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IV REUNIÃO EQUATORIAL DE ANTROPOLOGIA XIII REUNIÃO DE ANTROPÓLOGOS DO NORTE E NORDESTE 04 a 07 de agosto de 2013, Fortaleza – CE Grupo de Trabalho: 31 – Trabalho de campo e interfaces entre Ciências Sociais e outros saberes Título do Trabalho: É possível uma etnografia de palavras? Diálogos entre linguagens no estudo dos comunicados zapatistas Júnia Marúsia Trigueiro de Lima [email protected] Universidade Federal de Campina Grande – UFCG Resumo A presente proposta trata de comunicados zapatistas, um dos principais instrumentos de resistência de um movimento indígena do sudeste do México. Tais comunicados ecoaram globalmente e tiveram aceitação por parte de uma gama incalculável de interlocutores devido a seus múltiplos formatos narrativos. Os comunicados zapatistas estudados para esta pesquisa estão configurados em múltiplos formatos narrativos. Eles misturam manifestos, denúncias, histórias, artigos, poesias, análises políticas, literatura, cosmologia, sátira, até mesmo onomatopeias. Um estudo etnográfico das palavras imersas rendeu a análise de construções êmicas que evidenciam um campo latente de diversidade cultural. Trabalhar com tais comunicados implica se valer de diálogos entre outros campos semânticos necessários, devido a certos limites da própria análise antropológica. Com isso me refiro à linguagem poética, que muitas vezes ultrapassa a exigência do dizível e explicável. A eficácia dos comunicados zapatistas está no infinito jogo de metáforas, que nem sempre evocam uma definição tal como os sujeitos estudados pela ciência antropológica. Diante desta configuração, proponho refletir de que forma os diálogos com os saberes relacionados a estudos literários podem contribuir para a existência de uma etnografia de palavras. Introdução O presente artigo é resultado de uma pesquisa sobre o Movimento Zapatista, a princípio caracterizado como uma insurgência armada por direitos indígenas contra políticas governamentais consideradas por eles como excludentes. No entanto, com a reverberação do seu pleito a nível global pela internet e sua aceitação por parte de uma gama incalculável de interlocutores, os zapatistas assumiram novas maneiras de se localizar nessa resistência: passaram a protagonizar uma “guerra de palavras” (Cleaver, 1998:81). Ou seja, a priorizar a divulgação do discurso ao invés da revolução armada. Esses comunicados, escritos e tornados públicos entre os anos de 1994 e 2005 são o meu universo etnográfico. Os mil e sete comunicados zapatistas estudados para esta pesquisa estão configurados em múltiplos formatos narrativos. Eles misturam manifestos, denúncias, histórias, artigos, poesias, análises políticas, literatura, cosmologia, sátira, até mesmo onomatopeias. Eis um campo fértil e latente de diversidade, onde construções de mundo e de si surgem e se rearranjam em maneiras de articular um pleito. Seu potencial analítico, no entanto, ultrapassa os limites da própria antropologia, principalmente se focalizarmos a linguagem poética. No entanto, devo ressaltar que não há formas de separar a poesia da política ou da cosmologia, por exemplo. Creio que tais formatos estão propositadamente imbrincados. Trabalhar com a linguagem poética partindo da perspectiva da antropologia envolve lidar com limites. É característico da antropologia clássica seguir uma linearidade positivista: as pessoas e os eventos devem ser classificados, definidos e explicados. Por outro lado, o mesmo antropólogo que assumiria essa inventiva se chocaria com questionamentos de outra ordem por se deparar com elementos literários que burlam a ordem das coisas sociais: sua eficácia está no infinito jogo de metáforas, que nem sempre evocam uma definição ou explicação tal como os sujeitos estudados pela ciência antropológica. Os comunicados zapatistas, com sua multiplicidade narrativa apresentam um complexo jogo de palavras. No entanto, como trabalhar com vários âmbitos de seus movimentos culturais, desde suas cosmovisões, suas construções morais e normativas até suas noções de poder e do mundo contemporâneo, considerando as vicissitudes dos limites da linguagem antropológica para com o formato poético? Poderíamos tomar de empréstimo algumas metodologias da teoria literária. Entre suas múltiplas correntes, a busca pelo significado se mostra como um direcionamento principal. O que as diferencia é a forma como esta busca é realizada. Uma análise dessa natureza dos comunicados zapatistas