O MULTICULTURALISMO E O DIREITO PENAL: UM ESTUDO À

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O MULTICULTURALISMO E O DIREITO PENAL: UM ESTUDO À
Faculdade Cenecista da Ilha do Governador
TeRCi
Artigo Científico
O MULTICULTURALISMO E O DIREITO PENAL: UM ESTUDO
À LUZ DA CULTURAL OFFENSE E DA CULTURAL DEFENSE
Sylvia Chaves Lima Costa
Mestre em Direito Penal, UERJ
Professora da Faculdade Gama e Souza
RESUMO
O presente texto se estrutura em uma perspectiva de
análise teórica do valor fundante de um Direito Penal
Intercultural, mas sempre que este se solidifique sob a
égide dos Direitos Humanos. Faz breve digressão acerca
do multiculturalismo no Direito Penal, analisando
questões acerca da harmonização entre o direito e a
diversidade cultural, tendo por principal foco a seara penal
e, da mesma forma, avalia a discussão em torno da cultural
defense e da cultural offense.
Palavras-chave: direito penal; cultural offense; cultural
defense.
1. Introdução
A intensificação dos movimentos migratórios é uma realidade presente em quase todos
os Estados Nacionais. Tal fato se dá em razão da perspectiva depositada por muitos
indivíduos ou até mesmo povos, de encontrar um território que lhes proporcione condições
favoráveis, de ordem econômica, política e social.
Sob a égide da proteção aos Direitos Humanos, cumpre ao país receptor proporcionar
garantias que permitam aos imigrantes que se encontrem em seus territórios e estejam sujeitos
à sua jurisdição, o exercício de direitos, sem qualquer distinção, seja racial, de sexo,
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linguística, religiosa, política, ou de qualquer outra opinião 1. E, justamente a partir deste
dever, o presente ensaio buscará abordar, ainda que em poucas linhas, como o direito deverá
regular estas situações que passam a emergir.
Notadamente sob a perspectiva penal, pretende-se demonstrar a necessidade de
rechaço à ideia de que este ramo do direito deva ser tão somente guardião da identidade social
do Estado que o legisla, uma vez que fere frontalmente o princípio da isonomia.
A partir de então, adentrar-se-á no estudo das cultural offenses, aprofundado em fins
da década de 30, por Thorsten Sellin, sociólogo americano, da Universidade da Pensilvânia.
Sua teoria observa a criminalidade dos imigrantes através do choque de culturas, um eterno e
pesaroso conflito entre valores de origem e novos, não assimilados, acarretando,
consequentemente, em uma desorientação psicológica, capaz de fazê-lo ignorar qualquer
mecanismo de autocontrole ou preceito legal.
Naturalmente, por se tratar de conjuntura que requer sopesamentos, imprescindível se
tornam as considerações acerca da cultural defense, isto é, da análise de elementos, de ordem
cultural, que motivam o indivíduo a atuar de contrária ao ordenamento jurídico do Estado
estrangeiro em que passa a integrar. Passemos à análise do pluralismo cultural.
2. A ascensão do Pluralismo Cultural
Afirmar hoje que a existência de Estados homogêneos e unitários impera é algo que
nos remete a muitas discussões. Com o advento da globalização, cada vez mais pessoas se
mobilizam de um canto a outro do mundo na busca de melhores oportunidades de vida,
trabalho ou até mesmo segurança, formando assim um dos fenômenos mais complexos da
atualidade. Trata-se do modelo de multiculturalidade, resultante, inclusive, da grande onda de
processos migratórios adotado por uma massa de indivíduos2.
Ferré Olivé (2008: 33) destaca inclusive que, em função desse cenário, é possível falar
do surgimento de uma “nova civilização nômade”, uma vez que não existiria mais a mera
migração de sujeitos individualizados, mas a transladação de famílias ou até povos quase que
completos, formando assim modernas cidades multiétnicas, multiculturais e multireligiosas.
1
Art. 2º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.
Contudo, vale salientar que o fenômeno da multiculturalidade não se restringe apenas a multietnicidade, haja
vista as diferenças culturais não decorrerem tão somente da etnicidade, mas também da diversidade religiosa,
ideológica, social ou econômica (DE MAGLIE, 2012:47).
