anais - UCSal

Transcrição

anais - UCSal
ANAIS
O
ORG
GANIIZZA
AÇ
ÇÃO
Universidade Católica do Salvador – UCSal / Programa de Pós-Graduação
em Família na Sociedade Contemporânea
Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana – SBPW
International Winnicott Association – IWA
C
Coom
miissssããoo oorrggaanniizzaaddoorraa::
José Euclimar Xavier de Menezes – Coordenador
Fernanda Leal – Assessoria de Captação de Recursos
Teresa Oliveira – Assessoria de Redes Sociais
Luciene Santos Figueiredo – Assessoria de Blog
Priscilla Ramos – Assessoria de Projetos e Links
UCSAL. Sistema de Bibliotecas
Setor de Cadastramento
C719
Colóquio Winnicott (4.: 2014 maio 19: Universidade Católica do Salvador)
Anais do IV Colóquio Winnicott: O Pai: Suporte do Amadurecimento,
19 de maio de 2014. - Salvador: UCSAL - Universidade Católica do
Salvador, 2014.
123p.
1.Winnicott - Colóquio - Brasil. 2. Pai – aspecto psicológico 3. Família
I. Universidade Católica do Salvador. II. Título.
CDU 063:316.356.2-055.1
2
Sumário
Apresentação
José Euclimar de Menezes Xavier ...............................................................................
04
Mesa 1 - O Pai no Processo de Socialização
Winnicott e o monoteísmo de Freud
ZelikoLoparic ...............................................................................................................
06
Loparic: “mode d´imploir” – o leitor entusiasmado de Winnicott
José Euclimar de Menezes Xavier ...............................................................................
40
Mesa 2 - Idealização no Processo Terapêutico – uma abordagem da
psicologia do Self
Idealização no Processo Terapêutico – uma abordagem da psicologia do Self
Yossi Tamir .................................................................................................................
48
Um comentário sobre o texto “Idealização no processo terapêutico, uma
abordagem da psicologia do Self” de YossiTamir
Claudia Mascarenhas Fernandes.................................................................................
59
Função paterna e maternagem: uma questão com a imagem do pai
Fernanda Leal...............................................................................................................
64
Mesa 3 - Provisão Ambiental Paterna
O pai no processo amadurecimento
Claudia Dias Rosa ........................................................................................................ 74
Comentário ao texto “Provisão ambiental paterna”
Conceição Aparecida Serralha ....................................................................................
88
Comentário ao texto “Provisão ambiental paterna”. Por um cuidado afetivo
do pai
Marlene Brito de Jesus Pereira .................................................................................... 96
Mesa 4 - Democracia como Forma de Maturidade
El ambiente: red de cuidados
Leticia O. Minhot …………………………………...........................................................
108
Comentários a partir do Texto de Letícia O. Minhot: El Ambiente: Red de
Cuidados
Elaine Pedreira Rabinovich .........................................................................................
117
3
APRESENTAÇÃO
Os Colóquios Winnicott de Salvador, organizados anualmente, nasceram da
parceria entre a Universidade Católica do Salvador com a Sociedade Brasileira de
Psicanálise Winnicottiana de São Paulo e com a InternationalWinnicottAssociation –
IWA, que possuem redes internacionais próprias de cooperação em produção e
disseminação científica com intensa produção na temática acerca da família, de sua
dinâmica, de seu modo de funcionamento, de sua multiplicidade. Essas redes foram
mobilizadas para os três Colóquios Winnicott da Bahia anteriores, realizados em 2012 e
2013 e sediados na Universidade Católica do Salvador, para os quais acorreram cerca de
200 participantes em cada ocasião.
Os títulos dos três primeiros Colóquios foram: Ordem Psíquica X Ordem
Familiar, realizado em 28/05/2012. A primeira edição do Colóquio reuniu profissionais
das três instituições que iniciavam a parceria promotora dessa reunião científica que
debatem, interdisciplinarmente, questões relativas à organização psicológica do sujeito e
de sua inserção e/ou pertencimento ao núcleo familiar. O foco deste encontro, em
particular, foi posto no cotejamento das teorias freudiana e winnicottiana acerca do
papel da família para a organização psicológica do sujeito. Em 24/08/2012 foi realizado
o segundo Colóquio com a temática A família na psicanálise de Winnicott, quando
foram debatidas questões como: “Da família edipiana de Freud ao ambiente familiar
winnicottiano: tensões”; “Para além das funções do ambiente familiar”; “A família e o
amadurecimento pessoal”. Realizado em 14/10/2013, o terceiro Colóquio discutiu os
Olhares Interdisciplinares sobre Família e Adoção, contando com a realização de
quatro mesas-redondas com os seguintes temas: “Família e Constituição do Indivíduo”;
“Adoção X Provisão Ambiental: elementos da ética e do cuidado”; “Ambiente Familiar
4
e Tendência Antissocial: presença de Winnicott no direito”; “Ambientes e Laços
Neofamiliares: paradigmas alternativos”.
Nesta versão de 2014, o Colóquio traz como temática de discussão o Pai:
suporte do amadurecimento. Dada à mutação veloz e intensa pela qual passa a
família, fato que redesenha papéis e funções dos seus membros em seu interior, pensar a
figura do pai a partir da sensibilidade terapêutica e da reflexão de Winnicott em diálogo
com vários especialistas da interdisciplinaridade pareceu, aos organizadores da reunião,
de extrema atualidade e de grande pertinência. Tempos novos desafiam à reinvenção da
paternidade. Mas a figura do pai, no ordenamento familiar e, mais focadamente, no
desenvolvimento da dimensão psicológica dos filhos, o que pede desde sempre, pela sua
presença, mesmo que fatores socioculturais se interponham?
A busca de aprofundamento desta invariante reúne aqui, nestes anais, as
reflexões dos especialistas que aprofundam o debate sobre o tema.
Prof. Dr. José Menezes
Pró-Reitor de Pós Graduação e Pesquisa/UCSal
5
MESA-REDONDA 1: O PAI NO PROCESSO DE SOCIALIZAÇÃO
Conferencista: Prof. Dr. ZeljkoLoparic1
Comentadores: Prof. Dr. José Menezes2 (UCSal/FSBA) e Profa. Dra. Caroline R. Vasconcelos3
(UEFS/BA)
Winnicott e o monoteísmo de Freud4
ZeljkoLoparic
Resumo:O presente trabalho será iniciado pela análise dos fundamentos edípicos da teoria
freudiana das origens da religião monoteísta. Serão apresentadas duas versões da derivação
freudiana do monoteísmo, a filogenética e a ontogenética. Em seguida, serão estudadas as
críticas que Winnicott dirige a ambas.
Palavras-chave: Winnicott, Freud, pai, filogênese, monoteísmo.
1. Introdução
Para muito leitores de textos psicanalíticos, o tema “O pai e o monoteísmo” faz
imediatamente pensar em Freud e em sua teoria psicanalítica da religião monoteísta
como produto de conflitos originados em situações de natureza edípica. Winnicott
1
Doutor em Filosofia pelo UniversitéCatholique de Louvain, Bélgica (1982), Professor Titular da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil.
2
Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas, Brasil (2003), Professor Adjunto IV da
Universidade Católica do Salvador, Brasil
3
Doutora em Filosofia pela UNICAMP (2008), Professora Titular da Universidade Estadual de Feira de
Santana, Brasil.
4
O presente trabalho é uma versão modificada e substancialmente ampliada em seções iniciais do meu
artigo “O deus da alcova e o deus do berço” publicado na Festschrift em homenagem a Oswaldo Giacoia.
O primeiro esboço desse conjunto de ideias foi apresentado em maio de 2012, em São Paulo, no XVII
Colóquio Winnicott Internacional da Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana, sob o título “Pai
e o monoteísmo” e, no mês de outubro do mesmo ano, em Paris, no Grupo Winnicott da SFP, dirigido por
Laura Dethiville.
6
parece não ter nada a dizer sobre esse assunto, ele seria, sobretudo, se não
exclusivamente, um teórico da relação dual mãe-bebê, anterior ao surgimento dos
relacionamentos triangulares e, portanto, da religião como forma da vida cultural.
Quando fala de religião, o Winnicott psicanalista não poderia fazer mais do que repetir
Freud. Pois bem, isso é um engano.
Para se convencer disso, basta ler os comentários de Winnicott sobre Moisés e
monoteísmo de Freud, datados de janeiro de 1969, nos quais é apresentada uma crítica
direta das teses freudianas centrada na dinâmica pulsional, seguida de uma concepção
psicanalítica alternativa do monoteísmo, baseada num novo conceito de situaçãoproblema exemplar da psicanálise – a do bebê no colo da mãe, que passa a ocupar o
lugar da situação edípica –, numa nova visão geral do campo de pesquisa da psicanálise,
formulada como teoria do amadurecimento, e no deslocamento do ponto de origem
desse tipo de religiosidade para um estágio anterior àquele dominado por relações
edípicas.
Tratei da concepção winnicottiana do monoteísmo num trabalho separado
(Loparic, 2013b). No que segue, proponho-me a analisar a sua crítica da derivação
freudiana do monoteísmo da dinâmica pulsional.
2. Fundamentos factuais e teóricos da derivação do monoteísmo em Freud
O fundamento factual da derivação do monoteísmo em Freudé, como indiquei,
um conjunto de fenômenos relacionados a conflitos gerados pela sexualidade infantil,
em particular a dos meninos, chamado por Freud de complexo de Édipo. Observa-se o
amor, de características sexuais, do menino pela mãe e a hostilidade para como o pai,
que também é amado. Existem ainda formas invertidas desse fenômeno: o menino faz o
pacto homossexual com o pai e se afasta da mãe. Fenômenos parecidos, com sinais
invertidos, observam-se nas meninas. Freud encontrou esse material primeiramente na
sua auto-análise e, em seguida, na clínica (nos casos Dora, Pequeno Hans e Homem dos
Lobos).
7
Na psicanálise freudiana, o complexo de Édipo não é apenas o ponto de partida
da derivação do monoteísmo, mas também de todas as outras formações da cultura:
ordem social, moral, artes, saberes. O Édipo dá origem a 1) estruturação do ser humano
como aparelho psíquico com diferentes instâncias (id, ego, superego), ativadas pelas
forças internas, descrita numa linguagem mista, descritiva e especulativa, 2) surgimento
dos distúrbios da competência da psicanálise (neuroses), 3) formas da vida cultural:
ordem social, religião (da qual o monoteísmo é a forma mais elevada), eticidade
(moralidade baseada nas leis), arte e as diferentes modalidades do saber, tanto científico
quanto filosófico.5
A teoria freudiana desses desenvolvimentos é elaborada em dois níveis: o da
teoria da sexualidade e o da metapsicologia. A teoria freudiana da sexualidade, peça
principal da sua psicanálise, valoriza de modo especial a cena primária, sobre a qual se
baseia também a clínica freudiana da sexualidade. Essa teoria, em si mesma factual, é
enriquecida de componentes especulativos de diferentes tipos: supra-estrutura meta
psicológica propriamente dita (pulsões, aparelho psíquico), criada no âmbito da visão
kantiana da teorização científica; mitológica grega (numa determinada leitura)6;
especulações mitológicas da lavra do próprio Freud, inspiradas em Darwin; referências
literárias (O Édipo Rei, Hamlet); doutrinas e práticas religiosas judaico-cristãs (por
exemplo, a prática de circuncisão).
Note-se que, segundo o próprio Freud, esses componentes especulativos da sua
psicanálise não consistem de enunciados que possam ser verdadeiros ou falsos
(confrontados com a experiência), mas de convenções, construtos elaborados com a
finalidade de serem usados como guias na busca e na organização dos fenômenos
sexuais teórica e clinicamente relevantes.A metapsicologia freudiana é, no essencial, o
horizonte hermenêutico para a interpretação dos fenômenos sexuais com o objetivo de
5
Freud tem em mente a cultura em geral, embora tenha pouca disposição em dialogar diretamente com as
culturas indiana e do extremo oriente.
6
Essa leitura foi objeto de crítica severa de Vernant (2001, cap. 4). Segundo Vernant, xxx. Para uma
leitura hegeliana do mito de Édipo, veja ainda Goux, 1990. Uma interpretação baseada em Heidegger
encontra-se em Loparic, 1990.
8
permitir a formulação de problemas clínicos de modo a poderem ser tratados pelas
técnicas à disposição da psicanálise.7
Não é por nada, portanto, que, numa nota de rodapé da parte III.5 dos Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade, acrescentada à edição de 1920, Freud afirma que,
como progresso da psicanálise, ficou cada vez mais em evidência o significado do
Édipo como complexo nuclear das neuroses, isto é, como peça essencial no conteúdo
das neuroses, e o reconhecimento desse fato, diz Freud, “tornou-se o Schiboleth[das
Schiboleth] da psicanálise”,8
o signo identificador que separa “os seguidores da
psicanálise de seus adversários”, entenda-se, de seus inimigos teóricos em geral (de
Jung, por exemplo) e não apenas daqueles que, por limitações teóricas ou mesmo
pessoais, não são capazes de entender essa ou aquela parte da psicanálise.9 A psicanálise
7
Pelo que pude observar, muitos freudianos esquecem que a metapsicologia freudiana, por ser uma
convenção especulativa elaborada para atender fins metodológicos teóricos, não tem relevância clínica
direta, isto é, não pode, de direito, ser aplicada como tal na descrição de problemas clínicos, sexuais ou
derivados destes, nem na determinação de práticas de resolução psicanalítica desses problemas.
8
Note-se que, em 1920, Freud usa a grafia “Schiboleth” e em outras ocorrências, posteriores,
“Schibboleth”.
9
Como é sabido, Freud usa o termo “Schibboleth” em várias ocasiões posteriores, mas sempre num
sentido mais fraco do que na nota de 1920. Na primeira página de O ego e o id, de 1923, ele diz que a
distinção entre a parte consciente e a parte inconsciente do psiquismo foi, desde o início, uma
pressuposição fundamental da psicanálise, de modo que “aí está o primeiro Schibboleth da psicanálise”
(hieristdasersteSchibbolethderPsychoanalyse). Pois, prossegue Freud, “a ideia de um psiquismo que não
fosse também consciente é tão incompreensível à maioria dos que são educados filosoficamente, que ela
lhes parece absurda e recusável por meios meramente lógicos”. A ideia do inconsciente psíquico serviu,
portanto, como signo que permitia distinguir a psicanálise de uma determinada versão da filosofia da
consciência que negava a existência do psiquismo inconsciente. Ora, a mesma distinção não podia ser
usada para opor a psicanálise à filosofia da consciência, ou mesmo à filosofia, em geral, visto que o
conceito de inconsciente psíquico não é uma novidade introduzida por Freud e pode ser encontrado,
inclusive no sentido de inconsciente dinâmico, já em Kant e em Schoppenhauer, para não falar em V.
Hartmann e Nietzsche. Nas Novas conferências, publicadas em1933, já na primeira página do capítulo
inicial dessa obra, Freud faz notar que a teoria dos sonhos, que permaneceu como “a parte mais
característica e específica da nova ciência”, foi investida, devido à estranheza das suas afirmações, do
“papel de um Schibboleth” (die RolleeinesSchibboleth), pois “a sua aplicação decidia entre aqueles que
podiam tornar-se seguidores da psicanálise e aqueles aos quais esta permanecia definitivamente
incompreensível”. Para o próprio Freud, a teoria dos sonhos foi, de fato, um passo decisivo no seu
caminho da psicoterapia médica à psicanálise e, na sequência das suas pesquisas, foi usada por ele como
ponto de apoio seguro na tentativa de compreender os fatos ainda desconhecidos das neuroses, objeto da
parte principal da psicanálise freudiana, que é centrada precisamente na teoria e na clínica dos distúrbios
neuróticos, a interpretação dos sonhos fazendo parte da clínica desses distúrbios. A teoria dos sonhos não
é, portanto, a peça central da psicanálise freudiana tomada como um todo, nem é “incompreensível” a
todos aqueles que têm dificuldades com a teoria freudiana das neuroses.
9
de Freud é essencialmente edipiana e guerreira.10 O Édipo é o traço que a põe em
conflito, como bem viram Klein, Bion e Lacan, não apenas com outras teorias
psicoterápicas, mas também com várias reformulações da psicanálise de época de
Freud, com as de Jung ou Ferenczi. Os freudianos ortodoxos transferiram essa
hostilidade, em maior ou menor grau, a todas as reedições da psicanálise mais recentes,
em particular, à psicanálise maturacional, não edipiana de Winnicott.11
Convém observar que, durante a história da psicanálise, o conceito freudiano de
complexo de Édipo, que nunca foi devidamente explicitado e continha, desde o início,
conforme foi dito, elementos míticos e meta psicológicos claramente ficcionais, foi
reformulado e utilizado de maneiras não menos fantasiosas. Bion, por exemplo avançou
a tese de que a descoberta da psicanálise não se fundamenta nos conflitos factuais de
ordem sexual, em particular dos conflitos intra-familiares, descobertos por Freud pela
auto-análise e na clínica, e que são objeto da sua teoria factual da sexualidade, mas no
mito de Édipo. Segundo Bion, esse mito teria servido a Freud de instrumento para
descobrir a psicanálise e esta, usada como instrumento, capacitou Freud a descobrir o
complexo de Édipo como fato clínico, detectar o material edipiano nos sonhos etc.
(Bion, 1963, p. 92). A psicanálise freudiana não se baseia em fatos sexuais, pois o termo
“sexo” só tem sentido no contexto do mito de Édipo (p. 45). Isso se deve ao fato de o
mito de Édipo ser um componente importante do conteúdo da mente humana (p. 47),
10
O termo “Schiboleth” usado por Freud é de origem hebraica e significa “espiga de trigo”. Segundo o
Velho Testamento, Juízes 12: 1-15, esta palavra foi usada para distinguir entre duas tribos, ambas
semitas,os gileadotas e os efraimitas, que estavam em estado de guerra uns contra outros. Os gileaditas,
vencedores da batalha, cercaram os efraimitas sobreviventes e, a fim de os distinguir de membros do seu
próprio grupo, exigiram que todos pronunciassem a palavra "schibboleth". Como os efraimitas, cujo
dialeto era diferente, só conseguiam pronunciar "sibboleth", eram assim reconhecidos e executados. A
partir da Bíblia, esse uso da linguagem para diferenciar grupos humanos em estado de guerra foi
difundido mundialmente e, geralmente, para atuar de forma hostil contra aqueles que são reconhecidos
como sendo pertencentes a grupos diferentes. Conforme se lê na Wikipédia do Google, durante o
massacre das Vésperas Sicilianas, no séc. XIV, os franceses eram reconhecidos pela forma como
pronunciavam “ciceri”, uma espécie de ervilha seca. Durante as revoluções de 1893 e de 1923, no Sul do
Brasil, os uruguaios eram identificados fazendo-os pronunciarem a palavra pauzinhos, que eles
pronunciavam como paucinhos.
11
Para detalhes sobre a distinção entre a psicanálise edipiana e não edipiana, veja Loparic, 1996 e 2001.
A hostilidade dos grupos ortodoxos kleinianos em relação aWinnicott foi bem documentada em Little,
1992, pp. 14 e 111. Outros traços da teoria freudiana foram também usados como armas de guerra, por
exemplo a metapsicologia, cujas variantes serviram para opor os kleinianos aos annafreudianos, numa
disputa violenta que quase resultou na dissolução da BPS.
10
mais precisamente, uma pré-concepção inata, um estado de expectativa da mente vazio,
adaptado à recepção de uma gama restrita de fenômenos pelos quais fica preenchida,
realizada, tornando-se concepção (p. 23). Enquanto tal, o mito de Édipo faz parte do
“equipamento de observação” padrão do material clínico (Bion, 1965, p. 50). Por tudo
isso, a adesão ao complexo de Édipo pode e deve ser usado como um critério para
distinguir os psicanalistas dos outros grupos de psicoterapeutas:
Freud afirmou que um dos critérios segundo os quais um psicanalista deveria ser
avaliado era o grau da sua fidelidade intelectual à teoria do complexo de Édipo. Ele
demonstrou, assim, a importância que atribuía a essa teoria. O passar do tempo não
trouxe nenhuma indicação de que Freud estaria errado por superestimar a
importância do famoso complexo; a evidência a seu favor nunca está ausente,
embora possa não ser observada. (BION, 1965, p. 49-50).
É provável que Bion não esteja fazendo mais do que retomar, à sua maneira, a
afirmação de Freud, de 1920, de que a teoria do Édipo, o complexo nuclear do qual se
originam todos os distúrbios a cargo da psicanálise, é o Schibbolethda psicanálise.12
Dito isso, gostaria de precisar que o uso que farei do complexo de Édipo é
baseado numa interpretação que poderia ser objetável a muitos leitores, embora não aos
leitores winnicottianos, visto que, no essencial, é muito próxima da oferecida por
Winnicott na parte II de Natureza humana.
3. A derivação filogenética do monoteísmo em Freud
Usando as duas versões da sua análise de relações triangulares com base genital,
Freud elaborou dois esquemas da derivação do monoteísmo, bem como de todas as
demais conquistas do desenvolvimento cultural ocidental: o filogenético e o
ontogenético, o primeiro, mitológico e o segundo, propriamente psicanalítico. Nos dois
12
Num artigo recente, bastante aplaudido, H. Faimberg se propõe a seguinte tarefa: mostrar que o mito de
Édipo, utilizado como metáfora, permite resolver os principais problemas teóricos da psicanálise
levantados pela clínica (Faimberg, 1993, p. 150-151).
11
esquemas, a ênfase é posta na derivação do monoteísmo nos meninos. As meninas são
vistas como incapazes de pleno desenvolvimento da religiosidade e da moralidade.
Consideremos, em primeiro lugar, a versão filogenética do monoteísmo, que faz
parte da filogênese especulativa freudiana da sociedade humana e é, de longe, a mais
explorada e aplicada por Freud. Ela é baseada no mito elaborado por Freud com base
em material da antropologia da época e na história natural darwiniana, organizado numa
narrativa inspirada na mitologia judaico-cristã.13 O monoteísmo nasceu, diz o mito, da
disputa violenta entre os machos pelos objetos sexuais, isto é, pelas fêmeas, na horda
primitiva, portanto, numa situação que é anterior à existência da cultura, a saber, da
ordem social, da religião, da moral e das artes. Temos aqui o equivalente sexual da luta
pela existência (struggle for existence) de Darwin. Darwin descreve a “lei da batalha”
(Law ofBattle) sexual entre os machos da seguinte maneira:
With barbarous nations, for instance with the Australians, the women are the
constant cause of war both between the individuals of the same tribe and between
distinct tribes. So no doubt it was in ancient
14
Helenammulierteterrima belli causa".
times;
"namfuit ante
With the North American Indians, the
contest is reduced to a system. That excellent observer, Hearne,says: "It has ever
been the custom among these people for the men to wrestle for any woman to whom
they are attached; and, of course, the strongest party always carries off the prize. A
weak man, unless he be a good hunter, and well-beloved, is seldom permitted to
keep a wife that a stronger man thinks worth his notice. This custom prevails
throughout all the tribes, and causes a great spirit of emulation among their youth,
who are upon all occasions, from their childhood, trying their strength and skill in
wrestling." With the Guanas of South America, Azara states that the men rarely
marry till twenty or more years old, as before that age they cannot conquer their
rivals. (1871, p. 323-324)
13
A especulação sobre a horda primitiva foi chamada, e Freud não se incomodou, de história como se
(just-sostory, SA, IX, p. 114). Ele próprio a denominou “mito científico” (ibidem, p. 126, 426) inspirado
em Darwin, não fugindo da comparação com um romance. Temos aqui, por um lado, um caso particular
do uso do método especulativo preconizado por Kant e, por outro, uma utilização laicizada das narrativas
mitológicas judaico-cristãs, conforme observou muito bem o cripto-católico Jacques Lacan (Lacan, 2005,
p. 37).
14
“Pois antes de Helena [de Troia] a mulher foi a mais fatal causa de guerra”. Darwin está citando um
verso da sátira 3, do livro I de Sátiras de Horácio.
12
Na luta pelas fêmeas, homens mais fortes e mais ousados tiveram mais sucesso
não apenas na batalha geral pela vida na guarda das mulheres, de modo que tiveram
proles mais numerosas. Na conclusão do seuestudo, Darwin observa:
For he would then, as we may safely conclude, have been guided more by his
instinctive passions, and less by foresight or reason. He would not then have been so
utterly licentious as many savages now are; and each male would have jealously
guarded his wife or wives. He would not then have practised infanticide; nor valued
his wives merely as useful slaves; nor have been betrothed to them during infancy.
(Darwin, 1971, p. 384; os itálicos são meus)
Freud refaz as etapas dessa luta dos machos pelas fêmeas em termos da sua
teoria do conflito edípico, que em partes decisivas claramente discorda das análises de
Darwin.
O pai da horda deseja possuir com exclusividade todas as mulheres da horda,
inclusive as próprias filhas, como objetos sexuais– ele é ciumento e incestuoso. Em
decorrência disso, ele vê em seus filhos, homens biológicos, ele os vê como rivais, em
termos psicanalíticos, ele os odeia e lhes proíbe o uso das mulheres da horda, ou seja,
proíbe que eles pratiquem o incesto como ele e, portanto, impõe-lhes abstinência sexual.
Para fazer vigorar a sua interdição, ele recorre à repressão, usando de força bruta – a
castração de fato, expulsão da horda ou mesmo a eliminação física – que tem o
significado de desterro e exílio – cometendo contra eles crimes que visam, no essencial,
a tirar-lhes a potência sexual. Os filhos se juntam e começam a luta física com o pai,
agora abertamente odiado, pelas fêmeas. Mas eles não se limitam a castrar, mutilar, esse
pai, eles o matam e, em seguida o comem, como se fossem canibais, porque também
amam as suas propriedades decisivas: sua força sexual e muscular. Ao mesmo tempo,
sentem-se culpados pelo crime de parricídio.
A fim de poder suportar essa ambivalência intolerável, fazem duas coisas.
Primeiro, celebram o pacto pelo qual declaram entre si que, agora, a vontade do pai
deve valer para todos e se impõem a proibição incondicional do incesto e a exogamia.
Dessa maneira, preservam o componente amoroso do relacionamento pulsional com o
13
pai, que guardam como realidade psíquica. Segundo, recalcam o lado odiado do pai e o
transformam em totem intocável. Os filhos continuam sob a vontade do pai
transformada agora em lei. Esse tipo de episódio ter-se-ia repetido inúmeras vezes
(1939, p. 529). Dessa forma, a vontade castradora bárbara do pai acabou ganhando força
coercitiva e, por sublimação, tornou-se regra básica da vida social civilizada no seu
todo.15 O modelo do Deus das religiões monoteístas evoluídas, do Deus Legislador
santo, Governante todo-poderoso e Juiz implacável, é o pai primitivo castrador, que,
transformado em totem, passa a garantir a vigência do pacto social que está na origem
da ordem social familiar e da vida cultural, “espiritual”, em geral. A origem do
monoteísmo é o totemismo, baseado na transformação do amor do pai em obsessão e do
ódio em submissão. Por essas duas vias, a ambivalência não é integrada e tolerada, mas
recalcada. Desde esse início, a religião pode ser caracterizada como um fenômeno da
psicologia das massas, análogo à neurose obsessiva individual observada na clínica:
uma neurose obsessiva da humanidade (1912/13, p. 363:1939, p. 504).
Fenômenos análogos do retorno do recalcado na vida da espécie humana
apareceriam, segundo Freud, nos indivíduos civilizados dos nossos dias, entre eles a
ambivalência nas relações dos meninos (e meninas) com os pais reais, o sentimento de
culpa decorrente disso, a constituição da instância do superego na estrutura da
personalidade como defesa contra a ambivalência e a culpa, a internalização da
proibição do incesto. As práticas de circuncisão, comuns nas sociedades primitivas e
ainda hoje amplamente usadas mesmo nas sociedades avançadas, seriam, segundo
Freud, um equivalente simbólico e uma substituição da castração primitiva.16
Da mesma forma, a força da coesão dos grupos humanos, exemplificados por
Freud pelos exércitos e pelas igrejas, também deriva da coesão que o relacionamento
ambivalente com o pai da horda primitiva imprimiu ao clã dos seus filhos perseguidos
15
Sobre a relação entre a proibição efetiva (e não apenas simbólica, incidindo sobre objetos usados como
substitutos de objetos interditados) da instintualidade sexual ou agressiva por repressão ou opressão e a
sublimação, veja Freud,1930, p. 227).
16
Ainda nos dias de hoje, aproximadamente 30% dos homens no mundo inteiro são circuncisados. Nos
Estados Unidos sobe significativamente e nos países muçulmanos essa média atinge os 75%.