envolveria uma série de elementos, que incluem, entre outros: o contexto de onde eles são formulados; o que cada um quer dizer; a intenção do autor que assina os comunicados (Subcomandante Marcos), seu lugar de formação, ou até mesmo a interpretação do leitor 1. Mais do que isso, considerando que a autoria dos escritos também pode ser difusa, seria interessante considerar os atores que estão ou estiveram envolvidos, uma conexão com o mundo contemporâneo e os efeitos da globalização e do neoliberalismo. No entanto, será a busca pelo significado o único meio para entender essas realidades polifônicas? Meus percursos em campo mostraram outro caminho: se relativizarmos a própria necessidade de explicação da linguagem poética, podemos chegar a visões de mundo que emanam dos comunicados. Tais visões de mundo apresentam em suas configurações pedaços de realidade interceptados pela poesia, que deflagram os arranjos entre o que é dito / explicado e o que é ilimitado / indefinido. As categorias êmicas elencadas para essa reflexão lidam diretamente com a falta de definição. No entanto, também são elementos de construção de coletividade: a “dor” e a “dignidade”. A primeira sustenta-se por concepções metafísicas de indígenas Maias. Explica-se não por uma definição ou significado, sequer diretamente pelas causas históricas de violência contra os indígenas do estado de Chiapas, mas pela proposição de partilha. A segunda, além de ser um elemento chave na rede neozapatista de alcance global, tem um lugar central na própria percepção zapatista de humanidade. Este conceito extrapola o contexto dos comunicados e tem a propensão de alcançar o mundo, também porque se constrói como uma alternativa a um mundo (desumano) onde os zapatistas consideram ser dominado pela globalização e o neoliberalismo. O objetivo, portanto, é a linguagem poética como forma de resistência através de construções êmicas e como tais dimensões podem ser analisadas, ainda que com base na antropologia (e seus limites de linguagem). Para tanto, se faz necessária uma descrição desse mundo ao qual adentramos com a leitura dos comunicados. 1- Os mundos das palavras Bourdieu (1996) menciona uma parte que cabe às palavras na construção e na contribuição das coisas sociais. As operações de nomeações e luta de classificações 1 Sustento a ressalva de que as capacidades metodológicas do presente artigo me permitem apenas tatear entre uma ampla e complexa gama de propostas analíticas que partem da teoria literária. permutam representações que têm uma eficácia na construção da realidade. Segundo o autor, “ao estruturar a percepção que os agentes sociais têm do mundo social, a nomeação contribui para constituir a estrutura desse mundo, de uma maneira tanto mais profunda quanto mais amplamente reconhecida (autorizada).” O autor considera a importância da palavra no mundo social por meio de classificação, nomeação e linguagem. A palavra aparece, portanto como um portal para entender um mundo social. No entanto, o portal zapatista vai além disso, porque compreende no signo escrito aparatos que imergem o leitor em mundos cujo caráter real e social confunde-se com o formato figurativo, poético. Imaginem-se percorrendo por entre os ares rarefeitos de uma selva, uma montanha dentro da qual estão vários acampamentos e construções em forma de caracóis. Imaginem-se seguir alguns homens sem rostos, que usam máscaras de esqui, ou como eles chamam “pasamontañas”. Dentre eles está o Viejo Antônio, um sábio conselheiro que sempre conta histórias de surgimento do mundo, dos deuses, das palavras, das cores. A vasta vegetação não impede a passagem da chuva que, segundo o Viejo Antônio, é o choro de nuvens pela partida dos “Deuses Primeiros”. No meio de nossa viagem, cruzamos com um escaravelho (Durito) vestido de cavaleiro andante portando sua espada Excalibur e montado em uma tartaruga chamada Pegaso que segue a caminho do distrito federal enquanto elabora teorias sobre o mundo contemporâneo com base nas críticas à globalização e o neoliberalismo. Ao chegar no caracol mais próximo podemos ver Heriberto e Ana Maria, duas crianças disputando um pacote de chocolates enquanto estão reunidos indígenas Chol, Tzotzil, Tojolabal e Tzetzal para mais uma de suas assembleias. Ali também se encontram o Subcomandante Marcos com seu cachimbo e nariz avantajado, o Comandante Tacho, a Comandante Ramona e militantes de organizações não-governamentais e intelectuais mexicanos e de outros países. Todos os mencionados são alguns personagens desses milhares de discursos. São pessoas, crianças, velhos, animais, deuses, nuvens que têm papéis cruciais nesses mundos que vemos, porque cada palavra que os envolve (sejam adjetivos que os caracterize, as histórias entrelaçadas ou a filosofia e cosmologia que esbanjam) possuem um objetivo: a resistência. Para entendermos esses mundos e o significado das palavras, é preciso percorrer esse caminho, localizado nesse tempo e espaço peculiar. Os comunicados zapatistas têm essa peculiaridade de entrelaçar formas narrativas em prol de algo que quer mostrar, dizer e alcançar. E para isso precisa nos fazer entrar. 