2
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O resultado desta migração é facilmente perceptível a olhos nus, não só pela
quantidade maciça de estrangeiros pelas ruas, como também pela inserção de novas culturas
presentes em comércios, marketing, meios de comunicação, etc.
Com vistas a compreender a riqueza que envolve o fenômeno cultural, vale destacar as
palavras do antropólogo Americano R. A. Sweder (2001:3153):
One can summarize the standard view by saying that ‘culture’ refers
to community-specific ideas about what is true, good, beautiful, and
efficient. To be ‘cultural’ those ideas about truth, goodness, beauty,
and efficiency must be socially inherited and customary. To be
‘cultural’ those socially inherited and customary ideas must be
embodied and or enacted meanings; they must actually be constitutive
of (and thereby revealed in) a way of life. Alternatively stated, the
standard North American anthropological view of ‘culture’ refers to
what the British philosopher Isaiah Berlin (1976) called ‘goals, values
and pictures of the world’ that are made manifest in the speech, laws,
and routine practices of some self-monitoring and self-perpetuating
group. A cultural account spells out those ‘goals, values, and pictures
of the world.’ A cultural account thus assists us in explaining why, the
members of a particular cultural community say the things they say
and do the things they do to each other with their words and other
actions3.
É por todos sabido que a cultura é de vital importância para a formação do ser
humano, por se tratar de uma dimensão indispensável, fator imprescindível e irrenunciável na
constituição do indivíduo, bem como em sua evolução biológica (BASILE, 2011:347). Por
tal razão, os Estados multiculturais reconhecem a pluralidade presente em seus territórios,
vide as diversas constituições latinoamericanas que ressaltam aspectos de ordem multiétnica e
pluricultural. E, não apenas Constituições, mas diversos instrumentos internacionais exigem
que os Estados respeitem as minorias que neles residam (CARNEVALI, 2007:8). A título de
exemplo, podemos citar o art. 27 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos4
5
eo
Convenio OIT 169 sobre povos indígenas e tribais nos países independentes, de 1989.
3
“Pode-se resumir que o conceito de ‘cultura’ se refere às concessões próprias de uma comunidade específica
sobre o que é verdadeiro, bom, agradável e eficiente (verdadeiro, bom, bonito e eficiente). Para serem ‘culturais’
tais concessões sobre verdade, bondade, beleza devem ser habituais e socialmente herdadas, devendo ser
incorporadas; deve ser realmente constitutiva (e, portanto, emergir em) um modo de vida. Em outras palavras, a
visão predominante entre os antropólogos norte-americanos no campo da ‘cultura’ se refere ao que o filósofo
Inglês Isaiah Berlin (1976) chamado de ‘metas, valores e visões do mundo’ que se manifestam no discurso, no
Direito e na prática cotidiana de um grupo se auto controlar e auto perpetuar. Um relato da cultura que relata
estes ‘objetivos, valores e visões de mundo’. Um manual cultural que nos ajuda, portanto, a explicar por que os
membros de uma determinada comunidade cultural dizem as coisas que dizem, fazem as coisas que fazem, com
outras palavras e com outras ações”. (tradução livre).
4
“Art. 27 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos:
Nos Estados em que existam minorias étnicas, religiosas ou linguísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias
não devem ser privadas do direito de ter, em comum com os outros membros do seu grupo, a sua própria vida
cultural, de professar e de praticar a sua própria religião ou de empregar a sua própria língua.”
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Raúl Carnevali(2007) descreve que os direitos culturais podem ser negativos e
positivos. Segundo o autor, os direitos negativos tem um conteúdo similar aos direitos
individuais de viés liberal, por não comportar a interferência do Estado ou de outros
indivíduos no exercício destes direitos (Ex., a liberdade de associação, de culto, etc.). Em
contrapartida, os direitos positivos supõe a adoção de medidas, por parte do Estado, hábeis a
preservar determinadas culturas como, p. e., a proteção do idioma, como ocorre em Québec
(IBID:11).
