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Bloqueio sub-aracnoideu para anestesia
de doente com distrofia miotónica
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- Caso Clínico Santos C.*, Sampaio C.**, Tavares J.***
* Interna Complementar, Serviço de Anestesiologia, Hospital de São João EPE, Porto
** Assistente Hospitalar, Serviço de Anestesiologia, Hospital de São João EPE, Porto
*** Chefe de Serviço de Anestesiologia, Hospital de São João EPE, Professor Catedrático de Anestesiologia, FMUP
Resumo
A distrofia miotónica ou Doença de Steinert, embora rara, é a forma mais comum de distrofia muscular no adulto com
uma prevalência de 3-5 em 100.0001. O envolvimento muscular esquelético, o atingimento multissistémico e uma sensibilidade
aumentada aos fármacos anestésicos reflectem-se em elevada incidência intra e pós-operatória de complicações
cardiovasculares e respiratórias, com prolongamento do recobro.
Descrevemos o caso de uma doente de 52 anos com distrofia miotónica e insuficiência respiratória compensada com
suporte ventilatório não invasivo (BIPAP), proposta para cirurgia ortopédica urgente do membro inferior (osteossíntese
de fractura bimaleolar). Optou-se por um bloqueio subaracnoideu, a nível L3-L4 com 8 mg de bupivacaina hiperbárica a
0,5%. Não se verificaram quaisquer complicações per ou pós-operatórias e a doente teve alta hospitalar ao 5º dia pósoperatório.
A abordagem anestésica em doentes com distrofia miotónica obriga a fármacos que não precipitem crises. A anestesia
regional evita o uso de opióides e é uma alternativa segura à anestesia geral, que permite um recobro rápido sem necessidade
de suporte ventilatório no pós-operatório.
Palavras-chave: Distrofia miotónica; Anestesia Regional; Complicações.
Abstract
Spinal anesthesia in a patient with myotonic dystrophy
Myotonic dystrophy or Steinert disease, the most common adult form of muscular dystrophy, is a rare genetic disorder (prevalence:
3-5 per 100.000). General muscle involvement and multi-system features are a challenge to anaesthesiologists.
An increased cardiovascular and respiratory sensitivity to general anesthetic drugs is observed and may result in intraoperative and
early postoperative complications, as well as in a delayed recovery.
A 52 years old female, with myotonic dystrophy and respiratory insufficiency with non invasive ventilatory support (BIPAP), was
submitted to an emergent left lower limb surgery. Spinal anesthesia was performed at L3-L4 with 8 mg of hyperbaric bupivacaine
0.5%.
No complications were observed in per or postoperative periods. Discharge occurred at the 5th post-operative day.
In the anaesthetic management of myotonic dystrophy patients, reliable pharmacological agents that do not precipitate crisis must
be used.
Regional anaesthesia with bupivacaine but no opioids is a safe alternative to general anesthesia, allowing a rapid recovery without
postoperative ventilatory support.
Keywords: Myotonic dystrophy; Regional anesthesia; Complications.
CORRESPONDÊNCIA:
Carla Santos
Serviço de Anestesiologia, Hospital de São João EPE, 4202-451 Porto
Tlf (HSJ). 225 512 380 • [email protected]
Revista SPA ‘ vol. 16 ‘ nº 2 ‘ Abril 2007
A distrofia miotónica ou doença de Steinert é a
forma mais comum de distrofia muscular no adulto.
Manifesta-se na segunda ou terceira décadas de vida
com um espectro clínico de apresentação muito
variável, desde formas altamente debilitantes até
ausência de sintomas.
Caracteriza-se por lentificação no relaxamento
(miotonia), que condiciona rigidez muscular e fraqueza
dos músculos da face, pescoço, faringe e membros. O
atingimento da musculatura da faringe contribui para
o aparecimento de apneia de sono e dismotilidade
esofágica o que facilita a aspiração pulmonar2,3,5.
A anestesia de doentes com distrofia miotónica
levanta um conjunto de problemas que resulta do
envolvimento muscular e do atingimento
multissistémico com aumento da sensibilidade
cardiovascular e respiratória aos anestésicos3. Podem
surgir complicações intra e pós-operatórias, bem como
prolongamento do recobro. A necessidade de Cuidados
Intensivos e apoio ventilatório pós-operatório é
frequente1,2.