2- As vicissitudes da eloquência literária Ao adentrar nesse mundo, percebi que os comunicados zapatistas possuem em diversas maneiras de narrar uma estrutura argumentativa. Conforme já foi mencionado, tais comunicados perpassam por manifestos, denúncias e reivindicações por meio da linguagem poética. Daí nos deparamos com as dificuldades de lidar com esse formato de escrita peculiar: como articular textos que misturam formas de narrar a uma análise antropológica? Na antropologia clássica não encontramos muitos autores que assumidamente fundamentaram suas análises em literatura. No clássico O Crisântemo e a Espada (1946), Ruth Benedict, impossibilitada de ir ao Japão, baseou sua etnografia em uma série de outros campos, que perpassam a literatura, o cinema e os campos de concentração nos Estados Unidos. Também foi lançado um manual organizado por Mead e Métraux intitulado The Study of Culture at a Distance (1953) que cede espaço à literatura oral e escrita. Nessa sessão, vemos análises antropológicas da literatura chinesa e russa/soviética. No entanto, tal como ocorreu com o audiovisual na mesma época, eram apenas instrumentos para alcançar uma “realidade social”. Ou seja, a construção literária não era problematizada por si, mas apenas um meio para se chegar a construções de mundo da sociedade de onde foi produzida. Como vimos, esse não é o caso do presente estudo, que pretende tomar os comunicados zapatistas como construtores de realidades por si, mais do que um mecanismo que mostra como os indígenas maias são, pensam e agem. Apesar de considerar que os vínculos de realidade não podem ser entendidos como desconectados de seu contexto, os escritos não só não substituem a vivência como ultrapassam suas fronteiras. Segundo Leyva Solano (1999) são diferentes esferas de “produção simbólica e prática política” (a dos comunicados e a coloquial). Para analisar essa esfera, talvez possamos tomar de empréstimo alguns pressupostos da teoria literária. São inúmeras e variadas as correntes analíticas advindas da moderna teoria literária. Vão desde uma reconstrução contextual a análises marxistas, feministas, psicanalíticas ou pós-coloniais. Dar conta das mais variadas metodologias dessas escolas teóricas e incorporá-las a sua melhor maneira ao presente estudo torna-se inviável para uma antropóloga que não tem formação em literatura. Nesse caso, resta-me tatear timidamente algumas perspectivas introdutórias e refletir sobre a minha experiência etnográfica. Segundo Culler (2000), a moderna crítica literária utiliza uma perspectiva hermenêutica de análise, que busca o significado dos escritos com a prerrogativa de interpretá-los da melhor forma. O autor afirma ser uma prática recorrente no direito (as leis) e na religião (a bíblia). Essa forma de análise gera uma série de especulações sobre maneiras de chegar ao significado, tais como: a intenção do autor (“inner intention”), o que ele quis dizer, sua história e conjuntura pessoal; o que o próprio texto diz (incluindo estética e jogo de metáforas); o contexto de sua composição e o que o leitor interpreta, dentro ou fora desse contexto. Com base na hermenêutica, vemos ser possível uma série infinita de análises possíveis, que não saem do ramo da especulação sobre o significado. No entanto, quando aplicamos tal metodologia a alguns dos escritos zapatistas, nos prendemos numa espécie de loop de elucubrações devido a características do seu formato poético. Martins (2008:10) rompe com duas metodologias utilizadas por muitos dos críticos literários: a primeira é o dever de explicar, “clarear o que o poeta quis dizer”; a segunda é a construção analítica de uma explicação por meio do contexto social e histórico que permeia a produção da obra. Segundo a autora, “a literatura burla o próprio social quando desconsidera os limites da linguagem. Quando desvia, desarticula