Contudo, não basta meramente reconhecer a existência da diversidade, é preciso que
se estabeleçam mecanismos para que esta possa se manifestar, tendo cautela para não
propiciar um favorecimento desigual entre minorias, que poderia vir a desencadear mais
barreiras que “pontes de integração”(IBID:9).
Nos próximos parágrafos, o presente trabalho tentará abordar as principais questões
acerca da harmonização entre o direito e a diversidade cultural, tendo por principal foco a
seara penal.
3. Sociedade multiétnica e o Direito
Não pairam dúvidas entre nós do estreito vínculo entre a cultura e o Direito, ou
melhor, da grande influência da primeira sobre o segundo. Talvez por esse motivo um ato
tolerado em determinada localidade pareça ser repugnante em outra. Podemos ilustrar tal ideia
com um relato descrito no livro História, de Heródoto (2006):
Um dia, Dario, fazendo vir à sua presença alguns Gregos submetidos ao seu
domínio, perguntou-lhes por que soma de dinheiro se decidiriam a comer os
cadáveres de seus pais. Todos declararam que jamais fariam tal coisa,
qualquer que fosse a quantia que lhes oferecessem. Mandou chamar, em
seguida, os Cários, habitantes da Índia, acostumados a comer os pais, e
perguntou-lhes, na presença dos Gregos, quanto queriam para queimar os
pais depois de mortos. Os Indianos, horrorizados com a proposta, pediramlhe para não insistir numa linguagem tão odiosa. Assim, nada mais exato do
que a sentença que encontramos nos versos de Píndaro: A lei é a rainha de
todos os homens.
Muito embora a multiculturalismo seja um fenômeno já conhecido desde o império
Austro-Húngaro, império Russo e Romano, o referido fenômeno passa a ser aprofundado a
5
O Pacto foi adotado pela Resolução n. 2.200-A (XXI) da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 19 de
dezembro de 1966. Passou a vigorar no ano de 1976, alcançando o número de 35 adesões. O Congresso Nacional
o aprovou através do Decreto-Legislativo nº. 226, de 12 de dezembro de 1991.
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partir da evolução de modelos de tolerância da cultura minoritária 6. Nos primados de 900,
surge o Melting pot. Segundo este, a cultura nova seria a consequência da fusão de várias
culturas, “único povo, única nação, única cultura”. Não se admitia o respeito individual às
culturas que naquele território existiam. Entre 1920 e 1960, O Melting pot é substituído pelo
pluralismo cultural. Sob este modelo havia duas versões, minimalista e avançada ou salad
bowl. A primeira consistiu no reconhecimento das diversas etnias, desde que não
prejudicassem o credo americano. A segunda versão tratava do reconhecimento das
diversidades étnicas. Por fim, surge o multiculturalismo (1970 - até os dias atuais), que trata
da valorização e supremacia dos grupos étnicos. Passa-se a enfatizar a diferença (DE
MAGLIE, 2005:184).
Verifica-se que o multiculturalismo trata principalmente da presença, dentro de um
determinado contexto espacial, de diversas culturas associadas principalmente à nação, ou
seja, a coexistência de elementos cognitivos comuns, tais como, a moral, a religião, o direito,
as relações sociais, etc. Por tais razões, fala-se de Estado multicultural, na medida em que
coabitam em um mesmo território culturas associadas a diversas nações, sejam culturas
indígenas, que hoje buscam seu espaço e reconhecimento como, p. e., no Brasil, sejam
sociedades que tenham incorporado novas culturas, em razão de movimentos migratórios
(CARNEVALI, 2007:6).
Partindo do fenômeno do multiculturalismo existente nos Estados Unidos, que a seu
ver seria o berço da diversidade de povos, Cristina de Maglie divide “sociedade heterogênea”
em, ao menos, duas categorias, a saber: Na primeira, a autora define como multiculturalidade
de origem forçada, o resultado da escolha político governamental de conquista de toda a
população que originariamente experimentavam e viviam sobre o território americano (Ex.:
tribos indígenas e alguns grupos de origem mexicana), mas que seriam um obstáculo a
expansão americana, sendo massacrados e submissos. A este se acrescentam a grande massa
de escravos negros, deportados da África que, uma vez inseridos ma sociedade americana,
passaram a sofrer violentas discriminações e pesadas repressões. No que tange a segunda,
Maglie conceitua como multiculturalidade de origem voluntária, resultado das grandes
imigrações, que a partir de fins do século XIX teriam-se inserido na sociedade americana
milhares de pessoas provenientes da Europa, da Ásia e da América do Sul (CARNEVALI,
2007:176).
