a reforma do código de processo penal
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a reforma do código de processo penal
Número 11 – fevereiro de 2002 – Salvador – Bahia – Brasil A REFORMA DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL Prof. Rômulo de Andrade Moreira Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS. Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais do Ministério Público da Bahia. Membro da Associação Internacional de Direito Penal, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais SUMÁRIO: I. Introdução. II. A Comissão e os Anteprojetos. III. O atual Código de Processo Penal. IV. A finalidade da reforma. V. As reformas processuais na América Latina. VI. A Investigação Criminal: Projeto de Lei 4209/01. VII. Prisão, medidas cautelares e liberdade. Projeto n° 4208/01. VIII. Suspensão do Processo/Procedimentos. Projeto de Lei 4207/01. IX. Provas. Projeto de Lei 4205/01. X. Interrogatório/Defesa Legítima. Projeto de Lei 4204/01. XI. Recursos e Ações de Impugnação. Projeto de Lei n° 4206/01. I. INTRODUÇÃO Neste trabalho, iremos analisar as principais modificações a serem introduzidas em nosso sistema processual penal, acaso aprovados os respectivos projetos de lei, furtando-nos a comentar, apenas, as mudanças previstas para o procedimento no Tribunal do Júri, tendo em vista as peculiaridades do tema. II. A COMISSÃO E OS ANTEPROJETOS O então Ministro da Justiça, Dr. José Carlos Dias, ao assumir o Ministério, editou o Aviso nº. 1.151/99, convidando o Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP, do qual somos membros, a apresentar uma proposta de reforma do nosso Código de Processo Penal. Este mesmo Ministro, agora por via da Portaria nº. 61/00 constituiu uma Comissão para o trabalho de reforma, tendo como membros os juristas Ada Pellegrini Grinover (Presidente), Petrônio Calmon Filho (Secretário), Antônio Magalhães Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes, Luiz Flávio Gomes, Miguel Reale Júnior, Nilzardo Carneiro Leão, René Ariel Dotti (que mais tarde saiu, sendo substituído por Rui Stoco), Rogério Lauria Tucci e Sidnei Beneti. Com a inesperada e lamentável saída do Ministro Dias o novo titular da Pasta, Dr. José Gregori, pela Portaria nº. 371/00 confirmou a Comissão anteriormente formada, com a substituição já referida. Ao final dos trabalhos, a Comissão de juristas entregou ao Ministério da Justiça, no dia 06 de dezembro de 2000, sete anteprojetos (todos acompanhados de uma exposição de motivos) que, por sua vez, originaram os seguintes projetos de lei: 1º.) Projeto de lei nº. 4.209/01: investigação criminal; 2º.) Projeto de lei nº. 4.207/01: suspensão do processo/procedimentos; 3º.) Projeto de lei nº. 4.205/01: provas; 4º.) Projeto de lei nº. 4.204/01: interrogatório/defesa legítima; 5º.) Projeto de lei nº. 4.208/01: prisão/medidas cautelares e liberdade; 6º.) Projeto de lei nº. 4.203/01: júri (a respeito do qual não vamos discorrer pelo motivo já revelado); 7º.) Projeto de lei nº. 4.206/01: recursos e ações de impugnação. III. O ATUAL CÓDIGO DE PROCESSO PENAL O nosso Código de Processo Penal é do ano de 1941 e ao longo desse período poucas alterações sofreu em que pese serem evidentes as mudanças sociais ocorridas no País e tendo em vista a nova ordem constitucional vigente. O seu surgimento, em pleno Estado-Novo1, traduziu de certa forma a ideologia de então, mesmo porque “las leyes son e deben ser la expresión más exacta de las necesidades actuales del pueblo, habida consideración del conjunto de las contingencias históricas, en medio de las cuales fueron promulgadas” (grifo nosso).2 À época tínhamos em cada Estado da Federação um Código de Processo Penal, pois desde a Constituição Republicana a unidade do sistema 1 Período que abrange parte do governo de Getúlio Vargas (1937 – 1945) que encomendou ao jurista Francisco Campos uma nova Constituição, extra-parlamentar, revogando a então Constituição legitimamente outorgada ao País por uma Assembléia Nacional Constituinte (1934). 2 Fiore, Pascuale, De la Irretroactividad e Interpretación de las Leyes, Madri: Reus, 1927, p. 579 (tradução do italiano para o espanhol de Enrique Aguilera de Paz). 2 processual penal brasileiro fora cindida, cabendo a cada Estado da Federação a competência para legislar sobre processo, civil e penal, além da sua organização judiciária. Como notara o mestre Frederico Marques, “o golpe dado na unidade processual não trouxe vantagem alguma para nossas instituições jurídicas; ao contrário, essa fragmentação contribuiu para que se estabelecesse acentuada diversidade de sistemas, o que, sem dúvida alguma, prejudicou a aplicação da lei penal.”3 Até que em 03 de outubro de 1941 promulgou-se o Decreto-Lei nº. 3.689, entrando em vigor a partir de 1º. de janeiro do ano seguinte. Para resolver principalmente questões de direito intertemporal, promulgou-se o Decreto-Lei nº. 3.931/41, a Lei de Introdução ao Código de Processo Penal. Este Código, elaborado, portanto, sob a égide e “os influxos autoritários do Estado Novo”, decididamente não é, como já não era “um estatuto moderno, à altura das reais necessidades de nossa Justiça Criminal”, como dizia Frederico Marques. Segundo o genial mestre paulista, “continuamos presos, na esfera do processo penal, aos arcaicos princípios procedimentalistas do sistema escrito (...) O resultado de trabalho legislativo tão defeituoso e arcaico está na crise tremenda por que atravessa hoje a Justiça Criminal, em todos os Estados Brasileiros. (...) A exemplo do que se fizera na Itália fascista, esqueceram os nossos legisladores do papel relevante das formas procedimentais no processo penal e, sob o pretexto de por cobro a formalismos prejudiciais, estruturou as nulidades sob princípios não condizentes com as garantias necessárias ao acusado, além de o ter feito com um lamentável confusionismo e absoluta falta de técnica.”4 Assim, se o velho Código de Processo Penal teve a vantagem de proporcionar a homogeneidade do processo penal brasileiro, trouxe consigo, até por questões político/históricas, o ranço de um regime totalitário e contaminado pelo fascismo, ao contrário do que escreveu na exposição de motivos o Dr. Francisco Campos, in verbis: “Se ele (o Código) não transige com as sistemáticas restrições ao poder público, não o inspira, entretanto, o espírito de um incondicional autoritarismo do Estado ou de uma sistemática prevenção contra os direitos e garantias individuais.” É bem verdade que ao longo dos seus sessenta anos de existência algumas mudanças pontuais foram marcantes e alvissareiras como, por exemplo, o fim da prisão preventiva obrigatória (Leis de nºs. 5.349/67, 8.884/94, 6.416/77 e 5.349/67), a impossibilidade de julgamento do réu revel citado por edital que não constituiu advogado (Lei nº. 9.271/96), a revogação do seu art. 35, segundo o qual a mulher casada não poderia exercer o direito de queixa sem o consentimento do marido, salvo quando estivesse separada dele ou quando a queixa contra ele se dirigisse (Lei nº. 9.520/97); modificações 3 Marques, José Frederico, Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1998, p. 104. 4 Ob. cit. p. 108. 3 no que concerne à prova pericial (Lei nº. 8.862/94); a possibilidade de apelar sem a necessidade de recolhimento prévio à prisão (Lei nº. 5.941/73); a revogação dos artigos atinentes ao recurso extraordinário (Lei nº. 3.396/58), etc. Por outro lado, leis extravagantes procuraram aperfeiçoar o nosso sistema processual penal, podendo citar, verbi gratia, as que instituíram os Juizados Especiais Criminais (Leis nºs. 9.099/95 e 10.259/01), e que constituem, indiscutivelmente, o maior avanço já produzido em nosso sistema jurídico processual, desde a edição do Código de 1941. Há, ainda, a que disciplinou a identificação criminal (Lei nº. 10.054/00), a proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas (Lei nº. 9.807/99), a que possibilitou a utilização de sistema de transmissão de dados para a prática de atos processuais (Lei nº. 9.800/99), a lei de interceptações telefônicas (Lei nº. 9.296/96), a Lei nº 8.038/90 que disciplina os procedimentos nos Tribunais, e tantas outras, algumas das quais, é bem verdade, de duvidosa constitucionalidade. IV. A FINALIDADE DA REFORMA Pois bem. Este é o quadro atual. Além de algumas alterações pontuais, seja no próprio texto consolidado, seja por intermédio de leis esparsas, nada mais foi feito para modernizar o nosso diploma processual penal, mesmo após a nova ordem constitucional consagrada pela promulgação da Carta Política de 1988. E, assim, o atual código continua com os vícios de seis décadas, maculando em muitos dispositivos o sistema acusatório, não tutelando satisfatoriamente direitos e garantias fundamentais do acusado (vide o seu art. 594, a título de exemplo), olvidando-se da vítima, refém de um excessivo formalismo (que chega a lembrar o velho procedimentalismo), assistemático e confuso em alguns dos seus títulos e capítulos (bastando citar a disciplina das nulidades5). Destarte, podemos apontar como finalidades precípuas desta reforma que ora se avizinha a modernização do velho código e a sua adaptação ao modelo acusatório, com os seus consectários lógicos, tais como a distinção nítida entre o julgador, o acusador e o acusado, a publicidade, a oralidade, o contraditório, etc. A propósito, sobre o sistema acusatório, assim escreveu Vitu: 5 Comentando a respeito do Título que trata das nulidades no processo penal, Frederico Marques advertia que “não primou pela clareza o legislador pátrio, ao disciplinar o problema das nulidades processuais penais, pois os respectivos artigos estão prenhes de incongruências, repetições e regras obscuras, que tornam difícil a sistematização coerente de tão importante instituto. (...) Ainda aqui, dá-nos mostra o CPP dos grandes defeitos de técnica e falta de sistematização que pululam em todos os seus diversos preceitos e normas, tornando bem patente a sua tremenda mediocridade como diploma legislativo” (ob. cit., Vol. II, p. 366/367). 4 “Ce système procédural se retrouve à l’origine des diverses civilisations méditerranéennes et occidentales: en Grèce, à Rome vers la fin de la Republique, dans le droit germanique, à l’époque franque et dans la procédure féodale. “Ce système, qui ne distingue pás la procédure criminelle de la procédure, se caractérise par des traits qu’on retrouve dans les différents pays qui l’ont consacré. “Dans l’organisation de la justice, la procédure accusatoire suppose une complète égalité entre l’accusation et la défense.”6 Ademais, a reforma está mais ou menos consentânea com os princípios estabelecidos pelo Projeto de Código Processual Penal-Tipo para Ibero América, onde encontramos alguns princípios básicos, a saber: 1) “O julgamento e decisão das causas penais será feito por juízes imparciais e independentes dos poderes do Estado, apenas sujeitos à lei.” (art. 2º.). 2) “O imputado ou acusado deve ser tratado como inocente durante o procedimento, até que uma sentença irrecorrível lhe imponha uma pena ou uma medida de segurança.” (art. 3º.). 3) “A dúvida favorece o imputado”. (idem). 4) “É inviolável a defesa no procedimento.” (art. 5º.). V. AS REFORMAS PROCESSUAIS PENAIS NA AMÉRICA LATINA Tais idéias serviram também de base para outras reformas feitas (ou por serem realizadas) em outros países, como a Argentina, Guatemala, Costa Rica, El Salvador, Chile, Venezuela, Bolívia, Paraguai, Honduras, Equador, Itália e Portugal.7 Aliás, “el Derecho procesal penal de los países latinoamericanos, observado como conjunto, ingresó, a partir de la década del’80, en un período de reformas totales, que, para el lector europeo, puede compararse con la transformación que sufrió el Derecho procesal penal de Europa continental durante el siglo XIX. No se trata, así, de modificaciones parciales a un sistema ya adquirido y vigente, sino, por lo contrario, de una modificación del sistema según otra concepción del proceso penal. Descrito sintéticamente, se puede decir que este proceso de reformas consiste en derogar los códigos antiguos, todavía tributarios de los últimos ejemplos de la Inquisición – recibida con la 6 Vitu, André, Procédure Pánale, Paris: Presses Universitaires de France, 1957, p. 13/14. 7 Grinover, Ada Pallegrini, www.direitocriminal.com.br, 15.01.2001. “A reforma do Processo Penal”, in 5 conquista y la colonización del continente -, para sancionar, en más o en menos, leyes procesales penales conformes al Estado de Derecho, con la aspiración de recibir en ellas la elaboración cumplida en la materia durante el siglo XX.”8 Pode-se, portanto, inferir que as reformas processuais penais já levadas a cabo em vários países da América Latina e por virem em tantos outros, são frutos, na verdade, de modificações no sistema político destes países que foram, paulatinamente, saindo de períodos autoritários para regimes democráticos. É como se a redemocratização impulsionasse o sistema processual do tipo inquisitivo para o sistema acusatório. Aliás, é inquestionável a estreita ligação entre o sistema processual penal de um país e o seu sistema político. Um país democrático9 evidentemente deve possuir, até porque a sua Constituição assim o obriga, um Código de Processo Penal que adote o sistema acusatório, eminentemente garantidor. Ao contrário, em um sistema autoritário, o processo penal, a serviço exclusivamente do Poder, olvida os direitos e garantias individuais básicos, privilegiando o sistema inquisitivo, caracterizado, como genialmente escreveu Ferrajoli, por “una confianza tendencialmente ilimitada en la bondad del poder y en su capacidad de alcanzar la verdad”. O sistema inquisitivo, portanto, “confía no sólo la verdad sino también la tutela del inocente a las presuntas virtudes del poder que juzga”.10 Assim, a “uniformidade legislativa latino-americana – na verdade compreendendo agora a comunidade cultural de fala luso-espanhola – apoiada em bases comuns e sem prejuízo das características próprias de cada região, é uma velha aspiração de muitos juristas do nosso continente. Além disso, ela foi o sonho de alguns grandes homens, fundadores de nossos países ou de nossas sociedades políticas. (...) “Em nossos países, geralmente, a justiça penal tem funcionado como uma ‘caixa-preta’, afastada do controle popular e da transparência democrática. O apego aos rituais antigos; As fórmulas inquisitivas, que na cultura universal já constituem curiosidades históricas; a falta de respeito à dignidade humana; a delegação das funções judiciais; o segredo; a falta de imediação; enfim, um 8 Maier, Julio B. J.. e Struensee, Eberhard, Las Reformas Procesales Penales en América Latina, Buenos Aires: Ad-Hoc, 2000, p. 17. 9 Norberto Bobbio assinala, muito a propósito, que “Direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais” , in A Era dos Direitos, Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992, p. 1. 10 Ferrajoli, Luigi, Derecho y Razón, Madrid: Editorial Trotta, 3ª. ed., 1998, p. 604. 6 atraso político e cultural já insuportável, tornam imperioso começar um profundo movimento de reforma em todo o continente.”11 É evidente que o ideal seria uma reforma total, completa que propiciasse uma harmonia absoluta no sistema processual penal. Mas, por outro lado, como sabemos, se assim o fosse as dificuldades que já existem hoje seriam ainda maiores. Preferiu-se, então, uma reforma que se não chega a ser total (o que seria de difícil aprovação, à vista das evidentes dificuldades de natureza legislativa que todos nós conhecemos), também não chega a ser simplesmente pontual, até porque, como esclarece Ada, não incide “apenas sobre alguns dispositivos, mas toma por base institutos processuais inteiros, de forma a remodelá-los completamente, em harmonia com os outros.” Não é, portanto, uma reforma isolada, mas “tópica”.12 Este movimento reformista não se limita à América Latina. Na Europa também se encontram em franco desenvolvimento reformas no sistema processual penal. A título de exemplo, podemos referir a Alemanha, onde “también el Derecho procesal penal há sido modificado en varias ocasiones entre 1997-2000”13, a Itália14 e a Polônia, país que “desde hace 12 años se realizan reformas en la legislación, relacionadas con el cambio de régimen político, económico y social, que tuvo lugar en 1989 y también con la necesidad de adaptar las soluciones jurídicas polacas a las soluciones aceptadas en la Unión Europea. (...) Las reformas de la legislación penal e procesal penal constituyen una parte esencial del ‘movimiento legislativo reformador’, segundo nos informa a Drª. Barbara Kunicka-Michalska, do Instituto de Ciências Jurídicas da Academia de Ciências da Polônia, em Varsóvia.15 VI. INVESTIGAÇÃO CRIMINAL - PROJETO DE LEI nº. 4.209/01 Inicialmente ressaltamos que este foi o único dos projetos de lei não encaminhados desde logo ao Congresso Nacional pelo Presidente da República. À época, comentando a respeito do não envio imediato do projeto ao Parlamento, o Dr. Petrônio Calmon Filho, um dos integrantes da Comissão 11 Exposição de Motivos do Projeto de Código Processual Penal-Tipo para IberoAmérica, com a colaboração dos Professores Ada Pellegrini Grinover e José Carlos Barbosa Moreira, in Revista de Processo, nº. 61, p. 111. 12 Grinover, Ada Pallegrini, www.direitocriminal.com.br, 15.01.2001. “A reforma do Processo Penal”, in 13 Walter, Tonio, Professor da Universidade de Friburgo, in Revista Penal, “Sistemas Penales Comparados”, Salamanca: La Ley, p. 133. 14 Segundo Daniele Negri, da Universidade de Ferrara, “quizá nunca como en estos últimos cinco años había sufrido el procedimiento penal italiano transformaciones tan amplias, numerosas y frecuentes. (...) La finalidad de dotar de eficiencia a la Justicia se ha presentado como la auténtica meta de las innovaciones normativas que se han llevado a cabo en los últimos años (1997-2001).”, in Revista Penal, “Sistemas Penales Comparados”, Salamanca: La Ley, p. 157. 15 Revista Penal, “Sistemas Penales Comparados”, Salamanca: La Ley, p. 164. 7 de Reforma, escreveu, sob o sugestivo título “Reforma do CPP avança e Governo cede ao lobby da Polícia”, o seguinte: “O Presidente da República, atendendo ao lobby das lideranças policiais resolveu reter um dos projetos de lei elaborados pela Comissão de Reforma do Código de Processo Penal, presidida pela Professora Ada Pellegrini Grinover“, exatamente o que tratava da “investigação criminal, que elimina do CPP os ranços da ditadura do ‘estado novo’, quando foi editado o código.” (...) “O Ministro da Justiça analisou os projetos e não elaborou nenhuma modificação, encaminhando-os para o Presidente da República no dia 23 de janeiro. Examinados pela Casa Civil da Presidência da República, os projetos não sofreram nenhuma crítica. Tão somente não levarão adiante o projeto que trata da investigação criminal, permitindo, assim, que continuem em vigor as regras atuais que estabelecem um inquérito burocrático, sem participação efetiva da vítima e com poderes absolutos para a polícia.” (...) “Concluindo, o Presidente da República deve enviar ao Congresso Nacional, ainda nesta semana, apenas 6 dos 7 projetos de lei elaborados pela Comissão Pellegrini, encaminhando, ainda, um projeto simples, apenas com a alteração no art. 295 do CPP. O projeto sobre a investigação criminal fica engavetado. Seu encaminhamento somente será possível se houver pressão de outros setores da sociedade. Do contrário prevalecerá o lobby único que surgiu até o momento, operado por setores reacionários, que pretendem a continuidade do sistema de investigação criminal hoje reinante em nosso pais, como se fosse muito eficiente.”16 De toda forma, o Projeto de lei 4.209/01 está em tramitação no Congresso Nacional e trata de alterar dispositivos do Código de Processo Penal, relativos à investigação criminal, e dá outras providências. Mantém-se o Título II do Livro I, modificando-se apenas a epígrafe nos seguintes termos “DO INQUÉRITO POLICIAL E DO TERMO CIRCUSTANCIADO”, ajustando-se à Lei n. 9.099/95 que estabeleceu os Juizados Especiais Criminais e substituiu, em relação às infrações de menor potencial ofensivo, o inquérito policial pelo termo circunstanciado. Antes, porém, de analisarmos as modificações pretendidas, façamos algumas considerações a respeito do inquérito policial na nossa atual sistemática. Com efeito, o inquérito policial é um procedimento preliminar, extrajudicial e preparatório para a ação penal, sendo por isso considerado como a primeira fase da persecutio criminis (que se completa com a fase em juízo). É instaurado pela polícia judiciária e tem como finalidade a apuração de 16 In www.direitocriminal.com.br, 29/01/2001 8 infração penal e de sua respectiva autoria. No Código de Processo Penal está disciplinado entre os arts. 4º. e 23º. O seu surgimento no Brasil, ao menos com essa denominação, deu-se por meio da Lei n.º 2.033/1871, regulamentada pelo Decreto n.º 4.824, de 22 de dezembro de 1871. Neste Decreto, em seu art. 42, lia-se: “O inquérito policial consiste em todas as diligências necessárias para o descobrimento dos fatos criminosos, de suas circunstâncias e dos seus autores e cúmplices”. Adilson Mehmeri, no entanto, informa-nos que já em 1841 “havia lei disciplinando os trabalhos de investigação policial dos crimes, suas circunstâncias e seus autores”. De fato, naquele ano, a Lei nº. 261, de 03 de dezembro, em seu art. 4º., § 9º. determinava que as autoridades policiais deveriam “remeter, quando julgarem conveniente, todos os dados, provas e esclarecimentos que houverem obtido sobre um delito, com uma exposição do caso e das circunstâncias, aos juízes competentes, a fim de formarem a culpa”. Aliás, este autor, em alentado estudo sobre o instituto, mostra-nos que “desde a remota Antiguidade, sempre houve o processo investigatório para apuração dos delitos, suas circunstâncias e seus autores”.17 Discute-se a respeito da necessidade e importância do inquérito policial, principalmente frente à existência em alguns países do juizado de instrução. Na Exposição de Motivos do atual Código de Processo Penal, o legislador já sinalizava no sentido de sua preferência pela peça investigatória ao dizer: “O preconizado juízo de instrução, que importaria limitar a função da autoridade policial a prender criminosos, averiguar a materialidade dos crimes e indicar testemunhas, só é praticável sob a condição de que as distâncias dentro do seu território de jurisdição sejam fáceis e rapidamente superáveis” (grifos no original). Outra grande dificuldade em se admitir o juízo de instrução é a sua apregoada incompatibilidade com o sistema acusatório, já que naquele procedimento o Juiz instrutor preside a investigação e a formação de culpa, prescindindo da imparcialidade própria da atividade jurisdicional e assumindo uma posição flagrantemente ativa, diferentemente do sistema acusatório onde o Juiz, na instrução, tem uma posição preponderantemente passiva. Como anota Geraldo Prado, “não há razão, dentro do sistema acusatório ou sob a égide do princípio acusatório, que justifique a imersão do juiz nos autos das investigações penais, para avaliar a qualidade do material pesquisado, indicar diligências, dar-se por satisfeito com aquelas já realizadas ou, ainda, interferir na atuação do Ministério Público, em busca da formação da opinio delicti”.18 17 Inquérito Policial - Dinâmica, São Paulo: Saraiva, 1992, p. 03. 18 Sistema Acusatório, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p. 153. 9 Ao enfrentar o assunto, Vicenzo Manzini explica perfeitamente que “i magistrati istruttori, nella giurisdizione comune, compiono una funzione preparatoria attiva: nel che esta una delle principali caratteristiche del processo inquisitorio e del processo misto, in confronto dell’accusatorio, nel quale la funzione del giudice nella istruttoria è passiva, l’istruzione venendo compiuta dalle parti, come nel processo civile”.19 André Vitu, a respeito do Juiz de instrução, escreveu que: “En dehors de sa fonction d’officier de police judiciaire déjà signalée, ce magistrat possède un double rôle: enquêteur et juridiction tout à la fois. Il est d’abord chargè de rassembler les preuves et de constituer le dossier du procès pénal; puis, cette tâche remplie, il statue sur les charges relevées et, s’il y a lieu, renvoie l’inculpé devant la juridiction compétente”.20 Vê-se, portanto, que em França o Juiz instrutor tem também uma função de polícia judiciária, além de exercer a sua jurisdição, ao mesmo tempo. Inicialmente ele é encarregado de reunir as provas e de constituir os autos do processo penal; em seguida, tendo cumprido esta obrigação, ele estabelece os encargos e, se for o caso, envia o culpado ao Juiz competente. Porém, como não adotamos, entre nós, o juízo de instrução esta primeira fase, preparatória/investigatória, fica afastada das autoridades judiciais e a cargo apenas de órgãos administrativos, salvo quanto a determinadas medidas urgentes e de caráter cautelar (prisão provisória, busca e apreensão, etc.) e ao controle de legalidade (conhecimento imediato do auto de prisão em flagrante, por exemplo). Para Borges da Rosa “inquérito policial é o conjunto dos atos praticados pela Polícia acerca de fato reputado criminoso e dos responsáveis pela prática do mesmo. “O inquérito policial se destina a instruir a propositura da ação penal. Deve preceder ou servir de base ao processo repressivo. “O inquérito policial é um processo meramente administrativo, que não está adstrito às fórmulas do Processo em geral; pois tem existência à parte, assim como está a cargo de funcionários especiais”.21 A atribuição para presidir o inquérito policial é do Delegado de Polícia da circunscrição onde se consumou a infração penal (art. 4º., CPP), salvo no caso das chamadas Delegacias de Polícia Especializadas, com atribuições ratione materiae (em Salvador, por exemplo, há a Delegacia de Tóxicos e Entorpecentes, Delegacia de Homicídios, Delegacia das Mulheres, Delegacia de Furtos e Roubos, Delegacia de Estelionato e outras Fraudes, etc). São os Delegados de Polícia, portanto, os funcionários especiais aos quais se referia o mestre gaúcho. 19 Trattato di Procedura Penale Italiana, Torino: Fratelli Bocca, vol. I, 1914, p. 316. 20 Procédure Pénale, Paris: Presses Universitaires de France, 1957, p. 57. 21 Processo Penal Brasileiro, Porto Alegre: Globo, vol. I, 1942, p. 110. 10 Hoje (como amanhã) o inquérito policial não é (e não será) peça indispensável à instauração da ação penal, podendo ser iniciado a partir de outros elementos informativos chegados ao Ministério Público ou ao querelante (em caso de ação penal de iniciativa privada). O atual Código de Processo Penal deixa claro a dispensabilidade desta peça informativa ao prescrever no parágrafo único daquele art. 4º. não ser exclusiva da polícia judiciária a atribuição para apurar infrações penais e a sua autoria, permitindo que outras “autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função” o façam. No mesmo sentido, arts. 12, 39, § 5o. e 46, todos do atual CPP. Pensamos, inclusive, que o próprio Ministério Público possui esta atribuição, nada obstante opiniões em contrário. O certo é que tal atribuição transparece suficientemente possível à luz da Constituição Federal e de textos legais. Com efeito, diz o art. 129 da Constituição Federal que são funções do Ministério Público, dentre outras: “II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia.” (grifo nosso). “VI - expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva.” (grifo nosso). “VIII - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais; “IX - exercer outras funções que lhe sejam conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.” (idem). Como se nota pelo inciso II acima transcrito, a Carta Magna permite que o Ministério Público promova as medidas que sejam necessárias para a garantia dos direitos assegurados por ela própria que não estejam sendo respeitados pelos Poderes Públicos e pelos serviços de relevância pública; assim, por exemplo, quando um agente público, abusando de poder ou de sua autoridade, transgride o direito à liberdade de um cidadão, verbi gratia, prendendo-o ilegalmente, é evidente que permitido será ao parquet, constitucionalmente, “promover medidas necessárias para a garantia do direito à liberdade” desrespeitado pelo agente do Poder Público. Já o inciso VI, refere-se expressamente à expedição de notificações “nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los.” Pergunta-se: para que serviriam tais notificações ou as informações e os documentos requisitados se não fossem para instruir procedimento administrativo investigatório? É evidente que nenhuma lei traz palavras ou disposições inúteis (é regra de hermenêutica), muito menos a Lei Maior. 11 Comentando este inciso, afirma Marcellus Polastri Lima: “Trata-se, à saciedade, de coleta direta de elementos de convicção pelo promotor para elaborar opinio delicti e, se for o caso, oferecimento de denúncia, uma vez que, como já asseverado, não está o membro do Ministério Público adstrito às investigações da Polícia Judiciária, podendo colher provas em seu gabinete ou fora deste, para respaldar a instauração da ação penal. “Portanto, recebendo o promotor notícia de prática delituosa terá o poder-dever de colher os elementos confirmatórios, colhendo declarações e requisitando provas necessárias para formar sua opinio delicti.”22 Que não se diga tratar-se tal procedimento administrativo do inquérito civil preparatório para a ação civil pública, pois desta matéria já cuida o anterior inciso III. Portanto, este outro dispositivo (VI) ao se referir a “procedimentos administrativos” não faz alusão ao inquérito civil (que também é um procedimento administrativo), este já tratado no item anterior; neste mesmo sentido pensa Hugo Nigro Mazzilli, para quem “se os procedimentos administrativos a que se refere este inciso (VI) fossem apenas em matéria cível, teria bastado o inquérito civil de que cuida o inciso III. O inquérito civil nada mais é que uma espécie de procedimento administrativo ministerial. Mas o poder de requisitar informações e diligências não se exaure na esfera cível; atinge também a área destinada a investigações criminais.”23 Já com o inciso VIII surge a seguinte indagação: se se pode o mais (requisitar diligências investigatórias), como não se pode o menos, id est, fazêlas motu proprio. Se não bastassem tais preceitos há ainda o quarto deles consubstanciado no inciso IX, este a permitir o exercício de funções outras que forem atribuídas ao Ministério Público e que sejam compatíveis com suas finalidades: a Lei Federal n.º 8.625/93 concede ao Ministério Público a possibilidade de instaurar procedimentos administrativos investigatórios, como veremos a seguir. Efetivamente, a Lei n.º 8.625/93 (Lei Orgânica da Instituição), no seu art. 26, dispõe caber ao Ministério Público (os grifos são nossos): “I - instaurar inquéritos civis e outras medidas e procedimentos administrativos pertinentes e, para instruí-los: (omissis);” “II - requisitar informações e documentos a entidades privadas, para instruir procedimentos ou processo em que oficie;” “V - praticar atos administrativos executórios, de caráter preparatório;” 22 Ministério Público e Persecução Criminal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997, p. 88. 23 Regime Jurídico do Ministério Público, São Paulo: Saraiva, 1996, p. 239. 12 Comentando este artigo, e mais especificamente o seu inciso V, assim se pronunciou Pedro Roberto Decomain: “Trata-se de todas as providências preliminares que possam ser necessárias ao subseqüente exercício de uma função institucional qualquer. Providências administrativas de âmbito interno poderão ser de rigor para o melhor exercício de alguma função institucional, em determinadas circunstâncias. Por força deste inciso, está o Ministério Público habilitado a tomá-las. Aliás, nem poderia ser diferente. É claro que a Instituição está apta a realizar todas as atividades administrativas que sejam indispensáveis ao bom desempenho de suas funções institucionais. Tal será uma direta conseqüência do princípio de sua autonomia administrativa, que orienta não apenas o funcionamento global da Instituição, mas também a sua atuação em cada caso concreto que represente exercício de suas funções institucionais.” (Grifo nosso).24 Por sua vez, adverte Polastri dirimindo dúvidas: “A exemplo do disposto na CF/88, entendemos que o estabelecido no item I do art. 26 da Lei 8.625/93, refere-se não só aos inquéritos civis, como a quaisquer outros procedimentos, sendo a expressão pertinente atinente a medidas e procedimentos condizentes com as funções do Ministério Público, e não somente aos inquéritos civis, conforme estabelecido no caput do art. 26.”25 Continuando a análise da Lei Orgânica temos no seu art. 27, verbo ad verbum (por nós sublinhado): “Art. 27 - Cabe ao Ministério Público exercer a defesa dos direitos assegurados nas Constituições Federal e Estadual, sempre que se cuidar de garantir-lhe o respeito: “I - pelos poderes estaduais e municipais; “II - pelos órgãos da Administração Pública Estadual ou Municipal, direta ou indireta; “(omissis). “Parágrafo único. No exercício das atribuições a que se refere este artigo, cabe ao Ministério Público, entre outras providências: “I - receber notícias de irregularidades, petições ou reclamações de qualquer natureza, promover as apurações cabíveis que lhes sejam próprias e dar-lhes as soluções adequadas; 24 Comentários à Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, Obra Jurídica Editora, ps. 204/205. 