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Arte &E nsai os ae Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais / EBA / UFRJ ano XVIII · n. 23 · novembro 2011 Arte & Ens ai os ae Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais / eba / ufrj. Qualis A2 – CAPES Apoio CNPq e CAPES UFRJ · Universidade Federal do Rio de Janeiro Reitor | Carlos Antônio Levi da Conceição Decano do Centro de Letras e Artes | Flora De Paoli Faria Diretor da Escola de Belas Artes | Carlos Gonçalves Terra Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais | Maria Cristina Volpi Nacif Editores Responsáveis Cezar Bartholomeu Maria Luisa Tavora Comitê Editorial Carlos Alberto Murad Maria Luisa Tavora Milton Machado Rogério Medeiros Conselho Editorial Amaury Fernandes Ana Cavalcanti Angela Ancora da Luz Angela Leite Carlos Murad Cezar Bartholomeu Dóris Kosminsky François Soulages (Université de Paris VIII) Georges Didi-Huberman (EHESS/Paris) Gerardo Mosquera (New Museum of Contemporary Art NY) Giselle Ruiz Glória Ferreira Guto Nóbrega Guy Brett (Curador independente Inglaterra) Jean-Claude Lebensztejn (Université de Paris 1) Livia Flores Marcus Dohmann Maria Luisa Tavora Maria Luiza Fragoso Marize Malta Milton Machado Paulo Venancio Rogério Medeiros Sonia Gomes Pereira Tadeu Capistrano Editores Executivos Equipe Editorial Capa Analu Cunha Ana Mannarino Carla de Cicco Claudia Bakker Denise Lopes Gabriela Mured Gloria Costa Mariana Estellita Marina Menezes Roberta Barros Ronald Duarte Viviane Viana Milton Machado Revisão Maria Helena Torres Abstracts Elvyn Marshall SUmário 5 Apresentação ENTREVISTA 6 O que eu quero que você veja é a sombra Milton Machado ARTIGOS 40 Espetáculos de civilidade: modernidade e pós-modernidade no papel-moeda brasileiro Amaury Fernandes 52 Festas reais em Portugal e no Brasil Colônia: organização, sentido, função social Cybele Vidal Neto Fernandes 64 A imersão no panorama de Victor Meirelles Cristina Pierre de França 74 O ticumbi: imagens e memória da Vila de Itaúnas Luciana Alvarenga 82 De quantas partes se faz uma quimera maquínica? Bete Esteves 94 Sob palavras e imagens: proposição poética e contextualização cultural de um dispositivo digital de artemídia Mano Vianna Agradecimentos Bárbara Spanoudis Inês de Araujo Floriano Romano Gabriel Amorim Conchita Morgado Elizabete Marin Ribas Louise Ganz Luiza Vidal Luis Camillo Osoris MAC USP Maria Isabel Branco Marisa Florido Priscila Plantarida Vanessa Santos Projeto gráfico Gloria Costa Ronald Duarte Mary Paz Guillén Colaborações 104 Robert Morris e o estúdio do artista Kim Paice Semestral 118 BARTHOLOMEU, Cezar, TAVORA, Maria Luisa (org.) Arte & Ensaios n. 23. Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais/ Escola de Belas Artes, UFRJ, novembro de 2011. 224 p. Teatro de imagens e autobiografia: espetáculo? Gabriela Lírio Gurgel Monteiro 128 As Exposições Gerais da Academia de Belas Artes: teatro de corte e formação de um mercado de artes no Rio de Janeiro Leticia Squeff 138 Theon Spanudis Arte das formas e arte das formações ISSN - 1516-1692 1. Artes Visuais 3. Imagem e Cultura 2. História e Teoria da Arte 4. Linguagens Visuais I. Universidade Federal do Rio de Janeiro II. Título REEDIÇÃO APRESENTAÇÃO xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx 148 Além da crítica institucional Isabelle Graw 160 Representação, apropriação e poder Craig Owens 186 A função do ateliê Daniel Buren 196 Espetáculo, atenção, contramemória Jonathan Crary PÁGINA DUPLA 210 Analu Cunha RESENHAS 212 Heloisa Schneiders da Silva obra e escritos Glória Ferreira 213 No contemporâneo: arte e escritura expandidas Ana Mannarino 214 Gerhard Richter, Sinopse Alvaro Seixas 216 José Resende Felipe Scovino 217 Ana Linnemann, Cartoon Vera Beatriz Siqueira 220 Francis Alÿs - A Story of Deception Doris Kosminsky 222 Sumário das edições anteriores TEMÁTICAS O QUE EU QUERO QUE VOCÊ VEJA É A SOMBRA Milton Machado Entrevista de Milton Machado a Arte & Ensaios – com a participação de Tânia Rivera, Cezar Bartholomeu, Livia Flores, Marina Menezes, Rodolfo Caesar, além de Glória Ferreira e Guilherme Bueno, que enviaram perguntas por e-mail – no ateliê do artista em 14 de outubro de 2011. Cezar Bartholomeu Acho interessante começar pensando sua relação com a arquitetura. Milton Machado Minha história curricular é a seguinte: na minha infância, um tio da Marinha, que era capitão de mar e guerra, me trazia brinquedos importados, carrinhos com controle remoto e tudo o mais. Por influência dele, eu quis ser da Marinha também para poder viajar, ter coisas importadas, mas para isso tinha que ser militar, e eu não tinha a menor vocação. Tomei um gosto por montagens, por engenharias, a partir de um brinquedo francês que ele me trouxe chamado Mecano, fantástico, com o qual você monta estruturas, helicópteros, rodas-gigantes. Eu brincava com esse brinquedo diariamente, montava coisas incríveis, às vezes fugia do figurino dos manuais, fazia coisas que eu mesmo inventava, minhas próprias máquinas. Então eu achei que estudar engenharia seria, além de uma coisa de geração, vocação. Fiz um ano de engenharia na PUC, em 1964. No meio do ano, comecei a sentir certa dificuldade com geometria analítica no espaço. Achava que era possível aquilo fazer sentido, mas para mim não fazia, era muito além de minhas possibilidades, de minha realidade construída a Mecano. Some-se a isso o fato de eu passar muitas das aulas jogando boliche em uma pista em frente à faculdade. Comecei a sentir uma dificuldade imensa, primeiro porque era um universo muito diferente do meu próprio círculo tijucano – na PUC, muitos alunos foram do Santo Inácio, eu era do Aplicação, chegavam lá de BMW, Alpha Romeo, e eu de carona num Fusca. Falei então para meus pais, que eram muito compreensivos: quero mudar de curso. Minha mãe consultou um psicólogo que me aplicou um teste vocacional e apontou que seria aconselhável eu fazer arquitetura. Que, aliás, era uma atividade que meu pai exercia, mesmo sem ser arquiteto formado. Fiz vestibular para arquitetura e fiquei até o fim, formeime arquiteto. Fundei com Antônio José, que é meu amigo até hoje, o cineclube da FAU, que dirigimos com nosso entusiasmo típico de Geração Paissandu, apesar da interferência do diretor, que apagava a luz da faculdade inteira para nos impedir de mostrar os filmes, obrigando-nos a transferir nossas sessões para teatros da Zona Sul, o que acabou nos proporcionando maior visibilidade e publicidade. Foi um Kosuth Teórico objeto, cartões impressos, foto, verbetes década de 1980 6 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 E N TRE V I S TA | M I LTO N M ACH ADO 7 cineclube importantíssimo nos anos 60. Comecei a estudar cinema loucamente, vi montes de filmes e de A Esperança no Porvir, e começou a me procurar. Um ano depois ele estaria comprando os primeiros com isso não tinha muito tempo para assistir às aulas. Assistia a poucas aulas, mas participava de um trabalhos meus de sua coleção, e assim tudo começou, um pouco a minha revelia. Sintomaticamente, grupo de estudos extremamente dinâmico com colegas e com arquitetos, como Paulo Casé, com quem esse desenho se chama O Princípio do Fim. trabalhei por uns cinco anos. Tânia Rivera Grupo de estudos sobre o quê? em 1969? MM Sobre arquitetura, basicamente. Muitos de nós trabalhávamos com Paulo Casé e Luiz Acioli num MM Acho que só fui frequentar curso de arte quando fiz o doutorado na Inglaterra, se é que se pode escritório bastante dinâmico dos anos 60. Some-se a isso minha aproximação à música. Ainda na considerar um PhD Fine Arts um curso de arte, em que acabei escrevendo algo mais voltado para a filosofia. arquitetura eu já tocava um pouco de violão e comecei a estudar mais seriamente. Estudei sete anos Da Bienal de 1969 participei como estudante, um concurso internacional de escolas de arquitetura, em de violão clássico, de modo que acho que posso incluir a música como parte de minha formação. A que nossa equipe tirou segundo lugar, empatando com a da França. Nos anos 70, tive umas poucas FAU já funcionava no prédio da EBA, que não tinha EBA, que na verdade é uma intrusa. Tínhamos uma aulas de gravura em metal com Eduardo Sued. Mais tarde, início dos anos 80, já às voltas com a pintura, relação muito intensa com aquele edifício, porque virávamos noites lá fazendo projetos de arquitetura inscrevi-me no curso de Aluísio Carvão no MAM, pensando em travar com ele interlocuções mais teóricas, sobre pranchetas fantásticas desenhadas por Jorge Moreira, com armários individuais e equipamento mas logo saí quando ele descobriu, constrangido, que eu não era exatamente um iniciante, julgando perfeito, hoje tristemente sucateado. Apesar da distância, era um lugar que nos acolhia muito. Tínhamos que eu não teria nada a aprender com exercícios rudimentares que ele passava para totais iniciantes. professores incríveis, bons arquitetos atuantes, como o próprio Paulo Casé, Henrique Mindlin e vários Não me incomodava com isso, mas talvez não fosse mesmo necessária tal iniciação para usufruir da outros, pessoas bacanas. A atuação política no diretório, do qual eu era representante externo, também sabedoria dele, de pintor e gente fina. Para não perder o dinheiro da inscrição, transferi-me para o curso foi fundamental porque me fez participar de reuniões do DCE, da UME, da UNE. Então, minha vida era de serigrafia de Dionísio del Santo, que era genial, experiência da qual resultou uma única serigrafia isso, assistir a filmes, alguma militância, ir ao Museu de Arte Moderna; eu me lembro de exposições de com tiragem de 1/1. Aí ocorreu algo semelhante ao encontro com Carvão. Dionísio achou que, antes Genovese, de Ivan Serpa, Flavio Shiro, e tenho quase certeza de que era capaz de sentir o cheiro da tinta de me aventurar por caminhos mais experimentais e de pretender ambicionar uma linguagem própria, a óleo, que me inebriava. eu deveria “soltar o traço”. Os catálogos que então dei a ele causaram a mesma surpresa que causaram TR Isso foi em que ano mais ou menos? MM Eu entrei para a faculdade de arquitetura em 1965, me formei em 1970. O próprio fato de frequentar o MAM, de estudar cinema, estudar música, me fazia um peixe fora d’água na engenharia. 8 Glória Ferreira Você chegou a frequentar cursos de arte antes de participar da Bienal de São Paulo, em Carvão, mas Dionísio me acolheu de modo caloroso, e fui com ele até o final do curso. Não sei mais como se faz, mas tenho e gosto muito de minha única serigrafia de impressão única. TR Quando é que virou uma arquitetura sem medidas? Assim, quando me formei eu já estava completamente embananado, porque, além de estar entregue, MM Não sei se existe arquitetura sem medidas, mas sei que existe o arquiteto sem medidas, que tento como alguns nesta sala, à experiência psicodélica com relativa intensidade, havia a experiência musical, ser eu mesmo. É claro que existe arquitetura sem medidas, a arquitetura dos jardins de Canterel em sexual, drogal, entremeadas por sessões de análise de grupo e meditações budistas. Isso me deixava um Locus Solus, por exemplo. Uma arquitetura sem medidas é a que recorre a medidas marotas, peculiares. tanto perdido, literalmente perdido nas minhas tentativas de encontro. Em 1973, fascinado por Robert Os metros de Duchamp só servem para levantar construções fictícias, porque se você construir um Crumb e companhia, organizei e publiquei A Esperança no Porvir, uma revista de quadrinhos, o que edifício com os metros de Duchamp o edifício vai ruir. A denominação “arquiteto sem medidas” veio aumentou mais ainda a balbúrdia. Lembro que fui ao escritório do Casé tentar vender a revista, com História do Futuro. Esse é um trabalho que surgiu da vontade – ou eu poderia dizer desejo, fazendo todos ficaram chocadíssimos: mas você não é arquiteto? Acho que sim, eu devo ter dito, mas isso contraponto com a palavra desígnio, projeto –, do desejo de um arquiteto sem medidas preocupado não impede que eu faça revistas em quadrinhos… Assim que me formei em 1970 fui para o Instituto com a perda da unidade e sua recuperação. A primeira vez que me deparei com esse problema foi Villa Lobos, onde conheci Rodolfo Caesar; somos amigos desde então. Estudei um pouco de música quando li um livro escrito em 1938 pelo paleontólogo Alfredo Brandão, A escripta pré-histórica no no Villa Lobos, mas comecei a estudar mais seriamente com professores como Jodacil Damasceno, Brazil, em ortografia antiga. Ele especulava sobre a existência do Pangea, o continente único que foi Yan Gestzi, entre outros. Isso tudo gerava uma confusão danada, mas produtiva. De uma coisa eu não separado por cataclismos, terremotos, no período cambriano. Com o instrumental que eu tinha da fazia parte de jeito nenhum: ser artista, não havia o menor ... não sabia o que significava isso. Eu não arquitetura, dispus-me a projetar um sistema de pontes gigantescas que, progressiva e artificialmente, imaginava uma situação de artista expositor, embora eu desenhasse desde pequenininho. Mas houve iriam reconstituir a unidade perdida. Era um projeto originado de especulações científicas, lidas num uma circunstância que me deixou frente a frente com Gilberto Chateaubriand. Ele foi a uma galeria livro de paleontologia, mas que nasce de uma ficção, de um projeto utópico, imaginário, de minhas muito importante para a história das artes no Rio de Janeiro – Veste Sagrada, depois Central de Arte pontes simbólicas, sem medidas. É curioso, porque se a gente lê o Timeu, uma primeira referência que Contemporânea – para comprar uma coisa qualquer e se deparou com um desenho meu que é a capa Platão faz é à Atlântida, uma porção de terra ideal e fantástica, que desapareceu. Um “mito verossímil”, A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 E N TRE V I S TA | M I LTO N M ACH ADO 9 segundo Francisco Samaranch, na introdução da edição espanhola que tenho. Assim, o “arquiteto sem medidas” surge como o autor desse projeto inexequível, inútil, totalmente especulativo, mas do qual emerge a preocupação – e, aí sim, essa é uma medida que se pretende universal – de reconstituição da unidade. O trabalho começa, então, com desenhos muito rudimentares, cheios de erros aliás, ou melhor, imperfeições. A primeira série de desenhos de HF tem erros, por exemplo na direção em que o Módulo de Destruição caminha, entre outros pequenos detalhes gráficos, mas... TR Erros de continuidade? MM Sim. Erros na configuração das chamadas Cidades Mais-que-Perfeitas, por exemplo. Eu não conhecia ainda a conformação dessas cidades, que só depois fui descobrir, quando percebi que não estava lidando apenas com o desejo de construir pontes imaginárias, mas com um problema seríssimo, com a própria questão da unidade, uma recorrente idealidade ocidental, vide a busca de unidade do self, unidade do planeta, unidade da arte, unidade de Deus, essas coisas todas que perturbam nossa natureza fragmentária e que nos fazem aperfeiçoar cada vez mais a busca da coisa una. História do Futuro começa em 1978, justamente quando eu frequentava uma especialização em urbanismo na própria FAU, que não terminei. Mas no mesmo andar já funcionava o Instituto de Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional – IPPUR, que era excelente. E eu passei lá cinco longos anos fazendo mestrado em planejamento urbano. Minha dissertação chamou-se História do Futuro. Levei o trabalho para lá, causando certo problema para mim e para eles. Ouço dizer que os bibliotecários até hoje caminham com o volume História do Futuro para lá e para cá sem saber onde colocar. Aliás, tenho eu também a mesma dificuldade. TR É um Módulo de Destruição. MM Exatamente, é um Módulo de Destruição; eu diria até que minha passagem pelo IPPUR foi um pouco assim; talvez eu tenha causado certo rebuliço pelo fato de ter reivindicado minha presença lá não como arquiteto, mas como artista. Fiz questão de me identificar como artista e, na defesa da dissertação, tive que enfrentar a banca como tal. Fizeram-me uma pergunta que me colocaria numa situação difícil, porque me cobrava interlocuções com o planejador urbano. Algo que eu não era mesmo. E que os professores do curso também não eram. Respondi argumentando que não conhecia nenhum planejador urbano. Um economista, que aliás é um sujeito brilhante, Carlos Vainer, queria me colocar em exigência. Mas eu falei: não posso ter interlocução com quem não conheço, não conheço qualquer pessoa que seja planejador urbano, e nem vocês são. Meu orientador, Carlos Nelson Pereira dos Santos, era arquiteto e antropólogo, completamente avesso à ideia mais ortodoxa de planejamento. O que estou dizendo é que uma ideia de planejamento urbano que proponha uma teleologia de projeto e daí o controle do espaço urbano vinha fortemente criticada na dissertação. Afinal, era a tese de um “arquiteto sem medidas”. CB Fico pensando na ideia de um problema de projeto e trazer isso para um problema de experiência e não mais de projeto. A perplexidade é o modo de tirar uma coisa de seu projeto e causar a experiência? MM A perplexidade é uma inevitável condição contemporânea. Você tem no início do século 20 a necessidade imperiosa da certeza, sem a qual você não poderia ter Mondrian, não poderia ter Malevitch, História do Futuro detalhe, 2 de 14 desenhos 1. Cidades Mais-que-Perfeitas, Módulo de Destruição 2. Cidades Mais-que-Perfeitas, Ciclos de Vida, Destruição e Construção 1978– em progresso 10 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 E N TRE V I S TA | M I LTO N M ACH ADO 11 o construtivismo russo, nem mesmo o dadaísmo. Mesmo em sua negatividade, o dadaísmo tinha certeza TR História do Futuro é uma grande alegoria crítica, mesmo da linguagem de ordem simbólica. Você pelo menos de ser contra a arte, contra o Dada inclusive. É o que o Danto chama de Era dos Manifestos. reafirma que ela não se refere a nada, mas você reconstrói uma grande fábula que é uma espécie de – e Era necessário que os artistas tivessem certezas absolutas daquilo que estavam propondo. Se pensarmos, estou evitando o termo metalinguagem – uma espécie de linguagem crítica, autocrítica, que diz respeito por exemplo, no temor quase insuportável que os pintores abstratos tinham do nonsense, que faz à arte e ao mundo. Kandinsky recorrer ao espiritual na arte, ou Malevitch ao suprematismo, ou Mondrian dizer que só existe um caminho para a vida, portanto um único caminho para a arte, o que se vê são veredictos, diagnósticos e proposições definitivas. Hoje em dia, se alguém lhe apontar o caminho de qualquer coisa, você pode estar certo de que está mentindo. Isso me faz pensar numa proposição muito interessante de Jeff Koons. Ele diz: se você me mostrar uma imagem abstrato-expressionista, ficarei desconfiado de suas boas intenções; mas se você me mostrar algo em que eu consiga ver os pixels, aí saberei que podemos falar seriamente, porque saberei que você está me enganando, portanto estaremos combinados. Sabemos hoje que só a ficção não mente. Não temos mais nem a necessidade de ter certeza de alguma coisa. Pensemos na derrocada das grandes narrativas, na perda da unidade, na ideia da arte como projeto unificador. A perplexidade vem dessa incapacidade, e mais, da inutilidade de termos certezas. É preciso viver a experiência micrologicamente. Por isso recorro, lá nas minhas teorias, até no título da exposição (1 = n), um intervalo, aos parênteses. É uma ferramenta conjuntural, para tratar não com extensões, mas com intensidades. Por exemplo: (1 = n) é um intervalo que fala da indeterminação e, ao mesmo tempo, da igualdade. Coloco arte entre parênteses para poder falar dela, de alguma arte, durante certa vigência intervalar. O subtítulo da minha tese é (arte) e sua exterioridade. Recorro aos parênteses para poder garantir – muito provisoriamente – que estamos entendidos: arte com inicial minúscula, necessariamente. Ou, se quisermos, de cavanhaque e bigode e com o rabo quente. Uma arte que seja nossa, mais próxima de nós, como distâncias em proximidade. CB Começar uma premissa de não certeza. MM Sim. Qual arte? A arte de Joseph Beuys, a arte de Andy Warhol. Sim, mas qual trabalho? Em qual circunstância? Nesse intervalo, vamos falar que língua? Em qual contexto? Lygia Clark entra no livro Art Since 1900 como arte não ocidental, e eis aí um intervalo barra-pesada. Acho até que Paulo Venancio cobrou isso do Yve-Alain Bois. E aqui, na palestra que deu em São Paulo, Rosalind Krauss foi extremamente fugidia. Recusou-se a responder à pergunta, nem sequer admitiu que o livro do qual é coautora diz isso de Lygia Clark. O livro comete a generosidade de nos “reconhecer” como não ocidentais. Bem, esses intervalos, os parênteses que os demarcam, não devem permanecer para sempre. São como as margens de História do Futuro, a que me refiro no Texto Descritivo de 1978. Posso inventar qualquer maluquice dentro desse universo, porque ali eu sou deus. Estou garantido por aquelas margens, porque aquilo é desenho, drawing, não é design, não é projeto. Então, até segunda ordem, eu não tenho qualquer tipo 12 MM Falei que até certo ponto eu poderia me garantir naquelas margens desenhadas a lápis. Esse certo ponto pode ser o momento em que eu, estudando a teoria do planejamento urbano – com mergulhos profundos na economia política de Karl Marx, por exemplo, e é claro por conta de meu interesse pela cidade como urbanista e arquiteto – senti que meu trabalho era devedor de algum coeficiente de realidade. Eu reconhecia que era de minha responsabilidade recorrer a algum tipo de mecanismo que derrubasse os parênteses. Isso aconteceu radicalmente na Sicília, onde vivi uma experiência absolutamente mágica. Eu estava na Itália por conta de uma exposição. Fui o curador e convidei quatro artistas [Cinque Artisti Brasiliani: Angelo Venosa, Daniel Senise, Frida Baranek, Ivens Machado, Milton Machado, Sala Uno, 1990] para uma coletiva em Roma, e como decorrência surgiu o convite a mim e Ivens Machado para fazermos individuais numa pequena cidade siciliana chamada Gibellina, destruída em 1968 por um terremoto, que abriga um museu importante e inúmeras esculturas públicas. A Sicília é um lugar muito inóspito, totalmente isolado de tudo, um lugar onde você percebe o isolamento de forma muito clara. Pois bem, eu fui para uma cidade destruída por um terremoto. Ora, em História do Futuro, a origem dos chamados plissements, que remetem às fissuras na crosta terrestre de que fala Alfredo Brandão, são geológicas, são terremotos, cataclismos, o que já traz uma primeira analogia. Pois eu estava ali, instalado nessa nova Gibellina, absolutamente nova, construída ao lado de uma cidade velha destruída por um terremoto... TR A analogia vem depois, e não antes… MM A analogia vem depois, são as histórias do futuro, que vêm com as simbologias. Além disso, as coincidências não são coincidências, são histórias coincidentais. Que se sucediam de forma vertiginosa! Quando cheguei ao espaço em que fizemos as exposições, um prédio inacabado, ainda em construção – lembrando que em História do Futuro há um Ciclo de Construção, um Ciclo de Vida e um Ciclo de Destruição – havia lá, como que esperando minha presença, uma sequência de pilares de concreto armado, vazios. Pois me pareceu óbvio que sua função era a de receber o Módulo de Destruição! E foi exatamente o que fiz; meu cubo está lá até hoje e nunca mais vai sair, a não ser que apodreça; foi adotado pelo edifício e pelo arquiteto como escultura pública permanente. Está plantado sobre Pilares do Novo Mundo, que foi como passei a enxergar os pilares outrora vazios de Gibellina, que são elementos do chamado Mundo Perfeito de História do Futuro. de compromisso de ser consistente com as realidades objetivas, nem com outras histórias. É claro que E aí veio a esfera, representação do Nômade. Lembrem-se de que a origem do trabalho é a separação faz parte de minha responsabilidade, em determinado momento, romper com essa margem, que é (de) dos continentes. Olho pra ela: uma bola de mármore port’oro, peça que foi desviada de uma construção limitadora, por isso excludente. Ela deve cumprir o papel de romper-se, de vazar para além dos papéis, onde funcionaria como terminação de uma balaustrada. E aí eu vejo, marcados pela natureza, pelos ou seja, de tratar a relação desse intervalo com outros intervalos. Daí a proposição: tudo é intervalar e deuses meridionais, em ouro sobre negro, os continentes desenhados na superfície da esfera! Pensei: os modular. Isso tem a ver com o modernismo; foi aí que eu aprendi sobre os módulos, você cria módulos deuses estão me provocando, querendo que eu leve minhas analogias até o fim. E assim foi: bem em que funcionem segundo ordens específicas. frente ao prédio onde expus havia uma igreja de forma e gosto duvidosos: uma esfera atravessando um A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 E N TRE V I S TA | M I LTO N M ACH ADO 13 TR A realidade vem depois da ficção. MM Exato. É uma espécie de confirmação, justamente, da perplexidade. Isso acontece muito em meu trabalho, e de certa forma me causa sobressaltos como, por exemplo, desenhar uma paisagem de meu quarto para, na mesma semana, sofrer dois assaltos consecutivos, em que me roubaram exatamente os objetos que estavam no desenho. Livia Flores Acho curioso, ouvindo esse seu relato de vida e de trabalho, como os títulos acabam se amalgamando. Fico pensando em Homem Muito Abrangente, em Sobre a Mobilidade. Você fala da situação em que o Gilberto vai lá e compra seus trabalhos, você diz que ali você não estava na posição de artista, foi um acidente. Depois você está numa banca de defesa de mestrado, e ali você se afirma como artista. Fico pensando no trabalho sobre a mobilidade que faz do móvel imóvel e do imóvel móvel... esses modos de mobilidade. MM É, a mobilidade. O Nômade se move, mas não é o único. A exposição Sobre a Mobilidade, no Paço Imperial em 2001 e que depois itinerou por Brasília e São Paulo, tratava de uma situação específica, tinha a ver com meu retorno para o Brasil. Os títulos são importantes para mim. Somas e Desarranjos é outro título importante... LF Um homem muito abrangente, você fala de inúmeras possibilidades… MM “O título é o fim, no mais são vitrines”. Essa era uma de minhas pequenas tentativas poéticas no catálogo da exposição Somas e Desarranjos [Galeria Saramenha, Rio, 1985]. Havia pinturas “íntegras” na vitrina da galeria, quando lá dentro aconteciam operações desconstrutivas extremamente elaboradas e matemáticas. As somas são importantes, mas os desarranjos são mais, porque se somam às somas. Havia o slogan “ver as coisas pela metade para conhecê-las em dobro”. Enfim, essa derrubada, essa desconstrução, já está no próprio projeto; então, “o título é o fim, no mais são vitrines” porque, se chego ao título, é como se o trabalho estivesse pronto para acabar. Não que ele acabe, o trabalho não acaba Nômade de História do Futuro, 1978 escultura, detalhe da instalação in Interventi, Museo Civico Gibellina 1990-91 cubo! Que remete, justamente, à situação crucial em História do Futuro, em que o Nômade, que é uma esfera diminuta, atravessa o Módulo de Destruição, que é um imenso cubo. trabalho do trabalho da escultura, da pintura, da fotografia, do filme. Pode-se chamar de arte o trabalho do trabalho, não aquele objeto que ali está, prostrado, inerte. É o trabalho do trabalho que faz com que a arte esteja sempre à procura, até de si mesma. Assim, se eu chego ao título é porque, de certa forma, cheguei à necessidade dessa demonstração. CQD – como queríamos demonstrar. O título nunca aparece Isso me fez repensar, mexeu comigo e com o trabalho. Embora possa ser muito interessante, poético, antes, sempre depois. História do Futuro já se chamou História do Processo, e se você for aos originais muito belo até, eu dizer que o “O Nômade se move” [do texto Fast Forward, História do Futuro] ou verá que está escrito História do Processo, antiga História do Futuro, que preferi não apagar. Isso me dizer que o que importa é o caminho, coisas que tirei de minha própria cabeça ou de citações filosóficas diverte, eu me arrependi de chamar História do Processo, antiga História do Futuro, de História do Futuro. interessantes, ali eu olhava em volta e via pessoas reais no papel do Sedentário, do Nômade. Todos História do Futuro é um título do futuro para um trabalho em processo, em progresso. esses “personagens conceituais” estavam conversando comigo, numa língua que eu, aliás, não entendia, porque, se eu falava bem italiano, muitos deles só falavam bem siciliano. Era uma situação intervalar, em que as analogias que eu propunha como possibilidade do trabalho, até como uma espécie de álibi para 14 nunca; tem o trabalho e depois tem o trabalho do trabalho, que muitas vezes se pode apelidar de arte, o TR Você acha que essa diversão não é fortuita em seu trabalho, existe uma diversão que é uma torção que é feita... justificar o trabalho, caíam por terra, ou caíam do céu com a força dos cataclismos, fazendo-me deparar MM Não é fortuita, há uma certa maldade, no sentido maldoso, uma certa travessura. Sobre a Mobilidade com realidades não mais Mais-que-Perfeitas, mas mais-que-totalmente-objetivas. é o subtítulo do trabalho Edifício Galaxie. Fotografei os originais de Edifício Galaxie em 1975, quando A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 E N TRE V I S TA | M I LTO N M ACH ADO 15 pode vir algum gaiato e explicar que a tira sempre esteve dentro do envelope. Mas eu não quero ouvir isso, sabe, não quero ouvir. Que tipo de pergunta é essa? Essa é daquelas perguntas que não são para ser feitas. Perguntas que, se fossem ouvidas, poderiam vir a comprometer até o mito verossímil da Atlântida, que inaugura toda a cosmologia do Platão, a criação do mundo, o Universo. É como na Utopia, de Thomas More. Alguém está descrevendo aquele lugar, aquela agricultura, aquela economia saudável e tudo o mais, e aí vem um cara e pergunta: “Existe mesmo esse lugar?” Um outro alguém ao lado tem um ruidoso acesso de tosse, de modo que a pergunta não é ouvida. Sempre que a pergunta é feita, alguém tosse e não se ouve a pergunta... O curioso é que Thomas More admite e inclui o risco da pergunta, isto é, a pergunta pode vir a ser feita; portanto é preciso cuidado com as proposições, assim como é preciso cuidar dos ruídos que as cercam. Cuidar da tosse, da rouquidão, por assim dizer, junto com a bela voz. TR Você usa frequentemente um discurso pseudocientífico, acho que como uma espécie de paródia. Você traz uma diversão que é, talvez, o que faz o Investigador entrar em férias. MM O Investigador está em férias; em férias porque ele/eu precisa ser, precisa dar uma de Artista. Na verdade, são uma mesma coisa, em diferentes personificações. Quando comecei a pensar no vídeo que faz parte da coleção do RioArte [As Férias do Investigador, direção Arthur Omar, 1994], eu seria um ator travestido ora em Madame, ora em Artista, ora em Investigador, que é uma triangulação perfeita, um personagem não existe sem o outro. Quando está investigando, o Investigador está desenhando, sua demonstração é toda desenhada com cores, formas e tudo mais. Quando ele se retira em férias entra em cena o Artista, no mesmo lugar em que a investigação se passou, à beira da piscina de Madame. São coisas concorrentes, são falas, investimentos concorrentes para demonstrar uma situação sem saída, sem solução, porque em As Férias do Investigador a pergunta crucial, “Afinal, quem é a vítima?” não é Screw pintura, de Somas e Desarranjos Rio de Janeiro 1985 o carro era 0Km, um Ford Galaxie verde-metálico que era do pai de um amigo. O edifício também era novinho, nem tinha sido inaugurado, na esquina da Farme de Amoedo com Vieira Souto. Em 1975, respondida (mas é formulada, sem acessos de tosse). Na exposição [Galeria Cesar Aché, Rio, 1981], se você conhece As Férias do Investigador, a resposta que ele consegue decifrar é: “O artista matou a vítima Edifício Galaxie (sobre a mobilidade) 7 fotografias, fotomontagens, vídeo detalhe, 1982 cliquei as 36 fotografias de um filme, mas só descobri que aquilo podia tornar-se um trabalho em 1982, quando ampliei as sete fotos finais. Aí descobri que havia em uma delas um grupo de capoeiristas que conheci em 1978, quando eu era capoeirista amador. Portanto, conheci os caras em 1978, os fotografei em 1975, mas só fui descobrir isso em 1982! E tem mais, eram capoeiristas, não eram jogadores de pôquer. Nada mais móvel do que um capoeirista. Em 1990, quando estava na Sicília, perdi o negativo original, que havia feito a partir de fotomontagens manuais, construídas com tesoura e cola. Os laboratoristas sicilianos, quando ampliaram as fotos, perderam justamente a tira do negativo com os capoeiristas, e tive que fazer novo negativo a partir de uma reprodução. No lugar de minha tira de negativos veio outra, com imagens de um aniversário de crianças. Crianças que, na minha cabeça, só podiam ser sicilianas, naturalmente. Então vim para o Brasil e mostrei ao Zé Roberto, que me ajudou com as ampliações em 1982, e ele disse: “Que crianças sicilianas qual nada, este aqui é o João, meu filho!” E eu: “Zé, como é que um negativo da festa do teu filho em Teresópolis foi parar na Sicília?” Claro que 16 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 E N TRE V I S TA | M I LTO N M ACH ADO 17 afogando-a na piscina e escondeu o corpo no jardim das hortênsias, à tardinha.” A tardinha era 5:30h: da integridade, de uma unidade de pintura; que a mobilidade, as transações, os contrabandos, as trocas a hora em que o Investigador entra em férias e que eu chegava à galeria, recebia o público e abria os de posição e outras molecagens que usei para desconstruir ou construir aqueles objetos não conseguiam livros desenhados para as pessoas que estavam vendo desenhos na parede. Havia uma troca o tempo comprometer a potência da imagem. Acho que o que garante a permanência da pintura é o interesse todo de identidades, de personagens, de suportes, de posições. Eu no centro, como Artista Madame na imagem, mas sem privilégios, porque há o cinema, há o desenho, a fotografia e todos os meios pelos Investigador, mas o meio mesmo era a imagem, o desenho e as investigações. A vítima do trabalho do quais as imagens circulam sem cerimônia. A pintura não está mais discutindo pintura em sua eventual trabalho pode ser o trabalho. autonomia, e isso vale para a fotografia, o cinema ou qualquer outro meio. São, propriamente, meios. TR O que são esses livros? Em relação ao discurso pseudocientífico, ou à paródia, gostaria de lembrar o problema da bola de MM São desenhos feitos em folhas superpostas, como cadernos que você folheia de certa forma e vão acontecendo coisas curiosas, uma espécie de quebra-cabeça vertical. O que eu fazia era submeter os objetos pintados – que nem eram pintados, eram desenhos em pastel seco sobre papel – a testes de desconstrução. Por exemplo, eu desenhava um original, pingue-pongue que atravessa a parede de concreto. Claro que não é possível isso acontecer. Mas não me interessa saber se é possível; quero saber se é provável. O professor que propôs esse problema de física teórica para meus amigos que estudavam engenharia no IME quando eu estudava na PUC não era nenhum maluco de propor isso, pois a premissa é uma só: isso não é possível. O enunciado pedia que se calculasse o número que expressaria a probabilidade de uma bola de pingue-pongue atravessar uma parede de concreto. A resposta objetiva também é uma só: (1x10)–n quando n tende ao infinito. Não é 0, até segunda ordem. O estudante preguiçoso que respondesse “zero” se daria mal, porque o professor retrucaria: você não enfrentou o problema, não considerou o problema como problema. Não feito com 36 gestos, e ao estou querendo discutir possibilidades, pois já sabemos que, na prática, isso não é possível. Eu quero mesmo tempo a anotação que você prove que, em teoria, a bola pode atravessar, nem que para isso você tenha que recorrer a uma de sua fatura gesto a física alternativa, a uma patafísica. O que estou querendo discutir não é da ordem das possibilidades, gesto, de modo que um mas das probabilidades. primeiro desenho contém o CB O problema é ser verossímil... O espírito do seu trabalho é essencialmente antitécnico, então a primeiro gesto, o segundo contém o primeiro mais o resposta só responde ali, depois ela… segundo gesto e assim por MM É uma resposta em andamento, na verdade é uma demonstração em progresso. Se eu estiver diante. O trigésimo sexto correto em meu entendimento de Montaigne, é possível provar que esses óculos, que esse objeto que desenho é semelhante ao tenho na mão é um ovo amarelo. É claro que não é, se você estiver falando em nome da claridade, da original. Rauschenberg faz luz, mas o que eu quero que você veja é a sombra, o monstro, a máscara, o rabo quente da Mona Lisa. um pouco essa provocação Como fazer isso? Você cria um intervalo, abre parênteses, e bota ali dentro o que você bem entender com expressionismo porque o trabalho, a demonstração é sua. Até segunda ordem, porque depois vêm os julgamentos. abstrato, com pinturas em História do Futuro é julgado em Gibellina, embora aquelas pessoas não tenham a menor ideia de que isso que ele repete uma imagem aconteceu lá. Se a ciência dá conta disso ou não, a ciência teórica pelo menos, eu não sei. O importante à semelhança de outra, em é que certas circunstâncias nos levam a fazer coisas alternativas, muitas vezes incertas. Estou sempre princípio espontânea. O que mudando de uma situação para outra. o de certa forma concluí com As Férias do Investigador é que a imagem não precisa TR Você chama isso de negociar uma posição…o Nômade, o Módulo de Destruição… MM O personagem Nômade é mínimo, infinitesimal, é minúscula a escala dele, só que esse Nômade, em algumas situações, como na instalação da 29a Bienal e em Gibellina, precisa crescer e tomar o aspecto de uma esfera de mármore, como representação. Mas essas são representações tridimensionais. Nos As Férias do Investigador, 1981 capa da revista Módulo, Rio de Janeiro 1982 foto de Sebastião Barbosa 18 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 desenhos de História do Futuro o Nômade não aparece, é apenas aludido. Já o Módulo de Destruição é um imenso cubo. A representação gráfica de alguns elementos desse trabalho é uma questão curiosa. E N TRE V I S TA | M I LTO N M ACH ADO 19 Como representar, por exemplo, as Cidades Mais-que-Perfeitas, já que não dispomos de modelos para isso? Um modo imediato seria partir das cidades imperfeitas, das cidades familiares pelas quais circulamos, dos marcos culturais que conhecemos. Sendo esse o caso, talvez a melhor representação MM O título da tese é After History of the Future, que em português é mais complicado porque fica Depois de História do Futuro, como Art After Philosophy, que foi traduzido como Arte Depois da Filosofia, fosse um espelho, em nome das semelhanças, do mimetismo. A negociação de posições entre o Nômade quando talvez fosse mais correto Arte Segundo a Filosofia. Mas não me incomoda tanto a tradução e o Módulo de Destruição é a negociação de suas diferenças. Isso é o que promove o movimento. Depois de História do Futuro, que é como traduzo mesmo. No original, chama-se After History of the TR Você situa o Nômade como artista, e é ele que trapaceia, ele que de alguma forma introduz uma presença, ele é um intruso que consegue driblar alguma coisa, transformar alguma coisa nesse esquema tão perfeito. Future: (art) and its exteriority. Isso parte de uma constatação muito confortadora para mim, de que a arte não existe. Mas não é como diz o Gombrich, que diz que arte não existe, o que existe são os artistas. Digo de outra maneira: digo que nada existe já como arte, nada acontece como arte, assim como nada acontece como história. Se você não escrever, e se não escrever bem, você não vai conseguir colocar MM Nos textos de HF, o Nômade é referido como a “figura emblemática do Homem criador”. Na a arte nos lugares em que as coisas bem escritas estão bem escritas e fazem história, e aí nada vai virar verdade o Nômade é um aplicador de cosquinhas, que faz cócegas no Módulo de Destruição, de modo arte. Estou falando de julgamentos, do trabalho do trabalho. E estou, de certo modo, apelando para a a provocar sua agitação. São várias as leituras, algumas anedóticas. É um mecanismo, um relógio, um lógica do evento. jogo perfeito, um videogame, uma perseguição Tom & Jerry. Lembro-me, na defesa da tese de mestrado, MMz Os parênteses, a definição, como uma forma de delimitar determinado sentido. de alguém perguntar: mas por que o Nômade só pode mudar de cidades passando pela Posição Alfa? Dei uma explicação, digamos, técnica, mas que não vem ao caso agora. Eu também poderia ter dito que é assim porque sou deus nesse trabalho. O que importa é que o Nômade vai ao encontro do Módulo de Destruição, que ocupa justamente a Posição Alfa. Pois é aí que vão se dar as negociações de posição. Não é a Posição Alfa que é negociada, e sim a Cidade Mais-que-Perfeita contígua que vai viver MM Exatamente. Assim como nada acontece como história, nada acontece como arte. Arte não existe senão como negociação de sua exterioridade. Eu apelo para Heidegger, uma argumentação dele que já está manjada, a questão do Lichtung, a clareira, em A Origem da Obra de Arte. Eu gosto muito disso, de sua ideia de uma fissura constituinte. A clareira é uma fissura, um vazio, que apesar ou por conta de não ter árvores, você percebe, justamente pela claridade, que aquilo é uma floresta mais um Ciclo de Vida. Para passar a essa nova cidade e continuar vivendo, para adquirir a tal “forma móvel facilmente do que se você estiver em uma floresta densa, porque aí você percebe a relação da floresta de eternidade”, o Nômade terá que passar por dentro do Módulo de Destruição. Mas quem disse que com o que está fora. A clareira é a sombra da floresta. Negociação de posições, como em História do o Módulo quer? Há, no trabalho, uma leitura possível desse encontro, às vezes bélico, às vezes lúdico, Futuro. Essa sua exterioridade é o que o trabalho tem de mais potente, porque é a partir desse potencial como um intercurso amoroso, sexual. Platão se refere em determinado texto à transação entre a Alma do que está aí dentro, latente, que você vai produzir os julgamentos capazes de levar à ideia de que aquilo Mundo e a Teoria, com a ideia de bom e de belo, como um encontro sexual, do qual nascem filhos: os seja arte. Pensar a lógica do evento me ajuda a lidar com isso muito bem. Infelizmente, a palavra em discursos, as obras, a política. Na verdade, uma grande e banal proposição de História do Futuro é que português foi traduzida como acontecimento, que me parece uma tradução equivocada, pois o evento as diferenças produzem o movimento, do qual o Nômade é causa ativa. seria justamente o contrário do acontecimento, evento é aquilo que só acontece eventualmente. Chama- TR Essa proposta é uma leitura alegórica da arte numa dimensão política de negociação das diferenças, tradução joga fora. O evento é uma coisa inusitada, tão inesperada que quebra todas as expectativas; trapaças, jogos, contrabando. você tem que reorganizar, expandir, reagrupar, renomear as coisas para poder caber aquilo, aquele CB O atraso que os parênteses determinam é um atraso da ordem da negociação e é um atraso temporal evento, ou seja, para que aquilo seja incorporado como história, como arte etc. E arte precisa dos também, a analogia vem depois, o mundo está atrasado. se événement, event e traduz-se como acontecimento, ou seja, o caráter eventual da ocorrência a julgamentos; não adianta você botar um mictório lá no salão dos independentes porque mictório não vira arte, assim como bolas de pingue-pongue não atravessam paredes. Fonte, o readymade, demorou MM Há a formação de uma cadeia, um adiamento permanente. A potência política dos trabalhos, meses para ser visto e nem foi visto como Fonte nem como readymade; foi visto como fotografia, sejam eles quais forem, está nessa possibilidade de ocupar vários espaços, de migrar de uma cidade para correndo, portanto, o risco de ser visto como mictório. O trabalho ficou conhecido por meio de uma outra, de buscar e atravessar módulos de destruição. Se não fosse assim, não teríamos mais arte, a foto de Stieglitz publicada numa revista, com a legenda: o trabalho de Marcel Duchamp recusado no arte teria seu universo específico e delimitado. Ninguém teria mais paciência para a arte, porque se a arte salão. E entrou para a história das artes visuais sem nunca ter sido visto, a não ser muito mais tarde, não tivesse dado essa escapadela com a bunda quente que Duchamp diz que ela tem, se não tivesse se em suas consagrações. Portanto, negociar uma posição não é brincadeira. Então, o que eu falo sobre travestido em outra coisa que não arte e saído por aí rebolando, o que mais poderíamos estar fazendo exterioridade é isso, é a negociação com o que não é arte que mostra a eventualidade, a probabilidade em seu nome? Rezar? 20 Marina Menezes Você poderia falar sobre sua tese? Os parênteses no título implicam exterioridade? A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 de aquilo ser entendido como arte, discutido como arte, politizado como arte, porque muitas vezes você E N TRE V I S TA | M I LTO N M ACH ADO 21 coloca aquilo no universo da arte e o trabalho perde potência política. O trabalho do Ilya Kabakov, por exemplo, incrivelmente político, é tão poético que, colocado em determinadas circunstâncias, poderia virar um trabalho quase alegórico. Estou falando mais especificamente de um trabalho lindo no qual ele pede a pessoas quaisquer que tenham ideias, boas ideias [The Palace of Projects, Roundhouse, Londres: http://srg.cs.uiuc.edu/Palace/projectPages/palace.html]. Um motorista de táxi sugere: todos os mortos deveriam ser ressuscitados. Ótima ideia! Outra: poderíamos ter uma escada individual que nos levasse, cada um de nós – como fazemos com nossos orixás –, uma escada altíssima só minha para eu conversar com o meu anjo da guarda, exclusivo e pessoal. Perigoso? Claro que não, o anjo da guarda protege. Era maravilhosa a exposição. Exibicionalidade é uma ideia da Sonia Saltzstein que me parece importante. Usei esse seu conceito em um texto que escrevi, exemplificando com o trabalho do Kabakov, como o contrário da exibicionalidade. Simplificando, a exibicionalidade que, claro, é um neologismo, se refere a trabalhos que se valem e dependem da condição de exibição. Nesse trabalho de Kabakov você se senta no banco de trás e vê o artista na frente conversando com o motorista do táxi; você vê o processo, refaz a história do processo. Vê da exposição para trás. Curioso que ele expõe isso na Roundhouse, que era onde o bonde literalmente fazia a curva, em Londres, para voltar atrás. Ele construiu nesse lugar uma espécie de espiral de madeira, bem tosca mas belíssima – tudo ali era tosco e belíssimo. Por exemplo, os mortos ressuscitados saíam de uma caixa de papelão cortada com tesoura, totalmente mambembe, cheia de terra preta com bonequinhos recortados em papel branco, mal enfiados, tortos, amassados. Era tão rica aquela porcaria toda, aqueles trapos, aquelas bolas de isopor pintadas com guache de papelaria... era absurdamente poético. Não havia nenhum aparato senão a própria linguagem. Fiquei muito impressionado com o despojamento desses trabalhos, que contraponho à minha irritação atual, que já vem de longa data, com trabalhos polidos. Tem-me irritado essa coisa reluzente, bem acabada, eu não tenho mais muito tempo para gostar desse tipo de trabalho. Módulo de Destruição na Posição Alfa de História do Futuro, 1978– escultura, detalhe da instalação 29a Bienal de São Paulo, 2010 22 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 Módulo de Destruição na Posição Alfa de História do Futuro, 1978– escultura, detalhe da instalação in Interventi, Museo Civico Gibellina 1990-91 E N TRE V I S TA | M I LTO N M ACH ADO 23 TR Você fala em História do Futuro das imperfeições que o trabalho vai adquirindo ao longo do processo: alinhar a Beuys, que embora seja um artista incrível tem um quê de messianismo, aquela coisa romântica as imperfeições, as diferenças em relação a si próprio. Pelo que entendi, a negociação tem a ver com alemã, voos e quedas da Luftwaffe, gordura e cera demais, que me importunam um pouco. Pode ser essas diferenças também, incorporadas. verdadeiro que “todo homem é um artista”. Eu ando lendo algo cujo subtítulo é “todo artista é um MM Como eu disse, cada livro que leio, situações que eu vivo, como por exemplo o desafio de levantar aquele cubo de duas toneladas na Bienal, faz surgir um monte de ideias novas. Depois, o cubo migrar para o Sesc de Santos, onde se tornou algo totalmente diferente. Era o mesmo cubo, mas era absolutamente outro; era o mesmo personagem, mas que mudou de cidade. Em Santos era uma situação peculiar, o cubo ficou transparente. Na Bienal de São Paulo ele também era transparente, afinal era o mesmo objeto, mas sobre um fundo branco, a coluna branca em forma de árvore de Niemeyer. Me lembro que alguém até me advertiu: cuidado, porque você está instalando um canhão de luz direcionado para o cubo, o que vai acabar criando uma projeção de sombras no pilar lá atrás. Exatamente, respondi; é por isso mesmo que estou fazendo os caras se pendurarem perigosamente em andaimes, justamente para obter esse efeito, para mostrar a sombra. artista”. Melhor assim, todo artista é um artista, uma vez que todo homem é um homem. O Nômade é uma esfera, mas nem toda esfera é um nômade. TR Mas o Homem Muito Abrangente é um nômade, o Nômade é um homem muito abrangente. MM Não, veja, o Nômade é uma esfera. O Homem Muito Abrangente não é feito de fatos, ele também não existe, é outro personagem conceitual. A frase escrita na parede pelo assistente do atirador de facas, que na performance sou eu mesmo, fornece o aporte teórico: “Um homem tão abrangente que ocupasse o mundo todo menos o próprio espaço de seu corpo poderia sair-se muito bem como assistente de um mau atirador de facas”. É um enigma, de certa forma. Outro dia eu me peguei escrevendo algo assim: “a verdade é uma resposta a perguntas que não admitem respostas porque só admitem a verdade”. Escrevi esse negócio e é isso mesmo, tem aí um jogo de palavras que cria uma situação meio tongue in cheek. TR Mas você acha que, numa situação expositiva como a Bienal de São Paulo, o Módulo de Destruição destruiu alguma coisa, ele agiu como um intruso? MM Ainda está agindo. O fato de a escultura estar, não destruída, mas desconstruída na oficina de meu Homem Muito Abrangente performance, instalação, detalhe Instituto Tomie Ohtake, São Paulo 2002 serralheiro significa alguma coisa. O fato de eu ainda não ter conseguido doar o trabalho, primeiro para algumas instituições paulistas, depois inscrevê-lo num edital pretendendo sua incorporação à coleção de um museu carioca e meu projeto ser “inabilitado”, sob a alegação de que o orçamento não era consistente com os termos do edital, para mim são atuações de algum módulo de destruição. O fato de eu ter um monte de ferro empilhado numa serralheria quando aquilo não é um monte de ferro, deve sinalizar que algum módulo está agindo. Não o meu, metafórico, simbólico, que também constrói nos Ciclos de Construção, mas um outro, esse sim, intruso, que age por meio de ações destrutivas, afirmações equivocadas de diferenças improdutivas, más negociações de posições mal ocupadas. Alguma Cidade Mais-que-Perfeita está indo para o brejo, e algumas Cidades Imperfeitas estão lá buscando sua perfeição. Uma forma de procurar a perfeição é recusar meu projeto, porque meus orçamentos não são consistentes com editais perfeitos e porque meu cubo, diferente do motorista do Kabakov, não consegue uma habilitação. TR Você estava falando sobre o nômade que não é um artista. MM Eu não preciso literalizar para demonstrar que as propostas audaciosas – ou pretensiosas – de História do Futuro se reidentificam diariamente. É óbvio que aquilo tudo é um comentário com muito respaldo no real; para você ver, eu mencionei o Nômade como personagem conceitual em 1978 e logo em seguida, em 1980, Deleuze e Guattari escrevem seu Tratado da Nomadologia; em 97 Maffesoli escreve Sobre o Nomadismo. Qualquer curador hoje fala em nomadismos, no artista em trânsito, nas mobilidades. Eu não falo de um artista que pinta, de outro que faz escultura, afinal em HF o Nômade é uma esfera. Mas, como disse antes, nas analogias de HF, o Nômade é apresentado como “figura emblemática do Homem criador”. Há, nos textos do trabalho, alguma referência a Beuys. Sem querer me 24 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 E N TRE V I S TA | M I LTO N M ACH ADO 25 Então é preciso ir costurando a coisa aos pouquinhos. O mau atirador de facas vai acertar todas as facas no interior da figura. No texto de Homem Muito Abrangente, cito o personagem de Daniel Auteil no filme A mulher do atirador de facas, que diz: o importante não é o atirador, o importante é o alvo. No caso do meu atirador de facas, ele faz o papel de um mau atirador – não no real, porque ele é um ótimo profissional; ele é um mau atirador porque “erra” tudo, cravando as facas todas dentro da figura. Num regime cotidiano ele teria matado sua pobre assistente várias vezes. Nesse caso, não há problema em errar, porque o Homem Muito Abrangente não ocupa este espaço, o espaço de seu corpo, o espaço que lhe é próprio. Antes da performance, escrevo a palavra PELE em todos os lugares que consigo alcançar, até na própria câmera, no vídeo, nas paredes, no chão, no mundo todo. O título do texto, aliás, é Este corpo é todo poros. TR Ele é muito abrangente, mas ele não está dentro dele mesmo, ele está fora. MM É, ele tem esse dilema da interioridade e da exterioridade porque é um híbrido, um impuro, porque não tem nada de próprio; e, no entanto, ele é pura exterioridade. Um sujeito que é pura relação. CB Nessa relação com os personagens conceituais, eu tenho a sensação de que é a primeira vez que o corpo é implicado diretamente no seu trabalho porque o tempo todo ele está sub-reptício nos personagens, na questão do movimento, no diálogo. Aí tem efetivamente o atirador. MM Na verdade, foi a primeira e única performance que fiz em minha vida. Homem Muito Abrangente é um desenho de 1978, em aquarela e nanquim, que originou as performances de 2002, 2003 e 2006. Desenho, aliás, que deixei inacabado. CB Todos os seus trabalhos potencialmente são alcance, se modulam e podem estar aqui, podem estar no futuro. MM Eu gostaria muito que isso fosse verdade. CB Basta calcular quanto demora a probabilidade de viver para sempre. MM A tal “forma móvel de eternidade”? Mas, enfim, quanto ao desenho de 1978, não terminei porque perdi o saco de desenhar faquinha com aquarela e o expus todas as vezes que fiz a performance. Em como A Invasão, que vira A Evasão, que vira ao contrário, pelo lado avesso; ou se vejo uma estação 2002 veio o convite do Instituto Tomie Ohtake, para participar de uma exposição chamada Territórios, que vira trem, um avião que vira pipa, um jornaleiro que vira bicicleta, um 1 que vira 7 [série CQD, com curadoria de Agnaldo Farias. Eu sempre estive a fim de realizar esse trabalho, e arrisquei. Você anos 70], caramba! É tudo a mesma coisa, e tudo parece começar com O Princípio do Fim, que é esse pode imaginar o terror que senti, não só porque eu estava pela primeira vez fazendo uma performance, tal desenho que o Gilberto comprou e que foi capa de A Esperança no Porvir. As esperanças no porvir mas por ter que contar com a boa pontaria de um “mau” atirador de facas em um lugar que não era produzem histórias do futuro. Chamava-se A Esperança no Porvir, e o que aconteceu, naquele presente, propriamente o meu circo. Mas o pânico do meu bom atirador, que certamente nunca ouviu falar de com o esperançoso no porvir? Fui preso! Fiz a revista e fui preso, preso por agentes da elite da repressão Vitruvio nem de Leonardo, era ainda maior. brasileira, o SIEX, Serviço de Informação do Exército. Não apenas por conta do conteúdo subversivo da TR Um atirador de facas que é o Módulo de Destruição. revista, tudo ali era subversivo, era uma revista clandestina, udigrudi, hippie, da contracultura, mas isso MM É o que lhe digo, é possível fazer articulações, que me surpreendem o tempo todo. Por exemplo, um querer e sem saber, a casa do novo presidente da República, Geisel, que antes de ir para Brasília ocupou trabalho anterior a História do Futuro é uma série de oito desenhos chamada Poder, que é um prenúncio, uma espécie de esboço de História do Futuro. Mas se eu vou lá atrás e vejo uma série ainda mais antiga 26 Trem analisado desenho, série CQD 1973 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 só ganhou importância depois. O que me levou mais imediatamente à prisão foi eu ter invadido, sem uma casa no Jardim Botânico, onde eu estava passeando e fotografando. Nas definições de História do Futuro, o Nômade é descrito como um passer-by, um passante, que tem dificuldade em reconhecer E N TRE V I S TA | M I LTO N M ACH ADO 27 limites e fronteiras, mas não tem dúvidas quando está sendo alvejado, quando invade o pomar do recorrendo a certo nonsense. Ou à relatividade, à instabilidade do sentido. Não é uma distorção, é proprietário da terra para colher maçãs e o sujeito atira nele. Eu nunca havia pensado nisso, nessa nova uma torção, uma alteração. Isso está em Mallarmé, nos formalistas russos, no Marinneti, nos poemas articulação, pensei agora: eu fiz A Esperança no Porvir e fui alvejado porque invadi a casa do presidente dadaístas, enfim. Essa procura da materialidade da palavra, do vocábulo, da sílaba e do espaço da página, da República. esse tipo de coisa. Eu fiz essa série de trabalhos, o primeiro um objetinho que se perdeu em algum lugar LF Para pegar maçã. versão em Roma, daí o exemplo MM Para pegar maçã, ou abacaxi, que seja, tudo é muito coerente. Então, eu não preciso me preocupar de diáfora em italiano que é Il em dar coerência, porque o mundo é tão absurdo, tão coerentemente nonsensical, as coisas são tão sogno della mia vita è perdere la inacreditavelmente eventuais e se demonstram o tempo todo, como CQDs que são demonstrações do vita, que se pode traduzir como o absurdo pelo absurdo. Você pode, na matemática, fazer demonstrações por absurdo, só que no caso sonho da minha vida é perder a essas demonstrações por absurdo demonstram justa e exclusivamente o absurdo. vida, ou como o sonho da minha CB Há a expressão latina reductio ad absurdum; ao absurdo, mas, no seu caso, nada de redução, mas vida é perder a cintura. No caso, diferença... não por redução mas por diferença, digamos assim. são MM Eu não sei, algumas vezes é preciso reduzir. Uma coisa até da guerra, fique pequenininho, esconda- exemplo, quadrados que, de se, reduza-se a sua insignificância, reduza a coisa à insignificância. Se você pensar no readymade, acho que traduz bem, se você reduzir totalmente a fala própria do mictório você não vai mais ter mictório e você não vai ter uma fonte, porque uma fonte é um emissor e o mictório é um receptor, ele recebe o seu xixi. Se você retirar, se você silenciar, reduzir totalmente a fala, a vibração do mictório ou da roda de bicicleta, você não vai ter possibilidade alguma, quando girar lá os potenciômetros de seus aparelhos amplificadores, de ouvir os ruídos da significação, porque as coisas adquirem significado pela produção de ruídos, não pela produção dos belos sons, das eufonias. É como diz o Derrida, você não pode estar sempre na transgressão, é preciso que aquilo que transgride venha a ser incorporado. É a questão da tradição, você primeiro trai, de tradire, depois traduz, de tradure, e a coisa ordinária incorpora o extraordinário. Se a coisa não produz ruído, se a pintura do Matisse da mulher com pincelada verde não fosse estranhada de forma tão absurda como uma pintura absurda, se o mictório não tivesse... aliás, repare como era sortudo Marcel Duchamp, o cara foi recusado em todos os salões, com o Nu, com Fonte.... Então, são trabalhos que produzem atrito, que produzem estranhamento, mais uma vez a questão da lógica do evento, algo que põe sob suspeita todas as teleologias, todos os projetos, todas as academias, todas as lógicas sistemáticas, que faz Descartes se retirar para trazer de volta Montaigne, que nos faz pensar menos em possibilidades e mais em probabilidades. Assim, a redução, o nonsense, a insignificância, é uma arma importantíssima para você criar o significado, para você silenciar não totalmente, mas reduzir o barulho do apartamento ao hmmm da geladeira, de modo que você possa objetos que apresentam situações de similaridade, por acordo com as circunstâncias, vibram diferentemente enquanto ocupam espaços diferentes. O quadrado, compreendido como signo, migra, no trabalho de Roma por exemplo, do formato das cerâmicas do chão para os quadrados que eu delimito com pregos numa placa de metal perfurada, que ora preenchem ora não preenchem as perfurações, dos buracos vazios aos cheios, de uma placa pendurada a uma outra apoiada; ou seja, posições negociadas, diferenças que criam esse atrito que você talvez esteja chamando de ruidoso e que... ouvir o silêncio e, quem sabe, dormir em paz. Rodolfo Caesar Bem, eu poderia TR Tem outra operação a que você alude, acho que para falar desse estranhamento, esse atrito no subtração para você. Você não sentido, que é a diáfora. Qual é esse trabalho? MM Na verdade é uma sequência de três trabalhos. Diáfora é uma palavra... aliás, em nossas conversas com Rodolfo Caesar sobre Raymond Roussel lembramos que ele usava muitas diáforas, palíndromos, espelhamentos. Diáfora é quando você usa o mesmo vocábulo com significados diferentes, portanto 28 deste mundo, de que eu gostava muito porque ele era manual, como um brinquedo. Depois, fiz outra A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 só adicionar algum, somar uma contou, talvez esqueceu, de que uma vez lhe roubaram uma Diáfora chapas perfuradas, pregos Sala 1, Roma, 1990 E N TRE V I S TA | M I LTO N M ACH ADO 29 camisa no estacionamento do Sérgio Porto quando íamos fazer o seu Dueto 1 + I [Dueto 1 + I, para executantes extremamente atentos e isolados um do outro, desenho/partitura de 1978, interpretado por Rodolfo Caesar e Vania Dantas Leite, 2002]. MM É verdade, mas está desenhado, faz parte da série dos Atentados, como aquele outro, do roubo das roupas do desenho. 1 atentado + I atentado, e assim, extremamente atentos, vamos seguindo as partituras. TR Será que a sua tradução para evento não é atentado? MM De certa forma sim, são atentados, às vezes ao pudor (rs). TR Às vezes à lógica, às vezes à ordem. Guilherme Bueno Quando lido com o enciclopédico universo dos seus trabalhos, penso se ele não participa ainda de uma condição “moderna” da pósmodernidade. Dito de outra maneira: é uma definição de pós-modernidade que, como o termo assinala, ainda não descarta seu “índice” moderno. Em 21 Formas de Amnésia notei ainda uma curiosidade que me lembrou Falo de Cézanne desenho, colagem de 21 Formas de Amnésia, detalhe 1988-89 outro projeto seu, O Paraíso Perdido de Milton M... achado. Há um dos desenhos, Assinatura verde de um artista maduro, que tem um corte semelhante àquele imaginado no Paraíso... Para retomar esta fronteira moderno/pós-moderno que às vezes sinto nos trabalhos, ela não assume ou parte do problema kosuthiano da definição da arte, só que, ao invés de uma definição universal e especulativa, uma outra pessoal, aquela justamente da passagem da Arte para a /arte/? Não seria também essa responsabilidade que nos deixa tão perplexos? MM Enciclopédico? E mesmo assim pós-moderno? Bem, Diderot pesquisou as propriedades da involuta 21 Formas de Amnésia instalação, desenho, colagens 1988-89 30 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 do círculo, caso especial das espirais, curvas descritas em Dois burros girando em torno de dois postes aos quais estão amarrados... Por outro lado, sua noção de máquinas situacionais inspirou Lyotard, que E N TRE V I S TA | M I LTO N M ACH ADO 31 a natureza da arte, e que a arte agiria via proposições analíticas, exclusivamente. Essa noção tem um quê de diagnóstico, de pronunciamento modelar, sobre o ser da arte. A mim – e isso procuro sugerir por meio de meus ensaios experimentais, ensaios satíricos de um Investigador em Férias que só perfaz horas extras – interessa mais o excesso de resultados e de respostas do que as justas medidas. Interessa mais o deslocamento da experiência e dos lugares da experiência do que a comunicação imediata, mais a ultrapassagem de fronteiras e limites do que as delimitações de território. Interessa mais o exercício experimental da imaginação (ou da liberdade, como ensaiou Mário Pedrosa) do que a busca de coerência das proposições analíticas. Interessa mais a munição amnésia1 do que a persistência da memória. Interessa tanto a assinatura verde quanto o artista maduro. TR Você concorda com a afirmativa de Joseph Kosuth de que a arte teria tomado para si, na contemporaneidade, as questões sobre o homem e o mundo nas quais a filosofia teria fracassado? MM Ever tried. Ever failed. No matter. Try Again. Fail again. Fail better: sátira, com jeito de Samuel Beckett. Arthur Danto descreve as primeiras décadas do século 20 como a “era dos manifestos”, mas não inclui Art After Philosophy, que para mim seria o último dos manifestos. Kosuth acredita piamente em arte, acredita que exista uma função para a arte, qual seja questionar a (verdadeira?) natureza da arte. Ora, não existe tal coisa; a natureza da arte é justamente não ser verdadeira, desde o mimetismo cavernoso de Platão, passando pela falsificação da natureza no Renascimento, pela imitatio e pela morte de Deus, pela mentira nobre em Nietzsche, pela crise da representação, por Benjamin e suas auras transferidas, por Malraux e seu museu imaginário, por Beuys e seus mitos de origem, por Duchamp e sua fonte de gerar securas, chegando a nós como uma grande ficção em constante revisão de sua pretensa identidade de grande narrativa. Arte e filosofia caminham juntas, não necessariamente numa mesma direção, daí estarem sujeitas a esticamentos, estiramentos, distensões, fraturas mesmo. Mas têm em comum a característica de serem avessas às aplicações. A filosofia de Kosuth me parece por demais aplicada, tal qual um manifesto – um aplicativo, propriamente. A arte de Kosuth também é aplicada, mas me parece, ao contrário do texto e apesar de sua seriedade, uma arte que ri às gargalhadas de si mesma, Dois burros girando em torno de dois postes aos quais estão amarrados perseguindo um pássaro que voa das mãos de Denis Diderot (Ceci n’est pas un conte) livros artesanais, madeira de balsa, desenho técnico, 1986 foto de José Roberto Lobato de seu fracasso na busca da tal natureza da arte, de suas risíveis tautologias, como no caso de One and discorre sobre a condição pós-moderna, a propor a sátira como a mais eficaz estratégia contemporânea. CB A pergunta do Guilherme diz respeito um pouco a sua relação com história, porque faz referência à Pois as máquinas situacionais de Diderot, assim como a sátira de Lyotard, partem do princípio de que a história moderna e pós-moderna, depois ele cita trabalhos específicos, ele faz essa pergunta referenciando natureza nos mostra não apenas uma mas muitas e diferentes coisas e de muitas e diferentes maneiras. O paraíso perdido de Milton M achado e Assinatura verde de um artista maduro. De modo que os artistas, diz Lyotard, evitam os diagnósticos, os pronunciamentos definitivos sobre a natureza do ser. Isso vale para a arte. E o que fazem os artistas, então? Ensaiam! O ser ou os seres, e isso vale para a arte, jamais se revelam, e sim apresentam pequenos universos, micrologias, a cada vez, a cada trabalho. Micrologias con-correntes, que babam e bufam de inveja umas das outras, diz ele. Esses 32 Three Chairs. Gosto bastante de seu trabalho, e a leitura de seu texto é fundamental; foi fundamental para nós traduzi-lo, cultivá-lo e discuti-lo nos anos 70. MM É outra coincidência divertida, quem sabe outra diáfora. Um cara chamado Milton escreve O Paraíso Perdido, séculos depois vem outro Milton, chamado Milton M achado (rs...), ora, tem que fazer esse trabalho! Esse é um trabalho que sempre quis, mas nunca fiz. ensaios – incompletos, insuficientes, fissurados – constituem a sátira. E a condição para seu acionamento RC Tem algo também a ver com o corpo, o Cezar até te fez uma pergunta sobre o corpo e eu acho que e continuidade é a experimentação. A experimentação é separada da experiência por uma distância aí já tem a coisa corporal no desenho, no desenhar, aliás, muito evidente nesses desenhos recentes que desregulamentar. Isso parece diferir da ideia kosuthiana de que a função da arte seria a de questionar você tem feito. A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 E N TRE V I S TA | M I LTO N M ACH ADO 33 MM Eu tenho que fazer este trabalho, O Paraíso Perdido de Milton M achado. Quase aconteceu uma que, mais do que títulos temáticos e de exposições, são demonstrações de alguma ideia subjacente. vez, a partir de um convite de Agnaldo Farias para fazer uma exposição no Instituto Tomie Ohtake De uma matemática esquerda, gauche, naturalmente, daí a referência a um “arquiteto sem medidas”. paralela a A Bigger Splash, uma coletiva de arte britânica na OCA, mas que por algum motivo acabou Os desenhos a que se refere, e sei que você tem em mente os mais recentes, anacronicamente a bico não acontecendo. Era um espaço complicado, uma sala muito comprida, alta e estreita, mas muito de pena sobre papel, são de certo modo improvisações. Nisso alinham-se, pelo menos por enquanto, conveniente para o trabalho. John Milton era cego, e O Paraíso Perdido foi ditado por ele para uma com trabalhos que chamo de “vira-latas”, por seu caráter marginal às séries mais sistemáticas. O fato de suas filhas. Daí que a única iluminação da sala seria por meio de dois lampiões a gás, colocados no de serem vira-latas não impede que sejam “fora de série”, isto é, que tenham suas qualidades, que chão, sob as duas iniciais M, uma de cada lado da sala. Seriam a luz dos olhos do poeta. De um lado, uivem em alto e bom som em noites de lua cheia. Na verdade, estou fascinado por eles, de um modo, a frase O PARAISO PERDIDO DE MILTON; do outro, na parede em frente, apenas a letra M. O resto, a digamos, quase psicodélico. Arrisco comentar que não os considero arte, e sim desenhos. Não os palavra ACHADO, seria depositada em Londres, aos pés da tumba e da estátua de John Milton, que está subestimo, pelo contrário. Apenas reservo a eles a oportunidade, antes de se tornar arte, de ser “o enterrado em uma igreja do Barbican Centre, onde, por outra coincidência, já expus, uma individual em que são”. Arte implica negociações de seus objetos com “sua exterioridade”. Esses desenhos, mas essa 2000. As letras de ACHADO, assim como as demais, seriam confeccionadas em latão polido, dessas de talvez seja uma característica própria do desenho, são prenhes de interioridade, com vocação de diário, escrever nomes de edifícios. Uma câmera de vídeo fixa sobre essa palavra transmitiria sua imagem, assim de escritura, de anotação, de monólogo ensimesmado. Talvez façam boa companhia a meus poemas, como a do poeta, diretamente de Londres para o espaço da exposição, aqui no Brasil. Se alguém aí do outra forma de improvisação reclusa com vocação confessional. Usando os termos de sua pergunta, paraíso estiver ouvindo e quiser patrocinar... seriam trabalhos com alto valor de uso, aguardando outras valorações que possam resultar de trocas Sobre Assinatura verde de um artista maduro, é uma das colagens de 21 Formas de Amnésia, feitas com fragmentos de um desenho que cortei em 1.750 quadrados de 1cm de lado. No caso, são quatro quadradinhos, com partes de minha assinatura. O Guilherme, com seu olho enciclopédico, indicou algo progresso. Investimentos, antes dos eventuais revestimentos. Por enquanto, basta a eles e a mim que sejam desenhos. que nunca percebi; que algo semelhante aconteceria em Paraíso Perdido..., isto é, a inicial M isolada de RC Pelo que conheço de seu trabalho, destaco dois aspectos relacionados à música. Um é de cunho ACHADO pelo corte. A assinatura verde ficaria por conta da cor de fundo, verde para um artista, quem erudito, que tem a ver com a ars nova do século 14. O outro é vernacular, associando a figura do sabe, M ADURO. trovador. No contrapelo da Arte Moderna, a Arte Contemporânea tem uma de suas origens na obra RC Quem o conhece pessoalmente sabe o valor que você dá às analogias, aos jogos de palavras e entre imagens, às relações lúdicas e inicialmente desinteressadas mas que sempre adquirem sentidos. Mas há também em sua arte o lado mais selvagem, vernacular, paisano, que se percebe no abrangente aproveitamento de trouvailles. Seus desenhos parecem resultar de um processo no qual você, de lápis ou caneta entre os dedos, às vezes talvez meio embalado pelo ritmo de alguma música, ou pelo som de Duchamp, que, por sua vez, nunca se esqueceu do dia em que foi exposto à obra de Raymond Roussel. Logo adiante, a ars subtilior do início do século 15 confirmava esse prenúncio ao modernismo demonstrando “emphasis on generating music through technical experiment”, cf. o musicólogo Daniel Albright. Ex.: “Tout par compas suy composés”. (Sou todo composto a compasso, na partitura circular de Baude Cordier.) da ponta no papel, vai fabricando linhas que de repente – ou mais lentamente – transformam-se em Uma espécie de opinião (tácita?), dominante no mundo das artes plásticas, administra a noção de que ela pequenas células esperando desenvolvimento. A improvisação põe em jogo um erotismo meio especial seria, de todas as artes, aquela que empreende um projeto reflexivo mais amplo, seja estético, político, entre os corpos, excitando desde a pele mais fina do tímpano até os movimentos corporais. Não é por histórico, cultural, etc. Como você se coloca? acaso que a improvisação teve grande impulso na escrita automática surrealista, movimento do qual eu considero você fiel e psicodélico leitor. Por que, então, você subestima o valor desse trabalho? Seria por conta de uma atenção às contingências do mercado? O conceito de obra/objeto é determinante no processo de avaliação? 