AMERICAN RESEARCH THOUGHTS – Vol.1, issue 1, 2014
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AMERICAN RESEARCH THOUGHTS – Vol.1, issue 1, 2014
Volume 1 │ Issue 4 │ February 2015 AMERICAN RESEARCH THOUGHTS ISSN: 2392 – 876X Impact Factor: 2.0178 (UIF) Available online at: www.researchthoughts.us RASKÓLNIKOV DE DOSTOIÉVSKI: UMA TRAVESSIA DE REDENÇÃO EM “CRIME E CASTIGO”i Maria Do Céu Vaz Master Degree Student in Literary Studies (MEL) at Federal University of Rondônia – 1 UNIR (Brazil) Abstract: The intent of this article is to describe, in general lines, the existential crisis of the character Raskolnikov, in Crime and Punishment, wrote by the russian author Fiodor Dostoiévski (1821-1881), and his redemption path due to his iniquity. Considering himself as a rational and superior being, the character is incapable to understand and rationally control the guilt feelings that oppress him and shown his intern contradictions. The extra textual relations that can be perceived analyzing the narrative structure are also included and make the correspondence with the author’s social context possible. Using this perspective, the main hypothesis is that the historic-social context at the time may have been important to construct this character, collaborating with the understanding of its complexity. The referential used during this reflection will be narrative itself and analyses wrote by authors like Joseph Franck and Mikhail Bakthin. Key Words: Literature. Immanent Analysis. Dostoiévski. Conflict. Existence Resumo: O objetivo deste artigo é descrever, ainda que em linhas gerais, a crise existencial da personagem Raskólnikov, da obra Crime e Castigo, do escritor russo Fiodor Dostoiévski, e o caminho de sua redenção pelo latrocínio que pratica. Considerando-se um ser racional e superior, a personagem mostra-se incapaz de entender e controlar racionalmente os sentimentos de culpa que o oprimem, pelos quais passa a viver assombrado e que evidenciam suas contradições internas. As relações extratextuais que podem ser percebidas na estrutura da narrativa, também fazem parte de nosso interesse e possibilitam o dialogo com o contexto social da época do escritor. Nesta perspectiva, a hipótese norteadora do trabalho é que o contexto histórico-social da época pode ter influenciado a construção dessa personagem contribuindo para o entendimento de sua complexidade. O referencial para esta i DOSTOEVSKY’S RASKOLNIKOV: A CROSSING OF REDEMPTION IN "CRIME AND PUNISHMENT”. 1306 Maria Do Céu Vaz- RASKÓLNIKOV DE DOSTOIÉVSKI: UMA TRAVESSIA DE REDENÇÃO EM “CRIME E CASTIGO” reflexão será a própria narrativa, enriquecida com a análise de estudiosos da obra do escritor como Joseph Franck e Mikhail Bakhtin. Palavras-Chave: Literatura. Análise Imanente. Dostoiévski. Conflito. Existência. “I wanted to find out something else; it was something else led me on. I wanted to find out then and quickly whether I was a louse like everybody else or a man.” ii Dostoiévski, Part V, 4:135 Crime and Punishment. INTRODUÇÃO Desde Tales de Mileto, filósofo da Grécia Antiga que nasceu em 624 ou 625 a.C., considerado o marco da filosofia ocidental, vemos manifestações que expressam a intenção do homem entender a si mesmo e ao mundo que o cerca. Questões como “Quem somos?”, “De onde viemos?”, “Para onde vamos?” ecoam das ciências naturais, da filosofia, da literatura, da psicologia, dentre outras áreas do conhecimento. A busca pelas respostas e a partir delas conseguir um sentido para a existência é algo que ainda marca o homem moderno apesar do relato bíblico do Gênesis, da teoria da evolução pela seleção natural de Charles Darwin e da psicanálise de Sigmund Freud. Fiodor Dostoiévski, um dos mais reconhecidos autores russos do século XIX, descreve essa crise existencial de forma magistral através de suas personagens tensas, paradoxais e doentias. Na obra “Crime e Castigo” apresenta-nos Raskólnikov, uma personagem atormentada por esse conflito e que na tentativa de entender a si mesmo dialoga com outras consciências, inclusive a sua própria, dando ao romance uma característica inovadora para sua época que Bakhtin classificou como polifoniaiii. Este trabalho é uma tentativa de captar e entender a partir da obra dostoiéskiana, o conflito existencial no qual vivia a personagem Raskólnikov e os caminhos que vai ii “Naquela ocasião o que eu queria saber – e o quanto antes é se eu era um piolho como os outros, ou um homem.