Pequeno Monólogo de Julieta

Transcrição

Pequeno Monólogo de Julieta
Pequeno Monólogo de Julieta
Romeu está morto com um frasco de veneno nas mãos.
Julieta está para se matar, o punhal no peito... Silêncio.
Julieta: Eu te odeio! É isso o que sinto! Ódio! Como pôde me abandonar
assim? Será que não podias esperar para que pelo menos eu fosse contigo no
mesmo instante? Tu és o mais egoísta dos homens, és o homem que eu amo!
Ah, como fui tola em ter me apaixonado por ti! (pausa) Mas como iria saber?
Como poderia prever teu triste fim? O meu triste fim... (sempre com o punhal
na mão) Talvez eu não quisesse me matar. Talvez eu quisesse estar junto a ti.
Não assim! Junto contigo. Felizes. Talvez eu quisesse outra felicidade que não
fosse o hálito do teu veneno, Romeu. Talvez eu quisesse nunca ter te
conhecido, nunca ter completado quatorze anos! Talvez eu quisesse ter
morrido antes! Antes de completar 14, 13, 10 anos! – para não precisar me
matar unicamente porque já não tenho mais como dizer “talvez eu quisesse”,
porque já não tenho mais como querer outra felicidade que já não pode estar!
Este punhal. Eis aqui teu sorriso. O meu sorriso. O nosso... fim. Desgraçados
somos, que só conseguimos felicidade através do suicídio! Que na época em
que me encontro não há lugar para mulher como eu. Ingrata! Meu pai me
chamou quando me recusei casar com o fidalgo! Eu, pobre infeliz, por ter te
conhecido. Mas ainda posso! Posso mudar minha vida e percorrer outros
lugares e sentir novos amores! Mas não na minha época. Posso! Posso
estudar, posso planejar futuros, posso mapear outras vias, posso me extraviar
em festas, posso me embebedar! Mas não na minha época! Que pra minha
época só há um amor! E outro?! Outro era trair minha própria alma e me
condenar ao jugo de Deus!
Deus, como pôde nos ter deixado, nós, jovens amantes, assim? Deus, nós que
nos casamos perante Vós e nos amamos como nunca haverão de amar, como
pôde nos abandonar assim? (pausa) Ou será que não era para sermos... ?
Será que nós, com nosso amor, desafiamos os céus? Ofendemos a vós,
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senhor? Respondei! E eu irei em paz. Porém, paz não há aos que se matam,
paz não há. E haverá paz para mim caso eu continue viva?
Julieta, és uma desgraçada. Tua fortuna te abandonou ao sepulcro. E agora
um Romeu cadáver, que apodrece e ainda quente, ainda assim, parece me
convidar às núpcias.
Não, Romeu! Afasta-te de mim! Que digo eu crendo ter ofendido a Deus? Se
há alguém que ofendeu aqui, foste tu, Romeu. Tu me abandonaste! Acaso não
sabias que eu acordaria? E acordada de verdade lhe traria paz e felizes
viveríamos, mesmo banidos de Verona?!
Ah, Verona, que teus grilhões são mais sórdidos que as lavas de Pompéia! E
tua gente é o próprio séquito de Satã! Não, já não temo teu povo hostil do qual
meu sangue descende. Quero me libertar! Quero me vingar e me vingar
daqueles que não permitiram nosso amor! Mas eles, pobres ..., eles nada
sabiam.
Nós fomos covardes, Romeu, nós fomos. Nem ao menos tentamos lhes dizer
do nosso amor. E atravessamos os nossos próprios pais subestimando sua
capacidade de compreender... o que é o amor. Nós fomos egoístas e nada
mais justo que pagarmos com a morte a desonra. Poderíamos ter ao menos
confiado que nossas famílias pelo nosso amor se unissem, mas não. Só mais
tarde, após verem o meu e o teu corpo untados no mausoléu, prometendo
estátuas um ao outro... para que perpetue o quê? A dor de nunca termos sido
um por mais de um dia? De termos sido apenas enquanto efêmeros?
Sim, meu Romeu, nosso amor não foi nada mais que um tempo efêmero e
tolos acreditamos ter sido eterno, tolos acreditamos que seria para sempre
quando para sempre serão apenas duas estátuas que, por mais grandiosas e
belas, ainda não se tocarão e, por mais juntas que estejam, ainda serão
apenas pedra e mármore.