34 de mercado, de outros julgamentos. Seriam, não ainda obra, mas canteiros, construções, trabalho-em- MM Eu não sei o que Giotto ouvia em sua vitrola, mas sei que ele tocava, ele também, por partituras. Se a catedral gótica do século 13 era construída na base de certo empirismo, numa espécie de “pra cima com a viga, moçada!”, com Giotto – e depois mais ainda com Brunelleschi – o desenho, em sua acepção de projeto, de design, desígnio mais que desejo, passa a fazer parte do processo construtivo, MM Não sei se sou propriamente um fiel leitor da escrita automática surrealista, que já me fascinou mais transformando radicalmente a estrutura produtiva. Por isso era possível a Giotto ausentar-se da produção na juventude, assim como o psicodelismo; mas desse não nos livramos nunca, uma vez intensamente direta de algumas de suas obras, mesmo de pintura, desde que seus assistentes seguissem à risca seus experimentado e bem vivido. Sou muito chegado às improvisações, mas como músico, em minhas rabiscos e riscos. Com Brunelleschi, o projeto é mandatório. Sem projeto, sem os modelos reduzidos aventuras jazzísticas ao violão. Mas na produção de arte costumo trabalhar por partitura, ainda que que o arquiteto construiu, não teria sido possível construir o duomo da Santa Maria del Fiore, em elas possam surgir depois da execução, como notações do improviso. Geralmente são séries, como Florença, que ele nem chegou a ver realizado, como aliás quase tudo que projetou. Projeto que, diga- (1=n) um intervalo, Mundo Novo, Somas e Desarranjos, As Férias do Investigador, História do Futuro, se de passagem, foi escolhido por concurso. Desejo não ganha concurso. A ars subtilior do século 15 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 E N TRE V I S TA | M I LTO N M ACH ADO 35 coincide com o tempo em que a perspectiva era objeto principal do interesse de arquitetos e pintores, e tal interesse contribuiu para dar ao artista, agora às voltas com o cálculo e a matemática, o status de profissional liberal. “Gerar obra por meio de experimentação técnica”, traduzindo sua citação, pareceme resultar justamente dessa complexidade. Os mistérios da perspectiva eram extremamente sedutores para os artistas – lembremos a crítica (injusta) de Vasari a Paolo Uccello, de que teria sido um grande pintor se não tivesse perdido tanto tempo na companhia de sua amante, a perspectiva. Em Uccello, até cavalos em uma batalha morrem em perspectiva! Se o caso é o experimentalismo de um Raymond Roussel, e por tabela um Duchamp, há que acionar outros botões de nossa agilíssima máquina do tempo, primitiva geringonça que alguém deve ter inventado nos tempos da ars antiqua. Botões que acionam defeitos, disfunções, engasgos, chabus. Experimentar com a linguagem era mania corrente entre escritores do início do século 20, na cola de Mallarmé no século 19, tais como o futurista Marinetti, a balbúrdia desconstrutiva dadaísta, os formalistas russos, companheiros de Malevitch e Tatlin. O recurso a certas genealogias é sempre salutar, e não custa apontar, como você faz, que a ars subtilior do século 15 prenuncia o modernismo. Mas há que recorrer também às “quebras de paradigmas”, via Thomas Kuhn, para valorizar mais ainda esses empreendimentos experimentais mais próximos de nós. Sobre a opinião tácita ou dominante de que as artes plásticas empreenderiam um projeto reflexivo mais amplo, eu diria que essa eventual amplidão depende e resulta justamente da própria plasticidade, mais do que propriamente da arte e de suas operações específicas, que podem ser duras. Para lidar com a perplexidade contemporânea, só um projeto que seja flexível, moldável, adaptativo. Plástico, enfim. Com a plasticidade da sátira, como sugerido por Lyotard. Não me parece que tal elasticidade seja exclusiva das artes plásticas, a não ser que você flexibilize o termo a ponto de pouco restar de sua dada identidade. Não há nada de próprio da arte, a arte nunca é idêntica a si mesma. As operações da arte há muito não são específicas. Arte é um troço mole, por isso são necessários fios flexíveis para tirar suas medidas. GF Em um texto de Roberto Pontual de 1976, há uma citação sua: “o desenho tem para mim essencialmente um sentido: o de trazer ao plano da consciência os rumores que me povoam o mundo interno. Meus desenhos são cartas que chegam do interior”. Algo que, de certo modo, se pode dizer de qualquer trabalho de arte. Esse é um período importante de seus desenhos, com projetos, digamos, ficcionais, com uma lógica de ordem conceitual. Esse viés conceitual permanece em seus trabalhos posteriores. Como você avalia essa dimensão conceitual em seu trabalho e na produção artística atual? MM Caramba, eu disse isso? Rumores que povoam o mundo interno? Pelo jeito se aplica mesmo a todo trabalho de arte, já que Pollock disse mais ou menos a mesma coisa. Mas meu interior não é o mesmo de Pollock, que nasceu em Cody, Wyoming, e cresceu em Tingley, Iowa. Meu interior é a Tijuca, onde nasci e cresci, meu exterior Copacabana, que me parecia, quando era menino, algum lugar bacana no exterior. Não havia ainda túneis separando e unindo essas lonjuras cariocas. A dimensão conceitual é como um túnel separando e unindo, talvez por isso sua condição subterrânea, de escavação, que pede mergulhos mais profundos do que conseguem as toupeiras. Animais, por sinal, quase cegos, mas com olfato muito sensível. Desenho e pintura em condições de igualdade é um trabalho feito com pós de pastel seco, recolhidos durante a produção de desenhos, ao lado de fragmentos de tinta acrílica raspados de minhas palhetas de pintura. Algumas vezes os túneis são escavações no papel, outras no 36 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 vidro, às vezes no pó, outras na tinta. Algumas vezes levam a Pollock, outras a Copacabana. Descobri por acaso, visitando o Louvre, uma provável (humm...) origem dos desenhos de pedra portuguesa das famosas calçadas cariocas: viriam de uma pintura de batalha pelo já citado Paolo Uccello, na qual o pintor representou uma bandeira preta e branca quadriculada tremulando em perspectiva. (Micheletto da Cotignola Envolvido em Batalha, 1450s, têmpera sobre madeira: http://www.wga.hu/). Quem diria que existem túneis conceituais separando e unindo Florença, Paris, Portugal e Copacabana? GF Desde 1979 você tem dado aulas, na Santa Úrsula, no Parque Lage e, já há 10 anos, na EBA. Que transformações você identifica no ensino de arte e na formação dos artistas? Como você avalia a formação de pós-graduação para artistas? MM Do Centro de Arquitetura e Artes da Santa Úrsula saíram muitos artistas, já contei mais de 50. Muito devido à presença ali, nos anos 70 e 80, de Lygia Pape, que me convidou e com a qual tive o privilégio de trabalhar, por alguns dos 15 anos que lá estive, junto a outros artistas, na cadeira de Plástica, que tinha um caráter eminentemente experimental. Aliás, é comum artistas terem formação em arquitetura, que pode levar a muitos caminhos. Talvez a maior transformação seja o fato de que novos e bons artistas estejam se formando em escolas de arte, no Rio de Janeiro com maior concentração ainda no Parque Lage, e cada vez mais na nossa EBA, que por décadas afugentou estudantes mais antenados com a contemporaneidade e menos dispostos às formalidades acadêmicas. Um renitente conservadorismo ainda impede que a EBA assuma de vez, como deveria e na medida de sua importância universitária, um papel progressista, de vanguarda, em contato estreito e interessado na produção e na reflexão de excelência, de modo a participar do debate contemporâneo de forma mais intensa e eficaz. Não que isso não se dê, mas é pontual. Os recentes concursos, que têm trazido para o corpo docente da escola professores com esse perfil, vêm mudando, ainda que lentamente, o perfil da própria escola. No âmbito da pós temos tido, na linha de Linguagens Visuais do PPGAV, destinada a artistas praticantes, cada vez mais alunos graduados pela EBA, muitos já atuando no circuito profissional, participando de exposições, publicando livros, ganhando prêmios. Nosso programa obteve o grau 6 nas avaliações da Capes, o que se deve em grande parte às atuações dos professores e alunos de nossas quatro linhas em circuitos profissionais, não só acadêmicos. Tudo isso deve ser celebrado. Falando da pós-graduação em artes no contexto nacional, a proliferação de programas de mestrado e doutorado também é motivo de celebração. Se cabe algum reparo, nunca procurei disfarçar – ao contrário, sempre manifestei claramente – meu estranhamento em relação ao formato mais comumente adotado pelos programas de pós-graduação para artistas no país, nos quais se privilegiam pesquisas de mestrado e doutorado calcadas em e voltadas para a produção prática do próprio candidato, num exercício autoanalítico e autointerpretativo que considero, em regra, improdutivo. Sempre que posso, o que procuro fazer com meus orientandos mais dispostos ao desafio é convidá-los a refletir sobre questões conceituais contempladas em seus trabalhos de artistas, de modo a definir, antes, o território e, depois, a inserção. Diferente disso é quando o próprio trabalho é tratado como o território, a partir do qual se buscam eventuais inserções. MMz Você tem um cartão de visitas do Parque Lage que o apresenta como teórico. MM É verdade, e isso é curioso. É uma coincidência, outra dessas coincidências. A EAV imprimiu um cartãozinho trazendo o nome do professor e o núcleo ao qual pertencia. Fizeram então um cartão em que se lê Milton Machado, Teórico. Eu disse: isso dá pano para manga. Fiz uma série de trabalhos E N TRE V I S TA | M I LTO N M ACH ADO 37 com esses cartões, que são muito bonitinhos. Tem o Mondrian teórico, Milton Machado teórico, os nascimentos e óbitos teóricos. Kosuth teórico, por exemplo, é uma cadeira feita com esses cartões, ao lado de uma foto dessa mesma cadeirinha e dos verbetes de dicionário com as definições de cadeira e de teórico: “Teórico – aquele que conhece muito bem os princípios de uma determinada arte, mas que não a pratica.” Na época em que dava aulas na EAV eu era frequentemente acusado por alguns críticos de ser um artista excessivamente teórico, o que é uma bobagem... Era uma coisa típica dos anos 80, em que tudo era emoção, arte nascendo no coração, pintura como sintoma de prazer, essas bobagens todas que se alardeavam nos anos 80, que falam mais dos anos 80 do que de arte. Havia uma condenação explícita a artistas dos anos 70, de minha geração, que estariam se metendo em áreas sem competência para delas tratar, como a matemática, filosofia, política, sei lá mais o quê. O que mais então “não podemos” discutir? Nos anos 80, eu vivia perguntando isso a meus interlocutores entusiasmados ou inebriados com a pintura, o prazer, o cheiro da terebintina e tudo o mais. De modo que é um trabalho de fato muito irônico, que se vale da coincidência incrível de eu ter sido presenteado com um cartão que identificava, meio sem querer, os excessos de um Milton Machado teórico. MMz Eu estava lendo seu artigo Dance a noite inteira mas dance direito [in Arte Brasileira Contemporânea em Textos, org. Ricardo Basbaum, Editora Marca d’Água, Rio de Janeiro 2001], em que aparece o cartão, e você faz uma análise crítica do sistema, do circuito, dos críticos durante os anos 80 comparando com os anos 70. Aí eu tenho uma curiosidade: como você vê esse circuito hoje? MM Produzimos uma arte de muito boa qualidade, discutida em alto nível internacionalmente, e no entanto nosso circuito interno ainda nos impõe condições muito ruins. A própria universidade, à qual pertencemos mais do que ela nos pertence, talvez exemplifique isso de forma pontual, com cursos de graduação em arte quase sempre voltados para uma orientação conservadora, ainda muito calcada nas técnicas, radical e intencionalmente alienada da discussão contemporânea. Talvez o circuito reflita distorções como essa, pontual mas importante, porque tem a ver com a própria formação, de artistas e de opinião. Quanto ao circuito profissional, trata-se de questão igualmente complicada. Nosso circuito, mesmo precário, ou até por isso mesmo, é extremamente complexo, talvez daí se possa falar não de um circuito, mas de circuitos, no plural, com precariedades concorrentes, algumas vezes rivais, o que agrava ainda mais seu grau de perversidade. Como é complexa a questão política das alianças que é preciso fazer e das que não se deveriam fazer mas se fazem, em prol dos pertencimentos, das pertinências, das adequações, dos favorecimentos, das celebrações institucionais e comerciais. De algum modo, é preciso que os orçamentos sejam consistentes com os editais. Mas pertence quem diz que não pertence? Consiste quem diz que não é consistente? Então, essas geometrias mais por tangentes do que por secantes, mesmo que não bastem para regular o círculo, são reguladoras do circuito. Dance a noite inteira mas dance direito seria um tipo de andamento servil, que obedece ao compasso, muitas vezes em detrimento da música. Edição Marina Menezes e Cezar Bartholomeu Transcrição Priscila Plantanida NOTAS 1 Ammunition Amnesia foi o texto de contribuição do artista para o catálogo da coletiva Other Modernities (Cildo Meireles, Foreign Investment, Milton Machado, Yinka Shonibare), The London Institute Art Gallery, curadoria de Oriana Baddeley e Michael Asbury, Londres 2000, da qual fazia parte o trabalho 21 Formas de Amnésia. Esse mesmo trabalho foi remontado na exposição Europalia, Bozar, Bruxelas 2011, sessão curada por Guilherme Bueno. 38 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 HI-FI (alta fidelidade) mapotecas de aço FIEL música por Rodolfo Caesar 19a Bienal de São Paulo, 1987 E N TRE V I S TA | M I LTO N M ACH ADO 39 ESPETÁCULOS DE CIVILIDADE: modernidade e pós-modernidade no papel-moeda brasileiro Amaury Fernandes identidade nacional imaginário dinheiro Estado Analisa as expressões plásticas presentes em duas cédulas comemorativas brasileiras, emitidas em 1972 e 2000, relativas a grandes festividades cívicas. Busca compreender de que forma as identidades nacionais predominantes em determinados momentos históricos podem ser plasmadas em representações do Estado que servem de veículo para sua divulgação. Estado nacional é conceito bem recente na história, assim como os sentimentos de identidade e de pertencimento nacional. As formas de manifestação da nacionalidade passam pelos espetáculos de civilidade, e sua presença no imaginário coletivo se constrói através dos símbolos oficiais e oficiosos que os governos produzem e disseminam pela sociedade, em especial para a comemoração das SHOWS OF CIVILITY: modernity and postmodernity in Brazilian banknotes | This article analyzes the plastic expressions in two Brazilian commemorative banknotes issued in 1972 and 2000 for major civic festivals. It aims to understand how predominant national identities at certain historical times can be shaped into representations of the State that act as vehicles for its publicity. | National identity, imaginary, money, State. datas nacionais mais importantes. O dinheiro é elemento da cultura material anterior aos Estados, mas é parte da construção do imaginário coletivo que modela o das nações. Inventado no século 6 aC. e presente desde então nas sociedades, muitas vezes é elemento determinante dos fatos e funciona plenamente como signo. Expressa identidades nacionais coletivamente construídas, o que o legitima como representação máxima do valor das coisas materiais e, muitas vezes, das imateriais. Por essa razão, do ponto de vista sociológico, o dinheiro pode ser compreendido como elemento da cultura material quase ubíquo e que funciona como o principal signo do valor na cultura contemporânea. Signo universal, apesar de, em algumas de suas formas, ainda manter características locais. Anverso e reverso da cédula de 500 cruzeiros novos, 1972 e cédula comemorativa dos 500 anos do descobrimento do Brasil, 2000. Imagens capturadas da cédula (coleção pessoal) 40 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppga v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 ARTI G O S | AM AU RY FE RN AN DE S 41 Segundo Simmel1, o dinheiro é “uma dessas mais de âncora aos sentimentos fundadores do imagens do mundo que consideramos como a pertencimento nacional do que de espelho dos expressão mais adequada dos conhecimentos e sentimentos dos brasileiros contemporâneos. sentimentos atuais”. Marx afirma que “a fixação do Diferentemente, as cédulas brasileiras variam preço do numerário é da competência do Estado, muito ao longo do tempo; suas estampas são assim como o trabalho técnico de cunhagem”, e, alteradas quase que governo a governo. Tornam- por essa razão, “o dinheiro adquire um caráter se narrativas da identidade nacional privilegiadas local e político, fala línguas diferentes” por vestir por suas mudanças e, assim, refletem melhor “diferentes uniformes nacionais”. De acordo seus desdobramentos. com o senso comum, o dinheiro parece ser algo que simplesmente trafega pela sociedade. Quase nunca há questionamentos sobre sua materialidade nem se indaga a respeito de sua fabricação que, assim, acaba anônima. Aparenta surgir o espetáculo da modernidade no papel-moeda brasileiro do mundo, os uniformes nacionais, as narrativas Em 1972 a independência brasileira completa 150 anos; o governo militar promove intensa campanha publicitária para o evento e decide emitir cédula em comemoração à data, com valor facial de 500 cruzeiros novos. Aloisio Magalhães3 é convocado para criar o projeto da nova cédula, pois já desenhara as que então circulavam e o de nacionalidade materializadas em duas emissões logotipo da comemoração. naturalmente, do que decorre boa parte de sua silenciosa onipresença, e converte-se em uma das representações mais fortes das narrativas de nacionalidade. Neste artigo analisa-se o discurso visual, as imagens comemorativas que celebram datas históricas para a afirmação da brasilidade: o sesquicentenário da independência e os 500 anos do descobrimento. Assim com nas primeiras emissões concebidas por Aloisio Magalhães, o trabalho de valorização da narrativa histórica oficial é privilegiado também O dinheiro como símbolo nacional é objeto nessa, voltada para o conceito de integração. A privilegiado para análises semiológicas. Alterações estrutura compositiva é rigidamente estabelecida em bandeiras, hinos e armas nacionais não são pela divisão geométrica do espaço plástico em áreas comuns nos Estados modernos, e a imutabilidade retangulares que se cortam, e cujas massas visuais de tais representações dificulta a análise de amarram a composição; nelas estão acomodados aspectos mais flexíveis ligados a cada um dos os motivos figurativos de anverso e reverso. diferentes momentos históricos; estes são como representações congeladas de uma identidade nacional fixada no tempo, elementos que refletem mais a narrativa fundadora dos Estados. Ainda que o verde e amarelo ou o “Ouviram do Ipiranga” efetivamente sejam expressões da brasilidade, são antes representações congeladas concebidas em momentos muito distantes no tempo. Servem 42 O sesquicentenário da independência: A iconografia da cédula recorre à plasticidade das vanguardas geométricas da época e à valorização da mestiçagem como formação do povo brasileiro, exaltando e modernizando um discurso que, do ponto de vista sociológico e literário, está referenciado principalmente nas teses de Gilberto Freyre (pernambucano como Aloisio Magalhães e amigo íntimo de sua família) e nas narrativas A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppga v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 Anverso e reverso da cédula de 500 cruzeiros novos, 1972 Imagens capturadas da cédula (coleção pessoal) ARTI G O S | AM AU RY FE RN AN DE S 43 heroicas da brasilidade de Euclides da Cunha, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. a geografia representativa do descobrimento mais à que conforma o povo brasileiro. Não há exaltação gica da formação do povo brasileiro e um projeto direita e o mapa da “integração” mais à esquerda; de personagens históricos ou de elementos da político, ambos como reforço da importância da No anverso a cédula representa a integração racial. Uma sequência de rostos é desenhada em retângulo horizontal mais escuro que atravessa a composição; nessa imagem estão entre eles outros três mapas (denominados “comér- cultura brasileira como prédios ou obras de integração nacional, quer seja via misturas étnicas cio”, “colonização” e “independência”) estampam arte, mas sim confirmação das fronteiras e da ou transporte. Afirma-se uma modernidade auto- as modificações das fronteiras brasileiras. integração do território de uma nação. ritária, que corrobora o projeto individual de Aloi- O da esquerda, primeiro no sentido de leitura, A cédula é concebida para, de forma inconfundível, apresenta linhas axiais que cortam o território ser entendida como documento histórico, o que é brasileiro; elas representam as vias de transporte almejado para validar a narrativa historiográfica (ferroviário e rodoviário) que os governantes que ela representa ainda mais. Os conceitos militares prometem construir como parte do visuais reafirmam essa característica em quase processo de integração nacional. todos os detalhes, e as próprias palavras de Aloisio as diferentes etnias que formariam o povo brasileiro; a posição é determinada pela ordem cronológica de sua inclusão na população brasileira, e acompanha o sentido de leitura, da direita para esquerda, o que poderia implicar leitura “evolucionista”. Nessa sequência estão estampados os rostos que representam índios, portugueses e negros, e duas figuras com feições de mestiços. Na composição as cabeças se apresentam organizadas do perfil exato do índio, através da qual uma história alternativa”6 pode ser construída para reafirmar legitimidades e constituir “um campo de significados e símbolos ao frontal completo da face mestiça mais à direita associados com a vida nacional”.7 da composição. A rotação da figura destaca o As associações visuais com a comemoração último rosto, em claro favorecimento ao elemento do sesquicentenário apoiam-se também nas mestiço, que se torna mais evidente e é reforçado tipologias. Letras utilizadas nas legendas e dísticos por ser o único com dois retratos na composição. oferecem recurso visual igual ao empregue A ordenação das cabeças sofre críticas do brasilianista Thomas Skidmore “considerando-a portadora de todos os preconceitos praticados no país”.4 Aloisio Magalhães as rebate; apontando a ordenação cronológica e o conceito historicista do projeto, afirma: “Não estaria o eminente professor por Aloisio Magalhães para criar o logotipo comemorativo da celebração. Sombras são Magalhães confirmam a intenção de o projeto provocar, antes de tudo, essa interpretação. Uma peça de comunicação de massa que reafirma uma leitura específica da brasilidade. Tratar o objeto cédula como um objeto de comunicação mesmo foi o que o Aloisio descobriu com as primeiras cédulas; ele falava isso o tempo todo: ‘Depois que eu fiz o primeiro, a questão da forma para mim se relativizou muito. A questão é: esse é o objeto de maior comunicação do país.’9 projetadas, e as faces dos tipos são vazadas, se Na cédula do sesquicentenário é apresentada apresentando mais claras. Os fundos de segurança configuração visual que reforça a concepção recorrem ao efeito de moiré, como nas emissões de que o Brasil seria um “cadinho de raças”, anteriormente projetadas pelo designer. ideologia que é sobreposta ao projeto político do governo militar. transpondo, para análise do nosso contexto Como emissão comemorativa, a cédula se diferencia cultural, modelos e estruturas preconceituais das que compõem a família em circulação menos Há exaltação do projeto de integração nacional de onde o problema se apresenta de maneira por sua estrutura compositiva, bastante próxima pelas vias de transporte, pelas grandes obras diversa? Que outra nação usou com naturalidade da utilizada nas demais emissões do medalhão, do e pelos projetos de ocupação com atividades sua formação étnica em objeto de comunicação que pelas características das imagens calcográficas, agropecuárias e industriais das áreas menos tão amplo como o seu próprio papel-moeda?”5 gravadas quimicamente e sem a delicadeza povoadas das regiões Norte e Centro-Oeste do trabalho de gravado manual da família em do país, cujas baixa densidade demográfica e circulação. A principal diferença, contudo, está na dificuldade de acesso, crê o governo militar, narrativa sociológica que apresenta. podem estimular a cobiça de outras nações. esquerda, estampa os mapas cartográficos que re- Não há mais panteão nobiliárquico-militar8 de No imaginário dessa cédula somam-se as repre- presentam o país ao longo de cinco séculos, com heróis, mas sim o enaltecimento da mestiçagem sentações de uma visão sociológica e antropoló- No reverso o conceito de integração é aplicado às fronteiras nacionais. Uma nova sequência, dessa feita com o sentido cronológico da direita para a 44 Mais uma vez há apelo a “uma narrativa A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppga v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 sio Magalhães de civilização do Brasil pelo design e o projeto político do governo ditatorial. Os 500 anos de descobrimento no papelmoeda: do papel ao polímero, o espetáculo do pós-moderno Em 2000, quando a chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil completa 500 anos, é emitida nova cédula comemorativa; após muitos anos, o dinheiro circulante no Brasil tem uma data histórica como tema de uma denominação. Várias possibilidades temáticas são debatidas entre as equipes do Banco Central e da Casa da Moeda: O que é que se fez na época? Vários estudos de tema. Um deles era a língua portuguesa (...) porque é o elemento que dá unidade ao Brasil (...) e é também uma herança da colonização. Só que foi muito difícil trabalhar o tema língua portuguesa em imagens (...). Na época (...) não se achou interessante se adotar [essa linha] para a cédula de polímero (...) Começou a ficar muito difícil, porque (...) grande escritor nós temos vários também, então fica difícil você definir, é uma questão polêmica, e a gente estava querendo fugir dessas polêmicas naquele momento também. Mais uma vez uma questão do momento, não é? Do governo da época. Então optouse pelo tradicional: Cabral e imagens relativas ao descobrimento: mapa do Brasil de época, uma caravela que foi usada como elemento de segurança e para marca-d’água, os motivos de ARTI G O S | AM AU RY FE RN AN DE S 45 azulejos portugueses que estão nos fundos de segurança... Pois é. E do outro lado o que fazer? (...) Pensouse em fazer, depois de algumas discussões, a história de homenagear tipos brasileiros, mas não na linha do gaúcho, ou da baiana e tal... Mas pessoas! Pessoas comuns. E aí então, tem aqueles rostos atrás que você vê na cédula de polímero, essa foi a linha da época.10 Na definição do tema e do imaginário pelo Banco Central, da forma relatada, fica óbvio que há uma preocupação a atender no projeto da cédula: uma determinada narrativa do nacional comprometida com o projeto político do governo da época. imaginário do país: Eu sei dessa importância até pelas moedas; participei dessas moedas de real. O escolhido pelo povo mesmo foram as figuras históricas, e as figuras históricas são reconhecidas por aquele retrato, por aquele ícone (...). Eu usei a gravura mais antiga que existe do Cabral.12 Provavelmente o ocorrido com a troca do desenho Durante seu relato Regina Fidalgo aborda o fato de da família de moedas metálicas tenha influenciado ter descoberto que a imagem de Cabral tida como essa opção, uma vez que a eleição popular escolheu o projeto dos profissionais da Casa da Moeda do Brasil, que tem seu imaginário baseado em uma visão mais tradicional do meio circulante e promove o retorno dos vultos históricos. A cédula da Thereza Regina agradou em cheio ao cliente (...). No anverso é abordado o Brasil ano um, com contorno do mapa Terra Brasilis, com portrait do descobridor, com microtexto da carta de Caminha, com fundos de segurança baseados em perfis de caravelas e naus, e enfim, todo o anverso é uma homenagem ao ano um e todo o reverso é uma homenagem ao ano 500. Afinal de contas, depois do descobrimento o que aconteceu é o que está sendo retratado no reverso (...) a miscigenação, as características do povo brasileiro como é hoje, através dos portraits lançados em diversas regiões do mapa, que é todo fragmentado, para efetivamente mostrar o resultado dos 500 anos de história, de influências de diversos povos, áreas de colonização diferentes.11 46 Uma pesquisa bem fundada permite escolha de elementos visuais afinada com as determinações do grupo misto. Como relata a autora do projeto, todo o processo de escolha da iconografia da cédula é permeado pela mesma lógica utilizada nas moedas metálicas, havendo, em especial, a preocupação de manter a vinculação do retrato utilizado para imagem historicamente aceita no oficial é produzida bem posteriormente à morte do navegador. Evidencia-se que a intenção principal é determinar qual a figura sedimentada no imaginário brasileiro como representativa do vulto histórico. Além disso, toda a iconografia remete ao que a projetista classifica como “livros de história”, detalhes como o mapa que ladeia o portrait e mesmo os demais elementos complementares, todo o imaginário do anverso da cédula é específico e vinculado ao fato do descobrimento. No reverso a imagem central é a do mapa atual do Brasil; esse lado é marcado pela atualidade, imaginário centrado em vocabulário visual mais contemporâneo. Segundo as palavras da desenhista “coisa de computador, não é? Como se o Brasil estivesse estourando os pixels assim... No mapa do Brasil... E o último pixel crescia e vinha uma pessoa”. Cada pixel carrega uma representação de brasilidade encarnada em um tipo físico que é imaginado, nesse momento, como representativo do cadinho étnico da brasilidade. A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppga v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 Cédula comemorativa dos 500 anos do descobrimento do Brasil, 2000 Imagens capturadas da cédula (coleção pessoal) ARTI G O S | AM AU RY FE RN AN DE S 47 Os pixels estariam em primeiro plano, assim... Aquelas pessoas... Na realidade eram cinco quadrados, por causa das cinco regiões, caracterizando cada região, o tipo... Não é? Assim: Santa Catarina uma loirinha... acabou por se chegar à conclusão de que era melhor não caracterizar mesmo regiões, só as etnias... Tipos físicos... Eu queria mesmo assim mais simples... O povo, o povo brasileiro assim... Que existe... A parte dos índios é que foi mais complicada... de uma cédula por si só já contrasta significativamente com o material tradicionalmente utilizado para fabricar dinheiro: o papel-moeda. A textura própria e diferenciada do papel-moeda, reconhecida pelo tato de praticamente todos os seres humanos como sendo a do dinheiro, já substituiu há décadas o toque do ouro e da prata no imaginário coletivo como matéria-prima do numerário; só em nível mais profundo, quase onírico, as moedas com valor intrínseco reaparecem no imaginário autoridade muito superior à que uma gravura descrito pela documentação do Banco Central atualizada pode ensejar. como sendo “uma sequência das diversas raças, Quase todas as imagens do anverso possuem Em meio aos elementos que promovem a reforçando a ação do portrait. Por seu tipo de integração do discurso visual dos dois lados é configuração visual estão ligadas, no imaginário interessante perceber que a harmonização da brasileiro, ao descobrimento e aos primeiros paleta de cores se dá por contraste da temperatura tempos da colonização as naus, a Cruz da Ordem de Cristo, os motivos da azulejaria portuguesa colonial, mas principalmente o mapa Terra Brasilis. coletivo como representação da riqueza. O As figuras humanas retratadas no reverso são contraste estabelecido, aos dedos mais do que mais simplificadas, personagens anônimas que, aos olhos, já denuncia a passagem desse dinheiro segundo o site do Banco Central, representam do campo do moderno para o do pós-moderno, a “pluralidade étnica e cultural” do Brasil. As pois a proximidade táctil com os cartões de imagens estão embutidas em fundo com os visuais sob esse prisma. quanto a função econômica, e ambos os aspectos crédito e os smartcards similariza as peças tanto por ordem de precedência histórica”. aspectos ancorados na tradição numismática, Sobre a construção de imaginário que reforce determinada identidade nacional de interesse oficial Regina Fidalgo afirma que “a identidade é uma coisa política” − outros entrevistados, aliás, também colocam claramente a questão da escolha de personagens, temas e elementos contornos do mapa nacional, que faz a ligação da cor. A cor fria (o azul) nos remete à sensação de afastamento, e a quente (o laranja), de proximidade, tanto física como temporalmente. Uma vez que “as cores quentes parecem convidarnos enquanto as frias mantêm-nos à distância”14 e devido ao azul frio aplicado, o centro visual da composição do anverso se contrai, e sua presença dominante auxilia na construção de um foco visual entre esses elementos. O mapa, com o de atenção nessa área, que destaca a narrativa contorno desenhado como imagem digital muito histórica ali concentrada. No reverso, a expansão ampliada, atualiza a linguagem gráfica do símbolo do laranja quente das bordas, em maior área, O projeto tem como característica principal de aproximam essa manifestação monetária da seu discurso visual uma mescla de elementos: economia virtual, e não das formas tradicionais os consagrados da representação histórica e do dinheiro da época do capitalismo industrial. que representa uma face da identidade da nação; reforça a sensação de que os pixels se movimentam São, porém, necessárias reminiscências visuais nas palavras da projetista Regina Fidalgo, é “o rumo a um tempo futuro. Assim, a leitura das cores Brasil em pixels”. A fragmentação da imagem na intensifica o jogo passado/presente do discurso composição não é do mesmo tipo das chamadas plástico da cédula como um todo. numismática – em especial a representação figurativa bem realista, o portrait, a marcad’água, a gravura de talho-doce etc. – e outros extremamente contemporâneos, como o que repercutam no imaginário coletivo para que a cédula venha a ser reconhecida como tal; é artes sequenciais, nas quais cada parte pertence a Os aspectos cromáticos somam-se à composição preciso fazer parte de certo conjunto de signos uma narrativa claramente encadeada, como nos socialmente partilhados para que esse significante vitrais sacros ou nas histórias em quadrinhos. Na novo ancore seu sentido ao sentido tradicional cédula, o mapa que sustenta a representação das do dinheiro como representação do valor em si. etnias brasileiras explode, e as figuras humanas – Nesse sentido, o portrait de Pedro Álvares Cabral encapsuladas nos pixels que partem do centro do Se, entretanto, procuramos compreender quais torna-se o elemento físico principal para espelhar mapa – são distribuídas por dispersão por toda a as “narrativas ideológicas dissimuladas, que estão uma tradição numismática incorporada ao objeto composição sem que isso represente uma forma em curso, em todos os conceitos aparentemente com ar contemporâneo e tecnológico. estruturada ou ordenada de narrativa. que flutuam ao redor do mapa “pixelado”. O artifício que mais denuncia essa ancoragem é Nesse aspecto há marcante contraste com o fato de a imagem escolhida para o portrait ser e numerais, parecem flutuar nas espirais visuais a composição da cédula comemorativa do muito similar a outros já utilizados em cédulas determinadas pelas composições e pelas cores, sesquicentenário da independência que teve soltos pela inexistência das tarjas e rosáceas – temática idêntica. Nela as faces representantes desenhos geométricos tão comuns em cédulas das diferentes etnias integram-se e se apresentam mais antigas. Dessa forma o anverso/passado e em composição aglutinadora naquilo que está o reverso/presente estão igualmente estruturados próprio polímero no qual a cédula é produzida ou os pixels como fragmentos visuais que explodem da composição do reverso e acabam dominando a cena. não narrativos”, como os signos visuais e mesmo 13 a base física sobre a qual essa cédula é impressa, poderemos perceber algumas relações significativas que esse novo dinheiro pode representar. 48 impressão brasileiras. A identidade histórica do personagem Em um primeiro nível de análise a escolha remete à representação centenariamente aceita, do que valida a circulação do signo novo com polímero como matéria-prima para A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppga v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 centrípeta do layout do anverso, que concentra os elementos gráficos de maior interesse nos centros e deixa a periferia da face ocupada por elementos cujos significados são menos presentes − em contraponto à composição centrífuga do reverso, que expande o tempo através dos elementos Alguns outros elementos gráficos, como dísticos ARTI G O S | AM AU RY FE RN AN DE S 49 e unidos visualmente, apesar de separados pela e representam, cada um a seu modo, narrativas ao realizado pelo Banco Central do Brasil em governamentais, linguagem gráfica aparentemente contraditória. visuais sobre a brasilidade oficialmente instituída. 1972, no sesquicentenário. O valor facial da portuguesa e brasileira ou militares já falecidos, Próximos, por expressar a mestiçagem como cédula não é o maior do meio circulante. A exceção identidade nacional, diferenciam-se na importância primeira emissão compõe o meio circulante e é homenageado em vida. atribuída a esse ponto, nas opções plásticas que concebida de forma publicidade da ideologia do 9 João de Souza Leite, designer e um dos principais constroem seus imaginários e nos vínculos que governo militar. A emissão do descobrimento é colaboradores de Aloisio Magalhães, em entrevista ao reproduz em ambos os lados da cédula. Indicadora estabelecem com o imaginário coletivo. fruto da celebração, mas ainda assim espelha as autor em 2006. Todos os relatos aqui apresentados das direções de navegação, seu sentido pode ser No projeto da cédula do sesquicentenário opta- dificuldades de construção da identidade nacional são originários das entrevistas realizadas para a tanto o de representar a guia dos navegadores das se por esquema rígido de divisão geométrica na virada do milênio, expõe a fragmentação dos pesquisa da minha tese de doutorado Uma etnografia naus portuguesas do anverso/passado quanto dos das áreas da composição, com aprisionamento discursos políticos e as tentativas de apropriação do dinheiro: os projetos gráficos de papel-moeda no das grandes narrativas do nacional por um governo Brasil após 1960, PPCIS/Uerj, 2008. com dificuldades de construir narrativa própria. 10 Um elemento mais do que todos promove a integração de significados e essa união de passado e presente: a rosa dos ventos que envolve a janela transparente e vermelha do polímero e se modernos navegantes da internet, cujos pixels do reverso/presente explodem. geometria; a paleta cromática é muito discreta, e Por essas razões é possível considerar que o os contrastes de tom determinam a concentração imaginário da cédula foi extraído “de um novo da atenção em determinadas áreas; além disso, a domínio da realidade das imagens, que é a um composição visual muito se aproxima das cédulas só tempo ficcional (narrativo) e factual”,15 no qual em circulação, não a distinguindo como signo as imagens de personagens históricos e realidades novo, mas reforçando a validade de um discurso passadas e futuras são construídas, tornando-se visual moderno, já em circulação. Nesse momento tradicionais e partes de uma invenção da narração o discurso da integração nacional se estabelece coletiva do nacional pressentida e representada pela sucessão e aglutinação dos elementos através do inconsciente da projetista. discursivos, e é referendado pelo panteão de Diferentes, mas iguais Em 2002 a União Europeia lançou a família de cédulas de sua moeda, o euro, que se vale de elementos arquitetônicos para transpor a barreira das nacionalidades e integrar o meio circulante do continente sem que haja polêmicas por conta do emprego de algum vulto histórico. Recentemente os Estados Unidos iniciaram a troca de seu meio circulante, e a manutenção das efígies dos “Pais Fundadores” foi adotada para, exatamente ao contrário da Europa, reforçar a identidade nacional estadunidense. Os discursos apresentados pelas duas cédulas comemorativas emitidas no Brasil são distintos 50 e subordinação dos elementos figurativos à feita Márcia eram ao figuras presidente Barbosa Silveira, das nobrezas Getúlio Vargas, funcionária do Banco Central, formada em arquitetura, então coordenadora do grupo misto de trabalho que NOTAS resolve as questões relativas aos projetos de cédulas 1 Simmel, Georg. Filosofía del dinero. Granada: e moedas, em entrevista ao autor em 2006. Comares, 2003:5. Biblioteca Comares de Ciencia 11 Entrevista ao autor de Glória Ferreira Dias, chefe Jurídica. Colección Crítica del Derecho, v.44. da Seção de Projetos Artísticos da Casa da Moeda do 2 Marx, Karl. Contribuição à crítica da economia Brasil na ocasião, em entrevista ao autor.. política. São Paulo: Martins Fontes, 2003:107. 12 Thereza Regina Barja Fidalgo, desenhista da Casa Coleção Clássicos. da Moeda do Brasil, autora do projeto da cédula heróis nacionais em circulação. 3 Antes da cédula comemorativa do sesquicentenário comemorativa dos 500 anos do descobrimento do Na cédula do descobrimento há contraste a família do padrão cruzeiro novo, que entra em discursivo entre anverso e reverso. Linguagens 13 Jameson, Fredric. Modernidade singular: ensaio circulação em 1967 – chamada de família medalhões. sobre a ontologia do presente. Rio de Janeiro: 4 Leite, João de Souza. A herança do olhar. O design de Civilização Brasileira, 2005. Aloisio Magalhães. Rio de Janeiro: Artviva, 2003:210. 14 Arheim, Rudolf. Artes & percepção visual: uma 5 Idem. psicologia da visão criadora. São Paulo: Pioneira/ em seus aspectos estruturais. A absorção de 6 Hall, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. 10 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005:55. arquitetura e urbanismo. elementos tradicionais, em sua maior parte respeitando a linguagem estabelecida pela 7 Bhabha, Homi K. Narrando la nación. In Bravo, numismática, vincula o signo à tradição, em Álvaro Fernandez (org.). La invención de la nación: contraponto com seu suporte, que o liga ao lecturas de identidad de Herder a Homi Bhabha. meio monetário do século 21. Buenos Aires: Manantial, 2000:214. visuais diferentes distanciadas no da independência Aloisio Magalhães desenvolve estabelecem tempo e narrativas integradas no plano discursivo pela paleta cromática e pela visualidade das composições, complementares Brasil, em entrevista ao autor em 2007. Edusp, 1980:360. Biblioteca Pioneira de arte, 15 Jameson, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 2002:283. Série Temas, v.41. do 8 Até a emissão dessa cédula em 1972 todos os Amaury Fernandes é professor da Escola de descobrimento destoam da família existente personagens que tiveram seus portraits estampados Comunicação e do Programa de Pós-Graduação nas cédulas brasileiras, emitidas por entidades em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFRJ. Os aspectos visuais da emissão no meio circulante, em movimento oposto A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppga v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 ARTI G O S | AM AU RY FE RN AN DE S 51 FESTAS REAIS EM PORTUGAL E NO BRASIL COLÔNIA: organização, sentido, função social Cybele Vidal Neto Fernandes festas artistas artífices barroco O artigo trata do conceito de festa no mundo português e no Brasil colonial. Analisa os elementos que fazem parte de sua estrutura, assim como a relação com projeto único e a relação que mantém com as mais diversas camadas da população. A análise visa compreender a festa como expressão sociopolítica e cultural. O cortejo joanino passeou-se com todo o seu esplendor, por ruas e praças de Lisboa até ao Terreiro do Paço, onde se apearam e se dirigiram, debaixo do pálio, levado por membros do Senado de Lisboa Ocidental (...) Os dias que se seguiram foram tempos de festa popular. Ao pasmo que as montanhas de ouro e as luzidias galas provocaram em todos os que, passivamente, se deixaram ROYAL FESTIVALS IN PORTUGAL AND COLONIAL BRAZIL: organization, meaning, social function| The article addresses the concept of festival in Portugal and colonial Brazil. It analyzes the elements that are part of its structure and the relationship with a unique project and the continuing relationship with the different layers of the population. The analysis aims to understand the festival as a cultural and socio-political expression. | Festivals, artists, crafts, Baroque. embalar pelas grandezas dos que iam passando pelas ruas e praças, seguiram-se dias de touradas e noites de luminárias e fogos de artifício no Terreiro e no Castelo, enquanto os salões do Paço da Ribeira se enchiam de bela música.1 Desde a Antiguidade as sociedades organizavam cerimônias de comemorações motivadas por acontecimentos que fugiam à realidade cotidiana. Essas celebrações podiam referir-se a fatos extraordinários ligados à vida dos governantes, como nascimentos, mortes, casamentos, vitórias em batalhas, datas especiais referentes ao calendário anual, ou às festas religiosas. Eram acontecimentos singulares, impregnados de forte carga simbólica, capazes de sensibilizar a sociedade e promover momentaneamente uma transformação, uma nova ordem social. A festa criava um sentimento especial que unia os cidadãos em torno de um objetivo comum, a manifestação da aceitação do motivo da festa, através das mais diversas formas de expressão. Prestígio das endoenças, c. 1722, nave da Igreja da Santa Misericórdia, Salvador, Bahia. Azuleijos de Portugal e Brasil. Revista Oceanos, Lisboa: Comissão Nacional para as comemorações dos Descobrimentos Portugueses, n. 36-7, outubro 1998-março 1999: 63-64. Foto André Ryoki. 52 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 ARTI G O S | CYB E L E V I DAL N E TO FE RN AN DE S 53 Foi a partir do século 17, na corte de Luiz XIV, interna, ou originada de Portugal e outros países, em torno de um fato extraordinário e ao mesmo detinham na organização das diversas etapas na França, que as celebrações das monarquias fato que impulsionou o surgimento de numerosas tempo introduziam hábitos e costumes em da festa, conduzindo o leitor a uma verdadeira ganharam maior importância em toda a Europa, vilas e cidades. Essa população deu origem a uma uma população inculta e sedenta de formação viagem no tempo, criando também uma espécie com o surgimento do sistema absolutista e do sociedade muito complexa, na qual ambição e informação. Nesse sentido, há relatos que se de receituário, que a tradição consagrou. fortalecimento dos Estados Nacionais. Naquela de enriquecimento era o sentimento comum, referem às festas em que o papel da Igreja era época, observou-se a reapropriação de antigas alimentado pela euforia do ouro cada vez mais primordial, especialmente na organização das tradições ligadas às festas gregas e romanas, abundante. Nesse contexto, foi na região das procissões, que seguiam a tradição espanhola para homenagear a figura divina do rei e criar Minas Gerais que ocorreram os mais grandiosos e portuguesa, nas quais a sociedade se fazia os magníficos cenários das festas reais, que se espetáculos ligados às festas reais e religiosas.3 representar em suas diferentes camadas, como tornaram cada vez mais elaboradas. Sua realização Os diferentes grupos da sociedade atuavam em os religiosos, os homens nobres e de negócios, promoveu a formação de equipes dos mais diversos conjunto para a preparação da festa, participando os militares, as ordens terceiras e as bandeiras de profissionais, cada vez mais bem preparadas. Esse com seu trabalho ou patrocinando parte dos ofício, os homens simples, sendo famosos os relatos modelo francês espalhou-se por toda a Europa, festejos, visando sempre a seu brilhantismo. A festa referentes à Bahia, a Pernambuco, ao Rio de Janeiro.6 previsto. Era comum, por exemplo, a dilatação graças às notícias e às gravuras que circulavam, promovia o conhecimento, o congraçamento, a especialmente sobre a corte de Versailles.2 alegria, o orgulho da cidade.4 Para compreendermos a festa no mundo por- importância da festa, cujo programa, muito Essa forma de celebração chegou a Portugal Foi também no século 18 que ocorreu o cultural, vamos analisar os elementos de sua es- e alcançou ampla repercussão no país e nas fortalecimento das ordens terceiras, instituições trutura, assim como sua importância como mó- colônias, onde as festas reais eram celebradas que trouxeram alterações na ordem social, com vel de um projeto único e grandioso que, para Entre os pesquisadores que mais contribuíram por ordem régia, mesmo que ocorressem muito suas organizações de caráter religioso e assistencial, se realizar, dependia do envolvimento das mais com o estudo do tema festas reais realizadas na tempo depois do acontecimento que as movera. pois promovia o orgulho do pertencimento. Suas diversas camadas da população, do nobre ao tra- cidade do Porto, Joaquim Jaime Ferreira-Alves As celebrações dos séculos 17 e 18 tinham ênfase regras e o cerimonial eram muito respeitados e balhador comum, cada um realizando seu papel, conseguiu reunir farta documentação arquivística, na festa barroca, com todos os elementos que reconhecidos, funcionando também como um cuja participação em função do brilhantismo da analisada em seu trabalho A festa barroca no traduzissem o dramático, o excesso, o simulacro, sistema compensatório (uma vez que concedia festa situa-se, pode-se dizer, no mesmo patamar Porto a serviço da família real na segunda metade o êxtase, a luz, a vida, a morte. Portugal soube alguns privilégios junto ao Senado da Câmara e de importância. do século 18. Subsídio para seu estudo.8 Suas interpretar com entusiasmo esse fenômeno, com a outros órgãos do governo). A rivalidade entre pesquisas vão ajudar-nos a compreender melhor celebrações comemoradas com toda a pompa, essas instituições resultou em várias iniciativas que a organização dos festejos, seu programa, a fosse na capital ou nas demais cidades e vilas identificavam o orgulho da população em defesa A organização execução de seu projeto, o tempo da festa, cujo do país e das colônias. Esse modelo alcançou o de suas tradições. As festas, a partir desse contexto, modelo posteriormente orientou as que foram Brasil de forma oficial, ou chegou através dos foram comemoradas com grande entusiasmo e Todas as ações em favor da festa partiam do artistas e artífices migrantes. Era inegável que pompa nas cidades e periféricas. o brilhantismo das celebrações dependia da centro para as periferias, procurando unir todas da festa, mas nem sempre era cumprida dessa maneira; houve festas no Brasil, por exemplo, que ocorreram com grande defasagem em relação ao motivo que as originou, pois, muitas vezes, o anúncio da festa chegava ao interior com atraso, e os preparativos não terminavam no tempo do tempo de preparação em função da própria complexo, precisava contar com profissionais especializados, nem sempre existentes na região. realizadas no Brasil, até o século 19. as partes num todo comum, isto é, trabalhando no sentido de dar coerência a sua motivação, participação de todos, letrados ou não, ricos ou 54 tuguês, em toda a sua expressão sociopolítica e A etapa de preparação dava-se logo após o anúncio enfatizando a figura do governante e de todas A razão da festa ou motivação, o anúncio, pobres, nobres ou negociantes, representantes da A festa no mundo português Igreja, delegações estrangeiras. A historiografia da arte portuguesa tem-se previsto o tempo de preparação, convocavam- A motivação para as festas reais eram nascimentos, Nas regiões interioranas, em especial em Minas dedicado ao tema da festa e trazido à luz se as equipes de trabalho para a execução das mortes, casamentos, comemorações nacionais Gerais, no século 18, esses acontecimentos notícias, documentos, relatos descritivos, com tarefas programadas.7 Os festejos eram descritos relevantes. O primeiro passo era o anúncio, alcançaram enorme sucesso a partir da descoberta destaque especial para as festas de Lisboa e do por relatos de pessoas letradas, com licença feito através de carta régia ao governador das de ouro e pedras preciosas, levando ao rápido Porto. Também no Brasil, desde o século 17, a oficial para realizar tais narrativas. Esses relatos Armas, ao Senado da Câmara, ao bispo, que aumento da população, graças à migração Igreja realizou festas que congregavam todos funcionavam como “leitura autorizada” e se se encarregavam de dar as primeiras notícias. 5 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 as suas representações. Anunciada a festa, e o bando ARTI G O S | CYB E L E V I DAL N E TO FE RN AN DE S 55 Seguia-se depois a divulgação da notícia ao como diziam os cronistas sobre a cidade do Rio povo, cuja participação era solicitada. O tríduo, de Janeiro, no século 19, cujos morros surgiam ao determinava que a comemoração tivesse pelo longe, como um verdadeiro presépio, iluminado menos iluminação por três dias, nas casas e na pelas velas de cera e lampiões variados. Nos salões cidade, missas e procissões. O programa da festa ou construções efêmeras, os lustres de cristal era geralmente elaborado pelos homens cultos iluminavam com suntuosidade o ambiente. da cidade, que se reuniam em suas instituições e se colocavam a serviço do evento. Jaime Ferreira-Alves chama atenção para o fato de que nem sempre os três dias de programação eram respeitados, pois o entusiasmo do povo levava ao prolongamento das manifestações da festa por muitos dias. Às vezes, buscavam-se efeitos mais espetaculares com o uso da luz: é o caso dos “transparentes” ou painéis em papel com imagens ou textos escritos, que realçavam com o efeito das sombras contra a luz. As casas se enfeitavam e, ao mesmo tempo, faziam saudações aos homenageados com figuras simbólicas, votos ou versos, utilizando A notícia era divulgada nas ruas pelo “bando”, textos clássicos, escritos por pessoas de formação grupo de pessoas que incluía o porteiro, o alcaide erudita, muitas vezes de difícil entendimento da cidade, e homens e oficiais. Seguiam em trajes pelo povo comum, mas recebido pela população de gala, alguns a pé outros a cavalo, todos bem- como forma correta de comunicação e saudação vestidos, a tocar tambores e clarins, chamando ao homenageado. a atenção do povo nos dias que antecediam os festejos anunciando, ao longo do dia, a grata notícia. O bando tinha, na verdade, duas funções: levar a notícia e abrir os festejos com os sons, os trajes coloridos, o desfile, transmitindo a todos o sentimento da festa, a ser absorvido pelos habitantes da cidade. Como exemplo, lembremos a decoração que o artista inglês Mr. Bouck realizou, no Rio de Janeiro, por ocasião da festa de aclamação de dom João VI, quando foi contratado pelo intendente de polícia Paulo F. Viana para decorar a fachada de sua residência, no Campo de Santana. Mr. Bouck criou um aparatoso conjunto, com efeitos dos Aclamação de D. Pedro I Imperador do Brasil, no campo de St.ª Anna no Rio de Janeiro transparentes, com o retrato do rei, ao lado dos Luz, sons ou ruídos Elementos imprescindíveis na festa, seu uso era enfatizado, no sentido de contaminar a cidade 56 Gênios dos Três Reinos, Portugal, Brasil, Algarves, arrematado com a frase “A indelével memória da feliz coroação do Augusto Senhor dom João VI”. e dos navios ancorados no porto, a acordar a e ornamentações que às vezes ultrapassavam população e a acompanhar os acontecimentos.10 o espaço dos templos, quando havia cortejo pelas ruas − os moradores emolduravam as e manter vivo o espírito da celebração. A luz era Os sons eram também muito importantes: todos Os homens ricos e de negócios promoviam bailes um artifício ao alcance de todos, pois poderia ser os sinos tocavam acordando a cidade; os navios e jantares faustosos em suas residências, em que janelas com colchas e toalhas bordadas, jogavam utilizada em maior ou menor quantidade, colocada faziam suas descargas nos portos e baías, os a música estava sempre presente. flores, iluminavam suas casas, saíam às ruas para nas fachadas ou completando os carros e demais tambores se sucediam nos desfiles, o povo cantava, arranjos ou as montagens em arquitetura efêmera, e os múltiplos sons se misturavam, mantendo que se multiplicavam pelas praças e ruas. Segundo a animação da festa. Seguindo a tradição, os Ofícios religiosos: missas, Te Deum, procissões Jaime Ferreira-Alves, a luz transformava o cenário relatos sobre as celebrações no Rio de Janeiro da cidade “vencendo a escuridão e seus medos”.9 testemunham as salvas de canhões das fortalezas A Igreja tinha participação obrigatória nas festas, imperial, logo após dom Pedro ser aclamado pelo O espaço da cidade se prolongava através da luz, que protegiam a entrada da Baía de Guanabara e o fazia com grande pompa, promovendo povo e homenageado com uma salva de 101 cerimônias para as quais eram preparados cenários tiros, do palacete armado para a celebração, no A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 participar da celebração. Nas solenidades da aclamação de dom Pedro I, o Te Deum, ou missa solene, foi celebrado na capela ARTI G O S | CYB E L E V I DAL N E TO FE RN AN DE S 57 Campo de Santana. As procissões eram também quais homens portando vestes e armas medievais desfiles de grande significação, contando com a lutavam em defesa de suas convicções religiosas. Às presença das mais altas representações da Igreja, vezes esses combates se davam na arena, antes das do Estado, da sociedade local, além dos grêmios touradas, animando o povo para a luta final com os e demais agrupamentos.11 No Rio de Janeiro, a animais. “Em 1757, João de Almada e Melo, para mais famosa era a Procissão das Cinzas, que comemorar o aniversário de dom José I – em 6 de seguia com grande aparato pelas ruas da cidade junho – realizou na Cordoaria um exercício militar abrindo os festejos da Quaresma. Essas procissões que consistiu no ataque a uma fortaleza...”13 barrocas, nas regiões interioranas, tinham um tom ainda mais dramático, sendo o ponto alto da festa nas comemorações em honra da família real O teatro, as óperas, a música, o canto ou nas festas do calendário litúrgico. A programação de gala dos teatros era muito esperada, principalmente as óperas, por serem espetáculos mais completos, com o canto e a Touradas dança, indumentárias apropriadas, cenários muito Entre as muitas manifestações que ocorriam na elaborados. Às vezes as companhias de óperas festa, eram observados jogos e outras atividades vinham de longe para promover os espetáculos, de grande gosto popular, como as “touradas”. previamente anunciados, e muito aguardados pelo Eram muito povo. Era comum as representações ultrapassarem aparato, precedidos por desfiles alegóricos, pelo os dias previstos para a festa, bem como haver carro de aguar o chão, por música, dança e fogos necessidade de improvisar a construção de um de artifício. Não havendo praças de touros, eram teatro, resultando desses espaços efêmeros, montadas praças provisórias em algum terreno por exemplo, o Teatro do Corpo da Guarda e propício da cidade para abrigar os espetáculos: posteriormente o Teatro São João, no Porto. No “Sobre os divertimentos o mais célebre e plausível Brasil, na aclamação de dom Pedro I, Debret criou é o combate de touros, ou seja a pé ou a cavalo: um novo pano de boca, uma alegoria na qual festa (...) para a qual todos concorrem com o governo imperial foi representado como uma grandes gostos, e se fazem com muito aparato e mulher sentada e coroada, usando túnica branca magnificência”.12 e o manto ricamente bordado, portando as armas espetáculos preparados com cenários e carros alegóricos, de difícil execução. Europa. De modo geral, eram erguidas “varandas” Desde o mais simples artesão ao mais bem para as autoridades, muitos arcos de triunfo e Simulações de batalhas e lutas formado, como o alfaiate, o ferreiro, o marceneiro, obeliscos, espaços provisórios para celebrações, Eram de grande gosto popular as lutas e simulações o arquiteto, o escultor, o pintor, todos eram teatros, monumentos ao homenageado. Sabe-se requisitados para trabalhar em função da festa, das atividades desses profissionais pelos numerosos geralmente em espaço de tempo muito reduzido. contratos que assinavam para esses empreendimentos do imperador e segurando na mão direita a Constituição do Brasil.14 de batalhas vitoriosas, revividas através de um 58 Festas do casamento de dom João e dona Carlota Joaquina em Madri. Muzi (a.,d.,1785). Óleo sobre papel, 37 x 54 cm. Dom João VI e seu tempo. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999: p. 175. Lisboa, Coleção Maria Keil Amaral. Foto André Ryoki A arquitetura efêmera, os artistas e artífices verdadeiro teatro de rua. As batalhas sempre A festa transformava o espaço da cidade, com o foram apresentadas como espetáculo popular de recurso das arquiteturas efêmeras. Para realizá-las sucesso, desde os tempos dos jogos romanos. Em eram chamados os melhores artistas e artífices, Portugal, segundo Ferreira-Alves, tinham muita mão de obra especializada, capazes de responder aceitação as lutas entre cristãos e mouros, nas adequadamente pelos numerosos projetos de A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 A Igreja, as representações, o Exército, o Senado da Câmara, todos propunham projetos, cujos e também pelos frequentes processos referentes à falta de pagamento aos executantes.15 temas eram buscados no vocabulário clássico e Por ocasião da aclamação de dom João VI foi nas gravuras das festas reais, que percorriam toda a erguida a Varanda da Aclamação, projeto do ARTI G O S | CYB E L E V I DAL N E TO FE RN AN DE S 59 de fogos e profusamente iluminada, o Gênio da Concórdia coroava um grande painel oval com os retratos de dom João e dona Carlota Joaquina e, mais abaixo, protegidos pelo Himeneu, divindade grega protetora dos casamentos; outros dois painéis, colocados nas esquinas, tinham os retratos dos noivos, dom Carlos e dona Maria Tereza. Seis meses depois ocorreram mais sete dias de festas, a cargo do intendente de polícia Paulo Fernandes Viana. No Campo de Santana, foi montado um imenso jardim, com anfiteatro quase circular, com 348 camarotes, Fogos de artifício e carros alegóricos Como a luz e os sons, os fogos de artifício não poderiam faltar nas festas reais, sendo utilizados de forma cada vez mais complexa. Recurso de grande efeito, requeria a contratação de especialista em sua preparação e estava associado às encomendas oficiais. Os fogos de artifício eram geralmente utilizados nas touradas e desfiles de carros alegóricos, e proporcionavam momentos espetaculares na festa. em dois andares. Uma ampla varanda com três Os carros alegóricos também não faltavam e janelas dava acesso à chamada Praça do Curro, com eram sempre muito esperados. Criações muito cenário tropical de jardim com palmeiras. originais, eram, de modo geral, oferecidos pelas Vista exterior da varanda da aclamação de dom João VI (no Rio de Janeiro) Pano de boca executado para o Teatro da Corte, para a representação da cerimônia por ocasião da coroação do imperador dom Pedro I arquiteto português João da Silva Muniz. Fazia face com a frontaria do antigo Convento do Carmo, abrindo-se para a praça através de 19 arcos, sendo o central destacado do plano de fundo, em formato de tribuna. No interior, ricos lustres de cristal, paredes revestidas de veludo e seda, e pinturas alegóricas no teto comemoravam as virtudes de dom João. Ali o rei, sentado no trono, de uniforme e segurando o cetro − de acordo com a tradição e o protocolo − foi aclamado, mas não coroado. A coroa foi depositada em uma almofada a seu lado, durante a cerimônia. 60 O espaço mágico da festa A festa se fazia em grandes espaços, fossem os fechados das residências, edifícios públicos, igrejas e teatros ou os abertos das ruas e praças. Jaime FerreiraAlves lembra que, na maioria desses espaços, havia a duplicidade do uso, que se alternava entre o sagrado e o profano. Geralmente determinada atividade tinha seu percurso demarcado por um mapa oficial, e esse espaço era então preparado adequadamente para tal função, como se pode observar em vários documentos da época. A música ficou a cargo da orquestra de músicos Em 1810, para comemorar o casamento da austríacos trazidos pela princesa Leopoldina. infanta Maria Tereza, em uma armação munida A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 ARTI G O S | CYB E L E V I DAL N E TO FE RN AN DE S 61 associações de comércio e homens de negócio, complexidade da população, do espaço tropical, Afonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco. Brasil as Procissões de El Rey ou Procissões Gerais, e baseavam-se nos temas mitológicos, utilizando das lutas pela sobrevivência, da forte presença São Paulo: Editora Perspectiva, 1980; Arantes, como rezavam as Constituções Primeiras ordenadas representações da Igreja, o verdadeiro poder em ação nas terras Adalgisa. O Triunfo Eucarístico e a universalidade. pelo Direito canônico, leis e ordenações do Reino e função do homenageado. Eram construções da colônia. A festa, como estrutura organizada, Revista Barroco n.15. Belo Horizonte, 1992. costume do Arcebispado da Bahia. Flexor, Maria H. bastante complexas, com figurantes fantasiados nunca foi estanque, e sofreu mutações ao longo e recursos de jatos de água, luz, fogo, som. Esses do tempo, mantendo porém suas características 5 O tema das festas reais vem sendo estudado desfiles buscavam animar o povo e estimular sua mais marcantes, em função da glorificação do rei e imaginação; assim sendo, adotavam também da fé comum. No Brasil, a festa promovia, ainda, o a bibliografia ligada à Península Ibérica, pela temas exóticos, recebidos com entusiasmo, ao conhecimento através do vocabulário esclarecido aproximação das culturas espanhola e portuguesa, e lado do vocabulário clássico, mais comum, sendo utilizado, dos mecanismos de perpetuação de seus reflexos nas festas da Corte. Foram contribuições lembradas a África, a China, as Américas com seus tradições dos povos, das propagandas de ideias ao tema: Bonnet Correa, A. Arquitetura efímera. 14 Debret, J.-B. Viagem pitoresca ao Brasil. São mistérios. No Campo de Santana, comemorando e ideais de amor à terra, ao governante, à ordem, Ornatos Y máscaras. El lugar y la teatralidade de Paulo: Edusp, 1978:326-329. o casamento da infanta Maria Tereza, desfilaram como elementos estimuladores das ciências e das la fiesta barroca. In Teatro y fiesta em el Barroco. vários carros alegóricos ofertados: 1- comerciantes artes, como formação da ideia de Brasil. España e iberoamérica. Barcelona: Ed. El Serbal, simbólicas e alegóricas, em barroco. Disponível em ler.letras.up.pt\uploads\ Disponível em http-www.ichs.ofop.br-memorial- trab.2-152. Acesso em 30.8.2011. 12 Ferreira-Alves, op. cit.:24. 13 Ferreira-Alves, op. cit.:26. 15 Para a festa eram convocados artífices e artistas disponíveis na cidade, obrigados a colaborar sob pena de multa. Havia trabalho para todos e seria impossível listá-los aqui. Quando os mestres 3- negociantes de secos e molhados e de louças NOTAS ficheiros\7544.pdf. Acesso em 12.9.2011; França, (Carro da Imortalidade com a dança dos heróis 1 Tedim, José Manuel. Triunfo da festa barroca na portugueses); 4- artesãos latoeiros, ferreiros, Corte de D. João V. A troca das princesas. Revista Lisboa: Livraria Bertrand, 1977. segeiros, caldereiros (a dança dos mouros); 5- Barroco, n.19. Belo Horizonte, 2001-2004:121-136. 6 Hansen, João Adolfo. Festas e sociabilidade do artistas portugueses que estavam no Rio de Janeiro: o 2 Benoist, Luc. Versailles et la monarchie. Paris: poder real e as festas públicas no Rio de Janeiro arquiteto João da Silva Muniz, na Aclamação de dom colonial. São Paulo: Edusp, 2001. João VI; o inglês Mr. Bouck, no casamento da infanta carpinteiros que executaram a obra do curro (danças militares); 6- um grande barco com bailarinos. O Carro da América representava Éditions de Cluny a Paris, 1947, 5 V, V II, pranchas 23-31; Garnot, Nicolas Saint Fare. Le décor des o povo e as terras do Novo Mundo, através de Tuileries sous le règne de Louis XIV. Paris: Ed. De la uma montanha sobre a qual uma índia, de pé, Réunion des Musées Nationaux, 1988. simbolizando a América, a cabeça coroada com um cocar de penas coloridas, arco e flecha na mão, remetia à luxuriante floresta tropical, com sua rica vegetação, flores e animais. Nesse carro uma engrenagem fazia jorrar água ao longo do percurso, refrescando o ambiente. Esse painel sobre as festas reais no mundo português revela que a festa é um acontecimento singular, que desde o passado se manifestou nas diferentes sociedades como instrumento eficaz de socialização e perpetuação das tradições. Muito importante em Portugal, chegou ao Brasil 62 das mentalidades. Interessa-nos mais de perto 1986; Tedim, J. M. A festa e a cidade no Portugal do varejo e boticários (Carro da América); 2ourives de ouro e prata (a dança dos chineses); na Europa e em Portugal, inserido na história O. Procissões na Bahia: teatro barroco a céu aberto. 3 São muito conhecidos os relatos referentes às Procissões das Cinzas, de Corpus Christi, as entradas de bispos e principais da Igreja nas cidades, os festejos especiais das cidades e vilas, como o translado do Santíssimo Sacramento da Igreja do Rosário dos Pretos, em Vila Rica, para a Matriz de Nossa Senhora do Pilar, em 1733, denominado o Triunfo Eucarístico. Essa festa reflete todo o contexto da sociedade setecentista das Minas e foi descrita pelo lisboeta Simão Ferreira Machado, em relato publicado em Lisboa, em 1734. Cf. Fernandes, Luciano Oliveira. Festa barroca e documento-monumento. Disponível em www.ichs.ufop.br\memorial\trab2\1521. pdf. Acesso em 17.9.2011. e, graças às características da sociedade colonial, 4 Cf. Del Priore, Mary. Festas e utopias no Brasil foi assimilada de forma enfática, revelando a colonial. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994; Ávila, A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 José Augusto. Lisboa pombalina e o Iluminismo. 7 Gervásio, Flavia Klausing. Festas para El Rei. Relatos e símbolos das festividades régias na América portuguesa setecentista. Belo Horizonte, Dissertação de Mestrado, UFMG, 2008. franceses chegaram ao Rio de Janeiro no século 19, Grandjean de Montigny e Debret trabalharam muito para as festas da corte. Também são citados os Maria Tereza; Manoel da Costa, decorador português, pintor e cenógrafo, que chegou ao Rio de Janeiro em 1811; Luiz Xavier Pereira, maquinista do Teatro Real, e muitos outros registrados nos contratos de encomendas ou que ficaram no anonimato. Fernandes, 8 Ferreira-Alves, J. J. A festa barroca no Porto ao C.V.N. As construções efêmeras e as transformações serviço da família real na segunda metade do dos cenários para as festas e celebrações na Corte do século XVIII. Subsídios para o seu estudo. Revista Rio de Janeiro. Anais do CBHA: Rio de Janeiro/Belo da Faculdade de Letras. Porto, s.d. Disponível em Horizonte: Comarte, 2009. ler.letras.up.pt\uploads\ficheiros\2102. Acesso em 30.8.2011. 9 Ferreira-Alves, op. cit.:18. 10 Para descrição completa da cerimônia, ver Souza, Octavio Tarquinio de. A vida de D. Pedro I. In História dos fundadores do Império do Brasil. Belo Horizonte/ São Paulo: Itatiaia/Edusp, 3v, 1988. 11 Segundo Maria Helena O. Flexor, passaram ao Cybele Vidal Neto Fernandes é doutora em história social da cultura, pós-doutoranda pela Universidade do Porto, Portugal, e professora do Departamento de História e Teoria da Arte do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFRJ. ARTI G O S | CYB E L E V I DAL N E TO FE RN AN DE S 63 A IMERSÃO NO PANORAMA DE VICTOR MEIRELLES Cristina Pierre de França imersão panorama ilusão século 19 Fruto da tese de doutorado A paisagem imersiva: O Panorama do Rio de Janeiro, de Victor Meirelles e a videoinstalação Fluxus, de Arthur Omar, defendida no Programa de Pós-Graduação de Artes Visuais da EBA/UFRJ, orientada pela profa. Ana Cavalcanti, o artigo discute a questão da imersão e sua constituição no Panorama, um meio que alia tecnologia e entretenimento no século 19. O século 19 foi intenso no campo da arte, tanto na Europa quanto no Brasil. Em sua segunda metade, dois artistas polarizaram a preferência dos críticos e do público do país, Pedro Américo (1843-1904) e Victor Meirelles (1832-1903). Formados pela Academia Imperial de Belas Artes, ambos refletiam as tensões do meio artístico nacional, de um lado norteados pelos ensinamentos da Academia Imperial de Belas Artes, formadora de sua filiação IMMERSION IN THE PANORAMA OF VICTOR MEIRELLES | The article discusses the issue of immersion and its constitution in the Panorama, a medium that combines 19th-century technology and entertainment. This paper is the result of my doctoral thesis − Immersive Landscape: The Panorama of Rio de Janeiro by Victor Meirelles and the video-installation Fluxus by Arthur Omar, presented to PPGAV-EBA/ UFRJ, under the guidance of Prof. Ana Cavalcanti. | Immersion, Panorama, Illusion, 19th century. artística, de outro, pelas novas correntes da arte europeia com as quais tinham contato, devido ao Prêmio de Viagem ganho por Meirelles, que o tornou bolsista da Academia Imperial, e à bolsa concedida pelo imperador a Américo, o que lhes proporcionou longa estada no velho continente. No caso de Victor Meirelles, essa aproximação das correntes europeias de arte pode ser observada nos Panoramas, produzidos pelo artista no final do século 19. Essa modalidade artística corresponde a uma forma específica de representação da paisagem realizada no país, com maior intensidade a partir da segunda metade do Oitocentos, observada nas representações dos pintores nativos e dos artistas viajantes que aqui aportavam. É importante distinguir essa pintura de paisagem, em voga no Brasil do século 19, que representava a natureza local, do Panorama como invenção. No primeiro caso, as pinturas de panorama podiam ser Panorama de Mesdag. The Hague. Rotunda Fonte: Comment, Bernard. The Painted Panorama. New York: Harry N. Abrams,Inc, 2000: p88 64 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 ARTI G O S | CRI S TI N A PI E RRE DE FRAN ÇA 65 realizadas sobre superfícies como papel ou tela e representada, fundindo o espaço imaginário e e tinham em comum a ênfase ou o predomínio o real; a segunda seria do esmaecimento dos da horizontalidade, que determinava a visada do aspectos do mundo contingente e da emergência espectador. Essas representações panorâmicas das qualidades intrínsecas da representação, que, apresentavam vistas das cidades a partir de um artificialmente, criam realidade paralela, a qual ponto de vista elevado e tendiam a expandir a pode ser divisada contemporaneamente nas artes visão a um ângulo mínimo de 180º. Embora visuais nas instalações e videoinstalações e, no esse tipo de obra apresentasse a vista estendida século 19, nos panoramas. horizontalmente de um local, as dimensões da obra não eram determinantes em sua fruição e feitura. Podiam-se encontrar pinturas de panoramas de dimensões tão reduzidas, que sua visualização exigia o uso de lupas. No segundo caso do Panorama, entendido como meio imagético, as dimensões e a forma circular ganhavam caráter fundamental, aliadas a uma série de aparatos mecânicos e técnicos para sua execução, incluindo a construção de edifícios circulares para abrigar a tela. na história da imagem e na história da arte. Nesse sentido, a presença da virtualidade, observada na contemporaneidade a partir de tecnologia de base digital e, ainda, da reconstrução de um local ou de intervenções em determinados ambientes, é um aspecto exacerbado da arte que já existia com o meio de produção manual desde as pinturas rupestres. Assim, a questão da imersão relacionase à sugestão de ‘presentificação’ da obra, para tornar a acepção do objeto representado o mais Produções artísticas do final do Setecentos, os concreto e real possível para o espectador. Opera- panoramas representavam locais ou situações se, então, uma mudança dos estados mentais determinados ilusionista, do público, que apresenta sua capacidade crítica enfatizada pela dimensão ampliada do tema proporcionalmente diminuída à medida que a pintado, configurando a situação categorizada obra solicita maior adesão de seus sentidos para como imersão. a percepção do ambiente no qual está imerso. Há A imersão é definida como o “ato ou efeito de uma vedação das instâncias de julgamento do imergir(-se), de submersão ou de afundar-se, espectador como consequência de sua adesão à adentrar-se”. obra artística na qual está imerso. 