(Crime e Castigo)”. iii Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895-1975): linguista russo. Seu trabalho é considerado influente na área de teoria literária, crítica literária, análise do discurso e semiótica.. Alguns conceitos fundamentais de Bakhtin são o dialogismo, a polifonia, a heteroglossia e o carnavalesco. Entre suas obras, destacamos Problemas da poética de Dostoiévski. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1997 , onde apresenta a teoria do romance polifônico. 1307 AMERICAN RESEARCH THOUGHTS- Volume 1 │ Issue 4 │2015 Maria Do Céu Vaz- RASKÓLNIKOV DE DOSTOIÉVSKI: UMA TRAVESSIA DE REDENÇÃO EM “CRIME E CASTIGO” trilhando na busca de encontrar uma resposta para a pergunta “Quem sou?”, de forma a provar, sobretudo para si mesmo, que é mais que um insignificante “piolho”. Consideramos que seja importante, num primeiro momento, apresentarmos um pouco do contexto histórico que cercava o autor, pois cremos que essa contextualização é importante para o entendimento da obra e da personagem, não como fator determinante ou responsável pela condução da trama, mas como referência necessária para uma melhor compreensão. No segundo, deter-nos-emos no estudo ainda que superficial, de Raskólnikov, sendo essa uma forma de interpretação possível da complexidade e riqueza psicológica da personagem. O AUTOR E SUA ÉPOCA O escritor russo, Fiódor Mikhailovich Dostoiévski, por sua genialidade literária mereceu do professor e pesquisador, Joseph Frankiv a dedicação de três décadas de estudos. A extensa pesquisa não se limita apenas a uma biografia, mostra também o contexto histórico da Rússia dostoieviskiana e sua influência na produção literária do autor. Confirmando a importância dessa relação o estudioso afirma: [...] O gênio de Dostoiévski permitiu que ele transformasse essas mortíferas querelas russas em grande literatura de importância universal; mas para que possamos entender seus livros corretamente, devemos voltar a estudar o contexto sociocultural de onde eles vieram e tentar compreender o processo de transformação responsável por seu nascimento (FRANK,1992, p.106). A Rússia dos czares do século XIX constituía-se de uma população bastante numerosa, na sua maioria agrária sobre a qual predominavam as relações de trabalho servil. Viviam em condições miseráveis, agravadas pelas doenças, subnutrição, fome e analfabetismo. iv Joseph Frank (1919-2013): crítico e professor emérito de Literatura Comparada da Universidade de Princeton e professor de Literatura Eslava da Universidade de Stanford. Seus estudos sobre Dostoiévski totalizam cinco volumes, que somados chegam ao número aproximado de cinco mil páginas: "Dostoiévski - As Sementes da Revolta (1821-1849)"; "Dostoiévski - Os Anos de Provação (1850-1859)"; "Dostoiévski - Os Efeitos da Libertação (1860-1865)"; "Dostoiévski - Os Anos Milagrosos (1865-1871)"; "Pelo Prisma Russo - Ensaios sobre Literatura e Cultura" e "Dostoiévski - O Manto do Profeta (1871-1881)” todos publicados pela Edusp. Disponível em WWW.folha.uol.com.br.fsp/mais/fs1301200809.htm. Acesso em 10 de mar. de 2013 às 09h12min. 1308 AMERICAN RESEARCH THOUGHTS- Volume 1 │ Issue 4 │2015 Maria Do Céu Vaz- RASKÓLNIKOV DE DOSTOIÉVSKI: UMA TRAVESSIA DE REDENÇÃO EM “CRIME E CASTIGO” Por questões políticas o Czar Alexandre