6
Estes modelos foram fruto de uma evolução ocorrida nos Estados Unidos, exemplo maior de sociedade
heterogênea.
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Muitas das vezes a antinomia entre a homogeneização e a identificação cultural gera
especiais repercussões de ordem criminógena, como a discriminação e o racismo. E não é só,
dessa antinomia cultural o próprio indivíduo pode vir se confundir, vê-se diante de valores
culturais antagônicos, tendo que priorizar apenas um ou sequer imaginar este conflito, agindo
conforme a cultura e leis de seu país de origem.
4. O Direito Penal e o Multiculturalismo
Segundo Ugo Spirito (2011:351) o Código Penal “‘è un po’ il codice morale di una
nazione e vale a caratterizzare la fisionomia spirituale di essa”. Tais palavras expressam a
concepção de que o Direito Penal seria tão somente guardião da identidade da cultura
nacional de seu povo, isto é, estaria impregnado da cultura existente em seu âmbito de
abrangência.
Contudo, a pergunta que surge é: o que ocorre quando um Estado, cujo ordenamento é
impregnado pela cultura local, se transforma em uma sociedade multicultural? A resposta não
pode ser outra que não a relação de conflito.
Podemos verificar claramente que hoje, nos países ocidentais, a ideia do Direito Penal
como guardião de costumes, religiões, opiniões políticas e sociais é obsoleta, e por tal razão,
se existente, passa a ser substituída pela afirmação do princípio da igualdade. Este princípio
tem por finalidade regular a convivência social, favorecendo, indubitavelmente, a afirmação
em chave universalista dos direitos individuais, independentemente de toda diferença, não só
de condição social e de opinião pública, senão também de etnia, língua e religião
(BERNARDI, 2002:28). O Direito e, sobretudo, o Direito Penal, está convocado a propor
soluções, na medida do possível satisfatórias.
O Direito a diversidade tende a permear o mesmo princípio da igualdade, no qual,
como se sabe, de um lado as situações iguais devem ser tratadas de maneira igual, por outro
lado, as situações diversas devem ser tratadas de maneira diversa. Eventuais divergências por
motivos culturais ou religiosos, longe de estar proibidas, devem ser consentidas quando
permitam, pelo já exposto, dar eficácia as aspirações conexas a própria identidade cultural ou
religiosa (IBID, 29).
Tomemos por base, primeiramente, o caso Kymura, que impulsionou a discussão em
torno da cultural defense, julgado pela corte de Los Angeles, Califórnia: No dia 29 de janeiro
de 1985, Fumiko Kymura, cidadã americana nascida e criada no Japão, se joga juntamente
com seus filhos, Kazutaka, de quatro anos, e Yuri, de seis meses, em uma praia de Santa
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Mônica, Los Angeles. Apenas Fumiko sobrevive, graças aos socorristas presentes na praia. A
mãe é imputada por homicídio de primeiro grau. Ao ser interrogada, durante o processo, alega
ter agido em decorrência da infidelidade conjugal de seu esposo. No decorrer da fase de
conhecimento, constatou-se que Kymura vivia completamente isolada da cultura em que
passara a viver (estadounidense). A repercussão do caso chega à comunidade japonesa,
localizada nos Estados Unidos e provoca a assinatura de cerca de 25.000 em uma petição
endereçada ao District Attorney of Los Angeles County, pedindo um tratamento suave no
caso Kymura. Esta solicitação efetuada pela comunidade japonesa se deu em razão do
comportamento da imputada encontrar-se enraizado na cultura japonesa, o chamado oyakoshinju. Este pode ser definido como o suicídio em conjunto de pais e filhos, por entender
serem os filhos a extensão dos pais. Tal ato, embora punido suavemente no Japão, é um modo
não raro de resolver questões intoleráveis. Sendo assim, a petição solicita a aplicação do
Direito Japonês moderno, que trata da oyako-shinju como uma hipótese de homicídio
involuntário, punido com pena mais leve, de reabilitação. Estes fatores culturais e a
repercussão do caso conduziram o Tribunal a condenar Kymura por homicídio, mas com uma
pena substancialmente mais baixa que a solicitada de início (DE MAGLIE, 2012:185;186).