1 sob perspectiva Nas acepções do termo estão presentes caracteres reflexivos pelos quais a imersão é fruto de uma ação voluntária do sujeito de penetrar, de se deixar absorver, e que assinala como consequência a ocultação, a subsunção do sujeito no interior daquilo no qual imerge. 66 Segundo Oliver Grau, a imersão é fato constante O ambiente determinadas imersivo necessita exigências; deve cumprir constituir- se em local hermético, que veda o acesso a sua exterioridade, pois fecha-se nele mesmo, solapando as instâncias de ingresso ao que se Victor Meirelles. Estudo para Panorama do Rio de Janeiro: morro do Castelo, c. 1885, óleo sobre tela, 100cm x 100cm. Acervo Museu Nacional de Belas Artes. VM 003 Doc. 0011 Fonte: Coelho, Mário Cesar. in Victor Meirelles – novas leituras. Org. Maria Inez Turazzi. Florianópolis Museu Victor Meirelles: Studio Nobel, 2009: p124 Na arte, a imersão seria um estado amplificado, localiza além do recinto da obra. A interioridade maximizado da ilusão, que agencia condições do local se potencializa por focos de apelo mentais e corporais introdutoras do espectador que atraem a atenção do público, admitindo A intenção é instalar um mundo artificial (...) de um ciclo de afrescos que retrata mais intensamente na cena e no objeto imagético a manipulação (em menor ou maior grau) de que proporcione ao espaço imagético uma uma sequência temporal de imagens ali representado. Distinguimos duas operações: a alguns artefatos de seu interior, que se agregam à totalidade (...) que preencha todo o campo sucessivas, essas imagens integram o primeira seria de fusão das realidades atualizada vivência real do espectador. de visão do observador. Ao contrário observador em um espaço de 360º de A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 ARTI G O S | CRI S TI N A PI E RRE DE FRAN ÇA 67 Victor Meirelles. Estudo para Panorama do Rio de Janeiro: entrada da Barra, c. 1885, óleo sobre tela, 56,7cm x 195,4cm. Acervo Museu Nacional de Belas Artes. VM 003 Doc. 0006 Fonte: Coelho, Mário Cesar in Victor Meirelles – novas leituras. Org. Maria Inez Turazzi. Florianópolis/Museu Victor Meirelles: Studio Nobel, 2009: p124 e 125 foi fruto da intensa impressão que eles lhe causaram em suas viagens à Europa. Na biografia do pintor, escrita por Carlos Rubens, cita-se Max Fleiuss para assinalar que, entre a ideia inicial e a efetiva execução do Panorama do Rio de Janeiro, decorreram “mais de 17 anos”.5 Ainda em 1884, o artista fazia publicar no jornal O Paiz um anúncio visando granjear sócios para ilusão, ou imersão, com unidade de tempo atenção dividida entre o mundo imaginário e o e lugar (...) os espaços imersivos podem real promovida pelos ambientes imersivos. É nesse ser classificados como variantes extremas sentido que aos objetos efetivos e materiais se de mídias imagéticas que, por conta de agregam outros, da instância imaginária e imaterial, sua totalidade, oferecem uma realidade promovendo uma realidade em que se misturam o completamente alternativa.2 concreto e o sugerido, o matérico e o ideado. seria “a reprodução em vastíssima tela, de um fato máquina a vapor ou a luz elétrica, foi patenteado grandioso da história da pátria”;6 assinala também pelo irlandês Robert Barker no final do século 18, seu potencial mercantil e o caráter pedagógico mais precisamente em 9 de junho de 1787. Como para desenvolver o patriotismo nos cidadãos meio de arte, o panorama apresenta algumas brasileiros. Em 1885, Arthur Azevedo saudava peculiaridades. Podemos assinalar, entre elas, a intenção do artista de constituir empresa para explorar o Panorama do Rio de Janeiro, Em vez de enganar o olho, enganam-se os sentidos Nessa as a montagem circular das telas, seu caráter de − trompe les sens.3 Estabelece-se, assim, seu videoinstalações lócus fidedignidade ao tema representado a partir destacando o patriotismo e a feição comercial aspecto realístico, uma configuração simuladora privilegiado dessa intersecção entre os espaços de uma visada de 360º, sua feição ambiental, do empreendimento.7 Esse empreendimento da realidade com graus cada vez mais intensos, ilusório e efetivo, como um cenário cujos objetos uma vez que constitui espaço específico em que mostra uma visão nova no campo da arte, a do como é o caso das experiências com ferramentas habitam simultaneamente um lugar concreto, no o espectador é introduzido, além da questão artista como efetivo negociante de seu trabalho, e ambientes informacionais. A imersão formula qual se ativa a concomitante instância imaginária. espetacular que carrega. compreendido um lugar alternativo que, mesmo por segundos, Um espaço que existe no aqui e agora da visitação. suspende a capacidade de discriminação e incute no público a ideia de estar, de fato, no local representado. Há um intercâmbio de realidade em que o que existe além daquele espaço se torna irrelevante, pois se adensa outra realidade, que potencializa o aspecto dúbio do real. Interessa-nos, 68 a empresa. Nesse texto, explica que o panorama Considerado invenção, o panorama, tal como a neste momento, destacar perspectiva, se os panoramas constituem como e Victor Meirelles apresenta-nos esses dois tipos de também como espetáculo relacionado ao lazer − visão que também estará presente em algumas estratégias para ampliar Com duração de aproximadamente 115 anos, panorama. No início de sua carreira, suas produções o panorama teve seu apogeu durante o século paisagísticas da cidade de Desterro são pinturas 19. Stephan Oettermann, em seu livro The panorâmicas e, já no final do Oitocentos, apresenta- panorama history of mass medium,4 vislumbra nos os panoramas realizados segundo a concepção estreita conexão entre a modalidade artística e o de aparato híbrido entre a pintura de tela e as Victor Meirelles realizou três panoramas: o da Oitocentos, período no qual muitas das invenções execuções mecânicas, e objetos exigidos pelo meio, cidade do Rio de Janeiro, o das ruínas da Fortaleza entre a contemplação e o espetáculo de lazer. de Villegaignon e o da descoberta do Brasil. Obras da maturidade, os panoramas entraram na O primeiro trabalho desse gênero realizado por vida de Victor Meirelles bem antes de sua efetiva Meirelles foi o Panorama do Rio de Janeiro, em execução. A vontade de realizá-los provavelmente colaboração com o pintor e fotógrafo belga Henri a tecnológicas envolvendo a visão apresentavam questão da bipolaridade, da superposição e da caráter híbrido, entre a pura visualidade, como no ambiguidade promovida por essa esfera fictícia, caso da máquina fotográfica, e o espetáculo de a qual intercambia informações a partir da representação, como no caso das fantasmagorias. A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 o público assistente, envolvendo ações que chamassem atenção sobre a obra, como pequenas notas e uma espécie de propaganda do evento. ARTI G O S | CRI S TI N A PI E RRE DE FRAN ÇA 69 Charles Langerock (1830-1915). Seus estudos construída em meio a uma floresta, que cede lugar Os eventos podem ser compreendidos como apesar do descrédito e da desvalorização artística iniciais aconteceram em 1885 e foram realizados às construções que galgam morros, povoando representação da “expansão capitalista”, sob desse meio no país, que nos mostra, aliás, que, a partir do Morro de Santo Antônio. No início densamente certas áreas geográficas, como a que a forma de construção materialmente visível, apesar de pertencer ao círculo acadêmico, o de 1886, ambos partiram para a Europa com o ainda hoje é o Centro da cidade, por exemplo, similar à construção museográfica, no sentido de artista também era interessado nas novas mídias objetivo de executar a pintura, realizada na cidade enquanto outras, com habitações esparsas, apresentar visual e sistematicamente os objetos e na pesquisa da imagem e de sua recepção. de Ostende, na Bélgica. são dominadas espacialmente pela natureza. A constitutivos dessa sociedade que se estava vista da cidade nos apresenta um domínio das estabelecendo, com objetivos que não descartam edificações, das ruas que avançam pelas colinas, sua função pedagógica. Nessa perspectiva, as sintoma da civilização num lugar longínquo e exposições universais seriam “modelos de mundo exótico, como parte remanescente do ideário materialmente construídos”14 e, ainda, “veículos romântico que ainda habitava a mentalidade do para instruir (ou industriar) as massas sobre os homem europeu do Oitocentos. novos padrões da sociedade industrial”.15 mil pessoas. Segundo Carlos Rubens, esse trabalho A apresentação do Panorama do Rio de Janeiro Não está ainda devidamente esclarecida a razão pela serviu como motivação para comentários elogiosos na Exposição Universal de Paris, em 1889, fazia qual o Panorama de Meirelles não se encontrava no a respeito do Rio de Janeiro e do Brasil, assinalado, parte de um projeto com intenções diversas, entre pavilhão brasileiro destinado à apresentação das então, como “nação mais notável da América”.9 as quais podemos citar a exibição de cidades obras de arte. O pintor teve de custear sua estada distantes, em países exóticos e dominados pela na Exposição Universal, fato determinante para que floresta tropical. Essa temática atendia à ânsia a obra ficasse fora do eixo principal das visitações da burguesia europeia por viagens a terras e, portanto, com menor afluxo de visitantes. Sabe- longínquas. A obra também era uma tentativa se, entretanto, que tentou um patrocínio para a de conciliação entre arte e entretenimento, manutenção de seu trabalho na capital francesa, de amadorismo 8 O Panorama do Rio de Janeiro teve sua primeira exposição realizada em Bruxelas, e a abertura oficial, realizada com grande pompa, aconteceu no dia 4 de abril de 1887, contando com a presença dos soberanos belgas. A exibição alcançou grande sucesso de público, sendo visitada por cerca de 50 Em 1889, Victor Meirelles partia com seu Panorama para Paris, com o objetivo de mostrá-lo na Exposição Universal. Assim como na Bélgica, o trabalho causou boa impressão aos críticos de arte e ao público, apesar de não ter repetido o sucesso original, sobretudo por estar fora do circuito principal do evento, próximo ao Campo de Marte. Esse fato foi determinante para que o afluxo de público a sua obra fosse menor do que o esperado exemplificada acordo com carta publicada no jornal carioca Gazeta pela companhia aberta para a exploração do capitalismo, de Notícias e assinada pelo Barão de Teffé.16 Talvez meio, que tinha como última instância sua um dos motivos tenha sido a pouca aceitação do exploração econômica. meio como atividade artística, devido a seu caráter pelo artista, que, assim, não conseguiu manter o Esse trabalho estava relacionado ainda à inscrição Panorama na capital francesa além do prazo de do Brasil no circuito das nações com contribuições duração do grande acontecimento mundial. para o progresso mundial, pois apresentava o país Infelizmente, a produção imagética do panorama só pode ser divisada por meio dos estudos realizados para sua execução. Tanto esse primeiro quanto os demais pintados por Victor Meirelles foram doados pelo artista e sua mulher ao governo brasileiro em 1902,10 e as gigantescas telas foram irremediavelmente perdidas nos galpões do Museu Nacional.11 70 e 13 de entretenimento, ou a crise instaurada no regime imperial brasileiro. exemplares da flora e da fauna nativa dos países Não obstante a participação oficiosa em relação ao pavilhão brasileiro, o Panorama do Rio de Janeiro apresentava feição propagandista do Brasil, afirmando a “fórmula país-de-natureza-pródiga/ país-aberto-à-imigração/país pragmático”,17 Nesse sentido, algumas das motivações do artista estariam em consonância com a esfera governamental, sendo a mais visível o estímulo à imigração de trabalhadores europeus para o Brasil.18 partícipes, incluindo-se também os novos meios A opção por pintar panoramas feita por Victor como terra em que a natureza inóspita já teria sido contida e que o homem comum poderia habitar, objetivando, com isso, incentivar a imigração,12 e estando, por esse aspecto, em consonância com o espírito moderno e industrial que a mostra trazia à baila. Para isso, contribuíam os diferentes produtos exibidos, entre maquinarias, invenções e Os seis estudos que restaram do Panorama do tecnológicos destinados ao entretenimento das Rio de Janeiro, de Meirelles, trazem uma cidade massas, como os panoramas e os dioramas. A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 Meirelles indica que o artista estava sensível às inovações que as artes plásticas apresentavam, O Panorama do Rio de Janeiro, pintado em conjunto por Meirelles e Langerock, teve cobertura da imprensa bem diversificada. Enquanto alguns jornais, como a Gazeta de Notícias,19 divulgavam com frequência a afluência dos visitantes e artigos com opiniões elogiosas sobre o Panorama, outros, como o Diário de Notícias, ignoraram a exposição, a ponto de inexistir cobertura no ano de sua inauguração e nos meses seguintes. Apesar do valor e do ineditismo da exposição na cidade, ela não teve na imprensa o destaque esperado; jornais importantes nem sequer noticiaram sua abertura ou fizeram comentários a seu respeito. Nesse sentido, como em Paris, o evento não obteve no Rio de Janeiro os resultados esperados de afluência de público, apesar das inúmeras tentativas de Meirelles de ampliar o número de visitantes. Ainda que a afluência do público não tivesse sido a estimada por Meirelles, o Panorama foi um acontecimento na cidade, como atesta artigo de João Ribeiro publicado no jornal O Paiz: “O Panorama é a great attraction do público fluminense. Lá fui, era a primeira vez que via um panorama. Gostei enormemente, imensamente. Belo e admirável como a própria natureza. Creio que consumi duas horas de alegre contemplação (...).”20 Para o espectador, o panorama seria uma antecipação do espaço cinematográfico, com suas grandes telas, causando impacto sensorial na plateia, lugar do espetáculo e do entretenimento. Outro artigo, sem assinatura, faz detalhada descrição do Panorama do Rio de Janeiro, realizado por Victor Meirelles, por ocasião de sua exibição nesta cidade em 1891: ARTI G O S | CRI S TI N A PI E RRE DE FRAN ÇA 71 Dedicamos ontem, cerca de uma hora à contemplação do Panorama da baía e cidade do Rio de Janeiro, pintados pelos artistas Victor Meirelles e Langerock e exposto no antigo largo do Paço. (...) diante do que está diante de seus olhos. Muitos essa tendência principalmente nas constituições descrevem que sua percepção da obra se aproxima de arte que utilizam as novas tecnologias, como Proença, Angelo et al. Victor Meirelles de Lima: 18321903. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982:116ss. do sonho, provocando uma dúvida entre a cinema 3D ou Caves, que procuram simulação 12 Idem, ibidem:109. realidade e o apresentado imageticamente. da realidade ou criação de realidade alternativa No panorama de que agora nos ocupamos, o visitante, assim que chega ao terraço de observação, que tem apenas cinco metros de elevação, tem a sensação da vertigem que nos acomete na altura de cinquenta metros. artista propõe é facilmente percebida na descrição A grande tela circular, que apresenta os últimos planos a grande distância, fundese embaixo sem que lhe perceba solução de continuidade, nos primeiros planos reais, sólidos, verdadeiros, cobertos de palmeiras verdejantes, de arbustos vivos, de grama verde e viçosa cortada por veredas e picadas, que despertam a vontade de descer e observar o que é realmente verdadeiro e o que é de algumas interlocuções artísticas de caráter artisticamente fingido. arte quando comenta sua visita a uma exposição minuciosa do artigo publicado no jornal carioca A Gazeta de Notícias e acima transcrito. Victor ambiência espacial, mas também uma gama de proposições sensórias e espetaculares que ativam a ambiguidade do real. Janeiro, participa, embora de forma marginal, de uma prática da modernidade e aproxima-se fenomenológico.22 Essa perspectiva de uma arte fundamentada na questão perceptiva é basilar nas experiências dos artistas europeus e também se encontra, ainda que de maneira indireta, no debate de arte nacional no final do século 19. As impressões acerca das obras de arte que estavam em circulação apontam para uma forma de arte multissensorial. Em artigo publicado no jornal O Paiz, João Ribeiro assinala esse caráter da NOTAS 15 Idem, ibidem. 1 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2001:1.576. 16 A Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, 27.1.1891:1. 2 Grau, Oliver. Arte virtual: da ilusão à imersão. São Paulo: Unesp/Senac, 2007: 30 e 32. 3 Pignoti, Lamberto. Apud Domingues, Diana. As instalações multimídia como espaços de dados em sinestesia. Relações corpo/arquitetura/memória e tecnologia. http://artecno.ucs.br; consultado em 13.8.2009. 4 Oettermann, Stephan. The panorama history of mass medium. New York: Zone Books, 1997. 5 Rubens, Carlos. Victor Meirelles sua vida e sua obra. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945:133. da escola livre, em texto anterior à exibição do figurativas, lembra-me sempre que elas 7 Azevedo, Arthur (sob o pseudônimo Eloy o Herói), Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 23.10.1885:1. Com os segundos e últimos planos pintados, com os primeiros em relevo e ornados por árvores, plantas e pedras verdadeiras com os passarinhos voando e chilreando por entre as folhas, os dois artistas apresentam um espetáculo (...) para ver-se e pelo qual lhes cabem os se fazem sob a cultura progressiva dos 8 Rubens, op. cit.:134. 21 Panorama na cidade, em que afirma: Todas as vezes que penso sobre as artes sentidos. Primeiramente a visão, pela arquitetura e pela pintura, depois o ouvido, pela música. E eu imagino que em um futuro remotíssimo por um refinamento de artistas blasés haverá uma cultura do olfato e uma arte do cheiro.23 Nesse texto João Ribeiro, no final do século 19, Esse impacto, essa confusão dos sentidos alude à questão da multiplicidade de sentidos encontram-se inúmeras envolvidos na recepção da obra de arte, o que impressões dos visitantes acerca da obra, um decerto antecipa algumas condições presentes misto de surpresa, arrebatamento e incredulidade na arte da contemporaneidade. Pode-se observar registrados nas A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 13 Barbury, Heloísa. O Brasil vai a Paris em 1889: um lugar na Exposição Universal. Anais do Museu Paulista. N. Sér. v.4, São Paulo, jan.-dez. 1996:212. Disponível em www.scielo.br/pdf/anaismp/v4n1/ a17v4n1.pdf, consultado em 31.5.2010. 14 Idem, ibidem. Meirelles, com seu Panorama da Cidade do Rio de O espectador deve destinar os dois ou três primeiros minutos, para preparar os olhos e o espírito para a impressão por assim dizer nova (?) que vai sentir.(...) maiores elogios. 72 A compreensão da dimensão de ilusão que o e que integram em sua produção não só a 6 O Paiz, 2.10.1884:2. 9 Idem. 10 Os três Panoramas realizados − O Panorama do Rio de Janeiro, A Entrada da Esquadra Legal em 23.6.1894, observada da Fortaleza de Villegagnon, e Descobrimento do Brasil − foram doados ao governo brasileiro em 2.7.1902 por Victor Meirelles e sua mulher, Rosalia Fraga Meirelles. Museu Nacional de Belas Artes. Pasta Victor Meirelles. 11 Elza Ramos Peixoto assinala a luta pela preservação dos Panoramas, exposta em correspondência trocada entre a Direção da Escola de Belas Artes e o Ministério da Justiça, ao qual a instituição era subordinada. 17 Barbury. Heloísa. A exposição Universal de 1889 em Paris. São Paulo: Loyola, 1999:216. 18 Além das questões econômicas, estavam em jogo também alguns aspectos de caráter político e cultural. 19 O número de visitantes à exposição do Panorama do Rio de Janeiro era frequentemente exibido na primeira página do jornal A Gazeta de Notícias. Desse modo, pode-se constatar que era maior nos finais de semana, principalmente aos domingos. Pode-se, portanto, deduzir que se tratava de programa de lazer familiar para a população da cidade. 20 Ribeiro, João. O Paiz, Rio de Janeiro 11.1.1891:1. 21 Artigo intitulado O Panorama do Rio de Janeiro, sem assinatura, publicado na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 5.1.1891:1. 22 Estas relações podem ser divisadas principalmente na dimensão auditiva que o artista interpõe em seu trabalho com o uso dos pássaros, os quais adicionam à obra um caráter sensorial fundado na amplificação dos sentidos em prol da intensificação da ilusão de estar na proximidade da natureza. 23 Ribeiro, J. O Paiz. Rio de Janeiro, 14.12.1890:1. Cristina Pierre de França é doutora em artes visuais pela EBA-UFRJ, atua como professora de artes visuais no Colégio Pedro II e na Faetec, e de história da arte na Unigranrio. ARTI G O S | CRI S TI N A PI E RRE DE FRAN ÇA 73 O TICUMBI: imagens e memória da Vila de Itaúnas Luciana Alvarenga ticumbi imagem memória Vila de Itaúnas O ticumbi se constitui como importante veículo de recriação do passado e de elaboração do presente. É através dessa expressão que as histórias de uma vila são construídas e reconstruídas, por meio de cultura que privilegia a oralidade, mas que se expressa na visualidade, trazendo à tona o imaginário local. O artigo é fruto da tese de doutorado em Artes Visuais (Imagem e Cultura)/UFRJ A festa e as representações culturais do ticumbi: imagens e tradições da Vila de Itaúnas, ES, sob orientação do dr. Rogério Medeiros. A Vila de Itaúnas1 se localiza no extremo norte do Espírito Santo, praticamente na divisa com a Bahia. Um lugarejo bucólico de chão de terra batida, em que vivem cerca de 2.200 pessoas.2 Nesse lugar, encontramos grande diversidade de manifestações culturais tradicionais, como o ticumbi, o jongo, o alardo, o reis de boi, além de processos produtivos artesanais como a confecção de cestos, barcos, TICUMBI: images and memory of the village of Itaúnas | Ticumbi, an Afro-Brazilian ritual, is an important event for recreating the past and preparing the present. It is through this folk expression that the stories of a village are built and rebuilt through a culture that appreciates the spoken word, but which is expressed in the visuality, bringing to the fore the local imaginary. | Ticumbi, image, memory, village of Itaúnas. farinheiras, entre outros. Nesse contexto, a vila se apresenta como um dos principais ‘palcos’ de representações das tradições3 da região. Suas origens, porém, se perdem no tempo e na falta de documentos conclusivos e específicos sobre o assunto. Até meados do século 20, segundo histórias contadas pelos moradores mais antigos, a vila se resumia a duas ruas principais paralelas à praia − a de baixo e a de cima –, com castanheiras e gameleiras frondosas, cerca de 200 casas de estuque, rebocadas e assoalhadas, duas padarias, armazéns, um posto dos correios, uma escola, uma igreja na parte mais alta da vila e um cemitério. As casas eram geminadas e possuíam quintal nos fundos com árvores frutíferas, hortas, criação de galinhas e porcos. Contornando o povoado, o Rio Itaúnas era a principal via de comunicação com o mundo, e em suas margens ficavam os barcos dos pescadores. Luciana Alvarenga A roda grande, 2010, arquivo digital Fonte: Alvarenga, 2011 74 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 ARTI G O S | LU CI AN A ALVARE N G A 75 Há cerca de 70 anos, porém, uma misteriosa e sutil catástrofe paulatinamente se abateu sobre o lugar. Tudo começou com uma areia fina a invadir as ruas, formando pequenos montes junto às paredes externas das casas. Areia que podia ser rapidamente removida com enxada ou pá sem grandes problemas até então. No entanto, ela começou a entrar portas adentro e se refugiar sob os móveis. E, sem que isso fosse percebido, a areia que antes estava restrita à praia, passou a dominar a paisagem. Enquanto se conseguia colocá-la para fora das casas e tirar os pequenos montes das ruas e da praça, a areia foi de certa forma tolerada. Havia dias, contudo, em que o vento ficava mais forte, e a areia chegava com mais volume. Com o passar do tempo, ela modificou completamente a fisionomia da vila, e os montes de areia tornaram-se cada vez maiores. A igreja e o cemitério foram os primeiros a ser soterrados. Com o passar dos anos, a vila inteira foi desaparecendo sob as enormes dunas. Com esse processo, a população precisou tomar medidas drásticas: alguns foram embora para outras localidades, outros resolveram recriar e refundar a comunidade. A mudança da antiga vila para a nova, iniciada no final da década de 1950, quando os primeiros moradores resolveram abandonar o lugar, só veio a terminar com a saída dos últimos habitantes, em 1974, cerca de 15 anos depois. No processo do soterramento, a vila foi atravessando lentamente o Rio Itaúnas e se instalou na outra margem. Quando a mudança não se consubstanciava de modo literal e físico, utilizava-se a imagem do que havia antes na tentativa de construir algo semelhante ou parecido. Junto com cada pedacinho da vila antiga que passou para a nova vieram as histórias mágicas e ricas do passado local, além de inúmeras tradições culturais. Enquanto carregavam seus móveis e pertences, os moradores levavam sua história, seus costumes e sua cultura material. 76 Ininterruptamente durante mais de um século, cada verbete se encontra delegado a um morador todo mês de janeiro acontece a festa em da vila. Cada habitante desse lugar, seja idoso ou homenagem a São Benedito e São Sebastião. criança, tem uma história para contar, um mito ou Segundo os moradores mais antigos, celebrar os uma lenda para lembrar. E o principal veículo lo- dois santos é também uma forma de precaução, de cal para essa transmissão de conhecimento é o ti- impedir que a nova vila e seus moradores sofram cumbi, que em sua dança, suas letras e sua música dos mesmos males e maldições que provocaram carrega histórias e lendas que atravessam séculos. o soterramento da antiga Itaúnas. A festa é Algumas dessas histórias vieram da África, outras uma tradição desde os tempos do Império e da surgiram nas senzalas e nos quilombos que ali já escravidão − nem o processo do soterramento existiram e dos quais há hoje remanescentes; mui- conseguiu interrompê-la. A homenagem aos tas falam da vila antiga, outras, da nova. dois santos está presente no calendário anual do Município de Conceição da Barra e do Estado do Espírito Santo. Mas, São Benedito, ou São Bino, como o chamam seus devotos, possui calendário à parte, também anual, que se inicia com os ensaios dos grupos de ticumbi nas roças, nos meses de outubro e novembro. No ticumbi, as tradições locais e ancestrais são relembradas e recriadas infinitamente, ano a ano. É um processo familiar que passa de pai para filho, transpondo gerações. No centro dessa história está São Benedito, padroeiro dos negros, pobres e oprimidos, cuja imagem que se encontra hoje na vila se supõe ser a chave para o mistério do soterramento.5 De acordo com alguns relatos, o A festa e o ticumbi A festa de São Benedito e São Sebastião é considerada o principal evento da região. Durante uma semana, ocorrem na vila apresentações, procissões, missas e diversos tipos de danças e encenações. O ticumbi é a principal manifestação cultural da festa, representando seu clímax e seu cerne. São os membros do ticumbi que desencadearão todos os processos e todas as ações do evento. Em processo não linear no qual ocorrem vários acontecimentos concomitantes, a festa se inicia com o último ensaio nas imediações da vila. O evento dura a noite inteira e culmina com procissão ao longo do rio e das ruas de Itaúnas. O ticumbi4 é a denominação dada ao baile de congos do Vale do Cricaré − região que compreende os municípios de Conceição da Barra e São Mateus −, manifestação cultural que é sobretudo uma espécie de enciclopédia virtual local, em que A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 ticumbi é criação de Silvestre Nagô,6 negro escravo que, para animar seus pares, inventou os folguedos, Personagens e indumentárias O ticumbi possui estrutura hierárquica − reis, embaixadores e secretários − que conta a batalha mitológica entre o rei de congo, cristão, e o rei de bamba, pagão. Cada rei possui um secretário, e ambos possuem corpo de baile composto por dois guias, dois contraguias e número variável de congos, que representam os guerreiros das duas nações. Acompanha-os ainda um violeiro. Todos se vestem a caráter para a encenação, respeitando um modelo de indumentária. Usam longas batas brancas, rendadas, atravessadas por fitas coloridas. Vestem calças compridas brancas com ou sem frisos vermelhos. Cobrem a cabeça com lenço branco e coroa enfeitada com flores e fitas coloridas. Os reis usam coroas de papelão ornamentadas com papel dourado reluzente (às vezes, usam papel prateado), trazem peitoral espelhado com flores brilhantes e capa comprida, também florida. Para completar o figurino, carregam longa espada. Os dois secretários também usam capa e espada (o que os diferencia dos congos). rapidamente transformados em modo de lembrar e reviver o passado, fortalecer laços e identidades, manter e reconstruir memórias e de mobilização Enredo da própria comunidade que o produzia. Essas Composto por danças e cantos, as danças do características se mantêm nos dias atuais. ticumbi simulam o volteio dos guerreiros, numa Luciana Alvarenga A procissão, 2010, arquivo digital Fonte: Alvarenga, 2011 espécie de combate gingado; os cantos são trazendo para dentro de seu enredo as histórias cinematográficas, reprisada ano a ano (como um do imaginado, mas, sobretudo, do fazer imaginar. alternados com as falas dos reis e dos secretários, antigas e atuais da vila. filme que é exibido uma vez por ano, todos os O ticumbi se elabora através de meios essenciais anos), ao mesmo tempo em que é reformulada a e existentes de sustentação da sobrevida dos entoados em conjunto pelos congos das duas cada vez que é apresentada, por quem a assiste acontecimentos da vila antiga, pois nos envia ao Imagens e memória da Vila de Itaúnas e por quem a produz. É nesse contexto que cenário da imortalização que há em seus afetos Dos acontecimentos às visualidades presentes enquanto acontecimento ele se elabora como e em sua memória. A partir dessa constatação, forma ‘de estar em lugar de’. E é aí que mais percebe-se um de seus aspectos fundamentais, intensamente se revela o imaginário não só através o comunicacional,8 pelo qual são transmitidas nações. Acompanha os cantos o som dos pandeiros e da viola, que dá o tom da música. O enredo se constitui na rivalidade dos dois reis negros (congo e bamba) que pretendem realizar a festa de São Benedito, o que só um deles poderá fazer. Os secretários levam os desafios de seus senhores ao rei rival, em ato denominado embaixada. nos vários dias da festa de São Benedito e São Sebastião, dos rituais desenvolvidos − do ensaio geral às dramatizações que ocorrem na vila −, das indumentárias ao próprio cenário com a igreja Como não há acordo entre as duas nações, a ao fundo, todo acontecimento hoje remete aos guerra é iniciada com luta bailada. Essa guerra processos, ações, visualidades, características e inicial é denominada primeira guerra de reis eventos da festa na Itaúnas que foi soterrada. Como congo ou guerra ‘sem travá’. Em seguida, com observado e relatado pela própria comunidade, a participação dos dois reis, realiza-se a guerra em comparação entre as imagens fotográficas travada, na qual os reis batem espadas junto com da primeira igreja da vila antiga e da igreja atual, seus secretários no centro de uma roda formada pode-se afirmar que se trata de recriação,7 e, pelos congos. Ao final da guerra, o rei bamba conforme a informação geral dos moradores é vencido, tendo que, junto com seus vassalos, mais antigos, essa semelhança não foi casual; submeter-se ao batismo. Terminando a encenação muito pelo contrário, houve deliberadamente um é realizada festa em honra ao rei de congo, processo de reconstituição da que foi destruída quando se canta e dança o ticumbi. pelas dunas no final da década de 1950. Nesse Uma das características mais interessantes dessa manifestação é sua função de jornal narrado e atualizado da localidade em que está inserido. Como parte dos versos se modifica a cada ano, o mestre do ticumbi se utiliza desse trecho da apresentação para informar à comunidade local assuntos do passado ou da atualidade que ele considera relevantes. Podem ser temas de interesse local ou até mesmo de âmbito nacional ou internacional. É por intermédio dos reis, de seus secretários e do corpo de baile que os principais discursos − de ancestralidade, da vila antiga e da vila nova, da relação com o lugar, de identidade e de anseios da comunidade − são expressos em praça pública. É importante destacar mesmo parâmetro é possível também observar que, após cerca de 50 anos do primeiro registro fotográfico existente, além de mais de um século de registro histórico oral, o ticumbi parece manter os padrões ritualísticos e de visualidade. De acordo com diversos depoimentos, falados e escritos, a indumentária praticamente não sofreu mudanças durante esse período. A ordem processual dos acontecimentos também se manteve intacta − da chegada das pessoas do entorno da vila, passando pelos ensaios nas roças, pela procissão fluvial e terrestre com os santos até a chegada à casa do festeiro −, entre diversas outras características que se mantêm praticamente inalteradas por mais de 100 anos até os dias atuais na nova Vila de Itaúnas. que o ticumbi é processo vivo e paradoxal, pois Assim sendo, o ticumbi pode ser considerado simultaneamente mantém e recria o passado, obra estética equiparada a sucessivas cenas Em cima Luciana Alvarenga O ticumbi, 2010, arquivo digital Fonte: Alvarenga, 2011 78 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 Embaixo Luciana Alvarenga A guerra travada, 2010, arquivo digital Fonte: Alvarenga, 2011 as histórias que se consideram importantes, Antiga ou nova, para os moradores Itaúnas con- nesse contexto que ocorre a mediação entre o que denomina o auto. Os reis de Congo e Bamba, aquelas que a comunidade pretende mostrar tinua sendo a mesma, e é nessa festa que po- espaço, o tempo e o mundo dramatizado da vila seus secretários e corpo de baile representam os como parte de seu imaginário e de seu passado demos perceber isso em toda a sua magnitude. soterrada. As cenas presentes são refletidas no guerreiros de duas nações que lutam pelo direito de (recente ou remoto), mediante transposições Evidentemente, a vila nova não é a antiga, mas conjunto das imagens acionadas do passado, um festejar o São Benedito. Cascudo, L. C. Dicionário do de narrativas em linguagens multifacetadas, os moradores, com essa festa anual, querem di- passado revisitado e revivido durante o ticumbi. Os folclore brasileiro. São Paulo: Editora da USP, 2001. presentes nos personagens, nos versos, nas zer a quem quiser ouvir (na verdade, falam para discursos sobre o passado celebram as tradições músicas, nos cenários e nas encenações em eles mesmos) que as duas são uma só, ou melhor, que são revivenciadas e reatualizadas no novo 5 A história oral local conta que a antiga vila foi praça pública. No momento da encenação, não existem dois lugares, mas passado e presen- espaço, no tempo de convivência do agora.11 vestem-se apropriadamente, e esse cuidado te. Assim como acontecia na Itaúnas antiga, essa com a apresentação visual, de se fazer entender vila soterrada que emerge simbolicamente a cada pelo público – tanto os conhecedores como festa, todos os anos, sem nunca ter deixado de NOTAS quem nunca assistiu à festa –, de se mostrar acontecer, nem no período mais crítico da história como parte de algo dramatizado, de um rito do soterramento, São Benedito é louvado e são 1 A Vila de Itaúnas é a sede do distrito homônimo, tradicional, apresentando um código de decoro olhado e identificado pelas outras pessoas, ao mesmo contadas histórias consideradas importantes para a comunidade, recados são lançados, discussões são empreendidas a partir da encenação do ticumbi que é, simultaneamente, lugar da oração, da fraternidade, da crítica, da comunicação e do tempo está criando uma imagem do que deve ser a julgamento. É o lugar da família e da comunida- vila no entender dele ou do grupo a que ele pertence. de – é seu espelho. Quando a própria comuni- segundo pauta de entendimento daquilo que “se quer dar a ver”. No ato de encenar aquele indivíduo está 9 se apresentando da maneira como ele gostaria de ser A memória da vila antiga está presente em todas as etapas da dramatização, nos personagens e indumentárias, e, de forma pungente, nas letras do ticumbi, que pode, por esse aspecto, ser caracterizado como algo que realiza a passagem de um lugar a outro e reidentifica os dois lugares tornando-os um só. É essa transformação, essa transposição ou, melhor, essa síntese que caracteriza e identifica a festa como a de São Benedito e São Sebastião da Vila de Itaúnas. Assim, o ticumbi nos possibilita compreender aquilo que produz vínculos e elos, pois é o (re)ligare10 − na Vila na zona rural do município de Conceição da Barra, na microrregião do litoral norte do Espírito Santo. O distrito faz divisa com os distritos de Conceição da Barra e Braço do Rio, no mesmo município já Rio de Janeiro:UFRJ, 2011. antropologia cerca de 27km da sede do município de Conceição 1997:142-181. 2 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Contagem da população 2007: agregado por distritos. Rio de Janeiro: IBGE, 2008. que podem ser promovidas. Enquanto o passado podem ser auditivas (faladas, cantadas, narradas) é celebrado em atos dramáticos, no ticumbi se re- e visuais (expressões corporais, gestos, paisagens, etc.), referências a elementos que transportam ao passado. As tradições, porém, estão em permanente e atualizado. mudança, de acordo com o contexto e a situação entre as pessoas envolvidas na festa, ainda que O passado, dessa forma, é recriado no próprio tradições são utilizadas como estratégias discursivas se trate também de ligação com os ancestrais e acontecimento do ticumbi. O relato do passado, de continuidade do “passado histórico adequado”. com sua própria história. E é nesse sentido que por meio dessa ritualização, traz para o presente, Hobsbawn, E.; Ranger, T. (Org). A invenção das o momento também se contextualiza como uma no momento da enunciação, o tempo e o espaço tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. celebração e, sobretudo, a representação disso, – a vila antiga surge reinterpretada, corporificando quando a vila se ‘transforma’ naquela que já não manifestações de um passado ainda vivo, que existe. deixa de ser passado e passa a ser presente. E é de Itaúnas essa ligação se constitui no presente, (ES). Tese de Doutorado. Escola de Belas Artes/UFRJ, In_________. O saber local: novos ensaios em 3 A noção de tradição pressupõe permanências que seja, o passado é celebrado, mas também reescrito do ticumbi: imagens e tradições da Vila de Itaúnas da antiga, na margem direita do Rio Itaúnas. Dista sobre os conflitos existentes e sobre as melhorias escrevem os fatos históricos da Vila de Itaúnas, ou 7 Alvarenga, L. A festa e as representações culturais 8 Geertz, C. A arte como sistema cultural. do estado, Vitória. moriais, o ticumbi remete ao futuro, às discussões presente na memória local até os dias de hoje. A vila atual está localizada a cerca de 700 metros da Barra, 53km de São Mateus e 260km da capital mesmo tempo em que remonta aos tempos ime- 6 Líder revolucionário dos tempos da escravidão citado e, ao norte, faz divisa com o Estado da Bahia. imagem, seus valores, seu modo de vida, suas tristeza. Também ouve sua fala e sua música. Ao Benedito da antiga igreja, fato promovido pela elite branca que ali não queria um santo negro. dade acompanha a encenação, ela enxerga sua lembranças e sua história. Vê sua alegria e sua amaldiçoada depois que retiraram a imagem de São vivida; por meio de processos de ressignificações, as interpretativa. Petrópolis: Vozes, 9 Martins, J. de S. Sociologia da fotografia e da imagem. São Paulo: Contexto, 2009:14-15 10 Duvignaud, J. Festas e civilizações. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. 11 Esse contexto foi apresentado em pesquisa que trata das representações do passado no culto aos mártires de Cunhaú realizada por Oliveira, L. A. O teatro da memória e da história: Alguns problemas de alteridade nas representações do passado presentes no culto aos mártires de Cunhaú, RN. Mneme – Revista de Humanidades. v.4, n.8, abr./set. 2003. Luciana Alvarenga é professora-assistente da Universidade do Estado de Santa Catarina. 4 O ticumbi é encenação que acontece na Doutora em Artes Visuais (Imagem e Cultura) pelo modalidade de congos ou congada no Espírito Santo, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da município de Conceição da Barra, tendo bailado final Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 80 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 ARTI G O S | LU CI AN A ALVARE N G A 81 DE QUANTAS PARTES SE FAZ UMA QUIMERA MAQUÍNICA? Bete Esteves arte quimera máquina maquínico A partir da investigação transversal e transdisciplinar dos conceitos de Deleuze e Guattari (esquizoanálise, inconsciente maquínico, máquinas desejantes) e de outras abordagens críticas, como de Richard Sennett, Vilém Flusser e George Bataille, a autora disserta sobre as relações entre máquinas e arte apresentando alguns conceitos que pairam sobre a contemporaneidade maquínica. O artigo é fruto da dissertação de mestrado Quimeras maquínicas, defendida na UFRJ em agosto de 2011, sob a orientação do professor doutor Milton Machado. “O que há por toda parte são máquinas, e sem qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com as suas ligações e conexões.”1 A expresão quimera maquínica ou máquina quimérica reúne os termos máquina, quimera e maquínico. Quimera, substantivo feminino, designa um produto da imaginação, sem consistência ou fundamento real; ficção, fantasia, sonho ou projeto geralmente irrealizável. Combinação, real ou fantástica, de elementos diversos num todo HOW MANY PIECES MAKE UP A MACHINISTIC CHIMERA? | Based on cross transdisciplinary research on the concepts of Deleuze and Guattari (schizoanalysis, machinistic unconsciousness, desiring machines) and on other critical approaches by namely Richard Sennett, Vilém Flusser and George Bataille, the author writes about the relationship between machines and art, addressing several concepts which hover over machinistic contemporaneity. This article is the result of her Master’s thesis “Machinistic Chimeras”, defended at UFRJ, under the guidance of Prof. Dr. Milton Machado in August 2011. | Art, chimera, machine, machinistic. heterogêneo ou incongruente, algo a que falta unidade, coesão ou coerência. Em alquimia ou na mitologia, quimera é um ser artificial, criado a partir da fusão de animais: cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente. Uroboros. 2009-2010. Painel de MDF, caixa de descarga plástica, tubo de PVC 40mm, tubo de PVC ½ “, perfis de alumínio, polia plástica de 2”, garrafa PET, molas, peso de chumbo, cordão de náilon, parafusos diversos, microbomba d’água 127Vac, microinterruptor, cabo AC tipo paralelo, torneira plástica, acionador de descarga, fio de cobre. 82.5x275X66mm. Coleção da artista 82 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 ARTI G O S | B E TE E S TE V E S 83 Quando me referir a quimeras é preciso entendê- constitutivos de uma máquina – o que abrange Resumindo, temos, então, “quimera maquínica”, cosmologia metafísica. Sistemas especificamente las como criaturas mistas, pelo aspecto fantástico muitas processualidades –, pode-se afirmar, a o objeto, a coisa; é quimera adjetivada como desenvolvidos e no sentido de sonho, da fantasia que conjuga seguir, que tudo é máquina. maquínica, ou “máquina quimérica”, a máquina entorno. Formais, posto que precisam materializar- O maquínico, ligado ao desejo por sua vez ligado adjetivada como quimérica, como híbrida, fusão se, mas não objetos puramente estéticos ou de vários. Os termos trabalham aqui em sentido contemplativos. Máquinas que se fazem, na múltiplas e não com a falta. O inconsciente como biunívoco; complementam-se. sutileza de sua condição desejante, abstratas. fábrica e não uma cena de teatro. A noção de Adoto maquínico convoca à cena o sentido molecular e para referir-me a um tipo de trabalho artístico Capaz de dialogar, essa máquina, faz uso dos não mecânico. Implica pensar a vida a partir de específico, máquinas ou partes de “máquinas próprios aparelhos existentes, cyber-científicos, seu caráter processual, de alterações contínuas. desejantes”, que encontram também na arte sua telemáticos, tecnológicos, e pode subverter sua Para além do fato de que as “quimeras residência, operam de forma mecânica e também ordem ao romper sua camada mais superficial. abstrata, e cujo funcionamento é maquínico, Não como forma de vingança ou contestação. Ao e que abrem horizontes de emparelhamento como o do desejo. fazer micropolítica na urdidura dos mecanismos com as quimeras na biologia e na mitologia, Compostos de máquinas técnicas e artísticas elas operam de forma semelhante. Na qualidade que trabalham se utilizando de partes mecânicas de desejantes, o fazem maquinicamente e por − lidam com operações concretas −, partes contágios, não mecanicamente, no sentido eletrônicas − lidam com impulsos elétricos, trivial. Isso significa que não obedecem a um que, destituídos de velocidade, formato ou sistema de relações progressivas, de causalidades força, são apenas virtualidades, sensores que necessárias, entre captam informações e as repassam para as partes termos dependentes, mas funcionam por meio mecânicas capazes de fornecer produtos, sistemas A máquina quimérica que descrevo é também de um “conjunto de ‘vizinhanças’ entre termos e processos poéticos − e partes orgânicas – autorreferencial, minha própria produção. Nasce heterogêneos independentes”, dos quais fazem interações manuais, perceptivas e sensoriais da vontade de desaprisionar as coisas do mundo também o lúdico, o mágico e o movimento da imaginação. Nesse caso, porém, não mais personagens ficcionais e imaginários, mas criações a partir de organismos reais, “células” de duas ou mais máquinas que saltam da lenda para inaugurar territórios. Combinações improváveis, invenções que brotam da tentativa de semear poesia, de lançar pequenas faíscas ao relento, lumen de vaga-lume. Maquínico é conceito de Deleuze e Guattari − que aparece em O antiÉdipo, de 1972 − ligado diretamente ao inconsciente que o concebe envolvido com produtividades múltiplas. Inconsciente maquínico é conceito segundo o qual o inconsciente, diferentemente da concepção de Freud, é produtivo − e o que ele produz, acima de tudo, é o real em sua multiplicidade. O inconsciente é, ele próprio, “máquina de máquinas”. Reúne qualidades heterogêneas2 em dinâmica e apresenta um infinito número de possibilidades de forças. Variações de relações que dizem respeito ao interior dos corpos, técnicos ou sociais, microcosmos com seus ritmos, pulsações, vibrações, “esquizes”, fluxos de cor, peso, forma, movimento, força, sentido. desejante, vinculado à ideia de que tudo máquina, entende máquina como uma combinação de corpos e forças, conjunto das partes que constituem um todo. 84 maquínicas” se encontram no âmbito artístico automáticas e previsíveis 3 parte o homem, ferramentas, coisas e os animais. Essas máquinas têm por peça tudo que as atravessa − o homem, o meio social no qual está inserido e os variados “tipos de fluxo que entram em conjunção”. O conceito de Deleuze e Guattari de máquina é ao inconsciente envolvido com produtividades Criadas para funcionar a partir de determinações que geram indeterminações de movimento, essas máquinas lúdicas produzem repetição. Não aquela da máquina que reproduz peças homogêneas ou funciona destinada à obtenção de resultados Não a são expressão gadgets, “quimeras maquínicas” aproximam-se mais de “torções” mecânicas, junção de coisas deixadas de lado. Versam sobre o brincar de tangenciar micromundos distintos e gerar miniaturas ou ampliações brincantes e extraterrestres. Não são produtos do acaso ou da inspiração de ordem divina, mas do deliberadamente escolhido para formar uma combinação improvável “numa ação dirigida e estratégica” que funda DNAs imprevisíveis. Montam-se e se desmontam no encontro de funções para se comunicar com seu Máquinas que espreguiçam poeminhas, encontros. mais sofisticados pode penetrar, aí, um germe de outra origem, brincar de jogador de dados que combina novas e armazenadas informações. Promover desencontros de desiguais, criar rodas de novas articulações, inventar mundos que prometam novas formas de pensar, fora da programação dos canais e das redes. dos conceitos, dar um jeito de desaprender o objeto, “desvê-lo”, enlouquecer seu sentido, tirálo dos lugares-comuns em que se encontra no mundo. Um pouco como diz Manoel de Barros ao “desacostumar as coisas” ou fazer “inutensílios”, fazê-lo “pegar delírio”, inverter, brincar com a lógica tradicional dos objetos e das coisas. Nasce de tentativas de união de mundos divergentes, de desajustes, de combinações entre os muitos possíveis, das circularidades, do último Se, para algo ser considerado máquina, é preciso previsíveis, mas repetições de diferenças. É que se esteja em meio a uma relação de forças que como se essas máquinas “esquecessem” quase derivam e são derivadas de ações; se a energia instantaneamente o produzido e se lançassem a trocada entre as partes de uma máquina e as novas produções subsequentes, uma vez que seu Máquinas que cometem impropérios, metonímias e orgânico, eletric circus celibatarium dos relações estabelecidas entre elas são elementos objetivo é o próprio produzir. e não metáforas. Nem identificação subjetiva, nem movimentos. São exemplos a máquina de abrir A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 e rearranjos disfuncionais, da física quântica, da engenharia reversa,4 da biologia, da eletrônica. suspiro, do sopro de vida, da existência material e incorporal, de todos os objetos encontrados no fundo de meu quintal, em meu mato maquinal ARTI G O S | B E TE E S TE V E S 85 Conjugam o saber teórico com a execução prática Podem e a experiência. Trata-se do dado processual, celibatárias, à autodestruição, como a máquina lúdico e efêmero de uma entidade complexa em La mariée mise à nu par ses célibataires, même, a constante tensão de experimentação e trânsito de pintura mais complexa e ambiciosa de Duchamp,8 conhecimentos, que pega o produto de partes e a principal responsável pela disseminação do joga dentro de outras, gerando território propício termo célibataires aplicado às máquinas e à arte. para o desenvolvimento e surgimento de novas ideias e práticas, novas maquinações. Mais do que lúdico, há algo de ambíguo nesses dois trabalhos, o que é comum em minhas 86 os quais trabalham – nem sempre todos em uma só máquina. quimeras maquínicas. Elas se expressam na Como quimeras, sempre maquinação de vários lógica invertida do less is more. São conjuntos que podem ser orgânicos, humanos, mecânicos, que contrastam peças, traquitanas eletrônicas, elétricos e eletrônicos. Lidam com a montagem, elétricas e mecânicas para realizar tarefas edição de seres distintos, que pode dar-se sob forma cotidianas, muito simples. Talvez façam muito literária ou fílmica, embora mais frequentemente barulho por nada, muita parafernália para sejam encontradas em materialidade física. Estão realizar tão pouco quanto o sopro de vida ou o implicadas com experimentalismo, empirismo, burburinho dos insetos. transversalidade e fusão da técnica com a arte. A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 Célibataire significa aquele que se mantém solteiro, preservando-se casto, improdutivo. colapsam, dado que só podem lidar com seus componentes internos, seus funcionamentos, (Pedersen), 2003, e em Tabernas Desert Run, 2004, sempre impossíveis, objetos partidos, sonhos a pedaços de objetos precários encontrados nas incompreensíveis e mirabolantes. precário e o caráter mágico do truque. sobre essas quimeras maquínicas e regimes sob máquinas bicicletas de Simon Starling, como Carbon aspectos, como a movimentação, a montagem, o Fumus boni5 que desenvolvi entre 2009 e 2011. as que variam, por exemplo, do aço carbono das Fischil and Weiss, que incrementa e combina muitos Cabe avaliar alguns dos aspectos que incidem como Os celibatários, encerrados em si mesmos, go (Der Lauf der Dinge), 1987, dos artistas suíços estrelas de palito Allstars e a caixa de fumaça sujeitas, Podem constituir-se de diversidades de materiais, diversas peças da montagem de The way things Allstars, 2010-2011, instalação; trilho, carrinho, motor, bandejas de plástico, palitos de dente, gotejador, câmara de segurança, monitor e Programmable Interface Controller – PIC; Bete Esteves, 300x30x20cm, coleção da artista estar As máquinas celibatárias9 são mecanismos que nada produzem além da movimentação de fluxos e projeção de intensidades; são abstratas10 como La Mariée, operam por movimentos e conexões imaginárias com o uso da linguagem Como maquínicas funcionam em meio a quaisquer criptografada, interrompida, de difícil captura; episódios, banais ou sofisticados, mas sempre como as da literatura, no romance de Bioy Casares em conexão com o meio no qual foram criadas Invenção de Morel ou em Colônia Penal, de Kafka, e funcionam e com quem as produz, caso das ou ainda os trabalhos de Francis Picabia (1879- Rotozazas, 1967, em que Jean Tinguely apresenta 1953), como Fille née sans mère (1916-1917) uma instalação maquínica composta de uma série de ,pinturas e desenhos com morfologias de peças engrenagens que inclui o público como participante. de máquinas nada funcionais. Trabalham com o dinamismo, a ironia, o lúdico que Para o conjunto que chamo de quimeras fazem espreguiçar os sentidos e os estados afetivos. maquínicas, esse tipo de máquina proveniente da Podem lidar também com o truque, a maquinação literatura tem valor por estar conectado ao estado que não quer ser desvendada por ninguém. de São igualmente “marginais”, no sentido de que muitas vezes dissociam ação do entendimento ou pensamento, numa espécie de esquizofrenia produção ininterrupta, “esquizofrênica” que sucede à máquina paranoica e à máquina miraculante, e com isso estabelece uma nova relação de produção de quantidades intensivas. produzida pela quantidade e qualidade de forças, Essas máquinas podem provocar nascimentos e alucinações que perpassam suas partes. Como quiméricos surpreendentes a partir de trilhas acontece na filosofia Patafísica, criada por Alfred transdisciplinares. Contam com o fazer do artista, Jarry, inventor de máquinas na literatura com base como o de um inventor de trajetórias que passeia na superação da metafísica e em nova compreensão além e através dos campos disciplinares, em do ser, que abole o princípio da não contradição.7 busca de conexões mais completas, sem que haja 6 ARTI G O S | B E TE E S TE V E S 87 domínio único, e, sim, plural, de cooperação entre (1928) como artista liga seu trabalho à categoria vários saberes, em entendimento que organiza e do projeto, às investigações no campo científico ultrapassa as próprias disciplinas. e, por conta disso, criou Aparelhos cinecromáticos Ao incorporar em suas criações o pesquisador, o tecnólogo, o hacker, o cientista e o inventor, tanto o artista ajuda a ativar e promover a arte rumo a novas perspectivas como a própria pesquisa artística esbarra em respostas, variações ou mesmo soluções científicas e tecnológicas que ampliam o processo de pesquisa para além dos recônditos dos laboratórios.11 Acredito na fertilidade e contaminação positiva que pode haver na assimilação da pesquisa pelos diversos campos de atuação no trabalho artístico e que a ideia de invenção, seja ela plástica, mecânica ou industrial, esteja no cerne de toda criação. Concordo com Guy Brett quando afirma que artistas e cientistas criam modelos do universo, mesmo que intuitivamente, mas “nem por isso menos válidos ou menos formas de conhecimento”. algo para além do estático, que implica tempo e espaço. Enfim, algo inclassificável naquele momento da história da arte (1949-1951). Sobre Palatnik, escreve Luiz Camillo Osorio: Opera na produção de Palatnik a tensão entre o devir poético e devir tecnológico, não há nostalgia humanista nem recusa do futuro tecnológico, o que há é uma vontade de inserir alguma potência de invenção, de delírio e de graça nos usos e hibridações com a tecnologia e nesse sentido a intimidade com o interior das máquinas e seus processos de funcionamento é fundamental.12 A inquietação experimental de inventor, o rigor adquirido no meio artístico e o contato fácil com as tecnologias transformaram não só o ateliê de Palatnik em oficina artística experimental de sobre ciência e tecnologia, e também ciência não ponta para a época, mas também inseriram novo tem ligação estreita com estética ou poética. formato de fazer e pensar arte adaptada à nova Podem acrescentar-se mutuamente e estabelecer era, aos novos equipamentos e às novas mídias. paredões que as separam; irrigar-se mutuamente através de fluxos intercambiáveis, sem que haja impedimentos ou perdas de desenvolvimentos em ambos os campos. Máquinas de fumaça, 2010-2011; duas caixas acrílicas de 65x50cm, membrana plástica, reservatório de líquido, máquinas de fumaça, disparador, solenoide e Programmable Interface Controller − PIC, coleção da artista na pesquisa de novos materiais, o conhecimento Arte não tem origem no acúmulo de conhecimentos relação multidirecional ao romper os rígidos 88 (1965-2000) que traduz o desejo de acionar Relaciono as máquinas quiméricas − de certa forma também são seres que se autorregulam − a seres autopoiéticos (do grego auto = próprio; poiesis = criação, produção). Um organismo vivo, autopoiético, opera de forma autônoma a partir desordem e acabam se resolvendo internamente, do próprio trabalho. O artista que, de modo geral, mas não deixam de se relacionar com o observador, é responsável pela criação e manutenção de todo com o sistema vivo e com o mundo – relações não um sistema de arte – curador, comprador, museus, deterministas e não apenas reativas, mas muitas galerias –, preocupado com a conservação, o vezes paradoxais, múltiplas, aleatórias ou incertas. mercado, a exposição, participa da destruição Apresenta esse tipo de caracterísicas a máquina desse território e instituição. do artista Ólafur Eliasson Ventilator: Different A inserção de algo que se repudia até os Energies, 1997-2005, máquina-acrobática, que estertores, máquina complexa, concebida para funciona pendurada no teto de uma galeria. alcançar a autodestruição ao operar apenas uma Composta de uma parte que é pêndulo e outra vez em uma só noite, caso de Homage to New que é vento e meio no qual se desloca, dela York, aponta uma questão existencial e parece também são partes o pé-direito e o teto da invocar o exercício da antiga tradição pictórica do instituição em que a obra se apresenta instalada, Memento Mori; a destruição convoca a lembrança e o público que a visita. da efemeridade humana, instaura um desarranjo Nesse âmbito é importante lembrar o trabalho e não além de suas próprias estruturas; como seminal de Jean Tinguely Homage to New York que sistemas fechados, referem-se às operações teve como peça o engenheiro Billy Klüver (1927- criadas 2004) responsável pela montagem e partidário da constituem o limite do próprio sistema, o que ideia de que o diálogo entre engenheiros e artistas não significa que eles não estejam estabelecidos As máquinas quiméricas podem operar com traria um agente de transformação social e cultural no meio em que operam e a ele sensíveis. Para forças de criação e destruição, utilidade e significativo, dados os fatos de a arte se aproximar manter seu funcionamento algumas máquinas inutilidade. No pós-guerra a arte incorpora o Bataille foi um dos pensadores que alavancou a cada vez mais da vida e a tecnologia dela se tornar quiméricas estão sujeitas a disfunções, remissões, mecanismo autodestrutivo como técnica, como reflexão sobre os riscos de uma sociedade limitada inseparável. Assim também, Abraham Palatnik reversões e atravessamentos, lidam com ordem e procedimento artístico que faz parte das decisões à atividade útil. Em sua opinião, o fundamental, A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 entre as partes do sistema que que destitui o status sagrado da arte e critica a conduta da criação. ARTI G O S | B E TE E S TE V E S 89 na existência de uma sociedade, é o espaço que o prazer do consumo, ao que parece, reservado ao gasto e ao consumo, o que chama pode estar também em sua destruição. de “dispêndio improdutivo”,13 sejam eles excessos produzidos pelo campo social, psicológico ou cultural. Em vez da discussão falseada a respeito da utilidade, Bataille provoca uma inversão do modo tradicional de entendimento a respeito dos constituintes das primeiras motivações da sociedade humana, em que o que passa a ser mais investigado é o consumir, e não o produzir; o despender, e não o conservar; o destruir no lugar do construir. A máquina artística faz parte da categoria de dispêndio improdutivo. Está vinculada às forças que rompem com a condição humana do circuito produtivo do trabalho e da subordinação temporal. A atividade artística assume o caráter nobre da noção de despesa, na contramão das concepções racionalistas e econômicas do século 17. Introduz a descontinuidade, a inutilidade, momentos em que o trabalho é suspenso, gerando indiferença em relação à função que os objetos ou atividades poderiam desempenhar na cadeia da utilidade. Se a razão da funcionalidade ou utilidade é retirada da relação de trabalho, pode-se fazer emergirem dados que ela escamoteia como, por exemplo, a indesejável e incompreensível inutilidade ou efemeridade da vida, as atividades excrementícias, a doença e a morte. Com as obras Homage to New York e Break Down, Tinguely e Michael Landy, respectivamente, fizeram dois dos exames mais enérgicos do consumismo, do desperdício, da destruição e criatividade da sociedade pré e pós-industrial. Ambos os trabalhos, vivendo apenas na memória, na documentação, no rumor e no mito, tornaram-se o máximo em esculturas desmaterializadas de seus tempos. Utilizando os resíduos de suas épocas, eles revelaram 90 14 Break Down não é apenas de um objeto instalativo e escultórico pensado para o aniquilamento de todos os pertences do artista, mas um conjunto de relações que, implicado com todo o sistema de mercado de consumo, de arte, máquinas técnicas, estéticas, econômicas, sociais, a que se está subjugado, traça direções de fuga que implicam novos direcionamentos e lembram também a noção de dispêndio improdutivo de Bataille. Segundo esse autor, há no mundo, na raiz da vida, uma tendência inevitável para a perda, para a dissipação do excesso em termos biológicos, que se estende à ordem social. O que, no entanto, é abafado pela tendência da aquisição e do acúmulo de excessos, responsável, de modo geral, pela produção de meios danosos que podem transformar-se em guerra de destruição em massa e certamente fazem parte do tédio da vida burguesa. O ineditismo do paradigma da dádiva estaria no fato de propor um “antiutilitarismo positivo”, que pode ser aplicado às atividades artísticas. As máquinas quiméricas trazem, em sua origem, em sua natureza, a inutilidade fundamental, mas que muitas vezes remete o homem à dimensão do cosmo, ao pertencimento da condição humana, à liberação do mundo dos objetos, à experiência do desapego através da qual o homem se dá conta de seu destino – entendimento da ambiguidade que traz à tona o útil e inútil. Richard Sennett, no capítulo Ferramentas estimulantes15 do livro O Artífice, sugere o “despertar” para que se lide com as ferramentas de maneira a tirar proveito delas. Afirma que através de saltos intuitivos se encontrariam maneiras de rever a função inicial das ferramentas. De certa maneira, o que Vilém Flusser propõe, a reprogramação do aparelho como saída para A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 a imagem técnica, Sennett aponta como novo método de abordagem frente às ferramentas. Sugere, para isso, atitudes como: 1 Disposição de verificar se uma ferramenta ou prática pode ser mudada no uso, ou seja, defende a importância de deixar que o limite das finalidades das ferramentas esteja aberto à criação de novas derivas, em que a quebra do molde e de sua função possa ser bem-vinda. 2 Aproximação de domínios improváveis. Aqui se trata de aproximações de universos que inicialmente estão distantes. O autor cita o exemplo da tecnologia do telefone conjugada com a do rádio que origina a telefonia móvel, universos que, em princípio, não seriam pensados juntos e que, uma vez aproximados, fazem nascer novas composições, novas máquinas. 3 Preparar o terreno para o assombro, a surpresa. Esclarecer procedimentos, nomeálos, muitas vezes revela compreensões inesperadas e de complexidade maior do que se supunha. É preciso deixar que a perplexidade penetre. 4 Um salto não desafia a gravidade. Não é o fato de haver transferências de habilidade ou prática de uma área para outra, ou de uma ferramenta para outra que vai fazer com que o problema seja resolvido. Sempre quando se insere o estrangeiro, isto é, uma nova forma de lidar com o problema, há que lidar com o que trouxe esse novo dispositivo, essa importação técnica que também trará seus próprios procedimentos e problemas. Penso nos caminhos apontados por Sennett e por Vilém Flusser não como silogismos, mas como de criação das máquinas quiméricas. Dão chance de pensar o fazer artístico, em meio ao aprimoramento tecnológico, e a ele também se conformar, revoltar, formatar e reformatar com possibilidades de novas configurações formais, estéticas, conceituais e filosóficas. Para além do entretenimento, a figura de um autômato carrega consigo um grande interrogante. Pensa-se também a respeito da ação programada e repetida, daquela que faz de nós reféns, utensílios ou instrumentos. As figuras dos autômatos, aprisionados nas engrenagens das repetições e ritmos não humanos impingem movimentos rumo à força do hábito. Assemelhar-se a operários padronizados, maquinados, adormecidos certamente pode ser também reduzir-se à qualidade de máquina, regra do regime fordista, capitalista. Tornar-se peça com a máquina, na multiplicidade de sua produção, do movimento que estabelece rotas de mutações que se alteram na composição entre partes, pode ser promover o solavanco que rompe com o esquema-padrão com o qual já se acostumaram os corpos. Para tanto há que promover enguiços, solavancos, rodopios, invenções, apropriações, movimentos celibatários que não obedecem a outra regra senão a do desejo e que têm a chance de retirar do grau zero as engrenagens, polias e alavancas, sem outra ordem senão a da repetição. É preciso promover o giro do pião ou da bailarina que, de tantas voltas na caixinha de música, executa finalmente um tal grau de volta desejante, criativa e reflexiva que acaba por flutuar sobre o linóleo do palco ampliado. possibilidades de criação, de rompimento com verdades, de entrada nos códigos dos aparelhos. Regras para reconhecer uma quimera maquínica Penso que tais noções geram possibilidades I Para reconhecer quimeras é preciso saber-se ARTI G O S | B E TE E S TE V E S 91 máquina, no sentido mais amplo, saber que tudo é máquina. II É preciso saber-se máquina e saber-se quimera, sonho, fusão mítica de muitas fontes. Para reconhecer máquina quimérica é preciso infinita capacidade de sonho. III Sonhador de final de semana não adquire certificado de reconhecedor: é preciso não temer pesadelo. Quem teme pesadelo não sabe como destarrachar a torneira do sonho bom. Sonho bom é devorar coelhos na orientação dos gatos, o que só se aprende lendo Cortázar no original. IV Para reconhecer uma quimera maquínica é preciso tomar chá com o coelho de Alice servido no bule de Keaton preparado com a graxa do desejo. IX Para reconhecer uma tal coisa é preciso dar descargas em sequência, conversar e casar com anéis de fumaça, derreter o desejo um minuto antes da meia-noite, voltar e tornar a voltar eternamente para o lugar que é teu e seguir para sempre exilado e transformar grades de ferro em asas na ausência de louça, como o amor que partiu numa fatia fina de fala reconstruída com cola feita de luz e água mineral capaz de espreguiçar estrelas arquivadas em neon por 40 anos em caixinhas de isopor e de sonho de menina. V Máquina quimérica se reconhece na sobriedade da ontogenia da Diferença, na falta de sentido, na vertigem do delírio, na inútil e precária e movediça e intersticial e formidável existência. X Para reconhecer uma tal coisa é preciso desistir Toda beberragem alucinógena libera o contorno nítido de uma quimera maquínica, mas é preciso estar despedaçado. VI É preciso apagar o Inferno e queimar o Céu, recitar de trás para diante os Cantos de Maldoror, reconhecer toda a humana (ou divina) possibilidade como sendo parte-peça-engrenagem combustível de si e com esse Todo sentir-se Um; assim se reconhece uma máquina quimérica: VII Nos inutensílios da poesia, nas teorias-ficções de todos os campos, na falível concepção dos conceitos inventados para produzir uma história que nos contam na hora de dormir, em volta da fogueira que projeta sombras no fundo da caverna. VIII Para reconhecer máquina quimérica ou quimera maquínica é preciso prescindir de todo manual ou roteiro de modo a descasar para 92 sempre o que jamais haveria de ter par. Tudo que pulsa, mesmo no pulso lento de milhões de anos, como o ciclo do sol, das galáxias e do universo inteiro, é máquina e quimera na imaginação de toda criatura-criadora. de buscá-la, pois está em toda (p)arte. 5 Fumus boni vem de Fumus boni iuris, expressão obras, o autor aproxima as máquinas de Locus latina que significa fumaça ou sinal de bom direito, Solus, de Roussel, às de la Mariée mise à nu par ses aparência ou indício de bom direito. O fumus boni célibataires, même... de Duchamp. As analogias, iuris é a presença aparente de uma situação que não feitas ainda entre livros de outros escritores como foi inteiramente comprovada, mas em que existe a Kafka e Lautréamont, são traçadas com convicção possibilidade de que o direito pleiteado exista no por Carrouges. Carrouges, Michel. Les machines caso concreto. célibataires. Paris: Arcanes, 1954. 6 A ‘Patafísica diz respeito a uma concepção 10 O conceito de “máquinas desejantes” de Deleuze do mundo alternativa, que revê a compreensão e Guattari, que aparece expresso em O antiÉdipo, do ser, da ciência ou da técnica, do tempo e do mais tarde revisto, irá ceder lugar aos conceitos de tratamento da linguagem. Estuda os epifenômenos “agenciamento” e “máquinas abstratas” presentes a própria observação da aleatoriedade da “dança”, em Mil platôs. As expressões se equivalem, se da espiral, do caos e da ordem. Epifenômenos são explicam e se adicionam. No âmbito que importa a porções de fenômenos que existem para além das este texto, o emprego desse e de outros conceitos leis da não contradição. Abordam a equivalência deleuzianos serviru para balizar uma reflexão universal contingente em que tem lugar o acaso ou sobre o que faz do desejo-máquina uma quimera o acidental. “É, sobretudo, a ciência do particular, maquínica, uma quimera que é desejo e que se embora se diga que só existem ciências do geral. torna “máquina abstrata”. Estuda as leis que regem as exceções e explica um universo suplementar a este; ou, menos ambiciosamente, descreve um universo que pode 11 Brett, G. Force Fields; phases of the kinetic. London: Hayward Gallery, 2000:9. – e talvez deva – ocupar o lugar do tradicional, já 12 Osorio, Luiz Camillo (org.). Abraham Palatnik. NOTAS que as leis do universo tradicional são derivadas São Paulo: Cosac Naif, 2004. 1 Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. O antiÉdipo. Capitalismo e esquizofrenia. Trad. Joana Moraes Varela e Manuel Carrilho. Lisboa: Assírio & Alvim, 1996:53. de correlações de exceções, ou, em todo caso, de 13 Bataille, G. A parte maldita: precedido de A noção o atrativo da singularidade” Jarry, Alfred. Gestas y 14 Sillars, L. Joyous machines: Michael Landy and 2 Guattari, Félix. O inconsciente maquínico − ensa- opiniones del Doctor Faustroll. Trad. Teresa Fernández Jean Tinguely. Liverpool: Tate, 2009. p.27 ios de esquizoanális. Campinas: Papirus, 1988. Echeverría. Zaragoza: Libros del Innombrable, 2003. 15 Sennett, Richard. O Artífice. Rio de Janeiro: 3 Deleuze, Gilles; Parnet, Claire. Diálogos. Lisboa: 7 O princípio da não contradição, formulado por Record, 2009:234. Relógio D’ Água, 1996:127. Aristóteles em seus estudos sobre a lógica, afirma 4 É o processo de análise de um artefato (um correlações de ações acidentais que, reduzindo-se a exceções pouco excepcionais, deixam de possuir de despesa. Lisboa: Fim de Século Edições, 2005. que uma proposição não pode ser verdadeira e falsa aparelho, um componente elétrico, um programa de computador; etc.) e dos detalhes de seu funcionamento, geralmente com a intenção de construir um novo aparelho ou programa que faça a mesma coisa sem realmente copiar algo do original. Objetivamente a engenharia reversa consiste em, por ao mesmo tempo. exemplo, desmontar uma máquina para descobrir suas produções o mito da máquina celibatária. Bete Esteves é artista, mestre em artes visuais pela Linha de Pesquisa em Linguagens Visuais (PPGAVEBA/UFRJ). Trabalha na criação de dispositivos poéticos que unem experiências artísticas, científicas e técnicas com aparatos mecânicos, digitais e tecnológicos que, muitas vezes, destituídos de sua função original, são matéria-prima estrutural dos como funciona. Disponível em http://vai.la/21VC Em leitura atenta dos elementos constitutivos das dispositivos escultóricos. A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 8 Sylvester, David. Sobre arte moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2006:472. 