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Arte
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ae
Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais / EBA / UFRJ
ano XVIII · n. 23 · novembro 2011
Arte
&
Ens
ai
os
ae
Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais / eba / ufrj. Qualis A2 – CAPES
Apoio CNPq e CAPES
UFRJ · Universidade Federal do Rio de Janeiro
Reitor | Carlos Antônio Levi da Conceição
Decano do Centro de Letras e Artes | Flora De Paoli Faria
Diretor da Escola de Belas Artes | Carlos Gonçalves Terra
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais | Maria Cristina Volpi Nacif
Editores Responsáveis
Cezar Bartholomeu
Maria Luisa Tavora
Comitê Editorial
Carlos Alberto Murad
Maria Luisa Tavora
Milton Machado
Rogério Medeiros
Conselho Editorial
Amaury Fernandes
Ana Cavalcanti
Angela Ancora da Luz
Angela Leite
Carlos Murad
Cezar Bartholomeu
Dóris Kosminsky
François Soulages
(Université de Paris VIII)
Georges Didi-Huberman
(EHESS/Paris)
Gerardo Mosquera (New
Museum of Contemporary
Art NY)
Giselle Ruiz
Glória Ferreira
Guto Nóbrega
Guy Brett (Curador
independente Inglaterra)
Jean-Claude Lebensztejn
(Université de Paris 1)
Livia Flores
Marcus Dohmann
Maria Luisa Tavora
Maria Luiza Fragoso
Marize Malta
Milton Machado
Paulo Venancio
Rogério Medeiros
Sonia Gomes Pereira
Tadeu Capistrano
Editores Executivos
Equipe Editorial
Capa
Analu Cunha
Ana Mannarino
Carla de Cicco
Claudia Bakker
Denise Lopes
Gabriela Mured
Gloria Costa
Mariana Estellita
Marina Menezes
Roberta Barros
Ronald Duarte
Viviane Viana
Milton Machado
Revisão
Maria Helena Torres
Abstracts
Elvyn Marshall
SUmário
5
Apresentação
ENTREVISTA
6
O que eu quero que você veja é a sombra
Milton Machado
ARTIGOS
40
Espetáculos de civilidade: modernidade e
pós-modernidade no papel-moeda brasileiro
Amaury Fernandes
52
Festas reais em Portugal e no Brasil Colônia:
organização, sentido, função social
Cybele Vidal Neto Fernandes
64
A imersão no panorama de Victor Meirelles
Cristina Pierre de França
74
O ticumbi: imagens e memória da Vila de
Itaúnas
Luciana Alvarenga
82
De quantas partes se faz uma quimera
maquínica?
Bete Esteves
94
Sob palavras e imagens: proposição poética
e contextualização cultural de um dispositivo digital de artemídia
Mano Vianna
Agradecimentos
Bárbara Spanoudis
Inês de Araujo
Floriano Romano
Gabriel Amorim
Conchita Morgado
Elizabete Marin Ribas
Louise Ganz
Luiza Vidal
Luis Camillo Osoris
MAC USP
Maria Isabel Branco
Marisa Florido
Priscila Plantarida
Vanessa Santos
Projeto gráfico
Gloria Costa
Ronald Duarte
Mary Paz Guillén
Colaborações
104
Robert Morris e o estúdio do artista
Kim Paice
Semestral
118
BARTHOLOMEU, Cezar, TAVORA, Maria Luisa (org.)
Arte & Ensaios n. 23. Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação
em Artes Visuais/ Escola de Belas Artes, UFRJ, novembro de 2011.
224 p.
Teatro de imagens e autobiografia:
espetáculo?
Gabriela Lírio Gurgel Monteiro
128
As Exposições Gerais da Academia de Belas
Artes: teatro de corte e formação de um
mercado de artes no Rio de Janeiro
Leticia Squeff
138
Theon Spanudis
Arte das formas e arte das formações
ISSN - 1516-1692
1. Artes Visuais
3. Imagem e Cultura
2. História e Teoria da Arte
4. Linguagens Visuais
I. Universidade Federal do Rio de Janeiro II. Título
REEDIÇÃO
APRESENTAÇÃO
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
148
Além da crítica institucional
Isabelle Graw
160
Representação, apropriação e poder
Craig Owens
186
A função do ateliê
Daniel Buren
196
Espetáculo, atenção, contramemória
Jonathan Crary
PÁGINA DUPLA
210
Analu Cunha
RESENHAS
212
Heloisa Schneiders da Silva obra e escritos
Glória Ferreira
213
No contemporâneo: arte e escritura
expandidas
Ana Mannarino
214
Gerhard Richter, Sinopse
Alvaro Seixas
216
José Resende
Felipe Scovino
217
Ana Linnemann, Cartoon
Vera Beatriz Siqueira
220
Francis Alÿs - A Story of Deception
Doris Kosminsky
222
Sumário das edições anteriores
TEMÁTICAS
O QUE EU QUERO QUE VOCÊ VEJA É A SOMBRA
Milton Machado
Entrevista de Milton Machado a Arte & Ensaios – com a participação de Tânia Rivera, Cezar
Bartholomeu, Livia Flores, Marina Menezes, Rodolfo Caesar, além de Glória Ferreira e Guilherme
Bueno, que enviaram perguntas por e-mail – no ateliê do artista em 14 de outubro de 2011.
Cezar Bartholomeu Acho interessante começar pensando sua relação com a arquitetura.
Milton Machado Minha história curricular é a seguinte: na minha infância, um tio da Marinha, que
era capitão de mar e guerra, me trazia brinquedos importados, carrinhos com controle remoto e tudo o
mais. Por influência dele, eu quis ser da Marinha também para poder viajar, ter coisas importadas, mas
para isso tinha que ser militar, e eu não tinha a menor vocação. Tomei um gosto por montagens, por
engenharias, a partir de um brinquedo francês que ele me trouxe chamado Mecano, fantástico, com o
qual você monta estruturas, helicópteros, rodas-gigantes. Eu brincava com esse brinquedo diariamente,
montava coisas incríveis, às vezes fugia do figurino dos manuais, fazia coisas que eu mesmo inventava,
minhas próprias máquinas. Então eu achei que estudar engenharia seria, além de uma coisa de geração,
vocação. Fiz um ano de engenharia na PUC, em 1964. No meio do ano, comecei a sentir certa dificuldade
com geometria analítica no espaço. Achava que era possível aquilo fazer sentido, mas para mim não
fazia, era muito além de minhas possibilidades, de minha realidade construída a Mecano. Some-se
a isso o fato de eu passar muitas das aulas jogando boliche em uma pista em frente à faculdade.
Comecei a sentir uma dificuldade imensa, primeiro porque era um universo muito diferente do meu
próprio círculo tijucano – na PUC, muitos alunos foram do Santo Inácio, eu era do Aplicação, chegavam
lá de BMW, Alpha Romeo, e eu de carona num Fusca. Falei então para meus pais, que eram muito
compreensivos: quero mudar de curso. Minha mãe consultou um psicólogo que me aplicou um teste
vocacional e apontou que seria aconselhável eu fazer arquitetura. Que, aliás, era uma atividade que meu
pai exercia, mesmo sem ser arquiteto formado. Fiz vestibular para arquitetura e fiquei até o fim, formeime arquiteto. Fundei com Antônio José, que é meu amigo até hoje, o cineclube da FAU, que dirigimos
com nosso entusiasmo típico de Geração Paissandu, apesar da interferência do diretor, que apagava a
luz da faculdade inteira para nos impedir de mostrar os filmes, obrigando-nos a transferir nossas sessões
para teatros da Zona Sul, o que acabou nos proporcionando maior visibilidade e publicidade. Foi um
Kosuth Teórico
objeto, cartões impressos, foto, verbetes
década de 1980
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cineclube importantíssimo nos anos 60. Comecei a estudar cinema loucamente, vi montes de filmes e
de A Esperança no Porvir, e começou a me procurar. Um ano depois ele estaria comprando os primeiros
com isso não tinha muito tempo para assistir às aulas. Assistia a poucas aulas, mas participava de um
trabalhos meus de sua coleção, e assim tudo começou, um pouco a minha revelia. Sintomaticamente,
grupo de estudos extremamente dinâmico com colegas e com arquitetos, como Paulo Casé, com quem
esse desenho se chama O Princípio do Fim.
trabalhei por uns cinco anos.
Tânia Rivera Grupo de estudos sobre o quê?
em 1969?
MM Sobre arquitetura, basicamente. Muitos de nós trabalhávamos com Paulo Casé e Luiz Acioli num
MM Acho que só fui frequentar curso de arte quando fiz o doutorado na Inglaterra, se é que se pode
escritório bastante dinâmico dos anos 60. Some-se a isso minha aproximação à música. Ainda na
considerar um PhD Fine Arts um curso de arte, em que acabei escrevendo algo mais voltado para a filosofia.
arquitetura eu já tocava um pouco de violão e comecei a estudar mais seriamente. Estudei sete anos
Da Bienal de 1969 participei como estudante, um concurso internacional de escolas de arquitetura, em
de violão clássico, de modo que acho que posso incluir a música como parte de minha formação. A
que nossa equipe tirou segundo lugar, empatando com a da França. Nos anos 70, tive umas poucas
FAU já funcionava no prédio da EBA, que não tinha EBA, que na verdade é uma intrusa. Tínhamos uma
aulas de gravura em metal com Eduardo Sued. Mais tarde, início dos anos 80, já às voltas com a pintura,
relação muito intensa com aquele edifício, porque virávamos noites lá fazendo projetos de arquitetura
inscrevi-me no curso de Aluísio Carvão no MAM, pensando em travar com ele interlocuções mais teóricas,
sobre pranchetas fantásticas desenhadas por Jorge Moreira, com armários individuais e equipamento
mas logo saí quando ele descobriu, constrangido, que eu não era exatamente um iniciante, julgando
perfeito, hoje tristemente sucateado. Apesar da distância, era um lugar que nos acolhia muito. Tínhamos
que eu não teria nada a aprender com exercícios rudimentares que ele passava para totais iniciantes.
professores incríveis, bons arquitetos atuantes, como o próprio Paulo Casé, Henrique Mindlin e vários
Não me incomodava com isso, mas talvez não fosse mesmo necessária tal iniciação para usufruir da
outros, pessoas bacanas. A atuação política no diretório, do qual eu era representante externo, também
sabedoria dele, de pintor e gente fina. Para não perder o dinheiro da inscrição, transferi-me para o curso
foi fundamental porque me fez participar de reuniões do DCE, da UME, da UNE. Então, minha vida era
de serigrafia de Dionísio del Santo, que era genial, experiência da qual resultou uma única serigrafia
isso, assistir a filmes, alguma militância, ir ao Museu de Arte Moderna; eu me lembro de exposições de
com tiragem de 1/1. Aí ocorreu algo semelhante ao encontro com Carvão. Dionísio achou que, antes
Genovese, de Ivan Serpa, Flavio Shiro, e tenho quase certeza de que era capaz de sentir o cheiro da tinta
de me aventurar por caminhos mais experimentais e de pretender ambicionar uma linguagem própria,
a óleo, que me inebriava.
eu deveria “soltar o traço”. Os catálogos que então dei a ele causaram a mesma surpresa que causaram
TR Isso foi em que ano mais ou menos?
MM Eu entrei para a faculdade de arquitetura em 1965, me formei em 1970. O próprio fato de
frequentar o MAM, de estudar cinema, estudar música, me fazia um peixe fora d’água na engenharia.
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Glória Ferreira Você chegou a frequentar cursos de arte antes de participar da Bienal de São Paulo,
em Carvão, mas Dionísio me acolheu de modo caloroso, e fui com ele até o final do curso. Não sei mais
como se faz, mas tenho e gosto muito de minha única serigrafia de impressão única.
TR Quando é que virou uma arquitetura sem medidas?
Assim, quando me formei eu já estava completamente embananado, porque, além de estar entregue,
MM Não sei se existe arquitetura sem medidas, mas sei que existe o arquiteto sem medidas, que tento
como alguns nesta sala, à experiência psicodélica com relativa intensidade, havia a experiência musical,
ser eu mesmo. É claro que existe arquitetura sem medidas, a arquitetura dos jardins de Canterel em
sexual, drogal, entremeadas por sessões de análise de grupo e meditações budistas. Isso me deixava um
Locus Solus, por exemplo. Uma arquitetura sem medidas é a que recorre a medidas marotas, peculiares.
tanto perdido, literalmente perdido nas minhas tentativas de encontro. Em 1973, fascinado por Robert
Os metros de Duchamp só servem para levantar construções fictícias, porque se você construir um
Crumb e companhia, organizei e publiquei A Esperança no Porvir, uma revista de quadrinhos, o que
edifício com os metros de Duchamp o edifício vai ruir. A denominação “arquiteto sem medidas” veio
aumentou mais ainda a balbúrdia. Lembro que fui ao escritório do Casé tentar vender a revista,
com História do Futuro. Esse é um trabalho que surgiu da vontade – ou eu poderia dizer desejo, fazendo
todos ficaram chocadíssimos: mas você não é arquiteto? Acho que sim, eu devo ter dito, mas isso
contraponto com a palavra desígnio, projeto –, do desejo de um arquiteto sem medidas preocupado
não impede que eu faça revistas em quadrinhos… Assim que me formei em 1970 fui para o Instituto
com a perda da unidade e sua recuperação. A primeira vez que me deparei com esse problema foi
Villa Lobos, onde conheci Rodolfo Caesar; somos amigos desde então. Estudei um pouco de música
quando li um livro escrito em 1938 pelo paleontólogo Alfredo Brandão, A escripta pré-histórica no
no Villa Lobos, mas comecei a estudar mais seriamente com professores como Jodacil Damasceno,
Brazil, em ortografia antiga. Ele especulava sobre a existência do Pangea, o continente único que foi
Yan Gestzi, entre outros. Isso tudo gerava uma confusão danada, mas produtiva. De uma coisa eu não
separado por cataclismos, terremotos, no período cambriano. Com o instrumental que eu tinha da
fazia parte de jeito nenhum: ser artista, não havia o menor ... não sabia o que significava isso. Eu não
arquitetura, dispus-me a projetar um sistema de pontes gigantescas que, progressiva e artificialmente,
imaginava uma situação de artista expositor, embora eu desenhasse desde pequenininho. Mas houve
iriam reconstituir a unidade perdida. Era um projeto originado de especulações científicas, lidas num
uma circunstância que me deixou frente a frente com Gilberto Chateaubriand. Ele foi a uma galeria
livro de paleontologia, mas que nasce de uma ficção, de um projeto utópico, imaginário, de minhas
muito importante para a história das artes no Rio de Janeiro – Veste Sagrada, depois Central de Arte
pontes simbólicas, sem medidas. É curioso, porque se a gente lê o Timeu, uma primeira referência que
Contemporânea – para comprar uma coisa qualquer e se deparou com um desenho meu que é a capa
Platão faz é à Atlântida, uma porção de terra ideal e fantástica, que desapareceu. Um “mito verossímil”,
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segundo Francisco Samaranch, na introdução da edição espanhola que tenho. Assim, o “arquiteto sem
medidas” surge como o autor desse projeto inexequível, inútil, totalmente especulativo, mas do qual
emerge a preocupação – e, aí sim, essa é uma medida que se pretende universal – de reconstituição da
unidade. O trabalho começa, então, com desenhos muito rudimentares, cheios de erros aliás, ou melhor,
imperfeições. A primeira série de desenhos de HF tem erros, por exemplo na direção em que o Módulo
de Destruição caminha, entre outros pequenos detalhes gráficos, mas...
TR Erros de continuidade?
MM Sim. Erros na configuração das chamadas Cidades Mais-que-Perfeitas, por exemplo. Eu não conhecia
ainda a conformação dessas cidades, que só depois fui descobrir, quando percebi que não estava lidando
apenas com o desejo de construir pontes imaginárias, mas com um problema seríssimo, com a própria
questão da unidade, uma recorrente idealidade ocidental, vide a busca de unidade do self, unidade do
planeta, unidade da arte, unidade de Deus, essas coisas todas que perturbam nossa natureza fragmentária
e que nos fazem aperfeiçoar cada vez mais a busca da coisa una. História do Futuro começa em 1978,
justamente quando eu frequentava uma especialização em urbanismo na própria FAU, que não terminei.
Mas no mesmo andar já funcionava o Instituto de Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional – IPPUR,
que era excelente. E eu passei lá cinco longos anos fazendo mestrado em planejamento urbano. Minha
dissertação chamou-se História do Futuro. Levei o trabalho para lá, causando certo problema para mim e
para eles. Ouço dizer que os bibliotecários até hoje caminham com o volume História do Futuro para lá
e para cá sem saber onde colocar. Aliás, tenho eu também a mesma dificuldade.
TR É um Módulo de Destruição.
MM Exatamente, é um Módulo de Destruição; eu diria até que minha passagem pelo IPPUR foi um
pouco assim; talvez eu tenha causado certo rebuliço pelo fato de ter reivindicado minha presença lá não
como arquiteto, mas como artista. Fiz questão de me identificar como artista e, na defesa da dissertação,
tive que enfrentar a banca como tal. Fizeram-me uma pergunta que me colocaria numa situação difícil,
porque me cobrava interlocuções com o planejador urbano. Algo que eu não era mesmo. E que os
professores do curso também não eram. Respondi argumentando que não conhecia nenhum planejador
urbano. Um economista, que aliás é um sujeito brilhante, Carlos Vainer, queria me colocar em exigência.
Mas eu falei: não posso ter interlocução com quem não conheço, não conheço qualquer pessoa que seja
planejador urbano, e nem vocês são. Meu orientador, Carlos Nelson Pereira dos Santos, era arquiteto e
antropólogo, completamente avesso à ideia mais ortodoxa de planejamento. O que estou dizendo é que
uma ideia de planejamento urbano que proponha uma teleologia de projeto e daí o controle do espaço
urbano vinha fortemente criticada na dissertação. Afinal, era a tese de um “arquiteto sem medidas”.
CB Fico pensando na ideia de um problema de projeto e trazer isso para um problema de experiência e
não mais de projeto. A perplexidade é o modo de tirar uma coisa de seu projeto e causar a experiência?
MM A perplexidade é uma inevitável condição contemporânea. Você tem no início do século 20 a
necessidade imperiosa da certeza, sem a qual você não poderia ter Mondrian, não poderia ter Malevitch,
História do Futuro
detalhe, 2 de 14 desenhos
1. Cidades Mais-que-Perfeitas, Módulo de Destruição
2. Cidades Mais-que-Perfeitas, Ciclos de Vida, Destruição e Construção
1978– em progresso
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o construtivismo russo, nem mesmo o dadaísmo. Mesmo em sua negatividade, o dadaísmo tinha certeza
TR História do Futuro é uma grande alegoria crítica, mesmo da linguagem de ordem simbólica. Você
pelo menos de ser contra a arte, contra o Dada inclusive. É o que o Danto chama de Era dos Manifestos.
reafirma que ela não se refere a nada, mas você reconstrói uma grande fábula que é uma espécie de – e
Era necessário que os artistas tivessem certezas absolutas daquilo que estavam propondo. Se pensarmos,
estou evitando o termo metalinguagem – uma espécie de linguagem crítica, autocrítica, que diz respeito
por exemplo, no temor quase insuportável que os pintores abstratos tinham do nonsense, que faz
à arte e ao mundo.
Kandinsky recorrer ao espiritual na arte, ou Malevitch ao suprematismo, ou Mondrian dizer que só
existe um caminho para a vida, portanto um único caminho para a arte, o que se vê são veredictos,
diagnósticos e proposições definitivas. Hoje em dia, se alguém lhe apontar o caminho de qualquer coisa,
você pode estar certo de que está mentindo. Isso me faz pensar numa proposição muito interessante de
Jeff Koons. Ele diz: se você me mostrar uma imagem abstrato-expressionista, ficarei desconfiado de suas
boas intenções; mas se você me mostrar algo em que eu consiga ver os pixels, aí saberei que podemos
falar seriamente, porque saberei que você está me enganando, portanto estaremos combinados.
Sabemos hoje que só a ficção não mente. Não temos mais nem a necessidade de ter certeza de alguma
coisa. Pensemos na derrocada das grandes narrativas, na perda da unidade, na ideia da arte como
projeto unificador. A perplexidade vem dessa incapacidade, e mais, da inutilidade de termos certezas.
É preciso viver a experiência micrologicamente. Por isso recorro, lá nas minhas teorias, até no título da
exposição (1 = n), um intervalo, aos parênteses. É uma ferramenta conjuntural, para tratar não com
extensões, mas com intensidades. Por exemplo: (1 = n) é um intervalo que fala da indeterminação e,
ao mesmo tempo, da igualdade. Coloco arte entre parênteses para poder falar dela, de alguma arte,
durante certa vigência intervalar. O subtítulo da minha tese é (arte) e sua exterioridade. Recorro aos
parênteses para poder garantir – muito provisoriamente – que estamos entendidos: arte com inicial
minúscula, necessariamente. Ou, se quisermos, de cavanhaque e bigode e com o rabo quente. Uma arte
que seja nossa, mais próxima de nós, como distâncias em proximidade.
CB Começar uma premissa de não certeza.
MM Sim. Qual arte? A arte de Joseph Beuys, a arte de Andy Warhol. Sim, mas qual trabalho? Em qual
circunstância? Nesse intervalo, vamos falar que língua? Em qual contexto? Lygia Clark entra no livro Art
Since 1900 como arte não ocidental, e eis aí um intervalo barra-pesada. Acho até que Paulo Venancio
cobrou isso do Yve-Alain Bois. E aqui, na palestra que deu em São Paulo, Rosalind Krauss foi extremamente
fugidia. Recusou-se a responder à pergunta, nem sequer admitiu que o livro do qual é coautora diz isso
de Lygia Clark. O livro comete a generosidade de nos “reconhecer” como não ocidentais. Bem, esses
intervalos, os parênteses que os demarcam, não devem permanecer para sempre. São como as margens
de História do Futuro, a que me refiro no Texto Descritivo de 1978. Posso inventar qualquer maluquice
dentro desse universo, porque ali eu sou deus. Estou garantido por aquelas margens, porque aquilo é
desenho, drawing, não é design, não é projeto. Então, até segunda ordem, eu não tenho qualquer tipo
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MM Falei que até certo ponto eu poderia me garantir naquelas margens desenhadas a lápis. Esse certo
ponto pode ser o momento em que eu, estudando a teoria do planejamento urbano – com mergulhos
profundos na economia política de Karl Marx, por exemplo, e é claro por conta de meu interesse
pela cidade como urbanista e arquiteto – senti que meu trabalho era devedor de algum coeficiente
de realidade. Eu reconhecia que era de minha responsabilidade recorrer a algum tipo de mecanismo
que derrubasse os parênteses. Isso aconteceu radicalmente na Sicília, onde vivi uma experiência
absolutamente mágica. Eu estava na Itália por conta de uma exposição. Fui o curador e convidei quatro
artistas [Cinque Artisti Brasiliani: Angelo Venosa, Daniel Senise, Frida Baranek, Ivens Machado, Milton
Machado, Sala Uno, 1990] para uma coletiva em Roma, e como decorrência surgiu o convite a mim e
Ivens Machado para fazermos individuais numa pequena cidade siciliana chamada Gibellina, destruída
em 1968 por um terremoto, que abriga um museu importante e inúmeras esculturas públicas. A Sicília
é um lugar muito inóspito, totalmente isolado de tudo, um lugar onde você percebe o isolamento de
forma muito clara. Pois bem, eu fui para uma cidade destruída por um terremoto. Ora, em História do
Futuro, a origem dos chamados plissements, que remetem às fissuras na crosta terrestre de que fala
Alfredo Brandão, são geológicas, são terremotos, cataclismos, o que já traz uma primeira analogia. Pois
eu estava ali, instalado nessa nova Gibellina, absolutamente nova, construída ao lado de uma cidade
velha destruída por um terremoto...
TR A analogia vem depois, e não antes…
MM A analogia vem depois, são as histórias do futuro, que vêm com as simbologias. Além disso, as
coincidências não são coincidências, são histórias coincidentais. Que se sucediam de forma vertiginosa!
Quando cheguei ao espaço em que fizemos as exposições, um prédio inacabado, ainda em construção
– lembrando que em História do Futuro há um Ciclo de Construção, um Ciclo de Vida e um Ciclo de
Destruição – havia lá, como que esperando minha presença, uma sequência de pilares de concreto
armado, vazios. Pois me pareceu óbvio que sua função era a de receber o Módulo de Destruição!
E foi exatamente o que fiz; meu cubo está lá até hoje e nunca mais vai sair, a não ser que apodreça;
foi adotado pelo edifício e pelo arquiteto como escultura pública permanente. Está plantado sobre
Pilares do Novo Mundo, que foi como passei a enxergar os pilares outrora vazios de Gibellina, que são
elementos do chamado Mundo Perfeito de História do Futuro.
de compromisso de ser consistente com as realidades objetivas, nem com outras histórias. É claro que
E aí veio a esfera, representação do Nômade. Lembrem-se de que a origem do trabalho é a separação
faz parte de minha responsabilidade, em determinado momento, romper com essa margem, que é (de)
dos continentes. Olho pra ela: uma bola de mármore port’oro, peça que foi desviada de uma construção
limitadora, por isso excludente. Ela deve cumprir o papel de romper-se, de vazar para além dos papéis,
onde funcionaria como terminação de uma balaustrada. E aí eu vejo, marcados pela natureza, pelos
ou seja, de tratar a relação desse intervalo com outros intervalos. Daí a proposição: tudo é intervalar e
deuses meridionais, em ouro sobre negro, os continentes desenhados na superfície da esfera! Pensei: os
modular. Isso tem a ver com o modernismo; foi aí que eu aprendi sobre os módulos, você cria módulos
deuses estão me provocando, querendo que eu leve minhas analogias até o fim. E assim foi: bem em
que funcionem segundo ordens específicas.
frente ao prédio onde expus havia uma igreja de forma e gosto duvidosos: uma esfera atravessando um
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TR A realidade vem depois da ficção.
MM Exato. É uma espécie de confirmação, justamente, da perplexidade. Isso acontece muito em meu
trabalho, e de certa forma me causa sobressaltos como, por exemplo, desenhar uma paisagem de
meu quarto para, na mesma semana, sofrer dois assaltos consecutivos, em que me roubaram exatamente
os objetos que estavam no desenho.
Livia Flores Acho curioso, ouvindo esse seu relato de vida e de trabalho, como os títulos acabam se
amalgamando. Fico pensando em Homem Muito Abrangente, em Sobre a Mobilidade. Você fala da
situação em que o Gilberto vai lá e compra seus trabalhos, você diz que ali você não estava na posição
de artista, foi um acidente. Depois você está numa banca de defesa de mestrado, e ali você se afirma
como artista. Fico pensando no trabalho sobre a mobilidade que faz do móvel imóvel e do imóvel
móvel... esses modos de mobilidade.
MM É, a mobilidade. O Nômade se move, mas não é o único. A exposição Sobre a Mobilidade, no Paço
Imperial em 2001 e que depois itinerou por Brasília e São Paulo, tratava de uma situação específica, tinha
a ver com meu retorno para o Brasil. Os títulos são importantes para mim. Somas e Desarranjos é outro
título importante...
LF Um homem muito abrangente, você fala de inúmeras possibilidades…
MM “O título é o fim, no mais são vitrines”. Essa era uma de minhas pequenas tentativas poéticas no
catálogo da exposição Somas e Desarranjos [Galeria Saramenha, Rio, 1985]. Havia pinturas “íntegras”
na vitrina da galeria, quando lá dentro aconteciam operações desconstrutivas extremamente elaboradas
e matemáticas. As somas são importantes, mas os desarranjos são mais, porque se somam às somas.
Havia o slogan “ver as coisas pela metade para conhecê-las em dobro”. Enfim, essa derrubada, essa
desconstrução, já está no próprio projeto; então, “o título é o fim, no mais são vitrines” porque, se chego
ao título, é como se o trabalho estivesse pronto para acabar. Não que ele acabe, o trabalho não acaba
Nômade de História do Futuro, 1978
escultura, detalhe da instalação
in Interventi, Museo Civico Gibellina 1990-91
cubo! Que remete, justamente, à situação crucial em História do Futuro, em que o Nômade, que é uma
esfera diminuta, atravessa o Módulo de Destruição, que é um imenso cubo.
trabalho do trabalho da escultura, da pintura, da fotografia, do filme. Pode-se chamar de arte o trabalho
do trabalho, não aquele objeto que ali está, prostrado, inerte. É o trabalho do trabalho que faz com que
a arte esteja sempre à procura, até de si mesma. Assim, se eu chego ao título é porque, de certa forma,
cheguei à necessidade dessa demonstração. CQD – como queríamos demonstrar. O título nunca aparece
Isso me fez repensar, mexeu comigo e com o trabalho. Embora possa ser muito interessante, poético,
antes, sempre depois. História do Futuro já se chamou História do Processo, e se você for aos originais
muito belo até, eu dizer que o “O Nômade se move” [do texto Fast Forward, História do Futuro] ou
verá que está escrito História do Processo, antiga História do Futuro, que preferi não apagar. Isso me
dizer que o que importa é o caminho, coisas que tirei de minha própria cabeça ou de citações filosóficas
diverte, eu me arrependi de chamar História do Processo, antiga História do Futuro, de História do Futuro.
interessantes, ali eu olhava em volta e via pessoas reais no papel do Sedentário, do Nômade. Todos
História do Futuro é um título do futuro para um trabalho em processo, em progresso.
esses “personagens conceituais” estavam conversando comigo, numa língua que eu, aliás, não entendia,
porque, se eu falava bem italiano, muitos deles só falavam bem siciliano. Era uma situação intervalar, em
que as analogias que eu propunha como possibilidade do trabalho, até como uma espécie de álibi para
14
nunca; tem o trabalho e depois tem o trabalho do trabalho, que muitas vezes se pode apelidar de arte, o
TR Você acha que essa diversão não é fortuita em seu trabalho, existe uma diversão que é uma torção
que é feita...
justificar o trabalho, caíam por terra, ou caíam do céu com a força dos cataclismos, fazendo-me deparar
MM Não é fortuita, há uma certa maldade, no sentido maldoso, uma certa travessura. Sobre a Mobilidade
com realidades não mais Mais-que-Perfeitas, mas mais-que-totalmente-objetivas.
é o subtítulo do trabalho Edifício Galaxie. Fotografei os originais de Edifício Galaxie em 1975, quando
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pode vir algum gaiato e explicar que a tira sempre esteve dentro do envelope. Mas eu não quero ouvir
isso, sabe, não quero ouvir. Que tipo de pergunta é essa? Essa é daquelas perguntas que não são para ser
feitas. Perguntas que, se fossem ouvidas, poderiam vir a comprometer até o mito verossímil da Atlântida,
que inaugura toda a cosmologia do Platão, a criação do mundo, o Universo. É como na Utopia, de
Thomas More. Alguém está descrevendo aquele lugar, aquela agricultura, aquela economia saudável e
tudo o mais, e aí vem um cara e pergunta: “Existe mesmo esse lugar?” Um outro alguém ao lado tem um
ruidoso acesso de tosse, de modo que a pergunta não é ouvida. Sempre que a pergunta é feita, alguém
tosse e não se ouve a pergunta... O curioso é que Thomas More admite e inclui o risco da pergunta, isto
é, a pergunta pode vir a ser feita; portanto é preciso cuidado com as proposições, assim como é preciso
cuidar dos ruídos que as cercam. Cuidar da tosse, da rouquidão, por assim dizer, junto com a bela voz.
TR Você usa frequentemente um discurso pseudocientífico, acho que como uma espécie de paródia.
Você traz uma diversão que é, talvez, o que faz o Investigador entrar em férias.
MM O Investigador está em férias; em férias porque ele/eu precisa ser, precisa dar uma de Artista. Na
verdade, são uma mesma coisa, em diferentes personificações. Quando comecei a pensar no vídeo que
faz parte da coleção do RioArte [As Férias do Investigador, direção Arthur Omar, 1994], eu seria um ator
travestido ora em Madame, ora em Artista, ora em Investigador, que é uma triangulação perfeita, um
personagem não existe sem o outro. Quando está investigando, o Investigador está desenhando, sua
demonstração é toda desenhada com cores, formas e tudo mais. Quando ele se retira em férias entra
em cena o Artista, no mesmo lugar em que a investigação se passou, à beira da piscina de Madame.
São coisas concorrentes, são falas, investimentos concorrentes para demonstrar uma situação sem saída,
sem solução, porque em As Férias do Investigador a pergunta crucial, “Afinal, quem é a vítima?” não é
Screw
pintura, de Somas e Desarranjos
Rio de Janeiro 1985
o carro era 0Km, um Ford Galaxie verde-metálico que era do pai de um amigo. O edifício também era
novinho, nem tinha sido inaugurado, na esquina da Farme de Amoedo com Vieira Souto. Em 1975,
respondida (mas é formulada, sem acessos de tosse). Na exposição [Galeria Cesar Aché, Rio, 1981], se
você conhece As Férias do Investigador, a resposta que ele consegue decifrar é: “O artista matou a vítima
Edifício Galaxie (sobre a mobilidade)
7 fotografias, fotomontagens, vídeo
detalhe, 1982
cliquei as 36 fotografias de um filme, mas só descobri que aquilo podia tornar-se um trabalho em 1982,
quando ampliei as sete fotos finais. Aí descobri que havia em uma delas um grupo de capoeiristas
que conheci em 1978, quando eu era capoeirista amador. Portanto, conheci os caras em 1978, os
fotografei em 1975, mas só fui descobrir isso em 1982! E tem mais, eram capoeiristas, não eram
jogadores de pôquer. Nada mais móvel do que um capoeirista. Em 1990, quando estava na Sicília, perdi
o negativo original, que havia feito a partir de fotomontagens manuais, construídas com tesoura e cola.
Os laboratoristas sicilianos, quando ampliaram as fotos, perderam justamente a tira do negativo com
os capoeiristas, e tive que fazer novo negativo a partir de uma reprodução. No lugar de minha tira de
negativos veio outra, com imagens de um aniversário de crianças. Crianças que, na minha cabeça, só
podiam ser sicilianas, naturalmente. Então vim para o Brasil e mostrei ao Zé Roberto, que me ajudou com
as ampliações em 1982, e ele disse: “Que crianças sicilianas qual nada, este aqui é o João, meu filho!”
E eu: “Zé, como é que um negativo da festa do teu filho em Teresópolis foi parar na Sicília?” Claro que
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afogando-a na piscina e escondeu o corpo no jardim das hortênsias, à tardinha.” A tardinha era 5:30h:
da integridade, de uma unidade de pintura; que a mobilidade, as transações, os contrabandos, as trocas
a hora em que o Investigador entra em férias e que eu chegava à galeria, recebia o público e abria os
de posição e outras molecagens que usei para desconstruir ou construir aqueles objetos não conseguiam
livros desenhados para as pessoas que estavam vendo desenhos na parede. Havia uma troca o tempo
comprometer a potência da imagem. Acho que o que garante a permanência da pintura é o interesse
todo de identidades, de personagens, de suportes, de posições. Eu no centro, como Artista Madame
na imagem, mas sem privilégios, porque há o cinema, há o desenho, a fotografia e todos os meios pelos
Investigador, mas o meio mesmo era a imagem, o desenho e as investigações. A vítima do trabalho do
quais as imagens circulam sem cerimônia. A pintura não está mais discutindo pintura em sua eventual
trabalho pode ser o trabalho.
autonomia, e isso vale para a fotografia, o cinema ou qualquer outro meio. São, propriamente, meios.
TR O que são esses livros?
Em relação ao discurso pseudocientífico, ou à paródia, gostaria de lembrar o problema da bola de
MM São desenhos feitos em folhas superpostas, como cadernos que você folheia de certa forma e
vão acontecendo coisas curiosas, uma espécie de quebra-cabeça vertical. O que eu fazia era submeter
os objetos pintados – que
nem eram pintados, eram
desenhos em pastel seco
sobre papel – a testes de
desconstrução. Por exemplo,
eu desenhava um original,
pingue-pongue que atravessa a parede de concreto. Claro que não é possível isso acontecer. Mas não
me interessa saber se é possível; quero saber se é provável. O professor que propôs esse problema de
física teórica para meus amigos que estudavam engenharia no IME quando eu estudava na PUC não
era nenhum maluco de propor isso, pois a premissa é uma só: isso não é possível. O enunciado pedia
que se calculasse o número que expressaria a probabilidade de uma bola de pingue-pongue atravessar
uma parede de concreto. A resposta objetiva também é uma só: (1x10)–n quando n tende ao infinito.
Não é 0, até segunda ordem. O estudante preguiçoso que respondesse “zero” se daria mal, porque o
professor retrucaria: você não enfrentou o problema, não considerou o problema como problema. Não
feito com 36 gestos, e ao
estou querendo discutir possibilidades, pois já sabemos que, na prática, isso não é possível. Eu quero
mesmo tempo a anotação
que você prove que, em teoria, a bola pode atravessar, nem que para isso você tenha que recorrer a uma
de sua fatura gesto a
física alternativa, a uma patafísica. O que estou querendo discutir não é da ordem das possibilidades,
gesto, de modo que um
mas das probabilidades.
primeiro desenho contém o
CB O problema é ser verossímil... O espírito do seu trabalho é essencialmente antitécnico, então a
primeiro gesto, o segundo
contém o primeiro mais o
resposta só responde ali, depois ela…
segundo gesto e assim por
MM É uma resposta em andamento, na verdade é uma demonstração em progresso. Se eu estiver
diante. O trigésimo sexto
correto em meu entendimento de Montaigne, é possível provar que esses óculos, que esse objeto que
desenho é semelhante ao
tenho na mão é um ovo amarelo. É claro que não é, se você estiver falando em nome da claridade, da
original. Rauschenberg faz
luz, mas o que eu quero que você veja é a sombra, o monstro, a máscara, o rabo quente da Mona Lisa.
um pouco essa provocação
Como fazer isso? Você cria um intervalo, abre parênteses, e bota ali dentro o que você bem entender
com
expressionismo
porque o trabalho, a demonstração é sua. Até segunda ordem, porque depois vêm os julgamentos.
abstrato, com pinturas em
História do Futuro é julgado em Gibellina, embora aquelas pessoas não tenham a menor ideia de que isso
que ele repete uma imagem
aconteceu lá. Se a ciência dá conta disso ou não, a ciência teórica pelo menos, eu não sei. O importante
à semelhança de outra, em
é que certas circunstâncias nos levam a fazer coisas alternativas, muitas vezes incertas. Estou sempre
princípio espontânea. O que
mudando de uma situação para outra.
o
de certa forma concluí com
As Férias do Investigador é
que a imagem não precisa
TR Você chama isso de negociar uma posição…o Nômade, o Módulo de Destruição…
MM O personagem Nômade é mínimo, infinitesimal, é minúscula a escala dele, só que esse Nômade, em
algumas situações, como na instalação da 29a Bienal e em Gibellina, precisa crescer e tomar o aspecto
de uma esfera de mármore, como representação. Mas essas são representações tridimensionais. Nos
As Férias do Investigador, 1981
capa da revista Módulo, Rio de Janeiro 1982
foto de Sebastião Barbosa
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desenhos de História do Futuro o Nômade não aparece, é apenas aludido. Já o Módulo de Destruição é
um imenso cubo. A representação gráfica de alguns elementos desse trabalho é uma questão curiosa.
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Como representar, por exemplo, as Cidades Mais-que-Perfeitas, já que não dispomos de modelos
para isso? Um modo imediato seria partir das cidades imperfeitas, das cidades familiares pelas quais
circulamos, dos marcos culturais que conhecemos. Sendo esse o caso, talvez a melhor representação
MM O título da tese é After History of the Future, que em português é mais complicado porque fica
Depois de História do Futuro, como Art After Philosophy, que foi traduzido como Arte Depois da Filosofia,
fosse um espelho, em nome das semelhanças, do mimetismo. A negociação de posições entre o Nômade
quando talvez fosse mais correto Arte Segundo a Filosofia. Mas não me incomoda tanto a tradução
e o Módulo de Destruição é a negociação de suas diferenças. Isso é o que promove o movimento.
Depois de História do Futuro, que é como traduzo mesmo. No original, chama-se After History of the
TR Você situa o Nômade como artista, e é ele que trapaceia, ele que de alguma forma introduz uma
presença, ele é um intruso que consegue driblar alguma coisa, transformar alguma coisa nesse esquema
tão perfeito.
Future: (art) and its exteriority. Isso parte de uma constatação muito confortadora para mim, de que a
arte não existe. Mas não é como diz o Gombrich, que diz que arte não existe, o que existe são os artistas.
Digo de outra maneira: digo que nada existe já como arte, nada acontece como arte, assim como nada
acontece como história. Se você não escrever, e se não escrever bem, você não vai conseguir colocar
MM Nos textos de HF, o Nômade é referido como a “figura emblemática do Homem criador”. Na
a arte nos lugares em que as coisas bem escritas estão bem escritas e fazem história, e aí nada vai virar
verdade o Nômade é um aplicador de cosquinhas, que faz cócegas no Módulo de Destruição, de modo
arte. Estou falando de julgamentos, do trabalho do trabalho. E estou, de certo modo, apelando para a
a provocar sua agitação. São várias as leituras, algumas anedóticas. É um mecanismo, um relógio, um
lógica do evento.
jogo perfeito, um videogame, uma perseguição Tom & Jerry. Lembro-me, na defesa da tese de mestrado,
MMz Os parênteses, a definição, como uma forma de delimitar determinado sentido.
de alguém perguntar: mas por que o Nômade só pode mudar de cidades passando pela Posição Alfa?
Dei uma explicação, digamos, técnica, mas que não vem ao caso agora. Eu também poderia ter dito
que é assim porque sou deus nesse trabalho. O que importa é que o Nômade vai ao encontro do
Módulo de Destruição, que ocupa justamente a Posição Alfa. Pois é aí que vão se dar as negociações de
posição. Não é a Posição Alfa que é negociada, e sim a Cidade Mais-que-Perfeita contígua que vai viver
MM Exatamente. Assim como nada acontece como história, nada acontece como arte. Arte não existe
senão como negociação de sua exterioridade. Eu apelo para Heidegger, uma argumentação dele que
já está manjada, a questão do Lichtung, a clareira, em A Origem da Obra de Arte. Eu gosto muito
disso, de sua ideia de uma fissura constituinte. A clareira é uma fissura, um vazio, que apesar ou por
conta de não ter árvores, você percebe, justamente pela claridade, que aquilo é uma floresta mais
um Ciclo de Vida. Para passar a essa nova cidade e continuar vivendo, para adquirir a tal “forma móvel
facilmente do que se você estiver em uma floresta densa, porque aí você percebe a relação da floresta
de eternidade”, o Nômade terá que passar por dentro do Módulo de Destruição. Mas quem disse que
com o que está fora. A clareira é a sombra da floresta. Negociação de posições, como em História do
o Módulo quer? Há, no trabalho, uma leitura possível desse encontro, às vezes bélico, às vezes lúdico,
Futuro. Essa sua exterioridade é o que o trabalho tem de mais potente, porque é a partir desse potencial
como um intercurso amoroso, sexual. Platão se refere em determinado texto à transação entre a Alma do
que está aí dentro, latente, que você vai produzir os julgamentos capazes de levar à ideia de que aquilo
Mundo e a Teoria, com a ideia de bom e de belo, como um encontro sexual, do qual nascem filhos: os
seja arte. Pensar a lógica do evento me ajuda a lidar com isso muito bem. Infelizmente, a palavra em
discursos, as obras, a política. Na verdade, uma grande e banal proposição de História do Futuro é que
português foi traduzida como acontecimento, que me parece uma tradução equivocada, pois o evento
as diferenças produzem o movimento, do qual o Nômade é causa ativa.
seria justamente o contrário do acontecimento, evento é aquilo que só acontece eventualmente. Chama-
TR Essa proposta é uma leitura alegórica da arte numa dimensão política de negociação das diferenças,
tradução joga fora. O evento é uma coisa inusitada, tão inesperada que quebra todas as expectativas;
trapaças, jogos, contrabando.
você tem que reorganizar, expandir, reagrupar, renomear as coisas para poder caber aquilo, aquele
CB O atraso que os parênteses determinam é um atraso da ordem da negociação e é um atraso temporal
evento, ou seja, para que aquilo seja incorporado como história, como arte etc. E arte precisa dos
também, a analogia vem depois, o mundo está atrasado.
se événement, event e traduz-se como acontecimento, ou seja, o caráter eventual da ocorrência a
julgamentos; não adianta você botar um mictório lá no salão dos independentes porque mictório não
vira arte, assim como bolas de pingue-pongue não atravessam paredes. Fonte, o readymade, demorou
MM Há a formação de uma cadeia, um adiamento permanente. A potência política dos trabalhos,
meses para ser visto e nem foi visto como Fonte nem como readymade; foi visto como fotografia,
sejam eles quais forem, está nessa possibilidade de ocupar vários espaços, de migrar de uma cidade para
correndo, portanto, o risco de ser visto como mictório. O trabalho ficou conhecido por meio de uma
outra, de buscar e atravessar módulos de destruição. Se não fosse assim, não teríamos mais arte, a
foto de Stieglitz publicada numa revista, com a legenda: o trabalho de Marcel Duchamp recusado no
arte teria seu universo específico e delimitado. Ninguém teria mais paciência para a arte, porque se a arte
salão. E entrou para a história das artes visuais sem nunca ter sido visto, a não ser muito mais tarde,
não tivesse dado essa escapadela com a bunda quente que Duchamp diz que ela tem, se não tivesse se
em suas consagrações. Portanto, negociar uma posição não é brincadeira. Então, o que eu falo sobre
travestido em outra coisa que não arte e saído por aí rebolando, o que mais poderíamos estar fazendo
exterioridade é isso, é a negociação com o que não é arte que mostra a eventualidade, a probabilidade
em seu nome? Rezar?
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Marina Menezes Você poderia falar sobre sua tese? Os parênteses no título implicam exterioridade?
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de aquilo ser entendido como arte, discutido como arte, politizado como arte, porque muitas vezes você
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coloca aquilo no universo da arte e o trabalho perde potência política. O trabalho do Ilya Kabakov, por
exemplo, incrivelmente político, é tão poético que, colocado em determinadas circunstâncias, poderia
virar um trabalho quase alegórico. Estou falando mais especificamente de um trabalho lindo no qual ele
pede a pessoas quaisquer que tenham ideias, boas ideias [The Palace of Projects, Roundhouse, Londres:
http://srg.cs.uiuc.edu/Palace/projectPages/palace.html]. Um motorista de táxi sugere: todos os mortos
deveriam ser ressuscitados. Ótima ideia! Outra: poderíamos ter uma escada individual que nos levasse,
cada um de nós – como fazemos com nossos orixás –, uma escada altíssima só minha para eu conversar
com o meu anjo da guarda, exclusivo e pessoal. Perigoso? Claro que não, o anjo da guarda protege. Era
maravilhosa a exposição. Exibicionalidade é uma ideia da Sonia Saltzstein que me parece importante.
Usei esse seu conceito em um texto que escrevi, exemplificando com o trabalho do Kabakov, como o
contrário da exibicionalidade. Simplificando, a exibicionalidade que, claro, é um neologismo, se refere a
trabalhos que se valem e dependem da condição de exibição. Nesse trabalho de Kabakov você se senta
no banco de trás e vê o artista na frente conversando com o motorista do táxi; você vê o processo, refaz
a história do processo. Vê da exposição para trás. Curioso que ele expõe isso na Roundhouse, que era
onde o bonde literalmente fazia a curva, em Londres, para voltar atrás. Ele construiu nesse lugar uma
espécie de espiral de madeira, bem tosca mas belíssima – tudo ali era tosco e belíssimo. Por exemplo,
os mortos ressuscitados saíam de uma caixa de papelão cortada com tesoura, totalmente mambembe,
cheia de terra preta com bonequinhos recortados em papel branco, mal enfiados, tortos, amassados.
Era tão rica aquela porcaria toda, aqueles trapos, aquelas bolas de isopor pintadas com guache de
papelaria... era absurdamente poético. Não havia nenhum aparato senão a própria linguagem. Fiquei
muito impressionado com o despojamento desses trabalhos, que contraponho à minha irritação atual,
que já vem de longa data, com trabalhos polidos. Tem-me irritado essa coisa reluzente, bem acabada, eu
não tenho mais muito tempo para gostar desse tipo de trabalho.
Módulo de Destruição na Posição Alfa
de História do Futuro, 1978–
escultura, detalhe da instalação
29a Bienal de São Paulo, 2010
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Módulo de Destruição na Posição Alfa
de História do Futuro, 1978–
escultura, detalhe da instalação
in Interventi, Museo Civico Gibellina 1990-91
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TR Você fala em História do Futuro das imperfeições que o trabalho vai adquirindo ao longo do processo:
alinhar a Beuys, que embora seja um artista incrível tem um quê de messianismo, aquela coisa romântica
as imperfeições, as diferenças em relação a si próprio. Pelo que entendi, a negociação tem a ver com
alemã, voos e quedas da Luftwaffe, gordura e cera demais, que me importunam um pouco. Pode ser
essas diferenças também, incorporadas.
verdadeiro que “todo homem é um artista”. Eu ando lendo algo cujo subtítulo é “todo artista é um
MM Como eu disse, cada livro que leio, situações que eu vivo, como por exemplo o desafio de levantar
aquele cubo de duas toneladas na Bienal, faz surgir um monte de ideias novas. Depois, o cubo migrar para
o Sesc de Santos, onde se tornou algo totalmente diferente. Era o mesmo cubo, mas era absolutamente
outro; era o mesmo personagem, mas que mudou de cidade. Em Santos era uma situação peculiar,
o cubo ficou transparente. Na Bienal de São Paulo ele também era transparente, afinal era o mesmo
objeto, mas sobre um fundo branco, a coluna branca em forma de árvore de Niemeyer. Me lembro que
alguém até me advertiu: cuidado, porque você está instalando um canhão de luz direcionado para o
cubo, o que vai acabar criando uma projeção de sombras no pilar lá atrás. Exatamente, respondi; é por
isso mesmo que estou fazendo os caras se pendurarem perigosamente em andaimes, justamente para
obter esse efeito, para mostrar a sombra.
artista”. Melhor assim, todo artista é um artista, uma vez que todo homem é um homem. O Nômade é
uma esfera, mas nem toda esfera é um nômade.
TR Mas o Homem Muito Abrangente é um nômade, o Nômade é um homem muito abrangente.
MM Não, veja, o Nômade é uma esfera. O Homem Muito Abrangente não é feito de fatos, ele também
não existe, é outro personagem conceitual. A frase escrita na parede pelo assistente do atirador de facas,
que na performance sou eu mesmo, fornece o aporte teórico: “Um homem tão abrangente que ocupasse
o mundo todo menos o próprio espaço de seu corpo poderia sair-se muito bem como assistente de um
mau atirador de facas”. É um enigma, de certa forma. Outro dia eu me peguei escrevendo algo assim: “a
verdade é uma resposta a perguntas que não admitem respostas porque só admitem a verdade”. Escrevi
esse negócio e é isso mesmo, tem aí um jogo de palavras que cria uma situação meio tongue in cheek.
TR Mas você acha que, numa situação expositiva como a Bienal de São Paulo, o Módulo de Destruição
destruiu alguma coisa, ele agiu como um intruso?
MM Ainda está agindo. O fato de a escultura estar, não destruída, mas desconstruída na oficina de meu
Homem Muito Abrangente
performance, instalação, detalhe
Instituto Tomie Ohtake, São Paulo 2002
serralheiro significa alguma coisa. O fato de eu ainda não ter conseguido doar o trabalho, primeiro para
algumas instituições paulistas, depois inscrevê-lo num edital pretendendo sua incorporação à coleção
de um museu carioca e meu projeto ser “inabilitado”, sob a alegação de que o orçamento não era
consistente com os termos do edital, para mim são atuações de algum módulo de destruição. O fato
de eu ter um monte de ferro empilhado numa serralheria quando aquilo não é um monte de ferro,
deve sinalizar que algum módulo está agindo. Não o meu, metafórico, simbólico, que também constrói
nos Ciclos de Construção, mas um outro, esse sim, intruso, que age por meio de ações destrutivas,
afirmações equivocadas de diferenças improdutivas, más negociações de posições mal ocupadas. Alguma
Cidade Mais-que-Perfeita está indo para o brejo, e algumas Cidades Imperfeitas estão lá buscando sua
perfeição. Uma forma de procurar a perfeição é recusar meu projeto, porque meus orçamentos não são
consistentes com editais perfeitos e porque meu cubo, diferente do motorista do Kabakov, não consegue
uma habilitação.
TR Você estava falando sobre o nômade que não é um artista.
MM Eu não preciso literalizar para demonstrar que as propostas audaciosas – ou pretensiosas – de
História do Futuro se reidentificam diariamente. É óbvio que aquilo tudo é um comentário com muito
respaldo no real; para você ver, eu mencionei o Nômade como personagem conceitual em 1978 e logo
em seguida, em 1980, Deleuze e Guattari escrevem seu Tratado da Nomadologia; em 97 Maffesoli
escreve Sobre o Nomadismo. Qualquer curador hoje fala em nomadismos, no artista em trânsito, nas
mobilidades. Eu não falo de um artista que pinta, de outro que faz escultura, afinal em HF o Nômade
é uma esfera. Mas, como disse antes, nas analogias de HF, o Nômade é apresentado como “figura
emblemática do Homem criador”. Há, nos textos do trabalho, alguma referência a Beuys. Sem querer me
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Então é preciso ir costurando a coisa aos pouquinhos. O mau atirador de facas vai acertar todas as facas
no interior da figura. No texto de Homem Muito Abrangente, cito o personagem de Daniel Auteil no
filme A mulher do atirador de facas, que diz: o importante não é o atirador, o importante é o alvo. No
caso do meu atirador de facas, ele faz o papel de um mau atirador – não no real, porque ele é um ótimo
profissional; ele é um mau atirador porque “erra” tudo, cravando as facas todas dentro da figura. Num
regime cotidiano ele teria matado sua pobre assistente várias vezes. Nesse caso, não há problema em
errar, porque o Homem Muito Abrangente não ocupa este espaço, o espaço de seu corpo, o espaço que
lhe é próprio. Antes da performance, escrevo a palavra PELE em todos os lugares que consigo alcançar,
até na própria câmera, no vídeo, nas paredes, no chão, no mundo todo. O título do texto, aliás, é Este
corpo é todo poros.
TR Ele é muito abrangente, mas ele não está dentro dele mesmo, ele está fora.
MM É, ele tem esse dilema da interioridade e da exterioridade porque é um híbrido, um impuro, porque
não tem nada de próprio; e, no entanto, ele é pura exterioridade. Um sujeito que é pura relação.
CB Nessa relação com os personagens conceituais, eu tenho a sensação de que é a primeira vez que
o corpo é implicado diretamente no seu trabalho porque o tempo todo ele está sub-reptício nos
personagens, na questão do movimento, no diálogo. Aí tem efetivamente o atirador.
MM Na verdade, foi a primeira e única performance que fiz em minha vida. Homem Muito Abrangente
é um desenho de 1978, em aquarela e nanquim, que originou as performances de 2002, 2003 e 2006.
Desenho, aliás, que deixei inacabado.
CB Todos os seus trabalhos potencialmente são alcance, se modulam e podem estar aqui, podem estar
no futuro.
MM Eu gostaria muito que isso fosse verdade.
CB Basta calcular quanto demora a probabilidade de viver para sempre.
MM A tal “forma móvel de eternidade”? Mas, enfim, quanto ao desenho de 1978, não terminei porque
perdi o saco de desenhar faquinha com aquarela e o expus todas as vezes que fiz a performance. Em
como A Invasão, que vira A Evasão, que vira ao contrário, pelo lado avesso; ou se vejo uma estação
2002 veio o convite do Instituto Tomie Ohtake, para participar de uma exposição chamada Territórios,
que vira trem, um avião que vira pipa, um jornaleiro que vira bicicleta, um 1 que vira 7 [série CQD,
com curadoria de Agnaldo Farias. Eu sempre estive a fim de realizar esse trabalho, e arrisquei. Você
anos 70], caramba! É tudo a mesma coisa, e tudo parece começar com O Princípio do Fim, que é esse
pode imaginar o terror que senti, não só porque eu estava pela primeira vez fazendo uma performance,
tal desenho que o Gilberto comprou e que foi capa de A Esperança no Porvir. As esperanças no porvir
mas por ter que contar com a boa pontaria de um “mau” atirador de facas em um lugar que não era
produzem histórias do futuro. Chamava-se A Esperança no Porvir, e o que aconteceu, naquele presente,
propriamente o meu circo. Mas o pânico do meu bom atirador, que certamente nunca ouviu falar de
com o esperançoso no porvir? Fui preso! Fiz a revista e fui preso, preso por agentes da elite da repressão
Vitruvio nem de Leonardo, era ainda maior.
brasileira, o SIEX, Serviço de Informação do Exército. Não apenas por conta do conteúdo subversivo da
TR Um atirador de facas que é o Módulo de Destruição.
revista, tudo ali era subversivo, era uma revista clandestina, udigrudi, hippie, da contracultura, mas isso
MM É o que lhe digo, é possível fazer articulações, que me surpreendem o tempo todo. Por exemplo, um
querer e sem saber, a casa do novo presidente da República, Geisel, que antes de ir para Brasília ocupou
trabalho anterior a História do Futuro é uma série de oito desenhos chamada Poder, que é um prenúncio,
uma espécie de esboço de História do Futuro. Mas se eu vou lá atrás e vejo uma série ainda mais antiga
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Trem analisado
desenho, série CQD
1973
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só ganhou importância depois. O que me levou mais imediatamente à prisão foi eu ter invadido, sem
uma casa no Jardim Botânico, onde eu estava passeando e fotografando. Nas definições de História
do Futuro, o Nômade é descrito como um passer-by, um passante, que tem dificuldade em reconhecer
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limites e fronteiras, mas não tem dúvidas quando está sendo alvejado, quando invade o pomar do
recorrendo a certo nonsense. Ou à relatividade, à instabilidade do sentido. Não é uma distorção, é
proprietário da terra para colher maçãs e o sujeito atira nele. Eu nunca havia pensado nisso, nessa nova
uma torção, uma alteração. Isso está em Mallarmé, nos formalistas russos, no Marinneti, nos poemas
articulação, pensei agora: eu fiz A Esperança no Porvir e fui alvejado porque invadi a casa do presidente
dadaístas, enfim. Essa procura da materialidade da palavra, do vocábulo, da sílaba e do espaço da página,
da República.
esse tipo de coisa. Eu fiz essa série de trabalhos, o primeiro um objetinho que se perdeu em algum lugar
LF Para pegar maçã.
versão em Roma, daí o exemplo
MM Para pegar maçã, ou abacaxi, que seja, tudo é muito coerente. Então, eu não preciso me preocupar
de diáfora em italiano que é Il
em dar coerência, porque o mundo é tão absurdo, tão coerentemente nonsensical, as coisas são tão
sogno della mia vita è perdere la
inacreditavelmente eventuais e se demonstram o tempo todo, como CQDs que são demonstrações do
vita, que se pode traduzir como o
absurdo pelo absurdo. Você pode, na matemática, fazer demonstrações por absurdo, só que no caso
sonho da minha vida é perder a
essas demonstrações por absurdo demonstram justa e exclusivamente o absurdo.
vida, ou como o sonho da minha
CB Há a expressão latina reductio ad absurdum; ao absurdo, mas, no seu caso, nada de redução, mas
vida é perder a cintura. No caso,
diferença... não por redução mas por diferença, digamos assim.
são
MM Eu não sei, algumas vezes é preciso reduzir. Uma coisa até da guerra, fique pequenininho, esconda-
exemplo, quadrados que, de
se, reduza-se a sua insignificância, reduza a coisa à insignificância. Se você pensar no readymade, acho
que traduz bem, se você reduzir totalmente a fala própria do mictório você não vai mais ter mictório e
você não vai ter uma fonte, porque uma fonte é um emissor e o mictório é um receptor, ele recebe o
seu xixi. Se você retirar, se você silenciar, reduzir totalmente a fala, a vibração do mictório ou da roda de
bicicleta, você não vai ter possibilidade alguma, quando girar lá os potenciômetros de seus aparelhos
amplificadores, de ouvir os ruídos da significação, porque as coisas adquirem significado pela produção
de ruídos, não pela produção dos belos sons, das eufonias. É como diz o Derrida, você não pode estar
sempre na transgressão, é preciso que aquilo que transgride venha a ser incorporado. É a questão
da tradição, você primeiro trai, de tradire, depois traduz, de tradure, e a coisa ordinária incorpora o
extraordinário. Se a coisa não produz ruído, se a pintura do Matisse da mulher com pincelada verde
não fosse estranhada de forma tão absurda como uma pintura absurda, se o mictório não tivesse...
aliás, repare como era sortudo Marcel Duchamp, o cara foi recusado em todos os salões, com o Nu,
com Fonte.... Então, são trabalhos que produzem atrito, que produzem estranhamento, mais uma vez
a questão da lógica do evento, algo que põe sob suspeita todas as teleologias, todos os projetos, todas
as academias, todas as lógicas sistemáticas, que faz Descartes se retirar para trazer de volta Montaigne,
que nos faz pensar menos em possibilidades e mais em probabilidades. Assim, a redução, o nonsense,
a insignificância, é uma arma importantíssima para você criar o significado, para você silenciar não
totalmente, mas reduzir o barulho do apartamento ao hmmm da geladeira, de modo que você possa
objetos
que
apresentam
situações de similaridade, por
acordo com as circunstâncias,
vibram diferentemente enquanto
ocupam espaços diferentes. O
quadrado, compreendido como
signo, migra, no trabalho de
Roma por exemplo, do formato
das cerâmicas do chão para os
quadrados que eu delimito com
pregos numa placa de metal
perfurada, que ora preenchem ora
não preenchem as perfurações,
dos buracos vazios aos cheios,
de uma placa pendurada a uma
outra apoiada; ou seja, posições
negociadas, diferenças que criam
esse atrito que você talvez esteja
chamando de ruidoso e que...
ouvir o silêncio e, quem sabe, dormir em paz.
Rodolfo Caesar Bem, eu poderia
TR Tem outra operação a que você alude, acho que para falar desse estranhamento, esse atrito no
subtração para você. Você não
sentido, que é a diáfora. Qual é esse trabalho?
MM Na verdade é uma sequência de três trabalhos. Diáfora é uma palavra... aliás, em nossas conversas
com Rodolfo Caesar sobre Raymond Roussel lembramos que ele usava muitas diáforas, palíndromos,
espelhamentos. Diáfora é quando você usa o mesmo vocábulo com significados diferentes, portanto
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deste mundo, de que eu gostava muito porque ele era manual, como um brinquedo. Depois, fiz outra
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só adicionar algum, somar uma
contou,
talvez
esqueceu,
de
que uma vez lhe roubaram uma
Diáfora
chapas perfuradas, pregos
Sala 1, Roma, 1990
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camisa no estacionamento do Sérgio Porto quando íamos fazer o seu Dueto 1 + I [Dueto 1 + I, para
executantes extremamente atentos e isolados um do outro, desenho/partitura de 1978, interpretado por
Rodolfo Caesar e Vania Dantas Leite, 2002].
MM É verdade, mas está desenhado, faz parte da série dos Atentados, como aquele outro, do roubo
das roupas do desenho. 1 atentado + I atentado, e assim, extremamente atentos, vamos seguindo as
partituras.
TR Será que a sua tradução
para evento não é atentado?
MM De certa forma sim,
são atentados, às vezes ao
pudor (rs).
TR Às vezes à lógica, às vezes
à ordem.
Guilherme Bueno Quando
lido
com
o
enciclopédico
universo
dos
seus
trabalhos, penso se ele não
participa
ainda
de
uma
condição “moderna” da pósmodernidade. Dito de outra
maneira: é uma definição
de
pós-modernidade
que,
como o termo assinala, ainda
não descarta seu “índice”
moderno. Em 21 Formas de
Amnésia notei ainda uma
curiosidade que me lembrou
Falo de Cézanne
desenho, colagem
de 21 Formas de Amnésia, detalhe
1988-89
outro projeto seu, O Paraíso
Perdido
de
Milton
M...
achado. Há um dos desenhos,
Assinatura verde de um artista
maduro, que tem um corte
semelhante àquele imaginado
no Paraíso... Para retomar esta
fronteira moderno/pós-moderno que às vezes sinto nos trabalhos, ela não assume ou parte do problema
kosuthiano da definição da arte, só que, ao invés de uma definição universal e especulativa, uma outra
pessoal, aquela justamente da passagem da Arte para a /arte/? Não seria também essa responsabilidade
que nos deixa tão perplexos?
MM Enciclopédico? E mesmo assim pós-moderno? Bem, Diderot pesquisou as propriedades da involuta
21 Formas de Amnésia
instalação, desenho,
colagens
1988-89
30
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do círculo, caso especial das espirais, curvas descritas em Dois burros girando em torno de dois postes
aos quais estão amarrados... Por outro lado, sua noção de máquinas situacionais inspirou Lyotard, que
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a natureza da arte, e que a arte agiria via proposições analíticas, exclusivamente. Essa noção tem um
quê de diagnóstico, de pronunciamento modelar, sobre o ser da arte. A mim – e isso procuro sugerir
por meio de meus ensaios experimentais, ensaios satíricos de um Investigador em Férias que só perfaz
horas extras – interessa mais o excesso de resultados e de respostas do que as justas medidas. Interessa
mais o deslocamento da experiência e dos lugares da experiência do que a comunicação imediata, mais
a ultrapassagem de fronteiras e limites do que as delimitações de território. Interessa mais o exercício
experimental da imaginação (ou da liberdade, como ensaiou Mário Pedrosa) do que a busca de coerência
das proposições analíticas. Interessa mais a munição amnésia1 do que a persistência da memória.
Interessa tanto a assinatura verde quanto o artista maduro.
TR Você concorda com a afirmativa de Joseph Kosuth de que a arte teria tomado para si, na
contemporaneidade, as questões sobre o homem e o mundo nas quais a filosofia teria fracassado?
MM Ever tried. Ever failed. No matter. Try Again. Fail again. Fail better: sátira, com jeito de Samuel
Beckett. Arthur Danto descreve as primeiras décadas do século 20 como a “era dos manifestos”, mas
não inclui Art After Philosophy, que para mim seria o último dos manifestos. Kosuth acredita piamente
em arte, acredita que exista uma função para a arte, qual seja questionar a (verdadeira?) natureza da
arte. Ora, não existe tal coisa; a natureza da arte é justamente não ser verdadeira, desde o mimetismo
cavernoso de Platão, passando pela falsificação da natureza no Renascimento, pela imitatio e pela morte
de Deus, pela mentira nobre em Nietzsche, pela crise da representação, por Benjamin e suas auras
transferidas, por Malraux e seu museu imaginário, por Beuys e seus mitos de origem, por Duchamp
e sua fonte de gerar securas, chegando a nós como uma grande ficção em constante revisão de sua
pretensa identidade de grande narrativa. Arte e filosofia caminham juntas, não necessariamente numa
mesma direção, daí estarem sujeitas a esticamentos, estiramentos, distensões, fraturas mesmo. Mas têm
em comum a característica de serem avessas às aplicações. A filosofia de Kosuth me parece por demais
aplicada, tal qual um manifesto – um aplicativo, propriamente. A arte de Kosuth também é aplicada, mas
me parece, ao contrário do texto e apesar de sua seriedade, uma arte que ri às gargalhadas de si mesma,
Dois burros girando em torno de dois postes aos quais estão amarrados
perseguindo um pássaro que voa das mãos de Denis Diderot (Ceci
n’est pas un conte)
livros artesanais, madeira de balsa, desenho técnico, 1986
foto de José Roberto Lobato
de seu fracasso na busca da tal natureza da arte, de suas risíveis tautologias, como no caso de One and
discorre sobre a condição pós-moderna, a propor a sátira como a mais eficaz estratégia contemporânea.
CB A pergunta do Guilherme diz respeito um pouco a sua relação com história, porque faz referência à
Pois as máquinas situacionais de Diderot, assim como a sátira de Lyotard, partem do princípio de que a
história moderna e pós-moderna, depois ele cita trabalhos específicos, ele faz essa pergunta referenciando
natureza nos mostra não apenas uma mas muitas e diferentes coisas e de muitas e diferentes maneiras.
O paraíso perdido de Milton M achado e Assinatura verde de um artista maduro.
De modo que os artistas, diz Lyotard, evitam os diagnósticos, os pronunciamentos definitivos sobre a
natureza do ser. Isso vale para a arte. E o que fazem os artistas, então? Ensaiam! O ser ou os seres, e
isso vale para a arte, jamais se revelam, e sim apresentam pequenos universos, micrologias, a cada vez, a
cada trabalho. Micrologias con-correntes, que babam e bufam de inveja umas das outras, diz ele. Esses
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Three Chairs. Gosto bastante de seu trabalho, e a leitura de seu texto é fundamental; foi fundamental
para nós traduzi-lo, cultivá-lo e discuti-lo nos anos 70.
MM É outra coincidência divertida, quem sabe outra diáfora. Um cara chamado Milton escreve O Paraíso
Perdido, séculos depois vem outro Milton, chamado Milton M achado (rs...), ora, tem que fazer esse
trabalho! Esse é um trabalho que sempre quis, mas nunca fiz.
ensaios – incompletos, insuficientes, fissurados – constituem a sátira. E a condição para seu acionamento
RC Tem algo também a ver com o corpo, o Cezar até te fez uma pergunta sobre o corpo e eu acho que
e continuidade é a experimentação. A experimentação é separada da experiência por uma distância
aí já tem a coisa corporal no desenho, no desenhar, aliás, muito evidente nesses desenhos recentes que
desregulamentar. Isso parece diferir da ideia kosuthiana de que a função da arte seria a de questionar
você tem feito.
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MM Eu tenho que fazer este trabalho, O Paraíso Perdido de Milton M achado. Quase aconteceu uma
que, mais do que títulos temáticos e de exposições, são demonstrações de alguma ideia subjacente.
vez, a partir de um convite de Agnaldo Farias para fazer uma exposição no Instituto Tomie Ohtake
De uma matemática esquerda, gauche, naturalmente, daí a referência a um “arquiteto sem medidas”.
paralela a A Bigger Splash, uma coletiva de arte britânica na OCA, mas que por algum motivo acabou
Os desenhos a que se refere, e sei que você tem em mente os mais recentes, anacronicamente a bico
não acontecendo. Era um espaço complicado, uma sala muito comprida, alta e estreita, mas muito
de pena sobre papel, são de certo modo improvisações. Nisso alinham-se, pelo menos por enquanto,
conveniente para o trabalho. John Milton era cego, e O Paraíso Perdido foi ditado por ele para uma
com trabalhos que chamo de “vira-latas”, por seu caráter marginal às séries mais sistemáticas. O fato
de suas filhas. Daí que a única iluminação da sala seria por meio de dois lampiões a gás, colocados no
de serem vira-latas não impede que sejam “fora de série”, isto é, que tenham suas qualidades, que
chão, sob as duas iniciais M, uma de cada lado da sala. Seriam a luz dos olhos do poeta. De um lado,
uivem em alto e bom som em noites de lua cheia. Na verdade, estou fascinado por eles, de um modo,
a frase O PARAISO PERDIDO DE MILTON; do outro, na parede em frente, apenas a letra M. O resto, a
digamos, quase psicodélico. Arrisco comentar que não os considero arte, e sim desenhos. Não os
palavra ACHADO, seria depositada em Londres, aos pés da tumba e da estátua de John Milton, que está
subestimo, pelo contrário. Apenas reservo a eles a oportunidade, antes de se tornar arte, de ser “o
enterrado em uma igreja do Barbican Centre, onde, por outra coincidência, já expus, uma individual em
que são”. Arte implica negociações de seus objetos com “sua exterioridade”. Esses desenhos, mas essa
2000. As letras de ACHADO, assim como as demais, seriam confeccionadas em latão polido, dessas de
talvez seja uma característica própria do desenho, são prenhes de interioridade, com vocação de diário,
escrever nomes de edifícios. Uma câmera de vídeo fixa sobre essa palavra transmitiria sua imagem, assim
de escritura, de anotação, de monólogo ensimesmado. Talvez façam boa companhia a meus poemas,
como a do poeta, diretamente de Londres para o espaço da exposição, aqui no Brasil. Se alguém aí do
outra forma de improvisação reclusa com vocação confessional. Usando os termos de sua pergunta,
paraíso estiver ouvindo e quiser patrocinar...
seriam trabalhos com alto valor de uso, aguardando outras valorações que possam resultar de trocas
Sobre Assinatura verde de um artista maduro, é uma das colagens de 21 Formas de Amnésia, feitas
com fragmentos de um desenho que cortei em 1.750 quadrados de 1cm de lado. No caso, são quatro
quadradinhos, com partes de minha assinatura. O Guilherme, com seu olho enciclopédico, indicou algo
progresso. Investimentos, antes dos eventuais revestimentos. Por enquanto, basta a eles e a mim que
sejam desenhos.
que nunca percebi; que algo semelhante aconteceria em Paraíso Perdido..., isto é, a inicial M isolada de
RC Pelo que conheço de seu trabalho, destaco dois aspectos relacionados à música. Um é de cunho
ACHADO pelo corte. A assinatura verde ficaria por conta da cor de fundo, verde para um artista, quem
erudito, que tem a ver com a ars nova do século 14. O outro é vernacular, associando a figura do
sabe, M ADURO.
trovador. No contrapelo da Arte Moderna, a Arte Contemporânea tem uma de suas origens na obra
RC Quem o conhece pessoalmente sabe o valor que você dá às analogias, aos jogos de palavras e
entre imagens, às relações lúdicas e inicialmente desinteressadas mas que sempre adquirem sentidos.
Mas há também em sua arte o lado mais selvagem, vernacular, paisano, que se percebe no abrangente
aproveitamento de trouvailles. Seus desenhos parecem resultar de um processo no qual você, de lápis
ou caneta entre os dedos, às vezes talvez meio embalado pelo ritmo de alguma música, ou pelo som
de Duchamp, que, por sua vez, nunca se esqueceu do dia em que foi exposto à obra de Raymond
Roussel. Logo adiante, a ars subtilior do início do século 15 confirmava esse prenúncio ao modernismo
demonstrando “emphasis on generating music through technical experiment”, cf. o musicólogo Daniel
Albright. Ex.: “Tout par compas suy composés”. (Sou todo composto a compasso, na partitura circular
de Baude Cordier.)
da ponta no papel, vai fabricando linhas que de repente – ou mais lentamente – transformam-se em
Uma espécie de opinião (tácita?), dominante no mundo das artes plásticas, administra a noção de que ela
pequenas células esperando desenvolvimento. A improvisação põe em jogo um erotismo meio especial
seria, de todas as artes, aquela que empreende um projeto reflexivo mais amplo, seja estético, político,
entre os corpos, excitando desde a pele mais fina do tímpano até os movimentos corporais. Não é por
histórico, cultural, etc. Como você se coloca?
acaso que a improvisação teve grande impulso na escrita automática surrealista, movimento do qual
eu considero você fiel e psicodélico leitor. Por que, então, você subestima o valor desse trabalho? Seria
por conta de uma atenção às contingências do mercado? O conceito de obra/objeto é determinante no
processo de avaliação?
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de mercado, de outros julgamentos. Seriam, não ainda obra, mas canteiros, construções, trabalho-em-
MM Eu não sei o que Giotto ouvia em sua vitrola, mas sei que ele tocava, ele também, por partituras.