Em Miami, Florida, um imigrante grego, Kostas Metallides, matou seu “melhor
amigo”, ao descobrir que este havia estuprado a filha daquele. O advogado de Kostas, utilizou
argumento de “impulso irresistível” sofrido pelo acusado. Ele construiu um argumento em
torno da idéia cultural de que a “lei do país de origem”, isto é, segundo a sua cultura grega,
“você não espera a ação policial se a sua filha for estuprada” (RENTELN, 2004: 429).
Por fim, e não menos interessante, vale citar o caso de Prosenjit Poddar, membro da
(intocável) casta Harijan. Este frequentava a Escola Pós-Graduação em Arquitetura Naval na
Universidade da Califórnia, em Berkeley. Poddar foi rejeitado por uma mulher 19 anos de
idade, Tanya Tarasoff, com quem ele acreditava que tinha um relacionamento romântico. Por
causa de mal-entendidos culturais, ele estava convencido de que ela estava comprometida
com ele. Depois que ela o rejeitou, ele a matou. No julgamento, o advogado de Poddar buscou
o auxílio de um antropólogo para testemunhar sobre as tensões culturais vivenciadas entre
estudantes indianos, que estudam em universidades americanas, particularmente sobre a
dificuldade de estabelecer relacionamentos, quando os casamentos arranjados são a norma na
Índia. Contudo, o juiz excluiu o depoimento de um antropólogo que teria explicado as tensões
culturais que Poddar sofrera na adaptação da vida como um intocável à vida em uma grande
universidade. Era importante apresentar ao júri seu contexto cultural, afinal qualquer interação
informal mostra-se significativa para alguém cuja cultura sempre foi traçada pela estrita
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separação. Acrescente-se que Poddar era um membro da casta Harijan, os intocáveis, daí a
rejeição ser particularmente dolorosa. Poddar sofria de desorientação cultural e foi
severamente perturbado por suas emoções. O psicólogo clínico, sob cujos cuidados Poddar
estava no momento do homicídio, havia lhe diagnosticado como esquizofrênico, paranóico e
perigoso (IBID:463).
Os supracitados casos têm em comum a realização de comportamentos que integram
uma peculiar ofensa, segundo ordenamentos jurídicos estrangeiros, mas tolerados ou
justificados no sistema de origem dos indivíduos autores do fato. A estas práticas os teóricos
designam como cultural offense.
5. A cultural offense
Em fins da década de 30, Thorsten Sellin (1938) lança seu livro Culture Conflict and
Crime, tendo por objeto a criminalidade dos imigrantes através da análise inovadora da teoria
dos Conflitos Culturais. O teórico passa a definir conflitos culturais como “o resultado natural
de um processo de heterogeneidade social, produzindo uma infinidade de reagrupamentos
sociais, seja por imposição ou circunstâncias da vida, ignorância ou interpretações
equivocadas dos costumes de outro grupo” (SELLIN, 1938:63).
Os conflitos culturais podem ser primários, quando pessoas de culturas diversas se
chocam ou secundários, quando estas divergências culturais se dão entre indivíduos de uma
mesma cultura (IBID:63).
Os conflitos entre os valores de origem e aqueles novos assimilados pode criar um
forte conflito interno, onde o indivíduo vê, ou em alguns momentos não consegue sequer
notar, um novo ordenamento com imperativos ou mensagens culturais diversas da que ele se
encontrava durante grande parte de sua existência.
Partindo dessa conjuntura, Van Broeck (2001:31) define cultural offense como
an act by a member of a minority group or culture, which is considered an
offense by the legal system of the dominant culture. That same act is
nevertheless, within the cultural group of the offender, condoned, accepted
as normal behaviour and approved or even endorsed and promoted in given
situation7.