14
(1921, cap. X). A ambivalência e as defesas correspondentes são outros fenômenos que
chamam por uma explicação filogenética.17 Note-se que, em Freud, os exemplos de
sociedades são grupos sociais aguerridos e que a coesão é vertical, não horizontal,
democrática. De fato, na psicanálise freudiana fica difícil elaborar uma teoria de grupos
democraticamente estruturados e da democracia.18
A forma mais apurada e menos eurocêntrica dessa figura paterna seria a razão
prática de Kant e o Deus Logos venerado por Freud. Essas duas figuras de Deus
monoteísta preservam, na forma transfigurada, um aspecto essencial do pai da horda
primitiva – melhor dito, do pai inventado por Freud com base na sua própria concepção
monoteísta de Deus e, provavelmente, na sua experiência com o pai – e do superego
individual, a saber, o caráter tirânico da sua vontade, o sic volo, sic iubeo, o assim
quero, assim mando. Assim como o Decálogo, o imperativo categórico de Kant e os
mandamentos do Deus Logos, dois elementos centrais do superego cultural de Freud
(1930, p. 267), são também inapeláveis e não admitem (Lacan viu isso muito bem19)
qualquer justificativa, nem mesmo a pragmática, que diz que a ditadura imposta salva a
humanidade de conflitos libidinais e outros. O sentido último da ditadura do pai
primitivo e de seus equivalentes simbólicos civilizados, não é, como na fase da horda
primitiva, a abstinência sexual (1939, p. 564), mas a imposição da renúncia à pulsão
(Triebverzicht), a sujeição do filho à vontade de poder paterna, a própria proibição de
incesto, privilégio dos deuses e dos reis, servindo de símbolo, assim como
posteriormente a circuncisão, da sujeição.20
17
Freud não está claro sobre as raízes filogenéticas da ambivalência. M. Klein toma outro caminho: ela
não tenta explicar a ambivalência pela filogênese, história natural ficcional da espécie humana, mas pela
constituição inata da mente humana, pela presença nela de instintos de vida e de morte (Klein, 1988, p.
54).
18
Esse traço do freudismo parece estar relacionado com o comportamento de grupos psicanalíticos
assinalado anteriormente.
19
Veja-se, entre muitos outros textos, Lacan, 2005, pp. 35-36 e 63.
20
Talvez se possa dizer que o mito bíblico de Deus que proíbe a Adão, sob pena de morte, tocar e comer
os frutos da árvore do conhecimento do bem e do mal, situada no centro do paraíso, ilustre a mesma ideia
de submissão incondicional à vontade do outro, cuja desobediência é punida pela pena máxima, não tendo
perdão.
15
Freud reconhece a dificuldade em explicar a maneira como se transmite a
lembrança do que aconteceu na horda primitiva, em particular, esse tipo de formação do
inconsciente coletivo. Ele se contenta em declarar necessária a suposição de uma alma
coletiva ou psique das massas, enunciada já em Psicologia das massas e análise do eu
(1921, pp. 67. 68 e 73), capaz de preservar uma herança arcaica da humanidade,
abrangendo não apenas as disposições adquiridas, mas também os conteúdos,
mantendo-os vivos, os quais, embora não tenham sido nem possam ser aprendidos por
experiência direta, exercem influência decisiva inconsciente sobre a vida psíquica de
cada indivíduo das gerações posteriores (1939, pp. 545-547).21 A alma coletiva teria
capacidade simbólica semelhante àquela observada no uso da linguagem: assim como
as palavras são usadas para fazer as vezes (vertreten) de outras palavras, assim também
objetos são usados para fazer as vezes de outros objetos. A capacidade simbólica da
psique coletiva não obedece a regras gramaticais precisas, pois não opera diretamente
sob repressão original, que é real, mas a serviço do recalque de pulsões ou seus
representantes, afetos ou representações.22 Como visa a influenciar e não a convencer
21
Embora Freud protestasse, não há como deixar de pensar aqui em inconsciente coletivo de Jung,
conceito não muito mais claro que o da alma coletiva de Freud.
22
Estou usando, como é de praxe, o termo “recalque”, em francês “refoulement”, para traduzir o termo
Verdrängung de Freud quando usados para designar uma modalidade de defesa interna contra a
instintualidade proibida, reprimida ou contra conteúdos mentais que a acompanham. Por exemplo, a
consciência moral é usada como proteção contra a agressão intolerável sobre o pai, potencializada pela
defesa do tipo recalque contra a agressão efetivamente realizada sobre o pai primitivo (1930, p. 256; veja,
ainda, 1912/13, pp. 354 e 1939, p. 548). Freud usa o mesmo termo para falar de repressão que resulta da
ameaça de agressão externa ou mesmo da agressão física externa efetiva (mutilação, castração, morte).
Também para designar todas as outras formas de impedimento (Hindernis), proibição ou interdição
(Verbot) ou desterro (Verbannung) externos do uso da institualidade sexual ou agressiva sobre seus
objetos diretos que causam não satisfação (1912/1913, p. 321-322), sentido que no seu Vocabulário de
psicanálise Laplanche e Pontalis traduzem por “répression” e opõem ao recalque. Diferentemente do que
dizem os dois autores, nos dois casos Freud fala também de Unterdrükung, opressão, sujeição (1909, p.
113; 1930, pp. 227 e 256). Esse engano provém provavelmente do fato de eles não considerarem o uso
que Freud faz dos termos psicanalíticos fora do campo da clínica, por exemplo, nos textos sobre a origem
dos fenômenos culturais; de fato, no Vocabulário não constam verbetes sobre itens tais como tabu, totem,
cultura, religião, monoteísmo, moral, arte, família, sociedade e guerra, não propiciando dessa forma o
pleno entendimento da terminologia freudiana. A forma verbal (unterdrücken, unterdrückt) da palavra
Unterdrückung encontra-se , por exemplo, em Freud 1909, p. 113, e num trecho de Frazer citado por
Freud na tradução alemã, que trata da proibição pela lei e da punição do uso dos instintos conforme as
inclinações naturais (1912/1913, p. 409). As traduções inglesas de Freud usam “repression” para os dois
sentidos de Vergrängung e, portanto, também para Unterdückung. Winnicott segue esse uso, seja por falta
de uma boa solução terminológica em inglês, seja por achar que os dois sentidos não são tanto distintos
assim, pois o recalque que é uma herança arcai ou individual da repressão externa (veja, por exemplo,
1923, p. 302). Em português, convém, sempre que possível, preservar terminologicamente essa diferença.
16
racionalmente, seu modo de atuar é associativo, assemelhando-se mais bem ao uso
retórico das palavras, do qual parte o deslocamento e a condensação (a metonímia e a
metaforização), do que o lógico. O resultado se parece mais bem com uma carta
enigmática – mensagem truncada, mistura de imagens de coisas e de palavras
recortadas, que pede para ser decifrado, “interpretado” – ou com uma poesia do
surrealismo radical, verbo fragmentado, do que uma simples comunicação em bom
português a ser comentada. Dessa forma, assim como a palavra “Deus” pode passar a
dizer algo parecido com o que diz a palavra “pai”, assim também, um general de
exército – estou usando um exemplo de Freud – pode assumir o lugar do pai protetor e
desempenhar o papel atribuído inicialmente ao totem, reedição do pai da horda
primitiva, idealizado pelo recalque, mas não pela eliminação, da ambivalência assassina
dos seus filhos. 23
4. A filogênese e a história do monoteísmo judaico
Segundo Freud, o episódio bárbaro da pré-história da espécie humana tornar-seia herança filogenética, parte do conteúdo da psique coletiva, que volta na vida das
sociedades civilizadas e dos indivíduos de várias formas.
Um episódio especialmente marcante desse tipo seria o surgimento, no antigo
Egito, do monoteísmo, no lugar do politeísmo de traços totêmicos (os deuses
representados pelas figuras de animais). O protagonista dessa revolução religiosa, que
significava um claro progresso, era Amenofis IV, “uma personalidade notável, de fato
única, digna do maior interesse” (1939, p. 471). O Egito se tornara potência mundial e
esse fato se refletia no universalismo religioso e no monoteísmo. Em oposição aos
sacerdotes do Deus Amon, Amenofis passou a pregar o Deus Aton, o Deus único,
criador de tudo e mantenedor de tudo pela sua força em termos da verdade e justiça
(Ma´at). Era simbolizado pelo sol, mas não era o sol, objeto visível interno ao mundo.
23
Talvez tenhamos aqui uma das principais fontes da tese lacaniana de que o inconsciente é estruturado
como uma linguagem.
17
Por devoção a ele, Amenofis destruiu todas as inscrições referentes a Amon e
aos outros deuses, inclusive os do nome do seu pai Amenhotep III, derivado do nome de
Amon. Ele mesmo trocou de nome e passou a se chamar Ikhnaton, incluindo, portanto,
o nome de Aton no seu próprio. Desde o início, no Egito, o monoteísmo de revelou uma
religião que hostilizava todas as outras, mais precisamente, que declarou guerra a todas
as outras, iniciando o que foi possivelmente a primeira guerra religiosa da história da
humanidade. Com a criação do Deus único, que não admite a existência de outros,
nasceu quase inevitavelmente, observa Freud, a “intolerância religiosa” (1939, pp. 471,
476).
Mas isso não é tudo. Segundo Freud, o poder da religião de Aton, seu caráter
coercitivo, que distinguirá todo monoteísmo posterior, viria, considerações do império a
parte, da recordação da vontade impositiva do pai da horda primitiva e a submissão a
esta estaria ligada ao sentimento de culpa pelo crime do assassinato do pai. Portanto,
tratar-se-ia do retorno do recalcado transformado simbolicamente, a figura do pai da
horda primitiva, inicialmente de totem animal, tendo sido transformada na figura de um
único Deus criador e mantenedor de tudo, com traços humanos de um pai e um
imperador (1939, III, I(D)). Um dos símbolos da submissão dos filhos seria a
circuncisão, tradicionalmente praticada no Egito antigo politeísta e preservada por
Ihknaton.
Contudo, o amonismo parcialmente totêmico reagiu violentamente e, depois da
morte de Ikhnaton, retomou o poder. Tratava-se de uma vingança, diz Freud (1939, p.
508); ou seja, da vitória do politeísmo moderadamente totêmico sobre o monoteísmo
inicial numa segunda guerra de religião no Ocidente.
Esse monoteísmo teria sido salvo por Moisés, um egípcio nobre próximo de
Ikhnaton, e ressurgiria numa versão purificada imposta por Mosés aos judeus:
monoteísmo estrito, leis proibitivas, manutenção ativa do sentimento de culpa, que
decorre do recalque do lado hostil da ambivalência e que, na história posterior do
judaísmo, ficou a cargo dos profetas (1939, p. 578-579), prática de circuncisão
(“substituição simbólica da castração”, que causa estranheza e mesmo horror aos
18
estranhos, mas que, para os judeus, era signo de elevação e de nobreza, e lhes abria o
caminho da espiritualidade, 1939, pp. 480 e 567), proibição de fazer imagem sensível de
Deus, proibição da mística e da magia, ou seja, de identificação com Deus, a não ser na
forma de submissão à sua vontade.24
A conjunção de uma grande personalidade (herói) com uma ideia religiosa criou
um povo, o povo judeu. Com essa tese, Freud retoma a sua teoria de socialização
baseada numa ideia de contrato social baseada na renúncia à pulsão (1939, p. 530),
desenvolvida em Totem e tabu (1912/13) no quadro de um estudo da formação de clãs e
de sociedades tribais em geral, continuada em Psicologia das massas e a análise do eu
(1921), que aborda grupos tais como exércitos e igrejas, e posteriormente estendida aos
grupos sociais de um tipo diferente – os povos inteiros, a começar pelo povo do Deus
único. Já no início do processo de socialização assim pensado encontra-se o
superhomem (Übermensch), que Nietzsche aguardava somente do futuro, figura que
ainda hoje “os indivíduos comuns necessitam como ficção de que serão amados de
maneira igual e justa por um líder (Führer), o qual, de fato não precisa amar ninguém,
que pode ter a natureza de dominador, ser absolutamente narcísico, mas seguro de si e
independente” (1921, p. 115). Os traços essenciais desse superhomem reaparecem no
deus mosaico, cujo modelo é um ”superpai”, caracterizado pelos pensamentos
decididos, força de vontade, impetuosidade no agir, mas sobretudo “pela autonomia e
independência do grande homem” (1939, p. 556).
Esses traços fazem dele um protetor altamente desejável. Enquanto um cidadão
britânico, num país estranho em plena convulsão social, se sente protegido pela frota
que lhe será envida pelo Government do British Empire, os seguidores do Deus da
religião de Ikhnaton e de Moisés apostam na proteção divina do todopoderoso. Eles
acreditam na “vitória da espiritualidade sobre a sensibilidade”, na supremacia da força
do pensamento tanto sobre a força bruta dos primitivos ou dos imperialistas modernos,
quanto sobre os benefícios que traz a harmonia entre as atividades espirituais e corpo
24
Um estudo recente do mundo religioso do Egito antigo encontra-se em Hornung, 2005. Para uma
reconstrução atualizada do monoteísmo egípcio, acompanhada de avaliação das construções especulativas
de Freud, veja Assmann, 1995 e 1998.
19
reais alcançada pelos gregos. A elevação do pensamento sobre o corpo enquanto lugar
de força e do sensível foi um passo decisivo dado pelo povo judeu em direção do que é
culturalmente mais valioso (1939, p. 558-561).
Esse ponto chama atenção por duas razões. Primeiro, em O futuro de uma ilusão
(1927), Freud desclassifica a religião como caminho em direção aos valores culturais do
mundo moderno, colocando no seu lugar a ciência. Segundo, em Moisés e o
monoteísmo, ele não consegue achar nenhuma “verdade histórica” que estaria
relacionada à horda primitiva e, detectada pela psicanálise, justificaria a pretensão dos
judeus religiosos a serem o povo escolhido por Deus, destinado a assisti-lo no governo
do mundo e a promover a espiritualidade – um traço distintivo que Freud deixa bem
claro. Ao mesmo tempo, ele faz notar que não há notícia de outro caso desse tipo na
história das religiões humanas (1939, p. 494). Via de regra, são os povos que escolhem
os seus deuses e não o Deus o seu povo. Freud se contenta com a hipótese de Moisés,
um nobre egípcio, ter-se rebaixado aos judeus, um grupo marginal no Império egípcio,
fazendo deles “seu povo escolhido” (1939, p. 494-495), reconhecendo que, desta forma,
o universalismo do monoteísmo egípcio sofreu um estreitamento (1939, p. 536).
5. A filogênese e o monoteísmo cristão
Com o cristianismo aconteceu um novo retorno do mesmo recalcado arcaico.
Em oposição à religião do pai do judaísmo baseada na culpa imperdoável e não
reconhecida pelo assassinado do pai primitivo, surgiu uma religião do filho que aceita
morrer para pagar pela culpa e, desta maneira, salvar a humanidade do pecado original
(ibidem). Criada para as massas miseráveis por Paulo (Saulo) de Tarso, um judeu
cidadão do império romano, essa nova versão do monoteísmo representa, por um lado,
uma regressão cultural em relação ao monoteísmo judaico: o cristianismo não é mais
estritamente monoteísta (Deus é uno e trino), introduz cerimonial, venera uma
divindade feminina (a virgem Maria), integra politeísmo mal disfarçado (os santos),
inclui elementos mágicos, místicos e totêmicos (a comunhão), hostiliza os judeus
20
monoteístas estritos, aboli a circuncisão e o exclusivismo judaico. Continuador do
judaísmo, Paulo de Tarso foi também o seu “destruidor” (1939, p. 536 e 580).
Ou seja, com o cristianismo, a guerra das religiões continuou. A religião de
Amon, diz Freud, obteve uma “nova vitória”, uma “nova vingança” sobre a religião
monoteísta de Aton (ibidem). Contudo, numa forma essencialmente modificada. Logo
que se tornou religião do império romano, o cristianismo passou a destruir também
todos os traços do paganismo, a começar pela destruição de templos politeístas e
perseguições que fizeram os seguidores dessa forma de religiosidade tornarem-se
progressivamente “pagãos”, habitantes de regiões afastadas, rústicas.
Apesar dessas críticas, Freud reconhece que a religião do filho de Paulo de Tarso
representou um progresso cultural em relação ao monoteísmo exclusivista judaico. Ao
pagar pela morte do pai com a morte do filho e, desta feita, reconhecendo o assassinato
do pai, agora Deus pai, o cristianismo substituiu a submissão à lei do pai pela
divinização do filho. “Do ponto de vista da história das religiões, isto é, com respeito ao
retorno do recalcado, o cristianismo foi um progresso, que em certa medida transformou
a religião judaica em um fóssil” (1939, p. 536). O judaísmo tradicional era baseado no
sentimento de culpa, sem a admissão de culpa de parricídio, o qual, mediante o processo
de simbolização da psique coletiva acabou sendo transformado em deicídio. Paulo
substituiu essa base do monoteísmo pelo sacrifício do filho de admite a culpa, o “pecado
original”, gesto que consegue a salvação libertadora, extensiva à humanidade toda
(1939, p. 380).
Aplicando os termos do mito bíblico, o homem, a suprema criatura de Deus,
mesmo no paraíso desde o início, não pôde deixar de comer os frutos amargos da árvore
do conhecimento do bem e do mal, mas, ao invés de continuar a se ver como habitante
de um mundo transformado em penitenciária, aceitou de pagar o preço pelo
conhecimento que adquiriu, valorou isso como um progresso pessoal e grupal, e foi
capaz de levar adiante sua vida à luz desse conhecimento.
21
Na linguagem da teoria do amadurecimento individual de Winnicott, tudo se
passa como se o filho tivesse criado condições pessoais não para negar, mas para
reconhecer e tolerar a sua ambivalência, inclusive a fantasia da morte do pai
(Winnicott, 1988, p. 49; tr.. p. 77). A aquisição de tolerância da ambivalência o
capacitou para continuar a viver e permitir que o pai viva (1988, p. 49; tr. p. 67). Ao
invés de matar o pai e pagar por esse crime imperdoável pela submissão inapelável à
vontade do pai, ele pode agora preservar o pai e, ao mesmo tempo, rivalizar com ele.
Várias condições ambientais e individuais são necessárias para que a criança
possa resolver os problemas da ambivalência inerentes ao processo de amadurecimento
e para que o processo de socialização vá nessa direção. Os pais devem ter madurecido
ao ponto de poder tolerar ideias hostis dos filhos. Essa capacidade é parte da maturidade
social: “Um sistema social maduro (se por um lado faz certas exigências no tocante à
ação) permite a liberdade de ideais e sua livre expressão” (1988, p. 59-60; tr. p. 78). As
crianças, mesmo sadias, podem não conseguir, de início, “tolerar os conflitos e
ansiedades que atingem seu ponto máximo no auge da experiência institual” (ibidem). A
solução de problemas da ambivalência, virá mediante “a elaboração imaginativa de
todas as funções”. Sem a fantasia, “as expressões de apetite, sexualidade e ódio em sua
forma bruta seriam a regra” (1988, p. 60; tr. p. 78), ou seja, teríamos uma situação
análoga à imaginada por Freud na horda primária. Dessa forma, a fantasia prova “ser a
característica do humano, matéria-prima da socialização, e da própria civilização”
(ibidem). A fim de ter essa virtude libertadora, a criança precisa ter condições de
distinguir entre a fantasia e a realidade. Para tanto, é necessário que os pais possam
fazer o mesmo.
Um dos primeiros passos na socialização do filho, que alcançou a capacidade de
tolerar a ambivalência, é o desenvolvimento da capacidade de identificação cruzada
com o pai. O filho precisa amadurecer ao ponto de poder se colocar no lugar do pai,
inclusive no lugar do pai que possui a mãe e proíbe essa posse ao filho gerando seu
ódio; de ser uno como o pai e ocupar a posição dele numa situação diferente da família
original, por exemplo, na sua própria família que criará um dia. O filho deve ser capaz
22
de entender o que significa ser pai e não mais apenas obedecer como um escravo.25 Em
seguida, ele poderá identificar-se com grupos sociais mais amplos ainda, com
sociedades inteiras de indivíduos que se reconhecem e se querem iguais, mas que não
ignoram e toleram o fato de que também estão em conflito.
Nessa perspectiva, a saída do Édipo e a socialização do ser humano não consiste
mais na submissão à lei de proibição do incesto e na espera da dignificação, de
materialização e espiritualização (libertação às sensibilidades em geral, que predomina
no relacionamento com a mãe e com as mulheres como tais em geral, 1939, p. 560-1),
isto é, na vida sublimada, governada pelas equivalências simbólicas que, depois de
devidamente criticadas, nos impõem em última instância a ditadura da razão, do Deus
Logos. O cristianismo nunca quis dar esse passo e reconheceu que o reino de Deus não
é deste mundo.
Como fiz notar num outro trabalho, Freud explicitou, com aprovação, o caráter
ditatorial da razão e os benefícios da “coerção” sobre todos os homens exercida pelo
“domínio da razão”:
o intelecto – ou, para chamá-lo pelo nome que nos é mais familiar, a razão – é um
dos poderes dos quais nos é permitido esperar antes que de outros uma influência
unificadora sobre os homens, esses homens que é tão difícil manter unidos e que,
portanto, são quase impossíveis de governar. [...] A nossa maior esperança para o
futuro é que o intelecto – o espírito científico, a razão – estabeleça, com o tempo, a
ditaduradentro da vida mental. A essência da razão garante que, em tal caso, ela não
deixaria de assinar seu devido lugar a moções afetivas dos homens e a tudo o que é
determinado por estas. (1933, SA, p. 598)
O fundamento dessa esperança é a verdade, a qual é fonte de um novo tipo de
intolerância, não ditada por motivos decorrentes da dinâmica pulsional, como a do pai
primitivo, mas pelas exigências da racionalização:
Acontece que a verdade não pode ser tolerante, não admite compromissos nem
restrições; a pesquisa considera como de sua alçada todos os campos de atividade
25
Aqui temos uma dica para entender o interesse de Lacan pela “dialética” entre o Senhor e o Escravo.
23
humana e deve tornar-se implacavelmente crítica quando um outro poder quiser
confiscar para si qualquer uma dessas áreas. (1933, SA, p. 588; os itálicos são meus)
A verdade que não pode ser tolerante é a proveniente da razão teórica e a prática
– o imperativo categórico de Kant sendo devidamente reinterpretado como a herança
intrapsíquica da proibição do incesto, sobre a qual se funda a estrutura psíquica dos
indivíduos humanos, e a ordem social e moral.26
Em Winnicott, a submissão a um senhor, o conformismo é “a moralidade no seu
mais baixo calão, frente as quais, as ofensas sexuais, mal contam” (1965, p. 102; tr. p.
96). Mesmo quando baseado esse Senhor se apresenta como a Razão. Precisamos, diz
Winnicott, de duas verdades, a racional-científica e a poética, pois sem a primeira não
podemos racionalizar, isto é, planejar e controlar as nossas vidas e sem a segunda
perdemos de vista o ser humano como um todo e não podemos ir criando livremente os
nossos modos de viver (1986, p. 172-173; tr. p. 136). A atividade cultural, tanto poética
quanto científica, não é baseada nem movida pela repressão e recalque, mas pelo
impulso criativo inato, pelo qual o mundo é criado de novo por cada bebê humano e
cujas primeiras manifestações se observam na sua capacidade de brincar. Essa
capacidade amadurece na direção de capacidades culturais sofisticadas, que se nutrem,
nas suas contribuições, da tradição cultural, estoque de riquezas da herança comum da
humanidade. A tradição cultural não tem a força de uma neurose obsessiva coletiva que
decorresse de alguma herança arcaica. Ela se torna viva e forte tão somente na medida
em que, ao invés de ser apenas repetida ou copiada, é usada de modo criativo. Tal como
o brincar, a criatividade cultural é uma atividade excitada e, mesmo quando exige
grande esforço e sacrifícios, essencialmente prazerosa e livre, sem ser submetida a
coerções instituais ou imposições internas (obsessão) ou externas (repressão). O artista
winnicottiano não se parece com um neurótico obsessivo, que busca satisfações
substitutivas de suas moções pulsionais reprimidas ou recalcadas, mas com as crianças
26
Conforme fiz notar no trabalho mencionado, Freud atribui o mal-estar na cultura não somente à moral
religiosa – à religião enquanto ilusão –, mas também à razão iluminista. A sua teoria da censura
neurotizante trabalha tanto com o conceito de repressão não-esclarecida quanto com o de repressão
esclarecida, uma vez que a objetificação como tal, pode ser repressiva ao ser intrusiva ou
impossibilitadora da vida humana.
24
que, como diz um verso de Tagore citado por Winnicott, “brincam na praia do mar dos
mundos sem fim” (1971, p. 112; tr. p. 133)
Em termos psicanalíticos, nós devemos ter condições de analisar o papel da
razão e, esse é o ponto que interessa mais ainda no presente contexto, o do pai. Tudo se
passa como se, em Freud a condição de possibilidade e de necessidade da psicanálise
fosse a figura de pai castrador não analisável, porque transmitida filogeneticamente
(1918, p. 229). Em Winnicott, essa impossibilidade, que contribuiu para a totemização
de Freud por vários grupos psicanalíticos, não existe.
Sabemos que Winnicott se deu a liberdade de analisar Freud em termos da sua
teoria do amadurecimento.27 Na sua resenha da edição inglesa das cartas de Freud,
Winnicott faz notar que, numa carta a Bárbara Low de 1920, Freud afirma que os judeus
têm em comum “essa coisa milagrosa – inacessível à análise até agora – que faz o
judeu” (1989, p. 475; tr. p. 360). No prefácio à edição hebraica do seu livro Totem e
tabu, Freud se diz alheio à religião paterna judaica e aos ideais nacionalistas do
sionismo, mas se reconhece como alguém que sente o seu modo de ser como judaico e
não o quer de outra forma. E prossegue:
Se se perguntar a esse alguém: O que em você ainda é judeu?,este responderia:
Ainda há muita coisa, provavelmente o principal. Mas essa coisa essencial ele não
pode no presente momento formular em palavras claras. Ela certamente se tornará
em algum momento posterior acessível à compreensão científica. [...] (1912/1913,
p. 293).
Freud termina o prefácio dizendo que espera poder compartilhar com seus
leitores a convicção de que “uma ciência sem preconceitos não pode ser alheia ao
espírito do novo judaísmo”.28
Ao que parece, Freud tentou alcançar essa compreensão em Moisés e o
monoteísmo e esta pode ser resumida na tese de que Moisés, seguidor de Ihknaton, que
27
Esse ponto está desenvolvido em Loparic, 2014.
28
Lacan tem coisas interessantes a dizer sobre o novo judaísmo de Freud, articulado na linguagem da sua
psicanálise (veja Lacan, 2005).
25
foi possivelmente o primeiro indivíduo na história da humanidade, inventara o judeu
como sujeito do deus único, avatar inconsciente o pai primitivo que instaurou, de modo
implacável, uma proibição que tomará o sentido de renúncia à instintualidade e
submissão ao verbo de um Deus sem rosto, estando assim na origem de um destino
irresistível, obsessivo, de buscar o poder e a vitória da espiritualidade sobre a
sensibilidade.
Winnicott continuou essa análise, derivando esse tipo de monoteísmo de um
determinado estágio do processo de amadurecimento, o de EU SOU. Dessa forma, o
monoteísmo foi reduzido a uma determinada forma de religiosidade que coexiste, tanto
na vida do indivíduo como na da humanidade, com várias outras, que incluem a mística
ocidental e oriental do vazio, o panteísmo, o abandono do monoteísmo estrito em prol
de dualismo no mundo numinoso (Satanás, além de Deus), do Deus uno e trino cristão,
que tem a estrutura de uma família etc.29
6. Derivação ontogenética
Passemos ao esquema ontogenético de Freud. O ponto de partida é o fato de, na
vida familiar das sociedades atuais, o pai possuir a mãe como objeto sexual e de existir
a ameaça de castração do menino que deseja sexualmente a mesma mãe, feita se não
pelo próprio pai, então pela mãe ou pelos terceiros (médicos, babás etc.). Aqui se insere
também a cena primária, vivência da ameaça de castração por um pai amado, isto é, da
29
Depois do holocausto, o judaísmo, tanto religioso como leigo, viu-se obrigado a se redefinir por razões
de outra natureza. Hans Jonas, aluno de Heidegger, especialista em gnose formado por Bultmann,
sionista, membro de uma unidade de artilharia que participou da invasão aliada da Alemanha 1945, cuja
mãe morreu em Auschwitz, reconheceu que, para os judeus, a “condição de povo escolhido se
transformara em maldição horrível” (1987, p. 13). Deus, caso fosse o Senhor da história, nunca poderia
ter permitido que tal coisa aconteça com o seu povo escolhido para assisti-lo no governo do mundo.
Depois de Auschwitz, o que ficou em questão é o próprio conceito tradicional de Deus. A experiência
judaica da história não pode mais ser articulada em categorias teológicas do judaísmo antigo (1987, p.