Se a catedral gótica do século 13 era construída na base de certo empirismo, numa espécie de “pra
cima com a viga, moçada!”, com Giotto – e depois mais ainda com Brunelleschi – o desenho, em sua
acepção de projeto, de design, desígnio mais que desejo, passa a fazer parte do processo construtivo,
MM Não sei se sou propriamente um fiel leitor da escrita automática surrealista, que já me fascinou mais
transformando radicalmente a estrutura produtiva. Por isso era possível a Giotto ausentar-se da produção
na juventude, assim como o psicodelismo; mas desse não nos livramos nunca, uma vez intensamente
direta de algumas de suas obras, mesmo de pintura, desde que seus assistentes seguissem à risca seus
experimentado e bem vivido. Sou muito chegado às improvisações, mas como músico, em minhas
rabiscos e riscos. Com Brunelleschi, o projeto é mandatório. Sem projeto, sem os modelos reduzidos
aventuras jazzísticas ao violão. Mas na produção de arte costumo trabalhar por partitura, ainda que
que o arquiteto construiu, não teria sido possível construir o duomo da Santa Maria del Fiore, em
elas possam surgir depois da execução, como notações do improviso. Geralmente são séries, como
Florença, que ele nem chegou a ver realizado, como aliás quase tudo que projetou. Projeto que, diga-
(1=n) um intervalo, Mundo Novo, Somas e Desarranjos, As Férias do Investigador, História do Futuro,
se de passagem, foi escolhido por concurso. Desejo não ganha concurso. A ars subtilior do século 15
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coincide com o tempo em que a perspectiva era objeto principal do interesse de arquitetos e pintores,
e tal interesse contribuiu para dar ao artista, agora às voltas com o cálculo e a matemática, o status de
profissional liberal. “Gerar obra por meio de experimentação técnica”, traduzindo sua citação, pareceme resultar justamente dessa complexidade. Os mistérios da perspectiva eram extremamente sedutores
para os artistas – lembremos a crítica (injusta) de Vasari a Paolo Uccello, de que teria sido um grande
pintor se não tivesse perdido tanto tempo na companhia de sua amante, a perspectiva. Em Uccello,
até cavalos em uma batalha morrem em perspectiva! Se o caso é o experimentalismo de um Raymond
Roussel, e por tabela um Duchamp, há que acionar outros botões de nossa agilíssima máquina do
tempo, primitiva geringonça que alguém deve ter inventado nos tempos da ars antiqua. Botões que
acionam defeitos, disfunções, engasgos, chabus. Experimentar com a linguagem era mania corrente
entre escritores do início do século 20, na cola de Mallarmé no século 19, tais como o futurista Marinetti,
a balbúrdia desconstrutiva dadaísta, os formalistas russos, companheiros de Malevitch e Tatlin. O recurso
a certas genealogias é sempre salutar, e não custa apontar, como você faz, que a ars subtilior do século
15 prenuncia o modernismo. Mas há que recorrer também às “quebras de paradigmas”, via Thomas
Kuhn, para valorizar mais ainda esses empreendimentos experimentais mais próximos de nós. Sobre a
opinião tácita ou dominante de que as artes plásticas empreenderiam um projeto reflexivo mais amplo,
eu diria que essa eventual amplidão depende e resulta justamente da própria plasticidade, mais do
que propriamente da arte e de suas operações específicas, que podem ser duras. Para lidar com a
perplexidade contemporânea, só um projeto que seja flexível, moldável, adaptativo. Plástico, enfim. Com
a plasticidade da sátira, como sugerido por Lyotard. Não me parece que tal elasticidade seja exclusiva das
artes plásticas, a não ser que você flexibilize o termo a ponto de pouco restar de sua dada identidade.
Não há nada de próprio da arte, a arte nunca é idêntica a si mesma. As operações da arte há muito não
são específicas. Arte é um troço mole, por isso são necessários fios flexíveis para tirar suas medidas.
GF Em um texto de Roberto Pontual de 1976, há uma citação sua: “o desenho tem para mim
essencialmente um sentido: o de trazer ao plano da consciência os rumores que me povoam o mundo
interno. Meus desenhos são cartas que chegam do interior”. Algo que, de certo modo, se pode dizer
de qualquer trabalho de arte. Esse é um período importante de seus desenhos, com projetos, digamos,
ficcionais, com uma lógica de ordem conceitual. Esse viés conceitual permanece em seus trabalhos
posteriores. Como você avalia essa dimensão conceitual em seu trabalho e na produção artística atual?
MM Caramba, eu disse isso? Rumores que povoam o mundo interno? Pelo jeito se aplica mesmo a todo
trabalho de arte, já que Pollock disse mais ou menos a mesma coisa. Mas meu interior não é o mesmo
de Pollock, que nasceu em Cody, Wyoming, e cresceu em Tingley, Iowa. Meu interior é a Tijuca, onde
nasci e cresci, meu exterior Copacabana, que me parecia, quando era menino, algum lugar bacana no
exterior. Não havia ainda túneis separando e unindo essas lonjuras cariocas. A dimensão conceitual
é como um túnel separando e unindo, talvez por isso sua condição subterrânea, de escavação, que
pede mergulhos mais profundos do que conseguem as toupeiras. Animais, por sinal, quase cegos, mas
com olfato muito sensível. Desenho e pintura em condições de igualdade é um trabalho feito com pós
de pastel seco, recolhidos durante a produção de desenhos, ao lado de fragmentos de tinta acrílica
raspados de minhas palhetas de pintura. Algumas vezes os túneis são escavações no papel, outras no
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vidro, às vezes no pó, outras na tinta. Algumas vezes levam a Pollock, outras a Copacabana. Descobri
por acaso, visitando o Louvre, uma provável (humm...) origem dos desenhos de pedra portuguesa das
famosas calçadas cariocas: viriam de uma pintura de batalha pelo já citado Paolo Uccello, na qual o
pintor representou uma bandeira preta e branca quadriculada tremulando em perspectiva. (Micheletto
da Cotignola Envolvido em Batalha, 1450s, têmpera sobre madeira: http://www.wga.hu/). Quem diria
que existem túneis conceituais separando e unindo Florença, Paris, Portugal e Copacabana?
GF Desde 1979 você tem dado aulas, na Santa Úrsula, no Parque Lage e, já há 10 anos, na EBA.
Que transformações você identifica no ensino de arte e na formação dos artistas? Como você avalia a
formação de pós-graduação para artistas?
MM Do Centro de Arquitetura e Artes da Santa Úrsula saíram muitos artistas, já contei mais de 50. Muito
devido à presença ali, nos anos 70 e 80, de Lygia Pape, que me convidou e com a qual tive o privilégio
de trabalhar, por alguns dos 15 anos que lá estive, junto a outros artistas, na cadeira de Plástica, que
tinha um caráter eminentemente experimental. Aliás, é comum artistas terem formação em arquitetura,
que pode levar a muitos caminhos. Talvez a maior transformação seja o fato de que novos e bons artistas
estejam se formando em escolas de arte, no Rio de Janeiro com maior concentração ainda no Parque
Lage, e cada vez mais na nossa EBA, que por décadas afugentou estudantes mais antenados com a
contemporaneidade e menos dispostos às formalidades acadêmicas. Um renitente conservadorismo ainda
impede que a EBA assuma de vez, como deveria e na medida de sua importância universitária, um papel
progressista, de vanguarda, em contato estreito e interessado na produção e na reflexão de excelência,
de modo a participar do debate contemporâneo de forma mais intensa e eficaz. Não que isso não se dê,
mas é pontual. Os recentes concursos, que têm trazido para o corpo docente da escola professores com
esse perfil, vêm mudando, ainda que lentamente, o perfil da própria escola. No âmbito da pós temos
tido, na linha de Linguagens Visuais do PPGAV, destinada a artistas praticantes, cada vez mais alunos
graduados pela EBA, muitos já atuando no circuito profissional, participando de exposições, publicando
livros, ganhando prêmios. Nosso programa obteve o grau 6 nas avaliações da Capes, o que se deve em
grande parte às atuações dos professores e alunos de nossas quatro linhas em circuitos profissionais, não
só acadêmicos. Tudo isso deve ser celebrado. Falando da pós-graduação em artes no contexto nacional,
a proliferação de programas de mestrado e doutorado também é motivo de celebração. Se cabe algum
reparo, nunca procurei disfarçar – ao contrário, sempre manifestei claramente – meu estranhamento em
relação ao formato mais comumente adotado pelos programas de pós-graduação para artistas no país,
nos quais se privilegiam pesquisas de mestrado e doutorado calcadas em e voltadas para a produção
prática do próprio candidato, num exercício autoanalítico e autointerpretativo que considero, em regra,
improdutivo. Sempre que posso, o que procuro fazer com meus orientandos mais dispostos ao desafio
é convidá-los a refletir sobre questões conceituais contempladas em seus trabalhos de artistas, de modo
a definir, antes, o território e, depois, a inserção. Diferente disso é quando o próprio trabalho é tratado
como o território, a partir do qual se buscam eventuais inserções.
MMz Você tem um cartão de visitas do Parque Lage que o apresenta como teórico.
MM É verdade, e isso é curioso. É uma coincidência, outra dessas coincidências. A EAV imprimiu um
cartãozinho trazendo o nome do professor e o núcleo ao qual pertencia. Fizeram então um cartão
em que se lê Milton Machado, Teórico. Eu disse: isso dá pano para manga. Fiz uma série de trabalhos
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com esses cartões, que são muito bonitinhos. Tem o Mondrian teórico, Milton Machado teórico, os
nascimentos e óbitos teóricos. Kosuth teórico, por exemplo, é uma cadeira feita com esses cartões, ao
lado de uma foto dessa mesma cadeirinha e dos verbetes de dicionário com as definições de cadeira e de
teórico: “Teórico – aquele que conhece muito bem os princípios de uma determinada arte, mas que não
a pratica.” Na época em que dava aulas na EAV eu era frequentemente acusado por alguns críticos de
ser um artista excessivamente teórico, o que é uma bobagem... Era uma coisa típica dos anos 80, em que
tudo era emoção, arte nascendo no coração, pintura como sintoma de prazer, essas bobagens todas que
se alardeavam nos anos 80, que falam mais dos anos 80 do que de arte. Havia uma condenação explícita
a artistas dos anos 70, de minha geração, que estariam se metendo em áreas sem competência para
delas tratar, como a matemática, filosofia, política, sei lá mais o quê. O que mais então “não podemos”
discutir? Nos anos 80, eu vivia perguntando isso a meus interlocutores entusiasmados ou inebriados com
a pintura, o prazer, o cheiro da terebintina e tudo o mais. De modo que é um trabalho de fato muito
irônico, que se vale da coincidência incrível de eu ter sido presenteado com um cartão que identificava,
meio sem querer, os excessos de um Milton Machado teórico.
MMz Eu estava lendo seu artigo Dance a noite inteira mas dance direito [in Arte Brasileira Contemporânea
em Textos, org. Ricardo Basbaum, Editora Marca d’Água, Rio de Janeiro 2001], em que aparece o cartão,
e você faz uma análise crítica do sistema, do circuito, dos críticos durante os anos 80 comparando com
os anos 70. Aí eu tenho uma curiosidade: como você vê esse circuito hoje?
MM Produzimos uma arte de muito boa qualidade, discutida em alto nível internacionalmente, e no entanto
nosso circuito interno ainda nos impõe condições muito ruins. A própria universidade, à qual pertencemos mais do
que ela nos pertence, talvez exemplifique isso de forma pontual, com cursos de graduação em arte quase sempre
voltados para uma orientação conservadora, ainda muito calcada nas técnicas, radical e intencionalmente alienada
da discussão contemporânea. Talvez o circuito reflita distorções como essa, pontual mas importante, porque
tem a ver com a própria formação, de artistas e de opinião. Quanto ao circuito profissional, trata-se de questão
igualmente complicada. Nosso circuito, mesmo precário, ou até por isso mesmo, é extremamente complexo, talvez
daí se possa falar não de um circuito, mas de circuitos, no plural, com precariedades concorrentes, algumas vezes
rivais, o que agrava ainda mais seu grau de perversidade. Como é complexa a questão política das alianças que é
preciso fazer e das que não se deveriam fazer mas se fazem, em prol dos pertencimentos, das pertinências, das
adequações, dos favorecimentos, das celebrações institucionais e comerciais. De algum modo, é preciso que os
orçamentos sejam consistentes com os editais. Mas pertence quem diz que não pertence? Consiste quem diz que
não é consistente? Então, essas geometrias mais por tangentes do que por secantes, mesmo que não bastem para
regular o círculo, são reguladoras do circuito. Dance a noite inteira mas dance direito seria um tipo de andamento
servil, que obedece ao compasso, muitas vezes em detrimento da música.
Edição Marina Menezes e Cezar Bartholomeu
Transcrição Priscila Plantanida
NOTAS
1 Ammunition Amnesia foi o texto de contribuição do artista para o catálogo da coletiva Other Modernities
(Cildo Meireles, Foreign Investment, Milton Machado, Yinka Shonibare), The London Institute Art Gallery,
curadoria de Oriana Baddeley e Michael Asbury, Londres 2000, da qual fazia parte o trabalho 21 Formas de
Amnésia. Esse mesmo trabalho foi remontado na exposição Europalia, Bozar, Bruxelas 2011, sessão curada por
Guilherme Bueno.
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HI-FI (alta fidelidade)
mapotecas de aço FIEL
música por Rodolfo Caesar
19a Bienal de São Paulo, 1987
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ESPETÁCULOS DE CIVILIDADE:
modernidade e pós-modernidade no papel-moeda
brasileiro
Amaury Fernandes
identidade nacional
imaginário dinheiro Estado
Analisa as expressões plásticas presentes em duas cédulas comemorativas brasileiras,
emitidas em 1972 e 2000, relativas a grandes festividades cívicas. Busca compreender
de que forma as identidades nacionais predominantes em determinados momentos
históricos podem ser plasmadas em representações do Estado que servem de veículo
para sua divulgação.
Estado nacional é conceito bem recente na história,
assim como os sentimentos de identidade e de
pertencimento nacional. As formas de manifestação
da nacionalidade passam pelos espetáculos de
civilidade, e sua presença no imaginário coletivo
se constrói através dos símbolos oficiais e oficiosos
que os governos produzem e disseminam pela
sociedade, em especial para a comemoração das
SHOWS OF CIVILITY: modernity and postmodernity in Brazilian banknotes | This article
analyzes the plastic expressions in two Brazilian
commemorative banknotes issued in 1972 and
2000 for major civic festivals. It aims to understand
how predominant national identities at certain
historical times can be shaped into representations
of the State that act as vehicles for its publicity. |
National identity, imaginary, money, State.
datas nacionais mais importantes.
O dinheiro é elemento da cultura material anterior aos Estados, mas é parte da construção do imaginário
coletivo que modela o das nações. Inventado no século 6 aC. e presente desde então nas sociedades,
muitas vezes é elemento determinante dos fatos e funciona plenamente como signo. Expressa identidades
nacionais coletivamente construídas, o que o legitima como representação máxima do valor das coisas
materiais e, muitas vezes, das imateriais. Por essa razão, do ponto de vista sociológico, o dinheiro pode
ser compreendido como elemento da cultura material quase ubíquo e que funciona como o principal
signo do valor na cultura contemporânea. Signo universal, apesar de, em algumas de suas formas, ainda
manter características locais.
Anverso e reverso da cédula de 500 cruzeiros
novos, 1972 e cédula comemorativa dos 500
anos do descobrimento do Brasil, 2000. Imagens
capturadas da cédula (coleção pessoal)
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Segundo Simmel1, o dinheiro é “uma dessas
mais de âncora aos sentimentos fundadores do
imagens do mundo que consideramos como a
pertencimento nacional do que de espelho dos
expressão mais adequada dos conhecimentos e
sentimentos dos brasileiros contemporâneos.
sentimentos atuais”. Marx afirma que “a fixação do
Diferentemente, as cédulas brasileiras variam
preço do numerário é da competência do Estado,
muito ao longo do tempo; suas estampas são
assim como o trabalho técnico de cunhagem”, e,
alteradas quase que governo a governo. Tornam-
por essa razão, “o dinheiro adquire um caráter
se narrativas da identidade nacional privilegiadas
local e político, fala línguas diferentes” por vestir
por suas mudanças e, assim, refletem melhor
“diferentes uniformes nacionais”. De acordo
seus desdobramentos.
com o senso comum, o dinheiro parece ser algo
que simplesmente trafega pela sociedade. Quase
nunca há questionamentos sobre sua materialidade
nem se indaga a respeito de sua fabricação
que, assim, acaba anônima. Aparenta surgir
o espetáculo da modernidade no papel-moeda brasileiro
do mundo, os uniformes nacionais, as narrativas
Em 1972 a independência brasileira completa
150 anos; o governo militar promove intensa
campanha publicitária para o evento e decide
emitir cédula em comemoração à data, com valor
facial de 500 cruzeiros novos. Aloisio Magalhães3
é convocado para criar o projeto da nova cédula,
pois já desenhara as que então circulavam e o
de nacionalidade materializadas em duas emissões
logotipo da comemoração.
naturalmente, do que decorre boa parte de sua
silenciosa onipresença, e converte-se em uma
das representações mais fortes das narrativas de
nacionalidade.
Neste artigo analisa-se o discurso visual, as imagens
comemorativas que celebram datas históricas para
a afirmação da brasilidade: o sesquicentenário da
independência e os 500 anos do descobrimento.
Assim com nas primeiras emissões concebidas por
Aloisio Magalhães, o trabalho de valorização da
narrativa histórica oficial é privilegiado também
O dinheiro como símbolo nacional é objeto
nessa, voltada para o conceito de integração. A
privilegiado para análises semiológicas. Alterações
estrutura compositiva é rigidamente estabelecida
em bandeiras, hinos e armas nacionais não são
pela divisão geométrica do espaço plástico em áreas
comuns nos Estados modernos, e a imutabilidade
retangulares que se cortam, e cujas massas visuais
de tais representações dificulta a análise de
amarram a composição; nelas estão acomodados
aspectos mais flexíveis ligados a cada um dos
os motivos figurativos de anverso e reverso.
diferentes momentos históricos; estes são como
representações congeladas de uma identidade
nacional fixada no tempo, elementos que refletem
mais a narrativa fundadora dos Estados. Ainda
que o verde e amarelo ou o “Ouviram do Ipiranga”
efetivamente sejam expressões da brasilidade, são
antes representações congeladas concebidas em
momentos muito distantes no tempo. Servem
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O sesquicentenário da independência:
A iconografia da cédula recorre à plasticidade das
vanguardas geométricas da época e à valorização
da mestiçagem como formação do povo
brasileiro, exaltando e modernizando um discurso
que, do ponto de vista sociológico e literário, está
referenciado principalmente nas teses de Gilberto
Freyre (pernambucano como Aloisio Magalhães
e amigo íntimo de sua família) e nas narrativas
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Anverso e reverso da cédula de 500
cruzeiros novos, 1972
Imagens capturadas da cédula
(coleção pessoal)
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heroicas da brasilidade de Euclides da Cunha,
Graciliano Ramos e Guimarães Rosa.
a geografia representativa do descobrimento mais à
que conforma o povo brasileiro. Não há exaltação
gica da formação do povo brasileiro e um projeto
direita e o mapa da “integração” mais à esquerda;
de personagens históricos ou de elementos da
político, ambos como reforço da importância da
No anverso a cédula representa a integração
racial. Uma sequência de rostos é desenhada
em retângulo horizontal mais escuro que
atravessa a composição; nessa imagem estão
entre eles outros três mapas (denominados “comér-
cultura brasileira como prédios ou obras de
integração nacional, quer seja via misturas étnicas
cio”, “colonização” e “independência”) estampam
arte, mas sim confirmação das fronteiras e da
ou transporte. Afirma-se uma modernidade auto-
as modificações das fronteiras brasileiras.
integração do território de uma nação.
ritária, que corrobora o projeto individual de Aloi-
O da esquerda, primeiro no sentido de leitura,
A cédula é concebida para, de forma inconfundível,
apresenta linhas axiais que cortam o território
ser entendida como documento histórico, o que é
brasileiro; elas representam as vias de transporte
almejado para validar a narrativa historiográfica
(ferroviário e rodoviário) que os governantes
que ela representa ainda mais. Os conceitos
militares prometem construir como parte do
visuais reafirmam essa característica em quase
processo de integração nacional.
todos os detalhes, e as próprias palavras de Aloisio
as diferentes etnias que formariam o povo
brasileiro; a posição é determinada pela ordem
cronológica de sua inclusão na população
brasileira, e acompanha o sentido de leitura,
da direita para esquerda, o que poderia implicar
leitura “evolucionista”. Nessa sequência estão
estampados os rostos que representam índios,
portugueses e negros, e duas figuras com feições
de mestiços. Na composição as cabeças se
apresentam organizadas do perfil exato do índio,
através da qual uma história alternativa”6 pode
ser construída para reafirmar legitimidades e
constituir “um campo de significados e símbolos
ao frontal completo da face mestiça mais à direita
associados com a vida nacional”.7
da composição. A rotação da figura destaca o
As associações visuais com a comemoração
último rosto, em claro favorecimento ao elemento
do sesquicentenário apoiam-se também nas
mestiço, que se torna mais evidente e é reforçado
tipologias. Letras utilizadas nas legendas e dísticos
por ser o único com dois retratos na composição.
oferecem recurso visual igual ao empregue
A ordenação das cabeças sofre críticas do
brasilianista Thomas Skidmore “considerando-a
portadora de todos os preconceitos praticados no
país”.4 Aloisio Magalhães as rebate; apontando a
ordenação cronológica e o conceito historicista do
projeto, afirma: “Não estaria o eminente professor
por Aloisio Magalhães para criar o logotipo
comemorativo da celebração. Sombras são
Magalhães confirmam a intenção de o projeto
provocar, antes de tudo, essa interpretação. Uma
peça de comunicação de massa que reafirma uma
leitura específica da brasilidade.
Tratar o objeto cédula como um objeto de
comunicação mesmo foi o que o Aloisio
descobriu com as primeiras cédulas; ele
falava isso o tempo todo: ‘Depois que eu fiz
o primeiro, a questão da forma para mim se
relativizou muito. A questão é: esse é o objeto
de maior comunicação do país.’9
projetadas, e as faces dos tipos são vazadas, se
Na cédula do sesquicentenário é apresentada
apresentando mais claras. Os fundos de segurança
configuração visual que reforça a concepção
recorrem ao efeito de moiré, como nas emissões
de que o Brasil seria um “cadinho de raças”,
anteriormente projetadas pelo designer.
ideologia que é sobreposta ao projeto político do
governo militar.
transpondo, para análise do nosso contexto
Como emissão comemorativa, a cédula se diferencia
cultural, modelos e estruturas preconceituais
das que compõem a família em circulação menos
Há exaltação do projeto de integração nacional
de onde o problema se apresenta de maneira
por sua estrutura compositiva, bastante próxima
pelas vias de transporte, pelas grandes obras
diversa? Que outra nação usou com naturalidade
da utilizada nas demais emissões do medalhão, do
e pelos projetos de ocupação com atividades
sua formação étnica em objeto de comunicação
que pelas características das imagens calcográficas,
agropecuárias e industriais das áreas menos
tão amplo como o seu próprio papel-moeda?”5
gravadas quimicamente e sem a delicadeza
povoadas das regiões Norte e Centro-Oeste
do trabalho de gravado manual da família em
do país, cujas baixa densidade demográfica e
circulação. A principal diferença, contudo, está na
dificuldade de acesso, crê o governo militar,
narrativa sociológica que apresenta.
podem estimular a cobiça de outras nações.
esquerda, estampa os mapas cartográficos que re-
Não há mais panteão nobiliárquico-militar8 de
No imaginário dessa cédula somam-se as repre-
presentam o país ao longo de cinco séculos, com
heróis, mas sim o enaltecimento da mestiçagem
sentações de uma visão sociológica e antropoló-
No reverso o conceito de integração é aplicado às
fronteiras nacionais. Uma nova sequência, dessa
feita com o sentido cronológico da direita para a
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Mais uma vez há apelo a “uma narrativa
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sio Magalhães de civilização do Brasil pelo design
e o projeto político do governo ditatorial.
Os 500 anos de descobrimento no papelmoeda: do papel ao polímero, o espetáculo
do pós-moderno
Em 2000, quando a chegada de Pedro Álvares
Cabral ao Brasil completa 500 anos, é emitida
nova cédula comemorativa; após muitos anos,
o dinheiro circulante no Brasil tem uma data
histórica como tema de uma denominação.
Várias possibilidades temáticas são debatidas
entre as equipes do Banco Central e da Casa
da Moeda:
O que é que se fez na época? Vários estudos
de tema. Um deles era a língua portuguesa
(...) porque é o elemento que dá unidade
ao Brasil (...) e é também uma herança da
colonização. Só que foi muito difícil trabalhar
o tema língua portuguesa em imagens (...).
Na época (...) não se achou interessante se
adotar [essa linha] para a cédula de polímero
(...) Começou a ficar muito difícil, porque (...)
grande escritor nós temos vários também,
então fica difícil você definir, é uma questão
polêmica, e a gente estava querendo fugir
dessas polêmicas naquele momento também.
Mais uma vez uma questão do momento,
não é? Do governo da época. Então optouse pelo tradicional: Cabral e imagens relativas
ao descobrimento: mapa do Brasil de época,
uma caravela que foi usada como elemento de
segurança e para marca-d’água, os motivos de
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azulejos portugueses que estão nos fundos de
segurança...
Pois é. E do outro lado o que fazer? (...) Pensouse em fazer, depois de algumas discussões, a
história de homenagear tipos brasileiros, mas
não na linha do gaúcho, ou da baiana e tal...
Mas pessoas! Pessoas comuns. E aí então, tem
aqueles rostos atrás que você vê na cédula de
polímero, essa foi a linha da época.10
Na definição do tema e do imaginário pelo Banco
Central, da forma relatada, fica óbvio que há uma
preocupação a atender no projeto da cédula: uma
determinada narrativa do nacional comprometida
com o projeto político do governo da época.
imaginário do país:
Eu sei dessa importância até pelas moedas;
participei dessas moedas de real. O escolhido
pelo povo mesmo foram as figuras históricas,
e as figuras históricas são reconhecidas por
aquele retrato, por aquele ícone (...). Eu usei
a gravura mais antiga que existe do Cabral.12
Provavelmente o ocorrido com a troca do desenho
Durante seu relato Regina Fidalgo aborda o fato de
da família de moedas metálicas tenha influenciado
ter descoberto que a imagem de Cabral tida como
essa opção, uma vez que a eleição popular
escolheu o projeto dos profissionais da Casa da
Moeda do Brasil, que tem seu imaginário baseado
em uma visão mais tradicional do meio circulante
e promove o retorno dos vultos históricos.
A cédula da Thereza Regina agradou em
cheio ao cliente (...). No anverso é abordado
o Brasil ano um, com contorno do mapa
Terra Brasilis, com portrait do descobridor,
com microtexto da carta de Caminha, com
fundos de segurança baseados em perfis de
caravelas e naus, e enfim, todo o anverso é
uma homenagem ao ano um e todo o reverso
é uma homenagem ao ano 500. Afinal de
contas, depois do descobrimento o que
aconteceu é o que está sendo retratado no
reverso (...) a miscigenação, as características
do povo brasileiro como é hoje, através
dos portraits lançados em diversas regiões
do mapa, que é todo fragmentado, para
efetivamente mostrar o resultado dos 500
anos de história, de influências de diversos
povos, áreas de colonização diferentes.11
46
Uma pesquisa bem fundada permite escolha de
elementos visuais afinada com as determinações
do grupo misto. Como relata a autora do projeto,
todo o processo de escolha da iconografia da
cédula é permeado pela mesma lógica utilizada
nas moedas metálicas, havendo, em especial, a
preocupação de manter a vinculação do retrato
utilizado para imagem historicamente aceita no
oficial é produzida bem posteriormente à morte do
navegador. Evidencia-se que a intenção principal
é determinar qual a figura sedimentada no
imaginário brasileiro como representativa do vulto
histórico. Além disso, toda a iconografia remete ao
que a projetista classifica como “livros de história”,
detalhes como o mapa que ladeia o portrait e
mesmo os demais elementos complementares,
todo o imaginário do anverso da cédula é específico
e vinculado ao fato do descobrimento.
No reverso a imagem central é a do mapa atual
do Brasil; esse lado é marcado pela atualidade,
imaginário
centrado
em
vocabulário
visual
mais contemporâneo. Segundo as palavras da
desenhista “coisa de computador, não é? Como
se o Brasil estivesse estourando os pixels assim...
No mapa do Brasil... E o último pixel crescia
e vinha uma pessoa”. Cada pixel carrega uma
representação de brasilidade encarnada em um
tipo físico que é imaginado, nesse momento, como
representativo do cadinho étnico da brasilidade.
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Cédula comemorativa dos 500 anos
do descobrimento do Brasil, 2000
Imagens capturadas da cédula
(coleção pessoal)
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Os pixels estariam em primeiro plano,
assim... Aquelas pessoas... Na realidade
eram cinco quadrados, por causa das cinco
regiões, caracterizando cada região, o tipo...
Não é? Assim: Santa Catarina uma loirinha...
acabou por se chegar à conclusão de que
era melhor não caracterizar mesmo regiões,
só as etnias... Tipos físicos... Eu queria
mesmo assim mais simples... O povo, o povo
brasileiro assim... Que existe... A parte dos
índios é que foi mais complicada...
de
uma
cédula
por
si
só
já
contrasta significativamente com o material
tradicionalmente utilizado para fabricar dinheiro:
o papel-moeda. A textura própria e diferenciada
do papel-moeda, reconhecida pelo tato de
praticamente todos os seres humanos como
sendo a do dinheiro, já substituiu há décadas o
toque do ouro e da prata no imaginário coletivo
como matéria-prima do numerário; só em
nível mais profundo, quase onírico, as moedas
com valor intrínseco reaparecem no imaginário
autoridade muito superior à que uma gravura
descrito pela documentação do Banco Central
atualizada pode ensejar.
como sendo “uma sequência das diversas raças,
Quase todas as imagens do anverso possuem
Em meio aos elementos que promovem a
reforçando a ação do portrait. Por seu tipo de
integração do discurso visual dos dois lados é
configuração visual estão ligadas, no imaginário
interessante perceber que a harmonização da
brasileiro, ao descobrimento e aos primeiros
paleta de cores se dá por contraste da temperatura
tempos da colonização as naus, a Cruz da Ordem
de Cristo, os motivos da azulejaria portuguesa
colonial, mas principalmente o mapa Terra Brasilis.
coletivo como representação da riqueza. O
As figuras humanas retratadas no reverso são
contraste estabelecido, aos dedos mais do que
mais simplificadas, personagens anônimas que,
aos olhos, já denuncia a passagem desse dinheiro
segundo o site do Banco Central, representam
do campo do moderno para o do pós-moderno,
a “pluralidade étnica e cultural” do Brasil. As
pois a proximidade táctil com os cartões de
imagens estão embutidas em fundo com os
visuais sob esse prisma.
quanto a função econômica, e ambos os aspectos
crédito e os smartcards similariza as peças tanto
por ordem de precedência histórica”.
aspectos ancorados na tradição numismática,
Sobre a construção de imaginário que reforce
determinada identidade nacional de interesse
oficial Regina Fidalgo afirma que “a identidade
é uma coisa política” − outros entrevistados,
aliás, também colocam claramente a questão
da escolha de personagens, temas e elementos
contornos do mapa nacional, que faz a ligação
da cor. A cor fria (o azul) nos remete à sensação
de afastamento, e a quente (o laranja), de
proximidade, tanto física como temporalmente.
Uma vez que “as cores quentes parecem convidarnos enquanto as frias mantêm-nos à distância”14
e devido ao azul frio aplicado, o centro visual da
composição do anverso se contrai, e sua presença
dominante auxilia na construção de um foco
visual entre esses elementos. O mapa, com o
de atenção nessa área, que destaca a narrativa
contorno desenhado como imagem digital muito
histórica ali concentrada. No reverso, a expansão
ampliada, atualiza a linguagem gráfica do símbolo
do laranja quente das bordas, em maior área,
O projeto tem como característica principal de
aproximam essa manifestação monetária da
seu discurso visual uma mescla de elementos:
economia virtual, e não das formas tradicionais
os consagrados da representação histórica e
do dinheiro da época do capitalismo industrial.
que representa uma face da identidade da nação;
reforça a sensação de que os pixels se movimentam
São, porém, necessárias reminiscências visuais
nas palavras da projetista Regina Fidalgo, é “o
rumo a um tempo futuro. Assim, a leitura das cores
Brasil em pixels”. A fragmentação da imagem na
intensifica o jogo passado/presente do discurso
composição não é do mesmo tipo das chamadas
plástico da cédula como um todo.
numismática – em especial a representação
figurativa bem realista, o portrait, a marcad’água, a gravura de talho-doce etc. – e outros
extremamente
contemporâneos,
como
o
que repercutam no imaginário coletivo para que
a cédula venha a ser reconhecida como tal; é
artes sequenciais, nas quais cada parte pertence a
Os aspectos cromáticos somam-se à composição
preciso fazer parte de certo conjunto de signos
uma narrativa claramente encadeada, como nos
socialmente partilhados para que esse significante
vitrais sacros ou nas histórias em quadrinhos. Na
novo ancore seu sentido ao sentido tradicional
cédula, o mapa que sustenta a representação das
do dinheiro como representação do valor em si.
etnias brasileiras explode, e as figuras humanas –
Nesse sentido, o portrait de Pedro Álvares Cabral
encapsuladas nos pixels que partem do centro do
Se, entretanto, procuramos compreender quais
torna-se o elemento físico principal para espelhar
mapa – são distribuídas por dispersão por toda a
as “narrativas ideológicas dissimuladas, que estão
uma tradição numismática incorporada ao objeto
composição sem que isso represente uma forma
em curso, em todos os conceitos aparentemente
com ar contemporâneo e tecnológico.
estruturada ou ordenada de narrativa.
que flutuam ao redor do mapa “pixelado”.
O artifício que mais denuncia essa ancoragem é
Nesse aspecto há marcante contraste com
o fato de a imagem escolhida para o portrait ser
e numerais, parecem flutuar nas espirais visuais
a composição da cédula comemorativa do
muito similar a outros já utilizados em cédulas
determinadas pelas composições e pelas cores,
sesquicentenário da independência que teve
soltos pela inexistência das tarjas e rosáceas –
temática idêntica. Nela as faces representantes
desenhos geométricos tão comuns em cédulas
das diferentes etnias integram-se e se apresentam
mais antigas. Dessa forma o anverso/passado e
em composição aglutinadora naquilo que está
o reverso/presente estão igualmente estruturados
próprio polímero no qual a cédula é produzida
ou os pixels como fragmentos visuais que
explodem da composição do reverso e acabam
dominando a cena.
não narrativos”, como os signos visuais e mesmo
13
a base física sobre a qual essa cédula é impressa,
poderemos perceber algumas relações significativas
que esse novo dinheiro pode representar.
48
impressão
brasileiras. A identidade histórica do personagem
Em um primeiro nível de análise a escolha
remete à representação centenariamente aceita,
do
que valida a circulação do signo novo com
polímero
como
matéria-prima
para
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centrípeta do layout do anverso, que concentra os
elementos gráficos de maior interesse nos centros
e deixa a periferia da face ocupada por elementos
cujos significados são menos presentes − em
contraponto à composição centrífuga do reverso,
que expande o tempo através dos elementos
Alguns outros elementos gráficos, como dísticos
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49
e unidos visualmente, apesar de separados pela
e representam, cada um a seu modo, narrativas
ao realizado pelo Banco Central do Brasil em
governamentais,
linguagem gráfica aparentemente contraditória.
visuais sobre a brasilidade oficialmente instituída.
1972, no sesquicentenário. O valor facial da
portuguesa e brasileira ou militares já falecidos,
Próximos, por expressar a mestiçagem como
cédula não é o maior do meio circulante. A
exceção
identidade nacional, diferenciam-se na importância
primeira emissão compõe o meio circulante e é
homenageado em vida.
atribuída a esse ponto, nas opções plásticas que
concebida de forma publicidade da ideologia do
9 João de Souza Leite, designer e um dos principais
constroem seus imaginários e nos vínculos que
governo militar. A emissão do descobrimento é
colaboradores de Aloisio Magalhães, em entrevista ao
reproduz em ambos os lados da cédula. Indicadora
estabelecem com o imaginário coletivo.
fruto da celebração, mas ainda assim espelha as
autor em 2006. Todos os relatos aqui apresentados
das direções de navegação, seu sentido pode ser
No projeto da cédula do sesquicentenário opta-
dificuldades de construção da identidade nacional
são originários das entrevistas realizadas para a
tanto o de representar a guia dos navegadores das
se por esquema rígido de divisão geométrica
na virada do milênio, expõe a fragmentação dos
pesquisa da minha tese de doutorado Uma etnografia
naus portuguesas do anverso/passado quanto dos
das áreas da composição, com aprisionamento
discursos políticos e as tentativas de apropriação
do dinheiro: os projetos gráficos de papel-moeda no
das grandes narrativas do nacional por um governo
Brasil após 1960, PPCIS/Uerj, 2008.
com dificuldades de construir narrativa própria.
10
Um elemento mais do que todos promove
a integração de significados e essa união de
passado e presente: a rosa dos ventos que envolve
a janela transparente e vermelha do polímero e se
modernos navegantes da internet, cujos pixels do
reverso/presente explodem.
geometria; a paleta cromática é muito discreta, e
Por essas razões é possível considerar que o
os contrastes de tom determinam a concentração
imaginário da cédula foi extraído “de um novo
da atenção em determinadas áreas; além disso, a
domínio da realidade das imagens, que é a um
composição visual muito se aproxima das cédulas
só tempo ficcional (narrativo) e factual”,15 no qual
em circulação, não a distinguindo como signo
as imagens de personagens históricos e realidades
novo, mas reforçando a validade de um discurso
passadas e futuras são construídas, tornando-se
visual moderno, já em circulação. Nesse momento
tradicionais e partes de uma invenção da narração
o discurso da integração nacional se estabelece
coletiva do nacional pressentida e representada
pela sucessão e aglutinação dos elementos
através do inconsciente da projetista.
discursivos, e é referendado pelo panteão de
Diferentes, mas iguais
Em 2002 a União Europeia lançou a família
de cédulas de sua moeda, o euro, que se vale
de elementos arquitetônicos para transpor a
barreira das nacionalidades e integrar o meio
circulante do continente sem que haja polêmicas
por conta do emprego de algum vulto histórico.
Recentemente os Estados Unidos iniciaram a
troca de seu meio circulante, e a manutenção das
efígies dos “Pais Fundadores” foi adotada para,
exatamente ao contrário da Europa, reforçar a
identidade nacional estadunidense.
Os discursos apresentados pelas duas cédulas
comemorativas emitidas no Brasil são distintos
50
e subordinação dos elementos figurativos à
feita
Márcia
eram
ao
figuras
presidente
Barbosa
Silveira,
das
nobrezas
Getúlio
Vargas,
funcionária
do
Banco Central, formada em arquitetura, então
coordenadora do grupo misto de trabalho que
NOTAS
resolve as questões relativas aos projetos de cédulas
1 Simmel, Georg. Filosofía del dinero. Granada:
e moedas, em entrevista ao autor em 2006.
Comares, 2003:5. Biblioteca Comares de Ciencia
11 Entrevista ao autor de Glória Ferreira Dias, chefe
Jurídica. Colección Crítica del Derecho, v.44.
da Seção de Projetos Artísticos da Casa da Moeda do
2 Marx, Karl. Contribuição à crítica da economia
Brasil na ocasião, em entrevista ao autor..
política. São Paulo: Martins Fontes, 2003:107.
12 Thereza Regina Barja Fidalgo, desenhista da Casa
Coleção Clássicos.
da Moeda do Brasil, autora do projeto da cédula
heróis nacionais em circulação.
3 Antes da cédula comemorativa do sesquicentenário
comemorativa dos 500 anos do descobrimento do
Na cédula do descobrimento há contraste
a família do padrão cruzeiro novo, que entra em
discursivo entre anverso e reverso. Linguagens
13 Jameson, Fredric. Modernidade singular: ensaio
circulação em 1967 – chamada de família medalhões.
sobre a ontologia do presente. Rio de Janeiro:
4 Leite, João de Souza. A herança do olhar. O design de
Civilização Brasileira, 2005.
Aloisio Magalhães. Rio de Janeiro: Artviva, 2003:210.
14 Arheim, Rudolf. Artes & percepção visual: uma
5 Idem.
psicologia da visão criadora. São Paulo: Pioneira/
em seus aspectos estruturais. A absorção de
6 Hall, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade.
10 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005:55.
arquitetura e urbanismo.
elementos tradicionais, em sua maior parte
respeitando a linguagem estabelecida pela
7 Bhabha, Homi K. Narrando la nación. In Bravo,
numismática, vincula o signo à tradição, em
Álvaro Fernandez (org.). La invención de la nación:
contraponto com seu suporte, que o liga ao
lecturas de identidad de Herder a Homi Bhabha.
meio monetário do século 21.
Buenos Aires: Manantial, 2000:214.
visuais
diferentes
distanciadas
no
da independência Aloisio Magalhães desenvolve
estabelecem
tempo
e
narrativas
integradas
no
plano discursivo pela paleta cromática e pela
visualidade das composições, complementares
Brasil, em entrevista ao autor em 2007.
Edusp, 1980:360. Biblioteca Pioneira de arte,
15 Jameson, Fredric. Pós-modernismo: a lógica
cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática,
2002:283. Série Temas, v.41.
do
8 Até a emissão dessa cédula em 1972 todos os
Amaury Fernandes é professor da Escola de
descobrimento destoam da família existente
personagens que tiveram seus portraits estampados
Comunicação e do Programa de Pós-Graduação
nas cédulas brasileiras, emitidas por entidades
em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFRJ.
Os
aspectos
visuais
da
emissão
no meio circulante, em movimento oposto
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FESTAS REAIS EM PORTUGAL E NO BRASIL COLÔNIA:
organização, sentido, função social
Cybele Vidal Neto Fernandes
festas artistas
artífices barroco
O artigo trata do conceito de festa no mundo português e no Brasil colonial. Analisa
os elementos que fazem parte de sua estrutura, assim como a relação com projeto
único e a relação que mantém com as mais diversas camadas da população. A análise
visa compreender a festa como expressão sociopolítica e cultural.
O cortejo joanino passeou-se com todo o seu
esplendor, por ruas e praças de Lisboa até ao
Terreiro do Paço, onde se apearam e se dirigiram,
debaixo do pálio, levado por membros do Senado
de Lisboa Ocidental (...) Os dias que se seguiram
foram tempos de festa popular. Ao pasmo que as
montanhas de ouro e as luzidias galas provocaram
em todos os que, passivamente, se deixaram
ROYAL FESTIVALS IN PORTUGAL AND COLONIAL
BRAZIL: organization, meaning, social function|
The article addresses the concept of festival
in Portugal and colonial Brazil. It analyzes the
elements that are part of its structure and the
relationship with a unique project and the
continuing relationship with the different layers of
the population. The analysis aims to understand
the festival as a cultural and socio-political
expression. | Festivals, artists, crafts, Baroque.
embalar pelas grandezas dos que iam passando
pelas ruas e praças, seguiram-se dias de touradas
e noites de luminárias e fogos de artifício no Terreiro e no Castelo, enquanto os salões do Paço da Ribeira
se enchiam de bela música.1
Desde a Antiguidade as sociedades organizavam cerimônias de comemorações motivadas por
acontecimentos que fugiam à realidade cotidiana. Essas celebrações podiam referir-se a fatos
extraordinários ligados à vida dos governantes, como nascimentos, mortes, casamentos, vitórias em
batalhas, datas especiais referentes ao calendário anual, ou às festas religiosas. Eram acontecimentos
singulares, impregnados de forte carga simbólica, capazes de sensibilizar a sociedade e promover
momentaneamente uma transformação, uma nova ordem social. A festa criava um sentimento especial
que unia os cidadãos em torno de um objetivo comum, a manifestação da aceitação do motivo da festa,
através das mais diversas formas de expressão.
Prestígio das endoenças, c. 1722, nave da Igreja da Santa Misericórdia,
Salvador, Bahia. Azuleijos de Portugal e Brasil. Revista Oceanos, Lisboa:
Comissão Nacional para as comemorações dos Descobrimentos Portugueses, n.
36-7, outubro 1998-março 1999: 63-64. Foto André Ryoki.
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Foi a partir do século 17, na corte de Luiz XIV,
interna, ou originada de Portugal e outros países,
em torno de um fato extraordinário e ao mesmo
detinham na organização das diversas etapas
na França, que as celebrações das monarquias
fato que impulsionou o surgimento de numerosas
tempo introduziam hábitos e costumes em
da festa, conduzindo o leitor a uma verdadeira
ganharam maior importância em toda a Europa,
vilas e cidades. Essa população deu origem a uma
uma população inculta e sedenta de formação
viagem no tempo, criando também uma espécie
com o surgimento do sistema absolutista e do
sociedade muito complexa, na qual ambição
e informação. Nesse sentido, há relatos que se
de receituário, que a tradição consagrou.
fortalecimento dos Estados Nacionais. Naquela
de enriquecimento era o sentimento comum,
referem às festas em que o papel da Igreja era
época, observou-se a reapropriação de antigas
alimentado pela euforia do ouro cada vez mais
primordial, especialmente na organização das
tradições ligadas às festas gregas e romanas,
abundante. Nesse contexto, foi na região das
procissões, que seguiam a tradição espanhola
para homenagear a figura divina do rei e criar
Minas Gerais que ocorreram os mais grandiosos
e portuguesa, nas quais a sociedade se fazia
os magníficos cenários das festas reais, que se
espetáculos ligados às festas reais e religiosas.3
representar em suas diferentes camadas, como
tornaram cada vez mais elaboradas. Sua realização
Os diferentes grupos da sociedade atuavam em
os religiosos, os homens nobres e de negócios,
promoveu a formação de equipes dos mais diversos
conjunto para a preparação da festa, participando
os militares, as ordens terceiras e as bandeiras de
profissionais, cada vez mais bem preparadas. Esse
com seu trabalho ou patrocinando parte dos
ofício, os homens simples, sendo famosos os relatos
modelo francês espalhou-se por toda a Europa,
festejos, visando sempre a seu brilhantismo. A festa
referentes à Bahia, a Pernambuco, ao Rio de Janeiro.6
previsto. Era comum, por exemplo, a dilatação
graças às notícias e às gravuras que circulavam,
promovia o conhecimento, o congraçamento, a
especialmente sobre a corte de Versailles.2
alegria, o orgulho da cidade.4
Para compreendermos a festa no mundo por-
importância da festa, cujo programa, muito
Essa forma de celebração chegou a Portugal
Foi também no século 18 que ocorreu o
cultural, vamos analisar os elementos de sua es-
e alcançou ampla repercussão no país e nas
fortalecimento das ordens terceiras, instituições
trutura, assim como sua importância como mó-
colônias, onde as festas reais eram celebradas
que trouxeram alterações na ordem social, com
vel de um projeto único e grandioso que, para
Entre os pesquisadores que mais contribuíram
por ordem régia, mesmo que ocorressem muito
suas organizações de caráter religioso e assistencial,
se realizar, dependia do envolvimento das mais
com o estudo do tema festas reais realizadas na
tempo depois do acontecimento que as movera.
pois promovia o orgulho do pertencimento. Suas
diversas camadas da população, do nobre ao tra-
cidade do Porto, Joaquim Jaime Ferreira-Alves
As celebrações dos séculos 17 e 18 tinham ênfase
regras e o cerimonial eram muito respeitados e
balhador comum, cada um realizando seu papel,
conseguiu reunir farta documentação arquivística,
na festa barroca, com todos os elementos que
reconhecidos, funcionando também como um
cuja participação em função do brilhantismo da
analisada em seu trabalho A festa barroca no
traduzissem o dramático, o excesso, o simulacro,
sistema compensatório (uma vez que concedia
festa situa-se, pode-se dizer, no mesmo patamar
Porto a serviço da família real na segunda metade
o êxtase, a luz, a vida, a morte. Portugal soube
alguns privilégios junto ao Senado da Câmara e
de importância.
do século 18. Subsídio para seu estudo.8 Suas
interpretar com entusiasmo esse fenômeno, com
a outros órgãos do governo). A rivalidade entre
pesquisas vão ajudar-nos a compreender melhor
celebrações comemoradas com toda a pompa,
essas instituições resultou em várias iniciativas que
a organização dos festejos, seu programa, a
fosse na capital ou nas demais cidades e vilas
identificavam o orgulho da população em defesa
A organização
execução de seu projeto, o tempo da festa, cujo
do país e das colônias. Esse modelo alcançou o
de suas tradições. As festas, a partir desse contexto,
modelo posteriormente orientou as que foram
Brasil de forma oficial, ou chegou através dos
foram comemoradas com grande entusiasmo e
Todas as ações em favor da festa partiam do
artistas e artífices migrantes. Era inegável que
pompa nas cidades e periféricas.
o brilhantismo das celebrações dependia da
centro para as periferias, procurando unir todas
da festa, mas nem sempre era cumprida dessa
maneira; houve festas no Brasil, por exemplo, que
ocorreram com grande defasagem em relação
ao motivo que as originou, pois, muitas vezes, o
anúncio da festa chegava ao interior com atraso,
e os preparativos não terminavam no tempo
do tempo de preparação em função da própria
complexo, precisava contar com profissionais
especializados, nem sempre existentes na região.
realizadas no Brasil, até o século 19.
as partes num todo comum, isto é, trabalhando
no sentido de dar coerência a sua motivação,
participação de todos, letrados ou não, ricos ou
54
tuguês, em toda a sua expressão sociopolítica e
A etapa de preparação dava-se logo após o anúncio
enfatizando a figura do governante e de todas
A razão da festa ou motivação, o anúncio,
pobres, nobres ou negociantes, representantes da
A festa no mundo português
Igreja, delegações estrangeiras.
A historiografia da arte portuguesa tem-se
previsto o tempo de preparação, convocavam-
A motivação para as festas reais eram nascimentos,
Nas regiões interioranas, em especial em Minas
dedicado ao tema da festa e trazido à luz
se as equipes de trabalho para a execução das
mortes, casamentos, comemorações nacionais
Gerais, no século 18, esses acontecimentos
notícias, documentos, relatos descritivos, com
tarefas programadas.7 Os festejos eram descritos
relevantes. O primeiro passo era o anúncio,
alcançaram enorme sucesso a partir da descoberta
destaque especial para as festas de Lisboa e do
por relatos de pessoas letradas, com licença
feito através de carta régia ao governador das
de ouro e pedras preciosas, levando ao rápido
Porto.
Também no Brasil, desde o século 17, a
oficial para realizar tais narrativas. Esses relatos
Armas, ao Senado da Câmara, ao bispo, que
aumento da população, graças à migração
Igreja realizou festas que congregavam todos
funcionavam como “leitura autorizada” e se
se encarregavam de dar as primeiras notícias.
5
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as suas representações. Anunciada a festa, e
o bando
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Seguia-se depois a divulgação da notícia ao
como diziam os cronistas sobre a cidade do Rio
povo, cuja participação era solicitada. O tríduo,
de Janeiro, no século 19, cujos morros surgiam ao
determinava que a comemoração tivesse pelo
longe, como um verdadeiro presépio, iluminado
menos iluminação por três dias, nas casas e na
pelas velas de cera e lampiões variados. Nos salões
cidade, missas e procissões. O programa da festa
ou construções efêmeras, os lustres de cristal
era geralmente elaborado pelos homens cultos
iluminavam com suntuosidade o ambiente.
da cidade, que se reuniam em suas instituições
e se colocavam a serviço do evento. Jaime
Ferreira-Alves chama atenção para o fato de que
nem sempre os três dias de programação eram
respeitados, pois o entusiasmo do povo levava ao
prolongamento das manifestações da festa por
muitos dias.
Às vezes, buscavam-se efeitos mais espetaculares
com o uso da luz: é o caso dos “transparentes” ou
painéis em papel com imagens ou textos escritos,
que realçavam com o efeito das sombras contra a
luz. As casas se enfeitavam e, ao mesmo tempo,
faziam saudações aos homenageados com
figuras simbólicas, votos ou versos, utilizando
A notícia era divulgada nas ruas pelo “bando”,
textos clássicos, escritos por pessoas de formação
grupo de pessoas que incluía o porteiro, o alcaide
erudita, muitas vezes de difícil entendimento
da cidade, e homens e oficiais. Seguiam em trajes
pelo povo comum, mas recebido pela população
de gala, alguns a pé outros a cavalo, todos bem-
como forma correta de comunicação e saudação
vestidos, a tocar tambores e clarins, chamando
ao homenageado.
a atenção do povo nos dias que antecediam os
festejos anunciando, ao longo do dia, a grata
notícia. O bando tinha, na verdade, duas funções:
levar a notícia e abrir os festejos com os sons, os
trajes coloridos, o desfile, transmitindo a todos
o sentimento da festa, a ser absorvido pelos
habitantes da cidade.
Como exemplo, lembremos a decoração que o
artista inglês Mr. Bouck realizou, no Rio de Janeiro,
por ocasião da festa de aclamação de dom João VI,
quando foi contratado pelo intendente de polícia
Paulo F. Viana para decorar a fachada de sua
residência, no Campo de Santana. Mr. Bouck
criou um aparatoso conjunto, com efeitos dos
Aclamação de D. Pedro I Imperador do Brasil, no
campo de St.ª Anna no Rio de Janeiro
transparentes, com o retrato do rei, ao lado dos
Luz, sons ou ruídos
Elementos imprescindíveis na festa, seu uso era
enfatizado, no sentido de contaminar a cidade
56
Gênios dos Três Reinos, Portugal, Brasil, Algarves,
arrematado com a frase “A indelével memória da
feliz coroação do Augusto Senhor dom João VI”.
e dos navios ancorados no porto, a acordar a
e ornamentações que às vezes ultrapassavam
população e a acompanhar os acontecimentos.10
o espaço dos templos, quando havia cortejo
pelas ruas − os moradores emolduravam as
e manter vivo o espírito da celebração. A luz era
Os sons eram também muito importantes: todos
Os homens ricos e de negócios promoviam bailes
um artifício ao alcance de todos, pois poderia ser
os sinos tocavam acordando a cidade; os navios
e jantares faustosos em suas residências, em que
janelas com colchas e toalhas bordadas, jogavam
utilizada em maior ou menor quantidade, colocada
faziam suas descargas nos portos e baías, os
a música estava sempre presente.
flores, iluminavam suas casas, saíam às ruas para
nas fachadas ou completando os carros e demais
tambores se sucediam nos desfiles, o povo cantava,
arranjos ou as montagens em arquitetura efêmera,
e os múltiplos sons se misturavam, mantendo
que se multiplicavam pelas praças e ruas. Segundo
a animação da festa. Seguindo a tradição, os
Ofícios religiosos: missas, Te Deum, procissões
Jaime Ferreira-Alves, a luz transformava o cenário
relatos sobre as celebrações no Rio de Janeiro
da cidade “vencendo a escuridão e seus medos”.9
testemunham as salvas de canhões das fortalezas
A Igreja tinha participação obrigatória nas festas,
imperial, logo após dom Pedro ser aclamado pelo
O espaço da cidade se prolongava através da luz,
que protegiam a entrada da Baía de Guanabara
e o fazia com grande pompa, promovendo
povo e homenageado com uma salva de 101
cerimônias para as quais eram preparados cenários
tiros, do palacete armado para a celebração, no
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participar da celebração.
Nas solenidades da aclamação de dom Pedro I, o
Te Deum, ou missa solene, foi celebrado na capela
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Campo de Santana. As procissões eram também
quais homens portando vestes e armas medievais
desfiles de grande significação, contando com a
lutavam em defesa de suas convicções religiosas. Às
presença das mais altas representações da Igreja,
vezes esses combates se davam na arena, antes das
do Estado, da sociedade local, além dos grêmios
touradas, animando o povo para a luta final com os
e demais agrupamentos.11 No Rio de Janeiro, a
animais. “Em 1757, João de Almada e Melo, para
mais famosa era a Procissão das Cinzas, que
comemorar o aniversário de dom José I – em 6 de
seguia com grande aparato pelas ruas da cidade
junho – realizou na Cordoaria um exercício militar
abrindo os festejos da Quaresma. Essas procissões
que consistiu no ataque a uma fortaleza...”13
barrocas, nas regiões interioranas, tinham um
tom ainda mais dramático, sendo o ponto alto da
festa nas comemorações em honra da família real
O teatro, as óperas, a música, o canto
ou nas festas do calendário litúrgico.
A programação de gala dos teatros era muito
esperada, principalmente as óperas, por serem
espetáculos mais completos, com o canto e a
Touradas
dança, indumentárias apropriadas, cenários muito
Entre as muitas manifestações que ocorriam na
elaborados. Às vezes as companhias de óperas
festa, eram observados jogos e outras atividades
vinham de longe para promover os espetáculos,
de grande gosto popular, como as “touradas”.
previamente anunciados, e muito aguardados pelo
Eram
muito
povo. Era comum as representações ultrapassarem
aparato, precedidos por desfiles alegóricos, pelo
os dias previstos para a festa, bem como haver
carro de aguar o chão, por música, dança e fogos
necessidade de improvisar a construção de um
de artifício. Não havendo praças de touros, eram
teatro, resultando desses espaços efêmeros,
montadas praças provisórias em algum terreno
por exemplo, o Teatro do Corpo da Guarda e
propício da cidade para abrigar os espetáculos:
posteriormente o Teatro São João, no Porto. No
“Sobre os divertimentos o mais célebre e plausível
Brasil, na aclamação de dom Pedro I, Debret criou
é o combate de touros, ou seja a pé ou a cavalo:
um novo pano de boca, uma alegoria na qual
festa (...) para a qual todos concorrem com
o governo imperial foi representado como uma
grandes gostos, e se fazem com muito aparato e
mulher sentada e coroada, usando túnica branca
magnificência”.12
e o manto ricamente bordado, portando as armas
espetáculos
preparados
com
cenários e carros alegóricos, de difícil execução.
Europa. De modo geral, eram erguidas “varandas”
Desde o mais simples artesão ao mais bem
para as autoridades, muitos arcos de triunfo e
Simulações de batalhas e lutas
formado, como o alfaiate, o ferreiro, o marceneiro,
obeliscos, espaços provisórios para celebrações,
Eram de grande gosto popular as lutas e simulações
o arquiteto, o escultor, o pintor, todos eram
teatros, monumentos ao homenageado. Sabe-se
requisitados para trabalhar em função da festa,
das atividades desses profissionais pelos numerosos
geralmente em espaço de tempo muito reduzido.
contratos que assinavam para esses empreendimentos
do imperador e segurando na mão direita a
Constituição do Brasil.14
de batalhas vitoriosas, revividas através de um
58
Festas do casamento de dom João e dona Carlota Joaquina
em Madri. Muzi (a.,d.,1785). Óleo sobre papel, 37 x 54 cm.
Dom João VI e seu tempo. Lisboa: Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999: p. 175.
Lisboa, Coleção Maria Keil Amaral. Foto André Ryoki
A arquitetura efêmera, os artistas e artífices
verdadeiro teatro de rua. As batalhas sempre
A festa transformava o espaço da cidade, com o
foram apresentadas como espetáculo popular de
recurso das arquiteturas efêmeras. Para realizá-las
sucesso, desde os tempos dos jogos romanos. Em
eram chamados os melhores artistas e artífices,
Portugal, segundo Ferreira-Alves, tinham muita
mão de obra especializada, capazes de responder
aceitação as lutas entre cristãos e mouros, nas
adequadamente pelos numerosos projetos de
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A Igreja, as representações, o Exército, o Senado
da Câmara, todos propunham projetos, cujos
e também pelos frequentes processos referentes à
falta de pagamento aos executantes.15
temas eram buscados no vocabulário clássico e
Por ocasião da aclamação de dom João VI foi
nas gravuras das festas reais, que percorriam toda a
erguida a Varanda da Aclamação, projeto do
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de fogos e profusamente iluminada, o Gênio da
Concórdia coroava um grande painel oval com os
retratos de dom João e dona Carlota Joaquina e,
mais abaixo, protegidos pelo Himeneu, divindade
grega protetora dos casamentos; outros dois painéis,
colocados nas esquinas, tinham os retratos dos
noivos, dom Carlos e dona Maria Tereza. Seis meses
depois ocorreram mais sete dias de festas, a cargo
do intendente de polícia Paulo Fernandes Viana. No
Campo de Santana, foi montado um imenso jardim,
com anfiteatro quase circular, com 348 camarotes,
Fogos de artifício e carros alegóricos
Como a luz e os sons, os fogos de artifício
não poderiam faltar nas festas reais, sendo
utilizados de forma cada vez mais complexa.
Recurso de grande efeito, requeria a contratação
de especialista em sua preparação e estava
associado às encomendas oficiais. Os fogos de
artifício eram geralmente utilizados nas touradas
e desfiles de carros alegóricos, e proporcionavam
momentos espetaculares na festa.
em dois andares. Uma ampla varanda com três
Os carros alegóricos também não faltavam e
janelas dava acesso à chamada Praça do Curro, com
eram sempre muito esperados. Criações muito
cenário tropical de jardim com palmeiras.
originais, eram, de modo geral, oferecidos pelas
Vista exterior da varanda da aclamação de
dom João VI (no Rio de Janeiro)
Pano de boca executado para o Teatro da
Corte, para a representação da cerimônia por
ocasião da coroação do imperador dom Pedro I
arquiteto português João da Silva Muniz. Fazia face
com a frontaria do antigo Convento do Carmo,
abrindo-se para a praça através de 19 arcos,
sendo o central destacado do plano de fundo,
em formato de tribuna. No interior, ricos lustres
de cristal, paredes revestidas de veludo e seda,
e pinturas alegóricas no teto comemoravam as
virtudes de dom João. Ali o rei, sentado no trono,
de uniforme e segurando o cetro − de acordo
com a tradição e o protocolo − foi aclamado,
mas não coroado. A coroa foi depositada em
uma almofada a seu lado, durante a cerimônia.
60
O espaço mágico da festa
A festa se fazia em grandes espaços, fossem os
fechados das residências, edifícios públicos, igrejas e
teatros ou os abertos das ruas e praças. Jaime FerreiraAlves lembra que, na maioria desses espaços, havia a
duplicidade do uso, que se alternava entre o sagrado
e o profano. Geralmente determinada atividade
tinha seu percurso demarcado por um mapa oficial,
e esse espaço era então preparado adequadamente
para tal função, como se pode observar em vários
documentos da época.
A música ficou a cargo da orquestra de músicos
Em 1810, para comemorar o casamento da
austríacos trazidos pela princesa Leopoldina.
infanta Maria Tereza, em uma armação munida
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associações de comércio e homens de negócio,
complexidade da população, do espaço tropical,
Afonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco.
Brasil as Procissões de El Rey ou Procissões Gerais,
e baseavam-se nos temas mitológicos, utilizando
das lutas pela sobrevivência, da forte presença
São Paulo: Editora Perspectiva, 1980; Arantes,
como rezavam as Constituções Primeiras ordenadas
representações
da Igreja, o verdadeiro poder em ação nas terras
Adalgisa. O Triunfo Eucarístico e a universalidade.
pelo Direito canônico, leis e ordenações do Reino e
função do homenageado. Eram construções
da colônia. A festa, como estrutura organizada,
Revista Barroco n.15. Belo Horizonte, 1992.
costume do Arcebispado da Bahia. Flexor, Maria H.
bastante complexas, com figurantes fantasiados
nunca foi estanque, e sofreu mutações ao longo
e recursos de jatos de água, luz, fogo, som. Esses
do tempo, mantendo porém suas características
5 O tema das festas reais vem sendo estudado
desfiles buscavam animar o povo e estimular sua
mais marcantes, em função da glorificação do rei e
imaginação; assim sendo, adotavam também
da fé comum. No Brasil, a festa promovia, ainda, o
a bibliografia ligada à Península Ibérica, pela
temas exóticos, recebidos com entusiasmo, ao
conhecimento através do vocabulário esclarecido
aproximação das culturas espanhola e portuguesa, e
lado do vocabulário clássico, mais comum, sendo
utilizado, dos mecanismos de perpetuação de
seus reflexos nas festas da Corte. Foram contribuições
lembradas a África, a China, as Américas com seus
tradições dos povos, das propagandas de ideias
ao tema: Bonnet Correa, A. Arquitetura efímera.
14 Debret, J.-B. Viagem pitoresca ao Brasil. São
mistérios. No Campo de Santana, comemorando
e ideais de amor à terra, ao governante, à ordem,
Ornatos Y máscaras. El lugar y la teatralidade de
Paulo: Edusp, 1978:326-329.
o casamento da infanta Maria Tereza, desfilaram
como elementos estimuladores das ciências e das
la fiesta barroca. In Teatro y fiesta em el Barroco.
vários carros alegóricos ofertados: 1- comerciantes
artes, como formação da ideia de Brasil.
España e iberoamérica. Barcelona: Ed. El Serbal,
simbólicas
e
alegóricas,
em
barroco.
Disponível
em
ler.letras.up.pt\uploads\
Disponível
em
http-www.ichs.ofop.br-memorial-
trab.2-152. Acesso em 30.8.2011.
12 Ferreira-Alves, op. cit.:24.
13 Ferreira-Alves, op. cit.:26.
15 Para a festa eram convocados artífices e artistas
disponíveis na cidade, obrigados a colaborar
sob pena de multa. Havia trabalho para todos e
seria impossível listá-los aqui. Quando os mestres
3- negociantes de secos e molhados e de louças
NOTAS
ficheiros\7544.pdf. Acesso em 12.9.2011; França,
(Carro da Imortalidade com a dança dos heróis
1 Tedim, José Manuel. Triunfo da festa barroca na
portugueses); 4- artesãos latoeiros, ferreiros,
Corte de D. João V. A troca das princesas. Revista
Lisboa: Livraria Bertrand, 1977.
segeiros, caldereiros (a dança dos mouros); 5-
Barroco, n.19. Belo Horizonte, 2001-2004:121-136.
6 Hansen, João Adolfo. Festas e sociabilidade do
artistas portugueses que estavam no Rio de Janeiro: o
2 Benoist, Luc. Versailles et la monarchie. Paris:
poder real e as festas públicas no Rio de Janeiro
arquiteto João da Silva Muniz, na Aclamação de dom
colonial. São Paulo: Edusp, 2001.
João VI; o inglês Mr. Bouck, no casamento da infanta
carpinteiros que executaram a obra do curro
(danças militares); 6- um grande barco com
bailarinos. O Carro da América representava
Éditions de Cluny a Paris, 1947, 5 V, V II, pranchas
23-31; Garnot, Nicolas Saint Fare. Le décor des
o povo e as terras do Novo Mundo, através de
Tuileries sous le règne de Louis XIV. Paris: Ed. De la
uma montanha sobre a qual uma índia, de pé,
Réunion des Musées Nationaux, 1988.
simbolizando a América, a cabeça coroada com
um cocar de penas coloridas, arco e flecha na
mão, remetia à luxuriante floresta tropical, com
sua rica vegetação, flores e animais. Nesse carro
uma engrenagem fazia jorrar água ao longo do
percurso, refrescando o ambiente.
Esse painel sobre as festas reais no mundo
português revela que a festa é um acontecimento
singular, que desde o passado se manifestou nas
diferentes sociedades como instrumento eficaz
de socialização e perpetuação das tradições.
Muito importante em Portugal, chegou ao Brasil
62
das mentalidades. Interessa-nos mais de perto
1986; Tedim, J. M. A festa e a cidade no Portugal
do varejo e boticários (Carro da América); 2ourives de ouro e prata (a dança dos chineses);
na Europa e em Portugal, inserido na história
O. Procissões na Bahia: teatro barroco a céu aberto.
3 São muito conhecidos os relatos referentes às Procissões
das Cinzas, de Corpus Christi, as entradas de bispos e
principais da Igreja nas cidades, os festejos especiais
das cidades e vilas, como o translado do Santíssimo
Sacramento da Igreja do Rosário dos Pretos, em Vila
Rica, para a Matriz de Nossa Senhora do Pilar, em 1733,
denominado o Triunfo Eucarístico. Essa festa reflete todo
o contexto da sociedade setecentista das Minas e foi
descrita pelo lisboeta Simão Ferreira Machado, em relato
publicado em Lisboa, em 1734. Cf. Fernandes, Luciano
Oliveira. Festa barroca e documento-monumento.
Disponível em www.ichs.ufop.br\memorial\trab2\1521.
pdf. Acesso em 17.9.2011.
e, graças às características da sociedade colonial,
4 Cf. Del Priore, Mary. Festas e utopias no Brasil
foi assimilada de forma enfática, revelando a
colonial. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994; Ávila,
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
José Augusto. Lisboa pombalina e o Iluminismo.
7 Gervásio, Flavia Klausing. Festas para El Rei.
Relatos e símbolos das festividades régias na América
portuguesa setecentista. Belo Horizonte, Dissertação
de Mestrado, UFMG, 2008.
franceses chegaram ao Rio de Janeiro no século 19,
Grandjean de Montigny e Debret trabalharam muito
para as festas da corte. Também são citados os
Maria Tereza; Manoel da Costa, decorador português,
pintor e cenógrafo, que chegou ao Rio de Janeiro
em 1811; Luiz Xavier Pereira, maquinista do Teatro
Real, e muitos outros registrados nos contratos de
encomendas ou que ficaram no anonimato. Fernandes,
8 Ferreira-Alves, J. J. A festa barroca no Porto ao
C.V.N. As construções efêmeras e as transformações
serviço da família real na segunda metade do
dos cenários para as festas e celebrações na Corte do
século XVIII. Subsídios para o seu estudo. Revista
Rio de Janeiro. Anais do CBHA: Rio de Janeiro/Belo
da Faculdade de Letras. Porto, s.d. Disponível em
Horizonte: Comarte, 2009.
ler.letras.up.pt\uploads\ficheiros\2102. Acesso em
30.8.2011.
9 Ferreira-Alves, op. cit.:18.
10 Para descrição completa da cerimônia, ver Souza,
Octavio Tarquinio de. A vida de D. Pedro I. In História
dos fundadores do Império do Brasil. Belo Horizonte/
São Paulo: Itatiaia/Edusp, 3v, 1988.
11 Segundo Maria Helena O. Flexor, passaram ao
Cybele Vidal Neto Fernandes é doutora em
história social da cultura, pós-doutoranda pela
Universidade do Porto, Portugal, e professora do
Departamento de História e Teoria da Arte do
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da
Escola de Belas Artes da UFRJ.
ARTI G O S | CYB E L E V I DAL N E TO FE RN AN DE S
63
A IMERSÃO NO PANORAMA DE VICTOR MEIRELLES
Cristina Pierre de França
imersão panorama
ilusão século 19
Fruto da tese de doutorado A paisagem imersiva: O Panorama do Rio de Janeiro, de
Victor Meirelles e a videoinstalação Fluxus, de Arthur Omar, defendida no Programa
de Pós-Graduação de Artes Visuais da EBA/UFRJ, orientada pela profa. Ana Cavalcanti,
o artigo discute a questão da imersão e sua constituição no Panorama, um meio que
alia tecnologia e entretenimento no século 19.
O século 19 foi intenso no campo da arte, tanto na
Europa quanto no Brasil. Em sua segunda metade,
dois artistas polarizaram a preferência dos críticos
e do público do país, Pedro Américo (1843-1904)
e Victor Meirelles (1832-1903). Formados pela
Academia Imperial de Belas Artes, ambos refletiam
as tensões do meio artístico nacional, de um
lado norteados pelos ensinamentos da Academia
Imperial de Belas Artes, formadora de sua filiação
IMMERSION IN THE PANORAMA OF VICTOR
MEIRELLES | The article discusses the issue of
immersion and its constitution in the Panorama,
a medium that combines 19th-century technology
and entertainment. This paper is the result of
my doctoral thesis − Immersive Landscape: The
Panorama of Rio de Janeiro by Victor Meirelles
and the video-installation Fluxus by Arthur
Omar, presented to PPGAV-EBA/ UFRJ, under the
guidance of Prof. Ana Cavalcanti. | Immersion,
Panorama, Illusion, 19th century.
artística, de outro, pelas novas correntes da arte
europeia com as quais tinham contato, devido ao
Prêmio de Viagem ganho por Meirelles, que o tornou bolsista da Academia Imperial, e à bolsa concedida
pelo imperador a Américo, o que lhes proporcionou longa estada no velho continente.
No caso de Victor Meirelles, essa aproximação das correntes europeias de arte pode ser observada nos
Panoramas, produzidos pelo artista no final do século 19. Essa modalidade artística corresponde a
uma forma específica de representação da paisagem realizada no país, com maior intensidade a partir
da segunda metade do Oitocentos, observada nas representações dos pintores nativos e dos artistas
viajantes que aqui aportavam.
É importante distinguir essa pintura de paisagem, em voga no Brasil do século 19, que representava a
natureza local, do Panorama como invenção. No primeiro caso, as pinturas de panorama podiam ser
Panorama de Mesdag. The Hague. Rotunda
Fonte: Comment, Bernard. The Painted Panorama.
New York: Harry N. Abrams,Inc, 2000: p88
64
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ARTI G O S | CRI S TI N A PI E RRE DE FRAN ÇA
65
realizadas sobre superfícies como papel ou tela
e representada, fundindo o espaço imaginário e
e tinham em comum a ênfase ou o predomínio
o real; a segunda seria do esmaecimento dos
da horizontalidade, que determinava a visada do
aspectos do mundo contingente e da emergência
espectador. Essas representações panorâmicas
das qualidades intrínsecas da representação, que,
apresentavam vistas das cidades a partir de um
artificialmente, criam realidade paralela, a qual
ponto de vista elevado e tendiam a expandir a
pode ser divisada contemporaneamente nas artes
visão a um ângulo mínimo de 180º. Embora
visuais nas instalações e videoinstalações e, no
esse tipo de obra apresentasse a vista estendida
século 19, nos panoramas.
horizontalmente de um local, as dimensões da
obra não eram determinantes em sua fruição
e feitura. Podiam-se encontrar pinturas de
panoramas de dimensões tão reduzidas, que
sua visualização exigia o uso de lupas. No
segundo caso do Panorama, entendido como
meio imagético, as dimensões e a forma circular
ganhavam caráter fundamental, aliadas a uma
série de aparatos mecânicos e técnicos para sua
execução, incluindo a construção de edifícios
circulares para abrigar a tela.
na história da imagem e na história da arte. Nesse
sentido, a presença da virtualidade, observada
na contemporaneidade a partir de tecnologia de
base digital e, ainda, da reconstrução de um local
ou de intervenções em determinados ambientes, é
um aspecto exacerbado da arte que já existia com
o meio de produção manual desde as pinturas
rupestres. Assim, a questão da imersão relacionase à sugestão de ‘presentificação’ da obra, para
tornar a acepção do objeto representado o mais
Produções artísticas do final do Setecentos, os
concreto e real possível para o espectador. Opera-
panoramas representavam locais ou situações
se, então, uma mudança dos estados mentais
determinados
ilusionista,
do público, que apresenta sua capacidade crítica
enfatizada pela dimensão ampliada do tema
proporcionalmente diminuída à medida que a
pintado, configurando a situação categorizada
obra solicita maior adesão de seus sentidos para
como imersão.
a percepção do ambiente no qual está imerso. Há
A imersão é definida como o “ato ou efeito de
uma vedação das instâncias de julgamento do
imergir(-se), de submersão ou de afundar-se,
espectador como consequência de sua adesão à
adentrar-se”.
obra artística na qual está imerso.
1
sob
perspectiva
Nas acepções do termo estão
presentes caracteres reflexivos pelos quais a
imersão é fruto de uma ação voluntária do sujeito
de penetrar, de se deixar absorver, e que assinala
como consequência a ocultação, a subsunção do
sujeito no interior daquilo no qual imerge.
66
Segundo Oliver Grau, a imersão é fato constante
O
ambiente
determinadas
imersivo
necessita
exigências;
deve
cumprir
constituir-
se em local hermético, que veda o acesso a
sua exterioridade, pois fecha-se nele mesmo,
solapando as instâncias de ingresso ao que se
Victor Meirelles. Estudo para Panorama do Rio de Janeiro: morro do
Castelo, c. 1885, óleo sobre tela, 100cm x 100cm. Acervo Museu Nacional
de Belas Artes. VM 003 Doc. 0011
Fonte: Coelho, Mário Cesar. in Victor Meirelles – novas leituras.
Org. Maria Inez Turazzi. Florianópolis Museu Victor Meirelles: Studio Nobel,
2009: p124
Na arte, a imersão seria um estado amplificado,
localiza além do recinto da obra. A interioridade
maximizado da ilusão, que agencia condições
do local se potencializa por focos de apelo
mentais e corporais introdutoras do espectador
que atraem a atenção do público, admitindo
A intenção é instalar um mundo artificial
(...) de um ciclo de afrescos que retrata
mais intensamente na cena e no objeto imagético
a manipulação (em menor ou maior grau) de
que proporcione ao espaço imagético uma
uma sequência temporal de imagens
ali representado. Distinguimos duas operações: a
alguns artefatos de seu interior, que se agregam à
totalidade (...) que preencha todo o campo
sucessivas, essas imagens integram o
primeira seria de fusão das realidades atualizada
vivência real do espectador.
de visão do observador. Ao contrário
observador em um espaço de 360º de
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ARTI G O S | CRI S TI N A PI E RRE DE FRAN ÇA
67
Victor Meirelles. Estudo para Panorama do Rio de Janeiro: entrada da
Barra, c. 1885, óleo sobre tela, 56,7cm x 195,4cm.