ou desatende os signos linguísticos, a literatura também constitui sujeitos ilimitados, indefinidos, infinitos”. No presente caso etnográfico, a própria volatilidade com relação ao dito e ao nominável faz da poesia uma linguagem que nem sempre tem pretensões de explicar ou narrar. Considero que os comunicados zapatistas não podem ser tratados nem somente como estandarte político, nem como essencialmente indizível, inominável ou inenarrável. Não devemos esquecer que o discurso existe para dizer e explicar um pleito, demandas de indígenas que se articulam em maneiras de ser e existir no mundo. No entanto, o que percebo com a conjunção das formas narrativas é que existem coisas que são ditas para serem entendidas, e outras para serem sentidas. Um dos os diálogos que me foram marcantes, dentre os que observei, está no comunicado zapatista de 27 de outubro de 1994. Nele, o Subcomandante Marcos repreende duas crianças (Heriberto e Ana María) porque estavam “molestando”2 as formigas: Ana María, después de consultar con el Heriberto, arremete: “No las estaba molestando. Las estaba acariciando”. Yo, que no esperaba una contrarréplica, demoro en encender la pipa, me defiendo ya débilmente: “Eso las hormigas no lo sabían”. Ana María toma la mano al Heriberto y se lo lleva. Al alejarse me dice: “Tú y las hormigas deberían saber que la ternura a veces duele. Ao tratar esta citação, percebo que há coisas que a análise antropológica não dá conta de clarear, nominar ou narrar. Como disse de Martins, são “limites da linguagem”. No caso tratado, existe um “diz sem dizer” que se depara com o meu limite enquanto 2 “Molestar” pode ser traduzido como “incomodar”. antropóloga de comunicar ou analisar. Ainda assim, esse formato narrativo deve ser ressaltado, porque também produz a eficácia discursiva. A solução para um arranjo metodológico para o discurso é justamente evidenciar construções de mundos analisando: as coisas que foram ditas para serem entendidas; o contexto social e político que faz parte de uma construção narrativa; os diálogos entre as visões de mundo que emergem dos comunicados, sugerindo formas de compreensão que apenas este diálogo propicia, ainda que se remetam aos inomináveis. No decorrer dos comunicados encontramos sempre pedaços desses inomináveis, indefiníveis. Muitas vezes atingem o limiar das perguntas sem respostas, mas outras vezes é justo nessa poética sem pretensões de ancorar os signos linguísticos a uma linearidade positivista (tal qual o discurso científico) que estão os fios condutores das questões mais cruciais. Este foi mais um dos exemplos propiciados pela multiplicidade de maneiras de narrar alinhavadas pelo propósito da resistência. O exemplo assegura que este campo etnográfico exigiu um constante exercício de desconstrução e diálogo. Tal exercício propiciou a análise de um elemento cuja definição ou comunicabilidade extrapola a linearidade, ao mesmo tempo em que alcança e se forma como coletividade. 3- A dor e o coletivo O instrumental analítico que acredito se aproximar mais das dimensões zapatistas de dor exploradas nos comunicados está no exemplo de Veena Das (1995). A autora analisa eventos críticos e processos de silenciamento no corpo e na memória na Índia. Segundo Das (1995, p. 177), o paradigma da antropologia para pensar a dor envolve uma “realidade socialmente construída”, que “reproduz um domínio moral”. Nesse sentido, formula e molda em uma comunidade moral a integração de seus indivíduos. No entanto, a autora considera tal perspectiva insuficiente, porque não supre os questionamentos acerca de duas características: a comunicabilidade e a inalienabilidade da dor: When we talk about the communicability of pain, we ask weather it is possible to communicate one's experience of pain to another person. In other words, is knowledge of private objects such as pain only possible for the individual subject, or it is communicable? The second question, about the inalienability of pain, is to ask what it mens to “have”a pain. These two aspects, manely knowledge of pain and possession of pain, open the way in which we might formulate our discussion. Utilizando Wittgenstein como referência, a autora declara que não é possível transmitir a sensação da dor pela frase “estou com dor”. No entanto, ela pode ser comunicada a partir do momento que ultrapassar o corpo individual alcança outros corpos. A conexão da dor com o outro é a chave para que a experiência coletiva do sofrimento pode ser alcançada na