25 Idem, p. 90. 13 “II - zelar pela celeridade e racionalização dos procedimentos administrativos; “(omissis).” Vemos, destarte, que não há dificuldades em se admitir a instauração de procedimentos administrativos investigatórios de natureza criminal no âmbito do próprio Ministério Público, desde que haja a necessidade da apuração de determinado fato que, por sua vez, enquadre-se no leque institucional das atribuições ministeriais. Portanto, não podemos conceber, em que pese a autoridade dos que pensam contrariamente, que se diga ser defeso ao Ministério Público a investigação e a coleta de provas para o processo criminal, pois tal atribuição é permitida perfeitamente, principalmente levando-se em conta a lição doutrinária amplamente conhecida, segundo a qual o inquérito policial é peça prescindível à instauração da ação penal, conclusão esta retirada do próprio Código de Processo Penal, arts. 4°, parágrafo único, 12, 27, 39, § 5º. e 46, § 1º. Com razão afirma Mazzilli: “Tanto na área cível como criminal, admitem-se investigações diretas do órgão titular da ação penal pública do Estado. Para fazê-las, não raro se valerá de notificações e requisições.”26 E, complementa: “Em matéria criminal, as investigações diretas ministeriais constituem exceção ao princípio da apuração das infrações penais pela polícia judiciária; contudo, há casos em que se impõe a investigação direta pelo Ministério Público, e os exemplos mais comuns dizem respeito a crimes praticados por policiais e autoridades.”27 Costuma-se opor ao entendimento acima esposado o art. 144, § 4º. da Constituição Federal, cuja redação diz caber à Polícia Civil a apuração de infração penal, exceto a de natureza militar, ressalvada, também, a competência da União. Ocorre que esta atribuição constitucional não é exclusiva da Polícia Civil, sendo esta a correta interpretação deste dispositivo constitucional. Não se deve interpretar uma norma jurídica isoladamente, mas, ao contrário, deve-se utilizar o método sistemático, segundo o qual cada preceito é parte integrante de um corpo, analisando-se todas as regras em conjunto, a fim de que possamos entender o sentido de cada uma delas. “Não se encontra um princípio isolado, em ciência alguma; acha-se cada um em conexão íntima com outros. O Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em 26 Ob. cit., p. 239. 27 Idem, p. 400. 14 interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio.”28 Aliás, segundo Luiz Alberto Machado “o criminalista ortodoxo pensa e age, sem confessar e até dizendo o contrário, como se coexistissem dois ordenamentos jurídicos: um ordenamento jurídico-criminal e outro ordenamento para as demais ciências jurídicas.”29 Partindo-se desse pressuposto, resta claro que não deu a Constituição exclusividade na apuração de infrações penais apenas a uma Instituição. Observa-se que um outro artigo da mesma Carta (art. 58, § 3º.) dá poderes às Comissões Parlamentares de Inquérito para investigação própria e, adiante, como já demonstrado, concede a mesma prerrogativa ao Ministério Público. A esse respeito escreveu Tourinho Filho: “O parágrafo único do art. 4º. (CPP) deixa entrever que essa competência atribuída à Polícia (investigar crimes) não lhe é exclusiva, nada impedindo que autoridades administrativas outras possam, também, dentro em suas respectivas áreas de atividades, proceder a investigações. As atinentes à fauna e flora normalmente ficam a cargo da Polícia Florestal. Autoridades do setor sanitário podem, em determinados casos, proceder a investigações que têm o mesmo valor e finalidade do inquérito policial.”30 Da mesma forma pensa o já citado Marcellus Polastri Lima: “Obviamente, não sendo a Polícia Judiciária detentora de exclusividade na apuração de infrações penais, deflui que nada obsta que o MP promova diretamente investigações próprias para elucidação de delitos. “Como já salientamos, de há muito Frederico Marques defendia que o MP poderia, como órgão do Estado-administração e interessado direto na propositura da ação penal, atuar em atividade investigatória. “O art. 4º. do CPP já dispunha, em seu parágrafo único, inteiramente recepcionado pela nova ordem constitucional, que a atribuição para apuração de infrações penais não exclui a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a função.”31 (grifo nosso). E não se diga que, sendo parte, não pode o Promotor de Justiça ser considerado autoridade para efeito de instauração de procedimento administrativo na forma permitida pelo parágrafo único do art. 4º. do Código de 28 Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961, p. 165. 29 Estudos Jurídicos em Homenagem a Manoel Pedro Pimentel, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1992, p. 239. 30 Código de Processo Penal Comentado, Vol. 1, São Paulo: Saraiva, 1996, p. 16. 31 Ob. cit., p. 84. 15 Processo Penal; tal argumento também é rebatido pelo autor por último citado, ao afirmar, depois de se apoiar nas lições de Hely Lopes Meirelles, que: “Não resta dúvida que, estando o Ministério Público regido por lei orgânica própria, detendo funções privativas constitucionalmente e possuindo seus agentes independência funcional, além de preencher os demais requisitos elencados pela doutrina, os seus membros são agentes políticos, e como tal exercem parcela de autoridade.” “Portanto, indubitavelmente, exerce o MP parcela de autoridade e, administrativamente, pode proceder às investigações penais diretas na forma da legislação em vigor.”32 Mirabete não pensa diferente: “Os atos de investigação destinados à elucidação dos crimes, entretanto, não são exclusivos da polícia judiciária, ressalvando expressamente a lei a atribuição concedida legalmente a outras autoridades administrativas (art. 4º., do CPP). Não ficou estabelecido na Constituição, aliás, a exclusividade de investigação e de funções da Polícia Judiciária em relação às polícias civis estaduais. Tem o Ministério Público legitimidade para proceder investigações e diligências, conforme determinarem as leis orgânicas estaduais”, citando, então, várias hipóteses em que outras autoridades administrativas, que não Delegados de Polícia, podem e devem proceder a investigações: Lei de Falências, arts. 103 e segs., as já referidas Comissões Parlamentares de Inquérito, a Lei n. 4.771/65 (art 33, b), o art. 43 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, etc.33 Espínola Filho, por sua vez, já advertia “que o inquérito não é atribuição exclusiva da autoridade policial, é ponto assente, muito comuns sendo os inquéritos administrativos. “O Código de processo penal, no art. 4º., parágrafo único, ressalva, do modo mais claro, a pertinência desses inquéritos extrapoliciais, acentuando que a competência dada no inquérito à polícia judiciária, exercida por autoridades policiais, não exclui a de autoridades administrativas, para promoverem inquéritos, quando a isso legalmente autorizadas.”34 O Superior Tribunal de Justiça assim já se manifestou: “Como procedimento meramente informativo que é, o inquérito policial pode ser dispensado se o titular da ação penal dispuser de elementos suficientes para o oferecimento da denúncia.” (DJU, 08/06/92, p. 8.594). 32 Ob. cit. págs. 85 e 87. 33 Processo Penal, São Paulo: Atlas, 1997, p. 77. 34 Código de Processo Penal Anotado, Borsoi, 1960, p. 248. 16 O Supremo Tribunal Federal também já decidiu: “A inexistência de inquérito policial não impede a denúncia, se a Promotoria dispõe de elementos suficientes para a formulação da demanda penal – Existência, no caso, de indícios suficientes para afastar a alegação de falta de justa causa para a denúncia. Habeas Corpus indeferido.” (STF, Habeas Corpus n.º 70.991-5, Rel. Min. Moreira Alves). Especificamente sobre o poder investigatório do Ministério Público vejase: “O MP tem legitimidade para proceder a investigações ou prestar tal assessoramento à Fazenda Pública para colher elementos de prova que possam servir de base a denúncia ou ação penal. A CF/88, no art. 144, § 4º., não estabeleceu com relação às Polícias Civis a exclusividade que confere no § 1º., IV, à Polícia Federal para exercer as funções de Polícia Judiciária.” (RT, 651/313). Para encerrarmos as argumentações, objetamos ainda o seguinte: mesmo em se admitindo que a Lei Orgânica do Ministério Público Estadual não permitisse as investigações criminais (o que, absolutamente, não é verdade), ainda assim, por força do art. 80 da referida Lei Federal poderíamos utilizar, subsidiariamente, as normas da Lei Orgânica do Ministério Público da União (Lei Complementar Federal nº. 75/93), que “não deixa margem de dúvidas quanto à operacionalização das investigações criminais diretas no âmbito do Ministério Público”, como argumenta Polastri, no livro já aludido (p. 91), referindo-se, com certeza (ainda que não o diga expressamente), aos arts. 7º., I e 8º., VII, in verbis: “Art. 7º. - Incumbe ao Ministério Público da União, sempre que necessário ao exercício de suas funções institucionais: “I - instaurar inquérito civil e outros procedimentos correlatos.” “(omissis).” “Art. 8º. - Para o exercício de suas atribuições, o Ministério Público da União poderá, nos procedimentos de sua competência: “(omissis).” “VII - expedir notificações e intimações necessárias aos procedimentos e inquéritos que instaurar.” Há vários sistemas jurídicos alienígenas que ao priorizarem em suas reformas processuais penais o fortalecimento do Ministério Público, passaram a permitir de maneira ampla a investigação criminal pelo parquet. No Direito comparado observamos a existência de dois sistemas principais: o inglês (a Polícia detém o poder de conduzir as investigações 17 preliminares) e o continental (o Ministério Público conduz a investigação criminal). Neste segundo sistema, encontramos, por exemplo, países como a Itália, Alemanha, França e Portugal, como veremos a seguir: Na Alemanha, lê-se no Código de Processo Penal: “StPO § 160: (1) (omissis) “(2). A Promotoria de Justiça deverá averiguar não só as circunstâncias que sirvam de incriminamento, como também as que sirvam de inocentamento, e cuidar de colher as provas cuja perda seja temível. “(3). As averiguações da Promotoria deverão estender-se às circunstâncias que sejam de importância para a determinação das conseqüências jurídicas do fato. Para isto poderá valer-se de ajuda do Poder Judicial. “StPO § 161: Para a finalidade descrita no parágrafo precedente, poderá a Promotoria de Justiça exigir informação de todas as autoridades públicas e realizar averiguações de qualquer classe, por si mesma ou através das autoridades e funcionários da Polícia. As autoridades e funcionários da Polícia estarão obrigados a atender a petição ou solicitação da Promotoria.” Na Itália não é diferente no seu “Codice di Procedura Penale”: “Art. 326 – O Ministério Público e a Polícia Judiciária realizarão, no âmbito de suas respectivas atribuições, a investigação necessária para o termo inerente ao exercício da ação penal.” “Art. 327 – O Ministério Público dirige a investigação e dispõe diretamente da Polícia Judiciária.” Em Portugal, conforme lição de Germano Marques da Silva, “os órgãos de polícia criminal coadjuvam o Ministério Público no exercício das suas funções processuais, nomeadamente na investigação criminal que é levada a cabo no inquérito, e fazem-no sob a direta orientação do Ministério Público e na sua dependência funcional (arts. 56 e 263).”35 Ainda em solo lusitano, a Lei Orgânica do Ministério Público, no seu art. 3º., diz competir ao Ministério Público “dirigir a investigação criminal, ainda quando realizada por outras entidades” e “ fiscalizar a actividade processual dos órgãos de polícia criminal.” Em França não é diferente, à vista do art. 41 do respectivo Código de Processo Penal: 35 Curso de Processo Penal, Vol. I, Lisboa: Editorial Verbo, 1996. 18 “O Procurador da República procede ou faz proceder a todos os atos necessários à investigação e ao processamento das infrações da lei penal. Para esse fim, ele dirige as atividades dos oficiais e agentes da polícia Judiciária dentro das atribuições do seu tribunal.” Diante de tudo quanto foi exposto pode e deve o membro do Ministério Público, quando isto lhe é faticamente possível, investigar diretamente fatos criminosos, principalmente quando se tratar de abuso de autoridade (a título de exemplo); é bom que se diga não ter o Ministério Público, muitas das vezes, condições de, motu proprio, levar adiante uma investigação criminal, até por carência de material, seja humano (investigadores, por exemplo), seja físico (viaturas, espaço físico apropriado, etc); quando houver dificuldades, nada nos impede, ao contrário, tudo indica, que requisitemos a instauração de inquérito policial (ou termo circunstanciado na forma da Lei nº. 9.099/95) à autoridade policial respectiva, atentando-se para o fiel cumprimento da requisição e adotando-se as medidas criminais em caso de não atendimento (pode-se estar configurado, por exemplo, o delito de prevaricação), além da possibilidade de se configurar ato de improbidade administrativa (art. 11, II da Lei nº. 8.429/92). Apenas ressaltamos o nosso pensamento quanto à impossibilidade de que o mesmo Promotor de Justiça (ou os mesmos profissionais ou a mesma equipe) que investigue possa, depois, valorando a prova por ele próprio colhida, oferecer denúncia. Não cremos ser isso possível. Vejamos a respeito as observações de Antonio Evaristo de Morais Filho, citando Altavilla: “Este fenômeno foi muito bem estudado por Altavilla, em sua famosa ‘Psicologia Judiciária’ (Porto, 1960, v. 5, p. 36-39), onde dedicou dois verbetes aos perigos das hipóteses provisórias, que podem ‘seduzir o investigador, de maneira a torná-lo daltônico nas apreciações das conclusões de indagações ulteriores’. Adverte o mestre italiano que, uma vez internalizada na mente do policial, do promotor ou do juiz, a procedência da hipótese provisória, cria-se em seu espírito a necessidade de demonstrar o que considera verdade, ‘à qual ele liga uma especial razão de orgulho’, como se a eventual demonstração da improcedência de sua hipótese ‘constituísse uma razão de demérito’. E assim, intoxicado por sua verdade, sobrevaloriza todos os elementos probatórios que lhe forem favoráveis e diminui ‘o valor dos contrários, até o ponto de não serem tomados em consideração num ato.”36 Afinal de contas nas veias do Promotor de Justiça também corre o sangue dos pobres mortais... A jurisprudência, nesse sentido, também é encontrada: 36 Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, n.º 19, p. 106. 19 “Ministério Público. Impedimento de seus órgãos. Nulidade da denúncia. 1) O membro do Ministério Público que atua na fase inquisitorial, apurando pessoalmente os fatos, torna-se impedido para oficiar como promotor da ação penal (inteligência dos arts. 252, I e 258, CPP). Nula, portanto, é a denúncia ofertada, se inobservado esse aspecto.” (EJTJAP, v. 1, n. 1, p. 91). De toda forma, o STJ já sumulou em sentido contrário ao decidir que “a participação de membro do Ministério Público na fase investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o oferecimento da denúncia.” (Súmula 234). Interessante, a título de ilustração, a observação feita por Renê Ariel Dotti: “(...) forçoso é reconhecer que o sistema adotado em nosso país deixa muito a desejar quanto à eficácia e agilidade das investigações. E o maior obstáculo para alcançar estes objetivos decorre da falta de maior integração não somente das categorias funcionais da Polícia Judiciária e do Ministério Público como também de seus integrantes. Observa-se, lamentavelmente e em muitas circunstâncias, a existência de um processo de rejeição que parece ser genético.”37 Atentos à observação supra (verdadeira e preocupante), esclarecemos que tais considerações, longe de representarem obstáculos à atuação policial, são apenas elucidações que devem ser feitas a respeito das prerrogativas do Ministério Público, nunca se olvidando da importância da polícia judiciária. Devemos, na lição do maior de todos os Promotores de Justiça, “no trato com as autoridades policiais (...), além do respeito devido às prerrogativas daqueles colaboradores e não subordinados, pugnar pelo prestígio que advém da sua correção.”38 Como principais características do inquérito policial podemos apontar o fato de ser um procedimento escrito (art. 9º., CPP), relativamente sigiloso39 e inquisitório, pois não admite o contraditório. O inquérito policial pode ser civil (instaurado pela polícia civil ou federal) ou militar (instaurado pela polícia militar para apurar crimes militares). Durante o andamento do inquérito policial, não pode o indiciado ser posto incomunicável, ainda que exista a hodierna previsão do art. 21, parágrafo 37 O Ministério Público e a Polícia Judiciária - Relações formais e desencontros materiais, in Ministério Público, Direito e Sociedade, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986, p. 135. 38 Roberto Lyra, Teoria e Prática da Promotoria Pública, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1989, p. 121. 39 Observar quanto aos advogados, o disposto no art. 7º., XIV, do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil - Lei n.º 8.906/94 e o art. 26, caput, da Lei de Tóxicos – Lei n.º 6.368/76. 20 único do Código de Processo Penal; esta previsão, por força do disposto nos arts. 5o., LXIII e 136, § 3º., IV da Constituição Federal e do art. 7º., III do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil, não mais pode ser aplicada, tendo em vista o seguinte raciocínio: se em pleno Estado de Defesa, quando a ordem pública ou a paz social estão ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza, é vedada a incomunicabilidade do preso, evidente que em uma situação normal também não será admissível tal restrição. De lege lata, o inquérito policial pode se iniciar através de simples notitia criminis (art. 5º., § 3º., CPP), mediante requisição do Ministério Público ou da autoridade judiciária (art. 5º., II, CPP), através de requerimento da vítima (art. 5º., II, CPP) ou a partir da prisão em flagrante. No primeiro caso, a peça inicial será uma Portaria subscrita pela autoridade policial, enquanto que nas hipóteses de requisição ou requerimento inicia-se com o próprio instrumento requisitório ou de requerimento. Em caso de flagrante delito, a peça inaugural será o respectivo auto de prisão em flagrante. Se se tratar da apuração de crime de ação penal pública condicionada, o inquérito policial só poderá se iniciar através da representação do ofendido ou do seu representante legal (art. 5º., § 4º., CPP) ou através da requisição do Ministério Público (se acompanhada da respectiva representação ou da requisição do Ministro da Justiça) ou do Juiz (se acompanhada da representação). Tratando-se de crime de ação penal de iniciativa privada, instaura-se somente a partir do requerimento do ofendido ou de quem tenha qualidade para representá-lo. A propósito, anote-se que a Súmula 594 do STF estabelece que “os direitos de queixa e de representação podem ser exercidos, independentemente, pelo ofendido ou por seu representante legal”. O art. 35 do CPP, como se notou na introdução a este trabalho, foi expressamente revogado pela Lei n. 9.520/97, de forma que hoje a mulher casada tem direito amplo de representar contra quem quer que lhe tenha ofendido. Diz-se indiciado aquele que está sendo investigado nos autos do inquérito policial. Não é necessário que se indique expressamente quem é o indiciado, pois este poderá ser identificado a partir do encaminhamento das diligências policiais, não sendo necessário um indicativo formal daquela condição.40 Para instruir o procedimento investigatório a autoridade policial deverá de imediato proceder às diligências especificadas nos atuais arts. 6º. e 7º., sempre que cabíveis e se for possível. Veja-se, a propósito, o disposto no art. 22 do mesmo código. 40 Para Hélio Tornaghi, “em relação ao indiciado, não há necessidade de qualquer ato declaratório ou constitutivo dessa qualidade; ela decorre das circunstâncias. Não é indiciado quem foi qualificado e identificado pelo processo datiloscópico, mas, ao reverso, pode ser feita a identificação de quem é indiciado”. (apud Afrânio Silva Jardim, Direito Processual Penal, 7ª. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 178). 21 Na inquirição do indiciado devem ser observadas as regras próprias para o interrogatório feito em Juízo, inclusive atentando-se para todas as garantias previstas na Constituição e nos tratados internacionais celebrados pelo Brasil41, como, por exemplo, o direito ao silêncio; não há, porém, o contraditório, dado o já referido caráter inquisitorial do inquérito. A condução coercitiva é permitida.42 Por outro lado, a ouvida do ofendido é de imperiosa necessidade. O ofendido ou a vítima é o sujeito passivo da infração, aquele que sofreu diretamente a violação da norma penal ou, como diz Bettiol, é a “pessoa que é efetivamente titular daquele interesse específico e concreto que o crime nega”.43 Não se confunde ofendido com testemunha, pois enquanto este é um terceiro desinteressado, aquele é um terceiro interessado que pode, inclusive, habilitar-se como assistente da acusação e compor a relação jurídica processual. A ouvida da vítima é obrigatória nos termos do art. 201 do CPP: “sempre que possível, o ofendido será qualificado e perguntado...”. Vê-se que da própria redação do artigo ressoa clara a obrigatoriedade em se ouvir a vítima. A inquirição é um dever imposto ao Juiz, ao Promotor de Justiça ou ao Delegado de Polícia, pois o “ofendido não precisa ser arrolado; deve ser ouvido sempre que possível, independentemente da iniciativa das partes. O art. 201 do Código de Processo Penal cria para o juiz o dever jurídico de ouvir o ofendido”.44 Aliás, há determinados delitos em que a palavra da vítima tem relevância especial, como ocorre, por exemplo, nos crimes contra os costumes em que, na maioria dos casos, apenas ela tem condições de depor sobre os fatos, dada a clandestinidade característica dessas infrações penais. Nestes delitos, é induvidoso que a palavra do ofendido adquire relevo especial, pois “se assim não fosse, dificilmente alguém seria condenado como sedutor, corruptor, estuprador etc., uma vez que a natureza mesma dessas infrações está a indicar não poderem ser praticadas à vista de outrem.”45 41 Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos firmado em Nova York, em 19 de dezembro de 1966 e promulgado pelo Governo brasileiro através do Decreto nº. 592/92 e Pacto de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969, promulgado entre nós pelo Decreto nº. 678/92. 42 Fernando da Costa Tourinho Filho assim o entende, sob o argumento de que o inquérito policial é uma peça eminentemente inquisitiva e inquisitio sine coercitione nulla est (ob. cit., p. 247). 43 Giuseppe Bettiol, Direito Penal, São Paulo: Revista dos Tribunais, vol. III, 1976, p. 44 Hélio Tornaghi, Curso de Processo Penal, 8ª. ed., São Paulo: Saraiva, vol. I, 1991, p. 46. 387. 45 Fernando da Costa Tourinho Filho, Processo Penal, Vol. III, São Paulo: Saraiva, 1998, 20ª. ed., p. 294. 22 O advogado constituído também poderá estar presente a este ato. No entanto, se não houver profissional da confiança do indiciado, a presença de um advogado não é imprescindível para a validade da peça investigatória; tratando-se, porém, de menor de 21 anos, necessária é a nomeação de um curador, sob pena de nulidade do auto de prisão em flagrante (se assim foi instaurado o inquérito policial). Os vícios porventura existentes nesta primeira fase da persecutio criminis não contaminam a ação penal, podendo tornar apenas imprestáveis alguns atos procedimentais, como um reconhecimento de pessoa ou uma acareação que não tenha obedecido às formalidades legais, ou, em caso de flagrante delito, motivar o relaxamento da prisão ilegal. Não há que se falar, portanto, em nulidade do inquérito policial. A jurisprudência vem admitindo pacificamente a impetração de habeas corpus para trancar inquérito policial sempre que não houver justa causa para a sua instauração, utilizando-se a analogia com o art. 648 do Código de Processo Penal; assim, quando se tratar de fato cuja punibilidade induvidosamente já estiver extinta ou seja manifestamente atípico, concede-se a ordem, impedindo-se o andamento do procedimento. Ressalva-se, no entanto, a impossibilidade de, nestes casos, analisar-se questões como a antijuridicidade ou a culpabilidade. O valor probatório do inquérito policial é relativo, devendo a prova nele colhida ser reiterada em Juízo, salvo aquela que haja impossibilidade ou absoluta desnecessidade, como, por exemplo, a prova pericial inconteste.46 Atualmente, o prazo para conclusão do inquérito policial é de 10 dias se o indiciado estiver preso ou de 30 dias, se solto. Neste último caso, o prazo poderá ser prorrogado pelo Juiz a requerimento do Delegado de Polícia quando o fato for de difícil elucidação (art. 10, § 3º., CPP). Deve a autoridade policial, ao final, fazer um relatório de tudo o que foi produzido naqueles autos, sem, contudo, nele emitir qualquer juízo de valor, nem mesmo qualificar juridicamente o fato investigado, salvo para a hipótese de concessão de fiança. O inquérito policial não pode em nenhuma hipótese ser arquivado pela autoridade policial (art. 17, CPP). Depois de arquivado, a autoridade policial somente poderá proceder a novas diligências a partir de outras provas (art. 18). Saliente-se que a Lei nº. 9.099/95 ao disciplinar os Juizados Especiais Criminais, estabeleceu não mais ser preciso instaurar-se o inquérito policial quando se tratar de infração penal de menor potencial ofensivo, devendo a autoridade policial lavrar tão-somente um termo circunstanciado. Esta peça nada mais é do que um bem elaborado boletim de ocorrência, onde se descreverá a infração penal com todas as suas circunstâncias, qualificar-se-á o autor do fato e o ofendido e se indicarão as respectivas testemunhas, além da prova material a ser produzida. 46 A propósito, veja-se adiante quando analisamos o projeto de lei sobre provas. 23 Vejamos agora as modificações a serem introduzidas pelo referido projeto de lei. O art. 4o passará a ter a seguinte redação: “Sendo a infração penal de ação pública, a autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência, de ofício, a requerimento do ofendido ou de quem tenha qualidade para representá-lo ou mediante requisição do Ministério Público, procederá na função essencial de Polícia Judiciária ao correspondente registro e à investigação por meio de: I - termo circunstanciado, quando se tratar de infração de menor potencial ofensivo; II - inquérito policial, em relação às demais infrações.” Aqui temos a importante supressão da possibilidade de requisição do Inquérito Policial por parte da autoridade judiciária (art. 5o., II, primeira parte do atual código) e absolutamente estranha aos postulados do sistema acusatório. Sobre o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo, temos que atentar para a Lei n. 10.259/2001 (art. 2o., parágrafo único) que criou os Juizados Especiais Criminais Federais, modificadora, a nosso ver, do art. 61 da Lei n. 9.099/95; de modo que infração penal de menor potencial é toda aquela cuja pena máxima seja igual ou inferior a dois anos, independentemente de ter ou não procedimento especial, além de todas as contravenções penais. O § 1o. deste art. 4o. não traz novidades em relação ao atual sistema: “§ 1 Quando a ação penal pública depender de representação ou de requisição do Ministro da Justiça, sem ela o inquérito policial não poderá ser instaurado.” o Tampouco o §§ 2o. e 3o.: “§ 2o Nos casos de ação penal de iniciativa privada, a autoridade policial procederá à investigação por meio de uma das modalidades previstas nos incisos I e II do caput, agindo somente mediante requerimento de quem tiver qualidade para ajuizá-la, formulado com observância dos seguintes requisitos: I - narração do fato, com todas as suas circunstâncias; II - individualização do autor ou determinação de seus sinais característicos, ou explicação dos motivos que as impossibilitam; III - dados demonstrativos da afirmação da autoria; IV - testemunhas do fato e de suas circunstâncias, quando possível com as respectivas qualificações e endereços, ou com anotação dos locais em que possam ser encontradas. § 3o Qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da prática de infração penal cuja ação seja de iniciativa pública, poderá comunicá-la, 24 oralmente ou por escrito, à autoridade policial, que registrará a ocorrência e adotará as providências cabíveis. O § 4o. ao disciplinar que o “ofendido ou quem tiver qualidade para representá-lo poderá requerer, oralmente ou por escrito, à autoridade policial o início da investigação ou dirigir-se ao Ministério Público para que este a requisite” retira do Juiz a possibilidade de receber do ofendido o requerimento de abertura do Inquérito Policial ou do Termo Circunstanciado, depurando mais uma vez o sistema acusatório em nosso processo penal. Nada obstante, se a vítima preferiu dirigir-se à autoridade judiciária, deverá esta imediatamente remeter o requerimento ao Promotor de Justiça que, então, sendo o caso, requisitará a respectiva peça investigatória. Continuando, temos o § 5o. nos seguintes termos: “Da decisão que indeferir o requerimento de investigação, ou quando esta não for instaurada no prazo, poderá o interessado recorrer em cinco dias para a autoridade policial superior, ou representar ao Ministério Público”. Esta “autoridade policial superior” é o chefe da Polícia Civil em cada Estado da Federação. Se a vítima, ou quem a represente, optar pela comunicação ao Ministério Público, o Promotor de Justiça requisitará o início das investigações, se houver efetivamente necessidade. Em consonância com o disposto no art. 129, VII da Constituição Federal que impõe ao Ministério Público o controle externo da atividade policial, estabelece o § 6o. que tomando “conhecimento da ocorrência, a autoridade policial fará, imediatamente, o seu registro, que ficará à disposição do Ministério Público, podendo este requisitá-lo periódica ou especificamente”, garantindo-se, assim, a efetiva continuidade das investigações. O § 7o., por sua vez, determina: “Tratando-se de infração penal atribuída a policial, a autoridade comunicará imediatamente a ocorrência ao Ministério Público, para as providências cabíveis.” Importantíssima modificação: ao invés de apenas encaminhar o fato à Corregedoria da Polícia, a autoridade policial deverá comunicá-lo ao Ministério Público, permitindo ao parquet investigar diretamente a infração penal ou acompanhar a apuração procedida pela Corregedoria da Polícia. Cobrindo lacuna existente na Lei n. 9.099/95, o art. 5o do projeto de lei especifica o conteúdo do Termo Circunstanciado, nos seguintes termos: “Se a infração for de menor potencial ofensivo, a autoridade lavrará, imediatamente, termo circunstanciado, de que deverão constar: I- narração sucinta do fato e de suas circunstâncias, com a indicação do autor, do ofendido e das testemunhas; II - nome, qualificação e endereço das testemunhas; III - ordem de requisição de exames periciais, quando necessários; 25 IV - determinação da sua imediata remessa ao órgão do Ministério Público oficiante no juizado criminal competente, com as informações colhidas, comunicando-as ao juiz; V - certificação da intimação do autuado e do ofendido, para comparecimento em juízo nos dia e hora designados.” O art. 6o. passa a ter a seguinte redação: “Art. 6o Não sendo a infração de menor potencial ofensivo, ao tomar conhecimento da prática da infração, a autoridade policial instaurará inquérito, devendo: I - dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, preservando-o durante o tempo necessário à realização dos exames periciais; .................................................................................................. IV - ouvir o investigado; V - proceder ao reconhecimento de pessoas e coisas; VI - determinar, se for o caso, que se proceda a exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias (art. 159); VII - providenciar, quando necessária, a reprodução simulada dos fatos, desde que não contrarie a moralidade ou a ordem pública.” Nada obstante não mais constar a necessidade da ouvida do ofendido, tal providência se nos afigura de relevância absoluta, e mesmo imprescindível, até por força do disposto no art. 201, caput do CPP, como explicamos acima. O § 1o. deste artigo determina que as “diligências previstas nos incisos V e VII deverão ser realizadas com prévia ciência do Ministério Público e intimação do ofendido e do investigado.” Continua o projeto de lei privilegiando o acompanhamento das investigações por parte do Ministério Público, além de permitir ao investigado um maior conhecimento do que contra si está sendo produzido ou se produzirá. “§ 2o Os instrumentos, armas e objetos materiais que tiverem relação com o fato, necessários para exame pericial complementar, ficarão sob a guarda dos peritos oficiais até a conclusão dos trabalhos periciais.” § 3o No inquérito, as informações serão colhidas de forma singela e, sempre que possível, celeremente, podendo os depoimentos ser tomados em qualquer local, oral, informal e resumidamente. No § 4o. introduz-se no Código de Processo Penal regra já estabelecida no art. 65, § 3o. da Lei n. 9.099/95: “O registro dos depoimentos do investigado, indiciado, ofendido e testemunhas poderá ser feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia ou técnica 26 similar, inclusive audiovisual, destinada a obter maior fidelidade das informações. Na forma por último indicada, será encaminhado ao Ministério Público o registro original, sem necessidade de transcrição.” O § 5o. determina que a “prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão imediatamente comunicados à autoridade judiciária competente, ao Ministério Público e à família do preso, ou a pessoa por ele indicada.” Aliás, sobre a comunicação da prisão ao Ministério Público já defendemos ser obrigatória, ainda que regra específica a respeito não haja no Código de Processo Penal. Assim pensamos porque prescreve a Constituição Federal no seu art. 129, VII que ao Ministério Público cabe, como função institucional, “exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior”, delegando, assim, ao legislador infraconstitucional a missão de regulamentar a forma como se exteriorizaria tal controle externo, ou seja, o modo como ele deveria ser exercido. A lei complementar referida é exatamente aquela prevista no art. 128, § 5º. da Carta Magna, ou seja, lei complementar estadual de iniciativa do Procurador-Geral de Justiça que estabelece “as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público”. Deixe-se, claro, portanto, que a citada lei complementar não precisa ser uma norma federal, mas uma lei estadual, sem dúvidas; basta ler o texto constitucional com alguma acuidade. Ou seja, o legislador constituinte, induvidosamente, deixou para o legislador estadual disciplinar o controle externo da atividade policial pelo Ministério Público. Assim, por exemplo, no Estado da Bahia, a Lei Complementar estadual nº. 11/96 disciplina no art. 72, XVI, e, que dentro das atribuições imanentes ao controle externo da atividade policial pelo Ministério Público está o de “receber, imediatamente, comunicação da prisão de qualquer pessoa por parte da autoridade policial, com indicação do lugar onde se encontra o preso e cópia dos documentos comprobatórios da legalidade da prisão”. Nem se invoque o art. 5º., LXII da Constituição Federal que exige a comunicação da prisão de qualquer pessoa ao Juiz competente, pois tal disposição constitucional não exclui a necessidade da mesma comunicação também ser feita a outras autoridades públicas, como aos membros do Ministério Público. O referido dispositivo apenas obriga a comunicação ao Juiz de Direito (não proibindo que o seja a outras autoridades), o que não retira absolutamente a possibilidade de se exigir o mesmo em relação ao Promotor de Justiça, como o fez a citada lei complementar estadual, respaldada, repitase, pela Constituição Federal. Não se diga, tampouco, que o art. 307 do Código de Processo Penal determina a comunicação da prisão em flagrante apenas “ao juiz a quem couber tomar conhecimento do fato delituoso”, bastando lembrar que o referido diploma adjetivo é da década de 40... 