Acervo Museu Nacional de Belas Artes. VM 003 Doc. 0006
Fonte: Coelho, Mário Cesar in Victor Meirelles – novas leituras. Org.
Maria Inez Turazzi. Florianópolis/Museu Victor Meirelles: Studio Nobel,
2009: p124 e 125
foi fruto da intensa impressão que eles lhe
causaram em suas viagens à Europa. Na biografia
do pintor, escrita por Carlos Rubens, cita-se Max
Fleiuss para assinalar que, entre a ideia inicial e a
efetiva execução do Panorama do Rio de Janeiro,
decorreram “mais de 17 anos”.5
Ainda em 1884, o artista fazia publicar no jornal
O Paiz um anúncio visando granjear sócios para
ilusão, ou imersão, com unidade de tempo
atenção dividida entre o mundo imaginário e o
e lugar (...) os espaços imersivos podem
real promovida pelos ambientes imersivos. É nesse
ser classificados como variantes extremas
sentido que aos objetos efetivos e materiais se
de mídias imagéticas que, por conta de
agregam outros, da instância imaginária e imaterial,
sua totalidade, oferecem uma realidade
promovendo uma realidade em que se misturam o
completamente alternativa.2
concreto e o sugerido, o matérico e o ideado.
seria “a reprodução em vastíssima tela, de um fato
máquina a vapor ou a luz elétrica, foi patenteado
grandioso da história da pátria”;6 assinala também
pelo irlandês Robert Barker no final do século 18,
seu potencial mercantil e o caráter pedagógico
mais precisamente em 9 de junho de 1787. Como
para desenvolver o patriotismo nos cidadãos
meio de arte, o panorama apresenta algumas
brasileiros. Em 1885, Arthur Azevedo saudava
peculiaridades. Podemos assinalar, entre elas,
a intenção do artista de constituir empresa
para explorar o Panorama do Rio de Janeiro,
Em vez de enganar o olho, enganam-se os sentidos
Nessa
as
a montagem circular das telas, seu caráter de
− trompe les sens.3 Estabelece-se, assim, seu
videoinstalações
lócus
fidedignidade ao tema representado a partir
destacando o patriotismo e a feição comercial
aspecto realístico, uma configuração simuladora
privilegiado dessa intersecção entre os espaços
de uma visada de 360º, sua feição ambiental,
do empreendimento.7 Esse empreendimento
da realidade com graus cada vez mais intensos,
ilusório e efetivo, como um cenário cujos objetos
uma vez que constitui espaço específico em que
mostra uma visão nova no campo da arte, a do
como é o caso das experiências com ferramentas
habitam simultaneamente um lugar concreto, no
o espectador é introduzido, além da questão
artista como efetivo negociante de seu trabalho,
e ambientes informacionais. A imersão formula
qual se ativa a concomitante instância imaginária.
espetacular que carrega.
compreendido
um lugar alternativo que, mesmo por segundos,
Um espaço que existe no aqui e agora da visitação.
suspende a capacidade de discriminação e incute
no público a ideia de estar, de fato, no local
representado. Há um intercâmbio de realidade
em que o que existe além daquele espaço se torna
irrelevante, pois se adensa outra realidade, que
potencializa o aspecto dúbio do real. Interessa-nos,
68
a empresa. Nesse texto, explica que o panorama
Considerado invenção, o panorama, tal como a
neste
momento,
destacar
perspectiva,
se
os
panoramas
constituem
como
e
Victor Meirelles apresenta-nos esses dois tipos de
também
como
espetáculo
relacionado ao lazer − visão que também estará
presente em algumas estratégias para ampliar
Com duração de aproximadamente 115 anos,
panorama. No início de sua carreira, suas produções
o panorama teve seu apogeu durante o século
paisagísticas da cidade de Desterro são pinturas
19. Stephan Oettermann, em seu livro The
panorâmicas e, já no final do Oitocentos, apresenta-
panorama history of mass medium,4 vislumbra
nos os panoramas realizados segundo a concepção
estreita conexão entre a modalidade artística e o
de aparato híbrido entre a pintura de tela e as
Victor Meirelles realizou três panoramas: o da
Oitocentos, período no qual muitas das invenções
execuções mecânicas, e objetos exigidos pelo meio,
cidade do Rio de Janeiro, o das ruínas da Fortaleza
entre a contemplação e o espetáculo de lazer.
de Villegaignon e o da descoberta do Brasil.
Obras da maturidade, os panoramas entraram na
O primeiro trabalho desse gênero realizado por
vida de Victor Meirelles bem antes de sua efetiva
Meirelles foi o Panorama do Rio de Janeiro, em
execução. A vontade de realizá-los provavelmente
colaboração com o pintor e fotógrafo belga Henri
a
tecnológicas envolvendo a visão apresentavam
questão da bipolaridade, da superposição e da
caráter híbrido, entre a pura visualidade, como no
ambiguidade promovida por essa esfera fictícia,
caso da máquina fotográfica, e o espetáculo de
a qual intercambia informações a partir da
representação, como no caso das fantasmagorias.
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o público assistente, envolvendo ações que
chamassem atenção sobre a obra, como pequenas
notas e uma espécie de propaganda do evento.
ARTI G O S | CRI S TI N A PI E RRE DE FRAN ÇA
69
Charles Langerock (1830-1915). Seus estudos
construída em meio a uma floresta, que cede lugar
Os eventos podem ser compreendidos como
apesar do descrédito e da desvalorização artística
iniciais aconteceram em 1885 e foram realizados
às construções que galgam morros, povoando
representação da “expansão capitalista”,
sob
desse meio no país, que nos mostra, aliás, que,
a partir do Morro de Santo Antônio. No início
densamente certas áreas geográficas, como a que
a forma de construção materialmente visível,
apesar de pertencer ao círculo acadêmico, o
de 1886, ambos partiram para a Europa com o
ainda hoje é o Centro da cidade, por exemplo,
similar à construção museográfica, no sentido de
artista também era interessado nas novas mídias
objetivo de executar a pintura, realizada na cidade
enquanto outras, com habitações esparsas,
apresentar visual e sistematicamente os objetos
e na pesquisa da imagem e de sua recepção.
de Ostende, na Bélgica.
são dominadas espacialmente pela natureza. A
constitutivos dessa sociedade que se estava
vista da cidade nos apresenta um domínio das
estabelecendo, com objetivos que não descartam
edificações, das ruas que avançam pelas colinas,
sua função pedagógica. Nessa perspectiva, as
sintoma da civilização num lugar longínquo e
exposições universais seriam “modelos de mundo
exótico, como parte remanescente do ideário
materialmente construídos”14 e, ainda, “veículos
romântico que ainda habitava a mentalidade do
para instruir (ou industriar) as massas sobre os
homem europeu do Oitocentos.
novos padrões da sociedade industrial”.15
mil pessoas. Segundo Carlos Rubens, esse trabalho
A apresentação do Panorama do Rio de Janeiro
Não está ainda devidamente esclarecida a razão pela
serviu como motivação para comentários elogiosos
na Exposição Universal de Paris, em 1889, fazia
qual o Panorama de Meirelles não se encontrava no
a respeito do Rio de Janeiro e do Brasil, assinalado,
parte de um projeto com intenções diversas, entre
pavilhão brasileiro destinado à apresentação das
então, como “nação mais notável da América”.9
as quais podemos citar a exibição de cidades
obras de arte. O pintor teve de custear sua estada
distantes, em países exóticos e dominados pela
na Exposição Universal, fato determinante para que
floresta tropical. Essa temática atendia à ânsia
a obra ficasse fora do eixo principal das visitações
da burguesia europeia por viagens a terras
e, portanto, com menor afluxo de visitantes. Sabe-
longínquas. A obra também era uma tentativa
se, entretanto, que tentou um patrocínio para a
de conciliação entre arte e entretenimento,
manutenção de seu trabalho na capital francesa, de
amadorismo
8
O Panorama do Rio de Janeiro teve sua primeira
exposição realizada em Bruxelas, e a abertura
oficial, realizada com grande pompa, aconteceu no
dia 4 de abril de 1887, contando com a presença
dos soberanos belgas. A exibição alcançou grande
sucesso de público, sendo visitada por cerca de 50
Em 1889, Victor Meirelles partia com seu
Panorama para Paris, com o objetivo de mostrá-lo
na Exposição Universal. Assim como na Bélgica, o
trabalho causou boa impressão aos críticos de arte
e ao público, apesar de não ter repetido o sucesso
original, sobretudo por estar fora do circuito
principal do evento, próximo ao Campo de Marte.
Esse fato foi determinante para que o afluxo de
público a sua obra fosse menor do que o esperado
exemplificada
acordo com carta publicada no jornal carioca Gazeta
pela companhia aberta para a exploração do
capitalismo,
de Notícias e assinada pelo Barão de Teffé.16 Talvez
meio, que tinha como última instância sua
um dos motivos tenha sido a pouca aceitação do
exploração econômica.
meio como atividade artística, devido a seu caráter
pelo artista, que, assim, não conseguiu manter o
Esse trabalho estava relacionado ainda à inscrição
Panorama na capital francesa além do prazo de
do Brasil no circuito das nações com contribuições
duração do grande acontecimento mundial.
para o progresso mundial, pois apresentava o país
Infelizmente, a produção imagética do panorama
só pode ser divisada por meio dos estudos
realizados para sua execução. Tanto esse primeiro
quanto os demais pintados por Victor Meirelles
foram doados pelo artista e sua mulher ao
governo brasileiro em 1902,10 e as gigantescas
telas foram irremediavelmente perdidas nos
galpões do Museu Nacional.11
70
e
13
de entretenimento, ou a crise instaurada no regime
imperial brasileiro.
exemplares da flora e da fauna nativa dos países
Não obstante a participação oficiosa em relação
ao pavilhão brasileiro, o Panorama do Rio de Janeiro apresentava feição propagandista do Brasil,
afirmando a “fórmula país-de-natureza-pródiga/
país-aberto-à-imigração/país pragmático”,17 Nesse sentido, algumas das motivações do artista
estariam em consonância com a esfera governamental, sendo a mais visível o estímulo à imigração de trabalhadores europeus para o Brasil.18
partícipes, incluindo-se também os novos meios
A opção por pintar panoramas feita por Victor
como terra em que a natureza inóspita já teria sido
contida e que o homem comum poderia habitar,
objetivando, com isso, incentivar a imigração,12 e
estando, por esse aspecto, em consonância com
o espírito moderno e industrial que a mostra
trazia à baila. Para isso, contribuíam os diferentes
produtos exibidos, entre maquinarias, invenções e
Os seis estudos que restaram do Panorama do
tecnológicos destinados ao entretenimento das
Rio de Janeiro, de Meirelles, trazem uma cidade
massas, como os panoramas e os dioramas.
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
Meirelles indica que o artista estava sensível às
inovações que as artes plásticas apresentavam,
O Panorama do Rio de Janeiro, pintado em
conjunto por Meirelles e Langerock, teve cobertura
da imprensa bem diversificada. Enquanto alguns
jornais, como a Gazeta de Notícias,19 divulgavam
com frequência a afluência dos visitantes e artigos
com opiniões elogiosas sobre o Panorama, outros,
como o Diário de Notícias, ignoraram a exposição,
a ponto de inexistir cobertura no ano de sua
inauguração e nos meses seguintes. Apesar do
valor e do ineditismo da exposição na cidade,
ela não teve na imprensa o destaque esperado;
jornais importantes nem sequer noticiaram sua
abertura ou fizeram comentários a seu respeito.
Nesse sentido, como em Paris, o evento não
obteve no Rio de Janeiro os resultados esperados
de afluência de público, apesar das inúmeras
tentativas de Meirelles de ampliar o número de
visitantes. Ainda que a afluência do público não
tivesse sido a estimada por Meirelles, o Panorama
foi um acontecimento na cidade, como atesta
artigo de João Ribeiro publicado no jornal O Paiz:
“O Panorama é a great attraction do público
fluminense. Lá fui, era a primeira vez que via um
panorama. Gostei enormemente, imensamente.
Belo e admirável como a própria natureza. Creio
que consumi duas horas de alegre contemplação
(...).”20
Para o espectador, o panorama seria uma
antecipação do espaço cinematográfico, com
suas grandes telas, causando impacto sensorial na
plateia, lugar do espetáculo e do entretenimento.
Outro artigo, sem assinatura, faz detalhada
descrição do Panorama do Rio de Janeiro,
realizado por Victor Meirelles, por ocasião de sua
exibição nesta cidade em 1891:
ARTI G O S | CRI S TI N A PI E RRE DE FRAN ÇA
71
Dedicamos ontem, cerca de uma hora
à contemplação do Panorama da baía e
cidade do Rio de Janeiro, pintados pelos
artistas Victor Meirelles e Langerock e
exposto no antigo largo do Paço. (...)
diante do que está diante de seus olhos. Muitos
essa tendência principalmente nas constituições
descrevem que sua percepção da obra se aproxima
de arte que utilizam as novas tecnologias, como
Proença, Angelo et al. Victor Meirelles de Lima: 18321903. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982:116ss.
do sonho, provocando uma dúvida entre a
cinema 3D ou Caves, que procuram simulação
12 Idem, ibidem:109.
realidade e o apresentado imageticamente.
da realidade ou criação de realidade alternativa
No panorama de que agora nos
ocupamos, o visitante, assim que chega
ao terraço de observação, que tem
apenas cinco metros de elevação, tem a
sensação da vertigem que nos acomete
na altura de cinquenta metros.
artista propõe é facilmente percebida na descrição
A grande tela circular, que apresenta os
últimos planos a grande distância, fundese embaixo sem que lhe perceba solução
de continuidade, nos primeiros planos
reais, sólidos, verdadeiros, cobertos
de palmeiras verdejantes, de arbustos
vivos, de grama verde e viçosa cortada
por veredas e picadas, que despertam
a vontade de descer e observar o que
é realmente verdadeiro e o que é
de algumas interlocuções artísticas de caráter
artisticamente fingido.
arte quando comenta sua visita a uma exposição
minuciosa do artigo publicado no jornal carioca
A Gazeta de Notícias e acima transcrito. Victor
ambiência espacial, mas também uma gama de
proposições sensórias e espetaculares que ativam
a ambiguidade do real.
Janeiro, participa, embora de forma marginal,
de uma prática da modernidade e aproxima-se
fenomenológico.22 Essa perspectiva de uma arte
fundamentada na questão perceptiva é basilar
nas experiências dos artistas europeus e também
se encontra, ainda que de maneira indireta, no
debate de arte nacional no final do século 19.
As impressões acerca das obras de arte que
estavam em circulação apontam para uma forma
de arte multissensorial. Em artigo publicado no
jornal O Paiz, João Ribeiro assinala esse caráter da
NOTAS
15 Idem, ibidem.
1 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de
Janeiro: Ed. Objetiva, 2001:1.576.
16 A Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, 27.1.1891:1.
2 Grau, Oliver. Arte virtual: da ilusão à imersão. São
Paulo: Unesp/Senac, 2007: 30 e 32.
3 Pignoti, Lamberto. Apud Domingues, Diana. As
instalações multimídia como espaços de dados em
sinestesia. Relações corpo/arquitetura/memória e
tecnologia. http://artecno.ucs.br; consultado em
13.8.2009.
4 Oettermann, Stephan. The panorama history of
mass medium. New York: Zone Books, 1997.
5 Rubens, Carlos. Victor Meirelles sua vida e sua
obra. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945:133.
da escola livre, em texto anterior à exibição do
figurativas, lembra-me sempre que elas
7 Azevedo, Arthur (sob o pseudônimo Eloy o Herói),
Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 23.10.1885:1.
Com os segundos e últimos planos
pintados, com os primeiros em relevo e
ornados por árvores, plantas e pedras
verdadeiras com os passarinhos voando
e chilreando por entre as folhas, os dois
artistas apresentam um espetáculo (...)
para ver-se e pelo qual lhes cabem os
se fazem sob a cultura progressiva dos
8 Rubens, op. cit.:134.
21
Panorama na cidade, em que afirma:
Todas as vezes que penso sobre as artes
sentidos. Primeiramente a visão, pela
arquitetura e pela pintura, depois o ouvido,
pela música. E eu imagino que em um
futuro remotíssimo por um refinamento
de artistas blasés haverá uma cultura do
olfato e uma arte do cheiro.23
Nesse texto João Ribeiro, no final do século 19,
Esse impacto, essa confusão dos sentidos
alude à questão da multiplicidade de sentidos
encontram-se
inúmeras
envolvidos na recepção da obra de arte, o que
impressões dos visitantes acerca da obra, um
decerto antecipa algumas condições presentes
misto de surpresa, arrebatamento e incredulidade
na arte da contemporaneidade. Pode-se observar
registrados
nas
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
13 Barbury, Heloísa. O Brasil vai a Paris em 1889:
um lugar na Exposição Universal. Anais do Museu
Paulista. N. Sér. v.4, São Paulo, jan.-dez. 1996:212.
Disponível em www.scielo.br/pdf/anaismp/v4n1/
a17v4n1.pdf, consultado em 31.5.2010.
14 Idem, ibidem.
Meirelles, com seu Panorama da Cidade do Rio de
O espectador deve destinar os dois ou três
primeiros minutos, para preparar os olhos
e o espírito para a impressão por assim
dizer nova (?) que vai sentir.(...)
maiores elogios.
72
A compreensão da dimensão de ilusão que o
e que integram em sua produção não só a
6 O Paiz, 2.10.1884:2.
9 Idem.
10 Os três Panoramas realizados − O Panorama
do Rio de Janeiro, A Entrada da Esquadra Legal em
23.6.1894, observada da Fortaleza de Villegagnon,
e Descobrimento do Brasil − foram doados ao
governo brasileiro em 2.7.1902 por Victor Meirelles e
sua mulher, Rosalia Fraga Meirelles. Museu Nacional
de Belas Artes. Pasta Victor Meirelles.
11 Elza Ramos Peixoto assinala a luta pela preservação
dos Panoramas, exposta em correspondência trocada
entre a Direção da Escola de Belas Artes e o Ministério
da Justiça, ao qual a instituição era subordinada.
17 Barbury. Heloísa. A exposição Universal de 1889
em Paris. São Paulo: Loyola, 1999:216.
18 Além das questões econômicas, estavam em jogo
também alguns aspectos de caráter político e cultural.
19 O número de visitantes à exposição do Panorama
do Rio de Janeiro era frequentemente exibido na
primeira página do jornal A Gazeta de Notícias. Desse
modo, pode-se constatar que era maior nos finais
de semana, principalmente aos domingos. Pode-se,
portanto, deduzir que se tratava de programa de
lazer familiar para a população da cidade.
20 Ribeiro, João. O Paiz, Rio de Janeiro 11.1.1891:1.
21 Artigo intitulado O Panorama do Rio de Janeiro,
sem assinatura, publicado na Gazeta de Notícias, Rio
de Janeiro, 5.1.1891:1.
22 Estas relações podem ser divisadas principalmente
na dimensão auditiva que o artista interpõe em seu
trabalho com o uso dos pássaros, os quais adicionam
à obra um caráter sensorial fundado na amplificação
dos sentidos em prol da intensificação da ilusão de
estar na proximidade da natureza.
23 Ribeiro, J. O Paiz. Rio de Janeiro, 14.12.1890:1.
Cristina Pierre de França é doutora em artes
visuais pela EBA-UFRJ, atua como professora de
artes visuais no Colégio Pedro II e na Faetec, e
de história da arte na Unigranrio.
ARTI G O S | CRI S TI N A PI E RRE DE FRAN ÇA
73
O TICUMBI: imagens e memória da Vila de Itaúnas
Luciana Alvarenga
ticumbi imagem
memória Vila de Itaúnas
O ticumbi se constitui como importante veículo de recriação do passado e de
elaboração do presente. É através dessa expressão que as histórias de uma vila são
construídas e reconstruídas, por meio de cultura que privilegia a oralidade, mas que
se expressa na visualidade, trazendo à tona o imaginário local. O artigo é fruto da tese
de doutorado em Artes Visuais (Imagem e Cultura)/UFRJ A festa e as representações
culturais do ticumbi: imagens e tradições da Vila de Itaúnas, ES, sob orientação do dr.
Rogério Medeiros.
A Vila de Itaúnas1 se localiza no extremo norte do
Espírito Santo, praticamente na divisa com a Bahia.
Um lugarejo bucólico de chão de terra batida, em
que vivem cerca de 2.200 pessoas.2 Nesse lugar,
encontramos grande diversidade de manifestações
culturais tradicionais, como o ticumbi, o jongo, o
alardo, o reis de boi, além de processos produtivos
artesanais como a confecção de cestos, barcos,
TICUMBI: images and memory of the village of
Itaúnas | Ticumbi, an Afro-Brazilian ritual, is
an important event for recreating the past and
preparing the present. It is through this folk
expression that the stories of a village are built
and rebuilt through a culture that appreciates
the spoken word, but which is expressed in the
visuality, bringing to the fore the local imaginary.
| Ticumbi, image, memory, village of Itaúnas.
farinheiras, entre outros. Nesse contexto, a vila se
apresenta como um dos principais ‘palcos’ de representações das tradições3 da região.
Suas origens, porém, se perdem no tempo e na falta de documentos conclusivos e específicos sobre o
assunto. Até meados do século 20, segundo histórias contadas pelos moradores mais antigos, a vila se
resumia a duas ruas principais paralelas à praia − a de baixo e a de cima –, com castanheiras e gameleiras
frondosas, cerca de 200 casas de estuque, rebocadas e assoalhadas, duas padarias, armazéns, um posto
dos correios, uma escola, uma igreja na parte mais alta da vila e um cemitério. As casas eram geminadas
e possuíam quintal nos fundos com árvores frutíferas, hortas, criação de galinhas e porcos. Contornando
o povoado, o Rio Itaúnas era a principal via de comunicação com o mundo, e em suas margens ficavam
os barcos dos pescadores.
Luciana Alvarenga
A roda grande, 2010, arquivo digital
Fonte: Alvarenga, 2011
74
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
ARTI G O S | LU CI AN A ALVARE N G A
75
Há cerca de 70 anos, porém, uma misteriosa e
sutil catástrofe paulatinamente se abateu sobre o
lugar. Tudo começou com uma areia fina a invadir
as ruas, formando pequenos montes junto às
paredes externas das casas. Areia que podia ser
rapidamente removida com enxada ou pá sem
grandes problemas até então. No entanto, ela
começou a entrar portas adentro e se refugiar
sob os móveis. E, sem que isso fosse percebido,
a areia que antes estava restrita à praia, passou
a dominar a paisagem. Enquanto se conseguia
colocá-la para fora das casas e tirar os pequenos
montes das ruas e da praça, a areia foi de certa
forma tolerada. Havia dias, contudo, em que
o vento ficava mais forte, e a areia chegava
com mais volume. Com o passar do tempo, ela
modificou completamente a fisionomia da vila, e
os montes de areia tornaram-se cada vez maiores.
A igreja e o cemitério foram os primeiros a ser
soterrados. Com o passar dos anos, a vila inteira
foi desaparecendo sob as enormes dunas.
Com esse processo, a população precisou tomar
medidas drásticas: alguns foram embora para
outras localidades, outros resolveram recriar e
refundar a comunidade. A mudança da antiga
vila para a nova, iniciada no final da década de
1950, quando os primeiros moradores resolveram
abandonar o lugar, só veio a terminar com a
saída dos últimos habitantes, em 1974, cerca de
15 anos depois. No processo do soterramento,
a vila foi atravessando lentamente o Rio Itaúnas
e se instalou na outra margem. Quando a
mudança não se consubstanciava de modo literal
e físico, utilizava-se a imagem do que havia
antes na tentativa de construir algo semelhante
ou parecido. Junto com cada pedacinho da vila
antiga que passou para a nova vieram as histórias
mágicas e ricas do passado local, além de inúmeras
tradições culturais. Enquanto carregavam seus
móveis e pertences, os moradores levavam sua
história, seus costumes e sua cultura material.
76
Ininterruptamente durante mais de um século,
cada verbete se encontra delegado a um morador
todo mês de janeiro acontece a festa em
da vila. Cada habitante desse lugar, seja idoso ou
homenagem a São Benedito e São Sebastião.
criança, tem uma história para contar, um mito ou
Segundo os moradores mais antigos, celebrar os
uma lenda para lembrar. E o principal veículo lo-
dois santos é também uma forma de precaução, de
cal para essa transmissão de conhecimento é o ti-
impedir que a nova vila e seus moradores sofram
cumbi, que em sua dança, suas letras e sua música
dos mesmos males e maldições que provocaram
carrega histórias e lendas que atravessam séculos.
o soterramento da antiga Itaúnas. A festa é
Algumas dessas histórias vieram da África, outras
uma tradição desde os tempos do Império e da
surgiram nas senzalas e nos quilombos que ali já
escravidão − nem o processo do soterramento
existiram e dos quais há hoje remanescentes; mui-
conseguiu interrompê-la. A homenagem aos
tas falam da vila antiga, outras, da nova.
dois santos está presente no calendário anual
do Município de Conceição da Barra e do Estado
do Espírito Santo. Mas, São Benedito, ou São
Bino, como o chamam seus devotos, possui
calendário à parte, também anual, que se inicia
com os ensaios dos grupos de ticumbi nas roças,
nos meses de outubro e novembro.
No ticumbi, as tradições locais e ancestrais são
relembradas e recriadas infinitamente, ano a ano.
É um processo familiar que passa de pai para filho,
transpondo gerações. No centro dessa história
está São Benedito, padroeiro dos negros, pobres
e oprimidos, cuja imagem que se encontra hoje
na vila se supõe ser a chave para o mistério do
soterramento.5 De acordo com alguns relatos, o
A festa e o ticumbi
A festa de São Benedito e São Sebastião é considerada o principal evento da região. Durante uma semana, ocorrem na vila apresentações, procissões,
missas e diversos tipos de danças e encenações. O
ticumbi é a principal manifestação cultural da festa, representando seu clímax e seu cerne. São os
membros do ticumbi que desencadearão todos os
processos e todas as ações do evento. Em processo
não linear no qual ocorrem vários acontecimentos
concomitantes, a festa se inicia com o último ensaio nas imediações da vila. O evento dura a noite
inteira e culmina com procissão ao longo do rio e
das ruas de Itaúnas.
O ticumbi4 é a denominação dada ao baile de
congos do Vale do Cricaré − região que compreende os municípios de Conceição da Barra e São
Mateus −, manifestação cultural que é sobretudo
uma espécie de enciclopédia virtual local, em que
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
ticumbi é criação de Silvestre Nagô,6 negro escravo
que, para animar seus pares, inventou os folguedos,
Personagens e indumentárias
O ticumbi possui estrutura hierárquica − reis,
embaixadores e secretários − que conta a batalha
mitológica entre o rei de congo, cristão, e o rei
de bamba, pagão. Cada rei possui um secretário,
e ambos possuem corpo de baile composto por
dois guias, dois contraguias e número variável
de congos, que representam os guerreiros das
duas nações. Acompanha-os ainda um violeiro.
Todos se vestem a caráter para a encenação,
respeitando um modelo de indumentária. Usam
longas batas brancas, rendadas, atravessadas por
fitas coloridas. Vestem calças compridas brancas
com ou sem frisos vermelhos. Cobrem a cabeça
com lenço branco e coroa enfeitada com flores
e fitas coloridas. Os reis usam coroas de papelão
ornamentadas com papel dourado reluzente
(às vezes, usam papel prateado), trazem peitoral
espelhado com flores brilhantes e capa comprida,
também florida. Para completar o figurino, carregam
longa espada. Os dois secretários também usam
capa e espada (o que os diferencia dos congos).
rapidamente transformados em modo de lembrar
e reviver o passado, fortalecer laços e identidades,
manter e reconstruir memórias e de mobilização
Enredo
da própria comunidade que o produzia. Essas
Composto por danças e cantos, as danças do
características se mantêm nos dias atuais.
ticumbi simulam o volteio dos guerreiros, numa
Luciana Alvarenga
A procissão, 2010,
arquivo digital
Fonte: Alvarenga, 2011
espécie de combate gingado; os cantos são
trazendo para dentro de seu enredo as histórias
cinematográficas, reprisada ano a ano (como um
do imaginado, mas, sobretudo, do fazer imaginar.
alternados com as falas dos reis e dos secretários,
antigas e atuais da vila.
filme que é exibido uma vez por ano, todos os
O ticumbi se elabora através de meios essenciais
anos), ao mesmo tempo em que é reformulada a
e existentes de sustentação da sobrevida dos
entoados em conjunto pelos congos das duas
cada vez que é apresentada, por quem a assiste
acontecimentos da vila antiga, pois nos envia ao
Imagens e memória da Vila de Itaúnas
e por quem a produz. É nesse contexto que
cenário da imortalização que há em seus afetos
Dos acontecimentos às visualidades presentes
enquanto acontecimento ele se elabora como
e em sua memória. A partir dessa constatação,
forma ‘de estar em lugar de’. E é aí que mais
percebe-se um de seus aspectos fundamentais,
intensamente se revela o imaginário não só através
o comunicacional,8 pelo qual são transmitidas
nações. Acompanha os cantos o som dos pandeiros
e da viola, que dá o tom da música. O enredo
se constitui na rivalidade dos dois reis negros
(congo e bamba) que pretendem realizar a festa de
São Benedito, o que só um deles poderá fazer. Os
secretários levam os desafios de seus senhores ao rei
rival, em ato denominado embaixada.
nos vários dias da festa de São Benedito e São
Sebastião, dos rituais desenvolvidos − do ensaio
geral às dramatizações que ocorrem na vila −,
das indumentárias ao próprio cenário com a igreja
Como não há acordo entre as duas nações, a
ao fundo, todo acontecimento hoje remete aos
guerra é iniciada com luta bailada. Essa guerra
processos, ações, visualidades, características e
inicial é denominada primeira guerra de reis
eventos da festa na Itaúnas que foi soterrada. Como
congo ou guerra ‘sem travá’. Em seguida, com
observado e relatado pela própria comunidade,
a participação dos dois reis, realiza-se a guerra
em comparação entre as imagens fotográficas
travada, na qual os reis batem espadas junto com
da primeira igreja da vila antiga e da igreja atual,
seus secretários no centro de uma roda formada
pode-se afirmar que se trata de recriação,7 e,
pelos congos. Ao final da guerra, o rei bamba
conforme a informação geral dos moradores
é vencido, tendo que, junto com seus vassalos,
mais antigos, essa semelhança não foi casual;
submeter-se ao batismo. Terminando a encenação
muito pelo contrário, houve deliberadamente um
é realizada festa em honra ao rei de congo,
processo de reconstituição da que foi destruída
quando se canta e dança o ticumbi.
pelas dunas no final da década de 1950. Nesse
Uma das características mais interessantes dessa
manifestação é sua função de jornal narrado e
atualizado da localidade em que está inserido.
Como parte dos versos se modifica a cada ano,
o mestre do ticumbi se utiliza desse trecho da
apresentação para informar à comunidade local
assuntos do passado ou da atualidade que
ele considera relevantes. Podem ser temas de
interesse local ou até mesmo de âmbito nacional
ou internacional. É por intermédio dos reis,
de seus secretários e do corpo de baile que os
principais discursos − de ancestralidade, da vila
antiga e da vila nova, da relação com o lugar, de
identidade e de anseios da comunidade − são
expressos em praça pública. É importante destacar
mesmo parâmetro é possível também observar
que, após cerca de 50 anos do primeiro registro
fotográfico existente, além de mais de um século
de registro histórico oral, o ticumbi parece manter
os padrões ritualísticos e de visualidade. De acordo
com diversos depoimentos, falados e escritos, a
indumentária praticamente não sofreu mudanças
durante esse período. A ordem processual dos
acontecimentos também se manteve intacta − da
chegada das pessoas do entorno da vila, passando
pelos ensaios nas roças, pela procissão fluvial e
terrestre com os santos até a chegada à casa do
festeiro −, entre diversas outras características que
se mantêm praticamente inalteradas por mais de
100 anos até os dias atuais na nova Vila de Itaúnas.
que o ticumbi é processo vivo e paradoxal, pois
Assim sendo, o ticumbi pode ser considerado
simultaneamente mantém e recria o passado,
obra estética equiparada a sucessivas cenas
Em cima
Luciana Alvarenga
O ticumbi, 2010, arquivo digital
Fonte: Alvarenga, 2011
78
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
Embaixo
Luciana Alvarenga
A guerra travada, 2010, arquivo digital
Fonte: Alvarenga, 2011
as histórias que se consideram importantes,
Antiga ou nova, para os moradores Itaúnas con-
nesse contexto que ocorre a mediação entre o
que denomina o auto. Os reis de Congo e Bamba,
aquelas que a comunidade pretende mostrar
tinua sendo a mesma, e é nessa festa que po-
espaço, o tempo e o mundo dramatizado da vila
seus secretários e corpo de baile representam os
como parte de seu imaginário e de seu passado
demos perceber isso em toda a sua magnitude.
soterrada. As cenas presentes são refletidas no
guerreiros de duas nações que lutam pelo direito de
(recente ou remoto), mediante transposições
Evidentemente, a vila nova não é a antiga, mas
conjunto das imagens acionadas do passado, um
festejar o São Benedito. Cascudo, L. C. Dicionário do
de narrativas em linguagens multifacetadas,
os moradores, com essa festa anual, querem di-
passado revisitado e revivido durante o ticumbi. Os
folclore brasileiro. São Paulo: Editora da USP, 2001.
presentes nos personagens, nos versos, nas
zer a quem quiser ouvir (na verdade, falam para
discursos sobre o passado celebram as tradições
músicas, nos cenários e nas encenações em
eles mesmos) que as duas são uma só, ou melhor,
que são revivenciadas e reatualizadas no novo
5 A história oral local conta que a antiga vila foi
praça pública. No momento da encenação,
não existem dois lugares, mas passado e presen-
espaço, no tempo de convivência do agora.11
vestem-se apropriadamente, e esse cuidado
te. Assim como acontecia na Itaúnas antiga, essa
com a apresentação visual, de se fazer entender
vila soterrada que emerge simbolicamente a cada
pelo público – tanto os conhecedores como
festa, todos os anos, sem nunca ter deixado de
NOTAS
quem nunca assistiu à festa –, de se mostrar
acontecer, nem no período mais crítico da história
como parte de algo dramatizado, de um rito
do soterramento, São Benedito é louvado e são
1 A Vila de Itaúnas é a sede do distrito homônimo,
tradicional, apresentando um código de decoro
olhado e identificado pelas outras pessoas, ao mesmo
contadas histórias consideradas importantes para
a comunidade, recados são lançados, discussões
são empreendidas a partir da encenação do ticumbi que é, simultaneamente, lugar da oração,
da fraternidade, da crítica, da comunicação e do
tempo está criando uma imagem do que deve ser a
julgamento. É o lugar da família e da comunida-
vila no entender dele ou do grupo a que ele pertence.
de – é seu espelho. Quando a própria comuni-
segundo pauta de entendimento daquilo que “se quer
dar a ver”. No ato de encenar aquele indivíduo está
9
se apresentando da maneira como ele gostaria de ser
A memória da vila antiga está presente em todas
as etapas da dramatização, nos personagens e
indumentárias, e, de forma pungente, nas letras do
ticumbi, que pode, por esse aspecto, ser caracterizado
como algo que realiza a passagem de um lugar a outro
e reidentifica os dois lugares tornando-os um só. É essa
transformação, essa transposição ou, melhor, essa
síntese que caracteriza e identifica a festa como a de São
Benedito e São Sebastião da Vila de Itaúnas. Assim,
o ticumbi nos possibilita compreender aquilo que
produz vínculos e elos, pois é o (re)ligare10 − na Vila
na zona rural do município de Conceição da Barra,
na microrregião do litoral norte do Espírito Santo.
O distrito faz divisa com os distritos de Conceição
da Barra e Braço do Rio, no mesmo município já
Rio de Janeiro:UFRJ, 2011.
antropologia
cerca de 27km da sede do município de Conceição
1997:142-181.
2 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Contagem da população 2007: agregado por
distritos. Rio de Janeiro: IBGE, 2008.
que podem ser promovidas. Enquanto o passado
podem ser auditivas (faladas, cantadas, narradas)
é celebrado em atos dramáticos, no ticumbi se re-
e visuais (expressões corporais, gestos, paisagens,
etc.), referências a elementos que transportam ao
passado. As tradições, porém, estão em permanente
e atualizado.
mudança, de acordo com o contexto e a situação
entre as pessoas envolvidas na festa, ainda que
O passado, dessa forma, é recriado no próprio
tradições são utilizadas como estratégias discursivas
se trate também de ligação com os ancestrais e
acontecimento do ticumbi. O relato do passado,
de continuidade do “passado histórico adequado”.
com sua própria história. E é nesse sentido que
por meio dessa ritualização, traz para o presente,
Hobsbawn, E.; Ranger, T. (Org). A invenção das
o momento também se contextualiza como uma
no momento da enunciação, o tempo e o espaço
tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
celebração e, sobretudo, a representação disso,
– a vila antiga surge reinterpretada, corporificando
quando a vila se ‘transforma’ naquela que já não
manifestações de um passado ainda vivo, que
existe.
deixa de ser passado e passa a ser presente. E é
de Itaúnas essa ligação se constitui no presente,
(ES). Tese de Doutorado. Escola de Belas Artes/UFRJ,
In_________. O saber local: novos ensaios em
3 A noção de tradição pressupõe permanências que
seja, o passado é celebrado, mas também reescrito
do ticumbi: imagens e tradições da Vila de Itaúnas
da antiga, na margem direita do Rio Itaúnas. Dista
sobre os conflitos existentes e sobre as melhorias
escrevem os fatos históricos da Vila de Itaúnas, ou
7 Alvarenga, L. A festa e as representações culturais
8 Geertz, C. A arte como sistema cultural.
do estado, Vitória.
moriais, o ticumbi remete ao futuro, às discussões
presente na memória local até os dias de hoje.
A vila atual está localizada a cerca de 700 metros
da Barra, 53km de São Mateus e 260km da capital
mesmo tempo em que remonta aos tempos ime-
6 Líder revolucionário dos tempos da escravidão
citado e, ao norte, faz divisa com o Estado da Bahia.
imagem, seus valores, seu modo de vida, suas
tristeza. Também ouve sua fala e sua música. Ao
Benedito da antiga igreja, fato promovido pela elite
branca que ali não queria um santo negro.
dade acompanha a encenação, ela enxerga sua
lembranças e sua história. Vê sua alegria e sua
amaldiçoada depois que retiraram a imagem de São
vivida; por meio de processos de ressignificações, as
interpretativa.
Petrópolis:
Vozes,
9 Martins, J. de S. Sociologia da fotografia e da
imagem. São Paulo: Contexto, 2009:14-15
10 Duvignaud, J. Festas e civilizações. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1983.
11 Esse contexto foi apresentado em pesquisa que
trata das representações do passado no culto aos
mártires de Cunhaú realizada por Oliveira, L. A. O
teatro da memória e da história: Alguns problemas de
alteridade nas representações do passado presentes
no culto aos mártires de Cunhaú, RN. Mneme –
Revista de Humanidades. v.4, n.8, abr./set. 2003.
Luciana
Alvarenga
é
professora-assistente
da Universidade do Estado de Santa Catarina.
4 O ticumbi é encenação que acontece na
Doutora em Artes Visuais (Imagem e Cultura) pelo
modalidade de congos ou congada no Espírito Santo,
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da
município de Conceição da Barra, tendo bailado final
Escola de Belas Artes da Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
80
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ARTI G O S | LU CI AN A ALVARE N G A
81
DE QUANTAS PARTES SE FAZ UMA QUIMERA
MAQUÍNICA?
Bete Esteves
arte quimera
máquina maquínico
A partir da investigação transversal e transdisciplinar dos conceitos de Deleuze e
Guattari (esquizoanálise, inconsciente maquínico, máquinas desejantes) e de outras
abordagens críticas, como de Richard Sennett, Vilém Flusser e George Bataille, a
autora disserta sobre as relações entre máquinas e arte apresentando alguns conceitos
que pairam sobre a contemporaneidade maquínica. O artigo é fruto da dissertação
de mestrado Quimeras maquínicas, defendida na UFRJ em agosto de 2011, sob a
orientação do professor doutor Milton Machado.
“O que há por toda parte são máquinas, e sem
qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com
as suas ligações e conexões.”1
A expresão quimera maquínica ou máquina
quimérica reúne os termos máquina, quimera e
maquínico.
Quimera, substantivo feminino, designa um
produto da imaginação, sem consistência ou
fundamento real; ficção, fantasia, sonho ou
projeto geralmente irrealizável. Combinação, real
ou fantástica, de elementos diversos num todo
HOW MANY PIECES MAKE UP A MACHINISTIC
CHIMERA? | Based on cross transdisciplinary
research on the concepts of Deleuze and Guattari
(schizoanalysis, machinistic unconsciousness,
desiring machines) and on other critical
approaches by namely Richard Sennett, Vilém
Flusser and George Bataille, the author writes
about the relationship between machines and
art, addressing several concepts which hover
over machinistic contemporaneity. This article
is the result of her Master’s thesis “Machinistic
Chimeras”, defended at UFRJ, under the guidance
of Prof. Dr. Milton Machado in August 2011. |
Art, chimera, machine, machinistic.
heterogêneo ou incongruente, algo a que falta
unidade, coesão ou coerência. Em alquimia ou na mitologia, quimera é um ser artificial, criado a partir
da fusão de animais: cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente.
Uroboros. 2009-2010. Painel de MDF, caixa de descarga plástica,
tubo de PVC 40mm, tubo de PVC ½ “, perfis de alumínio, polia plástica
de 2”, garrafa PET, molas, peso de chumbo, cordão de náilon, parafusos
diversos, microbomba d’água 127Vac, microinterruptor, cabo AC
tipo paralelo, torneira plástica, acionador de descarga, fio de cobre.
82.5x275X66mm. Coleção da artista
82
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ARTI G O S | B E TE E S TE V E S
83
Quando me referir a quimeras é preciso entendê-
constitutivos de uma máquina – o que abrange
Resumindo, temos, então, “quimera maquínica”,
cosmologia metafísica. Sistemas especificamente
las como criaturas mistas, pelo aspecto fantástico
muitas processualidades –, pode-se afirmar, a
o objeto, a coisa; é quimera adjetivada como
desenvolvidos
e no sentido de sonho, da fantasia que conjuga
seguir, que tudo é máquina.
maquínica, ou “máquina quimérica”, a máquina
entorno. Formais, posto que precisam materializar-
O maquínico, ligado ao desejo por sua vez ligado
adjetivada como quimérica, como híbrida, fusão
se, mas não objetos puramente estéticos ou
de vários. Os termos trabalham aqui em sentido
contemplativos. Máquinas que se fazem, na
múltiplas e não com a falta. O inconsciente como
biunívoco; complementam-se.
sutileza de sua condição desejante, abstratas.
fábrica e não uma cena de teatro. A noção de
Adoto
maquínico convoca à cena o sentido molecular e
para referir-me a um tipo de trabalho artístico
Capaz de dialogar, essa máquina, faz uso dos
não mecânico. Implica pensar a vida a partir de
específico, máquinas ou partes de “máquinas
próprios aparelhos existentes, cyber-científicos,
seu caráter processual, de alterações contínuas.
desejantes”, que encontram também na arte sua
telemáticos, tecnológicos, e pode subverter sua
Para além do fato de que as “quimeras
residência, operam de forma mecânica e também
ordem ao romper sua camada mais superficial.
abstrata, e cujo funcionamento é maquínico,
Não como forma de vingança ou contestação. Ao
e que abrem horizontes de emparelhamento
como o do desejo.
fazer micropolítica na urdidura dos mecanismos
com as quimeras na biologia e na mitologia,
Compostos de máquinas técnicas e artísticas
elas operam de forma semelhante. Na qualidade
que trabalham se utilizando de partes mecânicas
de desejantes, o fazem maquinicamente e por
− lidam com operações concretas −, partes
contágios, não mecanicamente, no sentido
eletrônicas − lidam com impulsos elétricos,
trivial. Isso significa que não obedecem a um
que, destituídos de velocidade, formato ou
sistema de relações progressivas, de causalidades
força, são apenas virtualidades, sensores que
necessárias,
entre
captam informações e as repassam para as partes
termos dependentes, mas funcionam por meio
mecânicas capazes de fornecer produtos, sistemas
A máquina quimérica que descrevo é também
de um “conjunto de ‘vizinhanças’ entre termos
e processos poéticos − e partes orgânicas –
autorreferencial, minha própria produção. Nasce
heterogêneos independentes”, dos quais fazem
interações manuais, perceptivas e sensoriais
da vontade de desaprisionar as coisas do mundo
também o lúdico, o mágico e o movimento
da imaginação. Nesse caso, porém, não mais
personagens
ficcionais
e
imaginários,
mas
criações a partir de organismos reais, “células” de
duas ou mais máquinas que saltam da lenda para
inaugurar territórios. Combinações improváveis,
invenções que brotam da tentativa de semear
poesia, de lançar pequenas faíscas ao relento,
lumen de vaga-lume.
Maquínico é conceito de Deleuze e Guattari −
que aparece em O antiÉdipo, de 1972 − ligado
diretamente ao inconsciente que o concebe
envolvido
com
produtividades
múltiplas.
Inconsciente maquínico é conceito segundo o
qual o inconsciente, diferentemente da concepção
de Freud, é produtivo − e o que ele produz,
acima de tudo, é o real em sua multiplicidade.
O inconsciente é, ele próprio, “máquina de
máquinas”. Reúne qualidades heterogêneas2 em
dinâmica e apresenta um infinito número de
possibilidades de forças. Variações de relações que
dizem respeito ao interior dos corpos, técnicos ou
sociais, microcosmos com seus ritmos, pulsações,
vibrações, “esquizes”, fluxos de cor, peso, forma,
movimento, força, sentido.
desejante, vinculado à ideia de que tudo
máquina,
entende
máquina
como
uma
combinação de corpos e forças, conjunto das
partes que constituem um todo.
84
maquínicas” se encontram no âmbito artístico
automáticas
e
previsíveis
3
parte o homem, ferramentas, coisas e os animais.
Essas máquinas têm por peça tudo que as
atravessa − o homem, o meio social no qual está
inserido e os variados “tipos de fluxo que entram
em conjunção”.
O conceito de Deleuze e Guattari de máquina
é
ao inconsciente envolvido com produtividades
Criadas para funcionar a partir de determinações
que geram indeterminações de movimento, essas
máquinas lúdicas produzem repetição. Não aquela
da máquina que reproduz peças homogêneas
ou funciona destinada à obtenção de resultados
Não
a
são
expressão
gadgets,
“quimeras
maquínicas”
aproximam-se
mais
de
“torções” mecânicas, junção de coisas deixadas
de lado. Versam sobre o brincar de tangenciar
micromundos distintos e gerar miniaturas ou
ampliações brincantes e extraterrestres.
Não são produtos do acaso ou da inspiração de ordem
divina, mas do deliberadamente escolhido para
formar uma combinação improvável “numa ação
dirigida e estratégica” que funda DNAs imprevisíveis.
Montam-se e se desmontam no encontro de funções
para
se
comunicar
com
seu
Máquinas que espreguiçam poeminhas, encontros.
mais sofisticados pode penetrar, aí, um germe
de outra origem, brincar de jogador de dados
que combina novas e armazenadas informações.
Promover desencontros de desiguais, criar rodas
de novas articulações, inventar mundos que
prometam novas formas de pensar, fora da
programação dos canais e das redes.
dos conceitos, dar um jeito de desaprender o
objeto, “desvê-lo”, enlouquecer seu sentido, tirálo dos lugares-comuns em que se encontra no
mundo. Um pouco como diz Manoel de Barros ao
“desacostumar as coisas” ou fazer “inutensílios”,
fazê-lo “pegar delírio”, inverter, brincar com a
lógica tradicional dos objetos e das coisas.
Nasce de tentativas de união de mundos
divergentes, de desajustes, de combinações entre
os muitos possíveis, das circularidades, do último
Se, para algo ser considerado máquina, é preciso
previsíveis, mas repetições de diferenças. É
que se esteja em meio a uma relação de forças que
como se essas máquinas “esquecessem” quase
derivam e são derivadas de ações; se a energia
instantaneamente o produzido e se lançassem a
trocada entre as partes de uma máquina e as
novas produções subsequentes, uma vez que seu
Máquinas que cometem impropérios, metonímias
e orgânico, eletric circus celibatarium dos
relações estabelecidas entre elas são elementos
objetivo é o próprio produzir.
e não metáforas. Nem identificação subjetiva, nem
movimentos. São exemplos a máquina de abrir
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
e rearranjos disfuncionais, da física quântica, da
engenharia reversa,4 da biologia, da eletrônica.
suspiro, do sopro de vida, da existência material
e incorporal, de todos os objetos encontrados no
fundo de meu quintal, em meu mato maquinal
ARTI G O S | B E TE E S TE V E S
85
Conjugam o saber teórico com a execução prática
Podem
e a experiência. Trata-se do dado processual,
celibatárias, à autodestruição, como a máquina
lúdico e efêmero de uma entidade complexa em
La mariée mise à nu par ses célibataires, même, a
constante tensão de experimentação e trânsito de
pintura mais complexa e ambiciosa de Duchamp,8
conhecimentos, que pega o produto de partes e
a principal responsável pela disseminação do
joga dentro de outras, gerando território propício
termo célibataires aplicado às máquinas e à arte.
para o desenvolvimento e surgimento de novas
ideias e práticas, novas maquinações.
Mais do que lúdico, há algo de ambíguo nesses
dois trabalhos, o que é comum em minhas
86
os quais trabalham – nem sempre todos em uma
só máquina.
quimeras maquínicas. Elas se expressam na
Como quimeras, sempre maquinação de vários
lógica invertida do less is more. São conjuntos
que podem ser orgânicos, humanos, mecânicos,
que contrastam peças, traquitanas eletrônicas,
elétricos e eletrônicos. Lidam com a montagem,
elétricas e mecânicas para realizar tarefas
edição de seres distintos, que pode dar-se sob forma
cotidianas, muito simples. Talvez façam muito
literária ou fílmica, embora mais frequentemente
barulho por nada, muita parafernália para
sejam encontradas em materialidade física. Estão
realizar tão pouco quanto o sopro de vida ou o
implicadas com experimentalismo, empirismo,
burburinho dos insetos.
transversalidade e fusão da técnica com a arte.
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
Célibataire significa aquele que se mantém
solteiro,
preservando-se
casto,
improdutivo.
colapsam, dado que só podem lidar com seus
componentes internos, seus funcionamentos,
(Pedersen), 2003, e em Tabernas Desert Run, 2004,
sempre impossíveis, objetos partidos, sonhos
a pedaços de objetos precários encontrados nas
incompreensíveis e mirabolantes.
precário e o caráter mágico do truque.
sobre essas quimeras maquínicas e regimes sob
máquinas
bicicletas de Simon Starling, como Carbon
aspectos, como a movimentação, a montagem, o
Fumus boni5 que desenvolvi entre 2009 e 2011.
as
que variam, por exemplo, do aço carbono das
Fischil and Weiss, que incrementa e combina muitos
Cabe avaliar alguns dos aspectos que incidem
como
Os celibatários, encerrados em si mesmos,
go (Der Lauf der Dinge), 1987, dos artistas suíços
estrelas de palito Allstars e a caixa de fumaça
sujeitas,
Podem constituir-se de diversidades de materiais,
diversas peças da montagem de The way things
Allstars, 2010-2011, instalação; trilho, carrinho, motor, bandejas de
plástico, palitos de dente, gotejador, câmara de segurança, monitor e
Programmable Interface Controller – PIC; Bete Esteves, 300x30x20cm,
coleção da artista
estar
As máquinas celibatárias9 são mecanismos que
nada produzem além da movimentação de
fluxos e projeção de intensidades; são abstratas10
como La Mariée, operam por movimentos e
conexões imaginárias com o uso da linguagem
Como maquínicas funcionam em meio a quaisquer
criptografada, interrompida, de difícil captura;
episódios, banais ou sofisticados, mas sempre
como as da literatura, no romance de Bioy Casares
em conexão com o meio no qual foram criadas
Invenção de Morel ou em Colônia Penal, de Kafka,
e funcionam e com quem as produz, caso das
ou ainda os trabalhos de Francis Picabia (1879-
Rotozazas, 1967, em que Jean Tinguely apresenta
1953), como Fille née sans mère (1916-1917)
uma instalação maquínica composta de uma série de
,pinturas e desenhos com morfologias de peças
engrenagens que inclui o público como participante.
de máquinas nada funcionais.
Trabalham com o dinamismo, a ironia, o lúdico que
Para o conjunto que chamo de quimeras
fazem espreguiçar os sentidos e os estados afetivos.
maquínicas, esse tipo de máquina proveniente da
Podem lidar também com o truque, a maquinação
literatura tem valor por estar conectado ao estado
que não quer ser desvendada por ninguém.
de
São igualmente “marginais”, no sentido de que
muitas vezes dissociam ação do entendimento
ou pensamento, numa espécie de esquizofrenia
produção
ininterrupta,
“esquizofrênica”
que sucede à máquina paranoica e à máquina
miraculante, e com isso estabelece uma nova
relação de produção de quantidades intensivas.
produzida pela quantidade e qualidade de forças,
Essas máquinas podem provocar nascimentos
e alucinações que perpassam suas partes. Como
quiméricos surpreendentes a partir de trilhas
acontece na filosofia Patafísica, criada por Alfred
transdisciplinares. Contam com o fazer do artista,
Jarry, inventor de máquinas na literatura com base
como o de um inventor de trajetórias que passeia
na superação da metafísica e em nova compreensão
além e através dos campos disciplinares, em
do ser, que abole o princípio da não contradição.7
busca de conexões mais completas, sem que haja
6
ARTI G O S | B E TE E S TE V E S
87
domínio único, e, sim, plural, de cooperação entre
(1928) como artista liga seu trabalho à categoria
vários saberes, em entendimento que organiza e
do projeto, às investigações no campo científico
ultrapassa as próprias disciplinas.
e, por conta disso, criou Aparelhos cinecromáticos
Ao incorporar em suas criações o pesquisador,
o tecnólogo, o hacker, o cientista e o inventor,
tanto o artista ajuda a ativar e promover a arte
rumo a novas perspectivas como a própria
pesquisa artística esbarra em respostas, variações
ou mesmo soluções científicas e tecnológicas que
ampliam o processo de pesquisa para além dos
recônditos dos laboratórios.11
Acredito na fertilidade e contaminação positiva
que pode haver na assimilação da pesquisa pelos
diversos campos de atuação no trabalho artístico e
que a ideia de invenção, seja ela plástica, mecânica
ou industrial, esteja no cerne de toda criação.
Concordo com Guy Brett quando afirma que artistas
e cientistas criam modelos do universo, mesmo que
intuitivamente, mas “nem por isso menos válidos
ou menos formas de conhecimento”.
algo para além do estático, que implica tempo
e espaço. Enfim, algo inclassificável naquele
momento da história da arte (1949-1951). Sobre
Palatnik, escreve Luiz Camillo Osorio:
Opera na produção de Palatnik a tensão
entre o devir poético e devir tecnológico,
não há nostalgia humanista nem recusa do
futuro tecnológico, o que há é uma vontade
de inserir alguma potência de invenção, de
delírio e de graça nos usos e hibridações com
a tecnologia e nesse sentido a intimidade
com o interior das máquinas e seus processos
de funcionamento é fundamental.12
A inquietação experimental de inventor, o rigor
adquirido no meio artístico e o contato fácil com
as tecnologias transformaram não só o ateliê
de Palatnik em oficina artística experimental de
sobre ciência e tecnologia, e também ciência não
ponta para a época, mas também inseriram novo
tem ligação estreita com estética ou poética.
formato de fazer e pensar arte adaptada à nova
Podem acrescentar-se mutuamente e estabelecer
era, aos novos equipamentos e às novas mídias.
paredões que as separam; irrigar-se mutuamente
através de fluxos intercambiáveis, sem que haja
impedimentos ou perdas de desenvolvimentos em
ambos os campos.
Máquinas de fumaça, 2010-2011; duas caixas acrílicas de 65x50cm,
membrana plástica, reservatório de líquido, máquinas de fumaça,
disparador, solenoide e Programmable Interface Controller − PIC, coleção
da artista
na pesquisa de novos materiais, o conhecimento
Arte não tem origem no acúmulo de conhecimentos
relação multidirecional ao romper os rígidos
88
(1965-2000) que traduz o desejo de acionar
Relaciono as máquinas quiméricas − de certa
forma também são seres que se autorregulam −
a seres autopoiéticos (do grego auto = próprio;
poiesis = criação, produção). Um organismo vivo,
autopoiético, opera de forma autônoma a partir
desordem e acabam se resolvendo internamente,
do próprio trabalho. O artista que, de modo geral,
mas não deixam de se relacionar com o observador,
é responsável pela criação e manutenção de todo
com o sistema vivo e com o mundo – relações não
um sistema de arte – curador, comprador, museus,
deterministas e não apenas reativas, mas muitas
galerias –, preocupado com a conservação, o
vezes paradoxais, múltiplas, aleatórias ou incertas.
mercado, a exposição, participa da destruição
Apresenta esse tipo de caracterísicas a máquina
desse território e instituição.
do artista Ólafur Eliasson Ventilator: Different
A inserção de algo que se repudia até os
Energies, 1997-2005, máquina-acrobática, que
estertores, máquina complexa, concebida para
funciona pendurada no teto de uma galeria.
alcançar a autodestruição ao operar apenas uma
Composta de uma parte que é pêndulo e outra
vez em uma só noite, caso de Homage to New
que é vento e meio no qual se desloca, dela
York, aponta uma questão existencial e parece
também são partes o pé-direito e o teto da
invocar o exercício da antiga tradição pictórica do
instituição em que a obra se apresenta instalada,
Memento Mori; a destruição convoca a lembrança
e o público que a visita.
da efemeridade humana, instaura um desarranjo
Nesse âmbito é importante lembrar o trabalho
e não além de suas próprias estruturas; como
seminal de Jean Tinguely Homage to New York que
sistemas fechados, referem-se às operações
teve como peça o engenheiro Billy Klüver (1927-
criadas
2004) responsável pela montagem e partidário da
constituem o limite do próprio sistema, o que
ideia de que o diálogo entre engenheiros e artistas
não significa que eles não estejam estabelecidos
As máquinas quiméricas podem operar com
traria um agente de transformação social e cultural
no meio em que operam e a ele sensíveis. Para
forças de criação e destruição, utilidade e
significativo, dados os fatos de a arte se aproximar
manter seu funcionamento algumas máquinas
inutilidade. No pós-guerra a arte incorpora o
Bataille foi um dos pensadores que alavancou a
cada vez mais da vida e a tecnologia dela se tornar
quiméricas estão sujeitas a disfunções, remissões,
mecanismo autodestrutivo como técnica, como
reflexão sobre os riscos de uma sociedade limitada
inseparável. Assim também, Abraham Palatnik
reversões e atravessamentos, lidam com ordem e
procedimento artístico que faz parte das decisões
à atividade útil. Em sua opinião, o fundamental,
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
entre
as
partes
do
sistema
que
que destitui o status sagrado da arte e critica a
conduta da criação.
ARTI G O S | B E TE E S TE V E S
89
na existência de uma sociedade, é o espaço
que o prazer do consumo, ao que parece,
reservado ao gasto e ao consumo, o que chama
pode estar também em sua destruição.
de “dispêndio improdutivo”,13 sejam eles excessos
produzidos pelo campo social, psicológico ou
cultural. Em vez da discussão falseada a respeito
da utilidade, Bataille provoca uma inversão do
modo tradicional de entendimento a respeito dos
constituintes das primeiras motivações da sociedade
humana, em que o que passa a ser mais investigado
é o consumir, e não o produzir; o despender, e não o
conservar; o destruir no lugar do construir.
A máquina artística faz parte da categoria de
dispêndio improdutivo. Está vinculada às forças
que rompem com a condição humana do circuito
produtivo do trabalho e da subordinação temporal.
A atividade artística assume o caráter nobre da
noção de despesa, na contramão das concepções
racionalistas e econômicas do século 17. Introduz
a descontinuidade, a inutilidade, momentos em
que o trabalho é suspenso, gerando indiferença
em relação à função que os objetos ou atividades
poderiam desempenhar na cadeia da utilidade. Se
a razão da funcionalidade ou utilidade é retirada
da relação de trabalho, pode-se fazer emergirem
dados que ela escamoteia como, por exemplo,
a indesejável e incompreensível inutilidade ou
efemeridade da vida, as atividades excrementícias,
a doença e a morte.
Com as obras Homage to New York e
Break Down, Tinguely e Michael Landy,
respectivamente, fizeram dois dos exames
mais
enérgicos
do
consumismo,
do
desperdício, da destruição e criatividade
da sociedade pré e pós-industrial. Ambos
os trabalhos, vivendo apenas na memória,
na documentação, no rumor e no mito,
tornaram-se
o
máximo
em
esculturas
desmaterializadas de seus tempos. Utilizando
os resíduos de suas épocas, eles revelaram
90
14
Break Down não é apenas de um objeto instalativo
e escultórico pensado para o aniquilamento de
todos os pertences do artista, mas um conjunto
de relações que, implicado com todo o sistema de
mercado de consumo, de arte, máquinas técnicas,
estéticas, econômicas, sociais, a que se está
subjugado, traça direções de fuga que implicam
novos direcionamentos e lembram também a
noção de dispêndio improdutivo de Bataille.
Segundo esse autor, há no mundo, na raiz da
vida, uma tendência inevitável para a perda, para
a dissipação do excesso em termos biológicos,
que se estende à ordem social. O que, no entanto,
é abafado pela tendência da aquisição e do
acúmulo de excessos, responsável, de modo geral,
pela produção de meios danosos que podem
transformar-se em guerra de destruição em massa e
certamente fazem parte do tédio da vida burguesa.
O ineditismo do paradigma da dádiva estaria no
fato de propor um “antiutilitarismo positivo”,
que pode ser aplicado às atividades artísticas. As
máquinas quiméricas trazem, em sua origem, em
sua natureza, a inutilidade fundamental, mas que
muitas vezes remete o homem à dimensão do
cosmo, ao pertencimento da condição humana, à
liberação do mundo dos objetos, à experiência do
desapego através da qual o homem se dá conta
de seu destino – entendimento da ambiguidade
que traz à tona o útil e inútil.
Richard Sennett, no capítulo Ferramentas
estimulantes15 do livro O Artífice, sugere o
“despertar” para que se lide com as ferramentas
de maneira a tirar proveito delas. Afirma que
através de saltos intuitivos se encontrariam
maneiras de rever a função inicial das ferramentas.
De certa maneira, o que Vilém Flusser propõe, a
reprogramação do aparelho como saída para
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a imagem técnica, Sennett aponta como novo
método de abordagem frente às ferramentas.
Sugere, para isso, atitudes como:
1 Disposição de verificar se uma ferramenta
ou prática pode ser mudada no uso, ou seja,
defende a importância de deixar que o limite
das finalidades das ferramentas esteja aberto à
criação de novas derivas, em que a quebra do
molde e de sua função possa ser bem-vinda.
2 Aproximação de domínios improváveis.
Aqui se trata de aproximações de universos
que inicialmente estão distantes. O autor cita o
exemplo da tecnologia do telefone conjugada
com a do rádio que origina a telefonia móvel,
universos que, em princípio, não seriam pensados
juntos e que, uma vez aproximados, fazem nascer
novas composições, novas máquinas.
3 Preparar o terreno para o assombro, a
surpresa. Esclarecer procedimentos, nomeálos, muitas vezes revela compreensões
inesperadas e de complexidade maior do
que se supunha. É preciso deixar que a
perplexidade penetre.
4 Um salto não desafia a gravidade. Não é o
fato de haver transferências de habilidade ou
prática de uma área para outra, ou de uma
ferramenta para outra que vai fazer com que
o problema seja resolvido. Sempre quando se
insere o estrangeiro, isto é, uma nova forma
de lidar com o problema, há que lidar com
o que trouxe esse novo dispositivo, essa
importação técnica que também trará seus
próprios procedimentos e problemas.
Penso nos caminhos apontados por Sennett e por
Vilém Flusser não como silogismos, mas como
de criação das máquinas quiméricas. Dão
chance de pensar o fazer artístico, em meio ao
aprimoramento tecnológico, e a ele também se
conformar, revoltar, formatar e reformatar com
possibilidades de novas configurações formais,
estéticas, conceituais e filosóficas.
Para além do entretenimento, a figura de
um autômato carrega consigo um grande
interrogante. Pensa-se também a respeito da
ação programada e repetida, daquela que faz de
nós reféns, utensílios ou instrumentos. As figuras
dos autômatos, aprisionados nas engrenagens
das repetições e ritmos não humanos impingem
movimentos rumo à força do hábito.
Assemelhar-se a operários padronizados, maquinados, adormecidos certamente pode ser também reduzir-se à qualidade de máquina, regra do regime
fordista, capitalista. Tornar-se peça com a máquina,
na multiplicidade de sua produção, do movimento
que estabelece rotas de mutações que se alteram
na composição entre partes, pode ser promover o
solavanco que rompe com o esquema-padrão com
o qual já se acostumaram os corpos.
Para tanto há que promover enguiços, solavancos,
rodopios, invenções, apropriações, movimentos
celibatários que não obedecem a outra regra
senão a do desejo e que têm a chance de retirar
do grau zero as engrenagens, polias e alavancas,
sem outra ordem senão a da repetição.
É preciso promover o giro do pião ou da bailarina
que, de tantas voltas na caixinha de música,
executa finalmente um tal grau de volta desejante,
criativa e reflexiva que acaba por flutuar sobre o
linóleo do palco ampliado.
possibilidades de criação, de rompimento com
verdades, de entrada nos códigos dos aparelhos.
Regras para reconhecer uma quimera maquínica
Penso que tais noções geram possibilidades
I Para reconhecer quimeras é preciso saber-se
ARTI G O S | B E TE E S TE V E S
91
máquina, no sentido mais amplo, saber que tudo
é máquina.
II É preciso saber-se máquina e saber-se quimera,
sonho, fusão mítica de muitas fontes. Para
reconhecer máquina quimérica é preciso infinita
capacidade de sonho.
III Sonhador de final de semana não adquire
certificado de reconhecedor: é preciso não temer
pesadelo. Quem teme pesadelo não sabe como
destarrachar a torneira do sonho bom. Sonho
bom é devorar coelhos na orientação dos gatos,
o que só se aprende lendo Cortázar no original.
IV Para reconhecer uma quimera maquínica
é preciso tomar chá com o coelho de Alice
servido no bule de Keaton preparado com a
graxa do desejo.
IX Para reconhecer uma tal coisa é preciso dar
descargas em sequência, conversar e casar
com anéis de fumaça, derreter o desejo um
minuto antes da meia-noite, voltar e tornar
a voltar eternamente para o lugar que é teu
e seguir para sempre exilado e transformar
grades de ferro em asas na ausência de louça,
como o amor que partiu numa fatia fina
de fala reconstruída com cola feita de luz e
água mineral capaz de espreguiçar estrelas
arquivadas em neon por 40 anos em caixinhas
de isopor e de sonho de menina.
V Máquina quimérica se reconhece na sobriedade da ontogenia da Diferença, na falta de
sentido, na vertigem do delírio, na inútil e precária
e movediça e intersticial e formidável existência.
X Para reconhecer uma tal coisa é preciso desistir
Toda beberragem alucinógena libera o contorno
nítido de uma quimera maquínica, mas é preciso
estar despedaçado.
VI É preciso apagar o Inferno e queimar o Céu,
recitar de trás para diante os Cantos de Maldoror,
reconhecer toda a humana (ou divina) possibilidade
como sendo parte-peça-engrenagem combustível
de si e com esse Todo sentir-se Um; assim se
reconhece uma máquina quimérica:
VII Nos inutensílios da poesia, nas teorias-ficções
de todos os campos, na falível concepção dos
conceitos inventados para produzir uma história
que nos contam na hora de dormir, em volta da
fogueira que projeta sombras no fundo da caverna.
VIII Para reconhecer máquina quimérica ou quimera maquínica é preciso prescindir de todo
manual ou roteiro de modo a descasar para
92
sempre o que jamais haveria de ter par. Tudo que
pulsa, mesmo no pulso lento de milhões de anos,
como o ciclo do sol, das galáxias e do universo
inteiro, é máquina e quimera na imaginação de
toda criatura-criadora.
de buscá-la, pois está em toda (p)arte.
5 Fumus boni vem de Fumus boni iuris, expressão
obras, o autor aproxima as máquinas de Locus
latina que significa fumaça ou sinal de bom direito,
Solus, de Roussel, às de la Mariée mise à nu par ses
aparência ou indício de bom direito. O fumus boni
célibataires, même... de Duchamp. As analogias,
iuris é a presença aparente de uma situação que não
feitas ainda entre livros de outros escritores como
foi inteiramente comprovada, mas em que existe a
Kafka e Lautréamont, são traçadas com convicção
possibilidade de que o direito pleiteado exista no
por Carrouges. Carrouges, Michel. Les machines
caso concreto.
célibataires. Paris: Arcanes, 1954.
6 A ‘Patafísica diz respeito a uma concepção
10 O conceito de “máquinas desejantes” de Deleuze
do mundo alternativa, que revê a compreensão
e Guattari, que aparece expresso em O antiÉdipo,
do ser, da ciência ou da técnica, do tempo e do
mais tarde revisto, irá ceder lugar aos conceitos de
tratamento da linguagem. Estuda os epifenômenos
“agenciamento” e “máquinas abstratas” presentes
a própria observação da aleatoriedade da “dança”,
em Mil platôs. As expressões se equivalem, se
da espiral, do caos e da ordem. Epifenômenos são
explicam e se adicionam. No âmbito que importa a
porções de fenômenos que existem para além das
este texto, o emprego desse e de outros conceitos
leis da não contradição. Abordam a equivalência
deleuzianos serviru para balizar uma reflexão
universal contingente em que tem lugar o acaso ou
sobre o que faz do desejo-máquina uma quimera
o acidental. “É, sobretudo, a ciência do particular,
maquínica, uma quimera que é desejo e que se
embora se diga que só existem ciências do geral.
torna “máquina abstrata”.
Estuda as leis que regem as exceções e explica
um universo suplementar a este; ou, menos
ambiciosamente, descreve um universo que pode
11 Brett, G. Force Fields; phases of the kinetic.
London: Hayward Gallery, 2000:9.
– e talvez deva – ocupar o lugar do tradicional, já
12 Osorio, Luiz Camillo (org.). Abraham Palatnik.
NOTAS
que as leis do universo tradicional são derivadas
São Paulo: Cosac Naif, 2004.
1 Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. O antiÉdipo.
Capitalismo e esquizofrenia. Trad. Joana Moraes
Varela e Manuel Carrilho. Lisboa: Assírio & Alvim,
1996:53.
de correlações de exceções, ou, em todo caso, de
13 Bataille, G. A parte maldita: precedido de A noção
o atrativo da singularidade” Jarry, Alfred. Gestas y
14 Sillars, L. Joyous machines: Michael Landy and
2 Guattari, Félix. O inconsciente maquínico − ensa-
opiniones del Doctor Faustroll. Trad. Teresa Fernández
Jean Tinguely. Liverpool: Tate, 2009. p.27
ios de esquizoanális. Campinas: Papirus, 1988.
Echeverría. Zaragoza: Libros del Innombrable, 2003.
15 Sennett, Richard. O Artífice. Rio de Janeiro:
3 Deleuze, Gilles; Parnet, Claire. Diálogos. Lisboa:
7 O princípio da não contradição, formulado por
Record, 2009:234.
Relógio D’ Água, 1996:127.
Aristóteles em seus estudos sobre a lógica, afirma
4 É o processo de análise de um artefato (um
correlações de ações acidentais que, reduzindo-se
a exceções pouco excepcionais, deixam de possuir
de despesa. Lisboa: Fim de Século Edições, 2005.
que uma proposição não pode ser verdadeira e falsa
aparelho, um componente elétrico, um programa
de computador; etc.) e dos detalhes de seu
funcionamento, geralmente com a intenção de
construir um novo aparelho ou programa que faça a
mesma coisa sem realmente copiar algo do original.
Objetivamente a engenharia reversa consiste em, por
ao mesmo tempo.
exemplo, desmontar uma máquina para descobrir
suas produções o mito da máquina celibatária.
Bete Esteves é artista, mestre em artes visuais pela
Linha de Pesquisa em Linguagens Visuais (PPGAVEBA/UFRJ). Trabalha na criação de dispositivos
poéticos que unem experiências artísticas, científicas
e técnicas com aparatos mecânicos, digitais e
tecnológicos que, muitas vezes, destituídos de sua
função original, são matéria-prima estrutural dos
como funciona. Disponível em http://vai.la/21VC
Em leitura atenta dos elementos constitutivos das
dispositivos escultóricos.
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
8 Sylvester, David. Sobre arte moderna. São Paulo:
Cosac & Naify, 2006:472.
9 Michel Carrouges elaborou interessante estudo
que compara artistas que teriam encenado em
ARTI G O S | B E TE E S TE V E S
93
SOB PALAVRAS E IMAGENS: proposição poética e
contextualização cultural de um dispositivo digital
de artemídia
Mano Vianna
arte e tecnologia artemídia
arte virtual arte interativa
Considerada uma produção variável, inconstante ou efêmera, a artemídia, ou a arte que
faz uso da tecnologia, é contextualizada pela proposição poética Sob palavras e imagens,
possibilitada pela criação de um software gráfico desenvolvido para gerar imagens através
das mensagens de texto enviadas por usuários da web. Esta é a apresentação parcial da
dissertação de mestrado Sob palavras e imagens: proposição poética e contextualização
cultural de um dispositivo digital de artemídia (PPGAV/EBA/UFRJ), orientada pelo Prof. Dr.
Celso Pereira Guimarães e defendida em fevereiro de 2011.
As manifestações artísticas contemporâneas com
uso da tecnologia digital têm sido denominadas
artemídia por diversos autores1. Fazem parte de
uma nova cultura que se estabelece em contexto
no qual arte, ciência e tecnologia interagem e se
influenciam. Diversas disciplinas, como a filosofia, a
arte, a comunicação, a antropologia e a sociologia,
se inter-relacionam para explicar o atual contexto
social. Noções e conceitos estão sendo criados ou
revistos em todas as áreas do saber em função dos
IN WORDS AND IMAGES: poetic project and
cultural contextualization of a digital mediaart device | Media Art, considered as a variable,
inconstant or ephemeral production, or art that
uses technology, is contextualized by the poetic
proposition Underneath words and images, made
possible by the creation of graphic software to
generate images from text messages sent by web
users. This is a partial presentation of the Visual
Arts Master’s Thesis (MA). Supervised by Prof. Dr.
Celso Pereira Guimarães | Art and technology,
art media, virtual art, interactive art.
recursos tecnológicos digitais que nos permitem
representar coisas que não podíamos descrever. As relações dos indivíduos em sociedade transformamse para aceitar um conhecimento plural, aberto às múltiplas entradas de informações culturais de um
mundo conectado em rede. Na arte, da mesma forma, o caminhar das experimentações estéticas tem
permitido a incorporação de uma imagética que expande os horizontes artísticos às mídias. Pensa-se
agora em novo estatuto para o espectador, o artista e a obra.
