AMERICAN RESEARCH THOUGHTS – Vol.1, issue 1, 2014

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AMERICAN RESEARCH THOUGHTS – Vol.1, issue 1, 2014
Volume 1 │ Issue 4 │ February 2015
AMERICAN RESEARCH THOUGHTS
ISSN: 2392 – 876X
Impact Factor: 2.0178 (UIF)
Available online at: www.researchthoughts.us
RASKÓLNIKOV DE DOSTOIÉVSKI: UMA
TRAVESSIA DE REDENÇÃO EM “CRIME E
CASTIGO”i
Maria Do Céu Vaz
Master Degree Student in Literary Studies (MEL) at Federal University of Rondônia –
1
UNIR (Brazil)
Abstract: The intent of this article is to describe, in general lines, the existential crisis of the character
Raskolnikov, in Crime and Punishment, wrote by the russian author Fiodor Dostoiévski (1821-1881),
and his redemption path due to his iniquity. Considering himself as a rational and superior being, the
character is incapable to understand and rationally control the guilt feelings that oppress him and
shown his intern contradictions. The extra textual relations that can be perceived analyzing the
narrative structure are also included and make the correspondence with the author’s social context
possible. Using this perspective, the main hypothesis is that the historic-social context at the time may
have been important to construct this character, collaborating with the understanding of its
complexity. The referential used during this reflection will be narrative itself and analyses wrote by
authors like Joseph Franck and Mikhail Bakthin.
Key Words: Literature. Immanent Analysis. Dostoiévski. Conflict. Existence
Resumo: O objetivo deste artigo é descrever, ainda que em linhas gerais, a crise existencial da
personagem Raskólnikov, da obra Crime e Castigo, do escritor russo Fiodor Dostoiévski, e o caminho
de sua redenção pelo latrocínio que pratica. Considerando-se um ser racional e superior, a personagem
mostra-se incapaz de entender e controlar racionalmente os sentimentos de culpa que o oprimem, pelos
quais passa a viver assombrado e que evidenciam suas contradições internas. As relações extratextuais
que podem ser percebidas na estrutura da narrativa, também fazem parte de nosso interesse e
possibilitam o dialogo com o contexto social da época do escritor. Nesta perspectiva, a hipótese
norteadora do trabalho é que o contexto histórico-social da época pode ter influenciado a construção
dessa personagem contribuindo para o entendimento de sua complexidade. O referencial para esta
i
DOSTOEVSKY’S RASKOLNIKOV: A CROSSING OF REDEMPTION IN "CRIME AND PUNISHMENT”.
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reflexão será a própria narrativa, enriquecida com a análise de estudiosos da obra do escritor como
Joseph Franck e Mikhail Bakhtin.
Palavras-Chave: Literatura. Análise Imanente. Dostoiévski. Conflito. Existência.
“I wanted to find out something else; it was something else led me on. I wanted to find out then and quickly whether
I was a louse like everybody else or a man.” ii
Dostoiévski, Part V, 4:135
Crime and Punishment.
INTRODUÇÃO
Desde Tales de Mileto, filósofo da Grécia Antiga que nasceu em 624 ou 625 a.C.,
considerado o marco da filosofia ocidental, vemos manifestações que expressam a
intenção do homem entender a si mesmo e ao mundo que o cerca. Questões como
“Quem somos?”, “De onde viemos?”, “Para onde vamos?” ecoam das ciências naturais,
da filosofia, da literatura, da psicologia, dentre outras áreas do conhecimento. A busca
pelas respostas e a partir delas conseguir um sentido para a existência é algo que ainda
marca o homem moderno apesar do relato bíblico do Gênesis, da teoria da evolução
pela seleção natural de Charles Darwin e da psicanálise de Sigmund Freud.