14). Impõe-se a conclusão que Deus não é compreensível ou que não é todo poderoso (p. 39). Jonas opta
pela segunda alternativa e propõe um conceito de Deus diferente do encontrado no Livro de Jó: no lugar
da plenitude do poder, Jonas propõe a renúncia ao poder (Machtentsagung) da espiritualidade sobre a
sensibilidade, na qual Freud, judeu iluminista da melhor tradição judaico-alemã, ainda acreditava. Às
perguntas sobre os desígnios de Deus como as de Jó, coberto de chagas, Jonas responde: “é nele [Jó] que
o próprio Deus sofre” (p. 49).
26
ambivalência. O resultado não é a criação da capacidade de tolerar a ambivalência
(continuar a amar o pai e querer ser como ele, mas em relacionamentos diferentes dos
da família original), mas do superego castrador como parte do aparelho psíquico, e do
ideal do ego. A essa instância atribui-se a legislação moral proibitiva, cujo núcleo é a
proibição do incesto e que acaba por receber várias formas. Na vida amorosa, a
interdição superegoica manifestar-se-á pelo fato de os homens terem a tendência de
idealizar as mulheres ou de degradar as mulheres, nenhuma chegando a ocupar o lugar
da mãe perdida para sempre. Na vida cultural, surgirão formas mais sofisticadas de
recalque. Por exemplo, o imperativo categórico de Kant, herança direta do complexo de
Édipo, será elevado em norma máxima do superego que deve comandar o agir dos seres
humanos.
Contudo, de acordo a filogênese de Freud, o primeiro ideal dos seres humanos é
a figura do pai originário, ciumento e brutal, que ocupa o lugar que posteriormente será
o do ideal do ego (1921, p. 119). A figura do grande homem, tal como Moisés, tomada
como modelo e mesmo a figura de um Deus onipotente, figura inicial do Deus do
monoteísmo, não podem ser vistas como fonte da força coercitiva (Zwang) que
caracteriza as formas ocidentais da religiosidade monoteísta e da moralidade, análoga a
força coercitiva da neurose obsessiva. A única explicação possível, segundo Freud,
consiste em supor que a origem da força do superego individual e cultural, isto é,
coletivo, provém da recordação inconsciente coletiva do assassinato do pai da horda
primitiva, do sentimento de culpa decorrente e da defesa contra essa culpa pela
submissão incondicional à vontade do pai, agora representada simbolicamente, em
diferentes formulações, pelas leis religiosas e morais (1939, p. 546, 556, 562, 565). Da
mesma maneira, a tradição cultural religiosa, oral ou escrita, tampouco possui, por si
só, o caráter coercitivo que pudesse explicar esse mesmo traço revelado pelas religiões
monoteístas, que produzem instâncias de controle nos indivíduos na forma da
consciência moral e aglutinam e disciplinam as massas, fenômenos que observamos
com espanto e, aos quais, até do surgimento da psicanálise freudiana, ficaram
incompreendidos (1939, p. 548).
27
7. Crítica winnicottiana da derivação freudiana do monoteísmo
Começo pela crítica do caráter central do complexo de Édipo, o Schibboleht da
psicanálise e elemento essencial dos fundamentos da derivação freudiana do
monoteísmo e dos fenômenos culturais em geral. Segundo Winnicott, para que a
psicanálise possa progredir e resolver problemas do processo de amadurecimento que
não podem ser tratados àluz da teoria freudiana da sexualidade, é necessário reconhecer
que a situação edipiana tem poderes explicativos limitados:
Para fazer progresso no sentido de uma teoria operacional da psicose, os analistas
devem abandonar toda a ideia da esquizofrenia e da paranoia, tal como vistas em
termos de regressão do Complexo de Édipo. A etiologia destes transtornos leva-nos
inevitavelmente a estágios que precedem o relacionamento de três corpos.30 O
corolário estranho é que existe, na raiz da psicose, um fator externo. É difícil para os
psicanalistas admitir isso, após todo o trabalho que tiveram chamando a atenção para
os fatores internos, ao examinarem a etiologia das psiconeuroses. (Winnicott, 1989a,
p. 246; tr. p. 191)
Xxx Os limites explicativos
No essencial, Winnicott simplesmente desconsidera o que Freud diz na sua
“mitologia científica” a respeito da origem do totemismo e do monoteísmo do crime de
assassinato do pai da horda primitiva e descarta as teses de Freud sobre o monoteísmo e
suas práticas baseadas nessa mitologia.
Entretanto, em vários momentos Winnicott apresenta observações críticas à
filogênese freudiana, mesmo quando não fala dela explicitamente. Vejamos algumas
dessas passagens. A prática da circuncisão seria, segundo Freud, um equivalente e uma
substituição sublimada da castração pelo pai da horda primitiva. A castração, no
30
Em Winnicott, a expressão “relacionamento de três corpos” refere-se aos relacionamentos triangulares,
em geral com base genital, isto é, edípicos, em oposição aos “relacionamentos de dois corpos”, que
pertencem aos estágios anteriores ao do assim chamado Édipo (Winnicott, 1965b, p. 29; tr. p. 32). Essa
expressão com esse sentido foi introduzida por J. Rickman em 1950. Logo em seguida foi aceita por M.
Balint (Balint,1952, p. 353).
28
sentido de destruição da potência sexual dos filhos é – Freud não deixa dúvida sobre
isso – uma prática bárbara, mas, ao retornar nas sociedades civilizadas na forma de
ameaça de castração, verbal ou efetiva (por exemplo, a circuncisão), ela permanece a
principal arma da repressão da instintualidade e, portanto, primeiro motor do processo
civilizatório. Já vimos que a força do sentimento de culpa, chamado por Freud de
“problema mais importante do desenvolvimento cultural” (1930, p. 260), não advém,
para ele, da experiência pessoal, sendo uma consequência direta do crime primordial, do
assassinato do pai.
Winnicott está longe de concordar com isso. Adversário decidido de terapias
físicas das desordens psíquicas, Winnicott opunha-se categoricamente às intervenções
cirúrgicas com tal finalidade, por exemplo, à leucotomia. Ao discutir esse assunto em
1951, na London SchoolofEconomics, ele abordou também a questão de circuncisão:
“A circuncisão é frequentemente realizada para curar ou impedir a enurese, a
masturbação, as aberrações sexuais, demonstrando que a cirurgia pode facilmente
tornar-se serva da superstição e do ódio inconsciente” (1989a, p. 549; tr. p. 417). Num
texto posterior, irá se mostrar mais reservado quanto às origens psicológicas dos
motivos religiosos e inconscientes da circuncisão, e enfatizando suas desvantagens, em
particular aquelas que prejudicam a constituição da sexualidade e o desenvolvimento
emocional infantis:
Naturalmente, nada de bom resulta do despertar artificial da excitação do pênis.
Parece provável que as roupas usadas depois da circuncisão estimulem
frequentemente as ereções e provoquem uma desnecessária associação da ereção
com a dor, sendo esta uma das muitas razões por que a circuncisão quase nunca
deveria ser realizada (exceto por motivos religiosos). [...] e certamente qualquer
estimulação artificial dos genitais infantis (mediante um processo pós-operatório ou
pelo desejo de babás sem educação de provocarem um sono que acalme) é uma
complicação; e o processo do desenvolvimento emocional da criança já é, por si só,
bastante complexo. (1964a, p. 158-159; tr. p. 180)
Essa discordância de Freud fornece a medida certa de quanto Winnicott se
afastou não apenas da filogênese mitológica, mas, sobretudo, dos próprios fundamentos
29
sexual-edípicos e religiosos – elementos da mitologia judaico-cristã refeitos na forma do
“mito científico” da psicanálise –, da derivação freudiana da cultura.31
Creio que a atitude de Winnicott com respeito à filogenética de Freud pode ser
compreendida à luz da consideração – nesse ponto eu discordo de Bion, Faimberg e
muitos outros leitores de Freud – de que o mito freudiano da horda primitiva é uma
projeção sobre história da humanidade da situação edípica constatada na clínica, a qual
projeção, enriquecida de um material proveniente da antropologia, mitologia e história
das religiões, é usada, em seguida, para dar maior inteligibilidade e força aos
relacionamentos triangulares. Como o próprio Freud diz, trata-se de uma “construção”
de caráter especulativo e, portanto, fictício (1939, p. 479 e 481). O que Freud não diz,
contudo, é que essa construção padece de circularidade, pois não faz mais do que
encobrir, mediante uma fábula de aparência naturalista, mas na sua essência tributária
da ética da lei judaico-cristã, a falta do poder explicativo da derivação ontogenética
freudiana do monoteísmo e da religiosidade em geral (1939, p. 518 e 574).
8. Crítica winnicottiana da derivação ontogenética
Por outro lado, a crítica winnicottiana da derivação ontogenética é explícita e
bem argumentada. Segundo um comentário importante de Winnicott sobre a terceira
parte de Moisés e o monoteísmo, de 1969, Freud, baseado na sua crença na repressão
31
Recentemente, a prática de circuncisão tornou-se objeto de um número crescente de críticas em
diferentes países, inclusive de reclamações ou mesmo contestações de caráter judicial. Nos Estados
Unidos, em 1985, foi fundada a NationalOrganizationofCircumcisionResource Centers, primeiro grupo
crítico da circuncisão. Em 2008, foi lançada a campanha internacional dos grupos críticos da circuncisão
sob o título “autonomia genital“. Em 2012, um tribunal de Köln proibiu-a alegando que a circuncisão não
consentida constitui uma invasão corpórea significativa e irreversível e, como tal, fere o direito humano
de autodeterminação somática. No mesmo ano, a Academia Alemã de Criança e Adolescente, e a
Sociedade Alemã da Cirurgia Infantil, pronunciaram-se contra a circunciusão de menores por motivos
religiosos e rituais. Simultaneamente, a Associação Profissional dos Médicos de Crianças e Adolescentes
Alemã, depois da sessão do Conselho de ética nacional, declarou-se escandalizada pelo fato de o direito
da criança à integridade corpórea não ser levado em conta. Grupos religiosos alemães judaicos e
muçulmanos protestaram veementemente. De certo, essa não é a primeira vez que, no Ocidente, as razões
da razão esclarecida se chocam com as posturas motivadas pela fé ou, na liguagem de Freud, pelas
recordações que pertencem à herança arcaica da humanidade. Um estudo detalhado da derivação
freudiana do monoteísmo encontra-se em Loparic, 2014b.
30
originária como mecanismo de constituição da cultura, “teria se excedido na sua
formulação do monoteísmo como importante por causa da verdade universal do pai
amado e do recalque [repression] disso na sua forma original e dura (do id)”(1989, p.
241; tr. p. 187). Esse argumento de Freud “não suporta um exame atento” (ibidem). Não
que Freud esteja errado “a respeito do pai e do laço libidinal que se torna recalcado
[repressed]”; contudo há de se notar “que certa proporção de pessoas no mundo não
chega ao complexo edipiano” e que, portanto, para elas, “o recalque [repression] da
figura paterna libidinizada tem apenas pouca relevância” (p. 241; tr. p. 187).
O ponto de Winnicott parece ser o seguinte: Na fase edípica, segundo Freud, a
proibição do incesto, do relacionamento libidinal com a mãe, imposta ao filho pelo pai
afeta também o relacionamento libidinal (o id) do filho com o pai. Como Freud
observou já no caso Pequeno Hans, esse relacionamento torna-se ambivalente, passa a
oscilar entre o amor e o ódio: ameaçado verbalmente de castração, Hans agora não pode
deixar de odiar como rival o mesmo pai que ele amou desde sempre, pois este era “seu
ideal, seu primeiro parceiro nas brincadeiras e, ao mesmo tempo, seu cuidador dos
primeiros anos” (1909, p. 113). Considerando as forças pulsionais em jogo, Hans não
tem outra saída do que continuar a amar e, ao mesmo tempo, reprimir ou, melhor,
recalcar [unterdrücken] o ódio, sem poder suprimi-lo. Em virtude desse conflito, Hans
passa a se relacionar com o pai de forma ambivalente, a ambivalência sendo um traço
essencial do relacionamento dos filhos com os pais (1939, p. 578).Em cada ser humano,
esse tipo de conflito afetivo é potencializado pela herança arcaica do relacionamento
ambivalente dos filhos com o pai da horda primitiva. Eles também não podem mais
continuar a amar o pai como antes, nem se entregar simplesmente ao ódio. O destino
desse conflito pulsional é descrito por Freud de diferentes maneiras na suba obra. Uma
descrição consiste em dizer que pulsão parcial amorosa passa a ter a sintomatologia de
obsessão e se torna origem das neuroses de obsessão, e que a pulsão parcial hostil
irresistível, o ódio, se transforma em sentimento de culpa imperdoável e, por
sublimação, produz fenômenos culturais, em particular a religião (1930, p. 264). Ambas
as sintomatologias encontram-se no monoteísmo derivado por Freud: os mandamentos
monoteístas têm a força de práticas que caracterizam neuroses obsessivas e são sempre
31
acompanhados de sentimento de culpa que não pode ser perdoada e que só pode ser
paga pela submissão renovada e mais severa.
Winnicott prossegue:
Se se olhar para pessoas religiosas, certamente não é verdadeiro dizer que os
princípios monoteístas só pertencem àqueles que atingem o complexo edipiano.
Uma grande parte da religião acha-se ligada com a quase-psicose com osproblemas
pessoaisque se originam da grande área da vida do bebê que é importante até que
se chegue a um relacionamento de três corpos [relações familiares triangulares com
base genital] entre pessoas inteiras. (1989, p. 241; tr. p. 187; os itálicos são meus)
Em outras palavras, os princípios monoteístas pertencem também aos indivíduos
que não alcançaram a capacidade de relacionamentos ambivalentes. Eles são criados em
algum estágio de pré-ambivalência. Portanto, a sua origem não pode ser remetida ao
complexo de Édipo.
Winnicott prossegue observando que, do ponto de vista do estado da psicanálise
em1969, Freud, ao teorizar sobre a religião, estava em desvantagem, pois ele só podia
utilizar a psicanálise conhecida na sua época. Mas nesse quadro, que é o da sua teoria da
sexualidade ampliada por uma metapsicologia e uma mitologia de própria lavra, não se
consegue dar conta do surgimento do monoteísmo. Winnicott reconhece, como foi dito,
Freud já sabia tudo sobre a frustração da instintualidade genital das crianças e os
mecanismos de defesa correspondentes, mas avisa também que ele não tinha idéia da
existência de necessidades dos bebês, e de todos os seres humanos em todas as idades,
que exigem provisão ambiental do tipo apropriado. Atendimento dessas necessidades
dos bebês pelas mães adaptadas e, durante o processo de socialização posterior, por
ambientes mais amplos, tais como a família, é algo muito diferente da satisfação
prazerosa de seus impulsos instintuais. Enquanto teórico da religião monoteísta, Freud
pertence ao passado por desconhecer certos fatos novos relativosao processo de
amadurecimento.
Outra limitação da concepção freudiana do monoteísmo decorre do horizonte
hermenêutico utilizado por Freud – a sua metapsicologia centrada na teoria das pulsões,
32
inclusive de pulsões parciais, que determinam a dinâmica dos relacionamentos objetais
e o interjogo das três instâncias do funcionamento intrapsíquico, mental, o id, o ego e o
superego (p. 243; tr. p. 189).32 O seguinte trecho explicita bem a objeção de Winnicott à
concepção do ser humano em termos de estados mentais internos e não em termos de
relacionamentos ambientais e objetais efetivos:
Em outras palavras, Freud, no arcabouço de seu próprio e bem-disciplinado
funcionamento mental, não sabia que temos hoje que lidar com um problema como o
seguinte: o que há na presença real do pai, e no papel que ele desempenha na
experiência do relacionamento entre ele e a criança e entre a criança e ele? O que
isso faz ao bebê? Pois há uma diferença, que depende de o pai achar-se lá ou não, se
é capaz de estabelecer um relacionamento ou não, se é são ou insano, se é livre ou
rígido na sua personalidade. (1989, p. 242; tr. p. 188; os itálicos são meus)
O que faz diferença no processo de amadurecimento emocional e pessoal do
bebê não é o pai representado mentalmente, ou seja, a imago do pai, mas o pai que é
uma figura real, mais do que isso, que é pai-ambiente; mais precisamente ainda, que é
elemento constitutivo do ambiente familiar, o primeiro grupo natural, que substitui a
mãe-ambiente e cuja estrutura “deriva em grande parte das tendências para a
organização presentes na personalidade individual” (Winnicott, 1965c, p. VII; tr. p. IX).
Em resumo, a concepção da origem do monoteísmo defendida por Freud é
datada, devido, por um lado, à descoberta de fatos clínicos novos e, por outro lado, por
causa das limitações do quadro de interpretação de fenômenos culturais, da sua origem e
natureza, oferecido pelo seu paradigma.33
Winnicott faz notar, entretanto, que, na primeira parte de Moisés e o monoteísmo
depois de enfatizar a singularidade da personalidade de Amenofis, Freud acrescenta
32
Freud não tem uma teoria (nem uma clínica) dos estados pré-edípicos. M. Klein não o convence, visto
que não faz sentido falar em Édipo precoce. Neste ponto, Freud concorda com Winnicott.
33
Observações importantes sobre os limites teóricos da psicanálise freudiana, sobre casos que revelama
ineficiência da técnica clínica preconizada por Freud, bem como sobre traços da sua personalidade que
limitavam a sua capacidade terapêutica (fuga para a sanidade) encontram-se na resenha de Winnicott da
autobiografia de Jung, republicada como capítulo 57 de Explorações psicanalíticas. Uma análise
detalhada dessa resenha encontra-se em Loparic, 2012.
33
uma nota de roda-pé que diz: “Breasted (1906) chama-o (Amenofis) de ´thefirst
individual in humanhistory´34” (1989, p. 244; tr. p. 189). Para Winnicott, nessa nota,
Freud estaria antecipando a tese de que existiria uma relação estreita entre a unidade
pessoal e o monoteísmo, a mesma que Winnicott tentará elaborar. Mas Freud não
conseguiu colocar essa tese no corpo do seu texto “por não poder lidar com isso em
termos de recalque, mecanismo de defesa, e interjogo de id, ego e superego” (1989, p.
244; tr. p. 189).
Assim mesmo, Winnicott diz acreditar, “daria boas-vindas a um trabalho novo
que desse sentido ao comentário de Breasted em termos de um universal no
desenvolvimento emocional do indivíduo, qual seja, a tendência integradora que pode
conduzí-lo a um status de unidade” (p. 244; tr. p. 189). Ou seja, se estivesse vivo, Freud
saudaria a mudança paradigmática operada por Winnicott. Entretanto, para poder dar
esse passo e aceitar a interpretação winnicottiana da origem do monoteísmo, está claro
que Freud teria de pagar um alto preço teórico. Ele deveria aceitar várias mudanças
revolucionárias,
entre
elas
o
reconhecimento
do
caráter
decisivo
para
o
desenvolvimento do indivíduo de estágios primitivos anteriores ao do Édipo, a inclusão
da teoria da sexualidade na teoria mais geral de amadurecimento e, sobretudo, o
abandono da metapsicologia e da tese de herança arcaica.35
Quanto à metapsicologia, Winnicott não deixa a menor dúvida: a estrutura do ser
humano não pode ser interpretada em termos de um aparelho psíquico, composto do id,
ego e superego, mas como uma história feita de conquistas maturacionais efetivas. A
pulsão de morte não seria outra coisa do que a reafirmação do pecado original (1971, p.
82). A metapsicologia seria mais bem uma mitologia de inspiração bíblica do que um
componente teórico–metafísico.
Da mesma forma, não há espaço na psicanálise winnicottiana para uma
“psicologia das massas” que trate da psique das massas, das suas disposições e mesmo
de seus conteúdos. Não há como conceber no quando da teoria do amadurecimento a
34
O primeiro indivíduo na história humana.
35
A seção I (E) da terceira parte de Moisés e o monoteísmo xxx.
34
lembrança coletiva dos homens dos nossos dias de um crime primordial, cometido por
seus ancestrais nos tempos imemoriais, o qual determinaria causalmente ainda hoje,
para além da tradição oral ou escrita, um sentimento de culpa imperdoável, a qual seria,
por sua vez, o motor do mecanismo que gera, por expiação infindável, o processo
cultural. Winnicott trabalha com o conceito de potencial herdado que é atualizado por
relacionamentos ambientais e objetais, o que possibilita uma reedição criativa,
imaginativa, do mundo por cada indivíduo humano com base nas suas funções
corpóreas e na tradição. Embora trabalhe como Freud na tradição darwiniana, Winnicott
privilegia a variabilidade nos indivíduos sobre o determinismo histórico, fundado no
jogo cego de forças psíquicas (Eros e necessidade) num aparelho suprapessoal e mental.
Melhor dito, Winnicott introduz na psicanálise, no lugar da psicogênese, o conceito de
história individual e grupal, a qual, embora não tenha qualquer fim último positivo, nem
obedecer a nenhuma teleologia, além da decorrente da tendência à integração que acaba
tendo de integrar até mesmo a morte, vive e floresce da produção do sentido pelos
indivíduos para seus relacionamentos excitados e tranquilos com o mundo.
Para quem conhece os fatos básicos da história da psicanálise, o otimismo de
Winnicott quanto a um possível entendimento entre ele e Freud nesse ponto deve
parecer exagerado. Não apenas por motivos teóricos, mas também pelos pessoais. Já no
começo dos anos 1960, na sua resenha da autobiografia de Jung,36Winnicott atribui a
Freud a fuga para a sanidade – um sintoma, que consiste, conforme Winnicott
esclareceu já em 1945, em ter medo ou negar “a capacidade inata de todo indivíduo de
estar não integrado” (1958a, p. 150; tr. p. 225) – e põe na conta desse traço da
personalidade de Freud o seu fracasso de entender a personalidade cindida de Jung.37
Um episódio contado por Jung na sua autobiografia ilustra bem as dificuldades pessoais
que Freud teria de vencer. No Congresso de Psicanálise realizado em Munique, em
2012, foi enfatizado o fato de que Amenofis, devido a sua atitude negativa em relação
ao pai, destruíra as inscrições referentes a este nas estrelas e de que “havia um complexo
36
Veja o capítulo 57 de Winnicott, 1989.
37
Analisei detalhadamente esse ponto especificamente psicanalítico de crítica de Winnicott a Freud em
Loparic, 2012.
35
paterno na origem da sua grande criação de uma religião monoteísta” (Jung, 2006, p.
192). Jung ficou irritado e procurou mostrar que “Amenofis era um homem criador e
profundamente religioso, cujos atos nunca podiam ser explicados por meros atos de
resistência a seu pai. Pelo contrário, honrara a memória do pai ...” (ibidem; os itálicos
são meus). Jung mal terminou de falar, quando Freud escorregou da cadeira e desmaiou.
Jung o pegou nos braços e levou num quarto vizinho. Na sua fraqueza, Freud olhou para
mim, diz Jung, “como se eu fosse o pai dele”.38 Isso pode querer dizer que Freud se
sentiu destruído pelo Jung tal qual um filho mais fraco pelo pai ciumento. Mas pode
também significar o oposto, a saber, que Freud, recuperando-se do desmaio, mesmo
ainda fraco e indefeso diante de Jung, quis destruir Jung, assim como um filho mais
fraco ameaçado pelo pai pode querer matar o pai. Para Freud, todo esse episódio de
desmaio era permeado, diz Jung, pela fantasia do assassinato do pai.
O exame aqui proposto da crítica de Winnicott à concepção da origem e da
natureza do monoteísmo defendida por Freud tem um interesse adicional: explicitar,
falando da religião em dois autores, as profundas diferenças entre a psicanálise
winnicottiana e freudiana. Aqui surge, naturalmente, a pergunta de saber se a disciplina
psicanalítica ainda preserva uma unidade. A resposta é positiva, como argumentei em
outros textos, pois o conjunto das diferenças que separam Winnicott de Freud pode ser
visto como uma revolução científica no sentido de Kuhn: como um Gestalt switch
paradigmático na psicanálise, motivado por dificuldades internas, mudança que, embora
modifique a estrutura dessa disciplina, preserva a sua capacidade de resolver problemas
e, ao mesmo tempo, estende essa capacidade a áreas de problemas antes inabordáveis;
ou seja, não dissolve, mas faz progredir a psicanálise. Outra diferença entre Winnicott e
Freud que merece ser destacada é a seguinte: a psicanálise winnicottiana não se
distingue por nenhum Schibboleth, por nenhum símbolo guerreiro que a torne
excepcional e única– ela é baseada em soluções de problemas exemplares,
generalizações-guia, métodos e valores abertos à discussão por todos.
38
Aqui estou seguindo a tradução inglesa da autobiografia de Jung, evidentemente mais fiel que a
brasileira (veja Jung, 1963).
36
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brasileira: Pensando sobre crianças. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
39
Comentário ao texto “O pai e o monoteísmo em Winnicott”.
Loparic: “mode d´imploir” – o leitor entusiasmado de Winnicott
José Euclimar de Menezes Xavier
Gostaria de começar com uma digressão em forma de pergunta: o que sustenta
esse meu lugar de comentador do belo texto do Professor Loparic?
Revelo a vocês que Loparic foi meu professor há 25 anos!!! Com ele aprendi a
ler um Freud imerso em uma problematização cultural. Embora tivesse criado o
CLE/UNICAMP, espaço no qual o lugar de Freud era situado, digamos, muito
tecnicamente, o trabalho de Loparictinha um viés muito mais de “mar aberto”. E digo
isso pensando no professor de quem me aproximei pela admiração a um modo de pensar
hirto, ao tempo em que poético. Imaginem vocês que fiz com ele um curso no
consultório da Elsa, no qual aprofundávamos o difícil Ser e Tempo do Heidegger
durante 1 ano: concentração extrema linha a linha, uma exegese apaixonante para o
garoto de 25 anos, que se iniciava no trabalho do hermeneutaque cruzava Heidegger
com Pessoa, sem fazer dessa fertilização um ornitorrinco: toda a tragicidade do pensar
de Heidegger, no leitor que iniciava leitores nas tramas difíceis do pensador da Floresta
Negra, ganhava a aspiração poética de infinito do Navegador do Tejo. O caudaloso rio
português singrava, no imaginário fascinante do grupo que ali rodeava um mestre do
pensar, a vasta floresta do ocaso de um modo de ser que é o ocidental. Rio e Floresta
como coisas elementares para um pensar desse mestre que atravessava com uma espécie
de lamparina segura pela mão eque apontava e esquadrinhava os detalhes que eu não
perceberia sem aquele foco delicado de um pensador, treinado por Gadamer, Ricouer e
pelo próprio Heidegger.
Como vocês vêm, meu texto começa por uma reverência a esse professor a quem
comento hoje, e que se tornou um amigo ímpar e um conspirador de ações promotoras
40
de formação de gente que me desafia a olhar oceanicamente. Tejo, Floresta Negra, Baía
de Todos os Santos: meus lugares de referência professor! Não posso não lhe agradecer
por isso. Como dizia o velho e bom Lacan: espaços de significação. Como viver é muito
perigoso, sobretudo em tempos onde a técnica se tornou tirânica, pensar livremente se
tornou, para mim, uma necessidade. E aqui uma confissão: no quase prosaísmo de
Winnicott, sou estimulado por vosmicê a pensar filosoficamente. Estivesse eu tête-à-tête
solitariamente com o texto de Winnicott, jamais veria filosofia ali. Talvez visse um
cronista do espaço ordinário da casa, da intimidade do lar. Ponto e basta. Escavar
camadas de significações filosóficas em Winnicott tem a ver com, mais uma vez, o seu
candinheiro iluminando os escaninhos miúdos que capturam olhares mais sutis e
delicados.
Vamos ao exercício do pensar que acho ter aprendido, a meu modo, é verdade,
em um uso específico que cometo do seu belo texto, aqui fragmentado pela exiguidade
do tempo em uma “única estação reflexiva”. Irei me concentrar no comparativo entre
Winnicott e Freud para pensar a organização psíquica do sujeito e nela, o lugar da figura
do pai.
A primeira proposição do texto refere-se a uma espécie de virada de perspectiva
que Winnicott teria realizado na reflexão e na prática psicanalíticas: trata-se da
ocupação de Winnnicott com esta realidade viva e intensa que é a mãe dedicada ao seu
bebê. E aqui uma pequena digressão para entender o que em outros textos,Loparic
chama de mudança completa de paradigma efetivado por Winnicott, ao pensar o sujeito
sendo, ao refletir sobre essa delicada tarefa de o bebê se tornar um eu, a partir dessa
relação que nomeio de “relação elementar de cuidados”.
Toda mãe de bebês pequenos sabe bem o significado de uma série de
procedimentos a serem providenciados numa cena como a de um simples banho.