9 Michel Carrouges elaborou interessante estudo que compara artistas que teriam encenado em ARTI G O S | B E TE E S TE V E S 93 SOB PALAVRAS E IMAGENS: proposição poética e contextualização cultural de um dispositivo digital de artemídia Mano Vianna arte e tecnologia artemídia arte virtual arte interativa Considerada uma produção variável, inconstante ou efêmera, a artemídia, ou a arte que faz uso da tecnologia, é contextualizada pela proposição poética Sob palavras e imagens, possibilitada pela criação de um software gráfico desenvolvido para gerar imagens através das mensagens de texto enviadas por usuários da web. Esta é a apresentação parcial da dissertação de mestrado Sob palavras e imagens: proposição poética e contextualização cultural de um dispositivo digital de artemídia (PPGAV/EBA/UFRJ), orientada pelo Prof. Dr. Celso Pereira Guimarães e defendida em fevereiro de 2011. As manifestações artísticas contemporâneas com uso da tecnologia digital têm sido denominadas artemídia por diversos autores1. Fazem parte de uma nova cultura que se estabelece em contexto no qual arte, ciência e tecnologia interagem e se influenciam. Diversas disciplinas, como a filosofia, a arte, a comunicação, a antropologia e a sociologia, se inter-relacionam para explicar o atual contexto social. Noções e conceitos estão sendo criados ou revistos em todas as áreas do saber em função dos IN WORDS AND IMAGES: poetic project and cultural contextualization of a digital mediaart device | Media Art, considered as a variable, inconstant or ephemeral production, or art that uses technology, is contextualized by the poetic proposition Underneath words and images, made possible by the creation of graphic software to generate images from text messages sent by web users. This is a partial presentation of the Visual Arts Master’s Thesis (MA). Supervised by Prof. Dr. Celso Pereira Guimarães | Art and technology, art media, virtual art, interactive art. recursos tecnológicos digitais que nos permitem representar coisas que não podíamos descrever. As relações dos indivíduos em sociedade transformamse para aceitar um conhecimento plural, aberto às múltiplas entradas de informações culturais de um mundo conectado em rede. Na arte, da mesma forma, o caminhar das experimentações estéticas tem permitido a incorporação de uma imagética que expande os horizontes artísticos às mídias. Pensa-se agora em novo estatuto para o espectador, o artista e a obra. Sob palavras e imagens, 2011. Arte digital (jpg), 20 x 25cm, 300 dpi 94 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 ARTI G O S | M AN O V I AN N A 95 Para investigar esse contexto no qual as explica a filósofa Anne Cauquelin,3 e que pode tecnologias digitais estão alterando os processos ser empregada como adjetivo, qualificando de construção, prática e pesquisa nas artes e nas alguma coisa que possua atributos conferidos ciências, renovando muitos conceitos tradicionais, à atividade artística, ou como substantivo, foi criado um dispositivo digital, denominado remetendo ao conjunto de teorias que analisam Fontes, acessado no website <fontes.bitspoéticos. e avaliam as obras. Assim, à medida que ocorrem com>, que pode ser definido como máquina de desdobramentos significativos no campo estético, escrever virtual desajustada, pois torna os textos a esfera de considerações poéticas é ampliada, digitados pelos usuários ilegíveis: na imagem mobilizando a atenção de diversos intérpretes. O as letras que compõem o texto tornam-se filósofo Benedito Nunes4 aponta uma mudança emaranhadas quando configuradas numa área da posição tradicional do artista e do destinatário comum, em que todas as mensagens se combinam. em relação à “coisidade” da obra, abrindo um Entretanto, para ampliar as possibilidades de seu espaço de exploração que valoriza a relação entre uso, uma frase foi inserida como detonadora do quem produz e quem recebe, tirando do objeto processo de libertação imagética do participante, artístico seu poder autônomo de transmissão de estabelecendo marcação temporal a partir da qual ideais de beleza, da mesma forma como retira se podem fazer diversos tipos de especulação do artista seu poder de gênio, do iluminado que poética. Assim, para que fosse oferecida ao revela a obra ao mundo5− questão denominada participante a chance de ‘viajar’ através de uma por diversos autores “superação” ou “explosão” avenida de novos significados, foi escolhida a da estética. expressão Sob palavras e imagens, também usada para denominar o projeto. O momento atual em que discutimos a arte interativa – ligada mais aos processos criativos do que à realização de obras acabadas – corresponde a uma etapa da aproximação entre a arte e o Arte fora da redoma 96 observador, que vem ocorrendo desde o início Virtualidade e instantaneidade. Discorrer sobre do século 20. Essa parece ser uma reação ao a proposição Sob palavras e imagens como distanciamento realizado pela arte modernista uma experimentação da arte contemporânea que, impulsionada pela experimentação de significa considerar a entrada da arte em um diversas novas linguagens, acaba por criar seus novo campo de discussão, no qual as imagens próprios cânones e princípios, afastando-se cada técnicas deslocam os debates para os temas da vez mais dos espectadores. Para ‘entender’ (e comunicação, fato que Lyotard acredita ser a poder gostar de) uma obra de arte, as audiências chave para se compreender a questão cultural necessitavam ser informadas sobre o significado do estético, da produção, ou seja, elas eram incorporadas ao ao considerar a importância da mediação no conteúdo cultural do produto.6 A radicalização processo de recepção da obra de arte, desdobra- desse processo, porém, acaba por criar novos se para responder às novas questões. Podemos territórios, descartando as determinações de definir estética como a área de significação representar o objeto, ou por buscar uma expressão que se desenvolve em torno da arte, como do sujeito. Assim sendo, muitas dessas atitudes pós-moderno.2 O pensamento A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 Sem formato. Arte digital (jpg), 20 x 25cm, 300 dpi foram dirigidas à participação do espectador entre a arte e o observador bem antes do na obra. O pesquisador Júlio Plaza identifica, aparecimento da tecnologia digital. 7 somados à atual etapa em que predomina a arte interativa, dois outros momentos distintos e anteriores: a obra inacabada – relacionada à A ecologia da rede de bits polissemia, à ambiguidade, à multiplicidade de Ao fazer uso das tecnologias digitais, o artista traz ao debate temas que envolvem uma nova maneira de informar e comunicar. Mais do que apenas mudança de suporte material, o fenômeno artístico ocorre sob critérios nos quais leituras e à riqueza de sentido; e a arte participativa – que contribuiu para o desaparecimento e desmaterialização da obra. É importante notar, portanto, que houve um processo de aproximação ARTI G O S | M AN O V I AN N A 97 a tecnologia é fonte de diversas considerações possibilidades de conhecimento. O espaço físico Vilém Flusser.11 Segundo esse filósofo, a natureza foi criado um novo espaço de relações em que sobre o processo de criação. é substituído por ininterrupto fluxo de dados. matemática da mídia digital também evidencia nossos corpos respondem a novos paradigmas de O tempo, instantâneo, permite não apenas a mais do que o aparecimento de nova forma de espaço e tempo. emissão de mensagens, mas a troca de conteúdos, transmissão de informação. Estamos diante possibilitando atuação e intervenção. de uma nova forma de comunicação. Partindo Dados podem ser organizados matematicamente de maneiras infinitas. Impulso elétrico e pausa – um e zero; é simples a configuração de um bit Dados circulam sem perda de conteúdo e digital. A combinação desses bits serve para a podem ser reconstituídos ou manipulados de codificação de dados para diversos fins, como várias maneiras. Essa afirmação traz ao debate a configuração de imagens através dos pixels importantes considerações que indicam que na tela de um computador. O pixel é a menor está ocorrendo mudança em nossa maneira de unidade visual de geração de imagens; essa representar o mundo. “Agora a imagem digital codificar a realidade: “passamos de um universo codificação torna fácil armazenar e manipular pode ter mais aura do que o original”, afirma imagético que interpretava um ‘mundo’ para um as imagens. De fato, a facilidade de criação e W.J.T. Mitchell, aludindo à mudança de percepção sistema que interpreta as teorias referentes ao alteração das imagens digitais tem sido possível da obra de arte quando o original é multiplicado mundo”.12 Isso significa que estamos passando a pelas interfaces gráficas, que tornam o uso pelas tecnologias de reprodução, observada em representar o mundo através de códigos criados do computador mais intuitivo, mais fácil de ser 1936 por Walter Benjamin: a cópia do original a partir de outros códigos e não de nosso contato manipulado. O significado da palavra interface perde sua “aura”, a sensação quase mágica que a direto com a realidade. Estamos passando a envolve não só a maneira de representar zeros e uns, obra transmite de exclusividade, de ter sido feita “interpretar em vez de explicar”, resume Flusser.13 mas também toda uma cultura que se desenvolve por um artista em determinado momento. W.J.T. através das formas criadas para a interação com Mitchell adverte que, no modo de reprodução o ciberespaço. Talvez por isso não seja apropriado biocibernética (computação de alta velocidade, O homem e a máquina referir-se às interfaces apenas como ferramentas imagem engenharia genética), novas considerações devem O potencial comunicativo do computador para digitais. O termo ferramenta, quando aplicado à informática, remete a um elemento do programa ser feitas, como, por exemplo, o fato de a cópia de computador (como uma aplicação gráfica) que digital não ser mais inferior ou imperfeita em ativa e controla uma determinada função. Porém, relação ao original. mais do que facilitar uma tarefa, a interface se 9 digital, 10 realidade virtual, internet, é processo artificial criado para armazenar informações, em que símbolos são organizados em códigos, Flusser verifica que a entrada num regime digital altera profundamente a maneira de experimentação poética, capaz de estimular diversos sentidos corporais, revela-se através de sua capacidade de se conectar a diferentes interfaces. Embora no presente trabalho a opção O debate sobre a natureza da circulação e de suporte de transmissão tenha sido a rede reconstituição de dados tem possibilidade de ser mundial de computadores, diversos tipos de ampliado quando observamos que as interfaces equipamentos digitais poderiam ter sido utilizados gráficas podem ser acrescidas de acoplamentos para fazer a interação com o participante. de diferentes recursos às entradas (inputs) Sensores de luz, térmicos e de movimento, e saídas (ouputs) de dados do computador, acionadores de máquinas, equipamentos sonoros proporcionando das e diferentes tipos de softwares, como os de possibilidades de exploração sensorial. A natureza realidade aumentada, por exemplo, poderiam O mundo está conectado em rede, e suas interfaces do código binário, porém, não se restringe às responder aos impulsos gerados pelos dados relacionam um complexo intrincado de relações, considerações que envolvem a transmissão e digitados pelos participantes. Se considerarmos passam a se assemelhar a um ambiente que a circulação dos dados. O próprio modo de apenas a internet, como rede em que se possui ecologia própria, na qual tempo e espaço – representação da realidade digital favorece campo interligam pessoas, computadores e uma série de instantaneidade e virtualidade – permitem muitas ainda maior de discussão teórica, como apresenta dispositivos periféricos, podemos perceber que relaciona à tecnologia, envolve técnica (artefatos eficazes), cultura (a dinâmica das representações) e sociedade (as pessoas, seus laços, suas trocas, suas relações de força).8 Um logos específico se estabelece para favorecer o aparecimento de novas formas culturais: permite que realizemos outras maneiras de pensar o mundo. 98 da observação de que a comunicação humana (binary digit), menor unidade de informação A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 enorme expansão Cognição, percepção e ação. Tudo é diferente nesse cenário, em que podemos realizar ações a distância, de forma até ubíqua (em vários lugares ao mesmo tempo) e em tempo real. De fato, uma das principais características do mundo virtual é a de nos fornecer o sentido de imersão, que pode ser realçado com a exploração sensório-motora das interfaces computacionais. O pesquisador Oliver Grau14 esclarece que o termo imersão diz respeito ao encurtamento da distância entre o que é exibido e o nosso envolvimento emocional com o que está acontecendo, o que, em nosso uso cotidiano do computador, corresponde à sensação física de pertencer a uma “realidade virtual”, como nos é dada pelo teclado e o mouse. A arte contemporânea é rica em exemplos que envolvem o uso de vários tipos de mídias digitais em diversos tipos de instalações. Explorações que procuram reorganizar e reestruturar nossa percepção e cognição em busca de novos horizontes estéticos. Esses projetos colocam o corpo na função ativa de interferência; é ele que informa as mídias utilizadas para reagir a um determinado estímulo.15 Por isso, o dado corporal na mídia digital tem atraído a atenção de tantos pesquisadores. Houve aumento da complexidade da informação com a utilização do meio digital, que tem estimulado pesquisas em diversas áreas do conhecimento. Os estudos das neurociências, por exemplo, que atualmente utilizam modernas tecnologias de ressonância magnética, têm feito a revisão de conceitos atualmente considerados reducionistas a respeito do cérebro.16 Estamos deixando de considerar o cérebro mecanismo de entrada e saída de dados, de estímulo e resposta, para considerar todo o corpo um sistema sensível, capaz de novo olhar suscetível a englobar um incrível jogo de relações físicas e culturais. ARTI G O S | M AN O V I AN N A 99 externos para ser percebida e ganhar significação. De acordo com Ron Burnett,17 o conceito da imagem como portadora de significado único e estável foi deslocado para o de mediação: “Um campo intermediário entre espectadores e criadores para intervenção e interpretação”. Burnett observa que, no ambiente digital estabelecido pela web, o conceito de imagem tem deixado de significar apenas o enquadramento de um assunto, pois não há a representação do real através de uma imagem, como um signo para a comunicação. A Era Analógica sentia-se confortável com a representação, com a habilidade em relacionar o real às marcações e aos signos que os homens poderiam converter de uma experiência à próxima. Na Era Virtual temos poucos desses interesses, pois muitas das imagens criadas são produtos da interação entre os homens e complexos dispositivos.19 Spi 2011. Arte digital (jpg), 8,99 x 18,3cm, 300 dpi Imagem na web: corrente de signos Uma imagem gerada por um programa de computador, como na proposição poética Sob palavras e imagens, relaciona-se a uma rede de conexões de informação, necessitando, por isso, de um conjunto de critérios diferentes da imagem analógica, dependente de referenciais materiais 100 A imagem configurada pelas novas mídias de comunicação está relacionada a complexo contexto no qual são costurados e rearranjados diferentes discursos. Televisão, jornais, rádio e as novas formas dentro da web produzem um conjunto de discursos visuais, orais e textuais diferentes que se interligam de diferentes maneiras, ou seja, uma mesma imagem pode ter diferentes conotações de acordo com a página da web em que está sendo vista. Dentro desse continuum de informações, as imagens se tornam um ‘ambiente’ que nos influencia temporariamente e nos conduz, remete ou dirige a outros espaços e lugares. Essa noção, que difere da visão de uma imagem responsável direta pelo significado, explora o aspecto do entendimento das múltiplas entradas de informação numa rede virtual e o modo como somos afetados por essa convergência das mídias que permite a combinação de diferentes modos de comunicação, através de estímulos visuais, sonoros, textuais e discursivos. A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 As discussões teóricas sobre as novas formas semióticas na web trazem à luz, entretanto, outras importantes questões. A relação imagem e texto é uma delas. A proposição poética Sob palavras e imagens, ao combinar texto e imagem, faz alusão a um campo de pesquisa que tem provocado amplo debate: existe uma nova relação de predominância na leitura e na cultura visual entre imagem e texto? A pesquisadora Yvonne Hansen19 observa que, entre as diversas abordagens existentes, muitas relatam um “retorno ao visual” (pictorial turn), seja ele ocasionado pela convergência de mídias realizada pelo computador, que esvazia o sentido da existência de mídias puras, como pretendia o modernismo,20 ou pelo fato de que na web as imagens estão no topo de uma estrutura de linguagem que reúne diversos elementos. Propostas em artemídia: recriação e armazenamento desafios de Fato observado no desenvolvimento do trabalho aponta as manifestações artísticas que utilizam tecnologia digital se realizando através de parâmetros não contemplados pela classificação tradicional da arte. O que se torna um problema quando se pensa na conservação, no armazenamento, na remontagem e até mesmo na recuperação de dados de eventos realizados na web. Trabalhos em artemídia podem fazer uso de diversas mídias dentro de diferentes contextos de comunicação. O processo peculiar de criação dessas obras tem possibilidade de envolver características comuns a essas manifestações, como serem baseadas em algoritmo, dirigidas por processos ou baseadas em tempo; ou serem participativas, colaborativas e performativas; tanto quanto podem ser modulares, gerativas ou customizáveis21 – características, porém, encontráveis em diferentes combinações nesses trabalhos. O que torna ainda mais crítica essa situação é o fato de que, embora se encontrem dois trabalhos com as mesmas características de produção, seus resultados estéticos podem ser bastante diferentes, pois experiências interativas realizam processos entre artista e observador, tornando-se dependentes dos contextos em que foram criadas. Em vista disso, um trabalho em artemídia pode variar substancialmente de resultado apenas com a mudança de público, dependendo, naturalmente, do grau de abertura estabelecido pelo artista, visto que é sua a prerrogativa de aumentar ou diminuir a qualidade da contribuição do participante. Devemos adicionar ainda, às dificuldades apresentadas, a questão do suporte material e técnico da construção de muitos projetos, fato tantas vezes decisivo para a remontagem de uma obra. Afinal, como concretizar uma exposição na qual a experimentação artística foi realizada por equipamento há mais de dez anos fora do mercado ou utilizava um programa específico de um sistema operacional já obsoleto? Recuperar essas obras exige também que os equipamentos em que elas foram realizadas estejam disponíveis na ocasião de sua remontagem − sem dúvida um grande desafio quando se observa que grandes instituições de arquivamento de obras, como os grandes museus, ainda estão desenvolvendo projetos que permitam criar uma taxonomia22 para esses trabalhos. Os problemas para a criação de uma taxonomia, entretanto, não impedem que divisões dentro da artemídia já se estejam configurando naturalmente, de acordo com a similaridade das aplicações. Sendo assim, podemos identificar área que se constitua como um grupo bastante definido – a generative art – em que a proposição Sob palavras e imagens possa ser incluída. Essa nomenclatura, cada vez mais utilizada para se referir à arte realizada por programas de computador que desenvolve processos com algum grau de autonomia, pode ser encontrada como palavra-chave (tag) para localização de trabalhos ARTI G O S | M AN O V I AN N A 101 em websites de grandes instituições voltadas para a pesquisa de arte e tecnologia. Como campo ainda em processo de estabelecimento, a própria definição para esse conjunto de obras é encontrada de diferentes maneiras, sempre procurando ampliar sua abrangência para desenvolver uma noção que possa conter um grande número de manifestações artísticas. A experimentação poética Sob palavras e imagens é projeto aberto à participação pública desde sua publicação na web em outubro de 2010. Desde então, diversos tipos de mensagens foram recebidos, configurando um mesmo número de diferentes imagens. A página inicial do website hospedeiro contém painel em que estão expostas diversas imagens já produzidas, revelando a individualidade de cada manifestação: única e pessoal. Mas, devo confessar, minha primeira expectativa quando pensei nesse projeto estava relacionada à geração de imagens. Pensava num futuro em que as imagens técnicas poderiam ser geradas por programas independentes, soltos na grande nuvem de dados que está sendo formada pela computação. Teriam a capacidade de emocionar da mesma forma que o pôr de sol cheio de nuvens e cores, sem nosso controle, um novo processo ‘natural’. Porém, no decorrer dessa pesquisa, o projeto tomou outro rumo, voltando-se para um caminho que agora me parece bastante evidente. Enquanto focava as possíveis conformações da imagem, estabelecia comandos e diretrizes que permitiriam uma futura grande composição – massas de cor e ritmo – como na arte tradicional. Ao participante caberia a função de realizar uma proposta pronta, sem muita possibilidade de real interação na construção de um sentido poético. Em determinado momento, porém, ficou evidente um desvio, mais tarde corrigido. Como o objetivo desse trabalho era investigar a chamada 102 artemídia, não bastaria apenas criar um software gerador de imagens e disponibilizá-lo na web para investigar as peculiaridades do ambiente digital. Era preciso estabelecer um ponto de vista que relacionasse tempo e contexto – seus principais paradigmas – para servir de estímulo poético, para divagação, para favorecer novas percepções. A expressão escolhida, sob palavras e imagens, que serviu como título desse trabalho, foi amplamente debatida e corresponde à expectativa de se imaginar quais mensagens foram ‘soterradas’ pelos outros apelos através do tempo. “Estou aqui!”. Talvez seja o que todos queiram dizer de diversas formas e movidos por diferentes motivos. Os usos, porém, que podem ser feitos com a tecnologia digital são muitos, e, mesmo num projeto que estabelece limites técnicos de utilização, são as atitudes inesperadas as que mais chamam a atenção. Como no caso do participante que tentou estabelecer contato com outro usuário através das mensagens em tempo real, ou de outro que tentou ‘dominar’ o programa compondo uma imagem através da repetição de sinais de pontuação e acentuação. São resíduos bem-vindos numa experimentação poética, pois há a intenção de escapar do programado, ir além do estabelecido. Dessa forma, essa produção artística, adjetivada como variável, inconstante ou efêmera por diferentes autores, diferentemente da arte tradicional direcionada à criação de objetos, resultou num evento no qual considerações como sucessão, comparação, expectativa e resposta problema”. Lyotard, Jean-François. O pós-moderno. Rio de Janeiro: J.Olympio, 1988:29. 15 Hansen, Mark B. N. New Philosophy for New Media. Cambridge: MIT Press, 2004. 3 Cauquelin, Anne. Teorias da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2005b:13. 16 Burnett, Ron. How Images Think. Cambridge: MIT Press, 2005:118. 4 Nunes, Benedito. Hermenêutica e poesia. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999:107. 17 Idem, ibidem:40. 5 Kant (na Terceira crítica) estabelece como fundamento a ideia de gênio ou daquele que é “capaz de produzir artisticamente, ou seja, produzir de tal modo que a obra resultante parecesse, afetando a espontaneidade da natureza, inventar a sua regra de gosto e transmitir uma intuição superior, suprassensível, da realidade, que chamamos ‘ideia estética’”. Apud Nunes, op. cit.:108. 6 “The practice of making viewers aware of the means of production by incorporating them into the content of the cultural product was often a feature of modernism”. Ken, Marita; Cartwright, Lisa. Practices of Looking. New York: Oxford University Press Inc., 2001:254. 7 Plaza, Júlio. Arte e interatividade: autor-obrarecepção. Concinnitas, n. 4, março de 2003. Disponível em: <http://www.concinnitas.uerj.br/resumos4/plaza. htm>. Acessado em setembro de 2011. 8 Lévy, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999:22. 9 “Now we have to say that the copy has, if anything, even more aura than the original.” Mitchell, W. J. T. What do pictures want? The lives and loves of images. Chicago: University of Chicago Press, 2005:320. tiveram peso decisivo. 10 Benjamin, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Walter Benjamin. São Paulo: Ed. Abril, 1975:9-35. Coleção Os pensadores XLVIII. NOTAS 11 Flusser, Vilém. O mundo codificado. São Paulo: Cosac & Naify, 2007. 1 Media Art, como em Grau, Oliver. MediaArtHistories, Cambridge: The MIT Press, 2007. 12 Idem, ibidem:130. 2 Para o autor, vivemos “numa sociedade em que a componente comunicacional torna-se cada dia mais evidente, simultaneamente como realidade e A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 13 Idem, ibidem:94. 14 Grau, Oliver. Arte visual: da ilusão à imersão. Cambridge: MIT Press, 2007. 18 “The analogue era felt comfortable with representation, with the ability to relate the real to markers and signs that humans could translate from one experience to the next. The virtual era will have few of those concerns because so many of the images that will be created will be the products of human interaction with complex digital devices”. Idem, ibidem:72. 19 Hansen, Yvonne M. Writing with images. Universidade de Washington. Disponível em: <http://courses.washington.edu/hypertxt/ cgi-bin/12.228.185.206/html/wordsimages/ wordsimages.html#digilog>. Acessado em setembro de 2011. 20 “...cada arte deveria tornar-se ‘pura’, e em sua ‘pureza’ encontrar a garantia de seus padrões de qualidade, bem como de sua independência”. Greenberg, Clement. A pintura moderna. In: Battcock, Gregory (Org.). A nova arte. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1986:97. 21 Paul, Christiane. The myth of immateriality: presenting and preserving new media. In: Grau, Oliver (Org.). Media Art Histories. Cambridge: MIT Press, 2007:251. 22 Várias estratégias de preservação estão sendo elaboradas por diferentes instituições internacionais como: Rhizome.org, Capturing Unstable Media e o Variable Media Network. Mano Vianna, como é conhecido Marcelo D. M. Viana, é artista (manovianna.com), mestre em poéticas interdisciplinares pelo PPGAV/UFRJ, graduado em gravura pela EBA/UFRJ e designer gráfico da Fundação Oswaldo Cruz. ARTI G O S | M AN O V I AN N A 103 ROBERT MORRIS E O ESTÚDIO DO ARTISTA* Kim Paice Robert Morris minimalismo estúdio de artista A problematização sobre a morte do estúdio é central na museologia, na arte contemporânea e na crítica. Assim, na era pós-estúdio o lugar institucionalizado da obra persiste com base na informação. Abordando/lendo de perto trabalhos e escritos de Robert Morris, a autora explora os índices das performances em seu estúdio e preocupações com a construção no neodadaísmo, no minimalismo e na performance. Em 1968, quando Robert Smithson discutia o “fim do estúdio”, destacou “os métodos e procedimentos irrestritos” de Robert Morris em um “mundo de não contenção”.1 Convenientemente referindo-se à amplidão do trabalho do amigo, Smithson convocava os artistas a livrar-se das amarras dos ateliês.2 Em vez disso, explicava, era hora de se interessar por coisas “enfadonhas”, falar com admiração de buracos, valas, montes, Robert Morris e o estúdio do artista| Speculation about the death of the studio is central in museology, contemporary art, and criticism. Thus, the institutionalized workplace persists in the information-based ‘post-studio’ era. Closely reading Robert Morris’ works and writings, the author explores indices of his studio performances and concern with built spaces in Neo-Dada, Minimal art, and performance.| Robert Morris, Minimal art, performance, artist’s studio. pilhas, caminhos, fossos e estradas − que ofereciam aos artistas nova linguagem poética desconstrutiva contra a arquitetura e a pintura, até o ponto em que, observava Smithson, “em vez de pincel para fazer arte, Robert Morris gostaria de usar uma escavadeira”.3 Embora frequentemente considerado um dos pioneiros do “pós-estúdio”, o próprio Morris nunca escreveu sobre a prática no estúdio em si e muito menos a abandonou. Já ocupou diversos espaços convencionais, incluindo ateliês nas ruas Great Jones, Grand, Mulberry e Greene, em um loft no qual havia morado. Não obstante, criou numerosas obras que lidam com as noções de deslocamento e destruição do estúdio. Assim como seus prolixos tratados sobre esculturas, as chamadas obras de “estúdio” trazem publicidade às maneiras como Morris conceitua seu trabalho. Neodadaísmo Durante seus primeiros anos na cidade de Nova York, Morris realizou uma série de obras neodadaístas lidando com noções de expropriação do estúdio e estendendo a ideia de performance a objetos I-Box, 1962 (foto) Dorothy Zeidman 104 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 CO L AB O RAÇÕ E S | KI M PAI CE 105 como a Box with the Sound of its Own Making. para o âmbito do público e da exibição. A obra o objeto foi feito para um presente no qual o Simone ensaiava See Saw conosco de um lado. Eu consegue arrastar o estúdio, metaforicamente, encontramos e o manipulamos, o tempo todo, ensaiava meu primeiro solo, Three Satie Spoons”.4 a um dado espaço de exposição, e de maneira possibilitando que Morris conte histórias banais O ambiente devia ser excitante! nenhuma declara sua obsolescência. Em cartas, sobre o processo. Embora “ostente sua própria Morris pediu a aprovação de Cage para a caixa, suposta autocontenção”, exibindo a história de entre outras obras, escrevendo ao compositor que sua produção em fichas de arquivo, Card File ele estava tentando criar condições para a “morte também transforma “a presumida privacidade do processo (...) uma espécie de extensão da do pensamento no meio partilhado que é o ideia somente”. Embora se possa concluir que a discurso e na lógica das proposições”, como atitude dadaísta do artista valorize a inércia, essa registrou Rosalind E. Krauss em 1994.9 Podemos mesma ideia de dreno de energia foi frutífera para extrapolar afirmando que, ao dar atenção a essas Morris, fazendo trocadilhos com a impotência e trivialidades, Morris também expõe a categoria a importância de si, mais obviamente na risível da publicidade e o desejo de exibir a qualidade I-Box (1962). É digno de nota como dessa porta “trabalhada” da obra. O relato de encontros cor-de-rosa de um pequeno armário em forma casuais é feito com detalhes absurdos, ainda de I se revela um retrato fotográfico do jovem que burocráticos; simplesmente dar de cara artista em seu estúdio, sorrindo maliciosamente, com Ad Reinhardt foi costurado no tecido da incontritamente nu e com seu pênis parcialmente obra mediante a menção na ficha.10 Tanto o Uma análise superficial das fotografias de Morris fazendo sua performance com, em e sobre as obras desse período revela como as performances em estúdio caracterizam muitas das obras neodadaístas.5 A constatação mais famosa a esse respeito ocorre em Box with the Sound of its Own Making (1961).6 Uma homenagem direta às fitas magnéticas de John Cage, a caixa de madeira guarda uma gravação “de seu próprio fazer”, que está contida nela mesma e é tocada quando a obra é exposta; uma composição auditiva que traz o espaço do estúdio e o trabalho nele realizado Box with the Sound of its Own Making I-Box, 1962 (foto) Dorothy Zeidman 7 ereto completamente exposto. Antecipando híbridos, que podem ser usados, manipulados por interruptores, escutados, fechados e abertos. Transferindo simbolicamente a propriedade tradicionalmente privada (do estúdio do artista) para o domínio público e deixando à mostra tanto o estúdio como o fazer artístico, Morris abriu espaço para encontros sociais com essas obras. Seu aparente interesse em turvar as fronteiras entre os gêneros e os lugares tinha relação com sua prática de escultor e dançarino, e a partilha do estúdio com outros dançarinos, cujas práticas se caracterizam como multidisciplinares e altamente criativas. Sem dúvida inspirou-se em Simone Forti e Yvonne Rainer, colegas com quem dividiu o espaço no último andar de um prédio na Rua Great Jones. O estúdio em questão, lembra Rainer, “era completamente aberto,” e “Morris fez pequenas esculturas em um canto, 106 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 sintomas relacionados com a desmaterialização da arte, como a substituição do estúdio tradicional, Morris usou a principal sala de leitura da Biblioteca Pública de Nova York como local de produção de Card File (1963).8 Essa obra inexpressiva também parece exibir o selo de aprovação de Cage. Consistindo em fichas de arquivo organizadas em ordem alfabética e marcadas com a data e a hora de diversos eventos, as fichas de arquivo documentam ações aleatórias referentes à criação de Card File; sua “composição” abrange cabeçalhos como “Interrupções” (“18.7.62, 14h45 No caminho para o arquivo encontrei Ad Reinhardt na esquina da Rua 8 com a Broadway. Falei com ele até as 17h30 quando então ficou tarde para continuar o percurso”), “Períodos de Trabalho” (“Contam-se 17”) e “Concepção” (“11.7.62, 15h15 enquanto tomava um café na Biblioteca Pública de Nova York”). O arquivo nos tira do tempo em que Card file, 1962 (ficha) (foto) Philippe Migeat CO L AB O RAÇÕ E S | KI M PAI CE 107 arquivo como a caixa demonstram a fluidez com que “o contato físico com uma superfície pode Sem dizer literalmente “estúdio”, Morris acaba a qual Morris concebia o que está dentro e fora tanto ser um uso da superfície como maneira de depreciando o minimalismo e a “total separação da criação – e do estúdio. Além de insistir na reconhecer que ali há um limite, coexistindo com de meios e fins na produção de objetos, bem recepção do trabalho – com aparente indiferença a obra”. como a preocupação de tornar manifestas imagens 12 em relação a quem ou o que o público possa ser, Não é difícil perceber a ambiguidade com que a acima do prestígio de Cage ou Reinhardt –, essas obra reconhece os lugares físicos, mas nega sua obras neodadaístas nos contam que para Morris o especificidade. Conforme explica o historiador da estúdio é lugar que pode ser redefinido e no qual arte James Meyer, a situação na arte minimalista a criação artística pode ser encenada. foi um momento crítico na concepção da escultura como instalação.13 A transição dos dúvida na alegação de que uma atitude pragmática permeia a arte minimalista nos anos 60”.17 É como se ele lamentasse que as imagens mentais do artista nunca tivessem tido um lugar próprio e que tal lugar teria que ser o estúdio do artista. tijolos minimalistas, colunas, pilares e portais para Arte minimalista contextos arquitetônicos e sociais e lugares reais, Performance A arte minimalista levou Morris a concentrar-se nos incluído o estúdio do artista, foi modesto salto significados da percepção enquanto performance conceitual que, para artistas como Michael Asher, Este ensaio culmina com breve discussão sobre as em si e a reconsiderar os propósitos do ambiente se demonstrou imensamente rico. Foi a percepção danças e performances de Morris, relacionadas arquitetônico e do estúdio. Espaços delimitados de uma relação assíntota dessa arte com artigos com as práticas de estúdio. Na obra-performance e ambientes construídos, nem explicitamente do dia a dia e com lugares − não o estúdio do Site (1964-67) e na exposição performática estúdios, nem espaços para exposição, eram artista,mas supostamente outros − que contribuiu Continuous Project Altered Daily (1969, dora- física e conceitualmente esqueletos para os para posicionar Clement Greenberg na oposição à vante Continuous Project), Morris realizou de objetos, poliedros cinza e obras de metal e fibra arte minimalista: “Independentemente de quão maneira criativa a possibilidade de desempenhar de vidro realizadas pelo artista. A importância da simples é o objeto, permanecem as relações e as o deslocamento do estúdio e de suas práticas. intimidade foi parcialmente perdida à medida inter-relações da superfície, contorno e intervalo Essas obras têm o efeito peculiar de criar um que fabricantes industriais, tal como a Aegis, espacial”; e, por esses motivos, Greenberg espetáculo ou melhor seria dizer uma celebração produziam algumas de suas obras, enquanto ele continua, “obras minimalistas são lidas como do fim do estúdio. Elas sugerem distinções entre próprio atuava como projetista. Ao mesmo tempo arte, assim como quase tudo hoje em dia, o uso que o artista faz do estúdio como habitat em que a temática desenfatizando a biografia do incluindo uma porta, uma mesa, ou uma folha versus um espaço do qual se apropria para sua artista poluía seus escritos, as práticas de fabricação de papel em branco”. própria utilização. Dando-nos acesso a esses ajudavam a entender que sua contribuição física maneira. 11 14 “Suprimida” foi como a historiadora Barbara Rose mal era relevante em alguns trabalhos feitos dessa descreveu a “impessoalidade mecânica” da arte Ainda assim, essa obra tridimensional minimalista em 1965.15 “A frequente afinidade fala intensamente ao mundo de espaços fechados com o mundo das coisas” (e com o dadaísmo) construídos, incluindo o estúdio e os locais de exposição. Embora o curador Martin Friedman tenha achado a obra de Morris “puritana” e “atópica”, em 1966 ele apreciou o “ambiente como fator crítico” da obra, “pois essas formas densas consomem espaço de maneira vigorosa e se relacionam fortemente com as paredes, pisos e tetos”. Em cartas a Friedman, Morris afirmou A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 espaços operacionais sincronicamente, ele viola a economia dualista do estúdio e do espaço de exposição e coloca à mostra o valor de troca que é produzido no trânsito do estúdio para a galeria. dessa escultura a fez compará-la às unidades A conhecida coreografia Site, realizada pela básicas de linguagem ou informação, mas nunca primeira vez no Stage 73, em Nova York, à mão do artista ou a seus espaços pessoais. entremeava a presença visível de um ambiente Como Annette Michelson, que perspicazmente arquitetônico abstrato, um ambiente implícito chamou a obra minimalista de Morris de na escultura minimalista, e planos abstratos de “apodíctica”, Rose considerou sua escultura uma tinta branca da pintura moderna de Edouard série de afirmações simples e factuais envolvendo Manet, Olympia (1863). Vestido inteiramente a permutabilidade. de branco, mas ainda identificado como artista- 16 Untitled (box for standing), 1961 (foto) Robert Morris Archives 108 mentais idealizadas”, que ele afirmava “lançar CO L AB O RAÇÕ E S | KI M PAI CE 109 operário pelas luvas de trabalho e pela trilha contrapartida solapar restrições linguísticas e sonora de construção, audível no decorrer imagísticas ao fazer artístico.18 Na derradeira da performance, Morris usava uma estranha e quarta parte da série de ensaios Notes on máscara feita com base em seu próprio rosto Sculpture, ele declara que objetos minimalistas – contribuição de Jasper Johns – que escondia haviam “fornecido a base imagística a partir da suas autômato, qual a arte dos anos 60 se materializou”.19 A arte ele carregava retângulos de compensado de minimalista se havia aproximado perigosamente madeira pintados de branco como se estivesse da nomenclatura, isto é, havia tornado “imagens mudando seu estúdio, parede por parede. Como mentais idealizadas visíveis e afirmado as formas complemento, Carolee Schneeman posava como antes das substâncias”.20 expressões faciais. Como Olympia em uma pequena cama branca, nua e coberta de talco, enquanto, de dentro de um cubo branco, ecoava uma gravação, feita da janela do estúdio de Morris, de uma britadeira dolorosamente barulhenta. Para lidar com esses elementos, negações e inversões, e por curto período, Morris fez da percepção, do processamento da informação e da transformação do material suas prioridades e deixou de lado a produção de objetos. Canteiros Em 1969, Morris já havia emplacado a noção de obra o atraíam de imediato pela crueza e de que até mesmo a matéria-prima poderia ser dessemelhante relação com o ambiente urbano considerada informação a ser percebida, como manufaturado em que dominava o princípio da em fotografias e outros tipos de linguagem, gestalt.21 Chamando-os de “pequenas arenas especialmente itens organizados em listas e teatrais”, Morris dizia que esses locais eram conjuntos. O convite para o show Continuous o oposto de um refúgio. Nem seguros nem Project apenas protegidos como abrigos, essas arenas eram “os informativo: bastante reduzido, fonte preta em era, correspondentemente, únicos lugares em que as substâncias brutas e fundo branco, só indicando o nome do artista, seus processos de transformação eram visíveis, dois locais, a galeria de Leo Castelli na Rua 77 e e a distribuição ao acaso, tolerada”.22 Esses o número 103 na Rua 108 West, bem como uma locais proporcionavam os tipos de experiências lista avulsa de materiais: alumínio, asfalto, argila, sensoriais que ele desejava que estimulassem cobre, feltro, vidro, grafite, níquel, borracha, aço o aparato perceptivo atrofiado dos habitantes inoxidável, linha e zinco. (e Morris escrevera no ano anterior em seu ensaio divisor de águas Anti Form, que o lócus espectadores) entorpecido urbanos, pela cidade constantemente construída e compartimentalizada. do estúdio do artista e de seu fazer artístico O Continuous Project de Morris foi ação de trabalho havia a artístico em situação de estúdio completamente dubiedade na nomenclatura da matéria-prima transitório, em que a obra performativa do e na transformação, por qualquer que fosse o artista ao vivo entrecruzava um depósito da processo, de “materiais” em objetos de consumo. Castelli Gallery e um efêmero canteiro de obras. sido historicamente crucial para A arte contemporânea (a dele incluída), insistia, deveria depender da materialidade que seria capaz de evocar novos modos perceptivos e em 110 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 Continuos project altered every day, 1969 (foto) Leo Castelli Gallery, NY CO L AB O RAÇÕ E S | KI M PAI CE 111 Com mais de uma tonelada de materiais a sua combinações despropositadas ou inesperadas. disposição, o esforçado artista intencionalmente Esses esforços eram direcionados ao formalmente se despojou dos resultados tradicionais, como interessante e ao temporalmente persistente: objetos ou estruturas, ou seja, categorias ou itens “Comecei com uma tonelada de argila. Eu tinha relacionados a sistemas ou nomeáveis, e registrou uns restos de linha da peça Thread. Barris, não esse procedimento deliberado, criando uma teoria lembro o que havia neles. Comecei a tirar o idiossincrática de alienação no que diz respeito plástico. Eu tinha 400 libras de graxa. Comecei a aos produtos da obra. construir mesas e trouxe o feltro, a argila endureceu. Continuous Project não era o pão de cada dia de uma galeria ou de um espaço de performance, ainda que os parâmetros que distinguiam as obras de portas fechadas e aquelas ao ar livre estivessem sendo destruídos na época. De fato, Morris conseguiu incorporar ao Continuous Project o solo de obra recém-exibida na Dwan Gallery. Intimamente, Morris guardava cadernos sobre No final de cada dia eu tirava uma foto, que era revelada à noite. No dia seguinte eu a pendurava. Então começa a formar-se um registro do passado. No último dia eu limpei tudo e fiz uma gravação, a escavação, essa coisa toda. Então o que sobrou foi a gravação da limpeza e as fotografias. Essa é a natureza dessa peça, sempre em processo.”25 o trabalho contínuo em Continuous Project, Deixar o gravador emitindo esse som no galpão de 28 de fevereiro a 22 de março de 1969, vazio da Castelli no final do mês concretiza descrevendo processos em que misturava água a importância de Continuous e graxa com argila, pendurava e arrancava deslocamentos de estúdio pedaços de tecido de algodão e musselina, silenciosamente entranhados em suas obras, empilhava que Project nos estão tão terra, que podem passar despercebidos ou ser mal rasgava tiras de feltro, martelava madeira e interpretados, como um conjunto de obras construía plataformas, tão somente para fazê- temáticas. Nessa ação de utilizar o som e as fitas las desintegrarem sob o peso da terra. Esses magnéticas, percebemos o desejo contínuo de cadernos que registram o processo sugerem que Morris de proporcionar informações e de usar Yvonne Rainer foi responsável por lembrar Morris de meios como linguagens. No entanto, vale a pena que brincar deveria ser parte do processo, embora considerar por que ele ainda contava com tal 23 ela não o associe a esse tipo de envolvimento. aparato em uma obra antiformal. O paradoxo foi Morris remói: o processo o deixou frio, frustrado, nunca parar de trabalhar para criar e exibir o valor desgostoso e “entediado”. e escavava amianto e Continuos project altered every day, 1969 (foto) Leo Castelli Gallery, NY Foi-lhe difícil resistir de troca. A repulsa que descreveu em seu diário projeto – que foi publicado pela Multiples, Inc. de espontâneo dos dançarinos e a leitura às preconcepções da obra que surgiam a cada dia: não era em relação ao processo físico de fazer ou Marian Goodman, em 1970. De certa maneira, o entre os não dançarinos. Antes disso, a “Eu não tinha ideia do que eu faria ou colocaria manipular os materiais, mas à própria ideia de criar sentido da abordagem era oposto ao daquela que fala aparecia na forma de declamações lá, eu só sabia que trabalharia todo dia”. Talvez algo a partir dos materiais e de seu trabalho. Vale Rainer buscou através da linguagem no trabalho em movimento. Nos primórdios do CP- suas prioridades anticomposicionais universais ressaltar que de maneira nenhuma ele se opôs à de título semelhante, Continuous Project-Altered AD, tentei encontrar equilíbrio entre fossem mais composicionais do que ele entendia. criação desse projeto como obra para a venda. Daily (1969) (doravante CP-AD). configurações de dança “refinadas” e Portanto, envolveu-se em uma atividade nebulosa Chegou até a transformar as fotografias do projeto que começou com a manipulação de materiais em um múltiplo – uma dobradura de papel em convencionais estilo acordeom com os estágios e os detalhes do 24 112 Estiquei o feltro, criando camadas ou coisas. enquanto tentava encontrar A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 Na época em que eu estava trabalhando “comportamento”. Nem sempre era fácil.26 em CP-AD [ela observa], a fala estava Diretamente inspirado pela leitura dos escritos relacionada de Anton Ehrenzweig, Morris reconheceu haver com o comportamento CO L AB O RAÇÕ E S | KI M PAI CE 113 Portrait, 1963 (foto) Diane Nilsen Robert Morris, no Museu Solomon R. Guggenheim, Lucy R. Lippard e John Chandler, The Dematerialization em Nova York, que abriga muitos documentos não of Art. Art International, 12, 2, February 1968:31-36. publicados, arquivos, correspondência e parte da biblioteca de Morris. 1 Robert Smithson. A Sedimentation of the Mind: Earth Projects. In Jack Flam (ed.). Robert Smithson: The Collected Writings, Berkeley: University of California Press, 1996:100-113. com a noção de que “a percepção tem história”.30 sido Continuous Project a primeira ocasião em que ele quis usar os processos de criação artística para trabalhar níveis e aspectos de sua própria personalidade. Essa posição aparentemente nova no que diz respeito ao papel do “eu”, em torno de 1967-1971, estava relacionada a seu interesse por materiais que resistiam à unificação formal.27 Morris descreveu a importância de se fazer uma varredura visual e mental em materiais variáveis, como Ehrenzweig o fez, em vez de concentrar-se e fixar-se em coisas familiares, nomes próprios ou formas reconhecidas. Morris esperava transmitir a sensação de indeterminação aos espectadores, para que eles se tornassem mais unificados em face das sensações oceânicas do poder opressivo do mundo a nossa volta; conforme Ehrenzweig, sugeriu, esse poderia ser um dos resultados desses encontros com a ecceidade do mundo material.28 Entretanto, era primeiramente a fim de unificar a si próprio que Morris continuava seu diário. Adotando esse entendimento ou maneira de organização, ele esperava afastar-se ainda mais do que chamava de “arte mercadoria produzida por estúdios e fábricas”.31 Em 1971 ele teorizou sobre as vias de escape possíveis para o beco sem saída potencialmente tóxico criado pela troca na materialidade orientada para processos. Além feito’”, “suprimem o incidente visual”, e localizam o processo “naquele que participa” dessa arte. 32 Portanto, Morris deixou os anos 60 com o estúdio e o eu a tiracolo. Não mais um lugar para produção, o estúdio era para ele redefinível, encenável, portável, vazio e excessivamente pleno de informações sobre o ser, muito mais do que o fazer. Uma primeira versão deste artigo foi publicada orientações habituais e valer-se da “concretude com o título Continuous Project Altered Daily: física da matéria” na arte, orientada para o Robert Morris. In Davidts, Wouter; Paice, Kim processo a fim de criar “uma mudança no perfil (eds.). The Fall of the Studio: The Artist at Work. da arte tridimensional como um todo”, indo de Amsterdam: Valiz Press, 2009:43-61. “formas particulares a maneiras de organização, perceptiva”.29 Para desenvolver maneiras de fazer NOTAS arte que pudessem assegurar sua relevância para * Constam da pesquisa para este artigo entrevistas as pessoas que a experimentam, Morris contava 114 pessoais e um estudo pormenorizado do Arquivo A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 exposta na Green Gallery, na Rua 57, de 15 de outubro a 2 de novembro de 1963. 11 Pesquisadores buscaram recuperar a biografia Robert Morris: Formal Disclosures, Art in America, papel no final de uma seção do They, de Morris, 83, 6, June 1995:88-95, 117-19; Anna C. Chave, que era parte da instalação de som e escultura Voice Minimalism and Biography, Art Bulletin, 82, 1, March (1974). Robert Smithson. Towards the Development 2000:149-163. of an Air Terminal Site. In Flam (ed.), op. cit.:56. a “desmaterialização da arte” com a nova ênfase 12 Martin Friedman, Robert Morris: Polemics and Cubes, Art International, 10, 10, December 1966:237 (23); Robert Morris, carta a Martin Friedman, 24 de agosto de 1966. Daqui, a distância conceitual parece pequena para o decalque de livros e de tomadas, entre outros itens, que Morris fez em estúdio na Rua Mulberry em 1972. Ver Kimberly Paice, Rubbings (1972), in Paice, 1994:240-243. Eugene C. Goossen também foi tocado pelas formas como a arte minimalista se integrava à arquitetura e dela se desvencilhava. Não é difícil acompanhar seu pensamento no tocante à decisão de incluir pinturas como Lake George Window (1929), de Georgia O’Keeffe, e Window: Museum of Modern Art, Paris (1949), de Ellsworth Kelly, ao lado de esculturas minimalistas em The Art of the Real: USA 19481968. Examinando essa exposição, Gregory Battcock criticou Goossen por “academizar” o minimalismo e limitar o potencial da obra de contestar instituições e lugares reais (museus e universidades). Gregory Battcock, The Art of the Real: The Development of a Style: 1948-68, Arts Magazine, 42, 8, Summer 1968:44-47. conceitual em arte americana. Mais do que isso, 13 James Meyer. Minimalism: Art and Polemics entretanto, estou interessada em como eles identificam in the Sixties. New Haven/London: Yale University o duplo colapso da feitura e do estúdio particular. Ver Press, 2001:166. de outubro de 2007. ambiental que exploram “o mais ou menos ‘não revela que Cage ainda não havia visto Card File, relacionada à obra. Ver a entrevista a Pepe Karmel, manualmente manipulados que permaneciam que poderiam ser usados em obras de escala Morris a Cage, datada de 12 de janeiro de 1963, escavadeiras desempenhou mais tarde importante 4 Yvonne Rainer, correspondência com o autor, 16 sendo não mercadorias, porém não brutos, e 10 Morris, ‘Letters to John Cage’ (78), a carta de 3 De fato, o ruído da demolição do prédio e das disso, Morris expressou seu interesse por materiais Publicamente ele escreveu que queria romper com métodos de produção e finalmente, à relevância 2 Idem, ibidem:102. 9 Rosalind E. Krauss in Paice, 1994:4. 5 Paice, Kimberly. Catalogue. In Robert Morris: The Mind/Body Problem (exh. cat.), New York: Solomon R. Guggenheim Museum, 1994. 6 Partituras orientadas por regras foram usadas em trabalhos de Morris ainda em 1974, com a junção de textos – The Four, We, They, Cold/Oracle, He/She, Scar/Records e Monologue – na obra auditiva Voice (1974). Ver Paice, Kimberly. Voice (1974). In Paice, 1994:256-261. 7 Ver, de Branden W. Joseph, a apresentação de Bob Morris Letters to John Cage, October 8, Summer 1997:70-79 (71, 74). Em carta datada de 27 de fevereiro de 1961, Morris se refere a Box with the Sound of its own Making e afirma ter mencionado a obra a Cage. 8 Lucy R. Lippard e John Chandler inter-relacionam CO L AB O RAÇÕ E S | KI M PAI CE 115 14 Clement Greenberg, Recentness of Sculpture. tentaram ressuscitar a dança e a arte minimalista de do Pulsa passaram no depósito um dia. Rainer 28 O nome de Ehrenzweig não aparece em Anti In American Sculpture of the Sixties (exh. cat.), Morris pela explicação freudo-marxista de trabalho salienta, no entanto, que não havia colaboração Form, mas figura em Notes on Sculpture, Part 4: Los Angeles: Los Angeles County Museum of Art, dessublimado de Herbert Marcuse. entre ela e Morris e que seu trabalho de mesmo Beyond Objects. Anton Ehrenzweig, The Hidden título, que foi realizado em seu próprio estúdio, era Order of Art, A Study in the Psychology of Artistic 1967:25. 17 Aqui Morris se refere a um artigo recente Imagination, Berkeley: University of California Press, 15 Barbara Rose, ‘A B C Art’, Art in America, 53, 5, de Barbara Rose, Problems of Criticism VI, The October/November 1965:57-69; também publicado Politics of Art, Part III, Artforum, 7, 9, May em Battcock, Minimal Art: A Critical Anthology, New 1969:46-51. Ver Morris, Notes on Sculpture, 24 Deixando a mente fluir, ele escreveu sem psicologia profunda, conforme desenvolvida na York: E.P. Dutton & Co., Inc., 1968:274-297 (274). Part 4: Beyond Objects, Artforum, 7, 8, April escamotear a Inglaterra, e Ehrenzweig reconhecia a influência 1969:50-54; republicado em Continuous Project compromissos profissionais futuros e planos de crucial em sua obra do livro de Marion Milner, Altered Daily; The Writings of Robert Morris, obras que poderia vir a criar, incluído um filme sobre Cambridge/London/New York: MIT Press/Solomon levantamento de peso que nunca se concretizou. An Experiment in Leisure, London: Chatto and 16 Annette Michelson, Robert Morris: An Aesthetics of Transgression, in Robert Morris (exh. cat.), Washington D.C.: Corcoran Gallery of Art, 1969:13. Rose vincula ABC Art a Lectures in America (1935) R. Guggenheim Museum, 1993:51-70 (67). correspondência com o autor, 27 de agosto de 2007. seus sentimentos em relação 1967. O método desse autor advinha da escola de Windus, 1937, publicado pela primeira vez 25 Entrevista gravada em 1977 com Thomas Krens, sob o pseudônimo ‘Joanna Field’. As ideias de de Gertrude Stein, obras do poeta-pintor Kasimir 18 Robert Morris, Anti Form, Artforum, 6, 8, April Fita 4.2, no Arquivo Robert Morris do Museu Milner sobre o jogo não parecem ter encontrado Malevich e Marcel Duchamp, e Understanding 1968:33-35; republicado em Continuous Project Solomon R. Guggenheim, em Nova York. repercussão na obra de Morris, que continuamente Media: The Extensions of Man (1964), de Marshall Altered Daily: The Writings of Robert Morris:41-49. McLuhan. O poeta David Antin enfatiza as técnicas de isolamento na obra de Morris, que, em sua opinião, torna alienígena o contexto para as obras. Ver ‘Art & Information, 1 Grey Paint, Robert Morris’, Art News, 65, 2, April 1966:23-24, 56-58. Com raciocínio semelhante, Hal Foster registrou que as obras minimalistas eram feitas, em conformidade com o modo de produção do capitalismo tardio, para “significar do mesmo modo que objetos em sua qualidade cotidiana, ou seja, em sua sistemática latente”. Hal Foster, The Crux of Minimalism, in Individuals: A Selected History of Contemporary Art (exh. cat.), Los Angeles: Museum of Contemporary Art, 1986:162-183 (179). Ver também Jean Baudrillard, For A Critique of the Political Economy 19 Morris, Notes on Sculpture, Part 4:64. 20 Morris, Notes on Sculpture, Part 4:67. 16 de outubro de 2007. O título igual dos projetos de Rainer e de Morris, segundo ela, devia-se apenas ao fato de que “ambos estavam envolvidos com se orienta em torno de tratados, declarações e traduções consagradas de obras para novos trabalhos. 29 Morris, Notes on Sculpture, Part 4:67-68. 30 Morris, Notes on Sculpture, Part 4:61. estruturas indeterminadas” na época. A preferência sua parceira de dança Simone Forti, eles se chocaram de Rainer pelo jogo e empatia em seu trabalho não 31 Robert Morris, The Art of Existence. Three Extra- com as características excessivamente construídas eram metas que tinha em comum com Morris. Para Visual Artists: Works in Process, Artforum, 9, 5, do ambiente urbano. Essa experiência tornou- o papel desses termos na obra de Rainer, ver Carrie January 1971:28-33; republicado em Continuous se relevante para a apresentação que Morris fez Lambert, On being Moved: Rainer and the Aesthetics Project Altered Daily: The Writings of Robert do estúdio do artista em Site. Forti escreveu: “Na of Empathy, in Yvonne Rainer: Radical Juxtapositions Morris:95-117 (95). primavera de 1959, Bob Morris e eu nos mudamos 1961-2002 (exh. cat.), Philadelphia: Rosenwald-Wolf para Nova York. Eu não podia acreditar nesse Gallery, 2002. lugar. O que mais me chocou foi estar imersa em um ambiente que parecia ter sido completamente desenvolvido e criado por pessoas (...). Eu me lembro de como era alentador e consolador saber que a Press, 1981:104. A composição a priori e o uso de gravidade ainda era gravidade. Eu me sintonizei com elementos prontos estavam implícitos no foco do meu próprio peso e volume como uma forma de design da arte minimalista e se abriam logicamente, oração”. Simone Forti, Handbook in Motion, Halifax/ para Morris, à fabricação industrial. Esse fator tornou New York: Press of the Nova Scotia College of Art and o minimalismo vulnerável às críticas dos marcuseanos, Design/New York University Press, 1974:34. essas obras não resistiam ao racionalismo nem se 26 Yvonne Rainer, correspondência com o autor, 21 Quando Morris se mudou para Nova York com of the Sign, Charles Levin (trans.), St. Louis: Telos como Ursula Meyer nos anos 60, que diziam que 116 independente do projeto de Morris. Yvonne Rainer, 22 Morris, Notes on Sculpture, Part 4:69. 27 Morris informou Thomas R. Krens que Continuous Project era diretamente relacionado ao Kim Paice é doutora em história da arte pela Cuny, permutado Untitled (1967), em forma de estádio, NY, professora de história da arte na Universidade que faz atualmente parte da Panza Collection, de Cincinnati, EUA. adquirida pelo Museu Solomon R. Guggenheim, em Nova York. Entrevista gravada em 1977 com Thomas Krens, Fita 4.2, no Arquivo Robert Morris do Museu Solomon R. Guggenheim em Nova York. O próprio Morris se refere à obra como “em forma de estádio” A maioria das obras sem título afastavam da lógica das mercadorias. Ursula Meyer, 23 Os cadernos não publicados de Morris registram de Morris recebem essa nomenclatura casual, cuja De-Objectification of the Object, Arts Magazine, 43, que “Yvonne [Rainer], Ted e Joanne” estavam fonte é ele mesmo. Essa obra é a de número 67.172 5, Summer 1969:20-22. Mais tarde historiadores envolvidos com o fazer dessa obra e que membros no Arquivo Robert Morris. A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 32 Morris, The Art of Existence:95, 97. Tradução Mirna Soares Andrade Revisão da tradução André Alves Revisão técnica Martha Telles CO L AB O RAÇÕ E S | KI M PAI CE 117 TEATRO DE IMAGENS E AUTOBIOGRAFIA: espetáculo? Gabriela Lírio Gurgel Monteiro teatro cinema imagem autobiografia O artigo investiga o uso de imagens em espetáculos contemporâneos e sua relação com dramaturgias criadas a partir de relatos autobiográficos. “Teatro high-tech”, “teatro de imagens”, “teatro narrativo-performático, “teatro performativo” são alguns dos nomes desse novo teatro, fundamentado em cenas que refletem campos de pesquisa interdisciplinar. Refletir sobre o uso de imagens na cena contemporânea significa repensar o estatuto da imagem em seus modos de criação, interlocução e apreensão da realidade. Não é de hoje que assistimos a um crescente interesse em utilizar o material audiovisual como potente dispositivo de engendramentos de sensações e percepções, ora estabelecendo diálogo direto com a obra em Teatro de imagens e autobiografia: espetáculo?| The article investigates the use of images in contemporary entertainment and its relation to a play created from autobiographical reports. “Hightech theater,” “theater of images”, “narrative theater performing,” performative theater” are some of the names of the new theater that is based on scenes that reflect interdisciplinary research fields. |Theatre, cinema, image, autobiography. questão, ora se desviando dos sujeitos e temas em curso para desconstruir o lócus da encenação. A invasão das novas mídias acelera o processo de recepção de imagens; se, na modernidade, tais imagens estavam ligadas à percepção lógica da narrativa, tornamse na contemporaneidade cada vez mais fragmentadas e desconectadas ao negar-se como espelho prefigurado do que as antecede. As imagens teatrais, alicerçadas em poética baseada na liberdade de escolha, contaminadas pelas artes performáticas, pelo cinema e pelas novas mídias, constroem um terreno fértil e híbrido de articulação entre as artes, intensificado pela especificidade teatral, através do jogo entre a presença do ator, da materialidade de seu corpo e sua voz, e a virtualidade produzida. “Teatro high-tech”,1 “teatro de imagens”,2 “teatro narrativo-performático,3 “teatro performativo”4 são alguns dos nomes desse novo teatro, fundamentado em cenas que refletem campos de pesquisa interdisciplinar, “(...) um campo de mediações intertextuais, intertemporais, intersemióticas, interartísticas e/ou intermídias, que a vertente teatral abordada parece priorizar como seu território preferencial, um I - Box, 1962. (foto) Dorothy Zeidman 118 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 CO L AB O RAÇÕ E S | G AB RI E L A L Í RI O G U RG E L M O N TE I RO 119 território limítrofe e intersticial”.5 As fronteiras tempo das imagens audiovisuais que acenam A escrita cênica não é aí mais hierárquica ego-história”:9 autoficções, testemunhos on- artísticas tornam-se tênues e colocam em foco a para um encontro que existe a priori. Isso porque e ordenada; ela é desconstruída e caótica, line ou o diário em blogs, filmes realizados a questão que me parece primordial na discussão tais imagens foram captadas e realizadas antes de ela introduz o evento, reconhece o risco. partir e/ou com “personagens reais”, reality sobre as relações da cena contemporânea e o ser projetadas, ou seja, sua existência antecede à Mais que o teatro dramático, e como a arte paintings, reality shows e todo documento que uso do audiovisual: o teatro, arte da presença, cena, ainda que sejam manipuladas e editadas, da performance, é o processo, ainda mais possa ser considerado um fragmento da vida estaria reinaugurando outros modos de interação como em alguns casos, in loco, no momento de que produto, que o teatro performativo real são incorporados a processos artísticos. A à medida que se deixa contaminar pelas imagens sua projeção. Nesse sentido, o espectador vivencia coloca em cena.7 autobiografia, antes circunscrita aos cânones não apenas produzidas na cena, mas sobretudo a duplicidade espaçotemporal, dois tempos e dois existentes para além dela? Quais os limites entre espaços que, juntos, em sua interseção, criam uma imagens da corporalidade do ator que compõem terceira relação espaçotemporal, experimentada partituras cênicas e as imagens captadas e através do cruzamento de elementos da cena e da projetadas desse mesmo corpo ou de outros virtualidade produzida. corpos, paisagens e objetos presentificados na cena ou não? As imagens audiovisuais recriam o espaço, inauguram uma espécie de duplo lugar, um desdobramento da cena que pode variar de acordo com os dispositivos e suportes utilizados. presença cada vez mais intensa das imagens no universo da arte contemporânea. Analisando a questão do dispositivo e do espectador, aponta para uma mudança na própria ideia de cinema literários e presente em importantes estudos de Arendt, Lejeune, Ricoeur, entre outros, é hoje exaustivamente investigada como fenômeno do mundo globalizado, alicerçada pelas novas formas midiáticas e pelos novos horizontes tecnológicos. Abre-se vasto campo de pesquisa na análise desta e de arte, uma vez que ambos se encontram O terceira relação espaçoteatral que recria o espaço- relativizados suas contemporâneo pelo desejo de consumo de tempo do teatro, espaço de signos por natureza. apreensões. Quando o cinema entra em um imagens que possam conceder-lhe uma espécie O espaço teatral, ao receber o espaço virtual, museu, que imagem é vista? “O que sentimos de garantia de sobrevivência. Seu relato, balizado pelo terreno híbrido de efeito de real traduz-se no sujeito abre-se a novas perspectivas que redimensionam quando se troca a duração standart imposta pelo pela transmissão midiática, o faz imagem de Lehmann cita Barthes e Muller na tentativa de a cena. Josette Féral afirma que, no teatro desenrolar único e contínuo das imagens do filme um Outro, enquanto o consumo de sua vida definir a especificidade do teatro e sua diferença performativo, o real desperta no espectador a por modos de visão mais aleatórios e muitas vezes e de sua imagem projetada realimenta as com relação às novas mídias. “O que é o teatro? vontade de reagir de forma inteligente, e isso fragmentados e repetitivos (em loop) de imagens expectativas de pertencimento a uma rede virtual Uma espécie de máquina cibernética”, diria se torna possível por um olhar duplo que vai que estão sempre aí, podendo ser abandonadas complexa. Desse modo, não ter acesso às novas Barthes prevendo a relação que o teatro iria do real à ficção ou do espaço cotidiano ao da ou retomadas da maneira que se quer?”.8 É fato tecnologias de informação elimina a sensação estabelecer com as novas mídias. Lehmann, porém, cena. Há, portanto, no espaço cênico, uma que o “efeito cinema”, ao qual se refere Dubois, de pertencimento ao real a que nos referimos; o chama a atenção para o contexto no qual Barthes divisão: o real material e o que é criado na cena. não se restringe apenas à arte contemporânea, real que se caracteriza não somente pela inscrição estava inserido e sua perspectiva semiológica que No teatro contemporâneo, a desconstrução do mas inaugura espaços importantes de enunciação, do sujeito na vida cotidiana e nas relações que compreendia o processo cognitivo do espectador real torna os signos instáveis, faz com que o como o teatro contemporâneo, a dança, a ele estabelece, mas pela percepção de ser parte ao decifrar as informações. Citando Muller, para espectador passe de uma representação à outra, performance, a música. de uma rede complexa de informações, da qual 6 quem o teatro “é o moribundo em potencial”, e observando que a informação está para além da morte, Lehmann discorre sobre o espaço-tempo teatral constituído pela experiência presencial, direta, entre espectadores e atores, transformada e vivenciada no presente da encenação. E, por esse motivo, não mais passível de ser reproduzida. Em contrapartida, as imagens audiovisuais podem ser reproduzidas e, no encontro com teatro, permitem ao espectador experimentar duas realidades espaçotemporais: o espaço-tempo da interação, “comum da mortalidade”, e o espaço- 120 Phillippe Dubois define como “efeito cinema” a de um sentido ao outro, buscando articulação em só se enxerga parte, nunca o todo. O sentido um espaço fragmentário e plural. A inserção de Imagens – o tempo da cena e o da imagem. O tempo cênicos na dramaturgia contemporânea da presença do ator e a imagem que traz em si Analisar a produção teatral contemporânea pelo pode barganhar seu espaço no que chamo de viés da autobiografia nos remete a uma rede “rede”.10 O novo estatuto de visibilidade do de tangenciamentos e reflexões oriunda das sujeito redimensiona o status de persona pública experiências do sujeito diante da imersão em versus homem comum, invertendo a proposição novas formas de representação, atravessadas dos espaços: o espaço da intimidade é partilhado pelo relato virtual ou pelo que nomeio aqui e objeto de interesse público, enquanto o que Encontramos as noções de desconstrução, “documento cênico”. Atualmente, assistimos antes por seu caráter impessoal (de preservação disseminação e deslocamento, de Derrida. ao que Arfuch aponta como “exercícios de do privado) tinha sua divulgação socialmente mesma a referência do tempo de sua captação. Nesse sentido, o espectador é lançado em um espaço-tempo híbrido, fruto do que vê e do que é visto, uma vez que sua leitura depende desse movimento duplo a que se refere Féral. A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 autobiográficas: documentos do global é percebido tão somente através do imagens evoca também a duplicidade do tempo local. Assim, as noções de público e privado confundem-se posto que toda e qualquer pessoa CO L AB O RAÇÕ E S | G AB RI E L A L Í RI O G U RG E L M O N TE I RO 121 aceita perde continuamente interesse se não aguçar a crise da imagem do sujeito, reverberando estiver conectado a impressões, apontamentos, suas fraturas ao evocar memórias suas e de outros detalhes biografado, que compõem sua biografia. Ao utilizar imagens expondo suas fragilidades e idiossincrasias na projetadas, fotos, vídeos, slides, imagens de tentativa de provocar identificação com os computadores, trechos de filmes, reprodução consumidores/espectadores. de espaços de intimidade, entrevistas, a vida que humanizam o “Se a morte preside na casa da autobiografia”,11 o teatro, arte que mais se aproxima da morte, uma vez que é apresentado ao vivo para o público, quando se utiliza de material autobiográfico duplica o efeito do real, esvaziando o sentido da representação, e potencializando a presença física do ator ao lidar com o material de sua vida privada como dramaturgia cênica. Diante da exposição, o espectador percebe o movimento de desnudamento, o tom confessional, e passa a se questionar sobre a veracidade dos fatos, sobre o que é da ordem do real e o que é da ordem do ficcional, como se fosse possível separá-los na encenação. “O que poderia ser chamado de crise da ficção ou estética da realidade consistiria não no abandono da primeira em detrimento da segunda, mas em um processo A dramaturgia contemporânea baseada em autobiográficos promove assim a identificação direta da plateia movida pela curiosidade e pelo desejo de desvendar o enigma da verdade da presença do ator, não se interessando apenas pelo que é dito, ou pelo modo como é dito, mas pelo desdobramento da palavra-testemunho que deflagra a crise da imagem do sujeito. “O que fazer com as ruínas”13 – questão levantada por Nestor García Canclini – é o que interessa a essa discussão porque inaugura uma linha de fuga, um percurso possível para o “sujeito fora de si”,14 focado na exterioridade e no autocentramento. 122 em espetáculo imagético, em “efeito cinema”.15 Um efeito presente não só nas artes cênicas, mas nas artes de modo geral, e que no espaço do teatro, foco da discussão, modifica a percepção do espectador, ampliando as possibilidades de interação à obra apresentada. O espetáculo mediatizado/atravessado pelas imagens passa a apresentar dois espaços complementares e dialógicos: o espaço do ator e sua interação direta com o público e o espaço da imagem, aberto a deslocamentos, porque introduz por si só outros espaços, em uma lógica de acumulação e, em alguns casos, de excesso. Palavra e imagem conjugam-se em uma sintaxe confluente no corpo do ator, ora mediatizado por novos dispositivos, ora agente da ação. Otro, do grupo Coletivo Improviso, dirigido por (...) de hibridização”.12 relatos como produto da narração vê-se transformada Enrique Diaz e Cristina Moura, é, segundo Diaz, uma investigação sobre alteridade, em que o Outro aparece como objeto e, especialmente, como relação”.16 O olhar transforma-se em “material do espetáculo, assim como a suposta objetividade da imagem do outro”.17 Nesse sentido, o relato e a entrevista foram ferramentas para a construção dramatúrgica no desejo não de buscar a verdade dos fatos e das sensações vividas, mas de partilhar e conhecer fragmentos da história de vida dos outros. Partindo da ideia do documentário, ampliando a percepção dos espaços, o espaço da cidade/o espaço do corpo, Diaz buscou o documentarista Felipe Ribeiro para juntos criarem O uso de novos dispositivos de captação do real imagens na tentativa de ampliar a percepção através do depoimento/relato contribui para visual do espectador para a proposta. “O que A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 I - Box, 1962. (foto) Dorothy Zeidman CO L AB O RAÇÕ E S | G AB RI E L A L Í RI O G U RG E L M O N TE I RO 123 acontece é uma espécie de poetização da imagem espetáculo; sujeitos revelados através do uso dentro do espetáculo, que é um processamento do vídeo como documento da criação e como do que foi visto/vivido para a formatação final, a documento da interação dos atores com a cidade; dramaturgia das imagens…”. por outro lado, imagens dos atores diante de 18 Parte do processo de criação do espetáculo deve-se ao uso de dispositivos de interação e de convivência. Os dispositivos são enquadramentos e levam ao acaso. “O dispositivo nunca é garantia, ele só ajuda a estar aberto para o mundo”;19 ele deflagra trajetos. O material autobiográfico surge desses trajetos dos atores pela cidade. No bairro da Taquara, no Rio de Janeiro, o grupo encontra um personagem cuja história desperta piedade: havia sido abandonado pela namorada, estava triste. Ao conhecê-lo melhor, a impressão se modifica: tratava-se de “um baita colonialista, queria falar inglês, superdestacado do lugar onde mora”.20 O dispositivo leva a uma composição complexa e ao aprofundamento dos personagens não apenas por possibilitar encontros reais, no sentido de que as histórias presentes na encenação surgem do relato de um sujeito inserido em determinado contexto. O encontro se dá ao acaso, não precede alguma decisão ou característica determinante. A escolha deve-se, por exemplo, à coloração de uma camisa. Os atores saem de ônibus, descem no terceiro ponto e precisam interagir com alguém de camisa vermelha. Dessa forma, tais relatos foram sendo incorporados à dramaturgia e articulados às imagens documentais projetadas na cena. Imagens reveladoras do processo de criação e do próprio dispositivo, e que trazem uma impressão de realidade ao espectador, potencializando o material autobiográfico em sua relação híbrida com as ações provenientes da interação/jogo dos atores e público na cena. 124 situações já vivenciadas e que são ficcionalizadas nos espaços da cidade (barca Rio-Niterói). A performatização de tais imagens constrói um terreno híbrido para a vivência da cena: o ator relata o que viveu, as imagens ora tornam explícitos lugares e impressões, ora desconstroem o imaginário do relato do ator ao se fixar em detalhes ou trazer elementos que buscam ativar um estado de contemplação do espectador. O espaço teatral despojado de objetos cênicos, apenas algumas cadeiras e mesas, é transformado ora por imagens realistas, da barca Rio-Niterói ou do restaurante árabe do Largo do Machado, ora por imagens poéticas, como as imagens do céu, das nuvens, de um pássaro que passa; imagens que buscavam, segundo Felipe Ribeiro, aproximação com o espectador através da contemplação. Coloco a imagem do céu, nuvem, deixo a imagem em movimento, é a nuvem se movendo levemente, é um pássaro que passa… ficava meio tonto, se eu focasse o olhar na nuvem, me dava uma certa tonteira, a nuvem parece que não está se movendo e está. Estava interessado em brincar com essa sutileza. A contemplação faz ir para outro lugar, um trampolim para criar outra coisa.21 Foram três processos de captação de imagens: cenas da pesquisa refilmadas; imagens originais assimiladas ao trabalho e, por último, imagens Percebe-se, portanto, duplo estatuto da imagem: produzidas pelo documentarista a partir da por um lado, imagens provenientes de relatos observação do material de ensaio. O jogo entre de outros sujeitos, encontrados na cidade e real e ficção/memória e invenção percorre todo que fizeram parte do processo de criação do o processo de criação do Otro. Há imagens de A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 I - Box, 1962. (foto) Dorothy Zeidman CO L AB O RAÇÕ E S | G AB RI E L A L Í RI O G U RG E L M O N TE I RO 125 cenas da cidade, originárias da pesquisa, que Diaz porque suspenso, não reconstruído, em ruínas, sugeriu a Ribeiro incorporar às demais existentes híbrido por se configurar como espaço do pela percepção de que o espectador se desligava da narrativa, da história contada, fixando-se na experiência trazida pelas imagens. presente, mas náufrago de um passado em Festa de separação, espetáculo dirigido por Luiz Fernando Marques e criado e encenado por Janaína Leite e Felipe Teixeira Pinto, o Fepa – Ao escolher um lugar na plateia, o espectador percebe que tal escolha interferirá na recepção do espetáculo, porque ele assiste a dois discursos em forma de depoimento, ocorrendo simultaneamente, salvo em alguns momentos em que um silencia para dar voz ao outro e quando se está diante de material audiovisual e iconográfico projetado no telão. Na impossibilidade de ouvir dois discursos ao mesmo tempo, o espectador percebe que se encontra em situação monológica, ainda que dupla, interativa. Na perda da palavra do outro, tem-se a dimensão de que se opera um corte não apenas espacial, mas transversal, um corte na narrativa, reflexo da divisão que se estabeleceu na vida do casal. As imagens projetadas – “efeito cinema” – têm como ela atriz, ele músico –, é classificado pela dupla como “documentário cênico” da experiência de separação dos atores. Em determinado momento, após uma viagem que não ocorreu (o casal terminou o relacionamento via skype, Janaína estava em turnê na Inglaterra, e Fepa iria ao seu encontro), e ambos decidiram transformar a separação em processo de criação, “em um espetáculo”. 