Fiodor Dostoiévski, um dos mais reconhecidos autores russos do século XIX,
descreve essa crise existencial de forma magistral através de suas personagens tensas,
paradoxais e doentias. Na obra “Crime e Castigo” apresenta-nos Raskólnikov, uma
personagem atormentada por esse conflito e que na tentativa de entender a si mesmo
dialoga com outras consciências, inclusive a sua própria, dando ao romance uma
característica inovadora para sua época que Bakhtin classificou como polifoniaiii.
Este trabalho é uma tentativa de captar e entender a partir da obra dostoiéskiana,
o conflito existencial no qual vivia a personagem Raskólnikov e os caminhos que vai
ii
“Naquela ocasião o que eu queria saber – e o quanto antes é se eu era um piolho como os outros, ou um
homem.(Crime e Castigo)”.
iii
Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895-1975): linguista russo. Seu trabalho é considerado influente na
área de teoria literária, crítica literária, análise do discurso e semiótica.. Alguns conceitos fundamentais de
Bakhtin são o dialogismo, a polifonia, a heteroglossia e o carnavalesco. Entre suas obras, destacamos
Problemas da poética de Dostoiévski. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1997 , onde apresenta a
teoria do romance polifônico.
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trilhando na busca de encontrar uma resposta para a pergunta “Quem sou?”, de forma
a provar, sobretudo para si mesmo, que é mais que um insignificante “piolho”.
Consideramos que seja importante, num primeiro momento, apresentarmos um
pouco do contexto histórico que cercava o autor, pois cremos que essa contextualização
é importante para o entendimento da obra e da personagem, não como fator
determinante ou responsável pela condução da trama, mas como referência necessária
para uma melhor compreensão. No segundo, deter-nos-emos no estudo ainda que
superficial, de Raskólnikov, sendo essa uma forma de interpretação possível da
complexidade e riqueza psicológica da personagem.
O AUTOR E SUA ÉPOCA
O escritor russo, Fiódor Mikhailovich Dostoiévski, por sua genialidade literária
mereceu do professor e pesquisador, Joseph Frankiv a dedicação de três décadas de
estudos. A extensa pesquisa não se limita apenas a uma biografia, mostra também o
contexto histórico da Rússia dostoieviskiana e sua influência na produção literária do
autor. Confirmando a importância dessa relação o estudioso afirma:
[...] O gênio de Dostoiévski permitiu que ele transformasse essas mortíferas querelas
russas em grande literatura de importância universal; mas para que possamos entender
seus livros corretamente, devemos voltar a estudar o contexto sociocultural de onde eles
vieram e tentar compreender o processo de transformação responsável por seu
nascimento (FRANK,1992, p.106).
A Rússia dos czares do século XIX constituía-se de uma população bastante numerosa,
na sua maioria agrária sobre a qual predominavam as relações de trabalho servil.
Viviam em condições miseráveis, agravadas pelas doenças, subnutrição, fome e
analfabetismo.
iv
Joseph Frank (1919-2013): crítico e professor emérito de Literatura Comparada da Universidade de
Princeton e professor de Literatura Eslava da Universidade de Stanford. Seus estudos sobre Dostoiévski
totalizam cinco volumes, que somados chegam ao número aproximado de cinco mil páginas:
"Dostoiévski - As Sementes da Revolta (1821-1849)"; "Dostoiévski - Os Anos de Provação (1850-1859)";
"Dostoiévski - Os Efeitos da Libertação (1860-1865)"; "Dostoiévski - Os Anos Milagrosos (1865-1871)";
"Pelo Prisma Russo - Ensaios sobre Literatura e Cultura" e "Dostoiévski - O Manto do Profeta (1871-1881)”
todos publicados pela Edusp. Disponível em WWW.folha.uol.com.br.fsp/mais/fs1301200809.htm. Acesso
em 10 de mar. de 2013 às 09h12min.
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Por questões políticas o Czar Alexandre II (1855-1881), libertou os servos das mãos dos
senhores da terra, mas essa medida, ao contrário do que se esperava, não trouxe grande
desenvolvimento.