Imaginemos, como a famosa “experiência” do sensualista Condillac:e no lugar da
estátua, neste cenário do banho, tomemos o bebê. Quais são as ocorrências que se
sucedem?:é despido, é imerso na banheirinha com água em uma temperatura x, o corpo
recebe a água do banho, tem o roçar da mão da mãe percorrendo a superfície da pele, o
41
deslizar do sabonete, o esfregar da toalha que enxuga cada reentranciazinha do corpo, o
contornar do cotonete que se passa aqui e ali nos orifícios corpóreos para os
procedimentos minúsculos de higiene, a unção do perfume e do hidratante, o aspergir do
talco, a vestimenta da roupinha, o acalanto, no colo, e o consolo, quase premiado, de um
peito abocanhado e tateado... enfim... Tudo isso feito por este outro que se “DEVOTA”
aos cuidados indispensáveis, nem sempre agradáveis de receber (e diriam as
feministas... de fazer, porque exige tempo, disposição, renúncias, maternagem).
Nesta cena, nada fictícia, absolutamente trival, prosaica de fato, algo se
processa. E não se trata de meras impressões sendo armazenadas em um sistema de
representações. Na reflexão de Winnicott, trata-se de um conjunto de ações que, numa
sucessão infinita de repetições, vão se apresentando ao ser que está sendo, da sein,
como o ambiente de cuidados, proteção e amor suficientemente bons para conferir a
garantia do viver, a experiência elementar de ser cuidado.
Um artista bem famoso daqui do recôncavo escreveu as boas-vindas ao seu
último filhote, e dizia assim, sincrônico a esse ambiente-colo, ambiente-mãe, ambiente
família descrito na letra de Winnicott: “Sua mãe e eu; seu irmão e eu; e a mãe do seu
irmão; minha mãe e eu; meus irmãos e eu; e os pais de sua mãe: lhes damos as boasvindas, boas-vindas, boas-vindas! Venha conhecer a vida...”
Pois é: naquilo que é próprio de um grande observador, Winnicott nos é
apresentado nesse texto como um clínico atento aos inúmeros detalhes do cotidiano de
um bebê, cuja significação só se alcança se se supera um modo especulativo que pensa
estruturas prévias e rígidas depositadas em um sujeito que vem ao mundo com desejo já
formatado, e com um esquema emocional cujo investimento équase que exclusivamente
hostil. Sabemos que aqui a referência é Édipo: em Freud, o bebê já se inaugura
querendopossuir libidinalmentea mãe que não é sua mulher; possui um pai temido e
invejado que o ameça e o culpabiliza; está acossado entre impotência absoluta e um
desejo insaciável. Lembro a remissão de Freud à Diderot para desenvolver a sua
antropologia: “Se um bebê de três meses tivesse a força de um homem de 30 anos de
idade, devoraria a sua mãe e torceria o pescoço de seu pai”. A este esquema
42
especulativo, nos lembraLoparic, opõe-seWinnicott. De sua experiência no cuidado com
bebês, este esquema apriorístico de organização psíquica não faz qualquer sentido para
pensar o que ocorre, de fato, no âmbito da intimidade familiar, em cujo cenário o colo
se destaca como ambiente.Alí, o que mais importa é que verifiquemos os imperativos
dessa tarefa do cuidado, refletido nos detalhes e nessa troca intuitiva que ocorre entre o
bebê que recebe a atenção e a mãe, agente prioritária deste ambiente. Nesse sentido,
poderia dizer que, na lupa que Loparic coloca no texto de Winnicott o âmbito familiar é,
por natureza, o espaço propiciador de vivências e de ações inscritas na ética do cuidado.
Não há apriori, nem representações, qual estrutura rígidas. Há fragilidade e delicadeza:
de um lado a mãe que acode às carências do bebê, do outro, o bebê-ai, vivenciando a
pacificação de seus instintos mais elementares: fome, sono, desconforto.
Qual, pois, o papel do pai neste ethos?
Cito Loparic: “Em Winnicott, o pai serve como esquema para alcançar a
unidade e garantia da integração da instintualidade dos seus filhos na unidade pessoal
de cada um deles”. Eu acrescentaria: O pai surge como suporte. Sem recursos aos
feminismos, Winnicott aí parece dizer: a presença de apoio que ajuda ao bebê ir se
constituindo como um “si mesmo” é o pai; ele aparece como retaguarda de um trabalho
delicado, quase natural,empenhativo e devotado que é, via de regra nas culturas
ocidentais, a ação materna. No seu pragmatismo que possivelmente decola de sua
experiência como pediatra, Winnicottpensa o bebê vivenciando experiências emocionais
enquanto está ali, pleno de demandas, e desprovido dos recursos operativos para o seu
atendimento.
Leitor de Freud, e com seu espírito nada especulativo, Winnicott se volta para a
emergência da vida: trata-se do cotidiano que se impõe aos homens, mesmo que sejam
bebês. É a fome que está ali e o sujeito não pode de per si sanar (é a mãe quem o faz!); é
o sono e a impaciência que está ali e o diabinho não consegue o mínimo controle de si,
de per si, para ir pacificando o espírito e se rendendo à entrega à quietude(é a mãe quem
nina, quem acalanta, quem conduz ao sossego do sono); é o cocô que está ali
incomodando e o seu produtor não tem competências para se limpar (é a mãe que,
43
devotada, o faz), etc. Todas essas coisinhas ordinárias recebem do olhar de Winnicott
uma dignidade de tratamento que as transforma em objeto de investigação e de reflexão,
mais ainda de intervenção, de operatividade, reveladoras de um ethos que se ocupa do
cuidado.
Estou plenamente de acordo com o Loparic nesse quesito: em Freud, há uma
excessiva importância atribuída à sexualidade para pensar o estar-sendo do bebê. Outros
autores já fizeram essa crítica à restrição freudiana por excelência. O que é especial em
Winnicott?No meu modo de ver, o seu recuo a uma dimensão de originariedade: antes
mesmo das descobertas sexuais, está ali o bebê, carecendo tornar-se “si mesmo”. E em
que o pai coopera nisso? Como essa figura subsidiária da mãe, que está extremamente
envolvida com os cuidados cotidianos com o filhote, torna-se significativa na tarefa que
coopera para o bebê ser?
Não vou reconstituir a trajetória reflexiva do leitor de Winnicott, de quem
empresto a lente para cometer, eu mesmo, as minhas entradas nos interstícios de nossa
fonte primária. Vocês terão acesso ao texto que será publicado na coletânea derivada
desta reunião científica e poderão se deliciar com a bela escrita e a erudição admirável
do professor Loparic que nos leva a rastrear a questão da religiosidade como um fio
condutor, no ocidente, para pensar o pai.
Vou direto e objetivamente ao ponto: o que Winnicott propõe para pensar a
significação do pai, passando a ser integrante do ambiente que possibilita ao bebê ser?
Loparic, reunindo suas leituras de vários momentos da obra de Winnicott nos afirma
que ele “põe em evidência as formas de religiosidade que remetem, na sua origem, ao
cuidado, não para com o que é santo, mas para com o que é sagrado na natureza
humana e nas relações humanas”. Refere-se, como podemos deduzir, a toda uma
tradição instaurada pelos monoteísmos, que vinculam santidade a sacralidade. Naquele
sentido, sagrado tem a ver com uma ética da lei. Na dissociação promovida por
Winnicott, sagrado implica uma ética do cuidado. No meu entendimento, isso se traduz
por uma espécie de reserva de si que o bebê experimenta, não obstante a dependência
absoluta aos cuidados do outro. Loparic o diz belamente do seguinte modo:
44
Na situação-problema exemplar da psicanálise winnicottiana, o ser
humano tem que resolver os seguintes problemas iniciais: estabelecer
contato com a mãe, que é simultaneamente ambiente e objeto,
integrar-se
no
tempo
e
no
espaço,
alojar-se
no
corpo
(personalização), entrar em relações objetais, constituir e manter o
senso de realidade do si-mesmo (impulsividade pessoal criativa),
aquisições que não eliminam, contudo, a capacidade de ficar não
integrado e a solidão essencial inerente a cada indivíduo humano.
Isso é estruturante do humano. O bebê porta essa aspiração: mesmo poroso em
vulnerabilidade, mesmo acudido em suas carências as mais elementares, a capacidade
de ser si mesmo lhe é estruturante. Permita-me, professor Loparic, a tradução em meus
termos do seu belo dizer: o bebê não é marionete da mãe e do pai; em deles recebendo
todos os elementos, a rigor, de garantia de sua sub-existência, não se cola a esses outros
“caninamente”. Mas a existência mesma do bebê, sua condição de humano, é, se
entendo bem Winnicott, auto acionada. Em termos mais simples: o bebê percebe mãe,
pai, ambiente, a despeito da apresentação insidiosa que a própria vida impõe a este
frágil ser.
Essa estrutura, no autor, é instaurada pela figura da mãe. Todas as outras
presenças que se sucedem, inclusive a do pai, será elemento propiciador do que
Winnicott chamará de amadurecimento, que reiterarão essa matriz relacional criada pela
mãe ambiente. Pai, então, subsidiário da ética do cuidado?
Se tudo corre bem, o bebê chega a perceber a mãe e todos os outros objetos e os
vê como não-eu, de tal modo que agora há o eu e o não-eu. (O eu pode
incorporar [take in] e conter elementos não-eu.). Esse estágio dos primórdios
do EU SOU só se torna atual no estabelecimento do si-mesmo do bebê na
medida em que o comportamento da figura materna é suficientemente bom – isto
é, no que diz respeito à adaptação e à desadaptação. Assim, a mãe é, no início,
uma desilusão que o bebê precisa ser capaz de desautorizar, e há necessidade
45
de que ela seja substituída pela unidade desconfortável do EU SOU, que envolve
a perda da fusão unitária original, que é segura. O ego do bebê é forte se
houver um suporte do ego materno para fazê-lo forte; do contrário, ele é fraco.
(Tudo começa em casa; p. 49)
Issoé algo bem mais significativo: no curso da tendência ao amadurecimento, o
pai é a presença que suporta a desrupção do vínculo mãe-bebê, necessária a que a
integração de si seja promovida. No belo dizer de Kierkegaard: “feliz do filho que não
se separou da mãe de outro jeito”. Desmame feito para que o indivíduo torne-se si
mesmo, suporte do pai que aguenta essa perda elementar primária e significativa da
própria existência: a mãe não será mais a mesma, o modo de nela ter todos os elementos
indispensáveis para a garantia da vida não mais estarão ali. Aqui estou me referindo à
mãe percebida em sua parcialidade, claro: era um peito e passa a ser mãe não por
eventos mágicos, mas por um doloroso processo de separação, indispensável à
integração do bebê. Esta travessia, essa passagem, é assegurada pela presença do pai,
percebido pelo bebê como uma totalidade. Palavras de Winnicott: “...a terceira pessoa
desempenha ou parece desempenhar um grande papel. O pai pode ou não ter sido um
substituto materno, mas em alguma ocasião ele começa a ser sentido como se achando
lá em um papel diferente [...]”.
Um terceiro que não é mais a xerox da performance da maternagem. Um terceiro
que não é excluído na constituição da individualidade, como no esquema freudiano, aí
tiranicamente presente como fonte de ameaça e extrema angústia. Nada disso em
Winnicott: “o bebê tem a probabilidade de fazer uso do pai como um esquema para a
sua própria integração”. Figura de báscula, digo eu, que baliza os movimentos
matriciais das experiências elementares de ser.
Ouso dizer, professor Loparic, que Winnicott parece ter sorvido o espírito da
filosofia e da poesia em sua reflexão para pensar na delicadeza desta vivência
originária: “Tem o sol e tem a lua; Tem o medo e tem a rosa; Eu digo que ela é gostosa.
Tem a noite e tem o dia; A poesia e tem a prosa; Eu digo que ela é gostosa. Tem a
morte e tem o amor; E tem o mote e tem a glosa; Eu digo que ela é gostosa, Eu digo
46
que ela é gostosa. Tua mãe e eu; Seu irmão e eu; E o irmão da sua mãe”. O pai de Zeca
remata o que me estribucho aqui para cometer, qual pensar, lendo o seu texto Loparic. A
presença do pai no circuito dos cuidados elementares disponibilizados ao bebê cumpre
essa dupla tarefa: a primeira de especulum: Colocar-se como um espelho para receber
do bebê as projeções de si. Dizendo melhor: é ao pai que Winnicott atribui a tarefa de
RECONHECER a si como uma unidade se fazendo. Aquelas cacofonias divertidíssimas
que escutamos os adultos dizerem aos seus filhos aqui reunidas se tornam indicadores
de um processo de identificação. É o pai, nessa ruptura simbiótica com a mãe quem está
ali dizendo: “neném, mamãe, papai...”. O que isso significa? Realizar um papel
indicativo do perfil de uma identidade: apresenta o bebê a ele mesmo; apresenta o bebê
à mãe; apresenta o bebê a si, que fala, que designa: “neném, mamãe, papai”. Ambiente
elementar a ser expandido na família extensa e, depois, nos circuitos mais sociais mais
amplos.
47
MESA-REDONDA
2:
IDEALIZAÇÃO
NO
PROCESSO
TERAPÊUTICO – UMA ABORDAGEM DA PSICOLOGIA DO SELF
Conferencista: YossiTamir39
Comentadores: Profa. Dra. Cláudia Mascarenhas 40 (BA) e Fernanda Leal41 (UCSal/Ba)
Durante as últimas décadas, psicanalistas mudaram de uma centralização
exclusiva nas pulsões e suas vicissitudes para uma ênfase cada vez maior nas
necessidades do desenvolvimento. Este movimento teórico induziu a uma retratação da
mente humana e sua evolução em termos de experiências próprias e senso de self. Os
mais proeminentes representantes desta mudança paradigmática foram Winnicott e
Kohut, que promoveram novos conceitos. Winnicott42nos apresentou o “self
verdadeiro”, no sentido do sentimento subjetivo de autenticidade. Similarmente,
Kohut43 desembaraçou a dimensão experiencial do self, uma dimensão que se refere aos
sentidos da coesão, harmonia, vitalidade e continuidade.
O processo de formação do self – de acordo com Winnicott e Kohut – depende
da existência da presença humana que exerce a importante função de cumprir,
repetitivamente e consistentemente, necessidades básicas de desenvolvimento. Estas são
39
Associação Psicanalítica Israelense.
40
Doutorado em Psicologia Clínica
Trabalha no Instituto Viva Infância , Brasil
pela
Universidade
de
São
Paulo,
Brasil(2010)
41
Doutoranda e Mestre em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador,
Especialista em Psicologia Perinatal (Instituto Brasileiro de Psicologia Perinatal, Gerar - SP). Bolsista da
Fapesb.
42
Winnicott, D. (1960) 2Kohut, H. (1977) 3Kohut (1971) designou o termo selfobjeto para denotar uma
representação interna de um objeto externo. Isto é precisamente análogo aoObjekt Kantiano. O termo
selfobjeto não se refere a uma pessoa objetiva ou qualquer objeto concebido para ser externo à
consciência, e o termo somente tem sentido em relaçãoà pessoa experienciando.
48
necessidades para experiências específicas e elas incluem experiências de segurança e
proteção, de visibilidade, de singularidade, de fusão e pertinência.
Na visão de Kohut, estas são “experiências de selfobjeto44” e elas se referem a
um específico estado de consciência em que não há distinção entre self e outro, como no
“estado transicional” de Winnicott. Este estado é tanto uma experiência de
desenvolvimento quanto existencial. Em outras palavras, nem a “experiência
transicional”, nem as “experiências de selfobjeto” são identificadas somente como
experiências de desenvolvimento e “primitivas”. Ao contrário, elas são vistas como
fenômenos existenciais que constituem um aspecto importante e necessário de estar
dentro de todos os estágios da vida.
O título do último, postumamente, livro publicado de Kohut era “How does
analysis cure?” Em minha opinião, este título reflete sua busca persistente para o
processo mental, que é responsável por cura e mudanças físicas. Sua busca trouxe à tona
muitas ideias bastante conhecidas e inovações, entre as quais a reconsideração da
idealização como um fenômeno mental e de desenvolvimento e do relacionamento
idealizado no encontro terapêutico. Um dos pontos de início de meu interesse neste
assunto é relacionado a uma experiência do início da minha carreira profissional.
Eu então tratava de um menino de 8 anos que era criado apenas por sua mãe,
pois seu pai havia desaparecido quando ele nasceu.
Durante uma das sessões antes da minha partida para uma longa temporada
servindo o exército, ele me perguntou o que eu faria no exército. Enquanto eu
hesitava (pois eu havia sido instruído a não responder perguntas pessoais), ele
prosseguiu: “Eu sei que você recebeu uma medalha por bravura na última guerra;
você foi ferido, não foi?” Enquanto eu novamente tentava me recuperar da pergunta
direta e encontrar um tipo de resposta terapêutica adequada, ele continuou e
perguntou: “Por que você recebeu uma medalha por bravura? O que você fez lá? Foi
perigoso?”
49
Eu me senti envergonhado e não sabia muito o quanto deveria contar a ele.
Eu pensei que eu poderia suscitar uma ansiedade desnecessária nele caso descrevesse
o perigo em que estive e as circunstâncias em que fui ferido. Eu falei algo evasivo
que, aparentemente, suscitou sua ansiedade e ele imediatamente perguntou: “Você
não vai morrer lá? Você vai voltar?” Eu fui novamente surpreendido por suas
perguntas e não soube como responder.
Aparentemente ele havia sentido minha ansiedade: era o período da Guerra de
Desgaste, eu estava prestes a partir para o Canal de Suez por um período longo e meu
primeiro filho acabara de nascer. De alguma maneira me recuperei e disse a ele algo
reflexivo/interpretativo como: “Você tem medo que eu vá desaparecer como seu pai”,
me sentindo bastante satisfeito com a interpretação de transferência que eu tinha
formulado. Mas, para minha surpresa, ele não retornou nas duas próximas sessões.
Eu então entendi isso como uma expressão de raiva e vingança do meu abandono ou
como um rompante de ansiedade como resultado da minha interpretação.
Quando discuti minha resposta com meu supervisor, ele me perguntou: “Por
que você simplesmente não disse a ele que não morreria lá, que você voltaria e
continuaria a atendê-lo como de costume?” Quanto à pergunta se eu deveria ter
contado ao menino como eu havia recebido a medalha por bravura, ele respondeu:
“É claro. Isso só poderia ter feito com que ele se sentisse bem por ele ter alguém de
quem se orgulhar.” Eu lembro que fiquei muito mexido e impressionado pela atitude
do meu supervisor, mas acho que apenas anos depois, quando me familiarizei com as
ideias de Kohut, é que pude entender sua profundidade e sabedoria e o significado
deste encontro terapêutico.
Do meu ponto de vista hoje, eu acho que perdi a oportunidade de proporcionar a
ele, e embasá-lo em uma experiência emocional curativa45 - uma experiência
relacionada a um “outro” grande, forte e confiante. Eu perdi a oportunidade não apenas
por causa do rompante da minha contratransferência (minha própria ansiedade ao partir
45
Uma experiência curativa, de acordo com o paradigma da psicologia do self se refere a uma experiência
de desenvolvimento corretiva.
50
para o front), mas principalmente por causa da minha falta de sensibilidade em relação a
suas necessidades específicas do self.
Desta posição, me parece que seu “desaparecimento” antes da minha partida
para servir o exército não foi uma expressão de raiva e vingança diante do meu
abandono, meu desaparecimento. Ao contrário, foi uma resposta doída para um outro
tipo de “desaparecimento” da minha parte: que eu não tinha estado a seu lado quando
não correspondi de uma maneira afinada à sua necessidade de mim como uma figura
idealizada. Isto é, eu não havia concordado de assumir esta função, da qual ele tinha
tanta necessidade naquele momento específico e que eu não reconheci a importância
curativa do relacionamento idealizado.
Foi apenas alguns anos depois, quando eu me deparei com a seguinte passagem
nos escritos de Kohut46:
"A little boy is eager to idealize his father, he wants his father to tell him about his
life, and the battles he engaged in and won. But instead of joyfully acting in
accordance with his son's need, the father is embarrassed by the request. He feels
tired and bored and, leaving the house, finds a temporary source of vitality for his
enfeebled self in the tavern, through drink and mutually supportive talk with
friends".
A ilustração de Kohut descreve a necessidade de desenvolvimento da criança de
admirar seu pai. Meu exemplo clínico demonstra também esta necessidade de admirar,
mas também chama a atenção para a necessidade de ser acalmada e reassegurada. Kohut
retrata a matriz de relacionamento desta necessidade como “a mother holding
46
Kohut, H. & Wolf, E. (1978) “Um menino está ávido para idealizar seu pai, ele quer que seu pai lhe
conte sobre sua vida, as batalhas que ele travou e ganhou. Mas ao contrário de concordar alegremente
com esta necessidade do filho, o pai fica constrangido com este pedido. Ele se sente cansado e entediado
e, saindo de casa,encontra uma fonte temporária de vitalidade para seu self enfraquecido no bar, através
de bebidas e apoio mútuo dos amigos.” (Trad. Livre).
6
Kohut, H. (1980) “Uma mãe segurando seu bebê magoado e possibilitando a ele se fundir com seu corpo
forte e calmo.” (Trad. Livre).
7
Kohut, H. (1966).
51
upherupset baby andenablinghimto merge withher Strong, calmbody47”
As citações supracitadas indicam que Kohut conectou esta necessidade de
desenvolvimento ao modo de presença de ambos, pai e mãe.
Em minha opinião, isso pertence mais a uma função parental como o próprio
Kohut faz referência a sua configuração narcisista como a “idealizedparental imago48”.
Contudo, se nos atermos a esta visão de que há uma diferenciação entre as funções
maternais e paternais, nós podemos suscitar o pressuposto que necessidades de
admiração estão relacionadas a atributos paternais de parentalidade e necessidades de
acalmar e reassegurar – a atributos maternos de parentalidade.
O seguinte exemplo clínico demonstra a expressão da necessidade suprimida por
um selfobjeto calmante e abrangente e sua manipulação terapêutica.
Shimshon, 9 anos, foi encaminhado para mim com queixas de dificuldade no
autocontrole na escola e em casa. Ele estava crescendo como uma mãe narcisista e
infantil, que estava profundamente absorvida nela mesma e tendia à depressão. Seu
pai estava imerso em sua carreira e dedicava muito pouco tempo a seu filho e sua
casa.
As respostas de Shimshon à situação terapêutica indicavam que ele estava
crescendo como uma criança “abandonada”: ele costumava chegar muito cedo às
sessões e achava difícil terminá-las, bem como aceitar outros limites; ele costumava
buscar contato físico comigo ou se dirigir a mim em um tom mandão – um tom que
refletia a profundidade de seu “self faminto”.
As tentativas de Shimshon de dominar o espaço físico e temporal encontraram
expressão já em uma das primeiras sessões, quando ele mandou que seus desenhos
fossem colados nas paredes de todos os cômodos e que eles ficassem lá para sempre.
A dimensão da transferência e o sentido arcaicode sua demanda eram bastante
52
óbvios: ele queria “marcar seu território” e mantê-lo para si mesmo, colado a ele,
fundido nele. Como eu não podia suprir sua demanda tecnicamente, eu ofereci a ele
concessões junto com meu entendimento verbal. Ele prontamente rejeitou ambos.
Eu percebi que ele estava planejando levar seu plano adiante e comecei a me
sentir completamente desamparado – ele estava me ignorando completamente. Eu
repeti muitas vezes, cada vez de uma maneira mais enfática, que eu não podia
concordar com o que ele queria fazer. Ele me desconsiderou, pegou um desenho
cheio de cola e pregou na parede. Enquanto eu estava considerando fazer ou dizer
algo mais eficiente, eu me lembrei de como nós costumávamos acalmar o
comportamento selvagem de crianças em terapia de grupo ao segurá-las e abraçá-las.
Eu decidi que não havia outra alternativa e que eu deveria adotar a mesma tática. Eu
disse a ele que percebi que ele não estava respondendo ao que eu dizia, mas que eu
sabia que ele estava ouvindo e que agora eu ia dizer a ele o que eu estava pensando.
Eu esperei alguns segundos, o vi parando sua atividade e entendi que ele estava em
contato comigo. Eu continuei, dizendo a ele que eu via que ele precisava das minhas
mãos fortes para segurá-lo e ajudá-lo a se controlar e que eu concordava em dá-las a
ele, para que ele pudesse usá-las quando precisasse.
Ele não respondeu, levando outros desenhos para outro canto da sala. Eu
fiquei em sua frente, novamente dizendo que eu não podia permitir isso, apesar de
entender o quanto isso era importante para ele. Ele reagiu com agitação e começou a
correr loucamente pela sala, gritando ele podia fazer isso o que ele quisesse lá, bem
como eu havia dito a ele, xingando, chutando os móveis e jogando coisas
aleatoriamente. Eu fui até ele e pus meus braços em volta dele, tentando acalmá-lo ao
fazer isso. Ele começou a lutar com meu punho, tentando me chutar. Eu respondi
segurando cada vez mais forte e comecei a falar calmamente com ele. Eu disse que
sabia que ele era forte, muito forte mesmo, e que eu estava segurando ele daquela
maneira com minhas mãos para dar-lhe ainda mais força, para que ele pudesse ficar
muito-muito forte.
53
Depois de dois ou três minutos ele se acalmou, descansando quietinho em
meus braços, não mais se opondo à minha contenção. Durante estes minutos, eu tive
a sensação de que nós estávamos nos tornando um corpo. Depois de alguns minutos
eu senti ele se acalmar e afrouxei a contenção. Ele reagiu com agressividade e
inquietude. Então, eu o contive com meus braços novamente. Esta interação não
verbal repetiu-se algumas vezes: eu o sentia mais calmo e afrouxava o abraço, ele
reagia com agitação; eu renovava o abraço forte e ele se acalmava novamente.
Eu entendi essa recorrência como uma indicação de seu senso de coesão
danificado. Ele precisava de um certo tipo de “cola” de um selfobjeto. Sua reação
agitada ao afrouxamento do abraço, foi sua maneira de expressar que ele ainda não
tinha tido o suficiente ou, em outras palavras, que ele ainda não havia recebido
“cola” suficiente.
Esta interação se repetiu durante muitas sessões, a causa da “luta” mudando
vez ou outra. Eu percebi mais e mais claramente o quanto ele precisava e desejava
um abraço longo e apertado. Quando eu tentei falar com ele sobre esta sua
necessidade e seu medo de que eu não fosse concordar em abraçá-lo ou que eu fosse
parar de abraçá-lo antes que ele estivesse pronto, ele prontamente rejeitou minhas
palavras: “Do que você está falando? Eu não quero que você me abrace coisa
nenhuma! Quem é que precisa dos seus abraços e suas besteiras!” Ele estava certo!
Ele precisava dos abraços sem palavra alguma! Então, eu decidi parar com
verbalizações interpretativas e continuou com a mesma “aceitação ativa” de sua
necessidade por um longo tempo até que, em uma das sessões, ele pediu que eu o
treinasse para ser um goleiro. É claro que eu concordei com muito boa vontade (eu já
me sentia muito cansado). Este pedido se mostrou ser o marco de uma mudança.
Conceitualmente, me parece que esta mudança foi alcançada através de uma
experiência emocional de idealização que havia se desenvolvido por meio dos
abraços. Mas, não foram os abraços fisicamente falando que foram cruciais. Em
minha opinião, um fato essencial foi minha posição emocional face-a-face com
minhas reações: eu estava preparado para segurá-lo o quanto ele precisasse sem me
54
sentir manipulado ou que ele estivesse tentando tirar vantagem de mim e eu estava
pronto para deixá-lo me usar como uma função calmante, provendo o sentimento de
coesão que ele necessitava.
Eu não acho que foi um simples ato de “impor limites” da mesma maneira
que pode parecer “olhando de fora”. Ao contrário, foi a minha presença, um “barril
de força”, do qual ele pode tirar toda força de que ele precisava.
Mais tarde eu também pensei sobre o significado terapêutico da intervenção
verbal que acompanhou meu “holding” com Shimshon. Não está claro para mim
quanto o conteúdo de minhas palavras foi importante e significativo para ele e qual
seu o peso curativo, mas de alguma maneira eu sei e sinto que eu precisava destas
palavras e o entendimento dinâmico traduziu em minhas palavras específicas para
que eu pudesse me expressar num tom de voz afinado com o modo de holding. Eu
vejo isso como uma canção de ninar cujo efeito, geralmente, não vem de seu
conteúdo, mas de seu tom – um tom cuja transmissão é possível através de palavras.
Eu sugiro que às vezes o entendimento dinâmico-empático, e a interpretação verbal
resultando disso, é necessário para o terapeuta para que ele possa prover um holding
eficaz.
No curso do desenvolvimento, as experiências infantis de idealização com
ambos pais são assimiladas na mente e transmutadas na idealização adulta que, nela
mesma, é uma capacidade de se relacionar a um ideal e ser devota a ele. Estas
experiências infantis também são as condições predominantes que facilitam a
emergência e consolidação de confiança básica, a “capacidade de esperança” e a
“capacidade de se preocupar”. Este processo é construído sobre a presença de outro que
concorda em “vestir” os atributos idealizados de uma maneira absoluta e abrangente e
participar completamente nesta “matriz idealizadora49”.
