes de assumirem a sua própria liberdade. Por outras palavras, eles serão sempre um prius, nunca
um posterius.
4. Característico de toda a filosofia deste diploma é o
modo como se consagra a problemática do erro. Na verdade,
este ponto pode perspectivar-se como charneira de toda a problemática da culpa, já que é nele — quer se considere o erro
sobre as circunstâncias do facto (artigo 16.º) quer o erro sobre a
ilicitude (artigo 17.º) — que o direito penal encontra o verdadeiro
sentido para ser considerado como direito penal da culpa.
Torna-se assim evidente, à luz deste diploma, que o agente só
pode merecer um juízo de censura ética se tiver actuado com
consciência da ilicitude do facto. Porém, se tiver agido sem
consciência da ilicitude e se o erro lhe for censurável, o agente
«será punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo,
que pode ser especialmente atenuada» (artigo 17.º, n.º 2). Ficam,
deste modo, protegidos não só determinados fins da prevenção,
como também o valor que todo o direito prossegue: a ideia de
justiça.
5. Não se desconhece que, amiúde, a fronteira entre o imputável e o inimputável é extremamente difícil de traçar.
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
Daí a urgência da adopção de um critério que rigorosamente
seriasse as várias hipóteses pela aferição das quais o agente da
infracção pudesse ser considerado imputável ou inimputável.
Neste horizonte, o diploma faz apelo a um critério biopsicológico integrado por componentes de nítido matiz axiológico, é
dizer, «a comprovada incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas» (artigo 20.º). É, pois, necessário, para o
agente ser considerado imputável, que consiga determinar-se
pelas penas. Facto demonstrativo não só da criteriosa integração do elemento de valoração ética, mas também de carregado
afloramento da tradição correccionalista portuguesa, manifestando-se assim, neste ponto, como noutros, a inconsequência
daqueles que julgam que o Código se não funda em raízes culturais portuguesas. Para além disso, ao admitir-se um vasto domínio para a inimputabilidade devido à definição de critérios que se
afastam do mais rígido pensamento da culpa, permitir-se-á aos
mais reticentes na aceitação deste princípio a construção de um
modelo baseado numa ideia que desliza para a responsabilidade
social mitigada. (…)
Com efeito, a condenação condicional, ou instituto da pena
suspensa, correspondente ao instituto do sursis continental, significa uma suspensão da execução da pena que, embora efectivamente pronunciada pelo tribunal, não chega a ser cumprida,
por se entender que a simples censura do facto e a ameaça da
pena bastarão para afastar o delinquente da criminalidade e
satisfazer as necessidades de reprovação e prevenção do crime
(artigo 48.º, n.º 2). A possibilidade de imposição de certas
obrigações ao réu (artigo 49.º), destinadas a reparar o mal do
crime ou a facilitar positivamente a sua readaptação social,
reforça o carácter pedagógico desta medida que o nosso direito
já de há muito conhece, embora em termos não totalmente coincidentes com os que agora se propõem no Código (v. g., em
matéria de pressupostos).»
12.1. Se atentarmos mais profundamente no que se diz nesta
«Introdução» ao Código Penal 1982, ao discorrer sobre a «Parte
Geral», haverá que sublinhar o princípio basilar de que a pena tem
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Cap. I — Linhas temáticas gerais antes e depois do Código Penal 1982
25
como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta a qual
desencadeia uma reprovação ética, ou seja, a sociedade em geral,
no seu apego às melhores regras de convivência segundo os padrões
da justiça e bem-estar possíveis em cada momento, numa postura de
metas ideais e universalistas, censura os seus membros através da
desaprovação das condutas violadoras da norma penal validamente
instituída.
Como já se sublinhou, isto não significa que se abandonem as
finalidades da prevenção geral e especial, nomeadamente o alheamento
da recuperação do delinquente. E também, a nosso ver, não significa
que o direito deixe de ir em busca de um suporte dessa culpa no íntimo
de cada um, o que adiante melhor se verá.
Posição de Sousa e Brito sobre o Código Penal 1982
§ 13. Vejamos com algum pormenor como se pronunciou, quanto
a esta versão originária do Código Penal 1982, o penalista Sousa e
Brito, no que concerne à culpa, prevenção e medida da pena (13).
Considerando o artigo 72.º bastante impreciso, reconhece haver
porém um enfoque na culpa/prevenção. Mas subsistiriam dúvidas:
determinação de uma medida certa ou de um quadro de medida da
pena em função da culpa? Culpa relativa ao facto ou ao facto e também à personalidade? Uma noção de culpa como elemento do crime
e outra na base da medida da pena? A culpa como limite máximo,
como máximo e mínimo, ou nem uma coisa nem outra? E a prevenção (especial e geral), em que proporção se atende? Respondeu
pela forma que ora se tenta resumir.
Determinação da culpa e da pena
13.1. Em absoluto a medida da pena é certa, simplesmente o
seu montante determina-se por aproximação, pois aquela determinação
(13)
JOSÉ DE SOUSA E BRITO, «Medida da Pena no novo Código Penal», in BFD,
Coimbra, 1984, «Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia», pp. 555
e ss.
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26
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
certa é uma tarefa impossível — por exemplo, numa medida legal da
pena de máximo de 8 anos o juiz não pode conhecer circunstâncias
de facto com tal pormenor que lhe correspondam diferenças de valoração de um dia.
Abrir-se-ão vários caminhos para fundamentar a teoria da culpa:
como espaço de manobra (Speilraum), quadro (Rahmen) ou percurso
(Strecke) entre um máximo e um mínimo.
Do ponto de vista da prevenção geral, a culpa só é limite além
do qual a intimidação não funciona «porque deixa de fortalecer os
sentimentos éticos da comunidade e pode provocar a revolta ou embotamento»; no tocante à prevenção especial a cominação da pena só
pode influenciar quem age com culpa e para lá desta contraria a recuperação do delinquente. Só que estes sentimentos éticos — da sociedade ou do agente — não estão ligados a uma pena certa mas a
«várias penas possíveis dentro de vagos limites». O conceito social
e não jurídico de culpa pouco tem a ver com o conceito de culpa na
teoria do crime.
E apontando para uma terceira via não gnoseológica nem preventivista remata assim: «… nada impede considerar que a culpa existe
realmente na cabeça do criminoso — não da sociedade — como
base de uma valoração determinada do direito — um certo desvalor
— a que correspondem várias penas possíveis dentro de uma certa
escala ou quadro». O juiz deve «escolher entre várias penas ajustadas
à culpa».
É verdade que «haverá… na determinação da medida certa da
culpa pelo juiz, um certo risco, ou salto no desconhecido, frequente
em deliberações complexas, e de cuja responsabilidade não se pode
fugir».
E há critérios racionais para a escolha de uma em vez de outra das
penas ajustadas à culpa (aqui intervirão as razões da prevenção especial
e geral e ou o princípio da necessidade).
Culpa pela personalidade
13.2. Culpa pelo facto ou também pela personalidade? É sabido
como Eduardo Correia quis transpor para o Código Penal 1982 a teoria
da «culpa na formação ou preparação da personalidade» para além da
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Cap. I — Linhas temáticas gerais antes e depois do Código Penal 1982
27
culpa revelada no facto (14). Só esta culpa pela personalidade permitiria
explicar completamente a punibilidade da negligência inconsciente e do
erro sobre a proibição.
É certo que as referências expressas da «culpa pela personalidade»
no Código desapareceram (inseridas no artigo 2.º, 1, e n.º 2 do
artigo 72.º do Projecto) mas ficaram resíduos, nomeadamente o disposto
na alínea f) (15) do artigo 72.º da versão originária. E então?
Para Sousa e Brito, «o juízo de culpa é um juízo de desvalor do
agente em razão do seu comportamento — acção ou omissão. Na
medida em que o homem faz a sua vida com os seus actos e constrói
com eles a sua personalidade, a culpa a julgar é a culpa na decisão da
vida ou na formação da personalidade».
Outra coisa é medir a pena pelo defeito global do delinquente, pelo
seu mau carácter (o crime era o mero pretexto para aplicar uma pena),
incompatível com a opção constitucional de consagrar um sistema de
dupla reacção ao crime, baseado na culpa e na perigosidade.
No delinquente por tendência, são maiores os esforços que tem
de fazer para resistir do que os do homem comum (se não puder
resistir será inimputável), concluindo que os critérios da culpa pela
personalidade do delinquente por tendência, onde tal culpa funda uma
agravação da medida legal da pena, se reconduzem aos da mesma
culpa na medida judicial (artigo 72.º, n.º 2, alínea f)) e ambos aos da
culpa pelo facto. É sempre suposto que o agente podia agir de outra
maneira.
Conclui pela desnecessidade da doutrina da culpa na formação da
personalidade. «Culpa pelo facto sim, e enquanto tal também pela
personalidade» (16).
Anota SOUSA E BRITO: 40 páginas das 66 que integram o relatório da Parte
Geral do Projecto eram dedicadas à culpa na formação da personalidade que, segundo
Eduardo Correia, se traduziria no desvalor do agente por não «dominar tendências
para o crime qualquer que seja a sua origem: hereditariedade, adquirida, psicogenética…»
(15)
Recorde-se esta alínea: «A gravidade da falta de preparação para manter uma
conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da
aplicação da pena».
(16)
Loc. cit., pp. 563/573.
(14)
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
Duas formas de culpa?
13.3. Culpa como elemento do crime, e outra noção na base da
medida da pena?
Eduardo Correia fazia a distinção entre a culpa como elemento
constitutivo da infracção e, com um sentido amplo, nos preceitos da
medida da pena. Ainda que afastada a teoria de duas formas de culpabilidade, haverá que ver, principalmente, os «componentes de resultado»
por oposição aos «componentes de acção» da culpa.
Segundo Sousa e Brito, «os critérios da medida da culpa na análise do crime não podem ser substituídos por outros critérios de medida
da culpa pelo facto na determinação da pena sem ofensa da conexão
entre o crime e a pena que não é só de presumir em qualquer interpretação razoável das leis penais, mas que é também um aspecto do princípio constitucional da legalidade das penas». Se o fossem, seria posto
em causa o próprio «fundamento constitucional do princípio da culpa
na dignidade do homem», através do qual se respeita, com o juízo da
culpa, o criminoso como pessoa livre e não a generalidade das pessoas
como capazes de juízos sobre a culpa.
Todas as consequências imputáveis ao agente ou culposas fazem
variar a medida da culpa na pena, devendo distinguir-se entre critérios
da existência do crime (definição de crime) e gravidade do crime. As
circunstâncias que integram esta para fundarem mais pena têm de ser
abrangidas pela culpa. Algumas podem só interferir na gravidade e
serem irrelevantes para a subsunção no crime. Dolo eventual, conduta
anterior e posterior ao facto «não são abrangidas pelo tipo», só interessariam como indício da culpa.
Cair-se-á na teoria normativa da culpa quando se pretende valorar
a personalidade do agente. Mas tem de haver sempre a capacidade de
agir ou não agir de outra forma sem a qual não há agente, deliberação,
decisão, intenção ou norma.
Por agora, para nós, mais importante será o aspecto que se segue.
Culpa e limites da pena
13.4 Culpa como limite máximo, limite máximo e mínimo, ou
nem uma coisa nem outra?
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Cap. I — Linhas temáticas gerais antes e depois do Código Penal 1982
29
Recorda-se que para o mentor do Projecto de Código Penal, «o juiz
quando mede a pena não pode abstrair do seu fundamento ético». Os
fins da prevenção podem por vezes obrigá-lo a afastar-se «daquele
quantum que uma mera consideração puramente ética forneceria». Para
se manter o «quadro de medida da culpa» dar-se-ia permissão ao juiz
para atender aos fins de prevenção «exactamente até ao ponto em que
a essência da pena (a culpa do agente) não seja tocada».
Não pode haver pena sem culpa (para além do limite máximo).
Mas pode haver culpa sem pena ou com menos pena que a adequada à
culpa.
E como se teria em conta a prevenção especial (17)?
As exigências de prevenção medem-se pela perigosidade. Este
juízo distingue-se do da culpa por ser um juízo de prognose em função
da probabilidade de futuros crimes e não ser em razão do facto passado.
Logo o momento racional é o da sentença e não o da prática do facto.
Segundo o código alemão, fonte do português, as circunstâncias do
n.º 2 do artigo 72.º levam a uma medida da pena de via dupla, i.e.,
culpa e perigosidade.
E como conciliar a prevenção especial com medir a pena em função da culpa? «Deve fixar-se, em princípio, a pena no ponto da escala
correspondente à culpa que melhor sirva as exigências da prevenção
especial». Pode ficar abaixo se ainda adequada à culpa (v. g. criminosos ocasionais). «Esta solução resulta da primazia do fim da retribuição da culpa sobre os fins preventivos, que está implícito na redacção do n.º 1 do artigo 72.º e no sistema da lei».
E se ainda assim for excessiva a pena? Os peritos criminológicos
falam em cinco anos como limite máximo de prisão para a ressocialização. Nestes casos desiste-se de uma parte da pena correspondente à
culpa para respeitar o mandamento de ter em conta a prevenção.
E quanto à prevenção geral?
Em certos institutos a prevenção especial tem a primazia até aos
limites da prevenção geral. O legislador deixa entrar o critério do juiz
(17)
O artigo 71.º, n.º 1, abarcava as duas prevenções. A especial é referida nos
artigos (redacção originária): 44.º, n.º 1, 48.º, n.º 2, 49.º, n.º 1, 53.º, n.º 1, 71.º, 76.º,
n.º 1; a geral: 48.º, n.º 2, 53.º, n.º 1, 71.º e 75.º, n.º 1.
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
quando fixa largos limites mínimo e máximo. Nunca pode exceder a
medida da culpa. O aumento da criminalidade ou a frequência de certos crimes não podem «justificar a irrelevância total ou parcial da prevenção especial». Não se pode usar o indivíduo como instrumento para
atemorizar os outros.
Opinião sobre a orientação do Código Penal 1982
§ 14. Adiantemos uma primeira posição sobre o que se entende
como a doutrina consagrada no Código Penal 1982, nesta matéria.
Isto é tanto mais importante quanto se vier a entender — como fazemos adiante — que a Revisão de 95, neste ponto, não assumiu o papel
reformador que alguma doutrina lhe atribui.
A lição de Sousa e Brito parece-nos bem próxima do sentido dos
textos do Código Penal 1982, ou seja, aquela que confere à culpa um
papel fulcral no fundamento e na medida da pena.
Desde a reforma de 1954 que a culpabilidade do delinquente era o
principal critério da medida da pena, atribuindo-se a esta um conteúdo
de reprovação ética, como se disse na «Introdução» ao Código Penal
1982. E como aí se procurava aclarar, a finalidade de reprovação da
conduta, associada evidentemente à culpa, era congruente com a prevenção geral «através da mediação axiológica que o direito penal exige
a todos os membros da comunidade jurídica», ou seja, através do sentimento colectivo de que os valores tutelados pelo direito penal não
devem ser postos em causa e do sentimento do delinquente que participa
(ou deve participar) de forma autónoma nessa postura da sociedade.
Certo que o infractor tem de gozar de capacidade para entender o
desvalor da infracção e decidir-se, de forma mais ou menos intensa, pela
conduta de ofensa ao direito.
Este substrato será o fermento que, em espírito de «autonomia,
liberdade e responsabilidade», poderá acalentar uma recuperação que
evite a reincidência, porventura desligada de qualquer sentido de expiação (se isso não corresponder ao sentir do delinquente) e em ambiente
de «desdramatização do ritual».
Por esta forma, crê-se que não se estaria — recorde-se, continuamos a reportar-nos ao Código Penal 1982, na versão originária —
a aderir a uma concepção retributiva de modelo antigo, de alicerce
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Cap. I — Linhas temáticas gerais antes e depois do Código Penal 1982
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mais ou menos religioso (pune-se quia peccatum est), mas antes se
teria em conta que a sociedade é constituída por cidadãos distintos do
grupo em que se inserem, capazes de, em autonomia, assumir responsabilidades.
Adiante explicitaremos melhor este ponto de vista e também como
reagiu a este input a tão criticada jurisprudência.
O que se poderá antecipar já, a nosso ver, é que sem embargo de
alguns desvios, esta ideia da pena fundada na culpa, proeminente às
finalidades de prevenção geral e especial, para além de se mostrar bem
próxima da letra da lei, ia também ao encontro do elemento histórico e
teleológico vertido nessa mesma lei.
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CAPÍTULO II
A REVISÃO DE 1995
Preliminares da Revisão
§ 15. Vejamos, porém, como reputados penalistas expressaram
uma visão distinta daquela que acabámos de realçar sobre a versão
originária do Código Penal 1982.
Perspectiva diferente sobre o Código Penal 1982
3 — Medida da Pena
15.1. Quando Figueiredo Dias (18), em 1993, apreciava o período
de vigência do Código Penal 1982 e opinava sobre os lugares carecidos de reforma, depois de ter presidido à Comissão que entregara o
seu projecto de revisão (em Março de 1991), reiterava a validade
incontestável do princípio da culpa. Mas logo insistia na afirmação de
que «o elemento inicial e decisivo de legitimação da pena reside numa
ideia de prevenção geral positiva», para acrescentar: «O princípio da
culpa não vai buscar o seu fundamento axiológico a uma qualquer concepção retributiva da pena, antes sim ao princípio da inviolabilidade
da dignidade da pessoa — o princípio axiológico mais essencial à ideia
do Estado de Direito democrático (…). Deste ponto de vista fica reconhecido o bom fundamento da afirmação segundo a qual a culpa é
condição necessária, mas não suficiente de aplicação da pena…».
15.2. O mais grave em matéria de escolha e medida da pena,
segundo aquele insigne Professor, foi que a jurisprudência não interio-
O Código Penal Português de 1982 e a sua Reforma, in RPCC, Ano 3, 2.º a
4.º, Abril-Dezembro de 1993, pp. 172/73 e 185/87.
(18)
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
rizou a concepção subjacente ao Código Penal 1982 «conduzindo por
um lado a graves equívocos, e arvorando-se por outro lado em grande
responsável pela falência do sistema das penas de substituição» (19). Na
medida da pena, «a jurisprudência assentou no princípio de que o juiz
deveria partir do ponto médio entre o mínimo e o máximo da moldura
aplicável, agravando ou atenuando depois a pena em função de circunstâncias agravantes ou atenuantes; como se não existisse o artigo 72.º,
n.º 1, que manda ao juiz que determine a medida da pena «em função
da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção
de futuros crimes»!
Assim, para «corrigir» a jurisprudência — que apesar de tudo
se reconhecia dar sinais de mudança — a Comissão Revisora introduzira um preceito expresso sobre as finalidades da aplicação das
penas e das medidas de segurança onde se passou a afirmar que tal
aplicação «visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do
agente na sociedade; que a pena não pode ultrapassar em caso algum
a medida da culpa; e que a medida de segurança só pode ser aplicada
se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do
agente».
Tentando afastar do legislador uma antecipada crítica de intervenção
na dogmática dos fins das penas, logo se objectava que o preceito visava
«apenas oferecer à interpretação do direito critérios seguros e normativamente estabilizados de medida e escolha da pena, levantando obstáculos definitivos à eventual persistência de correntes jurisprudenciais
tão erradas e funestas como aquelas…» (já aludidas), o que caberia
indiscutivelmente «na competência do legislador e das suas legítimas
opções político-criminais».
15.3. E vem a descrição sintética do «modelo» (que, diz-se, já
resultaria da versão inicial do Código Penal 1982 (20)): «… é
aquele que comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos
(19)
In Código Penal. Actas e Projecto da Comissão Revisora, Ministério da
Justiça, 1993, p. 13, dissera-se que «a determinação da medida da pena, matéria de
extrema dificuldade, vinha-se operando quase sempre à revelia das concepções do
Código sobre as finalidades das penas, e o imperativo de aplicar penas alternativas à
pena curta de prisão não lograva impor-se».
(20)
Do que já discordámos supra, com a devida vénia.
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Cap. II — A Revisão de 1995
decisiva) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena;
à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma «moldura de prevenção», cujo limite máximo é dado pela medida
óptima de tutela dos bens jurídicos — dentro do que é consentido
pela culpa — e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências
irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção
especial a função de encontrar o quantum exacto de pena, dentro da
referida «moldura de prevenção», que melhor sirva as exigências de
socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente».
Cautelarmente porém afirmou-se: «Decerto que um tal modelo
(…) não é imposto por um preceito como o proposto pela Comissão Revisora. Mas é… o que melhor combina critérios da culpa e
da prevenção como vectores legalmente impostos de medida da
pena, dentro das intenções político-criminais básicas do CP» (bold
nosso).
Sublinhe-se, desde já, o reconhecimento da não imperatividade da
orientação do futuro artigo 40.º
Resta agora acrescentar que o texto que havia sido proposto pela
Comissão foi o adoptado.
Reticências sobre o relevo da prevenção
§ 16. Afigura-se-nos muito duvidoso que a pretendida clarificação — pois o modelo já estaria implícito no sistema original do
Código Penal 1982 — não constituísse afinal um propósito de
mudança, deslocando o acento tónico da culpa, ou melhor, de um
«modelo de culpa» como elemento ao redor do qual deveria girar a
escolha e a medida da pena para um «modelo de prevenção» (geral de
integração ou outra).
Comparando os textos — artigo 72.º, n.º 1, na redacção originária
do Código Penal 1982 — e o que veio a confluir no artigo 40.º da
Revisão de 95, não se pode aceitar que este já estivesse implícito
naquele. A nosso ver, do que se trataria era de uma rotação (de
noventa graus) do «modelo de culpa», como fundamento e medida da
pena para o que se desejava passasse a ser um «modelo de prevenção
geral».
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
Veremos se o legislador conseguiu consagrá-la fundadamente nos
preceitos da Revisão.
Assembleia da República — Parecer da CACDLG
§ 17. Vista a posição de Figueiredo Dias, indiscutível mentor da
Revisão de 95, será interessante lançar uma mirada no Relatório e
parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades
e Garantias sobre a Proposta de Lei n.º 92/VI (21) que visava consagrar
tal Revisão.
Anotou a Comissão como, através da adopção do novo artigo 40.º,
se procurava superar as (pretensas) atribulações a que os artigos 71.º
e 72.º da versão originária do Código Penal 1982 haviam sujeito a
jurisprudência.
O que agora se pretenderia pela Reforma — na posição colhida pela
Comissão da AR — era a revelação do fundamento do jus puniendi através
da vinculação do direito penal a princípios como o da culpa, da proporcionalidade, do bem jurídico e da reintegração social do condenado.
17.1. Bem dentro do seu mandato, a Comissão passou a analisar
a conformidade constitucional do princípio da culpa, tal como se apresentava, para concluir que se enquadrava nos princípios da dignidade
da pessoa humana e do direito à liberdade (22).
Numa sociedade pluralista e tolerante, que viabiliza «o maior
número de ideologias e de atitudes vitais ou mundividências» como
enriquecimento da personalidade, qualquer limitação só se legitima por
«imperativos de interesse público». E assim «a privação da liberdade
de imputáveis não pode ocorrer à margem de um comportamento grave
e censurável» e «não pode alhear-se de uma adequação à gravidade
dessa censura».
A culpa, enquanto fundamento da pena, não implica a aceitação do
livre-arbítrio, contentando-se (de acordo com Roxin) em que o juiz trate o
Servimo-nos do texto, de que foi Relatora a Deputada Maria Margarida Silva
Pereira, publicado na Revista Sub Judice, 1996, «Código Penal — Os anos da Reforma»,
n.º 11, Janeiro/Junho, pp. 7 e ss. (bold e itálico nossos).
(22)
Ponto I B) do parecer.
(21)
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Cap. II — A Revisão de 1995
cidadão «como um homem capaz de decisão autónoma e responsável, desde
que a sua motivação não esteja excluída por perturbações espirituais».
Trata-se assim de «um princípio regulador e normativo, e os princípios
não devem ser ajuizados de acordo com critérios do verdadeiro ou do falso,
mas com os da sua fecundidade social ou danosidade».
E depois de tentar rebater, através da experiência da doutrina e
jurisprudência alemãs do pós-nazismo, que o afastamento do livre-arbítrio seja incompatível com a «culpa penal», a Comissão tece várias
asserções em que interessa ponderar.
Nas suas implicações positivas de garantia jurídico-estatal, «a culpa
fundamentará sempre a aplicação da pena (não há pena sem culpa, não
há crime sem culpa) mas não terá a incumbência de influenciar inexoravelmente o seu limite mínimo. Pode muito bem a pena, em nome de
outras considerações, ficar aquém do grau que atingiria tendo-a exclusivamente por padrão.
17.2. Prosseguindo: afirma o artigo 40.º que a pena não pode
nunca «ultrapassar a medida da culpa» (n.º 2). Trata-se da consagração
inequívoca pela lei ordinária do sentido do princípio constitucional.
A dignidade da pessoa humana impõe que a sanção criminal encontre na medida da culpa o seu tecto de aplicação e, por maioria de
razão, que se fundamente na culpabilidade.
E termina:
«A articulação entre o sentido atribuído à culpa penal pela
Reforma e a Constituição afirma-se total, por isso que:
1.º A Reforma não vincula o princípio da culpa a uma opção
filosófica ou metafísica sobre o livre-arbítrio. Comete-lhe
uma função político-criminal de garantia dos cidadãos e
não mais do que isso — o que é adequado a um modelo
de sociedade pluralista, que não amarra todos a uma unívoca profissão de fé;
2.º A Reforma entende que a pena não pode exorbitar a culpa,
do mesmo modo que não pode privar-se dela como seu
pressuposto;
3.º A Reforma abre a possibilidade de a medida da pena tomar
em conta outras considerações, desde que se encontrem ao
serviço de uma infra-incriminação».
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
Não se traçam particulares referências ao facto de o artigo 40.º
encimar o acervo de finalidades pelo princípio da vinculação à defesa
de bens jurídicos. E sobre a reintegração social diz-se que «… é também importante na determinação da medida da pena. De facto, não é
credível que um sistema penal oriente a execução da pena com objectivos preventistas, se eles não estiverem presentes no momento da
definição da própria sanção» (23).
Convicção extraída
§ 18. Da leitura feita parece legítimo extrair a conclusão de que
a AR, nesta apreciação da Comissão, entendeu o princípio da culpa não
apenas como limite da pena mas como seu pressuposto (no que subsistirá uma diferença com a noção de fundamento). E que o conceito
de culpa não supõe o livre arbítrio mas se configura como «um princípio regulador e normativo» que se ampara no préstimo que demonstre
para a convivência em sociedade. E que na medida da pena podem
entrar outros elementos que não apenas a medida da culpa.
Reflexão em sintonia com Figueiredo Dias
§ 19. Interessará também examinar a importante reflexão de Anabela Rodrigues, que se debruçou sobre as principais alterações ao
Código Penal 1982 (24), feitas antes mas publicadas após a entrada em
vigor da Revisão (1 de Outubro de 1995).
19.1. Assinalando de novo o «grave défice de aplicação» do
Código Penal 1982 — nomeadamente, no critério de escolha e medida
da pena, no peso desproporcionado das condenações em prisão relativamente às de multa, na frequência das penas de prisão de curta duração
em detrimento das penas de substituição —, apontando as deficiências
das estruturas disponíveis durante certo período de tempo, a Autora já
Loc. cit., I, E).
ANABELA MIRANDA RODRIGUES, Sistema punitivo português — Principais
alterações no Código Penal revisto, in cit. Revista Sub Judice, 1996, «Código Penal
— Os anos da Reforma», n.º 11, Janeiro/Junho, pp. 27 e ss.
(23)
(24)
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Cap. II — A Revisão de 1995
não imputa as causas fundamentais do fracasso à incompreensão ou
resistência dos magistrados; ter-se-iam antes localizado «ao nível legislativo, onde se deparavam obscuridades, lacunas e desarmonias sensíveis
da regulamentação legal». Daí as alterações da Reforma, sendo que as
do artigo 40.º valem «por todo um programa político-criminal», embora
se insista em que não se quis solucionar por via legislativa a questão
dogmática dos fins das penas.
Mas não deixa de se criticar a jurisprudência naqueles dois pontos já mencionados (partir para a medida da pena do ponto médio e o
pouco uso das penas de substituição da curta e média prisão) «que
fica(ra)m a dever-se a considerações textuais que podem ser equívocas».
19.2. A nosso ver, e em breve nota, a letra da lei não oferecia
dúvidas sobre a valoração proeminente a conferir à culpa em face da
prevenção. Colocar o acento no legislador — se se quer afinal um
novo rumo — então parece razoável.
Ao examinar a jurisprudência coetânea se aquilatará da influência
desta posição, aliás na linha de Figueiredo Dias.
19.3. No entanto, o que agora sobremodo se quer salientar é a
interpretação que é feita do (então ainda não aprovado) artigo 40.º, sob
a epígrafe «Finalidades das penas e das medidas de segurança», cuja
redacção esteve na origem do hoje vigente preceito e que, por comodidade, se transcreve aqui:
«1 — A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a
protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2 — Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da
culpa.
3 — A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente».
(Afinal, a redacção ainda hoje vigente).
19.4. Retira aquela Autora três proposições do artigo 40.º: o
direito penal é um direito de protecção de bens jurídicos; a culpa é
tão-só limite da pena mas não seu fundamento; o ideal de socialização como finalidade de aplicação da pena.
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
19.4.1. Pela primeira reconheceu-se uma legitimação do direito
penal «assente nos valores da racionalidade e da eficácia», secularizando-se o direito através do «afastamento do sagrado, a ausência de
Deus, a total imanência do pensamento». Não existe mais uma intervenção em nome de qualquer moral social ou finalidades transcendentes.
A política criminal detém a primazia e aponta o sentido preventivo como
«o valor orientador da administração da justiça penal» (25).
«A «segurança» da legitimidade dos «fins» — concretamente prevenção especial e geral — de que este direito penal se vale, substitui-se
à «segurança» que a «ideia retributiva» também durante tanto tempo lhe
garantiu».
Posto que a «culpa» não deva ser substituída integralmente pela
«necessidade», ela ainda será um pressuposto da punição, a funcionar
como um princípio de legitimação especial e independente.
19.4.2. A segunda proposição faz da culpa «tão-só limite da pena
mas não o seu fundamento» o que significa para a Autora que «se sem
culpa não pode haver pena, nem sempre a culpa determina a aplicação
de uma pena», atribuindo à culpa um conteúdo material autónomo não
assimilável à óptica preventiva.
«O que traz consigo a consequência de se poder assim dissociar o
seu pensamento das questões do livre arbítrio, do dogma da culpa da
vontade e de um quadro de valores que preside a uma exasperada
concepção retributiva da pena, para a ancorar na exigência absoluta e
eticamente relevante de respeito pela dignidade humana» (itálico
nosso).
«No tempo presente — acrescenta Anabela Rodrigues —, a síntese
deve logicamente fazer eco do Estado contemporâneo, de direito, social
e democrático — em que, portanto, a aceitação da defesa intransigente
do indivíduo e da sua dignidade não se opõe materialmente a uma legitimação utilitarista da intervenção punitiva estadual e em que os critérios de utilidade aparecem em relação dialéctica com os valores/princípios formais-materais garantísticos assumidos por aquele Estado».
(25)
Citando COSTA ANDRADE, diz-se: «O direito penal só está (…) legitimado a
servir valores ou metas imanentes ao sistema social e não fins transcendentes de índole
religiosa, metafísica, moralista ou ideológica».
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41
Cap. II — A Revisão de 1995
Dá-se conta que ultimamente muitos autores têm procurado encontrar
na retribuição um dique à perseguição incondicional das finalidades próprias
da política criminal. Embora abandonando a retribuição como função da
pena, atribuíram-lhe um irrenunciável alcance garantístico, enquanto «delimitação objectiva da sanção», o que sucederia com a recuperação da teoria
retributiva pela doutrina escandinava e anglo-saxónica, se bem que tendo
em vista sobretudo a dimensão socializadora da pena (26).
19.4.3. A terceira proposição — a prevenção especial, designadamente a socialização — tem sido alvo de críticas duras quer pelo risco
da dita «domesticação» da personalidade individual, quer porque se lhe
imputa um rotundo fracasso.
E nos EUA também um renovado interesse pela retribuição terá
encontrado fundamento na discricionariedade quase ilimitada com que as
entidades judiciais vinham tomando decisões, quer quanto à determinação
da medida da pena, quer quanto à libertação do condenado na fase de
execução da pena de prisão. Aí se terá caminhado para o afastamento
expresso da socialização como fim da pena, «substituindo-a pelo conceito
de «justos méritos», definido quanto ao conteúdo pela referência a uma
dupla escala de punição típica, prevista pelo legislador com base na gravidade da ofensa e na prognose de reincidência do agente».
Mas não bastará erigir a socialização em objectivo da reforma
penitenciária, haverá que proceder à humanização do sistema e dotá-lo
do conhecimento e meios para a concretizar.
Nesta óptica, a pena de prisão deveria ser reduzida aos casos de crimes
mais graves sempre que outra forma de pena não estivesse em condições
de «assegurar o efeito essencial de prevenção geral desejado».
Aspecto este em que — diremos — toda a gente estará de acordo.
Outra posição concordante com as antecedentes
§ 20. Na análise do (então ainda) projecto de Revisão, levada a
cabo por Gonçalves da Costa (27), afirma-se clara a inovação recolhida
Loc. cit., nota 31.
«A Parte Geral no Projecto de Reforma do Código Penal Português», in
RPCC, Ano 3, 2.º a 4.º, Abril/Dezembro de 1993, maxime pp. 323 a 334.
(26)
(27)
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
da norma que acabou transposta para o artigo 40.º, considerando a opção
feita, embora discutível, numa questão permanentemente em aberto, «no
melhor sentido hoje alcançável» — «a culpa é considerada, não como
fundamento e medida da pena, mas como seu pressuposto e como seu
limite inultrapassável» (28).
Ter-se-ia abandonado a retribuição como fundamento da pena
— mas a aplicação das penas «há-de ter em vista a reprovação (que
não já a retribuição) e a prevenção (geral e especial) …».
Todavia, não deixa de afirmar, em consonância com o que explicita
Figueiredo Dias (29):
«Mas a satisfação das exigências de reprovação do crime, não no
sentido de pura retribuição ou castigo, antes no sentido de censura e de
responsabilização pelo concreto comportamento delinquente, há-de continuar a ser um dos objectivos da aplicação das penas, talvez não como
outra finalidade, mas como realização da finalidade mesma de prevenção geral de integração…». E, recolhendo de Roxin, «não como um
«resultado moral», que não seria legítimo impor pela força, através da
imposição de um mal…, mas através da censura dirigida ao agente, da
sua responsabilização pelo seu acto, com a consequente tomada de
consciência da negatividade deste e dos resultados.»
Para este Autor, a retribuição não é considerada pelo Projecto como
«já o não é pelo Código vigente», embora acabe por citar a posição de
Eduardo Correia, mentor do Código Penal 1982, que dizia: «A culpa,
partindo da dignidade humana, terá … que ser sempre fundamento, ou,
ao menos, limite da pena».
Afirmação aquela que, com a devida vénia, desvirtuaria a ideia do
mentor do Código Penal 1982 em benefício de uma posição que não
era a sua.
(28)
(29)
Ibidem, p. 325.
Cfr. nota 31.
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CAPÍTULO III
CONTEÚDO MAIS PRECISO DA REVISÃO DE 1995
A preparação do projecto
§ 21. O que vimos tentando destacar, tornar-se-á mais nítido nos
seus contornos à luz da discussão havida na preparação do projecto e
de que nos dão conta as Actas da Revisão (30).
Como logo no início (31) foi assinalado pelo Prof. Figueiredo Dias,
o artigo 2.º do Projecto de Eduardo Correia constituía uma pedra basilar do princípio da culpa, quando nele se dizia:
«Quem age sem culpa não é punível. A medida de pena não pode
exceder essencialmente a da culpa do agente pelo seu facto ou pela sua
personalidade criminalmente perigosa.»
«Tratou-se de um artigo alvo de muita discussão, tendo sido eliminado, embora, tenha passado, no essencial, para o art. 72.º, n.º l, do
actual Código» — dizia o Presidente da Comissão.
«A determinação da medida da pena, matéria de extrema dificuldade, não tem sido efectuada através de um apelo directo às concepções
do Código sobre as finalidades das penas.