22 Na impossibilidade de lidar com a perda da relação e do outro, inicialmente promoveram festas para a família e para os amigos para, além de anunciar a separação, elaborar o luto. As festas foram filmadas, assim como os depoimentos de pessoas que conviviam com o casal e serviram de material para o espetáculo que pretendeu ser uma reflexão sobre o amor na contemporaneidade, ultrapassando apenas a exposição/discussão de sua história. 126 elaboração, espaço que não é senão o lugar do luto proveniente da ruptura. objetivo reconstruir a vivência do passado, incluindo o momento em que o casal decide transformar a separação em obra artística. Assistir no telão às imagens de intimidade, de um tempo passado e feliz, aos depoimentos emocionados dos familiares e amigos nas festas de separação, promovidas e NOTAS 1 Lehmann, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007:368. 2 Picon-Vallin, Béatrice. Deux arts en un? Le film du théâtre. Arts du spectacle. Coleção organizada por Élie Konigson. Paris: CNRS Éditions, 2001:17. 3 Da Costa, José. Teatro contemporâneo no Brasil. Rio de Janeiro: 7Letras/Faperj, 2009:29. 4 Féral, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. Sala Preta, revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Eca/USP, São 14 Birman, Joel. Mal-estar na atualidade. A psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005:171. 15 Dubois, op. cit.:179. 16 Entrevista, por e-mail, à autora em 8.10.2010. 17 Idem. 18 Idem. 19 Entrevista à autora e à bolsista Pibic-UFRJ Isadora Malta Rezende, na Escola de Comunicação da UFRJ, em junho de 2011. Paulo, n. 8, 2008. 20 Idem. 5 Da Costa, op. cit.:33. 21 Idem. 6 Barthes, Roland. Essais critiques. Littérature et 22 Palestra de Janaína Leite e Fepa no Fórum de signification. Paris: Point Seuil, 1981 (1963), p.258. Ciência e Cultura em junho de 2010. 7 Féral, op. cit.. 23 Isso não é dito, mas compreendido por 8 Dubois, Philippe. Um “efeito cinema” na arte contemporânea. In Dispositivos de registro na arte associação, uma vez que depoimentos de espectadores são exibidos. contemporânea. Rio de Janeiro: Contra Capa/Faperj, 2009:184. 9 Arfuch, Leonor. O espaço biográfico. Dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: Eduerj, 2010:60. Gabriela Lírio Gurgel Monteiro é professora adjunta de direção teatral na Escola de Comunicação da UFRJ. Possui graduação em comunicação social (jornalismo), mestrado Assisti a Festa de separação, no Teatro Sesc- documentadas pelo casal, reitera o lugar da falta/ 10 Refiro-me à rede pensando em duas conotações: em letras, doutorado em letras pela Pontifícia Copacabana, quando esteve em cartaz no Rio da dor. A imagem é documento do que a palavra- a rede de sentidos barthesiana e a rede tal como nos Universidade Católica do Rio de Janeiro (Teatro de Janeiro. O espaço, dividido em dois, o dela testemunho não consegue representar; a imagem referimos hoje quando nos dispomos a falar sobre e cinema na obra de Peter Brook, co-orientada e o dele, apresentava como pano de fundo um é dialógica, une os discursos e o espaço cindido internet e seus agenciamentos. por Georges Banu, no prelo) e doutorado telão. Objetos familiares criavam identidade, da representação. Em determinado momento o sanduíche na Université Paris III referenciais pertinentes ao universo individual espectador é convidado a dar seu depoimento 11 Arfuch, op. cit.:67. de cada um, revelavam a história pregressa do contando uma história pessoal que também é 12 Cardoso, Bruno de Vasconcelos. Voyeurismo escuro (7Letras, 2001) e Interseções: Cinema e casal: livros, cds, caixas, garrafas, cadernos, filmada, evidenciando-se que pode ser projetada dicionário, instrumentos musicais, câmera, bichos em outra apresentação. Na possibilidade de vir-a- de pelúcia. A ideia foi transferir para o palco os ser imagem, o espectador inaugura ele mesmo um vestígios do que restou para cada um da relação, luto de outra natureza: a morte de sua “presença” reconfigurando um espaço-casa ambíguo porque é enigma da representação porque se transforma 13 Canclini, Nestor García. Diferentes, desiguais e Acaba de iniciar nova pesquisa: Autobiografia na visivelmente transitório, um espaço fronteiriço em registro que pode ou não ser utilizado. desconectados. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2009:192. cena contemporânea: entre a ficção e a realidade. 23 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 digital: representação e (re)produção imagética do outro no ciberespaço. In Devires imagéticos. A etnografia, o outro e suas imagens. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009:154. Sorbonne- Nouvelle. Publicações: A procura da palavra no Literatura (7Letras, 2010). Pesquisadora do CNPq, desenvolve atualmente a pesquisa A teatralidade cinematográfica e o uso de novos dispositivos na produção de imagens (bolsas Pibic/Piabic/Faperj). CO L AB O RAÇÕ E S | G AB RI E L A L Í RI O G U RG E L M O N TE I RO 127 AS EXPOSIÇÕES GERAIS DA ACADEMIA DE BELAS ARTES: teatro de corte e formação de um mercado de artes no Rio de Janeiro Leticia Squeff Exposições Gerais da Academia de Belas Artes Colecionismo Mercado de artes no Rio de Janeiro do século 19 A intenção deste artigo é discutir o lugar das Exposições Gerais da Academia de Belas Artes na vida cultural do II Reinado. Trata-se de mostrar como se articulavam essas exposições ao teatro de corte de dom Pedro II e, por outro lado, de destacar seu papel no incipiente mercado de artes do Rio de Janeiro. Uma história das Exposições Gerais − Egbas As exposições gerais da academia de belas artes: Teatro de corte e formação de um mercado de já foi traçada, em suas linhas gerais, por alguns artes no Rio de janeiro| The aim of this article is autores. Apesar disso, pode-se afirmar que se to discuss the place of the General Exhibitions of conhece pouco a respeito desses eventos, o que the Academy of Fine Arts in the cultural life of chama atenção, tendo em vista, em primeiro lugar, 19th century Rio de Janeiro. I intend to show their sua longevidade. Entre 1840 e 1884 a Academia relationship with the “teatro de corte” around d. Pedro II and also to point the role of these Imperial de Belas Artes − Aiba promoveu 26 Exhibitions in the incipient art market of Rio de Exposições Gerais, apresentando 3.315 obras de Janeiro. | Exposições gerais da academia de 1 516 artistas, em média, portanto, mais de uma belas artes colecionismo mercado das artes no exposição por ano. Talvez se possa aventar que rio de janeiro do sec XIX aconteceu aqui o que se passou na historiografia europeia: durante muito tempo os Salões e exposições organizadas no âmbito acadêmico foram desprezados pelos pesquisadores, mais interessados em reconstituir a trajetória dos refusés e dos que construíram as bases para o surgimento das vanguardas.2 Também no Brasil a arte oitocentista foi durante longo tempo pouco estudada, e as Egbas foram objeto de algumas enumerações e crônicas, mas raramente atraíram análises mais profundas.3 Vale lembrar que o interesse pelas exposições ganha sentido quando iluminado por perspectiva historiográfica que ultrapassa o objetivo de discutir apenas o “conteúdo” das obras. Alguns historiadores vêm mostrando como os critérios artísticos, bem como o maior ou menor valor atribuído a um ou outro artista, são afetados por contextos mais amplos: o mercado, o museu, padrões de gosto que funcionam Ilustração para Salão caricatural de 1884 Fonte: Revista Ilustrada, 1884, ano 9, n. 396. Arquivo Edgard Leuenroth – IFCH/ Unicamp. 128 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 CO L AB O RAÇÕ E S | L E TI CI A S Q U E FF 129 muitas vezes de maneira independente daqueles que partir de então. Em 1849, na décima edição do A ideia de que visitar as Exposições Gerais era farfalhenta de palmas e florear de tirsos regem a apreciação das artes visuais. Desse ponto evento, seriam 23 expositores. Dez anos depois, passatempo de um grupo seleto e refinado de (...)15 de vista, interessa entender também a trajetória 94, sendo três mulheres e 68 estrangeiros. Outra pessoas se manteria nas décadas seguintes: das obras, o contexto em que foram expostas, suas prova do sucesso da iniciativa é que na década “Visitamos a academia das Belas Artes, que abriu relações com imagens e modos de ver próprios a de 1860 começam a ser publicados os catálogos ontem as portas à turba dos amadores, que determinada época, entre outros aspectos.4 independentes de cada Exposição Geral.7 Não esperavam ansiosos por esta época do ano, em por acaso, em 1868 o secretário João Maximiano que podem ir maravilhar-se das criações do gênio Mafra escrevia ao diretor Tomás Gomes dos Santos dos apóstolos da arte divina.”12 Meu objetivo é apontar como as Egbas articulavam-se ao que já foi chamado por mais de um pesquisador de “teatro de corte” de dom Pedro II, bem como a importância desse evento 5 para o surgimento de um incipiente mercado de artes no Rio de Janeiro. que era preciso exigir a apresentação dos convites na abertura da exposição, para evitar a entrada de penetras.8 De tal forma esses eventos entraram no calendário da corte, que já em 1839 um cronista observava: “A visita à Academia das Belas Artes entrou este ano a ser da moda.” 9 Rio de Janeiro guardas para cuidar das salas e evitar “danos às obras”. Finalmente, expediu promovia exposições − indício de que havia personagens da corte de dom Pedro II: flores e folhas de canela e mangueira para ornar o interesse, já por parte dos mestres franceses, políticos, comerciantes edifício desta Academia no dia 15 de março, em em fazer da instituição criada no Rio de Janeiro e visitantes estrangeiros: “Presentemente a que S.M. o Imperador se digne honrar a abertura mais do que simples escola de artes. Já em corte e a cidade afluem com ativa curiosidade da Exposição Geral.”13 1829, apenas três anos após a inauguração às salas do palácio das artes, e o belo sexo afronta os raios de um sol perpendicular em No romance Mocidade morta (1899), escrito pelo da Academia Imperial de Belas Artes, Debret promoveu sua primeira exposição de alunos. Em romaria ao templo do gosto.”10 1840 o diretor Felix-Émile Taunay conseguiria No dia 10 de dezembro de 1843, às 10 horas da sistema composto por artistas, público e críticos manhã, o casal imperial foi recebido na Academia que viviam ao redor da Academia em finais do pelo ministro do Império, o diretor da instituição século 19 seria descrito com grande minúcia.14 e a congregação de professores. “Estavam já É esse texto poético que fornece uma pista de reunidos vários convidados da corte e corpo como eram utilizadas essas folhas de mangueira teriam, a partir de então, papel fundamental tanto no funcionamento da Academia quanto na diplomático.” O cronista descreve a visita dos desgalhada de fresco, infiltrava-se no ar, do pequeno texto dá uma ideia da importância saturando-o, como se boiasse em torno do que os bojo, suspenso na claridade, turibulando A primeira, em 1840, contava com dez expositores, monarcas se demoraram por duas horas na à sua grandeza os aromas capitosos sendo seis professores da Academia. A exposição Academia. Antes de ir, dom Pedro teria garantido dos antigos festivais de triunfo, cheios de 1843 já incluía 28 participantes. O número de ao diretor o quanto estava “(...) satisfeito com a de pandorga épica de campânulas e pessoas que expunham obras, entre artistas locais exposição deste ano.”11 As visitas do imperador à trombetas ao escaldar hosânico das e estrangeiros, cresce de modo impressionante a Academia acabariam tornando-se um hábito. recepções aos bravos, sob a agitação as A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 exposições estavam os valores monárquicos. Dom Pedro era recebido com pompa, o que atraía também as principais figuras da corte carioca. A esse ‘teatro de corte’ e canela: Um cheiro acre de folhagem esparzida, apresentadas, justamente, durante essas mostras.6 local de encenação de ritual em que se afirmavam roman à clef por mais de um pesquisador, o quais obras o imperador ficou mais tempo. O final obras de arte do período monárquico foram Ao sediar as exposições, a Academia tornava-se crítico Gozaga Duque, já caracterizado como monarcas e faz questão de mencionar diante de vida cultural do Império. Algumas das principais 130 comparados aos do contexto europeu. inauguração. Também requisitou da polícia do de Lagoa Rodrigo de Freitas [riscado] fornecer interessados. As Exposições Gerais de Belas Artes referência ao universo clássico aliava-se à pompa que monarca e nação, que eram ainda bastantes novos se no calendário de eventos dos mais influentes da Academia, tornando-a acessível a todos os também evocavam as festas da Antiguidade. A em grande gala, estivesse presente no dia da Praticamente desde sua fundação a Academia discursos e artigos de jornal: ampliar a exposição perfumavam e decoravam os ambientes, como solicitando que a Guarda de Honra, vestida solicitação para “mandar pelo Jardim Botânico emplacar uma ideia sobre a qual vinha falando em da Academia. Folhas, palmas e tirsos não apenas cercava o imperador, dotando de ‘tradição’ instituição, As Exposições Gerais entraram rapidamente ricos efeitos simbólicos da decoração sobre os visitantes Na edição de 1859, o diretor expediu ofício As exposições e o teatro de corte funcionários, Com notável argúcia, o romancista detecta os ganhando: Ilustração para Salão caricatural de 1884 Fonte: Revista Ilustrada, 1884, ano 9, n. 396. Arquivo Edgard Leuenroth – IFCH/ Unicamp. CO L AB O RAÇÕ E S | L E TI CI A S Q U E FF 131 vinham associados, porém, valores próprios à Organização dos quadros e formas de responsável pela “(...) colocação de todas as obras Nos salões franceses, esse padrão expositivo nação independente: o hino nacional sempre apreciação expostas; trabalhos de armador, e aluguel das herdado dos antigos gabinetes de curiosidades respectivas fazendas”17 cedo começa a se revestir de hierarquias.19 Em abria o cerimonial. Finalmente, o evento era reverberado pelos jornais da corte, criando o que Benedict Anderson já chamou de “comunidade imaginada” que, nesse caso, associava as artes à vida cortesã e essas às práticas próprias a uma “nação” independente.16 A inauguração de uma Exposição Geral era objeto de longos preparativos e muitos gastos. Para A rápida descrição dá ideia de como devia parecer- organizar a de 1879 foram chamados pintores, se a Exposição Geral aos visitantes. A Academia douradores, carpinteiros, ferreiros, lustradores, carioca seguia o exemplo dos Salões europeus de servidores que cuidassem da lavagem da casa e decorar as paredes com fazendas e tecidos finos da arrumação de ferragens e esculturas. A relação e, sobre eles, pendurar o quadros. Nesse aspecto, menciona Luiz de Castro Teixeira, que teria ficado os douradores eram mais do que necessários, pois cabia-lhes preparar as molduras dos quadros. Em contraste com os tecidos de cores fortes, o dourado das molduras sobressaía, delimitando os espaços entre os quadros. A Revista Ilustrada traz representação notável da aparência desses eventos. primeiro lugar, tratava-se de solucionar um problema de espaço. Além disso, a organização das obras obedecia àquela dos gêneros de pintura. No alto, ficavam os quadros maiores, geralmente as cenas bíblicas ou mitológicas, ou de grandes feitos históricos. Esses quadros dificilmente eram compreendidos, pois só uma parte do público possuía cultura suficiente para entender as refinadas alusões históricas e mitológicas que continham, motivo pelo qual, aliado a suas grandes dimensões, geralmente ocupavam a região mais alta da parede. A seguir, vinham os Na imagem de Ângelo Agostini, veem-se embaixo retratos e os quadros considerados “melhores”. os quadros menores – aparentemente, paisagens E por último, a pintura de gênero, a natureza- – e, em cima, obras maiores, em meio às quais morta, as paisagens.20 A imagem de Agostini é possível reconhecer telas de Pedro Américo, revela que a Academia carioca organizava sua como A Carioca, A Noite com os gênios do exposição segundo os princípios expográficos e os estudo e do amor, Judite rende graças a Jeová valores artísticos dos salões franceses. por ter conseguido livrar sua pátria dos furores de Holofernes, entre outros. Os bancos no centro da sala também evocam a estrutura dos Salões As exposições gerais e o surgimento de um franceses, cujos espaços para repouso serviam a mercado de artes no Rio de Janeiro um tipo de fruição artística muito característico: Nem tudo na Academia carioca, porém, seguiu permitiam a contemplação lenta e meticulosa das obras, a comparação entre os diversos quadros expostos, bem como a troca de opiniões entre os espectadores. As obras eram dispostas bem próximas umas das outras, muitas vezes cobrindo toda a extensão Ilustração para Salão caricatural de 1884 Fonte: Revista Ilustrada, 1884, ano 9, n. 396. Arquivo Edgard Leuenroth – IFCH/ Unicamp 132 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 o caminho trilhado pelo modelo francês. Na verdade, uma análise comparativa indica que, pelo menos no que se refere às exposições gerais, a experiência acadêmica no Rio de Janeiro teve desdobramentos peculiares. Para examinar a questão, vale retomar a história dos Salões da parede, do teto ao nível do olhar. Ocupando franceses até finais do século 19. todos os centímetros disponíveis, os quadros A Academia francesa começou em 1699 a pro- ficavam quase colados uns aos outros, o que só mover os chamados Salões, que passaram a era possível porque cada obra era vista como acontecer de forma sistemática a partir de 1737, entidade independente, fechada em seu próprio tendo papel fundamental na história da arte esquema perspético, isolada de sua vizinha pelas europeia. Até então, o público só entrava em pesadas molduras.18 contato com arte de alto padrão secundariamente, CO L AB O RAÇÕ E S | L E TI CI A S Q U E FF 133 em festas religiosas ou cívicas, quando aristocratas artística, através da École, mas também sobre o que escravos. A cidade foi invadida por novos hábitos que esses homens ocupavam no âmbito da e burgueses abastados expunham suas posses deveria e podia ser mostrado, através dos Salões, de consumo: cavalos árabes, jóias, relógios, exposição geral: “N.B.: as descrições dos quadros em pátios de igrejas e praças públicas.21 Com começa a perder importância. ‘roupas feitas’, produtos manufaturados com as e a designação de seus autores e escolas foram Todo o processo gerou diversos movimentos de mais diferentes funções foram introduzidos no ministradas pelos seus possuidores, e exaradas no Nesse contexto, catálogo sem alteração; excetuam-se os quadros o advento do Salão, o homem comum podia ter acesso aos quadros, experimentando prazer antes reservado apenas a uma exclusiva elite de mecenas e seus amigos íntimos. O Salão é, assim, a primeira experiência de arte totalmente pública da Europa.22 alguma medida, com os valores tradicionais, mas dia a dia da ‘boa sociedade’. também objetos de arte passam a ser cada vez de S. Majestade o Imperador.”33 também entre os acadêmicos, descontentes com mais comercializados. a perda de privilégios e clientes – consequência da Araújo Porto-Alegre faz referência a pelo menos meios diversos termos e conceitos próprios dois colecionadores ativos no período: “Na galeria à atribuição de valor na tradição da história de quadros do Sr. Manoel José Pereira Maia, um e da apreciação artística. Os apreciadores dos homens mais curiosos e que tem maiores e proprietários de obras de arte da corte já preciosidades em todo o gênero de Belas Artes, possuíam, em alguma medida, noções próprias existe um painel de Manoel Dias representando a ao mercado de arte no Ocidente, tais como caridade romana.” autoria, título, escola, entre outros. Esses valores ampliação do número de artistas e de gêneros de Tradicionalmente a pintura histórica era gênero de pintura. Tornando-se pouco atrativos tanto para grande prestígio, mas, assim como a estatuária, os que desde meados do século, com Courbet, dependia das encomendas estatais para ser começam a procurar espaços alternativos para realizada. Os custos envolvidos na preparação expor suas obras quanto para os demais artistas, e realização de grandes telas, assim como dos os Salões acabaram suprimidos no final do século. monumentos, eram elevados. O objetivo inicial Pode-se dizer, assim, que o desenvolvimento e dos Salões era, por isso, mostrar ao público as ampliação desses espaços resultaram, na França, no Menciona também José de Oliveira Barbosa, que grandes obras de história comissionadas pelo enfraquecimento da Academia e seus dispositivos. teria, em sua coleção, alguns camafeus feitos por Estado aos membros da Academia. 134 revolta não apenas entre artistas que rompiam, em 26 Já no caso do Rio de Janeiro a história reveste- 27 Mestre Valentim.28 O representante do Brasil na Rússia, José Ribeiro da Silva, ofereceu à Academia O texto sugere que já circulavam em determinados eram informações importantes, pois situavam o lugar das obras na história da arte, destacando os artistas considerados “mestres” dos simples membros de uma ou outra “escola artística”. Além disso, como o autor do catálogo faz questão O destino e os objetivos do Salão mudam para se paulatinamente de contornos próprios. Como sempre com a Revolução Francesa. Em 1791, a sede da corte e principal porto do Império, a cidade Commune des Arts propõe que o Salão passe a ser concentraria crescente comércio de luxo. Quadros aberto, expondo não apenas as obras dos membros e livros misturavam-se a objetos de decoração e da Academia, mas de todos os artistas julgados móveis em leilões e lojas. Sabe-se de alguns lei- para a Academia.30 Outras referências encontradas aptos para tal. Alguns anos mais tarde, Vivant lões promovidos por comerciantes, geralmente no Museu dom João VI indicam que a prática de Denon convence Napoleão de que era mais rentável estrangeiros, que incluíam a venda de obras de colecionar ou, pelo menos, de comprar obras para o Estado comprar quadros que já estavam em arte, caso do que foi realizado, em 1840, por Luiz de arte não era tão incomum no Rio de Janeiro exibição.23 Como resultado, por volta de 1870 o A. Boulanger, incluindo a venda de “Riquíssima oitocentista como em geral se pensa. de um mercado de artes, mas de um ambiente dinheiro oferecido pelo governo para quadros de coleção de painéis a óleo, pertencentes às escolas italianas, flamenga, alemã e francesa”. Em diversas exposições gerais não apenas dom em que obras de arte eram encomendadas e/ história tornara-se tão pouco, que só os iniciantes O leiloeiro acrescentava que os amantes das Pedro II, mas também colecionadores particulares ou compradas. se dedicavam aos assuntos históricos. A maioria, incluindo artistas acadêmicos, sobrevivia da venda belas pinturas encontrariam diferentes “gêneros aproveitavam para apresentar obras de suas As Exposições Gerais funcionaram não apenas de quadros menores para colecionadores privados. reunidos: paisagens, combates, tableaux de genre coleções.31 A de 1859 exibia obras de nada para os artistas da Academia. Nem simplesmente Lentamente o mercado de artes passa a funcionar et mythologiques, retratos, panoramas, muitos menos do que seis colecionadores privados, eram momento em que se desenrolava mais uma fora do Salão. E pinturas de paisagem e retratos – quadros da história sagrada, o nascimento de além do imperador. A Noticia do Palacio da cena do teatro de corte, tão importante para a mais acessíveis ao grande público, nem sempre culto Nosso Senhor Jesus Cristo, descida da cruz (...)”, Academia daquele ano traz, a respeito disso, manutenção da monarquia em terras tropicais. ou abastado o suficiente para consumir a pintura de além de aquarelas, objetos e vestimentas de algumas informações interessantes. Havia três Funcionavam também a serviço de particulares história – passam a ocupar cada vez mais espaço nas luxo.25 Na década de 1850, o comércio de luxo homens como o título de comendador entre os que as usavam para negociar: expor e, quem paredes do Salão. E a Academia, que antigamente receberia impulso ainda maior graças à liberação colecionadores, e pelo menos um estrangeiro.32 sabe, vender, trocar, ou comprar obras de outros detinha o monopólio não apenas sobre a formação de capitais antes comprometidos com o tráfico de O catálogo também é significativo do lugar colecionadores. Desse ponto de vista, a experiência 24 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 quatro quadros de Jean-Baptiste Debret.29 Em 1877 Henrique Diniz da Silva Faria vendeu dois retratos a óleo feitos por Henrique José da Silva de enfatizar, eram os próprios colecionadores que informavam a Academia a respeito da atribuição de suas obras. Afinal, o nome do artista, a “escola” à qual se filiava, o nome da obra, eram fundamentais para lhe atribuir valor. Desse modo, os catálogos de exposições das Egbas informam sobre a existência não propriamente CO L AB O RAÇÕ E S | L E TI CI A S Q U E FF 135 carioca transcorreu em sentido radicalmente 5 O termo é utilizado por pesquisadores como 12 M. A. “Academia das Belas artes”, Jornal do 23 “In this gesture, the Salon became a store, oposto ao que ocorreria nos Salões franceses. As Carvalho, J. M. de. A construção da ordem; teatro de Commercio, 18 de dezembro de 1852. and artists became free-market small producers”, Exposições Gerais foram importante instrumento sombras. 3. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, para o funcionamento da corte e também para a 2003; e Schwarcz, L.M. As barbas do imperador: dom estruturação de um incipiente mercado de artes no Rio de Janeiro do Império. NOTAS 1 Levy, Carlos Roberto Maciel. Exposições Gerais da Academia de Belas Artes. Catálogo de artistas e obras entre 1840 e 1884. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1990:13. das Letras, 1998, entre outros, para descrever as festas, cerimônias e rituais do governo imperial. 6 Os artistas costumavam preparar 24 Sobre o assunto ver, por exemplo, Marques dos presença do imperador na abertura da Exposição Santos, op. cit. Geral, como também flores e folhas de canela e mangueira do Jardim Botânico, que era Lagoa especialmente para apresentar nas exposições de 12 homens do corpo policial da corte para 26 Alencastro, L.F. Vida privada e ordem privada no coletivas, fossem promovidas pela Academia ou, vigilÂncia da exposição” (11.3.1859) Arquivo do império. In Alencastro, L.F. (org.)., História da vida mais tarde, na República, pela Escola Nacional de Museu D. João VI:1575. privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia Belas Artes. Ver Cavalcanti, Ana Maria Tavares. A relação entre o público e a arte nas Exposições Gerais da Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro 14 Eulálio, Alexandre. Sobre Mocidade Morta. In 27 Porto-Alegre. Manoel Dias, o Romano. Revista Casa de Rui Barbosa, 1988:183-89. do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1848, 15 Gonzaga Duque, A arte brasileira, São Paulo/ Salon: art and the State in the early Third Republic. Rio de Janeiro: Comitê Brasileiro de História da Arte, Campinas, Mercado de Letras, 1995, p.:16. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. 2004:49-58. 3 Dos autores que reconstituíram as Exposições 7 Fato também observado por Fernandes, Cybele sobre el origen y la difusión del nacionalismo. México: Gerais podem-se citar Rios Filho, O ensino artístico: Vidal Neto. Os caminhos da arte. O ensino artístico Fondo de Cultura Económica, 1993. subsídios para sua história. In: Anais do Terceiro na Academia Imperial das Belas Artes. 1850-1890, Congresso de História Nacional, IHGB, 1938. Rio de tese de doutorado, UFRJ, 2001. de História do Segundo Reinado (Comissão de 8 “Cartas de João Maximiano Mafra a Tomás Gomes dos Santos, sugerindo medidas a serem tomadas na solenidade e premiação de artistas. Acompanha carta aprovando as sugestões.” 1868, Arquivo do História Artística), v.1, Brasília/Rio de Janeiro: IHGB., Museu D. João VI:1275. 1984:204-352; e Levy, op. cit. 9 Correio das Modas, 1839, apud Marques dos 4 Dos que trataram desses ou de assuntos correlatos, Santos, Francisco. “Subsídios para a história das podem-se mencionar Haskell, Francis (La norme et le belas artes no Segundo Reinado – as belas artes na das Letras, 1997. Sobre o pré-modernismo. Rio de Janeiro: Fundação Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte. Histórico e Geográfico Brasileiro/Anais do Congresso ver também Cavalcanti, op. cit. Rodrigo de Freitas, para ornar, e uma guarda francês, ver Mainardi, Patricia. The end of the Artes no Segundo Reinado, Revista do Instituto 25 Marques dos Santos, op. cit:119. Sobre o assunto obras na segunda metade do século X. Anais do XXII As Exposições Gerais na Academia Imperial das Belas Mainardi, op. cit:14. designação de uma guarda de honra em virtude da 2 Para uma discussão dessa questão no contexto Janeiro, Imprensa Nacional, 1942. Mello Jr, Donato. 16 Anderson, B. Comunidades imaginadas: relexiones suplemento. 28 Porto-Alegre. Iconografia brasileira. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,1856:371. 29 Apud Levy, op.cit.:131. 30 “Minuta de ofício da AIBA ao ministro do Império 17 “Relações das contas das despesas efetuadas remetendo a conta da aquisição de dois retratos com a Exposição Geral de Belas Artes, inaugurada a óleo de Henrique José da Silva e vendidos por em 15.3.1879” Arquivo do Museu D. João VI: 3019. Joaquim Diniz da Silva”. Arquivo do Museu D. João VI: 18 “A pintura de cavalete é como uma janela portátil 1329. que, colocada na parede, cria nela a profundidade 31 Sobre o assunto ver Rios Filho, op. cit. do espaço”, O´Doherty, Brian. No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da arte. Rio de Janeiro: 32 Noticia do palacio da Academia Imperial das Martins Fontes, 2002:8. Bellas Artes do Rio De Janeiro e da exposicao de 19 Schaer, Roland. L´Invention des Musées. Paris: Garcia, 1859. 1859. Rio de Janeiro, Typographia Imparcial J.M.N. Gallimard/Réunion des Musées Nationaux, 1993. caprice. Paris: Flammarion, 1986; Mecenas e pintores Regência”, Estudos Brasileiros, v. 9, ano V, Rio de na Itália Barroca. Arte e sociedade na Itália Barroca. São Janeiro, 1942:16-149 (101). 20 Crow, op. cit. Paulo: Edusp, 1997; Passado y presente en el arte y en 10 “Comunicado. Academia das Belas Artes, 21 Há excelente descrição em Haskell, 1997, op. cit. exposição pública de 1842”, Jornal do Commercio, 22 “But the Salon was the first regularly repeated, Leticia Squeff é professora de arte ocidental 18 de dezembro de 1842. open, and free display of contemporary art in Europe do séculos 18 e 19 no Departamento de História Thomas. Painters and public life in Eighteenth-century 11 “Visita de SS.MM. Imperiais à Exposição Geral da to be offered in a completely secular setting and for da Arte da Unifesp (Guarulhos, São Paulo). Vem Paris. Yale: Yale University Press, 1991; Mainardi, op. Academia das Belas Artes”, Jornal do Commercio, 10 the purpose of encouraging a primarily aesthetic desenvolvendo pesquisas sobre arte no Brasil e na cit., entre outros. de dezembro de 1845. response in large number of people”, Crow, op. cit:3. América Latina nos séculos 18 e 19. el gusto. Madrid: Alianza Editorial, 1989); Gaethgens, Thomas W. Versailles – de la résidence royale au musée historique. Antwerpen: Mercatorfonds, 1984; Crow, 136 Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia 13 “Minutas de ofícios da AIBA, solicitando A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 33 Idem, ibidem. CO L AB O RAÇÕ E S | L E TI CI A S Q U E FF 137 ARTE DAS FORMAS E ARTE DAS FORMAÇÕES Theon Spanudis arte não figurativa crítica de arte neoconcretismo participação ativo-criativa “Arte das Formas e Arte das Formações” foi escrito por Theon Spanudis (1915-1986), médico psicanalista, de origem grega, que se mudou para o Brasil em 1950. Era também poeta e crítico de arte, e foi um dos primeiros a valorizar obras de artistas como Volpi e Mira Schendel, formando uma importante coleção que foi doada ao MAC-USP em 1979. Esse texto, trata-se de uma reflexão, e para o pesquisador um documento de grande interesse por ser um testemunho de época assinado por alguém com envolvimento pessoal nos acontecimentos em curso, com preferências estéticas definidas e posicionamentos teóricos assumidos, porém disposto a transpor barreiras e colocar em debate tendências artísticas. Theon Spanudis (Esmirna, Turquia, 1913 – São Paulo, 1986) desempenhou funções bastante definidas no ambiente cultural paulistano, desde sua chegada em 1950. Depois da independência da Turquia, sua família retornou a Atenas, em 1922. Lá Theon Spanudis cursou o ensino fundamental e entrou em contato com o ambiente de cultura frequentado por seus pais, que encaminharam sua atenção para a literatura e as artes. Médico formado na Universidade de Viena em 1940, especializou-se em psicanálise no Instituto de Psicanálise de Viena. | “Arte das Formas e Arte das Formações” foi escrito por Theon Spanudis (1915-1986), médico psicanalista, de origem grega, que mudou-se para o Brasil em 1950. Era também poeta e crítico de arte, e foi um dos primeiros a valorizar obras de artistas como Volpi e Mira Schendel, formando uma importante coleção que foi doada ao MAC-USP em 1979. Esse texto, trata-se de uma reflexão, e para o pesquisador um documento de grande interesse por ser um testemunho de época assinado por alguém com envolvimento pessoal nos acontecimentos em curso, com preferências estéticas definidas e posicionamentos teó arte não figurativa crítica de arte neoconcretismo participação ativo-criativa | Chegou a São Paulo em resposta ao convite da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Martin Kippenberger Candidature à une rétrospective (Candidatura a uma retrospectiva), 1993 Primeira versão, foto de grupo, Martin Kippenberger 40º aniversário - Litografia offset 27 16/09 x 19 11/16 polegadas (70 cm x 50 cm) © Propriedade de Martin Kippenberger, Galerie Gisela Capitain, Colônia RE E DI ÇÃO | TH E O N S PAN U DI S 139 como analista didata. Logo se aproximou de gosto pelo papel do crítico introdutor do artista e primeiro parágrafo, apresenta como sendo então a tese Construtivismo fabulador: uma proposta artistas e escritores, começou a colecionar obras da arte a seu público. Deixou um grande número foco de debate apaixonado. de análise da coleção Spanudis, e graduada em de arte, a reunir vasta biblioteca e a escrever seus de apresentações em catálogos de exposições e primeiros textos sobre arte. Até 1957 clinicou e artigos em periódicos. São textos sobre os grandes lecionou, sendo indiscutível sua contribuição para temas da arte, sua história, os acontecimentos o percurso da psicanálise no Brasil. A partir de do momento. Autodidata, detentor de vasto então fechou o consultório definitivamente, para conhecimento, Spanudis tinha visão bastante se dedicar ao que considerava sua verdadeira particular das questões da arte, empregava vocação: a literatura e as artes. terminologia própria para a discussão de tópicos O gosto por escrever, principalmente pela poesia concreta, a partir do final dos anos 50, aproximou Spanudis das ideias do suíço Eugen Gomriger, a quem creditava os caminhos abertos em relação ao uso mais limpo e econômico da palavra e ao emprego do som mais próximo à música e da imagem ao desenho, sem contudo excluir as possibilidades sensíveis do radicalismo racionalista. Abraçou conceitos da fenomenologia, relacionados ao entendimento do tempo e das relações artista/ público/processo criativo, que o afastaram das alguns, era bastante respeitado por outros. Seu pensamento sobre arte está disperso. Suas preferências em arte, de maneira mais eloquente do que em palavras, estão manifestas nas 453 obras de arte doadas ao Museu de Arte Contemporânea da USP. Além dos muitos artigos publicados, seu arquivo legado ao IEB-USP reúne quantidade ainda maior de originais: alguns esboços para futuros livros, outros artigos completos, algumas ideias a desenvolver, conferências proferidas e posições tomadas pelos artistas concretistas de cursos já ministrados ou planejados. São Paulo e o aproximaram dos integrantes do “A arte das formas e a arte das formações” Grupo Frente, do Rio de Janeiro. O ano de 1959 é um desses originais, provavelmente de foi marcado por aspectos significativos em seu princípios dos anos 60. Não há indicações de percurso: a assinatura do Manifesto Neoconcreto, suas intenções quanto a ter sido escrito para colaboração em eventos do grupo, participação publicação em catálogo de artista, em coleção no Congresso Internacional Extraordinário de de ensaios, como esboço para um futuro livro, Críticos de Arte da Aica (Brasília, São Paulo e Rio de como texto de palestra. Para o pesquisador Janeiro) em que defendeu a ação dos artistas como é documento de grande interesse por ser criadores e agentes incentivadores do público testemunho de época assinado por alguém como co-criadores, entendendo a experiência com envolvimento pessoal nos acontecimentos estética como educação. Seu tom é conciliador, uma vez que se propõe a verificar se as duas tendências seriam realmente tão antagônicas como postulado por “seus representantes e não menos pelos seus críticos partidários”. Propunha-se a avaliar a existência de “pontos de interferência, aproximação e convergência” que não justificassem, “em última análise, toda essa turbulência polêmica”. É peculiaridade do texto o modo a que se refere às duas tendências abordadas, discutindo contribuições e associações, sem estabelecer polaridades. Cumpre também observar sua análise do embate de tais manifestações como fruto do presente e, citando a alusão feita por Herbert Read, das ideias de Wörriger, por considerar anacrônicas educação artística pela FAAP-SP, onde leciona história da arte; diretora do Museu de Arte Brasileira – FAAP- SP; curadora de exposições de arte e pesquisadora em história da arte. Arte das formas e arte das formações Theon Spanudis Dentro das inúmeras manifestações da arte contemporânea, duas são as tendências principais que tomam posições de extremo antagonismo. Essas demarcam as fronteiras entre as quais se desenrola o panorama da arte contemporânea com as suas múltiplas orientações, às vezes intermediárias entre as duas correntes opostas. E em volta dessas tendências de extrema oposição é que se desenvolve o debate da crítica contemporânea. Frequentemente tão violento e apaixonado como há anos atrás quando dos debates em torno da arte figurativa e não figurativa. O objetivo deste artigo é examinar de fato se essas duas tendências são assim tão antagônicas como apresentadas pelos seus representantes e não menos pelos seus críticos partidários. Ou, ainda, se existem pontos de interferência, aproximação e convergência que não justificam, em última análise, toda essa turbulência polêmica. quaisquer tentativas de interpretação do confronto. As duas correntes em exame, ora apresentadas, são em curso, com preferências estéticas definidas Na verdade, Spanudis propõe reflexão bastante as seguintes: e posicionamentos teóricos assumidos, porém pessoal sobre questões relacionadas à formação das 1ª) aquela que parte de e opera com disposto a transpor barreiras e colocar em estruturas, suas superações e a participação de artistas ideias e elementos formais de antemão debate e público no processo de constituição das obras de controláveis, ou seja, ideias e formas momentos convertidas em arenas de combate. arte, ou seja, os caminhos do Neoconcretismo. matemáticas e geométricas. Característica e obras de arte, descrevia-se como colecionador Trata-se de reflexão de época, sobre duas das Maria Izabel Branco Ribeiro é doutora e mestre desta tendência é o exercício do controle apaixonado, e em seus escritos transparecem o muitas tendências de arte de seu tempo, que, no em história da arte pela ECA-USP, tendo defendido Poeta concreto, amante de estruturas, autor de hinos, tradutor de autores gregos, Spanudis era frequentador assíduo de ateliês, galerias e exposições. Apreciava a convivência com artistas 140 que lhe eram caros e, se considerado diletante por Com habilidade, denomina as correntes analisadas arte das formas e arte das formações. Por arte das formas abrange as tendências que operam “com ideias e elementos formais de antemão controláveis, ou seja, ideias e formas matemáticas e geométricas”. Por arte das formações, descreve a intenção “de atingir na obra de arte a suposta naturalidade do acaso, evitando sistematicamente qualquer manifestação que demonstre controle ou a vontade de um controle consciente” em sua elaboração. Evidencia existirem diversos ramos de uma e outra tendência, localizando nos extremos os radicalismos dos debates. A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 tendências artísticas, em muitos consciente, ou a vontade de controlar RE E DI ÇÃO | TH E O N S PAN U DI S 141 conscientemente a produção artística Assim, em vez de chamarmos arte concreta excluindo ao máximo possível (ou ao ou neoconcreta, proporíamos chamá-las de quanto for possível) o fator acaso. arte das formas; em vez de tachismo, arte 2ª) aquela que tem como objetivo atingir na obra de arte a suposta naturalidade do acaso, evitando sistematicamente qualquer manifestação que demonstre controle ou a vontade de um controle consciente na elaboração da obra. Neste segundo caso, poderíamos dizer que todo controle consciente (que naturalmente existe e opera tanto quanto no caso da primeira corrente) gasta-se durante a preparação da obra para então atingir a sua própria extinção. O objetivo ideal da chamá-las de arte das formações. Mas quando falamos de arte das formas, seria bom frisar, temos em mente somente aquele tipo de arte em que é feito uso dos elementos formais geométricos vivenciandoos apenas como elementos formais, e não como símbolos. Pois é bem conhecido o fato de que várias manifestações da arte contemporânea utilizam-se das formas geométricas principalmente pelas suas possibilidades simbólicas. politicamente dirigidas que são mais propaganda Os pontos em comum acima enumerados já interpretativos em favor da arte das formações. poderiam claramente recomendar mais cautela aos Uns veem nela a continuação do expressionismo; críticos nas suas aventuras polêmicas. Naturalmente, outros, cada crítico, como todo ser humano, deve ter suas preferências temperamentais, mas em casos extremos (de estrutura psicológica marcadamente unilateral) podem elas transformar-se em graves empecilhos aos seus possíveis leitores, a ponto de impedir mesmo o vivenciar das produções de corrente contrária à sua. Neste caso seria preferível o crítico se limitar ao campo com o qual ele consegue primeira corrente seria a autodeterminação Apesar de todas estas diferenças de objetivos e ter contato vivencial e evitar opiniões sobre outras e da também de temperamentos, achamos que ambas correntes alheias, nisso demonstrando, sempre e vontade humana em autocontrolar-se e essas correntes têm muita coisa em comum. Eis somente, as suas próprias limitações. Acusar a arte manifestação porque propomos, em seguida, tentando um das formações de uma suposta facilidade na sua ativa, diríamos. O objetivo ideal da primeiro levantamento, fixar os pontos de contato segunda corrente seria a demonstração do entre elas. produção é um típico exemplo de política partidária, a demonstração autodeterminar-se; do uma poder oposto; de que o homem não difere dos processos da natureza. Esses processos, embora regidos por leis, sugerem em nós a vontade própria e consciente que os cria e controla. Ainda esta segunda corrente proclamaria a passividade do homem (como a suposta passividade da natureza) como o seu ideal de naturalidade. São duas atitudes psicológicas opostas – e aqui gasta toda a sua atividade de controle consciente para atingir a ilusão do acaso, e, na primeira corrente (quando de fato criativa), toda a elaboração ativa e consciente da obra pressupõe os estados passivos da inspiração. São dois temperamentos diferentes, com distribuições e acentuações nas escalas de valores bem diferentes, se não opostas. 142 informal, action painting, etc., proporíamos internos. Então, as semelhanças com a realidade exterior são meramente ocasionais (isso, quando as obras de ambas as correntes forem realmente criativas), e de nenhum modo propositais. que carece de qualquer objetividade e conteúdo Ao contrário do surrealismo que opera em geral principalmente pela exploração de assuntos literários e conteudísticos, ambas as correntes em questão operam só e unicamente por meios formais, excluindo toda e qualquer alusão ao assunto. Elas trabalham com meios estritamente formais, que são os seus únicos conteúdos Ambas se restringem em fixar acontecimentos internos na sua realização formal, evitando qualquer exploração secundária de alusão conteudística (imagens, signos, símbolos, etc.). Por assim dizer, ambas são antiliterárias e antisentimentais e tendem a uma objetivação formal que é, ao mesmo tempo, sua única expressão, seu único conteúdo. As alusões à visão do mundo exterior, do mundo dos objetos, tornam-se inexistentes na obra, crítico. Não resta dúvida que a mesma acusação dado o seu caráter de criação interna, da fixação e realização objetiva de dados e acontecimentos A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 poderia ser levantada contra a arte das formas. ou “engenhos” de influenciar e manobrar a opinião pública. Não menos estranhos são os argumentos manifestações e proclamações de desespero existencial e atitudes suicidas, e assim por diante, explorando várias vezes expressões abstratas e, à maioria das vezes, gratuitas dos próprios artistas. Assim vemos que todas estas tentativas de interpretação pecam pelo seu anacronismo. São escritos de críticos fixados no antigo que se projetam no novo. Nem a arte das formas nem a das formações têm relação alguma tão estreita com a arte do passado para permitir este tipo de interpretações. Dado o caráter estritamente pragmático de sua realização por meios formais, apenas de dados e acontecimentos internos da obra, excluem-se de antemão as interpretações somente válidas para as formas antigas de arte. Assim, ao artista dessa corrente que fosse fraco, No seu livro History of Modern Art, (I959), imitador e não bastante criativo, qualquer livro, por Herbert Read utiliza-se das ideias de Worringer, exemplo, de geometria plana forneceria “ideias” numa tentativa interpretativa, para caracterizar para a fabricação em série de obras desse tipo. Não menos paradoxais são também os argumentos de defesa dos críticos de ambas as correntes. Assim, por exemplo, favorecer a diferença das duas correntes em exame. Expandindo a hipótese da angústia metafísica que Worringer levantou para uma angústia existencial generalizada, típica do homem contemporâneo, Read acha que a arte das formas representa uma a arte das formas por motivos alheios à arte, – tentativa de sublimação, e a arte das formações, digamos – por motivos político-sociais (a arte que a aceitação crua e realística desta angústia ponha em “ordem”, que cultive a “ordem”, que existencial, daí o caráter dramático dos seus consequentemente favoreça o “pôr em ordem” produtos. Read parece esquecer que as ideias de dos males político-sociais). Tais pontos de vista Worringer não passam de mera hipótese útil, sem significam um abuso da arte para com outras dúvida para facilitar a aceitação, naquele tempo, finalidades (uma exorbitância da arte dentro de de uma arte não figurativa. Típico produto da outros terrenos), criativa, como no caso das artes mentalidade ocidental que, enraizada nos ideais RE E DI ÇÃO | TH E O N S PAN U DI S 143 naturalísticos de séculos de arte, precisava levantar mas apenas utilizado como mero ponto de partida hipóteses psicológicas para explicar as possibilidades formal e, às vezes, até ocasional. O essencial neste de uma arte não-naturalística. Não resta dúvida tipo de arte é o próprio ato formativo e o seu de que as hipóteses de Worringer não resistiriam, tempo perpétuo, dado que a formação não chega hoje em dia, ao menor exame sério e objetivo. Pode a um resultado formal final. ser que Read se utilize dessas ideias com o mesmo objetivo de Worringer: para facilitar a aceitação da arte não-figurativa. Por outro lado, ele facilita também toda essa avalanche. de interpretações à base de psicologismos gratuitos e anacrônicos de uma crítica que ora vê na arte das formas expressões monumentais, ora vê na arte das formações dramas de desintegração, suicídios e sabe-se lá o que mais. Na verdade ambas as correntes, nos seus momentos de boa criatividade, apresentam as características da criatividade em geral: o vivo, com toda a complexidade e dinâmica do mesmo. Existem, entretanto, em ambos os campos algumas demonstrações, ao nosso ver, possuidoras de uma tal convergência, pelo menos nos seus efeitos finais, que merecem uma atenção toda especial. Temos em mente aquele ramo da arte das formações que, desinteressado no resultado formal final e numa exploração secundária do mesmo (seja no sentido decorativo, simbólico, literário, etc.), limita-se ao ato da formação, apenas ganhando com isso aspectos dinâmicos de uma ação perpétua (que tende a uma finalização mas que nunca se finaliza). Como exemplo típico desta tendência, consideraríamos o japonês Shiryû Morita que, embora vindo da tradição caligráfica, na maioria dos seus trabalhos expostos na V Bienal de São Paulo, não demonstrava mais o ideograma como ponto de partida. Mas, mesmo que o demonstrasse (como no caso de Nankoku Hidai), não teria a menor importância, uma vez que o ideograma não é mais vivido e preservado como tal (ou seja: com toda a sua carga de significações) 144 E algo semelhante parece-nos acontecer no campo da arte das formas, a saber: aquele ramo que, partindo do concretismo, superou a noção racionalística de estrutura e que corresponderia ao resultado formal último da arte das formações. Trata-se da arte neoconcreta. O movimento neoconcreto surgiu em fins de 1958, principalmente pela iniciativa e insistência da artista Lygia Clark. O movimento, em seu manifesto, tomou posição somente contra o ramo racionalista da arte concreta e a favor daquele ramo da arte concreta que, embora não menos sistemático e controlável, conseguiu produções com a expressividade do vivo. Por isto o movimento incluiu também artistas essencialmente concretos que sempre alcançaram em sua obra a expressividade do vivo. Naturalmente, essa tomada de posição somente não justificaria chamar o movimento de neoconcreto, uma vez que sempre existiu uma arte concreta expressiva ao lado de uma arte concreta inexpressiva, que se limitava em concretizar realidades matemáticas, muitas vezes até de origem externa à obra. Quando nas reuniões neoconcretas, tínhamos em mente justamente o “novo” que esses artistas trouxeram na sua obra (por exemplo: a superação da racionalística de estrutura em arte) e esperávamos que, mais cedo ou mais tarde, esse “novo” fosse se definir teoricamente, mesmo para justificar o nome de Luiz Sacilotto Sem título,1956 esmalte sintético sobre madeira 29,7 x 50,1cm Doação Theon Spanudis Foto: Romuo Fialdini Coleção Museu de Arte Cintemporânea da Universidade de São Paulo Luiz Sacilotto “Retângulo Eventual”, 1954 esmalte sintético sobre madeira 22,3x 50,3 Doação Theon Spanudis Foto: Sérgio Guerini Coleção Museu de Arte Cintemporânea da Universidade de São Paulo “neo”. Infelizmente isso não se deu. Em todas as obras plásticas e literárias neoconcretas encontramos, como denominador comum, a superação da noção de estrutura (como racionalisticamente definida) e, com isso, A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 RE E DI ÇÃO | TH E O N S PAN U DI S 145 finalização seria a estrutura acabada e, por isto, das fases e dos possíveis desenvolvimentos estática; seria o resultado formal final. tempóricos que cada obra contém (isto dentro A única diferença, em ambos os casos, é o ponto de partida. O neoconcretismo parte dos elementos formais controláveis, e o ramo da arte das formações em questão parte dos elementos formais ocasionais. O momento da convergência ou até identidade é o caráter tempórico-dinâmico da captação e realização do tempo de formação, do tempo orgânico-vivencial-criativo. Idêntica é, também, a exigência absoluta da participação ativo-criativa do espectador na sua tentativa perpétua de finalizar o ato permanentemente em ação. ativo-criativa do espectador fica desnorteada por ela não ser mais condicionada, como numa obra neoconcreta, para agir somente numa direção determinada) é que entra realmente em jogo o fator acaso em meio a essa participação ativocriativa do espectador. Mas, neste caso a obra de arte ganha uma independência em relação ao espectador que a transforma num ser vivo, independente de nós. Se a característica de uma obra neoconcreta é a exigência absoluta de uma participação ativo-criativa do espectador para que examinando o novo desenvolvimento da artista a obra fosse criada nas novas obras de Lygia Clark Lygia Clark, que a nosso entender conseguiu a participação é necessária somente para revelar fundir estas duas tendências convergentes em algo as várias possibilidades de desenvolvimentos novo e inédito até agora. Da fase das superfícies formais e tempóricos (mesmo assim pelo fator moduladas (que era ainda pintura), passou à fase acaso), mas não é mais a conditio sine qua das superfícies sobrepostas (relevos) em que os non da criação da obra. A obra como tal, com problemas plásticos da fase anterior entraram em toda esta riqueza de possibilidades virtuais e plena e real tridimensionalidade, desvirtuando-se reais, existe como um ser independente de em parte com esta medida (a obra então realiza nós, como um ser vivo e misterioso diante do na realidade aquilo que nas obras da fase anterior espectador. Somente nessas modernas máquinas conteúdo principal da arte neoconcreta. o espectador tinha de realizar mentalmente) computadoras eletrônicas, que funcionam quase É neste ponto que vemos a sua convergência e enriquecendo-se em parte com novos tipos que independentes de nós e do nosso controle, de participação ativo-criativa do espectador. é que veríamos um paralelo com as novas obras Participações não mais do tipo visual-mental de Lygia Clark. Tais obras deixaram nesta última como anteriormente, mas mesmo do tipo tátil. Da fase, a nosso ver, a fundir as duas correntes fase das superfícies sobrepostas a obra de Lygia convergentes. As suas esculturas são ao mesmo Clark chegou à fase atual de esculturas polifásicas tempo arte das formas e arte das formações, além e politempóricas. Tais peças requerem novas do fato (inédito até agora na arte contemporânea) formulações teóricas devido ao seu caráter inédito de uma independência, quase que completa da até agora. A nossa formulação do neoconcretismo obra de arte para com o espectador e que não como superação da estrutura não bastaria para se baseia na atemporalidade estática, típica explicar teoricamente estas suas novas realizações. das artes plásticas tradicionais, porém numa A participação ativo-criativa do espectador passou atemporalidade dinâmica que provém da soma do plano visual-mental para o plano manual de tantas possibilidades “tempóricas” contidas também. Mas, considerando a multiplicidade dentro da obra de arte. a libertação e manifestação plena do tempo orgânico, interior, vivencial, que é, ao mesmo tempo, criativo e que se tornou, por assim dizer, o com aquele ramo da arte das formações, de que falávamos anteriormente. Em ambos os casos, o que acontece é a captação e realização do tempo interior, do tempo de um acontecimento interior, do tempo de um acontecimento interiorvivencial, do tempo orgânico-criativo. Daí o caráter dinâmico destas obras, que supera o momento estático das estruturas e dos resultados formais finais, o dinamismo tempórico perpétuo que nunca se finaliza e que obriga o espectador 146 a reversibilidade desses processos (a participação Achamos justo terminar estas constatações Sem título,1953 óleo sobre tela 53,5 x 64,6cm Doação Theon Spanudis Foto: ??????? Coleção Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo Sem título, 1953 óleo sobre tela 50 x 60,2cm Doação Theon Spanudis Foto: Romulo Fialdini Coleção Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo de certos limites, naturalmente), como também a uma participação ativo-criativa no processo de tentar finalizar a ação que nunca se finaliza. A A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 RE E DI ÇÃO | TH E O N S PAN U DI S 147 ALÉM DA CRÍTICA INSTITUCIONAL Isabelle Graw Isabelle Graw instituição crítica cânone Neste texto, Isabelle Graw pontua separadamente os problemas das terminologias “crítica” e “instituição” e como ambas compõem uma expressão engessada e mal compreendida historicamente. Interroga-se, então, como essa junção leva a uma diluição de sentido na contemporaneidade – sobretudo a crítica prefere canonizar o termo, bem como os artistas que foram por ele rotulados, como Daniel Buren, Hans Haacke, Michael Asher e Marcel Broodthaers. Tal atitude afasta novas possibilidades de questionar o âmbito institucional e de permitir que essas mesmas instituições atuem criticamente. Introdução A própria decisão de colocar um conceito como “crítica institucional” na pauta de discussão do segundo SoCCAS (Simpósio do Los Angeles County Museum of Art) em junho de 2005 já defronta tanto o apresentador quanto o público com inumeráveis problemas. Isso não se deve apenas ao fato de os termos, conceitos e territórios da crítica institucional serem historicamente carregados e calorosamente disputados, mas também porque eles funcionam como designação para um tipo de arte que em geral se supõe ter função epistemológica. A crítica institucional supostamente “critica” (sinônimos relacionados na literatura, nesse sentido, incluem “analisa”, “revela” e “expõe”) tanto um lugar institucional, literalmente (um museu ou espaço de galeria, BEYOND INSTITUTIONAL CRITICS | In this text, Isabelle Graw points out separately the problems of the terms “critics” and “institution” and how both comprise a historically misunderstood and hidebound expression. So she asks how this combination leads to a diluted meaning in contemporaneity – especially the critics prefer to canonize the term, and the artists that were labeled by it, namely Daniel Buren, Hans Haacke, Michael Asher and Marcel Broodthaers. This atitutde distances new possibilities of questioning the institutional sphare and permitting these same institutions to act critically. | Isabelle Graw, institution, critics, canon. etc.) quanto algum outro aspecto mais amplo de confinamento institucional. Poderíamos colocar de outra forma. O conceito de crítica institucional tal como aplicado à arte é baseado na suposição Martin Kippenberger Candidature à une rétrospective (Candidatura a uma retrospectiva), 1993 Primeira versão, foto de grupo, Martin Kippenberger 40º aniversário - Litografia offset 27 16/09 x 19 11/16 polegadas (70 cm x 50 cm) © Propriedade de Martin Kippenberger, Galerie Gisela Capitain, Colônia TE M ÁTI CAS | I S AB E L L E G RAW 149 de que a arte é capaz de fazer alguma coisa. A dificuldade desse termo reside, portanto, em ser descritivo e normativo ao mesmo tempo. Enquanto nos permite pensar sobre o potencial da arte, ele tende, também, a confinar a arte à função supostamente crítica. Quero sugerir que um resultado da dupla ação dos pressupostos e contextos da crítica institucional seja ficar a arte sobrecarregada e, em certa medida, esgotada. são aceitas por certos curadores − ou por analiticamente as condições de enquadramento (…) e daí em diante. Embora essa teoria tenha todas as publicações em que a “criticalidade” é institucionais e sociais”.7 Tal definição lança luz méritos como especulação histórica, a expressão apresentada de forma esquemática e atribuída, sobre os problemas inerentes ao conceito e suas foi reapropriada no início da década de 1990 por como se fosse quase autoevidente, a este ou realizações. Ao assumir a capacidade de investigar uma geração mais jovem de artistas, cujo trabalho aquele trabalho de arte.4 Como, porém, essa ativamente algo, quando definida dessa maneira, pode ser lido como uma série de diferentes criticalidade é geralmente afirmada, em vez de a crítica institucional implica a funcionalização tentativas no sentido de continuar a rever algumas ser definida, e assumida, em vez de ser criado um da arte. É certo que as funções epistemológicas das premissas da crítica institucional.3 modo operacional específico, o resultado costuma têm sido frequentemente projetadas, de forma ser a neutralização das próprias possibilidades bastante estereotipada, sobre as práticas artísticas de prática artística realmente crítica – crítica no classificadas sob a rubrica crítica institucional. sentido de levantar objeções e gerar questões em “Arte” ou “obra de arte” são rotineiramente uma situação particular. substituídas por “intervenção” ou “proposição”, A questão será tratada em três partes. Até mesmo as origens da expressão crítica institucional são controversas. Terá aparecido pela primeira vez num texto de Andrea Fraser sobre Primeiramente, Louise Lawer escrito em 1985, no qual ela sugeriu conceito/prática, insistindo simultaneamente nas Ao confrontar tal neutralização, parece necessário que as abordagens de artistas como Marcel ideias e realizações históricas que ele mediou. analisar Broodthaers, Daniel Buren ou Hans Haacke, ainda Em segundo lugar, discutirei a institucionalização geralmente associadas à crítica institucional que diferentes em estilos e materiais, estavam da crítica institucional, abordando a violência (pesquisa, trabalho de equipe, assunção pessoal todas em débito com a “crítica institucional”?1 estrutural do rígido, e naturalmente excludente, dos riscos, e assim por diante) alimentam, às vezes Ou foram os escritos de Benjamin Buchloh os cânone que ela gerou. Opto, sempre, pela bastante perfeitamente, aquilo que os sociólogos principais responsáveis pelo estabelecimento dos necessidade de considerações situacionais, porque Luc Boltanski e Ève Chiapello descreveram como parâmetros dessa expressão, que ele usou no título certamente há momentos e locais, como na esfera “o novo espírito do capitalismo”.5 Por outro − e como tema − de um importante ensaio sobre comercial do mundo da arte, em que se torna lado, simplesmente insistir no potencial da crítica a arte conceitual, “Da estética da administração absolutamente necessário insistir nas ideias mais institucional ou apontar seus limites não é o certamente fundamentais da crítica institucional. Devo ressaltar suficiente. Sob a luz do novo poder de definição se pode abandonar. contribuiu para a construção das figuras canônicas algumas delas: a de que o valor não é intrínseco do mercado de arte e as atuais mudanças Por associadas ao movimento ou, melhor, ele ajudou à obra de arte, sendo-lhe antes atribuído através estruturais no que antes era chamado de “mundo operando quando as funções críticas, tais como a garantir que a crítica institucional estivesse de operações financeiras; a de que a produção da arte”, proponho deixar ambas as dificuldades “investigação” ou “análise” são reivindicadas para associada a seus suspeitos usuais − Daniel Buren, e outros contextos de uma obra de arte são terminológicas e o cânone para trás a fim de as obras mediante generalizações infundadas Hans Haacke, Michel Asher e Marcel Broodthaers.2 necessariamente interiorizados e expressados como − na última seção, adiante − tentar formular e sem o exame de como e quando a suposta parte de sua significação ou, mais simplesmente, uma redefinição do que “instituição” e “crítica” “investigação” ou “análise” ou “negociação” que faz diferença o fato de museus públicos serem poderiam e podem significar hoje. tomam o lugar do trabalho. Seguir essa questão à crítica institucional”? Buchloh Testemunhas oculares questionadas a respeito de quais artistas tiveram seus trabalhos arrolados sob considerarei as dificuldades terminológicas contidas na expressão crítica institucional, apontando para os limites desse como as competências artísticas descrições que pressupõem orientação funcional. Essa renomeação, entretanto, é faca de dois gumes. Há, por um lado, a vantagem inegável de permitir que nos livremos de uma noção de arte idealista, substancialista e restritiva por insistir numa legibilidade inscritível da arte − na relação atual da arte com as condições sociais e na possibilidade concomitante de renegociá-las. Essa é uma visão à qual sou bastante ligada e que considero necessidade histórica e política que não outro lado, há certo reducionismo esse rótulo em sua maior parte não se lembrariam geridos por administradores. de quando exatamente ouviram a expressão pela É claro que existem outros tempos e circunstâncias primeira vez, ou quem em particular a colocou − digamos, nos circuitos internacionais com em circulação. Talvez Christopher Williams esteja base em projetos das Manifestas e Bienais − No Dicionário Dumont de Termos da Arte institucional e por consequência interpretada, certo. Entrevistado num filme recente de Renée em que as coisas ficam mais complicadas. Aqui Contemporânea,6 crítica institucional é descrita nos termos de Meinhardt, como um “exame das Green, ele deu a seguinte explicação, levemente muitos curadores, instituições, teóricos e artistas, por Johannes Meinhardt como atitude a favor condições de enquadramento institucional ou temperada com teoria da conspiração: a expressão implicitamente ou não, se identificaram com as da arte. De acordo com Meinhardt, essa atitude discursivo”8. Olhando melhor, se o readymade foi propagada primeiro pelo Whitney Independent várias premissas da crítica institucional. Basta pode ser encontrada em “trabalhos de arte é um mecanismo de delimitação de tipos, ele pensar no modo como as investigações “críticas” e também Studies Program e começou a conquistar o 150 mundo desde então – a partir de Nova York A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 sugere que mesmo o readymade, essa vaca sagrada, se torna inconsistente, entendido, como Dificuldades terminológicas procedimentos estéticos geralmente é, como a cena primária da crítica que investigam manifesta aspectos específicos da TE M ÁTI CAS | I S AB E L L E G RAW 151 sensibilidade artística de Duchamp, apresentando- quanto mais as funções da crítica atribuídas ao em 1980, em que o problema não consistia no transformar a “capacidade comunicativa humana se como o resultado de uma escolha que é pessoal trabalho de arte parecem autoevidentes, melhor fato de a instituição impedir o acontecimento de em mercadoria”, como observa Paolo Virno.11 e específica – e não simplesmente arbitrária, como será seu valor promocional. experimentações, mas, antes, incentivar os artistas Recordo meu crescente ceticismo sobre o potencial a produzir obras que com ela se assemelhassem crítico da chamada “prática pós-ateliê”. Comecei ou se conformassem, sendo assim facilmente a olhar para modelos artísticos mais tradicionais, muitas vezes se alega. Elementos do processo do readymade até mesmo se aproximam da ideia de uma assinatura artística. Da mesma forma, não poderia o trabalho Measurement room (1967), de Mel Bochner, ser considerado não apenas análise da “realidade material das paredes da galeria como dispositivo de enquadramento”, como Miwon Kwon argumentou, mas também literal intensificação de seus parâmetros, uma espécie Há trabalhos que facilitam tais rotulagens críticas – basta pensar na atual popularidade de Santiago Sierra. Esse problema está longe de ser novo – tem sido amplamente discutido desde o final dos anos 90, por artistas e por críticos. Os críticos reagiram levando mais em conta o vocabulário estéticoformal. Argumentaram a favor de significados móveis, o que causou novos problemas, dados o de “homenagem” às condições materiais e às alto nível de abstração dessa escolha e a sintonia proporções do espaço da galeria?9 com o interesse geral do mercado por uma segunda Contudo, talvez certa dose de reducionismo seja o preço necessário a pagar quando se quer romper com um sistema dominante de crenças que ainda insiste em que só as qualidades supostamente intrínsecas da arte justificam seu valor. Um ordem, um quase sublime neoformalismo. Os artistas reagiram tornando suas proposições mais poéticas, multifacetadas ou obscuras, o que traz a desvantagem de às vezes deixar o trabalho quase fora de contexto e sem conteúdo. demonstra o processo de construção de valor como uma sucessão de operações financeiras entre uma sequência de proprietários. Tão importante quanto isso é insistir sobre a relevância de fatores externos que se anexam às obras e através delas são negociados, essa necessidade estratégica que passou por transformação e agora serve com frequência como licença para reduzir proposições artísticas complexas a uma função epistemológica ou significado aparentemente inequívocos. A arte supostamente deveria “negociar” questões, “investigar” ou “intervir” − e essas funções epistemológicas são sobre ela projetadas de maneira esquemática como assunto 152 aparentemente conservadores, como o pintor obcecado no ateliê, que recusa explicações, não para um local específico, o Firminy Project na se relaciona, nunca viaja, raramente aparece “Unité d’habitation” de Le Corbusier, em Firminy, em público e, portanto, recusa o espetáculo do na França (1993), lembro-me de várias discussões acesso direto a suas competências cognitivas e entre artistas e críticos sobre o que significava ser emocionais. Diante da tendência do capitalismo bem acolhido pela instituição e educadamente de englobar todas as pessoas e ao mesmo tempo convidado (e pago) para examinar criticamente incentivar a investigação crítica, parecia-me uma um local e interagir socialmente com ele. Uma das estratégia valiosa novamente produzir obras perspectivas pressupunha abrangente cooptação, altamente mediadas pelo ateliê, que, pelo menos uma totalização que levaria à paralisia total. teoricamente, não admite acesso direto. (Uma observação: o termo “cooptação” é em si problemático, pois implica a existência de um estado puro ou inocente “antes” da cooptação – o que é, naturalmente, ficção.) Em outra parte, trabalho como Manet Projekt (1974), de Hans Haacke, é mais atual do que nunca quando Quando o curador Yves Aupetitallot pediu a alguns artistas que produzissem obras aceitas. 