Sob palavras e imagens, 2011. Arte
digital (jpg), 20 x 25cm, 300 dpi
94
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
ARTI G O S | M AN O V I AN N A
95
Para investigar esse contexto no qual as
explica a filósofa Anne Cauquelin,3 e que pode
tecnologias digitais estão alterando os processos
ser empregada como adjetivo, qualificando
de construção, prática e pesquisa nas artes e nas
alguma coisa que possua atributos conferidos
ciências, renovando muitos conceitos tradicionais,
à atividade artística, ou como substantivo,
foi criado um dispositivo digital, denominado
remetendo ao conjunto de teorias que analisam
Fontes, acessado no website <fontes.bitspoéticos.
e avaliam as obras. Assim, à medida que ocorrem
com>, que pode ser definido como máquina de
desdobramentos significativos no campo estético,
escrever virtual desajustada, pois torna os textos
a esfera de considerações poéticas é ampliada,
digitados pelos usuários ilegíveis: na imagem
mobilizando a atenção de diversos intérpretes. O
as letras que compõem o texto tornam-se
filósofo Benedito Nunes4 aponta uma mudança
emaranhadas quando configuradas numa área
da posição tradicional do artista e do destinatário
comum, em que todas as mensagens se combinam.
em relação à “coisidade” da obra, abrindo um
Entretanto, para ampliar as possibilidades de seu
espaço de exploração que valoriza a relação entre
uso, uma frase foi inserida como detonadora do
quem produz e quem recebe, tirando do objeto
processo de libertação imagética do participante,
artístico seu poder autônomo de transmissão de
estabelecendo marcação temporal a partir da qual
ideais de beleza, da mesma forma como retira
se podem fazer diversos tipos de especulação
do artista seu poder de gênio, do iluminado que
poética. Assim, para que fosse oferecida ao
revela a obra ao mundo5− questão denominada
participante a chance de ‘viajar’ através de uma
por diversos autores “superação” ou “explosão”
avenida de novos significados, foi escolhida a
da estética.
expressão Sob palavras e imagens, também usada
para denominar o projeto.
O momento atual em que discutimos a arte
interativa – ligada mais aos processos criativos do
que à realização de obras acabadas – corresponde
a uma etapa da aproximação entre a arte e o
Arte fora da redoma
96
observador, que vem ocorrendo desde o início
Virtualidade e instantaneidade. Discorrer sobre
do século 20. Essa parece ser uma reação ao
a proposição Sob palavras e imagens como
distanciamento realizado pela arte modernista
uma experimentação da arte contemporânea
que, impulsionada pela experimentação de
significa considerar a entrada da arte em um
diversas novas linguagens, acaba por criar seus
novo campo de discussão, no qual as imagens
próprios cânones e princípios, afastando-se cada
técnicas deslocam os debates para os temas da
vez mais dos espectadores. Para ‘entender’ (e
comunicação, fato que Lyotard acredita ser a
poder gostar de) uma obra de arte, as audiências
chave para se compreender a questão cultural
necessitavam ser informadas sobre o significado
do
estético,
da produção, ou seja, elas eram incorporadas ao
ao considerar a importância da mediação no
conteúdo cultural do produto.6 A radicalização
processo de recepção da obra de arte, desdobra-
desse processo, porém, acaba por criar novos
se para responder às novas questões. Podemos
territórios, descartando as determinações de
definir estética como a área de significação
representar o objeto, ou por buscar uma expressão
que se desenvolve em torno da arte, como
do sujeito. Assim sendo, muitas dessas atitudes
pós-moderno.2
O
pensamento
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Sem formato. Arte
digital (jpg), 20 x 25cm,
300 dpi
foram dirigidas à participação do espectador
entre a arte e o observador bem antes do
na obra. O pesquisador Júlio Plaza identifica,
aparecimento da tecnologia digital.
7
somados à atual etapa em que predomina a
arte interativa, dois outros momentos distintos
e anteriores: a obra inacabada – relacionada à
A ecologia da rede de bits
polissemia, à ambiguidade, à multiplicidade de
Ao fazer uso das tecnologias digitais, o artista
traz ao debate temas que envolvem uma nova
maneira de informar e comunicar. Mais do
que apenas mudança de suporte material, o
fenômeno artístico ocorre sob critérios nos quais
leituras e à riqueza de sentido; e a arte participativa
– que contribuiu para o desaparecimento e
desmaterialização da obra. É importante notar,
portanto, que houve um processo de aproximação
ARTI G O S | M AN O V I AN N A
97
a tecnologia é fonte de diversas considerações
possibilidades de conhecimento. O espaço físico
Vilém Flusser.11 Segundo esse filósofo, a natureza
foi criado um novo espaço de relações em que
sobre o processo de criação.
é substituído por ininterrupto fluxo de dados.
matemática da mídia digital também evidencia
nossos corpos respondem a novos paradigmas de
O tempo, instantâneo, permite não apenas a
mais do que o aparecimento de nova forma de
espaço e tempo.
emissão de mensagens, mas a troca de conteúdos,
transmissão de informação. Estamos diante
possibilitando atuação e intervenção.
de uma nova forma de comunicação. Partindo
Dados podem ser organizados matematicamente
de maneiras infinitas. Impulso elétrico e pausa –
um e zero; é simples a configuração de um bit
Dados circulam sem perda de conteúdo e
digital. A combinação desses bits serve para a
podem ser reconstituídos ou manipulados de
codificação de dados para diversos fins, como
várias maneiras. Essa afirmação traz ao debate
a configuração de imagens através dos pixels
importantes considerações que indicam que
na tela de um computador. O pixel é a menor
está ocorrendo mudança em nossa maneira de
unidade visual de geração de imagens; essa
representar o mundo. “Agora a imagem digital
codificar a realidade: “passamos de um universo
codificação torna fácil armazenar e manipular
pode ter mais aura do que o original”, afirma
imagético que interpretava um ‘mundo’ para um
as imagens. De fato, a facilidade de criação e
W.J.T. Mitchell, aludindo à mudança de percepção
sistema que interpreta as teorias referentes ao
alteração das imagens digitais tem sido possível
da obra de arte quando o original é multiplicado
mundo”.12 Isso significa que estamos passando a
pelas interfaces gráficas, que tornam o uso
pelas tecnologias de reprodução, observada em
representar o mundo através de códigos criados
do computador mais intuitivo, mais fácil de ser
1936 por Walter Benjamin:
a cópia do original
a partir de outros códigos e não de nosso contato
manipulado. O significado da palavra interface
perde sua “aura”, a sensação quase mágica que a
direto com a realidade. Estamos passando a
envolve não só a maneira de representar zeros e uns,
obra transmite de exclusividade, de ter sido feita
“interpretar em vez de explicar”, resume Flusser.13
mas também toda uma cultura que se desenvolve
por um artista em determinado momento. W.J.T.
através das formas criadas para a interação com
Mitchell adverte que, no modo de reprodução
o ciberespaço. Talvez por isso não seja apropriado
biocibernética (computação de alta velocidade,
O homem e a máquina
referir-se às interfaces apenas como ferramentas
imagem
engenharia genética), novas considerações devem
O potencial comunicativo do computador para
digitais. O termo ferramenta, quando aplicado à
informática, remete a um elemento do programa
ser feitas, como, por exemplo, o fato de a cópia
de computador (como uma aplicação gráfica) que
digital não ser mais inferior ou imperfeita em
ativa e controla uma determinada função. Porém,
relação ao original.
mais do que facilitar uma tarefa, a interface se
9
digital,
10
realidade
virtual,
internet,
é processo artificial criado para armazenar
informações, em que símbolos são organizados
em códigos, Flusser verifica que a entrada num
regime digital altera profundamente a maneira de
experimentação poética, capaz de estimular
diversos sentidos corporais, revela-se através
de sua capacidade de se conectar a diferentes
interfaces. Embora no presente trabalho a opção
O debate sobre a natureza da circulação e
de suporte de transmissão tenha sido a rede
reconstituição de dados tem possibilidade de ser
mundial de computadores, diversos tipos de
ampliado quando observamos que as interfaces
equipamentos digitais poderiam ter sido utilizados
gráficas podem ser acrescidas de acoplamentos
para fazer a interação com o participante.
de diferentes recursos às entradas (inputs)
Sensores de luz, térmicos e de movimento,
e saídas (ouputs) de dados do computador,
acionadores de máquinas, equipamentos sonoros
proporcionando
das
e diferentes tipos de softwares, como os de
possibilidades de exploração sensorial. A natureza
realidade aumentada, por exemplo, poderiam
O mundo está conectado em rede, e suas interfaces
do código binário, porém, não se restringe às
responder aos impulsos gerados pelos dados
relacionam um complexo intrincado de relações,
considerações que envolvem a transmissão e
digitados pelos participantes. Se considerarmos
passam a se assemelhar a um ambiente que
a circulação dos dados. O próprio modo de
apenas a internet, como rede em que se
possui ecologia própria, na qual tempo e espaço –
representação da realidade digital favorece campo
interligam pessoas, computadores e uma série de
instantaneidade e virtualidade – permitem muitas
ainda maior de discussão teórica, como apresenta
dispositivos periféricos, podemos perceber que
relaciona à tecnologia, envolve técnica (artefatos
eficazes), cultura (a dinâmica das representações)
e sociedade (as pessoas, seus laços, suas trocas,
suas relações de força).8 Um logos específico se
estabelece para favorecer o aparecimento de
novas formas culturais: permite que realizemos
outras maneiras de pensar o mundo.
98
da observação de que a comunicação humana
(binary digit), menor unidade de informação
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enorme
expansão
Cognição, percepção e ação. Tudo é diferente
nesse cenário, em que podemos realizar ações a
distância, de forma até ubíqua (em vários lugares
ao mesmo tempo) e em tempo real. De fato, uma
das principais características do mundo virtual é a
de nos fornecer o sentido de imersão, que pode
ser realçado com a exploração sensório-motora
das interfaces computacionais. O pesquisador
Oliver Grau14 esclarece que o termo imersão diz
respeito ao encurtamento da distância entre o
que é exibido e o nosso envolvimento emocional
com o que está acontecendo, o que, em nosso
uso cotidiano do computador, corresponde à
sensação física de pertencer a uma “realidade
virtual”, como nos é dada pelo teclado e o mouse.
A arte contemporânea é rica em exemplos que
envolvem o uso de vários tipos de mídias digitais
em diversos tipos de instalações. Explorações
que procuram reorganizar e reestruturar nossa
percepção e cognição em busca de novos
horizontes estéticos. Esses projetos colocam o
corpo na função ativa de interferência; é ele que
informa as mídias utilizadas para reagir a um
determinado estímulo.15 Por isso, o dado corporal
na mídia digital tem atraído a atenção de tantos
pesquisadores. Houve aumento da complexidade
da informação com a utilização do meio digital,
que tem estimulado pesquisas em diversas áreas
do conhecimento. Os estudos das neurociências,
por exemplo, que atualmente utilizam modernas
tecnologias de ressonância magnética, têm feito
a revisão de conceitos atualmente considerados
reducionistas a respeito do cérebro.16 Estamos
deixando de considerar o cérebro mecanismo de
entrada e saída de dados, de estímulo e resposta,
para considerar todo o corpo um sistema sensível,
capaz de novo olhar suscetível a englobar um
incrível jogo de relações físicas e culturais.
ARTI G O S | M AN O V I AN N A
99
externos para ser percebida e ganhar significação.
De acordo com Ron Burnett,17 o conceito da
imagem como portadora de significado único
e estável foi deslocado para o de mediação:
“Um campo intermediário entre espectadores
e criadores para intervenção e interpretação”.
Burnett observa que, no ambiente digital
estabelecido pela web, o conceito de imagem tem
deixado de significar apenas o enquadramento
de um assunto, pois não há a representação do
real através de uma imagem, como um signo
para a comunicação.
A Era Analógica sentia-se confortável com
a representação, com a habilidade em
relacionar o real às marcações e aos signos
que os homens poderiam converter de
uma experiência à próxima. Na Era Virtual
temos poucos desses interesses, pois
muitas das imagens criadas são produtos
da interação entre os homens e complexos
dispositivos.19
Spi 2011. Arte digital (jpg),
8,99 x 18,3cm, 300 dpi
Imagem na web: corrente de signos
Uma imagem gerada por um programa de
computador, como na proposição poética Sob
palavras e imagens, relaciona-se a uma rede de
conexões de informação, necessitando, por isso,
de um conjunto de critérios diferentes da imagem
analógica, dependente de referenciais materiais
100
A imagem configurada pelas novas mídias de
comunicação está relacionada a complexo contexto
no qual são costurados e rearranjados diferentes
discursos. Televisão, jornais, rádio e as novas
formas dentro da web produzem um conjunto de
discursos visuais, orais e textuais diferentes que se
interligam de diferentes maneiras, ou seja, uma
mesma imagem pode ter diferentes conotações de
acordo com a página da web em que está sendo
vista. Dentro desse continuum de informações,
as imagens se tornam um ‘ambiente’ que nos
influencia temporariamente e nos conduz,
remete ou dirige a outros espaços e lugares.
Essa noção, que difere da visão de uma imagem
responsável direta pelo significado, explora o
aspecto do entendimento das múltiplas entradas
de informação numa rede virtual e o modo como
somos afetados por essa convergência das mídias
que permite a combinação de diferentes modos
de comunicação, através de estímulos visuais,
sonoros, textuais e discursivos.
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
As discussões teóricas sobre as novas formas
semióticas na web trazem à luz, entretanto, outras
importantes questões. A relação imagem e texto
é uma delas. A proposição poética Sob palavras e
imagens, ao combinar texto e imagem, faz alusão a
um campo de pesquisa que tem provocado amplo
debate: existe uma nova relação de predominância
na leitura e na cultura visual entre imagem e
texto? A pesquisadora Yvonne Hansen19 observa
que, entre as diversas abordagens existentes,
muitas relatam um “retorno ao visual” (pictorial
turn), seja ele ocasionado pela convergência de
mídias realizada pelo computador, que esvazia
o sentido da existência de mídias puras, como
pretendia o modernismo,20 ou pelo fato de que na
web as imagens estão no topo de uma estrutura
de linguagem que reúne diversos elementos.
Propostas em artemídia:
recriação e armazenamento
desafios
de
Fato observado no desenvolvimento do
trabalho aponta as manifestações artísticas
que utilizam tecnologia digital se realizando
através de parâmetros não contemplados pela
classificação tradicional da arte. O que se torna
um problema quando se pensa na conservação,
no armazenamento, na remontagem e até
mesmo na recuperação de dados de eventos
realizados na web. Trabalhos em artemídia
podem fazer uso de diversas mídias dentro
de diferentes contextos de comunicação. O
processo peculiar de criação dessas obras tem
possibilidade de envolver características comuns
a essas manifestações, como serem baseadas em
algoritmo, dirigidas por processos ou baseadas
em tempo; ou serem participativas, colaborativas
e performativas; tanto quanto podem ser
modulares, gerativas ou customizáveis21 –
características, porém, encontráveis em diferentes
combinações nesses trabalhos. O que torna ainda
mais crítica essa situação é o fato de que, embora
se encontrem dois trabalhos com as mesmas
características de produção, seus resultados
estéticos podem ser bastante diferentes, pois
experiências interativas realizam processos entre
artista e observador, tornando-se dependentes
dos contextos em que foram criadas. Em vista
disso, um trabalho em artemídia pode variar
substancialmente de resultado apenas com a
mudança de público, dependendo, naturalmente,
do grau de abertura estabelecido pelo artista, visto
que é sua a prerrogativa de aumentar ou diminuir
a qualidade da contribuição do participante.
Devemos adicionar ainda, às dificuldades
apresentadas, a questão do suporte material e
técnico da construção de muitos projetos, fato
tantas vezes decisivo para a remontagem de uma
obra. Afinal, como concretizar uma exposição
na qual a experimentação artística foi realizada
por equipamento há mais de dez anos fora do
mercado ou utilizava um programa específico de
um sistema operacional já obsoleto? Recuperar
essas obras exige também que os equipamentos
em que elas foram realizadas estejam disponíveis
na ocasião de sua remontagem − sem dúvida um
grande desafio quando se observa que grandes
instituições de arquivamento de obras, como
os grandes museus, ainda estão desenvolvendo
projetos que permitam criar uma taxonomia22
para esses trabalhos.
Os problemas para a criação de uma taxonomia,
entretanto, não impedem que divisões dentro
da artemídia já se estejam configurando
naturalmente, de acordo com a similaridade das
aplicações. Sendo assim, podemos identificar
área que se constitua como um grupo bastante
definido – a generative art – em que a proposição
Sob palavras e imagens possa ser incluída. Essa
nomenclatura, cada vez mais utilizada para
se referir à arte realizada por programas de
computador que desenvolve processos com algum
grau de autonomia, pode ser encontrada como
palavra-chave (tag) para localização de trabalhos
ARTI G O S | M AN O V I AN N A
101
em websites de grandes instituições voltadas
para a pesquisa de arte e tecnologia. Como
campo ainda em processo de estabelecimento,
a própria definição para esse conjunto de obras
é encontrada de diferentes maneiras, sempre
procurando ampliar sua abrangência para
desenvolver uma noção que possa conter um
grande número de manifestações artísticas.
A experimentação poética
Sob palavras e imagens é projeto aberto à
participação pública desde sua publicação na web
em outubro de 2010. Desde então, diversos tipos
de mensagens foram recebidos, configurando
um mesmo número de diferentes imagens. A
página inicial do website hospedeiro contém
painel em que estão expostas diversas imagens
já produzidas, revelando a individualidade de
cada manifestação: única e pessoal. Mas, devo
confessar, minha primeira expectativa quando
pensei nesse projeto estava relacionada à
geração de imagens. Pensava num futuro em
que as imagens técnicas poderiam ser geradas
por programas independentes, soltos na grande
nuvem de dados que está sendo formada pela
computação. Teriam a capacidade de emocionar
da mesma forma que o pôr de sol cheio de nuvens
e cores, sem nosso controle, um novo processo
‘natural’. Porém, no decorrer dessa pesquisa, o
projeto tomou outro rumo, voltando-se para um
caminho que agora me parece bastante evidente.
Enquanto focava as possíveis conformações da
imagem, estabelecia comandos e diretrizes que
permitiriam uma futura grande composição –
massas de cor e ritmo – como na arte tradicional.
Ao participante caberia a função de realizar
uma proposta pronta, sem muita possibilidade
de real interação na construção de um sentido
poético. Em determinado momento, porém, ficou
evidente um desvio, mais tarde corrigido. Como o
objetivo desse trabalho era investigar a chamada
102
artemídia, não bastaria apenas criar um software
gerador de imagens e disponibilizá-lo na web
para investigar as peculiaridades do ambiente
digital. Era preciso estabelecer um ponto de
vista que relacionasse tempo e contexto – seus
principais paradigmas – para servir de estímulo
poético, para divagação, para favorecer novas
percepções. A expressão escolhida, sob palavras e
imagens, que serviu como título desse trabalho, foi
amplamente debatida e corresponde à expectativa
de se imaginar quais mensagens foram ‘soterradas’
pelos outros apelos através do tempo. “Estou aqui!”.
Talvez seja o que todos queiram dizer de diversas
formas e movidos por diferentes motivos.
Os usos, porém, que podem ser feitos com a
tecnologia digital são muitos, e, mesmo num
projeto que estabelece limites técnicos de
utilização, são as atitudes inesperadas as que mais
chamam a atenção. Como no caso do participante
que tentou estabelecer contato com outro
usuário através das mensagens em tempo real,
ou de outro que tentou ‘dominar’ o programa
compondo uma imagem através da repetição de
sinais de pontuação e acentuação. São resíduos
bem-vindos numa experimentação poética, pois
há a intenção de escapar do programado, ir além
do estabelecido. Dessa forma, essa produção
artística, adjetivada como variável, inconstante ou
efêmera por diferentes autores, diferentemente da
arte tradicional direcionada à criação de objetos,
resultou num evento no qual considerações como
sucessão, comparação, expectativa e resposta
problema”. Lyotard, Jean-François. O pós-moderno.
Rio de Janeiro: J.Olympio, 1988:29.
15 Hansen, Mark B. N. New Philosophy for New
Media. Cambridge: MIT Press, 2004.
3 Cauquelin, Anne. Teorias da arte. São Paulo:
Martins Fontes, 2005b:13.
16 Burnett, Ron. How Images Think. Cambridge: MIT
Press, 2005:118.
4 Nunes, Benedito. Hermenêutica e poesia. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 1999:107.
17 Idem, ibidem:40.
5 Kant (na Terceira crítica) estabelece como
fundamento a ideia de gênio ou daquele que é
“capaz de produzir artisticamente, ou seja, produzir
de tal modo que a obra resultante parecesse,
afetando a espontaneidade da natureza, inventar a
sua regra de gosto e transmitir uma intuição superior,
suprassensível, da realidade, que chamamos ‘ideia
estética’”. Apud Nunes, op. cit.:108.
6 “The practice of making viewers aware of the means
of production by incorporating them into the content of
the cultural product was often a feature of modernism”.
Ken, Marita; Cartwright, Lisa. Practices of Looking. New
York: Oxford University Press Inc., 2001:254.
7 Plaza, Júlio. Arte e interatividade: autor-obrarecepção. Concinnitas, n. 4, março de 2003. Disponível
em: <http://www.concinnitas.uerj.br/resumos4/plaza.
htm>. Acessado em setembro de 2011.
8 Lévy, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34,
1999:22.
9 “Now we have to say that the copy has, if anything,
even more aura than the original.” Mitchell, W. J. T.
What do pictures want? The lives and loves of images.
Chicago: University of Chicago Press, 2005:320.
tiveram peso decisivo.
10 Benjamin, Walter. A obra de arte na época de sua
reprodutibilidade técnica. Walter Benjamin. São Paulo:
Ed. Abril, 1975:9-35. Coleção Os pensadores XLVIII.
NOTAS
11 Flusser, Vilém. O mundo codificado. São Paulo:
Cosac & Naify, 2007.
1 Media Art, como em Grau, Oliver. MediaArtHistories,
Cambridge: The MIT Press, 2007.
12 Idem, ibidem:130.
2 Para o autor, vivemos “numa sociedade em que
a componente comunicacional torna-se cada dia
mais evidente, simultaneamente como realidade e
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13 Idem, ibidem:94.
14 Grau, Oliver. Arte visual: da ilusão à imersão.
Cambridge: MIT Press, 2007.
18 “The analogue era felt comfortable with
representation, with the ability to relate the real
to markers and signs that humans could translate
from one experience to the next. The virtual era will
have few of those concerns because so many of the
images that will be created will be the products of
human interaction with complex digital devices”.
Idem, ibidem:72.
19 Hansen, Yvonne M. Writing with images.
Universidade de Washington. Disponível em:
<http://courses.washington.edu/hypertxt/
cgi-bin/12.228.185.206/html/wordsimages/
wordsimages.html#digilog>.
Acessado
em
setembro de 2011.
20 “...cada arte deveria tornar-se ‘pura’, e em sua
‘pureza’ encontrar a garantia de seus padrões de
qualidade, bem como de sua independência”.
Greenberg, Clement. A pintura moderna. In:
Battcock, Gregory (Org.). A nova arte. São Paulo: Ed.
Perspectiva, 1986:97.
21 Paul, Christiane. The myth of immateriality:
presenting and preserving new media. In: Grau,
Oliver (Org.). Media Art Histories. Cambridge: MIT
Press, 2007:251.
22 Várias estratégias de preservação estão sendo
elaboradas por diferentes instituições internacionais
como: Rhizome.org, Capturing Unstable Media e o
Variable Media Network.
Mano Vianna, como é conhecido Marcelo D.
M. Viana, é artista (manovianna.com), mestre
em poéticas interdisciplinares pelo PPGAV/UFRJ,
graduado em gravura pela EBA/UFRJ e designer
gráfico da Fundação Oswaldo Cruz.
ARTI G O S | M AN O V I AN N A
103
ROBERT MORRIS E O ESTÚDIO DO ARTISTA*
Kim Paice
Robert Morris minimalismo
estúdio de artista
A problematização sobre a morte do estúdio é central na museologia, na arte
contemporânea e na crítica. Assim, na era pós-estúdio o lugar institucionalizado da
obra persiste com base na informação. Abordando/lendo de perto trabalhos e escritos
de Robert Morris, a autora explora os índices das performances em seu estúdio e
preocupações com a construção no neodadaísmo, no minimalismo e na performance.
Em 1968, quando Robert Smithson discutia
o “fim do estúdio”, destacou “os métodos e
procedimentos irrestritos” de Robert Morris em um
“mundo de não contenção”.1 Convenientemente
referindo-se à amplidão do trabalho do amigo,
Smithson convocava os artistas a livrar-se das
amarras dos ateliês.2 Em vez disso, explicava, era
hora de se interessar por coisas “enfadonhas”,
falar com admiração de buracos, valas, montes,
Robert Morris e o estúdio do artista| Speculation
about the death of the studio is central in
museology, contemporary art, and criticism.
Thus, the institutionalized workplace persists in
the information-based ‘post-studio’ era. Closely
reading Robert Morris’ works and writings, the
author explores indices of his studio performances
and concern with built spaces in Neo-Dada,
Minimal art, and performance.| Robert Morris,
Minimal art, performance, artist’s studio.
pilhas, caminhos, fossos e estradas − que ofereciam aos artistas nova linguagem poética desconstrutiva
contra a arquitetura e a pintura, até o ponto em que, observava Smithson, “em vez de pincel para fazer arte,
Robert Morris gostaria de usar uma escavadeira”.3 Embora frequentemente considerado um dos pioneiros do
“pós-estúdio”, o próprio Morris nunca escreveu sobre a prática no estúdio em si e muito menos a abandonou.
Já ocupou diversos espaços convencionais, incluindo ateliês nas ruas Great Jones, Grand, Mulberry e Greene,
em um loft no qual havia morado. Não obstante, criou numerosas obras que lidam com as noções de
deslocamento e destruição do estúdio. Assim como seus prolixos tratados sobre esculturas, as chamadas
obras de “estúdio” trazem publicidade às maneiras como Morris conceitua seu trabalho.
Neodadaísmo
Durante seus primeiros anos na cidade de Nova York, Morris realizou uma série de obras neodadaístas
lidando com noções de expropriação do estúdio e estendendo a ideia de performance a objetos
I-Box, 1962 (foto)
Dorothy Zeidman
104
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CO L AB O RAÇÕ E S | KI M PAI CE
105
como a Box with the Sound of its Own Making.
para o âmbito do público e da exibição. A obra
o objeto foi feito para um presente no qual o
Simone ensaiava See Saw conosco de um lado. Eu
consegue arrastar o estúdio, metaforicamente,
encontramos e o manipulamos, o tempo todo,
ensaiava meu primeiro solo, Three Satie Spoons”.4
a um dado espaço de exposição, e de maneira
possibilitando que Morris conte histórias banais
O ambiente devia ser excitante!
nenhuma declara sua obsolescência. Em cartas,
sobre o processo. Embora “ostente sua própria
Morris pediu a aprovação de Cage para a caixa,
suposta autocontenção”, exibindo a história de
entre outras obras, escrevendo ao compositor que
sua produção em fichas de arquivo, Card File
ele estava tentando criar condições para a “morte
também transforma “a presumida privacidade
do processo (...) uma espécie de extensão da
do pensamento no meio partilhado que é o
ideia somente”. Embora se possa concluir que a
discurso e na lógica das proposições”, como
atitude dadaísta do artista valorize a inércia, essa
registrou Rosalind E. Krauss em 1994.9 Podemos
mesma ideia de dreno de energia foi frutífera para
extrapolar afirmando que, ao dar atenção a essas
Morris, fazendo trocadilhos com a impotência e
trivialidades, Morris também expõe a categoria
a importância de si, mais obviamente na risível
da publicidade e o desejo de exibir a qualidade
I-Box (1962). É digno de nota como dessa porta
“trabalhada” da obra. O relato de encontros
cor-de-rosa de um pequeno armário em forma
casuais é feito com detalhes absurdos, ainda
de I se revela um retrato fotográfico do jovem
que burocráticos; simplesmente dar de cara
artista em seu estúdio, sorrindo maliciosamente,
com Ad Reinhardt foi costurado no tecido da
incontritamente nu e com seu pênis parcialmente
obra mediante a menção na ficha.10 Tanto o
Uma análise superficial das fotografias de Morris
fazendo sua performance com, em e sobre as
obras desse período revela como as performances
em estúdio caracterizam muitas das obras
neodadaístas.5 A constatação mais famosa a esse
respeito ocorre em Box with the Sound of its Own
Making (1961).6 Uma homenagem direta às fitas
magnéticas de John Cage, a caixa de madeira
guarda uma gravação “de seu próprio fazer”, que
está contida nela mesma e é tocada quando a
obra é exposta; uma composição auditiva que traz
o espaço do estúdio e o trabalho nele realizado
Box with the Sound of its
Own Making
I-Box, 1962 (foto)
Dorothy Zeidman
7
ereto completamente exposto.
Antecipando
híbridos, que podem ser usados, manipulados
por interruptores, escutados, fechados e abertos.
Transferindo
simbolicamente
a
propriedade
tradicionalmente privada (do estúdio do artista)
para o domínio público e deixando à mostra tanto
o estúdio como o fazer artístico, Morris abriu
espaço para encontros sociais com essas obras.
Seu aparente interesse em turvar as fronteiras
entre os gêneros e os lugares tinha relação
com sua prática de escultor e dançarino, e a
partilha do estúdio com outros dançarinos, cujas
práticas se caracterizam como multidisciplinares
e altamente criativas. Sem dúvida inspirou-se
em Simone Forti e Yvonne Rainer, colegas com
quem dividiu o espaço no último andar de um
prédio na Rua Great Jones. O estúdio em questão,
lembra Rainer, “era completamente aberto,” e
“Morris fez pequenas esculturas em um canto,
106
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
sintomas
relacionados
com
a
desmaterialização da arte, como a substituição
do estúdio tradicional, Morris usou a principal
sala de leitura da Biblioteca Pública de Nova York
como local de produção de Card File (1963).8
Essa obra inexpressiva também parece exibir o
selo de aprovação de Cage. Consistindo em fichas
de arquivo organizadas em ordem alfabética
e marcadas com a data e a hora de diversos
eventos, as fichas de arquivo documentam
ações aleatórias referentes à criação de Card File;
sua “composição” abrange cabeçalhos como
“Interrupções” (“18.7.62, 14h45 No caminho
para o arquivo encontrei Ad Reinhardt na esquina
da Rua 8 com a Broadway. Falei com ele até as
17h30 quando então ficou tarde para continuar
o percurso”), “Períodos de Trabalho” (“Contam-se
17”) e “Concepção” (“11.7.62, 15h15 enquanto
tomava um café na Biblioteca Pública de Nova
York”). O arquivo nos tira do tempo em que
Card file, 1962 (ficha)
(foto) Philippe Migeat
CO L AB O RAÇÕ E S | KI M PAI CE
107
arquivo como a caixa demonstram a fluidez com
que “o contato físico com uma superfície pode
Sem dizer literalmente “estúdio”, Morris acaba
a qual Morris concebia o que está dentro e fora
tanto ser um uso da superfície como maneira de
depreciando o minimalismo e a “total separação
da criação – e do estúdio. Além de insistir na
reconhecer que ali há um limite, coexistindo com
de meios e fins na produção de objetos, bem
recepção do trabalho – com aparente indiferença
a obra”.
como a preocupação de tornar manifestas imagens
12
em relação a quem ou o que o público possa ser,
Não é difícil perceber a ambiguidade com que a
acima do prestígio de Cage ou Reinhardt –, essas
obra reconhece os lugares físicos, mas nega sua
obras neodadaístas nos contam que para Morris o
especificidade. Conforme explica o historiador da
estúdio é lugar que pode ser redefinido e no qual
arte James Meyer, a situação na arte minimalista
a criação artística pode ser encenada.
foi um momento crítico na concepção da
escultura como instalação.13 A transição dos
dúvida na alegação de que uma atitude pragmática
permeia a arte minimalista nos anos 60”.17 É como
se ele lamentasse que as imagens mentais do
artista nunca tivessem tido um lugar próprio e que
tal lugar teria que ser o estúdio do artista.
tijolos minimalistas, colunas, pilares e portais para
Arte minimalista
contextos arquitetônicos e sociais e lugares reais,
Performance
A arte minimalista levou Morris a concentrar-se nos
incluído o estúdio do artista, foi modesto salto
significados da percepção enquanto performance
conceitual que, para artistas como Michael Asher,
Este ensaio culmina com breve discussão sobre as
em si e a reconsiderar os propósitos do ambiente
se demonstrou imensamente rico. Foi a percepção
danças e performances de Morris, relacionadas
arquitetônico e do estúdio. Espaços delimitados
de uma relação assíntota dessa arte com artigos
com as práticas de estúdio. Na obra-performance
e ambientes construídos, nem explicitamente
do dia a dia e com lugares − não o estúdio do
Site (1964-67) e na exposição performática
estúdios, nem espaços para exposição, eram
artista,mas supostamente outros − que contribuiu
Continuous Project Altered Daily (1969, dora-
física e conceitualmente esqueletos para os
para posicionar Clement Greenberg na oposição à
vante Continuous Project), Morris realizou de
objetos, poliedros cinza e obras de metal e fibra
arte minimalista: “Independentemente de quão
maneira criativa a possibilidade de desempenhar
de vidro realizadas pelo artista. A importância da
simples é o objeto, permanecem as relações e as
o deslocamento do estúdio e de suas práticas.
intimidade foi parcialmente perdida à medida
inter-relações da superfície, contorno e intervalo
Essas obras têm o efeito peculiar de criar um
que fabricantes industriais, tal como a Aegis,
espacial”; e, por esses motivos, Greenberg
espetáculo ou melhor seria dizer uma celebração
produziam algumas de suas obras, enquanto ele
continua, “obras minimalistas são lidas como
do fim do estúdio. Elas sugerem distinções entre
próprio atuava como projetista. Ao mesmo tempo
arte, assim como quase tudo hoje em dia,
o uso que o artista faz do estúdio como habitat
em que a temática desenfatizando a biografia do
incluindo uma porta, uma mesa, ou uma folha
versus um espaço do qual se apropria para sua
artista poluía seus escritos, as práticas de fabricação
de papel em branco”.
própria utilização. Dando-nos acesso a esses
ajudavam a entender que sua contribuição física
maneira.
11
14
“Suprimida” foi como a historiadora Barbara Rose
mal era relevante em alguns trabalhos feitos dessa
descreveu a “impessoalidade mecânica” da arte
Ainda assim, essa obra tridimensional
minimalista em 1965.15 “A frequente afinidade
fala intensamente ao mundo de espaços fechados
com o mundo das coisas” (e com o dadaísmo)
construídos, incluindo o estúdio e os locais de
exposição. Embora o curador Martin Friedman
tenha achado a obra de Morris “puritana” e
“atópica”, em 1966 ele apreciou o “ambiente
como fator crítico” da obra, “pois essas formas
densas consomem espaço de maneira vigorosa e
se relacionam fortemente com as paredes, pisos
e tetos”. Em cartas a Friedman, Morris afirmou
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espaços operacionais sincronicamente, ele viola
a economia dualista do estúdio e do espaço de
exposição e coloca à mostra o valor de troca que
é produzido no trânsito do estúdio para a galeria.
dessa escultura a fez compará-la às unidades
A conhecida coreografia Site, realizada pela
básicas de linguagem ou informação, mas nunca
primeira vez no Stage 73, em Nova York,
à mão do artista ou a seus espaços pessoais.
entremeava a presença visível de um ambiente
Como Annette Michelson, que perspicazmente
arquitetônico abstrato, um ambiente implícito
chamou a obra minimalista de Morris de
na escultura minimalista, e planos abstratos de
“apodíctica”, Rose considerou sua escultura uma
tinta branca da pintura moderna de Edouard
série de afirmações simples e factuais envolvendo
Manet, Olympia (1863). Vestido inteiramente
a permutabilidade.
de branco, mas ainda identificado como artista-
16
Untitled (box for standing),
1961 (foto)
Robert Morris Archives
108
mentais idealizadas”, que ele afirmava “lançar
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109
operário pelas luvas de trabalho e pela trilha
contrapartida solapar restrições linguísticas e
sonora de construção, audível no decorrer
imagísticas ao fazer artístico.18 Na derradeira
da performance, Morris usava uma estranha
e quarta parte da série de ensaios Notes on
máscara feita com base em seu próprio rosto
Sculpture, ele declara que objetos minimalistas
– contribuição de Jasper Johns – que escondia
haviam “fornecido a base imagística a partir da
suas
autômato,
qual a arte dos anos 60 se materializou”.19 A arte
ele carregava retângulos de compensado de
minimalista se havia aproximado perigosamente
madeira pintados de branco como se estivesse
da nomenclatura, isto é, havia tornado “imagens
mudando seu estúdio, parede por parede. Como
mentais idealizadas visíveis e afirmado as formas
complemento, Carolee Schneeman posava como
antes das substâncias”.20
expressões
faciais.
Como
Olympia em uma pequena cama branca, nua e
coberta de talco, enquanto, de dentro de um
cubo branco, ecoava uma gravação, feita da
janela do estúdio de Morris, de uma britadeira
dolorosamente barulhenta.
Para lidar com esses elementos, negações e
inversões, e por curto período, Morris fez da
percepção, do processamento da informação
e da transformação do material suas prioridades e
deixou de lado a produção de objetos. Canteiros
Em 1969, Morris já havia emplacado a noção
de obra o atraíam de imediato pela crueza e
de que até mesmo a matéria-prima poderia ser
dessemelhante relação com o ambiente urbano
considerada informação a ser percebida, como
manufaturado em que dominava o princípio da
em fotografias e outros tipos de linguagem,
gestalt.21 Chamando-os de “pequenas arenas
especialmente itens organizados em listas e
teatrais”, Morris dizia que esses locais eram
conjuntos. O convite para o show Continuous
o oposto de um refúgio. Nem seguros nem
Project
apenas
protegidos como abrigos, essas arenas eram “os
informativo: bastante reduzido, fonte preta em
era,
correspondentemente,
únicos lugares em que as substâncias brutas e
fundo branco, só indicando o nome do artista,
seus processos de transformação eram visíveis,
dois locais, a galeria de Leo Castelli na Rua 77 e
e a distribuição ao acaso, tolerada”.22 Esses
o número 103 na Rua 108 West, bem como uma
locais proporcionavam os tipos de experiências
lista avulsa de materiais: alumínio, asfalto, argila,
sensoriais que ele desejava que estimulassem
cobre, feltro, vidro, grafite, níquel, borracha, aço
o aparato perceptivo atrofiado dos habitantes
inoxidável, linha e zinco.
(e
Morris escrevera no ano anterior em seu
ensaio divisor de águas Anti Form, que o lócus
espectadores)
entorpecido
urbanos,
pela
cidade
constantemente
construída
e
compartimentalizada.
do estúdio do artista e de seu fazer artístico
O Continuous Project de Morris foi ação de trabalho
havia
a
artístico em situação de estúdio completamente
dubiedade na nomenclatura da matéria-prima
transitório, em que a obra performativa do
e na transformação, por qualquer que fosse o
artista ao vivo entrecruzava um depósito da
processo, de “materiais” em objetos de consumo.
Castelli Gallery e um efêmero canteiro de obras.
sido
historicamente
crucial
para
A arte contemporânea (a dele incluída), insistia,
deveria depender da materialidade que seria
capaz de evocar novos modos perceptivos e em
110
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
Continuos project altered
every day, 1969 (foto)
Leo Castelli Gallery, NY
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111
Com mais de uma tonelada de materiais a sua
combinações despropositadas ou inesperadas.
disposição, o esforçado artista intencionalmente
Esses esforços eram direcionados ao formalmente
se despojou dos resultados tradicionais, como
interessante e ao temporalmente persistente:
objetos ou estruturas, ou seja, categorias ou itens
“Comecei com uma tonelada de argila. Eu tinha
relacionados a sistemas ou nomeáveis, e registrou
uns restos de linha da peça Thread. Barris, não
esse procedimento deliberado, criando uma teoria
lembro o que havia neles. Comecei a tirar o
idiossincrática de alienação no que diz respeito
plástico. Eu tinha 400 libras de graxa. Comecei a
aos produtos da obra.
construir mesas e trouxe o feltro, a argila endureceu.
Continuous Project não era o pão de cada dia de
uma galeria ou de um espaço de performance,
ainda que os parâmetros que distinguiam as obras
de portas fechadas e aquelas ao ar livre estivessem
sendo destruídos na época. De fato, Morris
conseguiu incorporar ao Continuous Project o
solo de obra recém-exibida na Dwan Gallery.
Intimamente, Morris guardava cadernos sobre
No final de cada dia eu tirava uma foto, que era
revelada à noite. No dia seguinte eu a pendurava.
Então começa a formar-se um registro do passado.
No último dia eu limpei tudo e fiz uma gravação,
a escavação, essa coisa toda. Então o que sobrou
foi a gravação da limpeza e as fotografias. Essa é a
natureza dessa peça, sempre em processo.”25
o trabalho contínuo em Continuous Project,
Deixar o gravador emitindo esse som no galpão
de 28 de fevereiro a 22 de março de 1969,
vazio da Castelli no final do mês concretiza
descrevendo processos em que misturava água
a
importância
de
Continuous
e graxa com argila, pendurava e arrancava
deslocamentos
de
estúdio
pedaços de tecido de algodão e musselina,
silenciosamente entranhados em suas obras,
empilhava
que
Project
nos
estão
tão
terra,
que podem passar despercebidos ou ser mal
rasgava tiras de feltro, martelava madeira e
interpretados, como um conjunto de obras
construía plataformas, tão somente para fazê-
temáticas. Nessa ação de utilizar o som e as fitas
las desintegrarem sob o peso da terra. Esses
magnéticas, percebemos o desejo contínuo de
cadernos que registram o processo sugerem que
Morris de proporcionar informações e de usar
Yvonne Rainer foi responsável por lembrar Morris de
meios como linguagens. No entanto, vale a pena
que brincar deveria ser parte do processo, embora
considerar por que ele ainda contava com tal
23
ela não o associe a esse tipo de envolvimento.
aparato em uma obra antiformal. O paradoxo foi
Morris remói: o processo o deixou frio, frustrado,
nunca parar de trabalhar para criar e exibir o valor
desgostoso e “entediado”.
e
escavava
amianto
e
Continuos project altered
every day, 1969 (foto)
Leo Castelli Gallery, NY
Foi-lhe difícil resistir
de troca. A repulsa que descreveu em seu diário
projeto – que foi publicado pela Multiples, Inc. de
espontâneo dos dançarinos e a leitura
às preconcepções da obra que surgiam a cada dia:
não era em relação ao processo físico de fazer ou
Marian Goodman, em 1970. De certa maneira, o
entre os não dançarinos. Antes disso, a
“Eu não tinha ideia do que eu faria ou colocaria
manipular os materiais, mas à própria ideia de criar
sentido da abordagem era oposto ao daquela que
fala aparecia na forma de declamações
lá, eu só sabia que trabalharia todo dia”. Talvez
algo a partir dos materiais e de seu trabalho. Vale
Rainer buscou através da linguagem no trabalho
em movimento. Nos primórdios do CP-
suas prioridades anticomposicionais universais
ressaltar que de maneira nenhuma ele se opôs à
de título semelhante, Continuous Project-Altered
AD, tentei encontrar equilíbrio entre
fossem mais composicionais do que ele entendia.
criação desse projeto como obra para a venda.
Daily (1969) (doravante CP-AD).
configurações de dança “refinadas” e
Portanto, envolveu-se em uma atividade nebulosa
Chegou até a transformar as fotografias do projeto
que começou com a manipulação de materiais
em um múltiplo – uma dobradura de papel em
convencionais
estilo acordeom com os estágios e os detalhes do
24
112
Estiquei o feltro, criando camadas ou coisas.
enquanto
tentava
encontrar
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
Na época em que eu estava trabalhando
“comportamento”. Nem sempre era fácil.26
em CP-AD [ela observa], a fala estava
Diretamente inspirado pela leitura dos escritos
relacionada
de Anton Ehrenzweig, Morris reconheceu haver
com
o
comportamento
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113
Portrait, 1963 (foto)
Diane Nilsen
Robert Morris, no Museu Solomon R. Guggenheim,
Lucy R. Lippard e John Chandler, The Dematerialization
em Nova York, que abriga muitos documentos não
of Art. Art International, 12, 2, February 1968:31-36.
publicados, arquivos, correspondência e parte da
biblioteca de Morris.
1 Robert Smithson. A Sedimentation of the Mind:
Earth Projects. In Jack Flam (ed.). Robert Smithson:
The Collected Writings, Berkeley: University of
California Press, 1996:100-113.
com a noção de que “a percepção tem história”.30
sido Continuous Project a primeira ocasião em
que ele quis usar os processos de criação artística
para trabalhar níveis e aspectos de sua própria
personalidade. Essa posição aparentemente nova
no que diz respeito ao papel do “eu”, em torno
de 1967-1971, estava relacionada a seu interesse
por materiais que resistiam à unificação formal.27
Morris descreveu a importância de se fazer uma
varredura visual e mental em materiais variáveis,
como Ehrenzweig o fez, em vez de concentrar-se
e fixar-se em coisas familiares, nomes próprios ou
formas reconhecidas. Morris esperava transmitir
a sensação de indeterminação aos espectadores,
para que eles se tornassem mais unificados em
face das sensações oceânicas do poder opressivo
do mundo a nossa volta; conforme Ehrenzweig,
sugeriu, esse poderia ser um dos resultados desses
encontros com a ecceidade do mundo material.28
Entretanto, era primeiramente a fim de unificar
a si próprio que Morris continuava seu diário.
Adotando esse entendimento ou maneira de
organização, ele esperava afastar-se ainda mais
do que chamava de “arte mercadoria produzida
por estúdios e fábricas”.31 Em 1971 ele teorizou
sobre as vias de escape possíveis para o beco sem
saída potencialmente tóxico criado pela troca na
materialidade orientada para processos. Além
feito’”, “suprimem o incidente visual”, e localizam
o processo “naquele que participa” dessa
arte.
32
Portanto, Morris deixou os anos 60 com
o estúdio e o eu a tiracolo. Não mais um lugar
para produção, o estúdio era para ele redefinível,
encenável, portável, vazio e excessivamente
pleno de informações sobre o ser, muito mais do
que o fazer.
Uma primeira versão deste artigo foi publicada
orientações habituais e valer-se da “concretude
com o título Continuous Project Altered Daily:
física da matéria” na arte, orientada para o
Robert Morris. In Davidts, Wouter; Paice, Kim
processo a fim de criar “uma mudança no perfil
(eds.). The Fall of the Studio: The Artist at Work.
da arte tridimensional como um todo”, indo de
Amsterdam: Valiz Press, 2009:43-61.
“formas particulares a maneiras de organização,
perceptiva”.29 Para desenvolver maneiras de fazer
NOTAS
arte que pudessem assegurar sua relevância para
* Constam da pesquisa para este artigo entrevistas
as pessoas que a experimentam, Morris contava
114
pessoais e um estudo pormenorizado do Arquivo
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
exposta na Green Gallery, na Rua 57, de 15 de
outubro a 2 de novembro de 1963.
11 Pesquisadores buscaram recuperar a biografia
Robert Morris: Formal Disclosures, Art in America,
papel no final de uma seção do They, de Morris,
83, 6, June 1995:88-95, 117-19; Anna C. Chave,
que era parte da instalação de som e escultura Voice
Minimalism and Biography, Art Bulletin, 82, 1, March
(1974). Robert Smithson. Towards the Development
2000:149-163.
of an Air Terminal Site. In Flam (ed.), op. cit.:56.
a “desmaterialização da arte” com a nova ênfase
12 Martin Friedman, Robert Morris: Polemics and
Cubes, Art International, 10, 10, December 1966:237 (23); Robert Morris, carta a Martin Friedman, 24
de agosto de 1966. Daqui, a distância conceitual
parece pequena para o decalque de livros e de
tomadas, entre outros itens, que Morris fez em
estúdio na Rua Mulberry em 1972. Ver Kimberly
Paice, Rubbings (1972), in Paice, 1994:240-243.
Eugene C. Goossen também foi tocado pelas formas
como a arte minimalista se integrava à arquitetura e
dela se desvencilhava. Não é difícil acompanhar seu
pensamento no tocante à decisão de incluir pinturas
como Lake George Window (1929), de Georgia
O’Keeffe, e Window: Museum of Modern Art, Paris
(1949), de Ellsworth Kelly, ao lado de esculturas
minimalistas em The Art of the Real: USA 19481968. Examinando essa exposição, Gregory Battcock
criticou Goossen por “academizar” o minimalismo e
limitar o potencial da obra de contestar instituições
e lugares reais (museus e universidades). Gregory
Battcock, The Art of the Real: The Development of
a Style: 1948-68, Arts Magazine, 42, 8, Summer
1968:44-47.
conceitual em arte americana. Mais do que isso,
13 James Meyer. Minimalism: Art and Polemics
entretanto, estou interessada em como eles identificam
in the Sixties. New Haven/London: Yale University
o duplo colapso da feitura e do estúdio particular. Ver
Press, 2001:166.
de outubro de 2007.
ambiental que exploram “o mais ou menos ‘não
revela que Cage ainda não havia visto Card File,
relacionada à obra. Ver a entrevista a Pepe Karmel,
manualmente manipulados que permaneciam
que poderiam ser usados em obras de escala
Morris a Cage, datada de 12 de janeiro de 1963,
escavadeiras desempenhou mais tarde importante
4 Yvonne Rainer, correspondência com o autor, 16
sendo não mercadorias, porém não brutos, e
10 Morris, ‘Letters to John Cage’ (78), a carta de
3 De fato, o ruído da demolição do prédio e das
disso, Morris expressou seu interesse por materiais
Publicamente ele escreveu que queria romper com
métodos de produção e finalmente, à relevância
2 Idem, ibidem:102.
9 Rosalind E. Krauss in Paice, 1994:4.
5 Paice, Kimberly. Catalogue. In Robert Morris: The
Mind/Body Problem (exh. cat.), New York: Solomon
R. Guggenheim Museum, 1994.
6 Partituras orientadas por regras foram usadas em
trabalhos de Morris ainda em 1974, com a junção
de textos – The Four, We, They, Cold/Oracle, He/She,
Scar/Records e Monologue – na obra auditiva Voice
(1974). Ver Paice, Kimberly. Voice (1974). In Paice,
1994:256-261.
7 Ver, de Branden W. Joseph, a apresentação de Bob
Morris Letters to John Cage, October 8, Summer
1997:70-79 (71, 74). Em carta datada de 27 de
fevereiro de 1961, Morris se refere a Box with the
Sound of its own Making e afirma ter mencionado
a obra a Cage.
8 Lucy R. Lippard e John Chandler inter-relacionam
CO L AB O RAÇÕ E S | KI M PAI CE
115
14 Clement Greenberg, Recentness of Sculpture.
tentaram ressuscitar a dança e a arte minimalista de
do Pulsa passaram no depósito um dia. Rainer
28 O nome de Ehrenzweig não aparece em Anti
In American Sculpture of the Sixties (exh. cat.),
Morris pela explicação freudo-marxista de trabalho
salienta, no entanto, que não havia colaboração
Form, mas figura em Notes on Sculpture, Part 4:
Los Angeles: Los Angeles County Museum of Art,
dessublimado de Herbert Marcuse.
entre ela e Morris e que seu trabalho de mesmo
Beyond Objects. Anton Ehrenzweig, The Hidden
título, que foi realizado em seu próprio estúdio, era
Order of Art, A Study in the Psychology of Artistic
1967:25.
17 Aqui Morris se refere a um artigo recente
Imagination, Berkeley: University of California Press,
15 Barbara Rose, ‘A B C Art’, Art in America, 53, 5,
de Barbara Rose, Problems of Criticism VI, The
October/November 1965:57-69; também publicado
Politics of Art, Part III, Artforum, 7, 9, May
em Battcock, Minimal Art: A Critical Anthology, New
1969:46-51. Ver Morris, Notes on Sculpture,
24 Deixando a mente fluir, ele escreveu sem
psicologia profunda, conforme desenvolvida na
York: E.P. Dutton & Co., Inc., 1968:274-297 (274).
Part 4: Beyond Objects, Artforum, 7, 8, April
escamotear
a
Inglaterra, e Ehrenzweig reconhecia a influência
1969:50-54; republicado em Continuous Project
compromissos profissionais futuros e planos de
crucial em sua obra do livro de Marion Milner,
Altered Daily; The Writings of Robert Morris,
obras que poderia vir a criar, incluído um filme sobre
Cambridge/London/New York: MIT Press/Solomon
levantamento de peso que nunca se concretizou.
An Experiment in Leisure, London: Chatto and
16 Annette Michelson, Robert Morris: An Aesthetics
of Transgression, in Robert Morris (exh. cat.),
Washington D.C.: Corcoran Gallery of Art, 1969:13.
Rose vincula ABC Art a Lectures in America (1935)
R. Guggenheim Museum, 1993:51-70 (67).
correspondência com o autor, 27 de agosto de 2007.
seus
sentimentos
em
relação
1967. O método desse autor advinha da escola de
Windus, 1937, publicado pela primeira vez
25 Entrevista gravada em 1977 com Thomas Krens,
sob o pseudônimo ‘Joanna Field’. As ideias de
de Gertrude Stein, obras do poeta-pintor Kasimir
18 Robert Morris, Anti Form, Artforum, 6, 8, April
Fita 4.2, no Arquivo Robert Morris do Museu
Milner sobre o jogo não parecem ter encontrado
Malevich e Marcel Duchamp, e Understanding
1968:33-35; republicado em Continuous Project
Solomon R. Guggenheim, em Nova York.
repercussão na obra de Morris, que continuamente
Media: The Extensions of Man (1964), de Marshall
Altered Daily: The Writings of Robert Morris:41-49.
McLuhan. O poeta David Antin enfatiza as técnicas
de isolamento na obra de Morris, que, em sua
opinião, torna alienígena o contexto para as obras.
Ver ‘Art & Information, 1 Grey Paint, Robert Morris’,
Art News, 65, 2, April 1966:23-24, 56-58. Com
raciocínio semelhante, Hal Foster registrou que as
obras minimalistas eram feitas, em conformidade
com o modo de produção do capitalismo tardio,
para “significar do mesmo modo que objetos em
sua qualidade cotidiana, ou seja, em sua sistemática
latente”. Hal Foster, The Crux of Minimalism, in
Individuals: A Selected History of Contemporary Art
(exh. cat.), Los Angeles: Museum of Contemporary
Art,
1986:162-183
(179).
Ver
também
Jean
Baudrillard, For A Critique of the Political Economy
19 Morris, Notes on Sculpture, Part 4:64.
20 Morris, Notes on Sculpture, Part 4:67.
16 de outubro de 2007. O título igual dos projetos
de Rainer e de Morris, segundo ela, devia-se apenas
ao fato de que “ambos estavam envolvidos com
se orienta em torno de tratados, declarações e traduções
consagradas de obras para novos trabalhos.
29 Morris, Notes on Sculpture, Part 4:67-68.
30 Morris, Notes on Sculpture, Part 4:61.
estruturas indeterminadas” na época. A preferência
sua parceira de dança Simone Forti, eles se chocaram
de Rainer pelo jogo e empatia em seu trabalho não
31 Robert Morris, The Art of Existence. Three Extra-
com as características excessivamente construídas
eram metas que tinha em comum com Morris. Para
Visual Artists: Works in Process, Artforum, 9, 5,
do ambiente urbano. Essa experiência tornou-
o papel desses termos na obra de Rainer, ver Carrie
January 1971:28-33; republicado em Continuous
se relevante para a apresentação que Morris fez
Lambert, On being Moved: Rainer and the Aesthetics
Project Altered Daily: The Writings of Robert
do estúdio do artista em Site. Forti escreveu: “Na
of Empathy, in Yvonne Rainer: Radical Juxtapositions
Morris:95-117 (95).
primavera de 1959, Bob Morris e eu nos mudamos
1961-2002 (exh. cat.), Philadelphia: Rosenwald-Wolf
para Nova York. Eu não podia acreditar nesse
Gallery, 2002.
lugar. O que mais me chocou foi estar imersa em
um ambiente que parecia ter sido completamente
desenvolvido e criado por pessoas (...). Eu me lembro
de como era alentador e consolador saber que a
Press, 1981:104. A composição a priori e o uso de
gravidade ainda era gravidade. Eu me sintonizei com
elementos prontos estavam implícitos no foco do
meu próprio peso e volume como uma forma de
design da arte minimalista e se abriam logicamente,
oração”. Simone Forti, Handbook in Motion, Halifax/
para Morris, à fabricação industrial. Esse fator tornou
New York: Press of the Nova Scotia College of Art and
o minimalismo vulnerável às críticas dos marcuseanos,
Design/New York University Press, 1974:34.
essas obras não resistiam ao racionalismo nem se
26 Yvonne Rainer, correspondência com o autor,
21 Quando Morris se mudou para Nova York com
of the Sign, Charles Levin (trans.), St. Louis: Telos
como Ursula Meyer nos anos 60, que diziam que
116
independente do projeto de Morris. Yvonne Rainer,
22 Morris, Notes on Sculpture, Part 4:69.
27
Morris
informou
Thomas
R.
Krens
que
Continuous Project era diretamente relacionado ao
Kim Paice é doutora em história da arte pela Cuny,
permutado Untitled (1967), em forma de estádio,
NY, professora de história da arte na Universidade
que faz atualmente parte da Panza Collection,
de Cincinnati, EUA.
adquirida pelo Museu Solomon R. Guggenheim,
em Nova York. Entrevista gravada em 1977 com
Thomas Krens, Fita 4.2, no Arquivo Robert Morris
do Museu Solomon R. Guggenheim em Nova
York. O próprio Morris se refere à obra como “em
forma de estádio” A maioria das obras sem título
afastavam da lógica das mercadorias. Ursula Meyer,
23 Os cadernos não publicados de Morris registram
de Morris recebem essa nomenclatura casual, cuja
De-Objectification of the Object, Arts Magazine, 43,
que “Yvonne [Rainer], Ted e Joanne” estavam
fonte é ele mesmo. Essa obra é a de número 67.172
5, Summer 1969:20-22. Mais tarde historiadores
envolvidos com o fazer dessa obra e que membros
no Arquivo Robert Morris.
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
32 Morris, The Art of Existence:95, 97.
Tradução Mirna Soares Andrade
Revisão da tradução André Alves
Revisão técnica Martha Telles
CO L AB O RAÇÕ E S | KI M PAI CE
117
TEATRO DE IMAGENS E AUTOBIOGRAFIA: espetáculo?
Gabriela Lírio Gurgel Monteiro
teatro cinema
imagem autobiografia
O artigo investiga o uso de imagens em espetáculos contemporâneos e sua relação
com dramaturgias criadas a partir de relatos autobiográficos. “Teatro high-tech”,
“teatro de imagens”, “teatro narrativo-performático, “teatro performativo” são alguns
dos nomes desse novo teatro, fundamentado em cenas que refletem campos de
pesquisa interdisciplinar.
Refletir sobre o uso de imagens na cena
contemporânea significa repensar o estatuto da
imagem em seus modos de criação, interlocução
e apreensão da realidade. Não é de hoje que
assistimos a um crescente interesse em utilizar o
material audiovisual como potente dispositivo
de engendramentos de sensações e percepções,
ora estabelecendo diálogo direto com a obra em
Teatro de imagens e autobiografia: espetáculo?|
The article investigates the use of images in
contemporary entertainment and its relation to a
play created from autobiographical reports. “Hightech theater,” “theater of images”, “narrative
theater performing,” performative theater” are
some of the names of the new theater that is based
on scenes that reflect interdisciplinary research
fields. |Theatre, cinema, image, autobiography.
questão, ora se desviando dos sujeitos e temas em
curso para desconstruir o lócus da encenação. A invasão das novas mídias acelera o processo de recepção
de imagens; se, na modernidade, tais imagens estavam ligadas à percepção lógica da narrativa, tornamse na contemporaneidade cada vez mais fragmentadas e desconectadas ao negar-se como espelho
prefigurado do que as antecede. As imagens teatrais, alicerçadas em poética baseada na liberdade
de escolha, contaminadas pelas artes performáticas, pelo cinema e pelas novas mídias, constroem um
terreno fértil e híbrido de articulação entre as artes, intensificado pela especificidade teatral, através do
jogo entre a presença do ator, da materialidade de seu corpo e sua voz, e a virtualidade produzida.
“Teatro high-tech”,1 “teatro de imagens”,2 “teatro narrativo-performático,3 “teatro performativo”4
são alguns dos nomes desse novo teatro, fundamentado em cenas que refletem campos de pesquisa
interdisciplinar, “(...) um campo de mediações intertextuais, intertemporais, intersemióticas, interartísticas
e/ou intermídias, que a vertente teatral abordada parece priorizar como seu território preferencial, um
I - Box, 1962. (foto)
Dorothy Zeidman
118
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119
território limítrofe e intersticial”.5 As fronteiras
tempo das imagens audiovisuais que acenam
A escrita cênica não é aí mais hierárquica
ego-história”:9 autoficções, testemunhos on-
artísticas tornam-se tênues e colocam em foco a
para um encontro que existe a priori. Isso porque
e ordenada; ela é desconstruída e caótica,
line ou o diário em blogs, filmes realizados a
questão que me parece primordial na discussão
tais imagens foram captadas e realizadas antes de
ela introduz o evento, reconhece o risco.
partir e/ou com “personagens reais”, reality
sobre as relações da cena contemporânea e o
ser projetadas, ou seja, sua existência antecede à
Mais que o teatro dramático, e como a arte
paintings, reality shows e todo documento que
uso do audiovisual: o teatro, arte da presença,
cena, ainda que sejam manipuladas e editadas,
da performance, é o processo, ainda mais
possa ser considerado um fragmento da vida
estaria reinaugurando outros modos de interação
como em alguns casos, in loco, no momento de
que produto, que o teatro performativo
real são incorporados a processos artísticos. A
à medida que se deixa contaminar pelas imagens
sua projeção. Nesse sentido, o espectador vivencia
coloca em cena.7
autobiografia, antes circunscrita aos cânones
não apenas produzidas na cena, mas sobretudo
a duplicidade espaçotemporal, dois tempos e dois
existentes para além dela? Quais os limites entre
espaços que, juntos, em sua interseção, criam uma
imagens da corporalidade do ator que compõem
terceira relação espaçotemporal, experimentada
partituras cênicas e as imagens captadas e
através do cruzamento de elementos da cena e da
projetadas desse mesmo corpo ou de outros
virtualidade produzida.
corpos, paisagens e objetos presentificados na
cena ou não? As imagens audiovisuais recriam o
espaço, inauguram uma espécie de duplo lugar,
um desdobramento da cena que pode variar de
acordo com os dispositivos e suportes utilizados.
presença cada vez mais intensa das imagens no
universo da arte contemporânea. Analisando a
questão do dispositivo e do espectador, aponta
para uma mudança na própria ideia de cinema
literários e presente em importantes estudos de
Arendt, Lejeune, Ricoeur, entre outros, é hoje
exaustivamente investigada como fenômeno do
mundo globalizado, alicerçada pelas novas formas
midiáticas e pelos novos horizontes tecnológicos.
Abre-se vasto campo de pesquisa na análise desta
e de arte, uma vez que ambos se encontram
O
terceira relação espaçoteatral que recria o espaço-
relativizados
suas
contemporâneo pelo desejo de consumo de
tempo do teatro, espaço de signos por natureza.
apreensões. Quando o cinema entra em um
imagens que possam conceder-lhe uma espécie
O espaço teatral, ao receber o espaço virtual,
museu, que imagem é vista? “O que sentimos
de garantia de sobrevivência. Seu relato, balizado
pelo
terreno
híbrido
de
efeito
de
real
traduz-se
no
sujeito
abre-se a novas perspectivas que redimensionam
quando se troca a duração standart imposta pelo
pela transmissão midiática, o faz imagem de
Lehmann cita Barthes e Muller na tentativa de
a cena. Josette Féral afirma que, no teatro
desenrolar único e contínuo das imagens do filme
um Outro, enquanto o consumo de sua vida
definir a especificidade do teatro e sua diferença
performativo, o real desperta no espectador a
por modos de visão mais aleatórios e muitas vezes
e de sua imagem projetada realimenta as
com relação às novas mídias. “O que é o teatro?
vontade de reagir de forma inteligente, e isso
fragmentados e repetitivos (em loop) de imagens
expectativas de pertencimento a uma rede virtual
Uma espécie de máquina cibernética”,
diria
se torna possível por um olhar duplo que vai
que estão sempre aí, podendo ser abandonadas
complexa. Desse modo, não ter acesso às novas
Barthes prevendo a relação que o teatro iria
do real à ficção ou do espaço cotidiano ao da
ou retomadas da maneira que se quer?”.8 É fato
tecnologias de informação elimina a sensação
estabelecer com as novas mídias. Lehmann, porém,
cena. Há, portanto, no espaço cênico, uma
que o “efeito cinema”, ao qual se refere Dubois,
de pertencimento ao real a que nos referimos; o
chama a atenção para o contexto no qual Barthes
divisão: o real material e o que é criado na cena.
não se restringe apenas à arte contemporânea,
real que se caracteriza não somente pela inscrição
estava inserido e sua perspectiva semiológica que
No teatro contemporâneo, a desconstrução do
mas inaugura espaços importantes de enunciação,
do sujeito na vida cotidiana e nas relações que
compreendia o processo cognitivo do espectador
real torna os signos instáveis, faz com que o
como o teatro contemporâneo, a dança, a
ele estabelece, mas pela percepção de ser parte
ao decifrar as informações. Citando Muller, para
espectador passe de uma representação à outra,
performance, a música.
de uma rede complexa de informações, da qual
6
quem o teatro “é o moribundo em potencial”, e
observando que a informação está para além da
morte, Lehmann discorre sobre o espaço-tempo
teatral constituído pela experiência presencial,
direta, entre espectadores e atores, transformada
e vivenciada no presente da encenação. E, por
esse motivo, não mais passível de ser reproduzida.
Em contrapartida, as imagens audiovisuais podem
ser reproduzidas e, no encontro com teatro,
permitem ao espectador experimentar duas
realidades espaçotemporais: o espaço-tempo da
interação, “comum da mortalidade”, e o espaço-
120
Phillippe Dubois define como “efeito cinema” a
de um sentido ao outro, buscando articulação em
só se enxerga parte, nunca o todo. O sentido
um espaço fragmentário e plural. A inserção de
Imagens
– o tempo da cena e o da imagem. O tempo
cênicos na dramaturgia contemporânea
da presença do ator e a imagem que traz em si
Analisar a produção teatral contemporânea pelo
pode barganhar seu espaço no que chamo de
viés da autobiografia nos remete a uma rede
“rede”.10 O novo estatuto de visibilidade do
de tangenciamentos e reflexões oriunda das
sujeito redimensiona o status de persona pública
experiências do sujeito diante da imersão em
versus homem comum, invertendo a proposição
novas formas de representação, atravessadas
dos espaços: o espaço da intimidade é partilhado
pelo relato virtual ou pelo que nomeio aqui
e objeto de interesse público, enquanto o que
Encontramos as noções de desconstrução,
“documento cênico”. Atualmente, assistimos
antes por seu caráter impessoal (de preservação
disseminação e deslocamento, de Derrida.
ao que Arfuch aponta como “exercícios de
do privado) tinha sua divulgação socialmente
mesma a referência do tempo de sua captação.
Nesse sentido, o espectador é lançado em um
espaço-tempo híbrido, fruto do que vê e do que
é visto, uma vez que sua leitura depende desse
movimento duplo a que se refere Féral.
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
autobiográficas:
documentos
do global é percebido tão somente através do
imagens evoca também a duplicidade do tempo
local. Assim, as noções de público e privado
confundem-se posto que toda e qualquer pessoa
CO L AB O RAÇÕ E S | G AB RI E L A L Í RI O G U RG E L M O N TE I RO
121
aceita perde continuamente interesse se não
aguçar a crise da imagem do sujeito, reverberando
estiver conectado a impressões, apontamentos,
suas fraturas ao evocar memórias suas e de outros
detalhes
biografado,
que compõem sua biografia. Ao utilizar imagens
expondo suas fragilidades e idiossincrasias na
projetadas, fotos, vídeos, slides, imagens de
tentativa de provocar identificação com os
computadores, trechos de filmes, reprodução
consumidores/espectadores.
de espaços de intimidade, entrevistas, a vida
que
humanizam
o
“Se a morte preside na casa da autobiografia”,11 o
teatro, arte que mais se aproxima da morte, uma
vez que é apresentado ao vivo para o público,
quando se utiliza de material autobiográfico
duplica o efeito do real, esvaziando o sentido
da representação, e potencializando a presença
física do ator ao lidar com o material de sua vida
privada como dramaturgia cênica. Diante da
exposição, o espectador percebe o movimento
de desnudamento, o tom confessional, e passa a
se questionar sobre a veracidade dos fatos, sobre
o que é da ordem do real e o que é da ordem
do ficcional, como se fosse possível separá-los
na encenação. “O que poderia ser chamado
de crise da ficção ou estética da realidade
consistiria não no abandono da primeira em
detrimento da segunda, mas em um processo
A dramaturgia contemporânea baseada em
autobiográficos
promove
assim
a
identificação direta da plateia movida pela
curiosidade e pelo desejo de desvendar o
enigma da verdade da presença do ator, não
se interessando apenas pelo que é dito, ou pelo
modo como é dito, mas pelo desdobramento da
palavra-testemunho que deflagra a crise da imagem
do sujeito. “O que fazer com as ruínas”13 – questão
levantada por Nestor García Canclini – é o que
interessa a essa discussão porque inaugura uma linha
de fuga, um percurso possível para o “sujeito fora de
si”,14 focado na exterioridade e no autocentramento.
122
em espetáculo imagético, em “efeito cinema”.15
Um efeito presente não só nas artes cênicas, mas
nas artes de modo geral, e que no espaço do
teatro, foco da discussão, modifica a percepção
do espectador, ampliando as possibilidades de
interação à obra apresentada. O espetáculo
mediatizado/atravessado pelas imagens passa
a apresentar dois espaços complementares e
dialógicos: o espaço do ator e sua interação
direta com o público e o espaço da imagem,
aberto a deslocamentos, porque introduz por si
só outros espaços, em uma lógica de acumulação
e, em alguns casos, de excesso. Palavra e imagem
conjugam-se em uma sintaxe confluente no corpo
do ator, ora mediatizado por novos dispositivos,
ora agente da ação.
Otro, do grupo Coletivo Improviso, dirigido por
(...) de hibridização”.12
relatos
como produto da narração vê-se transformada
Enrique Diaz e Cristina Moura, é, segundo Diaz,
uma investigação sobre alteridade, em que o Outro
aparece como objeto e, especialmente, como
relação”.16 O olhar transforma-se em “material do
espetáculo, assim como a suposta objetividade da
imagem do outro”.17 Nesse sentido, o relato e a
entrevista foram ferramentas para a construção
dramatúrgica no desejo não de buscar a verdade
dos fatos e das sensações vividas, mas de partilhar
e conhecer fragmentos da história de vida dos
outros. Partindo da ideia do documentário,
ampliando a percepção dos espaços, o espaço
da cidade/o espaço do corpo, Diaz buscou o
documentarista Felipe Ribeiro para juntos criarem
O uso de novos dispositivos de captação do real
imagens na tentativa de ampliar a percepção
através do depoimento/relato contribui para
visual do espectador para a proposta. “O que
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Dorothy Zeidman
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123
acontece é uma espécie de poetização da imagem
espetáculo; sujeitos revelados através do uso
dentro do espetáculo, que é um processamento
do vídeo como documento da criação e como
do que foi visto/vivido para a formatação final, a
documento da interação dos atores com a cidade;
dramaturgia das imagens…”.
por outro lado, imagens dos atores diante de
18
Parte do processo de criação do espetáculo
deve-se ao uso de dispositivos de interação e de
convivência. Os dispositivos são enquadramentos
e levam ao acaso. “O dispositivo nunca é garantia,
ele só ajuda a estar aberto para o mundo”;19 ele
deflagra trajetos. O material autobiográfico surge
desses trajetos dos atores pela cidade. No bairro da
Taquara, no Rio de Janeiro, o grupo encontra um
personagem cuja história desperta piedade: havia
sido abandonado pela namorada, estava triste.
Ao conhecê-lo melhor, a impressão se modifica:
tratava-se de “um baita colonialista, queria falar
inglês, superdestacado do lugar onde mora”.20
O dispositivo leva a uma composição complexa e
ao aprofundamento dos personagens não apenas
por possibilitar encontros reais, no sentido de
que as histórias presentes na encenação surgem
do relato de um sujeito inserido em determinado
contexto. O encontro se dá ao acaso, não precede
alguma decisão ou característica determinante. A
escolha deve-se, por exemplo, à coloração de uma
camisa. Os atores saem de ônibus, descem no
terceiro ponto e precisam interagir com alguém de
camisa vermelha. Dessa forma, tais relatos foram
sendo incorporados à dramaturgia e articulados
às imagens documentais projetadas na cena.
Imagens reveladoras do processo de criação e do
próprio dispositivo, e que trazem uma impressão
de realidade ao espectador, potencializando o
material autobiográfico em sua relação híbrida
com as ações provenientes da interação/jogo dos
atores e público na cena.
124
situações já vivenciadas e que são ficcionalizadas
nos espaços da cidade (barca Rio-Niterói). A
performatização de tais imagens constrói um
terreno híbrido para a vivência da cena: o ator
relata o que viveu, as imagens ora tornam
explícitos lugares e impressões, ora desconstroem
o imaginário do relato do ator ao se fixar em
detalhes ou trazer elementos que buscam ativar
um estado de contemplação do espectador.
O espaço teatral despojado de objetos cênicos,
apenas algumas cadeiras e mesas, é transformado
ora por imagens realistas, da barca Rio-Niterói ou
do restaurante árabe do Largo do Machado, ora
por imagens poéticas, como as imagens do céu,
das nuvens, de um pássaro que passa; imagens que
buscavam, segundo Felipe Ribeiro, aproximação
com o espectador através da contemplação.
Coloco a imagem do céu, nuvem, deixo
a imagem em movimento, é a nuvem se
movendo levemente, é um pássaro que
passa… ficava meio tonto, se eu focasse
o olhar na nuvem, me dava uma certa
tonteira, a nuvem parece que não está se
movendo e está. Estava interessado em
brincar com essa sutileza. A contemplação
faz ir para outro lugar, um trampolim para
criar outra coisa.21
Foram três processos de captação de imagens:
cenas da pesquisa refilmadas; imagens originais
assimiladas ao trabalho e, por último, imagens
Percebe-se, portanto, duplo estatuto da imagem:
produzidas pelo documentarista a partir da
por um lado, imagens provenientes de relatos
observação do material de ensaio. O jogo entre
de outros sujeitos, encontrados na cidade e
real e ficção/memória e invenção percorre todo
que fizeram parte do processo de criação do
o processo de criação do Otro. Há imagens de
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I - Box, 1962. (foto)
Dorothy Zeidman
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125
cenas da cidade, originárias da pesquisa, que Diaz
porque suspenso, não reconstruído, em ruínas,
sugeriu a Ribeiro incorporar às demais existentes
híbrido por se configurar como espaço do
pela percepção de que o espectador se desligava
da narrativa, da história contada, fixando-se na
experiência trazida pelas imagens.
presente, mas náufrago de um passado em
Festa de separação, espetáculo dirigido por Luiz
Fernando Marques e criado e encenado por
Janaína Leite e Felipe Teixeira Pinto, o Fepa –
Ao escolher um lugar na plateia, o espectador
percebe que tal escolha interferirá na recepção
do espetáculo, porque ele assiste a dois
discursos em forma de depoimento, ocorrendo
simultaneamente, salvo em alguns momentos em
que um silencia para dar voz ao outro e quando se
está diante de material audiovisual e iconográfico
projetado no telão. Na impossibilidade de ouvir
dois discursos ao mesmo tempo, o espectador
percebe que se encontra em situação
monológica, ainda que dupla, interativa. Na
perda da palavra do outro, tem-se a dimensão
de que se opera um corte não apenas espacial,
mas transversal, um corte na narrativa, reflexo da
divisão que se estabeleceu na vida do casal. As
imagens projetadas – “efeito cinema” – têm como
ela atriz, ele músico –, é classificado pela dupla
como “documentário cênico” da experiência
de separação dos atores. Em determinado
momento, após uma viagem que não ocorreu
(o casal terminou o relacionamento via skype,
Janaína estava em turnê na Inglaterra, e Fepa iria
ao seu encontro), e ambos decidiram transformar
a separação em processo de criação, “em um
espetáculo”.
22
Na impossibilidade de lidar com
a perda da relação e do outro, inicialmente
promoveram festas para a família e para os amigos
para, além de anunciar a separação, elaborar o
luto. As festas foram filmadas, assim como os
depoimentos de pessoas que conviviam com o
casal e serviram de material para o espetáculo
que pretendeu ser uma reflexão sobre o amor
na contemporaneidade, ultrapassando apenas a
exposição/discussão de sua história.
