Os Tribunais Superiores e a aplicação do princípio da

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Os Tribunais Superiores e a aplicação do princípio da
Os Tribunais Superiores e a aplicação do princípio da insignificância: análise de
caso concreto
Patrícia Guimarães Schmitt
Advogada, Pós-graduanda em Direito Penal e Processo Penal na Universidade Ritter
dos Reis de Porto Alegre/RS.
Este artigo tem como objetivo trazer a tona uma reflexão sobre a aplicação do princípio
da insignificância e a sua importância para o Sistema Penal, através da análise de uma
decisão do Superior Tribunal de Justiça e outra do Supremo Tribunal Federal, as quais
divergem, e referem-se ao mesmo caso concreto.
Os Tribunais Superiores demonstraram posições divergentes no que tange a aplicação
do princípio da insignificância no crime de furto de pequeno valor praticado por um
policial(1).
O paciente foi denunciado pelo crime previsto no art.240, caput c/c art.9º, inc.I, do
Código Penal Militar, tendo em vista que, conforme a denúncia, “no interior do
estabelecimento comercial (...) o denunciado, estando fardado e em seu horário de
trabalho, subtraiu, para si, uma caixa de bombons tipo ‘Bis’”. A denúncia foi recebida
com o prosseguimento da ação penal.
A defesa impetrou habeas corpus no Tribunal de Justiça Militar Estadual, sendo a
ordem denegada. Sendo, então, impetrado novo habeas corpus perante o STJ. A defesa
alega que o paciente está sendo processado criminalmente pelo suposto furto de quatro
unidades de chocolate ‘Bis’, totalizando o valor de R$0,40, devendo ser a ação penal
trancada por ausência de justa causa, aplicando-se o princípio da insignificância.
A defesa alega, ainda, que o princípio da insignificância pode ser aplicado no Direito
Penal, visto que o próprio artigo 240, §1º, do Código Penal Militar prevê a possibilidade
de o furto de pequeno valor ser considerado apenas como infração disciplinar.
No julgamento do habeas corpus pelo STJ, explicou-se que para que o princípio da
insignificância seja reconhecido é necessária a observância dos seguintes requisitos: a) a
mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação;
c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e d) a inexpressividade
da lesão jurídica provocada.
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Para os julgadores mesmo que a quantia seja inexpressiva, verifica-se o alto grau de
reprovabilidade da conduta do paciente, visto que é policial militar, estava fardado e em
seu horário de trabalho, devendo de representar para sociedade confiança e segurança, o
que não é o caso.
Quanto à aplicação do princípio da insignificância no art. 240 do Código Penal Militar,
os ministros não se opõem. Ocorre que, no entendimento deles, o artigo permite que o
juiz da causa substitua a pena, a diminua ou considere a infração como disciplinar no
caso do agente ser primário e a coisa furtada for de pequeno valor, não permitindo o
trancamento da ação penal. Desta forma, por unanimidade, fora delegada a ordem.
A defesa, então, impetrou habeas corpus no STF, com os mesmos fundamentos.
No julgamento do HC ocorreram divergências entre os Ministros. O Ministro Joaquim
Barbosa e Ricardo Lewandowski entenderam que a conduta do agente foi extremamente
reprovável, não se aplicando, assim, o princípio da insignificância no caso em tela.
De outro lado, o Ministro Gilmar Mendes e o Ministro Ayres Britto entenderam que a
idéia de insignificância é a própria concretização da idéia de proporcionalidade. O dolo
do agente não era de atingir o patrimônio de alguém, não se tendo, assim, a incidência
da tipicidade material, que é a lesividade efetiva e concreta do bem jurídico tutelado.
Desta forma, a insignificância da infração penal, que tem o condão de descaracterizar
materialmente o tipo, impõe o trancamento da ação penal por ausência de justa causa.
Por haver empate, conforme art. 150, §3º, RISTF, a ordem fora concedida a fim de
trancar a ação penal por ausência de justa causa.
Há uma grande diversificação da aplicação do princípio da insignificância nos tribunais
(2). Os julgados referidos são um grande exemplo de como ainda há certas dúvidas
quanto a sua aplicação. Esse fato acaba trazendo grande insegurança jurídica.
O bem jurídico tutelado no caso dos julgados referidos são chocolates que juntos
totalizam o valor de R$0,40 (quarenta centavos de Real). O policial militar estava sendo
processado criminalmente por furtar de um patrimônio o equivalente a R$0,40. A lesão
causada ao bem jurídico não justifica a imposição de uma pena, nem mesmo da
continuidade de um processo criminal que certamente custará aos cofres públicos muito
mais de dez vezes o valor furtado (3), Weinmann explica que não se pode, por uma
questão de política criminal, ocupar o Estado e o Judiciário com questões irrelevantes,
correndo o risco de significar graves prejuízos ao erário público. Tais estruturas são
complexas e de grandes custos, quando acionadas (WEINMANN, 2004, p.143).