«Omissões deste tipo têm levado a que se consagre ao nível do
Código Penal ou mesmo ao nível do texto constitucional, uma declaração muito clara sobre os fins das penas, por forma a fornecer ao juiz
critérios para que ele possa, de forma mais fácil, medir a pena em concreto».
A Comissão Revisora foi presidida pelo Prof. Figueiredo Dias. Tinha havido
um anteprojecto preparado na PGR sob a égide do saudoso PGA, depois Conselheiro
M. A. Lopes Rocha.
(31)
Cfr. Acta n.º 2, de 23 de Janeiro de 1989.
(30)
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44
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
Por isso interrogava se se justificaria reeditar aquela norma.
Questionado sobre se a sua reintrodução iria projectar-se na compreensão do artigo 72.º, entendeu que «nada se alteraria em face da
proposta de aditamento do novo artigo, alcançando-se somente uma
maior clareza. Uma outra vantagem assinalável seria a repercussão
positiva que iria ter no domínio das medidas alternativas».
«Uma norma sobre os fins das penas facilitaria também a operação
de escolha da pena» — acrescentou.
E foi apresentada para reflexão a norma que viria a ficar, no essencial (32), como o artigo 40.º actual, já transcrito (§ 19.3).
Nos artigos 2.º e 73.º introduziram-se alterações de pormenor (33).
§ 22. Ao fazer entrega do Projecto da Parte Geral, o Prof. Figueiredo
Dias explanou de novo que não foram alterados «os grandes propósitos do
Código, tendo a Comissão, pelo contrário, procurado obter soluções que
tornem operativa a concepção político-criminal do Código».
E quanto às penas alternativas: «não tendo sido enriquecida a pluralidade das penas alternativas, tentou-se clarificar os critérios da sua
aplicação, sendo convicção da Comissão que a realidade possa sofrer
modificação sensível no sentido da aplicação de tais medidas, obtendo-se
por essa via uma diminuição na aplicação da pena de prisão» (34).
Avançando — o que melhor tentaremos explicitar —, parece-nos
difícil concluir, face aos textos (e não às simples intenções) que, nesta fase
dos trabalhos, se tivesse alterado a posição que Eduardo Correia imprimiu
na versão originária do Código Penal 1982 e que se pretendeu clarificar.
Terceira leitura do projecto — declaração de discordância
§ 23. Na terceira leitura do Projecto, a discussão (35) agudizou-se
e alargou-se na defesa da manutenção do dispositivo do artigo 40.º
A Comissão voltou à redacção do n.º 3 — medidas de segurança — segundo
se dá conta na Acta n.º 15.
(33)
Cfr. Acta n.º 16.
(34)
Cfr. Acta n.º 20.
(35)
Cfr. Acta n.º 40, de 25 de Setembro de 1990.
(32)
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Cap. III — Conteúdo mais preciso da revisão de 1995
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«Uma norma com este conteúdo pode auxiliar largamente o juiz na
aplicação das penas e medidas de segurança. Por outro lado, a sua
eliminação levaria à revisão de todos os artigos que incidam sobre a
substituição da pena onde se faz referência a este dispositivo» — reiterava o Presidente da Comissão.
Todavia, o Cons. Sousa e Brito, membro da Comissão, adiantou
que «se tivesse de consagrar alguns princípios, recolheria neste domínio,
os princípios da necessidade da pena, da culpa e da recuperação
social».
Porque ficou isolado, incluindo na alusão ao aditamento do princípio da necessidade, por se entender que a referência à protecção de bens
jurídicos é no fundo o acolhimento de tal princípio, apresentou uma
declaração a que se aludirá de seguida.
23.1. «O legislador não deve tomar desnecessariamente partido
em controvérsias doutrinais». Não negando que a pena seja um meio
de defesa dos bens jurídicos, Sousa e Brito entendia não ser adequadamente definida através deste conceito e que fosse necessário ou conveniente consagrá-lo na lei ou se justificasse um artigo sobre os fins das
penas. Afinal todas as sanções jurídicas visam a defesa dos bens jurídicos. Por outro lado, «há factos típicos que não prevêem comportamentos tendentes a violar bens jurídicos, mas sim comportamentos
tendentes a não produzir bens jurídicos, como acontece com os crimes
específicos ou próprios». Tudo aliado à dificuldade de consenso na
própria definição de bem jurídico.
Em sua opinião, a relação correcta é a que entende que «a pena
visa retribuir a culpa, é neste sentido «em função da culpa», como bem
diz o vigente art. 71.º, mas a culpa, que é fundamento e não mero
limite da pena, só é retribuída na medida necessária à protecção dos
bens jurídicos». (bold nosso, como nos seguintes)
«Como se sabe da teoria do crime, nem todo o ilícito é culposo e
nem toda a culpa é punível. A ilicitude está ligada à definição de bens
jurídicos, a culpa depende da ilicitude e a punibilidade depende da ilicitude e da culpa e está ligada à necessidade de protecção de bens
jurídicos», pontos que ao legislador não cabe esclarecer.
E «se a prevenção geral não pode limitar a atenuação em função
da culpa, porque levaria então a uma inconstitucional pena sem culpa,
já pode limitar a atenuação em função da prevenção especial dentro da
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
medida da culpa e abaixo dela. Por outras palavras: a prevenção geral
pode justificar que o criminoso pague uma pena (ou parte dela) devida
pela culpa que não seria indispensável para o afastar da prática de futuros crimes». Assim se explicariam os limites mínimos de atenuação
especial e os impedimentos possíveis à substituição de penas nos casos
dos pressupostos da suspensão da pena, do regime de prova e da dispensa de pena.
23.2. Decisiva e claramente: «… a frase do n.º 2 (do artigo 40.º,
entenda-se) não exprime adequadamente a função da culpa no sistema
penal, em que não é apenas um limite, mas fundamento (ainda que
não suficiente) da pena. Assim, embora a frase seja compatível com
a primazia da retribuição da culpa sobre os fins meramente preventivos — então a pena é em função da culpa, pelo que não pode
ultrapassar a medida desta —, é também compatível com a primazia da
prevenção especial… ou com a primazia de qualquer combinação de
fins preventivos. Aliás, só nesta segunda alternativa a frase exprime
adequadamente a função da culpa no sistema». No entanto, esta
segunda alternativa estaria «em contradição com o actual Código, e até
com disposições decisivas do Projecto».
Uma primeira apreciação
§ 24. Antes de atentarmos no preâmbulo da Revisão levada a
cabo pelo DL n.º 48/95, de 15 de Março, que entrou em vigor em 1
de Outubro de 1995, repare-se no que na Lei n.º 35/94, de 15
de Setembro (Lei de autorização legislativa), se dizia a este propósito
(artigo 3.º, A, 2):
«Introduzir como finalidades da aplicação das penas e medidas
de segurança a protecção de bens jurídicos e a reintegração do
agente na sociedade, bem como estabelecer, quanto à medida de
segurança, proporcionalidade à gravidade do facto e subordinar a sua
aplicação à perigosidade do agente; e, quanto à pena, consagrar o
critério de que, em caso algum, pode ultrapassar a medida da
culpa»…
Aliás, a reintegração do delinquente na sociedade constituía há
muito uma das finalidades da pena, como se afirmava no n.º 2 (parte
final) da «Introdução» ao Código Penal 1982.
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Cap. III — Conteúdo mais preciso da revisão de 1995
47
§ 25. Voltemos então ao preâmbulo do DL n.º 48/95 — e desta
forma entramos na avaliação sobre se o legislador conseguiu ou não
alterar o que estava disposto no Código Penal 1982 sobre as finalidades
das penas e o valor proeminente aí consagrado à retribuição e à culpa
que lhe está imanente.
Afirma-se logo de início (n.º 1): «… mais do que a moldura penal
abstractamente cominada na lei, é a concretização da sanção que traduz
a medida da violação dos valores pressupostos na norma, funcionando,
assim, como referência para a comunidade». Por outro lado, «… a
execução da pena revelará a capacidade ressocializadora do sistema com
vista a prevenir a prática de novos crimes» …
A validade da matriz da versão originária do Código Penal 1982
25.1. «O Código Penal de 1982 permanece válido na sua essência. A experiência da sua aplicação ao longo de mais de uma década
tem demonstrado, contudo, a necessidade de várias alterações com vista
não só a ajustá-lo melhor à realidade mutável do fenómeno criminal
como também aos seus próprios objectivos iniciais, salvaguardando-se
toda a filosofia que presidiu à sua elaboração…»
Entre as várias correcções a efectuar enumeram-se as seguintes:
quebrar o desequilíbrio entre as penas previstas para os crimes contra
as pessoas e os crimes contra o património; reorganizar o sistema global
de penas para a pequena e média criminalidade com recurso às medidas
alternativas às penas curtas de prisão, com particular destaque para o
trabalho a favor da comunidade e a pena de multa.
«A pena de prisão — reacção criminal por excelência — apenas
deve lograr aplicação quando todas as restantes medidas se revelem
inadequadas, face às necessidades de reprovação e prevenção».
Saliente-se que se relega sempre para o «papel concretizador da
jurisprudência a eleição da medida — detentiva ou não — que melhor
se adeqúe às particularidades do caso concreto, de acordo com critérios
objectivados na própria lei. Necessidade, proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável à violação de um bem jurídico fundamental».
25.2. Destaca-se a inovação constante do artigo 40.º ao consagrar que a finalidade a prosseguir com as penas e medidas de segurança
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
é «a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade».
Renova-se a aspiração:
«Sem pretender invadir um domínio que à doutrina pertence
— a questão dogmática do fim das penas —, não prescinde o
legislador de oferecer aos tribunais critérios seguros e objectivos
de individualização da pena, quer na escolha, quer na dosimetria,
sempre no pressuposto irrenunciável, de matriz constitucional, de
que em caso algum a pena pode ultrapassar a culpa.»
E logo adiante:
«Aos magistrados judiciais e do Ministério Público caberá,
pois, um papel decisivo na implementação da filosofia que anima
o Código porquanto é no momento da concretização da pena que
os desideratos de prevenção geral e especial e de reintegração
ganham pleno sentido.»
Reservada a pena de prisão para situações de maior gravidade e
que mais alarme social provocam, designadamente a criminalidade violenta e ou organizada, bem como a acentuada inclinação para a prática
de crimes revelada por certos agentes, pretende conferir-se às medidas
alternativas uma nova eficácia, o que teria a ver com a suspensão da
execução da pena, a pena de multa (que não poderia ser suspensa, mas
substituída por dias de trabalho), o regime de prova e o trabalho a favor
da comunidade.
Síntese indicativa da posição seguida
§ 26. Em aperto de síntese, destinada essencialmente a «não
perder o fio à meada», dir-se-á: a generalidade dos mentores da Revisão de 95 afirmam pretender que se mantenha a matriz do Código
Penal 1982 no que concerne ao papel da culpa, e que por isso a
introdução do artigo 40.º apenas visa clarificar; todavia, a função da
culpabilidade, que na versão originária do Código Penal 1982 servia
de fundamento e medida da pena teria passado apenas a limite desta,
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Cap. III — Conteúdo mais preciso da revisão de 1995
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4 — Medida da Pena
assumindo a finalidade da prevenção geral, na modalidade reintegradora, isto é, de afirmação pela comunidade da validade da norma
violada, o vértice da preocupação do juiz quando procura escolher e
medir a sanção criminal.
O que não se coaduna com a literalidade cristalina do artigo 71.º,
correspondente ao anterior artigo 72.º da versão originária do Código
Penal (embora com alguma alteração, como se vê) (36).
26.1. Pretenderam aqui os «legisladores» uma alteração de vulto
na filosofia da finalidade, escolha e determinação da medida da pena,
abandonando-se, de todo, o sistema de retribuição para abraçar uma
moldura que põe o zénite na prevenção geral? As alterações dos preceitos traduzem tal significado? Qual a interpretação correcta à luz dos
elementos normais que servem de apoio ao exegeta?
Sabida a importância, ainda que relativa, do elemento histórico na
hermenêutica interpretativa, do que fomos elencando parece-nos lícito
(36)
No § 10 supra já se deu conta dos correspectivos preceitos do Código Penal
1982 (artigos 71.º e 72.º). Confrontemos com os actuais. O artigo 70.º (Critério de
escolha da pena), correspondente ao artigo 71.º do Código Penal 1982, diz: «Se ao crime
forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o
tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição». Enquanto o anterior (artigo 71.º) dispunha: «Se
ao crime forem aplicáveis pena privativa ou pena não privative de liberdade, deve o
tribunal dar preferência fundamentada à segunda sempre que ela se mostre suficiente
para promover a recuperação social do delinquente e satisfaça as exigências de
reprovação e de prevenção do crime».
E o artigo 71.º (Determinação da medida da pena): «1. A determinação da medida
da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das
exigências de prevenção. 2. Na determinação concreta da pena o tribunal atende a
todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do
agente ou contra ele, considerando, nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, o
modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de
violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência:
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta
anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita,
manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3. Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena (vão
sublinhadas as alterações).
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
extrair que esteve subjacente à introdução do novo artigo 40.º um propósito de clarificação dos fins das penas, essencialmente destinada a
orientar os magistrados incumbidos de levar o Código Penal à prática,
sem embargo de não se querer interferir na dogmática. Só que várias
afirmações no sentido de manter a filosofia da versão originária do
Código Penal 1982 e a própria redacção vertida nos textos não se afigura fornecerem apoio bastante para uma alteração de protótipo desejada
por alguns.
É isso que tentaremos ver melhor.
De novo Sousa e Brito
§ 27. Voltemos, entretanto, ao pensamento de Sousa e Brito (37),
crê-se que indevidamente esquecido durante estes anos, já depois da
sua participação nos trabalhos preparatórios da Revisão de 95, onde
produziu a declaração referida.
27.1. Em sua opinião, há que esquecer o «zero dogmático» que
é o n.º 1 do artigo 71.º (38), e a dispensabilidade da inclusão dos n.os 1
e 2 do artigo 40.º do CPRev95, devendo reconstruir-se a dogmática
da medida da pena a partir dos princípios.
O que está afirmado «consiste essencialmente na aplicação do
princípio constitucional da culpa que se exprime dizendo que a pena
não pode ultrapassar a medida da culpa, o que é indiscutível para qualquer teoria dogmática, mesmo sem o n.º 2 do artigo 40.º».
Mas se é neutro o conteúdo dos n.os 1 e 2 do artigo 40.º, o mesmo
não se pode dizer da sua fórmula, que é emblemática.
Importada da teoria dos fins das penas do Projecto alternativo do
Código Penal de 1966, apresentado por um grupo de professores alemães,
entre os quais Roxin, que particularmente defendeu este artigo, a posição
de Figueiredo Dias acabará por não coincidir com a de Roxin.
«Os fins das penas no Código Penal», in Problemas fundamentais de Direito
Penal — Homenagem a Claus Roxin, Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2002,
pp. 157 e ss.
(38)
Afirmação de que se discorda se entendida como preceito sem significado por
não espelhar qualquer reflexo das finalidades da pena, pois se considera essencial.
(37)
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Cap. III — Conteúdo mais preciso da revisão de 1995
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27.2. Segundo Roxin, e perante fórmula idêntica (39), a pena visa
a prevenção especial e geral. A culpa é concebida como «resultado de
um processo valorativo socio-psicológico, um juízo da comunidade
jurídica, que relativamente à altura da pena não é determinado pontualmente à partida, mas só possui realidade empírica no espectro de certo
espaço de manobra».
«É a exigência de prevenção geral que dita a limitação da pena
pelo juízo social da culpa, o qual, dada a sua incerteza, não permite
mais do que determinar um certo espaço de manobra ou margem de
liberdade como medida da culpa entre um máximo e um mínimo ainda
correspondentes à culpa.»
«A pena é fixada dentro da medida de culpa e abaixo dela pela
prevenção especial, com os limites da prevenção geral mínima, geralmente satisfeita, embora nem sempre, com o limite inferior da medida
legal».
Dentro do limite da culpa, haveria uma clara prevalência da prevenção especial sobre a prevenção geral e por isso a crítica (40) de que
a teoria de Roxin seria uma «versão disfarçada da retribuição».
27.3. Em sentido diferente — prossegue o mesmo Autor —,
Figueiredo Dias entende que «primordialmente, a medida da pena há-se
Introduzida no direito nacional por Eduardo Correia, sem se conhecerem
bem as razões. Diz-se no Código Penal alemão (na redacção posterior a 31-01-1998)
— trad. espanhola: «§ 46. Principios de la fijación de la pena. (1) La culpabilidad
del autor constituye el fundamento para la fijación de la pena. 2 Deben considerarse
las consecuencias que son de esperar de la pena para la vida futura del autor en la
sociedad. (2) En la fijación sopesa el tribunal las circunstancias favorables y desfavorables del autor. 2 En esta relación deben tomarse en consideración de manera
particular: — los móviles y objetivos del autor — el ánimo, que habla del hecho y
la voluntad empleada en el hecho, — la medida de la violación al deber — la clase
de ejecución y el efecto culpable del hecho, — los antecedentes de conducta del autor,
sus condiciones personales y económicas, así como su conducta después del hecho,
especialmente su esfuerzo para reparar el daño, así como el esfuerzo del autor de
lograr una acuerdo con la víctima…». Veja-se a semelhança com o preceito português
do artigo 71.º
(40)
ANABELA MIRANDA RODRIGUES, A Determinação da Medida da Pena Privativa
de Liberdade, Coimbra Editora, 1985, 335 ss.
(39)
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face
ao caso concreto» (41).
Para cada caso concreto, existe «uma medida óptima de tutela dos
bens jurídicos e das expectativas comunitárias» medida que não pode
ser excedida e que «não tem de coincidir sempre com a medida da
culpa». «Abaixo desse ponto óptimo outros existem em que aquela
tutela é ainda efectiva e consistente», até se alcançar um limiar mínimo,
que é «o quantum de pena imprescindível também no caso concreto, à
tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias. É esta medida
mínima da «moldura de prevenção» que merece o nome de defesa do
ordenamento jurídico. Uma tal medida em nada pode ser influenciada
por consideração, seja de culpa, seja de prevenção especial».
27.4. Ficará claro como esta posição — continua Sousa e Brito
—, que a tese que coloca em primeiro lugar o juízo sobre a necessidade
de tutela das expectativas comunitárias, não coincide com o fundamento
primeiro da culpa apontado por Roxin.
Se é assim — acrescenta este Autor — o que diz o artigo 40.º do
CPRev95 nada resolve, por isso que suporta teses dogmáticas de sentido
completamente diferente quanto ao ponto de partida.
Para rematar: «Há algo de quixotesco em levantar a bandeira do
§ 2.º (sic) do artigo 40.º do Alternativentwurf de 1966, com uma interpretação contrária à dos seus autores, quando a proposta destes não
vingou no direito alemão e especialmente quando Hans Schultz, que
especialmente a influenciou, entendeu não dever adoptar a sua anterior
proposta no seu Anteprojecto de revisão da Parte Geral do Código
suíço» (42).
(41)
Estamos a recolher de SOUSA E BRITO. Perdoe-se a extensão da citação só
justificável pela importância da mesma.
(42)
Diz-se no artigo 47.º deste Código (extraído de uma versão francesa): «1. Le
juge fixe la peine d’après la culpabilité de l’auteur. Il prend en considération les
antécédents et la situation personnelle de ce dernier ainsi que l’effet de la peine
sur son avenir. 2 La culpabilité est déterminée par la gravité de la lésion ou de la
mise en danger du bien juridique concerné, par le caractère répréhensible de l’acte,
par les motivations et les buts de l’auteur et par la mesure dans laquelle celui-ci aurait
pu éviter la mise en danger ou la lésion, compte tenu de sa situation personnelle
et des circonstances extérieures.
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Cap. III — Conteúdo mais preciso da revisão de 1995
53
27.5. Na interpretação de Sousa e Brito e a propósito do n.º 2 do
artigo 40.º, em divergência clara com as teses de Figueiredo Dias e
Anabela Rodrigues, «a pena visa retribuir a culpa, é neste sentido “em
função da culpa”, como bem diz o n.º 1 do actual artigo 71.º, mas a
culpa que é fundamento ou pressuposto essencial, e só por isso também limite da pena, só é retribuída na medida necessária à protecção
dos bens jurídicos». Portanto, uma relação inversa à daqueles Autores.
O fim da retribuição da culpa está em primeiro lugar e só depois vêm
as outras finalidades das penas (43).
Por outro lado, diz o mesmo Autor, «é impossível obedecer à proibição de a pena ultrapassar a medida da culpa — ou ao comando equivalente de a manter dentro da medida da culpa — sem medir a pena
pela culpa. Medir a pena pela culpa é o conteúdo essencial da ideia
de retribuição, nada mais. A pena é uma prestação activa ou passiva,
devida pelo criminoso sob coacção: está-lhe sujeito no sentido de que
há cumprimento forçado se não for voluntário. Declarar que a pena é
medida pela culpa quer dizer que a prestação da pena segundo a unidade
de medida que a caracteriza é tanto maior quanto maior for a culpa e
inversamente que não existe pena sem culpa. Ora todo o direito penal
não é mais do que um elaborado sistema de escolher a culpa que se
pune e de medir a pena pela culpa. Ora medir a pena pela culpa e
determinar a medida da retribuição da culpa pela pena são duas expressões equivalentes para designar a mesma actividade finalística. É contraditório dizer que esta actividade é um critério da determinação
da pena e negar que a retribuição seja uma finalidade da pena»
(bold nosso).
27.6. Como já vinha dos clássicos (Protágoras), e contra o «absolutismo das teorias retributivas, não se pune porque o delinquente
cometeu um acto ilícito, que não pode apagar-se», mas em vista do
futuro, para que daí em diante o delinquente não volte a cometer injustiça e também não os outros que vêem como ele é punido.
O facto de nos artigos 45.º, n.º 1, 48.º, n.º 1, 50.º, n.º 1, 58.º, n.º 1, 60.º, n.º 2
e 70.º não aparecer a referência à reprovação mas apenas às «finalidades da punição»
deve interpretar-se como uma alusão sistemática às três finalidades (todos os bold
são nossos).
(43)
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54
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
Para Platão, a reparação do dano era, tal como a cura da doença,
um bem futuro que se mede pelo passado, é a «medicina da maldade»
da alma. E colocava a finalidade da prevenção especial em primeira
linha: deve ser tarefa das mais belas leis que «por meio de factos e de
palavras, de prazeres e de dores, de honras e de desqualificação, de
multas e de dádivas, ou, em geral, por qualquer outro meio, (conseguir
que o delinquente) odeie a injustiça e que ame, ou pelo menos, não
odeie a justiça na sua essência…».
Mas chegava ao limite de que para os incuráveis era melhor que
não continuassem a viver! Aproximava-se assim de uma pena que se
determinaria por «tipos de criminosos» e não por «tipos de facto», o
que colidiria, entre nós, com o modelo de direito penal do facto exigido
pela Constituição.
27.7. Concluindo Sousa e Brito assim:
«… teorias da pena como prevenção de crimes futuros não
podem recuperar o conceito de pena como «expressão de um juízo
de valor moral de quem pune», de que falava von Liszt. Penso que
não pode recuperar um autêntico juízo de desvalor ético do julgador, mas apenas os juízos morais de desvalor da maioria da comunidade como elementos de facto que contribuem positivamente para
a prevenção geral. A teoria da retribuição pretende, porém
medir à partida a culpa do agente e não recuperar os juízos de
culpa da comunidade como critério da prevenção geral».
27.8. Responde ainda a objecções menores.
«Não se trata na reparação da culpa em direito penal de qualquer
incerta “expiação” religiosa ou moral». E se o carácter jurídico da
reparação da culpa pela pena e a sua fundamentação ética pressupõem
o que alguns persistem em chamar um postulado metafísico, a liberdade
humana, esta é «um pressuposto sem o qual não é possível falar não só
de culpa mas desde logo de norma e mais geralmente entender actos
linguísticos dirigidos ao comportamento de outrem…» … «há que continuar a entender que a determinação da medida da culpa dentro da
medida legal da pena é o primeiro passo obrigatório da medida judicial da pena. A melhor explicação sistemática da parte geral do direito
penal é, em minha opinião, a de que a culpa existe realmente na
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Cap. III — Conteúdo mais preciso da revisão de 1995
55
cabeça do criminoso — não da sociedade — como base de uma valoração determinada do direito — um certo desvalor —, a que correspondem várias penas possíveis dentro de uma certa escala ou quadro.
É claro que faz sentido dizer, como o BGH não mais deixou de dizer
desde 1954, que o juiz «não deve impor uma pena que, pela altura ou
pela espécie, é tão pesada que por ele próprio já não é sentida como
ajustada à culpa» e que o juiz deve «escolher entre as várias penas
ajustadas à culpa».
«Não há uma culpa de extensão variável mas só quantidades ou
gravidades determinadas de culpa. Só que a gravidade da culpa não
varia em função de uma escala contínua, como os dias de prisão, mas
varia para mais ou para menos segundo algumas, relativamente poucas,
circunstâncias. É assim explicável que a uma certa gravidade de culpa
corresponda um quadro de penas entre uma pena máxima e uma pena
mínima e que uma variação da culpa em função de certa circunstância
corresponde a uma variação do quadro de penas ajustadas à culpa».
Por isso que haja, «na determinação da medida certa da culpa pelo
juiz, um certo risco, ou salto no desconhecido, frequente em deliberações complexas, e de cuja responsabilidade se não pode fugir».
«E há critérios racionais de escolher uma de preferência a outra
das penas ajustadas à culpa: as necessidades de prevenção especial e
geral são boas razões e, na falta de outras, o princípio da necessidade
da pena dá uma razão para escolher a pena mínima que ainda é ajustada
à culpa».
27.9. No que toca à prevenção especial, porque esta «dá conteúdo
material à reparação da culpa… há que preencher a pena devida pela
culpa com todo o conteúdo possível de prevenção especial». Porém,
nem toda a culpa tem de ser punida num Estado de direito mas só a
que é necessário punir para defender a ordem dos bens jurídicos,
podendo assim ficar abaixo dela se é de esperar que uma pena mais leve
baste para deter o condenado de outras infracções. Assim se obteria uma
«pena de lembrança» para os criminosos ocasionais.
Segundo as indicações da criminologia, a duração da prisão necessária para uma (normal) ressocialização tem como limite máximo cinco
anos, pelo que o relevo a conferir à prevenção especial em confronto
com a obrigação de a sociedade proteger os seus membros perante o
criminoso, pode levar a que se tenha de desistir de uma parte da pena
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56
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
correspondente à culpa para respeitar o que dispõe o actual n.º 1 do
artigo 71.º Serão de duvidosa constitucionalidade as regras sobre a
liberdade condicional (artigo 61.º) se não permitirem ter em conta a
prevenção especial.
27.10. Relativamente à prevenção geral, sem negar que a pena
seja um meio de defesa dos bens jurídicos recusa-se a sua definição
adequada através deste conceito.
E «… a eliminação das referências separadas aos fins da prevenção
especial e da prevenção geral nos artigos… (dispensa de pena)… (suspensão da execução da pena) e a sua substituição por referência genéricas às «razões de prevenção» … ou às «finalidades da punição» …
não alteram que a prevenção especial, que em exclusividade justifica a
escolha por tais regimes, tem a primazia sobre a prevenção geral: o
mesmo vale, por identidade de razão, para a medida judicial da pena».
E como regra, «deve considerar-se que, sendo as necessidades de prevenção geral determinantes da própria medida legal da pena, enquanto
a pena se mantiver dentro desses limites, está em princípio garantida a
satisfação daquelas necessidades. (…)
«É de notar que na enumeração das circunstâncias que graduam a
pena dentro da sua medida legal (assim o n.º 2 do artigo 71.º) não há
nenhuma que faça variar as exigências preventivas gerais independentemente das circunstâncias que fundamentam a ilicitude material do caso
concreto e são abrangidas pela culpa.
Não são, portanto, de admitir considerações relativas ao aumento
geral da criminalidade ou à frequência de crimes de certo tipo (acidentes de trânsito mortais, por exemplo) para justificar a irrelevância
total ou parcial da prevenção especial».
«A solução contrária é uma constante tentação da prática judicial,
mas deverá entender-se que o legislador, ao fazer intervir a prevenção
geral como mera excepção à prevalência da prevenção especial para
graduar a pena dentro da medida da culpa ou abaixo dela, quis evitar
os perigos daquela tentação. Tais perigos são, como é sabido: a parcialidade e a emocionalidade da decisão sob o impacto do caso concreto,
a inconstitucional instrumentalização do indivíduo criminoso como meio
de atemorizar os outros, em nome da utilidade geral, o desrespeito pela
separação de competências entre o legislador penal e o juiz, e a reduzida
racionalidade da opção por uma alternativa de prevenção geral, em face
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Cap. III — Conteúdo mais preciso da revisão de 1995
57
da falta de base empírica para afirmar que uma certa medida da pena
— e não a simples descoberta e punição do crime — tem um efeito
intimidante geral diferenciado do de uma pena alternativa».
Comentadores da Revisão de 1995
§ 28. Vejamos alguns comentadores da Revisão de 95.
28.1. O saudoso Conselheiro Maia Gonçalves (44), ao referir-se ao
artigo 40.º, norma não constante da versão originária do Código, afirma
que teria sido inspirada no artigo 2.º do DL n.º 265/79, de 1 de Agosto
(Reestruturação dos serviços que têm a seu cargo as medidas privativas
de liberdade) (45).
«Não houve … o propósito de solucionar por via legislativa a
questão dogmática dos fins das reacções criminais. (…) «O dispositivo
agora inserto no CP tem uma intencionalidade empenhadamente pragmática: oferecer ao intérprete e ao aplicador do direito critérios seguros
e normativamente estabilizados para o efeito de escolha e de medida da
reacção criminal».
Pontos que já salientámos, com dúvidas sobre o valor indicativo de
tais propósitos na formulação por que se quedaram.
Apesar de tudo, a proximidade com a doutrina de Figueiredo Dias
é evidente ao dizer-se: com o n.º 1 do artigo 40.º, aqueles critérios de
escolha e de medida das penas e das medidas de segurança têm em vista
«serem atingidos os fins últimos para os quais todos os outros convergem, que são a protecção dos bens jurídicos e a integração do delinquente na sociedade».
«O n.º 2 contem mais um afloramento do princípio geral e fundamental de que o direito criminal é estruturado com base na culpa
do agente, e a explicitação de que a medida da culpa condiciona a
Código Penal Português, 1999, 13.ª edição.
Onde se dizia: «1. A execução das medidas privativas de liberdade deve
orientar-se de forma a reintegrar o recluso na sociedade, preparando-o para, no futuro,
conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem que pratique crimes.
2. A execução de medidas privativas de liberdade serve também a defesa da sociedade,
prevenindo a prática de outros factos criminosos». Cfr. a actual versão do artigo 2.º,
1, do novo CEPMPL — § 258, nota (660).
(44)
(45)
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58
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
própria medida da pena, sendo assim um limite inultrapassável
desta» (46).
«O princípio da culpa é, antes do mais, um princípio constitucional
que resulta da dignidade da pessoa humana e do direito à liberdade
(arts. 1.º e 27.º, n.º 1, da CRP). E ainda um princípio conformador de
um Estado de direito não compatível com a existência de penas sem
culpa nem mesmo com a existência de penas fixas».
Com o devido respeito, afigura-se-nos duvidoso que a reforma
penitenciária tenha servido de inspiração ao novo preceito do
artigo 40.º
28.2. Leal-Henriques e Simas Santos (47), em anotação ao
artigo 40.º do Código Penal, dão conta, a partir de Figueiredo Dias, das
várias teorias dos fins das penas, recolhendo as suas proposições conclusivas e que são:
— «a finalidade primária da pena é o «restabelecimento da paz
jurídica comunitária abalada pelo crime» (prevenção geral
positiva de integração — artigos 18.º, n.º 2, da CRP e 40.º,
n.º 1, do CP);
— esta finalidade primária não posterga o efeito meramente lateral, causado pela pena em termos de prevenção geral negativa
ou de intimidação geral;
— dentro dos «limites consentidos pela prevenção geral positiva
ou de integração» a medida concreta da pena será encontrada
em função da necessidade de socialização do agente (prevenção
especial positiva ou de integração) e de advertência individual
ou inocuização (prevenção especial negativa);
Tomada à letra, nesta posição, a culpa não seria apenas limite mas medida
da pena. O que afinal este Autor acaba por aclarar quando adiante — em comentário
ao artigo 71.º do Código Penal — afirma: «As disposições deste artigo são afloramentos do princípio geral e fundamental de que o direito criminal é estruturado com base
na culpa do agente, visando aqui particularmente estas disposições a incidência do
princípio na medida da pena» (bold nosso) — op. cit., p. 270.
(47)
Código Penal anotado, 3.ª edição, 1.º vol. Parte Geral, Rei dos Livros,
2002.
(46)
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Cap. III — Conteúdo mais preciso da revisão de 1995
59
— a culpa não é fundamento da pena, mas tão-somente o seu
limite inultrapassável (vd. art. 40.º, n.º 2, do C.P.)».
Acrescenta-se:
«A matéria sob análise constituiu uma das mais significativas
inovações da revisão operada pelo D.L. n.º 48/95, de 15 de Março.
Com ela pretendeu o legislador que a aplicação das penas e
das medidas de segurança, como segundo momento da realização
do direito penal, se dirija à protecção subsidiária e preventiva, quer
geral quer individual, de bens jurídicos e de prestações estatais: a
realização do fim de prevenção geral (com o significado de salvaguarda da ordem jurídica na consciência da comunidade, já não no
sentido de mera intimidação) e do fim de prevenção especial (reintegração do agente na sociedade), fins esses informadores sobretudo
da fase de execução da pena».
28.2.1. Depois de aludirem à discussão no seio da Comissão, a
que já se fez referência, e à posição de Sousa e Brito, dizem:
«Apesar de todas estas considerações, o artigo tomou posição na
questão dos fins das penas [a aplicação das penas (e das medidas de
segurança) tem como finalidade a prevenção geral (positiva, de integração: «protecção de bens jurídicos») e a prevenção especial («reintegração do agente na sociedade»)], questão permanentemente em aberto»,
sendo «discutível que a lei deva assumir, neste domínio, posição
definida, da forma precisa que resulta deste artigo, toda a vez que se
trata de questão ainda em aberto, e discutida mesmo no seio da respectiva Comissão Revisora…».
E logo adiante, de forma mais incisiva: «… a prescrição do n.º 2
deste artigo é uma consequência do princípio da culpa: não há pena
sem culpa e a culpa decide da medida da pena.
«E a circunstância de surgir no contexto deste artigo sobre os fins
das penas não significa que a pena não vise retribuir a culpa, mas
tão só afirmar que a prevenção geral na forma de protecção dos bens
jurídicos, está limitada no seu máximo pela culpa.
28.2.2. Para concluírem: «A culpa continua, pois, a surgir como
fundamento da pena e não só como seu limite. Daí que as razões de
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60
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
prevenção indicadas neste artigo venham temperar, limitando-a, a pena que
resultaria da consideração da culpa, mas sem nunca ultrapassar o limite
máximo consentido por essa mesma culpa. Aliás, sintomaticamente até
pela ordem seguida, dispõe-se no n.º 1 do art. 71.º que «a determinação da
medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da
culpa do agente e das exigências de prevenção», disposição que não se
compreenderia se a culpa surgisse tão só como limite da pena. Depois o
n.º 2 desse artigo, ao enumerar exemplificativamente as circunstâncias que
nos seus termos devem ser tidas em conta na determinação concreta da
pena, elenca diversas que se referem à culpa do agente…».
Isto sem embargo de reconhecerem que o artigo procura reflectir
o pensamento do seu proponente, Figueiredo Dias, quando afirma que
decorre do princípio de congruência ou de analogia substancial entre a
ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídicos
protegidos pelo direito penal (além da exigência da necessidade e subsidiariedade da intervenção jurídico-penal) a ideia de que só finalidades
relativas de prevenção, geral e especial, não finalidades absolutas de
retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal
e conferir fundamento e sentido às suas reacções específicas.
«Dado o teor deste artigo foram retiradas do texto do Código e
contidas no texto de 1982 (v. g., nos arts. 48.º e 71.º), referências à
reprovação, à prevenção e à recuperação social que foram substituídas
pela referência às finalidades da punição» (48).