Se a situação do camponês era ruim, a do trabalhador urbano não era melhor.
Com uma jornada diária de trabalho entre 12 e 15 horas e condições de vida muito
precárias, as cidades tornaram-se o palco de constantes movimentos reivindicatórios.
Greves e motins eram frequentes, apesar da violenta repressão a qualquer movimento
popular. Imperava a ausência de liberdade individual, a censura à imprensa e o direito
de reunião, sob pena de prisão e de exílio para aqueles que não se submetessem à
vontade do czar.
George Steiner (2006), não só retrata e confirma esse contexto como o amplia,
ressaltando também os embates ideológicos:
As realidades que se ofereciam aos escritores russos do século XIX eram, de fato,
fantásticas; um despotismo aterrorizador; [...] os debates raivosos entre os eslasófilos
ocidentalistas, entre populistas e utilitários, reacionários e niilistas, ateus e crentes; e
pesando sobre todos os espíritos, como uma das tempestades iminentes de verão tão
belamente evocadas por Turguêniev, a premonição da catástrofe. (STEINER, 2006, p.3031apud SOUZA, 2009, p.21).
Diante dessa realidade tão repressora foi através da arte que a Rússia encontrou sua voz
de protesto e de luta, de forma especial na literatura, que passa de certa maneira, a
exercer uma função social importante. Leia-mos o que diz a respeito o crítico, Joseph
Frank:
[...] a literatura serviu, mais ou menos, como uma válvula de escape através da qual
assuntos proibidos podiam ser apresentados ou, pelo menos, sugeridos. Daí a notória
densidade ideológica da melhor literatura russa – um traço que ainda continua a
distinguir seus escritores – novelistas ou poetas – de seus colegas ocidentais mais livres,
que às vezes invejam a intensidade da reação russa à literatura sem compreender
completamente a razão para tal fervor. Isto se deve apenas ao fato de que a literatura
não é um adorno ou acessório da existência cotidiana; é a única forma na qual os russos
podem ver discutidos os verdadeiros problemas com os quais se preocupam e que seus
governantes sempre acharam melhor que eles ignorassem (FRANK, 1992, p. 62).
Ao criar suas personagens, Dostoiévski as expõe a situações complexas, beirando os
limites da razão e da lógica, do bem e do mal, como forma de questionamento e reflexão
dos valores de sua época. Os temas recorrentes em sua obra: crime, suicídio, orgulho,
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destruição dos valores institucionais (família, igreja), busca do sentido e razão da
existência, o niilismo, dentre outros, são o retrato das inquietudes e angustias de sua
geração e certamente tornaram-se fonte de inspiração para ele.
Outro aspecto da obra que deve ser levado em consideração é a semelhança com
fatos da vida do autor. Ronis Faria de Souza (2009), em sua dissertação de mestrado,
apresentada ao Programa de Pós-Graduação de Letras da Universidade Federal do
Espírito Santo, apresenta esse aspecto fazendo um paralelo entre as vivências do autor e
suas personagens e o objetivo de tais relações. Vejamos a forma como essas ligações
foram feitas:
Há ao longo da obra de Dostoiévski muitos momentos em que as experiências reais de
sua vida tumultuada são a fonte inesgotável de onde vem a matéria para seu trabalho. A
transposição autobiográfica seria, nesse contexto, um ponto básico da teia dialógica, um
canal aberto para toda a comunicação que a obra propõe. Aqueles quatro anos que
passou na Sibéria são, por exemplo, como o reservatório secreto onde o seu gênio se
alimentará daí para o futuro. [...] muitas outras situações de sua vida são transpostas
para as suas obras. A relação com o pai e o suposto complexo edipiano devido ao
sofrimento da mãe estão em várias delas. Até a morte do pai, assassinado por
camponeses da própria propriedade, o pequeno Fiódor teria alimentado um ódio
parricida, teria desejado o desaparecimento da figura paterna. A confissão ficcional
surge, já na maturidade, no romance Os Irmãos Karamássovi, com a abordagem do tema.