126
elaboração, espaço que não é senão o lugar do
luto proveniente da ruptura.
objetivo reconstruir a vivência do passado, incluindo
o momento em que o casal decide transformar a
separação em obra artística. Assistir no telão às
imagens de intimidade, de um tempo passado e
feliz, aos depoimentos emocionados dos familiares
e amigos nas festas de separação, promovidas e
NOTAS
1 Lehmann, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São
Paulo: Cosac Naify, 2007:368.
2 Picon-Vallin, Béatrice. Deux arts en un? Le film du
théâtre. Arts du spectacle. Coleção organizada por
Élie Konigson. Paris: CNRS Éditions, 2001:17.
3 Da Costa, José. Teatro contemporâneo no Brasil.
Rio de Janeiro: 7Letras/Faperj, 2009:29.
4 Féral, Josette. Por uma poética da performatividade:
o teatro performativo. Sala Preta, revista do Programa
de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Eca/USP, São
14 Birman, Joel. Mal-estar na atualidade. A
psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005:171.
15 Dubois, op. cit.:179.
16 Entrevista, por e-mail, à autora em 8.10.2010.
17 Idem.
18 Idem.
19 Entrevista à autora e à bolsista Pibic-UFRJ Isadora
Malta Rezende, na Escola de Comunicação da UFRJ,
em junho de 2011.
Paulo, n. 8, 2008.
20 Idem.
5 Da Costa, op. cit.:33.
21 Idem.
6 Barthes, Roland. Essais critiques. Littérature et
22 Palestra de Janaína Leite e Fepa no Fórum de
signification. Paris: Point Seuil, 1981 (1963), p.258.
Ciência e Cultura em junho de 2010.
7 Féral, op. cit..
23 Isso não é dito, mas compreendido por
8 Dubois, Philippe. Um “efeito cinema” na arte
contemporânea. In Dispositivos de registro na arte
associação,
uma
vez
que
depoimentos
de
espectadores são exibidos.
contemporânea. Rio de Janeiro: Contra Capa/Faperj,
2009:184.
9 Arfuch, Leonor. O espaço biográfico. Dilemas da
subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: Eduerj,
2010:60.
Gabriela Lírio Gurgel Monteiro é professora
adjunta
de
direção
teatral
na
Escola
de
Comunicação da UFRJ. Possui graduação em
comunicação
social
(jornalismo),
mestrado
Assisti a Festa de separação, no Teatro Sesc-
documentadas pelo casal, reitera o lugar da falta/
10 Refiro-me à rede pensando em duas conotações:
em letras, doutorado em letras pela Pontifícia
Copacabana, quando esteve em cartaz no Rio
da dor. A imagem é documento do que a palavra-
a rede de sentidos barthesiana e a rede tal como nos
Universidade Católica do Rio de Janeiro (Teatro
de Janeiro. O espaço, dividido em dois, o dela
testemunho não consegue representar; a imagem
referimos hoje quando nos dispomos a falar sobre
e cinema na obra de Peter Brook, co-orientada
e o dele, apresentava como pano de fundo um
é dialógica, une os discursos e o espaço cindido
internet e seus agenciamentos.
por Georges Banu, no prelo) e doutorado
telão. Objetos familiares criavam identidade,
da representação. Em determinado momento o
sanduíche na Université Paris III
referenciais pertinentes ao universo individual
espectador é convidado a dar seu depoimento
11 Arfuch, op. cit.:67.
de cada um, revelavam a história pregressa do
contando uma história pessoal que também é
12 Cardoso, Bruno de Vasconcelos. Voyeurismo
escuro (7Letras, 2001) e Interseções: Cinema e
casal: livros, cds, caixas, garrafas, cadernos,
filmada, evidenciando-se que pode ser projetada
dicionário, instrumentos musicais, câmera, bichos
em outra apresentação. Na possibilidade de vir-a-
de pelúcia. A ideia foi transferir para o palco os
ser imagem, o espectador inaugura ele mesmo um
vestígios do que restou para cada um da relação,
luto de outra natureza: a morte de sua “presença”
reconfigurando um espaço-casa ambíguo porque
é enigma da representação porque se transforma
13 Canclini, Nestor García. Diferentes, desiguais e
Acaba de iniciar nova pesquisa: Autobiografia na
visivelmente transitório, um espaço fronteiriço
em registro que pode ou não ser utilizado.
desconectados. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2009:192.
cena contemporânea: entre a ficção e a realidade.
23
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
digital: representação e (re)produção imagética
do outro no ciberespaço. In Devires imagéticos. A
etnografia, o outro e suas imagens. Rio de Janeiro:
7Letras, 2009:154.
Sorbonne-
Nouvelle. Publicações: A procura da palavra no
Literatura (7Letras, 2010). Pesquisadora do CNPq,
desenvolve atualmente a pesquisa A teatralidade
cinematográfica e o uso de novos dispositivos na
produção de imagens (bolsas Pibic/Piabic/Faperj).
CO L AB O RAÇÕ E S | G AB RI E L A L Í RI O G U RG E L M O N TE I RO
127
AS EXPOSIÇÕES GERAIS DA ACADEMIA DE BELAS ARTES:
teatro de corte e formação de um mercado de artes
no Rio de Janeiro
Leticia Squeff
Exposições Gerais da Academia de Belas Artes Colecionismo
Mercado de artes no Rio de Janeiro do século 19
A intenção deste artigo é discutir o lugar das Exposições Gerais da Academia de Belas
Artes na vida cultural do II Reinado. Trata-se de mostrar como se articulavam essas
exposições ao teatro de corte de dom Pedro II e, por outro lado, de destacar seu papel
no incipiente mercado de artes do Rio de Janeiro.
Uma história das Exposições Gerais − Egbas
As exposições gerais da academia de belas artes:
Teatro de corte e formação de um mercado de
já foi traçada, em suas linhas gerais, por alguns
artes no Rio de janeiro| The aim of this article is
autores. Apesar disso, pode-se afirmar que se
to discuss the place of the General Exhibitions of
conhece pouco a respeito desses eventos, o que
the Academy of Fine Arts in the cultural life of
chama atenção, tendo em vista, em primeiro lugar,
19th century Rio de Janeiro. I intend to show their
sua longevidade. Entre 1840 e 1884 a Academia
relationship with the “teatro de corte” around
d. Pedro II and also to point the role of these
Imperial de Belas Artes − Aiba promoveu 26
Exhibitions in the incipient art market of Rio de
Exposições Gerais, apresentando 3.315 obras de
Janeiro. | Exposições gerais da academia de
1
516 artistas, em média, portanto, mais de uma
belas artes colecionismo mercado das artes no
exposição por ano. Talvez se possa aventar que
rio de janeiro do sec XIX
aconteceu aqui o que se passou na historiografia
europeia: durante muito tempo os Salões e exposições organizadas no âmbito acadêmico foram
desprezados pelos pesquisadores, mais interessados em reconstituir a trajetória dos refusés e dos que
construíram as bases para o surgimento das vanguardas.2 Também no Brasil a arte oitocentista foi
durante longo tempo pouco estudada, e as Egbas foram objeto de algumas enumerações e crônicas,
mas raramente atraíram análises mais profundas.3
Vale lembrar que o interesse pelas exposições ganha sentido quando iluminado por perspectiva
historiográfica que ultrapassa o objetivo de discutir apenas o “conteúdo” das obras. Alguns historiadores
vêm mostrando como os critérios artísticos, bem como o maior ou menor valor atribuído a um ou outro
artista, são afetados por contextos mais amplos: o mercado, o museu, padrões de gosto que funcionam
Ilustração para Salão caricatural de 1884
Fonte: Revista Ilustrada, 1884, ano 9, n. 396. Arquivo Edgard Leuenroth
– IFCH/ Unicamp.
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muitas vezes de maneira independente daqueles que
partir de então. Em 1849, na décima edição do
A ideia de que visitar as Exposições Gerais era
farfalhenta de palmas e florear de tirsos
regem a apreciação das artes visuais. Desse ponto
evento, seriam 23 expositores. Dez anos depois,
passatempo de um grupo seleto e refinado de
(...)15
de vista, interessa entender também a trajetória
94, sendo três mulheres e 68 estrangeiros. Outra
pessoas se manteria nas décadas seguintes:
das obras, o contexto em que foram expostas, suas
prova do sucesso da iniciativa é que na década
“Visitamos a academia das Belas Artes, que abriu
relações com imagens e modos de ver próprios a
de 1860 começam a ser publicados os catálogos
ontem as portas à turba dos amadores, que
determinada época, entre outros aspectos.4
independentes de cada Exposição Geral.7 Não
esperavam ansiosos por esta época do ano, em
por acaso, em 1868 o secretário João Maximiano
que podem ir maravilhar-se das criações do gênio
Mafra escrevia ao diretor Tomás Gomes dos Santos
dos apóstolos da arte divina.”12
Meu
objetivo
é
apontar
como
as
Egbas
articulavam-se ao que já foi chamado por mais
de um pesquisador de “teatro de corte” de dom
Pedro II, bem como a importância desse evento
5
para o surgimento de um incipiente mercado de
artes no Rio de Janeiro.
que era preciso exigir a apresentação dos convites
na abertura da exposição, para evitar a entrada de
penetras.8 De tal forma esses eventos entraram no
calendário da corte, que já em 1839 um cronista
observava: “A visita à Academia das Belas Artes
entrou este ano a ser da moda.”
9
Rio de Janeiro guardas para cuidar das salas e
evitar “danos às obras”. Finalmente, expediu
promovia exposições − indício de que havia
personagens da corte de dom Pedro II:
flores e folhas de canela e mangueira para ornar o
interesse, já por parte dos mestres franceses,
políticos,
comerciantes
edifício desta Academia no dia 15 de março, em
em fazer da instituição criada no Rio de Janeiro
e visitantes estrangeiros: “Presentemente a
que S.M. o Imperador se digne honrar a abertura
mais do que simples escola de artes. Já em
corte e a cidade afluem com ativa curiosidade
da Exposição Geral.”13
1829, apenas três anos após a inauguração
às salas do palácio das artes, e o belo sexo
afronta os raios de um sol perpendicular em
No romance Mocidade morta (1899), escrito pelo
da Academia Imperial de Belas Artes, Debret
promoveu sua primeira exposição de alunos. Em
romaria ao templo do gosto.”10
1840 o diretor Felix-Émile Taunay conseguiria
No dia 10 de dezembro de 1843, às 10 horas da
sistema composto por artistas, público e críticos
manhã, o casal imperial foi recebido na Academia
que viviam ao redor da Academia em finais do
pelo ministro do Império, o diretor da instituição
século 19 seria descrito com grande minúcia.14
e a congregação de professores. “Estavam já
É esse texto poético que fornece uma pista de
reunidos vários convidados da corte e corpo
como eram utilizadas essas folhas de mangueira
teriam, a partir de então, papel fundamental
tanto no funcionamento da Academia quanto na
diplomático.” O cronista descreve a visita dos
desgalhada de fresco, infiltrava-se no ar,
do pequeno texto dá uma ideia da importância
saturando-o, como se boiasse em torno do
que
os
bojo, suspenso na claridade, turibulando
A primeira, em 1840, contava com dez expositores,
monarcas se demoraram por duas horas na
à sua grandeza os aromas capitosos
sendo seis professores da Academia. A exposição
Academia. Antes de ir, dom Pedro teria garantido
dos antigos festivais de triunfo, cheios
de 1843 já incluía 28 participantes. O número de
ao diretor o quanto estava “(...) satisfeito com a
de pandorga épica de campânulas e
pessoas que expunham obras, entre artistas locais
exposição deste ano.”11 As visitas do imperador à
trombetas ao escaldar hosânico das
e estrangeiros, cresce de modo impressionante a
Academia acabariam tornando-se um hábito.
recepções aos bravos, sob a agitação
as
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exposições
estavam
os valores monárquicos. Dom Pedro era recebido
com pompa, o que atraía também as principais
figuras da corte carioca. A esse ‘teatro de corte’
e canela:
Um cheiro acre de folhagem esparzida,
apresentadas, justamente, durante essas mostras.6
local de encenação de ritual em que se afirmavam
roman à clef por mais de um pesquisador, o
quais obras o imperador ficou mais tempo. O final
obras de arte do período monárquico foram
Ao sediar as exposições, a Academia tornava-se
crítico Gozaga Duque, já caracterizado como
monarcas e faz questão de mencionar diante de
vida cultural do Império. Algumas das principais
130
comparados aos do contexto europeu.
inauguração. Também requisitou da polícia do
de Lagoa Rodrigo de Freitas [riscado] fornecer
interessados. As Exposições Gerais de Belas Artes
referência ao universo clássico aliava-se à pompa que
monarca e nação, que eram ainda bastantes novos se
no calendário de eventos dos mais influentes
da Academia, tornando-a acessível a todos os
também evocavam as festas da Antiguidade. A
em grande gala, estivesse presente no dia da
Praticamente desde sua fundação a Academia
discursos e artigos de jornal: ampliar a exposição
perfumavam e decoravam os ambientes, como
solicitando que a Guarda de Honra, vestida
solicitação para “mandar pelo Jardim Botânico
emplacar uma ideia sobre a qual vinha falando em
da Academia. Folhas, palmas e tirsos não apenas
cercava o imperador, dotando de ‘tradição’ instituição,
As Exposições Gerais entraram rapidamente
ricos
efeitos simbólicos da decoração sobre os visitantes
Na edição de 1859, o diretor expediu ofício
As exposições e o teatro de corte
funcionários,
Com notável argúcia, o romancista detecta os
ganhando:
Ilustração para Salão caricatural de 1884
Fonte: Revista Ilustrada, 1884, ano 9, n. 396. Arquivo Edgard Leuenroth
– IFCH/ Unicamp.
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vinham associados, porém, valores próprios à
Organização dos quadros e formas de
responsável pela “(...) colocação de todas as obras
Nos salões franceses, esse padrão expositivo
nação independente: o hino nacional sempre
apreciação
expostas; trabalhos de armador, e aluguel das
herdado dos antigos gabinetes de curiosidades
respectivas fazendas”17
cedo começa a se revestir de hierarquias.19 Em
abria o cerimonial. Finalmente, o evento era
reverberado pelos jornais da corte, criando o que
Benedict Anderson já chamou de “comunidade
imaginada” que, nesse caso, associava as artes
à vida cortesã e essas às práticas próprias a uma
“nação” independente.16
A inauguração de uma Exposição Geral era objeto
de longos preparativos e muitos gastos. Para
A rápida descrição dá ideia de como devia parecer-
organizar a de 1879 foram chamados pintores,
se a Exposição Geral aos visitantes. A Academia
douradores, carpinteiros, ferreiros, lustradores,
carioca seguia o exemplo dos Salões europeus de
servidores que cuidassem da lavagem da casa e
decorar as paredes com fazendas e tecidos finos
da arrumação de ferragens e esculturas. A relação
e, sobre eles, pendurar o quadros. Nesse aspecto,
menciona Luiz de Castro Teixeira, que teria ficado
os douradores eram mais do que necessários, pois
cabia-lhes preparar as molduras dos quadros.
Em contraste com os tecidos de cores fortes, o
dourado das molduras sobressaía, delimitando os
espaços entre os quadros. A Revista Ilustrada traz
representação notável da aparência desses eventos.
primeiro lugar, tratava-se de solucionar um
problema de espaço. Além disso, a organização
das obras obedecia àquela dos gêneros de pintura.
No alto, ficavam os quadros maiores, geralmente
as cenas bíblicas ou mitológicas, ou de grandes
feitos históricos. Esses quadros dificilmente
eram compreendidos, pois só uma parte do
público possuía cultura suficiente para entender
as refinadas alusões históricas e mitológicas
que continham, motivo pelo qual, aliado a suas
grandes dimensões, geralmente ocupavam a
região mais alta da parede. A seguir, vinham os
Na imagem de Ângelo Agostini, veem-se embaixo
retratos e os quadros considerados “melhores”.
os quadros menores – aparentemente, paisagens
E por último, a pintura de gênero, a natureza-
– e, em cima, obras maiores, em meio às quais
morta, as paisagens.20 A imagem de Agostini
é possível reconhecer telas de Pedro Américo,
revela que a Academia carioca organizava sua
como A Carioca, A Noite com os gênios do
exposição segundo os princípios expográficos e os
estudo e do amor, Judite rende graças a Jeová
valores artísticos dos salões franceses.
por ter conseguido livrar sua pátria dos furores
de Holofernes, entre outros. Os bancos no centro
da sala também evocam a estrutura dos Salões
As exposições gerais e o surgimento de um
franceses, cujos espaços para repouso serviam a
mercado de artes no Rio de Janeiro
um tipo de fruição artística muito característico:
Nem tudo na Academia carioca, porém, seguiu
permitiam a contemplação lenta e meticulosa
das obras, a comparação entre os diversos
quadros expostos, bem como a troca de opiniões
entre os espectadores.
As obras eram dispostas bem próximas umas das
outras, muitas vezes cobrindo toda a extensão
Ilustração para Salão caricatural de 1884
Fonte: Revista Ilustrada, 1884, ano 9, n. 396. Arquivo
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o caminho trilhado pelo modelo francês. Na
verdade, uma análise comparativa indica que,
pelo menos no que se refere às exposições
gerais, a experiência acadêmica no Rio de Janeiro
teve desdobramentos peculiares. Para examinar
a questão, vale retomar a história dos Salões
da parede, do teto ao nível do olhar. Ocupando
franceses até finais do século 19.
todos os centímetros disponíveis, os quadros
A Academia francesa começou em 1699 a pro-
ficavam quase colados uns aos outros, o que só
mover os chamados Salões, que passaram a
era possível porque cada obra era vista como
acontecer de forma sistemática a partir de 1737,
entidade independente, fechada em seu próprio
tendo papel fundamental na história da arte
esquema perspético, isolada de sua vizinha pelas
europeia. Até então, o público só entrava em
pesadas molduras.18
contato com arte de alto padrão secundariamente,
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133
em festas religiosas ou cívicas, quando aristocratas
artística, através da École, mas também sobre o que
escravos. A cidade foi invadida por novos hábitos
que esses homens ocupavam no âmbito da
e burgueses abastados expunham suas posses
deveria e podia ser mostrado, através dos Salões,
de consumo: cavalos árabes, jóias, relógios,
exposição geral: “N.B.: as descrições dos quadros
em pátios de igrejas e praças públicas.21 Com
começa a perder importância.
‘roupas feitas’, produtos manufaturados com as
e a designação de seus autores e escolas foram
Todo o processo gerou diversos movimentos de
mais diferentes funções foram introduzidos no
ministradas pelos seus possuidores, e exaradas no
Nesse contexto,
catálogo sem alteração; excetuam-se os quadros
o advento do Salão, o homem comum podia
ter acesso aos quadros, experimentando prazer
antes reservado apenas a uma exclusiva elite de
mecenas e seus amigos íntimos. O Salão é, assim,
a primeira experiência de arte totalmente pública
da Europa.22
alguma medida, com os valores tradicionais, mas
dia a dia da ‘boa sociedade’.
também objetos de arte passam a ser cada vez
de S. Majestade o Imperador.”33
também entre os acadêmicos, descontentes com
mais comercializados.
a perda de privilégios e clientes – consequência da
Araújo Porto-Alegre faz referência a pelo menos
meios diversos termos e conceitos próprios
dois colecionadores ativos no período: “Na galeria
à atribuição de valor na tradição da história
de quadros do Sr. Manoel José Pereira Maia, um
e da apreciação artística. Os apreciadores
dos homens mais curiosos e que tem maiores
e proprietários de obras de arte da corte já
preciosidades em todo o gênero de Belas Artes,
possuíam, em alguma medida, noções próprias
existe um painel de Manoel Dias representando a
ao mercado de arte no Ocidente, tais como
caridade romana.”
autoria, título, escola, entre outros. Esses valores
ampliação do número de artistas e de gêneros de
Tradicionalmente a pintura histórica era gênero de
pintura. Tornando-se pouco atrativos tanto para
grande prestígio, mas, assim como a estatuária,
os que desde meados do século, com Courbet,
dependia das encomendas estatais para ser
começam a procurar espaços alternativos para
realizada. Os custos envolvidos na preparação
expor suas obras quanto para os demais artistas,
e realização de grandes telas, assim como dos
os Salões acabaram suprimidos no final do século.
monumentos, eram elevados. O objetivo inicial
Pode-se dizer, assim, que o desenvolvimento e
dos Salões era, por isso, mostrar ao público as
ampliação desses espaços resultaram, na França, no
Menciona também José de Oliveira Barbosa, que
grandes obras de história comissionadas pelo
enfraquecimento da Academia e seus dispositivos.
teria, em sua coleção, alguns camafeus feitos por
Estado aos membros da Academia.
134
revolta não apenas entre artistas que rompiam, em
26
Já no caso do Rio de Janeiro a história reveste-
27
Mestre Valentim.28 O representante do Brasil na
Rússia, José Ribeiro da Silva, ofereceu à Academia
O texto sugere que já circulavam em determinados
eram informações importantes, pois situavam o
lugar das obras na história da arte, destacando
os artistas considerados “mestres” dos simples
membros de uma ou outra “escola artística”.
Além disso, como o autor do catálogo faz questão
O destino e os objetivos do Salão mudam para
se paulatinamente de contornos próprios. Como
sempre com a Revolução Francesa. Em 1791, a
sede da corte e principal porto do Império, a cidade
Commune des Arts propõe que o Salão passe a ser
concentraria crescente comércio de luxo. Quadros
aberto, expondo não apenas as obras dos membros
e livros misturavam-se a objetos de decoração e
da Academia, mas de todos os artistas julgados
móveis em leilões e lojas. Sabe-se de alguns lei-
para a Academia.30 Outras referências encontradas
aptos para tal. Alguns anos mais tarde, Vivant
lões promovidos por comerciantes, geralmente
no Museu dom João VI indicam que a prática de
Denon convence Napoleão de que era mais rentável
estrangeiros, que incluíam a venda de obras de
colecionar ou, pelo menos, de comprar obras
para o Estado comprar quadros que já estavam em
arte, caso do que foi realizado, em 1840, por Luiz
de arte não era tão incomum no Rio de Janeiro
exibição.23 Como resultado, por volta de 1870 o
A. Boulanger, incluindo a venda de “Riquíssima
oitocentista como em geral se pensa.
de um mercado de artes, mas de um ambiente
dinheiro oferecido pelo governo para quadros de
coleção de painéis a óleo, pertencentes às
escolas italianas, flamenga, alemã e francesa”.
Em diversas exposições gerais não apenas dom
em que obras de arte eram encomendadas e/
história tornara-se tão pouco, que só os iniciantes
O leiloeiro acrescentava que os amantes das
Pedro II, mas também colecionadores particulares
ou compradas.
se dedicavam aos assuntos históricos. A maioria,
incluindo artistas acadêmicos, sobrevivia da venda
belas pinturas encontrariam diferentes “gêneros
aproveitavam para apresentar obras de suas
As Exposições Gerais funcionaram não apenas
de quadros menores para colecionadores privados.
reunidos: paisagens, combates, tableaux de genre
coleções.31 A
de 1859 exibia obras de nada
para os artistas da Academia. Nem simplesmente
Lentamente o mercado de artes passa a funcionar
et mythologiques, retratos, panoramas, muitos
menos do que seis colecionadores privados,
eram momento em que se desenrolava mais uma
fora do Salão. E pinturas de paisagem e retratos –
quadros da história sagrada, o nascimento de
além do imperador. A Noticia do Palacio da
cena do teatro de corte, tão importante para a
mais acessíveis ao grande público, nem sempre culto
Nosso Senhor Jesus Cristo, descida da cruz (...)”,
Academia daquele ano traz, a respeito disso,
manutenção da monarquia em terras tropicais.
ou abastado o suficiente para consumir a pintura de
além de aquarelas, objetos e vestimentas de
algumas informações interessantes. Havia três
Funcionavam também a serviço de particulares
história – passam a ocupar cada vez mais espaço nas
luxo.25 Na década de 1850, o comércio de luxo
homens como o título de comendador entre os
que as usavam para negociar: expor e, quem
paredes do Salão. E a Academia, que antigamente
receberia impulso ainda maior graças à liberação
colecionadores, e pelo menos um estrangeiro.32
sabe, vender, trocar, ou comprar obras de outros
detinha o monopólio não apenas sobre a formação
de capitais antes comprometidos com o tráfico de
O catálogo também é significativo do lugar
colecionadores. Desse ponto de vista, a experiência
24
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quatro quadros de Jean-Baptiste Debret.29 Em
1877 Henrique Diniz da Silva Faria vendeu dois
retratos a óleo feitos por Henrique José da Silva
de enfatizar, eram os próprios colecionadores que
informavam a Academia a respeito da atribuição
de suas obras. Afinal, o nome do artista, a
“escola” à qual se filiava, o nome da obra, eram
fundamentais para lhe atribuir valor. Desse
modo, os catálogos de exposições das Egbas
informam sobre a existência não propriamente
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135
carioca transcorreu em sentido radicalmente
5 O termo é utilizado por pesquisadores como
12 M. A. “Academia das Belas artes”, Jornal do
23 “In this gesture, the Salon became a store,
oposto ao que ocorreria nos Salões franceses. As
Carvalho, J. M. de. A construção da ordem; teatro de
Commercio, 18 de dezembro de 1852.
and artists became free-market small producers”,
Exposições Gerais foram importante instrumento
sombras. 3. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
para o funcionamento da corte e também para a
2003; e Schwarcz, L.M. As barbas do imperador: dom
estruturação de um incipiente mercado de artes
no Rio de Janeiro do Império.
NOTAS
1 Levy, Carlos Roberto Maciel. Exposições Gerais da
Academia de Belas Artes. Catálogo de artistas e obras
entre 1840 e 1884. Rio de Janeiro: Pinakotheke,
1990:13.
das Letras, 1998, entre outros, para descrever as festas,
cerimônias e rituais do governo imperial.
6
Os
artistas
costumavam
preparar
24 Sobre o assunto ver, por exemplo, Marques dos
presença do imperador na abertura da Exposição
Santos, op. cit.
Geral, como também flores e folhas de canela e
mangueira do Jardim Botânico, que era Lagoa
especialmente para apresentar nas exposições
de 12 homens do corpo policial da corte para
26 Alencastro, L.F. Vida privada e ordem privada no
coletivas, fossem promovidas pela Academia ou,
vigilÂncia da exposição” (11.3.1859) Arquivo do
império. In Alencastro, L.F. (org.)., História da vida
mais tarde, na República, pela Escola Nacional de
Museu D. João VI:1575.
privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia
Belas Artes. Ver Cavalcanti, Ana Maria Tavares. A
relação entre o público e a arte nas Exposições
Gerais da Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro
14 Eulálio, Alexandre. Sobre Mocidade Morta. In
27 Porto-Alegre. Manoel Dias, o Romano. Revista
Casa de Rui Barbosa, 1988:183-89.
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1848,
15 Gonzaga Duque, A arte brasileira, São Paulo/
Salon: art and the State in the early Third Republic.
Rio de Janeiro: Comitê Brasileiro de História da Arte,
Campinas, Mercado de Letras, 1995, p.:16.
Cambridge: Cambridge University Press, 1994.
2004:49-58.
3 Dos autores que reconstituíram as Exposições
7 Fato também observado por Fernandes, Cybele
sobre el origen y la difusión del nacionalismo. México:
Gerais podem-se citar Rios Filho, O ensino artístico:
Vidal Neto. Os caminhos da arte. O ensino artístico
Fondo de Cultura Económica, 1993.
subsídios para sua história. In: Anais do Terceiro
na Academia Imperial das Belas Artes. 1850-1890,
Congresso de História Nacional, IHGB, 1938. Rio de
tese de doutorado, UFRJ, 2001.
de História do Segundo Reinado (Comissão de
8 “Cartas de João Maximiano Mafra a Tomás Gomes
dos Santos, sugerindo medidas a serem tomadas
na solenidade e premiação de artistas. Acompanha
carta aprovando as sugestões.” 1868, Arquivo do
História Artística), v.1, Brasília/Rio de Janeiro: IHGB.,
Museu D. João VI:1275.
1984:204-352; e Levy, op. cit.
9 Correio das Modas, 1839, apud Marques dos
4 Dos que trataram desses ou de assuntos correlatos,
Santos, Francisco. “Subsídios para a história das
podem-se mencionar Haskell, Francis (La norme et le
belas artes no Segundo Reinado – as belas artes na
das Letras, 1997.
Sobre o pré-modernismo. Rio de Janeiro: Fundação
Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte.
Histórico e Geográfico Brasileiro/Anais do Congresso
ver também Cavalcanti, op. cit.
Rodrigo de Freitas, para ornar, e uma guarda
francês, ver Mainardi, Patricia. The end of the
Artes no Segundo Reinado, Revista do Instituto
25 Marques dos Santos, op. cit:119. Sobre o assunto
obras
na segunda metade do século X. Anais do XXII
As Exposições Gerais na Academia Imperial das Belas
Mainardi, op. cit:14.
designação de uma guarda de honra em virtude da
2 Para uma discussão dessa questão no contexto
Janeiro, Imprensa Nacional, 1942. Mello Jr, Donato.
16 Anderson, B. Comunidades imaginadas: relexiones
suplemento.
28 Porto-Alegre. Iconografia brasileira. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,1856:371.
29 Apud Levy, op.cit.:131.
30 “Minuta de ofício da AIBA ao ministro do Império
17 “Relações das contas das despesas efetuadas
remetendo a conta da aquisição de dois retratos
com a Exposição Geral de Belas Artes, inaugurada
a óleo de Henrique José da Silva e vendidos por
em 15.3.1879” Arquivo do Museu D. João VI: 3019.
Joaquim Diniz da Silva”. Arquivo do Museu D. João VI:
18 “A pintura de cavalete é como uma janela portátil
1329.
que, colocada na parede, cria nela a profundidade
31 Sobre o assunto ver Rios Filho, op. cit.
do espaço”, O´Doherty, Brian. No interior do cubo
branco: a ideologia do espaço da arte. Rio de Janeiro:
32 Noticia do palacio da Academia Imperial das
Martins Fontes, 2002:8.
Bellas Artes do Rio De Janeiro e da exposicao de
19 Schaer, Roland. L´Invention des Musées. Paris:
Garcia, 1859.
1859. Rio de Janeiro, Typographia Imparcial J.M.N.
Gallimard/Réunion des Musées Nationaux, 1993.
caprice. Paris: Flammarion, 1986; Mecenas e pintores
Regência”, Estudos Brasileiros, v. 9, ano V, Rio de
na Itália Barroca. Arte e sociedade na Itália Barroca. São
Janeiro, 1942:16-149 (101).
20 Crow, op. cit.
Paulo: Edusp, 1997; Passado y presente en el arte y en
10 “Comunicado. Academia das Belas Artes,
21 Há excelente descrição em Haskell, 1997, op. cit.
exposição pública de 1842”, Jornal do Commercio,
22 “But the Salon was the first regularly repeated,
Leticia Squeff é professora de arte ocidental
18 de dezembro de 1842.
open, and free display of contemporary art in Europe
do séculos 18 e 19 no Departamento de História
Thomas. Painters and public life in Eighteenth-century
11 “Visita de SS.MM. Imperiais à Exposição Geral da
to be offered in a completely secular setting and for
da Arte da Unifesp (Guarulhos, São Paulo). Vem
Paris. Yale: Yale University Press, 1991; Mainardi, op.
Academia das Belas Artes”, Jornal do Commercio, 10
the purpose of encouraging a primarily aesthetic
desenvolvendo pesquisas sobre arte no Brasil e na
cit., entre outros.
de dezembro de 1845.
response in large number of people”, Crow, op. cit:3.
América Latina nos séculos 18 e 19.
el gusto. Madrid: Alianza Editorial, 1989); Gaethgens,
Thomas W. Versailles – de la résidence royale au musée
historique. Antwerpen: Mercatorfonds, 1984; Crow,
136
Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia
13 “Minutas de ofícios da AIBA, solicitando
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
33 Idem, ibidem.
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ARTE DAS FORMAS E ARTE DAS FORMAÇÕES
Theon Spanudis
arte não figurativa crítica de arte
neoconcretismo participação ativo-criativa
“Arte das Formas e Arte das Formações” foi escrito por Theon Spanudis (1915-1986),
médico psicanalista, de origem grega, que se mudou para o Brasil em 1950. Era
também poeta e crítico de arte, e foi um dos primeiros a valorizar obras de artistas
como Volpi e Mira Schendel, formando uma importante coleção que foi doada ao
MAC-USP em 1979. Esse texto, trata-se de uma reflexão, e para o pesquisador um
documento de grande interesse por ser um testemunho de época assinado por alguém
com envolvimento pessoal nos acontecimentos em curso, com preferências estéticas
definidas e posicionamentos teóricos assumidos, porém disposto a transpor barreiras
e colocar em debate tendências artísticas.
Theon Spanudis (Esmirna, Turquia, 1913 – São
Paulo, 1986) desempenhou funções bastante
definidas no ambiente cultural paulistano, desde
sua chegada em 1950.
Depois da independência da Turquia, sua família
retornou a Atenas, em 1922. Lá Theon Spanudis
cursou o ensino fundamental e entrou em
contato com o ambiente de cultura frequentado
por seus pais, que encaminharam sua atenção
para a literatura e as artes. Médico formado na
Universidade de Viena em 1940, especializou-se
em psicanálise no Instituto de Psicanálise de Viena.
| “Arte das Formas e Arte das Formações” foi
escrito por Theon Spanudis (1915-1986), médico
psicanalista, de origem grega, que mudou-se para
o Brasil em 1950. Era também poeta e crítico de
arte, e foi um dos primeiros a valorizar obras de
artistas como Volpi e Mira Schendel, formando
uma importante coleção que foi doada ao
MAC-USP em 1979. Esse texto, trata-se de uma
reflexão, e para o pesquisador um documento de
grande interesse por ser um testemunho de época
assinado por alguém com envolvimento pessoal
nos acontecimentos em curso, com preferências
estéticas definidas e posicionamentos teó arte
não figurativa crítica de arte neoconcretismo
participação ativo-criativa |
Chegou a São Paulo em resposta ao convite da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo,
Martin Kippenberger
Candidature à une rétrospective (Candidatura a uma retrospectiva), 1993
Primeira versão, foto de grupo, Martin Kippenberger 40º aniversário - Litografia offset
27 16/09 x 19 11/16 polegadas (70 cm x 50 cm)
© Propriedade de Martin Kippenberger, Galerie Gisela Capitain, Colônia
RE E DI ÇÃO | TH E O N S PAN U DI S
139
como analista didata. Logo se aproximou de
gosto pelo papel do crítico introdutor do artista e
primeiro parágrafo, apresenta como sendo então
a tese Construtivismo fabulador: uma proposta
artistas e escritores, começou a colecionar obras
da arte a seu público. Deixou um grande número
foco de debate apaixonado.
de análise da coleção Spanudis, e graduada em
de arte, a reunir vasta biblioteca e a escrever seus
de apresentações em catálogos de exposições e
primeiros textos sobre arte. Até 1957 clinicou e
artigos em periódicos. São textos sobre os grandes
lecionou, sendo indiscutível sua contribuição para
temas da arte, sua história, os acontecimentos
o percurso da psicanálise no Brasil. A partir de
do momento. Autodidata, detentor de vasto
então fechou o consultório definitivamente, para
conhecimento, Spanudis tinha visão bastante
se dedicar ao que considerava sua verdadeira
particular das questões da arte, empregava
vocação: a literatura e as artes.
terminologia própria para a discussão de tópicos
O gosto por escrever, principalmente pela poesia
concreta, a partir do final dos anos 50, aproximou
Spanudis das ideias do suíço Eugen Gomriger, a
quem creditava os caminhos abertos em relação
ao uso mais limpo e econômico da palavra e ao
emprego do som mais próximo à música e da
imagem ao desenho, sem contudo excluir as
possibilidades sensíveis do radicalismo racionalista.
Abraçou conceitos da fenomenologia, relacionados
ao entendimento do tempo e das relações artista/
público/processo criativo, que o afastaram das
alguns, era bastante respeitado por outros.
Seu pensamento sobre arte está disperso. Suas
preferências em arte, de maneira mais eloquente
do que em palavras, estão manifestas nas 453 obras
de arte doadas ao Museu de Arte Contemporânea
da USP. Além dos muitos artigos publicados, seu
arquivo legado ao IEB-USP reúne quantidade
ainda maior de originais: alguns esboços para
futuros livros, outros artigos completos, algumas
ideias a desenvolver, conferências proferidas e
posições tomadas pelos artistas concretistas de
cursos já ministrados ou planejados.
São Paulo e o aproximaram dos integrantes do
“A arte das formas e a arte das formações”
Grupo Frente, do Rio de Janeiro. O ano de 1959
é um desses originais, provavelmente de
foi marcado por aspectos significativos em seu
princípios dos anos 60. Não há indicações de
percurso: a assinatura do Manifesto Neoconcreto,
suas intenções quanto a ter sido escrito para
colaboração em eventos do grupo, participação
publicação em catálogo de artista, em coleção
no Congresso Internacional Extraordinário de
de ensaios, como esboço para um futuro livro,
Críticos de Arte da Aica (Brasília, São Paulo e Rio de
como texto de palestra. Para o pesquisador
Janeiro) em que defendeu a ação dos artistas como
é documento de grande interesse por ser
criadores e agentes incentivadores do público
testemunho de época assinado por alguém
como co-criadores, entendendo a experiência
com envolvimento pessoal nos acontecimentos
estética como educação.
Seu tom é conciliador, uma vez que se propõe a
verificar se as duas tendências seriam realmente
tão antagônicas como postulado por “seus
representantes e não menos pelos seus críticos
partidários”. Propunha-se a avaliar a existência
de “pontos de interferência, aproximação e
convergência” que não justificassem, “em última
análise, toda essa turbulência polêmica”.
É peculiaridade do texto o modo a que se refere
às duas tendências abordadas, discutindo
contribuições e associações, sem estabelecer
polaridades. Cumpre também observar sua análise
do embate de tais manifestações como fruto do
presente e, citando a alusão feita por Herbert Read,
das ideias de Wörriger, por considerar anacrônicas
educação artística pela FAAP-SP, onde leciona
história da arte; diretora do Museu de Arte
Brasileira – FAAP- SP; curadora de exposições de
arte e pesquisadora em história da arte.
Arte das formas e arte das formações
Theon Spanudis
Dentro das inúmeras manifestações da arte
contemporânea, duas são as tendências principais
que tomam posições de extremo antagonismo. Essas
demarcam as fronteiras entre as quais se desenrola
o panorama da arte contemporânea com as suas
múltiplas orientações, às vezes intermediárias entre as
duas correntes opostas. E em volta dessas tendências
de extrema oposição é que se desenvolve o debate da
crítica contemporânea. Frequentemente tão violento
e apaixonado como há anos atrás quando dos
debates em torno da arte figurativa e não figurativa.
O objetivo deste artigo é examinar de fato se essas
duas tendências são assim tão antagônicas como
apresentadas pelos seus representantes e não menos
pelos seus críticos partidários. Ou, ainda, se existem
pontos de interferência, aproximação e convergência
que não justificam, em última análise, toda essa
turbulência polêmica.
quaisquer tentativas de interpretação do confronto.
As duas correntes em exame, ora apresentadas, são
em curso, com preferências estéticas definidas
Na verdade, Spanudis propõe reflexão bastante
as seguintes:
e posicionamentos teóricos assumidos, porém
pessoal sobre questões relacionadas à formação das
1ª) aquela que parte de e opera com
disposto a transpor barreiras e colocar em
estruturas, suas superações e a participação de artistas
ideias e elementos formais de antemão
debate
e público no processo de constituição das obras de
controláveis, ou seja, ideias e formas
momentos convertidas em arenas de combate.
arte, ou seja, os caminhos do Neoconcretismo.
matemáticas e geométricas. Característica
e obras de arte, descrevia-se como colecionador
Trata-se de reflexão de época, sobre duas das
Maria Izabel Branco Ribeiro é doutora e mestre
desta tendência é o exercício do controle
apaixonado, e em seus escritos transparecem o
muitas tendências de arte de seu tempo, que, no
em história da arte pela ECA-USP, tendo defendido
Poeta concreto, amante de estruturas, autor de
hinos, tradutor de autores gregos, Spanudis
era frequentador assíduo de ateliês, galerias e
exposições. Apreciava a convivência com artistas
140
que lhe eram caros e, se considerado diletante por
Com habilidade, denomina as correntes analisadas
arte das formas e arte das formações. Por arte
das formas abrange as tendências que operam
“com ideias e elementos formais de antemão
controláveis, ou seja, ideias e formas matemáticas
e geométricas”. Por arte das formações, descreve
a intenção “de atingir na obra de arte a suposta
naturalidade do acaso, evitando sistematicamente
qualquer manifestação que demonstre controle
ou a vontade de um controle consciente” em sua
elaboração. Evidencia existirem diversos ramos de
uma e outra tendência, localizando nos extremos
os radicalismos dos debates.
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
tendências
artísticas,
em
muitos
consciente, ou a vontade de controlar
RE E DI ÇÃO | TH E O N S PAN U DI S
141
conscientemente a produção artística
Assim, em vez de chamarmos arte concreta
excluindo ao máximo possível (ou ao
ou neoconcreta, proporíamos chamá-las de
quanto for possível) o fator acaso.
arte das formas; em vez de tachismo, arte
2ª) aquela que tem como objetivo atingir
na obra de arte a suposta naturalidade
do
acaso,
evitando
sistematicamente
qualquer manifestação que demonstre
controle ou a vontade de um controle
consciente na elaboração da obra. Neste
segundo caso, poderíamos dizer que todo
controle consciente (que naturalmente
existe e opera tanto quanto no caso da
primeira corrente) gasta-se durante a
preparação da obra para então atingir a
sua própria extinção. O objetivo ideal da
chamá-las de arte das formações. Mas
quando falamos de arte das formas, seria
bom frisar, temos em mente somente
aquele tipo de arte em que é feito uso dos
elementos formais geométricos vivenciandoos apenas como elementos formais, e não
como símbolos. Pois é bem conhecido o
fato de que várias manifestações da arte
contemporânea utilizam-se das formas
geométricas
principalmente
pelas
suas
possibilidades simbólicas.
politicamente dirigidas que são mais propaganda
Os pontos em comum acima enumerados já
interpretativos em favor da arte das formações.
poderiam claramente recomendar mais cautela aos
Uns veem nela a continuação do expressionismo;
críticos nas suas aventuras polêmicas. Naturalmente,
outros,
cada crítico, como todo ser humano, deve ter
suas preferências temperamentais, mas em casos
extremos (de estrutura psicológica marcadamente
unilateral) podem elas transformar-se em graves
empecilhos aos seus possíveis leitores, a ponto
de impedir mesmo o vivenciar das produções de
corrente contrária à sua. Neste caso seria preferível o
crítico se limitar ao campo com o qual ele consegue
primeira corrente seria a autodeterminação
Apesar de todas estas diferenças de objetivos e
ter contato vivencial e evitar opiniões sobre outras
e
da
também de temperamentos, achamos que ambas
correntes alheias, nisso demonstrando, sempre e
vontade humana em autocontrolar-se e
essas correntes têm muita coisa em comum. Eis
somente, as suas próprias limitações. Acusar a arte
manifestação
porque propomos, em seguida, tentando um
das formações de uma suposta facilidade na sua
ativa, diríamos. O objetivo ideal da
primeiro levantamento, fixar os pontos de contato
segunda corrente seria a demonstração do
entre elas.
produção é um típico exemplo de política partidária,
a
demonstração
autodeterminar-se;
do
uma
poder
oposto; de que o homem não difere dos
processos da natureza. Esses processos,
embora regidos por leis, sugerem em nós
a vontade própria e consciente que os cria
e controla. Ainda esta segunda corrente
proclamaria a passividade do homem
(como a suposta passividade da natureza)
como o seu ideal de naturalidade. São
duas atitudes psicológicas opostas –
e aqui gasta toda a sua atividade de
controle consciente para atingir a ilusão
do acaso, e, na primeira corrente (quando
de fato criativa), toda a elaboração
ativa e consciente da obra pressupõe
os estados passivos da inspiração. São
dois
temperamentos
diferentes,
com
distribuições e acentuações nas escalas de
valores bem diferentes, se não opostas.
142
informal, action painting, etc., proporíamos
internos. Então, as semelhanças com a realidade
exterior são meramente ocasionais (isso, quando
as obras de ambas as correntes forem realmente
criativas), e de nenhum modo propositais.
que carece de qualquer objetividade e conteúdo
Ao contrário do surrealismo que opera em geral
principalmente pela exploração de assuntos
literários e conteudísticos, ambas as correntes
em questão operam só e unicamente por meios
formais, excluindo toda e qualquer alusão ao
assunto. Elas trabalham com meios estritamente
formais, que são os seus únicos conteúdos Ambas
se restringem em fixar acontecimentos internos
na sua realização formal, evitando qualquer
exploração secundária de alusão conteudística
(imagens, signos, símbolos, etc.). Por assim dizer,
ambas são antiliterárias e antisentimentais e
tendem a uma objetivação formal que é, ao mesmo
tempo, sua única expressão, seu único conteúdo.
As alusões à visão do mundo exterior, do mundo
dos objetos, tornam-se inexistentes na obra,
crítico. Não resta dúvida que a mesma acusação
dado o seu caráter de criação interna, da fixação
e realização objetiva de dados e acontecimentos
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
poderia ser levantada contra a arte das formas.
ou “engenhos” de influenciar e manobrar a
opinião pública.
Não menos estranhos são os argumentos
manifestações
e
proclamações
de
desespero existencial e atitudes suicidas, e assim
por diante, explorando várias vezes expressões
abstratas e, à maioria das vezes, gratuitas dos
próprios artistas.
Assim vemos que todas estas tentativas de
interpretação pecam pelo seu anacronismo.
São escritos de críticos fixados no antigo que se
projetam no novo. Nem a arte das formas nem
a das formações têm relação alguma tão estreita
com a arte do passado para permitir este tipo
de interpretações. Dado o caráter estritamente
pragmático de sua realização por meios formais,
apenas de dados e acontecimentos internos da
obra, excluem-se de antemão as interpretações
somente válidas para as formas antigas de arte.
Assim, ao artista dessa corrente que fosse fraco,
No seu livro History of Modern Art, (I959),
imitador e não bastante criativo, qualquer livro, por
Herbert Read utiliza-se das ideias de Worringer,
exemplo, de geometria plana forneceria “ideias”
numa tentativa interpretativa, para caracterizar
para a fabricação em série de obras desse tipo.
Não
menos
paradoxais
são
também
os
argumentos de defesa dos críticos de ambas
as correntes. Assim, por exemplo, favorecer
a diferença das duas correntes em exame.
Expandindo a hipótese da angústia metafísica que
Worringer levantou para uma angústia existencial
generalizada, típica do homem contemporâneo,
Read acha que a arte das formas representa uma
a arte das formas por motivos alheios à arte, –
tentativa de sublimação, e a arte das formações,
digamos – por motivos político-sociais (a arte que
a aceitação crua e realística desta angústia
ponha em “ordem”, que cultive a “ordem”, que
existencial, daí o caráter dramático dos seus
consequentemente favoreça o “pôr em ordem”
produtos. Read parece esquecer que as ideias de
dos males político-sociais). Tais pontos de vista
Worringer não passam de mera hipótese útil, sem
significam um abuso da arte para com outras
dúvida para facilitar a aceitação, naquele tempo,
finalidades (uma exorbitância da arte dentro de
de uma arte não figurativa. Típico produto da
outros terrenos), criativa, como no caso das artes
mentalidade ocidental que, enraizada nos ideais
RE E DI ÇÃO | TH E O N S PAN U DI S
143
naturalísticos de séculos de arte, precisava levantar
mas apenas utilizado como mero ponto de partida
hipóteses psicológicas para explicar as possibilidades
formal e, às vezes, até ocasional. O essencial neste
de uma arte não-naturalística. Não resta dúvida
tipo de arte é o próprio ato formativo e o seu
de que as hipóteses de Worringer não resistiriam,
tempo perpétuo, dado que a formação não chega
hoje em dia, ao menor exame sério e objetivo. Pode
a um resultado formal final.
ser que Read se utilize dessas ideias com o mesmo
objetivo de Worringer: para facilitar a aceitação
da arte não-figurativa. Por outro lado, ele facilita
também toda essa avalanche. de interpretações à
base de psicologismos gratuitos e anacrônicos de
uma crítica que ora vê na arte das formas expressões
monumentais, ora vê na arte das formações dramas
de desintegração, suicídios e sabe-se lá o que mais.
Na verdade ambas as correntes, nos seus momentos
de boa criatividade, apresentam as características
da criatividade em geral: o vivo, com toda a
complexidade e dinâmica do mesmo.
Existem, entretanto, em ambos os campos
algumas demonstrações, ao nosso ver, possuidoras
de uma tal convergência, pelo menos nos seus
efeitos finais, que merecem uma atenção toda
especial. Temos em mente aquele ramo da arte
das formações que, desinteressado no resultado
formal final e numa exploração secundária do
mesmo (seja no sentido decorativo, simbólico,
literário, etc.), limita-se ao ato da formação,
apenas ganhando com isso aspectos dinâmicos de
uma ação perpétua (que tende a uma finalização
mas que nunca se finaliza).
Como exemplo típico desta tendência,
consideraríamos o japonês Shiryû Morita que,
embora vindo da tradição caligráfica, na maioria
dos seus trabalhos expostos na V Bienal de São
Paulo, não demonstrava mais o ideograma
como ponto de partida. Mas, mesmo que o
demonstrasse (como no caso de Nankoku Hidai),
não teria a menor importância, uma vez que o
ideograma não é mais vivido e preservado como
tal (ou seja: com toda a sua carga de significações)
144
E algo semelhante parece-nos acontecer no
campo da arte das formas, a saber: aquele ramo
que, partindo do concretismo, superou a noção
racionalística de estrutura e que corresponderia
ao resultado formal último da arte das formações.
Trata-se da arte neoconcreta. O movimento
neoconcreto surgiu em fins de 1958, principalmente
pela iniciativa e insistência da artista Lygia Clark.
O movimento, em seu manifesto, tomou posição
somente contra o ramo racionalista da arte
concreta e a favor daquele ramo da arte concreta
que, embora não menos sistemático e controlável,
conseguiu produções com a expressividade
do vivo. Por isto o movimento incluiu também
artistas essencialmente concretos que sempre
alcançaram em sua obra a expressividade do vivo.
Naturalmente, essa tomada de posição somente
não justificaria chamar o movimento de neoconcreto, uma vez que sempre existiu uma arte
concreta expressiva ao lado de uma arte concreta
inexpressiva, que se limitava em concretizar
realidades matemáticas, muitas vezes até de
origem externa à obra. Quando nas reuniões
neoconcretas, tínhamos em mente justamente
o “novo” que esses artistas trouxeram na sua
obra (por exemplo: a superação da racionalística
de estrutura em arte) e esperávamos que, mais
cedo ou mais tarde, esse “novo” fosse se definir
teoricamente, mesmo para justificar o nome de
Luiz Sacilotto
Sem título,1956
esmalte sintético sobre madeira 29,7 x 50,1cm
Doação Theon Spanudis
Foto: Romuo Fialdini
Coleção Museu de Arte Cintemporânea da Universidade de São Paulo
Luiz Sacilotto
“Retângulo Eventual”, 1954
esmalte sintético sobre madeira 22,3x 50,3
Doação Theon Spanudis
Foto: Sérgio Guerini
Coleção Museu de Arte Cintemporânea da Universidade de São Paulo
“neo”. Infelizmente isso não se deu.
Em
todas
as
obras
plásticas
e
literárias
neoconcretas encontramos, como denominador
comum, a superação da noção de estrutura
(como racionalisticamente definida) e, com isso,
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145
finalização seria a estrutura acabada e, por isto,
das fases e dos possíveis desenvolvimentos
estática; seria o resultado formal final.
tempóricos que cada obra contém (isto dentro
A única diferença, em ambos os casos, é o ponto
de partida. O neoconcretismo parte dos elementos
formais controláveis, e o ramo da arte das formações
em questão parte dos elementos formais ocasionais.
O momento da convergência ou até identidade
é o caráter tempórico-dinâmico da captação e
realização do tempo de formação, do tempo
orgânico-vivencial-criativo. Idêntica é, também, a
exigência absoluta da participação ativo-criativa do
espectador na sua tentativa perpétua de finalizar o
ato permanentemente em ação.
ativo-criativa do espectador fica desnorteada por
ela não ser mais condicionada, como numa obra
neoconcreta, para agir somente numa direção
determinada) é que entra realmente em jogo o
fator acaso em meio a essa participação ativocriativa do espectador. Mas, neste caso a obra
de arte ganha uma independência em relação
ao espectador que a transforma num ser vivo,
independente de nós. Se a característica de uma
obra neoconcreta é a exigência absoluta de uma
participação ativo-criativa do espectador para que
examinando o novo desenvolvimento da artista
a obra fosse criada nas novas obras de Lygia Clark
Lygia Clark, que a nosso entender conseguiu
a participação é necessária somente para revelar
fundir estas duas tendências convergentes em algo
as várias possibilidades de desenvolvimentos
novo e inédito até agora. Da fase das superfícies
formais e tempóricos (mesmo assim pelo fator
moduladas (que era ainda pintura), passou à fase
acaso), mas não é mais a conditio sine qua
das superfícies sobrepostas (relevos) em que os
non da criação da obra. A obra como tal, com
problemas plásticos da fase anterior entraram em
toda esta riqueza de possibilidades virtuais e
plena e real tridimensionalidade, desvirtuando-se
reais, existe como um ser independente de
em parte com esta medida (a obra então realiza
nós, como um ser vivo e misterioso diante do
na realidade aquilo que nas obras da fase anterior
espectador. Somente nessas modernas máquinas
conteúdo principal da arte neoconcreta.
o espectador tinha de realizar mentalmente)
computadoras eletrônicas, que funcionam quase
É neste ponto que vemos a sua convergência
e enriquecendo-se em parte com novos tipos
que independentes de nós e do nosso controle,
de participação ativo-criativa do espectador.
é que veríamos um paralelo com as novas obras
Participações não mais do tipo visual-mental
de Lygia Clark. Tais obras deixaram nesta última
como anteriormente, mas mesmo do tipo tátil. Da
fase, a nosso ver, a fundir as duas correntes
fase das superfícies sobrepostas a obra de Lygia
convergentes. As suas esculturas são ao mesmo
Clark chegou à fase atual de esculturas polifásicas
tempo arte das formas e arte das formações, além
e politempóricas. Tais peças requerem novas
do fato (inédito até agora na arte contemporânea)
formulações teóricas devido ao seu caráter inédito
de uma independência, quase que completa da
até agora. A nossa formulação do neoconcretismo
obra de arte para com o espectador e que não
como superação da estrutura não bastaria para
se baseia na atemporalidade estática, típica
explicar teoricamente estas suas novas realizações.
das artes plásticas tradicionais, porém numa
A participação ativo-criativa do espectador passou
atemporalidade dinâmica que provém da soma
do plano visual-mental para o plano manual
de tantas possibilidades “tempóricas” contidas
também. Mas, considerando a multiplicidade
dentro da obra de arte.
a libertação e manifestação plena do tempo
orgânico, interior, vivencial, que é, ao mesmo
tempo, criativo e que se tornou, por assim dizer, o
com aquele ramo da arte das formações, de que
falávamos anteriormente. Em ambos os casos,
o que acontece é a captação e realização do
tempo interior, do tempo de um acontecimento
interior, do tempo de um acontecimento interiorvivencial, do tempo orgânico-criativo. Daí o
caráter dinâmico destas obras, que supera o
momento estático das estruturas e dos resultados
formais finais, o dinamismo tempórico perpétuo
que nunca se finaliza e que obriga o espectador
146
a reversibilidade desses processos (a participação
Achamos justo terminar estas constatações
Sem título,1953
óleo sobre tela 53,5 x 64,6cm
Doação Theon Spanudis
Foto: ???????
Coleção Museu de Arte
Contemporânea da
Universidade de São Paulo
Sem título, 1953
óleo sobre tela 50 x 60,2cm
Doação Theon Spanudis
Foto: Romulo Fialdini
Coleção Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo
de certos limites, naturalmente), como também
a uma participação ativo-criativa no processo de
tentar finalizar a ação que nunca se finaliza. A
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147
ALÉM DA CRÍTICA INSTITUCIONAL
Isabelle Graw
Isabelle Graw instituição
crítica cânone
Neste texto, Isabelle Graw pontua separadamente os problemas das terminologias
“crítica” e “instituição” e como ambas compõem uma expressão engessada e mal
compreendida historicamente. Interroga-se, então, como essa junção leva a uma
diluição de sentido na contemporaneidade – sobretudo a crítica prefere canonizar o
termo, bem como os artistas que foram por ele rotulados, como Daniel Buren, Hans
Haacke, Michael Asher e Marcel Broodthaers. Tal atitude afasta novas possibilidades
de questionar o âmbito institucional e de permitir que essas mesmas instituições
atuem criticamente.
Introdução
A própria decisão de colocar um conceito como
“crítica institucional” na pauta de discussão
do segundo SoCCAS (Simpósio do Los Angeles
County Museum of Art) em junho de 2005 já
defronta tanto o apresentador quanto o público
com inumeráveis problemas. Isso não se deve
apenas ao fato de os termos, conceitos e territórios
da crítica institucional serem historicamente
carregados e calorosamente disputados, mas
também porque eles funcionam como designação
para um tipo de arte que em geral se supõe ter
função epistemológica. A crítica institucional
supostamente “critica” (sinônimos relacionados
na literatura, nesse sentido, incluem “analisa”,
“revela” e “expõe”) tanto um lugar institucional,
literalmente (um museu ou espaço de galeria,
BEYOND INSTITUTIONAL CRITICS | In this text,
Isabelle Graw points out separately the problems
of the terms “critics” and “institution” and how
both comprise a historically misunderstood
and hidebound expression. So she asks how
this combination leads to a diluted meaning in
contemporaneity – especially the critics prefer
to canonize the term, and the artists that were
labeled by it, namely Daniel Buren, Hans Haacke,
Michael Asher and Marcel Broodthaers. This
atitutde distances new possibilities of questioning
the institutional sphare and permitting these
same institutions to act critically. | Isabelle Graw,
institution, critics, canon.
etc.) quanto algum outro aspecto mais amplo de
confinamento institucional. Poderíamos colocar
de outra forma. O conceito de crítica institucional
tal como aplicado à arte é baseado na suposição
Martin Kippenberger
Candidature à une rétrospective (Candidatura a uma retrospectiva), 1993
Primeira versão, foto de grupo, Martin Kippenberger 40º aniversário - Litografia offset
27 16/09 x 19 11/16 polegadas (70 cm x 50 cm)
© Propriedade de Martin Kippenberger, Galerie Gisela Capitain, Colônia
TE M ÁTI CAS | I S AB E L L E G RAW
149
de que a arte é capaz de fazer alguma coisa. A
dificuldade desse termo reside, portanto, em
ser descritivo e normativo ao mesmo tempo.
Enquanto nos permite pensar sobre o potencial
da arte, ele tende, também, a confinar a arte à
função supostamente crítica. Quero sugerir que
um resultado da dupla ação dos pressupostos e
contextos da crítica institucional seja ficar a arte
sobrecarregada e, em certa medida, esgotada.
são aceitas por certos curadores − ou por
analiticamente as condições de enquadramento
(…) e daí em diante. Embora essa teoria tenha
todas as publicações em que a “criticalidade” é
institucionais e sociais”.7 Tal definição lança luz
méritos como especulação histórica, a expressão
apresentada de forma esquemática e atribuída,
sobre os problemas inerentes ao conceito e suas
foi reapropriada no início da década de 1990 por
como se fosse quase autoevidente, a este ou
realizações. Ao assumir a capacidade de investigar
uma geração mais jovem de artistas, cujo trabalho
aquele trabalho de arte.4 Como, porém, essa
ativamente algo, quando definida dessa maneira,
pode ser lido como uma série de diferentes
criticalidade é geralmente afirmada, em vez de
a crítica institucional implica a funcionalização
tentativas no sentido de continuar a rever algumas
ser definida, e assumida, em vez de ser criado um
da arte. É certo que as funções epistemológicas
das premissas da crítica institucional.3
modo operacional específico, o resultado costuma
têm sido frequentemente projetadas, de forma
ser a neutralização das próprias possibilidades
bastante estereotipada, sobre as práticas artísticas
de prática artística realmente crítica – crítica no
classificadas sob a rubrica crítica institucional.
sentido de levantar objeções e gerar questões em
“Arte” ou “obra de arte” são rotineiramente
uma situação particular.
substituídas por “intervenção” ou “proposição”,
A
questão
será
tratada
em
três
partes.
Até mesmo as origens da expressão crítica
institucional são controversas. Terá aparecido pela
primeira vez num texto de Andrea Fraser sobre
Primeiramente,
Louise Lawer escrito em 1985, no qual ela sugeriu
conceito/prática, insistindo simultaneamente nas
Ao confrontar tal neutralização, parece necessário
que as abordagens de artistas como Marcel
ideias e realizações históricas que ele mediou.
analisar
Broodthaers, Daniel Buren ou Hans Haacke, ainda
Em segundo lugar, discutirei a institucionalização
geralmente associadas à crítica institucional
que diferentes em estilos e materiais, estavam
da crítica institucional, abordando a violência
(pesquisa, trabalho de equipe, assunção pessoal
todas em débito com a “crítica institucional”?1
estrutural do rígido, e naturalmente excludente,
dos riscos, e assim por diante) alimentam, às vezes
Ou foram os escritos de Benjamin Buchloh os
cânone que ela gerou. Opto, sempre, pela
bastante perfeitamente, aquilo que os sociólogos
principais responsáveis pelo estabelecimento dos
necessidade de considerações situacionais, porque
Luc Boltanski e Ève Chiapello descreveram como
parâmetros dessa expressão, que ele usou no título
certamente há momentos e locais, como na esfera
“o novo espírito do capitalismo”.5 Por outro
− e como tema − de um importante ensaio sobre
comercial do mundo da arte, em que se torna
lado, simplesmente insistir no potencial da crítica
a arte conceitual, “Da estética da administração
absolutamente necessário insistir nas ideias mais
institucional ou apontar seus limites não é o
certamente
fundamentais da crítica institucional. Devo ressaltar
suficiente. Sob a luz do novo poder de definição
se pode abandonar.
contribuiu para a construção das figuras canônicas
algumas delas: a de que o valor não é intrínseco
do mercado de arte e as atuais mudanças
Por
associadas ao movimento ou, melhor, ele ajudou
à obra de arte, sendo-lhe antes atribuído através
estruturais no que antes era chamado de “mundo
operando quando as funções críticas, tais como
a garantir que a crítica institucional estivesse
de operações financeiras; a de que a produção
da arte”, proponho deixar ambas as dificuldades
“investigação” ou “análise” são reivindicadas para
associada a seus suspeitos usuais − Daniel Buren,
e outros contextos de uma obra de arte são
terminológicas e o cânone para trás a fim de
as obras mediante generalizações infundadas
Hans Haacke, Michel Asher e Marcel Broodthaers.2
necessariamente interiorizados e expressados como
− na última seção, adiante − tentar formular
e sem o exame de como e quando a suposta
parte de sua significação ou, mais simplesmente,
uma redefinição do que “instituição” e “crítica”
“investigação” ou “análise” ou “negociação”
que faz diferença o fato de museus públicos serem
poderiam e podem significar hoje.
tomam o lugar do trabalho. Seguir essa questão
à
crítica
institucional”? Buchloh
Testemunhas oculares questionadas a respeito de
quais artistas tiveram seus trabalhos arrolados sob
considerarei
as
dificuldades
terminológicas contidas na expressão crítica
institucional, apontando para os limites desse
como
as
competências
artísticas
descrições que pressupõem orientação funcional.
Essa renomeação, entretanto, é faca de dois
gumes. Há, por um lado, a vantagem inegável
de permitir que nos livremos de uma noção de
arte idealista, substancialista e restritiva por
insistir numa legibilidade inscritível da arte − na
relação atual da arte com as condições sociais e
na possibilidade concomitante de renegociá-las.
Essa é uma visão à qual sou bastante ligada e que
considero necessidade histórica e política que não
outro
lado,
há
certo
reducionismo
esse rótulo em sua maior parte não se lembrariam
geridos por administradores.
de quando exatamente ouviram a expressão pela
É claro que existem outros tempos e circunstâncias
primeira vez, ou quem em particular a colocou
− digamos, nos circuitos internacionais com
em circulação. Talvez Christopher Williams esteja
base em projetos das Manifestas e Bienais −
No Dicionário Dumont de Termos da Arte
institucional e por consequência interpretada,
certo. Entrevistado num filme recente de Renée
em que as coisas ficam mais complicadas. Aqui
Contemporânea,6 crítica institucional é descrita
nos termos de Meinhardt, como um “exame das
Green, ele deu a seguinte explicação, levemente
muitos curadores, instituições, teóricos e artistas,
por Johannes Meinhardt como atitude a favor
condições de enquadramento institucional ou
temperada com teoria da conspiração: a expressão
implicitamente ou não, se identificaram com as
da arte. De acordo com Meinhardt, essa atitude
discursivo”8. Olhando melhor, se o readymade
foi propagada primeiro pelo Whitney Independent
várias premissas da crítica institucional. Basta
pode ser encontrada em “trabalhos de arte
é um mecanismo de delimitação de tipos, ele
pensar no modo como as investigações “críticas”
e
também
Studies Program e começou a conquistar o
150
mundo desde então – a partir de Nova York
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
sugere que mesmo o readymade, essa vaca
sagrada, se torna inconsistente, entendido, como
Dificuldades terminológicas
procedimentos
estéticos
geralmente é, como a cena primária da crítica
que
investigam
manifesta
aspectos
específicos
da
TE M ÁTI CAS | I S AB E L L E G RAW
151
sensibilidade artística de Duchamp, apresentando-
quanto mais as funções da crítica atribuídas ao
em 1980, em que o problema não consistia no
transformar a “capacidade comunicativa humana
se como o resultado de uma escolha que é pessoal
trabalho de arte parecem autoevidentes, melhor
fato de a instituição impedir o acontecimento de
em mercadoria”, como observa Paolo Virno.11
e específica – e não simplesmente arbitrária, como
será seu valor promocional.
experimentações, mas, antes, incentivar os artistas
Recordo meu crescente ceticismo sobre o potencial
a produzir obras que com ela se assemelhassem
crítico da chamada “prática pós-ateliê”. Comecei
ou se conformassem, sendo assim facilmente
a olhar para modelos artísticos mais tradicionais,
muitas vezes se alega. Elementos do processo do
readymade até mesmo se aproximam da ideia de
uma assinatura artística. Da mesma forma, não
poderia o trabalho Measurement room (1967), de
Mel Bochner, ser considerado não apenas análise
da “realidade material das paredes da galeria
como dispositivo de enquadramento”, como
Miwon Kwon argumentou, mas também literal
intensificação de seus parâmetros, uma espécie
Há trabalhos que facilitam tais rotulagens críticas
– basta pensar na atual popularidade de Santiago
Sierra. Esse problema está longe de ser novo – tem
sido amplamente discutido desde o final dos anos
90, por artistas e por críticos. Os críticos reagiram
levando mais em conta o vocabulário estéticoformal. Argumentaram a favor de significados
móveis, o que causou novos problemas, dados o
de “homenagem” às condições materiais e às
alto nível de abstração dessa escolha e a sintonia
proporções do espaço da galeria?9
com o interesse geral do mercado por uma segunda
Contudo, talvez certa dose de reducionismo seja o
preço necessário a pagar quando se quer romper
com um sistema dominante de crenças que ainda
insiste em que só as qualidades supostamente
intrínsecas da arte justificam seu valor. Um
ordem, um quase sublime neoformalismo. Os
artistas reagiram tornando suas proposições mais
poéticas, multifacetadas ou obscuras, o que traz a
desvantagem de às vezes deixar o trabalho quase
fora de contexto e sem conteúdo.
demonstra o processo de construção de valor
como uma sucessão de operações financeiras
entre uma sequência de proprietários. Tão
importante quanto isso é insistir sobre a relevância
de fatores externos que se anexam às obras e
através delas são negociados, essa necessidade
estratégica que passou por transformação e agora
serve com frequência como licença para reduzir
proposições artísticas complexas a uma função
epistemológica ou significado aparentemente
inequívocos.
A
arte
supostamente
deveria
“negociar” questões, “investigar” ou “intervir”
− e essas funções epistemológicas são sobre ela
projetadas de maneira esquemática como assunto
152
aparentemente conservadores, como o pintor
obcecado no ateliê, que recusa explicações, não
para um local específico, o Firminy Project na
se relaciona, nunca viaja, raramente aparece
“Unité d’habitation” de Le Corbusier, em Firminy,
em público e, portanto, recusa o espetáculo do
na França (1993), lembro-me de várias discussões
acesso direto a suas competências cognitivas e
entre artistas e críticos sobre o que significava ser
emocionais. Diante da tendência do capitalismo
bem acolhido pela instituição e educadamente
de englobar todas as pessoas e ao mesmo tempo
convidado (e pago) para examinar criticamente
incentivar a investigação crítica, parecia-me uma
um local e interagir socialmente com ele. Uma das
estratégia valiosa novamente produzir obras
perspectivas pressupunha abrangente cooptação,
altamente mediadas pelo ateliê, que, pelo menos
uma totalização que levaria à paralisia total.
teoricamente, não admite acesso direto.
(Uma observação: o termo “cooptação” é em si
problemático, pois implica a existência de um
estado puro ou inocente “antes” da cooptação –
o que é, naturalmente, ficção.) Em outra parte,
trabalho como Manet Projekt (1974), de Hans
Haacke, é mais atual do que nunca quando
Quando o curador Yves Aupetitallot
pediu a alguns artistas que produzissem obras
aceitas.
10
as tentativas mais produtivas caminharam no
A instituição dentro de nós
sentido de renegociar as novas restrições e novas
A expressão crítica institucional é, em si, uma
liberdades que resultaram do avarento mercado
construção paradoxal já que sugere a crítica de
por conhecimento e informação – um mercado
uma instituição que é em si institucional – uma
que, às vezes coexiste, às vezes se sobrepõe, e
crítica não apenas dirigida às instituições e seus
quase sempre não tem nada a ver com o que
críticos, mas também uma crítica da natureza
acontece na esfera comercial.
institucional, por assim dizer. O duplo panorama
dessa crítica nos faz lembrar duas coisas – o
entrelaçamento
profundo
entre
artistas
e
instituições, e o grau em que as instituições têm
determinado a forma ou o sentido das obras
feitas especialmente para ou sobre elas. Pode-se
até chegar a dizer que as instituições apresentam
o caminho aos artistas.
Embora seja verdade que algumas instituições de
arte adotaram a crítica institucional, eu certamente
não chegaria a ponto de sugerir que isso seja
completamente inútil para qualquer “exercício
crítico” dentro delas, como Olafur Eliasson
colocou de forma bastante condescendente em
recente conversa com Daniel Buren.12 Destaco
que simplesmente não é esse o caso em que “não
há um ‘lá fora’” ou que até mesmo a proposição
mais ultrajante, inevitavelmente, será absorvida
pelas instituições, conforme Buren e Eliasson
Na década de 1990 surgiu um novo tipo de
parecem acreditar. Pelo contrário, há algumas
instituição de arte, incluindo Depot em Viena ou
proposições que permanecem “fora”. A fim de
Kunstraum Lüneburg – claramente identificadas
construir uma instituição (o termo “instituição”
com
à
deriva etimologicamente de “instalação”, o que
crítica institucional. Ao optar por “pesquisa”,
alguns
dos
princípios
associados
significa montar ou colocar em) um exterior
“documentação”,
equipe”,
constitutivo não é apenas necessário, mas
“ausência de hierarquia”, “transparência” ou
inevitável. Algumas coisas vão ser sempre deixadas
“discussão”, seus métodos de trabalho foram,
de fora, muitas vezes, de modo deliberado:
ao mesmo tempo, completamente coniventes
estruturalmente falando, cada centro produz sua
“trabalho
em
de fato abordável. Mais uma vez, é só dar uma
A
olhada em alguns dos inúmeros exemplos de
identificadas
é
com os valores neoliberais. Esse foi especialmente
periferia. Além disso, se levarmos em conta que as
publicações distribuídas por galerias, museus e
questão que com frequência tem preocupado
o caso, com essa ênfase na comunicação, que
instituições de arte têm praticamente transmitido
outras instituições para aprender a lição de que,
os artistas. Buren apresentou incisiva reflexão
correspondeu à tendência da indústria cultural de
a autoridade para o novo mercado de arte e que
institucionalização
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
com
a
progressiva
crítica
de
obras
institucional
TE M ÁTI CAS | I S AB E L L E G RAW
153
é raro artistas associados à crítica institucional
bons candidatos para inclusão no cânone, já
alcançarem posições importantes na esfera
que expõem a falência da tradição da “arte” ou
comercial, chegamos à conclusão de que não há
do “artista”. Sua própria ambição desesperada
nenhuma razão para despejar o bebê junto com
para ser ao mesmo tempo bem-sucedido e
a água da banheira. Eu optaria pela seguinte
politicamente responsável foi impiedosamente
abordagem: insistir no potencial investigativo da
tematizada em seu livro de artista Hier und Jetzt:
crítica institucional, especialmente em face da
Das tun, was zu tun ist.13 Ele estava tão envolvido
nova entidade empresarial do museu, enquanto
com a luta política quanto irremediavelmente
se trabalha em novas e mais adequadas definições
comprometido com o sistema de galerias.
de “instituição” e “crítica”.
Podemos
também
considerar
algumas
das
proposições de Martin Kippenberger, atualmente
o sujeito de quase santificada canonização
Outro cânone
como o pai da pintura figurativa no mundo
A história e as realizações da crítica institucional
inteiro. Quando convidado para expor no Centre
devem
momento
Pompidou, em 1993, ele intitulou sua exposição
canonizadas de forma bem-sucedida. Ela possui
Candidature à une retrospective, desafiando
ser
consideradas
neste
uma lista de nomes-chave − os suspeitos de
costume que mencionei − que constam como
seus principais representantes: Daniel Buren,
Michael Asher, Marcel Broodthaers, e Hans
Haacke. Mesmo que eu entenda perfeitamente
a necessidade estratégica de se estabelecer esse
cânone, me parece um tanto surpreendente que a
lista seja quase inconscientemente reproduzida e
raramente modificada pelos jovens historiadores
da arte. Na verdade, esse rol de protagonistas
tem sido iterado e petrificado em detrimento
de muitos artistas cujos métodos de trabalho −
independente da forma que suas investigações
possam tomar − também poderiam ser descritos
como métodos de questionamento ou mesmo
de ataque à instituição de arte, especialmente
se contêm todo um sistema de crenças. Por
exemplo, parece ser uma regra não definida no
cerne da narrativa histórica da arte dominante,
pelo menos, que a crítica institucional não possa
se manifestar na pintura.