De notar que, v. g., os arts. 61.º, n.º 2, al. b), e 91.º, n.º 2, se referem
à defesa da ordem jurídica e da paz social a propósito da libertação do
condenado detido, o que se relaciona seguramente com a consciência da
comunidade de que este já terá sofrido «castigo suficiente».
§ 29. Uma breve nota para dizer como se vêem reflectidas nestes
comentários as discrepâncias de propósitos que temos assinalado, e
como a inovação do artigo 40.º não inibiu a asserção de que, mesmo
na Revisão de 95, a culpa continua a ser o fundamento da pena e não
apenas o seu limite (49).
Matéria a que nos referiremos adiante — por exemplo, nos §§ 288 e ss.
Mais recentemente, TAIPA DE CARVALHO, Prevenção, culpa e pena: uma
concepção preventivo-ética do direito penal, in Liber Discipulorum para Jorge de
(48)
(49)
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Cap. III — Conteúdo mais preciso da revisão de 1995
61
Revisão Penal de 2007
§ 30. Em mero parêntesis, uma referência à Revisão Penal
de 2007, aprovada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, que entrou
em vigor a partir de 15-09-2007, para dizer que a matéria que ora nos
preocupa não é tocada directamente.
De uma revisão que se desejava pontual, especialmente incidindo
nos crimes sexuais, passou-se para uma alargada alteração de normas,
também na Parte Geral do Código.
Para além de modificações na aplicação da lei penal no tempo e
no espaço, alargou-se a responsabilidade das pessoas colectivas, alteraram-se pormenores do concurso de crimes, do crime continuado, do
consentimento do ofendido, das penas substitutivas da pena de prisão,
da suspensão da pena de prisão, da liberdade condicional, do desconto
de medidas privativas da liberdade na pena de prisão, do direito de
queixa e da prescrição do procedimento criminal.
Figueiredo Dias / organização de Manuel da Costa Andrade. [et al.], Coimbra Editora,
2003, pp. 317-329, considerava a seguinte evolução (§§ 17 a 19): «… o CP de 1886,
revisto em 1954, consagrava uma concepção ético-retributiva da pena. Embora a
pena visasse a prevenção dos crimes, não deixava o legislador de afirmar que ela, a
pena, também tinha por objectivo reprimir (retribuir) o crime praticado, e, sobre tudo,
era bem claro ao estabelecer que a medida da pena dependia da medida da culpa do
infractor». Posteriormente, no CP de 1982, «parece clara uma evolução legislativa,
pois que, embora continue a atribuir-se à culpa o papel fundamental na determinação
concreta da pena, não deixa de se acrescentar que o juiz deve atender também às
exigências de prevenção. Assim, pode dizer-se que o CP de 1982 acolheu uma concepção ético-preventiva da pena». Finalmente, a revisão de 1995 do CP de 1982
terá culminado numa viragem de praticamente 180 graus relativamente à concepção
ético-retributiva da pena, consagrando uma concepção preventivo-ética da pena,
subjacente ao art. 40.º: «preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é
a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela
exigência da culpa». Para este Autor, que recusa a pena ético-retributiva e acolhe a
teoria da concepção unilateral da culpa, «o objectivo da pena, enquanto meio de
protecção dos bens jurídicos, é a prevenção especial, positiva e negativa (isto é, de
recuperação social e/ou de dissuasão). É este o critério orientador, quer do legislador quer do tribunal». A prevenção geral só opera como «limite mínimo da pena
determinada pelo critério da prevenção especial».
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62
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
A Proposta de lei dá conta de problemas que subsistiram no tocante
à não aplicação de certas penas, nomeadamente, a prisão suspensa com
sujeição a deveres ou regras de conduta e a prestação do trabalho a
favor da comunidade, as quais tiveram, desde a sua criação, uma expressão residual.
De qualquer modo o sistema permaneceu idêntico, no que à presente temática importa.
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CAPÍTULO IV
TEORIAS DOS FINS DAS PENAS
§ 31. Sempre os doutrinadores do direito se preocuparam com o
enquadramento das normas jurídicas num sistema racional baseado em
princípios (quase dogmas) dos quais as soluções devem decorrer. Mas
porque o direito pertence à ordem prática da regulação da vida em
sociedade nem sempre pode prevalecer a linha pura que decorre dos
conceitos mas antes a dos interesses que estão em causa e cujo equilíbrio importa harmonizar.
Para Cavaleiro Ferreira, a teoria e a praxe não se opõem na sua
natureza, pois, como referimos, são momentos diversos de um mesmo
movimento que desce do conhecimento especulativo à realidade, sendo
dominado pela mesma finalidade.
«A diferença a acentuar entre a teoria e a praxe diz respeito ao
modo de conhecimento, que na praxe, por estar mais perto da regulamentação do caso concreto, é absorventemente dominado por considerações de carácter teleológico» (50).
Justificação e natureza da pena
§ 32. Segundo Jescheck, para entender o conceito de pena,
deverá partir-se de dois pressupostos essenciais: a sua justificação e a
sua natureza.
A justificação da pena entronca na sua necessidade para «a
manutenção da ordem jurídica como condição básica para a convi-
(50)
Loc. cit., ponto I.
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64
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
vência das pessoas na comunidade». O Estado deixar-se-ia aniquilar
se não tivesse meios para evitar que as infracções se afirmassem
abertamente e o ordenamento jurídico não tivesse carácter coactivo
e fosse apenas eticamente vinculante — justificação político-estatal
da pena.
Por outro lado, a aplicação da pena satisfaz as exigências de Justiça
na colectividade. Não haveria possibilidade de convivência pacífica das
pessoas se o Estado pretendesse que tanto a vítima como a colectividade
se conformassem com o delito já cometido, tendo como consequência
segura a justiça de Lynch (51) e o regresso à pena privada — justificação
psicológico-social da pena.
Por último, «la pena es asimismo necesaria teniendo en cuenta la
propia persona del delincuente. La aspiración a liberarse de culpa
mediante una prestación expiatoria constituye una experiencia fundamental del hombre como ente moral. De ahí que crear la posibilidad de una expiación como prestación moral autónoma sea una tarea
legítima del Estado, aunque el camino de la conversión interna esté
cerrado para la mayoría de los delincuentes — justificación ético-individual de la pena» (bold nossos).
Quanto à natureza da pena, ela traduz-se num juízo de desvalor,
público e ético-social sobre o autor que cometeu culposamente uma
infracção. Tem o carácter de um mal (na liberdade, no património, no
tempo livre, na consideração social do delinquente) que servirá para
bem da sociedade e eventualmente para o próprio condenado. Nenhum
Estado conseguiu ainda dispensar a pena para garantir a ordem jurídica,
apesar das assumidas teorias abolicionistas.
Diz-se existir na sociedade organizada uma tendência para atirar
para detrás das regras penais duma determinada ordem económica uma
ordem ideológica de carácter moralizador que o juiz penal tem por
função primeira ilustrar pela sua maneira de dizer o direito. E a consciência pública, para além das divergências de classe e de função,
procura a sua coesão nesse discurso moral. A liberdade e responsabi-
(51)
O assassinato de um indivíduo, geralmente por uma multidão, sem procedimento judiciário legal e em detrimento dos direitos básicos de todo o cidadão — http://
pt.wikipedia.org.
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Cap. IV — Teorias dos fins das penas
65
lidade são não apenas postulados como afirmados na aplicação do
direito de punir (52).
§ 33. A respeito do fundamento e finalidade das penas criminais os autores teorizam habitualmente dividindo em três categorias: as teorias absolutas, as teorias relativas, as teorias unitárias (53).
ROGER LALLEMAND, Le droit de punir et le dialogue ambigu du pénaliste et
de la conscience publique, Punir — mon beau souci — Pour une raison penal, Revue
de l’Université de Bruxelles, 1984/1-3, pp. 18/19. Citando Émile Durkheim: «la peine
ne sert pas ou ne sert que très secondairement à corriger le coupable et à intimider ses
imitateurs possibles… Sa vraie fonction est de maintenir intacte la cohésion sociale
en maintenant toute sa vitalité à la conscience commune. Niée aussi catégoriquement,
celle-ci perdrait nécessairement de son énergie si une réaction émotionnelle de la communauté ne venait compenser cette perte, et il en résulterait un relâchement de la
solidarité sociale. Il faut donc qu’elle s‘affirme avec éclat au moment où elle est
contredite…» através da condenação penal pública.
PIERRETTE PONCELA, Droit de la peine, 2.e édition, PUF, 2001, p. 55, dá conta
dos fundamentos do direito de punir mais correntemente formulados: o interesse
publico, o direito de legitima defesa exercido pela sociedade, a delegação de um
direito divino, o contrato social. Por vezes misturam-se princípios e funções — o
princípio da justiça distributiva (expiação, retribuição), da justiça correctiva (para o
Estado o dever de tratamento, emenda ou ressocialização do infractor). A filosofia
da pena reflecte-se nas suas funções: intimidação, eliminação ou neutralização temporária, retribuição, emenda, exemplaridade e reparação — afinal, uma litânia de
funções.
(53)
Apoiar-nos-emos essencialmente: na lição de FIGUEIREDO DIAS, Temas
básicos da doutrina penal, Coimbra Editora, 2001, pp. 65 e ss.; CLAUS R OXIN ,
Derecho Penal, Parte General, Tomo I, Tradução da 2.ª edição, Diego-Manuel Luzón
Peña e outros, Editorial Civitas, S.A., 1977, pp. 788 e ss.; idem, «Culpabilidade y
prevenção en derecho penal», trad. de Muñoz Conde, Reus, S.A., Madrid, 1981;
idem, «Sobre a evolução da política criminal na Alemanha após a Segunda Guerra
Mundial», in Homenagem a Claus Roxin, Universidade Lusíada Editora, Lisboa,
2002; HANS-HEINRICH JESCHECK, Tratado de Derecho Penal — Parte Geral, trad. de
José Luis Manzanares Samaniego, 4.ª edição, Editorial Comares, Granada, 1993.
ANABELA MIRANDA RODRIGUES, A determinação da medida da pena, Coimbra Editora, 1995; «O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena
privativa de liberdade» Revista Portuguesa de Ciência criminal, Coimbra, Abril-Junho
de 2002, pp. 147-182; PEDRO MARIA GODINHO VAZ PATTO, Reflexões sobre os fins
das penas, Psicologia e Justiça, Almedina, 2008, pp. 381 e ss.
5 — Medida da Pena
(52)
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
1. Teorias absolutas
Retribucionismo
33.1. Historicamente, as teorias absolutas têm como raiz a regra
taliónica e fundamento, de carácter mais ou menos religioso, o retribucionismo como exemplo máximo: pune-se o delinquente porque
pecou — punitur quia peccatum est. Há que compensar o mal feito
à sociedade ou à vítima através do mal e sofrimento que a pena representa (54). Aqui se inclui a ideia de «retribuição, reparação ou compensação do mal do crime, embora possa ter efeitos laterais (intimidação, neutralização dos delinquentes e ressocialização)» (Figueiredo
Dias).
A pena olha para o passado, para o facto realizado e faz a compensação: malum passionis propter malum actionis.
Moderna ideia de retribuição
33.2. Todavia, a ideia de retribuição, no sentido tradicional, carregada de fortes emoções, evoluiu a partir do século XVIII para o significado hodierno de uma «pena (que) deve ser equivalente ao injusto
culpável, conforme ao princípio da justiça distributiva…», nada tendo
a ver com a vingança ou ódio. O facto cometido opera como fundamento e medida da pena, devendo esta adequar-se ao grau do injusto e
da culpabilidade.
Ainda segundo Jescheck, a ideia de retribuição assenta sobre três
pressupostos imanentes: i) o Estado só estará justificado para assacar a
pena merecida se se reconhecer a superioridade moral da comunidade
frente ao delinquente; ii) que exista uma culpabilidade que possa ser
medida segundo a sua gravidade; iii) que a retribuição, no terreno dos
princípios, consiga harmonizar de tal modo o grau de culpabilidade com
(54)
Num Estado absolutista, a pena consistia numa forma de expiação dos pecados, porquanto o delinquente, ao desrespeitar o soberano, desrespeitava o próprio
Deus.
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Cap. IV — Teorias dos fins das penas
67
a gravidade da pena que a sentença seja considerada justa pelo autor e
pela colectividade (55).
Kant e Hegel
33.3. As ideias filosóficas de Kant (1724-1804) e Hegel (1770-1831)
são invocadas como essenciais no apoio a esta perspectiva do fim da pena.
O primeiro, ao considerar a lei penal como um «imperativo categórico» (56), um mandato da justiça, independente de qualquer finalidade
temporal (ficou célebre o seu exemplo da desagregação da comunidade
de uma ilha — «ainda que a colectividade decidisse unanimemente dissolver-se, porque, por exemplo, a população resolvera dispersar-se pelos
quatro pontos cardiais, haveria que executar antes o último assassino que
se encontrava na cadeia, de maneira que todos soubessem qual é o valor
dos factos que praticaram»). O segundo, pondo em realce o ordenamento
jurídico como «vontade geral» perante a «vontade particular» do delinquente expressa na infracção jurídica, a qual é anulada pela pena como
reposição da supremacia da vontade da comunidade.
Para Kant, o infractor deve ser penalizado unicamente por ter desrespeitado a lei com a prática do delito, sem qualquer consideração
sobre a utilidade da pena. Para Hegel, o direito negado pelo crime é
reafirmado pela pena, sendo esta «a negação da negação do Direito» e
como restabelecimento ou renovação deste, anulando o crime (a negação
da negação gera a afirmação) (57). Em contrário dos que defendem
princípios preventivos, segundo os quais se ameaça o homem como
JESCHECK assinala, certeiramente, a distinção entre retribuição e expiação:
«esta es una personal prestación ética del autor, que le lleva a aceptar la necesidad de
la pena y le permite así recuperar su propia libertad moral… La expiación no puede
ser forzada con la pena, pero debe, al menos, ser hecha posible por el Estado, e incluye
la disposición de la sociedad para que el autor se reconcilie con ella gracias a la asunción de la pena…»
(56)
«Age de tal modo que a máxima da tua acção se possa tornar em princípio
de valor universal».
(57)
Resume TAIPA DE CARVALHO, Prevenção, culpa e pena…, loc. cit., § 6, como
uma «finalidade de retribuição jurídica. A pena visava, assim (para Hegel), repor a
vigência da norma jurídica violada, visava, por outras palavras, a reafirmação da
intangibilidade do Direito».
(55)
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
«quando se mostra um pau a um cachorro», atenta a sua honra e liberdade não deve o homem ser tratado como tal. Introduziu ainda a ideia
de direito à pena por parte do criminoso. O sofrimento não é apenas
justo em si, é também um direito do próprio criminoso (58).
§ 34. Para Bettiol a ideia de retribuição está imanente a uma
civilização que não renegue os valores supremos e se ajuste às exigências espirituais da natureza humana.
Ao discorrer sobre a «retribuição com fins utilitários», aludindo à
evolução da doutrina da retribuição, Anabela Rodrigues (59) dá conta da
opinião do retribucionista Armin Kaufmann, no início dos anos oitenta
do século XIX. «A pena, defende este Autor, somente pode encontrar
«justificação ética» no facto ilícito e culposo — «a ideia da justa retribuição é indispensável à sua legitimação» (.) —, mas a realização de
tal exigência retributiva não faz parte das finalidades do direito penal,
que são de toda uma outra natureza: tutela de bens jurídicos. O que o
leva a concluir, sem hesitar, que a moderna teoria retributiva «não é
uma teoria da pura retribuição» (…).
As teorias absolutas assentam no pressuposto do livre arbítrio, ou seja,
será culpável o sujeito que podendo motivar-se pelo respeito da norma
optou por delinquir e as suas bases ideológicas encontram-se no reconhecimento do Estado como guardião da justiça e das noções morais.
Desenvolvem um sistema sancionatório escalonado segundo graus
de gravidade. Quanto maior for a culpa do autor mais severa terá de
ser a retribuição.
Contributo de Faria Costa
§ 35. Em termos nacionais merece destaque o contributo mais
recente de J. de Faria Costa (60).
Com largo desenvolvimento — cfr. ANABELA MIRANDA RODRIGUES, op. cit.,
pp. 163 e ss.
(59)
Op. cit., p. 187.
(60)
«Linhas de Direito Penal e de Filosofia: alguns cruzamentos reflexivos»,
Coimbra Editora, 2005, «Um olhar doloroso sobre o direito penal (ou…)», p. 69, e
(58)
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Cap. IV — Teorias dos fins das penas
69
35.1. Salienta este reputado penalista que «a punição, qualquer
que seja, faz sempre soltar a dor e o mal» e que o direito não é uma
técnica «mas antes manifestação do nosso mais profundo modo-de-ser
com os outros, simultaneamente limite e fundamento do «eu» com o
«outro» e por aí, de igual jeito, fundamento e limite de todo o poder
socialmente organizado». E este «eu» e o «outro» têm um radical
«onto-antropológico e não se estruturam em puras manifestações …
mais ou menos consistentes, de dever».
Resume assim esta vivência de um perante o outro: «Tu «deves»
não só porque «eu devo» mas «tu deves», sobretudo, porque «eu»,
enquanto outro, também «devo»». E «devo» perante «ti» que és, sem
remédio, sem redenção, «outro». E mais. «Devemos» porque em todos
há a firme convicção de que actos de quem quer que seja — «meus»
ou do «outro», praticados por «mim» contra «ele» ou por «ele» contra
«mim» — serão sempre valorados pelas mesmas regras e pelos mesmos princípios. De sorte que o reforço de uma isonomia na valoração
dos actos humanos juridicamente relevantes faz com que a diferença se
possa clara mas simultaneamente assumir como diferença e igualdade.
A autonomia e a diferença do «outro», para lá de ser a raiz da «minha
própria» identidade, é também a garantia real das «minhas» autonomia
e diferença» (61) (bold nosso).
E já aqui adianta a sua visão, ao afirmar (62): «É óbvio que só a
sustentação, por meio de fins ou finalidades relevantes de um ponto de
«Uma ponte entre o direito penal e a filosofia penal: lugar de encontro sobre o
sentido da pena», p. 205. Certeiramente anota, em termos gerais, com Montaigne,
que «nous ne faisons que nous entregloser». Algo a que também não ficamos
imunes…
(61)
Op. cit., p. 77. Pertinentes interrogações (depois respondidas) são suscitadas:
evita-se o mal do crime com o outro mal? E deste vem o bem? Por outro lado, o
elemento paradoxal de educar para a liberdade através da privação da liberdade. O mal
(secularizado, não religioso ou transcendental) tem de se justificar como um bem — esta
a problemática dos fins das penas. E seja pelas doutrinas da retribuição seja da prevenção há uma metanóia. E «o direito penal é a última instância, comunitariamente
legitimada, a ter o monopólio da produção e distribuição do mal da pena que se repercute, de modo quase necessário, no corpo-próprio», unidade corpo espírito como «manifestação única da identidade e autonomia do ser-pessoa».
(62)
Nota (23), na p. 78.
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
vista ético, pode fazer com que o mal da pena tenha uma justificação
ou uma legitimidade ético-social e, portanto, tome racionalmente aceitável a aplicação de uma pena. Pensar de outro modo seria qualquer
coisa de absurdo e de eticamente insustentável. Ou seja: seria conceber
que o Estado detinha o poder de punir e o usava arbitrariamente e sem
qualquer sentido ou lógica material. Seria a aceitação da mais pura
irracionalidade ainda que coberta pela formulação de regras».
35.2. No seu outro estudo mencionado (63), Faria Costa assume
desde logo «a defesa de uma posição neo-retributiva de fundamento
onto-antropológico» como «pilar da mundividência e vivência ética que
percorre todo o pensamento jurídico», nada tendo de metafísico ou
irracional. Retribuição que «é a expressão mais lídima das ideias fortes
e estruturantes de responsabilidade e igualdade». E detém-se a explicar
por que motivo a asserção «ao mal do crime — ao mal que o crime
sempre representa — responde-se com o mal da pena», não leva a um
Direito Penal como adição de males.
Mas a pena não pode ser percebida e valorada como um mal (não
é mal expansível pois tem desde logo um limite — nulla poena sine
lege).
Na estrutura normativa do direito penal, dinâmica e historicamente
situada, a estabilização dos conflitos perfila-se como seu segmento
principal. E avança pelos conflitos de valores «comunitariamente assumidos como mínimo ético» (que não conflitua com a tutela dos bens
jurídico-penais).
A conflitualidade e ruptura são expressões da «perversão em que
mergulha o nosso primevo modo-de-ser». O cuidado-perigo de fundamento onto-antropológico é matriz do nosso modo-de-ser com os outros.
Se há ruptura da proibição como «momento genésico de contenção à
perversão da relação de cuidado-de-perigo», intervem a pena para repor
o equilíbrio (64).
Mas onde está o fundamento da retribuição? Nos dois pilares, da
responsabilidade e da igualdade. Porque sou livre e autónomo,
porque sou pessoa, sou responsável.
(63)
(64)
«Uma ponte entre o direito penal…», op. cit., p. 208.
Cfr., desenvolvidamente, pp. 223/225.
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Cap. IV — Teorias dos fins das penas
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Assim, a aplicação da pena não pode deixar de ser «envolvida pelo
olhar que quer ver o pretérito (…) De sorte que nos pareça indiscutível
considerar-se a pena ainda como uma manifestação da «minha» responsabilidade e que, para isso, se tenha que ir lá atrás. É, pois, no lugar
passado do rompimento da primeva relação de cuidado-de-perigo (…)
que está a causa, o cerne de tudo».
35.3. Para depois desferir uma clara contestação à visão utilitarista: «É, por conseguinte, a partir deste enquadramento, que é ilógico
ou incompreensível aplicar-se uma pena dizendo que se o faz na mira
de que os outros não pratiquem crimes ou com o fito de repor a validade contra-fáctica da norma. Uma tal projecção teórica admite a
possibilidade da punição de inocentes e admite, mesmo que se ponha
como limite a prática de um facto censurável (punível com culpa), uma
medida concreta da pena que ultrapasse, efectivamente, o limite da culpa
(…). O que nos pode deixar concluir que a ideia de retribuição é aquela
que melhor assenta no dado fundamental que o princípio da responsabilidade representa» (bold nosso).
A igualdade — como aspiração individual a que cada um dos
membros da comunidade seja tratado por igual — no sentido horizontal
e vertical, constitui cimento agregador da comunidade e assenta na
confiança.
O cidadão não é o instrumentum para produzir efeitos de prevenção
mas o responsável que «tem o direito de sofrer uma pena justa, aplicada
com igualdade material e não apenas formal».
«Dentro deste quadro compreensivo … a retribuição, a neo-retribuição de fundamentação onto-antropológica, é a maneira mais consistente e sólida de dar sentido à pena criminal, porquanto é … por seu
meio que também a responsabilidade e a igualdade se realizam».
A pena não pode ser aplicada apenas para «onorare la legge» ou
para ressarcir o dano.
35.4. Crê Faria Costa que este retorno ao sentido da retribuição,
que vê a pena como um bem e não como «pura manifestação de um
desencarnado kantiano imperativo categórico», estará mais perto do
«sentir comum» (recte sentire). Deste modo, «os regimes democráticos
não são a porta do cavalo — nem têm que ter fundos ou portas da
traição — para que por ela se esgueirem, envergonhadamente, os grandes princípios éticos que fazem o cimento agregador de qualquer
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72
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
sociedade ou comunidade». E não têm que «claudicar perante o canto
das sereias da indiferença axiológica», cuja indiferença pode abrir caminho ao «autoritarismo desenfreado» e ao nascente e perigoso «direito
penal do inimigo».
Crítica às teorias absolutas
§ 36. Para Figueiredo Dias (65) a concepção retributiva da pena
desfrutou do «mérito irrecusável de ter erigido o princípio da culpa em
princípio absoluto de toda a aplicação da pena e, deste modo, ter levantado um veto incondicional à aplicação de uma pena criminal que viole
a eminente dignidade da pessoa humana», mas como teoria dos fins da
pena deve ser recusada in limine.
Desde logo, porque aparece como «entidade independente de fins»,
e além disso pela sua inadequação à missão do Estado ao qual incumbe
«proporcionar as condições de existência comunitária, assegurando a
cada pessoa o espaço indispensável de realização livre da sua personalidade».
Acrescentando: «O Estado democrático, pluralista e laico dos nossos dias não pode arvorar-se em entidade sancionadora do pecado e do
vício, tal como qualquer instância o define, mas tem de limitar-se a
proteger bens jurídicos, e para tanto não pode servir-se de uma pena
conscientemente dissociada dos fins…» Ademais, «se toda a pena supõe
a culpa, nem toda a culpa supõe a pena, mas só aquela culpa que simultaneamente acarrete a necessidade ou carência de pena». A «culpa é
pressuposto e limite, mas não fundamento único da pena». Desembocará assim numa «doutrina puramente social-negativa que acaba por se
revelar não só estranha a, mas no fundo inimiga de qualquer tentativa
de socialização do delinquente…».
§ 37. Na crítica de Jescheck às teorias absolutas, salienta-se igualmente que não é missão do Estado realizar «a plena moralidade na
terra» pois é sabido como o injusto sem castigo é conhecidamente maior
que o castigado. Na aplicação da pena só deve (o Estado) preocupar-se
(65)
Temas Básicos…, op. cit., pp. 70 e ss.
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Cap. IV — Teorias dos fins das penas
73
com a manutenção das bases de uma convivência pacífica mediante a
coacção jurídica. E por vezes desconhece-se que o homem é um ser
débil, carecido de ajuda e frequentemente maltratado. Mas constitui
apanágio das teorias absolutas que a protecção da sociedade através da
pena, quando necessária, «há-de procurar-se sempre de uma maneira
justa».
«O que legitima a intervenção coactiva que supõe o direito não é
a realização pela força de objectivos religiosos nem morais sobre a terra,
mas sim a criação e manutenção de um determinado sistema social em
benefício dos indivíduos que o integram. No âmbito do direito penal,
isto significa (…) que as sanções criminais só se justificam quando são
necessárias para protecção da sociedade» (66).
Além disso, existiria, por um lado, uma impossibilidade empírica
de verificar se houve ou não livre arbítrio; por outro, a ideia de retribuição compensadora é vulnerável devido ao facto de a pena não apagar
o mal causado pelo delito, sendo que na realidade junta um segundo
mal, pois que o critério de Talião não permite recuperar o olho da
vítima, retirando um olho ao autor do crime.
2. Teorias relativas
§ 38. Num ponto de vista contrário se colocam as teorias relativas da pena: esta não tem que realizar a Justiça na terra mas proteger
a Sociedade; não constitui um fim em si mesma mas um meio de prevenir a prática de delitos (67).
Renunciam os seus autores a oferecer fundamentos éticos da pena
e buscam apoio científico para explicar a sua utilidade na prevenção da
criminalidade.
Baseadas no Iluminismo — na crença da explicação científica de
todo o comportamento das pessoas e na sua capacidade de educação
mediante apropriada actuação pedagógico-social —, caldeiam as razões
humanitárias e sociais com as utilitárias.
(66)
(67)
Apud ANABELA RODRIGUES, op. cit., p. 274.
Recolhemos de JESCHECK, Tratado… op. cit., pp. 62 e ss.
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
Já a filosofia da antiguidade, orientada para a virtude e o bem
comum, acolhia a ideia de prevenção como fim da pena, de atenção ao
futuro — «nemo prudens punit, quia peccatum est, sed ne peccetur».
§ 39. Não há dúvida de que a política criminal em favor da prevenção, numa abertura à consciência da Humanidade, foi decisivamente
influenciada por Cesare Beccaria (1738-1794) no seu clássico «Dei
delitti e delle pene» (1764) (68), com a ajuda da teoria do contrato social
(a ficção de que podemos delegar, por força da lei, nos nossos representantes o poder de nos punir, tendo como contrapartida a obrigação
de certificar a nossa segurança).
Mas deve-se ao criminalista alemão Feuerbach (1775-1833), a
distinção teórica entre prevenção especial e prevenção geral. Afastando-se do utilitarismo de Beccaria e de J. Bentham, procurou ligar-se
à ética kantiana. «A cominação penal devia produzir «prevenção geral
mediante coacção psicológica» e a imposição da pena serviria para
demonstrar a todos a seriedade da ameaça» (69).
Prevenção geral
§ 40. Com efeito, distingue-se (70) uma dupla perspectiva na prevenção geral.
«A pena pode ser concebida, por uma parte, como forma estatalmente acolhida de intimidação das outras pessoas através do sofrimento
(68)
Ed. Ridendo Castigat Mores (electrónica). Aí se diz: «… só a necessidade
constrange os homens a ceder uma parte de sua liberdade; daí resulta que cada um só
consente em pôr no depósito comum a menor porção possível dela, isto é, precisamente
o que era preciso para empenhar os outros em mantê-lo na posse do resto. O conjunto
de todas essas pequenas porções de liberdade é o fundamento do direito de punir». Por
outro lado, «ninguém fez gratuitamente o sacrifício de uma porção de sua liberdade
visando unicamente o bem público. Tais quimeras só se encontram nos romances».
(69)
Anote-se en passant como a actual preocupação de que cabe à pena predominantemente assegurar a protecção dos bens jurídicos e a validade da norma penal
anda bem perto duma perspectiva que já vem do séc. XIX, pelo menos na vertente de
intimidação.
(70)
CLAUS ROXIN, “Culpabilidad, prevencion y responsabilidade en derecho penal”,
in op. cit., pp. 180 e ss., e na esteira, FIGUEIREDO DIAS, Temas Básicos…, cit., p. 74.
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Cap. IV — Teorias dos fins das penas
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que com ela se inflige ao delinquente e que, ao fim, as conduzirá a não
cometerem factos criminais: fala-se então a este propósito de prevenção
geral negativa ou de intimidação. Mas a pena pode ser concebida, por
outra parte, como forma de que o Estado se serve para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das
suas normas de tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento
jurídico-penal como instrumento destinado a revelar perante a comunidade a inquebrantabilidade da ordem jurídica, apesar de todas as violações que tenham tido lugar: neste sentido se fala hoje de uma prevenção
geral positiva (…) ou de integração…» (Figueiredo Dias).
§ 41. Como dizia Roxin: «Se puede hacer prevención general
fortaleciendo con la satisfacción del sentimiento jurídico la conciencia
jurídica general (prevención integradora); pero también se puede hacer
prevención general, intimidando a los delincuentes con penas (intencionalmente elevadas) e intentando así apartarlos de la comisión de delitos
(prevención intimidatoria)».
Salientando o cariz «compensador», de «integração» ou «estabilizador», em que se pretende «assegurar o restabelecimento e a manutenção da paz jurídica perturbada pelo cometimento do crime através do
fortalecimento da consciência jurídica da comunidade no respeito pelos
comandos juridico-criminais», para Anabela Rodrigues (71) será «uma
concepção de prevenção geral largamente difundida, acolhida favoravel-
(71)
A determinação da medida…, op. cit., p. 321. De certo modo, a sua tese
aparece sintetizada assim (pp. 570 e ss.): «Dizer que a finalidade essencial e primordial
da aplicação da pena reside na prevenção geral significa (…) que a pena deve ser
medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se
exprime no caso concreto. A pergunta que se põe consiste em saber se este critério
fornece um quantum exacto ou uma moldura de pena.
«Entendida a prevenção geral com o sentido que lhe vimos dando — isto é, a
protecção de bens jurídicos alcançando-se mediante a estabilização das expectativas
comunitárias na validade da norma jurídica violada —, postula ela (…) a proporcionalidade entre a medida da pena e a gravidade do facto praticado. Só que esta
gravidade do facto afere-se tendo em atenção o modo por que se quer obter o efeito de
prevenção geral, em função do abalo (ou a «erosão da norma» de que fala Schünemann)
daquelas expectativas sentido pela comunidade». Logo, esse ponto de vista comunitário «nunca poderá fornecer uma medida exacta da pena».
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
mente por um amplo sector doutrinal como teoria que limita de forma
racional a tendência da intimidação penal para o terror».
Prevenção especial
§ 42. Deve-se a Franz v. Liszt (1851-1919) o desenvolvimento de
uma nova teoría da prevenção especial (criada por Stübel) influenciadora
do sistema de sanções no direito alemão, exposta no programa de Marburgo onde releva o «pensamento do fim». Escrito no auge do positivismo, aí se afirmava que a pena tem por escopo proteger bens jurídicos
(conceito pioneiro) sendo a sua função eminentemente preventiva e
ressocializadora, dirigida contra o delinquente, livre e moralmente responsável, e não contra o delito.
Pela importância que mantêm se extraem os excertos seguintes (72):
«La pena correcta, o sea, la pena justa, es la pena necesaria.
Justicia en el Derecho penal es el respeto a la medida de la pena
conforme a las exigencias a la idea del fin». Según lo dicho, la
misión de la pena consiste en sacudir, mediante una «advertencia» («Denkzettel»), al delincuente ocasional, que no precisa corrección, para disuadirle de la comisión de nuevos delitos, en resocializar con la educación durante la ejecución penal al delincuente
susceptible de corrección, y en hacer inocuo por tiempo indeterminado, mediante la «servidumbre penal» («Strafknechtschaft») al
delincuente habitual incorregible. A esta concepción se unían
insoslayablemente la lucha contra la pena corta privativa de libertad, ineficaz desde el punto de vista educativo, pero perjudicial para
el reo, y los esfuerzos para mejorar el sistema penitenciario. Sin
embargo, v. Liszt advirtió también los peligros que para la seguridad jurídica comportaba una Política criminal determinada sólo
según la prevención especial: por eso el Derecho penal debería
continuar siendo la «barrera infranqueable de la Política criminal»
(la «Carta Magna del delincuente»)…».
(72)
Ainda apud JESCHECK, op. cit., p. 64.
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Cap. IV — Teorias dos fins das penas
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Eis um cardápio breve de orientações cuja actualidade é manifesta,
e no qual a regeneração ou educação do delinquente para uma vida
apropriada em sociedade assume relevo particular.
Reinserção ou (inserção) social
§ 43. Segundo Figueiredo Dias (73) «as doutrinas da prevenção
especial ou individual têm por denominador comum a ideia de que a
pena é um instrumento de actuação preventiva sobre a pessoa do delinquente, com o fim de evitar que, no futuro, ele cometa novos crimes».
Vários modelos vêm sendo ensaiados: para uns, só valerá a intimidação individual pois a «correcção» dos delinquentes não passa de
utopia; para outros, «a prevenção especial lograria alcançar um efeito
de pura defesa social através da separação ou segregação do delinquente, só assim podendo atingir-se a necessária neutralização da sua
perigosidade social. Bem podendo então falar-se, em qualquer destas
hipóteses, de uma prevenção especial negativa ou de inocuização»;
ainda haveria «aqueles que pretendem dar à prevenção individual a
finalidade de alcançar a reforma interior (moral) do delinquente», ou
ainda os que defendem um modelo de tratamento médico ou clínico das
tendências criminosas.
Em sua opinião, o propósito de reinserção (ou inserção) social
contido na prevenção especial positiva ou de socialização, apesar de
para o mesmo não se divisar alternativa, deve ser modesto, isto é,
«… com respeito pelo modo de ser do delinquente, pelas suas concepções sobre a vida e o mundo, pela sua posição própria face aos juízos
de valor do ordenamento jurídico — criar as condições necessárias para
que ele possa, no futuro, continuar a viver a sua vida sem cometer
crimes» (a «prevenção da reincidência»). Seria de recusar «uma
acepção da prevenção especial no sentido da correcção ou emenda
moral do delinquente» e também «o paradigma médico ou clínico da
prevenção especial, sempre que ele se tome como tratamento coactivo
das inclinações e tendências do delinquente para o crime».
(73)
Op. cit., pp. 78 e ss.
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
Como alterar o comportamento do delinquente?