10 as tentativas mais produtivas caminharam no A instituição dentro de nós sentido de renegociar as novas restrições e novas A expressão crítica institucional é, em si, uma liberdades que resultaram do avarento mercado construção paradoxal já que sugere a crítica de por conhecimento e informação – um mercado uma instituição que é em si institucional – uma que, às vezes coexiste, às vezes se sobrepõe, e crítica não apenas dirigida às instituições e seus quase sempre não tem nada a ver com o que críticos, mas também uma crítica da natureza acontece na esfera comercial. institucional, por assim dizer. O duplo panorama dessa crítica nos faz lembrar duas coisas – o entrelaçamento profundo entre artistas e instituições, e o grau em que as instituições têm determinado a forma ou o sentido das obras feitas especialmente para ou sobre elas. Pode-se até chegar a dizer que as instituições apresentam o caminho aos artistas. Embora seja verdade que algumas instituições de arte adotaram a crítica institucional, eu certamente não chegaria a ponto de sugerir que isso seja completamente inútil para qualquer “exercício crítico” dentro delas, como Olafur Eliasson colocou de forma bastante condescendente em recente conversa com Daniel Buren.12 Destaco que simplesmente não é esse o caso em que “não há um ‘lá fora’” ou que até mesmo a proposição mais ultrajante, inevitavelmente, será absorvida pelas instituições, conforme Buren e Eliasson Na década de 1990 surgiu um novo tipo de parecem acreditar. Pelo contrário, há algumas instituição de arte, incluindo Depot em Viena ou proposições que permanecem “fora”. A fim de Kunstraum Lüneburg – claramente identificadas construir uma instituição (o termo “instituição” com à deriva etimologicamente de “instalação”, o que crítica institucional. Ao optar por “pesquisa”, alguns dos princípios associados significa montar ou colocar em) um exterior “documentação”, equipe”, constitutivo não é apenas necessário, mas “ausência de hierarquia”, “transparência” ou inevitável. Algumas coisas vão ser sempre deixadas “discussão”, seus métodos de trabalho foram, de fora, muitas vezes, de modo deliberado: ao mesmo tempo, completamente coniventes estruturalmente falando, cada centro produz sua “trabalho em de fato abordável. Mais uma vez, é só dar uma A olhada em alguns dos inúmeros exemplos de identificadas é com os valores neoliberais. Esse foi especialmente periferia. Além disso, se levarmos em conta que as publicações distribuídas por galerias, museus e questão que com frequência tem preocupado o caso, com essa ênfase na comunicação, que instituições de arte têm praticamente transmitido outras instituições para aprender a lição de que, os artistas. Buren apresentou incisiva reflexão correspondeu à tendência da indústria cultural de a autoridade para o novo mercado de arte e que institucionalização A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 com a progressiva crítica de obras institucional TE M ÁTI CAS | I S AB E L L E G RAW 153 é raro artistas associados à crítica institucional bons candidatos para inclusão no cânone, já alcançarem posições importantes na esfera que expõem a falência da tradição da “arte” ou comercial, chegamos à conclusão de que não há do “artista”. Sua própria ambição desesperada nenhuma razão para despejar o bebê junto com para ser ao mesmo tempo bem-sucedido e a água da banheira. Eu optaria pela seguinte politicamente responsável foi impiedosamente abordagem: insistir no potencial investigativo da tematizada em seu livro de artista Hier und Jetzt: crítica institucional, especialmente em face da Das tun, was zu tun ist.13 Ele estava tão envolvido nova entidade empresarial do museu, enquanto com a luta política quanto irremediavelmente se trabalha em novas e mais adequadas definições comprometido com o sistema de galerias. de “instituição” e “crítica”. Podemos também considerar algumas das proposições de Martin Kippenberger, atualmente o sujeito de quase santificada canonização Outro cânone como o pai da pintura figurativa no mundo A história e as realizações da crítica institucional inteiro. Quando convidado para expor no Centre devem momento Pompidou, em 1993, ele intitulou sua exposição canonizadas de forma bem-sucedida. Ela possui Candidature à une retrospective, desafiando ser consideradas neste uma lista de nomes-chave − os suspeitos de costume que mencionei − que constam como seus principais representantes: Daniel Buren, Michael Asher, Marcel Broodthaers, e Hans Haacke. Mesmo que eu entenda perfeitamente a necessidade estratégica de se estabelecer esse cânone, me parece um tanto surpreendente que a lista seja quase inconscientemente reproduzida e raramente modificada pelos jovens historiadores da arte. Na verdade, esse rol de protagonistas tem sido iterado e petrificado em detrimento de muitos artistas cujos métodos de trabalho − independente da forma que suas investigações possam tomar − também poderiam ser descritos como métodos de questionamento ou mesmo de ataque à instituição de arte, especialmente se contêm todo um sistema de crenças. Por exemplo, parece ser uma regra não definida no cerne da narrativa histórica da arte dominante, pelo menos, que a crítica institucional não possa se manifestar na pintura. 154 diretamente e zombando da instituição de arte e sua política de reconhecimento. Em vez de esperar até ser considerado suficientemente importante para uma retrospectiva de grande porte, optou por uma estratégia mais agressiva e discreta. Sua ousada iniciativa questionou o papel regulador da instituição de arte, sua ambição de recompensar “bons” artistas que “mereceram” e “trabalharam arduamente”, e em simultâneo atacou a grande illusio do mundo da arte − termo de Pierre Bourdieu para o investimento coletivo e crença em todo um sistema de valores de uma estrutura.14 Kippenberger propôs que algo mais, de modo geral, poderia estar em jogo, uma vez que ele insistiu em um conjunto de outros − não menos duvidosos − critérios de valorização, que costumam permanecer ocultos. O convite trazia a imagem de seu círculo de amigos íntimos e admiradores reunidos por ocasião de seu 40º aniversário. Embora ele se apresente como uma espécie de “artista dos artistas” que não precisa Gostaria de propor, ao contrário, que os de reconhecimento institucional, esse convite primeiros trabalhos de Jörg Immendorff sejam exibe as redes informais e leis de proteção que A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 Capa do livro: Jörg Immendorff, Hier und Jetzt: Das tun, was zu tun ist (Materialien zur Diskussion: Kunst im politischen Kampf. Auf welcher Seite stehst Du, Kunstschaffender?), Colônia/Nova York: König, 1973 228 páginas 21 x 30cm Fonte: http://www.flickr.com/photos/desingel/4203026541/ definem a vida como um “mundo de conexões”.15 define, valida, enquadra, isola, exclui e naturaliza. e Estruturas A palavra “crítica” sofreu mudanças semânticas Tais acordos informais são raramente expostos, Útil com esse sentido, tal noção limitada facilitou corporativas não podem mais ser localizadas, já semelhantes e reconceituações orientadas para embora muitas vezes legitimem a política a fixação sobre o mecanismo da arte, ignorando que atuam no espaço transnacional. Da mesma a prática. Aos olhos de uma geração anterior, cultural oficial. (Outra observação: o próprio o fato de que não só se mudou a natureza do forma, as transações no mercado secundário − como Hans Haacke, o conceito de crítica parecia termo, mas também que ele perdeu muito decisivas para o valor comercial de uma obra de depender de um ideal de distanciamento crítico. de sua antiga autoridade. Essa fixação sobre arte, ao menos − são pouco compreensíveis. O Artistas mais jovens, incluindo Andrea Fraser, novo poder do mercado de arte se manifesta, Christian Phillip Müller, Renée Green e Fareed Kippenberger foi profundamente influenciado por artistas como Louise Lawler e Andrea Fraser, cujos trabalhos podem ser considerados lembrete constante do fato de que não são apenas as supostas qualidades intrínsecas da arte que levam a seu reconhecimento institucional, mas uma interação de atividades promocionais, sociais e institucionais). o mecanismo da arte parece estranhamente nostálgica hoje, de modo especial em relação ao novo poder de definição do mercado de arte, que tomou o comando dos museus como principais gestores de valor em rede cujas transações globais nos mercados primário e secundário são quase sempre invisíveis. 16 multinacionais. então, na substituição de critérios artísticos por imperativos econômicos. Um artista que se mostre economicamente bem-sucedido será quase automaticamente considerado “importante” ou “interessante” − por galerias, curadores e muitos críticos. Em contraste com a situação em 1960, quando o papel das instituições de arte podia ser Armaly (eu mesma estou reproduzindo um cânone, agora), basearam seu trabalho, em parte, na consciência de que essa suposição de distância ou separação entre o agente de entrega da crítica e seu suposto objeto sempre foi ficção que não pode e não deve ser reproduzida nas atuais circunstâncias. Sua obra propõe uma noção Quando o antigo mundo da arte se transfor- Por outro lado, de forma não tanto topográfica, decisivo no processo de validação, estamos vivendo ma em indústria visual noções mais expansivas de instituição estão em o paradoxo de uma proliferação de instituições circulação desde os anos 70, como evidenciado de arte que continuam a organizar e acolher a pelo trabalho Journal Series (1976), de John experiência da arte, caracterizada, segundo Buren, Knight, por exemplo. Nesse projeto, o artista pela “incrível fraqueza”. Museus são dirigidos por enviou assinaturas gratuitas não solicitadas para curadores que tendem a reproduzir o consenso membros da comunidade artística, antecipando a reinante no mercado de arte − como é constatado maneira pela qual a lei da cultura de celebridades pela coleção de arte contemporânea no Museu de e as regras da indústria de entretenimento Arte Moderna de Nova York. Talvez devêssemos aceito, bem-vindo e mesmo apoiado por muitas se alojam no mundo da arte atualmente No parar de chamá-los de “museus”, já que essa instituições, que ativamente convidam artistas momento, somos confrontados com uma situação palavra conota, etimologicamente, sua atribuição para os investigar. Crítica, em suma, pode tornar- em que o modelo do sistema de galerias com sua a alguma forma de produção de conhecimento, e se uma prática reificada que alimenta o apetite estrutura de comércio varejista foi substituído encontrar novo termo. voraz do capitalismo. As dificuldades certamente não param por aqui. A expressão crítica institucional coloca novos problemas, pois os dois conceitos que se fundem têm, um e outro, sua própria carga histórica: “instituição”, por um lado, e “crítica”, por outro. Consideremos o breve histórico das inflexões do termo “instituição” em apenas um segmento social, o mundo da arte. Correndo o risco de simplificar demais, gostaria de esboçar o que se segue. Dois entendimentos convergentes de “instituição” atravessaram os anos formadores 156 conglomerados de crítica renegociada com base na admissão de que a “distância crítica” é comprometida a priori. Além disso, o que a princípio parece ser “crítico” pode ser gesto totalmente inofensivo em circunstâncias diferentes. Se refletir sobre os parâmetros institucionais já foi algo que a instituição considerou preocupante, hoje é algo por fusões globais de grande porte, como a da crítica institucional na década de 1970: “Houses & Wirth & Zwirner” ou a “Gagosian”. O primeiro, uma designação bastante limitada de antigo mundo da arte tornou-se o que podemos instituição como instituição de arte (museus, denominar “indústria visual” vagamente similar a galerias) exemplificada nas abordagens de Buren outras indústrias culturais, como a de Hollywood e Asher. Lendo os textos de Buren, por exemplo, ou o mundo da moda, que parece cada vez percebe-se que para ele “instituição” sempre mais imitar. O programa da indústria visual foi sinônimo de “museu”. Essa noção restritiva implica a visualidade e seus significados já não implica compreensão topográfica, que tem a serem produzidos por protagonistas singulares inegável vantagem de permitir intervenções muito (artistas, galeristas, curadores). Em vez disso, a concretas e precisamente circunscritas. Quando responsabilidade pela produção e distribuição de Buren refletiu sobre a “função do museu”, como imagens e seu conteúdo está nas mãos de entidades denominou, ele analisou a forma como o museu maiores, A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 incluindo franquias Fareed Armaly (re)Orient exhibition, 1989 Galerie Lorenz, Paris internacionais TE M ÁTI CAS | I S AB E L L E G RAW 157 Novas formas de convergência entre crítica e sentido de que levanta questionamentos ou experiências e trabalhos mas, sim, como conduz tun ist (Materialien zur Diskussion: Kunst im politischen capitalismo foram analisadas pelos sociólogos coloca problemas. a produção de obras com que tem afinidade, Kampf. Auf welcher Seite stehst Du, Kunstschaffender?), e que, compreensivelmente, aceita”, in “Rund Colônia/Nova York: König, 1973. [N.T.] Ève Chiapello e Luc Boltanski em seu poderoso e ambicioso estudo The New Spirit of Capitalism. 17 Sua narrativa, porém, postula novamente uma visão bastante pessimista e totalizante de um capitalismo abrangente capaz de absorver qualquer tentativa de questioná-lo. Correndo o risco de soar ainda mais prescritiva ao final de minha discussão, eu gostaria de contrariar essa visão fatalista, com um apelo para considerações situacionais. Em determinados momentos e Não tenho certeza se crítica institucional é a expressão correta para tal esforço, já que sua canonização é tão profunda até agora, que é difícil imaginar como seus preceitos podem ser regenerados, e suas formas e seus significados, reformulados. Talvez o legado da crítica institucional se encontre em sua exigência de que levemos em consideração suas lições, a fim de deixá-las para trás. contextos, se perguntarmos ao cânone dominante, Tradução Ana Luísa Flores e Isabel Carneiro ou atacarmos o consenso atual, ou insistirmos em Revisão técnica Dalila Santos do que Pierre Bourdieu chamou de “espaço de of the Literary Field, Stanford: Stanford University of Capitalism, trad. Gregory Elliott, Nova York: Verso, Press, 1999:227-230. [As Regras da Arte: Gênese e 2005, publicado originalmente como Le Nouvel estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia Esprit du Capitalisme, Paris: Gallimard, 1999. [O das Letras, 1996.] Novo Espírito do Capitalismo, São Paulo: Martins Fontes, 2009.] 7 Ver o de Johannes Meinhardt de arte contemporânea que “refletem a confiança Hubertus Butin (ed.), DuMonts Begriffslexikon ingênua de seus criadores em um mecanismo do zur zeitgenössischen Kunst, Colônia: Dumont, mundo da arte e do museu que aparentemente institucional] 8 Ver também Frazer Ward, que caracteriza o JRP|Ringier, 2006: 137-151. criadores de ‘arte moderna’, continuasse a ser readymade como um “gesto epistemológico” em Graw (org.), Institutional Critique “The Haunted Museum: Institutional Critique and insisto, podemos romper com um sistema de Publicity”, October, v. 73, verão 1995:71-89. determinado momento. Dessa forma, ao insistir em “outros critérios”, parece-nos mais adequado observar a arte da maneira como circula nesse meio − seja no mercado secundário ou no mercado do conhecimento − “sem ilusões” (como H.D. Buchloh expressa apenas pena para as obras in [crítica o funcionamento da máquina capitalista, mas, está em jogo em certas obras de arte em um para o Museu de Arte Moderna de Nova York and After (SoCCAS Symposia vol. 2), Zurique: Certamente, tais intervenções não impedirão a desviar-nos do fato de que algo realmente discussão de quatro críticos sobre o novo edifício pretendem habitar, como se os tempos não tivessem horizonte de constituição daquilo que é possível. duvidosa, mas enfática, na arte. Ambas tendem 16 Em sua contribuição para “O Novo MoMA”, 2002:126-130. Isabelle a crença na economia, ou uma crença não menos 15 Ver nota 5. [N.T.] (Artforum, v. 43, n. 6, fevereiro 2005), Benjamin verbete “Institutionskritik” Texto publicado originalmente em: possibilidades”(...) podemos expandir e deslocar o crenças, enquanto participantes – se isso implica 158 Art as Fetish”, in Rules of Art: Genesis and Structure 2002. [N.T.] NOTAS 14 Ver Pierre Bourdieu. “The Illusio and the Work of 5 Ver Luc Boltanski e Ève Chiapello. The New Spirit zur zeitgenössischen Kunst, Colônia: Dumont, ou recusarmos noções subdesenvolvidas de pode tornar instrumentalizada, ou afastarmo-nos Dresden/Basileia: Verlag der Kunst, 1995:340. 6 Hubertus Butin (ed.), DuMonts Begriffslexikon critérios outros que não os interesses econômicos, criticalidade, ou mostrarmos como a crítica se um‘Punktesetzen’”, Achtung! Texte 1967-1991, 1 Andrea Fraser. “In and out of Place”, in Reesa Greenberg, Bruce W. Ferguson e Sandy Nairne (eds.), 9 Miwon Kwon, “Genealogy of Site Specificity”, One Thinking about Exhibitions, Nova York: Routledge, Place After Another: Site-Specific Art And Locational 1996:437-449; publicado originalmente em Art in Identity, Cambridge: MIT Press, 2004:14. America, junho de 1985:122-129. 10 Ver Daniel Buren. “On Institutions in the art mudado e como se seu estatuto privilegiado de incondicionalmente garantido”. 17 Ver nota 5. 18 Walter Benjamin observou “o reconhecimento precoce do mercado, sem ilusões” de Baudelaire, em “The Paris of the Second Empire in Baudelaire”, Charles Baudelaire, A Lyric poet In the Era of High Capitalism, trad. Harry Zohn, Nova York: Verso, 2 Benjamin H.D. Buchloh. “From the Aesthetics system” in Isabelle Graw (org.), Institutional Critique 1989. [Obras Escolhidas III – Charles Baudelaire: of Administration to Institutional Critique”, L’art and After (SoCCAS Symposia vol. 2), Zurique: Um Lírico no Auge do Capitalismo. São Paulo: Ed. conceptuel, une perspective, Muses d’Art moderne JRP|Ringier, 2006: 340-341. Brasiliense, 2004.] de la Ville de Paris, 1990. 11 Ver Paolo Virno. A Grammar of the Multitude, 3 “Jugend forscht (Armaly, Dion, Fraser, Müller)”, in Walter Benjamin expôs às vésperas da Segunda Texte zur Kunst, v. 1, n.1, outono 1990:163-175. Guerra Mundial, enquanto se empenhava para 4 Daniel Buren identificou esse desdobramento em compreender a obra de Charles Baudelaire).18 Ao 1980: “O problema hoje não é identificar em que mesmo tempo, no entanto, parece ser necessário medida a instituição funciona como amortecedor manter uma noção de arte que seja crítica no [literalmente, A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 “pastilha de freio”] sobre as Nova York: Semiotext(e), 2004:61. 12 Daniel Buren, Olafur Eliasson. “Conversation: Daniel Buren & Olafur Eliasson”, ArtForum, v. XLIII, n. 9, maio 2005: 208-214. [N.T.] 13 Jörg Immendorff. Hier und Jetzt: Das tun, was zu Isabelle Graw é crítica de artes visuais e cofundadora da revista Text zur Kunst, professora de teoria e história da arte na Universidade de Belas Artes (Städelschule), em Frankfurt, Alemanha, onde também criou o Instituto de Crítica de Arte. TE M ÁTI CAS | I S AB E L L E G RAW 159 REPRESENTAÇÃO, APROPRIAÇÃO E PODER Craig Owens Representação pós-estruturalismo contemporaneidade Craig Owens Reflexões críticas sobre duas abordagens a respeito da representação: a revisionista, que coloca em questão a figuração, e a tradicional, que a resgata. Propõe encaminhamento pós-estruturalista da questão, com base em Foucault, Marin e Derrida. Esses pensadores desautorizariam as duas abordagens mencionadas, por entendê-las circunscritas à busca da verdade e ao historicismo, valores epistemológicos considerados ultrapassados pela crítica pós-estruturalista, pois reforçam o poder e a propriedade no modo característico de a sociedade ocidental representar o mundo. Este ensaio apresenta duas abordagens bastante diferentes da questão da representação – que vem sendo proposta como de interesse pela arte da última década, apesar de mal compreendida pela crítica. Tudo o que tem sido celebrado (e com rara frequência denunciado) como um retorno à representação, após a longa noite da abstração modernista, acaba por ser, em muitas instâncias, crítica à representação, uma tentativa de usar a representação contra ela mesma, a fim de desafiar sua própria autoridade, seu desejo de alcançar alguma verdade ou valor epistemológico. REPRESENTATION, APPROPRIATION AND POWER | Critical reflections on two approaches to representation: the revisionist, which questions figuration, and the traditional, which redeems it. He proposes a post-structuralist focus on the issue, based on Foucault, Marin and Derrida. These scholars would discredit the two aforementioned approaches since they understand them as circumscribing the search for truth and historicism, epistemological values considered obsolete by post-structuralist critics, since they reinforce power and property in the way characteristics of how Western society represents the world. | Representation, post-structuralism, contemporaneity, Craig Owens. A crítica, contudo, tem tributado esse impulso à ambígua bandeira de um revival das práticas figurativas de expressão; assim, para uma discussão teórica sobre as questões apontadas pela arte contemporânea a esse respeito, precisamos perscrutar outras paragens – por exemplo, o campo europeu da crítica conhecido como pós-estruturalista, cuja produção também vem sendo identificada como crítica à representação. Diego Velázquez, As meninas, detalhe, reflexão no espelho, 1656, óleo sobre tela, Prado, fonte MITlibrary 160 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 TE M ÁTI CAS | CRAI G O WE N S 161 essas duas posições; na verdade, espero antes famosa análise de Michel Foucault sobre As demonstrar sua incompatibilidade. Portanto, meninas, no capítulo de abertura de As palavras minha hipótese de trabalho propõe que a crítica e as coisas pós-estruturalista não pode ser absorvida pela Arcadian Shepherds, proposta por Louis Marin história da arte sem uma sensível redução de seu no artigo Towards a theory a of reading in visual vigor polêmico, ou sem uma total transformação arts.1 Esses comentários se relacionam não apenas na própria história da arte. devido à contemporaneidade das pinturas que e a análise complementar de The discutem – Velázquez pintou As meninas em 1656; e Poussin produziu duas versões de The Historiadores da arte e pós-estruturalistas A devoção à verdade e o método de precisão científica nascem da paixão de estudiosos, da recíproca aversão que têm entre si, de suas fanáticas e intermináveis discussões, bem como do espírito de competição existente entre eles – do conflito pessoal que problema que essa vinculação apresenta para a pesquisa da história da arte. Essa rede não foi proposição minha; emergiu durante o painel “A aplicabilidade da metodologia da crítica literária à análise da pintura”, que ocorreu, em dezembro de 1981, na reunião da Modern Language Association [MLA] (organização profissional de pesquisadores e professores de estudos literários de certo modo equivalente à College Association). Esse evento proporciona pretexto para minhas 162 desinteressada e, portanto, politicamente neutra; ao problema no âmbito da história da arte: o da e um corpo crítico (pós-estruturalista) que tradição e o do revisionismo. Nas páginas que se demonstra ser a representação parte inextricável seguem, discutirei essas duas abordagens a fim de do processo social de dominação e controle. Em exemplificar a diferença entre a disciplina (história nenhum momento quero mediar ou reconciliar A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 trabalhos como “representações de representação [clássica, isto é, do século 17],” e isto eles fazem para demonstrar não apenas a singularidade das sistema clássico de representação. e poder em nossa cultura, tanto quanto o em desacordo com ambos os tratamentos dados intenção. Foucault e Marin interpretaram esses Michel Foucault. Nietzsche, genealogy, history coesão, por articular o vínculo entre representação da arte) que toma a representação como atividade a 1655 – mas também devido a seu método e obras mas também a conformidade delas com e textos, pinturas e os comentários que lhes dão A objeção pós-estruturalista à representação está sido datada por Anthony Blunt como posterior gradativamente apaga as armas da razão. Meu objeto será uma rede específica de imagens Jean-Baptiste Greuze, Fils ingrate, 1777, óleo sobre tela, 130 x 1.162cm, Louvre, fonte MITlibrary Archadian Shepherds, tendo a que nos concerne reflexões, embora a ele eu não vá limitar-me. as regras anônimas e impessoais que regulam o Foucault e Marin não estiveram na MLA: seu argumento, no entanto, foi defendido lá por dois historiadores da arte, Svetlana Alpers e Michel Fried, que observaram seu valor para estudos de história da arte. Embora Alpers e Fried orientem sua produção inicialmente para público afeito a estudos literários – seus estudos recentes aparecem em periódicos como Critical inquiry e New literary history – e não objetem, pelo menos não em princípio, a transferência de análises textuais para o campo das artes visuais, ambos mencionam os perigos decorrentes desse deslocamento, citando como exemplos as análises de Foucault sobre Velázquez e de Marin sobre Poussin. Alpers critica Foucault por negligenciar Dois dos comentários que levarei em consideração a tradição pictórica, da qual, segundo ela não foram feitos por historiadores da arte, mas entende, As meninas teria sido constituída; e por críticos que explicitamente rejeitavam a ideia Fried descarta como a-histórico e reducionista o de haver separação entre diferentes disciplinas, uso que Marin faz da distinção linguística para no que concerne ao trabalho intelectual: a definir a estrutura da pintura histórica. A despeito TE M ÁTI CAS | CRAI G O WE N S 163 do fato de que nem Alpers nem Fried professam originalidade, bem como a reinvindicação de Fried afeição particular pela disciplina em que atuam, do reconhecimento da especificidade histórica em ambos introduzem suas reflexões declarando-se seu próprio argumento. distanciados da história da arte – o julgamento de valor negativo que eles conferem a Foucault e Marin, em última análise pronunciado em nome do teor de verdade da história da arte, confirma as premissas de Freud, em seu escrito de 1925 a respeito da negação na origem da psicologia do julgamento intelectual: não é, como Alpers propõe, se Foucault terá interpretado corretamente As meninas (a resposta dela é que “ele interpretou bem a pintura, mas não verdadeiramente”), mas se Alpers e Fried interpretaram adequadamente Foucault e Marin. E a resposta é que eles não o fizeram; de fato Foucault Negar alguma coisa em favor do próprio e Marin foram mal compreendidos naquela ocasião julgamento é o mesmo que dizer: ‘Isto ao menos em dois diferentes aspectos. é algo que eu preferiria reprimir’. Um julgamento negativo é o substituto intelectual para a repressão; o ‘não’ com o qual ele se expressa é a marca registrada da repressão, um certificado de origem, como algo teria sido, como ‘made in Germany’. 2 O trabalho de Foucault e Marin é certamente algo que a história da arte (uma disciplina como se sabe ‘made in Germany’) preferiria reprimir. Pois, apesar de a análise de Alpers de As meninas parecer, como veremos, defender mais do que refutar a leitura que Foucault faz da pintura, e a discussão de Fried sobre o papel do espectador em finais do século 18 e início do 19 relativa à pintura francesa apresentar dialética de afirmação e negação igual à empregada por Marin no tratamento do mesmo problema no século 17, a questão de ambos, Foucault e Marin, relativa à convenção em obras de arte, a sua tendência de sempre se conformarem a certa especificidade institucional, permanece em conflito direto com o interesse de Alpers e Fried (e da maioria de seus colegas) a respeito da individualidade ou da singularidade de obras e períodos da arte. Assim, os argumentos de Foucault e Marin em última 164 A questão com a qual nos deparamos, então, Apesar de o trabalho deles ter sido aceito na academia americana inicialmente como “crítica literária” e permanecido restrito ao departamento de literatura inglesa comparada, nem a obra de Foucault nem a de Marin referemse principalmente ao texto literário; como seus colegas Jacques Derrida e Roland Barthes, ambos têm escrito (Marin o faz extensivamente) a respeito de artefatos da cultura visual. O método que usam, além do mais, é híbrido, combinando na prática análise filosófica, literária, científica e histórica. Apresentar seus trabalhos num painel dedicado à aplicabilidade da crítica ‘literária’ à pintura sem reconhecer seu caráter multidisciplinar seria desconsiderar a vitalidade polêmica de suas observações. Pois a crítica pósestruturalista é adversária da crítica estabelecida, concebida em oposição à ordem dominante que isola o conhecimento em vários campos, cada qual dotado de seu próprio objeto de estudo e instrumentos metodológicos3 (tanto é que Foucault fazia palestras sobre ‘história e sistemas Nicolas Poussin, The arcadian shepherds, c. 1638, óleo sobre tela, 87 x 120cm, Louvre, fonte MITlibrary de pensamento’ enquanto Marin lecionava no campo multidisciplinar da semiótica.) instância desacreditam a iniciativa de Alpers Mais ainda, nem Alpers nem Fried alcançaram de tributar a Velázquez um desempenho de compreender o mais importante – e mais radical – A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 TE M ÁTI CAS | CRAI G O WE N S 165 aspecto do trabalho de Foucault e de Marin sobre nos sistemas de representação do Ocidente. a representação: seu esforço, nas palavras de Representação, então, não é – nem poderia ser – Marin, “em explorar os sistemas de representação neutra; ela é um ato – na verdade, o ato fundante como aparatos do poder”. Ambos trabalham – do poder em nossa cultura. para desmascarar os interesses particulares com os quais todas as representações compactuam, suas afiliações a classes, ofícios, instituições. Por exemplo, em Fantasia of the library, Foucault discute a arte de Manet como uma “pintura de museu” – pintura como “manifestação da existência de museus e da realidade particular e interdependência que pinturas adquirem em museus”.4 E em seu mais recente trabalho, Le portrait du roi, Marin trata a produção artística da corte de Luís XIV, da arquitetura ao entretenimento, como manifestações do poder absoluto e ilimitado do rei. Investigar sistemas de representação como aparatos de poder não é estudar sua apropriação por aqueles que estão no poder, com propósitos políticos ou de propaganda – apesar do fato de as histórias da arte e da arquitetura serem compostas basicamente por tais monumentos à autoridade. Também não é decifrar as mensagens ideológicas que ali estão codificadas; Foucault e Marin devem ser distinguidos daquela crítica ideológica marxista ou assemelhada – que se dedica a interpretar as características implícitas de uma obra. Foucault e Marin não interpretam obras de arte se interpretar significa atribuir-lhes um significado. Estão menos interessados no que as obras de arte dizem e mais naquilo que elas fazem; eles possuem visada performativa da produção cultural. Assim, Foucault e Marin investigam a representação não simplesmente como manifestação ou expressão de poder, mas como parte do problema social de diferenciação, exclusão, incorporação e regulação. Ambos trabalham para expor os modos pelos quais a dominação e a sujeição estão inscritas 166 A segunda parte deste ensaio será dedicada à crítica da representação pós-estruturalista e sua relevância para a produção artística contemporânea. Por ora, entretanto, quero considerar as implicações da resistência da história da arte ao pós-estruturalismo. Historiadores da arte deveriam dispor-se a aceitar Foucault e Marin, uma vez que eles contribuíram imensamente para nossa compreensão dos modos pelos quais a produção artística participa dos grandes processos sociais e históricos. Nos últimos anos tem havido crescente interesse na história da arte não apenas devido ao problema da representação visual per se, mas também à análise contextual ou circunstancial de obras de arte, em tópicos como iconografia Médici ou mecenato real, nos quais a arte está explicitamente vinculada ao poder. Por que, então, Foucault e Marin têm sido ignorados? Por que o trabalho deles é considerado “denso”, “difícil”, “irrelevante”? Seria, talvez, porque a história da arte – tomada, na perspectiva da frase de Panofsky, como disciplina humanística – está implicada na crítica pós-estruturalista? Embora toda tentativa de caracterizar movimentos intelectuais esteja condenada de início a uma desoladora superficialidade, algumas palavras a respeito do impulso que motiva a crítica pós-estruturalista podem auxiliar a elucidar o grande divisor que a separa da história da arte. O pós-estruturalismo emergiu em clima social e político – a França após 68 – de grande recusa aos termos e condições do discurso humanista. A noção humanista de “homem universal” está calcada na imagem do homem europeu ocidental e sua civilização. No Ocidente toda diferença, A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 não conformidade, divergência da norma foi confinada ou expelida, todas as demais raças e culturas ficam marginalizadas. A atual crise política e econômica do Ocidente – a emergência das nações do Terceiro Mundo, o movimento feminista, as crescentes restrições na vida socioeconômica, a catástrofe ecológica geral... – começou a expor o caráter excludente do discurso humanista; os críticos pós-estruturalistas trabalham para articular seu pressuposto básico e, ao mesmo tempo, para desarticulá-lo, para desmascarar suas contradições internas e sua cumplicidade com a ordem cultural e social dominante. Assim, todos os pós-estruturalistas examinaram em vários graus sua própria implicação no sistema acadêmico que submete, e desse modo confina, o intelectual a uma disciplina. Se eles negam o valor de se manter vinculados aos limites de uma só área de competência, é porque veem as “humanidades” como produto de uma atividade sistemática de restrição engenhosamente criada para controlar a produção de conhecimento em nossa sociedade. Apesar de alegarem ser desinteressadas, as humanidades na verdade trabalham para legitimar e perpetuar a hegemonia da cultura ocidental europeia: a história da arte, por exemplo, é a história da arte da Europa ocidental, de sua origem na antiguidade a sua culminância nesse continente. Essa não é, como poderemos ver, a única maneira de a história da arte colaborar com o poder; na verdade, ela sinaliza a necessidade de reavaliação completa dos princípios humanistas sobre os quais a história repousa. aquilo que de outro modo estaria morto. Erwin Panofsky, História da arte como disciplina humanística A história da arte é disciplina altamente controversa, caracterizada por destrutivo debate, competição e conflito pessoal; a veemência com a qual historiadores da arte se digladiam só é sobrepujada pelo entusiasmo com que eles se unem para defender seus direitos de propriedade. Assim, apesar das diferenças no que se refere a sua produção (centrada principalmente no debate a respeito da história), Alpers e Fried se apresentam no MLA como uma frente unida. O ar de congratulação mútua que impregnou o painel não era, entretanto, primariamente questão de decoro acadêmico, mas função do propósito que tinham em comum naquela ocasião: apoiar os fundamentos da história da arte contra a invasão do pós-estruturalismo. Essa reação é característica da recepção da história da arte a escritos a respeito da arte, e não apenas àqueles dos pós-estruturalistas, mas ao de todos os não especialistas. Para citar apenas um exemplo: no começo de seu trabalho crítico [Art in America, mar.-abr. 1979] sobre a coletânea de Schapiro a respeito da arte moderna, Linda Nochlin apresentou, como prova da precedência de ambos (do autor e da própria história da arte) o debate de Schapiro com o filósofo existencialista Martin Heidegger tendo como foco a pintura de Van Gogh realizada por volta de 1886 ou 1887 (geralmente referida como Old Shoes [sapatos usados]). A pintura em questão apresenta duas botas bem surradas, senão descartadas, com História da arte como disciplina humanista cadarços desfeitos e solas furadas. Em A origem As humanidades (...) não se confrontam com a tarefa de resgatar aquilo que de da obra de arte (1935-36) – que pode ser outra feita foi embora, mas de reviver juízo, de Kant, e Estética, de Hegel, como uma considerada no mesmo patamar que A crítica do TE M ÁTI CAS | CRAI G O WE N S 167 das três grandes reflexões sobre a arte na história ensaios sobre a pintura.7 No texto intitulado da filosofia moderna – Heidegger identifica essas Restitutions/De la vérite en peinture, grosso modo botas como um par de sapatos de camponesa, Restituições/Sobre a verdade na pintura, Derrida propondo, em certa medida sentimentalmente, não toma o partido de Heidegger contra o ataque que “na escura abertura do interior gasto dos de Schapiro; nem propõe um julgamento com sapatos, fita-nos a dificuldade e o cansaço relação às vozes conflitantes. Por outro viés, ele dos passos do trabalhador”.5 Numa réplica a demonstra não existir, na verdade, contestação Heidegger, publicada em 1968, Schapiro rejeita alguma. Dado o fato de Heidegger e Schapiro essa interpretação considerando-a “fantasiosa” estarem de comum acordo, confrontados com a e sugere que a pintura não representa de modo pintura, ambos questionam: “De quem são esses algum um par de sapatos de uma camponesa, mas sapatos?” “A quem eles fazem referência?” “Quem os sapatos do próprio artista, e deve, portanto, eles representam?” Ambos supõem que, se for ser interpretada como (deslocado e metonímico) para interpretar a pintura, eles devem atribuir as autorretrato (o texto de Schapiro, On the still life botas a um ser humano específico, ao qual elas as self portrait as personal object é, desse modo, devem pertencer. Assim, as duas interpretações nova proposição à teoria da natureza-morta incorrem em substituição inicial: de uma pessoa como autorretratismo, desenvolvida a partir de por uma coisa, do animado pelo inanimado, do seus escritos sobre Cèzanne). orgânico pelo inorgânico. Essa substituição não é, 6 Em sua crítica, Nochlin crê ver no texto polêmico de Schapiro não apenas a evidência de sua rara coragem intelectual – qual outro historiador da arte poderia desafiar o maior filósofo de nosso século? –, ela é a interpretação da pintura. Uma vez que a identidade do dono dos sapatos ficou estabelecida, tudo o mais, forçosamente, volta para o lugar. mas também uma vitória da história da arte sobre Por essa via Heidegger e Schapiro atingiram o a filosofia. Descartando o que considera ser jargão objetivo humanista definido por Panofsky para a metafísico, ele registra que, “em empreendimento história da arte: ambos avivaram aquilo que de para dotar a arte de poder metafísico, Heidegger outra forma teria permanecido morto, inerte, sem perdeu contato com aquilo que torna a arte sentido – apesar (ou talvez mesmo por essa razão) importante mais do que com o objeto que ela do fato de que é precisamente essa inércia, essa representa (grifos meus). O grande serviço de ausência de sentido que a pintura parece retratar. Schapiro a seu campo, então, terá sido advogar Ambos procedem não apenas de acordo com o em favor de dar a arte para a história da arte e ao princípio do humanismo, mas do historicismo mesmo tempo afastá-la das mãos do filósofo. 168 entretanto, preliminar à interpretação da pintura – humanista, que deseja não só reconstruir o Existe aqui, entretanto, uma ironia, pois Nochlin passado, mas reanimá-lo e, em última instância, supõe que Schapiro possui a última palavra revivê-lo.8 Tratando a obra de arte como algo nesse debate, ignorando o fato de que o caso inerte, até que o historiador lhe dê um sopro Heidegger-Schapiro fora reaberto dois anos de vida – sentido –, Heidegger e Schapiro antes, por outro crítico pós-estruturalista, Jacques exemplificam o que Derrida identifica como a Derrida, em conferência proferida em Columbia relação compensatória fundamental da história e publicada no ano seguinte em seu livro de da arte com seu objeto, sua tendência de sempre A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 Vincent van Gogh, A Pair of Shoes [ou Old Shoes] 1886, óleo sobre tela, 37,5 x 45cm, Museu Van Gogh, fonte Museu Van Gogh TE M ÁTI CAS | CRAI G O WE N S 169 responder àquilo que se acredita ser a deficiência básica ou ausência existente na obra, que deve, portanto, ser suplementada pela interpretação. Mais ainda, ambos os casos desta restituição – da “verdade” da pintura – efetuam-se de acordo com igual processo de atribuição (dos sapatos a seu dono). Um atributo é sempre uma propriedade. Na pintura e na escultura, atributos são objetos (usualmente inanimados) que pertencem a um sujeito específico e nos permitem estabelecer sua identidade; por essa via, nos permitem alcançar o papel do atributo na análise iconográfica (Panofsky: “se a faca que nos permite identificar São Bartolomeu não é uma faca, mas um sacarolhas, a figura não é São Bartolomeu”). A análise estilística ou formal, porém, refere-se também à atribuição: não é apenas endereçada àquilo que se acredita serem as propriedades intrínsecas das obras; os peritos tratam as próprias obras de arte como atributo que nos permite identificar o artista (ou, menos frequentemente, o período histórico ao qual a obra pertence). No princípio, a história da arte foi concebida como a ciência da atribuição cuja função era resgatar as obras de arte medievais tardias e da renascença vinculando-as a seus autores. Apesar de as obras de arte em sua maioria já terem, até o momento, sido vinculadas aos respectivos autores, a resposta de Schapiro a Heidegger indica que o debate a respeito da atribuição – seja ele de pinturas a seus autores ou de objetos representados a seus supostos donos, mas em ambos os casos a uma pessoa específica – permanece ainda sendo o ponto central da especulação no campo da história da arte. 170 Natureza-morta (...) consiste em objetos que (...) sejam artificiais ou naturais, estão subordinados ao homem como objetos de uso, manipulação e deleite; esses objetos são menores do que nós, ficam ao alcance da mão, devem sua presença e lugar a uma Representação Toda arte é “produção de imagem” e toda produção de imagem é criação de substitutos. E. H. Gombrich, Meditações sobre um cavalinho de pau. não está presente, mas representado na pintura.” Mesmo se nessa passagem Panofsky falha em tratar o problema da representação, não se pode concluir por essa razão, que ele não possua uma teoria da representação. Como seu ensaio Perspectiva como forma simbólica evidencia, ação humana ou propósito. Eles exprimem O que a apropriação da pintura em Heidegger Panofsky define representação como atividade o sentido humano de exercer poder sobre e Schapiro sanciona é uma perspectiva da simbólica, em oposição à cópia da experiência as coisas ao lidar com elas ou utilizá-las. representação como substituição: a imagem é visual (representação como imitação ou ilusão). 9 Nessa passagem, representação se comunica com o poder por meio da posse. Assim, podemos identificar os motivos da história da arte, pelo menos enquanto ela é praticada como disciplina humanística: um desejo pela propriedade, que exprime o sentido do homem de possuir ‘poder sobre as coisas’; um desejo de probiedade, um compromisso com o respeito às relações de propriedade; um desejo do “nome próprio”, designando uma pessoa específica que invariavelmente é identificada como objeto da obra de arte: definitivamente um desejo de apropriação. Pois o debate Heidegger-Schapiro é basicamente uma contestação sobre a propriedade da imagem. Como Derrida observa, ao atribuir as botas a uma camponesa ou ao artista, Heidegger e tratada como dublê ou substituto de alguém que por alguma razão não aparece. Os historiadores da arte sempre tenderam a definir representação desse modo, apesar da asserção de Alpers relativa à falta de um conceito operativo de representação, sendo, assim, incapazes de lidar com obras como As meninas – obras que ela crê serem “autoconscientes e ricas no que se refere a aspectos representacionais para os quais os estudos literários têm estado mais afinados”. Ela atribui essa deficiência – que propõe suprir – ao projeto de história da arte iconológico como formulado por Panofsky na introdução ao Estudos de iconologia, especialmente, à distinção que ele faz entre conteúdo pictórico ou significado de um lado e forma de outro: Schapiro estão na verdade propondo interpretá-las Quando um conhecido me encontra segundo a perspectiva de cada um, pela própria na rua e tira o chapéu, o que eu vejo identificação de um deles com o camponês e do de um ponto de vista formal nada mais outro com o homem cosmopolita. é do que a troca de certos detalhes no Dizer “Esta (esta pintura ou estas botas) refere-se a X” é dizer “isto se refere a mim” pela retomada de “isto se refere a um self [mim mesmo]”. Não só isto é propriedade de alguém, mas também Em outro momento, Schapiro formula os princípios sobre os quais repousa sua atribuição dos sapatos de Van Gogh, e toda sua teoria de natureza-morta como autorretrato; seu vocabulário nos alerta para o que está em jogo “isto é minha propriedade”. Pois entre as muitas aqui (grifei as frases relevantes): identificações de obras de arte aqui mencionadas, não podemos deixar de atentar para a identificação interior de uma configuração formal que faz parte de um padrão geral de cor, linhas e volumes que constitui o meu campo de visão (...) No entanto, minha compreensão de que tirar o chapéu tem relação com um cumprimento está relacionado a um campo de interpretação de outra natureza11 Alpers atribui essa segunda perspectiva a Gombrich, alegando que sua famosa frase “Fazer vem antes de combinar” indica que ele compreende representação como ilusão e, por essa razão, sobretudo como questão de destreza imitativa. No entanto, a citação no início deste texto indica que ele também compreende a representação como atividade simbólica, a criação de substitutos (é isso o que na verdade “fazer antes de combinar” significa). Em Meditações sobre um cavalinho de pau, Gombrich opõe sua própria visão de representação àquilo que ele identifica como a “visão tradicional”: representação como imitação. Ilusão, segundo Gombrich, é algo apenas secundário, que deve ser acrescido ou ultrapassado pela representação, não llhe sendo, porém, de forma alguma essencial. Pode-se demonstrar que a história da arte sempre definiu representação em relação a estas duas atividades – substituição ou imitação – e que elas correspondem perfeitamente ao que em idioma alemão se designa como Vorstellung – representação no sentido de atividade simbólica – e Darstellung – apresentação no sentido de uma apresentação teatral. (Assim, a distinção poderia ser primariamente linguística.) A primeira, ou a relativa ao modo simbólico, é a que se refere à de Heidegger com a camponesa e de Schapiro com o Alpers discorda quando Panofsky transfere o substituição; a imagem é concebida como algo cidadão urbano, o primeiro com o nativo enraizado, resultado desse encontro para a pintura: “O que que ali está em lugar de outro, ou de algo que o último com o desenraizado imigrante”. Panofsky escolhe para ignorar é que o homem foi ali colocado e por essa razão ali permanece A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 10 TE M ÁTI CAS | CRAI G O WE N S 171 como compensação da ausência. A segunda, ou de arte que chamam nossa atenção para suas expressa na instituição da perspectiva monocular intencionalidade), nos sensibiliza para o fato aquela da modalidade teatral, é a que se refere propriedades materiais e através de uma história (a perspectiva é, literalmente, ver através, per- de que a relação do observador com a obra de à repetição; a imagem é definida como réplica da arte que nos ensina a enxergá-las como specere, arte é prescrita, apontada antecipadamente pelo da experiência visual, nela o artista trabalha para combinações mais ou menos harmônicas ou materiais da representação – e precisamente os promover a ilusão do tangível, presença física dos dissonantes de linhas e cores –, que podemos ter traços deixados pelo trabalho do pintor, devido a objetos que ele representa. Assim, os historiadores dificuldade em apreciar o que Foucault e Marin sua atividade transformadora na pintura – devem da arte sempre situaram a representação em identificam como a condição absolutamente ser apagados ou ocultados por aquilo que o pintor termos de polos de ausência e presença, os quais, fundamental da representação, pelo menos como representa, por sua ‘realidade objetiva’”. Assim, como Derrida demonstrou, constituem a oposição foi concebida no século 17: sua transparência quando Foucault e Marin cuidam do problema da fundamental sobre a qual a metafísica ocidental (que não é o mesmo que ilusionismo). No sistema representação visual, eles trabalham para articular está baseada.12 Necessita-se, então, não de um clássico de representação como foi formulado – tornar visível – aquelas estratégias implícitas, conceito de representação (pois já possuímos pelos lógicos de Port-Royal, o signo é inteiramente invisíveis e táticas pelas quais a representação dois), mas de uma crítica a ele. orientado e dependente daquilo que ele significa. alcança sua putativa transparência; nenhum dos não aos problemas de estilo ou iconografia, mas “Ele é característico”, observa Foucault, “tanto dois está interessado no que a representação ao lugar do espectador diante da obra de arte, que o primeiro exemplo de signo oferecido pela revela, mas naquilo que ela oculta. movendo-se dessa forma para o território do Como Gombrich testemunha, esses dois modos de representação estão longe de chegar a conciliarse; os historiadores da arte só têm introduzido o conceito de imitação para rejeitá-lo como não essencial, suplementar, ou até mesmo errôneo. Desse modo, Wolfflin prefacia sua discussão em “Os elementos daquele que ela realmente representa.”14 frequentemente, a apagar esses dois polos em favor da mensagem que apresentam, a pesquisa em história da arte os tem frequentemente negligenciado; Alpers e Fried, entretanto, devem ser incluídos entre os poucos historiadores da arte que recentemente começaram a prestar atenção literários ou da estética da recepção. o símbolo, mas a representação gráfica e espacial a imagem não possui nenhum conteúdo além Em razão de as obras de arte tenderem, desconhecido, seja ele no terreno dos estudos Lógica de Port-Royal não é a palavra ou o grito, ou – o desenho como mapa ou imagem. Isso porque sistema representacional. O lugar do observador Existe, entretanto, pelo menos um precedente Um texto é feito por muitos escritos, no campo da história da arte em razão de sua desenhado por muitas culturas e lançado atenção ao papel do espectador, que é o trabalho a indicação: “Constitui erro para a história da Alegar que a representação é transparente para por mútuas relações de diálogo, paródia, de Leo Steinberg. A sensibilidade de Steinberg em arte trabalhar com a tosca noção de imitação com seu objeto não é defini-la como mimética ou contestação, mas existe um lugar no qual relação ao espectador transparece em toda a sua da natureza, como se isso fosse meramente um ilusionista – mapas, por exemplo, não estimulam produção. Em The philosofical brothel, no qual ele processo de obter mais perfeição.” A imagem a experiência visual. Antes, isso significa que essa multiplicidade está focada e esse lugar é ilusionista é suspeita de fraude, de tentar passar cada elemento da obra de arte é significante, The Most General Representational forms com 13 por algo que não é (a experiência visual direta); isto é, refere-se a alguma coisa que existe, motivados os independentemente da representação. Assim, historiadores da arte tendem a deixar em suspenso “transparência” designa perfeita equivalência ou colocar sob questão o referente; eles trabalham entre a realidade e sua representação; significante para distinguir as imagens dos objetos que elas e significado espelham-se um no outro, um por platônica desconfiança, representam, de modo a restringi-las àquilo que lhes é específico, próprio da representação em si. (Desse modo, Schapiro declara: “Eu não encontro nada na ingênua descrição de Heidegger sobre os sapatos que Van Gogh representa que pudesse ser imaginado a partir de um verdadeiro par de sapatos camponês.”) 172 ‘trans-parência’): simplesmente é o duplo do outro. No entanto, essa transparência só pode ser alcançada através da estratégia da ocultação: por exemplo, a lendária transparência do plano pictórico tal como prescrito em Da pintura, de Alberti, era alcançada pelo apagamento do suporte material da imagem. Assim, Marin escreve a respeito de o leitor, e não, como até aqui foi dito, o autor. Roland Barthes, A morte do autor O homem de Panofsky na rua de fato nos alerta para aquilo que a representação clássica ocultaria, aquilo pelo que alcança a transparência essencial: o fato de pinturas serem mensagens endereçadas ao espectador com a intenção de influenciar suas crenças ou modificar seu comportamento de um modo ou de outro. Elas possuem o que em traça a evolução da obra Demoiselles d’Avignon, de Picasso, o tratamento dado à relação que a pintura causa no espectador repousa no que é, em última instância, uma metáfora linguística: o modo de endereçamento do pintor. Os esquetes iniciais da obra mostram um homem jovem entrando num bordel pela direita; na pintura final, Steinberg comprova, o papel dessa figura, que aparece comandando a cena, foi transferido para o espectador. Assim, o momento decisivo da linguística se denomina um polo de emissão e um criação de Demoiselles, o ponto no qual sua mise polo de recepção; esses dois polos constituem o en scène se arranja, é resultado de uma mudança “aparato representacional” da pintura. Embora da narrativa, ou de um modo de endereçamento esse modelo representacional da prática pictórica na terceira pessoa para outro na segunda pessoa, Estamos tão habituados a essa formulação do uma tradição pictórica específica, que vigora não deixe de ter problemas (em parte porque no qual a pintura ela mesma confronta, na problema da representação – através de obras da Renascença pelo menos até o século 17, parece ressuscitar a desacreditada categoria da verdade, proposições ao espectador. A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 TE M ÁTI CAS | CRAI G O WE N S 173 “Nenhuma outra pintura”, Steinberg registra, ‘então’, que se referem a situações espaciais e mesma maneira que o rei e a rainha estão “(excetuando As meninas) trata o espectador temporais em que os atos discursivos ocorrem. refletidos no espelho distante) somos com comparável intensidade”.15 E, retomando Enunciados aqueles que comandam sua presença. a discussão de Alpers a respeito de As meninas, um falante e um ouvinte, além de apresentar descobrimos situações nas quais “o primeiro busca de algum que ela apresenta a mesma metáfora linguística, ainda que tenha procurado demonstrar, contra Foucault, que elas foram planejadas a partir de tradições pictóricas específicas. Em sua visão, As meninas engaja dois tipos de representação visual, “cada um deles estabelece um modo diferente de relação entre o então pressupõem modo influenciar o último”.16 Enunciados históricos (ou narrativos), por outro lado, são caracterizados pela supressão de toda referência a ambos, falante e ouvinte, como também a situações de elocução espacial e temporal. Essa circularidade, conclui Alpers, consiste no que torna tão “extraordinário” As meninas. Marx, A contribution to the Critique of Hegel’s Philosophy right17 Em Outros critérios, Steinberg descreve As meninas como um “inventário das três possíveis Posto isso, onde a interpretação repousa? Será funções que se pode distinguir em relação ao essa circularidade entre observador e observado plano pictórico” – janela, espelho e superfície o que verdadeiramente define a originalidade que pintada –, exibidas em sequência na parede de Velázquez alcança em sua pintura? Isso dá conta fundo do estúdio de Velázquez no palácio. Esses adequadamente da especificidade de As meninas? três elementos – o primeiro e o último deles espectador e a visão de mundo ali expressa”. A Para [Benveniste E se se pudesse demonstrar que essa combinação reiterados na janela implícita e tela invertida que caracterização inicial de Alpers desses dois modos escreve], é necessário e suficiente que o de dois modos antitéticos de representação- figuram na cena teatral – representam as múltiplas é tributária das polaridade há muito existentes autor permaneça fiel a sua intenção como enunciação não fosse peculiar a As meninas ou funções apresentadas na própria superfície de As na história da arte. O primeiro modo está no Sul, historiador e abandone o que é exterior à ainda a Velázquez, mas existisse também em meninas: uma janela através da qual percebemos exemplificado pelas convenções de perspectiva narração dos eventos (discurso, reflexões a cena e o espelho através do qual ela é percebida de Alberti: “O artista se presume no lugar do pessoais, comparações)... Os fatos são outras pinturas do século 17? E se isso não fosse espectador na frente do mundo pintado” – isto descritos é, tanto fora quanto antes dele. O segundo modo da maneira como vão gradualmente está no Norte, é descritivo; o mundo oferece aparecendo no andamento da história. imagens dele mesmo (como num espelho ou Ninguém está falando aqui. Os eventos câmera escura) “sem a intervenção da mão parecem narrar a si mesmos. humana”, e assim “é concebido como se existisse que haja do narração modo que ocorreram, peculiar só à pintura, mas também compartilhada pela literatura? (De fato, Marin demonstra que as regras da gramática e da lógica, como formuladas no século 17, atribuem a coexistência desses dois modos aparentemente incompatíveis em qualquer elocução.) E se, finalmente, essa Embora Alpers não reconheça essa correspondên- circularidade que Alpers encontra em As meninas cia, ela prossegue lendo As meninas como combi- definisse em última instância o que Foucault Quando, porém, Alpers reitera a diferença entre nação – “de uma forma encantadora, porém fun- chama de episteme clássica – o horizonte no esses dois modos numa só frase, a metáfora damentalmente instável e insolúvel” – desses dois qual todo o conhecimento está encerrado, o linguística vem à superfície: “O artista diante modos de representação-enunciação. Assim ela limite que circunscreve aquilo que foi possível do primeiro tipo de pintura declara ‘eu vejo o propõe que a relação do observador com a cena dizer, representar, e mesmo pensar no século 17? mundo’; diante do segundo, antes de tudo, representada é profundamente paradoxal. Então a conquista de Velázquez não poderia mais antes do artista-espectador”. mostra que ‘é visto’.” A distinção de Alpers corresponde perfeitamente à distinção que Émile Benveniste faz entre enunciado discursivo e histórico (ou narrativo) (discours/histoire) em sua obra Problems of General Linguistics [Problemas de linguística geral]. Benveniste divide a linguagem em dois “sistemas enunciativos”. O primeiro, da ordem do discurso, é caracterizado pelo uso de pronomes na primeira e segunda pessoas, além de formas adverbiais como ‘aqui’, ‘lá’, ‘agora’, e 174 discursivos o dono da propriedade privada é o rei. O mundo observado que é anterior a nós é precisamente o que, ao olhar para fora (e aqui o artista se junta à princesa e a parte de seu séquito) nos confirma ou reconhece. Mas se nós não chegamos visto não terá sido definida em primeiro nos lembra, entretanto, que “os interiores do séulo 17 em geral justapõem o vão de uma porta aberta ou visada de uma janela com a moldura de uma pintura e, próximo a elas, um espelho preenchido por algo que está ali refletido.”18 Essa caracterização da pintura como “inventário”, desse modo, contradiz a qualificação que Alpers atribui a Velázquez “encantadora porém fundamentalmente instável e insolúvel”. O que Alpers identifica como específico dessa pintura Steinberg toma como aquilo que em geral é típico da pintura do século 17. ser descrita como combinação original de dois Segundo Marin, a coincidência numa única obra modos distintos de representação, mas como de arte dos mesmos dois modos aparentemente o desdobramento, na superfície de sua tela, do incompatíveis – pintura como janela e como próprio sistema clássico de representação – que é espelho – não é apenas típico, mas o próprio o que Foucault lhe tem atribuído todo o tempo. fundamento sobre o qual o sistema clássico de representação foi erigido. Assim, ele define seus a nos posicionar diante desse mundo e perscrutá-lo, a antecedência do mundo (pelo pintor representado dentro dela). Steinberg “axiomas contraditórios”: Representação e propriedade (1) A superfície representacional é uma janela lugar. Na verdade, para fechar-se, o mundo Tomando o povo como sua propriedade transparente através da qual o espectador, visto está diante de nós porque nós (da privada, o rei está apenas declarando que homem, contempla a cena representada na tela A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 TE M ÁTI CAS | CRAI G O WE N S 175 como se visse uma cena real representada no do nosso – a coisa real e a sua pintura – o espelho o status (ontológico e epistemológico) do objeto mundo; (2) mas, ao mesmo tempo, a superfície – revela como idênticas, como se fosse patente o de representação. Pois se, no primeiro axioma, a na realidade uma superfície e um suporte material fato de que a obra de arte na tela espelhasse a representação é atribuída a uma pessoa específica – é também um aparato refletor no qual objetos verdade que a capacidade de reflexão de nenhum que “se apropria de coisas, da realidade como algo reais são pintados. espelho pode ultrapassar. Nesse sentido, As seu, sua realidade”, o segundo axioma demonstra meninas pode ser considerada responsável por que “essa pessoa não está situada no tempo e celebrar a verdade da arte do pintor”). no espaço com toda as suas determinações, mas O primeiro axioma, pintura-como-janela (equivalente ao que Benveniste denomina nível atua como um espírito universal e abstrato cuja discursivo), atribui a imagem a um tema humano A fim de exemplificar como esses axiomas específico – o “olho/eu” que ocupa o ponto contraditórios de vista privilegiado no sistema de perspectiva pintura, Marin sintetiza a observação de Benveniste monocular – que tem sido substituído por coisas; de que elocuções históricas são caracterizadas sua representação desse sujeito pode então pela supressão de todos os indícios de emissão No sistema clássico de representação, então, tomar a representação como sua, como um e de recepção com a hipótese de Freud de que o objeto da representação é suposto como dos modos de sua visão, de seu pensamento. toda negação na verdade constitui uma (forma absolutamente soberano. Em outras palavras, a Entretanto, no segundo axioma, pintura-como- mascarada de) afirmação. Quando um paciente pessoa que representa o mundo foi transformada, espelho (equivalente ao nível histórico) esse diz “você me perguntou quem poderia ter sido pelo ato da representação, de um ser subjetivo sujeito observador desaparece, e o mundo, essa pessoa no sonho. Não era minha mãe”, enredado no espaço e no tempo – pelos quais é de por essa razão parece representar a si próprio Freud comenta, “nós emendamos: ‘Então ela era certo modo possuído – em Mente transcendente sem a intervenção de um artista. O segundo sua mãe’”.20 e objetiva que se apropria da realidade para si axioma, então, postula perfeita equivalência entre realidade e representação, de modo que as representações “possam ontologicamente podem coexistir numa única Assim, Marin deduz aquilo que ele chama de “estrutura-negação” da representação clássica: aparecer de modo semelhante às coisas que elas A tela como suporte e como superfície não representam, ordenadas num discurso racional e existe. Pois pela primeira vez na pintura universal, o discurso da realidade em si”. É através [Marin está discutindo a construção da da supressão de toda evidência do aparato perspectiva em Brunelleschi] o homem de representação, então, que é assegurada a encontra o mundo real. Mas a tela reivindicação do clássico status autoritário da como suporte e sua superfície existem representação, para operar a duplicação da realidade: de possuir alguma verdade ou valor epistemológico. (O papel do espelho em estabelecer valor de verdade da representação pictórica é também discutido por Steinberg numa conferência sobre As meninas, escrita em 1965 e apresentada muitas vezes, porém só recentemente publicada: “Descobrimos que o plano de visão cumulativo de 176 19 única função é fazer juízo das coisas e afirmá-las.” (Na teoria política clássica, é claro, essa função era atribuída somente ao rei, o juiz imparcial e universal.) mesma e, por apropriar-se dela, a domina. Assim Marin descreve essa operação: Podemos compreender esse processo como aquele no qual um sujeito inscrevese a si mesmo como o centro do mundo e transforma-se em coisas pela transformação de coisas em sua própria representação. Tal pessoa tem o direito de possuir as coisas legitimamente porque substituiu por coisas os seus signos, que a representam adequadamente – portanto, dessa maneira, a realidade equivale exatamente a seu discurso. a tela como tal é simultaneamente pressuposta e neutralizada, ela tem de ser técnica e ideologicamente aceita como transparente. Invisível e ao mesmo tempo a condição necessária da visibilidade; refletir a transparência em teoria define o plano de representação. A representação é, então, definida como apropriação e, desse modo, se constitui como aparato de poder. A análise de Marin acaba aqui; o tratamento que ele dá à representação Velázquez configura duas coisas distintas como Essa simultânea afirmação e negação do aparato clássica pode, entretanto, estar delimitado à uma única: o que o rei e a rainha enxergam do representacional assegura a transparência da vida social e econômica do século 17, a fim de lugar em que se encontram e o que nós vemos representação clássica e, ao mesmo tempo, define evidenciar a função essencialmente política à A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 qual a representação serve. Não devemos supor que apropriação equivale automaticamente à propriedade apesar da famosa definição de Locke de 1960: “Qualquer um que retire do Estado algo que a natureza proveu e tome para si acrescentando-lhe algo que seja seu, por meio disso, torna-o sua propriedade.”21 Antes de Locke, entretanto, os conceitos de apropriação (Labor) e propriedade eram mutuamente exclusivos: propriedade era adquirida através de herança, conquista ou divisão legal, mas nunca através de trabalho (associado não à propriedade, mas à pobreza).22 A ideia de Locke de que o homem tem direito natural à propriedade criada por seu trabalho foi assim uma formulação radical e certamente não corresponde à realidade econômica e política do século 17. No modo feudal de produção, o trabalhador não tinha nenhum direito legal de usufruir de seu próprio trabalho, o que cabia ao dono da terra. Ter a propriedade da terra equivalia a ter poder político; a economia e a política eram inextricavelmente entrelaçadas.23 Entretanto, nas monarquias absolutas que emergiram do modo feudal de produção para dominar a Europa do século 18 – e eram por isso contemporâneas ao sistema clássico de representação – os interesses políticos e econômicos eram, pelo menos teoricamente, distintos.24 A principal característica do estado absolutista foi ter restabelecido a lei romana, que rigorosamente distinguia os direitos econômicos determinados pela propriedade privada da autoridade absoluta investida pelo Estado. A lei civil romana (jus) que regulava as transações econômicas entre os homens, era baseada no caráter absoluto e incondicional da propriedade privada; a lei pública romana (lex), entretanto, que regia as relações políticas entre o Estado e seus súditos, contrabalançava o caráter incondicional da propriedade privada com a natureza formalmente absoluta da soberania imperial. TE M ÁTI CAS | CRAI G O WE N S 177 Ao reviver a lei romana, os Estados absolutistas abstrato, verdade universal. E não existia verdade sujeito da cena de representação é reconhecido, criou seu programa junto à frase “Et in Arcadia ego” do início da Europa moderna reintroduziram a mais universal do que o fato, indiscutível na Foucault supõe, dentro da própria pintura pelo (a autoria de Rospigloisi é reconhecida, argumenta separação entre as esferas econômica e política: ideologia da regra absolutista, de que a supremacia fato de que só pelo lado reverso da tela, no qual Marin, dentro da própria pintura pelo fato de o dedo o poder foi consolidado numa monarquia central, absoluta do soberano é conferida por Deus. seu retrato presumivelmente aparece, é visível indicador do pastor que tenta decifrar a inscrição da pelo espectador de As meninas”. tumba apontar para a letra “r” na palavra Arcadia” cuja soberania era absoluta; ao mesmo tempo, títulos de propriedade da aristocracia feudal ganharam força. O mesmo processo histórico que reduziu o poder político da aristocracia então, compensou essa perda garantindo- lhe ganhos em propriedade sem precedente. Essa foi a contradição principal sobre a qual a estrutura social do Estado absolutista se assentou – contradição que em última instância o levou à queda. A soberania absoluta do rei deu-lhe o poder de anular os privilégios medievais e ignorar os direitos de propriedade tradicionais; paradoxalmente, foram esses privilégios e direitos que ganharam força com a ascensão do absolutismo. Como consequência, a história do Estado absolutista é acima de tudo a história do conflito entre a monarquia e a aristocracia pelo poder político. Em Tristes trópicos Claude Lévi-Strauss propõe que as obras de arte possam ser interpretadas como soluções imaginárias de contradições sociais reais;25 o sistema clássico de representação é de fato constituído dessa forma, de modo a precisamente facilitar essa solução. Contraditórios entre si, seus dois axiomas reproduzem os dois polos antitéticos – propriedade/soberania – o que define as contradições sociais que atravessam o Estado absolutista. Na representação clássica, 178 É importante mencionar que os princípios feudais que é também a letra central da inscrição e está de domínio territorial e, com eles, o poder político Além disso, seguindo a hipótese de negação- investido na propriedade da terra persistiram estrutura de representação clássica, a elisão do mais fortemente durante a época do absolutismo objeto de representação deve também significar Tampouco o espectador de As meninas usurpou o na Espanha, onde, em última instância, eles sua afirmação. Pois apesar de a pessoa em razão lugar do rei; para isso nós teremos que esperar até contribuíram para o colapso da dinastia dos da qual a representação existe nunca poder ser o final do século 18, quando as regras absolutistas Habsburgo.26 E, agora, talvez possamos começar encontrada na própria representação, Foucault serão dissolvidas e o homem, como nos fala a compreender as implicações das colocações acredita que ela de qualquer modo ali se reconhece Foucault na mais audaciosa hipótese apresentada de Foucault a respeito de As meninas bem no de modo deslocado, na forma de uma imagem ou em A ordem das coisas, fará sua primeira aparição início de sua análise da episteme clássica, tanto reflexo”.27 E de fato, em As meninas a figura que no palco da história. O que nos é oferecido a quanto de sua enigmática asserção de que a ocupa a posição de observador privilegiado – e contemplar em As meninas está delimitado, pintura de Velázquez representa a ausência de cujo olhar portanto precede o do pintor – está circunscrito pela visão do rei; nós vemos nem mais um sujeito na representação – “da pessoa com a refletida na própria pintura pelo espelho que nem menos do que ele vê (é isso, eu acredito, qual a imagem se assemelha e da pessoa em cujos rompe a continuidade da parede do fundo da que Foucault quer dizer quando declara que As olhos a imagem é apenas uma semelhança”. Em pintura de Velázquez do estúdio no Palácio. O meninas descreve os limites da representação As meninas esses dois objetos tornam-se invisíveis espelho não apenas estabelece a identidade da clássica.) De fato, a pintura atua como armadilha para coincidir. pessoa que ali está; ele também define o ponto para o olhar do espectador, o qual é convocado que ele ocupa como soberano absoluto. Pois ali pelos olhares do pintor e da princesa, apenas para está, como indica o subtítulo de um dos capítulos ser sujeitado, através deles, ao olhar do rei. A pintura, claro, está focada num ponto central – definido pela arquitetura dos gestos e dos olhares que atravessam e tornam implícita a localizada no exato centro geométrico da pintura.) seguintes de Foucault, “O lugar do rei”. construção perspectivada do espaço –, que é Embora esse ponto central do quadro também claramente ocupado pela pessoa para a qual a pudesse ser ocupado pelo pintor, posicionado cena existe, que pode tomar essa representação na frente de As meninas para pintá-la, e pelo O princípio de realidade, ao demonstrar como sua (essa pessoa é também o modelo cuja espectador que contempla a imagem, nem o que o objeto do desejo não existe mais, imagem Velásquez presumivelmente traçou na artista e nem o espectador poderiam usurpar requer que doravante toda a libido seja tela antes de pintar). Esse ponto focal da pintura, o privilégio e o poder que pertencia somente afastada de sua ligação com esse objeto. no entanto, não está propriamente inserido na ao soberano. Pois a pintura não representa a Contra essa pretensão um conflito ocorre Modernidade lamuriante pintura, mas lhe é externo – como deve ser se as visão do pintor e sim a do rei; Velázquez parece observa-se de modo universal que o essa autonomia é resolvida através da dialética da observações de Marin sobre a posição do objeto ter abdicado de seu próprio papel de autor da homem nunca abandona voluntariamente afirmação e negação, pela qual as reinvindicações de representação clássica estiverem corretas. imagem, em favor da autoridade superior que o a posição-libido, nem mesmo quando um conflitantes por propriedade e soberania são Pois se, através da representação, o objeto é sustenta e sua arte. Na realidade, não precisamos substituto já o convida. forçadas a coincidir. Pois o axioma que define transformado em algo abstrato, uma mente identificar Filipe IV como derradeiro “autor” de representação como propriedade de um indivíduo transcendente “cuja única função é julgar as coisas As meninas, tanto quanto Marin, no caso de The Freud, Mourning melancolia específico depende, para sua legitimação, daquilo e afirmá-las”, então ele nunca pode aparecer Arcadian Shepherds, conferiu não a Poussin, mas que qualifica representação como a expressão do em sua própria representação (essa ausência do ao cardeal Rospigliosi, que comissionou a pintura e A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 A discussão de Marin sobre a estrutura-negação da representação clássica não foi introduzida TE M ÁTI CAS | CRAI G O WE N S 179 no MLA por Alpers, mas por Michael Fried, cujo emergiu como problemática para a pintura como categoricamente rejeita? A resposta de Fried sem Isso não significa dizer que a pintura trabalho recente também foi dedicado às relações nunca tinha ocorrido antes”. Não surpreende, dúvida seria que mesmo essa condição só se não tenha essência; é propor que essa pintura/espectador – mas em ciscunstâncias então, que ele pudesse acusar de “a-histórica” torna “primordial” quando concebida no final essência, isto é, aquilo que compele à históricas radicalmente diferentes. Em seu livro a hipótese de Marin, alegando que seu uso do século 18 (a reflexão de Benjamin a respeito convicção, é de modo geral determinado, Absortion and theatricality Fried investiga o da distinção estruturalista história/discurso de do valor de culto das obras de arte primitivas, que e as mudanças estão aí sempre para papel do espectador no final do século 18, isto é, Benveniste seria indicativo de busca de um não eram destinadas à exibição, em seu trabalho comprová-lo, pelas principais obras do precisamente no momento em que a transparência operador trans-histórico [transhistorical operator] A obra de arte na época da reprodutibilidade passado recente. A essência da pintura da representação clássica e, com ela, sua pretensão que viria a definir a “essência” da pintura histórica. técnica, poderia embasar esse argumento.) Mas não é algo irredutível.31 à verdade foram perdidas. Como observa Jean (Aqui, Fried apenas reitera a agora tão familiar como pode uma convenção ser ao mesmo tempo Clay em seu livro recente Romanticism, no acusação de que o estruturalismo é a-histórico; primordial e histórica, e por que o tratamento final do século 18 a “transparência [do plano entretanto, a análise da estrutura social do Estado que Fried confere às convenções representativas pictórico] começou a tornar-se opaca, a superfície absolutista demonstra o caráter histórico da do século 18 seria mais histórico do que a [representacional] se consolidou, o véu [de Durer] análise de Marin.) discussão dessas mesmas convenções como eram contraiu sua malha.28 Como observa Foucault, “O limiar entre o classicismo e a modernidade (...) concebidas no século 17? quando uma figura ou grupo de figuras numa O ceticismo de Fried com relação à existência de pintura olha para o observador, como se percebesse todas essas constantes pode ser remetido àqui- sua presença diante da tela (como em As meninas), lo que ele esboçou em suas críticas do final dos é o aparato representacional que está sendo anos 60, especificamente às notas de rodapé reconhecido. Esse reconhecimento, argumenta que complementam o texto “Arte e objetidade”, Entretanto o tratamento que Fried oferece ao Fried, também é historicamente determinado; um ataque à escultura minimalista recorrente- problema do espectador no limiar da modernidade cita como evidência a análise da recepção da obra mente citado. é bastante similar à discussão de Marin sobre esse Fils ingrat (1777), de Greuze, como realizada pela problema no século 17: crítica contemporânea, na qual a presença de um foi definitivamente cruzado quando as palavras deixaram de se remeter às representações e proporcionar um quadro espontâneo para o conhecimento das coisas”. 