27 Invocamos, ainda, o art. 10 da Lei Complementar Federal nº. 75/93 (Lei Orgânica do Ministério Público da União), utilizada subsidiariamente pelo Ministério Público estadual (por força do art. 80 da Lei nº. 8.625/93) que exige expressamente a comunicação ao Ministério Público da prisão de qualquer pessoa. Procurando evitar excessos investigatórios que poderiam constranger desnecessariamente o investigado, determina o novo art. 7o. que os “elementos informativos da investigação deverão ser colhidos na medida estritamente necessária à formação do convencimento do Ministério Público ou do querelante sobre a viabilidade da acusação, bem como à efetivação de medidas cautelares, pessoais ou reais, a serem autorizadas pelo juiz.” Se excessos houver, cabível será a impetração de habeas corpus para evitá-los. O parágrafo único deste artigo explicita regra já consagrada por boa parte da doutrina, segundo a qual as provas colhidas nesta fase inquisitorial “não poderão constituir fundamento da sentença, ressalvadas as provas produzidas cautelarmente ou irrepetíveis, que serão submetidas a posterior contraditório.” Como exemplo de uma prova irrepetível temos um exame de lesões corporais. A ouvida de uma testemunha enferma gravemente pode servir como exemplo de uma prova produzida cautelarmente. No art. 8o. temos: “Reunidos os elementos informativos tidos como suficientes, a autoridade policial cientificará o investigado, atribuindo-lhe, fundamentadamente, a situação jurídica de indiciado, com as garantias dela decorrentes” e “§ 1o O indiciado, comparecendo, será interrogado com expressa observância das garantias constitucionais e legais”, entre os quais o direito ao silêncio (art. 5o., LXIII da Constituição) e o de não auto-incriminar-se (art. 8º., 2, g, do Pacto de São José da Costa Rica Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 22 de novembro de 1969 e art. 14, 3, g do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova York, assinada em 19 de dezembro de 1966, ambos já incorporados em nosso ordenamento jurídico, por força, respectivamente, do Decreto n.º 678 de 6 de novembro de 1992 e do Decreto n.º 592, de 6 de julho de 1992). No § 2o. estabelece-se que o “indiciado será identificado datiloscopicamente nas hipóteses previstas em lei”. A respeito desta diligência, é importante ressaltar que a Constituição Federal a proíbe sempre que já houver a identificação civil, salvo exceção prevista em lei. Tais exceções encontramos em nosso ordenamento jurídico na Lei nº. 9.034/95 (art. 5º.) que definiu a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas e no art. 109 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Sem aplicação, destarte, a Súmula 568 do STF editada anteriormente à Constituição. 28 Observa-se que neste aspecto já existe legislação específica: a Lei n. 10.054/00.47 Visando, inclusive, a auxiliar o Juiz no momento da aplicação da pena (art. 59, CP) e, antes, ao Ministério Público no instante da proposta de transação penal ou da suspensão condicional do processo, o § 3o. estabelece que a “autoridade policial deverá colher informações sobre a vida pregressa do indiciado, sob o ponto de vista individual, familiar e social, sua condição econômica, e outros dados que contribuam para a verificação de sua personalidade”, além de “informar ao indiciado a importância do endereço por ele fornecido, para efeito de citação e intimação, bem como sobre o dever de comunicar qualquer mudança de endereço.” (§ 4o.). O novo art. 9o. passa a estabelecer prazo para a instauração do Inquérito Policial que será de 10 dias “após a autoridade policial tomar conhecimento da infração penal (art. 4o, caput e §§ 1o a 4o).” Neste tocante, muda-se o prazo para término da peça inquisitiva, pois o § 1 . deste art. 9o. prevê que a autoridade policial deve remeter o respectivo procedimento “ao Ministério Público no prazo de vinte dias, sem prejuízo da continuidade e da realização de outras diligências tidas como necessárias, que serão especificadas pela autoridade policial, cujos resultados serão imediatamente transmitidos ao mesmo órgão.” Vê-se que acaba com a desnecessária exigência de envio dos autos investigatórios ao Juiz de Direito para que este aponha um singelo “remeta-se ao Ministério Público” e só. o Chegando o expediente ao Ministério Público, o seu representante, caso não seja o caso de arquivamento ou denúncia, poderá “aguardar por até trinta dias as diligências especificadas pela autoridade que presidiu a investigação” ou “requisitar, fundamentadamente, a realização de diligências complementares, indispensáveis ao oferecimento da denúncia, que deverão ser realizadas em, no máximo, trinta dias.” Esta requisição “não obsta, se for o caso, ao oferecimento da denúncia.” Ademais, “encerrada a investigação, a autoridade policial remeterá as demais peças de informação, documentadas em autos suplementares, e com relatório, ao Ministério Público” que, por sua vez, “somente poderá oferecer denúncia ou promover o arquivamento, consoante o disposto no art. 28.” Se se tratar de indiciado preso, o retorno dos autos à Delegacia de Polícia acarretará inevitavelmente a sua soltura, por excesso de prazo na conclusão da peça investigativa. Se não for o caso de diligências complementares, o Ministério Público, tal como hoje, poderá, então, “oferecer denúncia” ou “promover o arquivamento da investigação, consoante o art. 28.” Em qualquer hipótese o “inquérito deverá ser concluído no prazo de sessenta dias, contados do conhecimento da infração penal pela autoridade policial, salvo se o indiciado estiver preso, quando o prazo será de dez dias.” 47 Leia-se a respeito artigos de Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró (Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim, n. 100, p. 9) e de Luiz Flávio Gomes (Revista Consulex, n. 99, p. 42). 29 Na contagem deste prazo, aplica-se a regra do art. 798, § 1º. do CPP, salvo no caso de indiciado preso, quando se conta o dies a quo, aplicando-se a regra do art. 10, do Código Penal, excepcionalmente, obedecendo-se o princípio do favor rei. Se houver descumprimento deste limite, “o ofendido poderá recorrer à autoridade policial superior ou representar ao Ministério Público, objetivando a finalização do inquérito e a determinação da responsabilidade da autoridade e de seus agentes” que poderão responder, por exemplo, pelo crime de prevaricação (art. 319, CP) e por improbidade administrativa (art. 11, II da Lei n. 8.429/92). Nesta fase, as “diligências que dependerem de autorização judicial serão requeridas ao juiz competente pelo Ministério Público, autoridade policial, ofendido, investigado ou indiciado”, sem prejuízo de poder o Juiz, de ofício, “ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida”, conforme estabelece o novo art. 156 que analisaremos adiante. Melhor seria que não se permitisse ao Juiz esta atividade persecutória, preservando-se na sua inteireza o sistema acusatório. Se o Juiz vier a determinar esta produção antecipada de prova, certamente, à luz do nosso sistema, tornar-se-á prevento (art. 83, CPP). Ocorre que, como afirma com muita propriedade, Aury Lopes Jr., esta prevenção, longe de se constituir em causa de determinação da competência, deveria, contrariamente, “ser uma causa de exclusão”, pois “pode fulminar a principal garantia das partes no processo penal: o direito a um juiz imparcial.” Informa este autor que “partindo das decisões do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, a maior parte dos países europeus passou a considerar a prevenção como geradora de uma presunção absoluta de parcialidade. Isto é, o juiz prevenido ou prevento tem sua imparcialidade comprometida e não pode participar do julgamento.” Conclui, então, o autor gaúcho que “a prevenção é sinônimo de pré-julgamento, de comprometimento, de tal forma que gera uma fundada dúvida sobre a imparcialidade praticar atos tipicamente investigatórios, ou mais bem próprios de um instrutor.”48 O arts. 11, 12 e 14 não trazem novidades ao prescreverem, respectivamente, que os “instrumentos da infração penal, bem como os objetos que interessarem à prova, acompanharão os autos da investigação”; que os “autos da investigação instruirão a denúncia ou a queixa, sempre que lhe servirem de base” (o que indica ser dispensável o Inquérito Policial) e que o “ofendido, ou quem tenha qualidade para representá-lo e o investigado ou indiciado poderão requerer à autoridade policial, ou ao Ministério Público, a realização de qualquer diligência, que será efetuada, se entendida necessária.” Nesta última hipótese, se “o pedido for indeferido, o interessado poderá recorrer à autoridade policial superior, ou representar ao Ministério Público, objetivando a requisição da diligência.” Modifica-se ligeiramente o art. 13, alterando-se-lhe o inciso IV, nos seguintes termos: 48 Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal, Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2001, pp. 153/155. 30 “Art. 13. ..................................................................................... IV - requerer, ao juiz competente, a concessão de medida cautelar prevista em lei.” Como se nota, a nova lei deixa de usar o termo “representação” e prefere “requerimento”. Repetindo regra estabelecida no art. 15, se “o indiciado for menor, a autoridade nomeará curador para assisti-lo”. Ocorre que agora a lei prefere que este curador seja advogado e proíbe expressamente, o que é ótimo, “a nomeação de pessoa analfabeta e de servidor da Polícia Judiciária, do Ministério Público ou do Poder Judiciário.” Em consonância com os arts. 93, IX e 129, VIII da Constituição Federal, diz o novo art. 16 que “todos os atos da autoridade policial e do Ministério Público deverão indicar os fatos que os determinaram e ser fundamentados.” Assim, não poderão mais ser determinadas ou requisitadas, por exemplo, diligências policiais que venham a constranger o investigado ou indiciado sem que esteja demonstrada a sua necessidade para as investigações. Não se poderá produzir uma reprodução simulada dos fatos sem que se fundamente a sua necessidade para o êxito da apuração em curso. Os arts. 17, 18 e 19 também não trazem maiores novidades, senão vejamos: “Art. 17. A autoridade policial não poderá determinar o arquivamento dos autos da investigação.” “Art. 18. Arquivados os autos da investigação, por falta de base para a denúncia, havendo notícia de outras provas, a autoridade policial deverá proceder a novas diligências, de ofício, ou mediante requisição do Ministério Público.” “Art. 19. Nas infrações penais, cuja ação seja de iniciativa privada, os autos da investigação serão remetidos ao juízo ou ao juizado criminal competente, onde aguardarão providência do ofendido, ou de quem tenha qualidade para representá-lo, ou serão entregues ao requerente, se o pedir, mediante traslado.” Entendemos que ao se estabelecer no art. 20 que a “autoridade policial, o Ministério Público e o juiz assegurarão, na investigação, o sigilo necessário ao esclarecimento dos fatos” não foi usurpado o direito do advogado de “examinar em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante ou de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos.” (art. 7º., XIV do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil - Lei n.º 8.906/94), mesmo porque a nova regra não é incompatível, muito pelo contrário, com a anterior, o que não acarreta a sua revogação implícita. O § 1o. deste art. 20 procura garantir que durante “a investigação, a autoridade policial, o Ministério Público e o juiz tomarão as providências necessárias à preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem do investigado, do indiciado, do ofendido e das testemunhas, vedada sua exposição aos meios de 31 comunicação”, vedando, por conseguinte, a prática odiosa que hoje se prolifera em expor presos seminus (que sequer foram indiciados) às câmaras de televisão, maculando e estigmatizando as pessoas, em um espetáculo verdadeiramente desumano e degradante. Ademais, tenha ou não havido condenação anterior, não mais poderá a autoridade policial, nos “atestados que lhe forem solicitados”, “mencionar quaisquer dados referentes à investigação, salvo em caso de requisição judicial ou do Ministério Público.” O art. 21 veda expressamente o que hoje já está proibido por força de uma interpretação conforme a Constituição (como demonstramos acima): a incomunicabilidade do preso. A nova redação dos arts. 22 e 23 não representa inovação substancial, como se nota, in verbis: “Art. 22. A autoridade policial poderá, no curso da investigação, ordenar a realização de diligências em outra circunscrição territorial, independentemente de requisição ou precatória; assim como tomar as providências necessárias sobre qualquer fato que ocorra em sua presença, noutra circunscrição, comunicando-as à respectiva autoridade. “Art. 23. Ao remeter os autos da investigação ao Ministério Público, a autoridade policial oficiará ao órgão competente, transmitindo as informações necessárias à estatística criminal.” O art. 26 traz regra dirigida principalmente às autoridades fiscais, fazendárias, bancárias, etc, ao obrigar que se tratando “de infração penal praticada contra o sistema financeiro nacional, a ordem tributária ou econômica, os elementos de informação serão remetidos pela autoridade administrativa também diretamente ao Ministério Público para as providências cabíveis”, não sendo necessária, portanto, a remessa do procedimento administrativo à Polícia para a instauração de investigação, pois é bem possível que já se tenha em mãos (e este Juízo inicialmente cabe ao Ministério Público e, depois, ao Poder Judiciário que receberá ou não a peça acusatória) os elementos necessários para a propositura da ação penal. Se já houver justa causa, dispensa-se investigação policial. Vejamos agora certamente a mudança mais importante trazida por este projeto de lei, referente ao arquivamento da peça informativa, quando se retirou das mãos do Juiz de Direito esta decisão, privilegiando, sem dúvidas, os princípios reitores do sistema acusatório. Com efeito, o novo art. 28 assim está redigido: “Se o órgão do Ministério Público, após a realização de todas as diligências cabíveis, convencer-se da inexistência de base razoável para o oferecimento de denúncia, promoverá, fundamentadamente, o arquivamento dos autos da investigação ou das peças de informação.” 32 Assim, o arquivamento passa a ser objeto apenas da apreciação do órgão do Ministério Público, retirando-se do Poder Judiciário essa anômala função de fiscal do princípio da obrigatoriedade da ação penal, tudo em conformidade com o art. 129, I da Carta Magna. Mas, para que não fique o arquivamento em mãos apenas do respectivo Promotor de Justiça, o que não deixaria de ser temerário, prevê o projeto de lei ora analisado que “cópias da promoção de arquivamento e das principais peças dos autos serão por ele remetidas, no prazo de três dias, a órgão superior do Ministério Público, sendo intimados dessa providência, em igual prazo, mediante carta registrada, com aviso de retorno, o investigado ou indiciado e o ofendido, ou quem tenha qualidade para representá-lo.” Assim, a Procuradoria Geral de Justiça de cada Estado da Federação deverá formar um colegiado especialmente destinado a examinar os casos de promoção de arquivamento, preferencialmente formado a partir de eleição entre todos os membros da Instituição (com período determinado), tornando mais democrática esta etapa do processo penal brasileiro e evitando injunções políticas nas promoções de arquivamento.49 Visando a evitar possível procrastinação, dispõe o § 2o. do novo art. 28 que se “as cópias referidas no parágrafo anterior não forem encaminhadas no prazo estabelecido, o investigado, o indiciado ou o ofendido poderá solicitar a órgão superior do Ministério Público que as requisite. Ademais, até “que, em sessão de órgão superior do Ministério Público, seja ratificada ou rejeitada a promoção de arquivamento, poderão o investigado ou indiciado e o ofendido, ou quem tenha qualidade para representá-lo, apresentar razões escritas.” “§ 4o A promoção de arquivamento, com ou sem razões dos interessados, será submetida a exame e deliberação de órgão superior do Ministério Público, na forma estabelecida em seu regimento. § 5o O relator da deliberação referida no parágrafo anterior poderá, quando o entender necessário, requisitar os autos originais, bem como a realização de quaisquer diligências reputadas indispensáveis. § 6o Ratificada a promoção, o órgão superior do Ministério Público ordenará a remessa dos autos ao juízo competente, para o arquivamento e declaração da cessação de eficácia das medidas cautelares eventualmente concedidas.” Observa-se que, tomando a primeira providência, o Juiz de Direito agirá administrativamente, e não jurisdicionalmente, pois determinará que se arquive o procedimento investigatório como chefe que é dos serviços cartorários. 49 No âmbito do Ministério Público Federal há as Câmaras de Coordenação e Revisão com atribuição para, dentre outras funções, “manifestar-se sobre o arquivamento de inquérito policial, inquérito parlamentar ou peças de informação, exceto nos casos de competência originária do Procurador-Geral.” (art. 62, IV da Lei Complementar n. 75/93). 33 “§ 7o Se, ao invés de ratificar o arquivamento, concluir o órgão superior pela viabilidade da ação penal, designará outro representante do Ministério Público para oferecer a denúncia.” Evidentemente que este outro representante não estará obrigado a denunciar, podendo invocar, justificando sua recusa, a independência funcional inerente ao exercício das suas atividades (art. 127, § 1o. da Constituição Federal). E não se diga que este outro Promotor de Justiça deverá fazê-lo como uma longa manus do órgão superior (agindo por delegação), pois isto representaria uma verdadeira e absoluta violência à consciência jurídica do profissional. “Art. 30. A ação de iniciativa privada caberá ao ofendido, ou a quem tenha qualidade para representá-lo, ou às entidades legitimadas por lei à defesa de direitos difusos ou coletivos, quando se trate de ação penal que os envolva”, como, por exemplo, as entidades e associações referidas no art. 82, III e IV da Lei n.º 8.078/90. O art. 46 continua estabelecendo o prazo de cinco dias “para oferecimento da denúncia, ou promoção de arquivamento, estando o indiciado preso”, “contado da data em que o órgão do Ministério Público receber os autos do inquérito, ou de sua complementação, e de quinze dias, se estiver solto ou afiançado.” “§ 1º Quando o Ministério Público dispensar a investigação, o prazo para o oferecimento da denúncia contar-se-á da data em que tiver recebido as peças de informação ou a representação”, o que indica que o Inquérito Policial continua sendo peça dispensável. ............................................................................... “§ 3o Descumprido qualquer dos prazos estabelecidos neste artigo: I - os autos poderão ser requisitados pelo órgão superior do Ministério Público, de ofício, ou a pedido do ofendido, do investigado, ou do indiciado; II - o ofendido poderá proceder na forma do disposto no art. 29”, ou seja, oferecendo queixa subsidiária (ação penal de iniciativa privada subsidiária da pública – art. 5o., LIX, Constituição Federal). VII. PRISÃO, MEDIDAS CAUTELARES E LIBERDADE – PROJETO DE LEI nº. 4.208/01 Este projeto modifica o Título IX do Código de Processo Penal que trata “Da Prisão e da Liberdade Provisória”, alterando-lhe para a seguinte epígrafe: “Da Prisão, das Medidas Cautelares e da Liberdade Provisória” e revogando expressamente o § 2º. e incisos do art. 325, os arts. 393, 594, 595 e os §§ do art. 408 do CPP. 34 Assim, acabar-se-á com a restrição que se faz àqueles autores de crimes presos em flagrante acusados de praticarem infrações penais contra a economia popular ou de sonegação fiscal, que não podem ser beneficiados com a liberdade provisória sem fiança; ademais, são extintas as absurdas normas estabelecidas nos arts. 393, 594, 595 e os §§ do art. 408 que flagrantemente se chocam com o princípio da não-culpabilidade (presunção de inocência), insculpido na Constituição Federal. Como é sabido, na atual regra imposta pelo art. 594 do Código de Processo Penal, “o réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória, ou condenado por crime que se livre solto.” Assim, em relação ao condenado que não seja primário e não tenha bons antecedentes, dois ônus a ele se impõem por força de lei: a prisão automática decorrente da sentença condenatória (salvo se se livrar solto ou prestar fiança, sendo esta cabível) e a impossibilidade de recorrer se não for recolhido à prisão. Na verdade, se nos limitarmos a interpretar literalmente este artigo chegaremos forçosamente à conclusão que ele afronta a Constituição (e, portanto, é inválido) em pelo menos duas oportunidades: 1ª.) quando o texto constitucional garante a presunção de inocência50) e 2ª.) quando assegura a ampla defesa, com os recursos a ela inerentes. Ora, se o art. 5º., LVII, da Constituição proclama que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, é de todo inadmissível que alguém seja preso antes de definitivamente julgado, salvo a hipótese desta prisão provisória se revestir de caráter cautelar, independentemente de primariedade e de bons antecedentes. Soa, portanto, estranho alguém ser presumivelmente considerado não culpado (pois, ainda não foi condenado definitivamente) e, ao mesmo tempo, ser obrigado a se recolher à prisão, mesmo não representando a sua liberdade nenhum risco seja para a sociedade, seja para o processo, seja para a aplicação da lei penal. Mais estranho se nos afigura ao atentarmos que aquela presunção foi declarada constitucionalmente. Desta forma, esta prisão provisória, anterior a uma decisão transitada em julgado, só se revestirá de legitimidade caso seja devidamente 50 Tucci, respaldado pelas lições de Guglielmo Sabatini, prefere a expressão nãoconsideração prévia de culpabilidade, pois “l’imputato è sempre e solo imputato ai fini dello svolgimento del processo. Quindi non va considerato nè come innocente, nè come colpevole.” (in Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro, São Paulo: Saraiva, 1993, p. 401). Outros autores falam em princípio da não-culpabilidade e, como Dotti, em princípio da incensurabilidade. 35 fundamentada (art. 5º., LXI, CF/88) e reste demonstrada a sua necessidade (periculum libertatis51). No mesmo passo, há a segunda questão: se a Constituição também assegura aos acusados em geral a ampla defesa com os recursos a ela inerentes, parece-nos também claro que uma lei infraconstitucional não poderia condicionar este direito de recorrer àquele que não tem bons antecedentes e não é primário, ao recolhimento à prisão. Observa-se que esta regra legal está complementada no artigo seguinte, segundo o qual “se o réu condenado fugir depois de haver apelado, será declarada deserta a apelação.” (art. 595, CPP). Da mesma forma, agora igualmente soa estranho para nós não se permitir ao acusado o acesso ao duplo grau de jurisdição, quando não seja primário e não tenha bons antecedentes. Não esqueçamos que a “adoção do duplo grau de jurisdição deixa de ser uma escolha eminentemente técnica e jurídica e passa a ser, num primeiro instante, uma opção política do legislador.”52 Apesar do texto constitucional não conter expressamente a garantia do duplo grau de jurisdição (como ocorre com a presunção de inocência), é indiscutível o seu caráter de norma materialmente constitucional, mormente porque o Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) que prevê em seu art. 8º., 2, h, que todo acusado de delito tem “direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior”, e tendo-se em vista o estatuído no § 2º., do art. 5º., da CF/88, segundo o qual “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” Ratificamos, também, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova Iorque que no seu art. 14, 5, estatui que “toda pessoa declarada culpada por um delito terá o direito de recorrer da sentença condenatória e da pena a uma instância superior, em conformidade com a lei.” É bem verdade que a doutrina se debate a respeito da posição hierárquica que ocupam as normas advindas de tratado internacional. Parte dela entende que caso a norma internacional trate de garantia individual, terá ela status constitucional, até por força do referido § 2º. Fábio Comparato, por exemplo, informa que “a tendência predominante, hoje, é no sentido de se considerar que as normas internacionais de direitos humanos, pelo fato de expressarem de certa forma a consciência ética universal, estão acima do ordenamento jurídico de cada Estado. (...) Seja como for, vai-se afirmando hoje na doutrina a tese de que, na hipótese de conflitos 51 Expressão preferida pelos italianos, ao invés do periculum in mora (cfr. Delmanto Junior, Roberto, in As Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de Duração, Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 67). 52 Moraes, Maurício Zanoide de, Interesse e Legitimação para Recorrer no Processo Penal Brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 29. 36 entre regras internacionais e internas, em matéria de direitos humanos, há de prevalecer sempre a regra mais favorável ao sujeito de direito, pois a proteção da dignidade da pessoa humana é a finalidade última e a razão de ser de todo o sistema jurídico”53: é o chamado princípio da prevalência da norma mais favorável.54 Ada, Dinamarco e Araújo Cintra, após admitirem a indiscutível natureza política do princípio do duplo grau de jurisdição (“nenhum ato estatal pode ficar imune aos necessários controles”) e que ele “não é garantido constitucionalmente de modo expresso, entre nós, desde a República”, lembram, no entanto, que a atual Constituição “incumbe-se de atribuir a competência recursal a vários órgãos da jurisdição (art. 102, II; art. 105, II; art. 108, II), prevendo expressamente, sob a denominação de tribunais, órgãos judiciários de segundo grau (v.g., art. 93, III).”55 Resta-nos, então, já que legem habemus, interpretar este dispositivo legal (infraconstitucional e fruto de uma lei de 1973) à luz da Constituição Federal, a fim de que possamos entendê-lo ainda como válido, fazendo, porém, uma leitura efetivamente garantidora. Ora, se temos a garantia constitucional da presunção de inocência, é evidente que não pode ser efeito de uma sentença condenatória recorrível, pura e simplesmente, um decreto prisional, sem que se perquira quanto à necessidade do encarceramento. Como sabemos, entre nós, cabível será a prisão preventiva sempre que se tratar de garantir a ordem pública, a ordem econômica, ou por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal. São estes os requisitos da prisão preventiva e que configuram exatamente o periculum libertatis. Estes requisitos, portanto, representam a necessidade da prisão preventiva, que não é outra coisa senão uma medida de natureza flagrantemente cautelar, pois visa a resguardar, em última análise, a ordem pública, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal (há, ainda, os pressupostos desta prisão, que não nos interessam no presente estudo). Se assim o é, fácil é interpretar este artigo 594 da seguinte forma e nos seguintes termos: a prisão será uma decorrência de uma sentença condenatória recorrível sempre que, in casu, fosse cabível a prisão preventiva contra o réu, independentemente de sua condição pessoal de primário e de ter bons antecedentes; ou seja, o que definirá se o acusado aguardará preso ou 53 Apud Sylvia Helena de Figueiredo Steiner, A Convenção Americana sobre Direitos Humanos e sua Integração ao Processo Penal Brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 91. 54 “Este princípio, perseguido pelo direito internacional geral, e vigorosamente defendido por setores da doutrina brasileira, parece não haver ganho, até o presente, expressiva concreção na jurisprudência brasileira, devendo ser lembrada a questão do depositário infiel.” (Bahia, Saulo José Casali, Tratados Internacionais no Direito Brasileiro, Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 116). O STF, reiteradamente, combate-o. 55 Teoria Geral do Processo, São Paulo: Malheiros Editores, 1999, 15ª. ed., p. 74. 37 em liberdade o julgamento final do processo é a comprovação da presença de um daqueles requisitos acima referidos. Conclui-se que a necessidade é o fator determinante para alguém aguardar preso o julgamento final do seu processo, já que a Constituição garante que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.” Por outro lado, como a ampla defesa (e no seu bojo a garantia do duplo grau de jurisdição) também está absolutamente tutelada pela Carta Magna, o artigo ora analisado não pode ser interpretado literalmente, porém, mais uma vez, em conformidade com aquele Diploma, lendo-o da seguinte forma: não se pode condicionar a admissibilidade da apelação ao recolhimento do réu à prisão, mesmo que ele não seja primário e não tenha bons antecedentes. Aqui, vamos, inclusive, mais além: mesmo que a prisão seja necessária (e se revista, portanto, da cautelaridade típica da prisão provisória), ainda assim, admitir-se-á o recurso, mesmo que não tenha sido preso o acusado, ou que, após ser preso, venha a fugir. Observa-se que, agora, mesmo sendo cabível o encarceramento provisório (por ser, repita-se, necessário), o não recolhimento do acusado não pode ser obstáculo à interposição de eventual recurso da defesa, e se recurso houver, a fuga posterior não lhe obstará o regular andamento (não pode ser considerado deserto). Não concordamos, outrossim, que a exigência da prisão para recorrer seja uma “regra procedimental condicionante do processamento da apelação”, como pensa Mirabete56, pois, como contrapõe Luiz Flávio Gomes, “se não ofende a presunção de inocência ou a ampla defesa, indiscutivelmente ofende o princípio da necessidade de fundamentação da prisão, inscrito no art. 5º., LXI.”57 Vê-se que não optamos pela interpretação literal do art. 594, o que seria desastroso, tendo em vista as garantias constitucionais acima vistas. Por outro lado, utilizamo-nos do critério da interpretação conforme a Constituição, procurando adequar o texto legal com o Texto Maior e evitando negar vigência ao dispositivo, mas, antes, admitindo-o válido a partir de uma interpretação garantidora e em consonância com a Constituição. Afinal de contas, como já escreveu Cappelletti, “a conformidade da lei com a Constituição é o lastro causal que a torna válida perante todas.”58 Devemos atentar que o presente artigo foi inserido em nosso código processual penal pela Lei nº. 5.941/73, época em que vigiam em nosso País a 56 Processo Penal, São Paulo: Atlas, 10ª. ed., 2000, p. 649. 