154
diretamente e zombando da instituição de arte
e sua política de reconhecimento. Em vez de
esperar até ser considerado suficientemente
importante para uma retrospectiva de grande
porte, optou por uma estratégia mais agressiva e
discreta. Sua ousada iniciativa questionou o papel
regulador da instituição de arte, sua ambição de
recompensar “bons” artistas que “mereceram”
e “trabalharam arduamente”, e em simultâneo
atacou a grande illusio do mundo da arte − termo
de Pierre Bourdieu para o investimento coletivo e
crença em todo um sistema de valores de uma
estrutura.14 Kippenberger propôs que algo mais,
de modo geral, poderia estar em jogo, uma vez
que ele insistiu em um conjunto de outros − não
menos duvidosos − critérios de valorização, que
costumam permanecer ocultos. O convite trazia
a imagem de seu círculo de amigos íntimos e
admiradores reunidos por ocasião de seu 40º
aniversário. Embora ele se apresente como uma
espécie de “artista dos artistas” que não precisa
Gostaria de propor, ao contrário, que os
de reconhecimento institucional, esse convite
primeiros trabalhos de Jörg Immendorff sejam
exibe as redes informais e leis de proteção que
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
Capa do livro:
Jörg Immendorff, Hier und Jetzt: Das tun, was zu tun ist (Materialien zur
Diskussion: Kunst im politischen Kampf. Auf welcher Seite stehst Du,
Kunstschaffender?), Colônia/Nova York: König, 1973
228 páginas 21 x 30cm
Fonte: http://www.flickr.com/photos/desingel/4203026541/
definem a vida como um “mundo de conexões”.15
define, valida, enquadra, isola, exclui e naturaliza.
e
Estruturas
A palavra “crítica” sofreu mudanças semânticas
Tais acordos informais são raramente expostos,
Útil com esse sentido, tal noção limitada facilitou
corporativas não podem mais ser localizadas, já
semelhantes e reconceituações orientadas para
embora muitas vezes legitimem a política
a fixação sobre o mecanismo da arte, ignorando
que atuam no espaço transnacional. Da mesma
a prática. Aos olhos de uma geração anterior,
cultural oficial. (Outra observação: o próprio
o fato de que não só se mudou a natureza do
forma, as transações no mercado secundário −
como Hans Haacke, o conceito de crítica parecia
termo, mas também que ele perdeu muito
decisivas para o valor comercial de uma obra de
depender de um ideal de distanciamento crítico.
de sua antiga autoridade. Essa fixação sobre
arte, ao menos − são pouco compreensíveis. O
Artistas mais jovens, incluindo Andrea Fraser,
novo poder do mercado de arte se manifesta,
Christian Phillip Müller, Renée Green e Fareed
Kippenberger foi profundamente influenciado
por artistas como Louise Lawler e Andrea
Fraser, cujos trabalhos podem ser considerados
lembrete constante do fato de que não são
apenas as supostas qualidades intrínsecas da arte
que levam a seu reconhecimento institucional,
mas uma interação de atividades promocionais,
sociais e institucionais).
o mecanismo da arte parece estranhamente
nostálgica hoje, de modo especial em relação ao
novo poder de definição do mercado de arte, que
tomou o comando dos museus como principais
gestores de valor em rede cujas transações globais
nos mercados primário e secundário são quase
sempre invisíveis.
16
multinacionais.
então, na substituição de critérios artísticos por
imperativos econômicos. Um artista que se mostre
economicamente
bem-sucedido
será
quase
automaticamente considerado “importante” ou
“interessante” − por galerias, curadores e muitos
críticos. Em contraste com a situação em 1960,
quando o papel das instituições de arte podia ser
Armaly (eu mesma estou reproduzindo um
cânone, agora), basearam seu trabalho, em parte,
na consciência de que essa suposição de distância
ou separação entre o agente de entrega da crítica
e seu suposto objeto sempre foi ficção que não
pode e não deve ser reproduzida nas atuais
circunstâncias. Sua obra propõe uma noção
Quando o antigo mundo da arte se transfor-
Por outro lado, de forma não tanto topográfica,
decisivo no processo de validação, estamos vivendo
ma em indústria visual
noções mais expansivas de instituição estão em
o paradoxo de uma proliferação de instituições
circulação desde os anos 70, como evidenciado
de arte que continuam a organizar e acolher a
pelo trabalho Journal Series (1976), de John
experiência da arte, caracterizada, segundo Buren,
Knight, por exemplo. Nesse projeto, o artista
pela “incrível fraqueza”. Museus são dirigidos por
enviou assinaturas gratuitas não solicitadas para
curadores que tendem a reproduzir o consenso
membros da comunidade artística, antecipando a
reinante no mercado de arte − como é constatado
maneira pela qual a lei da cultura de celebridades
pela coleção de arte contemporânea no Museu de
e as regras da indústria de entretenimento
Arte Moderna de Nova York. Talvez devêssemos
aceito, bem-vindo e mesmo apoiado por muitas
se alojam no mundo da arte atualmente No
parar de chamá-los de “museus”, já que essa
instituições, que ativamente convidam artistas
momento, somos confrontados com uma situação
palavra conota, etimologicamente, sua atribuição
para os investigar. Crítica, em suma, pode tornar-
em que o modelo do sistema de galerias com sua
a alguma forma de produção de conhecimento, e
se uma prática reificada que alimenta o apetite
estrutura de comércio varejista foi substituído
encontrar novo termo.
voraz do capitalismo.
As dificuldades certamente não param por aqui.
A expressão crítica institucional coloca novos
problemas, pois os dois conceitos que se fundem
têm, um e outro, sua própria carga histórica:
“instituição”, por um lado, e “crítica”, por outro.
Consideremos o breve histórico das inflexões do
termo “instituição” em apenas um segmento
social, o mundo da arte. Correndo o risco de
simplificar demais, gostaria de esboçar o que
se segue. Dois entendimentos convergentes de
“instituição” atravessaram os anos formadores
156
conglomerados
de crítica renegociada com base na admissão
de que a “distância crítica” é comprometida a
priori. Além disso, o que a princípio parece ser
“crítico” pode ser gesto totalmente inofensivo
em circunstâncias diferentes. Se refletir sobre
os parâmetros institucionais já foi algo que a
instituição considerou preocupante, hoje é algo
por fusões globais de grande porte, como a
da crítica institucional na década de 1970:
“Houses & Wirth & Zwirner” ou a “Gagosian”. O
primeiro, uma designação bastante limitada de
antigo mundo da arte tornou-se o que podemos
instituição como instituição de arte (museus,
denominar “indústria visual” vagamente similar a
galerias) exemplificada nas abordagens de Buren
outras indústrias culturais, como a de Hollywood
e Asher. Lendo os textos de Buren, por exemplo,
ou o mundo da moda, que parece cada vez
percebe-se que para ele “instituição” sempre
mais imitar. O programa da indústria visual
foi sinônimo de “museu”. Essa noção restritiva
implica a visualidade e seus significados já não
implica compreensão topográfica, que tem a
serem produzidos por protagonistas singulares
inegável vantagem de permitir intervenções muito
(artistas, galeristas, curadores). Em vez disso, a
concretas e precisamente circunscritas. Quando
responsabilidade pela produção e distribuição de
Buren refletiu sobre a “função do museu”, como
imagens e seu conteúdo está nas mãos de entidades
denominou, ele analisou a forma como o museu
maiores,
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
incluindo
franquias
Fareed Armaly
(re)Orient exhibition, 1989
Galerie Lorenz, Paris
internacionais
TE M ÁTI CAS | I S AB E L L E G RAW
157
Novas formas de convergência entre crítica e
sentido de que levanta questionamentos ou
experiências e trabalhos mas, sim, como conduz
tun ist (Materialien zur Diskussion: Kunst im politischen
capitalismo foram analisadas pelos sociólogos
coloca problemas.
a produção de obras com que tem afinidade,
Kampf. Auf welcher Seite stehst Du, Kunstschaffender?),
e que, compreensivelmente, aceita”, in “Rund
Colônia/Nova York: König, 1973. [N.T.]
Ève Chiapello e Luc Boltanski em seu poderoso e
ambicioso estudo The New Spirit of Capitalism.
17
Sua narrativa, porém, postula novamente uma
visão bastante pessimista e totalizante de um
capitalismo
abrangente
capaz
de
absorver
qualquer tentativa de questioná-lo. Correndo o
risco de soar ainda mais prescritiva ao final de
minha discussão, eu gostaria de contrariar essa
visão fatalista, com um apelo para considerações
situacionais. Em determinados momentos e
Não tenho certeza se crítica institucional é a
expressão correta para tal esforço, já que sua
canonização é tão profunda até agora, que é
difícil imaginar como seus preceitos podem ser
regenerados, e suas formas e seus significados,
reformulados.
Talvez
o
legado
da
crítica
institucional se encontre em sua exigência de que
levemos em consideração suas lições, a fim de
deixá-las para trás.
contextos, se perguntarmos ao cânone dominante,
Tradução Ana Luísa Flores e Isabel Carneiro
ou atacarmos o consenso atual, ou insistirmos em
Revisão técnica Dalila Santos
do que Pierre Bourdieu chamou de “espaço de
of the Literary Field, Stanford: Stanford University
of Capitalism, trad. Gregory Elliott, Nova York: Verso,
Press, 1999:227-230. [As Regras da Arte: Gênese e
2005, publicado originalmente como Le Nouvel
estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia
Esprit du Capitalisme, Paris: Gallimard, 1999. [O
das Letras, 1996.]
Novo Espírito do Capitalismo, São Paulo: Martins
Fontes, 2009.]
7
Ver
o
de
Johannes
Meinhardt
de arte contemporânea que “refletem a confiança
Hubertus Butin (ed.), DuMonts Begriffslexikon
ingênua de seus criadores em um mecanismo do
zur zeitgenössischen Kunst, Colônia: Dumont,
mundo da arte e do museu que aparentemente
institucional]
8 Ver também Frazer Ward, que caracteriza o
JRP|Ringier, 2006: 137-151.
criadores de ‘arte moderna’, continuasse a ser
readymade como um “gesto epistemológico” em
Graw
(org.),
Institutional
Critique
“The Haunted Museum: Institutional Critique and
insisto, podemos romper com um sistema de
Publicity”, October, v. 73, verão 1995:71-89.
determinado momento. Dessa forma, ao insistir
em “outros critérios”, parece-nos mais adequado
observar a arte da maneira como circula nesse
meio − seja no mercado secundário ou no
mercado do conhecimento − “sem ilusões” (como
H.D. Buchloh expressa apenas pena para as obras
in
[crítica
o funcionamento da máquina capitalista, mas,
está em jogo em certas obras de arte em um
para o Museu de Arte Moderna de Nova York
and After (SoCCAS Symposia vol. 2), Zurique:
Certamente, tais intervenções não impedirão
a desviar-nos do fato de que algo realmente
discussão de quatro críticos sobre o novo edifício
pretendem habitar, como se os tempos não tivessem
horizonte de constituição daquilo que é possível.
duvidosa, mas enfática, na arte. Ambas tendem
16 Em sua contribuição para “O Novo MoMA”,
2002:126-130.
Isabelle
a crença na economia, ou uma crença não menos
15 Ver nota 5. [N.T.]
(Artforum, v. 43, n. 6, fevereiro 2005), Benjamin
verbete
“Institutionskritik”
Texto publicado originalmente em:
possibilidades”(...) podemos expandir e deslocar o
crenças, enquanto participantes – se isso implica
158
Art as Fetish”, in Rules of Art: Genesis and Structure
2002. [N.T.]
NOTAS
14 Ver Pierre Bourdieu. “The Illusio and the Work of
5 Ver Luc Boltanski e Ève Chiapello. The New Spirit
zur zeitgenössischen Kunst, Colônia: Dumont,
ou recusarmos noções subdesenvolvidas de
pode tornar instrumentalizada, ou afastarmo-nos
Dresden/Basileia: Verlag der Kunst, 1995:340.
6 Hubertus Butin (ed.), DuMonts Begriffslexikon
critérios outros que não os interesses econômicos,
criticalidade, ou mostrarmos como a crítica se
um‘Punktesetzen’”, Achtung! Texte 1967-1991,
1 Andrea Fraser. “In and out of Place”, in Reesa
Greenberg, Bruce W. Ferguson e Sandy Nairne (eds.),
9 Miwon Kwon, “Genealogy of Site Specificity”, One
Thinking about Exhibitions, Nova York: Routledge,
Place After Another: Site-Specific Art And Locational
1996:437-449; publicado originalmente em Art in
Identity, Cambridge: MIT Press, 2004:14.
America, junho de 1985:122-129.
10 Ver Daniel Buren. “On Institutions in the art
mudado e como se seu estatuto privilegiado de
incondicionalmente garantido”.
17 Ver nota 5.
18 Walter Benjamin observou “o reconhecimento
precoce do mercado, sem ilusões” de Baudelaire,
em “The Paris of the Second Empire in Baudelaire”,
Charles Baudelaire, A Lyric poet In the Era of High
Capitalism, trad. Harry Zohn, Nova York: Verso,
2 Benjamin H.D. Buchloh. “From the Aesthetics
system” in Isabelle Graw (org.), Institutional Critique
1989. [Obras Escolhidas III – Charles Baudelaire:
of Administration to Institutional Critique”, L’art
and After (SoCCAS Symposia vol. 2), Zurique:
Um Lírico no Auge do Capitalismo. São Paulo: Ed.
conceptuel, une perspective, Muses d’Art moderne
JRP|Ringier, 2006: 340-341.
Brasiliense, 2004.]
de la Ville de Paris, 1990.
11 Ver Paolo Virno. A Grammar of the Multitude,
3 “Jugend forscht (Armaly, Dion, Fraser, Müller)”, in
Walter Benjamin expôs às vésperas da Segunda
Texte zur Kunst, v. 1, n.1, outono 1990:163-175.
Guerra Mundial, enquanto se empenhava para
4 Daniel Buren identificou esse desdobramento em
compreender a obra de Charles Baudelaire).18 Ao
1980: “O problema hoje não é identificar em que
mesmo tempo, no entanto, parece ser necessário
medida a instituição funciona como amortecedor
manter uma noção de arte que seja crítica no
[literalmente,
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
“pastilha
de
freio”]
sobre
as
Nova York: Semiotext(e), 2004:61.
12 Daniel Buren, Olafur Eliasson. “Conversation: Daniel
Buren & Olafur Eliasson”, ArtForum, v. XLIII, n. 9, maio
2005: 208-214. [N.T.]
13 Jörg Immendorff. Hier und Jetzt: Das tun, was zu
Isabelle Graw é crítica de artes visuais e
cofundadora da revista Text zur Kunst, professora
de teoria e história da arte na Universidade de Belas
Artes (Städelschule), em Frankfurt, Alemanha,
onde também criou o Instituto de Crítica de Arte.
TE M ÁTI CAS | I S AB E L L E G RAW
159
REPRESENTAÇÃO, APROPRIAÇÃO E PODER
Craig Owens
Representação pós-estruturalismo
contemporaneidade Craig Owens
Reflexões críticas sobre duas abordagens a respeito da representação: a revisionista,
que coloca em questão a figuração, e a tradicional, que a resgata. Propõe
encaminhamento pós-estruturalista da questão, com base em Foucault, Marin e
Derrida. Esses pensadores desautorizariam as duas abordagens mencionadas, por
entendê-las circunscritas à busca da verdade e ao historicismo, valores epistemológicos
considerados ultrapassados pela crítica pós-estruturalista, pois reforçam o poder e a
propriedade no modo característico de a sociedade ocidental representar o mundo.
Este ensaio apresenta duas abordagens bastante
diferentes da questão da representação – que vem
sendo proposta como de interesse pela arte da
última década, apesar de mal compreendida pela
crítica. Tudo o que tem sido celebrado (e com
rara frequência denunciado) como um retorno à
representação, após a longa noite da abstração
modernista, acaba por ser, em muitas instâncias,
crítica à representação, uma tentativa de usar a
representação contra ela mesma, a fim de desafiar
sua própria autoridade, seu desejo de alcançar
alguma verdade ou valor epistemológico.
REPRESENTATION, APPROPRIATION AND POWER
| Critical reflections on two approaches to
representation: the revisionist, which questions
figuration, and the traditional, which redeems
it. He proposes a post-structuralist focus
on the issue, based on Foucault, Marin and
Derrida. These scholars would discredit the
two aforementioned approaches since they
understand them as circumscribing the search
for truth and historicism, epistemological values
considered obsolete by post-structuralist critics,
since they reinforce power and property in the way
characteristics of how Western society represents
the world. | Representation, post-structuralism,
contemporaneity, Craig Owens.
A crítica, contudo, tem tributado esse impulso
à ambígua bandeira de um revival das práticas
figurativas de expressão; assim, para uma discussão teórica sobre as questões apontadas pela arte
contemporânea a esse respeito, precisamos perscrutar outras paragens – por exemplo, o campo europeu
da crítica conhecido como pós-estruturalista, cuja produção também vem sendo identificada como
crítica à representação.
Diego Velázquez, As meninas, detalhe, reflexão
no espelho, 1656, óleo sobre tela, Prado, fonte
MITlibrary
160
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
TE M ÁTI CAS | CRAI G O WE N S
161
essas duas posições; na verdade, espero antes
famosa análise de Michel Foucault sobre As
demonstrar sua incompatibilidade. Portanto,
meninas, no capítulo de abertura de As palavras
minha hipótese de trabalho propõe que a crítica
e as coisas
pós-estruturalista não pode ser absorvida pela
Arcadian Shepherds, proposta por Louis Marin
história da arte sem uma sensível redução de seu
no artigo Towards a theory a of reading in visual
vigor polêmico, ou sem uma total transformação
arts.1 Esses comentários se relacionam não apenas
na própria história da arte.
devido à contemporaneidade das pinturas que
e a análise complementar de The
discutem – Velázquez pintou As meninas em
1656; e Poussin produziu duas versões de The
Historiadores da arte e pós-estruturalistas
A devoção à verdade e o método de precisão
científica nascem da paixão de estudiosos,
da recíproca aversão que têm entre si, de
suas fanáticas e intermináveis discussões,
bem como do espírito de competição
existente entre eles – do conflito pessoal que
problema que essa vinculação apresenta para a
pesquisa da história da arte. Essa rede não foi
proposição minha; emergiu durante o painel “A
aplicabilidade da metodologia da crítica literária
à análise da pintura”, que ocorreu, em dezembro
de 1981, na reunião da Modern Language
Association [MLA] (organização profissional de
pesquisadores e professores de estudos literários
de certo modo equivalente à College Association).
Esse evento proporciona pretexto para minhas
162
desinteressada e, portanto, politicamente neutra;
ao problema no âmbito da história da arte: o da
e um corpo crítico (pós-estruturalista) que
tradição e o do revisionismo. Nas páginas que se
demonstra ser a representação parte inextricável
seguem, discutirei essas duas abordagens a fim de
do processo social de dominação e controle. Em
exemplificar a diferença entre a disciplina (história
nenhum momento quero mediar ou reconciliar
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trabalhos como “representações de representação
[clássica, isto é, do século 17],” e isto eles fazem
para demonstrar não apenas a singularidade das
sistema clássico de representação.
e poder em nossa cultura, tanto quanto o
em desacordo com ambos os tratamentos dados
intenção. Foucault e Marin interpretaram esses
Michel Foucault. Nietzsche, genealogy, history
coesão, por articular o vínculo entre representação
da arte) que toma a representação como atividade
a 1655 – mas também devido a seu método e
obras mas também a conformidade delas com
e textos, pinturas e os comentários que lhes dão
A objeção pós-estruturalista à representação está
sido datada por Anthony Blunt como posterior
gradativamente apaga as armas da razão.
Meu objeto será uma rede específica de imagens
Jean-Baptiste Greuze, Fils ingrate, 1777, óleo sobre
tela, 130 x 1.162cm, Louvre, fonte MITlibrary
Archadian Shepherds, tendo a que nos concerne
reflexões, embora a ele eu não vá limitar-me.
as regras anônimas e impessoais que regulam o
Foucault e Marin não estiveram na MLA: seu
argumento, no entanto, foi defendido lá por
dois historiadores da arte, Svetlana Alpers e
Michel Fried, que observaram seu valor para
estudos de história da arte. Embora Alpers e
Fried orientem sua produção inicialmente para
público afeito a estudos literários – seus estudos
recentes aparecem em periódicos como Critical
inquiry e New literary history – e não objetem,
pelo menos não em princípio, a transferência de
análises textuais para o campo das artes visuais,
ambos mencionam os perigos decorrentes desse
deslocamento, citando como exemplos as análises
de Foucault sobre Velázquez e de Marin sobre
Poussin. Alpers critica Foucault por negligenciar
Dois dos comentários que levarei em consideração
a tradição pictórica, da qual, segundo ela
não foram feitos por historiadores da arte, mas
entende, As meninas teria sido constituída; e
por críticos que explicitamente rejeitavam a ideia
Fried descarta como a-histórico e reducionista o
de haver separação entre diferentes disciplinas,
uso que Marin faz da distinção linguística para
no que concerne ao trabalho intelectual: a
definir a estrutura da pintura histórica. A despeito
TE M ÁTI CAS | CRAI G O WE N S
163
do fato de que nem Alpers nem Fried professam
originalidade, bem como a reinvindicação de Fried
afeição particular pela disciplina em que atuam,
do reconhecimento da especificidade histórica em
ambos introduzem suas reflexões declarando-se
seu próprio argumento.
distanciados da história da arte – o julgamento
de valor negativo que eles conferem a Foucault e
Marin, em última análise pronunciado em nome
do teor de verdade da história da arte, confirma
as premissas de Freud, em seu escrito de 1925 a
respeito da negação na origem da psicologia do
julgamento intelectual:
não é, como Alpers propõe, se Foucault terá
interpretado corretamente As meninas (a resposta
dela é que “ele interpretou bem a pintura, mas
não verdadeiramente”), mas se Alpers e Fried
interpretaram adequadamente Foucault e Marin. E
a resposta é que eles não o fizeram; de fato Foucault
Negar alguma coisa em favor do próprio
e Marin foram mal compreendidos naquela ocasião
julgamento é o mesmo que dizer: ‘Isto
ao menos em dois diferentes aspectos.
é algo que eu preferiria reprimir’. Um
julgamento
negativo
é
o
substituto
intelectual para a repressão; o ‘não’ com o
qual ele se expressa é a marca registrada da
repressão, um certificado de origem, como
algo teria sido, como ‘made in Germany’.
2
O trabalho de Foucault e Marin é certamente
algo que a história da arte (uma disciplina como
se sabe ‘made in Germany’) preferiria reprimir.
Pois, apesar de a análise de Alpers de As meninas
parecer, como veremos, defender mais do que
refutar a leitura que Foucault faz da pintura, e a
discussão de Fried sobre o papel do espectador
em finais do século 18 e início do 19 relativa à
pintura francesa apresentar dialética de afirmação
e negação igual à empregada por Marin no
tratamento do mesmo problema no século 17,
a questão de ambos, Foucault e Marin, relativa
à convenção em obras de arte, a sua tendência
de sempre se conformarem a certa especificidade
institucional, permanece em conflito direto com
o interesse de Alpers e Fried (e da maioria de
seus colegas) a respeito da individualidade ou da
singularidade de obras e períodos da arte. Assim,
os argumentos de Foucault e Marin em última
164
A questão com a qual nos deparamos, então,
Apesar de o trabalho deles ter sido aceito
na
academia
americana
inicialmente
como
“crítica literária” e permanecido restrito ao
departamento de literatura inglesa comparada,
nem a obra de Foucault nem a de Marin referemse principalmente ao texto literário; como seus
colegas Jacques Derrida e Roland Barthes,
ambos têm escrito (Marin o faz extensivamente)
a respeito de artefatos da cultura visual. O
método que usam, além do mais, é híbrido,
combinando na prática análise filosófica, literária,
científica e histórica. Apresentar seus trabalhos
num painel dedicado à aplicabilidade da crítica
‘literária’ à pintura sem reconhecer seu caráter
multidisciplinar seria desconsiderar a vitalidade
polêmica de suas observações. Pois a crítica pósestruturalista é adversária da crítica estabelecida,
concebida em oposição à ordem dominante que
isola o conhecimento em vários campos, cada
qual dotado de seu próprio objeto de estudo
e instrumentos metodológicos3 (tanto é que
Foucault fazia palestras sobre ‘história e sistemas
Nicolas Poussin, The arcadian shepherds, c. 1638,
óleo sobre tela, 87 x 120cm, Louvre, fonte MITlibrary
de pensamento’ enquanto Marin lecionava no
campo multidisciplinar da semiótica.)
instância desacreditam a iniciativa de Alpers
Mais ainda, nem Alpers nem Fried alcançaram
de tributar a Velázquez um desempenho de
compreender o mais importante – e mais radical –
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TE M ÁTI CAS | CRAI G O WE N S
165
aspecto do trabalho de Foucault e de Marin sobre
nos sistemas de representação do Ocidente.
a representação: seu esforço, nas palavras de
Representação, então, não é – nem poderia ser –
Marin, “em explorar os sistemas de representação
neutra; ela é um ato – na verdade, o ato fundante
como aparatos do poder”. Ambos trabalham
– do poder em nossa cultura.
para desmascarar os interesses particulares com
os quais todas as representações compactuam,
suas afiliações a classes, ofícios, instituições. Por
exemplo, em Fantasia of the library, Foucault
discute a arte de Manet como uma “pintura
de museu” – pintura como “manifestação da
existência de museus e da realidade particular
e interdependência que pinturas adquirem em
museus”.4 E em seu mais recente trabalho,
Le portrait du roi, Marin trata a produção
artística da corte de Luís XIV, da arquitetura ao
entretenimento, como manifestações do poder
absoluto e ilimitado do rei.
Investigar
sistemas
de
representação
como
aparatos de poder não é estudar sua apropriação
por aqueles que estão no poder, com propósitos
políticos ou de propaganda – apesar do fato de as
histórias da arte e da arquitetura serem compostas
basicamente por tais monumentos à autoridade.
Também não é decifrar as mensagens ideológicas
que ali estão codificadas; Foucault e Marin devem
ser distinguidos daquela crítica ideológica marxista
ou assemelhada – que se dedica a interpretar as
características implícitas de uma obra. Foucault e
Marin não interpretam obras de arte se interpretar
significa atribuir-lhes um significado. Estão menos
interessados no que as obras de arte dizem
e mais naquilo que elas fazem; eles possuem
visada performativa da produção cultural. Assim,
Foucault e Marin investigam a representação não
simplesmente como manifestação ou expressão
de poder, mas como parte do problema social de
diferenciação, exclusão, incorporação e regulação.
Ambos trabalham para expor os modos pelos
quais a dominação e a sujeição estão inscritas
166
A segunda parte deste ensaio será dedicada
à crítica da representação pós-estruturalista
e sua relevância para a produção artística
contemporânea. Por ora, entretanto, quero
considerar as implicações da resistência da história
da arte ao pós-estruturalismo. Historiadores da
arte deveriam dispor-se a aceitar Foucault e Marin,
uma vez que eles contribuíram imensamente
para nossa compreensão dos modos pelos quais
a produção artística participa dos grandes
processos sociais e históricos. Nos últimos anos
tem havido crescente interesse na história da arte
não apenas devido ao problema da representação
visual per se, mas também à análise contextual
ou circunstancial de obras de arte, em tópicos
como iconografia Médici ou mecenato real,
nos quais a arte está explicitamente vinculada
ao poder. Por que, então, Foucault e Marin
têm sido ignorados? Por que o trabalho deles
é considerado “denso”, “difícil”, “irrelevante”?
Seria, talvez, porque a história da arte – tomada,
na perspectiva da frase de Panofsky, como
disciplina humanística – está implicada na crítica
pós-estruturalista?
Embora toda tentativa de caracterizar movimentos
intelectuais esteja condenada de início a uma
desoladora superficialidade, algumas palavras
a respeito do impulso que motiva a crítica
pós-estruturalista podem auxiliar a elucidar o
grande divisor que a separa da história da arte.
O pós-estruturalismo emergiu em clima social e
político – a França após 68 – de grande recusa
aos termos e condições do discurso humanista.
A noção humanista de “homem universal” está
calcada na imagem do homem europeu ocidental
e sua civilização. No Ocidente toda diferença,
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
não conformidade, divergência da norma foi
confinada ou expelida, todas as demais raças e
culturas ficam marginalizadas.
A atual crise política e econômica do Ocidente
– a emergência das nações do Terceiro Mundo,
o movimento feminista, as crescentes restrições
na
vida
socioeconômica,
a
catástrofe
ecológica geral... – começou a expor o caráter
excludente do discurso humanista; os críticos
pós-estruturalistas trabalham para articular
seu pressuposto básico e, ao mesmo tempo,
para desarticulá-lo, para desmascarar suas
contradições internas e sua cumplicidade com
a ordem cultural e social dominante.
Assim, todos os pós-estruturalistas examinaram em
vários graus sua própria implicação no sistema
acadêmico que submete, e desse modo confina,
o intelectual a uma disciplina. Se eles negam
o valor de se manter vinculados aos limites de
uma só área de competência, é porque veem as
“humanidades” como produto de uma atividade
sistemática de restrição engenhosamente criada
para controlar a produção de conhecimento
em nossa sociedade. Apesar de alegarem ser
desinteressadas, as humanidades na verdade
trabalham para legitimar e perpetuar a hegemonia
da cultura ocidental europeia: a história da arte, por
exemplo, é a história da arte da Europa ocidental,
de sua origem na antiguidade a sua culminância
nesse continente. Essa não é, como poderemos
ver, a única maneira de a história da arte colaborar
com o poder; na verdade, ela sinaliza a necessidade
de reavaliação completa dos princípios humanistas
sobre os quais a história repousa.
aquilo que de outro modo estaria morto.
Erwin Panofsky, História da arte como
disciplina humanística
A história da arte é disciplina altamente
controversa, caracterizada por destrutivo debate,
competição e conflito pessoal; a veemência com
a qual historiadores da arte se digladiam só é
sobrepujada pelo entusiasmo com que eles se
unem para defender seus direitos de propriedade.
Assim, apesar das diferenças no que se refere
a sua produção (centrada principalmente no
debate a respeito da história), Alpers e Fried se
apresentam no MLA como uma frente unida. O ar
de congratulação mútua que impregnou o painel
não era, entretanto, primariamente questão de
decoro acadêmico, mas função do propósito que
tinham em comum naquela ocasião: apoiar os
fundamentos da história da arte contra a invasão
do pós-estruturalismo.
Essa reação é característica da recepção da
história da arte a escritos a respeito da arte, e não
apenas àqueles dos pós-estruturalistas, mas ao
de todos os não especialistas. Para citar apenas
um exemplo: no começo de seu trabalho crítico
[Art in America, mar.-abr. 1979] sobre a coletânea
de Schapiro a respeito da arte moderna, Linda
Nochlin apresentou, como prova da precedência
de ambos (do autor e da própria história da arte)
o debate de Schapiro com o filósofo existencialista
Martin Heidegger tendo como foco a pintura de
Van Gogh realizada por volta de 1886 ou 1887
(geralmente referida como Old Shoes [sapatos
usados]). A pintura em questão apresenta duas
botas bem surradas, senão descartadas, com
História da arte como disciplina humanista
cadarços desfeitos e solas furadas. Em A origem
As humanidades (...) não se confrontam
com a tarefa de resgatar aquilo que de
da obra de arte (1935-36) – que pode ser
outra feita foi embora, mas de reviver
juízo, de Kant, e Estética, de Hegel, como uma
considerada no mesmo patamar que A crítica do
TE M ÁTI CAS | CRAI G O WE N S
167
das três grandes reflexões sobre a arte na história
ensaios sobre a pintura.7 No texto intitulado
da filosofia moderna – Heidegger identifica essas
Restitutions/De la vérite en peinture, grosso modo
botas como um par de sapatos de camponesa,
Restituições/Sobre a verdade na pintura, Derrida
propondo, em certa medida sentimentalmente,
não toma o partido de Heidegger contra o ataque
que “na escura abertura do interior gasto dos
de Schapiro; nem propõe um julgamento com
sapatos, fita-nos a dificuldade e o cansaço
relação às vozes conflitantes. Por outro viés, ele
dos passos do trabalhador”.5 Numa réplica a
demonstra não existir, na verdade, contestação
Heidegger, publicada em 1968, Schapiro rejeita
alguma. Dado o fato de Heidegger e Schapiro
essa interpretação considerando-a “fantasiosa”
estarem de comum acordo, confrontados com a
e sugere que a pintura não representa de modo
pintura, ambos questionam: “De quem são esses
algum um par de sapatos de uma camponesa, mas
sapatos?” “A quem eles fazem referência?” “Quem
os sapatos do próprio artista, e deve, portanto,
eles representam?” Ambos supõem que, se for
ser interpretada como (deslocado e metonímico)
para interpretar a pintura, eles devem atribuir as
autorretrato (o texto de Schapiro, On the still life
botas a um ser humano específico, ao qual elas
as self portrait as personal object é, desse modo,
devem pertencer. Assim, as duas interpretações
nova proposição à teoria da natureza-morta
incorrem em substituição inicial: de uma pessoa
como autorretratismo, desenvolvida a partir de
por uma coisa, do animado pelo inanimado, do
seus escritos sobre Cèzanne).
orgânico pelo inorgânico. Essa substituição não é,
6
Em sua crítica, Nochlin crê ver no texto polêmico
de Schapiro não apenas a evidência de sua rara
coragem intelectual – qual outro historiador da arte
poderia desafiar o maior filósofo de nosso século? –,
ela é a interpretação da pintura. Uma vez que a
identidade do dono dos sapatos ficou estabelecida,
tudo o mais, forçosamente, volta para o lugar.
mas também uma vitória da história da arte sobre
Por essa via Heidegger e Schapiro atingiram o
a filosofia. Descartando o que considera ser jargão
objetivo humanista definido por Panofsky para a
metafísico, ele registra que, “em empreendimento
história da arte: ambos avivaram aquilo que de
para dotar a arte de poder metafísico, Heidegger
outra forma teria permanecido morto, inerte, sem
perdeu contato com aquilo que torna a arte
sentido – apesar (ou talvez mesmo por essa razão)
importante mais do que com o objeto que ela
do fato de que é precisamente essa inércia, essa
representa (grifos meus). O grande serviço de
ausência de sentido que a pintura parece retratar.
Schapiro a seu campo, então, terá sido advogar
Ambos procedem não apenas de acordo com o
em favor de dar a arte para a história da arte e ao
princípio do humanismo, mas do historicismo
mesmo tempo afastá-la das mãos do filósofo.
168
entretanto, preliminar à interpretação da pintura –
humanista, que deseja não só reconstruir o
Existe aqui, entretanto, uma ironia, pois Nochlin
passado, mas reanimá-lo e, em última instância,
supõe que Schapiro possui a última palavra
revivê-lo.8 Tratando a obra de arte como algo
nesse debate, ignorando o fato de que o caso
inerte, até que o historiador lhe dê um sopro
Heidegger-Schapiro fora reaberto dois anos
de vida – sentido –, Heidegger e Schapiro
antes, por outro crítico pós-estruturalista, Jacques
exemplificam o que Derrida identifica como a
Derrida, em conferência proferida em Columbia
relação compensatória fundamental da história
e publicada no ano seguinte em seu livro de
da arte com seu objeto, sua tendência de sempre
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Vincent van Gogh, A Pair of Shoes [ou Old Shoes] 1886,
óleo sobre tela, 37,5 x 45cm, Museu Van Gogh, fonte
Museu Van Gogh
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169
responder àquilo que se acredita ser a deficiência
básica ou ausência existente na obra, que deve,
portanto, ser suplementada pela interpretação.
Mais ainda, ambos os casos desta restituição – da
“verdade” da pintura – efetuam-se de acordo com
igual processo de atribuição (dos sapatos a seu
dono). Um atributo é sempre uma propriedade.
Na pintura e na escultura, atributos são objetos
(usualmente inanimados) que pertencem a um
sujeito específico e nos permitem estabelecer sua
identidade; por essa via, nos permitem alcançar
o papel do atributo na análise iconográfica
(Panofsky: “se a faca que nos permite identificar
São Bartolomeu não é uma faca, mas um sacarolhas, a figura não é São Bartolomeu”). A análise
estilística ou formal, porém, refere-se também à
atribuição: não é apenas endereçada àquilo que
se acredita serem as propriedades intrínsecas
das obras; os peritos tratam as próprias obras de
arte como atributo que nos permite identificar
o artista (ou, menos frequentemente, o período
histórico ao qual a obra pertence). No princípio,
a história da arte foi concebida como a ciência da
atribuição cuja função era resgatar as obras de arte
medievais tardias e da renascença vinculando-as a
seus autores. Apesar de as obras de arte em sua
maioria já terem, até o momento, sido vinculadas
aos respectivos autores, a resposta de Schapiro
a Heidegger indica que o debate a respeito da
atribuição – seja ele de pinturas a seus autores ou
de objetos representados a seus supostos donos,
mas em ambos os casos a uma pessoa específica
– permanece ainda sendo o ponto central da
especulação no campo da história da arte.
170
Natureza-morta (...) consiste em objetos
que (...) sejam artificiais ou naturais, estão
subordinados ao homem como objetos de
uso, manipulação e deleite; esses objetos
são menores do que nós, ficam ao alcance
da mão, devem sua presença e lugar a uma
Representação
Toda arte é “produção de imagem” e
toda produção de imagem é criação de
substitutos. E. H. Gombrich, Meditações
sobre um cavalinho de pau.
não está presente, mas representado na pintura.”
Mesmo se nessa passagem Panofsky falha em
tratar o problema da representação, não se pode
concluir por essa razão, que ele não possua
uma teoria da representação. Como seu ensaio
Perspectiva como forma simbólica evidencia,
ação humana ou propósito. Eles exprimem
O que a apropriação da pintura em Heidegger
Panofsky define representação como atividade
o sentido humano de exercer poder sobre
e Schapiro sanciona é uma perspectiva da
simbólica, em oposição à cópia da experiência
as coisas ao lidar com elas ou utilizá-las.
representação como substituição: a imagem é
visual (representação como imitação ou ilusão).
9
Nessa passagem, representação se comunica
com o poder por meio da posse. Assim,
podemos identificar os motivos da história
da arte, pelo menos enquanto ela é praticada
como disciplina humanística: um desejo pela
propriedade, que exprime o sentido do homem
de possuir ‘poder sobre as coisas’; um desejo de
probiedade, um compromisso com o respeito às
relações de propriedade; um desejo do “nome
próprio”, designando uma pessoa específica
que invariavelmente é identificada como objeto
da obra de arte: definitivamente um desejo de
apropriação. Pois o debate Heidegger-Schapiro é
basicamente uma contestação sobre a propriedade
da imagem. Como Derrida observa, ao atribuir as
botas a uma camponesa ou ao artista, Heidegger e
tratada como dublê ou substituto de alguém que
por alguma razão não aparece. Os historiadores
da arte sempre tenderam a definir representação
desse modo, apesar da asserção de Alpers
relativa à falta de um conceito operativo de
representação, sendo, assim, incapazes de lidar
com obras como As meninas – obras que ela crê
serem “autoconscientes e ricas no que se refere
a aspectos representacionais para os quais os
estudos literários têm estado mais afinados”. Ela
atribui essa deficiência – que propõe suprir – ao
projeto de história da arte iconológico como
formulado por Panofsky na introdução ao Estudos
de iconologia, especialmente, à distinção que ele
faz entre conteúdo pictórico ou significado de um
lado e forma de outro:
Schapiro estão na verdade propondo interpretá-las
Quando um conhecido me encontra
segundo a perspectiva de cada um, pela própria
na rua e tira o chapéu, o que eu vejo
identificação de um deles com o camponês e do
de um ponto de vista formal nada mais
outro com o homem cosmopolita.
é do que a troca de certos detalhes no
Dizer “Esta (esta pintura ou estas botas) refere-se
a X” é dizer “isto se refere a mim” pela retomada
de “isto se refere a um self [mim mesmo]”. Não
só isto é propriedade de alguém, mas também
Em outro momento, Schapiro formula os
princípios sobre os quais repousa sua atribuição
dos sapatos de Van Gogh, e toda sua teoria
de natureza-morta como autorretrato; seu
vocabulário nos alerta para o que está em jogo
“isto é minha propriedade”. Pois entre as muitas
aqui (grifei as frases relevantes):
identificações de obras de arte aqui mencionadas,
não podemos deixar de atentar para a identificação
interior de uma configuração formal que
faz parte de um padrão geral de cor, linhas
e volumes que constitui o meu campo de
visão (...) No entanto, minha compreensão
de que tirar o chapéu tem relação com um
cumprimento está relacionado a um campo
de interpretação de outra natureza11
Alpers
atribui
essa
segunda
perspectiva
a
Gombrich, alegando que sua famosa frase
“Fazer vem antes de combinar” indica que ele
compreende representação como ilusão e, por
essa razão, sobretudo como questão de destreza
imitativa. No entanto, a citação no início deste
texto indica que ele também compreende a
representação como atividade simbólica, a criação
de substitutos (é isso o que na verdade “fazer antes
de combinar” significa). Em Meditações sobre um
cavalinho de pau, Gombrich opõe sua própria
visão de representação àquilo que ele identifica
como a “visão tradicional”: representação como
imitação. Ilusão, segundo Gombrich, é algo
apenas secundário, que deve ser acrescido ou
ultrapassado pela representação, não llhe sendo,
porém, de forma alguma essencial.
Pode-se demonstrar que a história da arte sempre
definiu representação em relação a estas duas
atividades – substituição ou imitação – e que
elas correspondem perfeitamente ao que em
idioma alemão se designa como Vorstellung –
representação no sentido de atividade simbólica
– e Darstellung – apresentação no sentido de uma
apresentação teatral. (Assim, a distinção poderia
ser primariamente linguística.) A primeira, ou a
relativa ao modo simbólico, é a que se refere à
de Heidegger com a camponesa e de Schapiro com o
Alpers discorda quando Panofsky transfere o
substituição; a imagem é concebida como algo
cidadão urbano, o primeiro com o nativo enraizado,
resultado desse encontro para a pintura: “O que
que ali está em lugar de outro, ou de algo que
o último com o desenraizado imigrante”.
Panofsky escolhe para ignorar é que o homem
foi ali colocado e por essa razão ali permanece
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10
TE M ÁTI CAS | CRAI G O WE N S
171
como compensação da ausência. A segunda, ou
de arte que chamam nossa atenção para suas
expressa na instituição da perspectiva monocular
intencionalidade), nos sensibiliza para o fato
aquela da modalidade teatral, é a que se refere
propriedades materiais e através de uma história
(a perspectiva é, literalmente, ver através, per-
de que a relação do observador com a obra de
à repetição; a imagem é definida como réplica
da arte que nos ensina a enxergá-las como
specere,
arte é prescrita, apontada antecipadamente pelo
da experiência visual, nela o artista trabalha para
combinações mais ou menos harmônicas ou
materiais da representação – e precisamente os
promover a ilusão do tangível, presença física dos
dissonantes de linhas e cores –, que podemos ter
traços deixados pelo trabalho do pintor, devido a
objetos que ele representa. Assim, os historiadores
dificuldade em apreciar o que Foucault e Marin
sua atividade transformadora na pintura – devem
da arte sempre situaram a representação em
identificam como a condição absolutamente
ser apagados ou ocultados por aquilo que o pintor
termos de polos de ausência e presença, os quais,
fundamental da representação, pelo menos como
representa, por sua ‘realidade objetiva’”. Assim,
como Derrida demonstrou, constituem a oposição
foi concebida no século 17: sua transparência
quando Foucault e Marin cuidam do problema da
fundamental sobre a qual a metafísica ocidental
(que não é o mesmo que ilusionismo). No sistema
representação visual, eles trabalham para articular
está baseada.12 Necessita-se, então, não de um
clássico de representação como foi formulado
– tornar visível – aquelas estratégias implícitas,
conceito de representação (pois já possuímos
pelos lógicos de Port-Royal, o signo é inteiramente
invisíveis e táticas pelas quais a representação
dois), mas de uma crítica a ele.
orientado e dependente daquilo que ele significa.
alcança sua putativa transparência; nenhum dos
não aos problemas de estilo ou iconografia, mas
“Ele é característico”, observa Foucault, “tanto
dois está interessado no que a representação
ao lugar do espectador diante da obra de arte,
que o primeiro exemplo de signo oferecido pela
revela, mas naquilo que ela oculta.
movendo-se dessa forma para o território do
Como Gombrich testemunha, esses dois modos de
representação estão longe de chegar a conciliarse; os historiadores da arte só têm introduzido
o conceito de imitação para rejeitá-lo como não
essencial, suplementar, ou até mesmo errôneo.
Desse modo, Wolfflin prefacia sua discussão em
“Os
elementos
daquele que ela realmente representa.”14
frequentemente, a apagar esses dois polos em
favor da mensagem que apresentam, a pesquisa
em história da arte os tem frequentemente
negligenciado; Alpers e Fried, entretanto, devem
ser incluídos entre os poucos historiadores da arte
que recentemente começaram a prestar atenção
literários ou da estética da recepção.
o símbolo, mas a representação gráfica e espacial
a imagem não possui nenhum conteúdo além
Em razão de as obras de arte tenderem,
desconhecido, seja ele no terreno dos estudos
Lógica de Port-Royal não é a palavra ou o grito, ou
– o desenho como mapa ou imagem. Isso porque
sistema representacional.
O lugar do observador
Existe, entretanto, pelo menos um precedente
Um texto é feito por muitos escritos,
no campo da história da arte em razão de sua
desenhado por muitas culturas e lançado
atenção ao papel do espectador, que é o trabalho
a indicação: “Constitui erro para a história da
Alegar que a representação é transparente para
por mútuas relações de diálogo, paródia,
de Leo Steinberg. A sensibilidade de Steinberg em
arte trabalhar com a tosca noção de imitação
com seu objeto não é defini-la como mimética ou
contestação, mas existe um lugar no qual
relação ao espectador transparece em toda a sua
da natureza, como se isso fosse meramente um
ilusionista – mapas, por exemplo, não estimulam
produção. Em The philosofical brothel, no qual ele
processo de obter mais perfeição.” A imagem
a experiência visual. Antes, isso significa que
essa multiplicidade está focada e esse lugar é
ilusionista é suspeita de fraude, de tentar passar
cada elemento da obra de arte é significante,
The Most General Representational forms com
13
por algo que não é (a experiência visual direta);
isto é, refere-se a alguma coisa que existe,
motivados
os
independentemente da representação. Assim,
historiadores da arte tendem a deixar em suspenso
“transparência” designa perfeita equivalência
ou colocar sob questão o referente; eles trabalham
entre a realidade e sua representação; significante
para distinguir as imagens dos objetos que elas
e significado espelham-se um no outro, um
por
platônica
desconfiança,
representam, de modo a restringi-las àquilo que
lhes é específico, próprio da representação em si.
(Desse modo, Schapiro declara: “Eu não encontro
nada na ingênua descrição de Heidegger sobre os
sapatos que Van Gogh representa que pudesse
ser imaginado a partir de um verdadeiro par de
sapatos camponês.”)
172
‘trans-parência’):
simplesmente é o duplo do outro. No entanto,
essa transparência só pode ser alcançada através
da estratégia da ocultação: por exemplo, a
lendária transparência do plano pictórico tal
como prescrito em Da pintura, de Alberti, era
alcançada pelo apagamento do suporte material
da imagem. Assim, Marin escreve a respeito de
o leitor, e não, como até aqui foi dito, o autor.
Roland Barthes, A morte do autor
O homem de Panofsky na rua de fato nos alerta
para aquilo que a representação clássica ocultaria,
aquilo pelo que alcança a transparência essencial:
o fato de pinturas serem mensagens endereçadas
ao espectador com a intenção de influenciar suas
crenças ou modificar seu comportamento de
um modo ou de outro. Elas possuem o que em
traça a evolução da obra Demoiselles d’Avignon,
de Picasso, o tratamento dado à relação que a
pintura causa no espectador repousa no que é,
em última instância, uma metáfora linguística: o
modo de endereçamento do pintor. Os esquetes
iniciais da obra mostram um homem jovem
entrando num bordel pela direita; na pintura
final, Steinberg comprova, o papel dessa figura,
que aparece comandando a cena, foi transferido
para o espectador. Assim, o momento decisivo da
linguística se denomina um polo de emissão e um
criação de Demoiselles, o ponto no qual sua mise
polo de recepção; esses dois polos constituem o
en scène se arranja, é resultado de uma mudança
“aparato representacional” da pintura. Embora
da narrativa, ou de um modo de endereçamento
esse modelo representacional da prática pictórica
na terceira pessoa para outro na segunda pessoa,
Estamos tão habituados a essa formulação do
uma tradição pictórica específica, que vigora
não deixe de ter problemas (em parte porque
no qual a pintura ela mesma confronta, na
problema da representação – através de obras
da Renascença pelo menos até o século 17,
parece ressuscitar a desacreditada categoria da
verdade, proposições ao espectador.
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173
“Nenhuma outra pintura”, Steinberg registra,
‘então’, que se referem a situações espaciais e
mesma maneira que o rei e a rainha estão
“(excetuando As meninas) trata o espectador
temporais em que os atos discursivos ocorrem.
refletidos no espelho distante) somos
com comparável intensidade”.15 E, retomando
Enunciados
aqueles que comandam sua presença.
a discussão de Alpers a respeito de As meninas,
um falante e um ouvinte, além de apresentar
descobrimos
situações nas quais “o primeiro busca de algum
que
ela
apresenta
a
mesma
metáfora linguística, ainda que tenha procurado
demonstrar, contra Foucault, que elas foram
planejadas a partir de tradições pictóricas
específicas. Em sua visão, As meninas engaja dois
tipos de representação visual, “cada um deles
estabelece um modo diferente de relação entre o
então
pressupõem
modo influenciar o último”.16
Enunciados históricos (ou narrativos), por outro
lado, são caracterizados pela supressão de toda
referência a ambos, falante e ouvinte, como também
a situações de elocução espacial e temporal.
Essa circularidade, conclui Alpers, consiste no que
torna tão “extraordinário” As meninas.
Marx, A contribution to the Critique of
Hegel’s Philosophy right17
Em Outros critérios, Steinberg descreve As
meninas como um “inventário das três possíveis
Posto isso, onde a interpretação repousa? Será
funções que se pode distinguir em relação ao
essa circularidade entre observador e observado
plano pictórico” – janela, espelho e superfície
o que verdadeiramente define a originalidade que
pintada –, exibidas em sequência na parede de
Velázquez alcança em sua pintura? Isso dá conta
fundo do estúdio de Velázquez no palácio. Esses
adequadamente da especificidade de As meninas?
três elementos – o primeiro e o último deles
espectador e a visão de mundo ali expressa”. A
Para
[Benveniste
E se se pudesse demonstrar que essa combinação
reiterados na janela implícita e tela invertida que
caracterização inicial de Alpers desses dois modos
escreve], é necessário e suficiente que o
de dois modos antitéticos de representação-
figuram na cena teatral – representam as múltiplas
é tributária das polaridade há muito existentes
autor permaneça fiel a sua intenção como
enunciação não fosse peculiar a As meninas ou
funções apresentadas na própria superfície de As
na história da arte. O primeiro modo está no Sul,
historiador e abandone o que é exterior à
ainda a Velázquez, mas existisse também em
meninas: uma janela através da qual percebemos
exemplificado pelas convenções de perspectiva
narração dos eventos (discurso, reflexões
a cena e o espelho através do qual ela é percebida
de Alberti: “O artista se presume no lugar do
pessoais, comparações)... Os fatos são
outras pinturas do século 17? E se isso não fosse
espectador na frente do mundo pintado” – isto
descritos
é, tanto fora quanto antes dele. O segundo modo
da maneira como vão gradualmente
está no Norte, é descritivo; o mundo oferece
aparecendo no andamento da história.
imagens dele mesmo (como num espelho ou
Ninguém está falando aqui. Os eventos
câmera escura) “sem a intervenção da mão
parecem narrar a si mesmos.
humana”, e assim “é concebido como se existisse
que
haja
do
narração
modo
que
ocorreram,
peculiar só à pintura, mas também compartilhada
pela literatura? (De fato, Marin demonstra
que as regras da gramática e da lógica, como
formuladas no século 17, atribuem a coexistência
desses dois modos aparentemente incompatíveis
em qualquer elocução.) E se, finalmente, essa
Embora Alpers não reconheça essa correspondên-
circularidade que Alpers encontra em As meninas
cia, ela prossegue lendo As meninas como combi-
definisse em última instância o que Foucault
Quando, porém, Alpers reitera a diferença entre
nação – “de uma forma encantadora, porém fun-
chama de episteme clássica – o horizonte no
esses dois modos numa só frase, a metáfora
damentalmente instável e insolúvel” – desses dois
qual todo o conhecimento está encerrado, o
linguística vem à superfície: “O artista diante
modos de representação-enunciação. Assim ela
limite que circunscreve aquilo que foi possível
do primeiro tipo de pintura declara ‘eu vejo o
propõe que a relação do observador com a cena
dizer, representar, e mesmo pensar no século 17?
mundo’; diante do segundo, antes de tudo,
representada é profundamente paradoxal.
Então a conquista de Velázquez não poderia mais
antes do artista-espectador”.
mostra que ‘é visto’.” A distinção de Alpers
corresponde perfeitamente à distinção que Émile
Benveniste faz entre enunciado discursivo e
histórico (ou narrativo) (discours/histoire) em sua
obra Problems of General Linguistics [Problemas
de linguística geral]. Benveniste divide a linguagem
em dois “sistemas enunciativos”. O primeiro, da
ordem do discurso, é caracterizado pelo uso de
pronomes na primeira e segunda pessoas, além
de formas adverbiais como ‘aqui’, ‘lá’, ‘agora’, e
174
discursivos
o dono da propriedade privada é o rei.
O mundo observado que é anterior a
nós é precisamente o que, ao olhar para
fora (e aqui o artista se junta à princesa
e a parte de seu séquito) nos confirma
ou reconhece. Mas se nós não chegamos
visto não terá sido definida em primeiro
nos lembra, entretanto, que “os interiores do
séulo 17 em geral justapõem o vão de uma porta
aberta ou visada de uma janela com a moldura
de uma pintura e, próximo a elas, um espelho
preenchido por algo que está ali refletido.”18 Essa
caracterização da pintura como “inventário”,
desse modo, contradiz a qualificação que
Alpers atribui a Velázquez “encantadora porém
fundamentalmente instável e insolúvel”. O que
Alpers identifica como específico dessa pintura
Steinberg toma como aquilo que em geral é típico
da pintura do século 17.
ser descrita como combinação original de dois
Segundo Marin, a coincidência numa única obra
modos distintos de representação, mas como
de arte dos mesmos dois modos aparentemente
o desdobramento, na superfície de sua tela, do
incompatíveis – pintura como janela e como
próprio sistema clássico de representação – que é
espelho – não é apenas típico, mas o próprio
o que Foucault lhe tem atribuído todo o tempo.
fundamento sobre o qual o sistema clássico de
representação foi erigido. Assim, ele define seus
a nos posicionar diante desse mundo e
perscrutá-lo, a antecedência do mundo
(pelo pintor representado dentro dela). Steinberg
“axiomas contraditórios”:
Representação e propriedade
(1) A superfície representacional é uma janela
lugar. Na verdade, para fechar-se, o mundo
Tomando o povo como sua propriedade
transparente através da qual o espectador,
visto está diante de nós porque nós (da
privada, o rei está apenas declarando que
homem, contempla a cena representada na tela
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175
como se visse uma cena real representada no
do nosso – a coisa real e a sua pintura – o espelho
o status (ontológico e epistemológico) do objeto
mundo; (2) mas, ao mesmo tempo, a superfície –
revela como idênticas, como se fosse patente o
de representação. Pois se, no primeiro axioma, a
na realidade uma superfície e um suporte material
fato de que a obra de arte na tela espelhasse a
representação é atribuída a uma pessoa específica
– é também um aparato refletor no qual objetos
verdade que a capacidade de reflexão de nenhum
que “se apropria de coisas, da realidade como algo
reais são pintados.
espelho pode ultrapassar. Nesse sentido, As
seu, sua realidade”, o segundo axioma demonstra
meninas pode ser considerada responsável por
que “essa pessoa não está situada no tempo e
celebrar a verdade da arte do pintor”).
no espaço com toda as suas determinações, mas
O
primeiro
axioma,
pintura-como-janela
(equivalente ao que Benveniste denomina nível
atua como um espírito universal e abstrato cuja
discursivo), atribui a imagem a um tema humano
A fim de exemplificar como esses axiomas
específico – o “olho/eu” que ocupa o ponto
contraditórios
de vista privilegiado no sistema de perspectiva
pintura, Marin sintetiza a observação de Benveniste
monocular – que tem sido substituído por coisas;
de que elocuções históricas são caracterizadas
sua representação desse sujeito pode então
pela supressão de todos os indícios de emissão
No sistema clássico de representação, então,
tomar a representação como sua, como um
e de recepção com a hipótese de Freud de que
o objeto da representação é suposto como
dos modos de sua visão, de seu pensamento.
toda negação na verdade constitui uma (forma
absolutamente soberano. Em outras palavras, a
Entretanto, no segundo axioma, pintura-como-
mascarada de) afirmação. Quando um paciente
pessoa que representa o mundo foi transformada,
espelho (equivalente ao nível histórico) esse
diz “você me perguntou quem poderia ter sido
pelo ato da representação, de um ser subjetivo
sujeito observador desaparece, e o mundo,
essa pessoa no sonho. Não era minha mãe”,
enredado no espaço e no tempo – pelos quais é de
por essa razão parece representar a si próprio
Freud comenta, “nós emendamos: ‘Então ela era
certo modo possuído – em Mente transcendente
sem a intervenção de um artista. O segundo
sua mãe’”.20
e objetiva que se apropria da realidade para si
axioma, então, postula perfeita equivalência
entre realidade e representação, de modo que
as representações “possam ontologicamente
podem
coexistir
numa
única
Assim, Marin deduz aquilo que ele chama de
“estrutura-negação” da representação clássica:
aparecer de modo semelhante às coisas que elas
A tela como suporte e como superfície não
representam, ordenadas num discurso racional e
existe. Pois pela primeira vez na pintura
universal, o discurso da realidade em si”. É através
[Marin está discutindo a construção da
da supressão de toda evidência do aparato
perspectiva em Brunelleschi] o homem
de representação, então, que é assegurada a
encontra o mundo real. Mas a tela
reivindicação do clássico status autoritário da
como suporte e sua superfície existem
representação,
para operar a duplicação da realidade:
de possuir alguma verdade ou
valor epistemológico.
(O papel do espelho em estabelecer valor de
verdade da representação pictórica é também
discutido por Steinberg numa conferência sobre
As meninas, escrita em 1965 e apresentada
muitas vezes, porém só recentemente publicada:
“Descobrimos que o plano de visão cumulativo de
176
19
única função é fazer juízo das coisas e afirmá-las.”
(Na teoria política clássica, é claro, essa função era
atribuída somente ao rei, o juiz imparcial e universal.)
mesma e, por apropriar-se dela, a domina. Assim
Marin descreve essa operação:
Podemos compreender esse processo
como aquele no qual um sujeito inscrevese a si mesmo como o centro do
mundo e transforma-se em coisas pela
transformação de coisas em sua própria
representação. Tal pessoa tem o direito
de possuir as coisas legitimamente porque
substituiu por coisas os seus signos, que a
representam adequadamente – portanto,
dessa maneira, a realidade equivale
exatamente a seu discurso.
a tela como tal é simultaneamente
pressuposta e neutralizada, ela tem de ser
técnica e ideologicamente aceita como
transparente. Invisível e ao mesmo tempo
a condição necessária da visibilidade;
refletir a transparência em teoria define o
plano de representação.
A
representação
é,
então,
definida
como
apropriação e, desse modo, se constitui como
aparato de poder. A análise de Marin acaba
aqui; o tratamento que ele dá à representação
Velázquez configura duas coisas distintas como
Essa simultânea afirmação e negação do aparato
clássica pode, entretanto, estar delimitado à
uma única: o que o rei e a rainha enxergam do
representacional assegura a transparência da
vida social e econômica do século 17, a fim de
lugar em que se encontram e o que nós vemos
representação clássica e, ao mesmo tempo, define
evidenciar a função essencialmente política à
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qual a representação serve. Não devemos supor
que apropriação equivale automaticamente
à propriedade apesar da famosa definição de
Locke de 1960: “Qualquer um que retire do
Estado algo que a natureza proveu e tome para
si acrescentando-lhe algo que seja seu, por meio
disso, torna-o sua propriedade.”21 Antes de Locke,
entretanto, os conceitos de apropriação (Labor)
e propriedade eram mutuamente exclusivos:
propriedade era adquirida através de herança,
conquista ou divisão legal, mas nunca através
de trabalho (associado não à propriedade, mas
à pobreza).22 A ideia de Locke de que o homem
tem direito natural à propriedade criada por
seu trabalho foi assim uma formulação radical
e certamente não corresponde à realidade
econômica e política do século 17.
No modo feudal de produção, o trabalhador
não tinha nenhum direito legal de usufruir de
seu próprio trabalho, o que cabia ao dono da
terra. Ter a propriedade da terra equivalia a ter
poder político; a economia e a política eram
inextricavelmente entrelaçadas.23 Entretanto, nas
monarquias absolutas que emergiram do modo
feudal de produção para dominar a Europa do
século 18 – e eram por isso contemporâneas ao
sistema clássico de representação – os interesses
políticos e econômicos eram, pelo menos
teoricamente, distintos.24 A principal característica
do estado absolutista foi ter restabelecido a lei
romana, que rigorosamente distinguia os direitos
econômicos determinados pela propriedade
privada da autoridade absoluta investida pelo Estado.
A lei civil romana (jus) que regulava as transações
econômicas entre os homens, era baseada no
caráter absoluto e incondicional da propriedade
privada; a lei pública romana (lex), entretanto, que
regia as relações políticas entre o Estado e seus
súditos, contrabalançava o caráter incondicional da
propriedade privada com a natureza formalmente
absoluta da soberania imperial.
TE M ÁTI CAS | CRAI G O WE N S
177
Ao reviver a lei romana, os Estados absolutistas
abstrato, verdade universal. E não existia verdade
sujeito da cena de representação é reconhecido,
criou seu programa junto à frase “Et in Arcadia ego”
do início da Europa moderna reintroduziram a
mais universal do que o fato, indiscutível na
Foucault supõe, dentro da própria pintura pelo
(a autoria de Rospigloisi é reconhecida, argumenta
separação entre as esferas econômica e política:
ideologia da regra absolutista, de que a supremacia
fato de que só pelo lado reverso da tela, no qual
Marin, dentro da própria pintura pelo fato de o dedo
o poder foi consolidado numa monarquia central,
absoluta do soberano é conferida por Deus.
seu retrato presumivelmente aparece, é visível
indicador do pastor que tenta decifrar a inscrição da
pelo espectador de As meninas”.
tumba apontar para a letra “r” na palavra Arcadia”
cuja soberania era absoluta; ao mesmo tempo,
títulos de propriedade da aristocracia feudal
ganharam força. O mesmo processo histórico
que reduziu o poder político da aristocracia
então,
compensou
essa
perda
garantindo-
lhe ganhos em propriedade sem precedente.
Essa foi a contradição principal sobre a qual a
estrutura social do Estado absolutista se assentou
– contradição que em última instância o levou
à queda. A soberania absoluta do rei deu-lhe
o poder de anular os privilégios medievais e
ignorar os direitos de propriedade tradicionais;
paradoxalmente, foram esses privilégios e direitos que ganharam força com a ascensão do
absolutismo. Como consequência, a história do
Estado absolutista é acima de tudo a história
do conflito entre a monarquia e a aristocracia
pelo poder político.
Em Tristes trópicos Claude Lévi-Strauss propõe
que as obras de arte possam ser interpretadas
como soluções imaginárias de contradições
sociais reais;25 o sistema clássico de representação
é de fato constituído dessa forma, de modo a
precisamente facilitar essa solução. Contraditórios
entre si, seus dois axiomas reproduzem os dois
polos antitéticos – propriedade/soberania – o que
define as contradições sociais que atravessam o
Estado absolutista. Na representação clássica,
178
É importante mencionar que os princípios feudais
que é também a letra central da inscrição e está
de domínio territorial e, com eles, o poder político
Além disso, seguindo a hipótese de negação-
investido na propriedade da terra persistiram
estrutura de representação clássica, a elisão do
mais fortemente durante a época do absolutismo
objeto de representação deve também significar
Tampouco o espectador de As meninas usurpou o
na Espanha, onde, em última instância, eles
sua afirmação. Pois apesar de a pessoa em razão
lugar do rei; para isso nós teremos que esperar até
contribuíram para o colapso da dinastia dos
da qual a representação existe nunca poder ser
o final do século 18, quando as regras absolutistas
Habsburgo.26 E, agora, talvez possamos começar
encontrada na própria representação, Foucault
serão dissolvidas e o homem, como nos fala
a compreender as implicações das colocações
acredita que ela de qualquer modo ali se reconhece
Foucault na mais audaciosa hipótese apresentada
de Foucault a respeito de As meninas bem no
de modo deslocado, na forma de uma imagem ou
em A ordem das coisas, fará sua primeira aparição
início de sua análise da episteme clássica, tanto
reflexo”.27 E de fato, em As meninas a figura que
no palco da história. O que nos é oferecido a
quanto de sua enigmática asserção de que a
ocupa a posição de observador privilegiado – e
contemplar em As meninas está delimitado,
pintura de Velázquez representa a ausência de
cujo olhar portanto precede o do pintor – está
circunscrito pela visão do rei; nós vemos nem mais
um sujeito na representação – “da pessoa com a
refletida na própria pintura pelo espelho que
nem menos do que ele vê (é isso, eu acredito,
qual a imagem se assemelha e da pessoa em cujos
rompe a continuidade da parede do fundo da
que Foucault quer dizer quando declara que As
olhos a imagem é apenas uma semelhança”. Em
pintura de Velázquez do estúdio no Palácio. O
meninas descreve os limites da representação
As meninas esses dois objetos tornam-se invisíveis
espelho não apenas estabelece a identidade da
clássica.) De fato, a pintura atua como armadilha
para coincidir.
pessoa que ali está; ele também define o ponto
para o olhar do espectador, o qual é convocado
que ele ocupa como soberano absoluto. Pois ali
pelos olhares do pintor e da princesa, apenas para
está, como indica o subtítulo de um dos capítulos
ser sujeitado, através deles, ao olhar do rei.
A pintura, claro, está focada num ponto central
– definido pela arquitetura dos gestos e dos
olhares que atravessam e tornam implícita a
localizada no exato centro geométrico da pintura.)
seguintes de Foucault, “O lugar do rei”.
construção perspectivada do espaço –, que é
Embora esse ponto central do quadro também
claramente ocupado pela pessoa para a qual a
pudesse ser ocupado pelo pintor, posicionado
cena existe, que pode tomar essa representação
na frente de As meninas para pintá-la, e pelo
O princípio de realidade, ao demonstrar
como sua (essa pessoa é também o modelo cuja
espectador que contempla a imagem, nem o
que o objeto do desejo não existe mais,
imagem Velásquez presumivelmente traçou na
artista e nem o espectador poderiam usurpar
requer que doravante toda a libido seja
tela antes de pintar). Esse ponto focal da pintura,
o privilégio e o poder que pertencia somente
afastada de sua ligação com esse objeto.
no entanto, não está propriamente inserido na
ao soberano. Pois a pintura não representa a
Contra essa pretensão um conflito ocorre
Modernidade lamuriante
pintura, mas lhe é externo – como deve ser se as
visão do pintor e sim a do rei; Velázquez parece
observa-se de modo universal que o
essa autonomia é resolvida através da dialética da
observações de Marin sobre a posição do objeto
ter abdicado de seu próprio papel de autor da
homem nunca abandona voluntariamente
afirmação e negação, pela qual as reinvindicações
de representação clássica estiverem corretas.
imagem, em favor da autoridade superior que o
a posição-libido, nem mesmo quando um
conflitantes por propriedade e soberania são
Pois se, através da representação, o objeto é
sustenta e sua arte. Na realidade, não precisamos
substituto já o convida.
forçadas a coincidir. Pois o axioma que define
transformado em algo abstrato, uma mente
identificar Filipe IV como derradeiro “autor” de
representação como propriedade de um indivíduo
transcendente “cuja única função é julgar as coisas
As meninas, tanto quanto Marin, no caso de The
Freud, Mourning melancolia
específico depende, para sua legitimação, daquilo
e afirmá-las”, então ele nunca pode aparecer
Arcadian Shepherds, conferiu não a Poussin, mas
que qualifica representação como a expressão do
em sua própria representação (essa ausência do
ao cardeal Rospigliosi, que comissionou a pintura e
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A discussão de Marin sobre a estrutura-negação
da representação clássica não foi introduzida
TE M ÁTI CAS | CRAI G O WE N S
179
no MLA por Alpers, mas por Michael Fried, cujo
emergiu como problemática para a pintura como
categoricamente rejeita? A resposta de Fried sem
Isso não significa dizer que a pintura
trabalho recente também foi dedicado às relações
nunca tinha ocorrido antes”. Não surpreende,
dúvida seria que mesmo essa condição só se
não tenha essência; é propor que essa
pintura/espectador – mas em ciscunstâncias
então, que ele pudesse acusar de “a-histórica”
torna “primordial” quando concebida no final
essência, isto é, aquilo que compele à
históricas radicalmente diferentes. Em seu livro
a hipótese de Marin, alegando que seu uso
do século 18 (a reflexão de Benjamin a respeito
convicção, é de modo geral determinado,
Absortion and theatricality Fried investiga o
da distinção estruturalista história/discurso de
do valor de culto das obras de arte primitivas, que
e as mudanças estão aí sempre para
papel do espectador no final do século 18, isto é,
Benveniste seria indicativo de busca de um
não eram destinadas à exibição, em seu trabalho
comprová-lo, pelas principais obras do
precisamente no momento em que a transparência
operador trans-histórico [transhistorical operator]
A obra de arte na época da reprodutibilidade
passado recente. A essência da pintura
da representação clássica e, com ela, sua pretensão
que viria a definir a “essência” da pintura histórica.
técnica, poderia embasar esse argumento.) Mas
não é algo irredutível.31
à verdade foram perdidas. Como observa Jean
(Aqui, Fried apenas reitera a agora tão familiar
como pode uma convenção ser ao mesmo tempo
Clay em seu livro recente Romanticism, no
acusação de que o estruturalismo é a-histórico;
primordial e histórica, e por que o tratamento
final do século 18 a “transparência [do plano
entretanto, a análise da estrutura social do Estado
que Fried confere às convenções representativas
pictórico] começou a tornar-se opaca, a superfície
absolutista demonstra o caráter histórico da
do século 18 seria mais histórico do que a
[representacional] se consolidou, o véu [de Durer]
análise de Marin.)
discussão dessas mesmas convenções como eram
contraiu sua malha.28 Como observa Foucault, “O
limiar entre o classicismo e a modernidade (...)
concebidas no século 17?
quando uma figura ou grupo de figuras numa
O ceticismo de Fried com relação à existência de
pintura olha para o observador, como se percebesse
todas essas constantes pode ser remetido àqui-
sua presença diante da tela (como em As meninas),
lo que ele esboçou em suas críticas do final dos
é o aparato representacional que está sendo
anos 60, especificamente às notas de rodapé
reconhecido. Esse reconhecimento, argumenta
que complementam o texto “Arte e objetidade”,
Entretanto o tratamento que Fried oferece ao
Fried, também é historicamente determinado;
um ataque à escultura minimalista recorrente-
problema do espectador no limiar da modernidade
cita como evidência a análise da recepção da obra
mente citado.
é bastante similar à discussão de Marin sobre esse
Fils ingrat (1777), de Greuze, como realizada pela
problema no século 17:
crítica contemporânea, na qual a presença de um
foi definitivamente cruzado quando as palavras
deixaram de se remeter às representações e
proporcionar um quadro espontâneo para o
conhecimento das coisas”.
29
O reconhecimento de que as pinturas são
feitas para ser vistas [escreve Fried] e por
essa razão pressupõem a existência de um
observador leva a buscar a atualização de
sua presença (...) Ao mesmo tempo (...)
menino, que parece olhar para fora da tela em
direção ao espectador, não foi interpretada como
algo que interrompe a continuidade narrativa da
pintura. Mas quando Marin observa que, em The
Arcadian Shepherds, de Poussin, ninguém parece
se dirigir diretamente ao espectador – “exceto pela
parece, pelo menos inicialmente, coincidir com
a percepção de Nietzsche – que tem sido crucial
para o trabalho de Foucault desde 1970 – de
que aquilo que permanece por trás das coisas
“não é uma linha do tempo ou essência secreta,
mas o segredo de que as coisas não possuem
essência ou a essência delas foi fabricada
como colcha de retalhos a partir de formas
exteriores”.32 Enquanto
ambos,
Nietzsche
e Foucault, apresentam a essência como
“invenção das classes dominantes”, ou seja,
como instrumento de poder, Fried os neutraliza
Nessas notas de rodapé, Fried emenda a asserção
quando alega que ela só se transforma em
de Clement Greenbereg de que “a essência
“relação às obras importantes do passado”.
irredutível da arte pictórica consiste em apenas
Embora os três autores, ao que parece, partam
duas convenções constitutivas ou normas: a
da mesma hipótese, então, a tentativa de Fried
planaridade e a delimitação da planaridade”.
de preservar a categoria de essência tentando
Admitindo que “em termos gerais isso é
indubitavelmente correto”, Fried continua:
historicizá-la é o antípoda do esforço de
Foucault em destruí-la.
será sempre pela negação da presença do
existência da pintura e o fato de estarmos olhando
(...) a planaridade e a delimitação da
observador que isso poderá ser alcançado:
para ela, nada na mensagem icônica adverte sobre
planaridade não devem ser pensados como
só quando se estabelece a ficção de sua
sua emissão ou recepção; ou seja, nenhuma figura
‘essência irredutível da arte pictórica’ mas
ausência ou não existência é que o lugar
está nos olhando como espectadores, ninguém se
traçar a genealogia de sua posição crítica
antes como algo semelhante a condições
dele diante da pintura e de encantamento
remete a nós como representante do emissor da
dos anos 60 – desenvolvida para embasar a
mínimas para que algo possa ser visto
com relação a ela pode ser assegurado.30
mensagem” – Fried objeta que Marin não dá atenção
obra de pintores como Frank Stella e Morris
como pintura (...) a questão crucial não é
Louis (e escultores como Anthony Caro) e
o que essas condições mínimas e, pode-
para repudiar como teatral o trabalho dos
se dizer, atemporais são, mas o que, em
escultores minimalistas, os quais Fried via como
Fried argumenta, entretanto, que foi apenas “por
volta do final do século 18’’ e só na França que “a
180
Fried questiona a suposição de Marin de que,
A busca de Fried de um historicismo radical
ao que Marin enxerga como “a condição primordial
de que pinturas são feitas para ser contempladas”.
Na verdade, o recente projeto histórico de Fried
tem caráter de restauração, preocupada em
existência do observador − a principal condição
Como,
principal”
determinado momento, é capaz causar
representativos de um abandono, na verdade,
de as pinturas terem sido feitas para ser vistas −
difere do operador trans-histórico que Fried
convicção, de triunfar como pintura.
uma perda dos ideais modernistas de pureza e
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
porém,
essa
“condição
TE M ÁTI CAS | CRAI G O WE N S
181
presentificação. Alienado dos desenvolvimentos
subsequentes no campo da arte, Fried abrigou-se
na história; e uma das principais características de
seu trabalho recente é a tentativa de proclamar
Diderot – que também condenava como teatral
muitas das obras de seu tempo – moderno.
A maioria das obras de arte lida com imagens,
O que o trabalho de Fried lamenta, na verdade,
é a morte do modernismo. O pós-modernismo
– como o pós-estruturalismo – é uma crítica
à
representação,
especialmente
porque
foi
concebido a partir do modernismo. “A formulação
conhecimento existente. Assim, a pretensão
de Diderot, nesses escritos críticos e teóricos
sobre arte, em virtude da simultânea afirmação
e negação da presença do observador diante da
obra de arte, permanece como talvez o último
grande argumento da teoria da representação
clássica. Surgindo no crepúsculo da ordem clássica, essa pretensão aparece como tentativa
conservadora de tornar a contemplação, nas
palavras de Fried, “uma vez mais, uma forma de
alcançar a convicção e a verdade”.