II (1855-1881), libertou os servos das mãos dos senhores da terra, mas essa medida, ao contrário do que se esperava, não trouxe grande desenvolvimento. Se a situação do camponês era ruim, a do trabalhador urbano não era melhor. Com uma jornada diária de trabalho entre 12 e 15 horas e condições de vida muito precárias, as cidades tornaram-se o palco de constantes movimentos reivindicatórios. Greves e motins eram frequentes, apesar da violenta repressão a qualquer movimento popular. Imperava a ausência de liberdade individual, a censura à imprensa e o direito de reunião, sob pena de prisão e de exílio para aqueles que não se submetessem à vontade do czar. George Steiner (2006), não só retrata e confirma esse contexto como o amplia, ressaltando também os embates ideológicos: As realidades que se ofereciam aos escritores russos do século XIX eram, de fato, fantásticas; um despotismo aterrorizador; [...] os debates raivosos entre os eslasófilos ocidentalistas, entre populistas e utilitários, reacionários e niilistas, ateus e crentes; e pesando sobre todos os espíritos, como uma das tempestades iminentes de verão tão belamente evocadas por Turguêniev, a premonição da catástrofe. (STEINER, 2006, p.3031apud SOUZA, 2009, p.21). Diante dessa realidade tão repressora foi através da arte que a Rússia encontrou sua voz de protesto e de luta, de forma especial na literatura, que passa de certa maneira, a exercer uma função social importante. Leia-mos o que diz a respeito o crítico, Joseph Frank: [...] a literatura serviu, mais ou menos, como uma válvula de escape através da qual assuntos proibidos podiam ser apresentados ou, pelo menos, sugeridos. Daí a notória densidade ideológica da melhor literatura russa – um traço que ainda continua a distinguir seus escritores – novelistas ou poetas – de seus colegas ocidentais mais livres, que às vezes invejam a intensidade da reação russa à literatura sem compreender completamente a razão para tal fervor. Isto se deve apenas ao fato de que a literatura não é um adorno ou acessório da existência cotidiana; é a única forma na qual os russos podem ver discutidos os verdadeiros problemas com os quais se preocupam e que seus governantes sempre acharam melhor que eles ignorassem (FRANK, 1992, p. 62). Ao criar suas personagens, Dostoiévski as expõe a situações complexas, beirando os limites da razão e da lógica, do bem e do mal, como forma de questionamento e reflexão dos valores de sua época. Os temas recorrentes em sua obra: crime, suicídio, orgulho, 1309 AMERICAN RESEARCH THOUGHTS- Volume 1 │ Issue 4 │2015 Maria Do Céu Vaz- RASKÓLNIKOV DE DOSTOIÉVSKI: UMA TRAVESSIA DE REDENÇÃO EM “CRIME E CASTIGO” destruição dos valores institucionais (família, igreja), busca do sentido e razão da existência, o niilismo, dentre outros, são o retrato das inquietudes e angustias de sua geração e certamente tornaram-se fonte de inspiração para ele. Outro aspecto da obra que deve ser levado em consideração é a semelhança com fatos da vida do autor. Ronis Faria de Souza (2009), em sua dissertação de mestrado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação de Letras da Universidade Federal do Espírito Santo, apresenta esse aspecto fazendo um paralelo entre as vivências do autor e suas personagens e o objetivo de tais relações. Vejamos a forma como essas ligações foram feitas: Há ao longo da obra de Dostoiévski muitos momentos em que as experiências reais de sua vida tumultuada são a fonte inesgotável de onde vem a matéria para seu trabalho. A transposição autobiográfica seria, nesse contexto, um ponto básico da teia dialógica, um canal aberto para toda a comunicação que a obra propõe. Aqueles quatro anos que passou na Sibéria são, por exemplo, como o reservatório secreto onde o seu gênio se alimentará daí para o futuro. [...] muitas outras situações de sua vida são transpostas para as suas