57 Direito de Apelar em Liberdade, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2ª. ed., p. 32. 58 Apud José Frederico Marques, in Elementos de Direito Processual Penal, Campinas: Bookseller, 1998, Vol. I, p. 79. 38 Constituição anterior a 1988 (que não trazia o princípio da presunção de inocência) e um regime político não democrático. Naquele contexto histórico, portanto, fácil era entender que uma lei ordinária viesse a dificultar o direito ao recurso e a prever a prisão automática decorrente de sentença condenatória recorrível. Bastava a sentença condenatória e a prisão impunha-se automaticamente, por força de lei, presumindo-se a culpabilidade ou a periculosidade do réu.59 Ocorre que desde 1988 temos outra Constituição, com outros princípios, muitos dos quais expressamente previstos (o que não impede a existência de princípios constitucionais implícitos, como, v.g., o da proporcionalidade). A lei anterior, então, tem que ser interpretada segundo este critério, ou seja, em conformidade com a nova ordem constitucional (sob pena de ser considerada não recepcionada e, logo, inválida), evidentemente sem ultrapassar o seu sentido literal, apenas conformando-a com a Constituição. Como dissemos, no tempo em que foi inserida em nosso sistema jurídico, a lei traduzia, em verdade, o momento histórico em que vivia o País, cabendo, por isso mesmo, atentarmos, agora, para o elemento históricoteleológico (concepção subjetivista da interpretação, ou teoria da vontade), segundo o qual a lei obedece ao tempo em que foi intencionalmente (finalisticamente) concebida, devendo ser interpretada preferencialmente em conformidade com aquela realidade. Devemos, então, buscar abrigo neste elemento histórico, acomodando a lei às “novas circunstâncias não previstas pelo legislador”, especialmente aos “princípios elevados a nível constitucional”.60 Só poderíamos interpretar este artigo literalmente se este modo interpretativo fosse possível à luz da Constituição. Por outro lado, não entendemos ser o caso de, simplesmente, reconhecer inválida a norma insculpida naquele artigo de lei. A nós nos parece ser possível interpretá-la em conformidade com o texto constitucional, sem que se o declare inválido e sem “ultrapassar os limites que resultam do sentido literal e do contexto significativo da lei.”61 Se verdade é que “por detrás da lei está uma determinada intenção reguladora, estão valorações, aspirações e reflexões substantivas, que nela acharam expressão mais ou menos clara”, também é certo que “uma lei, logo que seja aplicada, irradia uma acção que lhe é peculiar, que transcende aquilo 59 Ocorre que “nenhuma presunção emanada do legislador infraconstitucional pode prevalecer sobre a presunção constitucional”, como diz Luiz Flávio Gomes, ob. cit., p. 26. 60 “Estes são, sobretudo, os princípios e decisões valorativas que encontram expressão na parte dos direitos fundamentais da Constituição, quer dizer, a prevalência da ‘dignidade da pessoa humana’ (...), a tutela geral do espaço de liberdade pessoal, com as suas concretizações (...) da Lei Fundamental.” (Larenz, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 3ª. ed., 1997, p. 479). 61 Idem, p. 481 39 que o legislador tinha intentado. A lei intervém em relações da vida diversas e em mutação, cujo conjunto o legislador não podia ter abrangido e dá resposta a questões que o legislador ainda não tinha colocado a si próprio. Adquire, com o decurso do tempo, cada vez mais como que uma vida própria e afasta-se, deste modo, das idéias dos seus autores.” (grifo nosso): teoria objetivista ou teoria da interpretação imanente à lei.62 Portanto, não se pode ler o atual art. 594 e inferir, hoje, o que se traduz gramaticalmente desta leitura. A interpretação literal efetivamente deve ser o início do trabalho, mas não o completa satisfatoriamente.63 Observa-se que na exposição de motivos do projeto de lei ora comentado, justifica-se a revogação destes dispositivos afirmando que teve “como objetivo definir que toda prisão antes do trânsito em julgado final somente pode ter o caráter cautelar. A execução ‘antecipada’ não se coaduna com os princípios e garantias do Estado Constitucional e Democrático de Direito.” São os novos tempos... Vê-se que “las leyes son e deben ser la expresión más exacta de las necesidades actuales del pueblo, habida consideración del conjunto de las contingencias históricas, en medio de las cuales fueron promulgadas.” (grifo nosso)64 Ademais, atentando-se, outrossim, para o sistema jurídico e fazendo uma interpretação sistemática do dispositivo65, assinalamos que, posteriormente a ele, surgiu no cenário jurídico brasileiro a Lei nº. 8.072/90 (Crimes Hediondos), dispondo que “em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade.” (art. 2º., § 2º., com grifo nosso). Atenta-se, com Maximiliano, que o “Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio.”66 Para finalizar, recorremos, mais uma vez, a Larenz: “Mediante a interpretação ‘faz-se falar’ o sentido disposto no texto, quer dizer, ele é enunciado com outras palavras, expressado de modo mais 62 idem, ibidem, p. 446. 63 “Toda a interpretação de um texto há-de iniciar-se com o sentido literal” (idem, p. 450). 64 Fiore, Pascuale, De la Irretroactividad e Interpretación de las Leyes, Madri: Reus, 1927, p. 579 (tradução do italiano para o espanhol de Enrique Aguilera de Paz). 65 “Consiste o processo sistemático em comparar o dispositivo sujeito a exegese, com outros do mesmo repositório ou de leis diversas, mas referentes ao mesmo objeto”, segundo nos ensina Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro: Freitas Bastos S/A, 1961, 7ª. ed., p. 164. 66 Idem, p. 165. 40 claro e preciso, e tornado comunicável. A esse propósito, o que caracteriza o processo de interpretação é que o intérprete só quer fazer falar o texto, sem acrescentar ou omitir o que quer que seja. Evidentemente que nós sabemos que o intérprete nunca se comporta aí de modo puramente passivo.”67 Procura-se estabelecer neste novo Título critérios razoáveis para justificar as medidas cautelares no âmbito processual penal. Assim, a medida de natureza cautelar só será admitida se estiver comprovada a sua “necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de novas infrações penais”, ou seja, se presente o periculum libertatis. Além deste requisito, a medida deverá ser adequada “à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado”, o que indica que elas poderão ser determinadas pelo Juiz ainda na fase do Inquérito Policial. Tais medidas, também por determinação expressa, “poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente”, atendendo-se, evidentemente aos critérios da proporcionalidade e da razoabilidade, sob pena de se chocarem com a Constituição. De início, ressalve-se que “as medidas cautelares previstas neste Título não se aplicam à infração a que não for isolada, cumulativa ou alternativamente cominada pena privativa de liberdade.” Permite o projeto de lei que sejam decretadas de ofício pelo Juiz ou “a requerimento das partes ou, quando cabível, por representação da autoridade policial.” Aqui vale uma advertência: no sistema acusatório é sempre perigoso deferir ao Juiz a iniciativa de medidas persecutórias. Parece-nos desaconselhável permitir-se ao Magistrado a possibilidade de, ex officio, decidir acerca de uma medida cautelar de natureza criminal, pois que lembra o velho e pernicioso sistema inquisitivo68. É evidente que o dispositivo é perigoso, pois não se pode admitir que uma mesma pessoa (o Juiz), ainda que ungido pelos deuses, possa avaliar como “necessário um ato de instrução e ao mesmo tempo valore a sua legalidade. São logicamente incompatíveis as funções de investigar e ao mesmo tempo garantir o respeito aos direitos do imputado. São atividades que 67 Ob. cit., p. 441. 68 Parece-nos interessante transcrever um depoimento de Leonardo Boff, ao descrever os percalços que passou até ser condenado pelo Vaticano, sem direito de defesa e sob a égide de um típico sistema inquisitivo. Após ser moral e psicologicamente arrasado pelo secretário do Santo Ofício (hoje Congregação para a Doutrina da Fé), Cardeal Jerome Hamer, em prantos, disse-lhe o brasileiro: “Olha, padre, acho que o senhor é pior que um ateu, porque um ateu pelo menos crê no ser humano, o senhor não crê no ser humano. O senhor é cínico, o senhor ri das lágrimas de uma pessoa. Então não quero mais falar com o senhor, porque eu falo com cristãos, não com ateus.” Por uma ironia do destino, depois de condenado pelo inquisidor, Boff o telefonou quando o Cardeal estava à beira da morte, fulminado por um câncer. Ao ouvi-lo, a autoridade eclesiástica desabafou, chorando: “Ninguém me telefona... foi preciso você me telefonar! Me sinto isolado (...) Boff, vamos ficar amigos, conheço umas pizzarias aqui perto do Vaticano...” (in Revista Caros Amigos – As Grandes Entrevistas, dezembro/2000). 41 não podem ficar nas mãos de uma mesma pessoa, sob pena de comprometer a eficácia das garantias individuais do sujeito passivo e a própria credibilidade da administração de justiça. (...) Em definitivo, não é suscetível de ser pensado que uma mesma pessoa se transforme em um investigador eficiente e, ao mesmo tempo, em um guardião zeloso da segurança individual. É inegável que ‘o bom inquisidor mata o bom juiz ou, ao contrário, o bom juiz desterra o inquisidor’”.69 Ressoa claro que há efetivamente um certo distanciamento dos postulados do sistema acusatório, mitigando-se a imparcialidade70 que deve nortear a atuação de um Juiz criminal, que não se coaduna com a determinação pessoal e direta de medidas cautelares e de diligências investigatórias. Sabemos que no sistema acusatório estão divididas claramente três funções básicas: o Ministério Público acusa (ou investiga), o advogado defende e o Juiz apenas julga, em conformidade com as provas produzidas pelas partes. “Este sistema se va imponiendo en la mayoría de los sistemas procesales. En la práctica, ha demonstrado ser mucho más eficaz, tanto para profundizar la investigación como para preservar las garantías procesales”, como bem acentua Alberto Binder.71 Do pedido da medida cautelar, caso não haja urgência ou perigo de sua ineficácia, deve ser intimada a parte contrária, juntando-se à comunicação a “cópia do requerimento e das peças necessárias, permanecendo os autos em juízo”. Parece-nos que em caso da medida ser determinada de ofício pelo Juiz (quando não a ele solicitada), deve assim também se proceder, ou seja, cientificar-se à parte a quem a medida possa trazer algum prejuízo, ressalvadas as hipóteses de urgência ou de perigo para a eficácia da decisão. A medida cautelar será imposta acompanhada de determinadas obrigações que, acaso descumpridas, poderão acarretar a substituição da medida, a imposição cumulativa de uma outra ou, até mesmo, “em último caso”, a decretação da prisão preventiva, nos termos do parágrafo único do art. 312, decisões que podem ser tomadas pelo “juiz, de ofício ou mediante requerimento do Ministério Público, de seu assistente ou do querelante.” A medida cautelar, evidentemente, só se justificará se estiverem presentes o fumus commissi delicti e o periculum libertatis (ou o periculum in mora) e só deverá ser mantida enquanto persistir a sua necessidade. Assim, determina o projeto que o “juiz poderá revogar a medida cautelar ou substituí-la quando verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo 69 Lopes Jr., Aury, Investigação Preliminar no Processo Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 74. 70 Como diz o Professor da Universidade de Valencia, Juan Montero Aroca, “en correlación con que la Jurisdicción juzga sobre asuntos de otros, la primera exigencia respecto del juez es la de que éste no puede ser, al mismo tiempo, parte en el conflicto que se somete a su decisión.” (Sobre la Imparcialidad del Juez y la Incompatibilidad de Funciones Procesales, Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 186). 71 Iniciación al Proceso Penal Acusatório, Buenos Aires: Campomanes Libros, 2000, p. 43. 42 decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem”, ou seja, a medida cautelar, tanto para a sua decretação quanto para a sua mantença só se justifica enquanto aquelas circunstâncias iniciais existirem e se mantiverem (rebus sic stantibus). Atenta ao art. 5º., LVII e LXI, a nova redação do art. 283 assim dispõe: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.” Desta forma, a prisão provisória, ou seja, aquela anterior à sentença definitiva, só se legitima se for necessária nos termos da lei, em conformidade com o princípio da presunção de inocência. Pelo art. 311, “em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou do querelante, ou por representação da autoridade policial”, o que não constitui nenhuma novidade entre nós. O art. 312, por sua vez, estabelece os novos pressupostos e requisitos da prisão preventiva, a saber: a prova da existência do crime e de indícios suficientes da autoria, exigindo-se, ademais, que haja “fundadas razões de que o indiciado ou acusado venha a criar obstáculos à instrução do processo ou à execução da sentença ou venha a praticar infrações penais relativas ao crime organizado, à probidade administrativa ou à ordem econômica ou financeira consideradas graves, ou mediante violência ou grave ameaça à pessoa.” Como se disse acima, a prisão preventiva, excepcionalmente, “também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (artigo 282, § 4 º).” O art. 313 estabelece as condições legais que devem ser agregadas aos pressupostos e requisitos para justificar a prisão preventiva: 1) Nos crimes dolosos punidos com pena máxima superior a 4 (quatro) anos; ou 2) Se o indiciado ou acusado tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no art. 64, I do Código Penal (reincidência). Observando-se a exigência do art. 93, IX da Constituição, o novo art. 315 exige que a decisão que decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva seja sempre motivada (trata-se, a propósito, de uma decisão interlocutória simples e não de mero despacho, como no atual art. 315). Inovação importante e salutar é a possibilidade de que a prisão preventiva seja substituída pela domiciliar caso se trate de indiciado ou acusado maior de 70 (setenta) anos, ou sujeito a severas conseqüências de doença grave, ou seja necessário aos cuidados especiais de menor de 7 (sete) anos de idade, ou de deficiente físico ou mental, além da gestante a partir do 43 sétimo mês de gravidez ou sendo esta de alto risco (qualquer que seja o período de gestação), devendo o Juiz, em todos os casos, exigir prova idônea destas circunstâncias. Esta prisão domiciliar “consiste no recolhimento do indiciado ou acusado em sua residência, só podendo dela ausentar-se com autorização judicial”, sob pena de sua revogação. Entendemos que estas hipóteses são taxativas, não podendo o julgador elastecê-las. Se não for o caso de se decretar a prisão preventiva (por ausência de algum dos seus pressupostos, requisitos ou condições legais acima indicados), poderá o Juiz decretar outras medidas cautelares previstas no art. 319: 1) Comparecimento periódico em juízo, quando necessário para informar e justificar atividades; 2) Proibição de acesso ou freqüência a determinados lugares em qualquer crime, quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; 3) Proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; 4) Proibição de ausentar-se do país em qualquer infração penal para evitar fuga, ou quando a permanência seja necessária para a investigação ou instrução; neste caso, a proibição será comunicada pelo juiz às autoridades encarregadas de fiscalizar as saídas do território nacional, notificando-se o indiciado ou acusado a entregar o passaporte, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas. 5) Recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga nos crimes punidos com pena mínima superior a dois anos, quando o acusado tenha residência e trabalho fixos; 6) Suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando haja justo receio de sua utilização para a prática de novas infrações penais; 7) Internação provisória do acusado em crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (artigo 26 e parágrafo único do Código Penal) e houver risco de reiteração; 8) Fiança, nas infrações que a admitem72, para assegurar o comparecimento aos atos do processo (medida, portanto, de contra72 Quanto à fiança, observa-se que “a autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração cuja pena máxima de prisão não seja superior a 4 (quatro) anos” e, “nos demais casos, a fiança será requerida ao juiz, que decidirá em 48 (quarenta e oito) 44 cautela), evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada a ordem judicial, providência que poderá ser cumulada com outras medidas cautelares, em decisão devidamente motivada e justificada pela autoridade judiciária. Por outro lado, se não for o caso de decretação da prisão preventiva, por ausência de seus pressupostos, requisitos e das suas condições legais, “o juiz poderá conceder liberdade provisória, impondo as medidas cautelares previstas no artigo 319 (já elencadas), atentando-se para aqueles critérios acima estabelecidos: “necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de novas infrações penais” e “adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado”. Mesmo sendo o caso de pagamento de fiança, a liberdade provisória poderá ser concedida, sem fiança, se o juiz verificar ser o acusado insolvente, horas”. Em caso de recusa ou demora do Delegado de Polícia em arbitrar a fiança, “o preso, ou alguém por ele, poderá prestá-la, mediante simples petição, perante o juiz competente, que decidirá em 48 (quarenta e oito) horas.” Ademais, em consonância com a Carta Magna (art. 5º., XLII, XLIII e XLIV), são inafiançáveis os crimes de racismo, de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo, os crimes hediondos (Lei nº. 8.072/90) e os delitos cometidos por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. Além destes casos, o art. 324 impede a concessão da fiança: “I - aos que, no mesmo processo, tiverem quebrado fiança anteriormente concedida ou infringido, sem motivo justo, qualquer das obrigações a que se referem os artigos 327 e 328; II - em caso de prisão civil; III - quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (art. 312).” O art. 325, por sua vez, estabelece os limites da fiança nos seguintes termos: “I - de 1 (um) a 10 (dez) salários mínimos, quando se tratar de infração cuja pena de prisão, no grau máximo, não for superior a 2 (dois) anos; II - de 5 (cinco) a 100 (cem) salários mínimos, quando se tratar de infração cuja pena de prisão, no grau máximo, não for superior a 4 (quatro) anos; III - de 10 (dez) a 200 (duzentos) salários mínimos, quando o máximo da pena de prisão cominada for superior a 4 (quatro) anos.” Dependendo da situação econômica do indiciado ou acusado, “a fiança poderá ser reduzida até o máximo de dois terços ou aumentada, pelo juiz, até cem vezes.” Esta medida cautelar “poderá ser prestada enquanto não transitar em julgado a sentença condenatória.” Pelo art. 336, o “dinheiro ou objetos dados como fiança prestar-seão ao pagamento das custas, da indenização do dano, da prestação pecuniária ou perda de bens e da multa, se o réu for condenado”, ainda que seja o caso de “prescrição depois da sentença condenatória (Código Penal, art. 110).” “Se a fiança for declarada sem efeito ou passar em julgado a sentença que houver absolvido o acusado ou declarado extinta a ação penal, o valor que a constituir, atualizado, será restituído sem desconto”, salvo no caso do art. 110 do Código Penal. A fiança considerar-se-á quebrada quando o acusado “regularmente intimado para ato do processo, deixar de comparecer, sem motivo justo; II - deliberadamente praticar ato de obstrução ao andamento do processo; III - descumprir medida cautelar imposta cumulativamente com a fiança; IV - resistir injustificadamente a ordem judicial.” Este quebramento “importará na perda de metade do seu valor, cabendo ao juiz decidir sobre a imposição de outras medidas cautelares ou, se for o caso, a decretação da prisão preventiva”, que, evidentemente, só poderá ser decretada se estiverem presentes os requisitos, pressupostos e as condições legais já estabelecidas. Já pelo art. 344, “entender-se-á perdido, na totalidade, o valor da fiança, se, condenado, o acusado não se apresentar para o início do cumprimento da pena definitivamente imposta.” Julgada perdida a fiança “seu valor, deduzidas as custas e mais encargos a que o acusado estiver obrigado, será recolhido a fundo penitenciário, na forma da lei.” Por outro lado, decidindo-se pelo seu quebramento e feitas as deduções legais “o valor restante será recolhido a fundo penitenciário.” 45 hipótese em que ele ficará sujeito às obrigações constantes dos arts. 327 e 328 do atual CPP e a outras medidas cautelares, se for o caso. Na hipótese de descumprimento injustificado, ser-lhe-á aplicado o disposto no art. 282, § 4º., ou seja, “substituição da medida, imposição cumulativa de uma outra ou, em último caso, decretação da prisão preventiva”, se for cabível. Determina o projeto que “a prisão poderá ser efetuada em qualquer dia e a qualquer hora, respeitadas as restrições relativas à inviolabilidade do domicílio”, resguardando-se a garantia constitucional da casa como asilo inviolável do indivíduo (art. 5º., XI, Constituição Federal). O novo art. 300 repete a regra estabelecida na Lei de Execução Penal (art. 84) e na que dispõe sobre a prisão temporária (art. 3º. da Lei n. 7.960/89), disposições que, na prática, nem sempre são obedecidas, apesar de constarem nas Regras Mínimas da Organização das Nações Unidas (nº. 8.b): “As pessoas presas provisoriamente ficarão separadas das que já estiverem definitivamente condenadas.” Com o nosso atual sistema carcerário muito dificilmente tal artigo será observado, como não o são os artigos das Leis nºs. 7.210/84 e 7.960/89. O novo art. 310 prescreve que o Juiz, ao receber o auto de prisão em flagrante, deverá fundamentadamente: 1) Relaxar a prisão ilegal, tal como já determina o art. 5º., LXV, da Constituição Federal. 2) Ou converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos do artigo 312, disposição que entendemos conflitante com o nosso sistema, pois se o flagrante está perfeitamente caracterizado e o respectivo auto em conformidade com a lei, qual o sentido de se decretar a prisão preventiva, que também é modalidade de prisão provisória e cautelar? Pergunta-se mais uma vez: se já há uma prisão provisória (em flagrante) regularmente efetuada, por que se decretar uma outra (preventiva)? 3) Ou conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. Ademais, repetindo a regra estabelecida no atual caput do art. 310, estabelece-se que “se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato nas condições do art. 23, I, II e III do Código Penal, poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos processuais, sob pena de revogação.” Estranhamente, esta nova redação dispensa a ouvida do Ministério Público, em mais um dispositivo que se distancia do sistema acusatório; afinal de contas, quem melhor para avaliar se o agente atuou sob qualquer daquelas excludentes se não o Promotor de Justiça que, inclusive, poderá pedir o arquivamento do inquérito policial por faltar interesse de agir?73 Entendemos que o Juiz, por cautela, e em respeito ao art. 129, I da Constituição Federal, 73 A esse respeito, confira-se a excelente obra de Paganella Boschi, Ação Penal, Rio de Janeiro: AIDE, 1993, p. 62. 46 deverá sempre, nada obstante o silêncio da lei, ouvir o representante do parquet nestes casos. VIII. SUSPENSÃO DO PROCESSO/ PROCEDIMENTOS - PROJETO DE LEI 4.207/01 Este projeto de lei visa a alterar o Código de Processo Penal nos dispositivos relativos à suspensão do processo, emendatio libelli, mutatio libelli e aos procedimentos. A grande novidade trazida para nós é a possibilidade de na própria sentença condenatória penal o juiz fixar “valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido.” Assim, além da pena, o Juiz criminal deverá também estabelecer a sanção civil correspondente ao dano causado pelo delito. Como no México, na lição de Bustamante, se “establece que la reparación del daño forma parte integrante de la pena y que debe reclamarse de oficio por el órgano encargado de promover la acción (o sea, que es parte integrante de la acción penal), aun cuando no la demande el ofendido.”74 Disposição (apenas) semelhante já temos em nosso ordenamento jurídico-penal, mais especificamente no art. 630 do atual Código de Processo Penal, quando se estabelece que na Revisão Criminal o “Tribunal, se o interessado o requerer, poderá reconhecer o direito a uma justa indenização pelos prejuízos sofridos”, caso em que o acórdão constituir-se-á título judicial executório a ser liquidado na ação civil respectiva, oportunidade em que se definirá o quantum debeatur. Ademais, na Lei nº. 9.605/98 (a chamada Lei dos Crimes Ambientais), o art. 20 já estabelece que a “sentença penal condenatória, sempre que possível, fixará o valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido ou pelo meio ambiente.” Aqui, observa-se, mais uma vez, após a edição da Lei nº. 9.099/95, a preocupação em se resguardar os interesses da vítima no processo penal que, a bem da verdade, sempre esteve submetida a um papel secundário no Direito Processual Penal. Como se sabe, o ofendido pelo crime, sujeito passivo da relação jurídicopenal, normalmente não integra a relação jurídico-processual penal, salvo nas ações penais de iniciativa privada quando poderá, em nome próprio, interpor a ação penal, oferecendo uma queixa-crime75. 74 Apud Tourinho Filho, Processo Penal, Vol. II, São Paulo: Saraiva, 20ª. ed., 1998, p. 9. 75 A ação penal de iniciativa privada é um caso típico de substituição processual, pois o ofendido, defendendo interesse alheio, “age em nome próprio e é parte na causa”, ao contrário do que ocorre nos casos de representação, “de vez que o representante processual age em nome de outro, de sorte que parte na causa é, na verdade, o representado” (cfr. Giuseppe Chiovenda, Instituições de Direito Processual Civil, Campinas: Bookseller, 1998, p. 301, tradução de Paolo Capitanio). 47 Já nas ações penais públicas (a grande maioria), a vítima desempenha um papel absolutamente secundário. Mesmo que se habilite como assistente de acusação, ainda assim tem suas atividades bastante reduzidas, não podendo sequer interpor todos os recursos previstos na legislação processual (veja-se o art. 271 do Código de Processo Penal).76 Na verdade, é fato inconteste que a vítima não ocupa na ciência criminal um papel de relevo, ao contrário do que ocorreu no início da civilização quando “teve relevante papel na punição dos autores de crimes”.77 García-Pablos, por exemplo, informa que “o abandono da vítima do delito é um fato incontestável que se manifesta em todos os âmbitos (...). O Direito Penal contemporâneo – advertem diversos autores – acha-se unilateralmente voltado para a pessoa do infrator, relegando a vítima a uma posição marginal, ao âmbito da previsão social e do Direito Civil material e processual”.78 A própria legislação processual penal relega a vítima a um plano desimportante, inclusive pela “falta de mención de disposiciones expressas en los respectivos ordenamientos que provean medidas para salvaguardar aquellos valores ultrajados”.79 O que ocorre é que a lide penal80 se consubstancia, basicamente, no conflito entre a pretensão punitiva do Estado e a pretensão à liberdade do acusado (status libertatis). Neste contexto, a vítima não é considerada como um sujeito de direitos, mas como mero objeto ou pretexto da investigação.81 É bem verdade que entre nós, com o surgimento da Lei nº. 9.099/95, privilegiou-se o sujeito passivo do crime, dando-se extrema importância à reparação civil dos danos (arts. 72 e 89, § 1º., I), chegando a se eleger como um dos objetivos da lei a reparação dos danos sofridos pela vítima (art. 62, in fine). 76 Nas ações penais públicas pode também o ofendido interpor queixa-crime subsidiária, na hipótese de desídia do Ministério Público (art. 29 do Código de Processo Penal). Neste caso, cabe ao Ministério Público aditar a queixa, repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os termos do processo, fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal. 77 Antonio Scarance Fernandes, O papel da vítima no processo criminal, São Paulo: Malheiros, 1995, p. 11 78 Antonio García-Pablos de Molina, Criminologia, São Paulo: RT, 1992, p. 42, tradução de Luiz Flávio Gomes 79 Juan H. Sproviero, La víctima del delito y sus derechos, Buenos Aires: Depalma, p. 24 80 Advirta-se que a expressão “lide” penal é combatida por setores da doutrina, preferindo alguns autores falar em controvérsia penal, causa penal ou caso penal (a respeito conferir Jacinto Miranda Coutinho, A Lide e o Conteúdo do Processo Penal, Curitiba: Juruá, 1998 e Ada Pellegrini Grinover, Antonio Carlos de Araújo Cintra e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria Geral do Processo, 15ª. ed., São Paulo: Malheiros, 1999, p. 132 81 García-Pablos, ob. cit., p. 70 48 De toda forma, ainda há um grande caminho a percorrer quando se trata de se estabelecer exatamente o papel da vítima no processo penal. Como dizem os italianos Michele Correra e Danilo Riponti, “la storia della giustizia penale quasi coincide con il progressivo declino dell’influenza della vittima sulla reazione sociale allá criminalità”.82 Ora, a consumação de uma infração penal não acarreta, tão-somente, o aparecimento da pretensão punitiva do Estado. Com o crime poderá vir a surgir, também, a pretensão individual de ressarcimento do dano causado à vítima. Assim, a princípio, ao lado da pretensão punitiva, de regra (pois nem toda ação delituosa é necessariamente ressarcível) a prática da infração penal dá ensejo ao direito de alguém a ser indenizado civilmente pelo dano provocado. Entre nós esta norma vem expressa no art. 159 do Código Civil: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”. Atento a isto, Vitu já ponderava: “En matière pénale, l’infraction donne naissance à deux actions: ‘l’action pour l’application des peines’ et ‘l’action en réparation du dommage causé’, ou encore l’action publique et l’áction civile”.83 Na verdade, é bom advertir que o direito à ação penal não surge apenas quando do cometimento do delito. Como se sabe, a ação penal é um direito subjetivo público e abstrato e, como tal, “precede ao delito, é a este anterior. O que decorre do crime é a pretensão punitiva. O direito de agir para pôr em movimento os órgãos da jurisdição penal, o Ministério Público o possui em abstrato, pela só razão de não ser auto-executável o direito de punir”.84 Com o crime surge, sim, a pretensão punitiva e o jus accusationis. Pode ocorrer, por outro lado, que da prática delituosa, por não ter acarretado um dano, não decorra qualquer pretensão civil, pois “infrações penais há que originam tão-somente a pretensão punitiva, como ocorre, por exemplo, em certos casos de tentativa branca, no crime impossível, nos crimes contra a paz pública, em alguns crimes contra a administração da justiça”.85 Com tais ressalvas, o certo é que, via de regra, a prática do delito também faz surgir a pretensão da vítima a um ressarcimento pelo respectivo dano. Como escreveu Bettiol, “o crime ocasiona, portanto, não apenas um 82 La Vittima nel Sistema Italiano della Giustizia Penale, Padova: CEDAM, 1990, p. 18 83 André Vitu, Procédure Pénale, Paris: Presses Universitaires de France, 1957, p. 144 84 José Frederico Marques, Elementos de Direito Processual Penal, Campinas: Bookseller, 1998, p. 289 85 Fernando da Costa Tourinho Filho, Processo Penal, Vol. II, 20ª. ed., São Paulo: Saraiva, 1998, p. 3 49 dano penal, mas também um dano civil que deve ser reparado. Assim, gravita em torno do crime toda uma série de interesses e de disposições não penais que, por se referirem ao crime, poderiam agrupar-se sob a denominação de ‘direito criminal civil’”. Este autor, discordando desta última expressão, ressalva que ela foi cunhada por Rocco e acompanhada por Cavallo.86 Já Pimenta Bueno, o velho Marquês de São Vicente, advertia: “Todo o crime sujeita o delinqüente a duas condições legais: a sofrer a sanção penal pelo delito que cometeu, e a reparar o mal ou dano que por ele causou”.87 Comentando o art. 159 do Código Civil, ensina Clóvis: “Tal como resulta dos termos do art. 159, ato ilícito é a violação do direito ou o dano causado a outrem por dolo ou culpa. O dolo consiste na intenção de ofender o direito ou prejudicar o patrimônio por ação ou omissão. A culpa é a negligência ou imprudência do agente, que determina violação do direito alheio ou causa prejuízo a outrem. Na culpa há, sempre, a violação de um dever preexistente”.88 Quem causar um dano a outrem passa a ter responsabilidade para indenizá-lo, por força da chamada responsabilidade extracontratual ou delitual que se baseia na existência de culpa do agente, “fonte genérica e abstrata da responsabilidade”.89 Para o mestre Orlando Gomes, a responsabilidade delitual é a conseqüência “que a lei faz derivar da prática de um ato ilícito, que, por definição, há de ser culposo”, alertando, com apoio em Josserand, “que o conceito de risco não expulsou o de culpa, que se conserva com a base normal e geral da responsabilidade”.90 “Segundo a regra geral do Código Civil (art. 159), sem a culpa não existe responsabilidade civil por dano superveniente”. (RT, 494:35). O ato ilícito é uma conduta contrária ao Direito que traz para o seu transgressor uma determinada sanção jurídica, necessariamente institucionalizada. Se a conduta ilícita, tendo em vista a natureza dos interesses que lesa, acarreta uma sanção de natureza penal (privação da liberdade, através da aplicação das penas de reclusão, detenção ou prisão simples; restrição de direitos; pecuniária e eventual medida de segurança) estamos 86 Giuseppe Bettiol, Direito Penal, Vol. III, São Paulo: RT, 1976, p. 229. 