“Vestir estes atributos”
49
A resposta afinada e ótima para esta necessidade, cria um processo de sobriedade da ilusão de
onipotência por um lado e mormente estabelece a base para capacidade de usar presenças disponíveis para
outros para a consolidação do self.
55
demanda uma prontidão do terapeuta de usar sua capacidade de brincar como é
demonstrada na seguinte troca terapêutica.
A paciente era uma mulher de meia idade que sofria de leve depressão,
recorrentemente sentindo que ela tinha um vazio em sua vida e uma falta de
expectativa. Como resultado de seu desespero, a paciente costumava reclamar
repetidamente que não havia nenhuma melhora em sua angústia mental dizendo:
“Qual é a razão de me esforçar? Tudo vai acabar mesmo, e você também vai
morrer”.
Em um determinado momento, durante uma dessas lamentações, eu decidi
responder de uma maneira diferente; isto é, não a partir de uma maneira
interpretativa, como eu havia feito tantas vezes antes.
Eu disse a ela com toda seriedade: “Eu não vou morrer e te largar!!!”
Ela olhou pra mim muito surpresa e resmungou: “E como é que você pode
falar uma coisa dessas? No fim das contas você vai morrer, como todo mundo!”
E eu respondi com a voz ainda bem firme: “Eu não vou morrer e te largar.”
Então ela sorriu e disse: “Sabe, mesmo que eu não acredite em você, apesar de
não ter jeito de acreditar em uma loucura dessas, ainda assim eu acredito que você
possa... Você pode me dizer isso outra vez?”
Deste momento em diante, toda vez que ela tinha dificuldades em aceitar a
possibilidade de que alguma coisa positiva acontecia como resultado de seu
tratamento, ela concluía dizendo com um sorriso: “Sabe, um dia eu ainda vou
acreditar que você nunca vai morrer.”.
Eu enfatizo o fato de que ela sorria enquanto me dizia sua “conclusão”,porque
me parecia que isso era um sinal claro do que eu conceitualizo como “idealização
saudável”, ou um renascimento da imagem idealizada dos pais.
56
Conclusões Finais
Psicanálise clássica se refere à idealização como um modo de relações de objeto
e enfatiza sua função patológica e defensiva. Acontece que a relação idealizada não foi
organizada nela mesma, como uma experiência humana básica, mas como uma
derivação de “alguma outra coisa”.
Ao contrário desta abordagem, Kohut50 viu a idealização como uma necessidade
primitiva, de desenvolvimento e existencial. Sua revisão revolucionária sugerida da
teoria do narcisismo o levou a identificar a dimensão narcisista de sua necessidade. Sob
esta ótica, ele não se referiu à idealização como a relação a um objeto, mas a uma
experiência narcisista, uma experiência própria (do self). Em outras palavras, através do
apego a um outro idealizado (um outro onipotente, onipresente), o sujeito idealizador
experimenta tanto os dois sentimentos de segurança e proteção, bem como um senso de
plenitude e perfeição. É importante salientar que uma quebra recorrente no processo de
transformação da idealização da infância para a idealização adulta leva a uma formação
de uma idolatria51 – uma devoção cega, que é uma idealização maligna e patológica.
Referências
KHAN, M. R. Alienation in perversions.London: The Hogarth Press and the Institute
of Psycho-Analysis, 1979.
KOHUT, H. Forms and transformations of narcissism. J. Amer. Psychoanal Assn.,
v.14, p. 243-272, 1966.
________. The psychoanalytic treatment of narcissistic personality
disorders.thepsychoanal.St. Child, v. 23, p. 86-113, 1968.
50
Kohut (1966)
10
Khan (1979) speaks of this type of relation as a perversion of the mother-child relationship.
57
________. The restoration of the self. New York: International Universities Press,
1977.
________. (1980).Letters.The Search for the Self, New-York, v. l. n.4, p. 669-674,
1991.
WINNICOTT, D.W. Ego distortion in terms of true and false self.In: ______. The
maturational processes and the facilitating environment. London: The Hogarth
Press and the Institute of Psycho-Analysis, 1960.
58
Um comentário sobre o texto “Idealização no processo terapêutico, uma
abordagem da psicologia do Self” de YossiTamir
Claudia Mascarenhas Fernandes
Falar sobre a clínica da psicanálise é, em qualquer tempo, parte do ofício de um
analista. Destacar algum elemento desse manejo clínico para teorizar é portanto
imprescindível no “fazer" analítico, mas nem sempre encontramos exposições tão vivas
e honestas quanto a de YossiTamir. Viva porque vemos em seus fragmentos uma clínica
que pulsa, que se movimenta como a "maré das transferências” (empresto aqui a
expressão de um psicanalista muito criativo e querido para nós baianos, Emílio
Rodrigué). Honesta porque se apresenta desnuda de narcisismos ou de possíveis
rompantes de maestria. Aqui o interesse é o de como podemos avançar na nossa prática
a cada caso clínico, a cada paciente, a cada discussão, a cada escrito.
Meus comentários para esse debate, portanto, partem desse princípio proposto
por YossiTamir, de uma conversa amigável com um objetivo comum: compreendermos
a delicadeza da nossa clínica do dia a dia.
Yossi inicia seu texto dividindo a psicanálise em duas grandes visões: a que
centraria sua atenção maior nas pulsões e suas vicissitudes e a que coloca a tônica nas
necessidades do desenvolvimento. Chamo atenção que essa divisão não se baseia
simplesmente em diferenças de autores dentro da psicanálise (pois ele trabalha com
Winnicott e Kohut) e nem, necessariamente, baseia-se numa divisão entre a clínica com
crianças (supostamente mais desenvolvimentista) ou adultos (mais apoiada em
fenômenos existenciais).
Tentarei explanar algumas questões que podem abrir uma linha de diálogo a
respeito dessa divisão proposta e suas possíveis vicissitudes.
59
Propondo ao acompanhar o pensamento de Winnicott e Kohut, reconsiderar a
idealização como um fenômeno mental, de desenvolvimento e que faz parte do encontro
terapêutico, percebo que o autor consegue, no texto, realizar uma positividade na noção
de idealização. Essa torção, passar uma noção aparentemente negativizada (como
mecanismo de defesa sintomático, por exemplo) para positivá-la, parece-me uma
fórmula bem psicanalítica, diria inclusive, bem freudiana. No texto do autor seria mais
precisamente: recolocar a idealização dentro do manejo terapêutico para que se possa
usá-la no sentido da mudança terapêutica.
No primeiro fragmento clínico, que nos ensina muito pela hesitação que o
analista vivenciou, e que apenas após todo esse tempo de distanciamento do caso, pode
fazer a leitura clínica sobre a necessidade de positivar a idealização. Ao invés de tomar
a pergunta de seu paciente como a necessidade do paciente de colocar o analista como
uma figura idealizada, por sua contransferência, refere-se o autor, e por falta de
sensibilização em relação a suas necessidades específicas do self, seguiu sua instrução
de “não responder a perguntas pessoais” e, não depois de certa hesitação, fez uma
interpretação da transferência. Bem, seu paciente não voltou por duas sessões, isso lhe
trouxe um sinal de alerta.
Primeiro aprendi que a divisão entre interpretação da transferência e
interpretação na transferência feita por Lacan como uma distinção que representaria um
divisor de águas entre algumas abordagens dentro da psicanálise, aqui cai por terra.
Pois, o analista fez uma interpretação da transferência “você tem medo que eu vá
desaparecer como seu pai", que pelo menos por seu relato não funcionou, mas o seu
supervisor (que aqui suponho que compartilhava de sua mesma abordagem
psicanalítica), faz uma sugestão de uma interpretação na transferência, ou seja, o
analista poderia responder a partir de seu lugar na transferência, por exemplo: “não vou
morrer lá, vou voltar a te atender como sempre fiz”.
A segunda questão sobre esse riquíssimo fragmento é que: será que a
contratransferência não teria provocado, antes de qualquer interpretação possível,
também, além do que já foi muito bem colocado nas reflexões de Yossi nesse tempo do
60
só depois, uma resistência no paciente de falar do medo da morte? Será que isso iria
realmente provocar uma grande ansiedade "não administrável” pelo paciente? Ou
poderia o paciente, ao passar pelo assunto da morte ou da perda, que estava bordejando
sem poder ser dito, conseguir palavras para elaborar essa ideia tão insuportável do risco
de morte de seu analista? Ou melhor, além da necessidade de idealização do paciente
sobre o analista e que este não sustentou, será que não caberia aqui também a ideia de
que a resistência do próprio analista ao assunto da morte, de sua possível morte,que
provocara a interrupção das sessões posteriores? Antes de uma interpretação que fizesse
o paciente se sentir bem com a possibilidade do uso da admiração para chegar a
idealização, não será que ao analista caberia poder sustentar a angústia de morte que ali
se apresentava na transferência?
Esse fragmento realmente me fez pensar e me interrogar sobre muitos aspectos
das nossas intervenções, independentemente da abordagem que nos identifiquemos
mais, em psicanálise. Independente, não por que as abordagens sejam semelhantes ou
seus fundamentos clínicos sejam “no fundo iguais”, ou mesmo por que possamos fazer
uma "bela mistura” entre elas; mas pelo fato de que ele nos mostra a oportunidade de
podermos nos interrogar sobre a clínica e podermos modificá-la.
Outro aspecto muito interessante é a ideia da "presença do analista", o quanto
que para poder fazer uma interpretação, seja na ou da transferência, a presença inteira e
próxima do analista pode fazer diferença na mudança a ser alcançada pelo paciente. E
quando falo presença e proximidade, não me refiro obviamente à intimidade ou ao uso
de aspectos do ser do analista, mas a intensidade e inteireza que o analista precisa
ocupar em seu lugar de analista: “pode falar, estou com você, aqui realmente te
escutando”.
Fui com esse fragmento também lá nos primórdios da psicanálise freudiana,
mais exatamente no texto “A dinâmica da transferência” em 1912. Nesse texto incrível,
Freud teoriza o quanto a transferência e a resistência se relacionam quase como duas
faces de uma mesma moeda. Diz ele “nosso segundo problema, é o problema de saber
por que a transferência aparece na psicanálise como resistência" (FREUD, p. 136). Mais
61
adiante: “assim a transferência no tratamento analítico, invariavelmente nos aparece,
desde o início, como arma mais forte da resistência”(FREUD, p. 139). “Quando algo no
material complexivo (no tema geral do complexo) serve para ser transferido para a
figura do médico, essa transferência é realizada; ela produz a associação seguinte e se
anuncia por sinais de resistência, por uma interrupção por exemplo. (FREUD, p. 138).
Minha questão, se seguimos essa experiência clínica de Freud é: como podemos
sustentar a necessidade da figura idealizada do analista, desse modo positivado e a favor
do trabalho analítico, mas ao mesmo tempo não enfatizarmos a resistência, dada que ela
tem essa relação direta com a transferência assim que aparece a figura do médico e,
consequentemente, se a transferência aumenta, a resistência aumenta na mesma
proporção? No fragmento o paciente falta às sessões após o analista ter interpretado a
transferência, interpretação esta que colocou o analista explicitamente no lugar do pai
do paciente, acompanhando o raciocínio de Freud, à medida que o paciente se aproxima
de um núcleo “patógeno”, ele em seu discurso se aproxima da “figura do médico”,
refere-se a alguma coisa do analista, mas e se o próprio analista faz essa referência, não
estaria ele mesmo promovendo essa resistência?
Uma outra questão que me passou, dado que não tenho familiaridade com a
teorização de Kohut, foi: qual a diferença na clínica da teorização da "necessidade de
idealização da figura do analista” em alguns momentos do trabalho analítico, e como
esta estaria ligada à necessidade de desenvolvimento do modo de presença de ambos,
pai e mãe, e o trabalho com o eu ideal (imagos parentais ideias internalizadas) ou ideal
de Eu (representações idealizadas dos ideais sociais, que inicialmente vêm também dos
pais) ? Há alguma relação nisso? Onde se aproximam e onde se distanciam?
Outro aspecto muito interessante que Yossi nos traz em seus fragmentos
clínicos, é o que um analista precisa fazer no manejo clínico, quando num determinado
momento do percurso analítico, ao paciente lhe faltam as palavras?
Freud praticou a necessidade da abstinência e recuo do analista como uma
intervenção, Lebovici a intervenção a partir da “enação" (ação acuculada do analista de
agir a partir da empatia metaforizaste), Lacan teoriza o Ato analítico, e, Yossi, a partir
62
de Winnicott e Kohut, favorece a teorização da necessidade de intervenção a partir da
idealização do analista pelo paciente. São perspectivas, claro, absolutamente distintas,
que se sustentam dentro de fundamentos epistemológicos bem diferentes também, mas
todas tratam da teorização que o analista precisa fazer sobre esses momentos clínicos
em que ao paciente lhe falta palavras, melhor dizendo, são impossíveis de serem
elaboradas por interpretações clássicas. O analista precisa inventar uma intervenção que
se distancia da clássica interpretação, e ele precisa usar seu corpo, precisa agir de modo
calculado, mas é um tempo que ainda a palavra não chega.
Então, volto ao ponto da riqueza que é a abertura de um diálogo que possa nos
fazer repensar a clínica, a psicanálise, nosso lugar de analista…Agradeço pelo texto e
todas as aberturas que me fez pensar.
Por fim, deixo uma outra interrogação: será mesmo que durante as últimas
décadas os psicanalistas mudaram de uma abordagem exclusivamente apoiadas nas
pulsões e suas vicissitudes para uma posição de maior ênfase nas necessidade de
desenvolvimento? É possível fazer essa leitura evolucionista distintas abordagens dentro
da psicanálise? Ou a psicanálise pode comportar, segundo a grande abertura de seu
campo e a riqueza de sua clínica, uma convivência, uma tensão profícua, até os dias de
hoje, entre abordagens distintas, mas que fazem parte desse imenso oceano que é a
psicanálise?
Obrigada!
63
Função paterna e maternagem: uma questão com a imagem do pai
Fernanda Leal52
A questão do pai sempre me trouxe grande entusiasmo.A exposição do Dr.
YossiTamir sobre a importância da idealização no processo terapêutico se apresenta
para mim como um presente, principalmente se considerar que me detive, ao longo dos
últimos anos, debruçada sobre questões relacionadas ao estatuto do pai nas sociedades
modernas e pós-modernas, tanto no que se refere à sua imago quanto à sua função
simbólica.
Gostaria, portanto, de destacar da exposição de Dr. Tamir a importância da
imago parental idealizada para o processo de amadurecimento. E apesar de Kohut ter
desenvolvido esse termo relacionado a ambos, pai e mãe, como o próprio YossiTamir
sinalizou, me deterei na importância dada à imago paternana literatura psicanalítica,
mas especificamente em Lacan, no início de seus estudos, tomando como referência seu
artigo de 1938, intitulado A família. Ressalto que o recorte que realizo não foca o
conceito de Idealização desenvolvido por Kohut, mas privilegia o conceito de imago
paterna que foi bastante explorado por Lacan nesse texto. Pretendo com isso estabelecer
uma reflexão acerca da função do pai na contemporaneidade no que se refere a sua
participação no processo de constituição psíquica dos sujeitos, para compreender como
podemos pensar o papel do pai desde os primórdios da vida do bebê a partir do estatuto
de sua imagem social. Vejam que destaco dois conceitos distintos: o de imago – que se
inscreve numa análise histórica e sociológica – e o de função paterna – que adquire sua
importância a partir da psicanálise.
Iniciemos pelo conceito de imago paterna, que me pareceimportantíssimo para
se pensar o complexo de Édipo freudiano e consequentemente a família contemporânea,
principalmente a partir do recorte realizado por Lacan, o qual utiliza o conceito
52
Doutoranda e Mestre em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador,
Especialista em Psicologia Perinatal (Instituto Brasileiro de Psicologia Perinatal, Gerar - SP). Bolsista da
Fapesb.
64
considerando a maneira como esse pai aparece na sociedade vienense em fins de século
XIX, justamente a sociedade palco das descobertas freudianas.
Lacan não transita sobre as formas de apreensão dessa imago, elevai direto ao
seu aspecto declinante, apreende sua dimensão desvalorizada e a explora à exaustão.
Para Lacan, portanto, a imago paterna sofre o grande golpe no período posterior à
revolução industrial e revolução francesa, período em que os especialistas
convencionam iniciar a falência da família patriarcal. A própria referência que faz da
falência da autoridade patriarcal – Lacan se refere a essa falência como um “declínio
social da imago paterna” (1987[1938], p. 62) – já manifesta o caminho queele percorre.
Esse declínio, por sua vez, podia ser percebido a partir de uma imagem paterna
fragilizada, instável e desvalorizada socialmente, e, para Lacan, estava associado à crise
da modernidade que representava os avanços desmedidos das mudanças decorrentes do
período pós-revoluções, que influenciou tanto a família quanto a organização política,
social e econômica da Europa no fim do século XIX.
Alguns estudos como os de Roudinesco (2003), de Delumeau (1990), de Ariès
(1991), dentre outros, são testemunhos da realidade a que esteve exposto o pai de
outrora até chegarmos ao pai de hoje. Esta realidade histórico-social está presente na
reflexão lacaniana sobre a falência paterna, igualmente observadapor Tellenbach (1983,
p. 15):
Que o pai esteja cada vez mais hesitante e inconsistente em sua
inteligência, que ele apreenda e realize cada vez menos as
potencialidades de sua paternidade, essas são as constatações que
procedem de uma longa história; mas é somente no decorrer das
últimas décadas que se pode mais claramente tomar consciência dessa
situação, a ponto de não ser mais possível recusá-la53.
Para completar, em 1793, morre guilhotinado o rei Luís XVI, depois da abolição
da monarquia. Fato este que Roudinesco analisa fazendo referência a Balzac: “Ao cortar
53
Original em francês (Tradução livre da autora).
65
a cabeça do rei, dirá Balzac, a Revolução derrubou a cabeça de todos os pais de família”
(ROUDINESCO, 2003, p. 33).
Essa queda do patriarca que se manifestava através da desvalorização de sua
imagem parece ser retomada por Lacan com o propósito de contextualizar o surgimento
da teoria freudiana sobre as neuroses. Pois, como a metáfora balzaquiana já insinua, a
correspondência entre os dois personagens, rei e pai, nos sugere que algumas condições,
das quais destacamos as simbólicas, foram sendo criadas para pensar a família burguesa
ordenada com um pai menos potente.
Um corte fica estabelecido. E com o corte surge a possibilidade de se pensar a
organização familiar de outra maneira:como provedora de subjetividades mesmo diante
da falência da autoridade paterna. Assim, compreende-se que o pai, apesar da
desvalorização de sua imagem, tem um papel importantíssimo para a constituição
psíquica dos indivíduos. É, ao menos, a saída que Freud encontrou, segundo Lacan, para
revalorizar o pai. Se ele não mais detém o poder de autoridade inquestionável dentro das
sociedades, ele adquire um papel fundamental dentro da família – papel que não diz
respeito ao autoritarismo ou a uma posição social de poder, mas àquilo que a psicanálise
elabora sob o nome de Complexo de Édipo, que se encontra como importante
referencial lacaniano na sua abordagem da função paterna.
Para Lacan, portanto, o Complexo de Édipo se constitui numa forma de
valorização do pai diante da crise que se impunha; uma valorização eminentemente
simbólica. Conforme as palavras de Lacan: “Seja qual for o futuro, este declínio
constitui uma crise psicológica. Talvez seja a esta crise que se torna necessário
relacionar a aparição da própria psicanálise” (LACAN, 1987[1938], p. 62).
Se a psicanálise não poderia solucionar a crise que eclodia nem, tampouco,
resgatar a autoridade do patriarca dentro da família, poderia, ao menos, oferecer-se
como um dispositivo simbólico de ordenação psíquica, apesar da crise social do pai. No
entanto, nessa função do pai, podemos observar uma fragilização – que se manifesta
através de subjetividades vulneráveis a psicopatologias – que seria resultante da
66
influência do declínio de sua imagem. O que nos faz colocar em evidência aquilo que
Dr. Tamir destaca na sua exposição, ou seja, o quanto a imagem do pai (e dos pais)
exerce importante papel no processo de amadurecimento do indivíduo. Lacan não
despreza essa constatação. Ao contrário, apesar da polêmica afirmação de Lacan quanto
ao surgimento da psicanálise, a ênfase recai, não no nascimento desse campo do saber,
mas sim nos efeitos psicopatológicos procedentes das novas formas familiares que se
sustentam numa imagem social paterna fragilizada. É o que podemos constatar na
sequência do texto de 1938:
Seja como for, são as formas de neuroses dominantes no fim do século
passado que se revelaram ser intimamente dependentes das condições
de família. Estas neuroses, desde o tempo das primeiras adivinhações
freudianas, parecem ter evoluído no sentido de um complexo
caracterial onde [...] se pode reconhecer a grande neurose
contemporânea. A nossa experiência leva-nos a designar aí a
determinação principal na personalidade do pai, sempre faltando de
certo modo ausente, humilhada, dividida ou artificial (LACAN,
1987[1938], p. 62).
Dito de outro modo, para Lacan, os sintomas neuróticos são o reflexo das formas
de família dominantes e, portanto, intimamente ligados à fragilidade da imagem
paterna.As possíveis saídas do Édipo, segundo a teoria freudiana, servem aqui de
testemunho: não se pode sair do Édipo senão ao preço de um adoecimento psíquico,
ainda que este seja a neurose.
Podemos concluir, a partir desse longo passeio pela história e pelo artigo de
Lacan, que as psicopatologias contemporâneas são, na verdade, manifestações das
novas possibilidades de organização psíquica que os sujeitos contemporâneos estão
suscetíveis diante das novas formas de organização familiar ocidental, que se
constituem a partir de um pai simbólico. Mas essa longa análise não nos mostra como
podemos pensar o pai – como ele participa, como ele intervém, e se ele intervém – nos
primeiros dias da vida do bebê.
67
Mas para refletir a respeito da atualidade da função paterna na constituição
subjetiva do bebê desde seus primeiros dias de vida, penso ser necessário analisar
rapidamente de que forma o pai participa num período ainda tão prematuro da vida de
um bebê.
Nesse campo de estudo das relações do bebê e seu pai, gostaria de destacar os
estudos de Winnicott. Seus ensinos privilegiam a díade mãe-bebê, excluindo, de certa
forma, o pai como personagem de destaque nos primeiros contatos do bebê com seu
ambiente.Não existe, portanto, uma clara diferença entre as funções desempenhadas
pela mãe e pelo pai, pois, para Winnicott, a relação do bebê com o ambiente, no caso, a
mãe, é compreendida dentro de uma relação dual, onde não há a percepção de um
terceiro nos primeiros momentos de sua vida. Para ele, essa percepção é mais uma das
conquistas que a criança adquire à medida que avança no seu desenvolvimento
(WINNICOTT, 1990).
Se não há a percepção de um terceiro nos primeiros meses de vida, o pai não
existe enquanto tal para o bebê, e, portanto, não poderíamos falar em função paterna nos
primórdios da vida de uma criança na perspectiva winnicottiana, muito menos nos
efeitos psicopatológicos que Lacan constata como resultante da nova forma de
paternidade, alicerçada numa imagem do pai desvalorizada.
Mas antes de abandonar Winnicott, eis que me deparo, num texto de 1960, com
a seguinte frase: “...um cuidado materno satisfatório, que significa cuidado paterno.”
(WINNICOTT, 1983[1960], p. 44). Na sequência do texto, Winnicott define cuidado
paterno satisfatório classificado em três estágios: 1. Holding; 2. Relação dual mãe-bebê,
onde o pai não é conhecido do bebê; e 3. Pai, mãe e lactente.
Acredito que Winnicott é claro em sua afirmação, e que podemos compreender a
relação direta entre a mãe suficientemente boa e o cuidado paterno nesse pequeno
trecho (e em todo o artigo54). Talvez, para ele o pai não possa ser conhecido pelo bebê,
54
Artigo Teoria do relacionamento paterno-infantil (1960) que pode ser encontrado em WINNICOTT. O
ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artesmédicas, 1983. 38-54 p.
68
pois em sua obra o processo de maturação requer outras conquistas para alcançar esse
nível de desenvolvimento. No entanto, ele não descarta a importância desse pai desde o
início de seu nascimento, como podemos verificar na afirmação citada, que nos faz crer
que para Winnicott, para que uma mãe desempenhe sua função maternante a presença
do cuidado paterno é de suma importância.
Recorro a outro texto de Winnicott para dar suporte a essa afirmação, onde ele
escreve:
...o que hoje em dia é tão necessário, ou seja, dar suporte moral à boa
mãe comum, (...), e protegê-la contra tudo e todos que se interpuserem
entre ela e o bebê. Todos nós devemos juntar forças que capacitem o
início e o desenvolvimento natural da relação emocional entre as mães
e seu bebê. Esse trabalho coletivo é uma extensão do trabalho do pai,
do trabalho do pai desde o início, quando a mãe está carregando,
sustentando e amamentando seu bebê; no período anterior ao qual o
bebê vai poder usar o pai de outras maneiras”(WINNICOTT, 2005, p.
122).
Ou seja, Winnicott nos diz claramente há um trabalho do pai desde o início (...).
Reforço:“no período anterior ao qual o bebê vai poder usar o pai de outras maneiras”,
maneira essa que podemos supor estar associada ao Édipo. Mas antes do Édipo o bebê
pode usar o pai dessa maneira, indireta, porém salutar, pois que o seu trabalho de
suporte moral à boa mãe permite o início e o desenvolvimento natural da relação
emocional entre a mãe e o bebê(WINNICOTT, 2005, p. 122).
O que parece importar nesse momento inaugural das relações do bebê com o seu
entorno é mais o lugar que o pai ocupa junto à mãe desde a gestação até o desenrolar
dos primeiros meses do recém-nascido. Outros autores reforçam a afirmativa de
Winnicott, dentre eles, Nadia e Daniel Stern. Segundo eles, a função primeira do pai, no
modelo tradicional de família, consiste “em oferecer à mulher um suporte emocional,
físico, prático e financeiro, que vai fazer a ponte com o mundo exterior e lhe deixar
69
espaço necessário para aprender a se ocupar do bebê” (STERN, BRUSCHWEILERSTERN,1998, p. 213).
Esse ponto de vista do papel do pai, o de estar ao lado da mulher a cada etapa da
maternidade, desde a gestação, enquanto suporte emocional, sugere-nos uma forma de
presença do outro da mãe interferindo de alguma maneira na relação dual. Pois se
considerarmos a importância desse entorno da mulher para sua maternagem, o pai,
como parte do ambiente materno, estaria favorecendo a função materna imprescindível
ao desenvolvimento do bebê.
Nesse cenário que Stern nos apresenta de inscrição da maternagem, poderíamos,
então, supor que o papel do pai corresponde a uma função paterna, e, portanto,
simbólica, que atua de forma a permitir a maternagem do bebê e consequentemente seu
desenvolvimento psíquico, mesmo antes de sua entrada nas relações edipianas. Função
simbólica, uma vez que, ao tomar parte junto às referências sociais da mãe, ele
possibilitaria a mulher aceder à significação de sua maternagem.
Não poderia deixar de recorrer a Lebovici, psiquiatra e psicanalista que tanto se
debruçou sobre as questões do recém-nascido, para complementar e reforçar aquilo que
Winnicott nos traz de forma tão brilhante. Segundo as palavras do psiquiatra francês:
“Depois dos trabalhos de Bowlby sobre o apego, considero que os pais têm por função
ajudar suas mulheres no processo de maternalização” (LEBOVICI, 1989, p. 73). E o
que seria essa ajuda senão uma operação simbólica?
E se pudemos considerar o papel do pai nesse período que vai desde a gestação
até os primeiros meses de vida do bebê como uma função paterna deveríamos supor,
igualmente – pois que estamos lendo esses autores a partir da tese lacaniana de 1938 –
que essa função traz em si os traços de sua imagem social desvalorizada. Assim como,
segundo os argumentos de Lacan, as psicopatologias do bebê poderiam ser
compreendidas como efeito da nova realidade do pai do período pós-revoluções.
70
O objetivo não é patologizar as expressões sintomáticas do lactente, nem mesmo
interpretar a família contemporânea como uma família que faz o sujeito adoecer. Ao
contrário, o que se verifica nas leituras recorridas é a atualidade de uma constituição
subjetiva marcada pela nova lei que a funda, a saber, a lei simbólica, que traz em si uma
inadequação própria do mundo simbólico. A representação dessa lei pode ser
compreendida à luz da antropologia de Lèvi-Strauss, que tanto influenciou o
pensamento lacaniano a partir de 1952, quando do seu retorno à Freud.