obras. A relação com o pai e o suposto complexo edipiano devido ao sofrimento da mãe estão em várias delas. Até a morte do pai, assassinado por camponeses da própria propriedade, o pequeno Fiódor teria alimentado um ódio parricida, teria desejado o desaparecimento da figura paterna. A confissão ficcional surge, já na maturidade, no romance Os Irmãos Karamássovi, com a abordagem do tema. “Desejaria eu a esse ponto a morte de meu pai?” – pergunta Ivan Karamássov. A relação com o jogo está em O Jogador, a experiência infeliz do primeiro casamento está em Humilhados e Ofendidos e Crime e Castigo. Às experiências pessoais somam-se às incursões que o autor fazia pelas zonas mais pobres e populares, a fim de conhecer a alma do povo russo (SOUZA, 2009, p.20-21). Comentando sobre as experiências de vida com as quais Dostoiéveski marcou sua obra, em entrevista à revista IHU On-Linev, Joseph Franck (2006), afirma que a execução simulada foi um dos mais importantes e marcantes eventos da vida do autor, pois teve um efeito fundamental sobre ele: “Foi depois da experiência da execução simulada que ele começou o ver as questões sociais religioso-metafóricas da sociedade russa, e isso condicionou toda a sua perspectiva posterior”, (FRANK, 2006, p. 8). Entretanto, há de se cuidar para não atribuir um caráter classificatório e rotular à obra, pois isso seria v A confluência da literatura com a filosofia. Entrevista com Joseph Frank à IHU On-Line, p. 5-8. Edição nº 195. São Leopoldo,11 de set. de 2006. Disponível em: IAH ONLINE.www.unisinos.BR/IHU. Acesso em:8 de mar. de 2013. 1310 AMERICAN RESEARCH THOUGHTS- Volume 1 │ Issue 4 │2015 Maria Do Céu Vaz- RASKÓLNIKOV DE DOSTOIÉVSKI: UMA TRAVESSIA DE REDENÇÃO EM “CRIME E CASTIGO” diminuí-la, porém deixar de levar esse ponto em consideração iria também destituí-la de sua originalidade e importância. Respondendo a essa questão na mesma entrevista o estudioso alerta que: Existem certamente algumas características que subjazem à obra de Dostoiévski que são biográficas, mas em meu próprio trabalho enfatizo o modo como isso é integrado nas questões mais amplas que dizem respeito à sociedade e política russa. Ele seguiu a evolução da ideologia radical muito cuidadosamente, e a fundiu com elementos pessoais de sua própria vida que ele personificou em seus livros. Se esse aspecto de sua biografia é negligenciado, e ele é interpretado apenas de maneira pessoal, em termos autobiográficos, é realmente impossível entender as bases de seu trabalho, (FRANK, 2006, p. 8). Bakhtin defende que “Dostoiévski não cria escravos mudos (como Zeus), mas pessoas livres, capazes de colocar-se lado a lado com seu criador, de discordar dele e até rebelarse contra ele” (BAKHTIN, 2008, p. 4). Vistas e analisadas dessa perspectiva as personagens dostoievskianas, assumem o papel de protagonistas sendo assim, essenciais no desenrolar da trama. É o que ocorre em Crime e Castigo, cada personagem é porta voz de uma ideologia, de um princípio norteador de valores e conduta, contribuindo para as incertezas de nossa personagem central, Raskólnikov, e sua busca pelo entendimento de si mesmo, pela resposta à pergunta que o persegue. A OBRA – RASKÓLNIKOV Dos cinco volumes escritos por Joseph Frank (2003), o quarto, “Dostoiévski – Os Anos Milagrosos (1865-1871)”, é dedicado à análise do período em que foram publicadas importantes obras, dentre elas, Crime e Castigo considerado o primeiro romance de sua fase madura, escrito anos depois de sua prisão na Sibéria. Os pesquisadores e críticos das obras do autor entendem que os anos passados no cárcere, em que o autor ficou sujeito a todos os tipos de privações, às crises epiléticas que se acentuaram, à convivência com todos os tipos de criminosos, preparam nosso escritor para uma literatura mais séria, mais circunspecta, adjetivo entendido aqui como “o que olha em volta de si”, onde Dostoiévski desnuda como ninguém a alma humana numa profundidade até então pouco usual, tornando-se para muitos o fundador do Realismo. 