87 José Antonio Pimenta Bueno, Apontamentos sobre o Processo Criminal Brasileiro, 3ª. ed., Rio de Janeiro: H. Garnier, 1959, p. 73 88 Clóvis Bevilaqua, Comentários ao Código Civil, Vol. I, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1949, p. 449 89 Orlando Gomes, Obrigações, 1ª. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1961, p. 377 90 idem, ibidem 50 diante de um ilícito penal, que tem sua origem no Código Penal e em leis penais extravagantes. Como diz Tornaghi, “não há entre o delito civil e o delito penal nenhuma diferença intrínseca. A única divergência entre um e outro está exatamente na pena. No direito privado restabelece-se o equilíbrio jurídico, violado pelo ato ilícito, com a reparação do dano; no Direito penal, em teoria pelo menos, com a execução da pena”.91 Já o ilícito civil, que pressupõe a infração de norma que tutela interesse privado92, acarreta sanções de outra natureza, não penais. O ilícito penal, levando-se em conta os valores por ele atingidos, não admite outra sanção senão a de caráter penal. Ocorre que determinados fatos (aliás a grande maioria) têm como conseqüência jurídica uma dupla sanção, uma de natureza penal, outra de natureza civil (esta última por ter também ferido um interesse privado). Por outro lado, as sanções civis têm aspectos visivelmente diversos das sanções penais, como a patrimonialidade, a transmissibilidade e o caráter não afligente. Como diz Vitu, “l’action publique a pour objet le prononcé d’une peine ou d’une mesure de défense sociale”, enquanto a ação civil, que tem como objeto a “réparation du dommage cause par une infration”, “tend à obtenir un dédommagement pécuniaire”.93 Orlando Gomes ensina, por exemplo, que para a caracterização do ilícito civil “basta que um interesse privado seja atingido em conseqüência da conduta culposa de alguém. Se do fato material da violação de um dever jurídico resulta dano, o Direito civil está caracterizado”.94 Ou, como diz Zaffaroni el instrumento de la coerción penal es la pena, com a finalidade de cumplimentar la función del derecho penal, es decir, proveer a la seguridad jurídica, a la seguridad de la co-existencia, previniendo la comisión de nuevas conductas afectantes de bienes jurídicos con una acción resocializàdora sobre el autor.95 A responsabilidade jurídica pode ser civil ou penal.96 A responsabilidade penal decorre sempre do cometimento do “fato punível”. Sem a prática de um delito, é dizer, de um fato típico, antijurídico e 91 Comentários ao Código de Processo Penal, Vol. I, Tomo II, Rio de Janeiro: Forense, 1956, p. 125 92 Orlando Gomes, ob. cit., p. 350 93 André Vitu, ob. cit., p. 164 94 idem, p. 351 95 Eugenio Raúl Zaffaroni, Tratado de Derecho Penal, Buenos Aires: Ediar, 1987, p. 63 96 Parte da doutrina ainda cita a responsabilidade disciplinar (atribuída exclusivamente ao funcionário público) e a contábil, que não deixam de ser, a nosso ver, espécies da responsabilidade civil. 51 culpável, não há de se falar em responsabilidade penal. E este fato típico tem que estar necessariamente cunhado em uma lei penal (nulla poena sine lege). A responsabilidade civil também pode decorrer da prática delituosa, bastando que o crime tenha ocasionado um dano, patrimonial ou não. Ocorre que, enquanto a responsabilidade penal é rigorosamente pessoal, a responsabilidade civil é ampla, atingindo as pessoas que, segundo a lei civil, devam responder pelo fato (art. 1.587 do Código Civil).97 “A obrigação à restituição é característica e típica sanção civil, porque consiste no restabelecimento do estado de fato que existia antes da prática do delito. A restituição pode dizer respeito às coisas móveis de que o culpado se apoderou ilicitamente, como também às coisas imóveis, através, por exemplo, da remoção das linhas de demarcação após um delito de usurpação. A restituição não diz respeito apenas à coisa, mas se estende também aos seus frutos”.98 Adverte-se que a responsabilidade objetiva é rechaçada pelo Direito Penal moderno, pois todo crime deve, necessariamente, decorrer de culpa (lato sensu): nullum crimen sine culpa. Em Direito Civil, como se sabe, admite-se a responsabilidade sem culpa ou objetiva, explicada pela teoria do risco.99 Resumindo e simplificando, dizem Mazeaud et Mazeaud que a diferença entre a responsabilidade civil e a responsabilidade penal é a distinção entre o Direito Penal e o Direito Civil”.100 Em relação às respectivas ações decorrentes do crime (ação civil e ação penal), são conhecidos quatro sistemas, senão vejamos: 1) Sistema da confusão: a mesma ação tem como finalidade a imposição de pena e a reparação civil. 2) Da solidariedade: apesar de haver duas ações distintas, a penal e a civil, ambas, porém, são aforadas no mesmo juízo (criminal) e em um só processo. 3) Da livre escolha ou da interdependência: permite a facultatividade, ou seja, a vítima (ou quem tenha legitimidade ativa) opta entre cumular as duas ações no juízo criminal (em um mesmo processo) ou separar as demandas (em processos diferentes e em juízos diversos). 97 Diz a Constituição Federal: “nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor patrimonial transferido” (art. 5º., XLV) 98 Giuseppe Bettiol, ob. cit., p. 233 99 Para Orlando Gomes, “o dever de indenizar o dano produzido sem culpa é antes uma garantia do que uma responsabilidade”. (ob. cit., p. 410) 100 Apud Rui Stoco, Responsabilidade Civil e Sua Interpretação Jurisprudencial, São Paulo: RT, 1994, p. 40 52 4) Da separação ou da independência: a ação civil só pode ser aforada no juízo cível, assim como a ação penal só o pode no juízo criminal. O Brasil adotou o sistema da independência ou da separação, ou seja, “não há comistão nem cumulação, obrigatória ou facultativa. Quem quiser mover ação civil terá de fazê-lo na sede civil”.101 Explicando este sistema, Araken de Assis, anota que “essa separação de ações denota a consolidação histórica de determinados fatores. Eles são três: primeiro, a individualização dos campos da ilicitude em razão da natureza do interesse infringido; ademais, a dissociação das situações legitimadoras, cabendo a ação proveniente do ilícito, que, porventura, envolva interesse público, a pessoa diversa da vítima; e, por fim, a diversidade de sanções aplicáveis em cada esfera de ilicitude”.102 Em nosso Código de Processo Penal, a matéria da responsabilidade civil decorrente de crime vem estampada nos arts. 63 a 68 do respectivo código, que tratam da chamada ação civil ex delicto (actio civilis ex delicto). Como já se viu, a ação civil “que procede do crime, é o direito de demandar a reparação ou satisfação plena do mal causado pelo delito”.103 Entre nós, a ação civil para ressarcimento do dano causado pela infração penal (crime ou contravenção) pode ser interposta antes, durante ou depois da ação penal respectiva; o ofendido (ou os demais legitimados) pode aguardar o desfecho do processo criminal, executando, então, a sentença penal condenatória, ou, se preferir, pode, desde logo, intentar a ação indenizatória no Juízo cível, independentemente do andamento ou mesmo do início da ação criminal. Exige-se, apenas, que a infração penal tenha ocasionado algum dano à vítima, o que não ocorre necessariamente em todos os delitos, como, v.g., o uso de droga, que não acarreta dano algum a ninguém salvo ao próprio usuário.104 Estas possibilidades resultam claras nos arts. 63 e 64 do Código de Processo Penal: “Art. 63. Transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros. 101 Hélio Tornaghi, ob. cit., p. 116 102 Eficácia Civil da Sentença Penal, 2ª. ed., São Paulo: RT, 2000, p. 196 103 José Antonio Pimenta Bueno, ob. cit., p. 73 104 Exatamente por isso inadmissível é a criminalização do uso de entorpecente. Como diz Maria Lúcia Karam, “a aquisição ou posse de drogas para uso pessoal, da mesma forma que a autolesão ou a tentativa de suicídio, situa-se na esfera de privacidade de cada um, não podendo o Direito nela intervir (...), pois o Direito não pode punir o autoprejuízo, não pode intervir em condutas que não saiam da esfera individual, que não tenham potencialidade para afetar terceiros”. (in De Crimes, Penas e Fantasias, Rio de Janeiro: LUAM, 1991, p. 128) 53 “Art. 64. Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, a ação para ressarcimento do dano poderá ser proposta no juízo cível, contra o autor do crime e, se for o caso, contra o responsável civil”. Vê-se, portanto, que não se faz necessária uma sentença penal condenatória transitada em julgado para se pretender, no cível, a reparação do dano. O ofendido ou seu representante legal ou seus herdeiros podem, independentemente da ação penal, antecipar-se e pretender, desde logo, o ressarcimento. É evidente que neste último caso não terá o autor um título executivo judicial, representado pela sentença penal condenatória. Esta possibilidade de se impetrar a ação civil, antes mesmo da ação penal, advém do fato de que ambas as instâncias são independentes (conforme o sistema adotado por nós), nada obstante, como veremos mais adiante, algumas decisões criminais influenciarem decisivamente o julgamento no cível. O certo, porém, é que a ação penal e a ação civil são autônomas, ainda que a sentença penal seja determinante no cível em relação a determinados aspectos. A autonomia, portanto, não é absoluta, como queria Toullier. Prevaleceu na doutrina a teoria de Merlin, adotada, inclusive, pelo nosso Código Civil, ao dispor no seu artigo 1.525 que: “A responsabilidade civil é independente da criminal; não se poderá, porém, questionar mais sobre a existência do fato, ou quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no crime”. Esta disposição do Código Civil se justifica plenamente, a fim de que se evitem decisões absolutamente discrepantes, em evidente prejuízo para a ordem jurídica. Não seria admissível atestar-se em um processo que alguém praticou um delito e, sob o mesmo sistema jurídico, afirmar-se o contrário em outro processo ou, como bem diz Washington de Barros Monteiro, “decidir-se na justiça penal que determinado fato ocorreu e depois, na justiça civil, decidir diferentemente que o mesmo não se verificou”. Para este civilista “repugna conceber que o Estado, em sua unidade, na repressão de um fato reputado como ofensivo da ordem social, decida soberanamente, por um de seus órgãos jurisdicionais, que esse fato constitui crime, que seu autor é passível de pena e o condene a sofrer o castigo legal; e que esse mesmo Estado, prosseguindo na repressão do fato antijurídico, venha a declarar, por outro ramo do Poder Judiciário, que ele não é delituoso, que é perfeitamente lícito, que não acarreta responsabilidade alguma para seu autor, que não está assim adstrito ao dever de compor os danos a que deu causa”. 105 105 Curso de Direito Civil, Vol. V, Direito das Obrigações, 2ª. Parte, 27ª. ed., São Paulo: Saraiva, 1994, p. 403 54 Bem antes, João Monteiro já indagava: “Que papel representaria o Poder Público, se o mesmo crime pudesse existir e não existir, ou se X fosse e não fosse o autor de determinado crime?”.106 Por sua vez, complementando esta relativa independência entre as duas instâncias, o Código de Processo Penal proclama: “Art. 65. Faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito”. Este artigo guarda estreita relação com o disposto no art. 160, I e II do Código Civil, in verbis: “Art. 160. Não constituem atos ilícitos: I – Os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido. II – A deterioração ou destruição da coisa alheia, a fim de remover perigo iminente (arts. 1.519 e 1.520)”. Vê-se, portanto, que o sistema adotado pelo Brasil reconhece a independência entre o Juízo cível e o penal, ressalvando, no entanto, que quanto à autoria e à existência do delito prevalece o decidido no crime (art. 1.525 do Código Civil), bem como no que se refere às causas excludentes de ilicitude (art. 23 do Código Penal); exatamente por isso, o parágrafo único do art. 64 “faculta” ao Juiz da ação civil suspender o curso do respectivo processo, até que se decida definitivamente a ação penal.107 Temos, então, que se na ação penal for decidido por sentença transitada em julgado que o réu não cometeu o delito, esta questão não pode ser mais discutida no cível, ou seja, o Juiz da ação civil não poderá decidir contrariamente. O mesmo se diga se a sentença penal absolutória fundamentar-se na inexistência categórica do fato ou admitir a licitude da ação 106 Apud Fernando da Costa Tourinho Filho, Processo Penal, Vol. II, 20ª. ed., São Paulo: Saraiva, 1998, p. 28 107 Entendemos que este poder se traduz em verdadeiro dever, ou seja, o Juiz cível, ao invés de poder, deve suspender o curso do processo. Como ensina Maximiliano, “ater-se aos vocábulos é processo casuístico, retrógrado. Por isso mesmo se não opõe, sem maior exame, pode a deve, não pode a não deve. Se, ao invés do processo filológico de exegese, alguém recorre ao sistemático e ao teleológico, atinge, às vezes, resultado diferente: desaparece a antinomia verbal, pode assume as proporções e o efeito de deve”. (cfr. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 7ª. ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961, p. 336). Assim também pensa Tourinho Filho, ao afirmar com propriedade: “A faculdade que o parágrafo único do art. 64 do CPP concede ao Juiz da ação civil de suspender a instância desta, até que seja definitivamente julgada a ação penal proposta contemporaneamente com aquela, torna-se uma obrigação, pois que o Juiz, velando pelo decoro da Justiça, terá de evitar o conflito de decisões díspares, baseadas em um mesmo fato e na mesma ação antijurídica. E, para evitar essas conseqüências desastrosas, pelo atrito de julgados irreconciliáveis, a faculdade se há de converter em obrigação”. (cfr. ob. cit., p. 36) 55 pelo reconhecimento de qualquer uma das causas que excluem o crime, previstas no art. 23 do Código Penal. “Realmente, o conflito entre sentenças que apreciam o mesmo fato, uma negando e a outra afirmando a sua existência, uma recusando a autoria do delito e a outra aceitando-a, criaria uma situação de contundente extravagância. Inclinou-se a doutrina, por isso, para a conclusão de Merlin, negando-lhe os fundamentos. A decisão proferida no Juízo criminal tranca o Juízo civil toda vez que declarar inexistente o fato imputado ou disser que o acusado não o praticou. Quando, porém, como bem esclareceu Mendes Pimentel ‘a absolvição criminal teve motivo peculiar ao direito ou ao processo penal, como a inimputabilidade do delinqüente ou a prescrição da ação penal, a sentença criminal não obsta ao pronunciamento civil sobre a reparação do dano’”.108 Observa-se, contudo, que a inexistência material do fato deve ser reconhecida categoricamente, sob pena de não vincular a decisão cível. Dí-lo o art. 66 do Código de Processo Penal: “Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato”. Assim, para fazer coisa julgada na área cível, a sentença penal absolutória deverá fundar-se no art. 386, I do Código de Processo Penal (O juiz absolverá o réu desde que reconheça estar provada a inexistência do fato); se o fizer com fulcro no inciso II (por não haver prova da existência do fato), admite-se a ação ex delicto, podendo o Juiz cível reconhecer a materialidade do crime a partir das provas colhidas neste Juízo. Neste último caso, observase que a decisão criminal não foi peremptória quando do decreto absolutório; faltaram provas contundentes em relação à materialidade do delito e, exatamente por isso, restou a via cível para provar a sua existência. Não foi negada a materialidade, mas apenas se declarou a inexistência de provas quanto a ela. O Código de Processo Penal ainda estabelece (e, a bem da verdade, nem o precisaria) que a decisão penal extintiva da punibilidade não prejudica a ação civil (art. 67, II). É evidente esta outra ressalva, visto que as causas ensejadoras da extinção da punibilidade no campo penal são de natureza diversa do civil. Mesmo quando se trata da prescrição (causa comum às duas ações), os prazos são outros em matéria penal. Outro exemplo: a morte do ofensor impede a propositura ou obstaculiza a continuação de uma ação penal; este mesmo fato, porém, não impossibilita nem macula a pretensão de ressarcimento, que poderá ser proposta contra os respectivos sucessores. 108 Orlando Gomes, ob. cit., p. 352 56 “É de ponderar, entretanto, que, se a causa extintiva da punibilidade for a prevista no art. 107, VII ou VIII, do CP, a ação civil perderá seu objetivo”. 109 Também não impede a propositura da ação civil a sentença absolutória que decidir que o fato imputado não constitui crime (art. 67, III c/c art. 386, III). Assim, verbi gratia, um cheque emitido sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado, porém pós-datado ou dado como garantia de dívida, pode vir a não constituir um delito (como entendem majoritariamente a doutrina e a jurisprudência pátrias, inclusive o STF), porém certamente constituirá um ilícito civil; ou seja, a decisão judicial/penal que entender pela atipicidade desta conduta não terá o condão de impedir a ação civil, pois o fato poderá vir a ser reconhecido como um ilícito civil e, portanto, indenizável se causou dano. A conduta não se encaixa em um tipo penal, mas se ajusta a um ilícito civil. O mesmo se diga quando a sentença absolutória fundar-se no art. 386, IV e VI, é dizer, na insuficiência de prova quanto à autoria e para a condenação, respectivamente. Em ambos os casos não houve categórica negação do fato ou da autoria delituosa, pelo que continua o Juiz cível livre para decidir e condenar. Por fim, o art. 67, I do mesmo código ainda estabelece que a decisão judicial que determinar o arquivamento do inquérito policial ou de qualquer outra peça informativa, não constituirá em impedimento para a propositura da ação civil. Este inciso também soa lógico, pois tal decisum sequer foi proferido em uma ação de conhecimento, sequer houve processo criminal. Ainda no Código de Processo Penal, encontramos dispositivos relacionados com a mesma matéria, como por exemplo, os arts. 118 a 124, que tratam da restituição de coisa apreendida e arts. 125 a 144 (das medidas assecuratórias); a respeito destes últimos dispositivos, assim comentou Tourinho Filho: “O CPP prevê, nos arts. 118 a 120, a possibilidade da restituição ao lesado de coisas apreendidas no juízo criminal e até mesmo na fase investigatória que precede a propositura da ação penal. (...) “Além disso, admitem-se na sede penal várias medidas cautelares no campo da satisfação do dano. Seqüestro, arresto e hipoteca legal são providências precautórias que podem ser tomadas perante o Juiz penal.(...) “Em caso de condenação, os autos desse procedimento incidental (seqüestro, arresto e hipoteca levados a cabo na Justiça penal) serão encaminhados ao cível, para os fins do art. 63 do CPP”.110 109 Fernando da Costa Tourinho Filho, ob. cit., p. 47 110 Ob. cit., p. 11 57 Na restituição ocorre, na verdade, uma execução administrativa independente de qualquer ação judiciária, come provvedimento di polizia, nas palavras de Nino Levi.111 Já no Código Penal estão estabelecidos diversos efeitos secundários da sentença penal condenatória, alguns de natureza penal e outros de natureza civil, entre os quais o de tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime (art. 91, I). Assim, a sentença condenatória, além de aplicar a sanção de natureza penal, funciona como decisão declaratória de “que houve a prática de um ato ilícito e, conseqüentemente, de um ato que violou direito de outrem. É por esse motivo que a condenação torna ‘certa a obrigação de indenizar o dano resultante do crime’”. 112 Ainda no Código Penal, merecem lembrança três outros dispositivos, quais sejam: o art. 16, que trata do arrependimento posterior, segundo o qual a reparação do dano ou a restituição voluntária da coisa, até o recebimento da peça acusatória reduz obrigatoriamente a pena a ser aplicada pelo Juiz, desde que o crime tenha sido praticado sem violência ou grave ameaça à pessoa; e o art. 65, III, b, que estabelece uma circunstância atenuante para o acusado que, antes do julgamento, repare o dano. Há, ainda, o disposto nos arts. 43, I, c/c 45, § 1º.: a pena restritiva de direito consubstanciada na prestação pecuniária, que, por sua vez, consiste no pagamento em dinheiro à vítima, a seus dependentes, ou a entidade pública ou privada com destinação social do valor compreendido entre 1 a 360 salários mínimos que serão deduzidos do montante de eventual condenação em ação de reparação civil, se coincidentes os beneficiários. Luiz Flávio Gomes ressalta que esta “prestação pecuniária possui cunho indenizatório, seja de danos materiais, seja de danos morais”.113 A Lei nº. 9.099/95, que criou os Juizados Especiais Criminais, erigiu à categoria de fator extintivo da punibilidade a composição civil dos danos entre o autor do fato e a vítima nos crimes de ação penal de iniciativa privada e nos de ação pública condicionada à representação. Assim, se o autor do fato, em uma audiência preliminar e antes mesmo de iniciar-se o processo, aceitar reparar o dano causado ao ofendido, será homologado o respectivo acordo que terá eficácia de título a ser executado no Juízo cível competente (art. 74). Mesmo nos casos de ação penal pública incondicionada, a lei não dispensa a realização dessa audiência preliminar, devendo sempre ser tentada a composição civil dos danos. Neste último caso, apesar de não haver a extinção da punibilidade, o autor do fato no momento oportuno terá direito às diminuições de pena referidas na Parte Geral do Código Penal (arts. 16 e 61, III, b). 111 Apud José Frederico Marques, Tratado de Direito Penal, Vol. III, Campinas: Millennium, 1999, p. 373 112 José Frederico Marques, ob. cit., p. 369 113 Penas e Medidas Alternativas à Prisão, São Paulo: RT, 1999, p. 131 58 Ainda nesta lei há outro dispositivo que privilegia a reparação do dano: o art. 89, que disciplina o instituto da suspensão condicional do processo, estabelecendo como uma das condições legais para o benefício a reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo (art. 89, § 1º., I). No seu § 3º. se estabelece a obrigatoriedade da revogação da suspensão caso, no curso do respectivo prazo, o beneficiário não efetue, sem motivo justificado, a reparação do dano. Comentando esta lei, verdadeira revolução no sistema processual-penal brasileiro, Ada, Magalhães, Scarance e Luiz Flávio ressaltam que a “preocupação com a vítima é postura que se reflete em toda a lei, que se ocupa da transação civil e da reparação dos danos na suspensão condicional do processo”.114 Cezar Roberto Bitencourt, no mesmo entendimento, assevera: “A Lei 9.099, de 1995, finalmente, dá uma importância extraordinária à reparação do dano ‘ex delicto’, que surge como uma obrigação natural decorrente da realização da infração penal, tornando-a prioritária em relação à composição da pena. Enfim, uma lei que se preocupa com o primo pobre da complexa relação processual criminal, voltando ‘seus olhos míopes, ainda que tardiamente, para a desventurada vítima’”115 Evidentemente que tanto a composição civil dos danos (art. 74), quanto a reparação do dano na suspensão condicional do processo (art. 89, III, b) não impedem posterior ação civil ex delicto. Neste caso, o Juiz ao fixar o valor da indenização deverá abater o que teria sido pago nos Juizados Especiais Criminais.116 Na Lei nº. 9.503/97, que institui o Código de Trânsito Brasileiro, há a penalidade de multa reparatória que consiste no pagamento, mediante depósito judicial em favor da vítima, ou seus sucessores, de quantia calculada com base no disposto no § 1º. do art. 49 do Código Penal, sempre que houver prejuízo material resultante do crime. Na indenização civil do dano, o valor da multa reparatória será descontado (art. 297 e seu § 3º.). Depois de observarem que ao longo do tempo, a legislação penal procurou estimular a reparação do dano à vítima, Paulo José da Costa Jr. e Maria Elizabeth Queijo aduzem que a multa reparatória “objetiva a indenização da vítima ou de seus sucessores e não a prevenção do delito e tem natureza 114 Ada Pellegrini Grinover e outros, Juizados Epeciais Criminais, 3ª. ed., São Paulo: RT, 1999, p. 35 115 Novas Penas Alternativas, São Paulo: Saraiva, 1999, p. 115 116 Neste sentido vejam-se as disposições contidas na Lei nº. 9.605/98, art. 12; no Código Penal, art. 45, § 1º., in fine e no Código de Trânsito Brasileiro, art. 297, § 3º. 59 civil, embora aplicada pelo Juízo criminal, tanto que se permite o seu desconto no valor da indenização civil do dano (§ 3º. do art. 297)”.117 Possuem legitimidade para a ação civil ex delicto o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros. Por ofendido entenda-se quem foi diretamente prejudicado pelo fato delituoso. Se esta vítima não mais existir, legitimam-se os seus herdeiros. Se não tiver capacidade para pleitear, o seu representante legal adquire legitimidade (art. 63, CPP). O Ministério Público também tem tal legitimidade, como substituto processual, sempre que o titular do direito à reparação do dano for pobre e assim o requerer ao parquet (art. 68). Para efeitos processuais penais, considera-se pobre a pessoa que não puder prover às despesas do processo, sem privar-se dos recursos indispensáveis ao próprio sustento ou da família (art. 32, § 1º., CPP). Neste caso, segundo anota Tourinho Filho, o Ministério Público age excepcionalmente e “o faz para melhor tutelar os interesses particulares. É um caso típico de administração pública de interesses privados”.118 É bem verdade que alguns já entendem que não tem mais o Ministério Público esta legitimidade para a ação civil, tendo sido, para eles, revogado pelo Estatuto da Advocacia e da ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº. 8.906/94) o referido art. 68. Dizem, outros, que a existência da Defensoria Pública dispensa esta atuação do parquet, tendo em vista o disposto no art. 134 da Constituição Federal, segundo o qual a “Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º., LXXIV”. A nosso ver o art. 68 continua em pleno vigor, nada impedindo que o Ministério Público aja civilmente em defesa da vítima pobre, quando for instado a fazê-lo, mesmo porque assim o permite o art. 129, IX da Constituição Federal.119 Mesmo após a Constituição Federal e já em vigência o estatuto da advocacia, assim já decidiram os nossos Tribunais, inclusive o Superior Tribunal de Justiça: “Ministério Público – Ação ex delicto. Legitimidade ad causam – Substituto processual. O Ministério Público tem legitimidade para promover, como substituto processual do necessitado, a ação de indenização ex delicto, presumindo-se que a sua intervenção decorra da insuficiência dos serviços de defensoria pública. Precedentes do STF 117 Comentários aos crimes do novo Código de Trânsito, São Paulo: Saraiva, 1998, p. 118 Ob. cit., p. 4 36 119 Sobre o assunto, cfr. Mirabete, Código de Processo Penal Interpretado, 7ª. ed., São Paulo: Atlas, 2000, p. 241 60 e do STJ. Art. 68 do CPP. Recurso conhecido e provido”. (STJ – Resp. – Rel. Ruy Rosado de Aguiar – j. 08/10/97 – DJ 09/12/97, p. 64.714). “Processo Civil – Substituição Processual – Reparação de dano. Legitimidade do Ministério Público para propor a ação quando a vítima do crime for pobre. CPP, art. 68. A substituição processual e a representação das partes no processo são institutos diversos, bem por isso, a substituição processual prevista no art. 68 do CPP subsiste, a despeito dos textos legais posteriores que conferiram privativamente aos advogados a representação das partes no processo. Recurso Especial não conhecido.“ (STJ – Resp. – Ari Pargendler – j. 22/08/96 – DJ 16/09/96, p. 33.711). “A Constituição Federal não privilegiou apenas o advogado para o deferimento só a ele da capacidade postulatória da ação civil dos necessitados. Tanto a Constituição como as leis ordinárias procuram ampliar a proteção, nunca restringi-la, quanto aos necessitados, na busca da efetivação dos meios à prestação jurisdicional, sobre seus legítimos interesses. O Ministério Público é parte legítima para propor ação civil em favor de pessoa necessitada à reparação do dano, na conformidade do art. 68 do CPP”. (TJSP – 7ª. C. - AI – Rel. Benine Cabral – j. 07/03/90 – JTJ – Lex 128/326 e RT 653/113). A ação civil ex delicto deverá ser proposta contra o autor do delito, seus representantes legais ou seus herdeiros, respeitada, neste caso, a força da herança, nos termos do art. 1.587 do Código Civil. Neste aspecto reside diferença palmar entre esta ação e a penal, pois na ação penal o sujeito passivo da relação processual só poderá ser, exclusivamente, o autor do delito. Tal ocorre porque a “responsabilidade civil tem uma função essencialmente indenizatória, ressarcitiva ou reparadora, só acessória ou secundariamente assumindo caráter punitivo, ao invés do que sucede com a responsabilidade criminal, cuja função primordial é de caráter punitivo e preventivo”.120 Agora, por força do novo dispositivo, acrescentou-se um parágrafo único ao art. 63, nos seguintes termos: “Transitada em julgado a sentença condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do art. 387, VII, sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido.” Além de estabelecer a reparação civil pelo dano causado, deverá o Juiz criminal decidir “fundamentadamente, sobre a manutenção ou, se for o caso, imposição de prisão preventiva ou de outra medida cautelar (art. 319), sem prejuízo do conhecimento da apelação que vier a ser interposta”, afastando-se a odiosa prisão decorrente da sentença condenatória recorrível, que fere de 120 Antunes Varela, Direito das Obrigações, Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 228 61 morte o princípio da presunção de inocência. Desta maneira, na sentença condenatória, seja o réu primário ou não, tenha ou não tenha bons antecedentes, poderá ele apelar e só o fará preso se for tal medida (ou uma outra) necessária. Vejamos, então, o que se modifica em relação ao Ministério Público. Com efeito, diz o novo art. 257 que à Instituição cabe: 1) “Promover, privativamente, a ação penal pública, na forma estabelecida neste Código”, em consonância com o já estabelecido pelo art. 129, I, da CF/88 e, 2) “Fiscalizar a execução da lei”, tarefa que já lhe é deferida atualmente e que lhe dá, no processo penal, uma feição toda especial, pois ao lado de ser parte, também age como custos legis, devendo, neste mister, zelar pelo fiel cumprimento da lei e garantir que o devido processo legal seja obedecido nos seus estritos termos. O novo art. 366 estabelece que “o processo terá completada a sua formação quando realizada a citação pessoal, ou com hora certa, do acusado.” Na verdade, como ensina Frederico Marques, “com a citação válida, estabelece-se a angularidade da relação processual, surgindo assim a instância.”121 A regra continua a ser a citação real, pessoal ou in faciem, e, apenas na hipótese de não ser encontrado “o acusado, será procedida a citação por edital”, salvo se o réu “furtar-se, de qualquer modo, a receber a citação; caso em que, certificada a ocorrência pelo oficial de justiça encarregado da diligência, ela será efetuada com hora certa, na forma estabelecida nos arts. 227 a 229 do Código de Processo Civil.” Observa-se aqui inovação importante, pois não se admite na atual sistemática processual penal a citação com hora certa, desde há muito usada no processo civil. No caso da citação com hora certa, não comparecendo o acusado, “ser-lhe-á nomeado defensor, passando a correr o prazo para oferecimento de defesa, na forma da lei”, ou seja, será julgado à sua revelia, sem mais necessidade de intimação ou notificação, tendo tão-somente a assistência obrigatória e indeclinável do defensor (defesa técnica). Uma segunda hipótese de citação por edital se dará quando “inacessível, em virtude de epidemia, de guerra ou por outro motivo de força maior, o lugar em que estiver o réu.” Sendo o caso, porém, de citação editalícia se ele não comparecer, nem constituir advogado (não tendo relevância aqui o defensor constituído na fase inquisitorial): 1) “Ficará suspenso o curso do prazo prescricional pelo correspondente ao da prescrição (art. 109 do Código Penal); decorrido esse prazo, recomeçará a fluir o da prescrição”, findando-se, assim, a polêmica em torno do atual art. 366 quanto à duração da suspensão do prazo 121 Elementos de Direito Processual Penal, Vol. II, Campinas: Bookseller, 1998, p. 183. 