Segundo o antropólogo, o mundo simbólico impõe um limite que lhe é próprio:
“não pôde e jamais poderá consistir senão em retificar recortes, proceder a
reagrupamentos, definir pertenças e descobrir recursos novos, no seio de uma totalidade
fechada e complementar consigo mesma” (LÉVI-STRAUSS, 2003. p. 42). Lacan nos
diz algo parecido porém de outra maneira, já integrando a questão da família. Segundo
ele, “De fato mesmo representada por uma única pessoa, a função paterna concentra em
si relações imaginárias e reais, sempre mais ou menos inadequadas à relação simbólica
que a constitui essencialmente” (LACAN, 1998, p. 279). Ou sempre algo escapa ao
sujeito, ou, tudo ele capta do outro sem no entanto poder compreender o que capta, sem
no entanto poder falar sobre aquilo. Se ele não pode falar, se ele não pode compreender,
se ele não pode ter acesso a um sentido que dê conta, resta a ele adoecer. Manifesta,
portanto, através de sintomas aquilo que não pode significar de outra maneira. Dessa
forma o sintoma fala, sendo a forma do bebê se comunicar com o outro.
Partindo desse ponto de vista, as psicopatologias do lactente seriam, portanto,
efeito do tipo de organização a que estamos submetidos, organização familiar que se
constitui e funciona a partir de operações simbólicas: metáforas, significações,
representações, interpretações; que possui em sua estrutura o caráter inerente ao mundo
da linguagem, a saber, o limite, o furo, a inadequação, a idiossincrasia, o paradoxo, o
mal entendido, o equívoco.
Que estejamos diante de um período onde vemos a função paterna em seu
declínio, não é o que pretendo denunciar, afinal de contas, os autores contemporâneos o
fazem muito bem. O que sinalizo, pontuo e reforço é algo anterior ao que se constata
71
com relação ao declínio da função paterna, e que acredito ser de grande importância
para a compreensão da proliferação das psicopatologias do bebê, ou seja: devemos
pensar a relação dual mãe-bebê como estando permeada por um terceiro – não importa
qual – que pode fazer a função de pai que o complexo de Édipo freudiano nos propõe
como esteio para a constituição do sujeito humano. Seja na simbolização da
maternagem; como ambiente facilitador ou como suporte moral da mãe; ou ainda, como
interditor na relação mãe-bebê, a função paterna deve ser considerada desde o início da
vida do recém-nascido.
No entanto, o que a atualidade da constituição subjetiva nos esclarece é que não
se pode pensar essa função sem o seu caráter simbólico e, consequentemente, sem os
efeitos inerentes ao mundo da linguagem no qual se sustenta a própria função paterna.
Tanto e de tal forma, que podemos, inclusive, nos preocupar quando diante de bebês
que não adoecem, que não manifestam sintomaticamente as idiossincrasias do mundo
que os rodeiam. Se a presença de um sintoma pode se constituir num sinal de alerta, sua
ausência, no entanto, pode indicar algo muito pior.
E para darmos o sentido devido a essa realidade da maternagem, devemos
sempre ter em mente que a mãe, ao desempenhar seu papel de mãe, tem todo um
ambiente em torno dela que pode favorecer ou não essa maternagem. Dito de outro
modo: a mãe nunca está só, ou quando está, é porque algo do seu entorno falta, claudica.
Para que a mulher cumpra seu papel de forma minimamente saudável para ambos, para
ela e o recém-nascido, deve haver um ambiente que favoreça as interações mãe/bebê.
Alguém que possa ser o terceiro da relação, alguém que possa ser o outro da mãe. E
quem nos diz isso é o próprio Winnicott, como vimos anteriormente: “...um cuidado
materno satisfatório, que significa cuidado paterno.” (WINNICOTT, 1983[1960], p.
44).
Para finalizar, utilizo as palavras de Simone de Beauvoir: “Ninguém nasce
mulher: torna-se mulher. (...) Somente a mediação de outrem pode constituir um
indivíduo como um Outro” (BEAUVOIR, 1967, p. 9). O mesmo podemos dizer com
relação à mãe.
72
Referências
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BEAUVOIR. S. O Segundo sexo II:.a experiência vivida. São Paulo: DifusãoEuropéia
do Livro, 1967.
DELUMEAU, J.; Roche, D. (Orgs.). Histoire des pèreset de la paternité..Paris:
Larousse, 1990.
LACAN. J.A família. Lisboa: Assírio&Alvim, 1987.
______. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: ______.Escritos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 238-324.
LEBOVICI, S.; WEIL-HALPERN, F. Psychopathologie du bébé.Paris: P.U.F, 1989.
LÉVI-STRAUSS. Introdução à obra de Marcel Mauss. In: MAUSS, M. Sociologia e
antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 11-46.
ROUDINESCO. A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
STERN, D.; BRUSCHWEILER-STERN, N. La naissance d’une mere. Paris:
PochesOdile Jacob, 2008.
TELLENBACH.L í mage du pèredans le mytheet l ́histoire.Paris: P.U.F., 1983.
WINNICOTT, D. W. Teoria do relacionamento paterno-infantil. In: ______. O
ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983. p.38-54.
___________. Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
___________. A contribuição da mãe para a sociedade. In: ________. Tudo começa
em casa. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p.117-122.
73
MESA-REDONDA 3: PROVISÃO AMBIENTAL PATERNA
Conferencista: Profa. Dra. Claudia Dias Rosa 55
Comentadores: Profa. Conceição Serralha (SBPW)56 e Doutoranda Marlene Brito (UCSal/Ba)57
O pai no processo amadurecimento58
Claudia Dias Rosa
Nesta exposição, apresentarei um panorama geral do papel do pai no processo de
amadurecimento – do estágio inicial da primeira mamada teórica ao período edípico
(não poderei me deter no tema da adolescência que extrapola o tempo que eu tenho
aqui). Pretendo, neste percurso, mostrar que a importância da presença paterna começa
antes mesmo do bebê ter condições de reconhecer o pai como pai; tenho a intenção,
também, de deixar clara a sua importância como membro do casal parental – o segundo
ambiente, depois da mãe, que a criança encontra e com o qual conta para continuar
amadurecendo. Explicitarei, de maneira sucinta, os diversos papéis que ele assume no
decorrer da vida do indivíduo e que variam segundo as necessidades relativas a cada
estágio. Deterei-me, mais longamente, na discussão de sua participação no estágio das
relações triangulares, quando ele assume um papel privilegiado para auxiliar a criança
nas elaborações das questões próprias a este período.
55
Psicóloga, Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP, membro da SBPW (Sociedade Brasileira de
Psicanálise Winnicottiana), Professora da Escola Winnicottiana de Psicanálise do CWSP, Coordenadora
do SAP (Serviço de atendimento em psicanálise) do CWSP e do CWCamp.
56
Doutorado em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
Brasil(2007). Professor Adjunto III da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Brasil
57
Graduação em Licenciatura em Psicologia pela Universidade Regional do Nordeste, Brasil (1989)
Psicóloga com atuação na área clínica do Consultório de Psicologia , Brasil.
58
Este artigo deriva de minha tese de doutorado “As falhas paternas em Winnicott”, defendida na
PUC/SP em 2011 e que contou com o apoio do CNPq. (Cf. Rosa, Claudia Dias, 2011).
74
Primeiramente gostaria de observar que, embora relevante, tanto do ponto de
vista teórico quanto clínico, o tema do pai mereceu pouco destaque entre os
pesquisadores da psicanálise winnicottiana. A literatura secundária sobre Winnicott deu
especial ênfase à questão da relação mãe-bebê, justificável pela importância que o
próprio autor dá ao tema em suas formulações teóricas e clínicas.
Entretanto isso acabou por obscurecer o fato – e, portanto, o estudo sobre ele –
de que, desde o início, o pai participa de modo decisivo do processo de amadurecimento
e de que, muitas vezes, a origem ou o agravamento de um determinado distúrbio devese a uma falha paterna. De fato, na clínica, nos deparamos com histórias de vida cuja
problemática apresentada, muitas vezes a central, toca em aspectos que dizem respeito à
relação com o pai e suas falhas. A qualidade de sua presença, ou sua ausência, os
distúrbios que o afetam e que transbordam para a relação com os filhos, a imaturidade
de sua personalidade, sua incapacidade de dar apoio à esposa ou sua necessidade de
ocupar o lugar desta, a impossibilidade de confrontar, de se envolver íntima e
pessoalmente com as questões que afligem a criança ou o adolescente, sua omissão
frente a determinados assuntos, sua violência ou total complacência, são exemplos de
como o pai pode falhar em seu papel e afetar a vida dos filhos. A questão do pai não é,
pois, um tema secundário, não é meramente teórico e temimplicações clínicas que não
podem deixar de ser analisadas.
Dito isso, passo, agora, à apresentação de alguns dos papéis que cabem ao pai
nos diferentes estágios do processo de amadurecimento saudável:
1. O pai no período de dependência absoluta
Durante esse período, bebê e mãe formam uma só unidade; embora
indiretamente, o pai participa desta relação e a qualidade da sua presença no ambiente é
de extrema importância, pois modula o espírito da mãe: o sentimento de estar protegida
e amparada depende em parte do que o pai é capaz de fornecer. É natural, portanto, a
constatação de que todo o efetivo cuidado paterno – com relação à qualidade do
75
ambiente em que a dupla mãe-bebê habita e com relação ao atendimento das
necessidades especiais da mãe – fazem parte do colo materno que o bebê recebe. Daí a
necessidade de se conjeturar que, nas formulações de Winnicott, está contida a ideia de
que a mãe e o pai, juntos, compõem o ambiente total que o bebê precisa encontrar para
amadurecer, ainda que o lugar do pai não seja o mesmo da mãe na relação direta com o
bebê. O pai nesse período ajuda a mãe a ser mãe. Se tiver uma presença efetiva e fizer a
sua parte, contribui, de maneira preciosa e particular, para que ela seja suficientemente
boa.
No período da dependência absoluta, pode-se dizer que, basicamente, o pai
assume dois principais papéis: o de mãe substituta, e o de dar sustentação à mãe. Ele,
além disso, propicia, junto com a esposa, os alicerces do sentido de família. Veremos,
no decorrer desta exposição, como, nesta teoria, a família tem um valor relevante e
decisivo para muitas das questões envolvidas na conquista da saúde. A família fornece a
continuidade no tempo desde a concepção da criança até o fim da dependência, que
caracteriza o término da adolescência (cf. 1988/1990, p. 57). Segundo Winnicott, cito:
cabe a cada indivíduo empreender a longa jornada que leva do estado de indistinção
com a mãe ao estado de ser um indivíduo separado, relacionada à mãe, e ao pai e à
mãe enquanto conjunto. Daí o caminho segue pelo território conhecido como
família, que tem no pai e na mãe suas principais características estruturais.
(Winnicott, 1961b[1957]/2001 p. 60).
1.2. O pai no período de dependência relativa
Ainda nos estágios iniciais, o bebê saudável, que pôde viver o tempo necessário
a experiência de onipotência, começa a adquirir uma crescente compreensão mental e
precisa que a mãe não mais o atenda prontamente – desiludindo-o por meio de uma
desadaptação gradual – para poder exercitar essa capacidade e realizar incipientes
experiências de autonomia e de diferenciação com relação à mãe.
Não é difícil avaliar que nem sempre é tranquilo à mãe proceder à desadaptação
gradual do bebê e dar início a todo o conjunto de cuidados relativos ao desmame. O pai
76
tem uma contribuição preciosa a fazer para que a mãe consiga operar essa separação.
Nos bons casos ele tem um interesse particular para que os dois componentes desta
dupla ganhem rapidamente autonomia: quer ver seu filho crescer e espera reaver sua
mulher para si.
No mesmo sentido de facilitar o caminho que levará o bebê à separação e
àautonomia, ele estando presente no ambiente, será, cito “o primeiro vislumbre que a
criança tem da integração e da totalidade pessoal” (Winnicott, 1989xa[1969]/1994,
p.188), antecipando o indivíduo unitário que vai chegar a si. O bebê utiliza o pai como
uma espécie de diagrama para a sua própria integração, num momento em que esta
integração ainda não foi conquistada por ele.Winnicott diz, cito:
O pai pode ou não ter sido um substituto materno, mas em alguma ocasião
ele começa a ser sentido como se achando lá em um papel diferente, e é aqui
que sugiro que o bebê tem probabilidade de fazer uso do pai como um
diagrama para a sua própria integração, quando apenas se torna, às vezes,
uma unidade. (1989xa[1969]/1994, p.188)
Essa citação exemplifica um dos pontos inovadores do pensamento de Winnicott
relativo ao tema do pai: ao invés de simplesmente interventor, o pai surge antes, não
como lei, mas como modelo de integração, antecipando o status unitário a que o
indivíduo irá chegar, se tudo correr bem.
1.3. O pai no estágio do concernimento
Será somente após ter alcançado com mais solidez o estabelecimento de um eu
unitário, e, portanto, a possibilidade de relacionar-se com pessoas inteiras, que a criança
estará apta a integrar, como pessoal, os seus impulsos instintuais, assumindo com isso, a
potência de seus impulsos amorosos primitivos; por serem esses impulsos
inerentemente destrutivos, ela terá também que assumir a responsabilidade relativa a
essa destrutividade: esta é a tarefa básica do estágio do concernimento que contará, em
determinado momento, com o reconhecimento do pai no mundo exterior.
77
Tendo um pai forte e protetor à frente, a criança não teme destruir a mãe e,
assim, pode experimentar, de forma segura e espontaneamente, sua destrutividade
pessoal. A mãe que, estando protegida pelo pai, sobrevive aos ataques dirigidos a ela no
auge da experiência excitada, tem condições de sustentar a situação no tempo até que a
criança encontre meios de reparar os estragos feitos e entre no círculo benigno,
adquirindo a capacidade para o sentimento de culpa e a responsabilidade - base da
moralidade pessoal. Winnicott afirma que quando há saúde, a criança, antes de adotar a
moralidade dos pais, da educação ou da religião, desenvolve uma moralidade pessoal,
conquistada neste estágio.
A integração da destrutividade que é própria da conquista da capacidade para o
concernimento é pré-condição para que a criança torne-se apta para viver, um pouco
mais tarde, as experiências agressivas relativas às fantasias e tensões inerentes ao
estágio das relações triangulares. É necessário que o pai, assim como a mãe, tenha
maturidade suficiente para permitir que a criança explore plenamente os sentimentos e
ansiedades que pertencem a esse período. Diz Winnicott:
A criança [...] descobre que é seguro ter sentimentos agressivos e ser
agressiva por causa da estrutura da família, que representa a sociedade de
forma localizada. A confiança da mãe em seu marido, ou no apoio que vai
conseguir, caso o solicite, da sociedade local [...] cria a possibilidade da
criança explorar rudemente atividades destrutivas que se relacionam ao
movimento em geral, e mais especificamente à destruição relacionada à
fantasia que se acumula em torno do ódio. Nesse caminho (por causa da
segurança ambiental, da mãe sendo apoiada pelo pai etc.) a criança torna-se
capaz de fazer uma coisa muito complexa, ou seja, integrar seus impulsos
destrutivos com os amorosos, e o resultado, quando tudo corre bem, é que a
criança reconhece a realidade das ideias destrutivas que são inerentes, na
vida, ao viver e ao amor, e encontra modos e maneiras de proteger, de si
mesma, pessoas e objetos valorizados. (1984c[1960]/1999, p.85)
1.4. O pai no estágio das relações triangulares
78
Antes de iniciar o exame das questões paternas propriamente ditas, referentes à
etapa das relações triangulares, assinalo o seguinte: se tomarmos as formulações do
autor a respeito desse período veremos que esse estágio, denominado edípico por Freud,
traz à tona, segundo Winnicott, toda uma gama de relações e sentimentos relativos às
experiências triangulares recém-descobertas, as quais, embora incluam as questões
especificamente genitais, que pertencem à linha instintual do amadurecimento,
extrapolam o âmbito sexual que essencialmente as define. Ao ocupar osdiferentes
vértices do triângulo familiar, a criança também experimenta relações cuja natureza
intrínseca se encontra na linha identitária do amadurecimento, não diretamente referida,
portanto, à sexualidade. A lealdade e a deslealdade, a confiabilidade nas relações
parentais, as diferentes formas de participar da rotina e dos afazeres domésticos que
incluem toda a família, são exemplos de outros aspectos contidos nas relações
familiares que, embora possam estar mesclados às excitações sexuais, estão longe de
poder ser reduzidos ou mesmo definidos por estas. Creio, portanto, a partir de
Winnicott, que seria mais preciso chamar esse estágio de estágio das relações
triangulares (ou das relações familiares). O autor afirma que
Quando chega ao estágio de desenvolvimento em que consegue perceber a
existência de três pessoas, ela própria e duas outras, a criança encontra, na
maioria das culturas, uma estrutura familiar à sua espera. No interior da
família, a criança pode avançar passo a passo, do relacionamento entre três
pessoas para outros mais e mais complexos. É o triângulo simples que
apresenta as dificuldades e também toda a riqueza da experiência humana.
(Winnicott, 1988/1990, p.57; itálicos meus)
Winnicott faz notar que, em meio a toda complexidade que caracteriza o estágio
das relações triangulares, a psicanálise freudiana deu primazia às questões edípicas.
Cito:
De todas as possibilidades Freud elegeu como objeto de seu estudo o
complexo de Édipo, e por esses termos passamos a indicar o nosso
reconhecimento da totalidade do problema, derivado da aquisição, pela
79
criança, da capacidade de relacionar-se enquanto ser humano com dois
outros seres-humanos, a mãe e o pai a um só tempo. (1958m[1956]/2000,
p.420, os itálicos são meus)
Nota-se assim que, na visão winnicottiana, o complexo de Édipo representa
apenas uma fatia, um dos aspectos da “totalidade” das questões familiares que passam a
estar envolvidas nesse estágio.
Aqui o contexto familiar, já importante anteriormente, ganha nova relevância:
passa a ser o principal ambiente sustentador, no qual o jogo das relações interpessoais se
apoia, se desenrola e ganha realidade. Para Winnicott, a situação edipiana acontece
dentro de uma família, e não o contrário: não é dinâmica desejante da triangulação
edípica que condiciona e estrutura as relações familiares.
O pai é significativo pelo fato de, como integrante da família, marido da mãe e
homem, realizar ações a partir desse lugar e, não somente por representar para a criança
um terceiro que exerce a função de interditor sexual ou objeto de desejo. Além disso, o
pai não é somente o principal representante pela introdução dos códigos éticos e morais,
aquele que deve ser temido, e respeitado, como se esses atributos fossem dados de
antemão, pelo fato de ele ocupar esse lugar. A pessoa do pai precisa antes, e como
condição para que isso se dê e se estabeleça, ser o homem real que exerce ações
concretas de proteção, moldura e sustentação das relações familiares e também ter,
efetivamente, presença nas brincadeiras e jogos das crianças, conhecendo suas coisas, a
preferência de um filho, o jeitinho do outro. Winnicott afirma que:
especialmente quando o pai bate o pé com firmeza é quando ele se torna
significativo para a criança pequena, desde que ele tenha conquistado antes o
direito de assumir uma atitude firme ao ter uma presença assídua e amistosa
em casa. (1993i[1960]/1999, p. 100)
Quando, ao mesmo tempo em que exerce o papel de interventor, o pai continua a
proteger e a manter a vida cotidiana, ele também ajuda a criança a discriminar entre fato
80
e fantasia. A capacidade para essa discriminação, no dia a dia, é de grande auxílio na
resolução do Complexo de Édipo.
Nestaetapa, as fantasias sexuais da criança ganham grande força (cf. 1988, p.
59) e as experiências edípicas podem ser vividas e elaboradas se, entre outras coisas,
essas fantasias não forem soberanas aos fatos. Embora, ao longo da vida, sejamos
sempre confrontados pela eterna tarefa de separar a fantasia da realidade, neste começo
da vida são os pais que devem auxiliar seus filhos nessa discriminação.59 Mas, para
tanto, eles mesmos devem ter fortemente estabelecida essa distinção de modo a ajudar
os filhos a alcançar essa capacidade, sem, com isso, perderem o exercício salutar da
imaginação criativa.Winnicott afirma que mesmo os pais que tendem a ser satisfatórios,
podem facilmente falhar na criação de seus filhos por não serem capazes de
distinguir claramente entre os sonhos da criança e os fatos. Pode ocorrer de
eles apresentarem uma ideia como se fosse um fato, ou reagir
impulsivamente a uma ideia como se esta fosse um ato. Na verdade, é
possível que eles temam mais as ideias do que os atos. A maturidade
implica, entre outras coisas, na capacidade de tolerar ideias e quem é pai e
mãe precisa desta capacidade, que na melhor das hipóteses faz parte da
maturidade social [...]. A criança só aos poucos adquire a capacidade de
distinguir entre fantasia e realidade. (1988/1990, p.78)
Vejamos como isso ocorre na situação edípica padrão do menino. O filho deseja
ocupar o lugar do pai junto à mãe. O pai, homem real, ao mesmo tempo em que aceita a
rivalidade, não desautorizando nem desmerecendo a fantasia, faz a sua parte e realiza o
59
Num texto (1965f) em que relata o caso de um menino, Patrick, de 11 anos, há um trecho de uma carta
que Winnicott redige à escola do menino recomendando seu retorno à vida escolar, tendo em vista que o
menino tivera já uma boa recuperação de sua doença, durante o recesso promovido pelo próprio
Winnicott. O que interessa, aqui, é a citação que se segue, pois nela fica claro o valor que o autor atribui
aos fatos reais. Ele escreve: “Pode ser útil que aqueles que estão trabalhando com ele [Patrick] saibam
que não são as grandes coisas que preocupam Patrick; ele não fica realmente perturbado se alguém ficar
muito zangado com ele, porque isto é real e acha-se relacionado à situação real objetivamente
percebida. O que facilmente perturba Patrick é apenas uma pequena reprovação ou louvor e o efeito deste
pode ser inteiramente fora de proporção com algo de real [...] Se tiverem de ficar manifestamente
zangados com Patrick, isto não é o tipo de coisa que, acredito, cause problemas” (1965f p.279, os itálicos
são meus)
81
ato objetivo de intervir na consecução dos desejos da criança, impedindo, por exemplo,
que esta, sistematicamente, durma com a mãe na cama do casal. Mas, ao mesmo tempo
em que intervém, podendo até zangar-se, ele continua cuidando da criança, como
sempre o fez, a partir da real maturidade dela. Depois da intervenção, aceita o eventual
convite para andar de bicicleta ou, antes de este ir dormir, lê para ele o livro de histórias,
retomando com o filho a vida comum.
É também importante observar que as questões relativas ao complexo edípico,
de modo geral, já se encontravam presentes no estágio do concernimento, acrescidas
agora do elemento sexual com a primazia da genitalidade e pagam um tributo, em
termos de sua resolução, aos bons resultados encontrados nessa última fase
(concernimento).Esclarecendo: se frente à descoberta da destrutividadepessoal a criança
pôde tolerar a culpa relativa à mesma, encontrando modos de reparar os danos causados
por seus atos e ideias no auge da experiência excitada, ela tem as pré-condições para
aguentar – e com isso grande probabilidade de resolver de maneira saudável – as
tensões geradas pela ambivalência de seus sentimentos no estágio das relações
triangulares com base genital.
Winnicott aponta para o alívio que meninos e meninas experimentam com a
entrada nesta fase quando contam com um pai e uma mãe que são presentes em suas
vidas e, mais ainda, quando estão reunidos numa relação de casal, cito:
Nessa situação triangular, o menino pode conservar o amor pela mãe tendo à
frente a figura do pai, e do mesmo modo a menina, com a mãe à frente, pode
conservar seu desejo pelo pai. Na ausência de uma terceira figura, a criança
só tem duas alternativas: ser engolida ou se afastar violentamente.
(1965p[1960]/2001, p.135)
Segundo Winnicott, quando os pais sabem “gozar da potência que deriva da
maturidade emocional individual” (1961b[1957]/2001, p.62), todos os envolvidos – os
filhos em especial – têm muito a lucrar. De seu ponto de vista, a relação sexual dos pais
é“uma rocha a que ela [a criança] se pode agarrar e contra a qual pode deferir seus
82
golpes” (1945i[1944]/1982, p.129), não somente porque essa união assegura a
intimidade, o interesse excitante e o desejo entre o casal, mas também porque envolve o
empenho de ambos em manter a vida familiar – sendo a família um arcabouço que
“fornece parte dos alicerces naturais para uma solução natural do problema das relações
triangulares” (Winnicott, 1945i[1944]/1982, p.129).
O amor do menino pelo pai e, ao mesmo tempo, o fato de encontrá-lo no
caminho entre ele e a mãe, o ajudam a sair do emaranhado de fantasias que o assolam.
Ao ocupar esse lugar, o pai, que já vinha desenvolvendo com a criança uma relação de
confiança e proximidade, torna-se para o filho uma figura forte e protetora, digna de
admiração e de identificação. O menino se identifica com o pai, aceita os limites por
este colocados, e assim é aliviado das tensões e insatisfações que a manutenção das
fantasias eróticas com relação à mãe causaria.
A criança que sonha ter a mãe não tem, simplesmente, como realizar o sonho e é
desse modo que, ao intervir, o pai protege o filho de ter que lidar com sua real
imaturidade para essas questões. A intervenção paterna torna-se, assim, uma boa saída
para preservar a potência relativa que está começando a ser testada pela criança. É nesse
sentido que a castração fantasiada pela criança tem, segundo esse autor, o valor de
cuidado e proteção, ele diz: “o medo à castração pelo genitor rival torna-se uma
alternativa bem vinda para a angústia da impotência” (Winnicott, 1988/1990, p.62).
Sem essa oposição, restaria à criança permanecer no terreno da fantasia ou ver-se
mergulhada na impotência. O pai é, neste sentido, um facilitador para que o filho
continue amando a mãe de forma segura e fique também liberado para o sonho com
outras mulheres.
Pela via da identificação, o menino encontra uma nova forma de relação com o
pai: ao invés de se opor diretamente a ele e de reivindicar uma potência semelhante, ele
abdica de parte dessa potência e estabelece com o pai, nas palavras de Winnicott, um
“pacto homossexual”, de maneira que, na sua fantasia, a potência paterna passa a ser
também sua – porém adiada para a adolescência.
83
Espera-se que o pai seja suficientemente maduro para aguentar, além de todo o
ódio dirigido contra ele, toda a gama de sentimentos e comportamentos afetivos que o
filho venha a apresentar na sua relação com ele, e isso, acrescenta o autor, “liberta outro
problema, que é a amizade entre o menino e o pai, ou entre meninos” (Winnicott,
1971t/1984, p.100).
Winnicott ainda faz a importante consideração de que o surgimento da moral no
indivíduo não está, como em Freud, localizado no âmbito edípico e nem aparece em
consequência da ameaça do pai. Não é pela imposição da lei ou pelo medo da castração
que a consciência moral se institui. Para ele, a moralidade já teve uma história pregressa
na relação mãe-bebê e, portanto, não se origina e nem deriva da interdição do pai: é essa
pré-história, no fundo, que condiciona e possibilita a legitimação da ordem e dos
códigos morais que o pai coloca nesse momento. Ou seja, quando a lei paterna vem
desempenhar seu papel nas questões edípicas, ela já corresponde a um segundo
momento, por assim dizer, de cunho mais instrumentalizador e normativo das regras
sociais, do que propriamente a instauração da noção pessoal e do sentimento de
responsabilidade, culpa e reparação com relação aos danos causados pela própria
existência.
A importância de todas essas questões é evidente e, sem dúvida, o amplo exame
do papel do pai no processo de amadurecimento da criança permite, também,a análise
de suas falhas em cada uma das etapas que compõem esse processo e suas
consequências na vida dos indivíduos, estudo este que realizei na tese de doutorado
intitulada“As falhas paternas em Winnicott”60.
Dentre as reflexões que ainda estão em aberto, seria necessário examinar, por
exemplo, o papel do pai no período da latência e na conturbada etapa da adolescência,
quando não apenas recrudescem as angústias primitivas, como também o jovem é
apanhado na assustadora evidência de uma potência nova e real capaz de realizar aquilo
60
Cf. Rosa, Claudia Dias, 2011
84
que antes habitava, sobretudo, o terreno da fantasia. Nesse momento, cabe ao pai
suportar e sobreviver aos confrontos que surgirão, se há saúde, no relacionamento com
o filho. O que está em jogo aqui, não é a disputa pela mãe, mas a necessidade do jovem
de encontrar um lugar próprio e seu, em si-mesmo e na vida social, e para isso, precisa
rebelar-se e afastar-se do ponto de origem, sem, entretanto, perder a confiança nos pais,
o lugar de retorno, a família.
Não menos importante, é a compreensão do valor da presença paterna quando o
filho torna-se um jovem adulto e começa a almejar a paternidade e, ainda mais tarde,
quando o pai torna-se avô e novas exigências e desafios – que, mesmo sem
consentimento, podem atualizar dificuldades não ultrapassadas – se impõem a ambos.