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O Direito Penal é o último ramo do direito o qual se busca uma solução, configurandose, assim, a sua subsidiariedade. O Direito Penal tem como objetivo principal a proteção
dos valores éticos de uma sociedade e como conseqüência surge a função preventiva. A
formalização do Direito Penal limita a intervenção jurídico-penal do Estado nos
conflitos individuais (BITENCOURT, 2008, p.8/9). O Estado não poderá invadir a
esfera dos direitos individuais, ainda que se haja a pratica de um crime. Ao contrário, a
atuar punitivo do Estado deve ser uma realidade concreta, respeitando os princípios da
intervenção mínima, da proporcionalidade, da ressocialização, da culpabilidade, entre
outros.
O princípio da insignificância surgiu para determinar se o ato criminoso,
verdadeiramente, possui valor para justificar o prosseguimento de uma ação penal
podendo culminar em uma sanção. A sua aplicação é uma forma de limitar o poder
repressivo estatal, visto que, o bem jurídico tutelado não afetaria o patrimônio.
Certamente a aplicação do princípio da insignificância não é permitida em todos os
tipos penais, como, por exemplo, o homicídio. Porém, existem infrações penais que a
sua aplicação afastará a injustiça do caso concreto, pois a condenação do agente,
simplesmente pela adequação formal de seu comportamento a determinado tipo penal,
importará em gritante aberração. (GRECO. 2010, p.63).
Desta forma este princípio auxilia na redução ao máximo do vasto campo de atuação do
direito penal, confirmando, assim e como já mencionado, o sei caráter subsidiário,
constituindo, assim, um instrumento de interpretação restritiva, fundado na concepção
material do tipo penal, por intermédio do qual é possível alcançar, pela via judicial e
sem macular a segurança jurídica do pensamento sistemático, a proposição políticocriminal da necessidade de descriminalização de condutas que, embora, formalmente
típicas, não atingem de forma relevante os bens jurídicos protegidos pelo direito penal.
(Manãs, 2003, p.150)
A tipicidade penal para ser totalmente configurada necessita que haja alguma gravidade
aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou
interesses é suficiente para configurar o injusto penal típico. É preciso, portanto, que se
tenha uma proporcionalidade entre a gravidade da conduta do agente que se pretende
punir e com a intervenção estatal.
No caso em questão, em que um policial militar supostamente teria furtado quatro
chocolates da marca ‘bis’, totalizando o valor de R$0,40, a aplicação do princípio da
insignificância enquadra-se perfeitamente. A conduta do agente poderá se enquadrar
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formalmente no tipo previsto no art. 155 do Código Penal. Ocorre que pelo fato de o
valor da res furtiva é tão ínfimo que não apresenta relevância material alguma, pois não
fere o bem jurídico protegido por este tipo, qual seja o patrimônio. Não sendo o bem
jurídico lesado a tipicidade penal deverá ser afastada.
Neste sentido ensina Zaffaroni que há relativamente pouco tempo, observou-se que as
afetações de bens jurídicos exigidas pela tipicidade penal requeriam sempre alguma
entidade, isto é, alguma gravidade, posto que nem toda a afetação mínima do bem
jurídico era capaz de configurar a afetação requerida pela tipicidade penal. (...) A
insignificância da afetação exclui a tipicidade, mas só pode ser estabelecida através da
consideração conglobada da norma: toda a ordem normativa persegue uma finalidade,
tem um sentido, que é a garantia jurídica para possibilitar uma coexistência que evite a
guerra civil (a guerra de um contra todos). A insignificância só pode surgir à luz da
finalidade geral que dá sentido à ordem normativa, e, portanto, à norma em particular,
e que nos indica que essas hipóteses estão excluídas de seu âmbito de proibição, o que
não pode ser estabelecido à simples luz de sua consideração isolada. (ZAFFARONI,
2004, p.534)
Para que o princípio da insignificância seja aplicado é necessário que o fato se enquadre
em alguns requisitos:
a) Desvalor da Conduta: conduta minimamente ofensiva, sem violência (ausência de
periculosidade) e reduzido grau de reprovabilidade do comportamento do agente;
b) Desvalor do resultado: lesão jurídica inexpressiva.
Segundo a decisão do STJ e de dois ministros do STF o fato em questão enquadrar-se-ia
em todos os requisitos exceto o de reprovabilidade da conduta pelo fato de ser o agente
policial militar, devendo, assim, ser exemplo ético e garantir a segurança dos cidadãos.
Algumas indagações surgem de tal posicionamento. É realmente necessário prosseguir
uma ação penal por quatro chocolates? A aplicação de uma sanção penal atingiria o seu
objetivo maior? Há proporção entre a conduta do agente e a intervenção estatal?
Ás perguntas feitas não podemos chegar a outra resposta a não ser um “não”.