§ 44. No entanto, a dúvida que nos assalta (neste parêntesis), com
todo o respeito, é como será possível alcançar alguma mudança no
sentido de uma futura actuação de fidelidade ou pelo menos de não
antagonismo ou oposição ao direito, sem que seja tentada uma modificação nos hábitos do delinquente ou da sua mentalidade, evidentemente
sem intervenção nas mais íntimas «concepções da vida e do mundo» ou
dos valores, mas com uma proposição clara de adesão a outros (74). No
(74)
Cfr. PEDRO VAZ PATTO, loc. cit., pp. 410 a 413, onde recopila a posição
de ANABELA RODRIGUES — nota 42, em posição de aparente contradição — para
dizer: «… há quem afirme que o sistema jurídico-penal não pode pretender do agente
do crime a adesão a qualquer pauta de valores, bastando-se com a conformação
externa à lei vigente e a abstenção da prática de crimes (…). Ao Estado democrático
e pluralista faleceria, até, legitimidade para optar por uma qualquer pauta de valores
e impô-la (…). Mas será possível conduzir um agente à observância dos ditames do
sistema jurídico-penal sem apostar na sua motivação interior? E essa motivação
não terá de ser mais sólida do que a que decorre do temor das sanções e das desvantagens que, no plano puramente utilitarista, lhe possam estar associadas? Um
Estado democrático não é … um Estado «agnóstico» no plano dos valores, ou assente
no relativismo ético, porque a própria democracia não se reduz a um conjunto de
regras processuais e terá de assentar num forte suporte ético (que parte do princípio
da dignidade da pessoa humana). E o sistema jurídico-penal há-de espelhar a pauta
de valores própria da democracia. Estes valores não podem, por coerência interna,
ser impostos (numa qualquer espécie de «lavagem ao cérebro»), mas podem, e devem
ser propostos. A adesão a esses valores não pode ser imposta aos agentes de crimes,
mas tal não significa que não seja pretendida ou almejada pelo próprio sistema
jurídico-penal…
«Qualquer forma de assimilação dos esforços de reeducação ou ressocialização a
uma terapia segundo um modelo médico não pode ignorar que a prática do crime é
fruto de uma decisão livre.
«As expectativas a respeito de uma qualquer forma de reeducação ou reinserção
social também nunca podem ignorar que estão em cansa propostas que podem ser
livremente rejeitadas».
E se forem rejeitadas, diremos nós, nem por isso a pena perde sentido. Aspectos
com que se concorda, e com a afirmação recolhida de Roxin, de que «o criminoso não
é, como muitas vezes julga o leigo, um homem forte cuja vontade tem de ser quebrada,
antes, em grande número de casos, um ser diminuído, inconstante e pouco dotado, por
vezes com traços psicopáticos e que procura compensar através de crimes o seu complexo de inferioridade provocado por uma deficiente preparação para a vida. Para o
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Cap. IV — Teorias dos fins das penas
79
fundo, a adesão a uma postura à sombra do que defendia a escola correccionalista. A nosso ver, o «direito de ser diferente», típico de sociedades pluralistas e democráticas do mundo ocidental, não pode lançar
sobre os outros membros da sociedade riscos ou custos suplementares
que excedam os seus deveres gerais de solidariedade.
Crítica às teorias relativas
§ 45. Ainda segundo Figueiredo Dias, «a crítica geral, proveniente dos adeptos das teorias absolutas, que ao longo dos tempos mais
se tem feito ouvir às teorias relativas é a de que, aplicando-se as penas
a seres humanos em nome de fins utilitários ou pragmáticos que pretendem alcançar no contexto social, elas transformariam a pessoa
ajudar é necessário a cooperação de juristas, médicos, psicólogos e pedagogos contribuindo para o aperfeiçoamento de um programa de ressocialização».
E de acordo com Cavaleiro de Ferreira: «A finalidade recuperadora do homem
deve ter por fim o próprio homem. Desde que se considere ilegítima toda a finalidade
moral no conceito de ressocialização, destrói-se necessariamente a verdadeira possibilidade de reforma de cada um».
ANABELA RODRIGUES, «Consensualismo e prisão», in Documentação e Direito
Comparado, n.os 79/80, 1999, enuncia os factores a observar na socialização do recluso,
sendo essencial captar o seu consentimento para poder ganhar eficácia, que só se alcançará com a participação voluntária do mesmo. E adianta: «Trata-se, agora, de preservar no recluso a sua natureza de ser “responsável” e “social”, de evitar o aprofundamento da separação sociedade-recluso, de que a defesa e promoção dos direitos
fundamentais é elemento essencial». E mais adiante: «O Estado contemporâneo, de
natureza laica e secular, não se encontra legitimado para impor aos cidadãos códigos
morais. Por isso, a pena de prisão não pode ter por fim transformer o “homem-criminoso” num “bom pai de família”. A liberdade de consciência não sofre qualquer restrição por via da sujeição a uma pena de prisão». E vai ao ponto de excluir «o modelo
de «sinalagma penitenciário» — de troca automática entre um benefício concedido pela
administração e um determinado comportamento do recluso (por exemplo, a redução
de um dia de pena por cada x dias de trabalho) — (porque) não se adequa a uma execução baseada na espontaneidade da atitude de cooperação com a instituição com vista
à socialização». Ponto de vista que, no devido respeito, roça o exagero e se afasta da
realidade humana como um todo. Desde muito cedo que os padrões educativos, por
exemplo, oferecem incentivos ao aluno, e são aceites socialmente, desde que o objectivo
seja uma melhoria da formação e da adequação do comportamento à boa vivência em
sociedade.
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
humana em objecto, dela se serviriam para a realização de finalidades
heterónimas e, nesta medida, violariam a sua eminente dignidade».
Crítica que se mostraria infundada na medida em que «para o funcionamento da sociedade cada pessoa tem de prescindir — embora só
na medida indispensável — de direitos que lhe assistem e lhe são conferidos em nome da sua eminente dignidade. A questão da preservação
da dignidade da pessoa é por isso, em definitivo, estranha à questão das
finalidades da pena e deve ser resolvida independentemente dela. Problema é saber se não a pena, mas a sua aplicação não deve fazer-se em
termos que respeitem aquela intocávei dignidade; e aqui a resposta não
pode ser senão afirmativa».
45.1. Reconhece, porém, a fraqueza teorética e prática das doutrinas da prevenção geral quando no seu cariz negativo de intimidação
da generalidade dos cidadãos por não ser possível determinar o quantum
de pena necessário para o efeito e pelo risco de se descambar para o
direito penal do terror. O que não sucederá na vertente positiva ou de
integração — «de tutela da confiança geral na validade e vigência das
normas do ordenamento jurídico, ligada à protecção dos bens jurídicos»
— critério que permite uma moldura punitiva, não de pena exacta mas
de «pena justa e adequada à culpa do agente» culpa essa em que sendo
embora a medida concreta da pena «fruto exclusivo de considerações
de prevenção geral positiva, não deva ter limites inultrapassáveis ditados
pela culpa, que se inscrevem na vertente liberal do Estado de Direito e
se erguem justamente em nome da inviolávei dignidade pessoal (75).»
§ 46. A crítica acabada de avançar é também a extraída de Jescheck (76), ao afirmar:
«A la prevención general le falta, si no es delimitada por el
principio de culpabilidad, el baremo para la medida de la pena
imponible, porque, según la lógica de la intimidación, las penas
más graves posibles serán también las de mayor efecto en cuanto
a la impresión que producen en la colectividad. Sin embargo, no
es la pena más grave posible, sino la más justa respecto al conte(75)
(76)
Op. cit., pp. 77/78.
Op. cit., p. 66.
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Cap. IV — Teorias dos fins das penas
81
nido del injusto del hecho y la culpabilidad del delincuente, la que
incide en la conciencia jurídica del pueblo como «fuerza configuradora de las costumbres».
La prevención especial como simple intimidación ocasiona
más daño que provecho. Frente a la prevención especial hay que
objetar, para empezar, que, consecuentemente, debería sustituir la
pena por medidas terapéuticas, pues si en la Administración de
Justicia penal se tratara sólo de la resocialización de quien
infringe el Derecho, la desaprobación ética del hecho contenida
en la pena no tendría más sentido que la desaprobación de
una enfermedad. Además, la prevención especial lleva en casos
límites a conclusiones que serían insoportables para la conciencia
jurídica de la colectividad. De un lado, el autor al que se encuentra haciendo vida normal años después de haber cometido un
delito grave, como, por ejemplo el guardián de un campo de
concentración nazi que estuvo implicado en un sistema criminal,
o el marido que cometió perjurio para defender la honra de su
esposa, debería quedar totalmente impune, puesto que en ninguno
de ambos casos sería precisa la resocialización; y de otro, el
reincidente en un hecho de escasa importancia, pero sintomático
en cuanto a su inclinación, tendría que ser sometido a drásticas
medidas terapéuticas o de seguridad, que no guardarían relación
alguna con la gravedad del hecho cometido.
Asimismo, la prevención especial consecuente conduciría a las
medidas predelictuales, porque desde esa perspectiva no se comprende por qué haya de esperarse a la comisión de un delito antes
de que el Estado intervenga precautoriamente. Por último, resta el
gran problema de si puede lograrse durante el tiempo de ejecución de la pena carcelaria una efectiva educación de los adultos
o si lo mejor para la resocialización del autor no sería en la mayoría de los casos, que el Estado renunciara por completo al castigo
y se limitara a prestar una eficaz ayuda social».
6 — Medida da Pena
3. Teorias mistas ou unificadoras
§ 47. Não haverá uma oposição inconciliável entre as teorias da
retribuição e da prevenção, particularmente depois de aquela ter abanCoimbra Editora ®
82
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
donado o cariz de pena compensadora do mal do crime pelo mal da
pena, onde avultava o intuito de humilhação, e quando estas põem de
lado a finalidade exclusiva da intimidação, na qual se usa o homem
como instrumento útil perante os outros homens, ao falar-se na prevenção reintegradora.
47.1. Parece uma boa síntese a de Jescheck, ao dizer: «Cabe la
unión de ambas en el sentido de que la pena no se establece ni impone,
ciertamente, en consideración exclusiva a sí misma, sino con la finalidad
de proteger a la sociedad frente a futuros delitos, pero de modo que
sirva de compensación de la culpabilidad por el delito cometido, en
tanto que pretende lograr de forma justa el resultado preventivo (teoria
unificadora) … Así, la pena justa repercute sobre la colectividad como
fuerza configuradora de las costumbres, y opera admonitoria y correctivamente sobre el reo gracias al principio de proporcionalidad orientado
hacia su sentido de responsabilidad» (77).
Só de uma pena justa, no sentido de «merecida», pode irradiar um
«efeito pedagógico-social» sobre a colectividade, igual ao reconhecido
pelo condenado como «resposta de una comunidade a que se encontra
vinculado, e entendida como uma advertência».
47.2. Uma relação equilibrada entre todos os fins das penas, num
conceito pluridimensional, não obsta a que, na hipótese de antinomia
entre eles, não seja dada prevalência a um ou outro, sem que a pena
venha a perder a sua relação com a culpabilidade, que constitui o seu
fundamento (para a teoria retributiva). E uma vez graduada a pena
nunca poderá ser agravada por razões preventivas.
Diz-se recentemente que a «pena final» encontra a sua legitimação
na finalidade da prevenção do delito, mas só pode alcançá-la se responder às exigências da Justiça, com acento na ajuda ao delinquente para
uma vida social futura (78). No fundo, uma visão unitária.
Op. cit., p. 60.
Segundo JESCHECK, a teoria unitária encontra-se consagrada na lei alemã
enquanto no § 46 I, na primeira frase se faz da culpabilidade o fundamento da
medição da pena e na segunda se dispõe que se tomem em conta os efeitos da pena
na vida futura do condenado em sociedade (p. 68). Ponto de vista que é seguido
pela jurisprudência. Recorde-se aquele § 46 — Principios da fixação da pena:
«(1) A culpabilidade do autor constitui o fundamento para aa fixação da pena.
(77)
(78)
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Cap. IV — Teorias dos fins das penas
83
JESCHECK discorda da tendência de que o princípio da culpabilidade
pelo facto — nos casos de jovens e jovens adultos, reincidentes e delinquentes habituais — cederia ante a ideia de «culpabilidade pelo comportamento ao longo da vida», levando a uma pena indeterminada de
privação de liberdade, sem recurso a uma dupla via, porquanto deste
modo se «abandonaria o princípio de culpabilidade como base e limite
da pena, e com isso una parcela irrenunciável da segurança jurídica» a
favor do preso (79).
Crítica às teorias mistas
§ 48. A propósito das teorias mistas ou unificadoras, Figueiredo
Dias (80), reduzindo a multiplicidade de pontos de vista nesta matéria,
alude a um corpo doutrinal que pode ser definido como o de «uma
pena retributiva no seio da qual procura dar-se realização a pontos de
vista de prevenção, geral e especial; ou, diferentemente no que toca à
hierarquização das perspectivas integrantes, para todavia se exprimir no
fundo a mesma ideia, como a de uma pena preventiva através de justa
retribuição». Assim, «no momento da sua ameaça abstracta a pena
seria, antes de tudo, instrumento de prevenção geral; no momento da
sua aplicação ela surgiria basicamente na sua veste retributiva; na sua
execução efectiva, por fim, ela visaria predominantemente fins de prevenção especial».
Para de imediato repudiar por inaceitáveis tais concepções, desde
logo porque ao fazer apelo à «ideia retributiva, está a chamar para o
problema das finalidades da pena um vector que … não pode, pura e
simplesmente, ser tomado em consideração neste contexto: a retribuição ou compensação da culpa não é nem pode constituir uma finalidade da pena. Retribuição que, como ideia absoluta, ganharia total
predominância sobre as ideias de prevenção».
2 Devem considerar-se as consequências que são de esperar da pena para a vida futura
do autor na sociedade». Cfr. nota 39 supra.
(79)
Dando conta das críticas, logo a partir dos EUA, à pena relativamente indeterminada — cfr. JOSÉ ANTÓNIO VELOSO, op. cit., pp. 530 e ss., ao analisar o estado
actual da penologia; idem, PEDRO MARIA GODINHO VAZ PATTO, op. cit., p. 413.
(80)
Op. cit., pp. 83 e ss.
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84
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
Para logo acrescentar que «quando se misturam doutrinas absolutas
com doutrinas relativas fica definitivamente sem se saber qual o fundamento teorético e a razão de legitimação da intervenção penal.
Tanto aquele como esta, na verdade, são irremediavelmente diversos e
provenientes de concepções diferentes, quando não antagónicas, sobre
o fundamento do direito de punir e a consequente legitimação estatal
da intervenção penal (com razão chamando por isso Roxin a estas concepções «doutrinas unificadoras aditivas»…) Haverá que sublinhar, em
suma, que concepções deste tipo revelam uma oscilação inadmissível
em convicções fundamentais».
Por outro lado, a pena é uma «instituição unitária» em qualquer
momento da sua existência e assim deve ser perspectivada no que respeita ao problema das suas finalidades.
§ 49. Aquele Mestre, porém, se aceita que «a combinação ou
unificação das finalidades da pena ocorr(a) exclusivamente a nível da
prevenção, geral e especial, com total exclusão, por conseguinte, de
qualquer ressonância retributiva, expiatória ou compensatória», já rejeita,
porém, globalmente as teorias que «concluem pela recusa do pensamento
da culpa e do seu princípio como limite do problema; ou porque procuram substituí-lo pela categoria da perigosidade, ou, como modernamente sucede, pelo princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade ou por uma manipulação da ideia da culpa como mero derivado
da prevenção. Com o que, porém, fazem perder à intervenção penal o
seu pressuposto e a sua limitação irrenunciáveis — pode dizer-se, o
seu «axioma antropológico» … —, a saber, o respeito pela eminente
dignidade da pessoa. E com esta perda não é só o problema da culpa
jurídico-penal que completamente se falha: é a própria questão das
finalidades da pena — das finalidades preventivas da pena — que
à partida se erra e desde o momento inicial irremediavelmente se
inquina».
Nesta linha, se Roxin não pode ser criticado por abandonar ou
minimizar o «pensamento e o princípio da culpa na construção do
facto punível e na legitimação da intervenção penal», já a circunstância de preconizar que a medida da culpa seja dada não por um
ponto exacto da escala penal, mas através de uma moldura da culpa,
no círculo da qual o juiz fixará a moldura concreta da pena, levaria
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Cap. IV — Teorias dos fins das penas
85
à recusa da sua posição. Com efeito, neste «espaço nevrálgico de
aplicação da pena, é ainda de novo a ideia da compensação da culpa,
a ideia-mestra da retribuição, que reivindica — se bem que de forma
“encoberta” e latente — o seu regresso à cena das finalidades da
pena, degradando os propósitos preventivos, que deviam ser únicos,
para meros «correctores» da fundamental correspondência entre culpa
e pena…».
Ficaria assim minimizado o papel central que, no seu entender, à
prevenção geral positiva deveria caber nas finalidades da pena.
Posição de Roxin
§ 50. Valerá a pena insistir aqui na posição de Roxin, mais recentemente expressa (tanto quanto se conhece) (81).
Depois de feita a história evolutiva dos últimos anos e situando-se
no período ulterior a 1975, realça como a teoria da prevenção geral
triunfou em grandes sectores da ciência pelas seguintes razões: os
eventuais defeitos da personalidade de um autor individual, nem sempre perceptíveis, desempenham à partida um papel menor em comparação com a segurança de toda a sociedade; nos denominados crimes
clássicos tradicionais (v. g., furto, crimes violentos e crimes sexuais),
os esforços de ressocialização não atingiram resultados convincentes
(em média, cerca de metade dos condenados reincide no período de
cinco anos), sendo que a prevenção geral, ainda que de resultado
dificilmente comprovável em sentido rigoroso, torna-se plausível, pelo
menos em termos de teoria do quotidiano; finalmente, também as
(81)
«Sobre a evolução da política criminal na Alemanha após a Segunda Guerra
Mundial», in Homenagem a Claus Roxin, Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2002:
até 1962 vingou a teoria da retribuição (quanto maior fosse a culpa do autor mais severa
tinha de ser a retribuição); de 1962 a 1975, o fim da pena deslocou-se da retribuição
para a prevenção: ao Estado cabe a função social de impedir a verificação de crimes,
não tendo como tarefa impor ideias e valores pelos quais os indivíduos se têm de decidir, pois essa tentativa termina as mais das vezes em ditadura; mais modestamente, o
Estado deve «melhorar as relações sociais, isto é, a liberdade, a segurança e o bem-estar dos seus cidadãos, e isso é possível desde logo se se vê o fim da pena no impedimento do crime e se tenta alcançar este por via da actuação sobre o autor e a consciência jurídica».
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86
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
correntes sociológicas, sobretudo pela mediação de Jakobs, contribuíram na ciência jurídico-penal alemã para desviar a atenção do autor
individual e dirigi-la mais para a preservação do sistema social na sua
globalidade.
«A chamada prevenção geral positiva, ou seja, a preservação e o
exercício de fidelidade ao Direito, desempenha actualmente na Alemanha o papel de um fim da pena prevalecente». A segurança tende a
sobrepor-se ao autor individual e a intimidação ao objectivo da ressocialização.
Afinal — estaríamos tentados a dizer —, a abertura do caminho
para uma maior repressão em nome da segurança do ordenamento
jurídico.
50.1. Todavia, a posição final de Roxin não é essa.
«Um Direito Penal moderno … tem de se orientar pelo objectivo da melhor conformação social possível. Isto significa que ele
tem de ser estruturado com base no impedimento do crime e tem
de realizar a prevenção de modo a lograr uma síntese entre as
exigências do Estado de Direito e do Estado Social.»
A evolução na Alemanha — diz — não respeita, na medida
necessária, a protecção dos direitos de personalidade do arguido, o
direito à esfera íntima e à esfera privada, ao silêncio, nem o Estado
Social de Direito coloca, a par da prevenção geral, com igual legitimidade, uma prevenção especial socializadora ou ressocializadora.
«A boa política criminal consiste… em unificar da melhor maneira
possível a prevenção geral, a prevenção especial centrada na integração social e a limitação da pena decorrente do Estado de Direito»
(bold nosso).
De algum modo, a mescla das três finalidades, estamos de novo
tentados a dizer.
O valor da reparação
50.2. Dedica particular relevo ao aspecto da reparação «a única
grande conquista do Direito Penal».
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Cap. IV — Teorias dos fins das penas
87
Os seus benefícios são claros: o de prevenção geral no melhor
sentido, nomeadamente nos pequenos crimes, mediante a restauração da
paz jurídica pelo ressarcimento da vítima e a conciliação entre o autor
e aquela; ocorre ainda o restabelecimento do ordenamento jurídico e «a
força impositiva do Direito comprovada de um modo claro para a população»; também as exigências da prevenção especial ficam satisfeitas,
pois «o autor é forçado a debater-se interiormente com o facto e as
suas consequências, a ajudar a vítima por meio de prestações activas e,
portanto, a actuar ele próprio de modo ressocializador»; e de entre todas
as instituições com relevância sancionatória, estas serão as que «menos
prejudicam a autonomia da personalidade do arguido» (82).
Síntese das teorias unitárias
§ 51. Há quem condense a fundamentação das teorias unitárias
em dois grupos: a) as que defendem que a protecção e segurança da
comunidade se deve basear na retribuição e na pena justa, usando os
fins de prevenção como elementos de complementaridade; b) as que
partem da defesa da sociedade como fundamento da pena, cabendo à
retribuição a função de limite máximo das exigências da prevenção,
impedindo uma pena superior à merecida pelo facto cometido. Em
qualquer dos casos, a protecção da comunidade significa protecção de
bens jurídicos plasmados nos preceitos penais.
Por outro lado, cada concepção, dentro da teoria unificadora,
actuaria em momentos diferentes. O critério de prevenção geral gravitaria a nível legislativo, isto é, no momento em que se escolhe a sanção
para aquele que leva a cabo certo comportamento. O ponto de vista
retributivo interviria em primeiro plano no momento da individualização
judicial da pena — em que se atende preferentemente à gravidade do
facto e à culpabilidade do seu autor. Em segundo plano entrariam as
considerações preventivas especiais ligadas à personalidade do delinquente e ao prognóstico de reincidência, limitando-se a prevenção geral
a uma função residual, evitando que seja tão reduzida que suponha
efeitos contraproducentes para o controlo social. Na execução da pena
(82)
Cfr. adiante, §§ 234/237 sobre a Justiça Restaurativa.
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88
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
sobressairia a prevenção especial com o objectivo essencial da readaptação do condenado.
Antes de emitir opinião sobre qual das teses melhor se ajusta ao
sistema penal português, parece apropriado reter a atenção na concepção
de culpa ou culpabilidade e também nos textos legais pertinentes do
Código Penal em vigor.
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CAPÍTULO V
CONCEPÇÕES SOBRE A CULPABILIDADE
§ 52. Já se fizeram várias menções à noção de culpa ou culpabilidade, mas não parece poder ir-se além na discussão, num juízo
mais explícito e fundado sobre as questões postas, sem atentar mais
profundamente nesse conceito, até pela dificuldade que decorre do que
já se enunciou: pode falar-se em culpabilidade sem de algum modo
admitir uma referência à retribuição como finalidade da pena? Já
vimos como os doutrinadores das teorias relativas da prevenção também se servem da culpa ao menos com a função limitadora do máximo
da pena.
Será que deve abandonar-se de vez, para efeitos penais, a ideia do
livre-arbítrio? E a culpa tem contornos gnoseológicos, apenas normativos ou outros?
Direito penal e garantias
§ 53. Na estrutura garantística que a partir dos séculos XVII e
XVIII procura limitar as (más) práticas políticas do Estado, o homem
aparece como sujeito principal de direitos, numa guinada antropocêntica.
A positivação das garantias começa nas próprias leis fundamentais,
abrindo caminho para o Estado de Direito. No campo penal, são diversas as garantias que se erigem como limitação ao poder de punir do
Estado: uma delas traduz-se na ideia fundamental da culpabilidade, de
que decorrem «novos critérios de fixação da proporcionalidade retributiva da pena, a individualização da pena e a necessidade da prova da
culpa para condenação penal. O fundamento pedagógico obtido pela
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90
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
pena, por sua vez, propõe a humanização da execução penal, impedindo
a aplicação de penas desumanas» (83).
Dificuldade da «descoberta» da culpa
53.1. Parece adquirido que ninguém pode ser responsabilizado
criminalmente por um acto que não seja manifestação de uma vontade
consciente, salvo nas actiones liberae in causa cuja origem se coloca a
montante. Mas conhecer da liberdade de decidir em cada acto concreto
da vida do homem continua a envolver um processamento e interacção
complexos, compostos de vários factores, uns internos — v. g., a constituição física, personalidade, genética e hereditária, a saúde física e
mental —, outros externos — v. g., a educação, a família, o ambiente
físico, económico e cultural —, os quais podem condicionar a conduta
de cada um e por isso tornar fluido descobrir até onde vai a margem de
liberdade (84).
Lackner (85), resumindo a inabarcável literatura científica, afirma
que no presente estado de conhecimento não existe qualquer método, e
provavelmente nunca haverá, que permita uma pronúncia cientificamente
(83)
Gustavo Barbosa de Mesquita Batista, Direito Penal: Aspecto Histórico Funcional da Pena, in RFD de Caruarú, V. 1, n.º 24, 2002, pp. 189-210.
(84)
Parece não haver dúvida de que a noção de culpabilidade é mais extensa que
a de imputação como elemento do crime, alargando-se a todos os elementos pelos quais
o autor da infracção pode ser censurado em relação com o seu acto quer se liguem ao
modo de execução quer à sua personalidade tal como se manifesta através desse acto
(causa, comportamento antes e depois, carácter).
(85)
In Derecho Penal — Parte General., op. cit., p. 808. C. ROXIN pronuncia-se
ainda pelo afastamento da doutrina da culpa pelo carácter próprio, refutando Figueiredo
Dias (pp. 802 e ss. e 817), pela «condução da vida» ou pela «decisão da vida» — pois
«… uma condução «culpável» da vida não é uma realização culpável do tipo, e só esta
é punível» —, assim como a tese da culpabilidade como atribuição segundo as necessidades preventivas gerais, ou seja, a culpa funcional de JAKOBS, em que a punibilidade não depende já de circunstâncias que radicam na pessoa mas no que presumivelmente seja necessário para o exercício dos cidadãos na fidelidade ao Direito, para a
estabilização da sua confiança no ordenamento (p. 806). «Deixa-se ao arbítrio do
legislador ou do juiz uma vacilante insegurança sobre o que há que entender por culpabilidade.»
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Cap. V — Concepções sobre a culpabilidade
91
comprovável sobre a capacidade de uma pessoa para evitar determinada
acção numa situação concreta.
Para Figueiredo Dias (86), não vale ao Julgador tentar transferir a
resposta à questão para peritos (psicólogos ou psiquiatras) «porque a
ela nenhum homem pode responder» (…). «O poder de agir de outra
maneira na situação é pura e simplesmente inverificável no comportamento concreto da pessoa individual». Daí a deslocação para o poder
do homem médio ou o poder normal no homem com as capacidades do
agente, ou seja, o poder que se «deve esperar» do «tipo concreto» de
homem a que pertence o agente. E sendo assim, não se consegue
demonstrar o poder de agir em concreto de outra maneira — logo a
liberdade do «concreto acto de vontade, o poder real de agir de outra
maneira não pode ser arvorado em critério prático da liberdade e da
culpa».
Juízo de desvalor
53.2. Não oferecerá dúvida de que a culpa arrasta um juízo de
desvalor sobre o agente pelo seu comportamento, por via de acção ou
de omissão. Mas saber até que ponto deve alguém ser responsabilizado
pela personalidade que demonstra, vai a distância entre saber se ela
resulta de actos intencionais ou pelo menos conscientes, através dos
quais a vai consolidando, ou se a componente predominante radica na
informação genética que lhe foi transmitida e da qual não consegue
libertar-se. Hipótese não menos intrincada surgirá quando a coerção
exterior para o acto ou omissão coincide com as intenções e desejos
pessoais do agente (87).
Liberdade — Culpa — Direito Penal, Coimbra Editora, Coimbra, 1976,
pp. 37/38, 58/59 e 97.
(87)
Cada vez é maior a intensidade dos estudos no plano do funcionamento do
corpo humano e da mente. Em 1980, Benjamin Libet descobriu que a actividade inconsciente levando à decisão consciente da prática de certo acto começava aproximadamente
meio segundo antes da pessoa conscientemente se decidir por ela. «Esse desenvolvimento
de carga eléctrica veio a ser chamado de potencial de prontidão (readiness potential)».
As descobertas de Libet sugerem que as decisões tomadas por uma pessoa são de facto
primeiramente construídas em um nível subconsciente e apenas posteriormente traduzidas
(86)
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
Ainda no plano da personalidade e das relações entre o consciente e o inconsciente, diz-se que os comportamentos morais «são
um conjunto de competências adquiridas ao longo de práticas repetidas e ao longo de vastos períodos de tempo, com informação
assente em princípios e motivos articulados de forma consciente, mas
sendo em tudo o mais uma “segunda natureza” colocada no inconsciente cognitivo» (88).
O que apontaria para a enorme importância da personalidade que
se foi construindo, não com vista a punir alguém pela personalidade
mas para o punir pela personalidade que revelou nos factos criminosos
praticados, e importa conhecer a fim de que a punição possa contribuir
para uma orientação futura não violadora da lei. No fundo, encontrar
o fundamento de responsabilidade pressuposto da punição.
Culpabilidade como princípio fundador?
§ 54. Já se tem questionado se a sociedade pode fazer funcionar a culpabilidade como o princípio organizador e fundador do
direito.
numa «decisão consciente», e que a crença da pessoa que ela ocorreu ao comando da
sua vontade deve-se apenas à sua perspectiva retrospectiva sobre o evento. Todavia,
Libet ainda encontra espaço no seu modelo para o livre-arbítrio, na noção de poder de
veto: de acordo com o seu modelo, impulsos inconscientes para realizar um acto volitivo
estão abertos à supressão pelos esforços conscientes da pessoa. Isso não significa que
Libet acredite que acções impelidas inconscientemente requerem a ratificação da consciência, mas antes que a consciência retém o poder de negar a actualização de impulsos inconscientes» — in http://pt.wikipedia.org. Para A. DAMÁSIO, O Livro da Consciência — A constituição do cérebro consciente, Temas e Debates, Círculo de Leitores, trad.,
2010, também está evidenciado que «em muitas ocasiões, a execução das nossas acções
é controlada por processos não-conscientes» (p. 331). E remetendo concretamente para
Libet e outros autores suscita também o problema da responsabilidade pelas nossas
acções, alertando, porém, para que tais processos «estão, substancialmente e de várias
formas, sob uma orientação consciente». Atribui à lenta educação na infância e adolescência a «transferência de parte do controlo consciente para um «server» não consciente…». Vários exemplos são apontados em que fazemos funcionar o não consciente:
se vamos a pé para casa a pensar na solução de um problema e chegamos sãos e salvos
sem pensar no percurso; o caso dos músicos e dos atletas.
(88)
Cfr. A. DAMÁSIO, O Livro da Consciência, op. cit., pp. 331 e ss.
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Cap. V — Concepções sobre a culpabilidade
93
Que há legitimidade para afirmar que a noção de culpabilidade existe
desde há bastante tempo, afirma-o Michel Foucault (89). «On peut discuter pour savoir si le sentiment de culpabilité vient des Grecs ou a une
autre origine. En tout cas cela existe et on ne voit pas comment une
société comme la notre, encore si fortement enracinée dans une tradition
qui est aussi celle des Grecs, pourrait se dispenser de la culpabilité. On
a pu, pendant très longtemps considéré qu’on pouvait directement articuler un système de droit et une institution judiciaire sur une notion comme
celle de la culpabilité. Pour nous…, la question est ouverte».
Mas mesmo para as posições abolicionistas do sistema penal não
se sabe se dispensariam a noção de culpa.
Há quem diga que o conceito de culpabilidade, também designado
de reprovabilidade, ancorado na cultura judaico-cristã, é incompatível
com o tratamento e a reabilitação do delinquente e devia ser eliminado
do direito criminal. Porém, Freud demonstrou que o sentimento de
culpabilidade pode muito bem preexistir à falta e, dizem numerosos
psiquiatras, «a ausência de consciência culpável constitui uma disposição
antiterapêutica» enquanto P. Ricoeur expressa: «au fond, le reprentir,
c’est la prise en charge par l’homme lui même de son amendement,
comme la culpabilité c’est la prise en charge de la faute» (90).
§ 55. Passemos à discussão mais próxima do conceito de culpa
no crime, sem agora examinar se devemos encarar categorias diferentes
para a teoria da infracção criminal e para a aplicação da pena.
O problema essencial será o de saber qual o fundamento material para
«a reprovação pela culpabilidade», o mesmo é dizer a reprovabilidade.
1. Tese do livre-arbítrio
Conceito psicológico de culpa
Para responsabilizar criminalmente o autor de factos ilícitos tipificados na lei como crimes, seria necessário um poder de agir de outra
Em entrevista realizada em 1983 «Qu’appelle-t-on punir?», in Revue de
l’Université de Bruxelles, 1984/1-3, p. 35.
(90)
Apud Foulek Ringelheim, Le souci de ne pas punir, in Punir mon beau souci,
RUB cit., pp. 355 e ss.
(89)
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94
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
maneira pelo agente (o denominado princípio das possibilidades alternativas).
Na tese do livre-arbítrio a «culpa é censurabilidade do comportamento humano, por o culpado ter querido actuar contra o dever quando
podia ter querido actuar de acordo com ele» (91).
Daí decorrem implicações de ordem psicológica e de ordem ética:
a aceitação da liberdade da vontade como fundamento de toda a
culpa.
A culpa é um fenómeno psíquico que deve ser apreciado «quer sob
o aspecto de liberdade da vontade ou da sua normalidade, quer da persistência da resolução, quer ainda da adequação do acto volitivo à personalidade do agente». Por isso que deva começar-se pela imputabilidade,
distinguindo entre a plena imputabilidade, a inimputabilidade, a imputabilidade diminuída ou semi-imputabilidade (Cavaleiro de Ferreira).
A culpabilidade seria concebida como a relação subjectiva do
sujeito com o resultado (92).
Será culpável o sujeito que podendo motivar-se no respeito pela
norma fez a opção contrária. Manter-se à margem das exigências colocadas pelo ordenamento jurídico, apesar de ter podido ajustar-se a elas,
é o critério que serve de fundamento ao juízo de culpabilidade. O ser
humano possui autodeterminação moral livre e capacidade para se decidir pelo Direito.
Fundamento de ordem ética
§ 56. Para Welzel, o autor da famosa teoria finalista da acção,
numa concepção seguida pelo Supremo Tribunal Federal, o critério da
reprovabilidade assenta na circunstância de o agente se ter decidido pelo
injusto de forma livre e responsável, apesar de poder decidir-se pelo
Direito.
Por seu turno, Maurach em vez de um fundamento material comum
para os muito diversos casos de exclusão da culpabilidade procede ao
(91)
Apud FIGUEIREDO DIAS, Liberdade — Culpa — Direito Penal, op. cit.
pp. 20/21.
(92)
Apud CLAUS ROXIN, Derecho Penal, Parte General, … op. cit., p. 794.
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Cap. V — Concepções sobre a culpabilidade
95
«desdobramento» em dois graus: a «responsabilidade pelo facto» e a
«culpabilidade». O agente, que está em condições de eleger entre o
bem e o mal, decide-se pelo último. Afirma expressamente o poder agir
de outro modo e o seu pressuposto, o livre arbítrio. Para um outro
conjunto de casos em que segundo a opinião dominante se exclui a
culpabilidade, Maurach inclui-os «dentro de un especial grado de delito,
anterior a la culpabilidade, como causas de falta de responsabilidade por
el hecho» por falta de «atribuibilidade» (93).
Em princípio, subjaz a todas estas perspectivas um fundamento de
natureza ética, se não mesmo de ordem moral.
Censurabilidade do agente
§ 57. Para Figueiredo Dias, na sequência do que já se referiu
supra § 53.1., «o que aqui está em causa … é a ligação da censurabilidade ao agente, não ao mau uso do seu poder de agir de outra
maneira. Fosse assim, e a medida da pena, obtida por referência à
medida do poder que o agente detinha de actuar de acordo com a norma
não o tendo feito, seria impossível de atingir. Um tal poder não deixa
apreender-se e a consequentemente necessária generalização deste
— não permitindo que assim se alcance o facto como facto de uma
pessoa — implica uma ficção da sua medida. A medida do quantum
concreto de um poder obtém-se a partir de uma tarificação que nada
justifica o «poder dos outros», que se toma assim em medida do dever
para o agente concreto (94)».
E noutra ocasião disse o mesmo Mestre (95): «Há hoje uma grande
unanimidade de pontos de vista (mesmo entre aqueles para quem a culpa
Apud CLAUS ROXIN, «Culpabilidade» e Responsabilidade» como categorias
sistemáticas jurídico-penais, in «Culpabilidad y prevención…», cit., pp. 68/70. A crítica
de Roxin é de que fica por indicar o critério valorativo rector sobre o que deva o legislador «exigir» ao particular naquele conjunto de casos (por exemplo, do erro sobre a
proibição ou a exculpação em situações de necessidade) que só normativamente podem
ser resolvidos. No mesmo Autor, Derecho Penal, Parte General, …, p. 815.