“Desejaria eu a esse ponto a morte de meu pai?” – pergunta Ivan Karamássov. A relação
com o jogo está em O Jogador, a experiência infeliz do primeiro casamento está em
Humilhados e Ofendidos e Crime e Castigo. Às experiências pessoais somam-se às incursões
que o autor fazia pelas zonas mais pobres e populares, a fim de conhecer a alma do povo
russo (SOUZA, 2009, p.20-21).
Comentando sobre as experiências de vida com as quais Dostoiéveski marcou sua obra,
em entrevista à revista IHU On-Linev, Joseph Franck (2006), afirma que a execução
simulada foi um dos mais importantes e marcantes eventos da vida do autor, pois teve
um efeito fundamental sobre ele: “Foi depois da experiência da execução simulada que
ele começou o ver as questões sociais religioso-metafóricas da sociedade russa, e isso
condicionou toda a sua perspectiva posterior”, (FRANK, 2006, p. 8). Entretanto, há de se
cuidar para não atribuir um caráter classificatório e rotular à obra, pois isso seria
v
A confluência da literatura com a filosofia. Entrevista com Joseph Frank à IHU On-Line, p. 5-8. Edição nº
195. São Leopoldo,11 de set. de 2006. Disponível em: IAH ONLINE.www.unisinos.BR/IHU. Acesso em:8
de mar. de 2013.
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diminuí-la, porém deixar de levar esse ponto em consideração iria também destituí-la
de sua originalidade e importância.
Respondendo a essa questão na mesma entrevista o estudioso alerta que:
Existem certamente algumas características que subjazem à obra de Dostoiévski que são
biográficas, mas em meu próprio trabalho enfatizo o modo como isso é integrado nas
questões mais amplas que dizem respeito à sociedade e política russa. Ele seguiu a
evolução da ideologia radical muito cuidadosamente, e a fundiu com elementos pessoais
de sua própria vida que ele personificou em seus livros. Se esse aspecto de sua biografia
é negligenciado, e ele é interpretado apenas de maneira pessoal, em termos
autobiográficos, é realmente impossível entender as bases de seu trabalho, (FRANK,
2006, p. 8).
Bakhtin defende que “Dostoiévski não cria escravos mudos (como Zeus), mas pessoas
livres, capazes de colocar-se lado a lado com seu criador, de discordar dele e até rebelarse contra ele” (BAKHTIN, 2008, p. 4).
Vistas e analisadas dessa perspectiva as personagens dostoievskianas, assumem
o papel de protagonistas sendo assim, essenciais no desenrolar da trama. É o que ocorre
em Crime e Castigo, cada personagem é porta voz de uma ideologia, de um princípio
norteador de valores e conduta, contribuindo para as incertezas de nossa personagem
central, Raskólnikov, e sua busca pelo entendimento de si mesmo, pela resposta à
pergunta que o persegue.
A OBRA – RASKÓLNIKOV
Dos cinco volumes escritos por Joseph Frank (2003), o quarto, “Dostoiévski – Os Anos
Milagrosos (1865-1871)”, é dedicado à análise do período em que foram publicadas
importantes obras, dentre elas, Crime e Castigo considerado o primeiro romance de sua
fase madura, escrito anos depois de sua prisão na Sibéria. Os pesquisadores e críticos
das obras do autor entendem que os anos passados no cárcere, em que o autor ficou
sujeito a todos os tipos de privações, às crises epiléticas que se acentuaram, à
convivência com todos os tipos de criminosos, preparam nosso escritor para uma
literatura mais séria, mais circunspecta, adjetivo entendido aqui como “o que olha em
volta de si”, onde Dostoiévski desnuda como ninguém a alma humana numa
profundidade até então pouco usual, tornando-se para muitos o fundador do Realismo.