Tem-se tido cada vez mais notícia e até mesmo é fácil perceber no dia-a-dia dos
operadores do direito que o todo o Judiciário, principalmente a esfera criminal, está
abarrotado de processos com casos muitas vezes passiveis de serem resolvidos por
outras esferas do direito ou até mesmo extrajudicialmente.
Ocorre que a formação de processos se tornou banalizada, o que faz com que os casos
realmente significantes, que somente podem ser resolvidos na e pela esfera penal,
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demorem cada vez mais para serem solucionados ou até mesmo são esquecidos. Muitos
casos de homicídio, por exemplo, chegam ao Judiciário e acabam prescrevendo, outros
acabam por ficar nas delegacias de polícia.
Ainda, assim, nas decisões judiciais de caso em que se enquadraria o princípio da
insignificância, este tem sido pouco utilizado. Conforme pesquisa realizada pela
Faculdade de Direito da USP e coordenada pelos professores Pierpaolo Bottini e Mariz
Tereza Sadek (4) os dados são alarmantes:
Nota-se através dos percentuais que menos de 50% dos casos têm o reconhecimento da
aplicação do princípio da insignificância.
O delito de furto caracteriza-se pelo dolo do agente em ferir o patrimônio de outrem. O
caso em tela, suposto furto praticado por um policial militar, tendo como res furtiva
quatro chocolates da marca ‘bis’, não demonstra o dolo do agente de ferir o patrimônio
do dono do supermercado. E por mais que a conduta esperada pela sociedade não fosse
a de um pequeno furto, não é possível movimentar todo uma estrutura para sancionar o
agente, podendo resolver a situação na esfera administrativa, interna da sua entidade.
Assim como o Ministro Gilmar Mendes aduziu em seu voto a ideia de insignificância
anda ao lado da idéia de proporcionalidade e nas palavras do Ministro no caso em tela
“aqui ela se materializou de forma mais radical”. No caso concreto a intenção de
cometer o crime, de atingir o patrimônio de alguém, o dolo de cometer o delito, não se
observa.
Ainda o ministro aduz que resta patente a existência da tipicidade formal, ou seja, a
conduta se adéqua ao modelo abstrato previsto na lei penal. No entanto, no fato
5
mencionado, a tipicidade material, ou seja, a lesividade efetiva e concreta ao bem
jurídico tutelado, sendo atípica a conduta imputada do agente.
Diante do apresentado, constata-se que a decisão dos Ministros do STF em trancar a
ação penal movida contra o policial militar foi a resolução mais sensata para o caso em
tela. O valor da res furtiva e a ausência de dolo, o qual, segundo eles, fora demonstrado
na própria narração do delito na denúncia, possibilitam que o princípio da
insignificância seja aplicado afastando, assim, a tipicidade da conduta do agente e
mantendo a subsidiariedade do Direito Penal.
(1)
HC
nº192.242/MG,
Relator:
Ministro
Gilson
Dipp,
Quinta
Turma.
Julgamento:04/04/2011; HC nº108.373/MG, Relator: Ministro Joaquim Barbosa;
Redator do Acórdão: Ministro Gilmar Mendes. Julgamento: 06/12/2011.
(2) Como exemplo: Resp nº1.155.927/RS-STJ e HC 103312 – STF.
(3) Em notícia publicada em 31.05.2010 no site do STJ, informou-se que o Judiciário
gasta R$ 2,6 mil para julgar tentativa de furto de R$ 5,89. Conforme a notícia há
inúmeros casos em que se aplica o princípio da insignificância, pois os bens possuem
valores ínfimos se comparados ao custo médio registrado para cada processo julgado no
STJ no ano de 2009: R$ 2.674,24. No Supremo Tribunal Federal (STF), a mais alta
corte do país, o custo médio do processo em 2009 foi de R$ 3.775,06.
(4) “O Princípio da Insignificância nos crimes contra o patrimônio e contra a ordem
econômica: análise das decisões do Supremo Tribunal Federal”, tal pesquisa poderá ser
encontrada
no
endereço:
http://www.premioinnovare.com.br/ultimas/principio-da-
insignificancia-nos-crimes-contra-o-patrimonio-e-ordem-publica/ (último acesso em 07
de fevereiro de 2013).
BIBLIOGRAFIA
WEINMANN, Amadeu de Almeida. Princípios de Direito Penal. Rio de Janeiro:
Editora Universidade Estácio de Sá, 2004, p. 143.
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro – Volume 1. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2005, p. 154.
6
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, volume 1. São
Paulo: Editora Saraiva, 2007, p.8/9.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2010, p. 63.
Manãs, Carlos Vico. Princípio da insignificância: excludente da tipicidade ou da
ilicitude? – Escritos em homenagem a Alberto da Silva Franco. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2003, p.150.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal
Brasileiro: parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p.534
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