construção de uma comunidade moral. Uma das peculiaridades que vemos no campo dos comunicados zapatistas é que a dor também não é comunicada pelas simples frase: “estamos com dor”. O que intento mostrar é que seu formato poético permite ultrapassar as próprias palavras e mesmo sem dizer, constrói uma conexão de sua dor com os outros, formando assim coletividades. Se olharmos para a conjuntura dos indígenas Maias de Chiapas podemos vislumbrar uma série de eventos que poderiam ser considerados como causa de sofrimento entre os zapatistas. A histórica situação de marginalização provocada pela economia neoliberal assumida pelo governo mexicano; o estado de esquecimento dos direitos dos povos indígenas; a permanente presença do exército nacional na região desde o levante zapatista que traz consigo um terror cotidiano; a expropriação dos habitantes de Guadalupe Tepeyac, uma das primeiras comunidades autônomas conhecidas como Aguascalientes; a rejeição oficial no cumprimento dos Acordos de San Andrés; o Massacre de Acteal, que resultou na morte de quarenta e cinco indígenas, em sua maioria de mulheres e crianças; a dor da morte. A seleção de exemplos ainda pode seguir por muitas linhas. No entanto, a apresentação de como a dor é sentida discursivamente ultrapassa o acesso direto a causas e envolve construções de mundo. Para entender como este processo é refletido no discurso, lanço mão de um conto de Viejo Antonio, intitulado “La Historia de las nubes y la lluvia”.(Comunicado Zapatista, 02/11/1994) Segundo ele, os “Deuses Primeiros” tiveram que morrer para que houvesse luz e verdade na terra e nas pessoas. Antes disso, eles sonharam sobre si mesmos para existirem mesmo depois de morrer. Desses sonhos surgiram as nuvens. Uma grande dor sucumbiu no mundo inteiro, na água, na terra, que ficou seca. Essa dor percorreu as montanhas e despertou as nuvens. Ao ver o mundo secar de tanta dor, as nuvens se juntaram para tentar resolver o problema. No entanto, as nuvens começaram a se debater e guerrear. Uma das nuvens, lembrando da morte dos deuses primeiros de dor fez água: El dolor se le hizo agua y una lágrima se lloró la nube séptima, porque siete fueron los dioses primeros y siete sus sueños. Y ese dolor que lágrima era habló fuerte entre la gran disputa de las nubes peleoneras y dijo «Mientras ustedes pelean yo me voy a aliviar con mi dolor el dolor de la tierra». [...] Pero la lágrima dolor que dolía en el sueño séptimo repitió «Me voy a aliviar con mi dolor el dolor de la tierra» y se aventó montaña abajo, para que su húmedo dolor besara con alivio el dolor de la tierra. Otro dolor lágrima se hizo en la nube séptima, y otro más, y muchos dolores muchas lágrimas se hicieron y se iban cayendo detrás de la primera lágrima, del dolor primero. [...] Y viendo que la nube séptima flaca se ponía de tanto dolor que dolían las lágrimas que echaba, las otras seis dejaron pendiente su peleadero y se pusieron también a doler y a lloverse sobre el seco dolor de la tierra. Empezó así a llover y grande fue el dolor que, hecho lágrimas, alivió el dolor que doliendo se dolía en la tierra. Y alivio encontró la tierra en esa lluvia y se curó de tanto dolor, dicen, por la lágrima primera. O contexto em que viviam os zapatistas ao final de 1994 era de intensificação do cerco de tropas federais em seu território. Esse era um indicativo do que viria a ser o governo do recém-eleito presidente Ernesto Zedillo Ponce de León. No entanto, não me parece a princípio ser apenas essa uma causa para se entender a história das nuvens. Antes disso, também precisamos vê-la como uma cosmovisão, construção metafísica sobre a origem do universo e como este se apresenta. No caso dos comunicados zapatistas, as histórias que se remetem à origem do mundo ressaltam uma coexistência entre formas de existir e ver o mundo, e manejos de direcionamento político na compreensão do que são os indígenas num processo de luta e resistência. No trecho citado acima, a partilha da dor é a solução para o alívio do mundo. A dor age por meio da conexão com outras até que se molde um coletivo com bases morais. Con viejo dolor y muerte nueva, nuestro corazón les habla para que su corazón de ustedes escuche. Estaba nuestro dolor estando, doliendo estaba. [...] Había quedado atrás, guardado en los días pasados, el fuego que habló por nuestra raza cuando todos eran sordos a la muerte. Otro cauce pedían nuestras lágrimas, perdidas todavía en los arroyos de la montaña. Así hablaban nuestros