(94)
«Culpa e personalidade», p. 251.
(95)
«Pressupostos da Punição…», Jornadas de Direito Criminal, CEJ, 1983,
p. 71.
(93)
Coimbra Editora ®
96
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
é capacidade de motivação pela norma) em que não está aqui em causa
o indiscernível poder de agir de outra maneira na situação, e portanto
uma tentativa de resposta à questão do concreto livre-arbítrio; mas
também em que não será lícito ficar-se por uma resposta meramente
objectiva, que fosse buscar para padrão a capacidade normal ou do
homem médio: está aqui verdadeiramente em causa um critério subjectivo e concreto, ou individualizante, que deve partir do que seria
razoavelmente de esperar de um homem com as qualidades e capacidades do agente. Se for de esperar dele que respondesse às exigências do cuidado objectivamente imposto e devido — mas só nessas
condições — é que, em concreto, se deverá afirmar o conteúdo de culpa
próprio da negligência e fundamentar, assim, a respectiva punição» (bold
nosso).
O livre arbítrio não se demonstra, como acima se disse, e o que
deve indagar-se é o que a ordem jurídica exige do autor tendo em vista
as condições e circunstâncias externas do sucedido, em comparação com
os outros homens.
Já não é o mundo do ser mas do dever ser (normativo) (96) — diz
Roxin, passando para outro critério.
No oposto da liberdade de decidir de outra maneira está o determinismo, ou seja, a doutrina que retira ao agente tal capacidade de
decidir porquanto tudo se encontraria predeterminado.
2. Tese da culpa normativa
§ 58. Como já vimos, a Assembleia da Republica, ao apreciar o
projecto de Revisão de 1995, afirmava que a culpa como fundamento
da pena não implica a aceitação do livre-arbítrio e não vincula a qualquer opção filosófica ou metafísica, remetendo para a concepção de
Roxin, do cidadão com capacidade de decisão autónoma e responsável,
sem anomalias na sua motivação.
Frank entendeu que a culpabilidade era integrada por três elementos de igual valor: (i) a normalidade mental do sujeito; (ii) uma concreta
CLAUS ROXIN, «Culpabilidade» e Responsabilidade» como categorias sistemáticas jurídico-penais, in «Culpabilidad y prevención…», cit., pp. 61/63.
(96)
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Cap. V — Concepções sobre a culpabilidade
97
relação do sujeito com o facto ou pelo menos a possibilidade da mesma
(dolo ou imprudência); (iii) normalidade das circunstâncias em que o
sujeito actua. Como síntese, imputa-se a conduta proibida a alguém
quando se pode reprová-lo por ter incorrido nela (97).
Para Goldschmidt, junto a cada norma jurídica existiria implicitamente uma «norma de dever» que obrigaria à conduta de cada um em
conformidade com o ordenamento jurídico.
O juízo de censura que se pode dirigir ao agente, a reprovabilidade, em termos gerais, estará fundado no facto de não ter adequado
o seu comportamento ao direito. Assume, assim, uma natureza formal,
e deixa de fora os pressupostos materiais de que depende a reprovabilidade.
Bases mais objectivas?
§ 59. Mas há quem estenda este conceito normativo e procure
radicá-lo em bases pretensamente mais objectivas (98).
«La culpabilidad debe interpretarse a partir del concepto normativo de culpabilidad, y ha de limitarse estrictamente a la actitud interna
del autor, manifestada en el hecho y a la infracción del Derecho causada
culpablemente por el comportamiento del autor».
E o passo seguinte seria este: «El juicio de culpabilidad procede
de la convicción interpersonal constatable acerca del desvalor de determinados comportamientos, es decir, procede de la conciencia valorativa
de la comunidad. Castigar por la culpabilidad significa congruencia
con la conciencia jurídica de la comunidad, pero ésta no limita la culpabilidad ni la pena a un punto exacto, sino que constituye un proceso
dinámico de configuración que conduce a un margen de culpabilidad,
dentro del cual pueden desplegarse los fines de la pena» (…). El juicio
de culpabilidad que sobre el hecho antijurídico pronuncia así el juez en
representación de la comunidad jurídica conecta directamente con la
responsabilidad social de todo ciudadano. Dicha responsabilidad social
Apud CLAUS ROXIN, Derecho Penal, Parte General, p. 795.
HEINZ ZIPF, «Principios fundamentales de la determinación de la pena», in
Cuardernos de política criminal, EDERSA, Madrid, 1982, pp. 353 e ss.
7 — Medida da Pena
(97)
(98)
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98
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
del individuo, sin la cual ningún orden social podría funcionar, es, pues,
la base de juicio de culpabilidad» (itálico nosso) (99).
3.
Outras opiniões e teses
Muñoz Conde
§ 60. Muñoz Conde (100) não aceita a noção de culpabilidade no
sentido de o agente poder actuar de outra maneira, pois também considera isso empiricamente indemonstrável e a possibilidade de eleger entre
várias hipóteses não é pressuposto da culpa mas da acção (Roxin responde com o conceito de «responsabilidade», que acabará por não
satisfazer nem os defensores do conceito tradicional nem os partidários
de um Direito Penal em que, apesar de tudo, a culpabilidade desempenha um papel de limite não ultrapassável (101)).
A culpabilidade não será — diz Muñoz Conde — um fenómeno
individual mas social, não uma culpabilidade em si mas com referência
aos outros. Depende da correlação de forças de dado momento na
sociedade. Segundo Ross, a frase «não podia actuar de modo diverso»,
não é mais do que uma forma de dizer enfaticamente que em dadas
circunstâncias «não se podia esperar» que o homem actuasse diversamente do que acabou por fazer.
(99)
Embora se possa logo adiantar a crítica — apud FIGUEIREDO DIAS, Liberdade
— Culpa — Direito Penal, op. cit., p. 100: ao desligar-se a essência da culpa do poder
individual, tornando-se «o poder dos outros em dever para o agente concreto»,
alcança-se o padrão objectivo e social mas perde-se a possibilidade de fundamentação
ética, a ligação entre o facto concreto e a vontade livre do agente individual.
(100)
Introdução à cit. «Culpabilidad y prevención…», CLAUS ROXIN.
(101)
Recorda MUÑOZ CONDE, loc. cit., p. 24, um argumento de Listz contra a tese
de Roxin de que a culpabilidade tem uma função protectora dos cidadãos servindo de
limite máximo à magnitude da pena: «… nenhum fundamento metafísico da pena — tal
como a liberdade de vontade — está em situação de a poder limitar. Roxin incorre
neste ponto numa contradição dificilmente superável: primeiro concede que a culpabilidade é um conceito fictício de raízes metafísicas incapaz por si só de servir de fundamento à imposição de uma pena, mas logo, sem embargo, atribui a esse conceito
fictício nada menos que uma função limitadora do poder de intervenção estatal».
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Cap. V — Concepções sobre a culpabilidade
99
A capacidade de motivação por normas é a faculdade humana
fundamental que, unida a outras que lhe são intrínsecas (inteligência,
afectividade), permite a atribuição a um sujeito da acção cometida por
ele.
Roxin e a refutação de outras teses
§ 61. Roxin enuncia (102) a propósito do critério normativo unificador da teoria jurídico-penal da culpabilidade, várias soluções distintas (que aliás vai refutando).
Freudenthal e Goldschmidt situam na «exigibilidade» a censura ou
reprovabilidade: a pessoa não se ter deixado motivar pela representação
do dever de agir aí está o fundamento da imputação pela culpabilidade
(ao que Roxin responde que o princípio não é normativo mas regulador
e carece de conteúdo pois se fica sem saber por que razão se exigia
outra conduta).
Para Gallas, o que existe no centro da censura é a reprovação do
facto pela atitude interna juridicamente desaprovada pelo direito, orientada no caso concreto por critérios ético-sociais (ao procurar-se a razão,
o porquê de uma atitude interna desaprovada juridicamente, depara-se
com a vacuidade dos critérios ético-sociais, rebate Roxin).
Nem a tentativa de Schmidhäuser resultará: embora assentando a
culpabilidade na atitude interna antijurídica, procura sediar esta no
«comportamento espiritual lesivo de um bem jurídico», isto é, o agente
estava em posição de tomar a sério os factos e o valor lesionado, o que
nada tem a ver com a questão do livre arbítrio em sentido filosófico
(todavia, isso deixaria sem explicação — diz-se —, as causas de exculpação, estado de necessidade desculpante, excesso de legítima defesa,
com diminuição até ao desaparecimento da culpabilidade e a imprudência inconsciente em que não haverá contacto espiritual com o valor
lesionado).
(102)
«Culpabilidade» e Responsabilidade» como categorias sistemáticas
jurídico-penais, in «Culpabilidad y prevención…», cit., pp. 59 e ss. Tratado de
Derecho Penal, … op. cit., pp. 798 e ss.
Coimbra Editora ®
100
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
Tese de Roxin
§ 62. Passemos à tese de Roxin sobre o conceito material de
culpa.
62.1. Assenta essencialmente em que os princípios político-criminais da teoria do fim da pena sustentam a categoria sistemática denominada por culpabilidade (103).
Poder-se-á partir das proibições fundamentais para todos os cidadãos (as tábuas legais), para a antijuridicidade que designa a conduta
correcta em caso de conflito e finalmente para saber se é necessária uma
sanção contra o autor concreto.
«O decisivo não é poder actuar de outro modo, senão que o legislador, a partir de pontos de vista jurídico-penais, queira tornar responsável o autor pela sua actuação». Por isso Roxin fala de «responsabilidade» e não de culpabilidade.
A culpabilidade é condição necessária mas não suficiente para
impor a pena.
62.2. Analisando o estado de necessidade desculpante — alguém
realiza um tipo de injusto para salvar determinada pessoa —, de um ponto
de vista indeterminista havia possibilidade de actuar de outro modo e
nesse sentido haveria culpabilidade. Porém, o legislador deixa impune a
conduta por razões político-criminais no tocante ao fim da pena, já que
em termos de prevenção especial a sanção é desnecessária, pois o agente
mostra-se integrado socialmente, e a prevenção geral tão pouco exige uma
pena, dada a infrequência das situações e a sua peculiaridade.
Assim, pese embora o poder de o agente actuar de outra maneira
e a culpabilidade existente, o legislador umas vezes castiga outras prescinde da sanção, fazendo depender a responsabilidade jurídico-penal de
considerações preventivas.
62.3. No que concerne à exigibilidade, ela escapa a uma normação descritiva e é deixada ao juiz para que analise cada caso concreto,
a determinar por princípios ordenadores sociais. Surgem situações
jurídicas especiais em que ao agente se impõe suportar perigos especiais.
Loc. cit., pp. 70 e ss. Também Derecho Penal — Parte General…, op. cit.,
maxime pp. 807/818.
(103)
Coimbra Editora ®
Cap. V — Concepções sobre a culpabilidade
101
Por exemplo, ao bombeiro não se poderá admitir que aceite impávido
uma morte sumamente provável, mas em outros casos saber onde passa
o marco entre o exigível e não exigível só o juiz o poderá fazer em
cada caso concreto materializando directamente as exigências (de prevenção geral) do bem comum.
Esta fundamentação político-criminal da responsabilidade a partir dos
fins das penas será a que melhor explica a regulação da lei e permite
solucionar os problemas teóricos fundamentais do Direito Penal. E assim
pode deixar-se de lado e em paz a insolúvel questão do livre arbítrio.
Em vez do critério do poder agir de outra maneira — teoria dominante — deve preferir-se como factor decisivo as exigências da comunidade jurídica orientadas ao imprescindível no plano preventivo.
Por exemplo, no erro sobre a proibição, e numa vida social complexa,
a sua evitabilidade não se deverá determinar pelo que é possível «in abstracto» senão pelos imperativos de uma razoável política criminal (104).
Pela teoria da responsabilidade, e no caso de uma conduta considerada anti-jurídica, deve perguntar-se se requer ou não uma sanção por
razões de prevenção geral ou especial, sendo que relevam mais os
resultados do que as decisões.
62.4. Nesta tese, parte-se do princípio de que o sujeito possui
capacidade para se comportar em conformidade com a norma — a
exequibilidade normativa —, não se diz que pudesse efectivamente
actuar de outro modo (o que não se pode saber). Trata-se como livre,
numa asserção normativa, «uma regra social do jogo, cujo valor social
é independente da teoria do conhecimento e das ciências sociais».
Admite-se que se trata de um «suposição de liberdade».
Jescheck e outros
§ 63. Para Jescheck (105) «ficar aquém do grau de atitude jurídica
e da força de vontade… que se espera do cidadão médio é o que se
ROXIN pronuncia-se, além do mais, sobre o excesso de legítima defesa, a
imprudência, a insignificância, as causas supralegais de exclusão da responsabilidade
— pp. 80 e ss.
(105)
Apud, CLAUS ROXIN, «Culpabilidad, prevencion y responsabilidade en derecho penal», loc. cit., p. 164.
(104)
Coimbra Editora ®
102
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
reprova ao autor e constitui a sua culpabilidade». E não será incorrecto
— diz — tirar conclusões «a posteriori» das expectativas que se atribuem ao «homem médio» na hora de estabelecer a capacidade do autor
concreto pois que a «responsabilidade da pessoa adulta e sã mentalmente
é uma condição prévia indispensável de qualquer ordem social baseada
na liberdade».
A que acrescenta Roxin: «Apenas se puede expresar de un modo
más claro que, sobre la base de un poder actuar de un modo distinto,
no empíricamente constatado, sino normativamente «determinado», de
lo que se trata es de la «responsabilidad» político-criminal a la que debe
reconducirse de un modo completamente general la culpabilidad en su
contenido material».
63.1. Krumpeimann é ainda mais incisivo: «A culpabilidade no
sentido do conceito geral… perde o momento de reprovação ética individual. A reprovação significa que o autor não correspondeu às expectativas sociais de conduta dirigidas à pessoa média, mas não ao juízo
de que podia ter agido melhor. O seu castigo converte-se em meio para
um fim: chamar à responsabilidade da comunidade».
Dir-se-á, porém, que esta concepção «não abandona o conceito de
culpabilidade e não limita menos o poder punitivo senão mais que a
concepção tradicional. Não se trata de castigar apesar da comprovação
da impossibilidade de actuar de modo distinto, ao contrário, trata-se de
pôr a claro que as necessidades preventivas, em muitos casos e apesar
da existência da culpabilidade, não reclamam uma sanção penal». Com
efeito, «a política criminal e a ideia de culpabilidade devem ser combinadas numa síntese da sua influência recíproca e da sua coetânea limitação…»
A função específica do princípio da culpabilidade consiste em
limitar a magnitude (a extensão) da pena.
Mas não se podem incluir na culpabilidade todos os pontos de vista
preventivos ou só os gerais, desaparecendo a antinomia culpabilidade/
/prevenção.
Consequências
§ 64. No que se refere à culpabilidade como fundamento da pena,
em numerosos casos devem juntar-se requisitos preventivos, para desenCoimbra Editora ®
Cap. V — Concepções sobre a culpabilidade
103
cadear uma responsabilidade jurídico-penal. Assim, «o castigo do
comportamento culpável — contra a opinião tradicional vai a ser limitado precisamente pela necessidade preventiva».
«Existe agora unanimidade em expressar que a função do princípio
de culpabilidade não é bilateral, antes unilateral. Quer dizer: a doutrina
dominante na Alemanha segue mantendo que a pena supõe culpabilidade
e que também é limitada na sua magnitude por ela; mas não aceita já
que um comportamento culpável exija sempre uma pena. Considera
antes que o comportamento culpável só deve ser castigado quando as
razões preventivas, ou seja, a missão do Estado de assegurar a convivência em paz e liberdade, tornem indispensável o castigo» (106) (bold
nosso).
64.1. Em manifestação mais recente (desconhecemos outras) (107),
Roxin afirma que a culpa não é «interpretada como um dado susceptível
de fundamentação religiosa, ética ou outra de cariz filosófico: é entendida, em sentido puramente jurídico, como «agir ilícito, apesar de haver
sensibilidade aos apelos normativos».
«A possibilidade, no plano psicológico, de acatamento da norma (é
isto que significa, para mim, «sensibilidade aos apelos normativos») falta,
por exemplo, ao inimputável (§ 20 do Código Penal alemão) e àquele que
se encontra em erro inevitável sobre a proibição (§ 17 do Código Penal
alemão). Um tal agente tem de ficar impune por razões de Estado de
Direito, determinantes da limitação das intromissões estaduais, mesmo
que uma punição pudesse ser útil, para actuação sobre o agente, para
intimidação da generalidade das pessoas e para afirmação do direito».
Posição de Sousa e Brito
§ 65. Vejamos finalmente a opinião não preventivista de Sousa e
Brito (108).
(106)
CLAUS ROXIN, Concepcion bilateral y unilateral dei principio de culpabilidad,
1979, in loc. cit., p. 189.
(107)
«Sobre a evolução da ciência juspenalista alemã no período posterior à
guerra», Problemas Fundamentais de Direito Penal, Homenagem a Claus Roxin, Lusíada
Editora, Lisboa, 2002.
(108)
«Os fins das penas no Código Penal», loc. cit.
Coimbra Editora ®
104
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
Para este Autor, «o fundamento constitucional do princípio da culpa
na dignidade do homem … respeita-se com o juízo de culpa do criminoso como pessoa livre e não a generalidade das pessoas como capazes
de juízos sobre a culpa. Este princípio não implica que existe uma
culpa — ou liberdade — em qualquer sentido metafísico ou absoluto,
mas implica que se trate o criminoso como livre».
«O carácter jurídico da reparação da culpa pela pena e a sua fundamentação ética pressupõem, é certo, o que alguns persistem em chamar um postulado metafísico: a liberdade humana. Só que a liberdade
humana é um pressuposto sem o qual não é possível falar não só de
culpa mas desde logo de norma e mais geralmente entender actos linguísticos dirigidos ao comportamento de outrem: não só normas, como
pedidos e conselhos, que todos pressupõem a possibilidade de agir
diversamente. Kantianamente dir-se-ia que a liberdade é uma condição
transcendental não só do direito, como da ética, da moral social e da
linguagem vulgar».
E continua, como já se salientou (cfr. supra, § 27.8), a afirmar
que a «melhor explicação sistemática da parte geral do direito penal
é … a de que a culpa existe realmente na cabeça do criminoso
— não da sociedade — como base de uma valoração determinada do
direito — um certo desvalor —, a que correspondem várias penas
possíveis…» (109).
(109)
Já no final do trabalho, apercebemo-nos junto de A. TAIPA DE CARVALHO,
Temas Jurídico-Penais, Wolters Kluwer Portugal/Coimbra Editora, 2010, pp. 65/81, da
opinião de PEDRO GARCIA MARQUES, «O Conceito da Culpa Individual no Direito Penal»
— Dissertação —, de que a culpa jurídico-penal se fundamenta no dever-ser, que recai
sobre cada um, de realizar a juridicidade na relação com os outros. Daí se transcreve:
«Na referência a um conceito ontológico… não referido à mera violação de uma norma
positivo-legal mas antes à violação de um dever de realização existencial, se permite
encontrar fundado um conceito ético-material de culpa jurídico-penal». Podendo o
homem aceder ao sentido axiológico da sua acção torna-se culpado quando não concretiza na sua conduta esse sentido axiológico ou de validade, o qual coincidiria com a
«Ideia de Direito».
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CAPÍTULO VI
OS DISPOSITIVOS VIGENTES DA CRP, DO CÓDIGO PENAL
E CÓDIGO DE PROCESSO PENAL — LIGAÇÃO COM A
CULPABILIDADE E A MEDIDA DA PENA
A Constituição da República
§ 66. Logo no pórtico, o artigo 1.º da CRP contempla uma afirmação essencial — «Portugal é uma República soberana, baseada na
dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na
construção de uma sociedade livre, justa e solidária».
Como se viu, o sintagma «dignidade da pessoa humana» aparece
como fundamental no tratamento do cidadão em vias de ser julgado pela
prática de crimes, especialmente no que toca ao elemento culpabilidade.
A ninguém pode ser imposta uma pena, um mal ou sofrimento pessoal,
sem que o Julgador esteja seguro de que tem capacidade de entendimento e de avaliação dos seus actos. A medida de segurança visa
aqueles que não são imputáveis e praticam factos criminosos, constituindo um perigo para a sociedade.
Particularmente relevante é também o disposto no artigo 18.º (110),
na medida em que só nos casos expressamente previstos na Constituição
«(Força jurídica) 1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos,
liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e
privadas. 2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos
expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. 3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter
geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o
alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais».
(110)
Coimbra Editora ®
106
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
podem ser restringidos os direitos, liberdades e garantias, restrições que
devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou
interesses constitucionalmente protegidos, sendo que tais leis restritivas
têm de revestir carácter geral e abstracto, não podendo ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos
preceitos constitucionais.
Ora, justamente no domínio do direito penal e de processo penal,
estão em foco direitos, liberdades e garantias do cidadão em confronto
com os seus deveres e constrições perante a sociedade e o interesse
público.
O direito à vida, bem primeiro do ser humano (e não só dos seres
humanos) com exclusão da pena de morte, tem guarida no artigo 24.º,
sendo igualmente inviolável a integridade moral e física das pessoas,
pelo que se proíbe a tortura, os tratos ou penas cruéis, degradantes ou
desumanos (artigo 25.º).
Mais directamente ligado, o artigo 27.º dispõe sobre o «Direito à
liberdade e à segurança» (111). Naturalmente, a Constituição regula em
«1. Todos têm direito à liberdade e à segurança. 2. Ninguém pode ser total
ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença
judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou
de aplicação judicial de medida de segurança. 3. Exceptua-se deste princípio a
privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos
seguintes: a) Detenção em flagrante delito; b) Detenção ou prisão preventiva por fortes
indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo
seja superior a três anos; c) Prisão, detenção ou outra medida coactiva sujeita a controlo
judicial, de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território
nacional ou contra a qual esteja em curso processo de extradição ou de expulsão;
d) Prisão disciplinar imposta a militares, com garantia de recurso para o tribunal competente; e) Sujeição de um menor a medidas de protecção, assistência ou educação em
estabelecimento adequado, decretadas pelo tribunal judicial competente; f) Detenção por
decisão judicial em virtude de desobediência a decisão tomada por um tribunal ou para
assegurar a comparência perante autoridade judiciária competente; g) Detenção de
suspeitos, para efeitos de identificação, nos casos e pelo tempo estritamente necessários;
h) Internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente. 4. Toda a pessoa
privada da liberdade deve ser informada imediatamente e de forma compreensível das
razões da sua prisão ou detenção e dos seus direitos. 5. A privação da liberdade contra
o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado
nos termos que a lei estabelecer».
(111)
Coimbra Editora ®
Cap. VI — Os dispositivos vigentes da CRP, do Código Penal…
107
pormenor os aspectos essenciais da privação de liberdade pela prática
de factos criminosos dos quais advenha quer a aplicação de uma pena
quer de uma medida de segurança, a efectuar sempre mediante intervenção/decisão do Poder judicial.
Por isso também a específica regulação da prisão preventiva
(artigo 28.º) de par com outras situações enumeradas no citado
artigo 27.º e o recurso à providência de habeas corpus «contra o abuso
de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal» — artigo 31.º
O princípio da legalidade na aplicação da lei criminal decorre do
artigo 29.º, o que implica a correcta interpretação em obediência aos
outros princípios e aos cânones da hermenêutica. Os cidadãos condenados injustamente têm direito à revisão da sentença e à indemnização
pelos danos sofridos.
Ainda sobre os limites das penas e das medidas de segurança, com
carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida, garantias judiciais do tratamento dos inimputáveis e a protecção devida aos condenados, nomeadamente, e como princípio, a titularidade dos direitos
fundamentais, regula o artigo 30.º (112).
Código Penal
§ 67. Do Código Penal já referimos os artigos 40.º (finalidades
das penas e das medidas de segurança) e os artigos 70.º (critério de
escolha da pena) e 71.º (determinação da medida da pena).
(112)
«1. Não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida. 2.
Em caso de perigosidade baseada em grave anomalia psíquica, e na impossibilidade
de terapêutica em meio aberto, poderão as medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade ser prorrogadas sucessivamente enquanto tal estado se mantiver, mas
sempre mediante decisão judicial. 3. A responsabilidade penal é insusceptível de
transmissão. 4. Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer
direitos civis, profissionais ou políticos. 5. Os condenados a quem sejam aplicadas
pena ou medida de segurança privativas da liberdade mantêm a titularidade dos direitos fundamentais, salvas as limitações inerentes ao sentido da condenação e às exigências próprias da respectiva execução».
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108
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
Passaremos em revista os restantes, por ordem sequencial, apenas
e na medida da sua pertinência para a discussão, designadamente no
relacionamento da culpabilidade e da prevenção com a pena.
67.1. No artigo 11.º, sobre a responsabilidade das pessoas singulares e colectivas, largamente alterado pela revisão do Código Penal
consagrada na Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, refere-se a responsabilidade económica subsidiária dos que «ocupem uma posição de liderança» na pessoa colectiva pelos crimes praticados anteriormente,
«quando tiver sido por culpa sua que o património da pessoa colectiva
ou entidade equiparada se tornou insuficiente para o respectivo pagamento» (n.º 9).
Os preceitos dos artigos 13.º a 15.º reportam-se às modalidades da
culpa (o dolo e a negligência).
Na sua relação com a culpa encontra-se o erro sobre as circunstâncias do facto ou de direito de um tipo de crime ou sobre proibições cujo
conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa
tomar consciência da ilicitude do facto — artigo 16.º Tal forma de
erro exclui o dolo, podendo, porém, verificar-se a negligência, a punir
nos termos gerais (113).
67.2. Todavia, igualmente importantes de assinalar, no contexto
do nosso tema, são os seguintes.
No artigo 17.º (114) — erro sobre a ilicitude — considera-se a censurabilidade do erro como o elemento decisivo para integrar a culpabilidade e daí a provável punição. Quem actua sem consciência da
ilicitude do facto, age sem culpa se o erro não lhe for censurável. Se
lhe for censurável pode beneficiar de uma atenuação especial.
Quando houver agravamento da pena pelo resultado, este não pode
ser imputado ao agente sem culpa, ao menos sob a modalidade de
negligência — artigo 18.º Ou seja, a censura tem de abarcar a ligação
da acção ao resultado de modo a justificar o agravamento de punição.
(113)
O n.º 2 equipara ao n.º 1citado, «o erro sobre um estado de coisas que, a
existir, excluiria a ilicitude do facto ou a culpa do agente».
(114)
«1 — Age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto,
se o erro lhe não for censurável. 2 — Se o erro lhe for censurável, o agente é
punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente
atenuada».
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Cap. VI — Os dispositivos vigentes da CRP, do Código Penal…
109
67.3. Também na definição de anomalia psíquica, para efeito de
declaração de imputabilidade diminuída — artigo 20.º (115) —, se impõe
como pressuposto da mesma que tal estado não possa ser censurado ao
agente.
O disposto no artigo 29.º (116), que já vem da redacção originária
do Código Penal, reporta-se à culpa do comparticipante, que se mede
de forma individualizada e independente da dos comparticipantes.
Conhecida a influência da culpa do agente na figura do crime continuado, um dos seus principais requisitos prende-se com a diminuição
considerável como um dos fundamentos de uma pena mais leve, que
aliás alguns (117) começam, de jure condendo, a pôr em causa
— artigo 30.º, n.º 2 (118).
De entre as causas que excluem a culpa encontra-se o excesso de
meios na legítima defesa — artigo 33.º (119) —, desde que tal excesso
resulte de perturbação, medo ou susto, não censuráveis, ou seja, a não
punição do agente decorre de não lhe ser exigível outra conduta. No
«1 — É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar
de acordo com essa avaliação. 2 — Pode ser declarado inimputável quem, por
força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem
que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação
sensivelmente diminuída. 3 — A comprovada incapacidade do agente para ser
influenciado pelas penas pode constituir índice da situação prevista no número anterior. 4 — A imputabilidade não é excluída quando a anomalia psíquica tiver sido
provocada pelo agente com intenção de praticar o facto».
(116)
«Cada comparticipante é punido segundo a sua culpa, independentemente
da punição ou do grau de culpa dos outros comparticipantes».
(117)
Cfr., por exemplo, o modo diferenciado, nomeadamente quanto aos crimes
contra o património, como o artigo 74.º do Código Penal espanhol encara esta realidade.
Adiante se voltará a este ponto.
(118)
«2 — Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo
de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem
jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de
uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente».
(119)
«1. Se houver excesso dos meios empregados em legítima defesa, o facto é
ilícito mas a pena pode ser especialmente atenuada. 2. O agente não é punido se o
excesso resultar de perturbação, medo ou susto, não censuráveis».
(115)
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110
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
estado de necessidade desculpante — artigo 35.º (120) —, quando se
trate de uma intervenção indispensável, traduzida na prática de um
facto ilícito, para afastar um perigo actual para a vida, a integridade
física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, considera-se
que o indivíduo age sem culpa se não for razoável exigir-lhe, segundo
as circunstâncias do caso, comportamento diferente. Uma pena especialmente atenuada ou mesmo a dispensa pode ser aplicada se o
perigo ameaçava interesses jurídicos diferentes daqueles eminentemente pessoais.
A ordem de um superior que conduza à prática de um crime não
tem que ser obedecida pelo subordinado. Mas se o funcionário cumpre
essa ordem sem se mostrar evidente no quadro das circunstâncias representadas a proibição da conduta, considera-se que age sem culpa
— artigos 36.º, n.º 2, e 37.º (121).
67.4. Já se anotou que em alguns artigos deixou de aparecer a
referência à reprovação mas apenas às «finalidades da punição», situação que não repugna ser interpretada como «uma alusão sistemática às
três finalidades» ou, quando menos, que não pode ser interpretada como
tomando alguma posição no tema que estamos a discutir — cfr., na
versão actual do Código Penal, os artigos, 43.º, n.º 3 (substituição da
pena de prisão), 44.º, n.º 1 (regime de permanência na habitação), 45.º,
n.º 1 (prisão por dias livres), 48.º, n.º 1 (substituição da multa por trabalho), 50.º, n.os 1 e 2 (suspensão da execução da pena de prisão), 58.º,
n.º 1 (prestação de trabalho a favor da comunidade), 59.º, n.º 6 (impossibilidade de prestação de trabalho), 60.º, n.º 2 (admoestação), e 70.º
«1. Age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um
perigo actual, e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física,
a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe,
segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente. 2. Se o perigo ameaçar
interesses jurídicos diferentes dos referidos no número anterior, e se verificarem os
restantes pressupostos ali mencionados, pode a pena ser especialmente atenuada ou,
excepcionalmente, o agente ser dispensado de pena.
(121)
Artigo 36.º, 2: «O dever de obediência hierárquica cessa quando conduzir à
prática de um crime».
Artigo 37.º (Obediência indevida desculpante): «Age sem culpa o funcionário que
cumpre uma ordem sem conhecer que ela conduz à prática de um crime, não sendo isso
evidente no quadro das circunstâncias por ele representadas».
(120)
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Cap. VI — Os dispositivos vigentes da CRP, do Código Penal…
111
(critério de escolha da pena) (122) — cfr. com o que se diz adiante, —
§§ 289 e ss.
67.5. Alude o artigo 72.º à atenuação especial da pena (123),
onde se destacam as circunstâncias anteriores ao crime como elementos que atraem a diminuição acentuada da culpa do agente ou
da necessidade da pena. Repare-se que a culpa do agente vem
enunciada como uma alternativa à necessidade da pena (o que não
quer dizer que não possam cumular-se, ou seja, a uma culpabilidade
menor se somem outras razões para a desnecessidade de pena mais
elevada).
E na enumeração exemplificativa do n.º 2, sobressaem tais circunstâncias — a actuação do agente sob a influência de «ameaça
grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva
obediência», o que torna menos exigível uma conduta diferente do
agente porque se encontra diminuída a sua capacidade de agir autonomamente, isto é, segundo uma vontade livre e desembaraçada de
entraves alheios; também a conduta do agente ter sido determinada
por «motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria
Nos §§ 166 e 167 atentaremos mais em detalhe sobre estes preceitos.
1 — O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao
crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto,
a culpa do agente ou a necessidade da pena.
2 — Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras,
as circunstâncias seguintes:
a) Ter o agente actuado sob a influência de ameaça grave ou sob ascendente
de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte
solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou
ofensa imerecida;
c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente,
nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa
conduta.
3 — Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si
mesma ou conjuntamente com outras circunstâncias, der lugar simultaneamente a uma
atenuação especialmente prevista na lei e à prevista neste artigo.
(122)
(123)
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112
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida» interferem na
sua tomada de decisão diminuindo a reprovabilidade ou censura.
67.6. Na dispensa de pena — artigo 74.º (124) (125) — pode encontrar-se um bom exemplo da mistura dos ingredientes sobre os fins da
pena. Por um lado, apesar da culpabilidade demonstrada, o tribunal
pode não aplicar qualquer pena, nomeadamente se a ilicitude e a culpa
forem diminutas, de onde se conclui que a culpa não tem que ser obrigatoriamente sancionada. Por outro, para que a dispensa possa ser
aplicada pelo tribunal não pode conflituar com razões de prevenção
(geral ou especial).
A entrada em linha de conta com a reincidência como forma de
agravar a pena — artigo 75.º (126) — depende das circunstâncias do
caso, e se o agente for de censurar por a condenação ou condenações
anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o
crime.
(124)
«1 — Quando o crime for punível com pena de prisão não superior a
6 meses, ou só com multa não superior a 120 dias, pode o tribunal declarar o réu culpado mas não aplicar qualquer pena se:
a) A ilicitude do facto e a culpa do agente forem diminutas;
b) O dano tiver sido reparado; e
c) À dispensa de pena se não opuserem razões de prevenção.
2 — Se o juiz tiver razões para crer que a reparação do dano está em vias de se
verificar, pode adiar a sentença para reapreciação do caso dentro de 1 ano, em dia que
logo marcará. 3 — Quando uma outra norma admitir, com carácter facultativo, a dispensa de pena, esta só tem lugar se no caso se verificarem os requisitos contidos nas
alíneas do n.º 1».
(125)
Outras disposições da PG e PE do Código Penal se referem à dispensa
de pena: artigo 35.º (estado de necessidade desculpante), artigo 143.º (ofensa à
integridade física simples), n.º 3, artigo 148.º (ofensa à integridade física por negligência), n.º 2, artigo 186.º — explicações, provocação, resposta —, artigo 250.º
(violação da obrigação de alimentos — cumprimento), artigos 286.º, 294.º, 364.º
e 372.º
(126)
«1 — É punido como reincidente quem, por si só ou sob qualquer forma
de comparticipação, cometer um crime doloso que deva ser punido com prisão efectiva superior a 6 meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em
julgado em pena de prisão efectiva superior a 6 meses por outro crime doloso, se, de
acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação
ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra
o crime. (…)»
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Cap. VI — Os dispositivos vigentes da CRP, do Código Penal…
113
As componentes envolvidas têm a ver claramente com a culpabilidade (o juízo de censura) e a prevenção especial. Partindo do princípio
de que podia ter agido de outro modo na sua conduta pregressa, o
agente não seguiu pelo caminho de evitar o crime.
Com influência directa na determinação da pena temos ainda o
artigo 77.º sobre as regras da punição do concurso de crimes, o
artigo 78.º (conhecimento superveniente desse concurso) e o artigo 79.º
(punição do crime continuado), estes dois últimos revistos em 2007 e
2010.
8 — Medida da Pena
Código de Processo Penal
§ 68. Vejamos algumas referências mais sobre a determinação da
pena no Código de Processo Penal, as quais se podem dizer em conexão com os temas em foco.
De acordo com o n.º 3 do artigo 16.º, o Ministério Público pode,
na acusação, ou em requerimento, quando seja superveniente o conhecimento do concurso, introduzir a limitação da pena em concreto a um
máximo de 5 anos.
Segundo o artigo 53.º, compete ao Ministério Público, no processo
penal, colaborar com o tribunal na descoberta da verdade e na realização
do direito, obedecendo em todas as intervenções processuais a critérios
de estrita objectividade, cabendo-lhe promover a execução das penas e
das medidas de segurança.