Acaso, então, não seria melhor termos nascido pedra? Ah, meu Romeu, o frio
de ser pedra talvez nos salvasse da dor de nunca mais podermos colar nossas
bocas, beijar nossos corpos. Eu te odeio! Odeio todo Montechio e todo
Capuleto e todo aquele que chorar por nosso nome, que o que restará de nós
será apenas nome, e ainda, separados como se nunca estivéssemos juntos,
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nos chamarão Romeu (pequena pausa e ênfase) e Julieta. Não será este
punhal que aliviará minha dor, nem nada. Que nada ainda é algo que dói.
Por que o homem não pode viver sem amar e, sem amar, não sofrer? E sem
sofrer ser feliz eternamente?! Não seria mais fácil que para sermos felizes não
precisássemos amar?
Que o amor como o nosso, Romeu, é efêmero diante das estátuas. E é
efêmero diante destes que prosseguem! Diante destes que nascem e mal
sabem que um dia irão amar e mal sabem que um dia desejarão nunca ter
nascido e aí se darão conta de que não nasceram, morreram, de algum lugar
morreram. Pois se a morte é dor, então nascemos para estarmos mortos,
(confusa) ou para começarmos a morrer...
Deus quis que morrêssemos quando inventou o homem. Deus quis que algo
morresse de si, algo que Ele não gostava nele mesmo... era o homem. Algo
que talvez fosse o amor. E mesmo que eu não me mate agora já não estaria
morta mesmo parecendo viva? Meus pais ficariam felizes se me vissem viva.
Mas logo me puniriam por haver me casado contigo sem permissão! Logo me
baniriam porque já não poderiam me casar com outro fidalgo! Logo me
matariam, pois não aguentariam olhar para mim sem que me julgassem louca.
Logo, após o abraço de me ver viva, eu me transformaria na vergonha dos
Capuleto! E eu não amaria outro, pois meu coração é teu e nenhum outro me
amaria, porque mesmo viva já estaria morta. Que é pior que estar mesmo
morta! Pois viva a toda hora eu sentiria a morte, e morta de verdade eu só
sentiria sua dor uma única vez.
Meu Romeu, por que quiseste me conhecer? Perdoa, não era para ser assim.
Se fôssemos mais velhos talvez tivéssemos controlado nossos sentimentos,
talvez tivéssemos optado por amar secretamente. ( recusando a lógica) Mas
não! Assim nos encontraríamos na hora errada, mas toda hora é errada para
aqueles que se amam. Sim, pois mais velhos estaríamos provavelmente já
casados com outros, e sofreríamos por amar. Ou não nos encontraríamos
nunca e nunca saberíamos o que é isso deste amor efêmero que vale mais e é
mais feliz que a eternidade fria das estátuas. Ainda que um dia as estátuas
fossem destruídas, e ninguém mais soubesse... nem se importasse quantos
séculos se foram de dois mármores fincados. Que estes séculos, sendo
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passado, já seriam por si só mais efêmeros que o tempo que nós tivemos para
nos amarmos. Sim, meu Romeu, então valeria este efêmero e esta dor. Valeria,
pois deve ser justo, pelo menos a Deus, que paguemos com dor essa dádiva.
Caso não fosse assim, assim não seria. Mas do que valem esses verbos que
exaltam o futuro do que já passou? Do que é passado só me resta a lembrança
do teu corpo em mim, e tua pele, e tuas mãos e tuas palavras. Faz tão pouco
tempo e já estamos aqui. De repente é bom imaginar que passou muito, muito
tempo, e que estamos velhos. Já faz décadas que eu acordei neste túmulo e
você me esperava também acordado, faz muito tempo que nem me lembro
mais, e nós fugimos de Verona e vivemos felizes, tivemos nossos filhos,
construímos nosso mundo sobre a égide do amor! De repente eu gosto de
imaginar que não vivemos apenas uma noite, mas várias, milhares! E por
milhares de noites dormimos abraçados, beijamos nossas bocas e trocamos
confidências. Que o passado, por ser passado, eu posso mudá-lo e transformálo e impedi-lo de me deixar vazia, de me deixar com o gosto de quem não teve
o que poderia...
Eu tenho ainda tanto para te dizer. Eu tenho que te dizer que nunca amaria
outro, eu tenho para te confessar uma heresia: de que nem mesmo Deus eu
amei mais que a ti!
Teu corpo está ficando frio, assim como as estátuas, mas não demora muito
estarei ao teu lado. Não demora muito farei do meu corpo a bainha deste
punhal.
Oh, inquieto punhal, tem paciência que tua hora se aproxima. Serás feliz, mais
que eu e Romeu fomos. Terás a tua vontade satisfeita, meu pequeno punhal de
Romeu, que tu podes viver feliz incrustado na morta, esta que serei eu! E pelo
menos morrerei feliz, sabendo que tu, que foste de meu amado, ficaste feliz
com a minha morte.