29 O reconhecimento de que as pinturas são feitas para ser vistas [escreve Fried] e por essa razão pressupõem a existência de um observador leva a buscar a atualização de sua presença (...) Ao mesmo tempo (...) menino, que parece olhar para fora da tela em direção ao espectador, não foi interpretada como algo que interrompe a continuidade narrativa da pintura. Mas quando Marin observa que, em The Arcadian Shepherds, de Poussin, ninguém parece se dirigir diretamente ao espectador – “exceto pela parece, pelo menos inicialmente, coincidir com a percepção de Nietzsche – que tem sido crucial para o trabalho de Foucault desde 1970 – de que aquilo que permanece por trás das coisas “não é uma linha do tempo ou essência secreta, mas o segredo de que as coisas não possuem essência ou a essência delas foi fabricada como colcha de retalhos a partir de formas exteriores”.32 Enquanto ambos, Nietzsche e Foucault, apresentam a essência como “invenção das classes dominantes”, ou seja, como instrumento de poder, Fried os neutraliza Nessas notas de rodapé, Fried emenda a asserção quando alega que ela só se transforma em de Clement Greenbereg de que “a essência “relação às obras importantes do passado”. irredutível da arte pictórica consiste em apenas Embora os três autores, ao que parece, partam duas convenções constitutivas ou normas: a da mesma hipótese, então, a tentativa de Fried planaridade e a delimitação da planaridade”. de preservar a categoria de essência tentando Admitindo que “em termos gerais isso é indubitavelmente correto”, Fried continua: historicizá-la é o antípoda do esforço de Foucault em destruí-la. será sempre pela negação da presença do existência da pintura e o fato de estarmos olhando (...) a planaridade e a delimitação da observador que isso poderá ser alcançado: para ela, nada na mensagem icônica adverte sobre planaridade não devem ser pensados como só quando se estabelece a ficção de sua sua emissão ou recepção; ou seja, nenhuma figura ‘essência irredutível da arte pictórica’ mas ausência ou não existência é que o lugar está nos olhando como espectadores, ninguém se traçar a genealogia de sua posição crítica antes como algo semelhante a condições dele diante da pintura e de encantamento remete a nós como representante do emissor da dos anos 60 – desenvolvida para embasar a mínimas para que algo possa ser visto com relação a ela pode ser assegurado.30 mensagem” – Fried objeta que Marin não dá atenção obra de pintores como Frank Stella e Morris como pintura (...) a questão crucial não é Louis (e escultores como Anthony Caro) e o que essas condições mínimas e, pode- para repudiar como teatral o trabalho dos se dizer, atemporais são, mas o que, em escultores minimalistas, os quais Fried via como Fried argumenta, entretanto, que foi apenas “por volta do final do século 18’’ e só na França que “a 180 Fried questiona a suposição de Marin de que, A busca de Fried de um historicismo radical ao que Marin enxerga como “a condição primordial de que pinturas são feitas para ser contempladas”. Na verdade, o recente projeto histórico de Fried tem caráter de restauração, preocupada em existência do observador − a principal condição Como, principal” determinado momento, é capaz causar representativos de um abandono, na verdade, de as pinturas terem sido feitas para ser vistas − difere do operador trans-histórico que Fried convicção, de triunfar como pintura. uma perda dos ideais modernistas de pureza e A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 porém, essa “condição TE M ÁTI CAS | CRAI G O WE N S 181 presentificação. Alienado dos desenvolvimentos subsequentes no campo da arte, Fried abrigou-se na história; e uma das principais características de seu trabalho recente é a tentativa de proclamar Diderot – que também condenava como teatral muitas das obras de seu tempo – moderno. A maioria das obras de arte lida com imagens, O que o trabalho de Fried lamenta, na verdade, é a morte do modernismo. O pós-modernismo – como o pós-estruturalismo – é uma crítica à representação, especialmente porque foi concebido a partir do modernismo. “A formulação conhecimento existente. Assim, a pretensão de Diderot, nesses escritos críticos e teóricos sobre arte, em virtude da simultânea afirmação e negação da presença do observador diante da obra de arte, permanece como talvez o último grande argumento da teoria da representação clássica. Surgindo no crepúsculo da ordem clássica, essa pretensão aparece como tentativa conservadora de tornar a contemplação, nas palavras de Fried, “uma vez mais, uma forma de alcançar a convicção e a verdade”. A própria posição de Fried no crepúsculo da modernidade é equivalente à de Diderot relativa Revisão técnica Cezar Bartholomeu fotográfico ou cinemático. A fotografia e o filme, baseados como o são na perspectiva com único ponto de vista, são meios transparentes; sua NOTAS The Reader in the Text, org. Suleiman and Crosman. imagens trabalham para desmascará-las como como ‘figuração’, uma dialética da letra e do Princeton: Princeton University Press, 1980:293-324. instrumentos de poder; investigam as mensagens espírito, uma ‘linguagem pictórica’ (Vorstellung) Todas as demais citações de Marin foram retiradas ideológicas ali codificadas, mas também, o que dessa fonte. que encarna, expressa e transmite verdades de é ainda mais importante, as estratégias e táticas outro modo inexpressáveis”. O pós-modernismo, pelas quais essas imagens asseguram seu status por outro lado, é caracterizado por sua “decisão autoritário em nossa cultura. Pois, se essas imagens de usar a representação contra ela própria, de se apresentam como instrumentos efetivos de modo a destruir o vínculo ou o status absoluto persuasão cultural, então sua materialidade e 2 Freud, Sigmund. Negation. Trad. Joan Riviere, in de qualquer representação.” Assim, Jameson suporte devem ser apagados para que, nelas, a General Psychological Theory. New York: Collier, distingue obras modernistas das não modernistas própria realidade pareça tomar a palavra. Por meio 1963:214. Primeira edição 1925. precisamente tendo em conta “a relação delas da apropriação, da manipulação e da paródia, para com aquilo que ele chama de ‘verdade- esses artistas trabalham para tornar visíveis os contenciosa’ da arte, sua alegação de possuir alguma verdade ou valor epistemológico”.34 Jameson surpreender que o conservadorismo de Diderot (modernistas) de Syberberg dos filmes (pós- fosse algo que Fried preferiria reprimir. Pois modernistas de Godard. Nas artes visuais, conforme seu próprio trabalho prossegue – Fried a crítica pós-modernista da representação passou de Diderot e David a Courbet – mais e trabalha usando procedimento similar para mais se assemelha ao trabalho do luto tal como minar o status referencial do imaginário descrito por Freud: visual e, desse modo, sua alegação de que grande empenho de tempo e concentração representação terminologia religiosa que define representação ao fim da ordem clássica; assim, não é de A tarefa é levada à frente passo a passo, com de Visual Arts: Poussin’s The Arcadian Shepherds, in clássica, disso modos criticamente. Os artistas que lidam com essas pondera Frederic Jameson, “[foi] emprestada da evidência dos é óbvia, e ainda estão por ser investigados modo convincente encerra Diderot na ordem como documental 1 Marin, Louis. Towards a Theory of Reading in the modernista ao problema da representação”, oferecendo transmitidas pela mídia, que exploram o status Tradução Cíntia Moreira derivação do sistema clássico de representação Em A ordem das coisas, entretanto, Foucault de seu projeto de uma Enciclopédia de todo o está distinguindo os filmes representa a realidade como de fato é, quer seja a face aparente das coisas (realismo) mecanismos invisíveis pelos quais essas imagens asseguram sua suposta transparência – uma transparência que deriva, como na representação clássica, da aparente ausência de um autor. Portanto, quando Fried – e Alpers – tentam repudiar a obra de escritores como Marin e Foucault, eles também atestam a distância existente entre a história da arte e a prática artística contemporânea. Isolados não apenas do (Outro tabalho de Marin foi publicado em português: Sublime Poussin. trad Mary Amazonas Leite de Barros. São Paulo: Edusp, 2000. Clássicos 20[N.T]) (Em português: Freud, Sigmund. A negativa, 1926. v. XIX. In Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996 [N.T.]). 3 A informação mais esclarecedora das implicações políticas da crítica de Derrida e Foucault pertence a Said, Edward. The Problem of textuality: two examplary positions, Critical Inquiry n.4 (Verão 1978), reimpresso in Aesthetics Today, org. Philipson and Gudel. New York: NAL, 1980:89. mais significativo corpo da crítica presente, mas 4 In Foucault, Michel. Language, Counter-memory, em grande medida também de sua arte, a história Practice, org. Donald F. Bouchard. Ithaca: Cornell da arte tem negado a si mesma qualquer conexão University Press, 1977:92. ou alguma ordem ideal existente escondida com os dias de hoje – o que constitui, como a existência do objeto perdido continua sob ou além da aparência (abstração). Os Walter Benjamin entendia, pré-requisito absoluto na mente. Cada uma das memórias e artistas pós-modernistas demonstram que essa para qualquer investigação histórica. Perdendo esperanças que vinculam a libido ao objeto “realidade”, concreta ou abstrata, é ficção, essa conexão, a história da arte cai no estudo da afloram e são fortalecidas, e o afastamento produzida e sustentada exclusivamente por sua antiguidade – o que pode ser, enfim, o destino da (Em português: Heidegger, Martin. A origem da obra de sua libido é consumado. representação cultural. história da arte na pós-modernidade. de arte. Lisboa: Edições 70, 1990:25-7. Coleção: de energia, enquanto durante todo o tempo 33 182 Post script: Pós-modernismo A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 35 5 Heidegger, Martin, The origin of the Work of Art, in Poetry, Language, Thought, trad. A. Hofstadter. New York: Harper & Row, 1971:33-34. TE M ÁTI CAS | CRAI G O WE N S 183 Biblioteca de Filosofia Contemporânea [N.T.]) 6 Schapiro, Meyer. The still life as personal object : a (Em português: Manuscritos economico-filosóficos 32 Foucault, Michel. Nietzsche, Genealogy, History. coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2000 [N.T.]) de 1844. Trad. Maria Antônia Pacheco. Lisboa: In Language, Counter-memory, Practice, op. cit.:142. note on Heidegger and Van Gogh. In: The reach of 15 Steinberg, Leo. The philosophical brothel. mind: essays on memory of Kurt Goldstein. org. M.L. Artnews, set. 1972:20 Simmel. New York: Springer, 1968:206-208. 7 Derrida, Jacques. La vérité en peinture. Paris: Flamarion, 1978:291-436. 16 Benveniste, Émile. Problèmes de linguistique générale. Paris: Gallimard, 1966:242. (Em português: Problemas de linguística geral II. Tradução de Eduardo Guimarães et al. Campinas: sobre filosofia da história, caracterizar o método Editora Pontes, 1989 [N.T.]) historiadores que desejavam reviver uma época, Fustel de Coulanges recomenda que apaguem tudo o que sabem sobre a fase da história que lhes precede.” Illuminations. Trad. Harry Zohn. New York: Schocken, 1969:256. 9 Schapiro, Meyer. The apples of Cézanne. In Modern Art: Selected Papers. New York: Braziller, 1978:19. 10 Derrida, op. cit.:297. 11 Panofsky, Erwin. Studies in Iconology. New York:Harper & Row, 1962. (Em português: Panofsky, Avante, 1993 [N.T.]). 24 Esse parágrafo e o seguinte são baseados em 8 Apesar de Walter Benjamin, em seu trabalho Teses com o qual o materialismo histórico rompeu, “A Perry Russell. Lineages of the absolutism state. Londres: NLB, 1974. 25 Lévi-Strauss, Claude. Tristes tropiques. Trad. John Russell. New York: Atheneum, 1971:176-180. Recentemente, Frederic Jameson propôs aplicar o esquema de Lévi-Strauss à produção cultural em immerse: Hans-Jürgen Syberberg and Cultural Revolution. October, v.17, Cambridge, Summer, 1981:99-118. 35 A respeito da realidade como efeito de org/portugues/marx/1844/criticafilosofiadireito/ trópicos, trad. Rosa Freire de Aguiar, São Paulo: significação, ver Jean Baudrillard, For a critique of the index.htm [N.T.]. Companhia das Letras, 1996 [N.T.]). political economy of the sign Trad. Rosen. St Louis: 18 Steinberg, Leo. Other criteria. In Other criteria. 26 Anderson, Perry. Lineages of absolutist state. N.J. New York: Oxford University Press, 1972:73-74. London: Atlantic Highlands, Humanities Press, Fall (Em português: Outros critérios. Tradução Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2008 [N.T.]) 19 Steinberg, Leo. Velazquez’s Las Meninas. October, v. 19, Cambridge: The MIT Press, Winter 1981:52. 27 Foucault, Michel. The order of things: 308. A citação completa: “No pensamento clássico, o personagem para o qual a representação existe, e que se representa lá, reconhecendo-se como imagem representação na forma de uma imagem ou mesa, 1963:213. Primeira edição 1925. nunca será encontrado na própria mesa. propõe sua dissolução. Ver Derrida, Jacques. (Em português: Freud, Sigmund. A negativa, 1926. 28 Clay, Jean. Romanticism. Trad. Owens e Wheller. Grammatology, Trad G.G. Spivak. Baltimore: Johns v. XIX. In Edição Standard Brasileira das Obras New York: Vendome, 1981:25. Hopkins University Press, 1976. Pasim. Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, (Em português: Derrida, Jacques. Gramatologia, São 1996 [N.T.]). Paulo: Perspectiva, 1973 (1. ed. 1967) [N.T]). 21 Locke, John. Two treatises of Government. New 13 Wölfflin, Heinrich. Principles of Art History. York: NAL, 1963:329 (1a. ed. 1689). Reimpresso em Spencer, org., Readings in Art History. 22 Ver Hannah Arendt. The Human condition. Chicago: University of Chicago, 1958:109ss. Telos, 1981. 1974:60-84. ou reflexo, aquele que amarra tudo com o laço da 14 Foucault, Michel. The order of things. New York: 34 Jameson, Frederic. In the destructive element University Press, 1981:77ss. (Em português: Tristes in General Psychological Theory. New York: Collier, da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2006 [N.T.]) Completas. Rio de Janeiro: Imago, v. XIV [N.T.]). disponível em português em http://www.marxists. arte do renascimento. Lisboa: Estampa, 1995 [N.T.]) (Em português: Conceitos fundamentais da história (Em português: O luto e a melancholia. In Obras geral; ver The political unconscious. Ithaca: Cornell 20 Freud, Sigmund. Negation. Trad. Joan Riviere, New York: Scribners, 1969, v.II:157. 33 Freud, Sigmund. Mourning and melancholia. In General psychological theory, op. cit.:166. 17 Crítica da Filosofia do Direito, de Hegel, introdução Erwin. Estudos de iconologia: Temas humanísticos na 12 Derrida não só apresenta essa oposição; ele 184 Pantheon, 1971:64. (Em português: A ordem das 29 Foucault, Michel. The order of things:304. 30 Fried, Michael. Absorption and Theatricality. Berkeley: University of California Press, 1980:103. Craig Owens foi teórico no campo da cultura contemporânea, editor de periódicos especializados em arte, professor e historiador da arte nas universidades de Yale e Bernard. Esteve ligado ao movimento pós-modernista nas décadas de 1970 e 1980, período em que publicou artigos sobre fotografia, alegoria, feminismo, política homossexual, mercado de arte e psicanálise. 31 Fried, Michael. Art and objecthood. Artforum, New Depois de falecer de Aids aos 39 anos, em 1990, York, 1967. Reedição in Philipson e Gudel, orgs., Aesthetics alguns de seus escritos foram publicados em forma today. New York: New American Library, 1980:235. (Em de coletânea. O texto é capítulo do livro Beyond Economic and Philosophical português: Arte e objetidade, Arte&Ensaios, n.9, Rio de recognition: representation, power and culture. Manuscripts. In Early Writings Trad. Livinsgstone and Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Artes visuais / Org Scott Bryson et al. California: University of Benton, New York: Vintage, 1975:279-400. Escola de Belas Artes, UFRJ, 2002 [N.T.]). California Press, 1994. 23 Ver Karl Marx. A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 TE M ÁTI CAS | CRAI G O WE N S 185 A FUNÇÃO DO ATELIÊ* Daniel Buren Daniel Buren ateliê Brancusi museu espaço público Conhecido por seus trabalhos feitos especialmente para espaços públicos, Daniel Buren desenvolve análise histórica, geográfica e simbólica do ateliê e reflete sobre sua importância como local exclusivo de produção. As adaptações operadas na obra quando de seu deslocamento para o espaço público (museus e galerias) levam o artista a interrogar as condições de aparecimento da arte frente à necessidade de aproximação de arte e vida, e à consequente desmaterialização do ateliê. De todos os enquadramentos, embalagens e limites – em geral não percebidos e certamente nunca questionados – que compartimentam e “fazem” a obra de arte (o quadro, a moldura, o pedestal, o castelo, a igreja, a galeria, o museu, o poder, a história da arte, a economia de mercado etc.), um nunca é mencionado, menos ainda questionado, embora, de todos que circundam e condicionam a arte, seja o primeiro, o que precede todos os demais: o ateliê do artista. THE FUNCTION OF THE STUDIO | Daniel Buren is well known for his work done especially for public spaces. He develops a geographic, historical and symbolic analysis of the studio and reflects upon its importance as an exclusive production place. The adaptations to the work when moving to the public space (museums and galleries) cause the artist to question the conditions of appearance of art with regard to the need to bring art and life closer and the consequent “extinction” of the studio. | Daniel Buren, studio, Brancusi, museum, public space Na maioria dos casos, o ateliê é mais importante para o artista do que a galeria ou o museu. Incontestavelmente, ele preexiste a ambos. Além disso, como veremos, ateliê e galeria estão inteiramente vinculados. Constituem os dois pilares de um só edifício e de um só sistema. Pôr em questão um (o museu ou a galeria, por exemplo), sem se referir ao outro (o ateliê) é, de fato, não questionar absolutamente nada do todo. Desse modo, todo questionamento do sistema de arte terá inevitavelmente que passar por uma reavaliação do ateliê como lugar único em que o trabalho se faz, assim como do museu como lugar único em que o trabalho se mostra. Ambos devem ser questionados também em termos de hábitos, hábitos de arte hoje esclerosados. Edward Steichen Ateliê de Constantin Brancusi, 1920 fotografia 24,4 x 19,4cm; Met Museum, NY Fonte: Wikimedia Commons in http://atelierdespassages.blogspot.com/ 186 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 TE M ÁTI CAS | DAN I E L B U RE N 187 Mas, afinal, qual é a função do ateliê? 1. É o lugar de origem do trabalho. 2. É um lugar privado (na maioria dos casos); pode ser uma torre de marfim. seleciona, em seu próprio ateliê, as obras que desses lofts e seu “posicionamento” em paredes deseja. Nesse sentido, o ateliê é também uma e pisos dos museus modernos, também eles butique, e é nela que se encontra o prêt-à-por- artificialmente iluminados dia e noite. ter para uma exposição. Acrescentaria ainda que esse tipo de ateliê O ateliê é ainda o espaço para o qual, antes que 3. É um lugar fixo de criação de objetos influencia igualmente os lugares que servem de a obra seja publicamente exposta (museu ou obrigatoriamente transportáveis. ateliês hoje na Europa e que podem ser, para galeria), o artista pode convidar críticos e outros quem os encontra, um antigo celeiro no campo, especialistas na esperança de que suas visitas uma velha garagem ou outros estabelecimentos favoreçam a “saída” de algumas obras desse local qual todos os outros irão depender. comerciais na cidade. Em ambos os casos, já privado – um tipo de purgatório – para frequentar Em primeiro lugar, como um ateliê se apresenta podemos perceber as relações arquitetônicas alguma parede pública (museu/galeria) ou privada que atuam entre ateliê e museu, um inspirando (coleção) – espécies de paraísos das obras! Um lugar extremamente importante, como já se pode ver. Primeira moldura, primeiro limite, do física, arquitetonicamente? Na verdade, o ateliê do artista não é qualquer compartimento, qualquer cômodo1. Distinguiremos aqui dois tipos: o outro e vice-versa, assim como ocorre entre um tipo de ateliê e outro.5 Não falaremos, no entanto, a respeito dos que transformam parte 1. O do tipo europeu, exemplificado pelo ateliê de seu ateliê em galeria, nem de curadores que parisiense do final do século passado2, costuma sonham com museus como ateliês permanentes! ser local bem amplo e caracterizado sobretudo Depois de termos visto algumas das características por elevado pé-direito (4m, no mínimo), às vezes com mezanino para aumentar a distância de visualização da obra. Os acessos permitem arquitetônicas do ateliê, vejamos agora o que em geral nele se passa. Desse modo, o ateliê cumpre o papel de lugar de produção de um lado e de sala de espera do outro, e finalmente, se tudo correr bem, de local de difusão. É, portanto, um centro de triagem. O ateliê, primeira moldura da obra, é na verdade um filtro que irá servir a (uma) dupla seleção, a primeira, feita pelo artista longe de olhares estranhos, e aquela feita por galeristas Como local privado, o ateliê é espaço para e experiências que só o artista-residente poderá julgar, para a visualização de outros olhares. O que é térreo, para pintores nos últimos andares. já que nada dali sairá sem que ele assim decida. imediatamente evidente é que, para existir, a Por fim, a iluminação é natural e geralmente Esse lugar privado permite também outras mani- distribuída por vidraças orientadas na direção pulações indispensáveis ao bom funcionamento norte a fim de receber luz mais suave e ao de galerias e museus. Por exemplo, é o espaço no mesmo tempo homogênea.3 qual a crítica de arte, o organizador de exposi- 2. O ateliê do artista americano4 tem origem mais recente. Em geral não é especialmente construído para essa finalidade, nem obedece a determinadas normas mas, na maioria das vezes, é bem maior do que o ateliê europeu: não necessariamente mais alto, mas muito mais longo e mais largo, e situado em antigos lofts recuperados. A luz natural tem aqui papel bem menor (quase nulo) do que a superfície e o volume. A eletricidade clareia o ambiente ções, o diretor ou o curador do museu poderão dia e noite, se necessário. Disso, aliás, decorre não só já selecionou o artista participante como a entrada e a saída de trabalhos de grandes dimensões. Ateliês para escultores ficam no 188 certa adequação entre os produtos originários tranquilamente escolher das obras presentes (e apresentadas pelo artista) aquelas que participarão de determinada exposição, coleção, galeria ou contexto. O ateliê é, portanto, uma comodidade para qualquer organizador, que, assim, pode “compor” uma exposição a seu modo (e não ao modo do artista – que está muito contente em expor e, em geral, se deixa gentilmente manipular nessas situações) com o mínimo de risco, pois A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 organizadores de exposições justamente obra produzida passa de um abrigo a outro. Portanto, ela deve ser minimamente transportável e, se possível, manipulável sem muitas restrições por quem (além do próprio artista) ganha o direito de “removê-la” de seu local original para acomodá-la no espaço promocional. Desse modo, como é produzida em ateliê, a obra só pode ser concebida como objeto manipulável ao infinito e por qualquer um. Para se fazer, e desde o momento em que é produzida no ateliê, a obra se encontra isolada do mundo real. Entretanto, é naquele momento, e somente naquele momento, que está mais próxima de sua própria realidade, da qual, em seguida, ela se irá afastar cada vez mais. Ela também poderá tomar emprestada Anton Lefterov Ateliê de Constantin Brancusi no Musée National d’Art Moderne, Centre George Pompidou, 2010 Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/File:Atelier-brancusi-2 TE M ÁTI CAS | DAN I E L B U RE N 189 outra realidade, que ninguém, nem quem a museu (e da galeria) como inevitáveis molduras A obra que chega ao museu tanto está em “seu criou, poderia imaginar e que poderá ser-lhe neutras, lugares únicos e definitivos da arte. lugar”6 quanto em “um lugar” que nunca é o completamente contraditória – geralmente para Lugares eternos em função da eternidade da arte! seu. Em “seu lugar” porque lá pretendia estar no grande lucro dos comerciantes e da ideologia dominante. É, portanto, no ateliê – e só então – que a obra está em seu lugar. Isso é (uma) mortal contradição para a obra de arte, da qual jamais se irá recuperar, dado que sua finalização implica o desvitalizante deslocamento em relação a sua própria realidade, a sua origem. Desse modo, a obra é feita em lugar muito específico, do qual, entretanto, ela não se dá conta, posto que, por vários aspectos, esse espaço não só a orienta e forja, como é o único em que a arte tem lugar. Chegamos, assim, à seguinte contradição: é impossível por um lado é o “seu”, pois assim como esse lugar não foi definido pela obra que lá se encontra, tampouco a obra foi feita precisamente em função de um lugar lhe é, forçosamente e a priori, concreta e praticamente desconhecido. – e por definição – ver uma obra em seu lugar e, Para que a obra esteja em seu lugar sem ter sido Se, por outro lado, a obra de arte permanece por outro, é o lugar que lhe serve de abrigo e onde especificamente posicionada7, é necessário que nessa realidade – o ateliê –, é o artista que corre o poderá ser vista, que a irá marcar e influenciar seja idêntica a todas as outras existentes, todas risco de morrer… de fome! A obra que podemos bem mais do que o lugar no qual foi feita e de indênticas entre si. Nesse caso, circularia (e se ver é, portanto, totalmente estranha ao lugar que onde foi excluída. posicionaria) por toda parte e em qualquer lugar a acolhe (museu, galeria, coleção…), daí o fosso cada vez maior entre as obras e seus lugares (e não seu posicionamento): um abismo aberto que, se o víssemos (e o veremos mais cedo ou mais tarde), jogaria a arte e suas pompas (ou seja, a arte como a conhecemos hoje e como é feita em 99% dos Podemos então afirmar que estamos diante da seguinte inadequação: ou a obra está em seu próprio espaço, o ateliê, e não tem lugar (para o público), ou se acha em espaço que não é seu, o museu, quando então tem lugar (para o público). casos) na lata de lixo da história. Esse abismo, no Excluída da torre de marfim em que é produzida, entanto, é parcialmente preenchido pelo sistema, a obra vai parar em outro lugar que, ainda que que faz com que nós, público, criador, historiador, lhe seja estranho, só vem reforçar essa impressão crítico, entre outros, aceitemos a convenção do de conforto que ela já tinha adquirido ao se abrigar num reduto fortificado, o museu, a fim Daniel Buren Les deux plateaux (conhecido como Colunas de Buren), 1985-1986 Trabalho in situ Palais-Royal, Paris Fontes: http://www.photos-galeries.com/colonnes-de-buren-palais-royal e http://www.artfacts.net/en/institution/lisson-gallery-190/news/daniel-buren-les-deuxplateaux-palais-royal-5201.html de sobreviver a tal deslocamento. Desse modo, a seria necessário que a moldura que acolhe a obra original, e todas as outras obras originais – e portanto fundamentalmente diferentes umas das outras –, fosse removível, ou seja, que o museu (e a galeria) fosse um passe-partout que se adaptasse perfeita e milimetricamente a cada obra. Se, entretanto, estudamos separadamente esses dois casos extremos, deles só podemos deduzir formulações extremas e idealizantes, mas ainda assim interessantes; por exemplo: a) todas as obras de arte são rigorosamente a isso foi predestinada pela marca de seu local de idênticas entre si, independentemente de sua origem) de um lugar/quadro fechado – o mundo ainda mais fechado – o mundo da arte. Daí talvez A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 (como todas as outras obras idênticas). Ou, então, obra passa (e só assim pode existir, uma vez que do artista – para outro lugar paradoxalmente 190 momento em que foi concebida, mas que nunca época, seu autor, seu país e assim por diante, o que explica seu idêntico posicionamento em milhares de museus pelo mundo, de acordo a impressão de cemitério que o alinhamento das com a moda e os curadores; obras nos museus produz. Independentemente b) ou então, todas as obras são absolutamente do que digam, de onde venham e do que diferentes umas das outras e têm suas quiseram significar, é no museu que acabam, e diferenças respeitadas – portanto ao mesmo é lá também que se perdem. A perda, aliás, é tempo implícita e explícitamente legíveis parcial, em comparação à perda total das obras –, de modo que cada museu, cada sala em que nunca deixam seus ateliês. Daí a indescritível cada museu, cada parede em cada sala, cada vulnerabilidade das obras manipuláveis. metro quadrado de cada parede se adapte TE M ÁTI CAS | DAN I E L B U RE N 191 terceiro, que é, obviamente, mais comum e que simplesmente impossível), ou (como é o caso) imaginar um possível local-padrão. Nesse caso, teremos o banal espaço cúbico, neutro ao extremo, com a luz suave e uniforme que já conhecemos: isto é, o espaço de museus e galerias atuais. Isso obriga o artista no ateliê, conscientemente ou não, a produzir para um lugar banalizado e, consequentemente, a banalizar seu próprio trabalho a fim de melhor o adaptar a esse lugar. Se, por outro lado, podemos aceitar que cada implica relação sine qua non entre ateliê e museu obra tem sua singularidade, somos também Ao produzir para um estereótipo, acabamos tal como a conhecemos hoje. evidentemente por fabricar um estereótipo; daí De fato, como é pouco provável que a obra o surpreendente academicismo das obras hoje, perfeitamente, a cada obra, a cada lugar e a cada momento. O que podemos observar nas duas formulações é sua assimetria sob a aparente simetria. Na verdade, ainda que não possamos aceitar logicamente que todas as obras de arte, quaisquer que sejam, são idênticas entre si, somos forçados a constatar que, quaisquer que sejam as obras, elas são (de acordo com a época), instaladas do mesmo modo. forçados a observar que nenhum museu se adapta exatamente a isso e age – paradoxalmente, já que pretende defender a singularidade da obra – como Se excluirmos os dois casos extremos (a) e (b) mencionados, nos encontraremos frente a um criada no ateliê lá permaneça – e ela sabe as mais diversas. coleção) –, é necessário não apenas que seja Para encerrar, gostaria de dar sustentação a feita, mas também que possa ser vista em Para reforçar o raciocínio, dois exemplos entre minhas “suspeitas” sobre o ateliê e suas funções outro lugar e, consequentemente, em qualquer milhares: os responsáveis pelo Jeu de Paume, simultaneamente idealizantes e esclerosantes, lugar. Para que essa transferência ocorra, duas em Paris, apresentam as obras impressionistas com dois exemplos que me influenciaram, um condições são necessárias: pessoal, outro histórico. existisse, e a manipula à vontade. sobre paredes pintadas de determinada cor que as emolduram diretamente. Simultaneamente, a 8 mil quilômetros de distância, no Art Institute of Chicago, outras obras da mesma época e dos mesmos artistas são apresentadas enfileiradas e em enormes molduras esculpidas. Será que isso significa, para retornar aos dois exemplos, que as obras em questão são absolutamente idênticas e que finalmente adquirem sua expressão própria e diferenciada graças à inteligência daqueles que as apresentam? E isso ocorreria justamente para fazê-las dizerem de outro modo aquilo que, por definição, escondiam sob um mesmo aspecto – a neutralidade absoluta de obras idênticas umas às outras –, à espera de uma moldura que lhes desse expressão? Ou significa, de acordo com o segundo exemplo, que cada museu se adapta o máximo possível ao 1. O lugar definitivo da obra é a própria obra. Essa é uma crença ou filosofia largamente difundida nos meios artísticos, posto que permite escapar de qualquer questão sobre o lugar físico de sua visibilidade e, por conseguinte, sobre o sistema – e, portanto, sobre a ideologia dominante que a governa, assim como sobre a ideologia específica da arte. Teoria reacionária (se realmente for), pois, sob pretexto de escapar, ou melhor, de não estar a ele vinculada, permite a todo o sistema fortalecer-se sem sequer se justificar, já que, por definição (definição dada pelos defensores dessa teoria), o lugar do museu não tem relação com o lugar da obra. 2. O criador “imagina” onde sua obra vai acabar, o que o leva a tentar imaginar todas as situações possíveis para cada obra (o que é A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 Daniel Buren Hommes-Sandwichs, abril/maio de1968 Madeira, papel com listras brancas e verdes, tachinhas, correias. Cada estandarte 80 x 60,9 cm. Trabalho in situ, Paris, França Foto © Daniel Buren Fonte: www.danielburen.com ainda que dissimuladas sob formas aparentemente que acabará em outro lugar (museu, galeria, se essa afirmação da obra, sua singularidade, não 192 caráter das obras em questão? Mas quem, agora, poderá nos explicar onde estava explícito na obra de Monet que, 70 anos após sua criação, algumas telas deveriam ser penduradas e envolvidas por uma suave cor salmão em Paris, e outras cercadas por enormes molduras e justapostas a outras obras impressionistas, em Chicago? 1. Pessoal Ainda muito jovem (tinha 17 anos), iniciei um estudo sobre a pintura na Provence, de Cézanne a Picasso (focalizando as influências do local geográfico nas obras). Para levar o trabalho a conclusão satisfatória não só percorri de ponta a ponta o sudeste da França, como visitei o ateliê de grande número de artistas. Minhas visitas conduziram-me a artistas dos mais jovens aos mais velhos, dos mais desconhecidos aos mais célebres. Surpreenderam-me na época sobretudo a diversidade, depois, a qualidade, a riqueza e especialmente a realidade – a “verdade”, portanto – dos trabalhos, independentemente de seu autor ou sua reputação. “Realidade/verdade” não só em relação ao autor e a seu local de trabalho, mas também em relação a seu entorno, à paisagem. Bernard Boyer Daniel Buren Affichage sauvage, abril de 1968 Trabalho in situ, Paris Fonte: http://catalogue.danielburen.com/fr/oeuvres/1944.html TE M ÁTI CAS | DAN I E L B U RE N 193 Pouco tempo depois, visitei uma a uma as exposições dos artistas que havia conhecido e meu encantamento desbotou-se, às vezes desaparecendo por completo – como se as obras que eu vira nos ateliês não fossem as mesmas, nem tivessem sido feitas pelas mesmas pessoas. Arrancadas de seu contexto e, pode-se dizer, de seu ambiente, elas perdiam seu sentido, sua vida; tornavam-se “falsas”. No entanto, não compreendi isso de imediato (longe disso), nem o que exatamente se passava, nem o motivo dessa desilusão. Uma coisa apenas ficou clara para mim: a decepção. Revi várias vezes alguns desses artistas, e a cada vez o hiato entre seus ateliês e as paredes parisienses se acentuava a tal ponto, que se tornou impossível continuar a visitar seus ateliês e suas exposições. A partir desse momento, algo irremediável, embora por razões ainda confusas, se rompeu. Mais tarde, repeti a desastrosa experiência com amigos de minha geração, ainda que dessa vez a “realidade/verdade” profunda do trabalho me parecesse bem mais clara. Essa “perda” do objeto, esse desinteresse pela obra fora seu contexto – como se a energia essencial a sua existência desaparecesse assim que a porta do ateliê fosse ultrapassada –, começava realmente a me preocupar. Essa sensação de que o essencial da obra se havia perdido em algum lugar entre o espaço de sua produção (o ateliê) e de seu consumo (a exposição) levou-me a questionar o problema e a significação do lugar da obra. Compreendi mais tarde que o que se perdia, o que certamente desaparecia, era a realidade da obra, sua “verdade”, ou seja, a relação com o local de sua criação, o ateliê: local em que geralmente estão misturados trabalhos acabados, trabalhos em andamento, trabalhos nunca acabados, esboços etc. Todos esses vestígios, simultaneamente visíveis, permitem uma compreensão do processo da obra que o museu definitivamente exclui em seu desejo de “instalar”. Não se fala cada vez mais em “instalação” 194 em vez de “exposição”? E o que se instala não é o que está próximo de se estabelecer? 2. Histórico Constantin Brancusi foi o único artista que sempre me pareceu demonstrar real inteligência frente ao sistema museal e a suas consequências, e o que mais tentou combatê-lo − ele tentou evitar que sua obra nele se cristalizasse e assim ficasse vulnerável ao capricho de qualquer curador de plantão. De fato, ao legar grande parte de sua obra com a expressa recomendação de que fosse conservada como no ateliê que a viu nascer, Brancusi eliminou definitivamente a dispersão do trabalho, assim como toda especulação sobre a obra. Além disso, ofereceu ao visitante exatamente o seu ponto de vista no momento em que produzia. Foi o único artista que, mesmo trabalhando no ateliê e consciente de que lá o trabalho estava mais próximo de sua “verdade”, assumiu o risco – a fim de preservar essa relação entre a obra e seu local de criação – de “confirmar” ad vitam8 sua produção no próprio lugar em que foi concebida. Entre outras coisas, ele também produziu um curto-circuito no desejo do museu de classificar, embelezar, selecionar e assim por diante. A obra fica visível tal como foi produzida, para o bem e para o mal. Assim, Brancusi foi o único a saber preservar na obra esse lado cotidiano – que o museu se apressa em retirar de tudo o que exibe. Podemos afirmar igualmente – mas isso exigiria estudo mais longo – que a fixação operada na obra pela visibilidade adquirida em seu lugar de origem não tem nada a ver com a “fixação” que o museu exerce sobre tudo o que expõe. Desse modo, Brancusi prova que a chamada pureza de suas obras não é menos bela nem menos interessante entre as quatro paredes de um ateliê de artista entulhado de utensílios diversos, A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 de outras obras, algumas inacabadas, outras terminadas, do que entre as paredes imaculadas de museus assépticos9. Posto que toda a produção da arte, tanto ontem quanto hoje, é não só marcada, mas provém do uso do ateliê como local essencial (às vezes único) da criação, todo o meu trabalho deriva de sua abolição. dezembro de 1970-janeiro de 1971 Tradução Analu Cunha Revisão técnica Livia Flores 4 Falamos aqui do estúdio nova- yorkino, pois, assim como esse vasto país, em seu desejo de aniquilar e superar a École de Paris, de triste memória, tem reproduzido todos os seus defeitos, incluindo o principal: forçada centralização que, já ridícula na escala da França e mesmo na da Europa, é absolutamente grotesca na escala americana e certamente nefasta ao desenvolvimento artístico. 5 Aos museus americanos, em geral artificialmente iluminados, opomos os museus europeus, geralmente iluminados pela luz do dia por meio de uma série de vidraças. Percebemos também que isso cria o que alguns entendem como antagonismo e que, muito frequentemente, não passa de diferença de estilo entre NOTAS * Este primeiro texto de Daniel Buren dedicado ao atelier os ambientes de produção europeu e americano. 6 No original “place” e “une place” (NT). só foi publicado em francês e em inglês em setembro de 7 No original “en place” e “exactement placée” (NT). 1979, em Ragile, Paris, tomo III: 72-77. Esta tradução 8 Para sempre (N.T.). baseou-se na versão encontrada em Daniel Buren, Fonction de l´atelier (1971), Ecrits, v.1, Bordeaux: LAPC - 9 Devemos observar que se o ateliê de Brancusi Musée d´art contemporain, 1991: 195-205 tivesse podido ficar no Impasse Roussin [n. 11, 1 Descrevemos adiante o ateliê como arquétipo, sabendo de antemão que todo artista que se inicia na vida artística (e alguns deles por toda a vida) deve contentar-se com barracos miseráveis ou um cômodo ridiculamente pequeno; todavia, gostaria de acrescentar que aqueles que conservam, apesar das dificuldades, os lugares sórdidos em que trabalham são evidentemente aqueles para quem a ideia de endereço do ateliê] ou ainda em sua própria casa (mesmo transportada para outro lugar), a exibição teria sido mais feliz. (N.D.L.R. de Ragile. Esse texto escrito em 1971 refere-se à reconstituição do ateliê de Brancusi no Museu de Arte Moderna. Desde então, o conjunto de prédios foi reconstruído na esplanada do novo museu, o Centre Beaubourg, o que torna obsoleta esta nota. possuir um ateliê para o trabalho é uma necessidade – e que, consequentemente, sonham com um lugar que, se tivessem condições, provavelmente se aproximaria do arquétipo do qual falamos. 2 Século 19 (NT). 3 Já podemos observar que a exposição de um ateliê de artista requer mais cuidados, da parte dos arquitetos, com relação à iluminação, ao posicionamento, etc., do que aqueles que o próprio artista toma para controlar a exposição de suas obras quando saem de seu ateliê! Daniel Buren nasceu em 1938 em BoulogneBillancourt. Em 1960 graduou-se na École Nationale Supérieure des Métiers d’Art, em Paris. Foi um dos fundadores do grupo BMPT (iniciais dos artistasmembros: Daniel Buren, Olivar Mosset, Michel Parmentier e Niele Toroni), de influência situacionista. A partir da década de 1960, se apropria das listras verticais do tecido industrial francês, que utiliza em intervenções no espaço público e em instituições de arte. Vive e trabalha em Paris. TE M ÁTI CAS | DAN I E L B U RE N 195 ESPETÁCULO, ATENÇÃO, CONTRAMEMÓRIA Jonathan Crary espetáculo atenção situacionismo práticas surrealistas Neste artigo de 1989, exatamente quando deslocamentos sistêmicos significativos começam a tornar-se evidentes, Jonathan Crary indaga em que medida o uso do termo espetáculo, que ganha força com a emergência do situacionismo nos anos 60, pode ainda contribuir para nossa compreensão sobre modos não coercitivos de funcionamento do poder. A partir dessa perspectiva, Crary discute indicações fornecidas por autores como Baudrillard, Benjamin, T.J. Clark e pelo próprio Guy Debord, localizando no final da década de 1920 desenvolvimentos históricos cruciais que transformam a natureza da atenção exigida do sujeito moderno e informam tanto a noção de espetáculo quanto as tentativas de resistência a seus poderes. O termo “espetáculo” tornou-se de uso corrente entre o final dos anos 50 e o início dos 60, graças aos diversos tipos de atividades atualmente designadas como pré-situacionistas e situacionistas,1 independentemente de ter sido ou não originalmente tomado de Critique de la vie quotidienne, de Henri Lefebvre. Seja no campo de crítica radical à prática da arte modernista, seja na discussão política da vida cotidiana ou na análise do capitalismo contemporâneo, sua influência intensificou-se claramente com a publicação, em 1967, de A sociedade do espetáculo, de Guy Debord.2 Vinte e dois anos depois, a palavra SPECTACLE, ATTENTION, COUNTER-MEMORY | In this article from 1989, precisely when significant systemic movements were becoming more evident, Jonathan Crary questions to what extent the use of the term show, which gained force with the emerging Situationism in the 1960s, can still contribute to our understanding of the noncoercive ways of how power functions. From this viewpoint, Crary discusses indications by authors such as Baudrillard, Benjamin, T.J. Clark and Guy Debord himself, positioning in the late 1920s crucial historical developments that transformed the nature of attention required for the modern subject and informed both the notion of show and attempts to resist its powers. | Show, attention Situationism, surrealist practices. “espetáculo” não apenas persiste como se tornou lugar-comum no vasto campo dos discursos críticos e não tão críticos assim. Acreditando que não se tenha desgastado completamente como explicação da operação contemporânea de poder, cabe Montagem de imagens capturadas dos filmes de Fritz Lang: Dr. Mabuse, The Gambler (1924) e The Testament of Dr. Mabuse (1931), Livia Flores, 2011 (Dr Mabuse-Livia copy.jpg) 196 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 TE M ÁTI CAS | JO N ATH AN CRARY 197 entretanto indagar se o atual sentido do termo Quando podemos dizer que começou a vigorar tentar superar essa “exclusividade dos signos” e antes casualmente referidas como vida cotidiana”5. mantém o significado do início dos anos 60. Que efetivamente? E não pergunto isso apenas como iniciar a “proliferação de signos sob demanda”. Na cronologia de Clark, o espetáculo coincide com conjunto de forças e instituições ele designa? exercício acadêmico. Para ter qualquer eficácia Imitações, cópias e falsificações desafiam tal a fase inicial do imperialismo moderno ocidental, E, se elas sofreram transformações, que tipos prática ou crítica, o termo depende, em parte, exclusividade. Logo, o problema da mímese não com duas expansões paralelas do mercado global, de prática são hoje necessários para resistir aos de como é periodizado; isto é, “espetáculo” irá é de estética mas de poder social, e a emergência uma interna e a outra externa. efeitos do espetáculo? assumir significados bem diferentes dependendo do teatro italiano e da perspectiva na pintura são de como for historicamente situado. É algo mais o começo dessa capacidade sempre crescente do que mero sinônimo para capitalismo tardio? de produzir equivalências. Obviamente, porém, Ou para o crescimento dos meios e tecnologias para Baudrillard e muitos outros, é no século de comunicação de massa? É mais do que uma 19, junto com novas técnicas industriais e formas versão atualizada da indústria cultural ou da de circulação, que um novo tipo de signo aparece: consciência, delas cronologicamente distinta? “objetos potencialmente idênticos produzidos em Pode-se ainda questionar em que medida o conceito de espetáculo não impõe unidade ilusória sobre um campo por demais heterogêneo. Trata-se de conceito totalizante e monolítico, inadequado para representar incomensurável pluralidade de instituições e eventos? Para O trabalho “inicial” de Jean Baudrillard fornece “espetáculo” é a presença quase que ubíqua alguns parâmetros gerais para o que podemos do artigo definido que o precede, sugerindo chamar de pré-história do espetáculo (que um sistema de relações único, global e sem Baudrillard fissuras. Para outros, implica mistificação do meados da década de 1870). Segundo esse funcionamento do poder, nova explicação do tipo autor, que escreve no final dos anos 60, uma das “ópio do povo”, apontando para uma formação consequências cruciais das revoluções político- cultural e institucional vaga, com autonomia burguesas foi a força ideológica que deu vida aos estrutural suspeita. Ou um conceito como o de mitos dos direitos do homem: o direito à igualdade espetáculo é ainda ferramenta necessária para se e à felicidade. O que ele vê acontecer no século compreender o deslocamento radical e sistêmico 19 é que, pela primeira vez, provas concretas na maneira como o poder funciona de forma se tornaram necessárias para demonstrar que a T.J. Clark oferece periodização muito mais não coercitiva na modernidade do século 20? felicidade, de fato, havia sido obtida. Felicidade, específica na introdução de seu livro The Painting É um meio indispensável para revelar relações diz ele, “tinha que ser mensurável em termos de of Modern Life. Caso se concorde com Clark, as entre fenômenos que de outra forma pareceriam signos e objetos”, signos que fossem evidentes origens do modernismo e do espetáculo não disparatados e sem conexão? Não serviria para ao olho como “critérios visíveis”. desaparecido em comunicação (setores não essenciais do capitalismo, segundo Marx)... que o processo global do capital se mantém coeso”. O espetáculo coincidiria então com o momento em que o valor simbólico ganha precedência sobre o valor de uso. A questão da localização desse momento na história da mercadoria, entretanto, continua em aberto. Benjamin também sobre as décadas de 1860 e 1870, Clark usa o descrevera a “fantasmagoria da igualdade” no espetáculo para explicar a íntima solidariedade século 19 em termos de uma transformação entre a arte de Manet e a emergência dessa nova Característica surpreendente do livro de Debord do cidadão em consumidor. O relato de configuração social e econômica. Essa sociedade é a ausência de qualquer tipo de genealogia modernidade de Baudrillard é o de crescente do espetáculo, escreve ele, está ligada a uma histórica do espetáculo, e essa ausência deve ter desestabilização e mobilidade de signos que, até “massiva expansão interna do mercado capitalista contribuído para a impressão de que o espetáculo a Renascença, ainda se encontravam firmemente – a invasão e reestruturação de áreas inteiras surgiu totalmente do nada. Então, a questão que enraizados em posições relativamente seguras de tempo livre, vida privada, lazer e expressão me interessa é a seguinte: considerando que o dentro de hierarquias sociais fixas.4 Assim, de pessoal... isso indica nova fase da produção de espetáculo de fato designa um certo conjunto acordo com Baudrillard, a modernidade está mercadorias – o marketing, a transformação em de condições objetivas, quais são suas origens? ligada à luta das novas classes de poder para mercadoria de grandes áreas da prática social, constituir um efeito homogêneo de poder? A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 antes, Walter do lazer como consequência do deslocamento de da mídia, da publicidade, da informação e da apenas coincidem; são indissociáveis. Escrevendo décadas citando a comercialização de aspectos da vida e indiferença... e é no nível da reprodução, da moda, Algumas retalhos, um mosaico de técnicas pode ainda espetáculo no final das décadas de 1860 e 1870, relação de objetos em tais séries é de equivalência e 3 evidenciar como, à maneira de uma colcha de 198 ter “temporalidade pura”, ele localiza o começo do série indefinidamente”. No entender do autor, “a alguns, um aspecto problemático do termo considera Apesar de considerar impossível a ideia de Labbe, Edmond. Exposition internationale des arts et des techniques, Paris : Ministère du commerce et de l’industrie, 1941, via: http://beinecke.library.yale.edu (1110275.jpg) TE M ÁTI CAS | JO N ATH AN CRARY 199 um tipo de produção capitalista para outro. Esse nização fundamental do sujeito quanto a cons- mecânica aumentava, apareceu um novo modelo deslocamento, observa, “não foi mera questão de trução de um observador; este último é o pré- de transmissão e circulação que iria ultrapassar reformulação ideológica e cultural, mas de total requisito para a transformação da vida cotidiana essa época, dispensando sais de prata ou suporte transformação econômica”. Quais são, contudo, que então se iniciava. Ao fazer da sociedade do físico permanente.9 O espetáculo estava prestes a segundo Clark, os exemplos dessa avassaladora espetáculo quase um equivalente da sociedade de se tornar inseparável desse novo tipo de imagem, modificação? “Uma mudança para o mundo dos consumo, Clark dilui sua especificidade histórica e de sua velocidade, ubiquidade e simultaneidade. grands boulevards e grands magasins, indústrias negligencia alguns aspectos do espetáculo que fo- correlatas, turismo, recreação, moda e exibição”. ram cruciais para a prática política do situacionis- Surpreendentemente, Clark lembra seus leitores mo nos anos 60: o espetáculo como nova forma de que o espetáculo foi projetado “antes de mais de poder de recuperação e absorção, capacidade nada como uma arma de combate” na década de neutralizar e assimilar atos de resistência ao de 1960.6 Estaria ele sugerindo que a estrutura convertê-los em objetos ou imagens de consumo. política e econômica desse mundo de avenidas e lojas de departamentos é, em sua essência, contínua ao que Debord descreveu como lugar de contestação em 1967? E que as lutas culturais [cultural politics] dos anos 60 ocorreram em condições semelhantes àquelas de 1870? A insinuação de que a noção de espetáculo seria a mesma na Paris de Manet e na de Debord é, no mínimo, problemática. portanto, 1927 ou, pelo menos, final dos anos 20. Infelizmente, ele não fornece indicação do motivo pelo qual destaca esse momento. Isso monopólio. E a Paris pós-Haussmann torna-se eventos muito dispersos que poderiam estar para ele a expressão visível de um novo alinha- implícitos na observação de Debord. de que o espetáculo tanto signifique uma reorga- Até então nenhuma técnica de regulamentação e padronizado antes de 1930. um número arredondado, como 50, mas 40 – então algumas especulações fragmentárias sobre dessa maneira, Clark desconsidera a possibilidade controle o espetáculo mal completara 40 anos.8 Não nos empreendimentos em formas crescentes de ainda que de forma imperfeita. Ao periodizá-lo de intangível de seu espectro, já havia sido diagramado meio século mais tarde do que Clark. Ofereço táculo poderia ser rememorado e representado, formas grande parte do território do espetáculo, o domínio parte da transformação do capitalismo de peque- lhe posição distanciada, a partir da qual o espe- interligando registra que em 1967, data de seu livro original, histórico, situando a origem do espetáculo quase constituição de um sujeito individual, reservando- rede corporativas, militares e estatais sobre a televisão. de espetáculo. Em texto publicado em 1988, ele dernização do século 19, Clark apresenta-a como descreve permanece essencialmente exterior à vasta tamanha antecipação. Assim, em certo sentido, mente ao designar o final dos anos 20 como limiar ou indivíduo. O tipo de mudanças que o autor transmissões experimentais, estava sendo implantada institucional havia sido planejada e repartida com mann, um dos exemplos mais familiares de mo- de dominação imposta de fora a uma população final dos anos 20, quando ocorreram as primeiras surpreendentemente precisa o início da sociedade me deixou curioso sobre o que Debord tinha em táculo, porém, pressupõe que ele seja uma forma Igualmente importante, porém, foi o fato de que, no O próprio Guy Debord datou de maneira Ao referir-se à reconstrução de Paris por Hauss- mento de classes. Essa maneira de dispor o espe- 200 7 2. Talvez a estreia do filme The Jazz Singer, em 1927, seja ainda mais imediatamente significativa, assinalando a chegada do filme sonoro, e especificamente, do som sincronizado. Isso não foi apenas uma transformação na natureza da experiência subjetiva; foi também acontecimento que trouxe consigo completa verticalização de produção, distribuição e exibição na indústria do filme e seu amálgama com os conglomerados corporativos que detinham as patentes sonoras e forneciam capital à onerosa mudança para a 1. O primeiro é tão simbólico quanto concreto. nova tecnologia.10 De novo, como no caso da O ano de 1927 assistiu ao aperfeiçoamento televisão, a nascente infraestrutura institucional e tecnológico da televisão. Vladimir Zworikin, econômica do espetáculo se estabelecia. nascido na Rússia e formado físico e engenheiro nos EUA, patenteou seu iconoscópio – o primeiro sistema eletrônico de tubo contendo uma pistola de elétrons e uma tela formada por um mosaico de células fotoemissivas, cada uma delas produzindo carga proporcional à intensidade variável de luz da imagem exibida na tela. Justamente no momento em que a consciência sobre a era da reprodução A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 Television Spy, 1939, via: www.tvhistory.tv transformou a natureza da atenção que era exigida do espectador. Talvez essa seja a ruptura que faz com que as formas anteriores de cinema fiquem de fato mais próximas dos aparelhos ópticos do final do século 19. A plena coincidência entre som e imagem, voz e figura, não foi apenas nova e crucial maneira de organizar espaço, tempo e narrativa, mas de impor maior autoridade sobre o espectador, obrigando-o a novo tipo de atenção. Claro indício desse deslocamento pode ser visto nos dois filmes de Fritz Lang da série Mabuse. Em Dr. Mabuse, o jogador, filme mudo de 1924, o protofascista Mabuse exerce o controle através de seu olhar com poder hipnotizante; já Especificar o som aqui torna evidente que o poder em O Testamento do Dr. Mabuse (1931), uma do espetáculo não pode ser reduzido a modelo encarnação do mesmo personagem domina seus óptico; ao contrário, ele é inseparável de uma subalternos apenas através de sua voz, que emana organização mais ampla do consumo perceptivo. por trás de uma cortina (que, como se descobre, É claro que o som fez parte do cinema desde não esconde uma pessoa, mas um aparelho de o início através de formas variadas que a ele se gravação e alto-falante). somavam, mas a introdução do som sincronizado E desde a década de 1890 até a de 1930, um dos TE M ÁTI CAS | JO N ATH AN CRARY 201 problemas centrais da psicologia tradicional foi que ele considerava percepção “desnaturalizada e a natureza da atenção: a relação entre estímulo padronizada” das massas. Bergson havia lutado para e atenção, problemas de concentração, foco e resgatar a percepção de seu estatuto de puro evento distração. A quantas fontes de estímulo alguém psicológico; em sua opinião, atenção era questão de podia prestar atenção simultaneamente? Como engajamento do corpo, de inibição do movimento, estimar a influência da novidade, da familiaridade estado de consciência preso ao presente. A e da repetição sobre a atenção? Era um problema atenção, porém, só podia ser transformada em algo cuja produtivo se estivesse vinculada a alguma atividade proeminência no discurso psicológico estava diretamente relacionado à emergência de um campo social cada vez mais saturado com informações sensoriais. Algumas dessas questões A memória recria a percepção presente... fortalecendo-a e enriquecendo-a... Se foram tratadas no trabalho de James McKeen depois de termos fixado o olhar sobre um Cattell, cujos experimentos com estudantes da objeto, desviamos abruptamente nossos Universidade de Columbia forneceram dados hoje olhos, obtemos uma “pós-imagem” [image clássicos para a noção de limiar de atenção. Grande consécutive] dele. É verdade que estamos parte dessa pesquisa estava inicialmente ligada à lidando aqui com imagens fotografadas necessidade de informação sobre a atenção no no próprio objeto, e com recordações que contexto da produção racionalizada, mas antes se seguem imediatamente à percepção, mesmo de 1910 já haviam sido feitas centenas de da qual são apenas o eco. Mas por trás estudos em laboratórios experimentais voltados dessas imagens idênticas ao objeto, há especificamente para a variação da atenção na outras guardadas na memória que apenas publicidade (incluindo títulos como O valor da se lhe assemelham...11 atenção em anúncios periódicos, Atenção e os efeitos da dimensão na publicidade de rua, Publicidade e as leis da atenção mental, Medição da atenção a valores de cor na publicidade, este último, uma dissertação de 1913 da Universidade de Columbia). 202 mais profunda da memória. O que Bergson procurava descrever era a vitalidade do momento em que se produzia uma separação consciente entre memória e percepção, momento no qual a memória permitia reconstruir o objeto da percepção. Deleuze e Guattari descreveram efeitos similares da entrada da memória na Foi também em 1927 que Walter Benjamin percepção, por exemplo, na percepção de um começou seu projeto das Passagens, obra na rosto: ele pode ser visto como um vasto conjunto qual pretendia apontar para uma “crise da de micromemórias e uma rica proliferação de própria percepção”, resultante da avassaladora sistemas semióticos, ou, o que é bem mais reconfiguração do observador por uma calculada comum, em termos de tristes redundâncias de tecnologia novo representações; é nelas, dizem, que as conexões conhecimento do corpo. No decorrer da escrita com as hierarquias das formações de poder das Passagens, o próprio Benjamin interessou-se podem sempre ser efetivadas.12 Esse tipo de pela questão da atenção e de suas relações com redundância da representação que a inibição os temas do choque e da distração, buscando em e o empobrecimento da memória acarretam Matéria e Memória, de Henri Bergson, saída para o era o que Benjamin via como padronização da do indivíduo derivada de A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 Estréia do filme The Jazz Singer, 1927 TE M ÁTI CAS | JO N ATH AN CRARY 203 Triumph of the Will, filme de Leni Riefenstahl, 1934 In girum imus nocte et consumimur igni, filme de Guy Debord, 1978 Triumph of the Will, filme de Leni Riefenstahl, 1934 percepção ou o que podemos chamar de efeito do espetáculo. disponível, sobretudo o desenvolvimento da Apesar de considerar Matéria e Memória “obra palavra escrita, porque ler implicava tempo para imponente e monumental”, Benjamin reprovava Bergson por circunscrever a memória ao quadro isolado da consciência individual; as pós-imagens que interessavam a Benjamin eram as da memória histórica coletiva, imagens fantasmagóricas do obsoleto com capacidade de promover novo despertar social.13 A apreensão benjaminiana da atual crise da percepção é assim filtrada por pós-imagem ricamente elaborada em meados do século 19. 3. Dado o conteúdo do trabalho de Debord, podemos supor outro desenvolvimento crucial em finais dos anos 20: a escalada do fascismo e, logo depois, do stalinismo, e a maneira pela qual deram corpo a modelos de espetáculo. Importante, por exemplo, foi o uso inovador e sinérgico que 204 Goebbels fez de qualquer meio de comunicação propaganda audiovisual e sua desvalorização da reflexão e pensamento. Numa campanha eleitoral de 1930, Goebbels enviou pelo correio 50 mil gravações fonográficas de um de seus próprios discursos para eleitores especialmente escolhidos. Goebbels também introduziu o avião na política, transformando Hitler no primeiro político a voar para diferentes cidades no mesmo dia. Viagens aéreas funcionavam como instrumento de propagação da imagem do líder, produzindo inédita sensação de ubiquidade. Como parte dessa tecnologia mista da atenção, a televisão desempenharia papel crucial. Estudos recentes mostraram que o desenvolvimento da televisão na Alemanha estava mais adiantado do que em qualquer outro país.14 A televisão A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 TE M ÁTI CAS | JO N ATH AN CRARY 205 alemã iniciou suas transmissões regulares em 1935, quatro anos antes dos EUA. Fica claro que os nazistas não se deram conta de sua eficácia como instrumento de controle social, mas os primórdios de sua história na Alemanha lançam luz sobre os diferentes modelos de organização espetacular que estavam sendo propostos nos anos 30. Logo surgiu grande cisão entre as forças corporativas monopolistas e o partido nazista em relação ao desenvolvimento da televisão na Alemanha. O partido queria centralizar e tornar a televisão acessível em salas de exibição pública, ao contrário do uso descentralizado do rádio em casas particulares. Goebbels e Hitler tinham em mente a recepção coletiva acreditando que de imbricação: aparelhos televisivos que contêm tecnologia avançada de reconhecimento da imagem servem para monitorar e quantificar o comportamento, a atenção e o movimento do olho do espectador.19 ensaio intitulado O espetáculo, publicado logo domine, a polícia também domina... ele é Em 1988, porém, Debord vê seus dois modelos elementos se chocam e empurram uns aos acompanhado de violência permanente. originais de espetáculo – o difuso e o concentrado outros. O jogo de contrastes é tão violento, A imagem imposta do bem inclui em – tornarem-se indistintos, convergindo para que há sempre um exagero no efeito seu espetáculo a totalidade de tudo o que ele chama de a “sociedade integrada do daquilo que se vislumbra. Na avenida, que existe oficialmente e em geral se espetáculo”. Em seu livro, profundamente dois homens estão carregando umas concentra em um só homem, garantia de pessimista, ele descreve um alinhamento mais letras douradas imensas num carrinho coesão totalitária. Todos devem identificar- sofisticado de elementos oriundos dos modelos de mão: o efeito é tão inesperado, se magicamente com essa celebridade anteriores, um arranjo flexível do poder global que todo mundo para e olha. Aí está absoluta – ou desaparecer.16 que se adapta a necessidades e circunstâncias a origem do espetáculo moderno (...) no locais. Em 1967 ainda havia marginalidade e choque do efeito surpresa.22 nazista, a Rússia stalinista e a China maoísta; o modelo mais proeminente de espetáculo difuso era o dos EUA: Onde quer que o espetáculo concentrado essa era a forma mais eficaz. Para esse fim, O espetáculo difuso, por outro lado, deixa-se foram designadas salas públicas de televisão, acompanhar pela abundância de mercadorias. E com capacidade variável de 40 a 400 lugares, de é certamente a esse modelo que Debord dedica a forma não muito diferente da que promoveu o maior parte de sua atenção em seu livro de 1967. desenvolvimento posterior da televisão na URSS, onde também se favoreceram os ambientes de recepção massiva. Segundo o diretor nazista de radiodifusão, em texto de 1935, a “missão sagrada” da televisão era “incutir de forma indelével a imagem do Führer no coração do povo alemão”.15 Por outro lado, o poder corporativo visava à recepção domiciliar para maximizar os lucros. Um modelo queria fazer da televisão uma técnica a serviço das demandas do nazifascismo em geral – um meio de mobilizar e incitar as massas – enquanto os agentes do capitalismo pretendiam privatizar e dividir para impor um modelo celular. É fácil esquecer que em A sociedade do espetáculo Debord distinguiu dois modelos diferentes de espetáculo; um que chamou de “concentrado” e o outro de “difuso”, evitando assim que a palavra espetáculo se tornasse simples sinônimo de capitalismo tardio ou de consumo. Espetáculo 206 concentrado era o que caracterizava a Alemanha A propósito, menciono o famoso repúdio de Michel Foucault ao espetáculo em Vigiar e punir: “Nossa sociedade não é a sociedade do espetáculo, mas a da vigilância; sob a superfície das imagens, investe-se a fundo nos corpos.”17 O espetáculo, entretanto, é também um conjunto de técnicas de administração dos corpos, de administração da atenção (estou parafraseando Foucault) “para assegurar a ordenação das multiplicidades humanas”, “seu objetivo é fixar, é uma técnica antinomádica”, “usa procedimentos de divisão e celularidade (...) nos quais o indivíduo é reduzido enquanto força política”.18 Suspeito que Foucault não tenha passado muito tempo vendo televisão ou pensando a respeito, pois não teria sido difícil enxergá-la como aperfeiçoamento suplementar da técnica do panóptico. Nela, vigilância e espetáculo não são termos opostos, como ele insiste, mas que se eclipsam reciprocamente em favor de um aparato disciplinar mais efetivo. Desenvolvimentos recentes confirmam de forma literal esse modelo A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 20 periferias que escapavam a esse domínio. Hoje, porém, insiste, o espetáculo se infiltrou em tudo e tem controle absoluto sobre produção, percepção e, principalmente, sobre a forma do futuro e do passado. após a realização de seu filme Balé mecânico. O ritmo da vida moderna é tão dinâmico, que uma fatia de vida vista da varanda de um café é um espetáculo. Os mais diversos Léger passa então a detalhar como a publicidade e as forças comerciais tomaram a dianteira na produção do espetáculo moderno e cita a loja de departamentos, o mundo da moda e os ritmos de produção industrial como formas Mais do que qualquer outro aspecto isolado, que conquistaram a atenção do público. O Debord vê instalar-se no âmago do espetáculo objetivo de Léger é idêntico: quer conquistar a aniquilação do conhecimento histórico – em aquele mesmo público. Naturalmente, ele está particular, a destruição do passado recente. Em escrevendo num momento de incerteza sobre seu lugar, impera o presente perpétuo. História, os rumos de sua própria arte, quando encara o pondera, sempre foi a medida pela qual a novidade dilema do que pode significar uma arte pública. era avaliada, mas qualquer um que esteja nesse O confuso programa que ele lança com esse negócio de vender novidade tem interesse em destruir os meios pelos quais ela pode ser julgada. Dessa forma, produzem-se incessante aparência do importante e, quase imediatamente, sua aniquilação e substituição: “Aquilo sobre o que o espetáculo para de falar durante três dias já não existe mais.”21 texto, no entanto, é uma instância inicial das manobras de todos aqueles – de Warhol aos assim chamados simulacionistas atuais – que acreditam ou pelo menos reivindicam estar ganhando a partida contra o espetáculo em seu próprio campo. Léger resume esse tipo de ambição: “vamos levar o sistema a seu limite”, propõe; e oferece sugestões vagas de pintar o Para concluir, gostaria de comentar brevemente exterior de fábricas e prédios de apartamentos duas diferentes respostas à nova textura da de várias cores, usar novos materiais e colocá- modernidade que toma forma a partir dos anos los em movimento. Essa tentativa ineficaz de 20. O pintor Fernand Léger escreve em 1924 um superar a sedução do espetáculo, porém, torna- TE M ÁTI CAS | JO N ATH AN CRARY 207 se cúmplice de sua aniquilação do passado e do 1 Este artigo foi apresentado originalmente no VI 8 Guy Debord, Commentaires sur la société du 19 Ver, por exemplo, Bill Carter, TV Viewers, Beware: fetichismo do novo. International Colloquium on Twentieth Century spectacle, Paris: Editions Gerard Lebovici, 1988:13. Nielsen May Be Looking, The New York Times, June Também em 1924, o primeiro Manifesto surrealista sugere estratégia estética bem diferente de enfren- French Studies, “Revolutions 1889-1989”, na Universidade de Columbia, em 30.3-1.4 1989. o caráter revolucionário desse advento em seu livro tamento da organização espetacular da cidade mo- 2 Guy Debord, A sociedade do espetáculo, Rio de Philosophie de I’image, Paris: J. Vrin, 1986:57-58. derna. Refiro-me ao que Walter Benjamin chamou Janeiro: Contraponto, 1977 10 Ver Steven Neale, Cinema and Technology: Image, de dimensão “antropológica” do surrealismo23 − es- 3 Jean Baudrillard, La societé de consommation: ses Sound, Colour, Bloomington: University: 1985:62- tratégia de virar ao avesso o espetáculo da cidade pelo recurso à contramemória e a contraitinerários. Tais percursos revelariam a potência dos espaços abandonados, fora das principais vias de circulação, e dos objetos antiquados excluídos de suas superfícies polidas. Essa estratégia encarnava uma recusa ao presente imposto; ao recuperar fragmentos de um passado arruinado, esboçava-se implicitamente uma imagem alternativa de futuro. E, apesar da natureza equívoca de muitos desses gestos surrealistas, não é por acaso que eles reapareceriam, sob novas formas, nas táticas situacionistas dos anos 60, na noção de deriva ou perambulação, de desvio (détournement), de psicogeografia, de ato exemplar e de situação construída. Se hoje essas práticas têm ainda alguma vitalidade ou mesmo relevância, isso depende em larga medida do que uma arqueolo- Tradução Livia Flores Lopes Revisão técnica Tadeu Capistrano in Teresa de Lauretis and Stephen Heath (eds.), The Jephcott and Kingsley Shorter, London: New Left Cinematic Apparatus, London: Macmillan, 1980:38-46. Books, 1979:239. Christopher Phillips sugeriu-me “tardio” amplia essa referência: “Não existe nada parecido com moda numa sociedade de castas e estamentos, onde cada um tem seu lugar assinalado de forma irrevogável. Assim, a mobilidade de classes é inexistente. Uma proibição protege os signos e 11 Henri Bergson, Matter and Memory, trad. N. M. Paul and W. S. Palmer, New York: Zone Books, 1988:101-103. assegura-lhes total clareza; cada signo se refere 12 Ver, por exemplo, Félix Guattari, Les machines inequivocamente a um status (…) Nas sociedades concretes, in La revolution moleculaire, Paris: Encres, de casta, feudais ou arcaicas, os signos são 1977:364-376. numericamente limitados e de difusão restrita (...) 13 “Pelo contrário, ele [Bergson] rejeita qualquer Cada signo é uma obrigação recíproca entre castas, determinação histórica da memória. Ele consegue clãs ou pessoas.” Simulations, trad. Paul Foss, New assim antes de mais nada se distanciar da experiência York, Semiotexte, 1983:84. da qual se originou sua própria filosofia, ou 5 T. J. Clark, The Painting of Modern Life: Paris in the melhor, da experiência contra a qual sua filosofia Art of Manet and His Followers, Princeton: Princeton industrialismo em grande escala.” (Walter Benjamin, Este artigo foi originalmente publicado na revista October, v. 50, Outono, 1989:96-107. Illuminations, trad. Harry Zohn, New York: Schocken, 7 J. Crary justifica o uso do termo observador em 14 Baseei-me na valiosa pesquisa de William Uricchio, Rituals of Reception, Patterns of Neglect: etimológicas que remetem à conformação a usos e Nazi Television and its Postwar Representation, Wide códigos (observar uma regra, por exemplo). Enquanto Angle, v.10, n.4:48-66. Ver também Robert Edwin o termo espectador “designa uma testemunha que Herzstein, The War That Hitler Won: Goebbels and assiste a um espetáculo sem participar, tanto numa the Nazi Media Campaign, New York: Paragon, 1978. galeria de arte quanto no teatro”, o observador 15 Apud Uricchio, op. cit.:51. se inscreve na trama histórica como “efeito de um 16 Debord, Society of the Spectacle, sec. 64. discursivas, sociais, tecnológicas e institucionais”. 