É obrigatória a nomeação de defensor ao arguido — artigo 64.º
— para determinados actos processuais mais gravosos e também quando
possa vir a impugnar a sua validade ou correcção.
À inquirição de testemunhas antes da determinação da pena ou
da medida de segurança, sobre factos relativos à personalidade e ao
carácter do arguido, bem como às suas condições pessoais e à sua conduta anterior, refere-se o artigo 128.º (objecto e limites do depoimento).
Mais directamente: «Constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do
crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis» — n.º 1 do
artigo 368.º
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114
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
No que respeita ao modo de fazer sobre a circunscrição dos factos
necessários à determinação da pena e a sua obtenção em concreto, dispõem os artigos 339.º, 4 e 369.º (127).
No artigo 368.º atribui-se particular interesse ao apuramento da
«Questão da culpabilidade», que merece honras de epígrafe, apesar de o
preceito abarcar muitas outras matérias — cfr. alíneas c) e d) do n.º 2.
Da importância do relatório social fala o artigo 370.º, elemento
essencial para conhecer da personalidade do arguido e do ambiente
social em que se move (128).
E pode ser reaberta a audiência para a determinação da sanção
através da produção de prova suplementar, «ouvindo sempre que possível o perito criminológico, o técnico de reinserção social e quaisquer
pessoas que possam depor com relevo sobre a personalidade e as condições de vida do arguido» — artigo 371.º (129).
(127)
Artigo 339.º (Exposições introdutórias): «4 — Sem prejuízo do regime
aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as
finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369.º».
Artigo 369.º (Questão da determinação da sanção): «1 — Se, das deliberações
e votações realizadas nos termos do artigo anterior, resultar que ao arguido deve ser
aplicada uma pena ou uma medida de segurança, o presidente lê ou manda ler toda a
documentação existente nos autos relativa aos antecedentes criminais do arguido, à
perícia sobre a sua personalidade e ao relatório social. 2 — Em seguida, o presidente
pergunta se o tribunal considera necessária produção de prova suplementar para determinação da espécie e da medida da sanção a aplicar. Se a resposta for negativa, ou
após a produção da prova nos termos do artigo 371.º, o tribunal delibera e vota sobre
a espécie e a medida da sanção a aplicar…»
(128)
«1 — O tribunal pode em qualquer altura do julgamento, logo que, em
função da prova para o efeito produzida em audiência, o considerar necessário à correcta
determinação da sanção que eventualmente possa vir a ser aplicada, solicitar a elaboração de relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, ou a respectiva actualização quando aqueles já constarem do processo.
2 — Independentemente de solicitação, os serviços oficiais de reinserção social
podem enviar ao tribunal, quando o acompanhamento do arguido preso preventivamente
o aconselhar, o relatório social ou a respectiva actualização».
(129)
«5 — A produção de prova suplementar decorre com exclusão da publicidade, salvo se o presidente, por despacho, entender que da publicidade não pode resultar ofensa à dignidade do arguido».
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Cap. VI — Os dispositivos vigentes da CRP, do Código Penal…
115
Particular destaque merece ainda o teor da sentença condenatória:
«especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da
sanção aplicada, indicando, nomeadamente, se for caso disso, o início
e o regime do seu cumprimento, outros deveres que ao condenado sejam
impostos e a sua duração, bem como o plano individual de readaptação
social» — artigo 375.º, n.º 1.
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CAPÍTULO VII
TOMADA DE POSIÇÃO SOBRE A CULPABILIDADE
§ 69. É tempo de tomar posição sobre a noção de culpabilidade e
as teorias dos fins das penas, perante o ordenamento jurídico português.
Noção de culpabilidade — culpa e desvalor da conduta do agente
Quando é que se pode afirmar que alguém teve culpa na prática de
uma infracção? Essa culpa reporta-se a uma realidade metafísica, ao
próprio sujeito que praticou a infracção, às exigências provindas da
norma legal emanada da comunidade ou tem como referência a sociedade de que se faz parte? Em suma, qual o fundamento material para
o juízo de reprovabilidade?
69.1. Como se viu, para Figueiredo Dias, o princípio da culpa não
vai buscar o seu fundamento axiológico a qualquer concepção retributiva
da pena mas ao princípio da inviolabilidade da dignidade da pessoa,
essencial à ideia do Estado de Direito democrático.
Então — dir-se-á — atentaria contra a dignidade da pessoa humana
punir alguém sem haver culpa desta; o respeito pela dignidade da pessoa
humana impõe que só após verificação da culpabilidade seja legítimo
que o Estado possa sancionar o delinquente.
Mas assim continuará sem se saber qual o fundamento material ou
espiritual, o esteio, a base ontológica, se a há, da ideia de culpa.
Feriria, sem dúvida, a dignidade humana aplicar uma pena, qualquer que seja a sua finalidade, sem que haja culpa do condenado, pois
este funcionaria como um instrumento manejável pelo Estado a seu
bel-prazer. Mas isso nada explica sobre a razão pela qual se «culpa»
alguém, isto é, quando é que se pode dizer que A ou B agiu com culpa
e por isso deve ser responsabilizado.
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118
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
69.2. De forma intensa, porém, o ilustre Mestre coimbrão há
muito tinha ido mais além (130).
A liberdade pessoal constitui o fundamento da culpa como «uma
característica irrenunciável do ser-humano ou do ser-pessoa…» (p. 139),
posto que «uma teoria positiva da liberdade do homem só pode ser
obtida a partir de uma fundamentação ontológica e tem que alcançar
uma concretização antropológica» (p. 164). E mais adiante: um ente é
livre se independente dos outros e apenas «dependente de si próprio,
em que se possui a si mesmo, e nesta relação consigo encontra o fundamento bastante do seu ser e do seu comportamento» (p. 170); e o
homem só «é» enquanto «age» — o homem é auto-conformação e
auto-realização da própria essência.
Para concluir que a liberdade do homem é liberdade de decisão
não no sentido de eleição de uma entre várias possibilidades mas «decisão sobre aquilo que há-de ser feito através dele … decisão de ele e
sobre ele» (p. 178).
Mas entre a liberdade e a culpa interpõe-se a «responsabilidade».
O homem é o «ter que responder» que se constitui em culpa, quando
há culpa por violação do dever-ser.
O fundamento da culpa jurídico-penal reside na responsabilidade pelo
comportamento e personalidade «porque existir, visto primariamente, é
ser-livre, e portanto responsável, e portanto capaz de culpa» (p. 180).
Por seu turno, a culpa jurídico-penal é a «violação pelo homem do dever
de conformar o seu existir por forma a que, na sua actuação na vida, não
viole ou ponha em perigo bens… jurídico-penalmente protegidos» (p. 188).
A censurabilidade, se bem captamos o pensamento deste Mestre,
não se liga ao poder de agir de outro modo mas ao dever de responder
às exigências éticas que o ordenamento jurídico faz à sua personalidade
ou à «atitude pessoal revelada pelo agente perante o dever jurídico-penal e que fundamenta o seu facto» (131).
(130)
Op. cit., Liberdade — Culpa — Direito Penal. . Para uma avaliação crítica
recente à tese da personalidade, do Mestre de Coimbra — cfr. KAI AMBOS, A liberdade
no ser como dimensão da personalidade e fundamento da culpa penal — sobre a doutrina da culpa de Jorge de Figueiredo Dias, in Estudos em Homenagem…, Vol. I,
BFDUC, 2009, pp. 53-88.
(131)
Cfr. pp. 206 e 248.
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Cap. VII — Tomada de posição sobre a culpabilidade
119
E quanto ao termo de comparação da conduta do agente será feito não
com o tipo médio, o «comum de todos os homens» mas com o «tipo normal» entre os homens da espécie e com as qualidades do agente.
Pela conexão com a nossa matéria vale a pena mencionar ainda o
que se diz nesse estudo sobre a culpa e a medida da pena (132).
O substrato da pena e a sua medida não reside apenas no carácter
mas na «totalidade da personalidade do agente, ético-juridicamente relevante, que fundamenta o facto, e portanto também na liberdade pessoal
e no uso que dela fez, exteriorizado naquilo que chamamos a «atitude»
da pessoa perante as exigências do dever-ser… Daí que o juiz, ao emitir o juízo de culpa ou ao medir a pena, não possa furtar-se a uma compreensão da personalidade do delinquente (…) a fim de determinar o seu
desvalor ético-jurídico e a sua desconformação em face da personalidade
suposta pela ordem jurídico-penal. A medida desta desconformação
constituirá a medida da censura pessoal que ao delinquente deve ser feita
e, assim, o critério essencial da medida da pena».
69.3. Para Anabela Rodrigues, como vimos, a «culpa» não deve
ser substituída integralmente pela «necessidade», pois ainda será um
pressuposto da punição.
Ou seja, a culpa terá um conteúdo material autónomo não assimilável à óptica preventiva, embora não constitua fundamento da pena (133).
Mas ao afirmar-se a dissociação da culpa da vontade e da «exasperada» concepção retributiva da pena, para a ancorar apenas na «exigência absoluta e eticamente relevante de respeito pela dignidade
humana» ficar-se-ia sem saber afinal qual o substrato da culpa e onde
Cfr. pp. 214/217.
Cfr. uma síntese na nota (327), p. 484, de «A determinação da medida…»,
op. cit.: «Uma concepção em que a personalidade do agente só releva para a culpa na
medida em que se exprime no ilícito típico e o fundamenta. Aqui assentando o conteúdo material da culpa, logo se torna possível a consideração através dela, quer dos
elementos atinentes à personalidade, quer dos elementos atinentes ao ilícito-típico.
O juízo de culpa é um juízo de desvalor sobre o agente em razão do seu comportamento num certo momento, que é o do cometimento do ilícito típico. Na medida
em que o homem «responde na vida por aquilo que é», a culpa a julgar é a culpa da
«pessoa». Mas não como coisa diferente da culpa referida ao facto. Ao punir-se em
função da personalidade que corresponde ao acto criminoso, pune-se em função da culpa
pelo facto ou culpa de cada crime.»
(132)
(133)
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120
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
se localiza a sua sede (134). E, por outro lado, não poderá reduzir-se à
opção entre decidir ou não decidir, mas antes à escolha entre outras
opções de decisão.
O que nos parece é que a defesa do utilitarismo da pena ainda que
«numa relação dialéctica com os valores/princípios formais-materais
garantísticos assumidos pelo Estado», caminha para o aniquilamento do
indivíduo em favor da comunidade abstracta. Isso sim agrediria a sua
dignidade.
A culpa no interior de cada um
§ 70. Adiantando o nosso ponto de vista, diremos que não pode
afastar-se da culpa a reprovação ética, baseada em fundamentos imanentes à consciência de cada um. A ser de outro modo, deixa de
existir qualquer substrato para se poder afirmar que se manterá o respeito pela dignidade humana. De outro modo, cairíamos numa diversão
que se afasta da substância das coisas.
Na verdade, o respeito pela dignidade da pessoa humana parece ser
hoje um elemento indiscutível em qualquer das concepções essenciais
da ética (135).
(134)
Tal indefinição também resulta bem expressa no ac. STJ, de 07-12-2005,
P.º n.º 2962/05, quando afasta a aferição da culpa de qualquer concepção retributiva, e
depois afirma que o julgador deverá «usar de cautelas para que a pena não desça, dentro da respectiva moldura, a um limite tão baixo que possa funcionar como um incentivo
à prática de mais crimes, nem ascenda a um patamar tão elevado que venha a dificultar,
ou pelo menos a adiar, a reinserção do delinquente». Como se a culpa fosse assim
«manejável» ao sabor das necessidades de prevenção.
(135)
A aristotélica que arranca do homem como animal político, dotado de linguagem, agindo de forma lógica, desenvolvendo-se em determinada sociedade, ao abrigo
de formas concretas de «governo da cidade», com a finalidade de ser feliz através da
cultura da virtude; a utilitarista, de raiz anglo-saxónica, que considera como valor
ético a seguir na vida a busca do maior bem possível para o maior número de pessoas, sem excluir o que age (segundo Stuart Mill), sendo que a humanidade tem mais
a ganhar permitindo que cada um viva à sua maneira do que constrangê-lo a viver à
maneira dos outros; a kantiana, centrada sobre a noção de dever, expressa no «imperativo categórico», já mencionado, da busca do valor universal das acções de cada um,
sendo que a pessoa é a causa das suas acções, uma causalidade não condicionada, na
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Cap. VII — Tomada de posição sobre a culpabilidade
121
Associada à ideia de liberdade, a matriz da dignidade da pessoa
humana constitui um valor imanente à qualidade de ser humano, conceito que reúne um conjunto de direitos que, independentemente de
considerações de género, raça, nacionalidade, religião ou estatuto económico e social, merecem a tutela nacional e internacional.
É esta dignidade que nos acompanha, e que está na base do direito
a não sermos física, psíquica ou moralmente maltratados, por quem quer
que seja, do princípio ao fim da Vida, sem justa razão.
Para o humanismo individualista kantiano, o homem enquanto
fenómeno irrepetível, é ele a substância, não sendo as organizações em
que se integra (ou não) mais do que simples circunstâncias. Daqui se
parte para a concepção do indivíduo dotado de autonomia e independência, possuidor de capacidade interior que lhe permite uma autodeterminação racional, uma espécie de soberania que lhe proporciona o
agir separadamente dos outros.
De um ponto de vista ético, é desejável um máximo de liberdade mas
com responsabilidade pelas acções e omissões, não se impondo limites
senão quando alguém não respeita os outros como seus semelhantes.
Reconhecer alguém como seu semelhante implica compreendê-lo a
partir do interior (da sua personalidade) e adoptar, ainda que por um
instante, o seu ponto de vista, ter em conta os seus direitos e por isso
as suas razões.
Mas tudo isto não nos fornece o dito critério material para saber
quando se pode dizer alguém «culpado» pela prática de um crime.
Apenas enfatiza o valor inquestionável da dignidade da pessoa
humana.
António Damásio e a Neurobiologia
§ 71. Para o neurocientista António Damásio (136), «a consciência
começa com o sentir do que acontece quando vemos, ouvimos ou toca-
qual a responsabilidade encontra a sua âncora. Cfr. Álvaro Valls, in http://davidcorreiajunior. wordpress.com/2008/09/11/etica-na-contemporaneidade.
(136)
O Sentimento de Si — O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência,
Publicações Europa-América, 2000, 8.ª edição.
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
mos», podendo hoje a ciência separar entre consciência e consciência
moral: «a consciência refere-se ao conhecimento de qualquer objecto
ou acção atribuídos ao si, ao passo que a consciência moral se refere
ao bom e ao mau que estão presentes nas acções ou objectos». Por
seu lado, o conceito de mente é abrangente da consciência podendo
aquela existir (a mente) sem esta, nomeadamente em casos de
doença (137), sugerindo o Autor que «o fluir dos estados internos do
organismo, inatamente controlado pelo cérebro e continuamente transmitido ao cérebro, constitui o pano de fundo da mente e … o alicerce
para o si».
A consciência tem de estar presente para que os sentimentos possam influenciar o sujeito que os detém (138).
Op. cit., pp. 46 a 50.
Relacionado com o tema da consciência, e com o próprio título da obra
(p. 155), recorta-se o seguinte excerto: «O leitor sente que os objectos de que neste
momento se apercebe — o livro, a sala à sua volta, a rua do lado de lá da janela —
estão a ser apreendidos na sua perspectiva e que os pensamentos formados na sua
mente lhe pertencem a si e não a outrem. O leitor também sente que, se assim o
desejar, pode actuar nesta cena: pode parar a leitura, cogitar levantar-se e ir passear.
A consciência é o termo abrangente para os fenómenos mentais que permitem essa
estranha combinação que consiste no leitor enquanto observador ou conhecedor das
coisas observadas, no leitor enquanto proprietário de pensamentos formados na sua
perspectiva no leitor enquanto agente potencial na situação. A consciência é uma parte
do seu processo mental e não é de todo externa a esse processo. A perspectiva individual, a pertença individual do pensamento e a possibilidade de actuação individual
são as principais riquezas com que a consciência nuclear contribui para o processo
mental que neste momento se desenrola no seu organismo. A essência da consciência
nuclear é o pensamento mesmo de si — o sentimento mesmo de si — como ser
individual empenhado no processo de conhecer a sua própria existência e a existência
dos outros… O leitor está a ler este texto e a traduzir o significado destas palavras
numa corrente conceptual de pensamento. As palavras e as frases desta página, que
traduzem os meus conceitos, são por sua vez traduzidas na sua mente sob a forma de
imagens não verbais. O conjunto destas imagens define os conceitos que se encontravam originalmente na minha mente. Porém, em paralelo com a percepção das palavras
impressas e com a manifestação do conhecimento conceptual necessário à sua compreensão, a mente do leitor também o representa a si, aquele que lê e compreende.
A panorâmica total da sua mente não se encontra confinada às imagens do que está a
ser percebido externamente, ou do que é recordado relativamente ao que é percebido.
A panorâmica também o inclui a si».
(137)
(138)
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Cap. VII — Tomada de posição sobre a culpabilidade
123
Consciência moral — bem e mal
§ 72. Segundo Damásio, às emoções ditas primárias ou universais
— alegria, tristeza, medo, cólera, surpresa ou aversão — têm sido aditadas outras designadas de secundárias ou sociais — vergonha, ciúme,
culpa ou orgulho — para além das emoções de fundo — bem-estar,
mal-estar, calma ou tensão — existindo subjacente a todas uma base
biológica comum (139). É dupla a função biológica das emoções: a
primeira, a produção de uma reacção específica para a situação indutora
(fuga, imobilização, ataque, adopção de um comportamento agradável),
reacções que nos seres humanos podem ser temperadas pela razão e pela
sabedoria; a segunda, a regulação do estado interno do organismo para
que possa estar preparado para aquela reacção específica (por exemplo,
mais circulação de sangue nas pernas para o caso de fuga). As emoções
fazem parte integrante do mecanismo através do qual os organismos
regulam a sua sobrevivência.
Como reguladores homeostáticos, «as emoções são inseparáveis da
ideia de recompensa ou de castigo, de prazer ou de dor, de aproximação
ou afastamento, de vantagem ou desvantagem pessoal. Inevitavelmente,
as emoções são inseparáveis da ideia do bem e do mal», bem no
sentido de sobrevivência e mal no sentido de morte (140).
Op. cit., pp. 71/80.
Não deixará de ser curiosa a relação que pode fazer-se entre a dor e o prazer, com as penas (p. 101). «Dor e prazer fazem parte de duas genealogias diferentes
da regulação vital. A dor está alinhada com o castigo e associada com comportamentos como o recuo e a imobilização. O prazer, por outro lado, está alinhado com a
recompensa e associado a comportamentos como a curiosidade, a procura e a aproximação.
«O castigo leva os organismos a fecharem-se sobre si mesmos imobilizando-se e
retraindo-se do seu meio ambiente. A recompensa leva os organismos a abrirem-se
para o exterior, para o meio ambiente, explorando os seus limites, e, ao fazê-lo, aumentando simultaneamente tanto a sua capacidade de sobrevivência como a sua vulnerabilidade.
«Esta dualidade fundamental é manifesta numa criatura tão simples e tão não-consciente como a anémona-do-mar. O seu organismo, (é) destituído de cérebro e apenas
equipado com um sistema nervoso simples… As circunstâncias que rodeiam a anémona-do-mar determinam aquilo que o seu organismo faz: abrir-se ao mundo como uma
flor que desabrocha — altura em que a água e os nutrientes entram no seu corpo e lhe
(139)
(140)
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124
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
§ 73. Um passo em frente é dado quando o Autor se aproxima
da noção de «consciência moral», ao dizer:
«O encadeamento de precedências que tenho em vista é muito
curioso: a sinalização neural não consciente de um organismo individual gera o proto-si que, por sua vez, consente o si nuclear e a
consciência nuc1ear, que permitem um si autobiográfico que, por
sua vez, consente a consciência alargada. No fim desta cadeia, a
consciência alargada permite a consciência moral.
«O estado actual da nossa compreensão da consciência
moral, da consciência alargada, e da consciência nuclear, vai de
par com a ordem segundo a qual os seres humanos parecem ter
notado a existência destes fenómenos e manifestado curiosidade
a seu respeito. Antes de terem identificado a consciência alargada
como um problema, e muito, muito antes de manifestarem qualquer preocupação com a consciência nuclear, os seres humanos
já tinham identificado a consciência moral e tinham-se interessado pelos seus mecanismos. Os deuses da Antiguidade não
falam aos heróis dos poemas homéricos em questões de consciência, mas sim em questões de consciência moral: pensem em
Atena, na Ilíada, quando segura firmemente o braço do jovem
Aquiles e o impede de matar Agamémnon. Dez séculos antes de
Cristo, as histórias homéricas supõem a existência da consciência
nuclear, mas nunca se fixam explicitamente sobre ela. Descrevem, indirectamente, uma consciência inconsistente e dominada
pelos deuses, mas a sua verdadeira preocupação é a consciência
moral. Sólon, sete séculos antes de Cristo, está provavelmente
no bom caminho, tanto da consciência moral, como da consciência no sentido lato, quando aconselha o leitor a «conhecer-se a si
mesmo».
fornecem energia — ou fechar-se numa espécie de caixa plana e retraída, tão pequena
e recolhida que é quase imperceptível para os outros. A essência da alegria e da tristeza,
da aproximação e da fuga, da vulnerabilidade e da segurança, são tão visíveis nesta
simples dicotomia de comportamento de uma criatura sem cérebro como são visíveis
na volubilidade emocional da criança que brinca no jardim».
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Cap. VII — Tomada de posição sobre a culpabilidade
125
Novos desenvolvimentos
§ 74. Em obra posterior (141), o neurocientista português aborda
pontos mais próximos ainda da nossa matéria.
Depois de admitir que os instrumentos culturais conhecidos como
comportamentos éticos, crenças religiosas, leis, justiça e organização
política, não têm como causa única as emoções e sentimentos, aponta
para a deficiência de uma explicação neurobiological (que é a sua),
despegada de ideias vindas da antropologia, da sociologia, da psicanálise
e da psicologia evolucionária, para além de estudos sobre aquelas matérias específicas, para logo afirmar que a essência do comportamento
ético não parece sequer ter começado com os seres humanos (142).
De qualquer modo, «os comportamentos éticos dependem da actividade de certos sistemas cerebrais. Mas esses sistemas não são centros.
Não dispomos de um centro ou centros da moral» (143).
Ao Encontro de Espinosa — Emoções sociais e a Neurologia do Sentir,
Publicações Europa-América, Mem Martins, trad. port., 2003, pp. 183 e ss.
(142)
«Há dados notáveis de estudos feitos em aves (como os corvos), e em
mamíferos (como os morcegos, os lobos e os chimpanzés) que indicam claramente que
espécies não humanas se parecem comportar, aos nossos olhos sofisticados, de uma
forma ética. Exibem simpatia, apegamentos, embaraço e vergonha, orgulho dominante
e submissão. São capazes de censurar e recompensar as acções de animais congéneres. Uma espécie de morcegos conhecida pelo nome de morcego vampiro consegue
detectar aqueles que fazem batota e trata também de os castigar. Os corvos fazem o
mesmo. Exemplos de comportamento ético são, como seria de esperar, ainda mais
convincentes entre os primatas e não se confinam de modo algum aos chimpanzés, os
nossos parentes mais chegados. Os macacos rhesus comportam-se com outros macacos
de maneira altruísta» (e cita exemplos).
(143)
Op. cit., p. 189. «Talvez o papel mais fundamental dos sentimentos no que
respeita à ética sempre tenha sido, desde o seu aparecimento, manter mentalmente
presente a condição da vida, de forma que essa condição pudesse desempenhar um
papel principal na organização do comportamento. E é precisamente porque os sentimentos continuam ainda a ter esse papel que julgo que eles devem ser ouvidos quando
a colectividade social discute a avaliação, desenvolvimento e aplicação de instrumentos
culturais tais como as leis, a justiça e a organização sociopolítica» (p. 190).
«As convenções sociais as regras éticas podem ser vistas em parte como extensões
da homeostasia ao nível da sociedade e da cultura. O resultado da aplicação de convenções e regras eficazes é precisamente o mesmo resultado do funcionamento de
(141)
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
E, juntando-se a Espinosa, afirma: «A realidade biológica da
auto-preservação leva à virtude porque, na nossa necessidade irreprimível de nos mantermos a nós mesmos, necessitamos de ajudar os outros
a se manterem a si mesmos. Se não tivermos essa preocupação, perecemos e, ao perecermos, violamos ao mesmo tempo o princípio fundamental da auto-preservação e a virtude que lhe está ligada. O fundamento secundário da virtude é, assim, a realidade de uma estrutura social
e a presença de outros seres vivos, num sistema complexo de interdependência com o nosso próprio organismo. Não é possível escapar a
esta interdependência» (144).
Para logo adiantar: «Os seres humanos são aquilo que são: vivos
e equipados com apetites, emoções e outros dispositivos de auto-preservação, incluindo a capacidade de conhecer e raciocinar. A consciência,
a despeito das suas limitações, abre o caminho para o conhecimento e
para a razão, que, por sua vez, permitem aos indivíduos a descoberta
daquilo que é bom ou mau. De novo, o bem e o mal não são revelados, são descobertos, individualmente ou através das interacções
em sociedade (145).
«A definição do bem e do mal é simples e sensata. Os bons
objectos são aqueles que levam, de forma previsível e sustentável, aos
estados de alegria que reforçam o poder e a liberdade da acção. Os
objectos maus são aqueles que provocam o resultado oposto: o encontro
desses objectos com um organismo é desagradável para esse mesmo
organismo».
74.1. Debruçando-se sobre as boas e más acções classifica-as
assim: «Boas acções e acções más não são meramente aquelas que
concordam ou não com os apetites individuais e com as emoções. As
boas acções são aquelas que, não só produzem bons resultados para o
indivíduo através dos apetites e das emoções, mas também não causam
qualquer dano a outros indivíduos. Esta barreira é intransponível.
dispositivos tal como o metabolismo ou os apetites: um equilíbrio de processo de vida
que permita a sobrevida e o bem-estar» (p. 194).
(144)
Loc. cit., p. 197.
(145)
O Autor já havia referido que os comportamentos éticos são o fruto de
certas sinergias: regulação biológica, memória, decisão e criatividade (p. 190).
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Cap. VII — Tomada de posição sobre a culpabilidade
127
Uma acção que possa ser pessoalmente benéfica mas que cause danos
a outros não é uma boa acção porque o dano causado a outros vem por
seu turno causar dano ao indivíduo que o causa» (146).
Reportando-se ainda a Espinosa, mas também ao livre arbítrio,
expressa-se de uma forma bastante incisiva (147):
«Diz-se, por vezes, que Espinosa não acreditava no livre arbítrio, uma noção que aparece à primeira vista como estando em
conflito com o sistema ético em que os seres humanos decidem
comportar-se de uma determinada forma de acordo com imperativos
claros. Mas Espinosa nunca negou que temos consciência das
escolhas que fazemos e de que podemos escolher e controlar o
nosso organismo pela vontade. Espinosa recomendava constantemente que não devemos tomar uma decisão que consideramos
errada e que devemos sim escolher aquela que consideramos mais
correcta. A sua estratégia para a salvação humana depende exactamente da possibilidade de fazer escolhas deliberadas. Não é,
portanto, neste sentido que nos falta liberdade de acção. O problema é outro. Espinosa faz notar que, no fundo, todas as nossas
escolhas acabam por ser explicáveis devido a condições prévias da
nossa constituição biológica e que, ao fim e ao cabo, tudo quanto
pensamos e fazemos resulta de certas condições antecedentes.
Mas o facto de que as acções são explicáveis não nos impede de
dizer um não categórico, tão firme e imperativamente como
Immanuel Kant o quereria, muito embora a nossa liberdade
completa seja ilusória» (bold nosso em todos os excertos).
§ 75. Em breve nota diremos que não nos parece que o direito
possa desconhecer tais explicações científicas ao lidar com o conceito
de culpa, ainda que para efeitos de responsabilidade penal. Admitimos,
(146)
Acrescentando que o nosso bem decorre da amizade e do benefício que
levamos aos outros, sendo a tendência natural para a busca da concordância social
incorporada nas características biológicas, pelo menos em parte, devido ao sucesso
evolucionário das populações cujos cérebros aperfeiçoaram os comportamentos cooperativos (p. 198).
(147)
Loc. cit., p. 200/01.
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
sem rebuço, a impotência de pesquisar noutras fontes para confirmar ou
infirmar o que vem de ser recolhido. Todavia, seria estultícia desprezar
tais resultados de investigação nesta área da neurobiologia, os quais vêm
em reforço da nossa despretensiosa posição e promanam de uma fonte
científica reconhecida.
Sentido do livre-arbítrio
§ 76. Começando pelo livre-arbítrio.
Entende-se que uma noção de livre-arbítrio absoluto, em que a
pessoa pode sempre fazer escolhas em inteira liberdade, não é mais
sustentável. Pensamos que o poder agir de outro modo não implica o
conhecimento de todos os ângulos da questão e o decidir-se em completa liberdade, o que só seria conjugável com a captação de toda a
verdade, tarefa manifestamente fora do alcance do comum (e incomum)
dos mortais.
Com P. Ricoeur, no entanto, poder-se-á afirmar que basta para
assacar a culpabilidade ao infractor que se possa dizer que tomou a seu
cargo a falta. A culpa pela infracção aparece irremediavelmente ligada
à sua tomada de consciência dos factos previstos e que lhe pertence a
decisão, no sentido de que se aloja nos mecanismos biológicos e psíquicos a que se fez referência.
Basta que tivesse podido motivar-se no respeito pela norma e não
o tenha feito.
Figueiredo Dias, ao afastar a tese do livre-arbítrio, na demanda do
padrão para aferir da culpabilidade, recusa o da capacidade do homem
médio (preferida por Jescheck), pois está em causa um critério individualizante, «que deve partir do que seria razoavelmente de esperar de
um homem com as qualidades e capacidades do agente» (148).
Roxin fala do «cidadão com capacidade de decisão autónoma e
responsável, sem anomalias na sua motivação».
In Direito Penal Português, …, op. cit., p. 250, fala em que se deve comparar a personalidade do agente «não com as qualidades do «homem normal», do bonus
pater famílias, mas com as do homem fiel ao direito…». Cfr. JESCHECK, op. cit., § 57,
p. 540.
(148)
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Cap. VII — Tomada de posição sobre a culpabilidade
129
O critério do «homem médio» surgiria como o mais pragmático no
uso quotidiano mas não é o que se coaduna com uma culpa da qual
decorrem sanções que podem ser extremamente graves para o agente.
Claro que restará sempre a tarefa difícil, mesmo com o auxílio das
ciências médicas e sociais, de perscrutar a capacidade do arguido para
evitar ou aceitar certa conduta (cfr. § 53.1) e para a valorar; todavia,
para além das perícias dos especialistas, a análise dos sinais exteriores,
da manifestação das emoções, está ao alcance do Julgador no seu caldeamento com a experiência de vida e do id quod plerumque accidit.
Princípios forjados ao longo do tempo, como o da razoabilidade e do
in dubio pro reo, serão inestimáveis em situações limite, de modo a que
obstaculizem à condenação de inocentes.
Culpa no indivíduo versus culpa suposta
9 — Medida da Pena
§ 77. Para os defensores da culpa normativa, apoiada na consciência valorativa da comunidade, e na quase impotência de conhecer
o processo de decisão de cada um, a responsabilidade social do cidadão delinquente constitui a base do juízo de culpabilidade.
Se assim fosse, o cidadão não respondia, em primeira linha, perante
si próprio, mas perante os outros. Mas se é certo que, como Faria Costa
afirma, o direito é uma «manifestação do nosso mais profundo
modo-de-ser com os outros», logo acrescenta que o «eu» é a condição
primeira dessa relação plural (149).
Sem dúvida que existe uma parte da responsabilidade decorrente
da coabitação e vivência com os nossos semelhantes, a qual deve ser
assumida quando se violam as regras dessa interdependência, mas a
«tomada de decisão» arranca do íntimo de cada um, e é lá que reside
o fulcro dessa responsabilidade (no exterior, na vida em sociedade,
vêem-se os efeitos), a razão de se lhe atribuir uma acção criminosa por
si cometida. Se a deslocássemos para a comunidade, ao sancionar
alguém pelo que «devia ser» e não pelo que «é», diminuir-se-ia a sua
postura ética.
Não haveria distinção com os próprios seres não humanos, pois estes são
capazes de censurar acções de animais congéneres, como sugere A. Damásio.
(149)
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130
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
Isto é diferente do que diz Muñoz Conde, como se viu, quando
afirma tratar-se não de uma culpabilidade em si mas com referência aos
outros.
A nosso ver, a noção de culpabilidade vem do interior, surgindo
depois a responsabilidade para com os outros. E não se vê como seja
possível desligar a culpabilidade da consciência moral do agente.
A sanção terá, a nosso ver, na base a reprovação por uma conduta
que, como regra, o próprio repele e de que intimamente até pode
envergonhar-se (150), mais do que da submissão à censura da sociedade
em que se insere. É algo que se situa no seu âmago e cuja vivência
com os outros transforma em constrangimento ou incómodo pela quebra
da sua relação de solidariedade para com os membros do seu grupo ou
da sociedade em geral. Claro que falamos agora de um cidadão “arquétipo”, como não pode deixar de ser neste contexto.
John Rawls (vergonha e culpa)
§ 78. Rawls (151) anota as diferenças entre sentimentos de vergonha
moral e de culpa.
78.1. «Embora ambos possam ser ocasionados pela mesma acção,
a explicação não é a mesma (…). Imagine-se, por exemplo, alguém
que faz batota ou age de forma cobarde e que depois se sente simultaneamente culpado e envergonhado. Sente-se culpado porque agiu de
forma contrária ao seu sentido do justo e da justiça. Ao favorecer
os seus interesses de forma errada, violou os direitos de outros, e os
seus sentimentos de culpa serão mais intensos se estiver unido por laços
de amizade e de associação àqueles que prejudicou. Espera que os
outros sintam ressentimento e indignação para com a sua conduta e
teme a sua justa cólera e a possibilidade do exercício de represálias.
No entanto, também se sente envergonhado porque a sua conduta mos-
JOHN RAWLS, Uma Teoria da Justiça, Editorial Presença, Trad. de Carlos
Pinto Correia, 2.ª edição, 2001, p. 338, caracteriza a «vergonha como o sentimento que
alguém experimenta quando o seu respeito próprio é atacado ou quando a estima que
tem por si próprio é atingida».
(151)
Ibidem, pp. 341, 361 e 367.
(150)
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Cap. VII — Tomada de posição sobre a culpabilidade
131
tra que não conseguiu atingir o bem que é representado pelo domínio
de si e porque demonstrou que não está à altura dos seus semelhantes,
dos quais ele depende para confirmar o seu sentido do seu próprio
valor. Tem medo de que estes o rejeitem e o considerem desprezível
ou ridículo. Foi traído no seu comportamento pela falta da excelência
moral que preza e à qual aspira» (bold nosso e adiante).
78.2. Virtudes como a força, a coragem e o autocontrolo estão
ligadas, segundo Rawls, à vergonha. Distingue a moral relativamente
à autoridade (o que sucede com a criança e os pais), ao grupo, e a que
é baseada em princípios.
E mais adiante: «Na moral de grupo, os sentimentos morais
dependem essencialmente dos laços de amizade e confiança estabelecidos com indivíduos ou comunidades determinadas e a conduta
moral é baseada em larga medida na necessidade de obter a aprovação
dos nossos associados. Tal pode verificar-se mesmo nos momentos
em que este tipo de moral é mais exigente. Os indivíduos no seu
papel de cidadãos com uma compreensão plena do conteúdo dos
princípios da justiça podem ser levados a agir de acordo com eles,
em larga medida devido aos seus vínculos para com sujeitos concretos e à ligação à sua própria sociedade. Uma vez aceite uma
moral baseada em princípios, as atitudes morais deixam de ser unicamente ligadas ao bem-estar e à aprovação de indivíduos e grupos
concretos, passando a ser conformada por uma concepção do justo
que é escolhida independentemente destas contingências. Os nossos sentimentos morais mostram-se independentes das circunstâncias acidentais do nosso mundo, sendo o significado desta dependência dado pela descrição da posição original pela sua interpretação
kantiana» …
«Em geral, a culpa, o ressentimento e a indignação invocam o
conceito de justo, enquanto a vergonha, o desprezo e o escárnio apelam
ao conceito de bem. E estas observações alargam-se, obviamente, aos
sentimentos de dever e obrigação (se existirem) e ao orgulho legítimo
e ao sentido do nosso próprio valor».