1311 AMERICAN RESEARCH THOUGHTS- Volume 1 │ Issue 4 │2015 Maria Do Céu Vaz- RASKÓLNIKOV DE DOSTOIÉVSKI: UMA TRAVESSIA DE REDENÇÃO EM “CRIME E CASTIGO” É com essa maturidade que o escritor cria Raskólnikov, uma personagem inquieta, perdida, confusa, cindida já no próprio nome - raskol, que em russo significa cisma ou cisão; aquele que divide – como se já carregasse um estigma, à semelhança do eu lírico do “Poema de Sete Faces” do nosso Drummond, que tem para com o mundo um sentimento de inadequação, de desequilíbrio e de busca. Um “gauche” marginalizado que questiona sua relação com as demais pessoas, com o universo, com Deus e consigo mesmo, que busca o sentido de sua importância no mundo, mas não o encontra “Mundo mundo vasto mundo / se eu me chamasse Raimundo / seria uma rima, não seria uma solução”vi. Logo nos primeiros capítulos de Crime e Castigo, Raskólnikov nos é apresentado com seus conflitos intelectuais e psicológicos. Apesar de grande potencial intelectual, o estudante de Direito, sente-se filho da miséria, um injustiçado e se rebela contra essa condição, abandona os estudos, isola-se do convívio social e busca desesperadamente uma forma de mudar sua vida. Vejamos como ele nos é apresentado no primeiro capítulo: Em uma noite de um início de julho, excessivamente quente, um rapaz saiu do quarto que ocupava na água-furtada de um grande prédio de cinco andares na travessa de S... e vagarosamente, com ar irresoluto, tomou o caminho da ponte de K... Teve a boa sorte de não encontrar na escada a senhoria, que morava no andar inferior. A cozinha, cuja porta estava quase sempre aberta, dava para a escada. Toda vez que o rapaz saía, era obrigado a passar por ali, o que o fazia experimentar uma forte sensação de covardia, que o humilhava e o fazia franzir o sobrolho. Devia uma importante soma à senhoria e receava encontrá-la. Não que fosse covarde e tímido; pelo contrário. Mas havia algum tempo que ele se achava em um estado de excitação nervosa, vizinho da hipocondria. Andava tão concentrado em seus pensamentos e afastado de todos, que chegara a ponto de não só temer encontrar-se com a senhoria, mas a deixar de manter relações com os seus semelhantes. A pobreza esmagava-o, mas ultimamente até isso chegara a ser-lhe insensível. Renunciara por completo às suas ocupações (DOSTOIÉVSKI, 2002, p. 15). Nesse fragmento já podemos, não apenas ter uma visão da condição patológica da personagem, como também pressentir que algo ocupa de forma obsessiva e perturbadora a sua mente. Desprezando todas as convenções sociais, guiando-se por vi Primeiros três versos da sexta estrofe do Poema de Sete Fases. Carlos Drummond de Andrade. “Alguma Poesia”. Rio de Janeiro, José Olympio, 1973. 1312 AMERICAN RESEARCH THOUGHTS- Volume 1 │ Issue 4 │2015 Maria Do Céu Vaz- RASKÓLNIKOV DE DOSTOIÉVSKI: UMA TRAVESSIA DE REDENÇÃO EM “CRIME E CASTIGO” ideias niilistas, convencido de que as decisões morais deveriam ser baseadas na máxima “os fins justificam os meios” e tendo como teoria a divisão dos homens em duas classes: a dos extraordinários como Napoleão, herói idealizado a quem se dá o direito de matar pelo bem da humanidade, e a classe dos homens ordinários que se submetem ao anonimato e à mediocridade, Raskólnikov é atormentado pela dúvida: Será ele um homem extraordinário, destinado a feitos grandiosos ou uma reles e insignificante criatura? Para provar que pertence ao primeiro grupo e que por isso, não está subordinado às leis, mata com um machado Aliena Ivánovna, idosa que vive de explorar financeiramente estudantes pobres, pois empresta dinheiro a juros altíssimos, que ele considera um “piolho” que deve ser removido da sociedade. Por uma infeliz fatalidade acaba matando da mesma forma