7
“um comportamento realizado entre membro pertencente a grupo étnico de minoria, que é considerado ofensor
das normas do sistema da cultura dominante. O mesmo comportamento no sistema cultura do agente, ao invés de
condenado, é aceito como comportamento normal, ou é aprovado, ou mesmo defendido e encorajado em
determinadas circunstâncias.” (tradução livre)
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Para constatarmos a existência da cultural offense, primeiramente, é preciso avaliar se
as razões que levaram o indivíduo a cometer o delito foram motivadas por valores inerentes à
formação cultural do indivíduo. A palavra “motivação” não deve significar atividade pura e
simples ou consciência do ilícito, antes deve guardar relação direta com uma norma moral ou
o valor do grupo minoritário. Em outras palavras, as ações e o comportamento do ofensor tem
que estar de acordo com a sua formação (IBID:21;22). Nesta fase não é necessário que o
indivíduo se valha de maneira explícita de determinados símbolos ou manifestações culturais,
basta que estes valores sejam identificados em seu comportamento (DE MAGLIE, 2012:192).
Em segundo lugar é preciso verificar se o indivíduo, ao praticar o ato, não está se
valendo de seu costume apenas como uma justificação posterior, com o fim de atenuar ou
isentar-se da possível pena que lhe poderá ser imputada. Talvez essa fase seja a mais difícil do
processo de identificação da cultural offense, na medida em que é necessário analisar não
apenas a manifestação volitiva do autor do fato, mas também requer o aprofundamento da
cultura minoritária envolvida, através do estudo da origem da conduta praticada na cultura
indivíduo, a sua intensidade, o grau de aprovação ou reprovação pela Justiça do país do qual
seja oriunda, etc.
A última característica hábil a identificar a cultural offense é a existência de um
conflito entre a cultura do grupo ao qual pertence o agente e a existente no país receptor,
personificado através da constatação de tratamentos opostos de uma mesma situação nos dois
sistemas jurídicos envolvidos.
Contudo, uma sociedade, sob atual conjuntura multicultural, não deve simplesmente
aplicar o seu direito interno aos indivíduos, oriundos das mais diversas comunidades
multiétnicas, nela residentes, com base no principio da territorialidade. Deve-se buscar um
tratamento diferenciado na prolação da sentença, considerando os cultural conflicts.
6. A cultural defense
A cultural defense paira sob duas definições, em sentido amplo e em sentido estrito. A
primeira a sustenta que “pessoas socializadas em uma minoria ou de cultura estrangeira, que
regularmente se conduzem de acordo com as normas de sua cultura de origem, não devem ser
plenamente responsabilizadas por condutas que violem a lei oficial, se essa conduta em
conformidade com as prescrições de sua própria cultura” (VAN BROECK, 2001:28;29) O
conceito em sentido estrito, aplicado pela doutrina, entende que deva ser o background
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cultural do arguido utilizado como uma escusa ou atenuante na imputação da prática delitiva 8.
Tal conceito implica o reconhecimento de uma explícita e nova doutrina, no domínio das
escusas penais, de acordo com o grau de influência dos fatores culturais sobre o indivíduo
(VAN BROECK, 2001:29).
Na medida em que as pessoas pensam de maneira diferente, como consequência da sua
socialização, a introdução de elementos de prova cultural para estabelecer o seu estado de
espírito no momento do cometimento de crimes é essencial para o bom funcionamento do
sistema de justiça. A principal tarefa da defesa é demonstrar como a cultura afeta as
percepções de um acusado e seu comportamento9.
Através da consideração do cultural conflict, o autor do fato poderá obter uma
atenuação ou exclusão da responsabilidade penal, através não apenas da prova da ofensa
sofrida pelo bem jurídico, como também da demonstração de que a conduta do imputado é
menos reprovável.
As defenses podem ser de duas categorias: justificação e escusas propriamente ditas
(DE MAGLIE, 2012:192). Segundo Maglie (2012) a essência das justificações reside em
eliminar toda a danosidade social da conduta, isto é, o agente fez aquilo que o ordenamento
pretendia que ele fizesse, naquela circunstância em que se encontrava, seria uma espécie de
pressão externa, constrição. As escusas dizem respeito ao juízo de reprovação pessoal do
ofensor, ou seja, o agente não tinha a liberdade de agir diversamente, uma pressão interna.