muertos. Los más viejos aconsejaron entonces mirar adonde el sol camina para preguntar a otros hermanos de raza, de sangre y esperanza, por dónde habría de andar nuestro dolor dolido, nuestro cansado paso. Así hicimos, hermanos. (Comunicado Zapatista: 12/03/1995) Quando o presidente Zedillo tomou posse, passou a tomar medidas extremas contra os zapatistas com a invasão do Exército Federal às comunidades indígenas. Diante do poderio do exército, os zapatistas recuaram para as montanhas, pois militarmente não tinham condições de enfrentar tamanho arsenal. Aguascalientes foi destruída, bem como alguns dos municípios autônomos próximos. Em março de 1995, o governo propôs um diálogo de conciliação através da “Lei para o Diálogo”, onde suspendeu as ordens de prisão e fez recuar o exército federal. O diálogo foi retomado em abril de 1995. Ao mesmo tempo, o governo intensificou a presença militar na região. O trecho mencionado acima, no entanto, fala de uma dor mais antiga. Associada à história das nuvens, essa dor vem da origem do mundo. Mas também pode estar associada a história indígena de esquecimento étnico, de destituição de direitos e da condição marginal a qual se encontram por serem indígenas. São várias as possibilidades de reflexão sob uma perspectiva hermenêutica. Porém, se pararmos de tentar entender qual é o motivo da dor e passarmos a olhar para o que a dor proporciona, mesmo sem significado, podemos visualizar uma construção coletiva. O trecho mencionado “Los más viejos aconsejaron entonces mirar adonde el sol camina para preguntar a otros hermanos de raza, de sangre y esperanza, por dónde habría de andar nuestro dolor dolido, nuestro cansado paso” indica que é por meio da dor que as pessoas se conectam e se agrupam a uma ordem social. 3 – Dignidade John Holloway (1997) é uma das principais referências para se pensar a dignidade no Movimento Zapatista. Para o autor, a centralidade desse conceito faz com que o pensamento revolucionário assuma novos formatos. A revolução passa a se sustentar pelo seu próprio processo, no sentido de que não tem uma meta final, mas que é embasada pela luta em si. Isso se deve à percepção de que, para o autor, a dignidade se sustenta na “luta contra a negação dela mesma” 3. As dimensões que emanam dessa lógica de ser (in)definida pela subversão à sua própria negação, caracterizam o movimento como uma revolta contra o classificar, delimitar. Este termo, segundo Holloway, trespassa a clássica “luta de classes” e constrói-se como um elemento de apelo à “sociedade civil”, ao invés do proletariado. No entanto, a dignidade ainda existe como um conceito de classe, na medida em que se sustenta por antagonismo. Concordo com Holloway no sentido de indefinível por essência da dignidade para os zapatistas. No entanto, opto por outra via para compreendermos o termo dentro do processo de resistência nos seus discursos: e se além de pensar na dignidade como um conceito em si, passássemos a encará-la como um vocativo? Mais especificamente, um vocativo de humanidade. Para auxiliar neste direcionamento, trago à tona dois questionamentos que se sobressaem dos comunicados analisados. O primeiro refere-se a sua comunicabilidade. Durito4 (um dos mais carismáticos personagens dos escritos zapatistas), no comunicado de dezembro de 1996, denominado Abecedário dos escarabajos, afirma que 3 (Ibid, p.8) 4 Durito é um escaravelho intelectual, um viajante quixotesco. Le Bot (1997, p. 357) pensa o Durito como um meio de trazer um formato narrativo diferente, que tanto “insere conceitos complexos como o neoliberalismo em termos cotidianos”, quanto é utilizado para retrabalhar teorias científicas, sociais, históricas e econômicas. "La dignidad no se entiende" [...] "La dignidad se vive, la dignidad se muere". Algo que se traduz apenas pela experiência (se vive ou se morre), mas que não é compreensível nos traz o questionamento acerca de sua comunicabilidade. Podemos voltar a uma referência mencionada na sessão anterior, na reflexão sobre a dor elaborada por Veena Das (1995). Para a autora, a experiência coletiva do sofrimento pode ser alcançada na construção de um domínio moral, por meio do qual só se torna possível através da conexão da dor com o outro. Existe um campo que promove o entendimento da dignidade (como uma experiência indizível) que está justamente no que se pensa (moralmente e ontologicamente) humano. Vejamos a citação a seguir. En este momento en que estamos ahora, nos llevaron al callejón de que la