62 prescricional. O legislador, coerentemente, optou pelos prazos já estabelecidos pelo art. 109 do Código Penal, o que merece aplausos. Finda a suspensão do prazo prescricional, o processo, no entanto, continuará suspenso até o comparecimento do acusado ou a extinção da punibilidade pela prescrição, que deverá ser decretada de ofício pelo Juiz (art. 61, CPP). 2) “O juiz, a requerimento do Ministério Público ou do querelante, ou de ofício, determinará a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida”, considerando-se como tais as perícias e a prova testemunhal, à vista do que dispõe o art. 92, in fine do atual CPP (“inquirição de testemunhas e de outras provas de natureza urgente”). Tais provas “serão produzidas com a prévia intimação do Ministério Público, do querelante e do defensor nomeado pelo juiz.” 3) “O juiz poderá decretar a prisão preventiva do acusado, nos termos do disposto nos arts. 312 e 313”, observando-se que não se trata de prisão preventiva obrigatória, mas nos estritos termos dos novos arts. 312 e 313. Repita-se: a prisão preventiva não pode ser conseqüência imediata da citação editalícia quando não haja o comparecimento do acusado ou do seu defensor constituído, como hoje vem se tornando praxe. Dispõe o § 6º., do art. 366 que “comparecendo o acusado citado por edital, em qualquer tempo, o processo” seguirá o procedimento comum ou especial, na forma dos arts. 394 e seguintes. Vejamos, então, como está disposta agora a questão da emendatio libelli: “Art. 383. O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave.” Nesta hipótese, como se sabe, a peça acusatória narrou perfeitamente o fato criminoso, tendo o Juiz “liberdade de atribuir ao delito conceituação jurídica diversa da que lhe foi dada pelo acusador, mesmo para impor pena mais grave, contanto que não substitua o fato por outro”, como já explicava Basileu Garcia.122 Ao contrário, porém, da atual sistematização, ainda que seja apenas o caso de emendatio libelli, determina o novo art. 383 que “as partes, todavia, deverão ser intimadas da nova definição jurídica do fato antes de prolatada a sentença.” Ademais, e, então, temos mais uma inovação importante e salutar, a emendatio libelli poderá ser antecipada para o instante do “recebimento da denúncia ou queixa”, evitando-se que uma peça acusatória equivocada mantenha-se assim durante todo o processo criminal. Se com a emendatio libelli (seja no início do processo, seja ao final), “houver possibilidade de 122 Comentários ao Código de Processo Penal, Vol. III, Rio de Janeiro: Forense, 1945, p. 495. 63 proposta de suspensão condicional do processo, o juiz procederá de acordo com o disposto na lei”, ou seja, dará vista ao Ministério Público para a proposta da suspensão condicional do processo, nos termos do art. 89 da Lei nº. 9.099/95, sem a qual não poderá haver julgamento. Caso o Promotor de Justiça não ofereça a proposta, deve o Juiz remeter os autos ao ProcuradorGeral de Justiça para ele próprio fazê-lo ou designar outro membro da Instituição para a tarefa. O que não se admite, tal como já decidiu o STF, é a concessão ex officio da suspensão pelo Juiz123. Também não entendemos possível o cabimento da suspensão nas ações penais de iniciativa privada, até porque já dispõe o querelante de institutos como o perdão e a perempção para obstaculizar o andamento do feito criminal. Por outro lado, se com a definição jurídica diversa surgir infração penal de menor potencial ofensivo, determina a lei que os autos deverão ser encaminhados aos Juizados Especiais Criminais, até porque tal competência está estabelecida no art. 98, I da CF/88. Vejamos, então, como está disciplinada a mutatio libelli, lembrando, com Basileu Garcia, que “veda-se ao juiz, no decidir a causa, a mutatio libelli.”124 Assim está escrito o novo art. 384: “Art. 384. Encerrada a instrução probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação, o Ministério Público poderá aditar a denúncia ou queixa, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, reduzindo-se a termo o aditamento, quando feito oralmente.” Preferiu o novo legislador substituir a expressão “circunstância elementar” por elemento ou circunstância da infração penal, o que muda pouco, pois estão enquadradas em ambas as definições aqueles “requisitos que tenham sido exigidos pelo direito objetivo para a existência do crime, senão também as causas de aumento e de diminuição de pena (distintas das circunstâncias agravantes e atenuantes), porque transplantam a entidade delituosa de um para outro preceito penal, instituindo, pois, comparativamente ao tipo originário ou fundamental da infração, especial modalidade.”125 Agora, pouco importa se aumentará ou não a pena: de todas as maneiras o Ministério poderá aditar, inclusive verbalmente, a peça acusatória (denúncia ou queixa subsidiária). Tal providência, como se nota, só é cabível nas ações penais públicas ou na ação penal de iniciativa privada subsidiária da pública (art. 29, CPP). 123 Neste sentido conferir o julgamento no STF do Habeas Corpus n. 75.343-MG, rel. Min. Sepúlveda Pertence. 124 Idem, ibidem 125 Garcia, Basileu, ob. cit., p. 504. 64 Neste caso, “ouvido o defensor do acusado e admitido o aditamento, o juiz, a requerimento de qualquer das partes, designará dia e hora para continuação da audiência, com inquirição de testemunhas, novo interrogatório do acusado, realização de debates e julgamento.” Da mesma forma que se dá na emendatio libelli, se “houver possibilidade de proposta de suspensão condicional do processo, o juiz procederá de acordo com o disposto na lei”, ou seja, dará vista ao Ministério Público para a proposta da suspensão condicional do processo, nos termos do art. 89 da Lei nº. 9.099/95, sem a qual não poderá haver julgamento. Caso o Promotor de Justiça não ofereça a proposta, deve o Juiz remeter os autos ao Procurador-Geral de Justiça para ele próprio fazê-lo ou designar outro membro da Instituição para a tarefa. O que não se admite, repita-se, é a concessão ex officio da suspensão pelo Juiz. Outrossim, se com a nova definição jurídica do fato surgir infração penal de menor potencial ofensivo, determina a lei que os autos deverão ser encaminhados aos Juizados Especiais Criminais. No caso de aditamento, “cada parte poderá arrolar até três testemunhas, no prazo de três dias”; caso não seja recebido o “aditamento, a audiência prosseguirá.” O prazo de aditamento não está estabelecido na lei, donde se conclui, com Tourinho Filho, ser possível a aplicação analógica do art. 46, § 2º. do CPP, ou seja, em três dias.126 Observa-se que o novo legislador restringiu o art. 384 às ações penais públicas ou às de iniciativa privada subsidiária da pública (art. 5º., LIX, CF/88). De toda forma, estamos com Tourinho Filho que, nada obstante a restrição legal, “possa também o querelante proceder ao aditamento. Há duas situações: a) se, ao tempo da queixa, já havia prova sobre determinada circunstância elementar capaz de alterar a qualificação jurídico-penal do fato, objeto do processo, e o querelante não se deu conta, o aditamento seria até impossível por manifesta decadência; b) se a prova se deu posteriormente, o aditamento pode ser feito por aplicação analógica (...), não havendo violação ao princípio da disponibilidade que rege a ação privada, mesmo porque ninguém está fazendo o aditamento pelo querelante e tampouco obrigando-o a fazê-lo.”127 O Livro II do novo CPP terá como epígrafe “DO PROCEDIMENTO”, diferenciando-se acertadamente o processo de um de seus aspectos, que é o procedimento. Aliás, ao comentar o art. 270 do Código de Processo Civil, o Professor J. J. Calmon de Passos faz uma perfeita distinção entre processo e procedimento. 126 Código de Processo Penal comentado, Vol. I, São Paulo: Saraiva, 1996, p. 574. 127 Código de Processo Penal comentado, Vol. I, São Paulo: Saraiva, 1996, p. 573. Nesta mesma oportunidade o autor esclarece que em caso de recusa ao aditamento pelo Ministério Público, os autos devem ser encaminhados ao Procurador-Geral de Justiça, posição com a qual concordamos inteiramente. 65 Destacando o conceito da palavra processo na Teoria Geral do Direito, ensina o eminente Professor que, sob este aspecto, processo tem um sentido muito amplo a significar “os modos pelos quais o direito disciplina sua própria criação”. Assim, fala-se em processo legislativo (criação de normas gerais), processo negocial (criação de normas particulares), administrativo (criação de normas particulares, porém de forma autoritativa) e o jurisdicional (criação de normas particulares de forma autoritativa, no entanto, “mediante atividade substitutiva”). Reservando-se, obviamente, a estudar apenas o processo jurisdicional, o mestre baiano refere-se à jurisdição emprestando-lhe o caráter de prestação jurisdicional autoritativamente dada pelo Estado-juiz para que seja aplicado o direito que incidiu na espécie. Já Carnelutti advertia que a característica da jurisdição (e o ponto que a distingue da legislação) é exatamente o fato de representar uma produção do direito, “super partes, mas que se prepara inter partes”. Na jurisdição, ao contrário do que acontece, por exemplo, no processo administrativo ou no legislativo, “as partes, de pacientes, tornam-se agentes”.128 Calmon de Passos inicia os seus comentários fazendo um estudo histórico acerca da evolução do conceito de processo e de sua concepção como ciência. Assim, explica que o processo, como forma de atuação em juízo, como modo de proceder, como praxe, é estudado há muitos anos; porém, a ciência do direito processual, ou seja, o processo como um saber metodicamente estudado, demonstrado e sistematizado, com princípios básicos e específicos, é alvo recente de interesse dos juristas (mais especificamente a partir da metade do século XIX, com os alemães e, mais tarde, com os italianos). Foi exatamente a partir desta certificação científica que o processo deixou de ser mero apêndice do direito civil para representar, muito ao contrário, um ramo autônomo em relação ao direito material ao qual, induvidosamente, serve. Não é, porém, por servi-lo que o direito processual se confundiria com o direito material. Esta visão autônoma do direito adjetivo, eminentemente distinta do direito substantivo, iniciou-se, segundo o mestre, com a mudança da noção tradicional que se tinha de ação. Com efeito, passou a ação ser entendida como um direito público subjetivo de provocar a atuação jurisdicional do Estado, independentemente do direito material (e não como mais uma qualidade do direito material, pelo qual, aliás, era absorvida). A ação, assim, passou a ser entendida e estudada como um “direito público subjetivo, conferido constitucionalmente a qualquer cidadão, de provocar a atividade jurisdicional do Estado”. 128 Francesco Carnelutti, Teoria Geral do Direito, São Paulo: Lejus, 1999, p. 148. 66 Aliás, segundo Chiovenda, “o reconhecimento dessa autonomia tornouse completo com Adolfo Wach, que em seu Manual e na monografia fundamental sobre a ação declaratória (Der Feststellungsanspruch, 1888) demonstrou que a ação, tanto quando supre a falta de realização que, por lei, se deveria verificar mediante a prestação de um devedor, como, e principalmente, nos numerosíssimos casos em que colima a realização de uma vontade concreta da lei, tal que não deve nem pode realizar-se por outra via a não ser o processo, é um direito que se constitui por si e claramente se distingue do direito do autor tendente à prestação do réu devedor” (grifo nosso).129 Historicamente, o segundo passo em direção à adoção do processo como ciência, foi dado por Oskar Von Bülow, que viu no processo uma verdadeira relação jurídica, inteiramente diversa da relação jurídico-material, da qual também é autônoma. Dizia Bülow que o processo “es una relación jurídica que avanza gradualmente y que se desarrolla paso a paso.” Ademais, “la relación jurídica procesal está en un constante movimiento y transformación.”130 A relação jurídica processual, em verdade, constitui-se diferentemente daquel’outra, pois existe, desenvolve-se e se extingue independentemente da existência, do desenvolvimento e da extinção da relação de direito material. Como nota o mestre processualista baiano, além de objetos diferentes, os próprios sujeitos da relação processual sequer “precisam necessariamente ser os mesmos” da relação de direito material. Concebido o processo como verdadeira relação jurídica, passou-se, também, a conceituá-lo como um conjunto de atos tendentes a fazer valer o direito de ação e a respectiva prestação jurisdicional. O processo, portanto, tem esta noção finalística, ou seja, voltada para a consecução de determinada finalidade, qual seja, a prestação jurisdicional. Continuando os seus comentários, o Professor Calmon de Passos, passa a diferenciar processo e procedimento e o faz nos seguintes termos: se o processo tem esta função precípua de promover a atividade jurisdicional do Estado, entregando a providência pertinente, o procedimento representa a forma através da qual ele irá se desenvolver, ou seja, o seu modus operandi. Assim, para se prestar a jurisdição em um determinado caso se utiliza um procedimento, ou seja, uma forma de atuar, uma técnica específica; em um outro caso, pode-se utilizar forma diversamente regulada, uma técnica diferente, pois nem sempre o processo “reclama o mesmo número e a mesma espécie de atos singulares”. Desta forma, enquanto o processo tem aquele sentido teleológico, o procedimento, ao revés, possui uma face formal, extrínseca, ou, como diz Calamandrei “indica mais propriamente o aspecto exterior do fenômeno processual (no curso do mesmo processo pode, em 129 Giuseppe Chiovenda, Instituições de Direito Processual Civil, Campinas: Bookseller, Vol. 1, 1998, p. 39. 130 La Teoria de las Excepciones Procesales y los Presupuestos Procesales, Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1964, p. 03. 67 distintas fases, mudar o procedimento)”.131 Nesse sentido, fala-se em procedimento comum, ordinário, sumariíssmo, sumário, etc. Ressalva o mestre, ainda, que se pode falar em procedimento para indicar uma “série de atos do processo numa de suas fases de duração. Pelo que é correto dizer-se procedimento na primeira instância, procedimento recursal, procedimento instrutório etc”. Feitas tais distinções, continua o ínclito jurista distinguindo as várias formas como pode se realizar a atividade jurisdicional em sua função de tutela da ordem jurídica: processo de conhecimento ou de cognição (objetivando basicamente a certificação do direito), de execução (objetivando principalmente fazer atuar o direito) e cautelar (objetivando garantir o resultado útil dos dois primeiros). Pois bem. Subseqüentemente, temos o Título I, “DAS FORMAS PROCEDIMENTAIS” e, em seguida, o Capítulo I, sob a seguinte epígrafe: “DISPOSIÇÕES APLICÁVEIS ÀS FORMAS PROCEDIMENTAIS. Adiante, o novo art. 394 consagra os dois novos procedimentos: o comum e o especial. Por sua vez, o comum poderá ser ordinário, sumário ou sumariíssimo. O procedimento comum ordinário será obedecido “quando tiver por objeto crime cuja pena máxima cominada seja igual ou superior a quatro anos de prisão”. O sumário “quando tiver por objeto crime cuja pena máxima cominada seja inferior a quatro anos de prisão” e o “sumaríssimo, para as infrações penais de menor potencial ofensivo, na forma da lei.”132 Observa-se que a nova redação já não trata de distinguir pena de reclusão ou de detenção, referindo-se apenas à “pena de prisão”, em consonância com o projeto de reforma da Parte Geral do Código Penal que elimina esta dicotomia hoje existente entre as penas privativas de liberdade133. Como está a indicar, o procedimento comum é a regra, “salvo disposições em contrário deste Código ou de lei especial”, devendo-se também se aplicar subsidiariamente aos procedimentos especial, sumário e sumariíssimo as disposições do procedimento ordinário. Para os crimes dolosos contra a vida, por exemplo, aplicar-se-ão as novas regras estabelecidas nos arts. 406 a 497 do novo Código. 131 Piero Calamandrei, Direito Processual Civil, Campinas: Bookseller, Vol. 1, 1999, p. 254. 132 Neste ponto, observar que a Lei nº. 10.259/01 (Juizados Especiais Criminais federais) poderá ter ampliado o conceito de infração de menor potencial ofensivo, modificando o art. 61 da Lei nº. 9.099/95. Neste sentido, já se pronunciaram juristas dos mais importantes, como Adauto Suannes, Alberto Silva Franco, Cezar Roberto Bitencourt, Damásio de Jesus, Cláudio dell’Orto, Luiz Flávio Gomes, dentre outros (conferir tais opiniões no www.direitocriminal.com.br). 133 Assim está redigido o art. 32 do projeto de reforma do Código Penal: “Art. 32. As penas são: I – prisão; II – restrição de direito; III – multa; IV – perda de bens.” 68 Vejamos, agora, os procedimentos ordinário e sumário, in verbis: “Art. 395. Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de dez dias, contados da data da juntada do mandado aos autos ou, no caso de citação por edital, do comparecimento pessoal do acusado ou do defensor constituído.” Adota-se aqui o que já ocorria nas hipóteses do art. 514 do CPP, do art. 4º. da Lei nº. 8.038/90, no art. 43, § 1º. da Lei de Imprensa e na Lei n. 9.099/95 (art. 81), ou seja, a ouvida do denunciado ou querelado antes do recebimento da denúncia, providência extremamente salutar, pois, somente desta forma podemos dizer que há, no processo penal, efetivamente, uma defesa prévia. Nesta “defesa prévia”, o denunciado ou querelado “poderá argüir preliminares e alegar tudo que interesse à sua defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas, qualificando-as e, dependendo o comparecimento de intimação, requerê-la desde logo.”As exceções processuais acaso opostas serão processadas em conformidade com os atuais arts. 95 a 112 do CPP. Se nos dez dias estabelecidos pela lei não houver resposta ou não se constituir advogado, “o juiz nomeará dativo para oferecê-la, concedendo-lhe vista dos autos por dez dias”, até porque a defesa técnica é indispensável, ainda que a autodefesa não tenha sido exercida. “Apresentada a defesa, o juiz ouvirá o Ministério Público ou o querelante sobre preliminares e documentos, em cinco dias”, prazo que deveria ser, também, de dez dias, em respeito ao princípio da igualdade. Poderá o Juiz, se assim entender como imprescindível, determinar “a realização de diligências, no prazo máximo de dez dias, podendo ouvir testemunhas e interrogar o acusado.” Após tais providências iniciais, agora sim, o Juiz “fundamentadamente, decidirá sobre a admissibilidade da acusação, recebendo ou rejeitando a denúncia ou queixa.” Rejeitará a peça acusatória quando: 1)“For manifestamente inepta; 2) “Faltar pressuposto processual (de existência ou de validade) ou condição para o exercício da ação penal (genérica ou específica); 3) “Faltar justa causa para o exercício da ação”, ou seja, lastro probatório mínimo para o oferecimento da denúncia ou da queixa. Contra esta decisão caberá apelação. Já da decisão que rejeitar parcialmente a acusação caberá agravo, como também a que receber a peça acusatória, como veremos adiante. Se, nada obstante tenha sido recebida a peça acusatória, o Juiz considerar “plenamente comprovada a improcedência da acusação ou a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato ou da 69 culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade, absolverá sumariamente o acusado, facultada às partes a prévia produção de provas.” Previu-se aqui, nada mais nada menos do que o julgamento antecipado da lide, e julgamento de mérito, sujeito a produzir coisa julgada material, o que não se conhece no sistema atual, evitando-se que o processado tenha que se submeter a todas aquelas “cerimônias degradantes” de que falava Garfinkel, para, apenas na sentença final, após um longo tempo de “calvário”, ser absolvido. Como dizia Carnelutti, “o processo penal não é, infelizmente, mais que uma escola de incivilidade.”134 Contra esta sentença de absolvição sumária também caberá recurso de apelação. Uma observação urge: na verdade, se a acusação era manifestamente improcedente ou militava em favor do acusado uma causa excludente de criminalidade ou culpabilidade, a denúncia ou queixa não deveria ter sido recebida desde logo, por faltar uma das condições genéricas da ação: o interesse de agir.135 Tais disposições (arts. 395 a 398) aplicam-se a todos os procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados neste Código. No caso de recebimento da acusação, como o acusado já foi citado, “o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente.” Note-se que mais uma vez o nosso legislador não fez a diferença técnica entre notificação e intimação. Como se sabe, doutrinariamente diferencia-se intimação de notificação, distinção também não observada no atual Código de Processo Penal e, exatamente por isso, desconhecida pela maioria dos operadores do Direito. Assim, diz-se intimação a comunicação de ato processual já efetuado, ao passo que a notificação serve para comunicar ato ainda a ser realizado. Desta forma, intima-se de algo já produzido e se notifica para ato a ser cumprido. A intimação volta-se ao passado, enquanto a notificação tende ao futuro. Exemplificando, intima-se de uma decisão judicial, enquanto que se notifica uma testemunha ou um perito para comparecer em juízo. Entre nós faziam a distinção juristas como Pontes de Miranda, Câmara Leal, Gabriel de Rezende Filho, Basileu Garcia, Galdino Siqueira e Frederico Marques. Hoje, Tourinho Filho e Mirabete também o fazem. Frederico, por exemplo, escreveu que a “notificação projeta-se no futuro, visto que leva ao conhecimento do sujeito processual, ou de outra pessoa que 134 Carnelutti, Francesco, As Misérias do Processo Penal, São Paulo: CONAN, 1995, p. 12. 135 Sobre o assunto, confira-se a obra “Ação Penal”, de José Antonio Paganella Boschi, Rio de Janeiro: AIDE, 1993, p. 62. 70 intervenha no processo, pronunciamento jurisdicional que determine um facere ou um non facere. A intimação, ao revés, se relaciona com atos pretéritos”.136 Tourinho Filho também diferencia: “A intimação é, pois, a ciência que se dá a alguém de um ato já praticado, já consumado, seja um despacho, seja uma sentença, ou, como diz Pontes de Miranda, é a comunicação de ato praticado. Assim, intima-se o réu de uma sentença (note-se que o réu está sendo cientificado de um ato já consumado, já praticado, isto é, a sentença). “A notificação, por outro lado, é a cientificação que se faz a alguém (réu, partes, testemunhas, peritos etc) de um despacho ou decisão que ordena fazer ou deixar de fazer alguma coisa, sob certa cominação. Assim, a testemunha é notificada, porque se lhe dá ciência de um pronunciamento do Juiz, a fim de comparecer à sede do juízo em dia e hora designados, sob as cominações legais. Se não comparecer, estará ela sujeita àquelas sanções a que se referem os arts. 218 e 219 do CPP”.137 Como se disse, porém, esta diferenciação não foi observada pelo nosso Código de Processo Penal fazendo que a grande maioria da doutrina e da jurisprudência também assim procedesse. O nosso Código ora se refere a intimação, ora a notificação, sem levar em conta a diferenciação doutrinária existente. Câmara Leal, comentando o atual CPP e alertando que este diploma se afastara da técnica “não estabelecendo distinção entre intimação e notificação, confundindo-as indevidamente”, já afirmava que “a doutrina processual moderna diferencia essas duas modalidades – a notificação e a intimação, como atos distintos”, pois “a notificação é a ciência que se dá a alguém de alguma coisa que deverá fazer ou omitir por determinação do juiz. Ao passo que a intimação é a simples ciência que se dá de algum ato já praticado na causa, sem que se lhe imponha qualquer prática ou omissão.”138 Seria imperioso que com a reforma se adotasse esta diferenciação que boa parte da doutrina exige. Mantém-se a citação através de requisição para o acusado preso, “devendo o Estado providenciar sua apresentação”, sob pena de nulidade absoluta. Adota-se, agora, o princípio da identidade física do Juiz, segundo o qual o Magistrado “que presidiu a instrução deverá proferir a sentença.” Tal princípio não é conferido no atual sistema processual penal, como o é no processo civil 136 José Frederico Marques, Elementos de Direito Processual Penal, Campinas: Bookseller, vol. II, 1998, p. 208. 137 Fernando da Costa Tourinho Filho, Processo Penal, 20ª. ed., São Paulo: Saraiva, vol. 3, 1998, p. 213. 138 Código de Processo Penal, Vol. II, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1942, p.421. 71 (art. 132 do CPC). Por ele, o Juiz que colher a prova deve julgar o processo, podendo, desta forma, “apreciar melhor a credibilidade dos depoimentos; e a decisão deve ser dada enquanto essas impressões ainda estão vivas no espírito do julgador.”139 É extremamente salutar a adoção deste princípio, pois “a ausência, no processo penal, do aludido e generoso princípio permite que o julgador condene, com lamentável freqüência, seres humanos que desconhece”.140 Já no Capítulo II regula-se o procedimento ordinário, determinando-se, no art. 400, que na “audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de trinta dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, se possível, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado.” Vê-se que o interrogatório do acusado será o último ato processual após a instrução criminal, o que vem a fortalecer a idéia daqueles que o vêm como um autêntico meio de defesa e não mais como mais um meio probatório. Assim, “prevalece outra orientação: o interrogatório é o momento mais importante da auto-defesa; é a ocasião em que o acusado pode fornecer ao juiz sua versão pessoal sobre os fatos e sua realização após a colheita da prova permitirá, sem dúvida, um exercício mais completo do direito de defesa, inclusive pela faculdade de permanecer em silêncio (art. 5º., LVIII, CF).”141 Adiante voltaremos ao assunto. Ademais, tal como nos Juizados Especiais Criminais, também são adotados os princípios da imediatidade e da concentração dos atos processuais, pois as “provas serão produzidas numa só audiência, podendo o juiz indeferir as consideradas irrelevantes, impertinentes ou protelatórias.” Aqui, vale uma advertência: o indeferimento injustificado de provas poderá acarretar a nulidade absoluta do ato processual pelo princípio da ampla defesa, de forma que somente quando induvidosas as (más) intenções das partes é que legítimo será o indeferimento. “Na instrução poderão ser inquiridas até oito testemunhas arroladas pela acusação e oito pela defesa”, não se compreendendo neste número “as que não prestem compromisso e as referidas”, podendo a “parte, com anuência da outra, desistir da inquirição de qualquer das testemunhas arroladas”, ressalvadas, ainda, aquelas inquiridas por força de determinação judicial (art. 209, CPP). 139 Barbi, Celso Agrícola, Comentários ao CPC, Vol. I, Rio de Janeiro: Forense, p. 327. 140 René Ariel Dotti, “O interrogatório à distância”, Brasília: Revista Consulex, nº. 29, p. 23. 141 Grinover, Ada Pellegrini Grinover e outros, Juizados Especiais Criminais, São Paulo: RT, 3ª. ed., 1999, p. 176. 72 Sem estabelecer um prazo, “produzidas as provas, ao final da audiência o Ministério Público, o querelante e o assistente e, a seguir, o acusado poderão requerer diligências cuja necessidade ou conveniência se origine de circunstâncias ou fatos apurados na instrução”, o que significa que tais requerimentos devem ser feitos de imediato e não mais nas 24 horas hoje previstas (o que não impede que, considerando-se a complexidade do processo, seja deferido às partes um prazo maior para tais requerimentos, atentando-se apenas para que não se protele o andamento processual). Não os havendo, ou tendo sido indeferidos, “serão oferecidas alegações finais orais, por vinte minutos, respectivamente, pela acusação e pela defesa, prorrogáveis por mais dez, proferindo o juiz, a seguir, sentença”, prazo que será individual para a defesa se houver mais de um acusado. Se houver assistente, a ele serão concedidos, após a manifestação do Ministério Público, dez minutos, prorrogando-se por igual período o tempo de manifestação da defesa. “O juiz poderá, considerada a complexidade do caso ou o número de acusados, conceder às partes o prazo de cinco dias, sucessivamente, para a apresentação de memoriais. Nesse caso, terá o prazo de dez dias para proferir a sentença.” Esperamos, apenas, que este expediente aberto pela lei não se torne praxe, dilatando-se desnecessariamente o processo. Caso as partes ou qualquer uma delas tenha requerido ao Juiz a feitura de diligência, e tenha sido a solicitação aceita pelo Juiz (se não o for é possível o uso da correição parcial, ou mesmo do habeas corpus ou do mandado de segurança), “a audiência será concluída sem as alegações finais.” Após a realização destas diligências, “as partes apresentarão, no prazo sucessivo de cinco dias, suas alegações finais, por memorial e, no prazo de dez dias, o juiz proferirá a sentença.” E, por fim: “Art. 405. Do ocorrido em audiência será lavrado termo em livro próprio, assinado pelo juiz e pelas partes, contendo breve resumo dos fatos relevantes nela ocorridos. “Parágrafo único. Sempre que possível, o registro dos depoimentos do investigado, indiciado, ofendido e testemunhas será feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia ou técnica similar, inclusive audiovisual, destinada a obter maior fidelidade das informações. Na forma por último indicada, será encaminhado ao Ministério Público o registro original, sem necessidade de transcrição.” Disposição semelhante já encontramos na Lei nº. 9.099/95, arts. 13, § 2º. e 65, § 3º., impelindo “a Justiça para que continue no seu processo de modernização.”142 142 Grinover, Ada Pellegrini Grinover e outros, Juizados Especiais Criminais, São Paulo: RT, 3ª. ed., 1999, p. 85. Na página seguinte, advertem os autores: “Não basta. Mister se faz que as audiências possam ser simplesmente gravadas. Além da maior autenticidade no registro de tudo o que sucede, proporciona-se ainda grande dinamismo ao andamento da causa.” 