Alguns exemplos desta última: erro, doença mental, menoridade, diminuição da capacidade,
impulso irresistível (IBID:195;196).
No tocante, principalmente, a essas últimas, a alegação das defenses se torna mais
significativa, na medida em que em muitos a falta de adaptação a outra cultura passa a se
vincular a traumas mentais. Quando imigrantes e refugiados sofrem grande dificuldade na
adaptação cultural, muitos deles afirmam passar a sofrer transtornos psicológicos
(RENTELN, 2004:426). O caso Kostas e Kymura são alguns destes exemplos. Neste último,
seis psiquiatras atestaram que a Ré sofria de insanidade temporária. Aliada ao elemento
cultural (a prática oyako-shinju), a referida doença mental teria inviabilizado Kymura de
distinguir a sua própria vida e a de seus filhos (IBID:428). Estes fatores culturais e a
8
A cultural defense pode ser apresentada por variadas formas. Contudo, a principal dificuldade desta estratégia é
que a informação cultural tipicamente diz respeito à motivação, não sendo pertinente para os casos em que se
avalia a culpa.
9
Apenas os recém-chegados podem invocá-la, ficando excluídos desta defesa os membros da segunda e terceira
gerações de subculturas. (RENTELN, 2004:465).
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repercussão do caso conduziram o Tribunal a condenar Kymura a apenas um ano de pena
privativa de liberdade10.
O caso Poddar é um exemplo do entrelaçamento entre a cultura e a diminuição da
capacidade. Poddar foi condenado por assassinato em segundo grau e condenado há cinco
anos no centro médico da Califórnia, em Vacaville. Contudo, a condenação foi anulada em
sede de recurso. A reversão não foi baseada na exclusão do depoimento do antropólogo, mas
na falha do juiz para instruir o júri devidamente sobre o sentido da diminuição capacidade.
Apesar de um novo julgamento ordenado, aparentemente, o tribunal concordou para libertá-lo
sob a condição de que ele fosse deportado para a Índia. Assim, a defesa da diminuição da
capacidade ligada à sua formação cultural indiretamente prevaleceu no final. A apresentação
de uma cultural defense, mesmo que seja limitada ou mesmo excluída pelo tribunal, pode ter
efeitos benéficos para o paciente. Ao inseri-lo no contexto de sua cultura, ele se torna mais
humanizado aos olhos do tribunal, do promotor e do júri.
Em que pese a influência cultural nos casos acima elencados, nem todos os crimes
praticados por membros de grupos minoritários serão ofensas culturais, somente aqueles em
que os elementos culturais desempenharam um papel direto e importante na constituição do
delito pode ser qualificado como crimes culturais. E este raciocínio é de grande relevância, na
medida em que apenas nos casos de cultural offense deve-se aplicar a cultural defense.
Para Carnevali (2007) a questão deve ser abordada sob a perspectiva do erro de
proibição, mas, particularmente frente a casos em que o erro se fundamenta, não no mero
desconhecer da norma, mas na ausência de entendimento (CARNEVALI, 2007:27). Trata-se
do que Zaffaroni (2003) define como erro de compreensão. Neste caso, o sujeito não pode
compreender o tipo penal, em razão da internalização um conjunto de valores diferentes,
muitas vezes incompatíveis com a cultura dominante. O conhecimento da norma estaria
dificultado por seu condicionamento cultural e, por esta razão, não seria possível reprovar a
sua incompreensão, daí o erro culturalmente condicionado (ZAFFARONI; ALAGIA;
SLOKAR, 2003:736).
Contudo, vale salientar que a criminal defense precisa ser moldada conforme as
peculiaridades de cada caso. Ao invés de uma afirmação absoluta de que uma criminal
defense possa levar a uma absolvição, deve-se ter em mente que esta defesa está diretamente
10
Kymura foi condenada a um ano de prisão (A pena fora reduzida pelo tempo já cumprido), bem como o
direcionamento a tratamento psiquiátrico.