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É com essa maturidade que o escritor cria Raskólnikov, uma personagem inquieta,
perdida, confusa, cindida já no próprio nome - raskol, que em russo significa cisma ou
cisão; aquele que divide – como se já carregasse um estigma, à semelhança do eu lírico
do “Poema de Sete Faces” do nosso Drummond, que tem para com o mundo um
sentimento de inadequação, de desequilíbrio e de busca. Um “gauche” marginalizado
que questiona sua relação com as demais pessoas, com o universo, com Deus e consigo
mesmo, que busca o sentido de sua importância no mundo, mas não o encontra
“Mundo mundo vasto mundo / se eu me chamasse Raimundo / seria uma rima, não
seria uma solução”vi.
Logo nos primeiros capítulos de Crime e Castigo, Raskólnikov nos é apresentado
com seus conflitos intelectuais e psicológicos. Apesar de grande potencial intelectual, o
estudante de Direito, sente-se filho da miséria, um injustiçado e se rebela contra essa
condição, abandona os estudos, isola-se do convívio social e busca desesperadamente
uma forma de mudar sua vida. Vejamos como ele nos é apresentado no primeiro
capítulo:
Em uma noite de um início de julho, excessivamente quente, um rapaz saiu do quarto
que ocupava na água-furtada de um grande prédio de cinco andares na travessa de S... e
vagarosamente, com ar irresoluto, tomou o caminho da ponte de K...
Teve a boa sorte de não encontrar na escada a senhoria, que morava no andar inferior. A
cozinha, cuja porta estava quase sempre aberta, dava para a escada. Toda vez que o
rapaz saía, era obrigado a passar por ali, o que o fazia experimentar uma forte sensação
de covardia, que o humilhava e o fazia franzir o sobrolho. Devia uma importante soma à
senhoria e receava encontrá-la. Não que fosse covarde e tímido; pelo contrário. Mas
havia algum tempo que ele se achava em um estado de excitação nervosa, vizinho da
hipocondria.
Andava tão concentrado em seus pensamentos e afastado de todos, que chegara a ponto
de não só temer encontrar-se com a senhoria, mas a deixar de manter relações com os
seus semelhantes. A pobreza esmagava-o, mas ultimamente até isso chegara a ser-lhe
insensível. Renunciara por completo às suas ocupações (DOSTOIÉVSKI, 2002, p. 15).
Nesse fragmento já podemos, não apenas ter uma visão da condição patológica da
personagem, como também pressentir que algo ocupa de forma obsessiva e
perturbadora a sua mente. Desprezando todas as convenções sociais, guiando-se por
vi
Primeiros três versos da sexta estrofe do Poema de Sete Fases. Carlos Drummond de Andrade.
“Alguma Poesia”. Rio de Janeiro, José Olympio, 1973.
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ideias niilistas, convencido de que as decisões morais deveriam ser baseadas na máxima
“os fins justificam os meios” e tendo como teoria a divisão dos homens em duas classes:
a dos extraordinários como Napoleão, herói idealizado a quem se dá o direito de matar
pelo bem da humanidade, e a classe dos homens ordinários que se submetem ao
anonimato e à mediocridade, Raskólnikov é atormentado pela dúvida: Será ele um
homem extraordinário, destinado a feitos grandiosos ou uma reles e insignificante
criatura?