A própria posição de Fried no crepúsculo da
modernidade é equivalente à de Diderot relativa
Revisão técnica Cezar Bartholomeu
fotográfico ou cinemático. A fotografia e o filme,
baseados como o são na perspectiva com único
ponto de vista, são meios transparentes; sua
NOTAS
The Reader in the Text, org. Suleiman and Crosman.
imagens trabalham para desmascará-las como
como ‘figuração’, uma dialética da letra e do
Princeton: Princeton University Press, 1980:293-324.
instrumentos de poder; investigam as mensagens
espírito, uma ‘linguagem pictórica’ (Vorstellung)
Todas as demais citações de Marin foram retiradas
ideológicas ali codificadas, mas também, o que
dessa fonte.
que encarna, expressa e transmite verdades de
é ainda mais importante, as estratégias e táticas
outro modo inexpressáveis”. O pós-modernismo,
pelas quais essas imagens asseguram seu status
por outro lado, é caracterizado por sua “decisão
autoritário em nossa cultura. Pois, se essas imagens
de usar a representação contra ela própria, de
se apresentam como instrumentos efetivos de
modo a destruir o vínculo ou o status absoluto
persuasão cultural, então sua materialidade e
2 Freud, Sigmund. Negation. Trad. Joan Riviere, in
de qualquer representação.” Assim, Jameson
suporte devem ser apagados para que, nelas, a
General Psychological Theory. New York: Collier,
distingue obras modernistas das não modernistas
própria realidade pareça tomar a palavra. Por meio
1963:214. Primeira edição 1925.
precisamente tendo em conta “a relação delas
da apropriação, da manipulação e da paródia,
para com aquilo que ele chama de ‘verdade-
esses artistas trabalham para tornar visíveis os
contenciosa’ da arte, sua alegação de possuir
alguma verdade ou valor epistemológico”.34
Jameson
surpreender que o conservadorismo de Diderot
(modernistas) de Syberberg dos filmes (pós-
fosse algo que Fried preferiria reprimir. Pois
modernistas de Godard. Nas artes visuais,
conforme seu próprio trabalho prossegue – Fried
a crítica pós-modernista da representação
passou de Diderot e David a Courbet – mais e
trabalha usando procedimento similar para
mais se assemelha ao trabalho do luto tal como
minar o status referencial do imaginário
descrito por Freud:
visual e, desse modo, sua alegação de que
grande empenho de tempo e concentração
representação
terminologia religiosa que define representação
ao fim da ordem clássica; assim, não é de
A tarefa é levada à frente passo a passo, com
de
Visual Arts: Poussin’s The Arcadian Shepherds, in
clássica,
disso
modos
criticamente. Os artistas que lidam com essas
pondera Frederic Jameson, “[foi] emprestada da
evidência
dos
é óbvia, e ainda estão por ser investigados
modo convincente encerra Diderot na ordem
como
documental
1 Marin, Louis. Towards a Theory of Reading in the
modernista ao problema da representação”,
oferecendo
transmitidas pela mídia, que exploram o status
Tradução Cíntia Moreira
derivação do sistema clássico de representação
Em A ordem das coisas, entretanto, Foucault de
seu projeto de uma Enciclopédia de todo o
está
distinguindo
os
filmes
representa a realidade como de fato é, quer
seja a face aparente das coisas (realismo)
mecanismos invisíveis pelos quais essas imagens
asseguram sua suposta transparência – uma
transparência que deriva, como na representação
clássica, da aparente ausência de um autor.
Portanto, quando Fried – e Alpers – tentam
repudiar a obra de escritores como Marin e
Foucault, eles também atestam a distância
existente entre a história da arte e a prática
artística contemporânea. Isolados não apenas do
(Outro tabalho de Marin foi publicado em português:
Sublime Poussin. trad Mary Amazonas Leite de
Barros. São Paulo: Edusp, 2000. Clássicos 20[N.T])
(Em português: Freud, Sigmund. A negativa, 1926.
v. XIX. In Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1996 [N.T.]).
3 A informação mais esclarecedora das implicações
políticas da crítica de Derrida e Foucault pertence
a Said, Edward. The Problem of textuality: two
examplary positions, Critical Inquiry n.4 (Verão
1978), reimpresso in Aesthetics Today, org. Philipson
and Gudel. New York: NAL, 1980:89.
mais significativo corpo da crítica presente, mas
4 In Foucault, Michel. Language, Counter-memory,
em grande medida também de sua arte, a história
Practice, org. Donald F. Bouchard. Ithaca: Cornell
da arte tem negado a si mesma qualquer conexão
University Press, 1977:92.
ou alguma ordem ideal existente escondida
com os dias de hoje – o que constitui, como
a existência do objeto perdido continua
sob ou além da aparência (abstração). Os
Walter Benjamin entendia, pré-requisito absoluto
na mente. Cada uma das memórias e
artistas pós-modernistas demonstram que essa
para qualquer investigação histórica. Perdendo
esperanças que vinculam a libido ao objeto
“realidade”, concreta ou abstrata, é ficção,
essa conexão, a história da arte cai no estudo da
afloram e são fortalecidas, e o afastamento
produzida e sustentada exclusivamente por sua
antiguidade – o que pode ser, enfim, o destino da
(Em português: Heidegger, Martin. A origem da obra
de sua libido é consumado.
representação cultural.
história da arte na pós-modernidade.
de arte. Lisboa: Edições 70, 1990:25-7. Coleção:
de energia, enquanto durante todo o tempo
33
182
Post script: Pós-modernismo
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35
5 Heidegger, Martin, The origin of the Work of Art, in
Poetry, Language, Thought, trad. A. Hofstadter. New
York: Harper & Row, 1971:33-34.
TE M ÁTI CAS | CRAI G O WE N S
183
Biblioteca de Filosofia Contemporânea [N.T.])
6 Schapiro, Meyer. The still life as personal object : a
(Em português: Manuscritos economico-filosóficos
32 Foucault, Michel. Nietzsche, Genealogy, History.
coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2000 [N.T.])
de 1844. Trad. Maria Antônia Pacheco. Lisboa:
In Language, Counter-memory, Practice, op. cit.:142.
note on Heidegger and Van Gogh. In: The reach of
15 Steinberg, Leo. The philosophical brothel.
mind: essays on memory of Kurt Goldstein. org. M.L.
Artnews, set. 1972:20
Simmel. New York: Springer, 1968:206-208.
7 Derrida, Jacques. La vérité en peinture. Paris:
Flamarion, 1978:291-436.
16 Benveniste, Émile. Problèmes de linguistique
générale. Paris: Gallimard, 1966:242.
(Em português: Problemas de linguística geral II.
Tradução de Eduardo Guimarães et al. Campinas:
sobre filosofia da história, caracterizar o método
Editora Pontes, 1989 [N.T.])
historiadores que desejavam reviver uma época,
Fustel de Coulanges recomenda que apaguem
tudo o que sabem sobre a fase da história que lhes
precede.” Illuminations. Trad. Harry Zohn. New York:
Schocken, 1969:256.
9 Schapiro, Meyer. The apples of Cézanne. In Modern
Art: Selected Papers. New York: Braziller, 1978:19.
10 Derrida, op. cit.:297.
11 Panofsky, Erwin. Studies in Iconology. New
York:Harper & Row, 1962. (Em português: Panofsky,
Avante, 1993 [N.T.]).
24 Esse parágrafo e o seguinte são baseados em
8 Apesar de Walter Benjamin, em seu trabalho Teses
com o qual o materialismo histórico rompeu, “A
Perry Russell. Lineages of the absolutism state.
Londres: NLB, 1974.
25 Lévi-Strauss, Claude. Tristes tropiques. Trad.
John Russell. New York: Atheneum, 1971:176-180.
Recentemente, Frederic Jameson propôs aplicar o
esquema de Lévi-Strauss à produção cultural em
immerse: Hans-Jürgen Syberberg and Cultural
Revolution. October, v.17, Cambridge, Summer,
1981:99-118.
35 A respeito da realidade como efeito de
org/portugues/marx/1844/criticafilosofiadireito/
trópicos, trad. Rosa Freire de Aguiar, São Paulo:
significação, ver Jean Baudrillard, For a critique of the
index.htm [N.T.].
Companhia das Letras, 1996 [N.T.]).
political economy of the sign Trad. Rosen. St Louis:
18 Steinberg, Leo. Other criteria. In Other criteria.
26 Anderson, Perry. Lineages of absolutist state. N.J.
New York: Oxford University Press, 1972:73-74.
London: Atlantic Highlands, Humanities Press, Fall
(Em português: Outros critérios. Tradução Célia
Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2008 [N.T.])
19 Steinberg, Leo. Velazquez’s Las Meninas. October,
v. 19, Cambridge: The MIT Press, Winter 1981:52.
27 Foucault, Michel. The order of things: 308.
A citação completa: “No pensamento clássico, o
personagem para o qual a representação existe, e
que se representa lá, reconhecendo-se como imagem
representação na forma de uma imagem ou mesa,
1963:213. Primeira edição 1925.
nunca será encontrado na própria mesa.
propõe sua dissolução. Ver Derrida, Jacques.
(Em português: Freud, Sigmund. A negativa, 1926.
28 Clay, Jean. Romanticism. Trad. Owens e Wheller.
Grammatology, Trad G.G. Spivak. Baltimore: Johns
v. XIX. In Edição Standard Brasileira das Obras
New York: Vendome, 1981:25.
Hopkins University Press, 1976. Pasim.
Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
(Em português: Derrida, Jacques. Gramatologia, São
1996 [N.T.]).
Paulo: Perspectiva, 1973 (1. ed. 1967) [N.T]).
21 Locke, John. Two treatises of Government. New
13 Wölfflin, Heinrich. Principles of Art History.
York: NAL, 1963:329 (1a. ed. 1689).
Reimpresso em Spencer, org., Readings in Art History.
22 Ver Hannah Arendt. The Human condition.
Chicago: University of Chicago, 1958:109ss.
Telos, 1981.
1974:60-84.
ou reflexo, aquele que amarra tudo com o laço da
14 Foucault, Michel. The order of things. New York:
34 Jameson, Frederic. In the destructive element
University Press, 1981:77ss. (Em português: Tristes
in General Psychological Theory. New York: Collier,
da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2006 [N.T.])
Completas. Rio de Janeiro: Imago, v. XIV [N.T.]).
disponível em português em http://www.marxists.
arte do renascimento. Lisboa: Estampa, 1995 [N.T.])
(Em português: Conceitos fundamentais da história
(Em português: O luto e a melancholia. In Obras
geral; ver The political unconscious. Ithaca: Cornell
20 Freud, Sigmund. Negation. Trad. Joan Riviere,
New York: Scribners, 1969, v.II:157.
33 Freud, Sigmund. Mourning and melancholia. In
General psychological theory, op. cit.:166.
17 Crítica da Filosofia do Direito, de Hegel, introdução
Erwin. Estudos de iconologia: Temas humanísticos na
12 Derrida não só apresenta essa oposição; ele
184
Pantheon, 1971:64. (Em português: A ordem das
29 Foucault, Michel. The order of things:304.
30 Fried, Michael. Absorption and Theatricality.
Berkeley: University of California Press, 1980:103.
Craig
Owens
foi
teórico
no
campo
da
cultura contemporânea, editor de periódicos
especializados em arte, professor e historiador da
arte nas universidades de Yale e Bernard. Esteve
ligado ao movimento pós-modernista nas décadas
de 1970 e 1980, período em que publicou artigos
sobre fotografia, alegoria, feminismo, política
homossexual, mercado de arte e psicanálise.
31 Fried, Michael. Art and objecthood. Artforum, New
Depois de falecer de Aids aos 39 anos, em 1990,
York, 1967. Reedição in Philipson e Gudel, orgs., Aesthetics
alguns de seus escritos foram publicados em forma
today. New York: New American Library, 1980:235. (Em
de coletânea. O texto é capítulo do livro Beyond
Economic and Philosophical
português: Arte e objetidade, Arte&Ensaios, n.9, Rio de
recognition: representation, power and culture.
Manuscripts. In Early Writings Trad. Livinsgstone and
Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Artes visuais /
Org Scott Bryson et al. California: University of
Benton, New York: Vintage, 1975:279-400.
Escola de Belas Artes, UFRJ, 2002 [N.T.]).
California Press, 1994.
23 Ver Karl Marx.
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TE M ÁTI CAS | CRAI G O WE N S
185
A FUNÇÃO DO ATELIÊ*
Daniel Buren
Daniel Buren ateliê Brancusi
museu espaço público
Conhecido por seus trabalhos feitos especialmente para espaços públicos, Daniel
Buren desenvolve análise histórica, geográfica e simbólica do ateliê e reflete sobre
sua importância como local exclusivo de produção. As adaptações operadas na obra
quando de seu deslocamento para o espaço público (museus e galerias) levam o
artista a interrogar as condições de aparecimento da arte frente à necessidade de
aproximação de arte e vida, e à consequente desmaterialização do ateliê.
De todos os enquadramentos, embalagens
e
limites – em geral não percebidos e certamente
nunca questionados – que compartimentam e
“fazem” a obra de arte (o quadro, a moldura, o
pedestal, o castelo, a igreja, a galeria, o museu,
o poder, a história da arte, a economia de mercado
etc.), um nunca é mencionado, menos ainda
questionado, embora, de todos que circundam e
condicionam a arte, seja o primeiro, o que precede
todos os demais: o ateliê do artista.
THE FUNCTION OF THE STUDIO | Daniel Buren
is well known for his work done especially
for public spaces. He develops a geographic,
historical and symbolic analysis of the studio
and reflects upon its importance as an exclusive
production place. The adaptations to the work
when moving to the public space (museums
and galleries) cause the artist to question the
conditions of appearance of art with regard
to the need to bring art and life closer and the
consequent “extinction” of the studio. | Daniel
Buren, studio, Brancusi, museum, public space
Na maioria dos casos, o ateliê é mais importante
para o artista do que a galeria ou o museu.
Incontestavelmente, ele preexiste a ambos. Além disso, como veremos, ateliê e galeria estão inteiramente
vinculados. Constituem os dois pilares de um só edifício e de um só sistema. Pôr em questão um (o museu
ou a galeria, por exemplo), sem se referir ao outro (o ateliê) é, de fato, não questionar absolutamente
nada do todo. Desse modo, todo questionamento do sistema de arte terá inevitavelmente que passar por
uma reavaliação do ateliê como lugar único em que o trabalho se faz, assim como do museu como lugar
único em que o trabalho se mostra. Ambos devem ser questionados também em termos de hábitos,
hábitos de arte hoje esclerosados.
Edward Steichen
Ateliê de Constantin Brancusi, 1920
fotografia 24,4 x 19,4cm; Met Museum, NY
Fonte: Wikimedia Commons in http://atelierdespassages.blogspot.com/
186
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TE M ÁTI CAS | DAN I E L B U RE N
187
Mas, afinal, qual é a função do ateliê?
1. É o lugar de origem do trabalho.
2. É um lugar privado (na maioria dos casos);
pode ser uma torre de marfim.
seleciona, em seu próprio ateliê, as obras que
desses lofts e seu “posicionamento” em paredes
deseja. Nesse sentido, o ateliê é também uma
e pisos dos museus modernos, também eles
butique, e é nela que se encontra o prêt-à-por-
artificialmente iluminados dia e noite.
ter para uma exposição.
Acrescentaria ainda que esse tipo de ateliê
O ateliê é ainda o espaço para o qual, antes que
3. É um lugar fixo de criação de objetos
influencia igualmente os lugares que servem de
a obra seja publicamente exposta (museu ou
obrigatoriamente transportáveis.
ateliês hoje na Europa e que podem ser, para
galeria), o artista pode convidar críticos e outros
quem os encontra, um antigo celeiro no campo,
especialistas na esperança de que suas visitas
uma velha garagem ou outros estabelecimentos
favoreçam a “saída” de algumas obras desse local
qual todos os outros irão depender.
comerciais na cidade. Em ambos os casos, já
privado – um tipo de purgatório – para frequentar
Em primeiro lugar, como um ateliê se apresenta
podemos perceber as relações arquitetônicas
alguma parede pública (museu/galeria) ou privada
que atuam entre ateliê e museu, um inspirando
(coleção) – espécies de paraísos das obras!
Um lugar extremamente importante, como já se
pode ver. Primeira moldura, primeiro limite, do
física, arquitetonicamente? Na verdade, o ateliê do
artista não é qualquer compartimento, qualquer
cômodo1. Distinguiremos aqui dois tipos:
o outro e vice-versa, assim como ocorre entre
um tipo de ateliê e outro.5 Não falaremos, no
entanto, a respeito dos que transformam parte
1. O do tipo europeu, exemplificado pelo ateliê
de seu ateliê em galeria, nem de curadores que
parisiense do final do século passado2, costuma
sonham com museus como ateliês permanentes!
ser local bem amplo e caracterizado sobretudo
Depois de termos visto algumas das características
por elevado pé-direito (4m, no mínimo), às
vezes com mezanino para aumentar a distância
de visualização da obra. Os acessos permitem
arquitetônicas do ateliê, vejamos agora o que em
geral nele se passa.
Desse modo, o ateliê cumpre o papel de lugar
de produção de um lado e de sala de espera do
outro, e finalmente, se tudo correr bem, de local
de difusão. É, portanto, um centro de triagem.
O ateliê, primeira moldura da obra, é na
verdade um filtro que irá servir a (uma) dupla
seleção, a primeira, feita pelo artista longe de
olhares estranhos, e aquela feita por galeristas
Como local privado, o ateliê é espaço para
e
experiências que só o artista-residente poderá julgar,
para a visualização de outros olhares. O que é
térreo, para pintores nos últimos andares.
já que nada dali sairá sem que ele assim decida.
imediatamente evidente é que, para existir, a
Por fim, a iluminação é natural e geralmente
Esse lugar privado permite também outras mani-
distribuída por vidraças orientadas na direção
pulações indispensáveis ao bom funcionamento
norte a fim de receber luz mais suave e ao
de galerias e museus. Por exemplo, é o espaço no
mesmo tempo homogênea.3
qual a crítica de arte, o organizador de exposi-
2. O ateliê do artista americano4 tem origem
mais recente. Em geral não é especialmente
construído para essa finalidade, nem obedece
a determinadas normas mas, na maioria das
vezes, é bem maior do que o ateliê europeu:
não necessariamente mais alto, mas muito
mais longo e mais largo, e situado em antigos
lofts recuperados. A luz natural tem aqui papel
bem menor (quase nulo) do que a superfície
e o volume. A eletricidade clareia o ambiente
ções, o diretor ou o curador do museu poderão
dia e noite, se necessário. Disso, aliás, decorre
não só já selecionou o artista participante como
a entrada e a saída de trabalhos de grandes
dimensões. Ateliês para escultores ficam no
188
certa adequação entre os produtos originários
tranquilamente escolher das obras presentes (e
apresentadas pelo artista) aquelas que participarão de determinada exposição, coleção, galeria
ou contexto. O ateliê é, portanto, uma comodidade para qualquer organizador, que, assim, pode
“compor” uma exposição a seu modo (e não ao
modo do artista – que está muito contente em
expor e, em geral, se deixa gentilmente manipular nessas situações) com o mínimo de risco, pois
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
organizadores
de
exposições
justamente
obra produzida passa de um abrigo a outro.
Portanto, ela deve ser minimamente transportável
e, se possível, manipulável sem muitas restrições
por quem (além do próprio artista) ganha o
direito de “removê-la” de seu local original para
acomodá-la no espaço promocional. Desse modo,
como é produzida em ateliê, a obra só pode ser
concebida como objeto manipulável ao infinito
e por qualquer um. Para se fazer, e desde o
momento em que é produzida no ateliê, a obra
se encontra isolada do mundo real. Entretanto, é
naquele momento, e somente naquele momento,
que está mais próxima de sua própria realidade,
da qual, em seguida, ela se irá afastar cada vez
mais. Ela também poderá tomar emprestada
Anton Lefterov
Ateliê de Constantin Brancusi no Musée National d’Art Moderne, Centre
George Pompidou, 2010
Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Atelier-brancusi-2
TE M ÁTI CAS | DAN I E L B U RE N
189
outra realidade, que ninguém, nem quem a
museu (e da galeria) como inevitáveis molduras
A obra que chega ao museu tanto está em “seu
criou, poderia imaginar e que poderá ser-lhe
neutras, lugares únicos e definitivos da arte.
lugar”6 quanto em “um lugar” que nunca é o
completamente contraditória – geralmente para
Lugares eternos em função da eternidade da arte!
seu. Em “seu lugar” porque lá pretendia estar no
grande lucro dos comerciantes e da ideologia
dominante. É, portanto, no ateliê – e só então –
que a obra está em seu lugar. Isso é (uma) mortal
contradição para a obra de arte, da qual jamais
se irá recuperar, dado que sua finalização implica
o desvitalizante deslocamento em relação a sua
própria realidade, a sua origem.
Desse modo, a obra é feita em lugar muito
específico, do qual, entretanto, ela não se dá
conta, posto que, por vários aspectos, esse
espaço não só a orienta e forja, como é o único
em que a arte tem lugar. Chegamos, assim, à
seguinte contradição: é impossível por um lado
é o “seu”, pois assim como esse lugar não foi
definido pela obra que lá se encontra, tampouco
a obra foi feita precisamente em função de um
lugar lhe é, forçosamente e a priori, concreta e
praticamente desconhecido.
– e por definição – ver uma obra em seu lugar e,
Para que a obra esteja em seu lugar sem ter sido
Se, por outro lado, a obra de arte permanece
por outro, é o lugar que lhe serve de abrigo e onde
especificamente posicionada7, é necessário que
nessa realidade – o ateliê –, é o artista que corre o
poderá ser vista, que a irá marcar e influenciar
seja idêntica a todas as outras existentes, todas
risco de morrer… de fome! A obra que podemos
bem mais do que o lugar no qual foi feita e de
indênticas entre si. Nesse caso, circularia (e se
ver é, portanto, totalmente estranha ao lugar que
onde foi excluída.
posicionaria) por toda parte e em qualquer lugar
a acolhe (museu, galeria, coleção…), daí o fosso
cada vez maior entre as obras e seus lugares (e não
seu posicionamento): um abismo aberto que, se o
víssemos (e o veremos mais cedo ou mais tarde),
jogaria a arte e suas pompas (ou seja, a arte como
a conhecemos hoje e como é feita em 99% dos
Podemos então afirmar que estamos diante da
seguinte inadequação: ou a obra está em seu
próprio espaço, o ateliê, e não tem lugar (para
o público), ou se acha em espaço que não é seu, o
museu, quando então tem lugar (para o público).
casos) na lata de lixo da história. Esse abismo, no
Excluída da torre de marfim em que é produzida,
entanto, é parcialmente preenchido pelo sistema,
a obra vai parar em outro lugar que, ainda que
que faz com que nós, público, criador, historiador,
lhe seja estranho, só vem reforçar essa impressão
crítico, entre outros, aceitemos a convenção do
de conforto que ela já tinha adquirido ao se
abrigar num reduto fortificado, o museu, a fim
Daniel Buren
Les deux plateaux (conhecido como Colunas de Buren), 1985-1986
Trabalho in situ Palais-Royal, Paris
Fontes: http://www.photos-galeries.com/colonnes-de-buren-palais-royal
e http://www.artfacts.net/en/institution/lisson-gallery-190/news/daniel-buren-les-deuxplateaux-palais-royal-5201.html
de sobreviver a tal deslocamento. Desse modo, a
seria necessário que a moldura que acolhe a obra
original, e todas as outras obras originais – e
portanto fundamentalmente diferentes umas das
outras –, fosse removível, ou seja, que o museu (e
a galeria) fosse um passe-partout que se adaptasse
perfeita e milimetricamente a cada obra.
Se, entretanto, estudamos separadamente esses
dois casos extremos, deles só podemos deduzir
formulações extremas e idealizantes, mas ainda
assim interessantes; por exemplo:
a) todas as obras de arte são rigorosamente
a isso foi predestinada pela marca de seu local de
idênticas entre si, independentemente de sua
origem) de um lugar/quadro fechado – o mundo
ainda mais fechado – o mundo da arte. Daí talvez
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
(como todas as outras obras idênticas). Ou, então,
obra passa (e só assim pode existir, uma vez que
do artista – para outro lugar paradoxalmente
190
momento em que foi concebida, mas que nunca
época, seu autor, seu país e assim por diante,
o que explica seu idêntico posicionamento em
milhares de museus pelo mundo, de acordo
a impressão de cemitério que o alinhamento das
com a moda e os curadores;
obras nos museus produz. Independentemente
b) ou então, todas as obras são absolutamente
do que digam, de onde venham e do que
diferentes umas das outras e têm suas
quiseram significar, é no museu que acabam, e
diferenças respeitadas – portanto ao mesmo
é lá também que se perdem. A perda, aliás, é
tempo implícita e explícitamente legíveis
parcial, em comparação à perda total das obras
–, de modo que cada museu, cada sala em
que nunca deixam seus ateliês. Daí a indescritível
cada museu, cada parede em cada sala, cada
vulnerabilidade das obras manipuláveis.
metro quadrado de cada parede se adapte
TE M ÁTI CAS | DAN I E L B U RE N
191
terceiro, que é, obviamente, mais comum e que
simplesmente impossível), ou (como é o caso)
imaginar um possível local-padrão. Nesse
caso, teremos o banal espaço cúbico, neutro
ao extremo, com a luz suave e uniforme que
já conhecemos: isto é, o espaço de museus e
galerias atuais. Isso obriga o artista no ateliê,
conscientemente ou não, a produzir para um
lugar banalizado e, consequentemente, a
banalizar seu próprio trabalho a fim de melhor
o adaptar a esse lugar.
Se, por outro lado, podemos aceitar que cada
implica relação sine qua non entre ateliê e museu
obra tem sua singularidade, somos também
Ao produzir para um estereótipo, acabamos
tal como a conhecemos hoje.
evidentemente por fabricar um estereótipo; daí
De fato, como é pouco provável que a obra
o surpreendente academicismo das obras hoje,
perfeitamente, a cada obra, a cada lugar e a
cada momento.
O que podemos observar nas duas formulações é
sua assimetria sob a aparente simetria. Na verdade,
ainda que não possamos aceitar logicamente que
todas as obras de arte, quaisquer que sejam, são
idênticas entre si, somos forçados a constatar que,
quaisquer que sejam as obras, elas são (de acordo
com a época), instaladas do mesmo modo.
forçados a observar que nenhum museu se adapta
exatamente a isso e age – paradoxalmente, já que
pretende defender a singularidade da obra – como
Se excluirmos os dois casos extremos (a) e (b)
mencionados, nos encontraremos frente a um
criada no ateliê lá permaneça – e ela sabe
as mais diversas.
coleção) –, é necessário não apenas que seja
Para encerrar, gostaria de dar sustentação a
feita, mas também que possa ser vista em
Para reforçar o raciocínio, dois exemplos entre
minhas “suspeitas” sobre o ateliê e suas funções
outro lugar e, consequentemente, em qualquer
milhares: os responsáveis pelo Jeu de Paume,
simultaneamente idealizantes e esclerosantes,
lugar. Para que essa transferência ocorra, duas
em Paris, apresentam as obras impressionistas
com dois exemplos que me influenciaram, um
condições são necessárias:
pessoal, outro histórico.
existisse, e a manipula à vontade.
sobre paredes pintadas de determinada cor que
as emolduram diretamente. Simultaneamente, a
8 mil quilômetros de distância, no Art Institute
of Chicago, outras obras da mesma época e dos
mesmos artistas são apresentadas enfileiradas e
em enormes molduras esculpidas.
Será que isso significa, para retornar aos
dois exemplos, que as obras em questão são
absolutamente
idênticas
e
que
finalmente
adquirem sua expressão própria e diferenciada
graças à inteligência daqueles que as apresentam?
E isso ocorreria justamente para fazê-las dizerem de
outro modo aquilo que, por definição, escondiam
sob um mesmo aspecto – a neutralidade absoluta
de obras idênticas umas às outras –, à espera de
uma moldura que lhes desse expressão?
Ou significa, de acordo com o segundo exemplo,
que cada museu se adapta o máximo possível ao
1. O lugar definitivo da obra é a própria obra.
Essa é uma crença ou filosofia largamente
difundida nos meios artísticos, posto que
permite escapar de qualquer questão sobre
o lugar físico de sua visibilidade e, por
conseguinte, sobre o sistema – e, portanto,
sobre a ideologia dominante que a governa,
assim como sobre a ideologia específica da
arte. Teoria reacionária (se realmente for),
pois, sob pretexto de escapar, ou melhor, de
não estar a ele vinculada, permite a todo o
sistema fortalecer-se sem sequer se justificar,
já que, por definição (definição dada pelos
defensores dessa teoria), o lugar do museu
não tem relação com o lugar da obra.
2. O criador “imagina” onde sua obra vai
acabar, o que o leva a tentar imaginar todas
as situações possíveis para cada obra (o que é
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
Daniel Buren
Hommes-Sandwichs, abril/maio de1968
Madeira, papel com listras brancas e verdes, tachinhas, correias.
Cada estandarte 80 x 60,9 cm.
Trabalho in situ, Paris, França
Foto © Daniel Buren
Fonte: www.danielburen.com
ainda que dissimuladas sob formas aparentemente
que acabará em outro lugar (museu, galeria,
se essa afirmação da obra, sua singularidade, não
192
caráter das obras em questão? Mas quem, agora,
poderá nos explicar onde estava explícito na obra
de Monet que, 70 anos após sua criação, algumas
telas deveriam ser penduradas e envolvidas por
uma suave cor salmão em Paris, e outras cercadas
por enormes molduras e justapostas a outras
obras impressionistas, em Chicago?
1. Pessoal
Ainda muito jovem (tinha 17 anos), iniciei
um estudo sobre a pintura na Provence, de
Cézanne a Picasso (focalizando as influências
do local geográfico nas obras). Para levar o
trabalho a conclusão satisfatória não só percorri
de ponta a ponta o sudeste da França, como visitei
o ateliê de grande número de artistas. Minhas
visitas conduziram-me a artistas dos mais jovens
aos mais velhos, dos mais desconhecidos aos mais
célebres. Surpreenderam-me na época sobretudo
a diversidade, depois, a qualidade, a riqueza e
especialmente a realidade – a “verdade”, portanto
– dos trabalhos, independentemente de seu autor
ou sua reputação. “Realidade/verdade” não só em
relação ao autor e a seu local de trabalho, mas
também em relação a seu entorno, à paisagem.
Bernard Boyer
Daniel Buren
Affichage sauvage, abril de 1968
Trabalho in situ, Paris
Fonte: http://catalogue.danielburen.com/fr/oeuvres/1944.html
TE M ÁTI CAS | DAN I E L B U RE N
193
Pouco tempo depois, visitei uma a uma as
exposições dos artistas que havia conhecido e meu
encantamento desbotou-se, às vezes desaparecendo
por completo – como se as obras que eu vira nos
ateliês não fossem as mesmas, nem tivessem sido
feitas pelas mesmas pessoas. Arrancadas de seu
contexto e, pode-se dizer, de seu ambiente, elas
perdiam seu sentido, sua vida; tornavam-se “falsas”.
No entanto, não compreendi isso de imediato
(longe disso), nem o que exatamente se passava,
nem o motivo dessa desilusão. Uma coisa apenas
ficou clara para mim: a decepção. Revi várias vezes
alguns desses artistas, e a cada vez o hiato entre
seus ateliês e as paredes parisienses se acentuava
a tal ponto, que se tornou impossível continuar a
visitar seus ateliês e suas exposições. A partir desse
momento, algo irremediável, embora por razões
ainda confusas, se rompeu.
Mais tarde, repeti a desastrosa experiência com
amigos de minha geração, ainda que dessa vez
a “realidade/verdade” profunda do trabalho me
parecesse bem mais clara. Essa “perda” do objeto,
esse desinteresse pela obra fora seu contexto – como
se a energia essencial a sua existência desaparecesse
assim que a porta do ateliê fosse ultrapassada –,
começava realmente a me preocupar. Essa sensação
de que o essencial da obra se havia perdido em
algum lugar entre o espaço de sua produção (o
ateliê) e de seu consumo (a exposição) levou-me a
questionar o problema e a significação do lugar da
obra. Compreendi mais tarde que o que se perdia,
o que certamente desaparecia, era a realidade da
obra, sua “verdade”, ou seja, a relação com o local
de sua criação, o ateliê: local em que geralmente
estão misturados trabalhos acabados, trabalhos em
andamento, trabalhos nunca acabados, esboços
etc. Todos esses vestígios, simultaneamente visíveis,
permitem uma compreensão do processo da obra
que o museu definitivamente exclui em seu desejo de
“instalar”. Não se fala cada vez mais em “instalação”
194
em vez de “exposição”? E o que se instala não é o
que está próximo de se estabelecer?
2. Histórico
Constantin Brancusi foi o único artista que sempre
me pareceu demonstrar real inteligência frente ao
sistema museal e a suas consequências, e o que
mais tentou combatê-lo − ele tentou evitar que sua
obra nele se cristalizasse e assim ficasse vulnerável
ao capricho de qualquer curador de plantão.
De fato, ao legar grande parte de sua obra com a
expressa recomendação de que fosse conservada
como no ateliê que a viu nascer, Brancusi eliminou
definitivamente a dispersão do trabalho, assim
como toda especulação sobre a obra. Além disso,
ofereceu ao visitante exatamente o seu ponto
de vista no momento em que produzia. Foi o
único artista que, mesmo trabalhando no ateliê
e consciente de que lá o trabalho estava mais
próximo de sua “verdade”, assumiu o risco – a
fim de preservar essa relação entre a obra e seu
local de criação – de “confirmar” ad vitam8 sua
produção no próprio lugar em que foi concebida.
Entre outras coisas, ele também produziu um
curto-circuito no desejo do museu de classificar,
embelezar, selecionar e assim por diante. A obra
fica visível tal como foi produzida, para o bem e
para o mal. Assim, Brancusi foi o único a saber
preservar na obra esse lado cotidiano – que o
museu se apressa em retirar de tudo o que exibe.
Podemos afirmar igualmente – mas isso exigiria
estudo mais longo – que a fixação operada na
obra pela visibilidade adquirida em seu lugar de
origem não tem nada a ver com a “fixação” que
o museu exerce sobre tudo o que expõe. Desse
modo, Brancusi prova que a chamada pureza
de suas obras não é menos bela nem menos
interessante entre as quatro paredes de um
ateliê de artista entulhado de utensílios diversos,
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de outras obras, algumas inacabadas, outras
terminadas, do que entre as paredes imaculadas
de museus assépticos9.
Posto que toda a produção da arte, tanto ontem
quanto hoje, é não só marcada, mas provém do uso
do ateliê como local essencial (às vezes único) da
criação, todo o meu trabalho deriva de sua abolição.
dezembro de 1970-janeiro de 1971
Tradução Analu Cunha
Revisão técnica Livia Flores
4 Falamos aqui do estúdio nova- yorkino, pois, assim
como esse vasto país, em seu desejo de aniquilar
e superar a École de Paris, de triste memória, tem
reproduzido todos os seus defeitos, incluindo o
principal: forçada centralização que, já ridícula
na escala da França e mesmo na da Europa, é
absolutamente grotesca na escala americana e
certamente nefasta ao desenvolvimento artístico.
5 Aos museus americanos, em geral artificialmente
iluminados, opomos os museus europeus, geralmente
iluminados pela luz do dia por meio de uma série de
vidraças. Percebemos também que isso cria o que
alguns entendem como antagonismo e que, muito
frequentemente, não passa de diferença de estilo entre
NOTAS
* Este primeiro texto de Daniel Buren dedicado ao atelier
os ambientes de produção europeu e americano.
6 No original “place” e “une place” (NT).
só foi publicado em francês e em inglês em setembro de
7 No original “en place” e “exactement placée” (NT).
1979, em Ragile, Paris, tomo III: 72-77. Esta tradução
8 Para sempre (N.T.).
baseou-se na versão encontrada em Daniel Buren,
Fonction de l´atelier (1971), Ecrits, v.1, Bordeaux: LAPC -
9 Devemos observar que se o ateliê de Brancusi
Musée d´art contemporain, 1991: 195-205
tivesse podido ficar no Impasse Roussin [n. 11,
1 Descrevemos adiante o ateliê como arquétipo,
sabendo de antemão que todo artista que se inicia
na vida artística (e alguns deles por toda a vida)
deve contentar-se com barracos miseráveis ou um
cômodo ridiculamente pequeno; todavia, gostaria de
acrescentar que aqueles que conservam, apesar das
dificuldades, os lugares sórdidos em que trabalham
são evidentemente aqueles para quem a ideia de
endereço do ateliê] ou ainda em sua própria casa
(mesmo transportada para outro lugar), a exibição
teria sido mais feliz. (N.D.L.R. de Ragile. Esse texto
escrito em 1971 refere-se à reconstituição do ateliê
de Brancusi no Museu de Arte Moderna. Desde
então, o conjunto de prédios foi reconstruído na
esplanada do novo museu, o Centre Beaubourg, o
que torna obsoleta esta nota.
possuir um ateliê para o trabalho é uma necessidade
– e que, consequentemente, sonham com um
lugar que, se tivessem condições, provavelmente se
aproximaria do arquétipo do qual falamos.
2 Século 19 (NT).
3 Já podemos observar que a exposição de um
ateliê de artista requer mais cuidados, da parte
dos arquitetos, com relação à iluminação, ao
posicionamento, etc., do que aqueles que o próprio
artista toma para controlar a exposição de suas obras
quando saem de seu ateliê!
Daniel Buren nasceu em 1938 em BoulogneBillancourt. Em 1960 graduou-se na École Nationale
Supérieure des Métiers d’Art, em Paris. Foi um dos
fundadores do grupo BMPT (iniciais dos artistasmembros: Daniel Buren, Olivar Mosset, Michel
Parmentier e Niele Toroni), de influência situacionista.
A partir da década de 1960, se apropria das listras
verticais do tecido industrial francês, que utiliza em
intervenções no espaço público e em instituições de
arte. Vive e trabalha em Paris.
TE M ÁTI CAS | DAN I E L B U RE N
195
ESPETÁCULO, ATENÇÃO, CONTRAMEMÓRIA
Jonathan Crary
espetáculo atenção
situacionismo práticas surrealistas
Neste artigo de 1989, exatamente quando deslocamentos sistêmicos significativos
começam a tornar-se evidentes, Jonathan Crary indaga em que medida o uso do
termo espetáculo, que ganha força com a emergência do situacionismo nos anos
60, pode ainda contribuir para nossa compreensão sobre modos não coercitivos
de funcionamento do poder. A partir dessa perspectiva, Crary discute indicações
fornecidas por autores como Baudrillard, Benjamin, T.J. Clark e pelo próprio Guy
Debord, localizando no final da década de 1920 desenvolvimentos históricos cruciais
que transformam a natureza da atenção exigida do sujeito moderno e informam tanto
a noção de espetáculo quanto as tentativas de resistência a seus poderes.
O
termo
“espetáculo”
tornou-se
de
uso
corrente entre o final dos anos 50 e o início
dos 60, graças aos diversos tipos de atividades
atualmente designadas como pré-situacionistas
e situacionistas,1 independentemente de ter sido
ou não originalmente tomado de Critique de la vie
quotidienne, de Henri Lefebvre. Seja no campo de
crítica radical à prática da arte modernista, seja na
discussão política da vida cotidiana ou na análise
do capitalismo contemporâneo, sua influência
intensificou-se claramente com a publicação,
em 1967, de A sociedade do espetáculo, de Guy
Debord.2 Vinte e dois anos depois, a palavra
SPECTACLE, ATTENTION, COUNTER-MEMORY | In
this article from 1989, precisely when significant
systemic movements were becoming more
evident, Jonathan Crary questions to what extent
the use of the term show, which gained force
with the emerging Situationism in the 1960s, can
still contribute to our understanding of the noncoercive ways of how power functions. From this
viewpoint, Crary discusses indications by authors
such as Baudrillard, Benjamin, T.J. Clark and Guy
Debord himself, positioning in the late 1920s
crucial historical developments that transformed
the nature of attention required for the modern
subject and informed both the notion of show and
attempts to resist its powers. | Show, attention
Situationism, surrealist practices.
“espetáculo” não apenas persiste como se tornou
lugar-comum no vasto campo dos discursos críticos e não tão críticos assim. Acreditando que não
se tenha desgastado completamente como explicação da operação contemporânea de poder, cabe
Montagem de imagens capturadas dos filmes de Fritz Lang: Dr. Mabuse,
The Gambler (1924) e The Testament of Dr. Mabuse (1931), Livia
Flores, 2011 (Dr Mabuse-Livia copy.jpg)
196
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TE M ÁTI CAS | JO N ATH AN CRARY
197
entretanto indagar se o atual sentido do termo
Quando podemos dizer que começou a vigorar
tentar superar essa “exclusividade dos signos” e
antes casualmente referidas como vida cotidiana”5.
mantém o significado do início dos anos 60. Que
efetivamente? E não pergunto isso apenas como
iniciar a “proliferação de signos sob demanda”.
Na cronologia de Clark, o espetáculo coincide com
conjunto de forças e instituições ele designa?
exercício acadêmico. Para ter qualquer eficácia
Imitações, cópias e falsificações desafiam tal
a fase inicial do imperialismo moderno ocidental,
E, se elas sofreram transformações, que tipos
prática ou crítica, o termo depende, em parte,
exclusividade. Logo, o problema da mímese não
com duas expansões paralelas do mercado global,
de prática são hoje necessários para resistir aos
de como é periodizado; isto é, “espetáculo” irá
é de estética mas de poder social, e a emergência
uma interna e a outra externa.
efeitos do espetáculo?
assumir significados bem diferentes dependendo
do teatro italiano e da perspectiva na pintura são
de como for historicamente situado. É algo mais
o começo dessa capacidade sempre crescente
do que mero sinônimo para capitalismo tardio?
de produzir equivalências. Obviamente, porém,
Ou para o crescimento dos meios e tecnologias
para Baudrillard e muitos outros, é no século
de comunicação de massa? É mais do que uma
19, junto com novas técnicas industriais e formas
versão atualizada da indústria cultural ou da
de circulação, que um novo tipo de signo aparece:
consciência, delas cronologicamente distinta?
“objetos potencialmente idênticos produzidos em
Pode-se ainda questionar em que medida o
conceito de espetáculo não impõe unidade
ilusória sobre um campo por demais heterogêneo.
Trata-se de conceito totalizante e monolítico,
inadequado para representar incomensurável
pluralidade de instituições e eventos? Para
O trabalho “inicial” de Jean Baudrillard fornece
“espetáculo” é a presença quase que ubíqua
alguns parâmetros gerais para o que podemos
do artigo definido que o precede, sugerindo
chamar de pré-história do espetáculo (que
um sistema de relações único, global e sem
Baudrillard
fissuras. Para outros, implica mistificação do
meados da década de 1870). Segundo esse
funcionamento do poder, nova explicação do tipo
autor, que escreve no final dos anos 60, uma das
“ópio do povo”, apontando para uma formação
consequências cruciais das revoluções político-
cultural e institucional vaga, com autonomia
burguesas foi a força ideológica que deu vida aos
estrutural suspeita. Ou um conceito como o de
mitos dos direitos do homem: o direito à igualdade
espetáculo é ainda ferramenta necessária para se
e à felicidade. O que ele vê acontecer no século
compreender o deslocamento radical e sistêmico
19 é que, pela primeira vez, provas concretas
na maneira como o poder funciona de forma
se tornaram necessárias para demonstrar que a
T.J. Clark oferece periodização muito mais
não coercitiva na modernidade do século 20?
felicidade, de fato, havia sido obtida. Felicidade,
específica na introdução de seu livro The Painting
É um meio indispensável para revelar relações
diz ele, “tinha que ser mensurável em termos de
of Modern Life. Caso se concorde com Clark, as
entre fenômenos que de outra forma pareceriam
signos e objetos”, signos que fossem evidentes
origens do modernismo e do espetáculo não
disparatados e sem conexão? Não serviria para
ao olho como “critérios visíveis”.
desaparecido
em
comunicação (setores não essenciais do capitalismo,
segundo Marx)... que o processo global do capital
se mantém coeso”. O espetáculo coincidiria então
com o momento em que o valor simbólico ganha
precedência sobre o valor de uso. A questão
da localização desse momento na história da
mercadoria, entretanto, continua em aberto.
Benjamin
também
sobre as décadas de 1860 e 1870, Clark usa o
descrevera a “fantasmagoria da igualdade” no
espetáculo para explicar a íntima solidariedade
século 19 em termos de uma transformação
entre a arte de Manet e a emergência dessa nova
Característica surpreendente do livro de Debord
do cidadão em consumidor. O relato de
configuração social e econômica. Essa sociedade
é a ausência de qualquer tipo de genealogia
modernidade de Baudrillard é o de crescente
do espetáculo, escreve ele, está ligada a uma
histórica do espetáculo, e essa ausência deve ter
desestabilização e mobilidade de signos que, até
“massiva expansão interna do mercado capitalista
contribuído para a impressão de que o espetáculo
a Renascença, ainda se encontravam firmemente
– a invasão e reestruturação de áreas inteiras
surgiu totalmente do nada. Então, a questão que
enraizados em posições relativamente seguras
de tempo livre, vida privada, lazer e expressão
me interessa é a seguinte: considerando que o
dentro de hierarquias sociais fixas.4 Assim, de
pessoal... isso indica nova fase da produção de
espetáculo de fato designa um certo conjunto
acordo com Baudrillard, a modernidade está
mercadorias – o marketing, a transformação em
de condições objetivas, quais são suas origens?
ligada à luta das novas classes de poder para
mercadoria de grandes áreas da prática social,
constituir um efeito homogêneo de poder?
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
antes,
Walter
do lazer como consequência do deslocamento de
da mídia, da publicidade, da informação e da
apenas coincidem; são indissociáveis. Escrevendo
décadas
citando a comercialização de aspectos da vida e
indiferença... e é no nível da reprodução, da moda,
Algumas
retalhos, um mosaico de técnicas pode ainda
espetáculo no final das décadas de 1860 e 1870,
relação de objetos em tais séries é de equivalência e
3
evidenciar como, à maneira de uma colcha de
198
ter
“temporalidade pura”, ele localiza o começo do
série indefinidamente”. No entender do autor, “a
alguns, um aspecto problemático do termo
considera
Apesar de considerar impossível a ideia de
Labbe, Edmond. Exposition internationale des arts et des techniques,
Paris : Ministère du commerce et de l’industrie, 1941, via: http://beinecke.library.yale.edu (1110275.jpg)
TE M ÁTI CAS | JO N ATH AN CRARY
199
um tipo de produção capitalista para outro. Esse
nização fundamental do sujeito quanto a cons-
mecânica aumentava, apareceu um novo modelo
deslocamento, observa, “não foi mera questão de
trução de um observador; este último é o pré-
de transmissão e circulação que iria ultrapassar
reformulação ideológica e cultural, mas de total
requisito para a transformação da vida cotidiana
essa época, dispensando sais de prata ou suporte
transformação econômica”. Quais são, contudo,
que então se iniciava. Ao fazer da sociedade do
físico permanente.9 O espetáculo estava prestes a
segundo Clark, os exemplos dessa avassaladora
espetáculo quase um equivalente da sociedade de
se tornar inseparável desse novo tipo de imagem,
modificação? “Uma mudança para o mundo dos
consumo, Clark dilui sua especificidade histórica e
de sua velocidade, ubiquidade e simultaneidade.
grands boulevards e grands magasins, indústrias
negligencia alguns aspectos do espetáculo que fo-
correlatas, turismo, recreação, moda e exibição”.
ram cruciais para a prática política do situacionis-
Surpreendentemente, Clark lembra seus leitores
mo nos anos 60: o espetáculo como nova forma
de que o espetáculo foi projetado “antes de mais
de poder de recuperação e absorção, capacidade
nada como uma arma de combate” na década
de neutralizar e assimilar atos de resistência ao
de 1960.6 Estaria ele sugerindo que a estrutura
convertê-los em objetos ou imagens de consumo.
política e econômica desse mundo de avenidas
e lojas de departamentos é, em sua essência,
contínua ao que Debord descreveu como lugar
de contestação em 1967? E que as lutas culturais
[cultural politics] dos anos 60 ocorreram em
condições semelhantes àquelas de 1870? A
insinuação de que a noção de espetáculo seria a
mesma na Paris de Manet e na de Debord é, no
mínimo, problemática.
portanto, 1927 ou, pelo menos, final dos anos
20. Infelizmente, ele não fornece indicação do
motivo pelo qual destaca esse momento. Isso
monopólio. E a Paris pós-Haussmann torna-se
eventos muito dispersos que poderiam estar
para ele a expressão visível de um novo alinha-
implícitos na observação de Debord.
de que o espetáculo tanto signifique uma reorga-
Até então nenhuma técnica de regulamentação
e padronizado antes de 1930.
um número arredondado, como 50, mas 40 –
então algumas especulações fragmentárias sobre
dessa maneira, Clark desconsidera a possibilidade
controle
o espetáculo mal completara 40 anos.8 Não
nos empreendimentos em formas crescentes de
ainda que de forma imperfeita. Ao periodizá-lo
de
intangível de seu espectro, já havia sido diagramado
meio século mais tarde do que Clark. Ofereço
táculo poderia ser rememorado e representado,
formas
grande parte do território do espetáculo, o domínio
parte da transformação do capitalismo de peque-
lhe posição distanciada, a partir da qual o espe-
interligando
registra que em 1967, data de seu livro original,
histórico, situando a origem do espetáculo quase
constituição de um sujeito individual, reservando-
rede
corporativas, militares e estatais sobre a televisão.
de espetáculo. Em texto publicado em 1988, ele
dernização do século 19, Clark apresenta-a como
descreve permanece essencialmente exterior à
vasta
tamanha antecipação. Assim, em certo sentido,
mente ao designar o final dos anos 20 como limiar
ou indivíduo. O tipo de mudanças que o autor
transmissões experimentais, estava sendo implantada
institucional havia sido planejada e repartida com
mann, um dos exemplos mais familiares de mo-
de dominação imposta de fora a uma população
final dos anos 20, quando ocorreram as primeiras
surpreendentemente precisa o início da sociedade
me deixou curioso sobre o que Debord tinha em
táculo, porém, pressupõe que ele seja uma forma
Igualmente importante, porém, foi o fato de que, no
O próprio Guy Debord datou de maneira
Ao referir-se à reconstrução de Paris por Hauss-
mento de classes. Essa maneira de dispor o espe-
200
7
2. Talvez a estreia do filme The Jazz Singer, em
1927, seja ainda mais imediatamente significativa,
assinalando a chegada do filme sonoro, e
especificamente, do som sincronizado. Isso não
foi apenas uma transformação na natureza da
experiência subjetiva; foi também acontecimento
que trouxe consigo completa verticalização de
produção, distribuição e exibição na indústria do
filme e seu amálgama com os conglomerados
corporativos que detinham as patentes sonoras
e forneciam capital à onerosa mudança para a
1. O primeiro é tão simbólico quanto concreto.
nova tecnologia.10 De novo, como no caso da
O ano de 1927 assistiu ao aperfeiçoamento
televisão, a nascente infraestrutura institucional e
tecnológico da televisão. Vladimir Zworikin,
econômica do espetáculo se estabelecia.
nascido na Rússia e formado físico e engenheiro
nos EUA, patenteou seu iconoscópio – o primeiro
sistema eletrônico de tubo contendo uma pistola
de elétrons e uma tela formada por um mosaico de
células fotoemissivas, cada uma delas produzindo
carga proporcional à intensidade variável de luz da
imagem exibida na tela. Justamente no momento
em que a consciência sobre a era da reprodução
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Television Spy, 1939, via: www.tvhistory.tv
transformou a natureza da atenção que era exigida
do espectador. Talvez essa seja a ruptura que faz
com que as formas anteriores de cinema fiquem
de fato mais próximas dos aparelhos ópticos do
final do século 19. A plena coincidência entre
som e imagem, voz e figura, não foi apenas nova
e crucial maneira de organizar espaço, tempo e
narrativa, mas de impor maior autoridade sobre o
espectador, obrigando-o a novo tipo de atenção.
Claro indício desse deslocamento pode ser visto
nos dois filmes de Fritz Lang da série Mabuse.
Em Dr. Mabuse, o jogador, filme mudo de
1924, o protofascista Mabuse exerce o controle
através de seu olhar com poder hipnotizante; já
Especificar o som aqui torna evidente que o poder
em O Testamento do Dr. Mabuse (1931), uma
do espetáculo não pode ser reduzido a modelo
encarnação do mesmo personagem domina seus
óptico; ao contrário, ele é inseparável de uma
subalternos apenas através de sua voz, que emana
organização mais ampla do consumo perceptivo.
por trás de uma cortina (que, como se descobre,
É claro que o som fez parte do cinema desde
não esconde uma pessoa, mas um aparelho de
o início através de formas variadas que a ele se
gravação e alto-falante).
somavam, mas a introdução do som sincronizado
E desde a década de 1890 até a de 1930, um dos
TE M ÁTI CAS | JO N ATH AN CRARY
201
problemas centrais da psicologia tradicional foi
que ele considerava percepção “desnaturalizada e
a natureza da atenção: a relação entre estímulo
padronizada” das massas. Bergson havia lutado para
e atenção, problemas de concentração, foco e
resgatar a percepção de seu estatuto de puro evento
distração. A quantas fontes de estímulo alguém
psicológico; em sua opinião, atenção era questão de
podia prestar atenção simultaneamente? Como
engajamento do corpo, de inibição do movimento,
estimar a influência da novidade, da familiaridade
estado de consciência preso ao presente. A
e da repetição sobre a atenção? Era um problema
atenção, porém, só podia ser transformada em algo
cuja
produtivo se estivesse vinculada a alguma atividade
proeminência
no
discurso
psicológico
estava diretamente relacionado à emergência de
um campo social cada vez mais saturado com
informações sensoriais. Algumas dessas questões
A memória recria a percepção presente...
fortalecendo-a e enriquecendo-a... Se
foram tratadas no trabalho de James McKeen
depois de termos fixado o olhar sobre um
Cattell, cujos experimentos com estudantes da
objeto, desviamos abruptamente nossos
Universidade de Columbia forneceram dados hoje
olhos, obtemos uma “pós-imagem” [image
clássicos para a noção de limiar de atenção. Grande
consécutive] dele. É verdade que estamos
parte dessa pesquisa estava inicialmente ligada à
lidando aqui com imagens fotografadas
necessidade de informação sobre a atenção no
no próprio objeto, e com recordações que
contexto da produção racionalizada, mas antes
se seguem imediatamente à percepção,
mesmo de 1910 já haviam sido feitas centenas de
da qual são apenas o eco. Mas por trás
estudos em laboratórios experimentais voltados
dessas imagens idênticas ao objeto, há
especificamente para a variação da atenção na
outras guardadas na memória que apenas
publicidade (incluindo títulos como O valor da
se lhe assemelham...11
atenção em anúncios periódicos, Atenção e
os efeitos da dimensão na publicidade de rua,
Publicidade e as leis da atenção mental, Medição
da atenção a valores de cor na publicidade, este
último, uma dissertação de 1913 da Universidade
de Columbia).
202
mais profunda da memória.
O que Bergson procurava descrever era a vitalidade
do momento em que se produzia uma separação
consciente entre memória e percepção, momento
no qual a memória permitia reconstruir o objeto
da percepção. Deleuze e Guattari descreveram
efeitos similares da entrada da memória na
Foi também em 1927 que Walter Benjamin
percepção, por exemplo, na percepção de um
começou seu projeto das Passagens, obra na
rosto: ele pode ser visto como um vasto conjunto
qual pretendia apontar para uma “crise da
de micromemórias e uma rica proliferação de
própria percepção”, resultante da avassaladora
sistemas semióticos, ou, o que é bem mais
reconfiguração do observador por uma calculada
comum, em termos de tristes redundâncias de
tecnologia
novo
representações; é nelas, dizem, que as conexões
conhecimento do corpo. No decorrer da escrita
com as hierarquias das formações de poder
das Passagens, o próprio Benjamin interessou-se
podem sempre ser efetivadas.12 Esse tipo de
pela questão da atenção e de suas relações com
redundância da representação que a inibição
os temas do choque e da distração, buscando em
e o empobrecimento da memória acarretam
Matéria e Memória, de Henri Bergson, saída para o
era o que Benjamin via como padronização da
do
indivíduo
derivada
de
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
Estréia do filme The Jazz Singer, 1927
TE M ÁTI CAS | JO N ATH AN CRARY
203
Triumph of the Will, filme de Leni
Riefenstahl, 1934
In girum imus nocte et consumimur
igni, filme de Guy Debord, 1978
Triumph of the Will, filme de Leni Riefenstahl, 1934
percepção ou o que podemos chamar de efeito
do espetáculo.
disponível, sobretudo o desenvolvimento da
Apesar de considerar Matéria e Memória “obra
palavra escrita, porque ler implicava tempo para
imponente e monumental”, Benjamin reprovava
Bergson por circunscrever a memória ao quadro
isolado da consciência individual; as pós-imagens que
interessavam a Benjamin eram as da memória histórica
coletiva, imagens fantasmagóricas do obsoleto com
capacidade de promover novo despertar social.13 A
apreensão benjaminiana da atual crise da percepção
é assim filtrada por pós-imagem ricamente elaborada
em meados do século 19.
3. Dado o conteúdo do trabalho de Debord,
podemos supor outro desenvolvimento crucial em
finais dos anos 20: a escalada do fascismo e, logo
depois, do stalinismo, e a maneira pela qual deram
corpo a modelos de espetáculo. Importante,
por exemplo, foi o uso inovador e sinérgico que
204
Goebbels fez de qualquer meio de comunicação
propaganda audiovisual e sua desvalorização da
reflexão e pensamento. Numa campanha eleitoral
de 1930, Goebbels enviou pelo correio 50 mil
gravações fonográficas de um de seus próprios
discursos para eleitores especialmente escolhidos.
Goebbels também introduziu o avião na política,
transformando Hitler no primeiro político a
voar para diferentes cidades no mesmo dia.
Viagens aéreas funcionavam como instrumento
de propagação da imagem do líder, produzindo
inédita sensação de ubiquidade.
Como parte dessa tecnologia mista da atenção,
a televisão desempenharia papel crucial. Estudos
recentes mostraram que o desenvolvimento da
televisão na Alemanha estava mais adiantado
do que em qualquer outro país.14 A televisão
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
TE M ÁTI CAS | JO N ATH AN CRARY
205
alemã iniciou suas transmissões regulares em
1935, quatro anos antes dos EUA. Fica claro que
os nazistas não se deram conta de sua eficácia
como instrumento de controle social, mas os
primórdios de sua história na Alemanha lançam
luz sobre os diferentes modelos de organização
espetacular que estavam sendo propostos nos
anos 30. Logo surgiu grande cisão entre as forças
corporativas monopolistas e o partido nazista
em relação ao desenvolvimento da televisão na
Alemanha. O partido queria centralizar e tornar
a televisão acessível em salas de exibição pública,
ao contrário do uso descentralizado do rádio
em casas particulares. Goebbels e Hitler tinham
em mente a recepção coletiva acreditando que
de imbricação: aparelhos televisivos que contêm
tecnologia avançada de reconhecimento da
imagem servem para monitorar e quantificar o
comportamento, a atenção e o movimento do
olho do espectador.19
ensaio intitulado O espetáculo, publicado logo
domine, a polícia também domina... ele é
Em 1988, porém, Debord vê seus dois modelos
elementos se chocam e empurram uns aos
acompanhado de violência permanente.
originais de espetáculo – o difuso e o concentrado
outros. O jogo de contrastes é tão violento,
A imagem imposta do bem inclui em
– tornarem-se indistintos, convergindo para
que há sempre um exagero no efeito
seu espetáculo a totalidade de tudo
o que ele chama de a “sociedade integrada do
daquilo que se vislumbra. Na avenida,
que existe oficialmente e em geral se
espetáculo”.
Em seu livro, profundamente
dois homens estão carregando umas
concentra em um só homem, garantia de
pessimista, ele descreve um alinhamento mais
letras douradas imensas num carrinho
coesão totalitária. Todos devem identificar-
sofisticado de elementos oriundos dos modelos
de mão: o efeito é tão inesperado,
se magicamente com essa celebridade
anteriores, um arranjo flexível do poder global
que todo mundo para e olha. Aí está
absoluta – ou desaparecer.16
que se adapta a necessidades e circunstâncias
a origem do espetáculo moderno (...) no
locais. Em 1967 ainda havia marginalidade e
choque do efeito surpresa.22
nazista, a Rússia stalinista e a China maoísta; o
modelo mais proeminente de espetáculo difuso
era o dos EUA:
Onde quer que o espetáculo concentrado
essa era a forma mais eficaz. Para esse fim,
O espetáculo difuso, por outro lado, deixa-se
foram designadas salas públicas de televisão,
acompanhar pela abundância de mercadorias. E
com capacidade variável de 40 a 400 lugares, de
é certamente a esse modelo que Debord dedica a
forma não muito diferente da que promoveu o
maior parte de sua atenção em seu livro de 1967.
desenvolvimento posterior da televisão na URSS,
onde também se favoreceram os ambientes de
recepção massiva. Segundo o diretor nazista
de radiodifusão, em texto de 1935, a “missão
sagrada” da televisão era “incutir de forma
indelével a imagem do Führer no coração do povo
alemão”.15 Por outro lado, o poder corporativo
visava à recepção domiciliar para maximizar os
lucros. Um modelo queria fazer da televisão uma
técnica a serviço das demandas do nazifascismo
em geral – um meio de mobilizar e incitar as
massas – enquanto os agentes do capitalismo
pretendiam privatizar e dividir para impor um
modelo celular.
É fácil esquecer que em A sociedade do espetáculo
Debord distinguiu dois modelos diferentes de
espetáculo; um que chamou de “concentrado”
e o outro de “difuso”, evitando assim que a
palavra espetáculo se tornasse simples sinônimo
de capitalismo tardio ou de consumo. Espetáculo
206
concentrado era o que caracterizava a Alemanha
A propósito, menciono o famoso repúdio de
Michel Foucault ao espetáculo em Vigiar e punir:
“Nossa sociedade não é a sociedade do espetáculo,
mas a da vigilância; sob a superfície das imagens,
investe-se a fundo nos corpos.”17 O espetáculo,
entretanto, é também um conjunto de técnicas
de administração dos corpos, de administração
da atenção (estou parafraseando Foucault)
“para assegurar a ordenação das multiplicidades
humanas”, “seu objetivo é fixar, é uma técnica
antinomádica”, “usa procedimentos de divisão e
celularidade (...) nos quais o indivíduo é reduzido
enquanto força política”.18 Suspeito que Foucault
não tenha passado muito tempo vendo televisão
ou pensando a respeito, pois não teria sido difícil
enxergá-la como aperfeiçoamento suplementar da
técnica do panóptico. Nela, vigilância e espetáculo
não são termos opostos, como ele insiste, mas
que se eclipsam reciprocamente em favor de um
aparato disciplinar mais efetivo. Desenvolvimentos
recentes confirmam de forma literal esse modelo
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
20
periferias que escapavam a esse domínio. Hoje,
porém, insiste, o espetáculo se infiltrou em
tudo e tem controle absoluto sobre produção,
percepção e, principalmente, sobre a forma do
futuro e do passado.
após a realização de seu filme Balé mecânico.
O ritmo da vida moderna é tão dinâmico,
que uma fatia de vida vista da varanda de
um café é um espetáculo. Os mais diversos
Léger passa então a detalhar como a publicidade
e as forças comerciais tomaram a dianteira na
produção do espetáculo moderno e cita a loja
de departamentos, o mundo da moda e os
ritmos de produção industrial como formas
Mais do que qualquer outro aspecto isolado,
que conquistaram a atenção do público. O
Debord vê instalar-se no âmago do espetáculo
objetivo de Léger é idêntico: quer conquistar
a aniquilação do conhecimento histórico – em
aquele mesmo público. Naturalmente, ele está
particular, a destruição do passado recente. Em
escrevendo num momento de incerteza sobre
seu lugar, impera o presente perpétuo. História,
os rumos de sua própria arte, quando encara o
pondera, sempre foi a medida pela qual a novidade
dilema do que pode significar uma arte pública.
era avaliada, mas qualquer um que esteja nesse
O confuso programa que ele lança com esse
negócio de vender novidade tem interesse em
destruir os meios pelos quais ela pode ser julgada.
Dessa forma, produzem-se incessante aparência
do importante e, quase imediatamente, sua
aniquilação e substituição: “Aquilo sobre o que o
espetáculo para de falar durante três dias já não
existe mais.”21
texto, no entanto, é uma instância inicial das
manobras de todos aqueles – de Warhol aos
assim chamados simulacionistas atuais – que
acreditam ou pelo menos reivindicam estar
ganhando a partida contra o espetáculo em
seu próprio campo. Léger resume esse tipo de
ambição: “vamos levar o sistema a seu limite”,
propõe; e oferece sugestões vagas de pintar o
Para concluir, gostaria de comentar brevemente
exterior de fábricas e prédios de apartamentos
duas diferentes respostas à nova textura da
de várias cores, usar novos materiais e colocá-
modernidade que toma forma a partir dos anos
los em movimento. Essa tentativa ineficaz de
20. O pintor Fernand Léger escreve em 1924 um
superar a sedução do espetáculo, porém, torna-
TE M ÁTI CAS | JO N ATH AN CRARY
207
se cúmplice de sua aniquilação do passado e do
1 Este artigo foi apresentado originalmente no VI
8 Guy Debord, Commentaires sur la société du
19 Ver, por exemplo, Bill Carter, TV Viewers, Beware:
fetichismo do novo.
International Colloquium on Twentieth Century
spectacle, Paris: Editions Gerard Lebovici, 1988:13.
Nielsen May Be Looking, The New York Times, June
Também em 1924, o primeiro Manifesto surrealista
sugere estratégia estética bem diferente de enfren-
French Studies, “Revolutions
1889-1989”, na
Universidade de Columbia, em 30.3-1.4 1989.
o caráter revolucionário desse advento em seu livro
tamento da organização espetacular da cidade mo-
2 Guy Debord, A sociedade do espetáculo, Rio de
Philosophie de I’image, Paris: J. Vrin, 1986:57-58.
derna. Refiro-me ao que Walter Benjamin chamou
Janeiro: Contraponto, 1977
10 Ver Steven Neale, Cinema and Technology: Image,
de dimensão “antropológica” do surrealismo23 − es-
3 Jean Baudrillard, La societé de consommation: ses
Sound, Colour, Bloomington: University: 1985:62-
tratégia de virar ao avesso o espetáculo da cidade
pelo recurso à contramemória e a contraitinerários.
Tais percursos revelariam a potência dos espaços
abandonados, fora das principais vias de circulação,
e dos objetos antiquados excluídos de suas superfícies polidas. Essa estratégia encarnava uma recusa
ao presente imposto; ao recuperar fragmentos de
um passado arruinado, esboçava-se implicitamente
uma imagem alternativa de futuro. E, apesar da natureza equívoca de muitos desses gestos surrealistas,
não é por acaso que eles reapareceriam, sob novas
formas, nas táticas situacionistas dos anos 60, na
noção de deriva ou perambulação, de desvio (détournement), de psicogeografia, de ato exemplar e
de situação construída. Se hoje essas práticas têm
ainda alguma vitalidade ou mesmo relevância, isso
depende em larga medida do que uma arqueolo-
Tradução Livia Flores Lopes
Revisão técnica Tadeu Capistrano
in Teresa de Lauretis and Stephen Heath (eds.), The
Jephcott and Kingsley Shorter, London: New Left
Cinematic Apparatus, London: Macmillan, 1980:38-46.
Books, 1979:239. Christopher Phillips sugeriu-me
“tardio” amplia essa referência: “Não existe nada
parecido com moda numa sociedade de castas e
estamentos, onde cada um tem seu lugar assinalado
de forma irrevogável. Assim, a mobilidade de classes
é inexistente. Uma proibição protege os signos e
11 Henri Bergson, Matter and Memory, trad. N.
M. Paul and W. S. Palmer, New York: Zone Books,
1988:101-103.
assegura-lhes total clareza; cada signo se refere
12 Ver, por exemplo, Félix Guattari, Les machines
inequivocamente a um status (…) Nas sociedades
concretes, in La revolution moleculaire, Paris: Encres,
de casta, feudais ou arcaicas, os signos são
1977:364-376.
numericamente limitados e de difusão restrita (...)
13 “Pelo contrário, ele [Bergson] rejeita qualquer
Cada signo é uma obrigação recíproca entre castas,
determinação histórica da memória. Ele consegue
clãs ou pessoas.” Simulations, trad. Paul Foss, New
assim antes de mais nada se distanciar da experiência
York, Semiotexte, 1983:84.
da qual se originou sua própria filosofia, ou
5 T. J. Clark, The Painting of Modern Life: Paris in the
melhor, da experiência contra a qual sua filosofia
Art of Manet and His Followers, Princeton: Princeton
industrialismo em grande escala.” (Walter Benjamin,
Este artigo foi originalmente publicado na revista
October, v. 50, Outono, 1989:96-107.
Illuminations, trad. Harry Zohn, New York: Schocken,
7 J. Crary justifica o uso do termo observador em
14 Baseei-me na valiosa pesquisa de William
Uricchio, Rituals of Reception, Patterns of Neglect:
etimológicas que remetem à conformação a usos e
Nazi Television and its Postwar Representation, Wide
códigos (observar uma regra, por exemplo). Enquanto
Angle, v.10, n.4:48-66. Ver também Robert Edwin
o termo espectador “designa uma testemunha que
Herzstein, The War That Hitler Won: Goebbels and
assiste a um espetáculo sem participar, tanto numa
the Nazi Media Campaign, New York: Paragon, 1978.
galeria de arte quanto no teatro”, o observador
15 Apud Uricchio, op. cit.:51.
se inscreve na trama histórica como “efeito de um
16 Debord, Society of the Spectacle, sec. 64.
discursivas, sociais, tecnológicas e institucionais”.
17 Michel Foucault, Discipline and Punish, trad. Alan
Ver Crary, Jonathan. Techniques of the Observer:
Sheridan, New York: Pantheon, 1976:217.
on Vision and Modernity in the Nineteenth Century.
Cambridge: MIT, 1990. (NT)
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
que o final da década de 1920 teria sido igualmente
crucial para Debord como o momento em que o
surrealismo foi cooptado, isto é, no qual seu potencial
revolucionário original foi anulado por uma instância
espetacular inicial de recuperação e absorção.
24 Sobre essas estratégias, ver os documentos em
Ken Knabb (ed.), Situationist International Anthology,
Berkeley: Bureau of Public Secrets, 1981.
25 Ver meu texto Eclipse of the Spectacle, in Brian
Wallis (ed.), Art After Modernism, Boston: David
Godine, 1984:283-294.
reagia. Tratava-se da inóspita e ofuscante era do
detrimento de espectador por suas ressonâncias
sistema irredutivelmente heterogêneo de relações
NOTAS
Alexandra Anderson, New York: Viking, 1973:35.
23 Walter Benjamin, One Way Street, trad. Edmund
1969:156-157).
totalmente novas de resistência e memória?25
22 Fernand Léger, Functions of Painting, trad.
of the Cinema: The Coming of Sound to Hollywood,
6 Idem, ibidem:10.
ministração e regulação da atenção exigiria formas
21 Idem, ibidem:29.
4 Uma passagem bem conhecida do Baudrillard
meio a uma sociedade organizada como aparência?
da circulação de informações – um sistema cuja ad-
20 Debord, Commentaires, op. cit.:17-19.
102; e Douglas Gomery, Toward an Economic History
University Press, 1984:9.
organizado principalmente em torno do controle e
1, 1989:Al.
mythes, ses structures, Paris, Gallimard, 1970 :60.
gia do presente tem a nos dizer. Estamos ainda em
Ou entramos em um sistema global não espetacular
208
9 O historiador da ciência Francois Dagognet assinala
Jonathan Crary é professor de história e teoria
da arte moderna na Universidade de Columbia
desde 1989. É cofundador e editor de Zone Books
e autor dos livros Techniques of the Observer: On
Vision and Modernity in the Nineteenth Century
(MIT Press, 1990) e Suspensions of Perception:
Attention, Spectacle and Modern Culture (October
Books, 2000). Tem inúmeros artigos publicados
em revistas como Art in America, Artforum,
October, Assemblage, Cahiers du cinéma, Film
Comment, Grey Room e Domus, além de ensaios
críticos em mais de 30 catálogos de exposição.
18 Idem, ibidem:218-219.
TE M ÁTI CAS | JO N ATH AN CRARY
209
Analu Cunha
Cinema mudo, 2011
210
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ARTI G O S | CYB E L E V I DAL N E TO FE RN AN DE S
211
RESENHAS
Heloisa Schneiders da Silva obra e escritos
Zielinsky, Mônica (org.)
Porto Alegre: MARGS, 2010
Glória Ferreira
Merecedor do V Prêmio Açorianos de Artes Plásticas
de 2011, o livro Heloisa Schneiders da Silva obra
e escritos, com impecável organização de Mônica
Zielinsky, nos introduz ao potente universo da
produção de uma artista que, embora ainda pouco
reconhecida no resto do Brasil, conta com ampla
estima no meio de arte do Rio Grande do Sul.
Morta em 2005, aos 50 anos, após árdua luta
contra enfermidade degenerativa desde muito
jovem, a artista vem tendo sua obra catalogada
e difundida pelo Projeto Heloisa Schneiders da
Silva, formado por iniciativa de familiares, amigos
e profissionais da área. Depois de realizar, entre
outras atividades, sua exposição monográfica em
2009, no MARGS, o projeto, com o apoio desse
museu, através da Lei Rouanet, é responsável pela
publicação em pauta, com extensa apresentação
de sua obra pictórica e suas fotografias.
Além dos esclarecedores textos de Mônica
Zielinsky e do crítico Gaudêncio Fidelis, e de
abrangente cronologia organizada por Beatriz
Kessler Fleck e Ricardo Schneiders da Silva, são
trazidos a público inúmeros escritos da artista.
Reproduzidos de seus Cadernos de Anotações
e apresentados em seções − Sobre arte, Sobre
pintura, Outros escritos, Sobre arte postal −, eles
permitem apreender suas reflexões a respeito de
seu processo de trabalho e sua visão sobre a arte.
Surpreende a densidade de sua pesquisa pictórica
para quem praticamente desconhece seu trabalho,
como é o meu caso, salvo por uma exposição na
Galeria Macunaíma, em 1985, relatos de seus
212
parceiros, como Karin Lambrecht, e, agora, esse
livro. Heloisa parece buscar os limites possíveis
da pintura, como nos trabalhos dos anos 80,
em que associa superfícies em que predomina a
cor, estiradas, porém, como “peles no espaço”,
perfuradas por caules, bastões de madeira ou
troncos retorcidos. Nessas “pinturas-objetos”,
assim nomeadas pela artista, “as telas”, assinala
Mônica Zielinsky, “subvertem seu emprego
tradicional e discutem os planos ortogonais que
acolhem a pintura, enquanto esta passa a ocupar
muitas vezes o espaço circundante”.
Formada pelo Instituto de Artes da UFRGS, no qual
ingressa em 1974, tendo como colegas e amigos,
entre outros, Karin Lambrecht, Mara Alves,
Simone Michelin, Regina Coeli, Renato Heuser,
compartilha ativamente atividades acadêmicas e
experimentais dos alunos, como na elaboração
coletiva dos álbuns Relinguagem (1978) e
Relinguagem (1979). Aluna de Carlos Pasquetti,
desenvolve louvada pesquisa e produção na
área do desenho, que se inscreve em momento
singular de investigação em Porto Alegre e que
leva, segundo a organizadora do livro, “a uma
reavaliação do substrato construtivo e ideológico
da produção artística local”. Durante breve período
foi professora do Instituto de Artes e orientou
artistas como Elida Tessler. Participou igualmente
de diversas ações coletivas de caráter experimental
e dos debates sobre os caminhos da arte e de sua
circulação pública, algumas realizadas no Espaço
N.O. “Em meio a essas escolhas”, ainda de acordo
com Mônica Zielinsky, “a artista salienta, desde os
primeiros tempos de vida artística, a importância
que atribui à experimentação e à multiplicidade
de ações; compreende a arte como manifestação
plural, que se estabelece como rede, ao referir-se,
a título de exemplo, à arte postal”.
É conhecida sua relação com a natureza, tendo
adotado, durante longo período, o lobo como
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
temática de muitos trabalhos. Simone Michelin, em
breve conversa, informa que o lobo como símbolo
revelava sua busca de certa pureza associada com
a questão do animal. Em seu ensaio sobre a obra
da artista no contexto dos anos 80, Gaudêncio
Fidelis assinala que “a predisposição de conviver
com um universo próximo à natureza foi, antes
de tudo, uma posição política da artista que teve
impacto direto na realização de sua pintura e que
a diferencia conceitualmente dos novos selvagens
ou expressionistas, com suas atitudes mais cínicas
em relação à linguagem da pintura como uma
tradição histórica e culturalmente definida”.
Enfim, se o livro Heloisa Schneiders da Silva obras
e escritos tem o grande mérito de nos introduzir
no universo dessa apreciada artista, ele aporta
também amplo e necessário conhecimento sobre
a relevante produção artística contemporânea no
Rio Grande do Sul.