dignidad, que es lo que más vale para nosotros, pese más que estar vivos o estar muertos. Que por el problema de la dignidad se vaya otra vez a la guerra o la paz. . (Subcomandante Marcos, 07/12/1994) A dignidade aponta-se nesse caso como algo que em princípio transcende o corpo e complementa-se num status de eternidade, como um valor último de ser. Nesta citação, entendo um processo que perpassa os “vivos” e os “mortos”, vai além do dimensionar pessoas e segue como um princípio que acompanha a história dos que resistem. Ao mesmo tempo, também é incorporada como o ultimato das decisões estratégicas. É mais pela dignidade do que pela segurança dos corpos que optam por manter ou romper o “cessar fogo”, conflito esse que prevaleceu principalmente nos primeiros anos de insurgência zapatista. O segundo questionamento que faço é: quem compartilha desse vocativo? En las pláticas de paz los delegados gubernamentales han confesado que han estudiado mucho qué es eso de la dignidad y que no han podido entenderlo. Piden a los delegados zapatistas que les expliquen qué es la dignidad. Los zapatistas ríen, después de meses de dolor ríen. Sus risas resuenan y se escapan hasta los altos muros en los que la soberbia esconde su miedo. Siguen riendo los delegados zapatistas cuando el encuentro termina, ríen cuando informan a los demás de lo ocurrido. Todos los que escuchan el informe ríen, la risa recompone los rostros que el hambre y el desengaño han endurecido. Ríen los zapatistas en las montañas del sureste mexicano y el cielo no puede menos que contagiarse de esa risa y se suelta a las carcajadas. Tanto ríe el cielo que se le salen las lágrimas y empieza a llover como si la risa fuera un regalo para la tierra seca... (Comunicado Zapatista, 20/06/1995) O comunicado nos permite visualizar que existem fronteiras, desníveis semânticos entre os que compartilham do entender (sem entender) a dignidade e os aqui indicados delegados governamentais, que não percebem sequer o indefinível do termo (a ponto de provocar o riso). A experiência (ou vivência) da dignidade, no entanto, é feita dentro de determinados contextos (“medo”, “fome” e “desengano”), mas não é restrita às pessoas, funciona como uma rede que alcança o cosmo (“céu” e a “terra”). Longe da pretensão de traduzir as metáforas usadas, prefiro pensar que as construções êmicas que emanam no discurso. Os símbolos misturam o que pode ser metafórico, cosmológico e poéticos na partilha do que é considerado humanidade. Durito nesta análise é um ser que compartilha, vivencia e comunica a dignidade por meio de suas análises anti-desumanas. Além do escaravelho, existem também outros personagens que anunciam essa lógica de compartilhar dignidade. No comunicado zapatista de 24 de fevereiro de 1998, está o “Cuento del Sapito Inconforme”, que conta a história de um sapo que queria ser crocodilo. Na busca para descobrir como alcançar seu objetivo, consultou um crocodilo, uma coruja e um leão. Todos disseram que ele não podia ser outra coisa a não ser o que era, um sapo. Muy triste iba el sapito, brinca brincando, porque uno es lo que es y no puede ser otra cosa y porque lo único que puede ser es ser bien lo que uno es. Tristeando en eso que pensaba, llegó el sapito a su charca y rápido fue a buscar al cocodrilo. Cuando llegó al pantano no encontró al cocodrilo. Lo buscó por todos lados y no lo encontró. Le preguntó a los otros animales y éstos le respondieron "¿No sabías? Al cocodrilo lo encontró un cazador y ahora es un par de zapatos y una bolsa de piel de cocodrilo..." El sapito quedó pensando y, cuando todos pensaban que iba a decir que qué bueno que no era cocodrilo y qué bueno que era sapito, exclamó: "¡Eso es trascender el ser animal y no fregaderas!". Y se puso a estudiar y a practicar para ser un buen cocodrilo. Parece que lo hizo bastante bien y logró engañar a un cazador. Este conto me remete a uma perspectiva de incitar a despreocupação em manter nomes, rostos, papéis e funções pré-determinadas. Mais que isso, transcende a proposição de ser animal, pessoa ou objeto. Um sapo pode ser crocodilo; um escaravelho pode ser Dom Quixote; um zapatista pode ser “gay en San Francisco, negro en Sudáfrica, asiático en Europa, chicano en San Isidro, anarquista en España, palestino en Israel, indígena en las calles de San Cristóbal” (Comunicado Zapatista, 28/05/1994). O que importa é que todo esse amontoado sem nome tem a propriedade de alinhavar-se pelo princípio da humanidade, o alcance da