Para provar que pertence ao primeiro grupo e que por isso, não está subordinado
às leis, mata com um machado Aliena Ivánovna, idosa que vive de explorar
financeiramente estudantes pobres, pois empresta dinheiro a juros altíssimos, que ele
considera um “piolho” que deve ser removido da sociedade. Por uma infeliz fatalidade
acaba matando da mesma forma Lisavieta, irmã mais nova da velha. Mesmo
acreditando que o assassinato foi um ato utilitário e que tinha o direito de cometê-lo,
Raskólnikov passa a ser atormentado pelo sentimento de culpa, não propriamente por
ter cometido o crime, mas por não ser capaz de lidar com o fato e, portanto, não ser
diferente dos transeuntes anônimos que povoavam as ruas de São Petesburgo por onde
passa
a
vagar
depressivo,
culpado
e
amedrontado
pelo
receio
de
ser
descoberto. Segundo palavras do narrador:
A atmosfera continuava abafada, mas Raskólnikov sorveu avidamente o ar poeirento,
portador das exalações pestilentas da cidade. Sentia a cabeça andar-lhe à roda. Os olhos
congestionados e o rosto emagrecido e lívido exprimiam uma energia selvagem. Não
sabia para onde ir nem se preocupava com isso. Sabia simplesmente que era preciso
acabar com “tudo aquilo” naquele dia mesmo, de uma vez, imediatamente; que de outra
forma não tornaria a entrar em casa, “porque não queria viver assim”. Como acabar com
aquilo? Não fazia nenhuma ideia, nem queria pensar – a ideia o atormentava. Sentia e
sabia unicamente que era preciso que tudo aquilo mudasse, “fosse como fosse”, repetia
com desesperada e imperturbável confiança. (DOSTOIÉVSKI, 2002, p. 162-163).
SÔNIETCHKA MARMIELÁDOV - SÔNIA
Sônia, a jovem filha de um escriturário bêbado, é forçada a se prostituir para ajudar o
pai, a madrasta e alimentar seus irmãos mais novos. É a ela que Raskólnikov recorre em
busca de uma solução para o dilema que o consome. Reconhecendo-a uma pecadora,
alguém que de certa forma também comete um “crime” por se prostituir, procura-a
para descobrir como ela lida com a culpa de sua transgressão.
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Ao constatar o alto grau de sofrimento e sacrifício de Sônia, o jovem atormentado, se
curva a seus pés como alguém que se sente indigno diante de algo divino e percebe que
é na fé e na expectativa de um milagre que ela se apega para não enlouquecer e
conseguir carregar o fardo do seu pecado.
Foi a ela que ele, por fim acabou confessando o crime e através dela encontrou
coragem para entregar-se. Como se pode confirmar no fragmento:
Eu matei, simplesmente; matei para mim, só isso [...] E não era o dinheiro que me fazia
falta quando matei; foi outra razão que principalmente me determinou... Vejo-o agora
muito bem... Ouve: se pudesse voltar a trás, talvez não fizesse o que fiz. Era outra coisa
que me impulsionava. Naquela ocasião o que queria saber – e o quanto antes é se eu era
um piolho como os outros, ou um homem. Se tinha ou não em mim a capacidade de
ultrapassar os limites e tomar esse poder.
[...]
- E agora? Diz-me o que hei de fazer agora? – perguntou ele levantando bruscamente a
cabeça. Tinha as feições horrivelmente transtornadas pelo desespero.
[...]
- É preciso que aceites o sofrimento e te redimas por meio dele.
(DOSTOIÉVESKI, 2002, p. 421-422).
Por meio de Sônia, Dostoiévski evoca valores cristãos e morais desprezados pelas novas
concepções filosóficas que fervilhavam na mente de Raskólnikov. É como se ao
aproximar os dois jovens quisesse estabelecer um diálogo entre o velho e o novo, entre o
intelecto e a emoção, entre o racionalismo puro e a ascensão espiritual, na busca de um
equilíbrio para a geração tão perturbada de seu tempo.
Raskólnikov acaba por entregar-se e é condenado a oito anos de trabalhos
forçados na Sibéria para onde foi acompanhado por Sônia, que de certa forma, acaba
também “passando por seu purgatório” e pagando por seus pecados ao se impor
acompanhá-lo para a prisão.