Caso Clínico
Uma doente do sexo feminino, 52 anos, raça
caucasiana, ASA III, 100kg de peso, com distrofia
miotónica diagnosticada há 6 anos foi proposta para
osteossíntese urgente de fractura bimaléolar do
membro inferior direito.
Os antecedentes revelavam diminuição progressiva
da força muscular dos membros superiores e inferiores,
disfagia e insuficiência respiratória, actualmente com
necessidade de ventilação não invasiva nocturna (BIPAP
nasal) e oxigenoterapia domiciliárias. A figura 1 indica
os músculos com maior atingimento na doente e a
figura 2 os resultados da electromiografia (EMG). Ao
exame objectivo apresentava taquipneia com
auscultação cardiopulmonar normal. O RX do tórax,
o ECG e o Ecocardiografia não apresentavam
alterações.
As provas funcionais respiratórias revelavam síndrome
ventilatório restritivo grave (FVC 0,81L) com diminuição
marcada das pressões respiratórias máximas (Pimáx
21 cmH2O). A gasometria arterial revelava hipercapnia
(PaCO2 = 63mmHg) com PaO2 = 52,1mmHg.
TA:135/75 mmHg; FC: 80 bpm.
Proposta para cirurgia sob bloqueio sub-aracnoideu,
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Figura 1 - Músculos mais frequentemente envolvidos na doença.
Músculos atingidos na doente.
Figura 2 - EMG da doente: descargas miotónicas distais, especialmente
nos membros superiores.
a doente não recebeu nenhuma medicação préanestésica e foi sujeita a preenchimento vascular prévio
com 500 ml de Lactato de Ringer.
O bloqueio subaracnoideu foi executado com a
doente em decúbito lateral direito, a nível L3-L4 com
agulha Quincke 25G por via paramediana com 7.5 mg
de bupivacaina hiperbárica 0,5% (1.5 ml). Foi atingido
um nível de bloqueio sensitivo até T11. Durante a
cirurgia recebeu oxigénio por máscara facial a 40% e
aquecimento externo. Permaneceu hemodinamicamente estável (exceptuando um breve período de
5 minutos de hipotensão de 75/50 mmHg após a
administração do anestésico local, resolvida com 10mg
de efedrina IV. Durante todo o período intra operatório
a frequencia cardiaca manteve-se entre os 70 e 80
bpm, com ritmo sinusal e manteve saturações periféricas
de oxigénio ≥ 92%.
Não se verificaram quaisquer intercorrências no
recobro, com recuperação completa do bloqueio
motor e sensitivo três horas após a cirurgia. O pósoperatório decorreu sem complicações no Serviço
de Traumatologia.Teve alta hospitalar ao 5º dia pósoperatório.
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Discussão
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A distrofia miotónica levanta um conjunto de
problemas ao anestesiologista que resultam do
envolvimento muscular e do atingimento multissistémico
da doença, com grande variedade de manifestações
clínicas, as mais importantes das quais são as
cardiovasculares e respiratórias. O envolvimento
multissistémico implica uma cuidadosa caracterização
pré-anestésica da fraqueza muscular e da patologia
cardiovascular e respiratória.
Os doentes com distrofia miotónica exibem aumento da sensibilidade a sedativos e anestésicos. O
frio, o shivering, os relaxantes musculares e os
anticolinesterásicos, bem como a electrocauterização
e a estimulação cirúrgica, podem desencadear crises
de miotonia generalizada. Dada a elevada prevalência
de complicações no pós-operatório (entre 8.4% e 52%
dos casos)2,3 sendo a maioria delas pulmonares2, a
anestesia geral deve ser evitada, sobretudo em doentes
com comprometimento importante da função
respiratória, como é o caso apresentado. Devem ser
consideradas, alternativas a anestesia geral como a
anestesia regional ou espinal5,6.
Não foram encontrados, na literatura, relatos acerca
de complicações da anestesia regional, evitando os
opióides, nestes doentes.
As complicações da anestesia geral, incluindo
insuficiência respiratória, pneumonia de aspiração,
arritmias cardíacas e insuficiência cardíaca, estão bem
documentadas em doente com distrofia miotónica,
sendo a pneumonia de aspiração a mais relevante1,2,3,6.
Conclusão
Nos doentes com distrofia miotónica, a anestesia
regional, nomeadamente o bloqueio sub-aracnoideu,
revela-se uma alternativa à anestesia geral que permite
um recobro rápido com menor probabilidade de
necessidade de suporte ventilatório pós-operatório.
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