73 No Capítulo V temos a previsão do procedimento sumário. Neste modo de proceder, a audiência de instrução e julgamento deve ser realizada no prazo máximo de quinze dias e nela deverá inicialmente ser ouvido o ofendido, se possível, depois as testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, após o que colher-se-ão os esclarecimentos dos peritos, far-se-ão as acareações e o reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, então, o acusado e procedendo-se, finalmente, aos debates orais. Estas “alegações finais serão orais, concedendo-se a palavra, respectivamente, à acusação e à defesa, pelo prazo de vinte minutos, prorrogáveis por mais dez, proferindo, o juiz, a seguir, sentença.” “Havendo mais de um acusado, o tempo previsto para a defesa de cada um será individual” e ao “assistente do Ministério Público, após a manifestação deste, serão concedidos dez minutos, prorrogando-se por igual período o tempo de manifestação da defesa.” Neste procedimento, o número de testemunhas evidentemente é menor: até cinco testemunhas para a acusação e cinco para a defesa. Tal como no procedimento ordinário, neste também as “provas serão produzidas numa só audiência, podendo o juiz indeferir as consideradas irrelevantes, impertinentes ou protelatórias.” Vale aqui as observações feitas anteriormente, quanto ao cerceamento de defesa. “Art. 535. Nenhum ato será adiado, salvo quando imprescindível a prova faltante, determinando o juiz a condução coercitiva de quem deva comparecer.” Mais uma vez, repete-se regra estabelecida na Lei dos Juizados Especiais Criminais (art. 80). “Art. 536. A testemunha que comparecer será inquirida, independentemente da suspensão da audiência”, atentando-se que as testemunhas arroladas pela acusação devem necessariamente ser ouvidas antes daquelas indicadas pela defesa, obedecendo-se o contraditório. Prevê a lei um prazo máximo para a conclusão deste procedimento, que será de noventa dias, ao cabo dos quais, estando o acusado preso, considerarse-á constrangimento ilegal a ser remediado via habeas corpus. Naquelas hipóteses em que se permite a remessa dos autos referentes a infrações penais de pequeno potencial ofensivo ao juízo comum (arts. 66, parágrafo único e 77, §§ 2º. e 3º., da Lei nº. 9.099/95), o rito a ser adotado será o sumário previsto neste Capítulo. Por fim, o projeto de lei revoga expressamente os arts. 43 (que trata da rejeição da denúncia ou da queixa), 362 (citação por edital do réu que se oculta, que agora será citado com hora certa) e 498 a 502. No que diz respeito ao direito intertemporal, acaso sancionado este projeto de lei, as suas disposições aplicam-se aos processos em que ainda não 74 houve o recebimento da denúncia ou queixa, ainda que os procedimentos não sejam regulados pelo Código de Processo Penal. Como se sabe há dois princípios basilares que regem o direito intertemporal das leis em matéria criminal: o primeiro segundo o qual a lei penal não retroage salvo para beneficiar o réu (art. 2°., parágrafo único do Código Penal e art. 5°., XL da Constituição Federal). Se é certo que a regra é a da irretroatividade da lei penal, e isto ocorre por uma questão de segurança jurídico-social, não há de se olvidar a exceção de que se a lei penal for de qualquer modo mais benéfica para o seu destinatário, forçosamente deverá ser aplicada aos casos pretéritos, retroagindo. Este princípio se insere no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais da nossa Carta Magna e tem aplicação imediata (§ 1°. do mesmo art. 5°.), além do que, como garantia e direito fundamentais, tem força vinculante, “no sólo a los poderes públicos, sino también a todos los ciudadanos”, como afirma Perez Luño143, tendo também uma conotação imperativa, “porque dotada de caráter jurídico-positivo”.144 O segundo princípio é o da aplicação imediata da lei processual penal, preconizado pelo art. 2°. do Código de Processo Penal e que proclama a regra da aplicação imediata (tempus regit actum). De toda forma, salienta-se ser preciso estabelecer a exata natureza jurídica das normas vindouras para determinar a regra aplicável quanto ao direito intertemporal, pois elas podem ser de cunho estritamente processual, ou exclusivamente penais ou híbridas (penal e processual). Se se admitir a natureza puramente processual, não há que se falar em retroatividade; porém, se aceitarmos que são normas penais (ou híbridas), a retroatividade se impõe, pois, indiscutivelmente, sendo disposições penais mais benéficas devem excepcionar o princípio da irretroatividade da lei penal. Esta matéria relativa a normas híbridas ou mistas, apesar de combatida por alguns, se mostra, a nosso ver, de fácil compreensão. Com efeito, o jurista lusitano e Professor da Faculdade de Direito do Porto, Taipa de Carvalho, após afirmar que “está em crescendo uma corrente que acolhe uma criteriosa perspectiva material - que distingue, dentro do direito processual penal, as normas processuais penais materiais das normas processuais formais”, adverte que dentro de uma visão de “hermenêutica teleológico-material determine-se que à sucessão de leis processuais penais 143 Los Derechos Fundamentales, Madrid: Editora Tecnos, 1993, p. 67. 144 Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, Alberto Silva Franco, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 7ª. ed., 2001, p. 62. 75 materiais sejam aplicados o princípio da irretroactividade da lei desfavorável e o da retroactividade da lei favorável.”145 Taipa de Carvalho explica que tais normas de natureza mista (designação também usada por ele), “embora processuais, elas são-no também plenamente materiais ou substantivas.”146 Informa, ainda, o mestre português que o alemão Klaus Tiedemann “destaca a exigência metodológica e a importância prática da distinção das normas processuais em normas processuais meramente formais ou técnicas e normas processuais substancialmente materiais”, o mesmo ocorrendo com o francês Georges Levasseur.147 Feitas tais considerações, lembra-se que por lei penal mais benéfica não se deve entender apenas aquela que comine pena menor, pois “en principio, la retroactividad es de la ley penal e debe extenderse a toda disposición penal que desincrimine, que convierta un delito en contravención, que introduzca una nueva causa de justificación, una nueva causa de inculpabilidad o una causa que impida la operatividad de la punibilidad, es dicer, al todo el contenido que hace recaer sobre la conduta, sendo necessário que se tenha em conta uma série de outras circunstâncias, o que implica em admitir que “la individualización de la ley penal más benigna deba hacerse en cada caso concreto, tal como ensina Eugenio Raul Zaffaroni. (grifo nosso)148. Advirta-se que normas penais não são apenas as incriminadoras, aquelas que definem fatos puníveis e cominam sanções (normas penais em sentido estrito), mas “também aquelas que completam o sistema penal com os seus princípios gerais e dispõem sobre a aplicação e os limites das normas incriminadoras”, como bem esclarece Aníbal Bruno.149 Veja-se a lição de Carlos Maximiliano: “Quanto aos institutos jurídicos de caráter misto, observam-se as regras atinentes ao critério indicado em espécie determinada. Sirva de exemplo a querela: direito de queixa é substantivo; processo da queixa é adjetivo; segundo uma e outra hipótese orienta-se a aplicação do Direito Intertemporal. “O preceito sobre observância imediata refere-se a normas processuais no sentido próprio; não abrange casos de diplomas que, embora tenham feição formal, apresentam, entretanto, prevalentes os caracteres do 145 Sucessão de Leis Penais, Coimbra: Coimbra Editora, págs. 219/220. 146 Ob, cit., p. 220. 147 Idem. 148 Tratado de Derecho Penal, Parte General, I, Buenos Aires: Editora Ediar, 1987, págs. 463 e 464. 149 Direito Penal, Parte Geral, Vol. I, Tomo I, Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 181. 76 Direito Penal Substantivo; nesta hipótese, predominam os postulados do Direito Transitório Material.”150 Diante do exposto, chega-se à seguinte conclusão: este artigo diz respeito, apenas e tão-somente, às disposições de caráter exclusivamente processual. Comentando a respeito das normas de caráter misto, assim já se pronunciou Rogério Lauria Tucci: “Daí porque deverão ser aplicadas, a propósito, consoante várias vezes também frisamos, e em face da conotação prevalecente de direito penal material das respectivas normas, as disposições legais mais favoráveis ao réu, ressalvando-se sempre, como em todos os sucessos ventilados, a possibilidade de temperança pelas regras de direito transitório, - estas excepcionais por natureza.”151 Ressalva-se, apenas, a coisa julgada como limite lógico e natural de tudo quanto foi dito, pois as novas regras exigem que haja processo em curso ou na iminência de ser iniciado. Se já houve o trânsito em julgado, não pode se cogitar de retroatividade para o seu desfazimento, pois neste caso já há um processo findo, além do que, contendo a norma caráter também processual, só poderia atingir processo não encerrado, ao contrário do que ocorreria se se tratasse de lei puramente penal (lex nova que, por exemplo, diminuísse a pena ou deixasse de considerar determinado fato como criminoso), hipóteses em que seria atingido, inclusive, o trânsito em julgado, por força do art. 2º., parágrafo único do Código Penal. IX. PROVAS – Projeto de Lei nº. 4.205/01 Este projeto altera dispositivos do Código de Processo Penal relativos à prova. Permanecemos com o sistema do livre convencimento fundamentado, pois diz o novo art. 155 que o “juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial”. Não pode, ademais, “fundamentar sua decisão nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, irrepetíveis e antecipadas”, o que vem a fortalecer o devido processo legal, com os seus corolários da ampla defesa e do contraditório, pois na fase investigatória, que é inquisitiva, não se permite o exercício do contraditório, nem tampouco a ampla defesa, o que macula qualquer decisão tomada com base exclusivamente na prova colhida naquela fase anterior. Assim, salvo as ressalvas feitas pela lei, aliás, perfeitamente 150 Direito Intertemporal, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955, p. 314. 151 Direito Intertemporal e a Nova Codificação Processual Penal, São Paulo: José Bushatsky, Editor, 1975, 124. 77 compreensíveis, a prova produzida na peça informativa deve ser repetida, para que valha como meio de prova idôneo para o julgador. Grande regra! Tal como hoje (art. 155), “somente quanto ao estado das pessoas serão observadas as restrições à prova estabelecidas na lei civil”, pois , na lição do velho Câmara Leal, “a prova do estado das pessoas fica subordinada às regras civis para sua produção”152, como no casamento, a idade, etc. O novo art. 156 repete, em parte, o atual, ao dizer que “a prova da alegação incumbirá a quem a fizer”, facultando-se, porém, ao Juiz o seguinte: 1) “Ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; 2)“Determinar, de ofício, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.” A esse respeito, veja-se o que dissemos sobre a atividade persecutória do juiz no processo penal acusatório. A propósito, Juan Montero Aroca adverte que “si el medio de prueba practicado de oficio por el tribunal de instancia tiene por objeto la comprobación de los hechos, esto es, se dirige a probar su existencia o inexistencia, se produce la quiebra de la imparcialidad objetiva del tribunal.”153 O projeto passa a considerar “inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a princípios ou normas constitucionais”, bem como aquelas “derivadas das ilícitas, quando evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, e quando as derivadas não pudessem ser obtidas senão por meio das primeiras.” São as chamadas provas ilícitas por derivação, baseadas na doutrina do fruit of the poisonous ou the tainted fruit, o que já era, na doutrina nacional, uma idéia mais ou menos pacífica.154 Esta disposição é válida tanto em relação às provas ilícitas como às ilegítimas, para quem as diferencia.155 Caso não tenha havido o desentranhamento, e preclusa esta possibilidade, “serão tomadas as providências para o arquivamento sigiloso em 152 Ob. cit., Vol. I, p. 429. 153 Sobre la Imparcialidad del Juez y la Incompatibilidad de Funciones Procesales, Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 89. 154 A respeito confira-se a obra de Luiz Flávio Gomes e Raúl Cervini, Interceptação Telefônica, São Paulo: RT, 1997. 155 Ada, Scarance e Magalhães Gomes, por exemplo, esclarecem que “quando a proibição for colocada por uma lei processual, a prova será ilegítima (ou ilegitimamente produzida); quando, pelo contrário, a proibição for de natureza material, a prova será ilicitamente obtida.” (As Nulidades no Processo Penal, São Paulo: Malheiros, 5ª. ed., 1996, p. 116. 78 cartório.” E, mais: “O juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada ilícita não poderá proferir a sentença”, para que dela não se contamine o seu espírito. Quanto às perícias houve nova modificação em relação àquela já ocorrida com a Lei nº. 8.862/94. Assim, ao invés de dois peritos oficiais, o “exame de corpo de delito e outras perícias serão, em regra, realizados por perito oficial” que, na sua falta, será realizado, agora sim, “por duas pessoas idôneas, escolhidas, de preferência, dentre as que tiverem habilitação técnica.” Neste último caso, os peritos inoficiais deverão prestar “o compromisso de bem e fielmente desempenhar o encargo.” A outra novidade é que além da possibilidade da formulação de quesitos pelo Ministério Público e seu assistente, pelo querelante, pelo ofendido, pelo investigado e pelo acusado, poder-se-á indicar assistentes técnicos, “que atuarão a partir de sua admissão pelo juiz.” Abandonando o nosso sistema tradicional de ouvida das testemunhas, que era o presidencialista (atual art. 212), adotar-se-á agora o sistema americano da cross examination, ou seja, “as perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.”, como já ocorre hoje no plenário do Júri. O parágrafo único do novo art. 212 estabelece que “sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição.” X. INTERROGATÓRIO/DEFESA LEGÍTIMA – PROJETO DE LEI nº. 4.204/01 Este projeto de lei modifica os dispositivos do Código de Processo Penal relativos ao interrogatório do acusado e à defesa efetiva, sendo lamentável que não se lhe tenha retirado do capítulo reservado aos meios de prova, pois, em verdade, trata-se de um meio de defesa. Como se sabe, discute-se na doutrina se o interrogatório é um meio de prova ou um meio de defesa. Hoje, mais do que antes, aceita-se a idéia de que se trata, em verdade, de um meio de defesa, sendo esta a posição adotada por doutrinadores do porte de Tourinho Filho, Bento de Faria e Jorge Alberto Romeiro, dentre outros. Frederico Marques, por sua vez, defendia o contrário. Tornaghi, identificando o problema como uma questão de “política processual” diz que o interrogatório “tanto pode ser aproveitado pela lei para servir como método de prova quanto como instrumento de defesa”, sendo, portanto, “meio de prova quando a lei o considera fato probante (factum probans) e é meio de defesa e fonte de prova quando ela entende que ele por si nada prova, mas apenas faz referência ao fato probando e, por isso mesmo, é preciso ir buscar a prova de tudo quanto nele foi dito pelo réu”.156 156 Hélio Tornaghi, ob. cit. p. 810. 79 O Código de Processo Penal italiano, nos seus arts. 64 e 65, deixa claro a intenção do legislador italiano em considerar o interrogatório como meio de defesa, pois, salvo em caso de prisão cautelar, “la persona sottoposta alle indagini (...) interviene libera all’interrogatorio”. Ademais, antes de iniciar o interrogatório, o imputado será advertido de seu direito “di non rispondere”, excetuando-se os dados de mera identificação, devendo a autoridade judicial informar ao interrogado a respeito dos elementos de prova que pesam sobre ele, bem como as respectivas fontes, salvo “se non puó derivarne pregiudizio per le indagini”; em seguida o Juiz, “invita la persona ad esporre quanto ritiene utile per la sua difesa e le pone direttamente domande” (grifo nosso). Para nós é induvidoso o caráter de meio defensivo que possui o interrogatório. Como já se disse, o princípio da ampla defesa insculpido no art. 5º., LV da Constituição Federal engloba não somente a defesa técnica, a cargo de um profissional do Direito devidamente habilitado, como também a denominada autodefesa ou defesa pessoal, esta exercida pelo próprio acusado quando, por exemplo, depõe pessoal e livremente no interrogatório. Veja-se a respeito a lição de Germano Marques da Silva: “A lei, com efeito, reserva ao arguido, para por ele serem exercidos pessoalmente, certos actos de defesa. É o que acontece, nomeadamente, com o seu interrogatório, quando detido, quer se trate do primeiro interrogatório judicial, quer de interrogado por parte do MP, do direito de ser interrogado na fase da instrução, das declarações sobre os factos da acusação no decurso da audiência e depois de findas as alegações e antes de encerrada a audiência”.157 Ora, tratando-se como efetivamente se trata de um modo de defesa pessoal é evidente que o interrogatório não pode ser considerado como meio de prova, nada obstante estar (e continuar) disciplinado no Capítulo III, do Título VII do Código de Processo Penal. Não esqueçamos que o interrogado tem direito a se calar, na forma do art. 5º., LXIII da Constituição Federal, atentando-se que o seu silêncio não pode causar-lhe qualquer ônus processual ou mácula à sua presumida inocência. Sem efeito, portanto, a disposição contida no art. 186, in fine do CPP, segundo a qual o silêncio do acusado pode “ser interpretado em prejuízo da própria defesa”. Se o silêncio está entre os direitos e garantias fundamentais previstos constitucionalmente, inconcebível que o seu uso possa trazer qualquer tipo de prejuízo para quem o utilize. O interrogado tem também o direito indiscutível de não se autoincriminar e o de não fazer prova contra si mesmo, em conformidade com o art. 8º., 2, g, do Pacto de São José da Costa Rica - Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 22 de novembro de 1969 e art. 14, 3, g do Pacto 157 Curso de Processo Penal, 3ª. ed., Lisboa: Verbo, vol. I, p. 288. 80 Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova York, assinada em 19 de dezembro de 1966, ambos já incorporados em nosso ordenamento jurídico, por força, respectivamente, do Decreto n.º 678 de 6 de novembro de 1992 e do Decreto n.º 592, de 6 de julho de 1992. Ressalte-se, ainda, que a Lei nº. 9.099/95 que criou os Juizados Especiais Criminais, no art. 81, disciplinou que o interrogatório deverá ser realizado após a ouvida da vítima e das testemunhas, afastando-o do início do procedimento e levando-o para o seu final, ou seja, após a colheita de todas a provas, o que veio a reforçar, a nosso ver, o seu caráter de meio de defesa.158 Como já vimos, a reforma nos procedimentos põe o interrogatório após a instrução criminal (arts. 400 e 531). Adepto desta tese, e para finalizar o assunto, Ferrajoli entende que o interrogatório é o melhor paradigma de distinção entre o sistema inquisitivo e o acusatório, pois naquele o interrogatório representava “el comienzo de la guerra forense”, “el primer ataque del fiscal contra el reo para obtener de él, por cualquier medio, la confesión”. Contrariamente, continua o mestre italiano, no processo acusatório/garantista “informado por la presunción de inocencia, el interrogatorio es el principal medio de defensa y tiene la única función de dar materialmente vida al juicio contradictorio y permitir al imputado refutar la acusación o aducir argumentos para justificarse”.159 Não sendo, destarte, meio de prova, o interrogatório, no entanto, poderá ser considerado uma importante fonte de prova (como ressaltou Tornaghi), sempre que “ministrar indicações úteis, cujas comprovações sejam necessárias”.160 Em nosso Direito positivo há duas disposições singulares a respeito do interrogatório: a primeira se encontra na Lei de Imprensa – Lei nº. 5.250/67 (art. 45, III) que dispõe poder “o réu requerer ao juiz que seja interrogado, devendo, nesse caso, ser ele ouvido antes de inquiridas as testemunhas”, dando uma idéia de facultatividade do ato processual. A nós nos parece, porém, que ainda que não lhe seja requerido, o Juiz deverá sempre proporcionar ao réu a oportunidade para ser interrogado, pois entender de forma diversa será admitir uma defesa não ampla, canhestra, pela metade, pois faltaria um dos momentos mais importantes para a realização da autodefesa. Também no Código Eleitoral, nas disposições pertinentes ao respectivo procedimento, não se encontra nenhuma referência à realização do interrogatório, o que não implica que ele não deva ser realizado naquele Juízo. É evidente que tanto quanto ocorre nos crimes de imprensa, o Juiz deve marcar a audiência para o interrogatório do acusado. Se for mais interessante para o réu ficar calado, não há problema em fazê-lo, mas a oportunidade para ele falar e se defender pessoalmente, esta não se lhe pode retirar. 158 Neste sentido, Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho, Antonio Scarance Fernandes e Luiz Flávio Gomes, Juizados Especiais Criminais, 3ª. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 176. 159 Luigi Ferrajoli, Derecho y Razón, 3ª. ed., Madrid: Trotta, 1998, p. 607. 160 Fernando da Costa Tourinho Filho, ob. cit., p. 223. 81 Assim afirmamos porque indiscutivelmente o interrogatório é indispensável à validade do processo penal. Os próprios termos do art. 185, CPP (“será qualificado e interrogado”) autorizam tal conclusão. A sua falta, quando presente o réu, gera nulidade absoluta, a teor do art. 564, III, e, c/c art. 572, CPP, nada obstante o entendimento contrário do STF (RTJ, 73/758), segundo o qual esta nulidade seria meramente relativa e, portanto, sanável se não for alegada opportuno tempore. Esta posição do pretório excelso acompanha o ensinamento de Espínola Filho.161 Em sentido contrário, Tourinho Filho.162 De toda forma, o Capítulo III do Título VII, passará a vigorar com algumas alterações importantes. A primeira delas, sem dúvidas, é a necessidade impostergável da presença de advogado, nomeado ou constituído, quando do interrogatório do acusado, pois a nova redação do art. 185 assim prescreve: “O acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será qualificado e interrogado na presença de seu defensor, constituído ou nomeado.” Como se sabe o interrogatório é o meio pelo qual o acusado pode dar ao Juiz criminal a sua versão a respeito dos fatos que lhe foram imputados pelo acusador. Por outro lado, é a oportunidade que possui o Magistrado de conhecer pessoalmente aquele que será julgado pela Justiça criminal; representa, ainda, uma das facetas da ampla defesa (a autodefesa), que se completará com a defesa técnica a ser produzida pelo advogado do acusado. A partir destas primeiras considerações avulta a questão sobre a necessidade ou não de o Juiz que preside o interrogatório ser o mesmo que sentencie o interrogado; em outras palavras, pergunta-se se o Magistrado que irá julgar tem que ser necessariamente aquele que interrogou o réu. A resposta é positiva, visto que, como vimos, passará a vigorar no Processo Penal o princípio da identidade física do Juiz, tal como já acontece no processo civil, onde “o juiz, titular ou substituto, que concluir a audiência julgará a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos ao seu sucessor” (art. 132, caput, Código de Processo Civil). No processo penal vindouro obedecer-se-á este princípio, donde se conclui que o Juiz interrogante precisa necessariamente ser o respectivo julgador, salvo as escusas legais, até porque é de suma importância para o ato de julgar este contato pessoal entre julgador e julgado, e o interrogatório é justamente o momento em que o Juiz conhecerá o acusado, tomará conhecimento pessoal (e não somente através da leitura de um depoimento escrito) do homem a ser por ele julgado. Como afirma Tourinho Filho, é “pelo interrogatório que o Juiz mantém contato com a pessoa contra quem se pede a aplicação da norma sancionadora. E tal contato é necessário porque propicia ao julgador o conhecimento da personalidade do acusado e lhe permite, também, ouvindo-o, 161 Eduardo Espínola Filho, Código de Processo Penal brasileiro anotado, 5ª. ed., Rio de Janeiro: Borsoi, vol. V, 1961, p. 430. 162 Ob. cit., p. 267. 82 cientificar-se dos motivos e circunstâncias do crime, elementos valiosos para a dosagem da pena”. É, destarte, a oportunidade “para que o Juiz conheça sua personalidade, saiba em que circunstâncias ocorreu a infração – porque ninguém melhor que o acusado para sabê-lo – e quais os seus motivos determinantes”. Por isso é meritório esse “contato entre julgador e imputado, quando aquele ouvirá, de viva voz, a resposta do réu à acusação que se lhe faz”.163 Ainda a esse respeito, o magistral Tornaghi se manifesta no mesmo sentido; para ele “o interrogatório é a grande oportunidade que tem o juiz para, num contato direto com o acusado, formar juízo a respeito de sua personalidade, da sinceridade de suas desculpas ou de sua confissão, do estado d’alma em que se encontra, da malícia ou da negligência com que agiu, da sua frieza e perversidade ou de sua elevação e nobreza; é o ensejo para estudar-lhe as reações, para ver, numa primeira observação, se ele entende o caráter criminoso do fato e para verificar tudo mais que lhe está ligado ao psiquismo e à formação moral”.164 Quanto à presença de advogado nesta fase, discute-se na doutrina e na jurisprudência a respeito desta necessidade. Boa parte da doutrina entende que sim. Neste sentido, Tourinho Filho, Frederico Marques e Espínola Filho. Há quem entenda, porém, a sua desnecessidade por se tratar de um momento processual típico da autodefesa (e não da defesa técnica), podendo, ademais, haver retratação a qualquer instante. A jurisprudência claramente se inclina neste segundo sentido, a ponto do próprio Tourinho Filho observar que “nunca se anulou qualquer processo pelo não-comparecimento do Advogado ao ato do interrogatório”.165 Agora certamente se anulará. Mirabete, por exemplo, acompanhando esta corrente jurisprudencial majoritária, sustenta que “a presença do defensor no interrogatório é apenas facultativa, já que não pode normalmente intervir nesse ato processual, razão por que a sua ausência não constitui nulidade no processo (RT 600/369, 610/407, JTACrSP 59/340)”. Em sentido contrário, defende Ferrajoli “el derecho del imputado a la asistencia y, en todo caso, a la presencia de su defensor en el interrogatorio, para impedir abusos o cualesquiera violaciones de las garantias procesales”.166 Recentemente a Suprema Corte, através de um dos seus mais destacados Ministros, Celso de Mello, através de liminar concedida em Mandado de Segurança deixou assentado que “cabe reconhecer, por isso mesmo, que a presença do advogado em qualquer procedimento estatal, independentemente do domínio institucional em que esse mesmo 163 Fernando da Costa Tourinho Filho, Processo Penal, 20ª. ed., São Paulo: Saraiva, vol. 3, 1998, p. 266. 164 Hélio Tornaghi, Compêndio de Processo Penal, Rio de Janeiro: José Konfino, tomo III, 1967, p. 812. 165 Fernando da Costa Tourinho Filho, ob. cit., p. 273. 166 Luigi Ferrajoli, ob. cit., p. 608. 83 procedimento tenha sido instaurado, constitui fator inequívoco de certeza de que os órgãos do Poder Público (Legislativo, Judiciário e Executivo) não transgredirão os limites delineados pelo ordenamento positivo da República, respeitando-se, em conseqüência, como se impõe aos membros e aos agentes do aparelho estatal, o regime das liberdades públicas e os direitos subjetivos constitucionalmente assegurados às pessoas em geral, inclusive àquelas eventualmente sujeitas, qualquer que seja o motivo, a investigação parlamentar, ou a inquérito policial, ou, ainda, a processo judicial”. (RDA 196/197 – HC 79.244 – DF). Esperamos que tal decisão seja confirmada no mérito, assentando-se definitivamente em nossa práxis forense a necessidade do defensor no ato de interrogatório do réu, como ocorreu no julgamento a seguir descrito: “NULIDADE. INTERROGATÓRIO. AUSÊNCIA DE ADVOGADO. Nulo é o processo em que o acusado é interrogado sem a presença de advogado defensor. Agressão aos princípios do contraditório e da ampla defesa (art. 5º., LV, da Constituição Federal). Nulidade decretada a partir, inclusive, do interrogatório.” (Apelação Criminal nº. 70001997402 – TJRGS – 5ª. Câmara Criminal – Rel. Des. Amilton Bueno de Carvalho – j. 14/02/01). Outra importante modificação está no art. 188, segundo o qual, “após proceder ao interrogatório, o juiz indagará das partes se restou algum fato para ser esclarecido, formulando as perguntas correspondentes se o entender pertinente e relevante”, ou seja, será permitida a interferência das partes, ao contrário do que dispõe o atual art. 187. Esta inovação é absolutamente salutar, pois a assistência técnica do advogado deve sempre ser deferida pelo Juiz, sob pena de não se completar a ampla defesa (só teria havido, então, a defesa pessoal). Nesse sentido, já dissemos, decidiu o STF, em liminar concedida pelo Ministro Celso de Mello, através da qual se reconheceu, garantindo-o, o direito do advogado de intervir na inquirição do seu cliente pela chamada “CPI do narcotráfico”, sob o argumento de que a Lei nº. 8.906/94 – Estatuto da Advocacia, assim o permite. Nesta decisão monocrática, escreveu o Ministro Celso de Mello ser direito do advogado “manter contacto com o seu cliente, podendo interferir, nas hipóteses contempladas em lei, com o objetivo de dispensar-lhe efetiva assistência técnica que dê sentido e concreção à garantia constitucional que confere, a qualquer um – indiciado, ou não -, o privilégio contra a auto-incriminação.” (RDA 196/197 – HC 79.244 – DF). Aqui, ao contrário do que ocorre na produção da prova testemunhal, as perguntas das partes devem ser dirigidas ao Juiz e não diretamente ao acusado. Parece-nos que à vista da garantia da ampla defesa (que pressupõe o exercício da defesa técnica) indiscutível poder o advogado orientar o seu cliente durante o interrogatório, mesmo porque “el defensor interviene en el 84 proceso con la finalidad de conseguir la absolución de su defendido, poniendo a disposición de este objetivo todos sus conocimientos jurídicos.”167 Por expressa disposição legal, “não se admitirá o interrogatório à distância de acusado preso.” Há algum tempo, lembram-se, criticou-se a iniciativa do jurista Luiz Flávio Gomes, Juiz de Direito hoje aposentado, que procedeu a um interrogatório à distância através do uso de um computador. Sob o argumento de que o “Judiciário não pode ficar alheio à modernidade tecnológica”, o referido penalista admite o interrogatório on line “desde que assegurado o amplo direito de defesa”.168 Condenando esta iniciativa e afirmando que o interrogatório on line inaugurava “um novo estilo de cerimônia degradante”, Dotti afirmou que a “tecnologia não poderá substituir o cérebro pelo computador e muito menos o pensamento pela digitação. É necessário usar a reflexão como contraponto da massificação. É preciso ler nos lábios as palavras que estão sendo ditas; ver a alma do acusado através de seus olhos; descobrir a face humana que se escondera por trás da máscara do delinqüente. É preciso, enfim, a aproximação física entre o Senhor da Justiça e o homem do crime, num gesto de alegoria que imita o toque dos dedos, o afresco pintado pelo gênio de Michelangelo na Capela Sistina e representativo da criação de Adão”.169 Sobre ao assunto, leia-se “Interrogatório à Distância”, do Professor Sérgio Marcos de Moraes Pitombo, publicado no Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº. 93 (agosto/2000). Cremos, realmente, que não seja o interrogatório o ato processual mais adequado para se utilizar os meios tecnológicos postos à nossa disposição e tão necessários à agilização da Justiça criminal; a informática, evidentemente, trouxe avanços indiscutíveis em nosso cotidiano e devemos utilizá-la de molde a proporcionar a tão almejada eficiência da Justiça, mas com uma certa dose de critério e atentos a princípios inseparáveis do devido processo legal. Note-se, porém, que há um projeto de lei, o de nº. 2.504/00, dispondo sobre o interrogatório do acusado à distância com a utilização de meios eletrônicos. No seu art. 1º. se diz poder o Juiz, no processo penal, “utilizandose de meios eletrônicos, proceder à distância ao interrogatório do réu”, exigindo-se “que o réu seja assistido por seu advogado ou, à falta, por Defensor Público.” Oxalá que não seja aprovado! O art. 186 do projeto de lei sob comento, obriga que, “depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de 167 Víctor Moreno Catena, Derecho Procesal Penal, Madrid: Editorial Colex, 1999, p. 143. 168 Luiz Flávio Gomes, “O interrogatório a distância através do computador”, São Paulo: Revista Literária de Direito, novembro/dezembro de 1996, p. 13. 169 René Ariel Dotti, ob. cit., p. 25. 85 permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas”, em conformidade com o direito ao silêncio insculpido no art. 5º., LXIII, da CF/88. O que muda efetivamente é que o uso deste direito constitucionalmente garantido, ou seja, o de permanecer calado, “não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa e tampouco poderá influir no convencimento do juiz. “ Diz o art. 187 que o “interrogatório será constituído de duas partes: sobre a pessoa do acusado e sobre os fatos: 1) “Na primeira parte o interrogando será perguntado sobre a residência, meios de vida ou profissão, oportunidades sociais, lugar onde exerce a sua atividade, vida pregressa, notadamente se foi preso ou processado alguma vez e, em caso afirmativo, qual o juízo do processo, se houve suspensão condicional ou condenação, qual a pena imposta, se a cumpriu e outros dados familiares e sociais. 