(Como se o sentisse vivo) Romeu?
E um dia eu te perguntaria por que é tão difícil aceitar a dor. E tu me olharias
nos olhos como sempre e responderias com calma que não seria possível
haver dor ao meu lado e, portanto, nunca havias sentido dor que não pudesses
ter aceito. E me lembraria que ao teu lado eu nunca, em toda nossa vida, senti
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dor que fosse tão forte a ponto de não tê-la aceito, nem a dor dos partos nem a
dor do exílio. Que ter fugido de Verona contigo não seria exílio pior que ter
estado em Verona exilada de ti.
Mas por que não me apresso na morte? Ainda te quero ver assim belo, e levar
comigo esta última imagem, ou quem sabe ficar aqui até que apodreças, e
cadavérico, cada vez mais, e tão horrível que eu deixe de te amar. Ah, se o
amor fosse apenas esta beleza... (decidida) Eu esperaria os vermes e me
fixaria nas tuas tripas e nos ratos que hão de comê-las, e o amor fugiria de
mim. Pelo teu aspecto me daria conta de que não seria necessário me matar,
me daria conta de que não te amando no que é pútrido na verdade nunca te
amei e, portanto, teria esperanças de outro Romeu, outro que eu amasse
mesmo no que é monstruoso. Assim sairia invicta deste sepulcro e não diria a
ninguém que um dia me casei contigo. Diria, sim, que tu me perseguias e me
idolatravas de tal forma obsessiva que, sabendo de minha morte prematura,
resolveste também te matar... se bem que nessa parte eu não estaria
mentindo. (sorri) Sim, Romeu, eu ficarei ao teu lado até que apodreças! Pois
melhor seria descobrir que sempre estive enganada em relação a ti!!! E estaria
salva de sofrer esta dor. Que já sofro.
O destino deveria ser menos cruel, pois deu ao homem plena consciência de
que não é guiado por seus próprios atos, caso o seja é simplesmente porque o
destino deixou. Melhor seria se o destino não tivesse dado consciência ao
homem. Esse homem nunca teria inventado tal palavra que fosse destino,
assim nunca sofrendo pelo que o destino lhe impôs. Ah, meu Romeu, que
minhas palavras não sirvam de epígrafe ao teu sono, pois não valem nada, não
valem mais que esta dor. Que a tua ausência. Estando aqui frente a mim e
ausente! Como odeio ter que te amar agora e agora me findar sem nos ter
prolongado amor. Longas noites passaremos juntos feitos cinza e feitos pó,
ainda que do nosso pó floresça uma árvore, uma flor que seja, ou pelo menos
grama... uma pétala onde estejamos juntos, não como frente e verso, visto que
ainda seríamos, cada um, ou frente ou verso. Mas assim, como o pó se mistura
e não há como distinguir... não haverá distinção entre aquele pó que é meu e
aquele pó que é teu. Nisso o destino não pode mexer, nem Deus pode alterar o
pó que Ele mesmo criou. Ah, meu amor, e sendo pós grudaríamos na terra, e a
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terra vive mais que as estátuas, ou quem sabe num futuro longínquo alguém,
escavando essa terra e construindo com ela uma estátua, não se aperceba
nunca que nessa terra estaremos nós, pós, e numa única estátua estaríamos,
enfim, unidos por mais um futuro longínquo.
Admito que me matar agora é uma questão de tornar eterno o que nos foi
efêmero. Possa algum dia novos amantes, lembrando-se de nós, não sofrerem
tanto quanto eu e tu. Mas o que digo? Quando digo eu e tu não estou
novamente nos separando? Para que dizer eu e tu quando posso dizer nós?!
Até as palavras nos traem e traem este amor de forma tão ofensiva. Por elas,
mesmo eu cometo heresias! Falo bobagens, falo contigo que não estás quente.
Ou falo apenas comigo para me lembrar que me amo e que devo me amar
antes de amar a ti? Mas... há algo que no amor ainda é mais cruel que seu
tempo efêmero, algo que nele eu só me amo se te amo mais do que eu
mesma. Tanto amo que compreendo tua dor ao me ter visto aqui, plácida,
morta, e compreendo que te mataste por mim e te peço perdão por eu ter
existido, que se não fosse eu, tu não serias banido de ti mesmo. (pausa) E não
terias caído no cruel e sádico e desgraçado jogo do amor.