dignidade. Existe, contudo, outro processo de resistência por trás dessa aparente fluidez de limites classificatórios: um alicerce para alcançar a coletividade. Neste sentido, também percebemos uma disseminação do discurso para alcançar quem está de fora das fronteiras do estado mexicano, mas que não deixa de compartilhar, vivenciar e comunicar os mesmos contextos da Selva Lacandona. É declarada no discurso zapatista a propriedade de “ser” (não apenas se identificar, ou assemelhar) todas as “minorias do mundo” (Comunicado Zapatista, 28/05/1994). Seria um meio de conceber uma ideia de coletivo, uma rede interligada por um princípio, o que os zapatistas chamam: “a globalização da rebeldia”. Segundo Ribeiro (2006, p. 32) existem processos que misturam informação, capital e pessoas provocados pela globalização que vão além fluxos financeiros associados às medidas neoliberais. São aqueles que associam forças locais que igualmente permeiam as esferas globais de formas diversas. É o caso de conjunturas que se arquitetam em “antiglobalizações”. Para Evans (2000), a globalização contra-hegemônica pode ser especificada por novas comunidades transnacionais que criam um tipo de “globalização desde abaixo”. Globalization from below allows ordinary citizens, especially those from poor countries, to build lives that would not be possible in a more traditional world of bounded nation-states […] they are efforts to constrain the power of global elites, both by pushing for different rules and by building different ideological understandings. (EVANS, 2000, p. 230) No Movimento Zapatista, essa perspectiva tornou-se um estandarte da ação coletiva global. A “Globalização da Rebeldia” localiza-se nos seguintes âmbitos: da oposição à globalização; como um movimento sustentado pelo elo entre vivência, história e memória; como uma proposta de coexistência plural. Os dois questionamentos trabalhados (comunicabilidade e partilha) desviam a análise da dignidade daquele ciclo de negação da negação de Holloway (1998, p. 171). Apesar do termo ser indefinível, não podemos afirmar que se trata de uma “luta contra classificações e definições”. Pelo contrário, o que intento argumentar é que o indefinível da dignidade tem, no movimento de classificar, uma forma de luta. A classificação cria uma esfera na qual se comunica e compartilha o que é eternizado como princípio de humanidade. A dignidade funciona como um vocativo para que a classificação seja bem-sucedido. Prefiro pensar nas classificações propostas como imersas e moldadas por uma luta pelo indefinível e pela coletividade. 4- A linguagem poética na resistência O exemplo da utilização da dor e da dignidade nos mostra que os comunicados zapatistas têm a peculiaridade de dizer coisas e alcançar uma dimensão coletiva em torno da resistência. No entanto, seus formatos narrativos (incluindo o poético) nos mostra que nem sempre as coisas ditas carregam consigo definições ou explicações. Retomando Veena Das (1995) ancorada por Wittgenstein, a sensação da dor não é transmitida apenas pela frase “estou com dor”. Para que a experiência coletiva de sofrimento alcance uma comunidade moral, se faz necessário que se tenha a conexão de dor com o outro. A dignidade não tem definição nos comunicados zapatistas, e nem precisa disso para ter a eficácia da resistência. Ela é percebida e sentida pelo coletivo que a alcança pela experiência/vivência de conexão com o que é entendido ontologicamente como humanidade. Ainda que precisem das palavras para existir nos comunicados, os zapatistas por meio da poética burlam as evidências das coisas ditas, definidas e explicadas para dar acesso a coisas que são sentidas e partilhadas. Referências Bibliográficas BENEDICT, Ruth. O Crisântemo e a Espada: padrões da cultura japonesa. São Paulo: Perspectiva, 2009. BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: EDUSP, 1996. CLEAVER, Harry. The Zapatistas and the Electronic Fabric of Struggle Em: Holloway, John; PELAEZ, e.(org.), Zapatista! Reinventing Revolution in Mexico, London, Pluto Press, 1998. CULLER, Jonathan. Literary Theory: A very short introduction. Oxford, Oxford University press, 2000. DAS, Veena. Critical Events: An anthropological Perspective on Contemporary India. Oxford University Press, 1995. EVANS, Peter. 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Other Globalizations. Alter-Native Transnational Processes and Agents. Série Antropologia nº389, Brasília, 2006.
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