2) “Na segunda parte será perguntado sobre:I - ser verdadeira a acusação que lhe é feita; II - não sendo verdadeira a acusação, se tem algum motivo particular a que atribuí-la, se conhece a pessoa ou pessoas a quem deva ser imputada a prática do crime, e quais sejam, e se com elas esteve antes da prática da infração ou depois dela; III onde estava ao tempo em que foi cometida a infração e se teve notícia desta; IV - as provas já apuradas; V - se conhece as vítimas e testemunhas já inquiridas ou por inquirir, e desde quando, e se tem o que alegar contra elas; VI - se conhece o instrumento com que foi praticada a infração, ou qualquer objeto que com esta se relacione e tenha sido apreendido; VII - todos os demais fatos e pormenores que conduzam à elucidação dos antecedentes e circunstâncias da infração; VIII - se tem algo mais a alegar em sua defesa.” Na verdade, no interrogatório distinguem-se três fases: a de identificação ou de qualificação, oportunidade em que a autoridade perguntará ao interrogando a respeito de seus dados pessoais, visando a uma perfeita identificação; a de cientificação, quando se informa sobre a imputação feita pelo acusador e, por fim, a de mérito ou de conteúdo, onde serão feitas as indagações indicadas nos incisos I a VIII, do art. 187, § 2º. e no art. 190, CPP (“Se confessar a autoria, será perguntado sobre os motivos e circunstâncias do fato e se outras pessoas concorreram para a infração, e quais sejam.”); evidentemente que estas perguntas não são exaustivas, podendo outras ser formuladas a depender das circunstâncias da infração. O novo art. 189 não traz novidades, in verbis: “Se o interrogando negar a acusação, no todo ou em parte, poderá prestar esclarecimentos e indicar provas.” Quanto ao interrogatório do mudo, do surdo ou do surdo-mudo será feito pela forma seguinte: 1) “Ao surdo serão apresentadas por escrito as perguntas, que ele responderá oralmente; 86 2) “Ao mudo as perguntas serão feitas oralmente, respondendo-as ele por escrito; 3) “Ao surdo-mudo as perguntas serão formuladas por escrito e do mesmo modo dará ele as respostas.” Se o “interrogando não saiba ler ou escrever, intervirá no ato, como intérprete e sob compromisso, pessoa habilitada a entendê-lo”, assim como se “não falar a língua nacional, o interrogatório será feito por meio de intérprete”, donde se conclui que em nosso sistema o idioma nacional é exigido para o cumprimento de todos os atos processuais, ainda que isto não venha expresso no CPP, como o faz o CPC, no art. 156. O art. 194 não apresenta novidades, pois estabelece que se “o interrogando for menor, o interrogatório será realizado na presença do curador, preferentemente advogado.” Observa-se, apenas, que a Súmula 352 do STF prescreve não ser nulo o processo penal por falta de nomeação de curador ao réu menor que teve a assistência de defensor dativo. Pergunta-se: e se o advogado foi constituído, a ausência deste curador acarretará a nulidade do ato processual? Responda-se afirmativamente com o magistério de Adalberto José de Camargo Aranha ao dizer “que a distinção reside no fato da nomeação do dativo partir do juiz, como ocorre com o curador, o que não acontece quando o defensor for constituído. Vale dizer, é essencial que o curador seja pessoa nomeada e de confiança do juiz, nomeação essa que também ocorre com o dativo.”170 No novo art. 195, tampouco, há novidade: “Se o interrogado não souber escrever, não puder ou não quiser assinar, tal fato será consignado no termo”, assim como o art. 196: “A todo tempo, o juiz poderá proceder a novo interrogatório de ofício ou a pedido fundamentado de qualquer das partes.” Se o acusado residir em comarca diversa do Juízo processante poderá ser realizado o interrogatório mediante a expedição de carta precatória. Esta possibilidade é pacificamente aceita pela jurisprudência e por grande parte da doutrina, apesar de ser sempre aconselhável que o Juiz do processo interrogue o respectivo acusado, pelos motivos já explicitados. De toda forma, a enormidade do território brasileiro obriga aceitar-se a realização do interrogatório mediante carta precatória. Se houver co-réus os separadamente (art. 191). seus interrogatórios devem se realizar Por fim, modifica-se, outrossim, o art. 261 que está no capítulo III do Título VIII do CPP (Dos Sujeitos Processuais), acrescentando-lhe um parágrafo único, afirmando-se que a “defesa técnica será efetiva, exigindo manifestação fundamentada.” Com efeito, todo acusado deve obrigatoriamente ser defendido por um profissional do Direito, a fim de que se estabeleça íntegra a ampla defesa; 170 Da Prova no Processo Penal, São Paulo: Saraiva, 5ª. ed., 1999, p. 100. 87 como se sabe a defesa ampla se compõe da autodefesa e da defesa técnica, aquela exercida pelo próprio acusado e esta por um advogado. Aliás, é imperioso destacar que o direito de defesa no processo penal deve ser rigorosamente obedecido, sob pena de nulidade: “Para que haya un proceso penal propio de un Estado de Derecho es irrenunciable que el inculpado pueda tomar posición frente a los reproches formulados en su contra, y que se considere en la obtención de la sentencia los puntos de vista sometidos a discusión”.171 Mesmo para o réu ausente ou foragido é indispensável, sob pena de nulidade absoluta, que se lhe nomeie um defensor; se menor de 21 anos, além do defensor, necessário se faz a presença também de um curador, ressalvando, como já se disse, que o STF já sumulou o entendimento segundo o qual “não é nulo o processo penal por falta de nomeação de curador ao réu menor que teve a assistência de defensor dativo” (Súmula 352); se o réu menor, porém, for defendido por um advogado constituído, entendemos subsistir a necessidade da presença de um curador, pois que este pressupõe pessoa da confiança do Juízo, o que coincide com a natureza do defensor dativo, mas não com a do constituído (ver acima). O defensor nomeado ou dativo será obrigado a aceitar a defesa, sob pena de multa (art. 264, CPP) e de responder por infração disciplinar (art. 34, XII, do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil). Se, porém, o acusado para o qual o Juiz nomeou um defensor na realidade não for pobre, será obrigado a pagar os honorários advocatícios arbitrados pelo Juiz (art. 263, parágrafo único, CPP). A constituição de advogado no processo penal pode ser feita por procuração ou por indicação verbal quando da realização do interrogatório, dispensando-se, neste último caso, a juntada do instrumento procuratório. Ainda que inicialmente tenha sido nomeado um defensor dativo, pode o acusado a qualquer momento constituir um profissional de sua confiança (art. 263, caput). Como já assinalado, o defensor exerce a chamada defesa técnica, específica, profissional ou processual, que exige a capacidade postulatória e o conhecimento técnico. O acusado, por sua vez, exercita ao longo do processo (quando, por exemplo, é interrogado) a denominada autodefesa ou defesa material ou genérica. Ambas, juntas, compõem a ampla defesa. A propósito, veja-se a definição de Fenech: “Se entiende por defensa genérica aquella que lleva a cabo la propia parte por sí mediante actos constituídos por acciones u omisiones, encaminados a hacer prosperar o a impedir que prospere la actuación de la pretensión.. No se halla regulada por el derecho con normas 171 Klaus Tiedemann, Introducción al Derecho Penal y al Derecho Penal Procesal, Barcelona: Ariel, 1989, p. 184. 88 cogentes, sino con la concesión de determinados derechos inspirados en el conocimientode la naturaleza humana, mediante la prohibición del empleo de medios coactivos, tales como el juramento – cuando se trata de la parte acusada – y cualquier otro género de coacciones destinadas a obtener por fuerza y contra la voluntad del sujeto una declaración de conocimiento que ha de repercutir en contra suya”. Para ele, diferencia-se esta autodefesa da defesa técnica, por ele chamada de específica, processual ou profissional, “que se lleva a cabo no ya por la parte misma, sino por personas peritas que tienen como profesión el ejercicio de esta función técnico-jurídica de defensa de las partes que actuán en el processo penal para poner de relieve sus derechos y contribuir con su conocimiento a la orientación y dirección en orden a la consecusión de los fines que cada parte persigue en el proceso y, en definitiva, facilitar los fines del mismo”.172 Ressalte-se que o defensor não é parte, nem sujeito processual, nem, tampouco, substituto processual, agindo apenas como um representante técnico da parte; neste mister, parece-nos que cabe a este profissional exercitar a sua defesa mesmo contra a vontade do réu, até porque o direito de defesa é indisponível: “En interés del hallazgo de la verdad y de una defensa efectiva, puede, sin duda, actuar también en contra de la voluntad del inculpado, por ejemplo, interponer una solicitud para que se examine su estado mental”.173 XI. RECURSOS E AÇÕES DE IMPUGNAÇÃO - Projeto de lei 4.206/01 Este projeto de lei altera os dispositivos do Código de Processo Penal que dizem respeito aos recursos e às ações de impugnação. Por primeiro, o Livro III passa a ter a seguinte epígrafe: “Das nulidades, dos recursos e das ações de impugnação.” Uma lástima que não se tenha alterado o Título I que trata das nulidades, um dos mais confusos e assistemáticos do nosso CPP. Sobre ele disse o mestre Frederico Marques: “Não primou pela clareza o legislador pátrio, ao disciplinar o problema das nulidades processuais penais. Os arts. 563 usque 573 estão prenhes de incongruências, repetições e regras obscuras, que tornam difícil a sistematização coerente de tão importante instituto.”174 172 Miguel Fenech, Derecho Procesal Penal, Vol. I, 2ª. ed., Barcelona: Editorial Labor, S. A., 1952, p. 457. 173 Klaus Tiedemann, Introducción al Derecho Penal y al Derecho Penal Procesal, Barcelona: Ariel, 1989, p. 185. 174 Elementos de Direito Processual Penal, Vol. II, Campinas: Bookseller, p. 366. 89 De toda maneira, o Título II, “Dos recursos em geral” e o seu Capítulo I, “Disposições gerais”, assim se inicia: “Art. 574. Os recursos serão voluntários”, acabando-se com a possibilidade dos “recursos de ofício”, cuja natureza recursal é, inclusive, bastante discutível. Tourinho Filho, por exemplo, respaldando-se nas lições de Alcides de Mendonça Lima, assevera que “o recurso necessário não pode ser considerado como tal, pois o juiz, que tem o dever de recorrer de ofício, não haveria de ficar inconformado com a sua própria decisão... Ademais, quando alguém recorre, evidentemente há de desejar seja o seu recurso provido. No ex officio dá-se exatamente o contrário: o Juiz quer que a sua decisão seja mantida, donde decorre que, o recurso ex officio, tecnicamente, não é um recurso, posto não ser interposto por quem tenha interesse na reforma da decisão. Trata-se de providência administrativa visando a acautelar determinados interesses tutelados pelas leis que o admitem.”175 Na verdade, em tais hipóteses o que há é uma condição de eficácia da sentença.176 Há, inclusive, decisões jurisprudenciais entendendo pelo banimento do recurso de ofício em nossa sistemática, com fulcro no art. 129, I, da CF/88 (RT, 659/305; Revista de Julgados e Doutrina do TACrimSP, 13/118, 124, 204 e 206). Vejamos, tão-somente, as novidades vindouras: O art. 577 legitima para recorrer “o Ministério Público, o querelante, o ofendido nas hipóteses previstas em lei e o acusado ou seu defensor.” Observa-se que o ofendido tem legitimidade para recorrer nas hipóteses previstas no caput do art. 598 do Código de Processo Penal, que não foi modificado, salvo o seu parágrafo único que, dissipando dúvidas doutrinárias e jurisprudenciais, estabeleceu que “o prazo para interposição deste recurso, contado a partir do dia em que terminar o do Ministério Público, será de cinco dias para o assistente e de quinze dias para o ofendido não habilitado.” Este prazo maior para o ofendido não habilitado como assistente é plenamente justificado, pois ele sequer será intimado da sentença, sendo razoável que se lhe concedesse um prazo maior, a fim de que possa tomar conhecimento da decisão absolutória e dela recorrer. Atente-se, ainda, para a Súmula 448 do STF, segundo a qual “o prazo para o assistente recorrer, supletivamente, começa a correr imediatamente após o transcurso do prazo do Ministério Público”. O art. 578 estabelece que o recurso será interposto por petição já acompanhada das razões. Assim, neste sistema “as razões já serão oferecidas na própria petição de interposição, o que não ocorre na disciplina do CPP, em que há um outro prazo de oito dias (três nas contravenções) para que o recurso seja arrazoado. E quem milita na área criminal bem conhece as 175 Código de Processo Penal comentado, Vol. II, São Paulo: Saraiva, 1996, p. 244. Em seguida, este mesmo autor diz cumprir “ao legislador extirpá-lo, por se tratar de verdadeira absurdez, nos termos em que o concebemos”. 176 Grinover, Ada Pellegrini e outros, Recursos no Processo Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 3ª. ed., 2001, p. 35. 90 procrastinações que essa duplicidade de prazos acarreta.”177 Permite-se que o réu interponha “o recurso pessoalmente, por termo nos autos, devendo nessa hipótese ser intimado seu defensor para arrazoá-lo no respectivo prazo”, atentando-se, evidentemente, para a outra face da ampla defesa, que é a defesa técnica, indispensável e irrenunciável no processo penal. O novel art. 581 estabelece que “caberá recurso da sentença e da decisão interlocutória”, definindo que “sentença é o ato pelo qual o juiz põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito”, “decisão interlocutória é o ato pelo qual o juiz, no curso do processo, resolve questão incidente” e “despachos os demais atos do juiz praticados no processo, de ofício ou a requerimento da parte.” “Os atos meramente ordinatórios, como a juntada e a vista obrigatória, independem de despacho, devendo ser praticados de ofício pelo servidor e revistos pelo juiz quando necessário.”: são os chamados atos de movimentação levados a efeito pelos serventuários da justiça e que visam a dar andamento ao processo. No Capítulo II, ao invés do vetusto recurso em sentido estrito, estabelece-se a possibilidade do agravo, retido nos autos ou por instrumento, ambos no prazo de dez dias (art. 582). Em regra caberá o agravo retido, podendo ser o de instrumento da decisão que: 1) “Receber a denúncia ou a queixa ou rejeitá-la parcialmente; note-se: é cabível o recurso também para o recebimento da peça acusatória, como para a rejeição parcial de ambas. 2) “Declarar a incompetência do juízo; 3) “Rejeitar exceção processual; 4) “Pronunciar o acusado; ressalta-se que este recurso “suspenderá tãosomente o julgamento.” 5) “Deferir, negar, arbitrar, cassar, julgar idônea ou quebrada a fiança ou perdido o seu valor; deferir ou indeferir requerimento de prisão temporária ou preventiva, ou revogá-las; deferir ou indeferir liberdade provisória, relaxar ou mantiver a prisão em flagrante e deferir ou indeferir medidas cautelares; observa-se que o “recurso da decisão que julgar quebrada a fiança suspenderá unicamente o efeito de perda da metade do seu valor.” 6) “Declarar lícita ou ilícita a prova; 177 Grinover, Ada Pellegrini e outros, Juizados Especiais Criminais, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 3ª. ed., 1999, p. 189. 91 7) “Conceder ou negar liminar em habeas corpus; admite-se, agora por disposição legal, a possibilidade de concessão liminar do habeas corpus, o que já vinha desde há muito sendo aceito pela jurisprudência, utilizando-se, por analogia, a regra prevista para o mandado de segurança.178 8) “Indeferir pedido de extinção da punibilidade; 9) “Conceder, negar ou revogar a suspensão condicional da pena; 10) “Anular parcialmente o processo; 11) “Suspender o processo; 12) “Julgar o incidente de falsidade; 13) “For proferida pelo juiz da execução”, revogando-se implicitamente o art. 197 da Lei de Execução Penal que prevê o agravo em execução. O agravo retido “terá efeito apenas devolutivo” e será “interposto por petição dirigida ao juízo recorrido, acompanhada de razões endereçadas ao tribunal competente para o julgamento da apelação, com requerimento de que o tribunal dele conheça preliminarmente”, dele não se conhecendo “se o agravante deixar de requerer expressamente, nas razões ou na resposta da apelação, sua apreciação pelo tribunal.” Este tipo de agravo poderá também ser interposto oralmente, quando a respectiva decisão for proferida em audiência, “a constar do respectivo termo, expostas, no ato da interposição, as razões que justifiquem o pedido de nova decisão.” Já o agravo de instrumento, que “terá também efeito suspensivo nos casos em que, a critério do juiz, sendo relevante a fundamentação do pedido, da decisão puder resultar lesão grave ou de difícil reparação“ está disciplinado no art. 586 e “será interposto perante o juízo recorrido, com razões dirigidas ao tribunal competente, por meio de petição contendo os seguintes requisitos: 1)“ A exposição do fato e do direito; 2) “As razões do pedido de reforma da decisão; 3) “A indicação das peças a serem trasladadas ao instrumento; quanto a este traslado, será “realizado sem ônus pelo cartório, no prazo de cinco dias, e dele constarão, na ordem numérica das folhas do processo 178 O primeiro dos casos ocorreu no julgamento de um habeas corpus perante o Supremo Tribunal Federal, em 1964, tendo como paciente o ex-Governador de Goiás, Mauro Borges. O Ministro Gonçalves de Oliveira, vencedor em seu voto, deixou assentado: “Se no mandado de segurança pode o relator conceder a liminar até em casos de interesses patrimoniais, não se compreenderia que, em casos em que está em jogo a liberdade individual ou as liberdades públicas, a liminar, no HC preventivo, não pudesse ser concedida.” (RTJ 33/590). 92 originário, cópias da denúncia ou queixa, aditamentos e respectivas decisões de recebimento ou rejeição; da decisão agravada e certidão da respectiva intimação; da procuração ou nomeação de defensor do agravante e do agravado e demais peças indicadas pelo agravante; 4) O nome e o endereço completo dos advogados constantes dos autos.” “Art. 587. O agravado será intimado, independentemente de despacho do juiz, para responder no prazo de dez dias.” Nesta resposta, ele “poderá indicar peças a serem trasladadas, sem ônus, pelo cartório, em cinco dias, e juntadas ao instrumento segundo a ordem numérica das folhas do processo originário.” Merece aqui uma observação: em se tratando de acusado reconhecidamente pobre (seja em ação penal pública ou de iniciativa privada) é evidente que as despesas com este traslado devem ser arcadas, sim, pelo Estado, obedecendo-se ao disposto no art. 5º., LV da Constituição que garante a amplitude de defesa, com os recursos a ela inerentes. Ademais, ainda que se trate de recurso interposto pelo querelante, se for pobre, entendemos que as mesmas despesas devem ser pagas também pelo Estado, nos termos do atual art. 32 do Código de Processo Penal, até porque o direito de ação, que é público e subjetivo, também é garantido constitucionalmente no art. 5º., XXXV, além de estar inscrito no art. 8º. da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Dispensa-se no art. 590 a autenticação de cópias de peças, salvo dúvida sobre a autenticidade. No art. 589 consagra-se o que parte da doutrina denomina impropriamente de efeito iterativo, regressivo ou diferido do recurso, mas que, na verdade, como ensinam Ada, Gomes Filho e Scarance, trata-se do que eles denominam de juízo de confirmação ou retratação, “que nada mais representa do que um aspecto do próprio efeito devolutivo” da via impugnativa179: “Se o juiz reformar a decisão agravada, a parte contrária poderá agravar, quando cabível, por simples petição, da nova decisão, sendo vedado ao juiz modificá-la e, às partes, apresentar novas razões.” Por fim, quanto ao agravo, abre-se uma possibilidade para se disciplinar o seu julgamento no âmbito dos tribunais, ao se prescrever que “norma de organização judiciária poderá instituir órgão do tribunal para decidir sobre a admissibilidade do agravo de instrumento e o efeito suspensivo.” Tal norma, a nosso sentir, poderá vir de uma lei ordinária estadual ou mesmo a partir do Regimento Interno do Tribunal. No Capítulo III temos a nova disciplina do recurso de apelação. Destarte, diz o art. 593 ser cabível este recurso, no prazo de quinze dias, da sentença. 179 Grinover, Ada Pellegrini e outros, Recursos no Processo Penal, São Paulo: RT, 3ª. ed., 2001, p. 57. 93 Por outro lado, a decisão proferida no Tribunal do Júri é também apelável quando “ocorrer nulidade posterior à pronúncia; for a sentença do juiz presidente contrária à lei expressa ou à decisão dos jurados, caso em que o tribunal ad quem fará a devida retificação; houver erro ou injustiça no tocante à aplicação da pena ou da medida de segurança, caso em que o tribunal ad quem procederá à devida retificação; for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos, caso em que o tribunal ad quem sujeitará o acusado a novo julgamento, não se admitindo, porém, pelo mesmo motivo, segunda apelação.” Permanece a regra estabelecida no § 4º. do art. 593 que traduz o chamado princípio da singularidade ou unirrecorribilidade dos recursos, pois “quando cabível a apelação, não se admitirá agravo, ainda que se recorra somente de parte da decisão.” Modificação radical e absolutamente necessária trouxe o art. 597, pois, privilegiando mais uma vez o princípio da presunção de inocência (ou, como outros preferem, o da não-culpabilidade), estabelece-se que a apelação da sentença condenatória terá efeito suspensivo; no entanto (e então está o avanço) pode “o juiz decidir, fundamentadamente, sobre a manutenção ou, se for o caso, a imposição de prisão preventiva ou de outra medida cautelar, sem prejuízo do conhecimento da apelação.” Assim, tenha ou não bons antecedentes, seja ou não seja primário, recolha-se ou não à prisão, o apelo da defesa deverá ser sempre conhecido. De outro lado, só se manterá o apelante no cárcere ou submetido a outra medida cautelar caso fundamentadamente se demonstre a necessidade da restrição. Em conformidade com o art. 2º., parágrafo único da Lei de Execução Penal, estabelece-se que “durante o processamento da apelação, as questões relativas à situação do preso provisório serão decididas pelo juiz da execução, se necessário em autuação suplementar”, o que significa que é possível antecipar-se os efeitos da sentença condenatória, sem se falar em execução provisória da pena, como de há muito defendeu o Professor Rogério Lauria Tucci.180 A apelação deverá ser interposta por petição dirigida ao juiz da causa e conterá: “a designação de recorrente e recorrido;os fundamentos de fato e de direito e o pedido de nova decisão”, permitindo-se ao assistente arrazoar “em cinco dias, após o prazo do Ministério Público”. Caso se trate de ação penal de iniciativa privada, o Ministério Público terá vista dos autos neste mesmo prazo. Caso haja “dois ou mais apelantes ou apelados, os prazos serão individuais e sucessivos.” Quanto ao outro efeito deste recurso, leia-se o novo art. 604, in verbis: “A apelação devolverá ao tribunal o conhecimento da matéria impugnada”, sendo, “porém, objeto de apreciação e julgamento pelo tribunal todas as questões suscitadas e discutidas no processo, ainda que a sentença não as 180 Apud Delmanto Junior, Roberto, As Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de Duração, Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 188, em nota de rodapé de nº. 324. 94 tenha julgado por inteiro”, ressalvando, ainda, que no caso de “a acusação ou a defesa tiver mais de um fundamento e o juiz acolher apenas um deles, a apelação devolverá ao tribunal o conhecimento dos demais.” Aqui vale repetir as lições de Ada, Magalhães e Scarance: “A apelação, como todo recurso, devolve ao tribunal o conhecimento da matéria impugnada e da que pode ser conhecida de ofício.”181 Atentemos, porém, para a Súmula 160 do STF que considera nula a decisão do Tribunal que acolhe, contra o réu, nulidade não argüida no recurso da acusação. Diz o projeto de lei que ao “receber a apelação, o juiz mandará dar vista ao apelado para responder”; caso haja dois ou mais apelados, os prazos serão individuais e sucessivos. Note-se que sendo interposta apelação contra a decisão de rejeição liminar da denúncia ou queixa, “o acusado será citado pessoalmente para responder, valendo a citação para os termos ulteriores do processo.” Providência extremamente salutar, pois, ainda que não haja processo, nem se tenha estabelecido a relação processual entre os três sujeitos principais (não se tratando, portanto, ainda, de “acusado”), em face da ampla defesa esta medida se impõe, tal como no sistema atual se tem decidido quando se interpõe o recurso em sentido estrito do não recebimento da peça acusatória (RTJ, 98/672, 98/679, 107/98; RT, 552/403, 597/325, 607/358, 639/311 e 688/296). Observa-se que o art. 82, § 2º. da Lei nº. 9.099/95, ao tratar do recurso de apelação quando se rejeita a peça acusatória, determina que o recorrido (e não acusado) será intimado (e não citado, ainda que devesse ser “notificado”) para “oferecer resposta escrita no prazo de dez dias.” E para terminar este capítulo da apelação duas últimas disposições: “Art. 606. Apresentada a resposta, o juiz, se for o caso, reexaminará os requisitos de admissibilidade do recurso. “Parágrafo único. Findo o prazo para resposta, os autos serão remetidos à instância superior.” O Capítulo V trata do processo e do julgamento dos recursos nos Tribunais, respeitando-se, evidentemente, a Lei nº. 8.038/90, as leis de organização judiciária, as Constituições Estaduais e os regimentos internos dos Tribunais. Tanto é assim que se dispõe que as “câmaras, turmas, grupos ou outros órgãos fracionários terão a competência estabelecida pelas normas de organização judiciária.” No mais, são normas a serem obedecidas nos seguintes termos: 181 Ob. cit., p. 156. 95 “Art. 610. Se a decisão desfavorável ao acusado, na apelação, tomada em órgão fracionário do tribunal, não for unânime, o processo será automaticamente colocado em pauta para reexame pelo órgão competente, pelo menos quinze dias após a publicação do resultado do julgamento. “§ 1o O resumo dos votos vencedores e vencido, no julgamento da apelação, com seus fundamentos, constará da intimação do julgamento. “§ 2o Os interessados poderão manifestar-se, por escrito, até a data do novo julgamento e sustentar oralmente na sessão”. Complementando o nosso estudo sobre o art. 610, o seu § 3º. estabelece que “O órgão competente para o reexame será composto de modo a garantir a possibilidade de reversão do julgamento.” Por sua vez, o § 4º. diz que a “decisão da apelação não terá eficácia enquanto não for cumprido o disposto no caput deste artigo” (veja a transcrição acima). “Art. 611. Salvo o caso de requerimento expresso e destacado de efeito suspensivo no agravo de instrumento, este, após distribuição ao relator, irá, de imediato, independentemente de despacho, ao Ministério Público, para parecer em dez dias. “Parágrafo único. O relator, ou órgão instituído por norma de organização judiciária, decidirá sobre a concessão ou não do efeito suspensivo e comunicará ao juízo a sua decisão, remetendo-se após os autos ao Ministério Público para parecer.” “Art. 612. Salvo disposição expressa em contrário, conclusos os autos, o relator os examinará em 10 dias, enviando-os, em seguida, quando for o caso, ao revisor por igual prazo. “Parágrafo único. Os autos serão enviados à mesa de julgamento pelo relator ou revisor, conforme o caso.” “Art. 613. Haverá revisor somente em recursos de apelação relativos a processos por crimes punidos com pena máxima superior a quatro anos. “Art. 614. No caso de impossibilidade de observância de qualquer dos prazos pelo julgador, os motivos da demora serão declarados nos autos. “Art. 615. O tribunal decidirá por maioria de votos. “§ 1o Havendo empate de votos no julgamento de recursos, se o presidente do tribunal, câmara ou turma não tiver tomado parte na votação, proferirá o voto de desempate; caso contrário, prevalecerá o mais favorável ao acusado. “§ 2o O resultado do julgamento será proclamado pelo presidente após a tomada dos votos, observando-se, sob sua responsabilidade, o seguinte: 96 “I - prevalecendo o voto do relator e ressalvada a hipótese de retificação da minuta de voto, o acórdão será assinado ao final da sessão de julgamento ou, no máximo, em cinco dias; “II - no caso de não prevalecer o voto do relator, o acórdão será assinado pelo relator designado, sendo obrigatória a declaração de voto vencido, se favorável ao acusado; “III - no caso de retificação da minuta de voto, o acórdão será assinado no prazo máximo de dez dias; “IV - a secretaria do tribunal fará publicar, no dia subseqüente à assinatura do acórdão, a intimação, iniciando-se, a partir desta, o prazo para eventual recurso.” O capítulo VI, tal como hoje, trata dos embargos de declaração nos arts. 618 e 619. Acaba aquela dicotomia, unificando-se ”em uma só disposição, a previsão dos embargos de declaração contra sentença e acórdão, previstos no CPP em artigos distintos: 382, para a sentença, e 619, relativamente ao acórdão.”182 Assim, caberão embargos de declaração quando houver, na sentença ou no acórdão, obscuridade ou contradição ou “for omitido ponto sobre o qual devia pronunciar-se o juiz ou tribunal.” Eles só terão efeito modificativo “na medida do esclarecimento da obscuridade, da eliminação da contradição ou do suprimento da omissão”, podendo, a nosso ver, inclusive, dar azo à modificação substancial da decisão, inclusive para se alterar a pena em caso de evidente contradição entre o decisum e a pena aplicada. Como dizem, mais uma vez, Ada, Gomes e Scarance, “a realidade dos fatos mostra que a decisão dos embargos declaratórios pode, por vezes, ter efeito infringente, modificando o primeiro julgado.” Para eles não há razão em não se admitir este efeito infringente para aumentar a pena, pois “é preferível corrigir o erro em embargos de declaração – nos limites da contradição ou omissão – do que chegar ao mesmo resultado pela via de outro recurso.”183 O prazo para os embargos será de cinco dias e deverão ser opostos “em petição dirigida ao juiz ou relator, com indicação do ponto obscuro, contraditório ou omisso” (não se admite, como nos Juizados Especiais Criminais, a interposição oral). “O relator apresentará os embargos em mesa na sessão subseqüente, independentemente de intimação, proferindo voto.” Terminando com a omissão do atual Código, firma-se que “os embargos de declaração interrompem o prazo para a interposição de outros recursos por qualquer das partes.” Observa-se que outra é a disposição nos Juizados 182 Grinover, Ada Pellegrini e outros, Juizados Especiais Criminais, idem, p. 193 183 Recursos no Processo Penal, p. 239. 97 Especiais Criminais, quando haverá a suspensão do prazo (art. 83, § 2º. da Lei n. 9.099/95). No novo Capítulo VII (Do Recurso Especial e do Recurso Extraordinário), e em apenas um artigo, está dito: “Art. 620. O recurso especial e o recurso extraordinário serão processados e julgados na conformidade da lei específica e na forma estabelecida pelos regimentos internos.”. Leia-se arts. 102, III e 105, III, da CF/88, Lei nº. 8.038/90, regimentos internos do STJ e STF e suas respectivas súmulas, atentando-se que a “Lei nº. 8.950/94 não revogou as disposições da Lei nº. 8.038/90, relativamente ao processo penal”, como afirmam os mesmos Ada, Gomes e Scarance.184 Acrescentou-se a este Livro III, o Título III que tratará das ações de impugnação. No Capítulo I regula-se a revisão criminal, aditando-se apenas dois parágrafos ao art. 623, pelos quais no “Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça o processo e julgamento obedecerão ao que for estabelecido no respectivo regimento interno” e nos “tribunais estaduais o julgamento será efetuado pelas câmaras ou turmas criminais, reunidas em sessão conjunta, ou pelo tribunal pleno.” No Capítulo do Habeas Corpus alterou-se apenas o art. 664, in verbis: “Art. 664. Recebidas as informações, ou dispensadas, o Ministério Público terá vista dos autos por cinco dias, a contar da data do recebimento dos autos pela sua secretaria, cabendo à secretaria do tribunal informar sobre o decurso do prazo. “§ 1o Decorrido o prazo, com ou sem manifestação, o habeas corpus será julgado na primeira sessão, podendo, entretanto, adiar-se o julgamento para a sessão seguinte. “§ 2o Se o impetrante o requerer, destacadamente, na impetração, será intimado da data do julgamento. “§ 3o A decisão será tomada por maioria de votos. Havendo empate, se o presidente não tiver tomado parte na votação, proferirá voto de desempate; no caso contrário, prevalecerá a decisão mais favorável ao paciente.” Olvidou-se de se disciplinar o Mandado de Segurança em matéria criminal, nada obstante sabermos que a regulamentação legal da matéria encontra-se na Lei nº. 1.533/51, mas nada custaria adequar-se aquela lei às peculiaridades do sistema processual penal, com todas as características próprias de seus atos processuais. Uma pena! De mais a mais, revogam-se os arts. 594 e 595 (sobre os quais já nos referimos acima), 600 (que trata da apelação e em relação à qual já se tem nova disciplina), 607 e 608 (acabando com o protesto por novo Júri), 637 e 638 (que tratam do recurso extraordinário, o que permitirá que, pendente ainda o 184 Ob. cit., p. 268. 98 recurso extraordinário, possa o recorrente aguardar em liberdade o seu julgamento, tudo em consonância com o princípio da presunção de inocência), o Capítulo IX do Título II do Livro III (extinguindo a Carta Testemunhável - arts 639 a 646, “tornada desnecessária ante o novo formato do agravo de instrumento, cuja agilidade e praticidade, diante do atual recurso em sentido estrito, é evidente”, conforme se lê na respectiva exposição de motivos) do Código de Processo Penal. Referência Bibliográfica deste Artigo (ABNT: NBR-6023/2000): MOREIRA, Rômulo de Andrade.A reforma do Código de Processo Penal. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, nº. 11, fevereiro, 2002. Disponível na Internet: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: xx de xxxxxxxx de xxxx (substituir x por dados da data de acesso ao site). Publicação Impressa: Sem informações disponíveis. 99