Ah, só os que nunca amaram ousam cantar o amor com alegria (pausa) ou,
tendo amado, tiveram tanta sorte que o amor foi pouco, e não lhes arrebatou o
indivíduo.
E os meus próprios desejos? Antes de ti eu já nem sei o que eu desejava. Mas
com certeza, depois de ti, não era assim que te desejava: frio, duro e
envenenado.
Pobres veias de meu Romeu que tanto sofreram com esse veneno. Veias que,
mais fortes do que eu, mais coragem tiveram. E mais cúmplices e mais
entregues que não pararam a divagar como eu parei. Como paro agora. Invejovos veias, que vossos canais sentistes mais o sangue de Romeu do que eu já
senti, e... aqui estavam, com ele, em sua dor.
Eu, ainda no meu sono, sonhava que beijava os lábios mortos de Romeu e o
ressuscitava fazendo-o imperador! Só uma alma desgraçada pode ser mais
feliz em sonhos que na vida! Será que sonhas agora? Sonharás comigo?
Tiveste mais sorte. Quem sabe a morte não seja isto? Este alívio aos
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desgraçados, este eterno sonho, onde eternamente estarei a te beijar e a te
tornar vivo, e retornando a te beijar e te tornando mais uma vez vivo! E
novamente e novamente e novamente! Oh, tudo o que mais quero é acreditar
nessa morte, nesse sonho eterno. Que as almas boas certamente vão para o
paraíso e as perversas descerão ao inferno, às almas que amam restará o
eterno mundo dos sonhos. Sim, é para lá que nós iremos e lá poderemos gritar
às alturas tudo o quanto aqui não pudemos gritar! Deus reserva aos que amam
o sono profundo e, mesmo quando os vermes se aproximarem e mesmo
quando os ratos comerem nossas tripas e nosso pó se misturar à terra,
estaremos dormindo! E quando o homem fizer dessa terra uma única estátua
do nosso pó, heis que esta já não será mais estátua pois nela acordaremos
para o resto, e o resto... e o resto de nossas vidas!
Se eu tivesse aceito de imediato a proposta de meu pai e me casado com o
fidalgo Páris, não seria assim, e nossa estátua nunca teria vida. Não. A essas
horas já me haveria casado e ele me haveria possuído e gozado em minhas
coxas como se eu fosse sua cortesã predileta, e deitado sobre meu corpo
como uma mulher que já não sabia amar. A essas horas eu o estaria
esperando para jantar ou para limpar seus pés sujos de barro. E eu estaria
amargurada nessa rotina até que eu tivesse um filho e outro e outro. Eu odiaria
a todos porque não seriam teus. Além disso, seriam de uma promíscua que
seria eu.
Sei que afundo nosso amor só de falar, só de imaginar tais cenas. Mas também
é para te provar o quanto me enojo deste mundo de aqui fora, do qual tu já não
participas. Eu quero deste mundo mesmo guardar este nojo para que tu, no
mundo dos sonhos, possas me banhar.
Sabes, no futuro os homens e as mulheres não amarão como nós; é também
por isso que Deus nos guardará no sono profundo. Eu sei que é. E também por
isso, no futuro, e por inveja, eles se lembrarão de nós como Romeu e Julieta,
em vez de simplesmente “Eles”.
(ri) O bom de dormimos para sempre é que nunca mais perderemos o sono. O
bom de eu te amar para sempre é que nunca mais me perderei de mim, pois
estando contigo eu sempre sei onde me encontrar.
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Talvez, em vez de irmos para o mundo dos sonhos, viremos anjos; mas num
futuro distante, daqui e de nós, aqueles que se matarem por amor serão
considerados fracos e precipitados. Realmente, no vacilo do incerto só os
fracos e, principalmente, os inconsequentes irão se matar. Esses não se
tornarão anjos; esses, eu nem sei onde ficarão.
Num futuro, bem distante de nós, aqueles que acreditarem num amor como o
nosso serão mais fracos e mais, muito mais inconsequentes. Serão mais
punidos, pois não haverá veneno fácil de se achar, nem punhal que, fácil, ceda
à dor. Tampouco estarão sozinhos, como nós estamos agora. O homem vigiará
o homem mais que Deus o vigia. Eu tenho medo, Romeu. Medo que no futuro
não sejamos nem mesmo estátuas (pausa) nem mesmo duas... Achas que
sempre fora assim? Eu não sei... nós humanos cometemos o erro de falar
demais.
Silêncio. Julieta se deita sobre Romeu apertando o punhal. Em seguida solta o
punhal. Abraça Romeu, suave. E assim, as luzes se apagam.
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