O valor do amor e do sofrimento como forma de perdão e redenção se confirma
no epilogo, quando depois de um ano de muitas amarguras, suavizadas pela presença
constante de Sônia, nosso jovem “ressuscita”:
Quiseram falar e não puderam. Havia lágrimas nos seus olhos. Estavam ambos pálidos e
abatidos, mas em seus rostos enfermiços e pálidos brilhava já a aurora de uma
renovação, de uma plena ressurreição para uma vida nova. O amor regenerava-os, o
coração de um encerrava uma fonte de vida inesgotável para o coração do outro. [...]
Restavam-lhes ainda sete anos; de que sofrimentos intoleráveis e de que felicidade
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infinita devia ser preenchido para eles esse espaço de tempo! Mas ele havia ressuscitado,
sentia-o em todo o seu ser renovado, e ela – ela só vivia da vida dele! (DOSTOIÉVSKI,
2002, p. 551-552).
Se este fragmento fosse lido fora do seu contexto por um leitor que desconhece a obra,
facilmente poderia ser relacionado ao Romantismo, tamanha a força do amor e da
emoção que pode ser sentida. Outra semelhança interessante é que o herói romântico,
muitas vezes desregrado, marginal, acaba encontrando no amor a forma de regenerarse, é o caso por exemplo de Fernando Seixas, do romance “Senhora” de José de
Alencarvii, que passa a ter seus valores e comportamento transformado depois que se
descobre apaixonado por Aurélia. Tema que talvez mereça um novo olhar sobre a obra.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Segundo alguns estudiosos, o crime não poderia servir como um teste para responder a
pergunta: “seria ele um homem extraordinário?”, porque Raskólnikov
demonstra
saber, mesmo que intuitivamente que não passa de um homem ordinário.
Entretanto, talvez seja exatamente por isso que ele o pratica, para provar o
contrário. Por trás do ato há a razão, a motivação, a ideologia e é essa que importa em
Crime e Castigo. Raskólnickov ao praticar o crime, quer se apoderar de algo que lhe
falta e que acredita, adquirirá depois de cometer um ato brutal contra tudo que julga
repressor, dominador e restritivo. Mas o crime que supostamente o “libertaria”
transforma-se na sua maior prisão e é ai que sua teoria não se sustenta. A partir dessa
constatação, e das transformações que ela provoca encontra por fim uma resposta que o
conduz à ressurreição. Vejamos o que diz o narrador:
De resto, o que importavam todas as misérias do passado? Naquela primeira alegria do
regresso à vida, tudo, até o crime, até sua condenação e sua deportação para a Sibéria,
tudo lhe parecia como um fato exterior [...] naquela noite não conseguia refletir por
muito tempo [...] só conseguia sentir. No lugar da dialética surgira a vida, e na
consciência devia elaborar-se algo inteiramente diferente.
[...]
Estava tão feliz, que quase sentia medo daquela felicidade.
(DOSTOIÉVSKI, 2002, p. 552-553)
vii
José de Alencar (1829-1877): importante escritor do período romântico brasileiro. Dentre suas obras está
“Senhora”, uma obra-prima do romance urbano.
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Raskólnikov estava agora totalmente livre para responder sua pergunta e capaz de
reconhecer a si mesmo.
Estas são, dentre tantas outras, algumas reflexões que nos sugere a obra de
Fiodor Dostoiévski.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo
Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2008.
2. DOSTOIÉVSKI, Fiódor Mikháilovitch. Crime e Castigo. Tradução Ivan Petrovich
e Irina Wisnik Ribeiro, São Paulo, Editora Martin Claret Ltda, 2002.
3. FRANK, Joseph. Pelo Prisma Russo – ensaios sobre literatura e cultura.
Tradução Paulo Cox Rolin e Francisco Achcar. São Paulo. Edusp, 1992.
4. SOUZA, Ronis Faria. Crime e Castigo: uma leitura (da menipeia ao
dialogismo). Dissertação (Mestrado em Letras) – Programa de Pós-Graduação
em Letras, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2009.
5. STEINER, George. Tostói ou Dostoiévski. Tradução. Isa Kopelman. São Paulo.
Perspectiva, 2006.
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