Se não raras vezes as dificuldades se reapresentam nessas ocasiões, a oportunidade
desses novos lugares também propicia uma nova chance para o resgate e a vivência de
aspectos da masculinidade, da paternidade e da filiação que não puderam ser
experimentados numa época anterior. Nessaocasião, diz Winnicott,o avô, no melhor dos
casos, é chamado a dar sua contribuição às crianças a partir desse novo lugar.
Diversas questões afins, na esteira da abertura deixada pela teoria winnicottiana,
poderiam igualmente ser tratadas, tais como o papel paterno na educação, na cultura eno
vasto território da vida social, bem como a compreensão desse papel nos agrupamentos
e situações familiares de nossos tempos: pais separados com novos lares, uniões
homossexuais, pais muito ausentes, maridos que assumem o papel da mulher na vida
doméstica e no cuidado com os filhos, vidas em comunidade etc., à procura de subsídios
para o esclarecimento do que, no que diz respeito ao pai, deve estar presente nos
diversos lares como condição preventiva para a manutenção da saúde da criança e da
própria família.
A análise e a explicitação do valor da presença do pai ao longo do processo de
amadurecimento não só mostra que Winnicott se ocupou deste tema em sua obra, mas
também que trouxe novas e importantes contribuições para o aprofundamento do
mesmo, tanto em termos teóricos como clínicos.
85
Referências
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de Psicologia. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2011.
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em casa. 3. ed.. São Paulo: Martins Fontes.p. 69-91 (Trabalho original publicado em
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ed. São Paulo: Martins Fontes, p.77-100 (Trabalho original publicado em 1993i[1960])
86
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(Trabalho original publicado em 1958a)
_______. (2000). Pediatria e neurose da infância. In: _______. (2000/1958a) Da
pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago.p. 417- 423. (Trabalho
original publicado em 1958m[1956]/2000)
_______. (2001). A família e o desenvolvimento individual. 2. ed.São Paulo: Martins
Fontes. (Trabalho original publicado em 1965a)
_______. (2001). Fatores de integração e desintegração da vida familiar. In:_______.
(2001/1965a) A família e o desenvolvimento individual. 2. ed.São Paulo: Martins
Fontes. p.59-72. (Trabalho original publicado em 1961b[1957])
_______.(2001). Família e maturidade emocional. In:_______.(2001/1965a), A família
e o desenvolvimento individual. 2. ed.São Paulo: Martins Fontes. p. 129-138.
(Trabalho original publicado em 1965p[1960])
87
Comentário ao texto “Provisão ambiental paterna”
Conceição Aparecida Serralha
Ao ouvir a exposição de Claudia sobre o papel do pai nos diferentes períodos de
dependência da criança de seu ambiente, durante o desenvolvimento desta, eu gostaria
de trazer uma contribuição ao que ela expôs sobre a qualidade da presença ou da
ausência do pai para o amadurecimento emocional e pessoal da criança, com a síntese
de um caso clínico. Mais especificamente, ao que Claudia evidencia sobre situações em
que distúrbios que afetam os pais acabam transbordando para a relação com os filhos,
em que se evidencia imaturidade na personalidade do pai, com uma incapacidade de dar
apoio à esposa, uma impossibilidade de confrontar, de se envolver íntima e
pessoalmente com as questões que afligem os filhos.
Entendo que, quando Claudia descreve o papel dos pais, ela apresenta o papel
suficientemente bom destes, referido por Winnicott (1988/1990) em pessoas que
tiveram a oportunidade de amadurecer e, assim, conseguir assumir todas as
responsabilidades inerentes aos seus papéis, quer fosse o papel materno, quer fosse o
paterno. Contudo, infelizmente, não é essa a realidade das pessoas que, muitas vezes,
buscam atendimento de problemas físicos ou psicológicos, para si ou para seus filhos.
Esse fato, por sua vez, nos possibilita acompanhar Winnicott em sua teorização sobre as
dificuldades no exercício dos papéis parentais, quando as pessoas responsáveis por
exercê-los tiveram o seu próprio processo de amadurecimento comprometido.
No cotidiano da clínica, são verificadas várias consequências, nos filhos, de
falhas no amadurecimento pessoal dos pais para o desempenho de seus papéis. Podem
ser encontrados pais e mães que não conseguem sair da condição de serem cuidados
para a condição de cuidadores, o que traz sofrimento para a criança e para eles.
Encontram-se, também, mães que não se permitem compartilhar a criação do seu bebê
com o pai, sendo importante questionar, nestes casos, não só a condição imatura da
mãe, mas a condição de amadurecimento desse pai a quem a mãe não permite um
compartilhamento, ou seja, se ele se mostrou confiável durante o relacionamento de
88
ambos. E mais um exemplo pode ser encontrado em pais e mães que, por se
identificarem com os filhos em sua reação a falhas no atendimento de suas
necessidades, não sabem manejar a situação e partem para a agressão ou, por dó,
superprotegem ou abandonam seus papéis, delegando à sorte o futuro de seus filhos.
Segundo Winnicott (1986a/1991):
(...) quando você tem pais que pode incorporar, muito vai depender de
como são esses pais, se eles são, de certa forma, rígidos ou adaptáveis.
Se você só pode contar com pais rígidos, sua posição é quase a de um
órfão, que perdeu algum aspecto humano nos cuidados iniciais (p.
143).
Também em outro texto Winnicott (1993a/1993) assinalou: “(...) certamente os
pais que são superprotetores causam situações angustiantes em seus filhos, assim como
os pais que não podem ser confiáveis tornam seus filhos confusos e assustados” (p.
101).
Trago um caso, cuja identificação do pai com o filho, em sua condição de filho
reativo a falhas nos cuidados necessitados, ficou evidente. Ou seja, o pai se identificava
com o filho – com as características deste de poucos recursos amadurecidos para lidar
com determinadas situações –, quando este reagia agressivamente. Sobre essas ocasiões,
o pai não só relatava se lembrar de cenas de sua própria infância, como tentava dar-lhes
um sentido, muitas vezes sem sucesso, em razão da ansiedade relacionada ao ocorrido
na ocasião, que também se atualizava nesses momentos.
Winnicott (1986b/1996; 1989a/1994), inúmeras vezes, apontou a capacidade de
identificação entre pessoas humanas e a importância desta para o papel facilitador do
ambiente no tocante ao amadurecimento humano; em outras palavras, a importância da
capacidade de se colocar na pele do outro, de sentir-se na situação do outro e se dar
conta das necessidades deste para, enfim, atendê-las. Entretanto, esse processo pode se
complicar se essa identificação ocorre em relação a situações não suficientemente
elaboradas, ou mesmo, de fato, não experienciadas, na infância dos próprios pais. De
89
acordo com Winnicott (1989a/1994), algumas pessoas podem ter vivido eventos
traumáticos relativos a um cuidado não suficientemente bom, em cujo momento de
ocorrência não havia ali um eu capaz de experienciar e temporalizar esse evento. Ao se
identificarem deste modo, os pais perdem qualquer capacidade de atendimento das
necessidades da criança e o que se instala pode se aproximar de uma situação de caos.
Pedro – uma criança de seis anos – era descrito pelos pais como muito “nervoso
sem a medicação”, e quando diziam “não” para ele. Embora a mãe achasse que ele
ficava melhor com a medicação, o pai não concordava com isso. Também a mãe achava
que Pedro respeitava mais o pai. Este, por sua vez, dizia que Pedro havia perdido o
respeito por ele; assim, habituara-se a colocá-lo de castigo ou bater. A mãe, quando
nervosa, batia nele e até o mordia, “pegava-o pelo pescoço”. Pedro a xingava, ficava
emburrado e falava que ia fugir. A mãe o ameaçava e o amedrontava dizendo que “o
louco” viria pegá-lo.
Os pais disseram que Pedro, por outro lado, era muito carinhoso. Às vezes,
segundo a mãe, ele tentava beijá-la, mas ela não tinha paciência com isso por estar
cansada e ter que dar conta do serviço da casa após um dia inteiro de trabalho em uma
empresa. De acordo com a mãe, ela própria, quando criança, não podia “agarrar” sua
mãe sempre que queria e não estava acostumada com esse tipo de carinho. O pai
também contou que, quando criança, se fosse beijar sua mãe, levava um “tapa”.
Os pais dataram o início do comportamento agressivo do filho a partir dos três
anos de idade, entendendo esse início em razão das várias brigas conjugais causadas
pelo ciúme paterno e que foram presenciadas por Pedro. Em uma das ocasiões, Pedro se
escondeu embaixo do tanque, tamanho o medo que sentiu. Apavorava-se com a
possibilidade da separação dos pais. O pavor de Pedro, relatado, parecia se aproximar
muito de uma “agonia impensável” devido à desorganização que tomava conta dele,
muitas vezes envolvendo agressões e destruição do ambiente. Esse tipo de sofrimento se
aproximava, para Winnicott (1986b/1996), de “um estado de confusão, de desintegração
da personalidade, um cair para sempre, uma perda de contato com o corpo, uma
90
desorientação completa, e outros estados dessa natureza” (Winnicott, 1986b/1996, p.
77).
O pai relatou que, aos domingos, o filho era mais calmo. Acreditava que Pedro
devia sentir falta dele e, no domingo, procurava ficar mais com o filho. Disse: “Me
preocupo muito com o nervosismo dele. Eu era assim quando menino, dava trabalho.
Minha família fala que é de família. Às vezes, sofro”. Disse ainda: “Eu tinha ausência
do meu pai. Eu trabalho, mas quando dá, brinco com ele. Meu pai era totalmente
diferente. Ele nunca sentou comigo pra conversar. Com minha irmã já... isso me
deixava muito nervoso. Até uns dez anos atrás, tinha revolta contra ele. Ele me
espancava muito, de tirar sangue. Mas não adiantava. Sempre senti falta. Tenho meu
pai, mas nunca foi presente”.
Embora o pai de Pedro sentisse necessidade de ser diferente do próprio pai,
sendo mais presente na vida do filho, não conseguia. A mãe disse que ele saía com o
filho aos domingos, mas não dava atenção a ele. Levava-o para junto de seus amigos
pessoais e, enquanto mantinha-se entretido, Pedro ficava sem atenção. Nos outros dias
da semana, após o trabalho, o pai não conseguia ficar em casa, saía para o bar e deixava
a mãe sozinha com os afazeres domésticos e com o cuidado dos filhos.
Ao longo dos relatos da mãe, pôde ser percebido que ela esteve sempre muito só
na lida com os filhos. O pai pareceu ter tido muitas dificuldades de exercer seu papel à
época do nascimento dos filhos, que, de acordo com Winnicott (1958a/2000), como
relatou Claudia, é de extrema responsabilidade no que tange ao apoio que a mãe
necessita para conseguir desempenhar o seu próprio papel de forma satisfatória para o
bebê. Essas dificuldades podem ter contribuído para a depressão pós-parto que a mãe
viveu após o nascimento da irmã mais velha de Pedro.
De acordo com Winnicott (1958a/2000), no período inicial de maternagem, a
mãe se torna, em vários momentos, imatura, dependente, desamparada e, somente
assim, pode se colocar na pele de seu bebê. Entretanto, a orientação especial por parte
da mãe para com seu bebê,
91
(...) não depende apenas de sua própria saúde mental, mas é afetada
também pelo ambiente. No caso mais simples o homem, apoiado pela
atitude social que é, em si, um desenvolvimento da função natural do
mesmo, lida com a realidade externa para a mulher, de modo a tornar
seguro e razoável para ela se tornar temporariamente introvertida e
egocêntrica (Winnicott,1965b/1990, p. 135).
No caso dos pais de Pedro, esse apoio parece não ter ocorrido suficientemente
bem. Além disso, a mãe contou que, após o nascimento da filha, tomou
anticoncepcionais durante três anos e interrompeu esse uso porque o marido parou de
comprar o remédio, deixando subentender que ela não queria ter engravidado
novamente, o que acabou ocorrendo.
Winnicott (1993a/1993) também escreveu:
(...) no meu trabalho, aprendi muito sobre as dificuldades que as mães
enfrentam quando não desfrutam uma posição favorável. Talvez
tenham grandes dificuldades pessoais, de modo que não podem ter um
bom desempenho, mesmo quando são capazes de ver o caminho; ou
têm maridos que estão longe, ou que não fornecem um apoio
adequado, ou que interferem, que são até ciumentos; algumas não têm
marido, mas têm ainda que criar o bebê (p. 36).
Além de todos esses pontos analisados sobre o ambiente familiar de Pedro,
torna-se importante retomar um ponto do relato do pai: “Eu tinha ausência do meu pai.
Eu trabalho, mas quando dá, brinco com ele. Meu pai era totalmente diferente. Ele
nunca sentou comigo pra conversar. Com minha irmã já... isso me deixava muito
nervoso.” Pôde ser notado que a história da relação amorosa entre o avô de Pedro e a
irmã de seu pai, que tanta revolta produziu no pai, se repetia na história deste com a
irmã de Pedro. Segundo os próprios pais, a relação dos dois (pai de Pedro e a irmã
deste) era “maravilhosa”. A identificação com o filho – que fazia o pai reviver o intenso
sofrimento vivido quando menino – e, ao mesmo tempo, a ausência de recursos
92
amadurecidos para lidar com essa identificação, fazia com que ele se afastasse do filho
e, muitas vezes, gerava um comportamento agressivo no contato com a criança.
As falhas nos papéis materno e paterno ficaram evidentes. Uma origem
específica das dificuldades apontadas não seria acessível, uma vez que se entende que
falhas em um papel acabam gerando falhas no outro, mostrando a interdependência
destes para os seus desempenhos.
Nesta análise, em relação ao papel paterno, especificamente, destacaram-se
falhas no tocante à criação de um ambiente estável e indestrutível para a criança poder
se desenvolver. Esse ambiente, com essas características, está relacionado ao apoio à
mãe e à sustentação da lei e da ordem, que, segundo Winnicott (1988/1990), é
implantada pela mãe, inicialmente, na vida da criança, como nos mostrou Claudia. O
comportamento agressivo e sintomático dessa criança surgido por volta dos dois a três
anos de idade, parece ter se originado de falhas na provisão ambiental, que já tinha por
base algum grau de falhas anteriores. Nesse caso, como mostrou Claudia, em sua tese,
(...) a criança não atinge o sentimento de culpa, ou, se já o alcançou,
pode perdê-lo. A destrutividade em tais situações não é nem inibida,
nem integrada, ela é atuada compulsivamente no ambiente por meio
de atos antissociais. Isso porque a criança deprivada, quer se trate de
uma deprivação materna, paterna ou ambas, sente que o ambiente tem
um débito para com ela. O sentimento é de ter sido roubada daquilo do
qual tinha direito (a mãe, o ambiente estável mantido pela presença do
pai, etc.). Esse débito impede, por assim dizer, que ela entre no círculo
benigno. Ou seja, impede que a solução buscada para a destrutividade
que é inerente ao viver seja elaborada por via da reparação, pois, nesse
caso, o devedor é o ambiente e não ela: portanto, a criança não se
sente impelida a curar, remendar, consertar os estragos feitos; a
capacidade para o sentimento de culpa fica muito prejudicada ou,
dependendo do grau, não é alcançada. Ao contrário, ela espera (ainda
que não tenha consciência disso) que sejam os pais que assumam e
tomem para si esses cuidados (Rosa, 2011, pp. 91-92).
93
No caso de Pedro, houve evidências de que dificuldades de ambos os pais em
seus próprios processos de amadurecimento prejudicaram o exercício de seus papéis
parentais. Como tudo ocorreu não seria possível compreender integralmente dentro dos
moldes do trabalho realizado, mas o processo de identificação dos pais com as reações
de seus próprios filhos ficou claro.
No caso relatado, o processo de atendimento das necessidades do filho a partir
da identificação do pai com este não se completou, uma vez que faltou a esse pai, na
linha de seu amadurecimento pessoal, um modelo de integração, que lhe protegesse de
angústias ou lhe fornecesse uma sustentação para, na vivência de uma angústia,
conseguir elaborá-la. Assim, a identificação com o filho, em relação às suas
características imaturas – que provocavam reações às angústias geradas pela falta de
atendimento às suas necessidades, principalmente, de um ambiente estável, fazendo-o
reviver as próprias angústias –, não lhe possibilitou condições para o atendimento
dessas necessidades. Desse modo, a própria existência da criança fica ameaçada em
razão da perda do ambiente estável, pois a mínima organização de eu pode se perder ou
ficar por trás de vários tipos de sintomas e ganhos secundários.
Por fim, eu gostaria de perguntar à Claudia, a partir do caso apresentado, como
ela acredita que devam ser os cuidados oferecidos por profissionais da saúde e
terapeutas para o atendimento de crianças pequenas com queixas de comportamentos
agressivos, em que pese a dificuldade do pai de assumir as responsabilidades inerentes
ao seu papel? Seria possível um atendimento à criança sem dirigir cuidados também aos
pais?
REFERÊNCIAS
ROSA, Claudia Dias. As falhas paternas em Winnicott. Tese (Doutorado) - Faculdade
de Psicologia. Pontifícia Universidade Católica. São Paulo, 2011.
94
ROUDINESCO, E.; PLON, M. (1998). Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor. (Trabalho original publicado em 1997).
WINNICOTT, D. W. (1994). Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artmed.
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_______. (1990). O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes
Médicas. (Trabalho original publicado em 1979 – 1965b).
_______. (1990).Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original
publicado em 1988).
_______. (1982).A criança e o seu mundo. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.
(Trabalho original publicado em 1964a).
95
Comentário ao texto “Provisão ambiental paterna”
Por um cuidado afetivo do pai
Marlene Brito de Jesus Pereira61
Na apresentação da Dra. Claudia Rosa foram destacados o lugar do pai no
decorrer da vida do indivíduo e sua importância no processo de amadurecimento
pessoal.Consideremos que todos os períodos em que o pai está presente para apoiar a
mãe, nos cuidados com o bebê, antes mesmo do nascimento, até o período dastrocas em
pais e filhos, são igualmente importantes.
Inicialmente quero destacar o pai no período de dependência absoluta e o pai no
período de dependência relativa. E de uma maneira abreviada os dois últimos períodos.
Começo por ressaltar que a importância do pai sempre esteve presente na cena
familiar, com a imagem associada à autoridade e o governo da família. Desde o antigo
regime em que aautoridade do patriarca era suprema, até os dias atuais emque o pai é
convocado a ocupar um lugar domesticado. Esse novo contrato social idealizado na era
moderna por Hobbes (1974) e Locke (1998) fez nascer a noção de pai com poderes não
maisincontestáveis e absolutos.
Goran Therborn (2006) em Sexo e Poder: a família no mundo (1900-2000),
mostra o declínio dos poderes do pai e ressalta quea industrialização, após a separação
em grande escala entre o lugar de trabalho e da casa, enfraqueceu o controle paterno que
se reproduziu no controle da economia do salário e das normas familiares.Nos tempos
atuais, essa realidade parece fluída como se algo estivesse se desarrumado ou fora do
lugar.
61
Psicóloga. Mestre em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador,
com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia - FAPESB (2010). Doutoranda do
PPG em Família na Sociedade Contemporânea da Universidade Católica do Salvador –UCSal e
l’EcoledesHautesÉtudesenSciencesSociales – EHESS em Paris/França, com o apoio do Centro de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior - CAPES
96
François de Singly (2007) em Sociologia da FamíliaContemporânea nos alerta
sobreas mudançasorquestradas nacontemporaneidade. “Na segunda metade do século
XX, em um período caracterizado pelos especialistas como segunda modernidade,
houve mudanças significativas na sociedade ocidental, como a criação de leis que
possibilitaram a equidade de poder nas relações entre homens e mulheres” (SINGLY,
2007, p.48). Nomodelo novo o homem, e o pai, não é mais o exclusivo provedor nem
protetor familiar.Mas esse novo modelo não tem sido vivido sem conflitos.Arrumar a
casa dos sentimentos nãotem sido o domínio do pai.
Através de experiências relatadas por homens e mulheres acerca das suas
relações interpessoais e familiares, no cotidiano das práticas de trabalho clínico em
psicologia, pude conhecer relatos de vida queevidenciaram disputas de poder,
autoritarismo, submissão e violência. Em destaque, relatos em que mulheres sofreram
de violência familiar perpassando gerações. As mulheres relataram sofrer violência
psicológica e física dos seus maridos, namorados ou parceiros. Por outro lado, homens
relataram o constrangimento, vergonha e intolerância de não poder prover a família, de
perder a autoridade e não ser mais respeitado como o “chefe da casa”. Com a escuta
sensível pertinente ao exercício da psicologia clínica parecia possível estabelecer uma
estreita relação entre os relatos de vida que demonstravam sofrimento, com conflitos de
gênero com asexperiências de homens e mulheres, enquanto mães e pais.
A idealização da figura da mãe ainda é parte fundamental da moderna
construção da maternidade. Parafraseando a filósofa ÉlisabethBadinter (1980) a
maternidade é, ainda hoje, um tema sagrado. “Continua difícil questionar o amor
materno, e a mãe permanece, em nosso inconsciente, como símbolo do indefectível do
amor oblativo do amor emdoção” (p.34). Condição que por vezes não se dá sem um
sentimento de culpa ou de um conflito em ser mãe e mulher (BADINTER, 2010).
Por apresentar uma história de luta nocuidado dacasa e dos filhos e aomesmo
tempo viver situações dedesamparo e violência, passei a meinteressar pelo pai e a
aprofundar o interesse sobre amãee amulher pela perspectiva de gênero.É como
sustentar o olhar nafigura que maisparece precisar de amparo. A partir daí as questões
97
me levaram a questionar a teoria freudiana através docomplexo deédipo62 ea destacar o
quão preciosa é a sensibilidade freudiana emperceber aambivalência da criança na
relação mãe e pai, mas também umaausência de um olhar mais cuidadoso sobreo
ambiente e as relações de poder que afetam as relações familiares.
Em suas proposições fundamentais, Freud (1905; 1913; 1924; 1930), aborda a
família sob diversos aspectos e modos discursivos: nos estudos sobre a histeria, sobre as
formas constitucionais de organização social; em documentos técnicos sobre a
psicanálise; nos estudos da metapsicologia, história, sociedade e cultura. “A família é o
elo das experiências com que a psicanálise está em causa. Freud procura decompor o
indivíduo no seu essencial (porém inconsciente) às relações familiares” (POSTER,
1979, p.120).
Ao descrever o Caso Elizabeth, Freud ressalta que os sintomas histéricos
apresentados pela paciente têm como gênese a forma como a mesma lida com os valores
da família e com as manifestações dos seus desejos: há culpa por desejar e, portanto,
julga-se impura. O conflito de Elizabeth está entre o fato de ter desejos, e o sentimento
de castração de não poder sentir tal desejo, de proibir-se, ou seja, um conflito entre as
instâncias psíquicas, da vontade e da moral. Cito Freud:
A saúde da mãe era frequentemente perturbada por uma afecção dos
olhos, bem como por estados nervosos. Foi assim que ela se viu
62
O complexo de Édipo é um conjunto organizado de desejos amorosos hostis que a criança sente em
relação aos pais. Sob a sua forma dita positiva, o complexo apresenta-se como na história de Édipo-Rei:
desejo de morte do rival que é a personagem do mesmo sexo e desejo sexual pela personagem do sexo
oposto. Sob sua forma negativa, apresenta-se de modo inverso: amor pelo progenitor do mesmo sexo e
ódio ciumento ao progenitor do sexo oposto. Na realidade, essas duas formas encontra-se em graus
diversos na chamada forma completa do complexo de Édipo” (LAPLANCHE & PONTALIS, 2001,
p.77).
De acordo com Freud (1924), o apogeu do complexo de Édipo é vivido entre os três e os cinco anos,
durante a fase fálica; o seu declínio marca a entrada no período de latência. É revivido na puberdade e é
superado com maior ou menor êxito num tipo especial de escolha do objeto.
Para a teoria psicanalítica o complexo de Édipo desempenha papel fundamental na estrutura da
personalidade e na orientação do desejo humano. Para os especialistas ele é o principal eixo de referência
da psicopatologia; para cada tipo patológico eles procuram determinar as formas particulares da sua
posição e da sua solução.
98
atraída por um contato muito íntimo com o pai, um homem alegre e
experiente conhecedor da vida que costumava dizer que a filha
ocupava o lugar de um filho e de um amigo com quem ele podia trocar
ideias. Embora a mente da moça encontrasse estímulo intelectual
nessa relação com o pai, ele não deixava de observar que a
constituição mental dela estava, por causa disso, afastando-se do ideal
que as pessoas gostam de ver concretizado numa moça [...] Ela se
sentia, de fato, muito desconcertante por ser mulher (FREUD, 1893, p.
165).
As descrições sobre o comportamento de Elizabeth indicam as mudanças
ocorridas na modernidade em que o ideal de indivíduo pareceu ser alcançável por uma
moça. A aproximação com o pai fez com que a moça realizasse modos de pensar que
não eram pertinentes ao sexo feminino. Elizabeth sente-se culpada por desejar, sente-se
estranha por ser uma mulher com domínio intelectual. Os sintomas histéricos revelamse frente aos conflitos engendrados pela realização de uma fantasia inconsciente que
está a serviço da realização de um desejo: “Ela recalcou uma ideia erótica fora da
consciência e transformou a carga de seu afeto em sensações físicas de dor [...] Foi o
círculo de representações de natureza erótica que entrou em conflito com todas as suas
representações morais [...]” (FREUD, 1893, p.187). O recalque age sobre os desejos,
que são barrados, julgados impuros ou indignos para as mulheres, refere-se à forma
como as mulheres lidavam com a sexualidade e devem ser compreendidos como
atuantes em uma forma integrada no interior dos valores estabelecidos na sociedade
moderna. Tudo indica que Freud termina por se render às questões organicistas que
distorce sua compreensão das relações entre os sujeitos humanos.
Em o Declínio do Homem Público: sobre as tiranias da intimidade,Sennett
(1988) nos alerta sobre o catálogo de queixas da medicina familiar do século XIX que
consistia na descrição de aflições físicas originadas por ansiedade, prolongada tensão
nervosa ou temor paranoico “a doença verde era um nome usado para designar a prisão
de ventre crônica das mulheres [...] a doença branca acometia as mulheres que temiam
sair de casa, pelo medo de serem expiadas” (SENNETT, 1988, p. 227). O autor ressalta
99
que as análises das queixas eram atribuídas às questões fisiológicas, mas todos os
relatórios de diagnósticos partiam de um ponto comum: medo de expressar ações
espontâneas de se expressar erroneamente, medo de expressar sentimentos julgados não
próprios para uma mulher. O catálogo de queixas encontrado nos relatos médicos do
século XIX atesta para os moldes de controle do comportamento feminino na expressão
das ações e sentimentos, principalmente frente à sexualidade. “Quando uma sociedade
propõe a seus membros que a regularidade e a pureza de sentimentos são o preço que
pagam para ter um eu próprio, a histeria se torna a rebelião lógica se não a única”
(SENNETT, 1988, p. 228). A educação ensinada às mulheres evocava uma conduta
dissociada de qualquer interesse sexual que não fosse voltado para a procriação. A
sexualidade da mulher era tida como ameaçadora para o homem; deveria ser controlada
e reprimida a fim de representar o lugar que deveria ocupar na família. Muito embora as
causas histéricas não se encerrem em uma questão de dificuldades do sujeito em lidar
com fatores ambientais, as queixas das moças burguesas eram inerentes aos modos de
vida que estavam ‘predestinadas’: cuidar da casa, dos filhos e do marido, e ao mesmo
tempo atraídas pela ideia de ser um indivíduo livre. As hipóteses formuladas pela teoria
freudiana parecem deixar de fora as regras morais e sexuais da sociedade de sua época,
muito embora como bem argumenta a psicanalista francesa ÉlisabethRoudinesco
(2003), em diversas argumentações sobre a sexualidade, Freud estavaà frente do seu
tempo.
Tenho desenvolvido trabalhos63 que destacam as relações familiares pela lente
do sistema de relação de gênero,conforme os debates produzidos porButler (2008) e
Pateman (1993). Meu interesse consiste na problematização sobre as atribuições dadas
aos homens e às mulheres e astensões econflitos familiares pelas relações de poder, sem
deixar de consideraros aspectospsicológicos eas questões socais que as envolvem.
Privilegio os construtos que favorecem oestudo das famílias com uma lente de aumento
63
Tese de dourado em curso intitulada Ecos doentrelace do contrato social com o sexual: indivíduos,
famílias e sexualidades pelo Programa de Pós-Graduação Doutorado emFamília na Sociedade
Contemporânea da Universidade Católica do Salvador e L’ÉcoledesHautesÉtudesenSciencesSociales –
l’EHESS com apoio do CAPES e FAPESB.Dissertação de mestrado: Gênero como Variante do
Micropoder pelo PPG em Família na Sociedade Contemporânea da Universidade Católica do Salvador –
UCSal com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia – FAPESB (2010).