Para este filósofo do direito e arauto do liberalismo social «os
sentimentos morais são uma característica normal da vida humana. Não
poderíamos eliminá-los sem, ao mesmo tempo, eliminar certas atitudes
naturais».
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132
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
Nesta linha, o sentimento de culpa liga-se à consciência moral do
agente.
Estamos a discorrer (e a acompanhar) em termos abstractos, sem
cuidar agora de saber como reagiu cada um nos actos concretos que
praticou em violação das proibições penais.
§ 79. Como se viu, Roxin «deixa em paz» o livre-arbítrio e
aponta para a responsabilidade jurídico-penal captada a partir do funcionalismo de uma razoável política criminal, noção abrangente que
permite solucionar também problemas teóricos fundamentais do Direito
Penal (v. g., erro sobre a proibição, excesso de legítima defesa). Relevam as exigências da comunidade jurídica, no plano preventivo, devendo
perguntar-se, no caso de uma conduta anti-jurídica, se se requer ou não
uma sanção.
Desaparece assim qualquer fundamentação ética ou filosófica da
culpa sendo remetida para o agir ilícito apesar da existência de «sensibilidade aos apelos normativos», ou seja, a possibilidade, no plano
psicológico, de acatamento da norma, a dita «suposição de liberdade».
A culpabilidade passaria a ter como fundamento o serviço da comunidade, e só no seu limite máximo a pena seria balizada pela ideia de
culpa no sentido interno, intervindo para evitar excessos.
O que faz logo despertar, como já se viu (152), para o que Listz
dizia, contra a tese de Roxin: a culpabilidade é um conceito fictício de
raízes metafísicas incapaz por si só de servir de fundamento à imposição
de uma pena, mas sem embargo Roxin atribui a tal conceito fictício
nada menos que a função limitadora do poder de intervenção estatal.
Com efeito, desde o início nos assalta tal incoerência e como é
possível ultrapassá-la com base no conceito de culpabilidade desenhado.
Será que ao menos para esse efeito penetra a reprovação ética no fundamento da culpa, desde logo a auto-reprovação?
Se em termos de política criminal, as exigências da comunidade
jurídica impõem ou não uma sanção seria o fundamento geral da culpabilidade (exterior), mas depois, para evitar excessos, entraria em cena
o fundamento ético (interior) para fixar o limite da pena?
(152)
Cfr. supra nota 101.
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Cap. VII — Tomada de posição sobre a culpabilidade
133
§ 80. Diz-se (153) que na década de 60 do século passado, a
reforma do direito penal na Alemanha trouxe a deslocação da culpabilidade como centro para o injusto, e da pena retributiva para a preventiva, da protecção da ética social para a protecção dos bens jurídicos.
O que se perguntará, no entanto, é o que torna necessária a pena
— mera lesão antinormativa ou que essa lesão seja realizada por um
sujeito determinado em determinadas circunstâncias? O que fundamenta
a pena? A tradicional culpabilidade fundamenta a pena ou é só um
limite, mau grado a incoerência que Listz lhe apontava?
A pena é necessária para reforçar os efeitos inibidores das proibições — diz Gimbernat — de modo a conferir-lhes, com a ameaça e
com a execução da pena, quando não sejam respeitadas, uma especial
robustez que eleve na instância da consciência o seu efeito inibidor.
Quer dizer que as proibições já têm um efeito mínimo inibidor, mas o
possível efeito inibidor da norma sem a pena cai no vazio. A impunidade do cidadão normal (imputável) relaxaria o princípio punitivo.
Mas o que parece ser relevante é que não podem combater-se
comportamentos não culposos, por ser a pena ineficaz. Se o decisivo
no delito é o injusto, então não é apenas a conduta antijurídica que
importa mas as condutas que podiam ser evitadas, sendo a culpabilidade
um elemento determinante.
Por isso que não se veja motivo para que a culpabilidade deixe de
ser também fundamento da pena (154).
(153)
MARIANO MELENDO PARDOS, «Necesidad de pena, querer y poder. Algunas
reflexiones sobre la culpabilidade en Gimbernat», Anuario de Derecho Penal y Ciencias
Penales, Tomo LX/MMVII, Madrid, Janeiro-Dezembro de 2007, pp. 277/291.
(154)
Depois de afirmar que a determinação da pena resulta de um sistema pluridimensional de factores necessários à sua individualização, GERMANO MARQUES DA
SILVA, Direito Penal Português, — Parte Geral, III, Teoria das penas e medidas de
segurança, Verbo, 2008, p. 146, diz: «Um desses factores, fundamento, aliás, do próprio
direito penal e consequentemente da pena, é a culpa, que irá não só fundamentar como
limitar a pena».
MARIANO MELENDO PARDOS, loc. cit., p. 291: «En definitiva, si el Derecho penal
intenta prevenir los comportamientos más graves tanto mediante la prevención general negativa, por el miedo a la pena, como por la prevención positiva, en cuanto que
las prohibiciones penales refuerzan la conciencia moral (afianzan y confirman la
norma), dando un motivo adicional para no incurrir en el delito (…), por qué se
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
Posição final
§ 81. Por aquilo que fomos alinhando, acabamos por nos juntar
à tese clássica — ao que parece ainda a dominante —, de que a culpabilidade assenta na autodeterminação do delinquente, livre no sentido de ter podido agir em conformidade com a norma, livre porque
podia não ter tomado a seu cargo a falta. Tal como Sousa e Brito,
afigura-se-nos que a melhor explicação sistemática da parte geral do
direito penal é a de que a culpa existe realmente na cabeça do criminoso, como base de uma valoração determinada do direito, um certo
desvalor. Todavia, a reprovação ética provem também da sociedade
em geral, detentora dos «padrões da justiça e bem-estar possíveis em
cada momento», ao censurar, através das autoridades judiciais, a conduta violadora da lei.
Dentro do triângulo cidadão/sociedade/julgador — sob o pano de
fundo da norma penal —, no qual se move a captação da culpa, circulam muitos ingredientes de difícil detecção para o julgador: saber
da racionalidade e vontade dos factos praticados, do seu poder ofensivo para a lei, quanto ao cidadão infractor; saber do «pensar» da
sociedade, em termos do que seja a sua maioria suficiente; abstrair,
por parte do juiz, das suas convicções e ideologia, para se apegar
apenas aos valores legais, especialmente quando a própria lei usa
conceitos que relevam de mensuração subjectiva, tudo isto não é tarefa
de somenos.
§ 82. Porém, na culpabilidade, por difícil que seja conhecê-la,
reside o fundamento e o limite do direito de punir do Estado, vinculada que está à censura ética do próprio e da comunidade sobre a
conduta que é a sua e pela qual haverá de responder. A ideia de
centra luego todo en la motivabilidad por la pena? No es, desde luego, fácil de
entender. Además, la función «mediadora» de la culpabilidad entre lo necesario en
general y lo necesario en el caso concreto se ha perdido, lo que supone un cambio
radical, pues de una función fundamentadora se ha pasado a una función limitadora,
desando excesivos interrogantes abiertos. En definitiva, realmente los planteamientos
preventivos supusieron tantos cambios respecto a la culpabilidad?» E responde negativamente.
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Cap. VII — Tomada de posição sobre a culpabilidade
135
retribuição (designemo-la assim ou de “pena merecida”) — posto
que despida de qualquer componente religiosa —, no sentido de
censura, de reprovabilidade, tem cabimento porque o sujeito podia
ter-se guiado pelo direito e podendo fazê-lo não o fez. No seu interior existe uma atitude de desrespeito pela norma, em muitos casos
apesar de um “tocar a rebate” da sua “consciência moral”, atitude
que deve ser censurada.
Supõe-se o homem como ser livre — liberdade que podemos considerar a condição primeira da sua existência — em que o dever ético
de conformação com a norma nasce no exterior, mas a raiz da sua
responsabilidade está em si, na sua capacidade (moral) de avaliar e
decidir-se em conformidade com a norma.
§ 83. Se, por uma vez, raciocinarmos em termos utilitaristas,
não se vê qual a vantagem de construir uma noção de culpabilidade
que abdique ou esqueça os sentimentos interiores do homem, existentes na generalidade da espécie, em que o remorso, o arrependimento e até a aceitação de uma certa expiação possam levar a um
mundo mais justo. Não temos que aderir, sem convencimento, a um
mundo simplista, asséptico, em que o direito penal favoreça a convivência entre os seres humanos mas se fique pela superficialidade,
esquecendo desde logo o âmago de cada indivíduo. Não se pode
abdicar de uma parte do ser humano, onde se aceita que reside a
liberdade e a responsabilidade. E só assim, numa visão alargada do
conceito de culpabilidade, será então adequado valorizar aqueles
sentimentos do ser humano, quer antes quer depois da prática do
crime.
§ 84. Nesta óptica, a medida da pena não poderá deixar de
ancorar-se na medida da culpa, logo como retribuição no sentido
moderno de reprovabilidade e de “merecimento”. Como diz Sousa e
Brito, «é impossível obedecer à proibição de a pena ultrapassar a medida
da culpa — ou ao comando equivalente de a manter dentro da medida
da culpa — sem medir a pena pela culpa». E medi-la pela culpa constitui o conteúdo essencial da ideia de retribuição.
Essa culpabilidade pode depender não apenas de factos singulares
como traduzir-se numa culpabilidade pela condução da vida, ampliando-se
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136
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
a toda a personalidade do autor, desde que revelada nos factos ilícitos e
no seu desenvolvimento (155).
Saber do papel da culpabilidade/retribuição na graduação da
pena (e das outras finalidades) é questão que retomaremos na parte
final.
(155)
Para JOHN RAWLS, Uma Teoria da Justiça, op. cit., p. 247, «… numa sociedade razoavelmente bem ordenada aqueles que são punidos pela violação de leis justas
fizeram, normalmente, algo de errado. Tal assim é porque o objectivo do direito penal
é o de garantir os deveres naturais básicos, aqueles que nos proíbem de ferir outrem
na sua vida e no seu valor, ou de privá-lo da sua liberdade ou propriedade, e as penas
devem servir este objectivo. Elas não constituem simplesmente um sistema de tributos
e cargos para atribuir um preço a certas formas de conduta e, desta forma, para orientar a conduta humana com vista à obtenção do benefício mútuo. Seria muito melhor
se os actos proibidos pela lei criminal nunca fossem praticados (…). Assim, a propensão para cometer tais actos é sinal de um mau carácter e, numa sociedade justa, a
punição legal atingirá apenas aqueles que exibem tais deficiências».
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CAPÍTULO VIII
TOMADA DE POSIÇÃO
SOBRE AS TEORIAS DOS FINS DA PENA
§ 85. Que a pena, particularmente a pena de prisão (que pode
mesmo carregar um carácter infamante), se traduz num mal para o
condenado, parece não restar dúvida, mal ou sofrimento (156) que pode
ou não ser recebido como expiação pela infracção praticada. Na verdade, não repugna aceitar, com Jescheck, que o Estado possa atribuir-se
a tarefa de criar a possibilidade de uma expiação como «prestação moral
autónoma», posto que o condenado seja inteiramente livre de a aproveitar ou não, já que não cabe ao Estado (laico) fomentar qualquer
«moral», religião ou ideologia.
O mal da pena suportado pelo condenado — na liberdade, no património, no tempo livre, na consideração social, na actividade económica,
na profissão, etc. — significa ainda um juízo de desvalor público vindo
da comunidade cujas regras infringiu, regras preparadas para serem
aplicadas, se necessário, sob coerção pelos seus representantes (157).
Excepcionalmente, a pena de multa para certas pessoas economicamente
dotadas pode não se traduzir em qualquer mal ou sofrimento. Não se resiste a citar
Sousa Pinto — apud JOSÉ ANTÓNIO BARREIROS, Coerência na aplicação das penas,
Palestra no STJ, em 03-06-09 —, referindo-se à «igualdade» da pena de multa ante o
rico e o pobre: «Bem sabido é o caso daquele cidadão romano que trazia consigo um
escravo com uma bolsa de dinheiro, para pagar a multa pelos bofetões que ia dando».
Aí se pode ver também alguma síntese histórica das penas.
(157)
Sobre as penas, cfr. JOSÉ ANTÓNIO VELOSO, op. cit. Na «acepção ética e
jurídica mais comum, (a pena é) um sofrimento ou privação de bens infligido pela
autoridade legítima ao autor de um delito, em razão desse delito: malum passionis, quod
infligitur ob malum actionis, na definição canónica de Grócio…» «Punir é atribuir
responsabilidade por um facto culpável e censurar ou reprovar com fundamento nessa
(156)
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138
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
Poderemos projectar a discussão sobre o significado da pena noutros planos, alguns já aflorados, designadamente numa racionalidade
prospectiva (158).
§ 86. Para os utilitaristas sendo a pena um mal só se justifica se
for útil — pois de outro modo seria mais um mal a juntar-se ao da
infracção —, se servir para fazer diminuir a delinquência, aumentando
a segurança (o que faz parte da felicidade, do prazer ou do interesse do
maior número possível). Tem feição agonística (combate a) porque
usada na luta contra a delinquência. A utilidade da pena é a sua razão
de ser mas também o seu limite e a sua medida. Devem ser «argumentos sensíveis» os que levam a impedir o culpado de causar novos danos
e desviem os outros de lhe seguir o exemplo.
responsabilidade: é essencial ao sentido da pena (pelo menos no uso primário do termo)
que a pessoa punida seja considerada responsável pelo facto pelo qual se pune e que
esse facto constitua violação de uma norma» (p. 520). Isto sem esquecer que «outros
mecanismos — socialização, censura informal, castigos religiosos têm um papel mais
fundamental do que o do Direito penal na coesão do grupo» e que «o efeito contramotivador do sofrimento e da sua antecipação na consciência do agente explica que as
penas sejam universalmente utilizadas como instrumento de controlo social… «Mas a
psicologia da pena não se esgota neste processo de contramotivação pelo sofrimento
enquanto tal: não menos importante é a sua função expressiva ou simbólica. A pena é
em grau eminente um ritual colectivo, em que se exprime a condenação ou reprovação
do acto ilícito e se produz a estigmatização do delinquente por parte da comunidade»
(p. 522). Enfim, «a condenação pública do réu a uma pena é uma «cerimónia de
degradação» no sentido de Garfinkel (1956), «uma forma secular de excomunhão» que
reforça a solidariedade do grupo pela vindicação da norma violada», sendo que «os
sofrimentos ou privações coercivamente infligidos têm o valor de símbolos por excelência da reprovação pública».
Sabido que «a evolução do Direito penal desde as grandes reformas do Iluminismo
e do Liberalismo tem sido caracterizada, no entanto, na generalidade dos Estados de
tradição liberal, por uma considerável diminuição dos sofrimentos e privações tradicionalmente associados às penas…» (pp. 524/25). Aqui se encontram várias classificações
das penas (pp. 525 e ss.). Sobre a evolução e classificação das penas — cfr. GERMANO
MARQUES DA SILVA, Direito Penal Português, — Parte Geral, III, op. cit., §§ 246/255.
Sobre os suplícios e as penas — cfr. a imprescindível obra de MICHEL FOUCAULT,
Surveiller et Punir, Vigiar e Punir — Nascimento da Prisão, Editora Vozes, Petrópolis,
1999, trad. Raquel Ramalhete.
(158)
Apud PIERRETTE PONCELA, Droit de la peine, 2.e édition, PUF, 2001, pp. 59 e ss.
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Cap. VIII — Tomada de posição sobre as teorias dos fins da pena
139
Para Jeremy Bentham, o enfoque está na economia — o mal da
pena deve ultrapassar o proveito da infracção, mas o menos possível.
Ainda numa perspectiva utilitarista, a pena deve apresentar-se de
tal maneira que, na sua representação, o eventual infractor haja de ter
mais interesse em a evitar do que arriscar a infracção.
Isto suporia que as leis fossem claras, conhecidas e entendidas por
todos e as penas certas, efectivamente pronunciadas, o que bem sabemos
estar muito longe da realidade.
A pena pode ser vista na sua função educativa/preventiva, desde a
correcção à emenda, ao tratamento, à ressocialização, à inserção social,
com a finalidade geral de impedir a reincidência.
Aproximação ao direito nacional
§ 87. Concentremo-nos no direito nacional e na mensagem que
deve ser extraída da lei, começando por adiantar que a posição adoptada
sobre a culpabilidade é a que melhor se articula com a opinião que
vamos seguir.
Como reiteradamente foi afirmado, designadamente aquando da
Revisão de 1995, o legislador não pretendeu resolver questões em que
a dogmática deve ser livre de discutir e, por isso, entendemos que não
se pode extrair daquela Revisão que estejam afastados do ordenamento
penal português os princípios subjacentes à teoria da retribuição como
elemento a atender nas finalidades da pena. Mas ainda que tivesse
passado pela mente de alguns dos fautores dos textos legais tal objectivo
o que importa é a análise do resultado, à luz dos princípios salutares da
interpretação.
§ 88. É sabido que as leis se «soltam» daqueles que as conceberam ou prepararam, sendo que, na hipótese cada vez mais frequente de
intervir uma pluralidade de participantes, muitas vezes nem sequer são
«decifráveis» as intenções desses participantes no interior da discussão
colectiva, ou porque não as exprimiram com clareza ou porque não
ficaram consagradas em «declarações de voto» ou simplesmente porque
foram contraditórias no seio do grupo ou grupos políticos que fizeram
vencimento. Mas para além disso, nesta Revisão, como em outras de
quaisquer leis, não pode olvidar-se que na recolha mais significativa do
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140
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
elemento histórico, nomeadamente dos trabalhos preparatórios, o que o
Parlamento deixou expresso será mais relevante do que os relatórios e
discussões dos proponentes do Projecto.
Por outro lado, as episódicas «maiorias» que compõem os parlamentos e numericamente fizeram passar uma determinada posição, não
possuem o condão de esmagar o confronto, não apenas com as normas
constitucionais como também com os princípios do direito, que sobem
em cada momento à superfície da discussão concreta, num ordenamento
jurídico que tenta harmonizar a teia de interesses cada vez mais complexa que a sociedade tem de gerir e no qual a coerência no sentido a
atribuir à lei se ergue como timoneiro da interpretação.
A nossa opinião
§ 89. Pensamos que face ao sistema legal português vertido no
Código Penal 1982, mesmo após a revisão de 1995, a teoria mista ou
integradora dos fins das penas é a que melhor se adapta ao quadro aí
desenhado. Deste modo, em nossa opinião, a ideia de retribuição continua a integrar aquelas finalidades e ostenta um papel relevante.
89.1. É hoje reconhecido que, como alertava Armin Kaufmann, a
moderna teoria retributiva «não é uma teoria da pura retribuição», antes
se aponta para a «justa retribuição», para uma concepção, diremos, de
meritocracia.
Não mais se poderá entender a ideia de retribuição como ligada a
um conteúdo religioso — pune-se quia peccatum est — ou de pura
referência taliónica. A retribuição aparece ligada ao sentimento de
culpabilidade, ao agir deliberado contra o direito, podendo o agente não
o fazer, ao sentido de responsabilidade imanente a cada ser humano que
vive em sociedade.
Acompanhando de novo Jescheck, a pena não se estabelece nem
impõe por consideração exclusiva a si mesma, mas com a finalidade de
proteger a sociedade frente aos futuros delitos, e como compensadora
da culpabilidade pelo delito cometido, pretendendo-se atingir, de forma
justa, o resultado preventivo.
Certo que não é missão do Estado produzir «a plena moralidade na
terra», sendo conhecida a quantidade de criminosos que escapam à
Justiça, muitas vezes logo porque as vítimas não desencadeiam o proCoimbra Editora ®
Cap. VIII — Tomada de posição sobre as teorias dos fins da pena
141
cesso através da participação, pelas razões mais variadas (v. g., não
exposição pública, ineficácia das autoridades judiciárias). De algum
modo, o «ferrete» da teoria absoluta — mal pelo mal — desapareceu
ou, quando menos, está agora direccionado noutro sentido (159).
89.2. Mas o elemento retribuição, no seu contributo para uma
teoria integradora ou mista das penas, que vise a protecção e manutenção de uma convivência pacífica em sociedade através da coacção
jurídica da pena, quando necessária, «há-de procurar-se sempre de uma
maneira justa».
Só de uma pena justa, porque “merecida”, pode irradiar um efeito
duplo: de advertência sobre o condenado como resposta da comunidade;
como consequência pedagógico-social sobre a própria colectividade, ao
ver restabelecida a eficácia da lei (160).
MICHEL VAN DE KERCHOVE, “Symbolique et instrumentalité. Stratégies de
pénalisation et de dépénalisation dans une société pluraliste”, in Punir — mon beau
souci — Pour une raison pénal, Revue de l’Université de Bruxelles, 1984/1-3, p. 131,
dá conta de que a «dimension symbolique du droit pénal réside dans le maintien de
la fonction rétributive de la peine, aux côtés de ses fonctions préventives. P. Poncela a souligné à juste titre, … la dimension symbolique dans laquelle s’inscrit la
rétribution (…), à la différence de la prévention qui relève avant tout d’une dimension
instrumentale. Précédemment E. Bittner et A. M. Platt avaient également mis en
lumière le caractère symbolique de l’équivalence que le principe de rétribution établit
entre l’infraction et la peine (…). Si d’un point de vue strictement utilitaire, et prise
littéralement, cette équivalence peut évidemment paraître arbitraire voire même dépourvue de sens, elle est par contre susceptible de revêtir différentes significations symboliques. Ces significations peuvent être formulées en termes moraux: dénonciation du
degré d’immoralité de l’infraction, rétablissement du droit violé, attestation de la
responsabilité morale de l’agent et de son «droit» à être traité comme tel, triomphe
d’une certaine idée de la justice, approbation morale des actes conformes, etc. (…) On
peut cependant aussi formuler ces significations en termes plus sociologiques: maintien
de la cohésion sociale, guérison des «blessures» faites aux sentiments collectifs, attestation de la subsistance des sentiments collectifs, etc.» Anota ainda como nem sempre
é fácil conciliar as funções da retribuição e da prevenção.
(160)
Refere MARIA FERNANDA PALMA, As Alterações Reformadoras da Parte Geral
do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva», Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Lisboa, 1998, p. 38: «A
ideia de uma pura prevenção limitada pela culpa na decisão de punir é uma simbologia
alheia ao princípio de legalidade, na medida em que desconhece o papel da culpa na
tipificação legal (…)».
(159)
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142
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
Paul Ricoeur fala no impasse criado de «supprimer un mal subi par
un mal commis»: se se exclui toda a intenção de suprimir a violação
do direito no sujeito da violação, é a própria ideia de pena que se esvai,
desaparece; racionalizar a pena eliminando o mito da expiação é ao
mesmo tempo «la priver de son principe». Será o que sucede com a
medicalização das sanções (161).
Fins antinómicos
§ 90. Uma relação equilibrada entre todos os fins das penas, numa
concepção pluridimensional, não obsta a que, na hipótese de antinomia
entre eles, seja dada prevalência a um ou outro, sem que a pena venha
a perder a sua relação com a culpabilidade, que constitui o seu fundamento primeiro e o seu limite último. Se não for possível proceder a
uma operação de concordância prática dos diferentes interesses, como
o Supremo já tem invocado, numa operação de eclectismo dos fins da
pena, o Julgador escolherá aquele que pode acalentar as melhores perspectivas de sucesso na sua aplicação, sem atingir no essencial o quadro da culpabilidade.
É certo que o conceito de “pena justa”, aferido pela culpa, tal como
sucede com uma pena fundada e medida por outras finalidades, designadamente em sistemas de prevenção, também enferma de um inarredável grau de subjectivismo do Julgador, como já se viu e que melhor
Para ROXIN — apud ANABELA RODRIGUES, A determinação da medida da pena
privativa de liberdade, op. cit, pp. 328 e ss. — posto que a pena seja um instrumento
de prevenção, ela «consistiria em «restabelecer a paz jurídica perturbada» e em «fortalecer a consciência jurídica da comunidade» e alcançar-se-ia, «impondo pelo seu facto
ao indivíduo a pena que ‘merece’», isto é, que corresponde à culpa pelo crime que
cometeu (…). Ao conseguir-se, assim — isto é, enquanto «a pena é adequada à
culpa» — que «a sentença seja aceite como adequada (justa) pela sociedade contribui-se
para a estabilização da consciência jurídica geral» para a «manutenção da fidelidade ao
direito pelo público».
(161)
Apud FOULEK RINGELHEIM, Le souci de ne pas punir, in Punir mon beau
souci, loc. cit., p. 360. Diz-se também: «Avec la dissolution progressive de la responsabilité et de la maitrise de ses actes, s’évanouit le sujet de droit. Le retour à une
certaine rigueur de pensée et à l’autonomie du droit pénal offre un moyen, sinon de
sortir de l’impasse, au moins d’y voir plus clair».
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Cap. VIII — Tomada de posição sobre as teorias dos fins da pena
143
ressaltará do excurso que adiante se faz sobre a jurisprudência (162).
Reconhecer essa debilidade, porém, em nada desfavorece a teoria mista,
já que ela se entranha igualmente nas teorias relativas, se outras razões
não houvesse — e há, como abundantemente veremos —, desde logo
quando usam a culpabilidade como limite inultrapassável da pena.
Realidade ontológica da auto-censura
§ 91. De qualquer modo, o que estará em causa é saber se se
pode abdicar desta realidade ontológica que se traduz no peso da responsabilidade de cada um perante si próprio e os seus semelhantes, pois
no fundo, a primeira censura pela prática do delito vem do interior de
cada indivíduo, auto-censura que por vezes é a mais dolorosa (pense-se
nos acidentes de viação ou outros, de resultados gravíssimos em vidas
humanas, provocados por negligência grave). Quando, em hora de
solidão ou recolhimento, o homem faz o balanço ou exame da sua
consciência aí assume (ou não) a sua culpabilidade pelos factos imputados e aceita (ou não) ser sancionado pela comunidade através dos seus
representantes (quando usada com sinceridade corresponde à postura do
estar ou não de «consciência tranquila») (163).
Poderá objectar-se que à entidade que exerce o jus puniendi não
interessam aqueles «estados de alma»: por um lado, porque a sua
demonstração e conhecimento precisos estão muitas vezes fora do
alcance do Julgador, por outro, porque se deve seguir pela via mais
directa e simples de tentar encontrar uma pena que satisfaça as necessidades mínimas da convivência em sociedade.
(162)
Diz-se que a pena justa seria a sanção que obtivesse a adesão voluntária e
simultânea do que a ordena e do que a suporta. Mas existe tal sanção? Mesmo para
os abolicionistas, o modelo punitivo não desaparecerá bruscamente. É uma solução
simples que responde a numerosas solicitações — física, psicológica e social. Poder
punir publicamente é a marca de um certo êxito social. Todavia, saber o que seja pena
justa escapa ao entendimento, e o uso de sanções penais engendra sempre mais injustiças do que suprime — THIERRY LÉVY, Le mirage de la peine juste, in Punir mon beau
souci…, op. cit., pp. 439 e ss.
(163)
É certo que a televisão exibe com frequência a «consciência tranquila» de
alguns indiciados e até condenados, especialmente os das ditas «elites», mas não é dessa
que ora falamos.
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144
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
Todavia, será então difícil de afastar a crítica de o Homem, tratado
neste contexto, como instrumento e não como ser autónomo cuja dignidade nunca pode ser esquecida ou ultrapassada. E sempre se dirá
que se aquele sentimento (de contrição ou arrependimento) não brotar
ou se esvair da consciência de cada um, intervém a reprovabilidade da
comunidade perante alguém que se afasta do padrão tipo de cidadão
responsável ou que, mais rigorosamente, podia em concreto ter adoptado
outro comportamento.
Democracia e ética versus direito penal do inimigo
§ 92. Naquela linha vai Faria Costa, como vimos acima, ao situar
no direito a «manifestação do nosso mais profundo modo-de-ser com
os outros, simultaneamente limite e fundamento do «eu» com o
«outro»». E os actos de cada um, ainda que diferentes, hão-de ser
sempre valorados pelas mesmas regras e pelos mesmos princípios.
Daí a contradita à visão utilitarista da pena, sendo em sua opinião
«ilógico ou incompreensível» aplicar uma pena como ameaça para que
os outros não pratiquem crimes ou com «o fito de repor a validade
contra-fáctica da norma», o que pode levar à punição de inocentes.
Neste retorno a um sentido novo (ou evolutivo) da retribuição, a
pena pode ser vista como um bem e estará mais perto do «sentir
comum». E, como lucidamente salienta, os regimes democráticos têm
de continuar a assentar nos «grandes princípios éticos que fazem o
cimento agregador de qualquer sociedade ou comunidade», sob pena de
desembocarem no arriscado «direito penal do inimigo» (164).
(164)
Cfr. JOSÉ LUIS DÍEZ RIPOLLÉS, «Da sociedade do risco à segurança cidadã:
um debate desfocado», RPCC, Ano 17, n.º 4, 2007, pp. 547 e ss. Deve-se a GÜNTHER
JAKOBS a contestada doutrina que, tendo em conta as políticas públicas de combate à
criminalidade nacional, internacional ou transnacional, faz a contraposição entre cidadão
e indivíduo, sendo que o indivíduo que se mostre perigoso deve ser tratado como
inimigo social. Jakobs formulou «a mais acabada contraposição entre cidadão e indivíduo, com dois corolários fundamentais para o nosso propósito, o de que o indivíduo
que se mostra perigoso deve ser tratado como inimigo social, e o de que certos delinquentes pertencem a essa categoria de inimigos da sociedade. Os indivíduos que de
forma reiterada e duradoura mostram a sua predisposição para a delinquência grave
— v. g., na criminalidade económica, no terrorismo, no tráfico de estupefacientes e na
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10 — Medida da Pena
Cap. VIII — Tomada de posição sobre as teorias dos fins da pena
145
criminalidade organizada em geral, na criminalidade sexual ou noutras condutas perigosas próximas, na criminalidade habitual — e não podem ser considerados pessoas
nem cidadãos, devem ser excluídos porque inimigos da sociedade. Ser-lhes-ia aplicado
um direito penal diferente, com regras processuais específicas, em que a pena não
procura reafirmar a vigência da norma mas assegurar a manutenção destes indivíduos fora da sociedade. Tal modelo de segurança cidadã — contínua — leva à
«degradação do delinquente a inimigo e a expansão da intervenção penal a partir da
pessoa e não do facto». Teoria que merece a crítica de que a procura da efectividade
da política criminal a curto prazo «provoca efeitos devastadores na estrutura da racionalidade do direito penal. Referências chave da racionalidade ética, fortemente arreigadas no nosso sistema de crenças, têm de ser manipuladas para simular que o novo
modelo de direito penal as respeita, o que se toma necessário sobretudo quanto aos
princípios da responsabilidade e da sanção. Desloca-se a ênfase do princípio da certeza
ou segurança jurídica a partir de uma precisa determinação legal dos factos para uma
nítida precisão legal das qualidades que deve possuir o autor de tais factos; … o
princípio de reprovabilidade ou culpabilidade sofre pressões cada vez mais fortes
para adaptar os seus conteúdos aos de um conceito que nasceu, discutivelmente, como
seu complemento, o de perigosidade; no âmbito do mega-princípio de jurisdicionalidade, … o modelo penal da segurança cidadã tem interesse em obnubilar subprincípios
como o do monopólio estatal do ius puniendi, outorgando um protagonismo crescente
às exigências das vítimas, ou o do processo contraditório, mediante o acentuar de desigualdade entre as partes processuais; é indiscutível que os princípios da humanidade
ou da proporcionalidade das penas, ou a afirmação da sua dimensão ressocializadora, sofrem embates tais que, no que se refere ao último deles, parece já apoiar-se
numa dúvida das crenças sociais quanto à sua adequação».
O mesmo Autor, «El Nuevo Modelo Penal de la Seguridad Ciudadana», na Revista
Electrónica de Ciencia Penal y Criminología, ARTÍCULOS RECPC 06-03 (2004), http://
criminet.ugr.es/recpc/, preconizava um modelo penal de bem-estar, de par com maneiras de afrontar a deriva securitária, que favorece os interesses de certos grupos sociais
em prejuízo de outros. «Frente a colectivos y agentes sociales que están resultando
claramente beneficiados por el modelo que se está asentando — fuerzas policiales,
empresas de seguridad, pequeños comerciantes, clases pasivas, sectores con empleo
estable, medios de comunicación, políticos populistas, asociaciones feministas… — existen otros que resultan perjudicados — colectivos preferidos del escrutinio policial, como
jóvenes, inmigrantes y minorías sociales, cuerpos expertos de la justicia, de la ejecución
penitenciaria o de la asistencia social y psicológica, emprendedores a cuyos negocios
perjudica la imagen de inseguridad ciudadana, asociaciones activas en la atención a la
marginación social o en campos alejados de la seguridad ciudadana, como medio
ambiente, intereses del tercer mundo, pacifistas»…
E também um equilibrio da realidade: «Por lo demás, el sistema de responsabilidad penal será tanto más sólido cuanto mejor exprese, de forma depurada pero comprensible, las ideas sociales vigentes sobre cuándo alguien debe responder por sus actos
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146
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
Em direito penal, diremos com Santiago Mir Puig (165), o ponto
de vista dos direitos corresponde ao dos valores protegidos, ou seja
dos bens jurídico-penais (apesar da indeterminação do conceito),
enquanto que a perspectiva dos deveres corresponde às normas proibitivas. Daí a recusa da proposta de Jakobs de prescindir do conceito
de bem jurídico, substituindo-o pelo de lesão da vigência da norma,
em si mesma, independentemente da intenção do seu autor. Para
y en qué grado. Allí está su fuerza, y no en refinadas e inaccesibles construcciones
conceptuales. Y algo parecido sucede con el sistema de verificación de la responsabilidad, en el que, por ejemplo, la actividad probatoria no debería ver obstaculizada su
aproximación empírica a la realidad, ni su uso de reglas lógicas o argumentativas
ampliamente compartidas, por frenos garantistas negadores de la evidencia» …
KLAUS VOLK, «The Principles of Criminal Procedure and Post-Modern Society:
Contradictions and Perspectives», http://www.isrcl.org/Papers/Volk.pdf, diz: «As early
as 1985, Jakobs spoke of Feindstrafrecht («criminal law for the enemy») and used this
vocabulary again in 1999 at the Berlin symposium on «German Criminal Law Studies
at the Turn of the Century». Feindstrafrecht is war, war against the enemies of society.
However, Jakobs’ apocalyptic vision is not dangerous because it threatens to become
real. The real danger lies in Jakobs’ call for the isolation of Feindstrafrecht and the
defense of classical Bürgerstrafrecht («criminal law for the citizen») separately, as
liberal and constitutional. We should not permit this bifurcation of criminal procedure.
A state governed by the rule of law should not create a special law for its enemies. It
must also remain true to its basic values when dealing with the enemies of the constitutional state. Thus, it must treat them fairly and justly in a process dedicated to the
search for truth and the foundation of peace under law. These fundamental values of
criminal procedure may not be made conditional on the person against whom the
criminal proceedings are aimed».
V. também FARIA COSTA, «O direito penal, a linguagem e o mundo globalizado
(Babel ou o esperanto universal?), na RLJ, Ano 138.º, 2009, N.º 3955, maxime
p. 227.
PAULO DÁ MESQUITA, Justiça penal e processo, Seara Nova, 2006, n.º 1696,
alerta para o risco de que a «recusa em assumir diferentes direitos penais dentro do
mesmo Estado não tem obstado a que se tenham feito integrar (essencialmente
através de leis avulsas) novos institutos em que se admite o recurso a meios especiais de perseguição de agentes de crimes particularmente graves» caminhando-se
assim para «um regime processual de dupla via…, isto é, um modelo para os processos relativos a crimes de pequena e média criminalidade e todos aqueles que não
exigem especiais meios de investigação e um regime distinto para a criminalidade
organizada».
(165)
«Valoraciones, Normas y Antijuricidada Penal», ARTÍCULOS RECPC 06-02
(2004), 02:7.