Disponível em: <http://www.nytimes.com/1985/11/22/us/probation-in-2-drownings.html>. Último acesso em 1º
mar. 2012.
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relacionada com o grau em que o elemento cultural foi importante na causalidade da ofensa, e
que constituiu, portanto, uma criminal offense (VAN BROECK, 2001:30).
Em um sistema sancionador deve-se ter muita cautela ao impor a pena, sob a
justificativa de perseguir uma ressocialização do sujeito. Se mal interpretada, tal concepção
poderia tender a uma espécie de reconversão cultural do autor, coagindo-o a adaptar-se as
regras de uma sociedade prioritariamente centrada na manutenção de uma visão unitária das
tradições, dos modos de vida, de categorias morais (BERNARDI, 2002:36).
Conforme Carnevali (2007) destaca, deve existir o respeito a um mínimo que a
sociedade não poderá renunciar, baseando-se nos direitos fundamentais sob os quais não deve
caber opor argumentos que defendam a prática em decorrência de consensos culturais.
A utilização de uma cultural defense geralmente é objeto de indignação por parte de
muitos ativistas. Alegam que a cultural defense viola frontalmente os Direitos Humanos.
Contudo, Renteln (2004) destaca que esta premissa é falsa, na medida em que o direito à
cultura faz parte dos direitos humanos. E, com base na formulação mais importante do direito
à cultura, prevista no artigo 27 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos 11, cabe
ao Estado a tomar medidas hábeis a garantir a proteção desse direito (RENTELN, 2004:464).
Os Direitos Humanos se baseiam na concepção de uma defesa cultural, na medida em
que a política se baseia em um direito à cultura. O segredo para o êxito da defense dependerá
da demonstração convincente do advogado, ao apontar a cultura como fundamento basilar das
percepções e atuação dos réus. Contudo, não basta a demonstração da influência cultural, é
imprescindível que os magistrados e jurados reconheçam essa manifestação. Se a conduta é
exigida pela cultura, a ponto do réu se encontrar em meio a um dilema (violar a lei do país
receptor ou seu direito consuetudinário), torna-se essencial a utilização da cultural defense
(IBID:464).
É possível imaginar um Direito Penal Intercultural, mas sempre que este se solidifique
sob a égide dos Direitos Humanos. É preciso observar tal limite, tendo em vista que o
reconhecimento de todo e qualquer direito poderia gerar, dentro de um mesmo Estado,
divergências de tratamento entre os indivíduos tão marcadas, que poderiam instigar perigosas
reações de rechaço, até mesmo, sob um plano estritamente jurídico, contrastar com princípios
e valores recebidos de fontes supranacionais ou internas (BERNARDI, 2002:29).
11
“Artigo 27.º Nos Estados em que existam minorias étnicas, religiosas ou linguísticas, as pessoas pertencentes a
essas minorias não devem ser privadas do direito de ter, em comum com os outros membros do seu grupo, a sua
própria vida cultural, de professar e de praticar a sua própria religião ou de empregar a sua própria língua.”
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Na medida em que se esteja frente a um Estado Democrático, que seja tolerante e
respeite os direitos fundamentais, não haverá óbice para recorrer à diversidade cultural e com
isso, o Direito Penal passe a resolver os conflitos mediante as peculiaridades em que se
apresentem.
7. Considerações finais
O presente trabalho teve por escopo suscitar o debate acerca do tratamento penal para
aqueles casos em que envolvam a prática de delitos motivados por influências culturais.
Com a formação de sociedades multiculturais, sob a ótica dos Direitos Humanos,
rompe-se, notadamente nos Estados Ocidentais, a ideia do Direito Penal como guardião de
costumes, religiões, opiniões políticas e sociais passando assim a conferir a tal ramo do direito
o princípio da igualdade como um dos elementos norteadores da elaboração dos tipos penais,
bem como da previsão das penas. Diante disso, buscou-se avaliar, ainda que em poucas
linhas, o estudo das cultural defenses.
Apenas no momento em que o Estado tolere e respeite os valores culturais dos
indivíduos que ali se encontrem, o Direito Penal resolverá os conflitos mediante as
peculiaridades que se apresentem.
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