17 Michel Foucault, Discipline and Punish, trad. Alan Ver Crary, Jonathan. Techniques of the Observer: Sheridan, New York: Pantheon, 1976:217. on Vision and Modernity in the Nineteenth Century. Cambridge: MIT, 1990. (NT) A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 que o final da década de 1920 teria sido igualmente crucial para Debord como o momento em que o surrealismo foi cooptado, isto é, no qual seu potencial revolucionário original foi anulado por uma instância espetacular inicial de recuperação e absorção. 24 Sobre essas estratégias, ver os documentos em Ken Knabb (ed.), Situationist International Anthology, Berkeley: Bureau of Public Secrets, 1981. 25 Ver meu texto Eclipse of the Spectacle, in Brian Wallis (ed.), Art After Modernism, Boston: David Godine, 1984:283-294. reagia. Tratava-se da inóspita e ofuscante era do detrimento de espectador por suas ressonâncias sistema irredutivelmente heterogêneo de relações NOTAS Alexandra Anderson, New York: Viking, 1973:35. 23 Walter Benjamin, One Way Street, trad. Edmund 1969:156-157). totalmente novas de resistência e memória?25 22 Fernand Léger, Functions of Painting, trad. of the Cinema: The Coming of Sound to Hollywood, 6 Idem, ibidem:10. ministração e regulação da atenção exigiria formas 21 Idem, ibidem:29. 4 Uma passagem bem conhecida do Baudrillard meio a uma sociedade organizada como aparência? da circulação de informações – um sistema cuja ad- 20 Debord, Commentaires, op. cit.:17-19. 102; e Douglas Gomery, Toward an Economic History University Press, 1984:9. organizado principalmente em torno do controle e 1, 1989:Al. mythes, ses structures, Paris, Gallimard, 1970 :60. gia do presente tem a nos dizer. Estamos ainda em Ou entramos em um sistema global não espetacular 208 9 O historiador da ciência Francois Dagognet assinala Jonathan Crary é professor de história e teoria da arte moderna na Universidade de Columbia desde 1989. É cofundador e editor de Zone Books e autor dos livros Techniques of the Observer: On Vision and Modernity in the Nineteenth Century (MIT Press, 1990) e Suspensions of Perception: Attention, Spectacle and Modern Culture (October Books, 2000). Tem inúmeros artigos publicados em revistas como Art in America, Artforum, October, Assemblage, Cahiers du cinéma, Film Comment, Grey Room e Domus, além de ensaios críticos em mais de 30 catálogos de exposição. 18 Idem, ibidem:218-219. TE M ÁTI CAS | JO N ATH AN CRARY 209 Analu Cunha Cinema mudo, 2011 210 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 ARTI G O S | CYB E L E V I DAL N E TO FE RN AN DE S 211 RESENHAS Heloisa Schneiders da Silva obra e escritos Zielinsky, Mônica (org.) Porto Alegre: MARGS, 2010 Glória Ferreira Merecedor do V Prêmio Açorianos de Artes Plásticas de 2011, o livro Heloisa Schneiders da Silva obra e escritos, com impecável organização de Mônica Zielinsky, nos introduz ao potente universo da produção de uma artista que, embora ainda pouco reconhecida no resto do Brasil, conta com ampla estima no meio de arte do Rio Grande do Sul. Morta em 2005, aos 50 anos, após árdua luta contra enfermidade degenerativa desde muito jovem, a artista vem tendo sua obra catalogada e difundida pelo Projeto Heloisa Schneiders da Silva, formado por iniciativa de familiares, amigos e profissionais da área. Depois de realizar, entre outras atividades, sua exposição monográfica em 2009, no MARGS, o projeto, com o apoio desse museu, através da Lei Rouanet, é responsável pela publicação em pauta, com extensa apresentação de sua obra pictórica e suas fotografias. Além dos esclarecedores textos de Mônica Zielinsky e do crítico Gaudêncio Fidelis, e de abrangente cronologia organizada por Beatriz Kessler Fleck e Ricardo Schneiders da Silva, são trazidos a público inúmeros escritos da artista. Reproduzidos de seus Cadernos de Anotações e apresentados em seções − Sobre arte, Sobre pintura, Outros escritos, Sobre arte postal −, eles permitem apreender suas reflexões a respeito de seu processo de trabalho e sua visão sobre a arte. Surpreende a densidade de sua pesquisa pictórica para quem praticamente desconhece seu trabalho, como é o meu caso, salvo por uma exposição na Galeria Macunaíma, em 1985, relatos de seus 212 parceiros, como Karin Lambrecht, e, agora, esse livro. Heloisa parece buscar os limites possíveis da pintura, como nos trabalhos dos anos 80, em que associa superfícies em que predomina a cor, estiradas, porém, como “peles no espaço”, perfuradas por caules, bastões de madeira ou troncos retorcidos. Nessas “pinturas-objetos”, assim nomeadas pela artista, “as telas”, assinala Mônica Zielinsky, “subvertem seu emprego tradicional e discutem os planos ortogonais que acolhem a pintura, enquanto esta passa a ocupar muitas vezes o espaço circundante”. Formada pelo Instituto de Artes da UFRGS, no qual ingressa em 1974, tendo como colegas e amigos, entre outros, Karin Lambrecht, Mara Alves, Simone Michelin, Regina Coeli, Renato Heuser, compartilha ativamente atividades acadêmicas e experimentais dos alunos, como na elaboração coletiva dos álbuns Relinguagem (1978) e Relinguagem (1979). Aluna de Carlos Pasquetti, desenvolve louvada pesquisa e produção na área do desenho, que se inscreve em momento singular de investigação em Porto Alegre e que leva, segundo a organizadora do livro, “a uma reavaliação do substrato construtivo e ideológico da produção artística local”. Durante breve período foi professora do Instituto de Artes e orientou artistas como Elida Tessler. Participou igualmente de diversas ações coletivas de caráter experimental e dos debates sobre os caminhos da arte e de sua circulação pública, algumas realizadas no Espaço N.O. “Em meio a essas escolhas”, ainda de acordo com Mônica Zielinsky, “a artista salienta, desde os primeiros tempos de vida artística, a importância que atribui à experimentação e à multiplicidade de ações; compreende a arte como manifestação plural, que se estabelece como rede, ao referir-se, a título de exemplo, à arte postal”. É conhecida sua relação com a natureza, tendo adotado, durante longo período, o lobo como A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 temática de muitos trabalhos. Simone Michelin, em breve conversa, informa que o lobo como símbolo revelava sua busca de certa pureza associada com a questão do animal. Em seu ensaio sobre a obra da artista no contexto dos anos 80, Gaudêncio Fidelis assinala que “a predisposição de conviver com um universo próximo à natureza foi, antes de tudo, uma posição política da artista que teve impacto direto na realização de sua pintura e que a diferencia conceitualmente dos novos selvagens ou expressionistas, com suas atitudes mais cínicas em relação à linguagem da pintura como uma tradição histórica e culturalmente definida”. Enfim, se o livro Heloisa Schneiders da Silva obras e escritos tem o grande mérito de nos introduzir no universo dessa apreciada artista, ele aporta também amplo e necessário conhecimento sobre a relevante produção artística contemporânea no Rio Grande do Sul. No contemporâneo: arte e escritura expandidas Roberto Corrêa dos Santos; Renato Rezende Rio de Janeiro: Ed. Circuito, 2011, 124p. Ana Mannarino Os autores de No contemporâneo: arte e escritura expandidas enfrentam o desafio de desenvolver livro acerca de uma produção artística que é, ela própria, a um só tempo, proposição estética e reflexão teórica: o trabalho de artistas contemporâneos brasileiros que operam nas fronteiras, dissolvidas, entre artes plásticas e poesia, imagem e escrita, texto e visualidade. Como refletir e produzir um livro acerca dessa produção sem trair seu propósito de abertura, sem reduzir sua força, sem limitar suas possibilidades de aproximação e de leitura? Paralelamente, não há como negar a necessidade dessa reflexão sobre as obras, de debruçar-se sobre elas, provocando conexões que potencializem seu alcance e a produção de novos sentidos e relações. O caminho proposto pelos autores é fazer um “livrode-artistas-pesquisadores” situando-o também na mesma difusa fronteira entre pesquisa teórica e produção artística em que se encontram as obras nele abordadas. Na breve introdução ao livro, parte do Projeto para a Construção Adisciplinar de uma Teoria da Arte, do Instituto de Artes da Uerj, Santos e Rezende discorrem sobre algumas das principais questões que os nortearam no desenvolvimento do trabalho, dentre as quais se destacam o exame desconstrutivo de categorias relativas ao fazer artístico e à produção histórica e crítica; a célebre definição de campo ampliado de Rosalind Krauss; e a busca de uma teoria da arte ligada às práticas contemporâneas, evitando-se modelos totalizantes e limitadores – propondo a expansão da prática relacionada à produção e análise de obras que recorrem a escritos, grafismos, livros de artista. A relação entre arte e escritura é profícua e estende-se por diferentes épocas e lugares. Os autores traçam um dos percursos possíveis no diálogo entre palavra e artes visuais, entremeando citações e referências críticas e históricas com conceituações próprias, em texto que transita entre a escrita teórica e a poética. Trata-se, contudo, de caminho sugerido, em que o leitor não é conduzido a direção definida, mas levado a passear por uma colagem de textos cujos “fios soltos” permitem diversos percursos. A escrita que embaralha versos e fragmentos constitui uma espécie de diálogo entre textos próprios e alheios, uma coleção de apontamentos e ideias. O livro passa pela arte norte-americana das décadas de 1960 e 1970, pela poesia concreta brasileira, pelo Manifesto Neoconcreto, pelo Tropicalismo, pela poesia em contexto digital. O RE S E N H AS 213 discurso videográfico, “impuro por natureza”, a confluência de mídias e o fim da especificidade do meio nas artes têm destaque na abordagem dos autores – assim como considerações acerca do momento contemporâneo, principalmente no que diz respeito ao fim das certezas estéticas e à fluidez entre os meios. As citações e referências de teóricos como Rosalind Krauss, Antonio Risério, Philadelpho Menezes, Giorgio Agamben, Jacques Rancière, Antonio Cícero – para mencionar apenas alguns – costuram uma trama de reflexões e interrogações sobre arte, palavra, filosofia, política, poesia e linguagem que repercute nos outros dois discursos que integram o livro de Santos e Rezende: o texto dos autores (formados por frases curtas, quase versos) e as imagens do trabalho dos artistas Adolfo Montejo Navas, Alberto Pucheu, Alberto Saraiva, Brígida Baltar, Laura Erber, Leila Danziger, Lena Bergstein, Lenora de Barros, Ricardo Basbaum e Rosana Ricalde. No texto dos autores, entremeado pelas referências, algumas palavras são pontos de partida para séries de frases e reflexões sobre arte e outras categorias caras à discussão proposta – arte, escrever, ato, homenagem, modernidade, contemporâneo, ideia, obra, pensamento, conceito, ponto – em tentativas de esgotar seu sentido, mas que não se esgotam, se multiplicam. São afirmações, reflexões, contestações que às vezes conferem ao livro ares de manifesto – pensamento sobre arte, arte voltando-se para si própria, arte conceitual. O projeto gráfico, assinado por Lucas Osório, desempenha papel importante nesse entrelaçamento de discursos. Emprega diferentes pesos de texto, usando duas tipografias – uma para as citações e referências históricas e críticas, a outra para os versos e frases dos autores – e diversos tamanhos de letras, em manchas gráficas variadas de texto, explorando a dimensão espacial 214 da palavra. Não há relação direta entre texto e imagens; eles constituem discursos paralelos. Embora tratem do mesmo tema geral, um discurso não está submetido ao outro (apesar de se cruzarem em alguns momentos, como quando as reproduções de frames do vídeo Homenagem, de Lenora de Barros, aparecem lado a lado a algumas possíveis definições propostas para o termo que dá nome à obra). Textos e imagens têm igual peso na constituição do livro. A disposição dos elementos permite diversas possibilidades e níveis de leitura, tanto uma leitura linear, que siga o texto na sequência das páginas, como leituras não sequenciais, que se dão ao se folhear o livro, ao se lerem prioritariamente as imagens, os fragmentos de texto ao acaso. Se o texto às vezes recebe tratamento de imagem, destacado na página, cercado de amplos espaços em branco, também a imagem é às vezes tratada como texto – por exemplo, as imagens do vídeo de Brígida Baltar, que é reproduzido como uma série de frames disposta no espaço, a ser “lida” sequencialmente. Repleto de referências artísticas e literárias, o livro constitui importante fonte para os que se interessam pela pesquisa sobre confluências de arte e escritura, sobre as complexas relações entre as mídias e a desconstrução das categorias artísticas no mundo contemporâneo. Ponto de conjunção de pensamentos, vertentes e caminhos, ele abre uma gama de possibilidades a serem percorridas. É livro para ser lido e relido, visto e revisto, estudado e fruído, bem-sucedido nos desafios a que se propõe. Gerhard Richter, Sinopse Pinacoteca do Estado de São Paulo, São Paulo, 23 jul.-21 ago. 2011 Alvaro Seixas A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 Na exposição Sinopse (Survey), Gerhard Richter (1932, Dresden, Alemanha) assume a figura de artista-curador para realizar um passeio resumido por sua própria produção. Constituída de 27 obras entre pinturas, fotografias e gravuras, exibiu-se na Pinacoteca do Estado de São Paulo depois de percorrer outras importantes cidades da América Latina e do Brasil. No final da década de 1960, em mainstream artístico que começava a afirmar as chamadas “novas mídias” como sendo o mais novo degrau da ascensão a formas superiores de arte, o artista alemão persistiu – desse modo anacrônico – na pintura tradicional, tendo reativado criticamente certos aspectos de estilos que começavam a ser enfraquecidos pela crítica da época, como o expressionismo abstrato. na década de 1920 pelo historiador alemão Aby Warburg,1 que consistia em uma série de painéis móveis, sobre os quais o historiador dispunha suas coleções de imagens da cultura visual universal, sob forma até então inconcebível segundo as normas acadêmicas, ajustadas em rígida linearidade e limitações geográficas. Warburg passa a identificar as imagens como possuidoras de uma espécie de “memória coletiva” ou “social”, passando a interligar tempos históricos não lineares e as artes visuais produzidas em partes do globo até então distantes e, para as tradicionais “Histórias da Arte”, de impossível associação. Para confeccionar muitos de seus trabalhos de pintura, o artista busca referências em registros fotográficos – pessoas, coisas e cenários reconhecíveis e desconhecidos –, imagens vindas de uma espécie de armazém aparentemente sem limites que é o mundo globalizado, articuladas pelo artista a outras obras de natureza supostamente “abstrata”. A mostra em questão é composta em grande parte por obras que consistem em pequenas e médias reproduções fotográficas – impressas em off-set – e de pinturas representativas do artista que, aliás, originalmente tiveram como base a estética fotográfica e com ela mantiveram forte relação visual – é o caso dos retratos Betty (1991) e Tio Rudi (2000). Também estão presentes obras da série Pinturas Abstratas, mas em tamanhos modestos, adequando-se ao perfil das reproduções fotográficas em exposição. Há ainda uma fotografia com intervenções de pintura – da série Fotografias Pintadas –, uma única obra de grandes dimensões e um painel fotográfico datado de 1998, formado por 128 detalhes em tons de cinza de Halifax, pintura a óleo abstrata, de denso impasto, feita pelo artista em 1978. Resta mencionar curiosa linha do tempo em offset, semelhante a uma página de enciclopédia, diagramada por Richter em 1998, na qual o artista nos apresenta seu resumo pessoal da história cultural ao destacar nomes de importantes artistas plásticos, arquitetos, escritores, músicos e filósofos. A produção de Richter define uma estratégia “documental” pouco ortodoxa, comparável ao curioso Atlas de Imagens Mnemosine concebido Em sua Sinopse, Richter parece menos interessado em apresentar uma exposição de obras únicas ou de grande formato, que se poderiam encerrar em A opção por intitular sua mostra Sinopse a identifica como uma espécie de “retrospectiva precária”, sortilégio conceitual que se liga diretamente ao modus operandi do artista, que em sua produção não cessa de nos apresentar a um universo visual diversificado, fragmentado e lacônico. Desse modo, Richter opta por um passeio vago, assumidamente sintético e, assim, incompleto, por sua obra para rediscutir as ambições acadêmicas das tradicionais, grandes e pretensiosamente completas retrospectivas de artistas. RE S E N H AS 215 sua própria plasticidade, e mais em lançar um olhar sobre o caráter conceitual e heterogêneo de sua produção e nos desafiar a adentrar sua lógica difusa. NOTAS 1 Para estudo da relação entre as produções de Gerhard Richter e Aby Warburg, ver Buchloh, Benjamin. Atlas de Gerhard Richter: o arquivo anômico. In: Arte & Ensaios, v.1. n.19. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Escola de Belas Artes, UFRJ, 2009: 194-209. José Resende Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, 9 jun.-18 set. 2011 Felipe Scovino Tomar contato com a recente produção de José Resende é refletir sobre questões universais da escultura (monumentalidade, forma, técnica e presença no espaço). A sentença soa como chavão, mas é nesse momento que se revela a diferença em seu trabalho e particularmente nessa exposição. Devemos partir do princípio de que o conjunto de cinco esculturas foi pensado para o Salão Monumental do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Sendo invadido por luz e natureza, formando uma espécie de continuidade com seu entorno e, portanto, expondo seu espaço a feixes externos de atravessamento, o próprio MAM-RJ não conhece seus limites, digamos, estruturais. É uma extensão desse panorama que sobrevoa a exposição de Resende. Compreender que o (suposto) limite da escultura não termina em sua apreensão formalista, mas que o campo de diálogo estabelece fruição inclusive com o meio em que está inserido. Apesar de sua grandiosidade, o resultado plástico nesse 216 conjunto de esculturas contraria a tendência à busca das manifestações espetaculares e sublinha original dimensão de sobriedade. Permanecem em território ambíguo porque tanto atuam como formulações de ficções individuais quanto formam uma rede de interlocuções de impossível desmembramento. Essa exposição também reflete a possibilidade de um trabalho tornar (ainda mais) específico um lugar. A conclamada sobriedade se faz no diálogo entre a escala das esculturas e a necessidade de percurso que elas invocam ao espectador − discursar sobre o corpo a partir não apenas da experiência física do percurso em torno das esculturas, mas singularmente expor uma visão de mundo, que passa pelo aspecto estabilizador (e potencialmente desestabilizador) da escultura. São obras que se condicionam como verbo de ação, na condição, portanto, de revelar a instabilidade da matéria e a situação de um corpo em permanente estado de desequilíbrio com o meio. Esta última característica também pode ser confundida com dúvida ou incerteza. Suas esculturas parecem duvidar de sua própria condição de imobilidade porque almejam o espaço e o diálogo. Parecem descontentes com sua qualidade de imagem ou forma de aparição no mundo. Há um desconforto pairando sobre aquele território. Os elementos dessas esculturas são experimentados como estruturas físicas. Ora, suas vigas e estacas são dispostas a intervalos largamente espaçados sustentados como que por pernas. Ora, uma estrutura vertical em cobre e preenchida de forma intercalada por madeira nos remete tanto a uma magistral coluna vertebral quanto a uma manifestação totêmica. Assim, a forma de seu trabalho e a noção de totem convertem-se em duas metáforas interligadas e recíprocas, que apontam para um mesmo aspecto: o repertório de formas do cotidiano que, deslocadas de seu contexto e identidade, A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 criam coerente e contínuo discurso sobre o corpo e visão de mundo muito particular e instigante sobre a contemporaneidade. Uma terceira obra é formada pelo “diálogo” entre dois círculos de cobre fixados por duas espécies de sapatas e tendo em suas extremidades um conjunto de longos fios de aço. É surpreendente como de certo modo essa imagem congela um tempo e uma ação. Há um dado de velocidade sendo transmitido ainda que estejamos diante de uma escultura que, entretanto, no exato momento em que tomamos ciência dessa imagem, se transforma em corpo vibrátil. Essa ideia é reforçada pela relação totêmica que a obra também explora, nesse caso imagem que pode ser identificada com temas sexuais e canibalísticos. A aparição dessas obras é sempre resultante de economia de gestos e materiais que se convertem harmonicamente em um corpo. Este vem à tona na obra de Resende porque sua presença no mundo é incondicionalmente necessária. Ademais, a ideia de corpo torna efetivas a inserção e a vontade do sujeito na produção escultórica. O tom confessional de Resende nos faz refletir a respeito de não sermos um conjunto de significados privados que podemos escolher entre tornar ou não público. Esses gestos são resultantes das convenções e do repertório do lugar que habitamos ao mesmo tempo em que se convertem (e logo se impõem) como discurso sobre nossa vontade de expor, organizar e modificar essa “ordem natural das coisas”. Ana Linnemann, Cartoon Galeria da Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de Janeiro | 15 jun.-31 jul.2011 Curadoria de Fernando Cochiarale Vera Beatriz Siqueira A chegada à exposição Cartoon, de Ana Linnemann, é marcada pela presença bem-humorada de uma palmeira, plantada no canteiro em frente à Casa de Cultura Laura Alvim, na praia de Ipanema, no Rio – Os invisíveis no8. Ao lado da escultura de Franz Weismann, Quadrado em torção no espaço, que há anos identifica o espaço cultural, a palmeira não chamaria propriamente atenção, em meio a tantas outras da orla carioca, a não ser pelo fato de realizar, de tempos em tempos, rotações sobre si mesma. Após o que para de forma abrupta, mantendo a ondulação de suas folhas por instantes antes de reconquistar a quietude. Um leve sorriso se insinua no rosto do espectador que, curioso, sobe as escadas da galeria. Ao entrar na sala, mais uma experiência inusitada: na parede lateral, estranhas protuberâncias se projetam, a intervalos regulares, em três leves manchas que parecem indicar infiltrações – Os invisíveis no9. A sutileza da obra e os intervalos longos entre uma aparição e outra fazem com que, a princípio, duvidemos do que vimos. Ilusão? Realidade? A surpresa traz novo sorriso. As folhas empilhadas de uma estante articulável e um par de xícaras cortadas como se fossem cascas de frutas – da série O mundo como uma laranja – convidam o visitante a participar de uma curiosa e instigante experiência estética. Surpreendidos pela palmeira que gira, pela parede que se projeta ou pelas xícaras retalhadas, nos vemos imediatamente desarmados, destituídos das formas tradicionais de apreciação estética. As ideias mais corriqueiras que nos apoiam na experiência de visita às exposições de arte não parecem funcionar direito. Sequer há objetos, bases, molduras, etiquetas para nos auxiliar. A estante articulável vai escrevendo o roteiro da mostra, marcado antes por fissuras e interrupções do que pela continuidade. Em cada obra vivemos a fragmentação. Logo à RE S E N H AS 217 esquerda de quem adentra a sala central, duas pesadas pilhas de tiras retangulares de feltro são costuradas no centro de uma de suas bordas, ficando uma à frente da outra, com essas bordas para fora da prateleira interrompida que, por sua vez, avança sobre o vão de passagem para outro espaço da galeria. Entre as tiras que compõem cada pilha, é colocada uma pérola, detalhe caprichoso que reforça o sentido de intervalo e descontinuidade, além de contribuir para a instabilidade da peça, completada pelo fato de a linha de costura permanecer estendida pela agulha, apenas tensionada e enfiada na trama do feltro. Como o título da obra sugere – Inevitável –, ficamos suspensos no tempo, aguardando o momento em que o conjunto pode vir a se desmanchar. Novamente é a descontinuidade e o sentido intervalar que surgem nos retângulos de azulejos iluminados frontalmente por spots, que devem ser vistos pela face posterior, na qual aparecem os traços, vertical ou horizontal, formados pela luz que vaza de intervalos na junção dos ladrilhos – Frestas de luz 1 e 2. Outros objetos da série O mundo como uma laranja – como o tênis All Star, o relógio que, nessa mostra, se conecta com a luminária acima, o globo ou os livros fatiados – ajudam a exacerbar a sensação de espacialidade fragmentada. Como se Ana Linnemann recusasse, antes de tudo, qualquer solução de continuidade, qualquer forma de inscrever a totalidade, qualquer possibilidade de estabelecer entre a arte e o mundo uma relação ausente de fricções e rupturas. Como afirma em seu site: “Eu faço objetos que, sendo improváveis, criam novas situações para o que é possível”. O que a leva a trabalhar justamente com as fissuras do real. Cortes, incisões, vaivens de invisibilidade, instabilidades de sentido são algumas das estratégias de manifestação desse jogo de improbabilidades e possibilidades. Pois na afirmação da artista podemos perceber sua busca 218 deliberada por criar novos mundos, nos quais o elemento lúdico e a ilusão são essenciais para evitar que a arte se dissolva na realidade. Como se a artista lançasse, no limite, a pergunta sobre as condições de possibilidade da própria arte no contexto atual. Empenhada em recuperar para a experiência da arte alguma ordem de autonomia com relação à realidade mundana da qual parte, a artista, porém, deve recusar as narrativas totalizantes, sejam as mais tradicionais, sejam as recentes. O que nos leva a outra dimensão de sua obra. Encontramo-nos igualmente incapazes de ordenar a experiência a partir dos temas mais correntes na arte contemporânea. Seus globos cortados – O mundo como uma laranja (globo) – ou esmagados nos nichos da estante em ziguezague – Ziguezague com globos – não falam, por exemplo, de identidades, multiculturalismo, hibridismo ou territorialidades. Os cortes e os achatamentos falam, sim, de uma realidade ambivalente, entre a imagem símbolo de nosso mundo e a matéria de que é feito. Novamente, ficamos desarmados e desassistidos diante do humor, que não deseja sequer reter a dimensão mais conceitual da ironia duchampiana. Em XS, fatias de pedra-sabão são bordadas com fios coloridos de algodão e seda, seguindo os padrões florais em ponto-cruz de revistas de trabalhos manuais, executados caprichosamente pela artista. À pura fisicalidade da rocha ela opõe o trabalho com as linhas, forçando a matéria a perder sua autossuficiência e a se converter em suporte. Ao mesmo tempo, o gesto de bordar deixa de ser íntimo e delicado, para envolver furos na pedra resistente e uma artesania bruta. Curiosa reflexão sobre a natureza se impõe: a rocha perde sua materialidade autossuficiente, as flores nascem do trabalho da artista. O resultado, novamente, é o sorriso diante do inusitado. Também ao costurar zíperes em folhas secas, Ana Linnemann retoma A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 esse sentido dúbio e indefinido da natureza, entre matéria-prima e fluxo orgânico. Em outras obras ela nos coloca diante da experiência da indecisão sobre a figura geométrica. É o caso de 1 nível/3 níveis, na qual três copos transparentes, com diferentes quantidades de água, dispostos em níveis distintos nas prateleiras articuladas, são unificados pela virtualidade da linha reta que se pode traçar a partir da superfície do líquido em cada recipiente. Ou dos delicados bordados em tira de feltro, nos quais o círculo e o quadrado são formados não apenas pela trama de linhas, mas também pelas agulhas (curva e reta) que, aliás, determinam o tamanho das formas. Sugere, assim, uma espécie de interioridade problemática ou dúbia da forma geométrica. Todos esses dilemas surgem, entretanto, sem que a artista faça uso de outra ordem de totalização, valendo-se para tal da centralidade da dimensão do jogo. É preciso suspender os discursos por meio da surpresa, da ilusão e do riso. Destituir a miniatura da célebre performance de Joseph Beuys, I like America and America likes me, de toda profundidade cultural e histórica. Fazê-la girar sobre um cd, acionado por uma geringonça mecânica, ligada a uma tomada escancaradamente incrustada na lombada de livros escavados que, por sua vez, viram-se de costas para nós. Recupera, assim, o sentido bem humorado e improvável da própria performance citada, agora desprovida de toda aura e convertida em ação ininterrupta e sem direção, repetida como em uma caixa de música muda – Beuysiana. A referência a Joseph Beuys volta a aparecer em Os invisíveis no2, obra na qual uma garrafa de coca-cola se desloca lateralmente sobre uma pilha de livros encimada por exemplar sobre o artista alemão. Aqui, Ana nos fazer experimentar vários níveis de encontros insólitos: entre o movimento motorizado da garrafa e a imobilidade silenciosa dos livros; entre as elaboradas publicações de arte e a própria garrafa plástica de refrigerante – que se situam em polos opostos na hierarquia dos objetos produzidos pelo homem; – mas também entre os livros sobre Leonardo da Vinci e Bonnard, o minimalismo e Lucio Fontana, e o discreto, porém insidioso, exemplar de Dick Tracy: America’s most famous detective. Junto aos artistas renomados, esse herói de histórias em quadrinhos parece forçar um sorriso amarelo, promovendo o questionamento a respeito das frestas que separam realidade e ficção, cultura pop e erudição, valor estético e fama. Talvez, porém, a presença desse livro seja ainda mais significativa. Poderíamos pensar nela como uma espécie de chave de compreensão de toda a mostra, cujo título, aliás, refere-se ao universo dos comic books. É Dick Tracy quem parece oferecer a Ana Linnemann a possibilidade de criar novas situações para a arte, sem descambar para as soluções tradicionais ou para a discursividade característica da contemporaneidade. É ele quem vai permitir que ela se diferencie, por um lado, da figura do artista como gênio, presente tanto em Leonardo quanto na influência romântica em Beuys, e, por outro, da exteriorização absoluta das formas simples do minimalismo, a recusar qualquer resquício de autoria. O detetive criado em 1931 que, durante décadas, desvendou mistérios e solucionou crimes, serve à artista como contraponto necessário para seu empenho em atualizar a tarefa artística de reconfigurar o real. Projeto ambicioso e especialmente relevante na contemporaneidade. Não nos deixemos, portanto, iludir pela aparente facilidade de seus trabalhos – instância necessária de aproximação e contato. Suas obras querem nos pegar, pretendem atrair e prender o espectador pelo humor, pela ilusão, pelo desafio a nossos dispositivos perceptivos. Desejam mais do que RE S E N H AS 219 isso, entretanto, ao nos envolver na experiência da fricção, da fissura, da indeterminação, sugerindo que cabe à arte contemporânea estabelecer uma relação nova (de descontinuidade) com o mundo. Rejeitando as narrativas tradicionais, mas também a afetação conceitual, a recusa de sentido pós-moderna, a negação da autoria ou o ceticismo pop, e recuperando uma ordem nova de autonomia da experiência estética, os jogos visuais propostos na mostra Cartoon criam um espaço fragmentário em que experimentamos a arte em sua natureza híbrida, simultaneamente extraordinária e comum, especial e corriqueira, grandiosa e ridícula. Francis Alÿs A Story of Deception MoMA Manhattan / MoMA PS1 8 mai.-1o ago. 2011 Doris Kosminsky O título da mostra do artista belga Francis Alÿs, A Story of Deception, fala do desejo de perseguir o que sempre parece nos escapar. Trata-se de conceito que o artista instala entre a poética e a política. Alÿs vive no México desde a década de 1980. Essa mudança de continente proveu-o de ponto de vista único, embora problemático, do intruso, do estrangeiro dono de olhar aguçado ante a realidade naturalizada. Nesse contexto, os ciclos de avanços e retrocessos nos campos da política e da economia, tão frequentes nos países da América Latina, são colocados como repetições e tentativas de alcançar um futuro nunca concluído ou plenamente realizado. Uma miragem do que poderíamos ser, mas com resultado sempre decepcionante. Essa descrença na retórica moderna do desenvolvimentismo e do progresso perpassa a obra que o artista apresenta 220 em instalações, vídeos, sketches preparatórios, desenhos, pinturas, colagens e fotografias. O olhar estrangeiro mostra-se explícito na fotografia Turista (1994) em que o artista aparece identificado por uma placa com a palavra “turista”, ao lado de trabalhadores temporários com suas placas: “eletricista”, “bombeiro”, “pintor e gesseiro”, etc. A figura de Alÿs, mais alto e usando óculos escuros, destaca-se dos outros homens, de vidas precárias. De certa forma, com sua presença, o artista oferece seus serviços como turista para quem quiser ver o mundo através de seus olhos. Como essa imagem, a obra de Alÿs consiste fundamentalmente da documentação de ações e práticas poéticas. A natureza processual de seu trabalho é desdobrada em desenhos, pinturas, vídeos, filmes, fotografias e cartões-postais, além de objetos menos óbvios, preparatórios da ação artística, tais como cópias de e-mails e anotações. Se seus vídeos não são a obra em si, mas um meio para fixar e apresentar a obra, os recortes de jornais e desenhos que acompanham as instalações não buscam ser ilustrações explicativas dos processos. Parecemse mais com enigmas ou fragmentos do pensamento do artista, envolvido em processos que muitas vezes requerem financiamento e minucioso planejamento, além da participação de voluntários e contratação de profissionais especializados (cinegrafistas, editores de imagem, etc.). O entrelaçamento entre política e poética em jogo que nunca é concluído satisfatoriamente aparece claramente como metáfora no vídeo Rehearsal I (1999-2001). Nessa obra de 29 minutos, assistimos às inúmeras tentativas de um fusca vermelho em alcançar o topo de uma íngreme estrada de terra ao som do ensaio de um grupo de mariachis. A cada vez que os músicos interrompem o que estão tocando, seja para afinar os instrumentos A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 ou trocar comentários, o fusca desce a ladeira de ré até que a volta da música o encaminhe para nova tentativa. O ensaio que fazem, ao mesmo tempo, o grupo folclórico e o carro em sua repetida tentativa de alcançar o topo, sugere uma alegoria às frustradas tentativas das nações sulamericanas de alcançar o progresso. A sonoridade dos mariachis cria certa comicidade ao mostrar o empenho diante das sucessivas frustrações. A obra Tornado (2000-10) documenta 55 minutos de ação que se desdobra em tentativas de alcançar o epicentro de redemoinhos de vento, frequentes nas regiões empoeiradas e secas ao sul da Cidade do México. O processo da ação consiste na aproximação em direção ao tornado. Ao adentrar a nuvem de poeira, a tela escurece. Ao fim de alguns segundos de escuridão, em que só se pode ouvir o ensurdecedor som do vento e a respiração ofegante do artista, temos a sensação de que Alÿs e seu aparato foram cuspidos para fora do redemoinho. O processo se repete sem conclusão, sugerindo a eterna e utópica luta entre dom Quixote e os moinhos de vento. O vídeo Guards (2004-5) registra proposição envolvendo os famosos guardas ingleses. De início, eles marcham individualmente pelas ruas de Londres. À medida que se encontram, entram em formação e passam a marchar juntos. O ritmo sincopado da marcha acaba por atrair e fixar um número maior de soldados. Quando o grupo atinge o número de oito por oito guardas, dirige-se à ponte mais próxima. Ao alcançá-la, a formação é desfeita, e o grupo se dispersa. A construção da ação é documentada por tomadas precisas. A edição reforça o enredo da proposta. O único áudio da obra vem do marchar dos soldados, que vai aumentando à medida que a ação avança. O trabalho pode ser lido com uma parábola do caminhar junto, do seguir os passos da maioria. A surpresa da dispersão final desvela o estado de suspensão do significado que se encontra na natureza do ato poético. Segundo Alÿs, a arte, através do ato poético de transgressão, pode nos fazer olhar as coisas de modo diferente. Ou, pelo menos, o absurdo da situação pode fazer-nos pensar que as coisas poderiam ser diferentes. Talvez seja esse o caso da obra Reenactments (2000), constituída por dois canais de vídeo. O primeiro é a documentação de ação realizada pelo artista. Ele entra em uma loja, compra e carrega um revólver e sai caminhando pelas ruas com a arma em punho até ser detido pela polícia. No dia seguinte, e por isso as duas sequências de imagens, a ação é re-encenada com a cooperação da polícia. Ao apresentar, lado a lado, a ação dramática e sua simulação, o artista dissolve a fronteira entre documentação e ficção, questionando a autenticidade da obra. Ao mesmo tempo, discute a segurança da população mexicana diante da debilidade de sua polícia. Uma de suas obras mais conhecidas e documentadas, When faith moves mountains (2002), opera sobre uma inversão do princípio da eficiência reinante no pensamento moderno: “Máximo esforço, mínimo resultado”. Em ação de proporções épicas, Alÿs teve a participação de 500 voluntários equipados com pás com o objetivo de deslocar em alguns centímetros uma duna dos subúrbios de Lima. A obra pode ser considerada uma metáfora da sociedade latino-americana, em que o esforço e o sacrifício da população são solicitados de forma a alcançar resultados que, ao final, se mostram incipientes. A extensa obra de Francis Alÿs parece repetir o que captamos em seus atos poético-políticos: a necessidade de seguir sempre, a resistência ante a frustração mesmo diante de resultados desanimadores. Algo que Samuel Beckett assim resumiu: “Tente de novo. Fracasse novamente. Fracasse melhor.” RE S E N H AS 221 SUMÁRIOS DAS EDIÇÕES ANTERIORES Arte & Ensaios 22, 2011 Sucessão de fatos | Entrevista com Antonio Manuel ARTIGOS A história do cinema nas páginas da loucura: o espectador, a imagem e a dissociação | Tadeu Capistrano A Fotografia Subjetiva, abertura ao contemporâneo | Celso Guimarães O olhar e o tempo | Tiago Cotrim Aleijadinho em carne viva: o gesto na escultura | Leonardo Etero Processos de mediação | Beatriz Pimenta Velloso O ‘lugar’ negociado no qual o trabalho se move, sabendo-o e sabendo-se parte de um mundo maior, ou, se quisermos, desconhecido | Hélio Branco COLABORAÇÕES Tempo alterado. O flashforward da linguagem na vida e na arte | Fernando Gerheim Wols, pintor maldito, no acervo do Masp | Almerinda da Silva Lopes Ghérasim Luca aos pedacinhos | Laura Erber Tempo cego | Patricia Corrêa DOSSIÊ Tunga Uma vanguarda viperina | Carlos Basualdo Cópula | Viviane Matesco Um experimentador ocasional em equilíbrio instável | Suely Rolnik A constelação Didi-Huberman ou instruções para construir uma máquina de guerra visual | Hernán Ulm Arte & Ensaios 21, 2010 Não adianta procurar algo em sua transparência, porque o trabalho não está em lugar de nada | Entrevista com José Resende Eu nunca ensaio| Entrevista com Laura Lima ARTIGOS Anticristo | Cristina Salgado ARTIGOS Lugares que habitam lugares | Luiza Peixoto Baldan Inscrições contemporâneas: a palavraimagem no projeto da visualidade pósmoderna | Julie Pires Cena para um figurino: no corpo, no palco, na galeria | Desirée Bastos de Almeida Brasilidades na obra de Calmon Barreto | Gisele L. Faleiros da Rocha Etnografia e ficção: o documentário de Jean Rouch e o cinema brasileiro | Rogério Bitarelli Medeiros História da arte e ficções num caderno de notas de Eliseu Visconti | Ana Cavalcanti COLABORAÇÕES Jochen Gerz: o monumento como processo e mediação| Leila Danziger Queda do Solar de Smithson: ficção, disrupção e entropia | Tatiana Martins Deslocamentos de Vergara | Renata Santini Origem e permanência da crítica | Leandro Gama Junqueira DOSSIÊ Navilouca | Organização Cezar Bartholomeu, Inês de Araujo e Ronald Duarte REEDIÇÃO Quasi-cinema | Ligia Canongia Uma tradição negligenciada? A história da arte como Bildwissenschaft | Horst Bredekamp O que se mostra. Da diferença icônica | Gottfried Boehm Os cães e a cidade | Miwon Kwon Sobre (não) pintura considerada (não) arte comunista. O caso de Otto Muehl | Éric Alliez RESENHAS Livro ou livro-me: os escritos babilônicos de Hélio Oiticica (1971-1978) | Ana Mannarino A Série Negra | Gilton Monteiro 222 Religião e estética: a arte como comunicação | Mariana Emiliano Simões Ensaio sobre a perda do instante decisivo | Pollyanna Freire O risco como poética artística | Leandro Furtado O SDJB e as obras neoconcretas | Elizabeth Catoia Varela Da suspensão à implosão no caminho da arte e tecnologia | Maria Luiza Fragoso Transcendendo a fragmentação da experiência:o acousmêtre no ar nos filmes de Michael Snow| Randolph Jordan Forma em movimento: videoinstalações refletem sobre o tempo no MAC | Fernando Gerheim PÁGINA DUPLA Interface I, Janela no MNBA | Carlos Azambuja Refazendo passaportes: o pensamento visual no debate sobre multiculturalismo | Néstor García Canclini RESENHAS A arte e o 11 de setembro | Arthur C. Danto Contra o encerramento do desejo. A poesia concreta no Espacio de Lectura 1: Brasil | Fernando Nogueira O projeto do Renascimento |Ana Cavalcanti Arquivo contemporâneo | Ivair Reinaldim Arte & Ensaios 19, 2009 Jardim da Oposição | Guilherme Bueno A chama como experiência meditativa na cena teatral | Almir Ribeiro da S. Filho Emygdio de Barros: o poeta do espaço | Glória Chan Cultura visual porta adentro e a construção de um olhar decorativo no século 19 | Marize Malta Digitally Born ou de volta para o futuro | Simone Michelin COLABORAÇÕES REEDIÇÃO A nova teoria da representação | José Arthur Giannotti TEMÁTICAS A filosofia de Andy Warhol | Louise D.D. 2 em 1 | Kenny Neoob O ato poético como experiência estética no readymade de Marcel Duchamp | Renata Reinhoefer França DOSSIÊ Espaço Arte Brasileira Contemporânea – ABC / Funarte | Organização Ivair Reinaldim “Eu não trabalho com símbolos.” Joseph Beuys, a experiência e a construção da lembrança | Jean-Philippe Antoine Sophie Calle Cuide de você | Fernanda Pequeno Espaços virtuais: cantos, no 4, de Cildo Meireles - estudo de caso de uma metodologia de conservação e restauro de arte contemporânea | Humberto Farias Expressão conceitual sobre gestos conceituais em pintura supostamente expressiva, traços de expressão em trabalhos protoconceituais e a importância de procedimentos artísticos | Isabelle Graw A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 TEMÁTICAS O arquivo e a busca de visibilidade – Pinturas de gênero histórico nos álbuns fotográficos dos salões de Paris | Pedro de Andrade Alvim PÁGINA DUPLA| Cristina Salgado Sobre o ofício do curador | Luiza Interlenghi Atlas de Gerhard Richter: o arquivo anômico | Benjamin Buchloh Uma prática urbana entre outras: Enquanto o artista bebe água, a obra acontece | Fabrício Carvalho O que fazer da vanguarda? Ou o que resta do século 19 na arte do século 20? | Thierry de Duve Sergio Rodrigues. Um designer dos trópicos | Gloria Costa projetos [in]provados: visitação, texto e partilha | Maria Moreira Robert Smithson: a memória e o vazio na paisagem entrópica contemporânea | Martha Telles Por uma meta-história do filme:notas e hipóteses de um lugar-comum | Hollis Fra Cem, Sem, Imagens | Edith Magnan Arquivos da Arte Moderna | Hal Foster ARTIGOS Por uma oftalmologia do estético e uma ortopedia do olhar | Robert Morris A pintura como arte | Clarice Ferreira de Sá RESENHAS COLABORAÇÕES A ficção documental: Marker e a ficção da memória | Jacques Rancière RESENHAS Passaic, Nova Jersey | Robert Smithson Em outra vida acho que fui arquivista | Entrevista com Paulo Bruscky Cartografia da demarcação da terra que produz diamantes – cotidiano em suspensão | Fabíola Silva Tasca HOMENAGEM Vida ativa | Glória Ferreira e Sonia Gomes Pereira PÁGINA DUPLA Duplicação/Repetição/ Londres/Paris/ Patético/Trágico, 2008201 | Cezar Batholomeu O objeto e a experiência material | Marcus Dohmann TEMÁTICAS Inscrever-se em falso | Jacinto Lageira TEMÁTICAS Arte & Ensaios 20, 2010 A poética da memória e o efeito-arquivo no trabalho de Leila Danziger | Luiz Cláudio da Costa Campo/evento/arquivo, as possibilidades do arquivo atual como exposição problemática de (algumas) obras contemporâneas | Cristina Ribas Furor de arquivo | Suely Rolnik Felipe Cohen – Colagens | Sérgio Bruno Martins REEDIÇÃO Da Antropofagia à Tropicália | Carlos Zilio Sucessos e fracassos quando a arte muda | Allan Kaprow Repensando o Ocidente |A. Raghuramaraju PÁGINA DUPLA Alvo fácil: jogue a bomba aqui - Museu de Serralves, Porto, Portugal, 2008 - Bolsa Iberê Camargo, residência no Espaço Maus Hábitos | Ronald Duarte Arte & Ensaios 18, 2009 RESENHAS No território da fronteira | Entrevista com Dias & Riedweg Nova Arte Nova | Felipe Scovino ARTIGOS Imaginário Periférico: impasses, propostas e principais questões | Renata Gesomino A arte de Konstantin Christoff: possibilidades do estudo de uma região do norte de Minas Gerais e sua relação com a estética do grotesco | Maria Elvira C. Christoff Jeff Wall e a imagem quase transparente na fotografia contemporânea | Leonardo Ventapane Cindy Sherman – retardo infinito | Cezar Bartholomeu Na fronteira da pintura e do teatro: Tadeusz Kantor e Valère Novarina | Ângela Leite Lopes As decorações carnavalescas cariocas, um breve histórico | Helenise Guimarães COLABORAÇÕES Limites do tempo | Vera Beatriz Siqueira Caminhos da arte popular. O vale do Jequitinhonha | Rosza vel Zoladz Cildo Meireles - Tate Modern, Londres| Rodrigo Krul Estética relacional | Luciano Vinhosa As ilhas sonham | Marisa Flórido Cesar Arte & Ensaios 17, 2008 No Hemisfério Sul | Entrevista com Artur Barrio ARTIGOS Celeida Tostes e a narrativa do feminino | Isabel Hennig A arte de copiar: gravura, pintura e artista colonial | Raquel Quinet Pífano Escultura como imagem | Cristina Salgado Para chegar ao mictório deve-se descer a escada (em dois lances de 8 ou 80) | Milton Machado O projeto de Revitalização do Museu D. João VI da EBA / UFRJ, a reinterpretação do acervo do museu e sua nova curadoria | Sonia Gomes Pereira O reviramento do sujeito e da cultura em Hélio Oiticica | Tania Rivera O desvio de Cildo Meireles: um modo de estar no mundo contemporâneo |Sylvia Ribeiro Coutinho DOSSIÊ Warburg | Organização Cezar Bartholomeu, Aby Warburg, Giorgio Agamben Vem cá minha Teresa... | Marta Lúcia Pereira Martins Arte e deriva: a escrita como processoinvenção | Cecilia Cotrim A comunidade inventada da Puente México, Tijuana: participação e acolhimento no projeto de arte pública de Felipe Barbosa e Rosana Ricalde na fronteira entre dois mundos | Luiz Sérgio de Oliveira Circuito, cidade e arte: dois textos de Malasartes | Patricia Corrêa REEDIÇÃO Introdução à leitura de Winckelmann | Gerd Bornheim Seis conceitos | Bernard Tschumi TEMÁTICAS Um passeio pelos monumentos de COLABORAÇÕES Estratégias para não se perder na cidade Derivas urbanas de Sophie Calle | Cláudia França Idéias-em-forma: invervenções de S U M ÁRI O DAS E DI ÇÕ E S AN TE RI O RE S 223 Gordon Matta-Clark | Elena O’Neill arte no contato com ela | Lígia Dabul Agência Nacional | Renata Vellozo Gomes Abordagens da cultura popular carioca: Hélio Oiticica, Dias & Riedweg, Paula Trope e Rosana Palazyan | Beatriz Pimenta Velloso No olhar da imagem | Carlos Alberto Murad Arquitetura moderna brasileira e as experiências de Lucio Costa na década de 1920 | Ana Slade HOMENAGEM Dossiê Luciano Fabro | Simone Michelin, Glória Ferreira, Carlos Zilio, Vanda Klabin e Carla Vendrami A fragmentação do corpo do herói e a sensibilidade do final do século 19 | Maraliz de Castro Vieira Christo REEDIÇÃO A escultura no campo ampliado | Rosalind Krauss TEMÁTICAS Táticas de jogo da Internacional Situacionista | Libero Andreotti A polêmica em torno de Tilted Arc:: um precedente perigoso? | Harriet F. Senie Um lugar após o outro: anotações sobre site-specificity | Miwon Kwon O romance do espaço público | Adrián Gorelik COLABORAÇÕES Território: um evento que dá lugar à experiência estética | Luciano Vinhosa Corpo, caminhos e lugares | Alexandre Emerick Retrato fotográfico oitocentista: o corpo visto através do “olhar iluminista” | Lícius da Silva HOMENAGEM Dossiê Eliane Duarte | Paulo Venancio Filho, Chacal e Viviane Matesco REEDIÇÃO Breviário sobre o corpo | Lygia Clark PÁGINA DUPLA Sítios arqueológicos | Luciano Vinhosa TEMÁTICAS RESENHAS Masculino, feminino ou neutro? | Adrian Forty As coleções do Museu Nacional do Azulejo de Lisboa | Raphael Fonseca Colors of the world: a geography of color | Rosane Bezerra Soares Anita Malfatti, no tempo e no espaço | Messias Basques Experiência neoconcreta: momento limite da arte | Elizabeth Catoia Varela Últimos lançamentos da coleção Arte+ | Ivair Reinaldim Nova York delirante: um manifesto retroativo para Manhattan | Rodrigo Krul Bia Medeiros: trajetórias do corpo | Alexandre Emerick O corpo é imagem | Jean-Marie Schaeffer Vídeo: a estética do narcisismo | Rosalind Krauss Seguindo Acconci/visão direcionada | Christine Poggi Página dupla Ângelo Venosa RESENHAS A arte da performance – do futurismo ao presente | Alexandre Sá Espaço e performance | Alexandre Emerick The preference for the primitive | Rosane Bezerra Soares L’image ouverte | Cezar Bartholomeu Arte & Ensaios 16, 2008 Arte & Ensaios 15, 2007 A gente vai para o que ama | Entrevista com Ernesto Neto ARTIGOS Perguntas ordinárias em percursos existenciais – algumas considerações sobre a produção artística em contextos urbanos | Enrico Rocha As charges políticas e seu reflexo na sociedade | Octavio Aragão Antônio Bento e a vanguarda artística brasileira no final da década de 1950 | Ana Paula França Carneiro da Silva Conversas em exposição: sentidos da 224 Imagens migrantes | Janaina Garcia COLABORAÇÕES O Ateliê livre de gravura do MAM-Rio 1959/1969: projeto pedagógico de atualização da linguagem | Maria Luisa Luz Tavora Exercícios estéticos de ampliação de espaço e liberdade | Maria Luiza Tristão de Araújo A estética fenomenológica de MerleauPonty | Rosa Werneck A utopia expressionista de Kandinsky | Sheila Cabo Geraldo Instauração: um conceito na filosofia de Goodman | Noéli Ramme A ironia e suas estratégias na obra de Cildo Meireles | Felipe Scovino Arte contemporânea brasileira nas fronteiras do pertencimento | Marcelo Campos Off register: o retrato por Andy Warhol | Fernanda Lopes Torres Universos paralelos: Paul Klee e Mira Schendel | Beatriz Rocha Lagoa Compreender é julgar | Entrevista de Danièle Cohn a Glória Ferreira e Cezar Bartholomeu HOMENAGEM Jean Baudrillard – enigmas e paradoxos da imagem na era do simulacro | Rogério Medeiros REEDIÇÃO Modelos europeus na pintura colonial | Hannah Levy TEMÁTICAS Gênese de uma pintura de Paul Gauguin: manifesto e auto-análise de um pintor | Dario Gamboni Buren sobre Ryman, Moritz sobre Winckelmann: a crítica constitutiva da história da arte | Roland Recht Estúpida | Yve-Alain Bois Tornar o real .... | Entrevista com Iole de Freitas ARTIGOS Como se existisse a humanidade | Marisa Flórido Cesar Como fazer cinema sem filme? | Livia Flores As narrativas fotográficas de Marcel Gautherot: estudo visual do guerreiro alagoano e do bumba-meu-boi maranhense | Patrícia Pereira Peralta Cotidiano e cultura no Rio de Janeiro na década de 1950: os cinejornais da A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 Arte e política | Ana Mendieta Táticas para viver da adversidade. O conceitualismo na América Latina | Mari Carmen Ramírez Francastel e Panofsky: o espaço como problema | Jean Duvignaud PÁGINA DUPLA Carlos Murad. RESENHAS O documentário de Eduardo Coutinho: cinema, televisão e vídeo | Beatriz Pimenta. Auto Retrato - exposição na Fundação Serralves | Márcia Valéria Teixeira Rosa Manet: uma mulher de negócios, um almoço no parque e um bar | América Cupello O fim da história da arte | Mauro Trindade Escritos de artistas-anos 60/70 | Isabela Pucu Arte & Ensaios 14, 2007* Edição Especial - Correspondência Transnacional Livros, botes e pássaros | Sutapa Biswas entrevistada por Michael Asbury COLABORAÇÕES Longe ou perto demais para saber do que se trata | Moacir dos Anjos Sombras / Shadows | Michael Asbury A re-locação da autenticidade e os dilemas transnacionais | Oriana Baddeley O sonho americano (sonhos que o dinheiro pode comprar) - Notas sobre o inter-nacionalismo na cultura moderna | Guilherme Bueno conversa inacabada entre Vasif Kortun e Cuauhtémoc Medina | Cuauthémoc Mediria e Vasif Kortun Kosuth com Freud – Imagem, psicanálise e arte contemporânea | Tânia Rivera DOSSIÊ CORRESPONDÊNCIAS Formalismo e Modernidade | Guilherme Bueno Introdução | Malu Fatorelli Lances de Hubert Damisch. Pensando a arte na história | Ernst van Alphen Carta à mãe | Édouard Manet Carta a Anita Malfatti | Mário de Andrade Carta à família | Mário Pedrosa Carta a Mira Schendel | Vilém Flusser Carta a Hélio Oiticica | Lygia Clark Uma conversa com José Damasceno | Sandra Vieira Jürgens Por um último Ring-Gespräch | Catherine Bompuis Da prática da arte às outras práticas. O papel da arte na produção de realidade | Luciano Vinhosa Carta a Lygia Clark | Hélio Oiticica Brígida Baltar - Conversas por e-mail com Amal Saade e Christine Lemke, 2001 | Brígida Baltar HOMENAGEM Linguagens Visuais – 10 anos DOSSIÊ Instituições de arte no Brasil – relatos de experiências | Interface PÁGINA DUPLA David Medalla | Lúcia Nogueira REEDIÇÃO Salão de 1879 | Ângelo Agostini RESENHAS TEMÁTICAS l shall be the tropical sun | Suzana Vaz Os espaços discursivos da fotografia | Rosalind Krauss DoubtfuI Strait um modelo da celebração da incerteza | Joanne Harwood Entrevista a Harald Szeemann | Carolee Thea Diálogos espaciais: os derramamentos de caramelos de Felix Gonzalez-Torres | Deborah Cherry Tópicos sobre coletivos de artistas | Daniela Mattos/Alexandre Sá Arte e política à margem do multiculturalismo | Fernando Cocchiarale London, London | Cristina Salgado Abertura da cilada: a exposição pósmoderna e Magiciens de la Terre | Thomas Mc Evilley Questionando a necessidade de circular; fisicamente. Um encontro com Judy Freya Sibayan | ErikaTan Um meio à procura de sua forma as exposições e suas determinações | Katharina Hegewich Capítulos à parte | Glória Ferreira Este Corpo é Todo Poros | Milton Machado Vicissitudes do valor da anglicidade em Hamburgo do século 19: Nikolaikirche, a prefeitura e o sistema de água e esgoto | Toshio Watanabe Mira Schendel: rumo a história de um diálogo | Isobel Whitelegg Goeldi: um expressionista nos trópicos | Paulo Venancio Filho Justamente o contrário | Carlos Zilio Gostava da arte que produziam e gostava deles como pessoas. Assim, nos tornamos amigos | Entrevista de Guy Brett a Linda Sandino TEXTOS DE REFERÊNCIA Introdução de Information | Kynaston McShine Rumo a uma nova localidade: as bienais e a “arte global” | Hou Hanru Nosso Bauhaus, barraco dos outros | Rasheed Araeen Modernos fora dos eixos | Paulo Sergio Duarte Da arte nacional brasileira para a arte brasileira internacional | Tadeu Chiarelli O tango local e a dança global: Uma Arte & Ensaios 13, 2006 Que história é essa?! | Entrevista com Carlos Zilio Do indício ao índice ou da fotografia ao museu | Daniel Soutif PÁGINA DUPLA Simone Michellin Os pintores de letras: um olhar etnográfico sobre as inscrições vernaculares urbanas | Marcus Dohmann RESENHAS Art since 1900 | Alexandre Sá Dada | Cezar Bartholomeu Po é t i c a ( s ) d o s F l u x u s : a l g u m a s considerações | Daniela Mattos Marcia X: clichês | Felipe Scovino Tropicália: uma revolução na cultura brasileira | Michael Asburry Escritos de Artistas nos Anos 60/70 | Patricia Guimarães Prague Biennale 2 Expanded painting / acción directa | Pedro Meyer Big Bang: destruição e criação na arte do século 20 | Sheila Cabo Le mouvement des images - Art et Cinéma | Valéria Faria A importância do uso na preservação da obra de arquitetura | Cyro Corrêa Lyra Arte & Ensaios 12, 2005* ARTIGOS A obra de arte na era de sua reprodutibilidade turística | Alexandre Sá O belo e o sublime românticos nas paisagens de mundos virtuais online | Martha Werneck Esplendor e sigilo: o Brasil na cartografia portuguesa dos séculos XVI e XVII | André Monteiro de Barros Dorigo Read Me, Ready Me: a caixa preta do ser em tempo real | Ricardo Maurício COLABORAÇÕES Salões Oficiais de Arte no Brasil – um tema em questão | Angela Ancora da Luz Tornar real a realidade | Entrevista com Carmela Gross S U M ÁRI O DAS E DI ÇÕ E S AN TE RI O RE S 225 ARTIGOS Luz e letra | Carlos Augusto Nóbrega HOMENAGEM Dossiê Lygia Pape Não-habitável como poética de espaço | Regina de Paula Proust e a fotografia | Cezar Bartholomeu TEMÁTICAS Experiência crítica – textos selecionados: Ronaldo Brito | Fernanda Lopes O impulso alegórico: sobre uma teoria do Pós-Modernismo | Craig Owens Os artistas contemporâneos e a filosofia | Glória Ferreira A atividade fotográfica do pósmodernismo | Douglas Grimp Sobre um lugar – Torreão | Malu Fatorelli A visualização de dados como uma nova abstração anti-sublime | Manovich Imagens e signos de Santa Teresa: movimentos artísticos e culturais de um bairro carioca | Luciane de Siqueira A figura nos concursos de magistério | Ivan Coelho de Sá Translocalidade | Giordani Maia Imagem fotográfica na República Velha: um estudo sobre a coleção Rondon do Museu Histórico do Exército e Forte de Copacabana | Elizabete Mendonça A pintura histórica de Antônio Parreiras: a temática do herói nacional e o imaginário republicano | Reginaldo da Rocha Leite COLABORAÇÕES Escarificações na pele ingênua da arte | Guilherme Vaz A instalação em situação | Stéphane Huchet Retrato de Dorian Gray – uma pintura in progress | Ligia Canongia O momento que dura para sempre | Sean Scully Semiótica aplicada à análise da imagem: a corte no Rio de Janeiro nos desenhos de Joaquim Cândido Guillobel | Rosana Ramalho Bellevue II: uma visão não tão bela da sociedade de consumo | Antônio Sena Batista Imaginário brasileiro e zonas periféricas – algumas proposições da sociologia da arte | Valéria de Faria Cristofaro O Pensamento Crítico Brasileiro | Viviane Matesco Curadorias do fluxo – os desafios do intercâmbio colaborativo e do espaço das novas mídias | Sarah Diamonds Tempos subjetivos & tempos objetivos da fotografia | François Soulages Arte na vanguarda da Net: O futuro será úmido! | Roy Ascott Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro: revisão historiográfica e estado da questão | Sonia Gomes Pereira Born to be Famous: a condição do jovem artista, entre o sucesso pop e as ilusões perdidas... | João Fernandes Riegl e Benjamin: arte, história e teoria moderna | Sheila Cabo Geraldo Emprestar a paisagem – Daniel Buren e os limites críticos | Glória Ferreira E Agora? | Ricardo Basbaum Revista de Art[istas] dos anos 1968-79 | Sylvie Mokhtari COLABORAÇÕES O que é um artista (hoje)? | Nicolas Bourriaud Sinceridade como conceito | Christine Tichatschek A reinvenção do realismo como arte do instante | Luiz Renato Martins Linguagem internacional? | Gerardo Mosquera REEDIÇÃO Belas-Artes | Gonzaga Duque Atrocidades maravilhosas: ação independente de arte no contexto público | Alexandre Vogler HOMENAGEM Dossiê Lucio Costa Adrian Piper | Cyríaco Lopes TRADUÇÕES REEDIÇÃO Propósito experimental | Jorge de Oteiza TEMÁTICAS ENCARTE Livia Flores A idéia de obra-prima na arte contemporânea | Arthur C. Danto Movimento aleatório disciplinado | Entrevista com Abraham Palatnik RESENHAS Quando a forma se transformou em atitude – e além | De Duve ARTIGOS O quarto iconoclasmo e outros ensaios hereges | Ricardo Cristofaro Imagem digital e interatividade: considerações sobre o estatuto de obra e autoria nas representações expostas na rede | Yoko Nishio Vítor Meireles e a tradição pictórica | Alexandre Linhares Guedes Ações pontuais no espaço telemático: rádio e webrádio | Romano Aloisio Magalhães: o artista, a arte e o design brasileiros na óptica de seus contemporâneos | Isis Fernandes Braga, Isis Braga Entrevista a Carolee Thea | Dan Cameron O ensino da arte conceitual | Charles Harrison João Fernandes Forma e Imagem Técnicas na Arte do Rio de Janeiro: 1950-1970 | Fernanda Lopes ENCARTE Regina de Paula Zoom out | Glória Ferreira RESENHAS Lance 36 | Romano O artista em meio à era do indivíduo | Rosza vel Zoladz Fronteiras: arte, crítica e outros ensaios | Guilherme Bueno Lygia Pape – Entre o Olho e o Espírito | Viviane Matesco O Meio Como Ponto Zero – metodologia da pesquisa em artes plásticas | Malu Fatorelli Pensando a Arte na Escola | Marcelo Campos Revistas de arte: biopolíticas em mídias gráficas | Newton Goto COLABORAÇÕES ARTIGOS Depois de História do Futuro (arte) e sua exterioridade | Milton Machado O espaço de representação e as representações do espaço | André Amaral Lygia Pape: gravuras ou antigravuras? Deslocamentos possíveis da tradição | Maria Luisa Luz Tavora A Vontade Poética no Diálogo com os Bichos: o ponto de chegada de uma arte participativa no Brasil | Felipe Scovino ARTIGOS A (outra) Arte Contemporânea Brasileira: intervenções urbanas micropolíticas | Fernando Cocchiarale Angelo Agostini: a arte de levar a sério um trabalho bem-humorado | Octavio Aragão Cildo Meireles: A indústria e a poesia | Moacir dos Anjos COLABORAÇÕES Galeria do Poste Arte Contemporânea: estudo etnográfico sobre arte e inventividade no espaço urbano | Laura Martini Bedran Sub specie ludi: Função e estrutura de uma “arte lúdica” | Marion Hohlfeldt ENCARTE Milton Machado Um copo de mar para navegar | Luisa Duarte RESENHAS Interações, hibridações e simbioses | Carlos Augusto Moreira da Nóbrega Guto Nóbrega Marcel Duchamp – uma biografia | Alexandre Sá A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 Desenho, composição, tipologia e tradição clássica – uma discussão sobre o ensino acadêmico do século 19 | Sonia Gomes Duas visões sobre a Pop Art: Clement Greenberg e Arthur Danto | Fátima Couto História, Antropologia e Arte: uma proposta de abordagem transdisciplinar Sociologia visual: seguindo o olhar de Robert Frank | Howard Becker Circuito das heliografias: arte conceitual e política na América Latina | Mari Carmen Ramírez RESENHAS Regionalismo | François Loyer O trágico tematizado no imaginário | Rosza W. vel Zoladz Palatnik: a luz e o movimento no pioneiro da fusão arte e tecnologia no Brasil | Felipe Scovino DOSSIÊ Soto A função crítica da arte entre recusa e indeterminação | Serge Bismuth Jean-Luc Nancy / Chantal Pontbriand, uma conversa | Chantal Pontbriand A Semiologia da Imagem Francesa e o Contexto Brasileiro | Rogério Medeiros Superfícies em distúrbio | Entrevista com Eduardo Sued O debate crítico e os problemas estéticos | Rainer Rochlitz Arte híbrida? Um olhar por trás das cenas globais | Hans Belting O espaço moderno | Guilherme Bueno. O longe e o perto como distâncias contemporâneas | Malu Fatorelli O pós-artista | Peter Plagens TRADUÇÕES L’artiste en personne | Glória Ferreira REEDIÇÃO Sobre pintura moderna | Ruben Navarra Arte & Ensaios 9, 2002** O lugar que vejo | Entrevista com Antonio Dias O ateliê do artista | Marisa Flórido Cesar Projeto Urubu na Ilha do Fundão | Gisele Ribeiro Entre a alegoria e o deleite visual: as pinturas decorativas de Eliseu Visconti para o Theatro Municipal do Rio de Janeiro | Ana Maria Tavares Cavalcanti COLABORAÇÕES O feminino na arte | Viviane Matesco Expanded Body. Variations V e a conversão das artes na era eletrônica | Marcella Lista Uma história do espaço – de Dante à internet | Malu Fatorelli Arte & Ensaios 10, 2003* Quando (onde) a obra acontece | JeanMarc Poinsot Arte e objetidade | Michael Fried A vanguarda como software | Romano A Exposição do Centenário e o meio arquitetônico carioca do início dos anos 20 | Ruth Nina Veira Fereira Levy O artista como etnógrafo | Hal Foster O imaginário e seus contextos de referência no Brasil | Rosza W. vel Zoladz Barnett Newman: Pintura escrita / escrita pintura | Mel Bochner Arte & Ensaios 11, 2004 Arte e Vida no Século XXI e Redes Sensoriais | Valéria de Faria Cristofaro Chega de futuro? Arte e tecnologia diante da questão expressiva | Paulo Sergio Duarte Milton Dacosta: vinte anos de pintura | Mário Pedrosa REEDIÇÕES Crítica em tempos de guerra: Ruben Navarra e os anos 40 | Vera Lins TEMÁTICAS 226 A peregrinação de Watteau à ilha do amor | Rogério Medeiros para o tema da “natureza exuberante” nas artes brasileiras | Helio Vianna Terra e museu – local ou global? | Guy Brett A rede de Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas | Alfred Gell HOMENAGEM Paulo Houayek. Dia-a-dia | Carlos Zilio RESENHAS Arte & ensaios 8, 2001** O cotidiano digital | Marcelo Simão de Vasconcellos As coisas vêm chegando | Entrevista com Aluísio Carvão O fotógrafo e o historiador ilustrado | Cezar Bartholomeu ARTIGOS Giulio Carlo Argan, Clement Greenberg: a teoria para a arte moderna como projeto | Guilherme Bueno A construção de um imaginário moderno: as capas da Editora Civilização Brasileira (1960-1975) | Amaury Fernandes da Silva Junior O pêndulo do sentido: distâncias indiciais e oscilações alegóricas | Ricardo Maurício “Como todos os outros”: arte e estética na antropologia modernista | Kátia Maria Pereira de Almeida As diferenças culturais | Luciane de Siqueira Mestre Valentim | Anna Maria Tavares Cavalcanti Volpi Ivan Sá e Vera Hermano | Flávio de Carvalho Alexandre Pessôa. The Pleasure of Beholding | Marcia Campos Zona Franca | Adriano Melhem de Mello Voici | Ítalo Bruno, Zalinda Cartaxo e Malu Fatorelli De onde vem e para onde vai o fio da faca (construtiva) | Luiz Renato Martins As instituições da arte | José Luiz da Silva Nunes Arte & Ensaios 7, 2000** S U M ÁRI O DAS E DI ÇÕ E S AN TE RI O RE S 227 Pano-de-roda | Entrevista com Cildo Meireles O mais novo Laocoonte | Guilherme Bueno O que vemos, o que nos olha | Renata Camargo Mesa-redonda: a recepção dos anos 60 | Tradução Carlos Feferman · Revisão Paulo Venancio Filho Da polifonia poético-visual nas artes armoriais | Daniel Bitter Cibercultura: para uma compreensão do contemporâneo | Etinete A. do Nascimento Gonçalves Justificação de um gesto | Edwiges da Silva Henriques A psique exterior | Luis Andrade A imagem da cidade | Luciane de Siqueira Klaxon: um percurso de leitura | Marcus Vinícius de Paula Nosso século 21 – notas sobre arte, técnica e poderes | Laura Bedran A arte no contexto do lugar | Arthur Leandro/Alexandre Vogler A propósito do imaginário e suas representações culturais | Rosza W. vel Zoladz Estampas Eucalol: imagem, cultura e nostalgia | Regina Lucia Schiefler da Cunha Tessis FARMAX – passeios na densidade | Fabiana Izaga A crítica capaz | Luis Andrade Picasso e a história | Paulo Venancio Filho O humanismo lírico de Guignard | Adriano Melhem de Mello A herança da arte | Resenha Muriel Caron Tradução Fabiana Santos ARTIGOS Anna Bella Geiger: inquietações no corpo fragmentado | Maria Luisa Luz Tavora RESENHAS A cultura do papel | Paula Wienskoski A noção de estilo | Guilherme Bueno Os labirintos do imaginário. Influências estéticas no cinema de Glauber Rocha | Rogério Medeiros Arte & Ensaios 6, 1999** Les raisons du paysage | Lenice da Silva Lira Projeto MN.02: ensaio no espaço de telecomunicações da cidade do Rio de Janeiro | Simone Michelin Entrevista com Amilcar de Castro Imagem e idéia – a propósito da experiência artística | Angela Ancora da Luz ARTIGOS Clássico anticlássico | Rosana de Freitas Base Central Cão Mulato viralata em processo | Edson Barrus Limites do moderno, o pensamento estético de Mário de Andrade | Marcus Vinicius de Paula Corpos escritos. Paisagem, memória e monumento: visões da identidade carioca | Margareth da Silva Pereira (?)? Pergunta dentro da pergunta | Ricardo Basbaum Considerações sobre a escultura urbana de Richard Serra | Renato Rodrigues Ecco: uma experiência de arte a distância | Ricardo Maurício REEDIÇÃO Formação do artista no Brasil | José Resende Entrevista | Paulo Mendes entrevista João Fernandes TRADUÇÕES Uma perspectiva sociológica sobre a continuidade entre as práticas cotidianas, as atividades artísticas e a sensibilidade estética | Jean Pierre Silvestre A arte da natureza | Gilles A. Tiberghien Procedimentos alegóricos: apropriação e montagem na arte contemporânea | Benjamin H. D. Buchloh Arte sem paradigma | Arthur C. Danto RESENHAS Um olhar aprisionado na imagemmáquina – as novas tecnologias virtuais de transmissão de imagens e sua ação diluidora de uma visão do real | Elizabeth C. Paiva Silva 228 Douane-Zoll | Jean-Claude Lebensztejn Tradução Glória Ferreira · Revisão Antonio Guimarães Carybé, obra e tradição: o universo mítico afro-brasileiro | Marcelo Campos O crítico Walter Benjamin | Beatriz Rocha Lagôa Le primitivisme dans l’art moderne | Rosza W. vel Zoladz A dobra e a diferença: colagens de Picasso | Marisa Flórido Cesar Arte & Ensaios 5, 1998** O mundo em metamorfose. Análise semiológica de Paisagem Brasileira, de Lasar Segall | Rogério Medeiros Entrevista de Lygia Pape a Paulo Venancio Filho, Glória Ferreira e Ronald Duarte Identidade e estratégias do gosto artístico no Rio de Janeiro setecentista | Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira DOSSIÊ Lygia Pape “Fazer de dois um multiplica o rir”. Depoimentos sobre Lygia Clark em Paris | Glória Ferreira Arte com filtro – XXIV Bienal Internacional de São Paulo | Roberto Conduru As bienais – formatos abertos x conteúdos fechados. Reflexões sobre identidade e função das bienais | Luiz Guilherme Vergara Hélio Oiticica e a morte do cinema | Cláudio Dacosta Quase Cinema, Block-Experiments in Cosmococa CC 3: Maileryn. A fragrância narcótica da arte | Luis Andrade Do caráter mercantil, monetáro e, ainda assim, autônomo do objeto de arte | Moacir dos Anjos REEDIÇÃO Jorge Guinle: Raciocínios de um pintor | Jorge Guinle Filho TRADUÇÕES Narciso barroco. Hubert Damisch · Tradução Maria Flórido · Revisão Glória Ferreira A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 ARTIGOS Arte em explosão: rompimento dos limites entre as categorias artísticas | Renata Wilner Da arte: sua condição contemporânea | Luciano Vinhosa Simão Materialidade Situs: um recorte espacial | Ronald Duarte Artista, formação do artista, arte moderna | Carlos Zilio O ensino de arquitetura no Brasil no século 19 – uma contribuição ao estudo do tema | Cybele V.N. Fernandes Claude Monet quer que a catedral se torne uma esponja de luz | Maria Luisa Luz Tavora História, cultura periférica e a nova civilização da imagem | Paulo Venancio Filho Vitalidade e socialidade da arte: a estética de Guyau | Annamaria Contini Reinterpretar a modernidade | Entrevista de Thierry De Duve a Glória Ferreira e Muriel Caron Kant depois de Duchamp | Thierry De Duve RESENHAS Sob o domínio da imagem banal | Elizabeth Paiva Compulsive Beauty | Monica Mansur L’informe, mode d’emploi | Glória Ferreira A cerâmica como processo. Uma experiência prática no Centro Integrado de Cerâmica EBA/UFRJ | Marcos Varela A cerâmica como elemento aglutinador para três domínios diversos. O barro, a madeira, a informática | Isis Braga Carta de Lord Chandos, Hugo Von Hofmannsthal | Paulo Houayek A cidade de terra | Amauri Ferreira Macedo Arte & Ensaios 4, 1997** Fazer cerâmico. Fazer urbano, fazer imaginário | Andréa Pessôa Borde A influência do computador na arte contemporânea | Luiz Antonio Fernandes Braga Primitivismo no Les Demoiselles d’Avignon: universalidade na tradição | Lígia Dabul Bastide, a arte e os outros | Jean Duvignaud Umbandacarnaval | Luiz Felipe Ferreira Cela e mundo – o conflito de Mondrian na tridimensionalidade | Cristiane Monteiro Flores Exposições universais: duas diferentes abordagens em obras francesas recentes | Ruth Vieira Ferreira Levy A leitura visual de Viva Jacaré. Uma ilustração cinematográfica de Rui de Oliveira | Marisa de Oliveira Mokarzel O cinema em cartaz. Um estudo de caso: Fernando Pimenta | Carlos Eduardo da Silva Valente “Teapot Po Ris Malevich” | Piedade Epstein Grinberg Arte & ensaios 1, 1994** Entrevista com Carlos Zilio Formação do artista plástico no Brasil – o caso da Escola de Belas Artes | Carlos Zilio O hedonismo rococó através da pintura de temática carnavalesca |Ivan Coelho de Sá Mãos na pedra – a repetição do gesto primevo na Toca da Argila, região arqueológica da Central, BA | Angela Rabelo Grupo Frente e o experimentalismo emergente de Lygia Pape, Lygia Clark e Hélio Oiticica | Eileen M.F. Cunha Um sonho que se mostra – a criação da Casa do Pontal | Maria Angela S. Mascelan Arte & ensaios 3, 1996** Os “Tecelares” de Lygia Pape | Maria Clara Amado Martins Os abebés. Os espelhos do ventre | Elena Maria Andrei São Miguel Arcanjo. Duas esculturas policromadas | Fátima Justiniano A cidade e a arte contemporânea | Anne Cauquelin Decadentismo e maneirismo em relações de personalidade | Francisca Maria Teresa dos Reis Baltar O objeto industrial na linguagem cinematográfica - Um estudo da formação da cultura de massa perante o objeto industrial, através do cinema | Vicente Cerqueira A expressão da natureza na obra de Paul Cézanne | Marcelo Duprat Pereira Arte & ensaios 2, 1995** Sobre Celeida | Helena Severo Celeida de Barro | Regina Célia Pinto Um módulo vida na Universidade Federal do Rio de Janeiro | André Bazzanella S U M ÁRI O DAS E DI ÇÕ E S AN TE RI O RE S 229 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE LETRAS E ARTES ESCOLA DE BELAS ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS O Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais destina-se a proporcionar formação cultural e artística, ampla e aprofundada em níveis de mestrado e doutorado, desenvolvendo a capacidade de ensino e pesquisa no campo teórico e do fazer artístico. Áreas de Concentração História e Teoria da Arte Teoria e Experimentação em Arte Linhas de Pesquisa História e Crítica da Arte (HTA) Imagem e Cultura (HTA) Linguagens Visuais (TEA) Poéticas Interdisciplinares (TEA) Corpo Docente Permanente Amaury Fernandes Ana Cavalcanti Ângela Leite Lopes Carlos Alberto Murad Carlos Augusto Nóbrega Carlos Azambuja Carlos Terra Celso Pereira Guimarães Cybele Vidal Neto Fernandes Helenise Guimarães Livia Flores Marcus Dohmann Maria Cristina Volpi Nacif Maria Luiza Fragoso Maria Luisa Tavora Marize Malta Milton Machado Paulo Venancio Filho Rogério Medeiros Tadeu Capistrano Simone Michelin Sonia Gomes Pereira Colaboradores Angela Ancora da Luz Cezar Tadeu Bartholomeu (LV) Doris Kosminsky (PI) Felipe Scovino (LV) Giselle de Carvalho Ruiz (PI) Glória Ferreira Maria Clara Amado (HCA) Rosa Werneck Publicações Revista Arte & Ensaios Caderno de Pós-Graduação Anais do Encontro do Programa de Pós-Graduação Para envio de colaborações, consultar www.eba.ufrj.br/ppgav/arte&ensaios ou pelo e-mail [email protected] Endereço para correspondência Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais | EBA/UFRJ Av. Pedro Calmon, 550 / sala 704 | Prédio da Reitoria | Cidade Universitária | Ilha do Fundão Rio de Janeiro | RJ | Brasil | 21.941-901 | Tel.: (21) 2598 1643 www.eba.ufrj.br/ppgav/arte&ensaios | [email protected] 230 A r t e & ens a i os | r ev is ta do ppg a v /eba /uf r j | n. 2 3 | nov 2011 S U M ÁRI O DAS E DI ÇÕ E S AN TE RI O RE S 231