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Cap. VIII — Tomada de posição sobre as teorias dos fins da pena
147
reafirmar: «Mientras que el concepto político-criminal de bien jurídico
condiciona la legitimidad de una norma penal a que sirva a la protección de valores que la merezcan, la concepción de Jakobs invierte
en cierto modo el planteamiento y convierte a la norma en objeto en
sí mismo legítimo de la protección penal: la norma pasa de instrumento que necesita ser legitimado por su fin, a fin en sí mismo legitimado» (bold agora).
§ 93. Em nossa opinião, é neste quadro da ética, ligada à defesa
e respeito pela dignidade da pessoa humana e pela liberdade em si
imanente, que aparece a ideia de Justiça, que como se sabe nem
sempre se equivale ao direito, e também da igualdade, sem esquecer
que se admitem desigualdades que viabilizem a realização da Igualdade. A tolerância, que anda paredes meias com o pluralismo e a
manutenção da diversidade, são outros dos valores éticos das sociedades europeias. Ao falarmos na dignidade de cada um, marcamos a
importância da autonomia individual, a não instrumentalização do
outro, o direito de não ingerência do Estado ou dos seus concidadãos
desde que não resulte prejuízo para os outros. Ser autónomo não se
diz apenas de um indivíduo com um determinado comportamento mas
de uma individualidade dotada de carácter e de uma personalidade.
O direito à privacidade, o valor contemporâneo da laicidade do Estado,
a beneficência — razoável possibilidade de fazer o bem a outrem ou
evitar o mal — ou a não beneficência — não fazer mal a outrem, não
o prejudicar, reduzindo ao mínimo o seu sofrimento —, são hoje
outros dos princípios éticos que a Humanidade deverá esforçar-se por
preservar.
§ 94. Também José António Veloso (166), apela a uma «clara e
coerente concepção ética do Direito penal e da pena» como forma de
«dar sentido e conferir legitimidade ao diálogo do juiz (e do carcereiro,
e do assistente social) com o condenado, com a vítima e com a sociedade. Em face da experiência acumulada ao longo deste século, pode-se
(166)
Loc. cit., pp. 559/60.
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
por certo afirmar que um mínimo de sentido ético é também condição
necessária da eficácia do sistema penal.»
E mais adiante: «Naturalmente, a concepção ética da pena não
é incompatível, como nunca foi, com a contemplação de outros
fins das penas, além do da justiça estrita, nomeadamente os de prevenção e de incapacitação, nem muito menos tem de ser oposta
aos fins de regeneração ou reinserção social, que são e sempre
foram uma parte essencial do património filosófico dessa concepção. Pelo contrário, a concepção ética da pena é o melhor critério e
a base mais sólida para prosseguir esses outros fins, não apenas — o
que já seria razão suficiente — com salvaguarda da dignidade
humana, de que decorrem os princípios da culpa e da proporcionalidade ao mal do crime, mas também com um mínimo de eficácia,
evitando efeitos perversos e incontroláveis que aliás os destruiriam»
(bold nosso).
Normativos
§ 95. Citámos em outro lugar — §§ 66 a 68 — os preceitos
nacionais envolvidos e que podem auxiliar na dilucidação do que
seja a posição teórica mais correcta, a qual importa em virtude do
efeito orientador como farol que indica o caminho para o porto
seguro.
95.1. Capital, para este efeito, é o comando resultante do
artigo 1.º da CRP pelo relevo concedido ao princípio da dignidade da
pessoa humana como pilar em que deve assentar a organização da
sociedade portuguesa.
Na «dignidade da pessoa humana» se tem ancorado a proibição de
a alguém ser aplicada uma pena sem que seja susceptível de culpabilidade. Está além suposta a concepção de uma pessoa humana como ser
livre e por isso responsável.
Mas como nos parece evidente, daqui não se recolhe qualquer
indicação na preferência por qual a melhor teoria dos fins das penas
ou até se alguma é exigida pela Lei Fundamental. Se na escolha,
determinação ou medida da pena a aplicar, a culpa além de limite inultrapassável da pena e seu pressuposto, constitui ainda o seu fundamento,
isso não decorre deste preceito constitucional.
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Cap. VIII — Tomada de posição sobre as teorias dos fins da pena
149
95.2. Já vimos que nos trabalhos preparatórios da Revisão de 95
do Código Penal houve o propósito de clarificar a actuação dos tribunais, particularmente naqueles pontos em que se afirmava não estarem
a observar os propósitos do Código Penal 1982 — pouco uso das penas
de substituição, pesquisa da medida da pena a partir do ponto médio da
moldura abstracta.
Todavia, repetiu-se por mais de uma vez que não se pretendia
resolver questões que só à dogmática caberá esquadrinhar. Com efeito,
no fluir quotidiano do pensamento, apoiado na investigação científica e
no evoluir da vida em sociedade, irão sendo encontrados os melhores
modelos conceptuais.
95.3. Ora, se do n.º 1 do artigo 40.º do Código Penal se extrai
sem esforço a indicação de que as finalidades da prevenção geral e
especial estão imersas na aplicação das penas já quanto à referência à
culpa, embora a interpretação linear aponte para que nunca se imporá
uma pena sem culpa — aspecto unilateral — não se extrairá a máxima
de que se impõe sempre uma pena quando houver culpa (e obviamente
a prática de factos ilícitos e típicos).
Mas se deixarmos de lado, neste ponto, a carga doutrinária que
estava por detrás do principal mentor da revisão de 95, o Prof.
Figueiredo Dias, e se valorizarmos a declaração de que não se deseja
resolver uma tão cortante questão dogmática, muito longe da estabilização, então concluiremos sem dificuldade que o inovador preceito,
ainda que «emblemático», como lhe chama Sousa e Brito, pouco
esclarece.
Tanto mais assim será quando o confrontarmos com o artigo 71.º,
epigrafado especificamente de «Determinação da medida da pena».
O artigo 71.º do Código Penal
95.4. Incisivamente, nesse artigo 71.º se expressa que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita
em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. Como
tem sido anotado, em rigor estes parâmetros gerais devem ser observados em momento prévio ao da discussão do conjunto de itens concretos
a que se refere o n.º 2 (daí o afastamento da média abstracta da pena
correspondente como ponto de partida para a pena em concreto). Sendo
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150
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
certo que nem sempre será viável proceder a tal separação lógica, como
logo se vê por exemplo da consideração sobre a «intensidade do dolo
ou da negligência» (alínea b) do n.º 2).
Perante a clareza de tal preceito, não parece sequer possível afastar o
imperativo de que a medida da pena é fixada também em função da medida
da culpa. O que então quer dizer que a culpabilidade não funciona apenas
como limite na sua relação com a pena mas desde logo como elemento
integrador da sua medida (para além de seu fundamento) (167).
Se existe alguma hierarquia nos fins resultante deste preceito, ela
dirige-se em primeiro lugar à detecção da culpa do agente — aqui bem
radicada na protecção da dignidade da pessoa humana — e só depois vem
a satisfação das finalidades preventivas. E como já se disse, não será
ousado afirmar que a prevenção especial, na sua vertente de reintegração,
reeducação ou outra, se sobreporá, como regra, à prevenção geral, porque
mais se aproxima do vector da dignidade humana. Por isso, só em casos
de especial gravidade dos delitos pode ser comprimida com base na defesa
da sociedade, dando prevalência à prevenção geral.
E nem os escassos elementos, retirados de alguma jurisprudência
—, como adiante se verá —, oferecem, a nosso ver, amparo argumentativo mínimo para sobrepor o disposto no artigo 40.º de modo a reduzir a força do artigo 71.º
O apoio do artigo 74.º e outros do Código Penal
§ 96. A fórmula da teoria mista ou integradora dos fins das penas
pode ainda ser claramente percepcionada no instituto da dispensa de
pena — artigo 74.º
Para SANTIAGO MIR PUIG, O princípio da proporcionalidade enquanto fundamento constitucional de limites materiais do direito penal, in RPCC, Ano 19.º, I, 2009,
pp. 36/39, ao confrontar o princípio da culpa com o da proporcionalidade, afirma que
aquele «deverá acarretar tanto a proibição de qualquer pena se não houver culpa, como
o dever de atenuar a pena se a culpa é diminuída». E mais adiante: a pena «implica
uma reprovação ético-jurídica que só é justo dirigir a quem é culpado e na medida da
sua culpa. É esta censura que em nenhum caso pode ser imposta ao que não a merece,
por muito necessária e proporcional ao objectivo de prevenção que possa ser a privação
de direitos que implica a pena» (bold nosso).
(167)
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Cap. VIII — Tomada de posição sobre as teorias dos fins da pena
151
Em caso de prática de crimes de pequena gravidade, o tribunal pode
«declarar o réu culpado mas não aplicar qualquer pena» verificados
certos requisitos — diminuta ilicitude do facto e da culpa do agente,
ter havido reparação do dano e não se oporem razões de prevenção.
Aqui, à existência de culpabilidade, para além da ilicitude, não
corresponde uma sanção obrigatória — contrariamente ao que exigiriam
as teorias absolutas dos fins das penas — e por outro lado, as razões
de prevenção erigem-se com autonomia (como por ex. no artigo 43.º,
n.º 1). Declaradamente, os ingredientes nisto compreendidos têm a ver
com os três elementos, a culpabilidade e as modalidades preventivas, o
que em parte também sucede com o artigo 75.º (reincidência) e particularmente com o artigo 79.º (punição do crime continuado).
Síntese
§ 97. Em suma, entendemos que a adesão à teoria mista ou unificadora se mostra compatível com os preceitos legais acima mencionados. Ou, quando menos, a interpretação dos mesmos não impõe que
sejam seguidas as teorias relativas da prevenção, particularmente com
acento tónico na prevenção geral reintegrativa, conforme pretendem os
seus defensores, ou de intimidação como muitas vezes os tribunais
superiores têm usado.
A posição nuclear que atribuímos à culpabilidade encontra-se em
directa ligação com a perspectiva da retribuição ou da “pena merecida”
pelo que não se estranhará a discussão imbricada de ambas.
E quando várias normas se reportam às “finalidades da punição”
estarão, a nosso ver, a englobar a reprovação, a (re)inserção ou recuperação social e a prevenção, como melhor veremos.
Um breve esclarecimento: a exposição referida neste capítulo — não
colocando as normas em primeiro lugar — justificar-se-á se enterdermos
que a dogmática as precede e elas podem confirmá-la ou não.
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CAPÍTULO IX
ESPECIAIS DIFICULDADES DO «MODELO
DE PREVENÇÃO»
Jurisprudência actual e doutrina
§ 98. Como se discriminará adiante, a visão que preconizamos
não tem sido a seguida pela jurisprudência dominante dos últimos anos
do nosso mais Alto Tribunal, mas antes a que é defendida pelos ilustres
professores de Coimbra, Figueiredo Dias e Anabela Rodrigues, como
principais cabeças de fila.
Por isso, ainda algumas breves e singelas notas sobre certos pontos
da argumentação que tem sido urdida.
98.1. Segundo Figueiredo Dias reconhece (168), à doutrina da prevenção geral na modalidade negativa de intimidação é assacável «fraqueza teorética e prática», por não ser possível determinar o quantum
de pena necessário e pelo risco de se descambar para o direito penal do
terror, violando-se a eminente dignidade da pessoa humana. O que não
sucederia com a prevenção geral positiva ou de integração.
Além disso — continua (como em parte já se mencionou), o ilustre
Professor — «não está dito que a medida concreta da pena a aplicar a
um delinquente, sendo embora fruto exclusivo de considerações de prevenção geral positiva, não deva ter limites inultrapassáveis ditados pela
culpa, que se inscrevem na vertente liberal do Estado de Direito e se
erguem justamente em nome da inviolável dignidade pessoal. Deste ponto
de vista a doutrina da prevenção geral oferece um entendimento racional
e politico-criminalmente fundado ao problema dos fins das penas; e,
(168)
Cfr. supra § 45.
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154
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
também, um entendimento susceptível de se fazer frutificar para a solução
de muitos e complexos problemas dogmáticos e para o qual, por conseguinte, não se encontra ainda hoje alternativa credível».
Dificuldades do «modelo de prevenção»
§ 99. Mas a nosso ver, despontam outras dificuldades, para além
da apontada fraqueza teorética e prática.
Como se passa de uma prevenção geral com acento intimidatório
para uma prevenção geral de reintegração, nos termos indicados? Por
um lado, não se vê como seja viável mudar a «etiqueta» na cabeça do
Julgador e num passe de magia afastar o risco da instrumentalização;
por outro lado, onde estará a linha de fronteira que permite distinguir
o terminus do efeito de reintegração e o começo do efeito de intimidação (169). Parece-nos que a prova da aporia se esquadrinha adiante,
quando se analisa a jurisprudência e, a certa altura, o Tribunal sente
a necessidade de dizer que a pena (o castigo) tem de ser exemplar,
v. g., em alguns casos do homicídio com negligência grosseira ocorrido
na criminalidade rodoviária. E como é que a comunidade percepciona
se se trata de uma ou de outra?
§ 100. Então — diremos nós — a culpa, cujo papel na retribuição aparece como essencial, sendo fundamento, elemento da
medida da pena e também seu limite, acaba por salvar a doutrina
em que se pretende que a prevenção geral positiva ou de integração
seja a finalidade última da pena. Como se obtém a pena justa e
adequada sem a referência essencial à culpa? E poderá perguntar-se: se não existe bitola ou critério que sirva de esteio para fixar
a pena de intimidação e daí o risco do excesso, o objectivo da confiança na validade do ordenamento jurídico e da protecção dos bens
Cfr. FIGUEIREDO DIAS, § 329 de Direito Penal Português, … op. cit.
«Nada funciona» — diz MARIA FERNANDA PALMA, in «As Alterações Reformadoras …, loc. cit., p. 39 — enquanto a prevenção (positiva e negativa) for um conceito
relativamente vazio. Sem um conteúdo fornecido por critérios de justiça, prevenção
e culpa são etiquetas que o julgador pode livremente substituir e colar a quaisquer
factos».
(169)
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Cap. IX — Especiais dificuldades do «modelo de prevenção»
155
jurídicos, aferido pelo pulsar da comunidade, oferece uma maior
margem de certeza para se alcançar o quantum de pena a aplicar?
Já afirmámos supra que o recurso ao ingrediente da culpa também
não o evidencia com rigor, mas de qualquer modo é à culpabilidade
que a prevenção geral, mesmo na modalidade positiva ou de reintegração, vai buscar o último amparo. Com efeito, a prevenção
geral actua dentro dos limites da culpa — chamando-se a atenção
particularmente para o máximo —, logo, há que os extremar reportando-os a quantitativos concretos de pena.
§ 101. O mesmo insigne Mestre (170) rejeita, como se viu, qualquer
teoria que englobe nos seus componentes a ideia retributiva porque de
todo a não aceita como finalidade da pena.
Todavia, para quem, como nós, a considere uma quase decorrência
da ideia de culpabilidade, ela não serve apenas de «pronto socorro»
(adiante se verá que alguma jurisprudência lhe atribui o papel de «antagonista») em situações de emergência mas radica, como dissemos, no
mais fundo da pessoa humana, dela sendo indissociável. E por isso, em
vez do limite inultrapassável será o ponto de partida do qual se
arranca para poder julgar o Homem, no seu sentido telúrico de responsável pelos actos que pratica.
Deste modo, a pena não visa em primeira linha (171) a tutela dos
bens jurídicos vazados na norma e assim a protecção da entidade abstracta «ordenamento jurídico», mas dirige-se sim ao homem que praticou
os factos e à responsabilidade social que para si daí decorre e ele carrega. Uma pena primordialmente ligada à sociedade e não ao agente,
algo de exterior, que não tem em primeira mão a ver com a sua conduta
íntima, levaria à cisão de realidades incindíveis: a sociedade é o conjunto de cada um dos seus cidadãos, na sua dignidade que o «outro»
tem de respeitar (172).
Temas básicos da doutrina penal, op. cit., pp. 83/85.
Não nos estamos a esquecer do preceito do artigo 40.º do Código Penal, em
face da interpretação já feita.
(172)
«Estamos destinados a ajudar-nos uns aos outros» — diz LOU MARINOFF, As
Grandes Questões da Vida — Como a filosofia pode mudar o nosso dia a dia, p. 174,
Editorial Presença, 2003 (tradução 2005).
(170)
(171)
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156
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
§ 102. Então não valerá a pena conceder que «normalmente, não
há conflito entre a pena que satisfaz aquelas exigências de prevenção e
pena da culpa» pois a dificuldade está em saber como se chega a essa
meta concordante ou coincidente através de percursos tão diferentes.
E ainda que se pretenda a pena como uma «instituição unitária» em
qualquer momento da sua existência, designadamente no que respeita às
suas finalidades, não se antevê qualquer obstáculo em atender a uma
pluralidade de fins a conseguir com a aplicação da pena. Essa «unidade»
poderia logo entender-se como quebrada ao incluir mais que uma modalidade de prevenção, e dentro destas, distinguindo uma em favor de outra.
Nem sequer se pode considerar que se está perante concepções antagónicas pois ainda acabámos de ver como a noção de culpa, fundamento da
retribuição, vem em socorro das finalidades de prevenção.
Descobrir o pulsar da comunidade
§ 103. Acode-nos, por outro lado, anotar que sendo essencial a
practicidade na ciência do direito, reguladora das relações sociais, como
observava Cavaleiro de Ferreira, esta penetra todos e cada um dos elementos que formam o contexto do preceito legal, não podendo por isso
as construções dogmáticas de estrito rigor conceptual deixar de ser
testadas pelos resultados do dia-a-dia (173).
Ora se a detecção da culpa, pelo menos na modalidade que permita
a censura ética, não se mostra como tarefa fácil e daí o embaraço na
medida da pena (diz-se e com razão que a culpa não é susceptível de se
traduzir em uma medida exacta), o critério para as teorias da «moldura
de prevenção» não fornece utensílio mais fácil quando o Julgador investiga qual a pena que melhor satisfaz o pulsar da comunidade sobre o
quantum necessário à preservação da confiança na validade das normas
e no ordenamento legal geral para protecção dos bens jurídicos (174).
(173)
Reconhece-se a fragmentação entre as normas jurídicas e as normas morais
na tutela de bens, atendendo aquelas à realidade prática e estas ao universo humano
interior.
(174)
TAIPA DE CARVALHO, loc. cit., § 21, anota a confusão que tem existido a este
propósito, a qual tem perturbado as actuais posições sobre os «fins da pena»: «ora, uns
falam em «fim de estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade
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Cap. IX — Especiais dificuldades do «modelo de prevenção»
157
E se já é difícil descobrir o verdadeiro sentido da lei, nomeadamente quando a sua «confecção» passou por órgãos colectivos e os seus
preceitos são incompletos ou equívocos, perguntar-se-á que arrimo irá
buscar o Julgador para fixar a pena que satisfaça as expectativas comunitárias na validade da norma e que restaure o sentimento de confiança
no ordenamento jurídico. Como se o abalo das expectativas fosse
passível de ser medido por uma espécie de sismógrafo de que o Julgador estivesse munido quando ditasse a sentença.
§ 104. Releve-se, a este propósito, a extensão da transcrição
seguinte (175): «… a opinião pública tantas vezes reage de forma emotiva e nem sempre racional, ou está sujeita a flutuações constantes (tão
depressa é sensível à gravidade de determinados crimes e exige condenações desproporcionalmente severas, como passa a ser sensível
aos excessos repressivos da actuação policial e judicial). A maior ou
menor sensibilidade perante a gravidade de cada um dos crimes
também nem sempre reflecte padrões objectivos… Deverá o juiz
guiar-se por esta tão volátil e incerta concepção do sentimento jurídico
colectivo? Neste desvio relativista não haverá sempre perigos de
sacrifício de princípios racionais e objectivos de igualdade e proporcionalidade?
da norma violada» (p. ex., Jakobs, o autor que introduziu ou, pelo menos, maior influência teve na introdução desta categoria no discurso do «fim das penas»); já outros atribuem a tal categoria da prevenção geral de integração a função de «tutela necessária
dos bens jurídico-penais no caso concreto» (p. ex., Figueiredo Dias); como ainda outros
a definem como fim de interiorização, pelos membros da comunidade, da relevância
fundamental do bem jurídico lesado, para a vivência social e para a realização pessoal».
Este Autor entende que «o fim do direito criminal-penal… é o de protecção dos bens
jurídico-penais».
(175)
PEDRO VAZ PATTO, loc. cit., pp. 402/03, na sequência de MARIA FERNANDA
PALMA, «As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal… loc. cit.,
pp. 40/41. Na verdade, já dizia esta Professora: «Em síntese, a prevenção geral positiva
tende a basear-se em dados psicológicos sobre as expectativas sociais e, nesse caso,
dificilmente deixa de instrumentalizar à psicologia das multidões a censura do
indivíduo ou, então, pode converter o julgador em arauto de critérios éticos com
o risco da subjectividade na interpretação da consciência ética colectiva» (bold
nosso).
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158
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
«A frequência e visibilidade (hoje cada vez mais intensamente
mediatizada) dos vários tipos de crime podem acentuar as exigências
de prevenção geral positiva, assim entendidas, sem correspondência a
esses critérios racionais e objectivos de igualdade e proporcionalidade.
«Por outro lado, como aferir as expectativas da consciência jurídica
comunitária, sem cair no subjectivismo, na ausência de dados empíricos objectivos? Como interpretar essa consciência? Quem a representa, quando as valorações socialmente vigentes são heterogéneas e
contraditórias? Será que a comunicação social a espelha de forma
fiel? Terá o juiz (para além do legislador, que opera no âmbito da
generalidade e tem legitimidade democrática) legitimidade para se fazer
intérprete dessas exigências (que serão, normalmente, genéricas e não
específicas do caso concreto sujeito à sua apreciação, campo em que a
sua legitimidade já não seria questionável)?» (bold nosso).
Os receios da população
§ 105. Geralmente, há um largo espaço entre os receios da população e o risco de vitimização de certos crimes em determinado
momento.
Por regra, o público mostra uma tendência punitiva imoderada,
preconizando sentenças mais duras, às vezes com apelo à própria pena
de morte. E as indagações apontam para que quanto menos informação
factual houver sobre os casos, mais as pessoas querem penas severas,
na esteira do condicionamento pelo estereótipo de criminosos, suscitado
pela imprensa popular. Preconizar a castração para os violadores (pelos
vistos em vias de ensaio em alguns países) e que as sentenças sejam
cumpridas por completo são disso exemplo.
Num inquérito realizado junto de jurados, a propósito de casos em que
haviam participado, quase um terço (32%) achou que a sentença era como
esperava, cerca de outro terço (32%) não, e o terço restante dividiu-se entre
os que a acharam demasiado severa (14%) ou pouco severa (23%) (176).
Apud ANDREW ASHWORTH et MICHAEL HOUGH, Sentencing and the Climate
of Opinion, in The Criminal Law Review, Nov. 1996, pp. 779/780.
(176)
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Cap. IX — Especiais dificuldades do «modelo de prevenção»
159
Os media e o Tribunal
§ 106. Na verdade, é legítimo perguntar como pode o tribunal
saber o que pensa a comunidade, através dos media.
Raramente os juízes admitem ser influenciados pela opinião pública,
pois dizem rejeitar os media como reflexo verdadeiro dessa opinião,
embora seja conhecido que em alguns países houve aumento da população prisional após crimes muito noticiados. Todavia, dizem estar
atentos à «informed public opinion» ou, como outros preferem, aos
«right-thinking», em regra os peritos ou influentes pensadores em dado
momento, o pensador ideal. No fundo, a constatação de que afinal os
juízes seguem as suas próprias opiniões (177).
Por isso se diz que explicar as sentenças e educar sobre o funcionamento do Poder Judicial serão talvez as melhores maneiras de actuar,
mais do que mudar de orientação por causa dos clamores sociais. Neste
tempo breve em que vivemos, como anota Faria Costa (178), «… uma
época que … parece querer confundir o delinquente com a vítima ou
fazer desta o próprio delinquente» … «… uma época que quer o direito,
não como valor e dimensão onto-antropológica do nosso modo-de-ser
individual e colectivo…», o julgamento dos média tem a «dimensão
medieval do pelourinho…».
A maioria dos não condenados
§ 107. Um outro ângulo pode ainda ser evidenciado.
Como é sabido, e pelas mais diversas razões, apenas uma percentagem dos crimes cometidos são objecto de participação, e uma percentagem ainda menor de delinquentes são condenados (diz-se num estudo
norte-americano que só um infractor sobre trinta é condenado).
Mas se é assim — ainda que se admita a fluidez dos números, não
haverá dúvida sobre a validade da constatação empírica —, será sobre
esses poucos que vão ser condenados que a comunidade dos cidadãos
ANDREW ASHWORTH et MICHAEL HOUGH, loc. cit., pp. 783/84.
«Apontamentos para umas reflexões mínimas e tempestivas sobre o direitopenal de hoje», RLJ, Ano 139.º, N.º 3958, p. 48.
(177)
(178)
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160
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
concentra todas as suas expectativas e confiança na validade das normas,
sendo então provável que as penas a aplicar se mostrem desejavelmente
mais severas pois só dessa maneira a comunidade retirará o sentimento
de que o ordenamento jurídico se deve manter eficaz. O que saltará
aos olhos como injusto na medida em que, por simples álea, alguém é
usado como instrumento e, por outro lado, como inútil instrumento
porquanto continuará fora do sistema toda aquela percentagem dos que
cometem crimes e, por razões que não desaparecerão de um momento
para o outro, não são condenados.
Por outro lado, a mensagem da validade da norma muito provavelmente também não chegará a todos os que cometem crimes e, por um
motivo ou por outro, não são julgados e condenados, despertando antes
o desejo de encontrar escapatórias mais subtis à punição. Basta pensar,
como exemplo, nos gestos de «solidariedade» de alguns condutores de
viaturas que circulam pelas estradas.
Na busca concreta da culpabilidade
§ 108. Na tentativa de detectar a culpabilidade, o Julgador tem
perante si o arguido, que pode prestar declarações relevantes (ou não),
e todos os elementos recolhidos pela investigação e instrução, testados
em julgamento, os quais lhe permitem graduar a intensidade e modalidade da culpa. Porém, o mesmo não sucede com os indícios quanto
a elementos tão fungíveis como as expectativas comunitárias na validade da norma, o sentimento de confiança no ordenamento jurídico.
Isto em termos de praticabilidade, embora não seja esse o único ponto
relevante em causa.
De todo o modo, o que agora se pretende salientar é que tentar
detectar a culpa e o seu grau, ainda assim assume-se como tarefa mais
racional e objectiva de obter do que descobrir o que «pensa» a comunidade sobre o quantum de pena necessário para satisfazer a confiança
nas normas ou a protecção dos bens jurídicos ínsitos, como se considere
mais apropriado (179).
No Relatório Preliminar do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa,
Março de 2002, sobre as «Tendências da Criminalidade e das Sanções Penais na Década
(179)
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Cap. IX — Especiais dificuldades do «modelo de prevenção»
161
E por isso alguns apelam com insistência a que se recolham elementos bastantes, ou cada vez mais, desde a investigação, passando pela
instrução até à audiência de julgamento, sobre o ambiente profissional,
familiar e social, e personalidade do delinquente, a fim de o juiz decidir
com o máximo de certeza e adequação quanto à pena e sua medida (180).
11 — Medida da Pena
§ 109. Enfim, vimos como Roxin ressalta hoje o tópico da reparação (181).
Sem dúvida que a maior atenção dedicada à vítima e à reparação
dos danos sofridos, traz benefícios claros, em particular quanto aos
de 90», um Magistrado considera que a «insegurança dos cidadãos e o aumento da
pequena criminalidade leva a que se difunda na sociedade a defesa de aplicação de
punições mais severas, mesmo para a pequena criminalidade» ficando o julgador entre
o conflito de aplicação de uma pena mais branda — a que mais se aproximará da previsão do legislador e a «exigência» do abalo comunitário, em sentido oposto, acabando
por uma responsabilização aplicada de forma contingente e relativa.
(180)
Nos países da América do Norte já existe uma recolha enorme de elementos
sobre o arguido — cfr. MARION VACHERET, Scientificité, technicisation et mécanisation,
la déresponsabilisation des agents pénaux, Montréal, 5-6-7 décembre 2007, Actes du
colloque international «Le pénal aujourd’hui: pérennité ou mutations», pp. 166 e ss. in
www.erudit.org/livre/penal —, nomeadamente sobre «sa vie quotidienne, ses faits et
gestes, ses fréquentations, son milieu de vie, les différents évènements ayant marquée
son passé… À partir d’entrevues avec des proches, des voisins, l’employeur, les collègues de travail, et dans le but de connaître la personne, les intervenants du système
pénal vont tenter d’acquérir un savoir précis, complet et détaillé du justiciable sous
toutes ses facettes». Afasta-se o recurso ao «julgamento clínico» baseado em percepções
ou meras impressões, e assenta-se a indagação em grelhas onde se inscrevem os factores sobre os quais as avaliações vão incidir, assim como a pontuação a atribuir a cada
um. Critica-se já esta homogeneidade, pois se é certo que leva à uniformidade de
avaliações, também vai resultando em tarefas de carácter quase automático, para os
agentes penais, condicionadas pelos factores que devem obrigatoriamente ser tidos em
conta, a partir de fontes exteriores ao arguido, e assumindo este conhecimento o risco
de se tornar cada vez mais livresco e teórico em detrimento de trocas informais, mais
subjectivas mas também mais ricas. Ocorre aqui reflectir, entre nós, se um certo descrédito que anda ligado às «testemunhas de defesa» não deverá começar a ser recuperado, desde que também o valor do juramento leve à imparcialidade do depoimento.
Todavia, uma mais necessária recolha de dados sobre os arguidos, não poderá cair no
excesso, nomeadamente naqueles que não apresentem uma verdadeira conexão com o
«incidente criminal».
(181)
Aspecto a que voltaremos adiante na Justiça Restaurativa.
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162
Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
pequenos delitos, com enfoque especial na reconciliação entre autor e
vítima; restabelece-se a validade da ordem jurídica de modo claro e «o
autor é forçado a debater-se interiormente com o facto e as suas consequências, a ajudar a vítima por meio de prestações activas e, portanto,
a actuar ele próprio de modo ressocializador».
De qualquer modo — dir-se-á — a restauração dos valores quebrados pela conduta do delinquente, nesta perspectiva, implica a assunção
do erro e da responsabilidade, intimamente ligados à culpa.
Momentos da teoria mista
§ 110. Na sequência do que vimos dizendo, aderimos sem dificuldade à explicitação da teoria mista ou integradora aplicada em momentos diferentes, atrás descrita (§ 51.): a ideia de prevenção geral tem o seu
momento alto quando o legislador escolhe a sanção; a ideia de retribuição
ocupa o primeiro plano aquando da individualização judicial da pena
(gravidade do facto e culpabilidade do seu autor), vindo depois as considerações preventivas especiais ligadas à personalidade do delinquente e
ao prognóstico de reincidência. Neste segundo momento, a prevenção
geral teria uma função residual, evitando-se, porém, que seja tão reduzida
que suponha efeitos contraproducentes para o controlo social.
Não deixa de se assinalar a circunstância e coincidência (segundo
os elementos a que se teve acesso) de a teoria mista ou unitária ser a
seguida pela jurisprudência alemã, acontecendo que a discussão dos
projectos e textos legislativos desse país se encontra em ligação directa
com as fontes mais recentes do direito penal português.
§ 111. Heinz Zipf (182), alude, para a Alemanha, ao triângulo
mágico da determinação da pena, assim resumido: «reconhecimento
do princípio da culpabilidade, orientação da pena, fundamentalmente,
para as exigências da prevenção especial e excepcionalmente limitação
da prevenção especial por pontos de vista da prevenção geral (o que
sucede quando se exige a defesa do ordenamento jurídico)». E para
(182)
Loc. cit., Principios fundamentales de la determinacion de la pena, 1982,
p. 355.
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Cap. IX — Especiais dificuldades do «modelo de prevenção»
163
um sistema caracterizado como «direito penal do facto e do autor»
clarifica: «A determinação da pena não é só a compensação da culpabilidade, senão também um acto de configuração social que persegue
a meta de incorporar o autor na comunidade jurídica e a manutenção
e fortalecimento da fidelidade geral ao Direito». Enquanto os factores
de culpabilidade se referem ao facto, os factores de prevenção referem-se ao autor, podendo apresentar-se como ambivalentes, apontando
em direcções distintas (pela via da culpa ou da prevenção). Por exemplo, «uma má educação opera sob o prisma da culpabilidade como
causa de agravação, enquanto em ordem à prevenção, em particular
do ponto de vista da ressocialização, aponta normalmente para uma
maior necessidade de prevenção». E se os primeiros têm de ser censurados ao autor, já quanto aos segundos quase nunca terá sentido
colocar a questão pois se trata de valorar a personalidade do sujeito
relevante para a pena.
Uma outra ordem na decisão
§ 112. O mais importante, em termos de consequências práticas
numa visão diferente, será o de inverter a ordem actualmente
dominante na jurisprudência, no momento da determinação da medida
(183)
(183)
PEDRO VAZ PATTO, loc. cit., p. 418, aponta para que o modelo de prevenção
na prática não chegaria a resultados muito diferentes do modelo de culpa, uma vez
que naquele «a pena adequada à tutela da confiança e às expectativas da comunidade
na manutenção da ordem violada é, em regra, a pena adequada à gravidade objectiva e
subjectiva de um crime em concreto» ou seja a «aplicação da pena justa». Sendo assim
estaríamos mais uma vez num quase jogo de palavras na medida em que pena justa se
poderá entender como a adaptada à culpa.
Todavia, no final do estudo (p. 420), e perante um elenco de exemplos em que
conflituam «exigências de prevenção geral ou especial (naturalmente a considerar) que
apontariam para uma maior severidade da pena e, por outro lado, um juízo de culpa
atenuado que apontaria para uma menor severidade da pena…, a prevalência há-de ser
dada a esse juízo de culpa, porque … em caso algum a medida da pena pode ultrapassar a medida da culpa. O princípio da dignidade da pessoa humana, e o princípio da
culpa impedem que o agente sirva de instrumento, numa lógica de bode expiatório, para
intimidar e combater a criminalidade através de penas exemplares e desproporcionais
em relação à sua culpa em concreto, como se ele tivesse de «pagar» não só pelo que
fez, mas também pelo que muitos outros impunemente fizeram e fazem».
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Parte I — Fins das penas, culpabilidade, medida
da pena e da escolha, colocando no centro dessa mensuração e escolha
o homem e a sua culpa. E se colocarmos o homem no centro dos acontecimentos, por regra, como já se adiantou, a importância da prevenção
especial precederá a da prevenção geral, deixando-se assim em segundo
plano os sentimentos difusos da sociedade, que forçosamente só relevam
através da visão do intérprete, seja ele o magistrado judicial ou outrem
que ambiciona conhecer o sentido aplicativo da norma.
Para além disso, e agora no campo da prevenção geral, se supusermos
que penas mais graves podem ter um efeito preventivo sobre os cidadãos
(os estudos feitos parece não o demonstrarem), perguntar-se-á qual a racionalidade em fazer com que o condenado tenha de suportar penas mais
elevadas porque isso poderia influenciar e deter um certo grupo de potenciais criminosos (184). Provavelmente, nos casos de grande e justificado
alarme social funcionará então a mera intimidação ou inocuização.
Ao tentarmos perspectivar e descrever o modelo de aplicação prática, porventura conseguiremos melhor clarificar o nosso ponto de
vista.
De qualquer modo, pensamos que esta perspectiva, também seguida
em outros países terá, a nosso ver, a vantagem de descer mais próxima do
valor humano de cada indivíduo condenado, ao mesmo tempo que empresta
ao Julgador uma maior flexibilidade na escolha e determinação da pena,
balanceando o resultado final dentro do senso prático (do bom senso).
(184)
ANDREW VON HIRSCH, Censure and Sanctions, Clarendon Press — Oxford,
1993 (Reimpressão de 2003), pp. 40/42. Este A. parte da teoria de que o sistema se
dirige a um cidadão responsável, enquanto que os utilitaristas têm outro pressuposto:
dirigem-se aos perturbadores ou potenciais perturbadores da paz social. A tese do A.
é de que a prevenção, no sistema penal, se dirige ao cidadão vulgar — por isso que as
penas devam ser mais baixas. Elas devem ser reduzidas ao mínimo, tendo em conta a
censura e, de forma suplementar, a prevenção.
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