Lisavieta, irmã mais nova da velha. Mesmo acreditando que o assassinato foi um ato utilitário e que tinha o direito de cometê-lo, Raskólnikov passa a ser atormentado pelo sentimento de culpa, não propriamente por ter cometido o crime, mas por não ser capaz de lidar com o fato e, portanto, não ser diferente dos transeuntes anônimos que povoavam as ruas de São Petesburgo por onde passa a vagar depressivo, culpado e amedrontado pelo receio de ser descoberto. Segundo palavras do narrador: A atmosfera continuava abafada, mas Raskólnikov sorveu avidamente o ar poeirento, portador das exalações pestilentas da cidade. Sentia a cabeça andar-lhe à roda. Os olhos congestionados e o rosto emagrecido e lívido exprimiam uma energia selvagem. Não sabia para onde ir nem se preocupava com isso. Sabia simplesmente que era preciso acabar com “tudo aquilo” naquele dia mesmo, de uma vez, imediatamente; que de outra forma não tornaria a entrar em casa, “porque não queria viver assim”. Como acabar com aquilo? Não fazia nenhuma ideia, nem queria pensar – a ideia o atormentava. Sentia e sabia unicamente que era preciso que tudo aquilo mudasse, “fosse como fosse”, repetia com desesperada e imperturbável confiança. (DOSTOIÉVSKI, 2002, p. 162-163). SÔNIETCHKA MARMIELÁDOV - SÔNIA Sônia, a jovem filha de um escriturário bêbado, é forçada a se prostituir para ajudar o pai, a madrasta e alimentar seus irmãos mais novos. É a ela que Raskólnikov recorre em busca de uma solução para o dilema que o consome. Reconhecendo-a uma pecadora, alguém que de certa forma também comete um “crime” por se prostituir, procura-a para descobrir como ela lida com a culpa de sua transgressão. 1313 AMERICAN RESEARCH THOUGHTS- Volume 1 │ Issue 4 │2015 Maria Do Céu Vaz- RASKÓLNIKOV DE DOSTOIÉVSKI: UMA TRAVESSIA DE REDENÇÃO EM “CRIME E CASTIGO” Ao constatar o alto grau de sofrimento e sacrifício de Sônia, o jovem atormentado, se curva a seus pés como alguém que se sente indigno diante de algo divino e percebe que é na fé e na expectativa de um milagre que ela se apega para não enlouquecer e conseguir carregar o fardo do seu pecado. Foi a ela que ele, por fim acabou confessando o crime e através dela encontrou coragem para entregar-se. Como se pode confirmar no fragmento: Eu matei, simplesmente; matei para mim, só isso [...] E não era o dinheiro que me fazia falta quando matei; foi outra razão que principalmente me determinou... Vejo-o agora muito bem... Ouve: se pudesse voltar a trás, talvez não fizesse o que fiz. Era outra coisa que me impulsionava. Naquela ocasião o que queria saber – e o quanto antes é se eu era um piolho como os outros, ou um homem. Se tinha ou não em mim a capacidade de ultrapassar os limites e tomar esse poder. [...] - E agora? Diz-me o que hei de fazer agora? – perguntou ele levantando bruscamente a cabeça. Tinha as feições horrivelmente transtornadas pelo desespero. [...] - É preciso que aceites o sofrimento e te redimas por meio dele. (DOSTOIÉVESKI, 2002, p. 421-422). Por meio de Sônia, Dostoiévski evoca valores cristãos e morais desprezados pelas novas concepções filosóficas que fervilhavam na mente de Raskólnikov. É como se ao aproximar os dois jovens quisesse estabelecer um diálogo entre o velho e o novo, entre o intelecto e a emoção, entre o racionalismo puro e a ascensão espiritual, na busca de um equilíbrio para a geração tão perturbada de seu tempo. Raskólnikov acaba por entregar-se e é condenado a oito anos de trabalhos forçados na Sibéria para onde foi acompanhado por Sônia, que de certa forma, acaba também “passando por seu purgatório” e pagando por seus pecados ao se impor acompanhá-lo para a prisão. O valor do amor e do sofrimento como forma de perdão e redenção se confirma no epilogo, quando depois de um ano de muitas amarguras, suavizadas pela presença constante de Sônia, nosso jovem “ressuscita”: Quiseram falar e não puderam. Havia