No contemporâneo: arte e escritura
expandidas
Roberto Corrêa dos Santos; Renato Rezende
Rio de Janeiro: Ed. Circuito, 2011, 124p.
Ana Mannarino
Os autores de No contemporâneo: arte e
escritura expandidas enfrentam o desafio de
desenvolver livro acerca de uma produção artística
que é, ela própria, a um só tempo, proposição
estética e reflexão teórica: o trabalho de artistas
contemporâneos brasileiros que operam nas
fronteiras, dissolvidas, entre artes plásticas e
poesia, imagem e escrita, texto e visualidade.
Como refletir e produzir um livro acerca dessa
produção sem trair seu propósito de abertura, sem
reduzir sua força, sem limitar suas possibilidades
de aproximação e de leitura? Paralelamente, não
há como negar a necessidade dessa reflexão sobre
as obras, de debruçar-se sobre elas, provocando
conexões que potencializem seu alcance e
a produção de novos sentidos e relações. O
caminho proposto pelos autores é fazer um “livrode-artistas-pesquisadores” situando-o também na
mesma difusa fronteira entre pesquisa teórica e
produção artística em que se encontram as obras
nele abordadas.
Na breve introdução ao livro, parte do Projeto
para a Construção Adisciplinar de uma Teoria
da Arte, do Instituto de Artes da Uerj, Santos e
Rezende discorrem sobre algumas das principais
questões que os nortearam no desenvolvimento
do trabalho, dentre as quais se destacam o exame
desconstrutivo de categorias relativas ao fazer
artístico e à produção histórica e crítica; a célebre
definição de campo ampliado de Rosalind Krauss;
e a busca de uma teoria da arte ligada às práticas
contemporâneas, evitando-se modelos totalizantes
e limitadores – propondo a expansão da prática
relacionada à produção e análise de obras que
recorrem a escritos, grafismos, livros de artista.
A relação entre arte e escritura é profícua e
estende-se por diferentes épocas e lugares. Os
autores traçam um dos percursos possíveis no
diálogo entre palavra e artes visuais, entremeando
citações e referências críticas e históricas com
conceituações próprias, em texto que transita
entre a escrita teórica e a poética. Trata-se,
contudo, de caminho sugerido, em que o leitor
não é conduzido a direção definida, mas levado
a passear por uma colagem de textos cujos “fios
soltos” permitem diversos percursos. A escrita
que embaralha versos e fragmentos constitui uma
espécie de diálogo entre textos próprios e alheios,
uma coleção de apontamentos e ideias.
O livro passa pela arte norte-americana das
décadas de 1960 e 1970, pela poesia concreta
brasileira, pelo Manifesto Neoconcreto, pelo
Tropicalismo, pela poesia em contexto digital. O
RE S E N H AS
213
discurso videográfico, “impuro por natureza”, a
confluência de mídias e o fim da especificidade
do meio nas artes têm destaque na abordagem
dos autores – assim como considerações acerca
do momento contemporâneo, principalmente no
que diz respeito ao fim das certezas estéticas e à
fluidez entre os meios. As citações e referências de
teóricos como Rosalind Krauss, Antonio Risério,
Philadelpho Menezes, Giorgio Agamben, Jacques
Rancière, Antonio Cícero – para mencionar
apenas alguns – costuram uma trama de reflexões
e interrogações sobre arte, palavra, filosofia,
política, poesia e linguagem que repercute nos
outros dois discursos que integram o livro de
Santos e Rezende: o texto dos autores (formados
por frases curtas, quase versos) e as imagens
do trabalho dos artistas Adolfo Montejo Navas,
Alberto Pucheu, Alberto Saraiva, Brígida Baltar,
Laura Erber, Leila Danziger, Lena Bergstein, Lenora
de Barros, Ricardo Basbaum e Rosana Ricalde.
No
texto
dos
autores,
entremeado
pelas
referências, algumas palavras são pontos de
partida para séries de frases e reflexões sobre arte
e outras categorias caras à discussão proposta –
arte, escrever, ato, homenagem, modernidade,
contemporâneo,
ideia,
obra,
pensamento,
conceito, ponto – em tentativas de esgotar seu
sentido, mas que não se esgotam, se multiplicam.
São afirmações, reflexões, contestações que
às vezes conferem ao livro ares de manifesto –
pensamento sobre arte, arte voltando-se para si
própria, arte conceitual.
O projeto gráfico, assinado por Lucas
Osório, desempenha papel importante nesse
entrelaçamento de discursos. Emprega diferentes
pesos de texto, usando duas tipografias – uma
para as citações e referências históricas e críticas,
a outra para os versos e frases dos autores – e
diversos tamanhos de letras, em manchas gráficas
variadas de texto, explorando a dimensão espacial
214
da palavra. Não há relação direta entre texto e
imagens; eles constituem discursos paralelos.
Embora tratem do mesmo tema geral, um
discurso não está submetido ao outro (apesar de
se cruzarem em alguns momentos, como quando
as reproduções de frames do vídeo Homenagem,
de Lenora de Barros, aparecem lado a lado a
algumas possíveis definições propostas para o
termo que dá nome à obra). Textos e imagens têm
igual peso na constituição do livro. A disposição
dos elementos permite diversas possibilidades
e níveis de leitura, tanto uma leitura linear, que
siga o texto na sequência das páginas, como
leituras não sequenciais, que se dão ao se folhear
o livro, ao se lerem prioritariamente as imagens,
os fragmentos de texto ao acaso. Se o texto às
vezes recebe tratamento de imagem, destacado
na página, cercado de amplos espaços em
branco, também a imagem é às vezes tratada
como texto – por exemplo, as imagens do vídeo
de Brígida Baltar, que é reproduzido como uma
série de frames disposta no espaço, a ser “lida”
sequencialmente.
Repleto de referências artísticas e literárias, o
livro constitui importante fonte para os que se
interessam pela pesquisa sobre confluências
de arte e escritura, sobre as complexas relações
entre as mídias e a desconstrução das categorias
artísticas no mundo contemporâneo. Ponto
de conjunção de pensamentos, vertentes e
caminhos, ele abre uma gama de possibilidades
a serem percorridas. É livro para ser lido e relido,
visto e revisto, estudado e fruído, bem-sucedido
nos desafios a que se propõe.
Gerhard Richter, Sinopse
Pinacoteca do Estado de São Paulo,
São Paulo, 23 jul.-21 ago. 2011
Alvaro Seixas
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
Na exposição Sinopse (Survey), Gerhard Richter
(1932, Dresden, Alemanha) assume a figura de
artista-curador para realizar um passeio resumido
por sua própria produção. Constituída de 27 obras
entre pinturas, fotografias e gravuras, exibiu-se
na Pinacoteca do Estado de São Paulo depois de
percorrer outras importantes cidades da América
Latina e do Brasil.
No final da década de 1960, em mainstream
artístico que começava a afirmar as chamadas
“novas mídias” como sendo o mais novo degrau
da ascensão a formas superiores de arte, o artista
alemão persistiu – desse modo anacrônico – na
pintura tradicional, tendo reativado criticamente
certos aspectos de estilos que começavam a ser
enfraquecidos pela crítica da época, como o
expressionismo abstrato.
na década de 1920 pelo historiador alemão Aby
Warburg,1 que consistia em uma série de painéis
móveis, sobre os quais o historiador dispunha suas
coleções de imagens da cultura visual universal,
sob forma até então inconcebível segundo
as normas acadêmicas, ajustadas em rígida
linearidade e limitações geográficas. Warburg
passa a identificar as imagens como possuidoras
de uma espécie de “memória coletiva” ou “social”,
passando a interligar tempos históricos não
lineares e as artes visuais produzidas em partes do
globo até então distantes e, para as tradicionais
“Histórias da Arte”, de impossível associação.
Para confeccionar muitos de seus trabalhos de
pintura, o artista busca referências em registros
fotográficos – pessoas, coisas e cenários
reconhecíveis e desconhecidos –, imagens vindas
de uma espécie de armazém aparentemente
sem limites que é o mundo globalizado,
articuladas pelo artista a outras obras de natureza
supostamente “abstrata”.
A mostra em questão é composta em grande
parte por obras que consistem em pequenas e
médias reproduções fotográficas – impressas em
off-set – e de pinturas representativas do artista
que, aliás, originalmente tiveram como base a
estética fotográfica e com ela mantiveram forte
relação visual – é o caso dos retratos Betty (1991)
e Tio Rudi (2000). Também estão presentes
obras da série Pinturas Abstratas, mas em
tamanhos modestos, adequando-se ao perfil das
reproduções fotográficas em exposição. Há ainda
uma fotografia com intervenções de pintura –
da série Fotografias Pintadas –, uma única obra
de grandes dimensões e um painel fotográfico
datado de 1998, formado por 128 detalhes em
tons de cinza de Halifax, pintura a óleo abstrata,
de denso impasto, feita pelo artista em 1978.
Resta mencionar curiosa linha do tempo em offset, semelhante a uma página de enciclopédia,
diagramada por Richter em 1998, na qual o artista
nos apresenta seu resumo pessoal da história
cultural ao destacar nomes de importantes
artistas plásticos, arquitetos, escritores, músicos
e filósofos.
A produção de Richter define uma estratégia
“documental” pouco ortodoxa, comparável ao
curioso Atlas de Imagens Mnemosine concebido
Em sua Sinopse, Richter parece menos interessado
em apresentar uma exposição de obras únicas ou
de grande formato, que se poderiam encerrar em
A opção por intitular sua mostra Sinopse a identifica
como uma espécie de “retrospectiva precária”,
sortilégio conceitual que se liga diretamente ao
modus operandi do artista, que em sua produção
não cessa de nos apresentar a um universo
visual diversificado, fragmentado e lacônico.
Desse modo, Richter opta por um passeio vago,
assumidamente sintético e, assim, incompleto, por
sua obra para rediscutir as ambições acadêmicas
das tradicionais, grandes e pretensiosamente
completas retrospectivas de artistas.
RE S E N H AS
215
sua própria plasticidade, e mais em lançar um olhar
sobre o caráter conceitual e heterogêneo de sua
produção e nos desafiar a adentrar sua lógica difusa.
NOTAS
1 Para estudo da relação entre as produções de
Gerhard Richter e Aby Warburg, ver Buchloh,
Benjamin. Atlas de Gerhard Richter: o arquivo
anômico. In: Arte & Ensaios, v.1. n.19. Rio de
Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Artes
Visuais, Escola de Belas Artes, UFRJ, 2009: 194-209.
José Resende
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, 9 jun.-18 set. 2011
Felipe Scovino
Tomar contato com a recente produção de José
Resende é refletir sobre questões universais da
escultura (monumentalidade, forma, técnica
e presença no espaço). A sentença soa como
chavão, mas é nesse momento que se revela a
diferença em seu trabalho e particularmente nessa
exposição. Devemos partir do princípio de que o
conjunto de cinco esculturas foi pensado para o
Salão Monumental do Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro. Sendo invadido por luz e
natureza, formando uma espécie de continuidade
com seu entorno e, portanto, expondo seu espaço
a feixes externos de atravessamento, o próprio
MAM-RJ não conhece seus limites, digamos,
estruturais. É uma extensão desse panorama que
sobrevoa a exposição de Resende. Compreender
que o (suposto) limite da escultura não termina
em sua apreensão formalista, mas que o
campo de diálogo estabelece fruição inclusive
com o meio em que está inserido. Apesar de
sua grandiosidade, o resultado plástico nesse
216
conjunto de esculturas contraria a tendência à
busca das manifestações espetaculares e sublinha
original dimensão de sobriedade. Permanecem
em território ambíguo porque tanto atuam
como formulações de ficções individuais quanto
formam uma rede de interlocuções de impossível
desmembramento. Essa exposição também reflete
a possibilidade de um trabalho tornar (ainda mais)
específico um lugar. A conclamada sobriedade se
faz no diálogo entre a escala das esculturas e a
necessidade de percurso que elas invocam ao
espectador − discursar sobre o corpo a partir
não apenas da experiência física do percurso em
torno das esculturas, mas singularmente expor
uma visão de mundo, que passa pelo aspecto
estabilizador (e potencialmente desestabilizador)
da escultura. São obras que se condicionam como
verbo de ação, na condição, portanto, de revelar
a instabilidade da matéria e a situação de um
corpo em permanente estado de desequilíbrio
com o meio. Esta última característica também
pode ser confundida com dúvida ou incerteza.
Suas esculturas parecem duvidar de sua própria
condição de imobilidade porque almejam o
espaço e o diálogo. Parecem descontentes com
sua qualidade de imagem ou forma de aparição
no mundo. Há um desconforto pairando sobre
aquele território.
Os
elementos
dessas
esculturas
são
experimentados como estruturas físicas. Ora,
suas vigas e estacas são dispostas a intervalos
largamente espaçados sustentados como que por
pernas. Ora, uma estrutura vertical em cobre e
preenchida de forma intercalada por madeira nos
remete tanto a uma magistral coluna vertebral
quanto a uma manifestação totêmica. Assim,
a forma de seu trabalho e a noção de totem
convertem-se em duas metáforas interligadas
e recíprocas, que apontam para um mesmo
aspecto: o repertório de formas do cotidiano
que, deslocadas de seu contexto e identidade,
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
criam coerente e contínuo discurso sobre o corpo
e visão de mundo muito particular e instigante
sobre a contemporaneidade. Uma terceira obra
é formada pelo “diálogo” entre dois círculos de
cobre fixados por duas espécies de sapatas e tendo
em suas extremidades um conjunto de longos fios
de aço. É surpreendente como de certo modo
essa imagem congela um tempo e uma ação. Há
um dado de velocidade sendo transmitido ainda
que estejamos diante de uma escultura que,
entretanto, no exato momento em que tomamos
ciência dessa imagem, se transforma em corpo
vibrátil. Essa ideia é reforçada pela relação
totêmica que a obra também explora, nesse caso
imagem que pode ser identificada com temas
sexuais e canibalísticos.
A aparição dessas obras é sempre resultante de
economia de gestos e materiais que se convertem
harmonicamente em um corpo. Este vem à
tona na obra de Resende porque sua presença
no mundo é incondicionalmente necessária.
Ademais, a ideia de corpo torna efetivas a
inserção e a vontade do sujeito na produção
escultórica. O tom confessional de Resende nos
faz refletir a respeito de não sermos um conjunto
de significados privados que podemos escolher
entre tornar ou não público. Esses gestos são
resultantes das convenções e do repertório do
lugar que habitamos ao mesmo tempo em que
se convertem (e logo se impõem) como discurso
sobre nossa vontade de expor, organizar e
modificar essa “ordem natural das coisas”.
Ana Linnemann, Cartoon
Galeria da Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de
Janeiro | 15 jun.-31 jul.2011
Curadoria de Fernando Cochiarale
Vera Beatriz Siqueira
A chegada à exposição Cartoon, de Ana Linnemann,
é marcada pela presença bem-humorada de uma
palmeira, plantada no canteiro em frente à Casa de
Cultura Laura Alvim, na praia de Ipanema, no Rio
– Os invisíveis no8. Ao lado da escultura de Franz
Weismann, Quadrado em torção no espaço, que
há anos identifica o espaço cultural, a palmeira
não chamaria propriamente atenção, em meio a
tantas outras da orla carioca, a não ser pelo fato
de realizar, de tempos em tempos, rotações sobre
si mesma. Após o que para de forma abrupta,
mantendo a ondulação de suas folhas por instantes
antes de reconquistar a quietude. Um leve sorriso
se insinua no rosto do espectador que, curioso,
sobe as escadas da galeria.
Ao entrar na sala, mais uma experiência inusitada:
na parede lateral, estranhas protuberâncias se
projetam, a intervalos regulares, em três leves
manchas que parecem indicar infiltrações – Os
invisíveis no9. A sutileza da obra e os intervalos
longos entre uma aparição e outra fazem com
que, a princípio, duvidemos do que vimos. Ilusão?
Realidade? A surpresa traz novo sorriso. As folhas
empilhadas de uma estante articulável e um par
de xícaras cortadas como se fossem cascas de
frutas – da série O mundo como uma laranja –
convidam o visitante a participar de uma curiosa e
instigante experiência estética.
Surpreendidos pela palmeira que gira, pela parede
que se projeta ou pelas xícaras retalhadas, nos
vemos imediatamente desarmados, destituídos
das formas tradicionais de apreciação estética.
As ideias mais corriqueiras que nos apoiam na
experiência de visita às exposições de arte não
parecem funcionar direito. Sequer há objetos,
bases, molduras, etiquetas para nos auxiliar. A
estante articulável vai escrevendo o roteiro da
mostra, marcado antes por fissuras e interrupções
do que pela continuidade.
Em cada obra vivemos a fragmentação. Logo à
RE S E N H AS
217
esquerda de quem adentra a sala central, duas
pesadas pilhas de tiras retangulares de feltro são
costuradas no centro de uma de suas bordas,
ficando uma à frente da outra, com essas bordas
para fora da prateleira interrompida que, por sua
vez, avança sobre o vão de passagem para outro
espaço da galeria. Entre as tiras que compõem
cada pilha, é colocada uma pérola, detalhe
caprichoso que reforça o sentido de intervalo
e descontinuidade, além de contribuir para a
instabilidade da peça, completada pelo fato de a
linha de costura permanecer estendida pela agulha,
apenas tensionada e enfiada na trama do feltro.
Como o título da obra sugere – Inevitável –, ficamos
suspensos no tempo, aguardando o momento em
que o conjunto pode vir a se desmanchar.
Novamente é a descontinuidade e o sentido
intervalar que surgem nos retângulos de azulejos
iluminados frontalmente por spots, que devem
ser vistos pela face posterior, na qual aparecem os
traços, vertical ou horizontal, formados pela luz
que vaza de intervalos na junção dos ladrilhos –
Frestas de luz 1 e 2. Outros objetos da série O
mundo como uma laranja – como o tênis All Star,
o relógio que, nessa mostra, se conecta com a
luminária acima, o globo ou os livros fatiados –
ajudam a exacerbar a sensação de espacialidade
fragmentada. Como se Ana Linnemann recusasse,
antes de tudo, qualquer solução de continuidade,
qualquer forma de inscrever a totalidade, qualquer
possibilidade de estabelecer entre a arte e o mundo
uma relação ausente de fricções e rupturas.
Como afirma em seu site: “Eu faço objetos que,
sendo improváveis, criam novas situações para o
que é possível”. O que a leva a trabalhar justamente
com as fissuras do real. Cortes, incisões, vaivens
de invisibilidade, instabilidades de sentido são
algumas das estratégias de manifestação desse
jogo de improbabilidades e possibilidades. Pois na
afirmação da artista podemos perceber sua busca
218
deliberada por criar novos mundos, nos quais o
elemento lúdico e a ilusão são essenciais para
evitar que a arte se dissolva na realidade. Como
se a artista lançasse, no limite, a pergunta sobre
as condições de possibilidade da própria arte no
contexto atual.
Empenhada em recuperar para a experiência da
arte alguma ordem de autonomia com relação
à realidade mundana da qual parte, a artista,
porém, deve recusar as narrativas totalizantes,
sejam as mais tradicionais, sejam as recentes.
O que nos leva a outra dimensão de sua obra.
Encontramo-nos igualmente incapazes de ordenar
a experiência a partir dos temas mais correntes na
arte contemporânea. Seus globos cortados – O
mundo como uma laranja (globo) – ou esmagados
nos nichos da estante em ziguezague –
Ziguezague com globos – não falam, por exemplo,
de identidades, multiculturalismo, hibridismo ou
territorialidades. Os cortes e os achatamentos falam,
sim, de uma realidade ambivalente, entre a imagem
símbolo de nosso mundo e a matéria de que é feito.
Novamente, ficamos desarmados e desassistidos
diante do humor, que não deseja sequer reter a
dimensão mais conceitual da ironia duchampiana.
Em XS, fatias de pedra-sabão são bordadas
com fios coloridos de algodão e seda, seguindo
os padrões florais em ponto-cruz de revistas de
trabalhos manuais, executados caprichosamente
pela artista. À pura fisicalidade da rocha ela opõe
o trabalho com as linhas, forçando a matéria a
perder sua autossuficiência e a se converter em
suporte. Ao mesmo tempo, o gesto de bordar
deixa de ser íntimo e delicado, para envolver furos
na pedra resistente e uma artesania bruta. Curiosa
reflexão sobre a natureza se impõe: a rocha perde
sua materialidade autossuficiente, as flores nascem
do trabalho da artista. O resultado, novamente, é
o sorriso diante do inusitado. Também ao costurar
zíperes em folhas secas, Ana Linnemann retoma
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
esse sentido dúbio e indefinido da natureza, entre
matéria-prima e fluxo orgânico.
Em outras obras ela nos coloca diante da
experiência da indecisão sobre a figura geométrica.
É o caso de 1 nível/3 níveis, na qual três copos
transparentes, com diferentes quantidades de
água, dispostos em níveis distintos nas prateleiras
articuladas, são unificados pela virtualidade da
linha reta que se pode traçar a partir da superfície
do líquido em cada recipiente. Ou dos delicados
bordados em tira de feltro, nos quais o círculo e o
quadrado são formados não apenas pela trama de
linhas, mas também pelas agulhas (curva e reta)
que, aliás, determinam o tamanho das formas.
Sugere, assim, uma espécie de interioridade
problemática ou dúbia da forma geométrica.
Todos esses dilemas surgem, entretanto, sem que
a artista faça uso de outra ordem de totalização,
valendo-se para tal da centralidade da dimensão
do jogo. É preciso suspender os discursos por
meio da surpresa, da ilusão e do riso. Destituir
a miniatura da célebre performance de Joseph
Beuys, I like America and America likes me, de
toda profundidade cultural e histórica. Fazê-la
girar sobre um cd, acionado por uma geringonça
mecânica, ligada a uma tomada escancaradamente
incrustada na lombada de livros escavados que,
por sua vez, viram-se de costas para nós. Recupera,
assim, o sentido bem humorado e improvável da
própria performance citada, agora desprovida de
toda aura e convertida em ação ininterrupta e sem
direção, repetida como em uma caixa de música
muda – Beuysiana.
A referência a Joseph Beuys volta a aparecer em
Os invisíveis no2, obra na qual uma garrafa de
coca-cola se desloca lateralmente sobre uma pilha
de livros encimada por exemplar sobre o artista
alemão. Aqui, Ana nos fazer experimentar vários
níveis de encontros insólitos: entre o movimento
motorizado da garrafa e a imobilidade silenciosa
dos livros; entre as elaboradas publicações de
arte e a própria garrafa plástica de refrigerante
– que se situam em polos opostos na hierarquia
dos objetos produzidos pelo homem; – mas
também entre os livros sobre Leonardo da Vinci
e Bonnard, o minimalismo e Lucio Fontana, e
o discreto, porém insidioso, exemplar de Dick
Tracy: America’s most famous detective. Junto
aos artistas renomados, esse herói de histórias
em quadrinhos parece forçar um sorriso amarelo,
promovendo o questionamento a respeito das
frestas que separam realidade e ficção, cultura
pop e erudição, valor estético e fama.
Talvez, porém, a presença desse livro seja ainda
mais significativa. Poderíamos pensar nela como
uma espécie de chave de compreensão de toda a
mostra, cujo título, aliás, refere-se ao universo dos
comic books. É Dick Tracy quem parece oferecer
a Ana Linnemann a possibilidade de criar novas
situações para a arte, sem descambar para as
soluções tradicionais ou para a discursividade
característica da contemporaneidade. É ele quem
vai permitir que ela se diferencie, por um lado,
da figura do artista como gênio, presente tanto
em Leonardo quanto na influência romântica em
Beuys, e, por outro, da exteriorização absoluta
das formas simples do minimalismo, a recusar
qualquer resquício de autoria. O detetive criado
em 1931 que, durante décadas, desvendou
mistérios e solucionou crimes, serve à artista
como contraponto necessário para seu empenho
em atualizar a tarefa artística de reconfigurar o
real. Projeto ambicioso e especialmente relevante
na contemporaneidade.
Não nos deixemos, portanto, iludir pela aparente
facilidade de seus trabalhos – instância necessária
de aproximação e contato. Suas obras querem nos
pegar, pretendem atrair e prender o espectador
pelo humor, pela ilusão, pelo desafio a nossos
dispositivos perceptivos. Desejam mais do que
RE S E N H AS
219
isso, entretanto, ao nos envolver na experiência da
fricção, da fissura, da indeterminação, sugerindo
que cabe à arte contemporânea estabelecer
uma relação nova (de descontinuidade) com o
mundo. Rejeitando as narrativas tradicionais,
mas também a afetação conceitual, a recusa de
sentido pós-moderna, a negação da autoria ou o
ceticismo pop, e recuperando uma ordem nova
de autonomia da experiência estética, os jogos
visuais propostos na mostra Cartoon criam um
espaço fragmentário em que experimentamos a
arte em sua natureza híbrida, simultaneamente
extraordinária e comum, especial e corriqueira,
grandiosa e ridícula.
Francis Alÿs
A Story of Deception
MoMA Manhattan / MoMA PS1
8 mai.-1o ago. 2011
Doris Kosminsky
O título da mostra do artista belga Francis Alÿs, A
Story of Deception, fala do desejo de perseguir
o que sempre parece nos escapar. Trata-se de
conceito que o artista instala entre a poética e
a política. Alÿs vive no México desde a década
de 1980. Essa mudança de continente proveu-o
de ponto de vista único, embora problemático,
do intruso, do estrangeiro dono de olhar aguçado
ante a realidade naturalizada. Nesse contexto,
os ciclos de avanços e retrocessos nos campos
da política e da economia, tão frequentes nos
países da América Latina, são colocados como
repetições e tentativas de alcançar um futuro
nunca concluído ou plenamente realizado. Uma
miragem do que poderíamos ser, mas com
resultado sempre decepcionante. Essa descrença
na retórica moderna do desenvolvimentismo e do
progresso perpassa a obra que o artista apresenta
220
em instalações, vídeos, sketches preparatórios,
desenhos, pinturas, colagens e fotografias.
O olhar estrangeiro mostra-se explícito na
fotografia Turista (1994) em que o artista aparece
identificado por uma placa com a palavra
“turista”, ao lado de trabalhadores temporários
com suas placas: “eletricista”, “bombeiro”,
“pintor e gesseiro”, etc. A figura de Alÿs, mais alto
e usando óculos escuros, destaca-se dos outros
homens, de vidas precárias. De certa forma, com
sua presença, o artista oferece seus serviços como
turista para quem quiser ver o mundo através de
seus olhos. Como essa imagem, a obra de Alÿs
consiste fundamentalmente da documentação
de ações e práticas poéticas. A natureza
processual de seu trabalho é desdobrada em
desenhos, pinturas, vídeos, filmes, fotografias e
cartões-postais, além de objetos menos óbvios,
preparatórios da ação artística, tais como cópias
de e-mails e anotações. Se seus vídeos não são a
obra em si, mas um meio para fixar e apresentar
a obra, os recortes de jornais e desenhos que
acompanham as instalações não buscam ser
ilustrações explicativas dos processos. Parecemse mais com enigmas ou fragmentos do
pensamento do artista, envolvido em processos
que muitas vezes requerem financiamento e
minucioso planejamento, além da participação
de voluntários e contratação de profissionais
especializados (cinegrafistas, editores de
imagem, etc.).
O entrelaçamento entre política e poética em jogo
que nunca é concluído satisfatoriamente aparece
claramente como metáfora no vídeo Rehearsal I
(1999-2001). Nessa obra de 29 minutos, assistimos
às inúmeras tentativas de um fusca vermelho em
alcançar o topo de uma íngreme estrada de terra
ao som do ensaio de um grupo de mariachis.
A cada vez que os músicos interrompem o que
estão tocando, seja para afinar os instrumentos
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
ou trocar comentários, o fusca desce a ladeira de
ré até que a volta da música o encaminhe para
nova tentativa. O ensaio que fazem, ao mesmo
tempo, o grupo folclórico e o carro em sua
repetida tentativa de alcançar o topo, sugere uma
alegoria às frustradas tentativas das nações sulamericanas de alcançar o progresso. A sonoridade
dos mariachis cria certa comicidade ao mostrar o
empenho diante das sucessivas frustrações.
A obra Tornado (2000-10) documenta 55
minutos de ação que se desdobra em tentativas
de alcançar o epicentro de redemoinhos de vento,
frequentes nas regiões empoeiradas e secas ao
sul da Cidade do México. O processo da ação
consiste na aproximação em direção ao tornado.
Ao adentrar a nuvem de poeira, a tela escurece.
Ao fim de alguns segundos de escuridão, em que
só se pode ouvir o ensurdecedor som do vento e a
respiração ofegante do artista, temos a sensação
de que Alÿs e seu aparato foram cuspidos para
fora do redemoinho. O processo se repete sem
conclusão, sugerindo a eterna e utópica luta entre
dom Quixote e os moinhos de vento.
O vídeo Guards (2004-5) registra proposição
envolvendo os famosos guardas ingleses. De
início, eles marcham individualmente pelas ruas
de Londres. À medida que se encontram, entram
em formação e passam a marchar juntos. O ritmo
sincopado da marcha acaba por atrair e fixar um
número maior de soldados. Quando o grupo
atinge o número de oito por oito guardas, dirige-se
à ponte mais próxima. Ao alcançá-la, a formação
é desfeita, e o grupo se dispersa. A construção
da ação é documentada por tomadas precisas.
A edição reforça o enredo da proposta. O único
áudio da obra vem do marchar dos soldados, que
vai aumentando à medida que a ação avança.
O trabalho pode ser lido com uma parábola do
caminhar junto, do seguir os passos da maioria.
A surpresa da dispersão final desvela o estado
de suspensão do significado que se encontra na
natureza do ato poético. Segundo Alÿs, a arte,
através do ato poético de transgressão, pode
nos fazer olhar as coisas de modo diferente.
Ou, pelo menos, o absurdo da situação pode
fazer-nos pensar que as coisas poderiam ser
diferentes. Talvez seja esse o caso da obra Reenactments (2000), constituída por dois canais
de vídeo. O primeiro é a documentação de ação
realizada pelo artista. Ele entra em uma loja,
compra e carrega um revólver e sai caminhando
pelas ruas com a arma em punho até ser detido
pela polícia. No dia seguinte, e por isso as duas
sequências de imagens, a ação é re-encenada
com a cooperação da polícia. Ao apresentar,
lado a lado, a ação dramática e sua simulação, o
artista dissolve a fronteira entre documentação e
ficção, questionando a autenticidade da obra. Ao
mesmo tempo, discute a segurança da população
mexicana diante da debilidade de sua polícia.
Uma de suas obras mais conhecidas e documentadas, When faith moves mountains (2002), opera sobre uma inversão do princípio da eficiência
reinante no pensamento moderno: “Máximo esforço, mínimo resultado”. Em ação de proporções
épicas, Alÿs teve a participação de 500 voluntários
equipados com pás com o objetivo de deslocar
em alguns centímetros uma duna dos subúrbios
de Lima. A obra pode ser considerada uma metáfora da sociedade latino-americana, em que o
esforço e o sacrifício da população são solicitados
de forma a alcançar resultados que, ao final, se
mostram incipientes.
A extensa obra de Francis Alÿs parece repetir o
que captamos em seus atos poético-políticos:
a necessidade de seguir sempre, a resistência
ante a frustração mesmo diante de resultados
desanimadores. Algo que Samuel Beckett assim
resumiu: “Tente de novo. Fracasse novamente.
Fracasse melhor.”
RE S E N H AS
221
SUMÁRIOS DAS EDIÇÕES ANTERIORES
Arte & Ensaios 22, 2011
Sucessão de fatos | Entrevista com Antonio
Manuel
ARTIGOS
A história do cinema nas páginas da
loucura: o espectador, a imagem e a
dissociação | Tadeu Capistrano
A Fotografia Subjetiva, abertura ao
contemporâneo | Celso Guimarães
O olhar e o tempo | Tiago Cotrim
Aleijadinho em carne viva: o gesto na
escultura | Leonardo Etero
Processos de mediação | Beatriz Pimenta
Velloso
O ‘lugar’ negociado no qual o trabalho
se move, sabendo-o e sabendo-se parte
de um mundo maior, ou, se quisermos,
desconhecido | Hélio Branco
COLABORAÇÕES
Tempo alterado. O flashforward da
linguagem na vida e na arte | Fernando
Gerheim
Wols, pintor maldito, no acervo do Masp
| Almerinda da Silva Lopes
Ghérasim Luca aos pedacinhos | Laura Erber
Tempo cego | Patricia Corrêa
DOSSIÊ
Tunga
Uma vanguarda viperina | Carlos
Basualdo
Cópula | Viviane Matesco
Um experimentador ocasional em
equilíbrio instável | Suely Rolnik
A constelação Didi-Huberman ou
instruções para construir uma máquina
de guerra visual | Hernán Ulm
Arte & Ensaios 21, 2010
Não adianta procurar algo em sua
transparência, porque o trabalho não
está em lugar de nada | Entrevista com
José Resende
Eu nunca ensaio| Entrevista com Laura Lima
ARTIGOS
Anticristo | Cristina Salgado
ARTIGOS
Lugares que habitam lugares | Luiza
Peixoto Baldan
Inscrições contemporâneas: a palavraimagem no projeto da visualidade pósmoderna | Julie Pires
Cena para um figurino: no corpo, no palco,
na galeria | Desirée Bastos de Almeida
Brasilidades na obra de Calmon Barreto
| Gisele L. Faleiros da Rocha
Etnografia e ficção: o documentário
de Jean Rouch e o cinema brasileiro |
Rogério Bitarelli Medeiros
História da arte e ficções num caderno de
notas de Eliseu Visconti | Ana Cavalcanti
COLABORAÇÕES
Jochen Gerz: o monumento como
processo e mediação| Leila Danziger
Queda do Solar de Smithson: ficção,
disrupção e entropia | Tatiana Martins
Deslocamentos de Vergara | Renata Santini
Origem e permanência da crítica |
Leandro Gama Junqueira
DOSSIÊ Navilouca | Organização Cezar
Bartholomeu, Inês de Araujo e Ronald Duarte
REEDIÇÃO
Quasi-cinema | Ligia Canongia
Uma tradição negligenciada? A história
da arte como Bildwissenschaft | Horst
Bredekamp
O que se mostra. Da diferença icônica
| Gottfried Boehm
Os cães e a cidade | Miwon Kwon
Sobre (não) pintura considerada (não)
arte comunista. O caso de Otto Muehl
| Éric Alliez
RESENHAS
Livro ou livro-me: os escritos babilônicos
de Hélio Oiticica (1971-1978) | Ana
Mannarino
A Série Negra | Gilton Monteiro
222
Religião e estética: a arte como
comunicação | Mariana Emiliano Simões
Ensaio sobre a perda do instante decisivo
| Pollyanna Freire
O risco como poética artística | Leandro
Furtado
O SDJB e as obras neoconcretas |
Elizabeth Catoia Varela
Da suspensão à implosão no caminho
da arte e tecnologia | Maria Luiza Fragoso
Transcendendo a fragmentação da
experiência:o acousmêtre no ar nos
filmes de Michael Snow| Randolph Jordan
Forma em movimento: videoinstalações
refletem sobre o tempo no MAC |
Fernando Gerheim
PÁGINA DUPLA Interface I, Janela no
MNBA | Carlos Azambuja
Refazendo passaportes: o pensamento
visual no debate sobre multiculturalismo
| Néstor García Canclini
RESENHAS
A arte e o 11 de setembro | Arthur C. Danto
Contra o encerramento do desejo. A
poesia concreta no Espacio de Lectura
1: Brasil | Fernando Nogueira
O projeto do Renascimento |Ana Cavalcanti
Arquivo contemporâneo | Ivair Reinaldim
Arte & Ensaios 19, 2009
Jardim da Oposição | Guilherme Bueno
A chama como experiência meditativa
na cena teatral | Almir Ribeiro da S. Filho
Emygdio de Barros: o poeta do espaço
| Glória Chan
Cultura visual porta adentro e a
construção de um olhar decorativo no
século 19 | Marize Malta
Digitally Born ou de volta para o futuro
| Simone Michelin
COLABORAÇÕES
REEDIÇÃO A nova teoria da
representação | José Arthur Giannotti
TEMÁTICAS
A filosofia de Andy Warhol | Louise D.D.
2 em 1 | Kenny Neoob
O ato poético como experiência estética
no readymade de Marcel Duchamp |
Renata Reinhoefer França
DOSSIÊ Espaço Arte Brasileira
Contemporânea – ABC / Funarte |
Organização Ivair Reinaldim
“Eu não trabalho com símbolos.” Joseph
Beuys, a experiência e a construção da
lembrança | Jean-Philippe Antoine
Sophie Calle Cuide de você | Fernanda
Pequeno
Espaços virtuais: cantos, no 4, de Cildo
Meireles - estudo de caso de uma
metodologia de conservação e restauro
de arte contemporânea | Humberto Farias
Expressão conceitual sobre gestos
conceituais em pintura supostamente
expressiva, traços de expressão
em trabalhos protoconceituais e a
importância de procedimentos artísticos
| Isabelle Graw
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
TEMÁTICAS
O arquivo e a busca de visibilidade –
Pinturas de gênero histórico nos álbuns
fotográficos dos salões de Paris | Pedro
de Andrade Alvim
PÁGINA DUPLA| Cristina Salgado
Sobre o ofício do curador | Luiza Interlenghi
Atlas de Gerhard Richter: o arquivo
anômico | Benjamin Buchloh
Uma prática urbana entre outras:
Enquanto o artista bebe água, a obra
acontece | Fabrício Carvalho
O que fazer da vanguarda? Ou o que
resta do século 19 na arte do século 20?
| Thierry de Duve
Sergio Rodrigues. Um designer dos
trópicos | Gloria Costa
projetos [in]provados: visitação, texto e
partilha | Maria Moreira
Robert Smithson: a memória e o vazio
na paisagem entrópica contemporânea
| Martha Telles
Por uma meta-história do filme:notas
e hipóteses de um lugar-comum |
Hollis Fra
Cem, Sem, Imagens | Edith Magnan
Arquivos da Arte Moderna | Hal Foster
ARTIGOS
Por uma oftalmologia do estético e uma
ortopedia do olhar | Robert Morris
A pintura como arte | Clarice Ferreira de Sá
RESENHAS
COLABORAÇÕES
A ficção documental: Marker e a ficção
da memória | Jacques Rancière
RESENHAS
Passaic, Nova Jersey | Robert Smithson
Em outra vida acho que fui arquivista |
Entrevista com Paulo Bruscky
Cartografia da demarcação da terra
que produz diamantes – cotidiano em
suspensão | Fabíola Silva Tasca
HOMENAGEM Vida ativa | Glória Ferreira
e Sonia Gomes Pereira
PÁGINA DUPLA Duplicação/Repetição/
Londres/Paris/ Patético/Trágico, 2008201 | Cezar Batholomeu
O objeto e a experiência material |
Marcus Dohmann
TEMÁTICAS
Inscrever-se em falso | Jacinto Lageira
TEMÁTICAS
Arte & Ensaios 20, 2010
A poética da memória e o efeito-arquivo
no trabalho de Leila Danziger | Luiz
Cláudio da Costa
Campo/evento/arquivo, as
possibilidades do arquivo atual como
exposição problemática de (algumas)
obras contemporâneas | Cristina Ribas
Furor de arquivo | Suely Rolnik
Felipe Cohen – Colagens | Sérgio Bruno Martins
REEDIÇÃO Da Antropofagia à Tropicália
| Carlos Zilio
Sucessos e fracassos quando a arte muda
| Allan Kaprow
Repensando o Ocidente |A. Raghuramaraju
PÁGINA DUPLA Alvo fácil: jogue a
bomba aqui - Museu de Serralves, Porto,
Portugal, 2008 - Bolsa Iberê Camargo,
residência no Espaço Maus Hábitos |
Ronald Duarte
Arte & Ensaios 18, 2009
RESENHAS
No território da fronteira | Entrevista com
Dias & Riedweg
Nova Arte Nova | Felipe Scovino
ARTIGOS
Imaginário Periférico: impasses, propostas
e principais questões | Renata Gesomino
A arte de Konstantin Christoff:
possibilidades do estudo de uma região
do norte de Minas Gerais e sua relação
com a estética do grotesco | Maria Elvira
C. Christoff
Jeff Wall e a imagem quase transparente
na fotografia contemporânea | Leonardo
Ventapane
Cindy Sherman – retardo infinito | Cezar
Bartholomeu
Na fronteira da pintura e do teatro:
Tadeusz Kantor e Valère Novarina |
Ângela Leite Lopes
As decorações carnavalescas cariocas,
um breve histórico | Helenise Guimarães
COLABORAÇÕES
Limites do tempo | Vera Beatriz Siqueira
Caminhos da arte popular. O vale do
Jequitinhonha | Rosza vel Zoladz
Cildo Meireles - Tate Modern, Londres|
Rodrigo Krul
Estética relacional | Luciano Vinhosa
As ilhas sonham | Marisa Flórido Cesar
Arte & Ensaios 17, 2008
No Hemisfério Sul | Entrevista com Artur Barrio
ARTIGOS
Celeida Tostes e a narrativa do feminino
| Isabel Hennig
A arte de copiar: gravura, pintura e
artista colonial | Raquel Quinet Pífano
Escultura como imagem | Cristina Salgado
Para chegar ao mictório deve-se descer
a escada (em dois lances de 8 ou 80) |
Milton Machado
O projeto de Revitalização do Museu D.
João VI da EBA / UFRJ, a reinterpretação
do acervo do museu e sua nova
curadoria | Sonia Gomes Pereira
O reviramento do sujeito e da cultura
em Hélio Oiticica | Tania Rivera
O desvio de Cildo Meireles: um modo de
estar no mundo contemporâneo |Sylvia
Ribeiro Coutinho
DOSSIÊ Warburg | Organização Cezar
Bartholomeu, Aby Warburg, Giorgio Agamben
Vem cá minha Teresa... | Marta Lúcia
Pereira Martins
Arte e deriva: a escrita como processoinvenção | Cecilia Cotrim
A comunidade inventada da Puente
México, Tijuana: participação e
acolhimento no projeto de arte pública
de Felipe Barbosa e Rosana Ricalde na
fronteira entre dois mundos | Luiz Sérgio
de Oliveira
Circuito, cidade e arte: dois textos de
Malasartes | Patricia Corrêa
REEDIÇÃO Introdução à leitura de
Winckelmann | Gerd Bornheim
Seis conceitos | Bernard Tschumi
TEMÁTICAS
Um passeio pelos monumentos de
COLABORAÇÕES
Estratégias para não se perder na cidade
Derivas urbanas de Sophie Calle |
Cláudia França
Idéias-em-forma: invervenções de
S U M ÁRI O DAS E DI ÇÕ E S AN TE RI O RE S
223
Gordon Matta-Clark | Elena O’Neill
arte no contato com ela | Lígia Dabul
Agência Nacional | Renata Vellozo Gomes
Abordagens da cultura popular carioca:
Hélio Oiticica, Dias & Riedweg, Paula
Trope e Rosana Palazyan | Beatriz
Pimenta Velloso
No olhar da imagem | Carlos Alberto Murad
Arquitetura moderna brasileira e as
experiências de Lucio Costa na década
de 1920 | Ana Slade
HOMENAGEM Dossiê Luciano Fabro
| Simone Michelin, Glória Ferreira, Carlos
Zilio, Vanda Klabin e Carla Vendrami
A fragmentação do corpo do herói e
a sensibilidade do final do século 19 |
Maraliz de Castro Vieira Christo
REEDIÇÃO A escultura no campo
ampliado | Rosalind Krauss
TEMÁTICAS
Táticas de jogo da Internacional
Situacionista | Libero Andreotti
A polêmica em torno de Tilted Arc:: um
precedente perigoso? | Harriet F. Senie
Um lugar após o outro: anotações sobre
site-specificity | Miwon Kwon
O romance do espaço público | Adrián
Gorelik
COLABORAÇÕES
Território: um evento que dá lugar à
experiência estética | Luciano Vinhosa
Corpo, caminhos e lugares | Alexandre
Emerick
Retrato fotográfico oitocentista: o corpo
visto através do “olhar iluminista” |
Lícius da Silva
HOMENAGEM Dossiê Eliane Duarte
| Paulo Venancio Filho, Chacal e Viviane
Matesco
REEDIÇÃO Breviário sobre o corpo |
Lygia Clark
PÁGINA DUPLA Sítios arqueológicos |
Luciano Vinhosa
TEMÁTICAS
RESENHAS
Masculino, feminino ou neutro? |
Adrian Forty
As coleções do Museu Nacional do
Azulejo de Lisboa | Raphael Fonseca
Colors of the world: a geography of
color | Rosane Bezerra Soares
Anita Malfatti, no tempo e no espaço |
Messias Basques
Experiência neoconcreta: momento
limite da arte | Elizabeth Catoia Varela
Últimos lançamentos da coleção Arte+
| Ivair Reinaldim
Nova York delirante: um manifesto
retroativo para Manhattan | Rodrigo Krul
Bia Medeiros: trajetórias do corpo |
Alexandre Emerick
O corpo é imagem | Jean-Marie Schaeffer
Vídeo: a estética do narcisismo | Rosalind
Krauss
Seguindo Acconci/visão direcionada |
Christine Poggi
Página dupla Ângelo Venosa
RESENHAS
A arte da performance – do futurismo
ao presente | Alexandre Sá
Espaço e performance | Alexandre Emerick
The preference for the primitive |
Rosane Bezerra Soares
L’image ouverte | Cezar Bartholomeu
Arte & Ensaios 16, 2008
Arte & Ensaios 15, 2007
A gente vai para o que ama | Entrevista
com Ernesto Neto
ARTIGOS
Perguntas ordinárias em percursos
existenciais – algumas considerações
sobre a produção artística em contextos
urbanos | Enrico Rocha
As charges políticas e seu reflexo na
sociedade | Octavio Aragão
Antônio Bento e a vanguarda artística
brasileira no final da década de 1950 |
Ana Paula França Carneiro da Silva
Conversas em exposição: sentidos da
224
Imagens migrantes | Janaina Garcia
COLABORAÇÕES
O Ateliê livre de gravura do MAM-Rio
1959/1969: projeto pedagógico de
atualização da linguagem | Maria Luisa
Luz Tavora
Exercícios estéticos de ampliação de espaço
e liberdade | Maria Luiza Tristão de Araújo
A estética fenomenológica de MerleauPonty | Rosa Werneck
A utopia expressionista de Kandinsky |
Sheila Cabo Geraldo
Instauração: um conceito na filosofia de
Goodman | Noéli Ramme
A ironia e suas estratégias na obra de
Cildo Meireles | Felipe Scovino
Arte contemporânea brasileira nas fronteiras
do pertencimento | Marcelo Campos
Off register: o retrato por Andy Warhol
| Fernanda Lopes Torres
Universos paralelos: Paul Klee e Mira
Schendel | Beatriz Rocha Lagoa
Compreender é julgar | Entrevista de
Danièle Cohn a Glória Ferreira e Cezar
Bartholomeu
HOMENAGEM Jean Baudrillard –
enigmas e paradoxos da imagem na
era do simulacro | Rogério Medeiros
REEDIÇÃO Modelos europeus na pintura
colonial | Hannah Levy
TEMÁTICAS
Gênese de uma pintura de Paul Gauguin:
manifesto e auto-análise de um pintor |
Dario Gamboni
Buren sobre Ryman, Moritz sobre
Winckelmann: a crítica constitutiva da
história da arte | Roland Recht
Estúpida | Yve-Alain Bois
Tornar o real .... | Entrevista com Iole de Freitas
ARTIGOS
Como se existisse a humanidade | Marisa
Flórido Cesar
Como fazer cinema sem filme? | Livia Flores
As narrativas fotográficas de Marcel
Gautherot: estudo visual do guerreiro
alagoano e do bumba-meu-boi
maranhense | Patrícia Pereira Peralta
Cotidiano e cultura no Rio de Janeiro
na década de 1950: os cinejornais da
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
Arte e política | Ana Mendieta
Táticas para viver da adversidade. O
conceitualismo na América Latina | Mari
Carmen Ramírez
Francastel e Panofsky: o espaço como
problema | Jean Duvignaud
PÁGINA DUPLA Carlos Murad.
RESENHAS
O documentário de Eduardo Coutinho:
cinema, televisão e vídeo | Beatriz Pimenta.
Auto Retrato - exposição na Fundação
Serralves | Márcia Valéria Teixeira Rosa
Manet: uma mulher de negócios, um almoço
no parque e um bar | América Cupello
O fim da história da arte | Mauro Trindade
Escritos de artistas-anos 60/70 | Isabela Pucu
Arte & Ensaios 14, 2007*
Edição Especial - Correspondência
Transnacional
Livros, botes e pássaros | Sutapa Biswas
entrevistada por Michael Asbury
COLABORAÇÕES
Longe ou perto demais para saber do
que se trata | Moacir dos Anjos
Sombras / Shadows | Michael Asbury
A re-locação da autenticidade e os
dilemas transnacionais | Oriana Baddeley
O sonho americano (sonhos que o
dinheiro pode comprar) - Notas sobre o
inter-nacionalismo na cultura moderna
| Guilherme Bueno
conversa inacabada entre Vasif Kortun
e Cuauhtémoc Medina | Cuauthémoc
Mediria e Vasif Kortun
Kosuth com Freud – Imagem, psicanálise
e arte contemporânea | Tânia Rivera
DOSSIÊ CORRESPONDÊNCIAS
Formalismo e Modernidade | Guilherme Bueno
Introdução | Malu Fatorelli
Lances de Hubert Damisch. Pensando a
arte na história | Ernst van Alphen
Carta à mãe | Édouard Manet
Carta a Anita Malfatti | Mário de Andrade
Carta à família | Mário Pedrosa
Carta a Mira Schendel | Vilém Flusser
Carta a Hélio Oiticica | Lygia Clark
Uma conversa com José Damasceno |
Sandra Vieira Jürgens
Por um último Ring-Gespräch | Catherine
Bompuis
Da prática da arte às outras práticas. O
papel da arte na produção de realidade
| Luciano Vinhosa
Carta a Lygia Clark | Hélio Oiticica
Brígida Baltar - Conversas por e-mail
com Amal Saade e Christine Lemke,
2001 | Brígida Baltar
HOMENAGEM Linguagens Visuais –
10 anos
DOSSIÊ Instituições de arte no Brasil –
relatos de experiências | Interface
PÁGINA DUPLA David Medalla | Lúcia
Nogueira
REEDIÇÃO Salão de 1879 | Ângelo Agostini
RESENHAS
TEMÁTICAS
l shall be the tropical sun | Suzana Vaz
Os espaços discursivos da fotografia |
Rosalind Krauss
DoubtfuI Strait um modelo da celebração
da incerteza | Joanne Harwood
Entrevista a Harald Szeemann | Carolee Thea
Diálogos espaciais: os derramamentos
de caramelos de Felix Gonzalez-Torres
| Deborah Cherry
Tópicos sobre coletivos de artistas |
Daniela Mattos/Alexandre Sá
Arte e política à margem do
multiculturalismo | Fernando Cocchiarale
London, London | Cristina Salgado
Abertura da cilada: a exposição pósmoderna e Magiciens de la Terre |
Thomas Mc Evilley
Questionando a necessidade de circular;
fisicamente. Um encontro com Judy
Freya Sibayan | ErikaTan
Um meio à procura de sua forma as
exposições e suas determinações |
Katharina Hegewich
Capítulos à parte | Glória Ferreira
Este Corpo é Todo Poros | Milton Machado
Vicissitudes do valor da anglicidade em
Hamburgo do século 19: Nikolaikirche, a
prefeitura e o sistema de água e esgoto
| Toshio Watanabe
Mira Schendel: rumo a história de um
diálogo | Isobel Whitelegg
Goeldi: um expressionista nos trópicos
| Paulo Venancio Filho
Justamente o contrário | Carlos Zilio
Gostava da arte que produziam e
gostava deles como pessoas. Assim, nos
tornamos amigos | Entrevista de Guy Brett
a Linda Sandino
TEXTOS DE REFERÊNCIA
Introdução de Information | Kynaston
McShine
Rumo a uma nova localidade: as bienais
e a “arte global” | Hou Hanru
Nosso Bauhaus, barraco dos outros |
Rasheed Araeen
Modernos fora dos eixos | Paulo Sergio
Duarte
Da arte nacional brasileira para a arte
brasileira internacional | Tadeu Chiarelli
O tango local e a dança global: Uma
Arte & Ensaios 13, 2006
Que história é essa?! | Entrevista com
Carlos Zilio
Do indício ao índice ou da fotografia ao
museu | Daniel Soutif
PÁGINA DUPLA Simone Michellin
Os pintores de letras: um olhar etnográfico
sobre as inscrições vernaculares urbanas
| Marcus Dohmann
RESENHAS
Art since 1900 | Alexandre Sá
Dada | Cezar Bartholomeu
Po é t i c a ( s ) d o s F l u x u s : a l g u m a s
considerações | Daniela Mattos
Marcia X: clichês | Felipe Scovino
Tropicália: uma revolução na cultura
brasileira | Michael Asburry
Escritos de Artistas nos Anos 60/70 |
Patricia Guimarães
Prague Biennale 2 Expanded painting /
acción directa | Pedro Meyer
Big Bang: destruição e criação na arte
do século 20 | Sheila Cabo
Le mouvement des images - Art et
Cinéma | Valéria Faria
A importância do uso na preservação da
obra de arquitetura | Cyro Corrêa Lyra
Arte & Ensaios 12, 2005*
ARTIGOS
A obra de arte na era de sua reprodutibilidade turística | Alexandre Sá
O belo e o sublime românticos nas
paisagens de mundos virtuais online |
Martha Werneck
Esplendor e sigilo: o Brasil na cartografia
portuguesa dos séculos XVI e XVII |
André Monteiro de Barros Dorigo
Read Me, Ready Me: a caixa preta do
ser em tempo real | Ricardo Maurício
COLABORAÇÕES
Salões Oficiais de Arte no Brasil – um
tema em questão | Angela Ancora da Luz
Tornar real a realidade | Entrevista com
Carmela Gross
S U M ÁRI O DAS E DI ÇÕ E S AN TE RI O RE S
225
ARTIGOS
Luz e letra | Carlos Augusto Nóbrega
HOMENAGEM Dossiê Lygia Pape
Não-habitável como poética de espaço
| Regina de Paula
Proust e a fotografia | Cezar Bartholomeu
TEMÁTICAS
Experiência crítica – textos selecionados:
Ronaldo Brito | Fernanda Lopes
O impulso alegórico: sobre uma teoria
do Pós-Modernismo | Craig Owens
Os artistas contemporâneos e a filosofia
| Glória Ferreira
A atividade fotográfica do pósmodernismo | Douglas Grimp
Sobre um lugar – Torreão | Malu Fatorelli
A visualização de dados como uma nova
abstração anti-sublime | Manovich
Imagens e signos de Santa Teresa:
movimentos artísticos e culturais de um
bairro carioca | Luciane de Siqueira
A figura nos concursos de magistério |
Ivan Coelho de Sá
Translocalidade | Giordani Maia
Imagem fotográfica na República Velha:
um estudo sobre a coleção Rondon do
Museu Histórico do Exército e Forte de
Copacabana | Elizabete Mendonça
A pintura histórica de Antônio Parreiras:
a temática do herói nacional e o
imaginário republicano | Reginaldo da
Rocha Leite
COLABORAÇÕES
Escarificações na pele ingênua da arte
| Guilherme Vaz
A instalação em situação | Stéphane
Huchet
Retrato de Dorian Gray – uma pintura
in progress | Ligia Canongia
O momento que dura para sempre |
Sean Scully
Semiótica aplicada à análise da imagem:
a corte no Rio de Janeiro nos desenhos
de Joaquim Cândido Guillobel | Rosana
Ramalho
Bellevue II: uma visão não tão bela
da sociedade de consumo | Antônio
Sena Batista
Imaginário brasileiro e zonas periféricas
– algumas proposições da sociologia da
arte | Valéria de Faria Cristofaro
O Pensamento Crítico Brasileiro | Viviane
Matesco
Curadorias do fluxo – os desafios do
intercâmbio colaborativo e do espaço
das novas mídias | Sarah Diamonds
Tempos subjetivos & tempos objetivos
da fotografia | François Soulages
Arte na vanguarda da Net: O futuro será
úmido! | Roy Ascott
Academia Imperial de Belas Artes no
Rio de Janeiro: revisão historiográfica e
estado da questão | Sonia Gomes Pereira
Born to be Famous: a condição do jovem
artista, entre o sucesso pop e as ilusões
perdidas... | João Fernandes
Riegl e Benjamin: arte, história e teoria
moderna | Sheila Cabo Geraldo
Emprestar a paisagem – Daniel Buren e
os limites críticos | Glória Ferreira
E Agora? | Ricardo Basbaum
Revista de Art[istas] dos anos 1968-79
| Sylvie Mokhtari
COLABORAÇÕES
O que é um artista (hoje)? | Nicolas
Bourriaud
Sinceridade como conceito | Christine
Tichatschek
A reinvenção do realismo como arte do
instante | Luiz Renato Martins
Linguagem internacional? | Gerardo
Mosquera
REEDIÇÃO Belas-Artes | Gonzaga Duque
Atrocidades maravilhosas: ação
independente de arte no contexto
público | Alexandre Vogler
HOMENAGEM Dossiê Lucio Costa
Adrian Piper | Cyríaco Lopes
TRADUÇÕES
REEDIÇÃO Propósito experimental |
Jorge de Oteiza
TEMÁTICAS
ENCARTE Livia Flores
A idéia de obra-prima na arte
contemporânea | Arthur C. Danto
Movimento aleatório disciplinado |
Entrevista com Abraham Palatnik
RESENHAS
Quando a forma se transformou em
atitude – e além | De Duve
ARTIGOS
O quarto iconoclasmo e outros ensaios
hereges | Ricardo Cristofaro
Imagem digital e interatividade:
considerações sobre o estatuto de obra
e autoria nas representações expostas
na rede | Yoko Nishio
Vítor Meireles e a tradição pictórica |
Alexandre Linhares Guedes
Ações pontuais no espaço telemático:
rádio e webrádio | Romano
Aloisio Magalhães: o artista, a arte e
o design brasileiros na óptica de seus
contemporâneos | Isis Fernandes Braga,
Isis Braga
Entrevista a Carolee Thea | Dan Cameron
O ensino da arte conceitual | Charles
Harrison João Fernandes
Forma e Imagem Técnicas na Arte do Rio
de Janeiro: 1950-1970 | Fernanda Lopes
ENCARTE Regina de Paula
Zoom out | Glória Ferreira
RESENHAS
Lance 36 | Romano
O artista em meio à era do indivíduo |
Rosza vel Zoladz
Fronteiras: arte, crítica e outros ensaios
| Guilherme Bueno
Lygia Pape – Entre o Olho e o Espírito |
Viviane Matesco
O Meio Como Ponto Zero – metodologia da
pesquisa em artes plásticas | Malu Fatorelli
Pensando a Arte na Escola | Marcelo
Campos
Revistas de arte: biopolíticas em mídias
gráficas | Newton Goto
COLABORAÇÕES
ARTIGOS
Depois de História do Futuro (arte) e sua
exterioridade | Milton Machado
O espaço de representação e as
representações do espaço | André Amaral
Lygia Pape: gravuras ou antigravuras?
Deslocamentos possíveis da tradição |
Maria Luisa Luz Tavora
A Vontade Poética no Diálogo com os
Bichos: o ponto de chegada de uma arte
participativa no Brasil | Felipe Scovino
ARTIGOS
A (outra) Arte Contemporânea Brasileira:
intervenções urbanas micropolíticas |
Fernando Cocchiarale
Angelo Agostini: a arte de levar a sério um
trabalho bem-humorado | Octavio Aragão
Cildo Meireles: A indústria e a poesia |
Moacir dos Anjos
COLABORAÇÕES
Galeria do Poste Arte Contemporânea:
estudo etnográfico sobre arte e
inventividade no espaço urbano | Laura
Martini Bedran
Sub specie ludi: Função e estrutura de
uma “arte lúdica” | Marion Hohlfeldt
ENCARTE Milton Machado
Um copo de mar para navegar | Luisa
Duarte
RESENHAS
Interações, hibridações e simbioses |
Carlos Augusto Moreira da Nóbrega Guto
Nóbrega
Marcel Duchamp – uma biografia |
Alexandre Sá
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
Desenho, composição, tipologia e
tradição clássica – uma discussão sobre
o ensino acadêmico do século 19 |
Sonia Gomes
Duas visões sobre a Pop Art: Clement
Greenberg e Arthur Danto | Fátima Couto
História, Antropologia e Arte: uma
proposta de abordagem transdisciplinar
Sociologia visual: seguindo o olhar de
Robert Frank | Howard Becker
Circuito das heliografias: arte conceitual
e política na América Latina | Mari
Carmen Ramírez
RESENHAS
Regionalismo | François Loyer
O trágico tematizado no imaginário |
Rosza W. vel Zoladz
Palatnik: a luz e o movimento no
pioneiro da fusão arte e tecnologia no
Brasil | Felipe Scovino
DOSSIÊ Soto
A função crítica da arte entre recusa e
indeterminação | Serge Bismuth
Jean-Luc Nancy / Chantal Pontbriand,
uma conversa | Chantal Pontbriand
A Semiologia da Imagem Francesa e o
Contexto Brasileiro | Rogério Medeiros
Superfícies em distúrbio | Entrevista com
Eduardo Sued
O debate crítico e os problemas estéticos
| Rainer Rochlitz
Arte híbrida? Um olhar por trás das
cenas globais | Hans Belting
O espaço moderno | Guilherme Bueno.
O longe e o perto como distâncias
contemporâneas | Malu Fatorelli
O pós-artista | Peter Plagens
TRADUÇÕES
L’artiste en personne | Glória Ferreira
REEDIÇÃO Sobre pintura moderna |
Ruben Navarra
Arte & Ensaios 9, 2002**
O lugar que vejo | Entrevista com
Antonio Dias
O ateliê do artista | Marisa Flórido Cesar
Projeto Urubu na Ilha do Fundão |
Gisele Ribeiro
Entre a alegoria e o deleite visual: as
pinturas decorativas de Eliseu Visconti
para o Theatro Municipal do Rio de
Janeiro | Ana Maria Tavares Cavalcanti
COLABORAÇÕES
O feminino na arte | Viviane Matesco
Expanded Body. Variations V e a
conversão das artes na era eletrônica
| Marcella Lista
Uma história do espaço – de Dante à
internet | Malu Fatorelli
Arte & Ensaios 10, 2003*
Quando (onde) a obra acontece | JeanMarc Poinsot
Arte e objetidade | Michael Fried
A vanguarda como software | Romano
A Exposição do Centenário e o meio
arquitetônico carioca do início dos anos
20 | Ruth Nina Veira Fereira Levy
O artista como etnógrafo | Hal Foster
O imaginário e seus contextos de
referência no Brasil | Rosza W. vel Zoladz
Barnett Newman: Pintura escrita /
escrita pintura | Mel Bochner
Arte & Ensaios 11, 2004
Arte e Vida no Século XXI e Redes
Sensoriais | Valéria de Faria Cristofaro
Chega de futuro? Arte e tecnologia
diante da questão expressiva | Paulo
Sergio Duarte
Milton Dacosta: vinte anos de pintura
| Mário Pedrosa
REEDIÇÕES
Crítica em tempos de guerra: Ruben
Navarra e os anos 40 | Vera Lins
TEMÁTICAS
226
A peregrinação de Watteau à ilha do
amor | Rogério Medeiros
para o tema da “natureza exuberante”
nas artes brasileiras | Helio Vianna
Terra e museu – local ou global? | Guy Brett
A rede de Vogel: armadilhas como obras
de arte e obras de arte como armadilhas
| Alfred Gell
HOMENAGEM Paulo Houayek. Dia-a-dia
| Carlos Zilio
RESENHAS
Arte & ensaios 8, 2001**
O cotidiano digital | Marcelo Simão de
Vasconcellos
As coisas vêm chegando | Entrevista com
Aluísio Carvão
O fotógrafo e o historiador ilustrado |
Cezar Bartholomeu
ARTIGOS
Giulio Carlo Argan, Clement Greenberg:
a teoria para a arte moderna como
projeto | Guilherme Bueno
A construção de um imaginário
moderno: as capas da Editora Civilização
Brasileira (1960-1975) | Amaury
Fernandes da Silva Junior
O pêndulo do sentido: distâncias
indiciais e oscilações alegóricas | Ricardo
Maurício
“Como todos os outros”: arte e estética
na antropologia modernista | Kátia Maria
Pereira de Almeida
As diferenças culturais | Luciane de Siqueira
Mestre Valentim | Anna Maria Tavares
Cavalcanti Volpi
Ivan Sá e Vera Hermano | Flávio de Carvalho
Alexandre Pessôa. The Pleasure of
Beholding | Marcia Campos
Zona Franca | Adriano Melhem de Mello
Voici | Ítalo Bruno, Zalinda Cartaxo e
Malu Fatorelli
De onde vem e para onde vai o fio da
faca (construtiva) | Luiz Renato Martins
As instituições da arte | José Luiz da
Silva Nunes
Arte & Ensaios 7, 2000**
S U M ÁRI O DAS E DI ÇÕ E S AN TE RI O RE S
227
Pano-de-roda | Entrevista com Cildo Meireles
O mais novo Laocoonte | Guilherme Bueno
O que vemos, o que nos olha | Renata Camargo
Mesa-redonda: a recepção dos anos 60
| Tradução Carlos Feferman · Revisão Paulo
Venancio Filho
Da polifonia poético-visual nas artes
armoriais | Daniel Bitter
Cibercultura: para uma compreensão
do contemporâneo | Etinete A. do
Nascimento Gonçalves
Justificação de um gesto | Edwiges da
Silva Henriques
A psique exterior | Luis Andrade
A imagem da cidade | Luciane de Siqueira
Klaxon: um percurso de leitura | Marcus
Vinícius de Paula
Nosso século 21 – notas sobre arte,
técnica e poderes | Laura Bedran
A arte no contexto do lugar | Arthur
Leandro/Alexandre Vogler
A propósito do imaginário e suas
representações culturais | Rosza W.
vel Zoladz
Estampas Eucalol: imagem, cultura
e nostalgia | Regina Lucia Schiefler da
Cunha Tessis
FARMAX – passeios na densidade |
Fabiana Izaga
A crítica capaz | Luis Andrade
Picasso e a história | Paulo Venancio Filho
O humanismo lírico de Guignard |
Adriano Melhem de Mello
A herança da arte | Resenha Muriel Caron
Tradução Fabiana Santos
ARTIGOS
Anna Bella Geiger: inquietações no corpo
fragmentado | Maria Luisa Luz Tavora
RESENHAS
A cultura do papel | Paula Wienskoski
A noção de estilo | Guilherme Bueno
Os labirintos do imaginário. Influências
estéticas no cinema de Glauber Rocha
| Rogério Medeiros
Arte & Ensaios 6, 1999**
Les raisons du paysage | Lenice da
Silva Lira
Projeto MN.02: ensaio no espaço de
telecomunicações da cidade do Rio de
Janeiro | Simone Michelin
Entrevista com Amilcar de Castro
Imagem e idéia – a propósito da
experiência artística | Angela Ancora da Luz
ARTIGOS
Clássico anticlássico | Rosana de Freitas
Base Central Cão Mulato viralata em
processo | Edson Barrus
Limites do moderno, o pensamento
estético de Mário de Andrade | Marcus
Vinicius de Paula
Corpos escritos. Paisagem, memória
e monumento: visões da identidade
carioca | Margareth da Silva Pereira
(?)? Pergunta dentro da pergunta |
Ricardo Basbaum
Considerações sobre a escultura urbana
de Richard Serra | Renato Rodrigues
Ecco: uma experiência de arte a distância
| Ricardo Maurício
REEDIÇÃO
Formação do artista no Brasil | José
Resende
Entrevista | Paulo Mendes entrevista
João Fernandes
TRADUÇÕES
Uma perspectiva sociológica sobre a
continuidade entre as práticas cotidianas,
as atividades artísticas e a sensibilidade
estética | Jean Pierre Silvestre
A arte da natureza | Gilles A. Tiberghien
Procedimentos alegóricos: apropriação
e montagem na arte contemporânea |
Benjamin H. D. Buchloh
Arte sem paradigma | Arthur C. Danto
RESENHAS
Um olhar aprisionado na imagemmáquina – as novas tecnologias virtuais
de transmissão de imagens e sua ação
diluidora de uma visão do real | Elizabeth
C. Paiva Silva
228
Douane-Zoll | Jean-Claude Lebensztejn Tradução
Glória Ferreira · Revisão Antonio Guimarães
Carybé, obra e tradição: o universo
mítico afro-brasileiro | Marcelo Campos
O crítico Walter Benjamin | Beatriz
Rocha Lagôa
Le primitivisme dans l’art moderne |
Rosza W. vel Zoladz
A dobra e a diferença: colagens de
Picasso | Marisa Flórido Cesar
Arte & Ensaios 5, 1998**
O mundo em metamorfose. Análise
semiológica de Paisagem Brasileira, de
Lasar Segall | Rogério Medeiros
Entrevista de Lygia Pape a Paulo Venancio
Filho, Glória Ferreira e Ronald Duarte
Identidade e estratégias do gosto
artístico no Rio de Janeiro setecentista |
Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira
DOSSIÊ Lygia Pape
“Fazer de dois um multiplica o rir”.
Depoimentos sobre Lygia Clark em Paris
| Glória Ferreira
Arte com filtro – XXIV Bienal Internacional
de São Paulo | Roberto Conduru
As bienais – formatos abertos x
conteúdos fechados. Reflexões sobre
identidade e função das bienais | Luiz
Guilherme Vergara
Hélio Oiticica e a morte do cinema |
Cláudio Dacosta
Quase Cinema, Block-Experiments in
Cosmococa CC 3: Maileryn. A fragrância
narcótica da arte | Luis Andrade
Do caráter mercantil, monetáro e, ainda
assim, autônomo do objeto de arte |
Moacir dos Anjos
REEDIÇÃO Jorge Guinle: Raciocínios de
um pintor | Jorge Guinle Filho
TRADUÇÕES
Narciso barroco. Hubert Damisch · Tradução
Maria Flórido · Revisão Glória Ferreira
A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011
ARTIGOS
Arte em explosão: rompimento dos
limites entre as categorias artísticas |
Renata Wilner
Da arte: sua condição contemporânea
| Luciano Vinhosa Simão
Materialidade Situs: um recorte espacial
| Ronald Duarte
Artista, formação do artista, arte
moderna | Carlos Zilio
O ensino de arquitetura no Brasil no
século 19 – uma contribuição ao estudo
do tema | Cybele V.N. Fernandes
Claude Monet quer que a catedral se
torne uma esponja de luz | Maria Luisa
Luz Tavora
História, cultura periférica e a nova
civilização da imagem | Paulo Venancio Filho
Vitalidade e socialidade da arte: a
estética de Guyau | Annamaria Contini
Reinterpretar a modernidade | Entrevista
de Thierry De Duve a Glória Ferreira e
Muriel Caron
Kant depois de Duchamp | Thierry De Duve
RESENHAS
Sob o domínio da imagem banal |
Elizabeth Paiva
Compulsive Beauty | Monica Mansur
L’informe, mode d’emploi | Glória Ferreira
A cerâmica como processo. Uma
experiência prática no Centro Integrado
de Cerâmica EBA/UFRJ | Marcos Varela
A cerâmica como elemento aglutinador
para três domínios diversos. O barro, a
madeira, a informática | Isis Braga
Carta de Lord Chandos, Hugo Von
Hofmannsthal | Paulo Houayek
A cidade de terra | Amauri Ferreira Macedo
Arte & Ensaios 4, 1997**
Fazer cerâmico. Fazer urbano, fazer
imaginário | Andréa Pessôa Borde
A influência do computador na arte
contemporânea | Luiz Antonio Fernandes Braga
Primitivismo no Les Demoiselles
d’Avignon: universalidade na tradição
| Lígia Dabul
Bastide, a arte e os outros | Jean
Duvignaud
Umbandacarnaval | Luiz Felipe Ferreira
Cela e mundo – o conflito de Mondrian
na tridimensionalidade | Cristiane
Monteiro Flores
Exposições universais: duas diferentes
abordagens em obras francesas recentes
| Ruth Vieira Ferreira Levy
A leitura visual de Viva Jacaré. Uma
ilustração cinematográfica de Rui de
Oliveira | Marisa de Oliveira Mokarzel
O cinema em cartaz. Um estudo de
caso: Fernando Pimenta | Carlos Eduardo
da Silva Valente
“Teapot Po Ris Malevich” | Piedade
Epstein Grinberg
Arte & ensaios 1, 1994**
Entrevista com Carlos Zilio
Formação do artista plástico no Brasil
– o caso da Escola de Belas Artes |
Carlos Zilio
O hedonismo rococó através da pintura de
temática carnavalesca |Ivan Coelho de Sá
Mãos na pedra – a repetição do gesto
primevo na Toca da Argila, região
arqueológica da Central, BA | Angela Rabelo
Grupo Frente e o experimentalismo
emergente de Lygia Pape, Lygia Clark e
Hélio Oiticica | Eileen M.F. Cunha
Um sonho que se mostra – a criação da
Casa do Pontal | Maria Angela S. Mascelan
Arte & ensaios 3, 1996**
Os “Tecelares” de Lygia Pape | Maria
Clara Amado Martins
Os abebés. Os espelhos do ventre |
Elena Maria Andrei
São Miguel Arcanjo. Duas esculturas
policromadas | Fátima Justiniano
A cidade e a arte contemporânea |
Anne Cauquelin
Decadentismo e maneirismo em relações
de personalidade | Francisca Maria Teresa
dos Reis Baltar
O objeto industrial na linguagem
cinematográfica - Um estudo da
formação da cultura de massa perante
o objeto industrial, através do cinema |
Vicente Cerqueira
A expressão da natureza na obra de Paul
Cézanne | Marcelo Duprat Pereira
Arte & ensaios 2, 1995**
Sobre Celeida | Helena Severo
Celeida de Barro | Regina Célia Pinto
Um módulo vida na Universidade Federal
do Rio de Janeiro | André Bazzanella
S U M ÁRI O DAS E DI ÇÕ E S AN TE RI O RE S
229
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE LETRAS E ARTES
ESCOLA DE BELAS ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS
O Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais destina-se a proporcionar formação cultural e
artística, ampla e aprofundada em níveis de mestrado e doutorado, desenvolvendo a capacidade
de ensino e pesquisa no campo teórico e do fazer artístico.
Áreas de Concentração
História e Teoria da Arte
Teoria e Experimentação em
Arte
Linhas de Pesquisa
História e Crítica da Arte
(HTA)
Imagem e Cultura (HTA)
Linguagens Visuais (TEA)
Poéticas Interdisciplinares
(TEA)
Corpo Docente Permanente
Amaury Fernandes
Ana Cavalcanti
Ângela Leite Lopes
Carlos Alberto Murad
Carlos Augusto Nóbrega
Carlos Azambuja
Carlos Terra
Celso Pereira Guimarães
Cybele Vidal Neto Fernandes
Helenise Guimarães
Livia Flores
Marcus Dohmann
Maria Cristina Volpi Nacif
Maria Luiza Fragoso
Maria Luisa Tavora
Marize Malta
Milton Machado
Paulo Venancio Filho
Rogério Medeiros
Tadeu Capistrano
Simone Michelin
Sonia Gomes Pereira
Colaboradores
Angela Ancora da Luz
Cezar Tadeu Bartholomeu
(LV)
Doris Kosminsky (PI)
Felipe Scovino (LV)
Giselle de Carvalho Ruiz (PI)
Glória Ferreira
Maria Clara Amado (HCA)
Rosa Werneck
Publicações
Revista Arte & Ensaios
Caderno de Pós-Graduação
Anais do Encontro do
Programa de Pós-Graduação
Para envio de colaborações, consultar www.eba.ufrj.br/ppgav/arte&ensaios
ou pelo e-mail [email protected]
Endereço para correspondência
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais | EBA/UFRJ
Av. Pedro Calmon, 550 / sala 704 | Prédio da Reitoria | Cidade Universitária | Ilha do Fundão
Rio de Janeiro | RJ | Brasil | 21.941-901 | Tel.: (21) 2598 1643
www.eba.ufrj.br/ppgav/arte&ensaios | [email protected]
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S U M ÁRI O DAS E DI ÇÕ E S AN TE RI O RE S
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