lágrimas nos seus olhos. Estavam ambos pálidos e abatidos, mas em seus rostos enfermiços e pálidos brilhava já a aurora de uma renovação, de uma plena ressurreição para uma vida nova. O amor regenerava-os, o coração de um encerrava uma fonte de vida inesgotável para o coração do outro. [...] Restavam-lhes ainda sete anos; de que sofrimentos intoleráveis e de que felicidade 1314 AMERICAN RESEARCH THOUGHTS- Volume 1 │ Issue 4 │2015 Maria Do Céu Vaz- RASKÓLNIKOV DE DOSTOIÉVSKI: UMA TRAVESSIA DE REDENÇÃO EM “CRIME E CASTIGO” infinita devia ser preenchido para eles esse espaço de tempo! Mas ele havia ressuscitado, sentia-o em todo o seu ser renovado, e ela – ela só vivia da vida dele! (DOSTOIÉVSKI, 2002, p. 551-552). Se este fragmento fosse lido fora do seu contexto por um leitor que desconhece a obra, facilmente poderia ser relacionado ao Romantismo, tamanha a força do amor e da emoção que pode ser sentida. Outra semelhança interessante é que o herói romântico, muitas vezes desregrado, marginal, acaba encontrando no amor a forma de regenerarse, é o caso por exemplo de Fernando Seixas, do romance “Senhora” de José de Alencarvii, que passa a ter seus valores e comportamento transformado depois que se descobre apaixonado por Aurélia. Tema que talvez mereça um novo olhar sobre a obra. CONSIDERAÇÕES FINAIS Segundo alguns estudiosos, o crime não poderia servir como um teste para responder a pergunta: “seria ele um homem extraordinário?”, porque Raskólnikov demonstra saber, mesmo que intuitivamente que não passa de um homem ordinário. Entretanto, talvez seja exatamente por isso que ele o pratica, para provar o contrário. Por trás do ato há a razão, a motivação, a ideologia e é essa que importa em Crime e Castigo. Raskólnickov ao praticar o crime, quer se apoderar de algo que lhe falta e que acredita, adquirirá depois de cometer um ato brutal contra tudo que julga repressor, dominador e restritivo. Mas o crime que supostamente o “libertaria” transforma-se na sua maior prisão e é ai que sua teoria não se sustenta. A partir dessa constatação, e das transformações que ela provoca encontra por fim uma resposta que o conduz à ressurreição. Vejamos o que diz o narrador: De resto, o que importavam todas as misérias do passado? Naquela primeira alegria do regresso à vida, tudo, até o crime, até sua condenação e sua deportação para a Sibéria, tudo lhe parecia como um fato exterior [...] naquela noite não conseguia refletir por muito tempo [...] só conseguia sentir. No lugar da dialética surgira a vida, e na consciência devia elaborar-se algo inteiramente diferente. [...] Estava tão feliz, que quase sentia medo daquela felicidade. (DOSTOIÉVSKI, 2002, p. 552-553) vii José de Alencar (1829-1877): importante escritor do período romântico brasileiro. Dentre suas obras está “Senhora”, uma obra-prima do romance urbano. 1315 AMERICAN RESEARCH THOUGHTS- Volume 1 │ Issue 4 │2015 Maria Do Céu Vaz- RASKÓLNIKOV DE DOSTOIÉVSKI: UMA TRAVESSIA DE REDENÇÃO EM “CRIME E CASTIGO” Raskólnikov estava agora totalmente livre para responder sua pergunta e capaz de reconhecer a si mesmo. Estas são, dentre tantas outras, algumas reflexões que nos sugere a obra de Fiodor Dostoiévski. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2008. 2. DOSTOIÉVSKI, Fiódor Mikháilovitch. Crime e Castigo. Tradução Ivan Petrovich e Irina Wisnik Ribeiro, São Paulo, Editora Martin Claret Ltda, 2002. 3. FRANK, Joseph. Pelo Prisma Russo – ensaios sobre literatura e cultura. Tradução Paulo Cox Rolin e Francisco Achcar. São Paulo. Edusp, 1992. 4. SOUZA, Ronis Faria. Crime e Castigo: uma leitura (da menipeia ao dialogismo). Dissertação (Mestrado em Letras) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2009. 5. STEINER, George. Tostói ou Dostoiévski. Tradução. Isa Kopelman. São Paulo. Perspectiva, 2006. 1316 AMERICAN RESEARCH THOUGHTS- Volume 1 │ Issue 4 │2015