100
para as mulheres enquanto mães e os homens enquanto pais, destacando as relações de
poder eas normatizações sociais sobre suas ações.
Por que trazerDonald W. Winnicott? Por que trazer um autor que privilegia o
cuidado ea atenção ao bebêem estudossobre famílias, sexualidades e gênero? Porque ele
traz o olhar para asfamílias comuma sensibilidade quenos captura.
Quando Winnicott propõe o cuidado com o bebê antesmesmo do nascimento, ele
está alertando para a importância do ambiente. Winnicott (2011)está preocupado com o
desenvolvimento psíquico do bebê mas também estápreocupado com as atribuições que
são dadas as mulheres e aos homens. Winnicott destaca: “Espero não incidir no erro de
pensar que se pode avaliar um homem ou uma mulher sem levar em conta seu lugar na
sociedade” (WINNICOTT,2011, p.22). Em um de seus trabalhos sobre reflexões sobre a
sociedade e sobre o feminismo ele escreve“Sei que os pais são tão importantes quanto
as mães, e realmente um interesse na maternagem inclui um interesse nos pais e na parte
vital que eles desempenham” (WIINNICOTT,2011, p.03).
No estágio da dependência absoluta, “Omodo comoa mãeolha quando se dirige à
criança, o tom e o som antes que se compreenda o discurso” (WINNICOTT,2011 p.142)
é antes de tudo um ato de doação,de permitir ao outro a experiência do seu significado,
de dar sentido à sua presença. Porque somosseres que acreditam. “E acreditamos porque
alguém nos proporcionou um bom início. Recebemos uma comunicação silenciosa, por
um certo período de tempo, de que éramos amados, no sentido de que podíamos
confiar...” (WINNICOTT, 2011, p.43).O autor põeem relevoa relação mãe-bebê, e o
estado de ‘apaixonamento’ da relação dual prevalece com maestria.E é nesse período
queo pai é postoà prova. A dependência absoluta do bebê, o estado de apaixonamento
da mãe pelo bebê, vai lhe exigir umacondição de atenção e cuidado, quetalvez elenão
seja capazde sustentar. Ele é chamado para dar apoio à mãe, muitas vezes na ausência
de uma linguagem afetiva, que não é parte da maneira como ele aprendeu a resolver as
coisas, o seu manejobem sucedido parece ser o de mascarar as demandas dos
sentimentos e emoções (NOLASCO, 1995: BADINTER, 1993). É no período da
dependência absoluta que a vida conjugal aintimidade do casal é mais comprometida e o
101
cuidado e atenção da mãecom o bebê, pode fazer surgir dificuldades quase
intransponíveis,
frente
as
exigências
de
uma
cultura
ou
suas
próprias
exigênciascomohomem. Dentro de uma sociedade emque o si mesmo, o individualismo
vem em primeiro plano, exercera maternidadee a paternidade num ato de doação, ou
seja, a maternagem, que significa abster-se de si, é viver um novelo de contradições.
Essas transformações podem parecer até impossíveis no primeiroolhar,mas
seconsiderarmos que o homem e a mulher não são elementos constituídos por
fenômenos naturais, mas habitantes da cultura são realidades que podem ser vividas de
outra maneira.Opai no período de dependência absoluta e relativa, pode agir para não só
que o bebê tenha um ambiente saudável,mas que amãe possa também viver essa
realidade.
Sobre o pai no estágio do concernimento eo pai no estágio das relações
triangulares, talvez as pistas devam ser seguidas napreocupação de D.Winnicott com
‘as rotinas caseiras’, com as demandas próprias davida familiar, em que as mães
aparecem como as principais regentes.
Há 54 anos, (em 1960), quando Winnicott (1999) dava suas palestrasna
rádioBBC de Londres (descritas em sua obra Conversando com os pais) ele pediu
àsmães paracontarem o que as irritavam a respeito de ser mãe, e quantos filhos elas
tinham.
Aprimeira mãe, a Sra.W, respondeu:
“Tenho sete, o mais velho com 20 anos e o caçula com 3 anos”.
Winnicott pergunta: ‘A senhora acha mesmo uma tarefa incômoda ser mãe’?
Sra. W:”sim acho. É o que penso, de um modogeral, para ser bem
sincera. Penso que a dificuldade numa família e, realmente, asérie de
coisinhas irritantes, como a constante desarrumação e sujeira, e
sempre correndo atrás de ume de outro para tentar colocá-los na
102
cama… essas coisas, eu acho francamente irritantes” (WINNICOTT,
1999, p.78).
“Sra. A:Bem só tenho dois filhos… um bebêe umque está começando
agora a andar, e este é claro, o que me irrita. Tal como a Sra. W., são
as pequenas coisas, e também a falta de tempo para me
relacionarmelhor com as crianças – é tudo feito as presas, o meu
caçula quer sempre alguma coisa em cima da hora, quando temos que
nos aprontar num piscar de olhos para sair.”(WINNICOTT, 1999,
p.78).
E as mães dizem que estão cansadas.
Winnicott pergunta:“oque vocês acham queé a causa da fadiga entre mães”?
Sra. S:“Eu penso que é ter que realizar muitas tarefas num prazo
limitado de tempo. Temos que cuidar das crianças, a louça tem que
ser lavada, o bebê tem que ser alimentado e o jantar preparadopara o
marido. Tudo isso emquestão deuma hora” (WINNICOTT, 1999,
p.79).
Winnicott (1999)ressalta que não se deve duvidar do amor que estas mães
sentem por seu filhos, “elas estão completamente seguras do seu amor pelos filhos”
(p.43). Mas o que se exige dela deve ser olhado comatenção. E acrescenta:
Sem nenhum idealismo tenhode ser cuidadoso. Ao descrever com
tanta desenvoltura o que as crianças muito pequenas necessitam, pode
parecer que espero dos pais a impecável conduta de anjos num mundo
real, como um jardim suburbano no verão, com o paicortando a
grama, a mãe preparando o jantar dominical e o cão ladrando por cima
da cerca para o ao vizinho.Pode-se dizer quecrianças, mesmo os bebês
precisam de seres humanos, pais suficientemente bons, e suficiente
bons significa você e eu (WINNICOTT, 1999, pp.140/141).
103
O autor revela o compromisso dos seus trabalhos com as relações sociais e o
ambiente em que o lugar da mãe é compelido a responder, permitindo uma reflexão
sobre a necessária participação do pai.
Em minhas pesquisas e estudos sobre famílias, Rousseau é um autor queaparece
colocando a família comoa mais natural em uma ordem devalores quesuscita tensões
(PATEMAN, 1993). O Contrato Social em Rousseau (1996)64 ressalta a famíliacomo “a
mais antiga de todas as sociedades e a única natural” (ROUSSEAU,1996, p.11).A
famíliaé vista como o primeiro modelo das sociedades políticas sob o governo do
patriarca. Nesse modelo parece não haver lugar para o pai domesticado. Mas talvez a
teoria do contrato social que simboliza a morte do pai patriarca e fez nascer o indivíduo,
almejasse opai domesticado, conformenos alerta Roudinesco (2003) e, portanto, mais
próxima dospropósitos de JeanJacques Rousseau. É o que nos faz refletir suas
confissões. Para finalizar a minha participação nesta mesa, quero destacar um trecho da
obra LesConfessions65 em que o autor faz umahomenagem aos seus pais.
Meu pai, após o nascimento do meu único irmão foi para
Constantinopla, onde ele foi chamado e tornou-se um relojoeiro do
harém. Durante sua ausência, a beleza da minha mãe, sua mente, seus
talentos, ele desenhou homenagens e minha mãe tinha mais do que a
virtude de defender meu pai ela amava muito o marido. Ele deixou
tudo e voltou. Eu fui o triste resultado dessa troca. Dez meses depois,
eu nasci aleijado e doente. Eu tirei a vida da minha mãe, e meu
nascimento foi o primeiro dos meus infortúnios.
Eu não sabia como meu pai suportava esta perda. Ele acreditou em
mim e sem ser capaz de esquecer que eu o tinha levado a sua amada,
ele nunca me beijou que eu sentisse seus suspiros, seus abraços
convulsivos, um lamento amargo misturado com suas carícias que
eram macias. Quando ele me disse: Jean Jacques, vamos falar sobre
64
Tradução nossa da obra original Du ContratSociale, (ROUSSEAU, 1996)
Tradução nossa da obra original LesConfessions, Rousseau (2012) (obra redigida entre 1765 et 1770,
com publicação póstuma em 1782 e 1789).
65
104
sua mãe, disse-lhe: Bem! meu pai, por isso vamos chorar, e que a
palavra por si só já puxou as lágrimas. Ah! ele disse com um gemido,
olhe para mim, para me consolar ele disse:você preencheu o vazio que
ela deixou em minha alma. Eu te amo,como se você fosse só o meu
filho. Quarenta anos depois ele morreu nos braços de uma segunda
esposa, mas o nome da primeira ea sua imagem no coração.
Estes foram os autores da minha vida. De todos os dons que o Céu
lhes tinha alienado, o coração sensível é o único que me deixou, mas
fez-losfelizes, fez diminuir todos os meus infortúnios (ROUSSEAU,
2012, p.09).
Essa homenagem feita por Rousseauaos seus pais, pode nos levar a
algumas reflexõessobre osquatros períodos fundamentais no processo
de amadurecimento do indivíduo comobem argumentou em sua
palestra aDra. Claudia Rosa. São períodos que convocamo pai parao
domínio de uma linguagem afetiva, que se faz presente na vida dos
filhos, com os modos de agir que difere da mãe, mas pertence ao
universo familiar de cuidado e atenção.
Em
suas
teorias
Winnicott(2012;2011,1999,1994;1980)
nos
fornece
osinstrumentos para pensar a família e as relações entre seus membros considerando
asinfluências doambiente parao bebê, para amãe e para o pai.O que queroressaltar é que
não há comofalar do pai sem falar damãe e a recíproca se faz sempre necessária.
De acordo com Laura Detheville, psicanalista francesa que se dedica aosestudos
sobrea vida e a teoria winnicottiana “No fim da vida Winnicott passou a usar mais o
termo ‘mãe ambiente’ e o ambiente ficou mais genérico, por incluir os ‘outros’ da mãe,
em particular o pai, a família, a realidade social, etc. Nesse ponto a mãe ambiente é uma
função, mesmo quando é um sujeito” (DETHIVILLE, 2013, p. 09). Nesse sentido a
maternagem pode ser um objeto das vivências do pai.
105
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106
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Interlivros, 1980.
107
Mesa-Redonda 4: Democracia como forma de maturidade
Conferencista: Profa. Dra. Letícia Minhot, Universidade Nacional de Córdoba (Argentina66);
Comentadores: Profa. Dra. RoseanaGarcia (SWSP) 67e ElaineRabinovich (IPUSP/UCSal/Ba)68
El ambiente: red de cuidados.
Leticia O. Minhot
En este trabajo queremos abordar el lugar del padre desde una consideración ontológica
a la que definiremos como relacional. Desde ésta, defendemos la idea según la cual la
teoría winnicottiana de la maduración nos ofrece una teoría de la individuación, es
decir, da cuenta del proceso por el cual se llega a ser individuo a partir de una realidad
preindividual. Esa realidad es concebida como ambiente, se trata de una ontología
relacional pues el individuo es posible gracias a los vínculos que son previos y permiten
o no el proceso de individuación. Dichas relaciones son relaciones de cuidado. Si bien
el vínculo fundamental es el dado entre la madre y el bebé, sin embargo, la noción de
ambiente se puede extender si consideramos que, a su vez, la cuidadora principal, la
mamá, necesita ser cuidada en especial en los momentos en que ella debe estar
completamente entregada a la tarea de cuidar del bebé. Para poder comprender al padre
como soporte de la maduración es importante que nuestra concepción de ambiente sea
como una red de cuidados en la que se pueda insertar el rol de cuidador del cuidador.
Esta noción de padre, totalmente vincular, se opondrá a la noción de padre como
portador de la ley que otras líneas psicoanalíticas defienden.
Palabras claves: ontología relacional, individuación, cuidador del cuidador.
In this work we approach the place of father from an ontological consideration defined
as relational. From it, we defend the idea that the Winnicottian theory of the maturation
offers us a theory of the individuation, this is, and it accounts the process by which it
arrives to be individual from a preindividual reality. That reality is conceived as
environment, this is an relational ontology because the individual is possible thanks to
the links that are previous and allow or not the process of individuation. Such relations
66
LetíciaMinhot, Universidade Nacional de Córdoba (Facultad de Psicología. Facultad de Derecho y
Ciencias Sociales-Escuela de Trabajo Social. Universidad Nacional de Córdoba.
67
Dra. Roseana Garcia. Doutorado em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, Brasil(2009)
68
Elaine Rabinovich.Doutorado em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo, Brasil (1997)
professor da Universidade Católica de Salvador , Brasil.
108
are relations of care. The fundamental link is the given between the mother and
the baby, the notion of environment may be extend if we consider that the mother need
to be hold, in special in the moments in that she should be completely delivered to the
task of care of baby. In order to understand the father as support of the maturation is
important that our conception of environment would be as a network of care where we
can insert the role of carer of the carer. This notion of father is oppose to the notion of
father as bearer of the law that other lines psychoanalytic defend.
Key words: relational ontology, individuation, carer
Neste trabalho abordamos o papel do pai a partir de uma consideração ontológica que
definimos como relacional. A partir disso, defendemos a idéia de que a teoria do
amadurecimento de Winnicott nos oferece uma teoria da individuação, ou seja, percebe
o processo pelo qual uma pessoa se torna um indivíduo a partir de uma realidade préindividual. Essa realidade é concebida como um ambiente é uma ontologia relacional
porque o indivíduo é possível pelos links anteriores que permitem ou no o processo de
individuação. Essas relações são relações de cuidado. Enquanto o principal é a ligação
dada entre mãe e bebê, no entanto, a noção de ambiente pode ser estendida se
considerarmos que, por sua vez, o cuidador principal, a mãe, precisa receber cuidados,
especialmente nos momentos em que ela deve ser completamente entregue à tarefa de
cuidar do bebê. Para entender o pai como apoio da maturação é importante que o nosso
conceito de meio ambiente seja uma rede de atendimento para que possa ser inserido o
papel do cuidador do cuidador. Esta noção de pai vai opor-se à noção de pai como
portador da lei que argumentam outras linhas psicanalíticas.
Palavras-chave: ontologia relacional, individuação, cuidado.
No se hace un mundo con simples átomos.
Jean Luc Nancy
En este trabajo seguimos la heurística que nos indica que la Teoría de la
Maduración desarrollada por Winnicott nos ofrece, además de una teoría psicológica,
una teoría de la individuación.i En la ontogénesis freudiana tenemos un ser sustancial
primitivamente dado el cual soporta procesos que se operan mecánicamente a partir de
un núcleo inicial. La ontogénesis queda reducida al desarrollo mecánico desde este
núcleo. Estos procesos son los causantes de todas las significaciones que se producen
sucesivamente. Tenemos así, un ser ya individuado y una ontogénesis. Parafraseando a
Simondon (1958), el psicoanálisis freudiano parte del ser ya individuado y, a partir de
109
ese ser, busca comprender el devenir del mismo. En el psicoanálisis de Winnicott, a su
vez, tenemos un proceso totalmente inverso: busca captar aquello que se “llega a ser”, el
individuo, a partir del devenir, es decir, a partir de los procesos por los cuales se alcanza
la unidad. Cabe aclarar que éstos no son mecánicos. Además, este devenir intenta ser
comprendido desde su realidad preindividual. Esta diferencia que proponemos aquí la
consideramos de gran importancia. En primer lugar, en el psicoanálisis freudiano, al no
considerar la realidad preindividual ni el proceso por el cual se llega a ser una unidad, lo
que se toma como individuo es una parte del ser y esa parte se supone como una
totalidad. Cualquier individualismo es, como sostiene Nancy (1986: 17) “... un
atomismo inconsecuente, que olvida que lo que está en juego en el átomo es un mundo”.
Estamos ante una abstracción: “... el individuo revela ser el resultado abstracto de una
descomposición.” En segundo lugar, al ser una parte la que ocupa el lugar del todo, esa
parte agota todos los significados y no permite comprender muchos aspectos del ser. En
tercer lugar, la operación por la cual seleccionamos la parte que va a ocupar el lugar del
todo es una operación en función de algún proceso externo al ser el cual queda oculto,
limitándonos aún mucho más la comprensión. Por todo esto, consideramos que el hecho
de que la teoría de la maduración contenga una teoría de la individuación la coloca, no
sólo en un paradigma diferente, sino en uno que ofrece ventajas a la hora de abarcar los
sentidos y significaciones de la vida humana.
Esta misma heurística nos indica también que la teoría de la maduración, en
tanto teoría, se desarrolla sobre la base de una ontología relacional. Este tipo de
ontología es el inverso a las ontologías de substancias u ontologías de individuos. En
estas últimas, la relación es una categoría que supone a los individuos, se da entre dos
términos extremos dados. En las ontologías relacionales la relación es un proceso de
individuación, en ese sentido decimos que es una modalidad del ser. Los términos de la
relación no pueden ser pensados fuera de la relación, pues ésta los hace posible. Esto no
implica, de ninguna manera, que la relación es substancializada. Lo que esto, más bien,
implica es que tenemos una totalidad constituida por la relación la cual, como proceso,
hace posible lo que liga. No se puede conservar el sentido y disgregar relación por un
lado y los extremos que une por otro y, mucho menos, acceder a estos términos de
110
modo conceptual y analizarlos y comprenderlos de modo independiente. Como la
relación no es un proceso mecánico ni está substancializada tampoco podemos tener de
ella una comprensión en sí misma separada de los extremos que hace posible. En esta
totalidad no hay substancias, no lo son ni los términos extremos ni la relación. Esta
ontología nos garantiza que la individuación es una operación de la relación, la cual no
es dada ni está determinada según propiedades esenciales que existen en los individuos
desde antes de la relación.
En el caso de la Teoría de la Maduración de Winnicott el ambiente puede ser
considerado, ontológicamente, no como un lugar en donde se da el proceso de
individuación, sino como el proceso de individuación mismo, como el devenir del ser,
como la relación que hace posible la realidad de lo que vincula. Esta teoría nos muestra
el despliegue de la naturaleza humana, devenir del ser humano, “llegar a ser” que es su
modalidad.
Básicamente, lo que tenemos según esta teoría es un bebé con una
tendencia innata a madurar, entendiendo por “madurar” procesos de integración y para
que estos procesos se den en el momento y del modo adecuado se requiere de una
previsión ambiental suficientemente buena. La unidad que se alcanza no es un resultado
de un programa mecánico y universal, en consecuencia, no están garantizados de por sí,
por ello, hay necesidad del ambiente. Como no pueden ser universales, porque no están
asegurados por rasgos esenciales, la maduración es un desarrollo personal. No hay aquí
un programa análogo al del principio de placer. Por eso, el proceso como devenir es
también su modalidad. El ambiente cuando es suficientemente bueno garantiza que el
bebé crezca a su propio modo. Y el ambiente es tal si hay una madre que se adapta a las
necesidades del niño. Tal madre, al estar estrechamente identificada con el bebé, sabe de
las necesidades de éste. Dijimos que el ambiente no es el lugar, el escenario en donde se
da esta escena, el ambiente es la totalidad, es el bebé y su madre y es el vínculo entre
ambos. El niño, en esta primera y más temprana etapa, se encuentra en un estado de
fusión, sin haber separado todavía el “yo” del “no-yo”. Es importante poder ver en esta
noción de ambiente todas las características que señalamos en una ontología relacional y
en los procesos de individuación. Los procesos de maduración son procesos de
integración que permiten que, en algún momento, el niño se establezca como una
111
unidad. Por lo que el “llegar a ser” esta unidad es el resultado de estos procesos que
constantemente están siendo asegurados por el ambiente, es decir, por esa relación que
se da entre la mamá y su bebé. Esa relación es de cuidado. Una falla en el ambiente es
una interrupción del “seguir siendo” del bebé y es una falla en el cuidado. Cuando los
bebés y los niños pequeños son cuidados de un modo confiable entonces decimos que
son “cuidados suficientemente bien”. Esto permite la confiabilidad y, desde este estado,
el pequeño puede entregarse a llevar a cabo las tareas de integración que esta etapa la
vida le demande y continuar desplegándose en su maduración hacia su self.
El cuidado, que es la relación que vincula a la mamá con el bebé, no es una
relación que adviene a dos individuos dados que pueden ser comprendidos
conceptualmente de modo independiente uno de otro y fuera de la relación. Como
vimos, el cuidado garantiza el “seguir siendo” del bebé y su “llegar a ser” una unidad. Y
este “seguir siendo” y “llegar a ser” son modos del ser del bebé, son modos personales.
Claramente, el bebé no puede ser pensado en sí mismo de modo independiente al
cuidado. Ahora bien, ¿y la mamá? El cuidado suficientemente bueno depende de la
capacidad de la mamá para identificarse con el bebé y reconocer las necesidades de éste
y poder satisfacerlas. En definitiva, el cuidado depende de la capacidad de la mamá para
adaptarse al bebé. Pero esta adaptación tampoco es mecánica. Si en el bebé todos los
procesos son personales no tenemos dos bebés iguales, por lo que la mamá también
“llega a ser” por medio de los cuidados y de las identificaciones que cada bebé da lugar.
Por lo tanto, tampoco podemos separar conceptualmente a la madre de la relación del
cuidado y de su bebé. La comprensión debe ser de esa totalidad. Tampoco podemos
substancializar el cuidado y, por no ser un proceso mecánico, tampoco podemos
separarlo conceptualmente y analizarlo como un conjunto de protocolos y
recomendaciones. Siempre tenemos la unidad-totalidad. “El infante y el cuidado
materno, juntos forman una unidad” (Winnicott, 1960: 50).
Cuando hablamos de ambiente suficientemente bueno lo hacemos en referencia
al vínculo mamá-bebé. Los cuidados son la totalidad de cuidados que la mamá le brinda
al bebé para que éste pueda realizar las tareas que la vida, en esos momentos, le
112
requiere. La pregunta que aquí nos planteamos es ¿podemos considerar a este par
fusionado como una totalidad absolutamente aislada, separada del mundo? “En esta
etapa muy temprana el padre aún no es significativo como persona de sexo masculino”
(Winnicott, 1960a: 185) nos dice Winnicott. Sin embargo, ¿podríamos sostener con
coherencia que Winnicott pretende considerar a esta unidad-totalidad de modo
independiente del padre? ¿Es esto posible? Pensemos lo siguiente, para que la madre
pueda entregarse a las tareas de cuidado de su pequeño requiere estar en una situación
que se lo permita. Esto significa que la mamá, en tanto cuidadora, requiere, a su vez, ser
cuidada. Es decir, requiere de un ambiente que la sostenga para que ella pueda
entregarse a la tarea del cuidado de modo confiable. El padre entra en esta etapa como
garante del cuidado materno: cuidando a la cuidadora. Pudiendo identificar las
necesidades de la madre en esta etapa y satisfacerlas de modo tal que ella pueda cuidar.
La cuidadora no puede ser considerada como omnipotente, porque la autonomía siempre
es relativa, nunca absoluta. La cuidadora necesita ser cuidada.
“De cualquier manera, el intento de los padres de proporcionar un hogar para sus
hijos, en el que éstos puedan crecer como individuos y en el que cada uno de ellos
adquiera gradualmente la capacidad de identificarse con los padres y luego con grupos
más amplios, comienza desde el principio, cuando la madre se adapta a su bebé. Aquí el
padre cumple la función de agente protector que asegura a la madre la libertad necesaria
para consagrarse por completo a su bebé.” (Winnicott, 1950: 285)
En el psicoanálisis freudiano el padre es considerado desde el complejo de Edipo
y entra como límite al programa del principio de placer. Por eso, el padre se asocia a la
ley que le adviene a un individuo ya constituido. En el psicoanálisis winnicottiano es
totalmente diferente. La palabra clave sigue siendo “dependencia”. Por ende, necesidad
de cuidado. Si por amor entendemos la totalidad de cuidados que la mamá le asegura al
bebé, entonces el padre entra como amor y no como ley. Entra para sostener y hacer
posible la unidad-totalidad madre-bebé y no como límite a un programa. El amor del
padreii, en esta etapa, es el sostén a la madre para que ella pueda, a su vez, sostener a su
pequeño. Esta idea de amor no es para nada sentimentalista, sino todo lo contrario. Hay,
113
así, una continuidad entre los cuidados maternos y la familia, la cual podemos
considerar que está constituida, básicamente, por la unidad-totalidad madre-bebé más el
padre. De este modo, sólo en un sentido muy limitado podemos separar
conceptualmente los cuidados maternos de la familia pues la madre forma parte de dos
relaciones a la vez, por una lado, como cuidadora en el vínculo con el bebé y
constituyendo con él una unidad; por otro, como cuidada en el vínculo con el papá, en
esta etapa. Sucede lo mismo que señalábamos más arriba con el cuidado del bebé. El
cuidado no es un proceso mecánico, es personal.
Sobre lo que deseo reflexionar en este trabajo es sobre el padre. Éste, en tanto
cuidador, ¿necesita a su vez ser cuidado? Y en ese caso ¿qué tipo de cuidados necesita
el padre? ¿Quién es el cuidador del padre?
Aquí avanzo en la idea que sostiene que la Teoría de la Maduración nos ofrece,
además de una teoría psicológica, las bases para una teoría sobre la sociedad. Según
Winnicott, el animal humano pasa, en el desarrollo de su vida, de un origen de
dependencia absoluta a una independencia relativa. Con esto quiere decir que nunca
somos del todo independientes. Aún de adultos tenemos necesidades que sólo pueden
ser satisfechas por otros. Nancy (1986: 17) nos habla de la necesidad de un clinameniii:
“Hace falta una inclinación o una disposición del uno hacia el otro, del uno por el otro o
del uno al otro.”
Es importante ver al padre desde esta perspectiva. Si nadie es absolutamente
independiente, si cada uno de los seres humanos tiene necesidad de otro, entonces cada
uno requiere algún tipo de cuidado por parte de otro ser humano. Así, la sociedad
solidaria es vista como una red de cuidados y esta concepción de la sociedad nos lleva a
una ética del cuidado. Pero retomemos al padre. Éste también se inserta como cuidador
en esta red, pero, a su vez, como adulto sano con independencia relativa, también
necesita ser cuidado. Aquí aparecen otros miembros de la familia, abuelos, parientes,
amigos, etc. Algunos de estos nuevos personajes pueden sostener al padre para que
pueda cuidar a la cuidadora. Es claro que este cuidado no debe ser “intervencionista”
sino que, todo lo contrario, debe ser de sostén. Recordemos que siempre el sostén
114
implica comprensión y empatía, que es, lo que en verdad hace falta. A veces el sostén
puede tener la forma de comunicación, puede que sea necesario decir algo con palabras
o simplemente escuchar, pero, con palabras o con gestos o con actos o simplemente
estando, se demuestra que se comprende lo que se experimenta.
Si bien el estado no puede ofrecer cuidado, pues un requisito de éste es que sea
personal, sin embargo, puede desarrollar políticas orientadas a fortalecer una sociedad
como red de cuidados. Así como hay una continuidad entre la pareja mamá-bebé y la
familia, la hay también con la previsión social. Es necesario incrementar la consciencia
referidas a las necesidades de cuidado en y a los hogares donde hay niños en sus
primeras etapas. Por ejemplo, mediante políticas que piensen en la educación de la
sociedad en general que se enseñe sobre la importancia de esta etapa y, particularmente,
se lo transmitan a los funcionarios con los que los padres en situación de cuidado deben
tratar. No hay que perder de vista que, por ejemplo, en el caso de la deprivación patología que está íntimamente relacionada con fallas en el ambiente en los primeros
momentos de la vida- la mayoría de los niños-jóvenes delincuentes provienen de
hogares pobres. Si bien un hogar pobre puede ser mejor ambiente que muchas casas
bien ordenadas, sin embargo, no hay que dejar de considerar estos datos estadísticos.
Hay que tener siempre presente que la clave de estas políticas reside en que no deben
ser intervencionistas en los hogares, que el padre tenga libertad asegurada para cuidar a
la cuidadora y ésta a su bebé. Deben ser políticas de sostén para que los padres puedan
actuar suficientemente bien.
Referências
NANCY, Jean Luc. La comunidad desobrada. Madrid: Arena Libros, 2001. (Trabajo
original publicado en 1986, en el cuerpo del artículo: Nancy (1986/2001).
SIMONDON, Gilbert. La individuación a la luz de las nociones de forma y de
información. Buenos Aires: Editorial Cactus y La Cebra Ediciones, 2009. (Trabajo
original publicado en 1958, en el cuerpo del artículo: Simondon (1958/2009)).
115
VIRNO, Paolo. Cuando el verbo se hace carne: lenguaje y naturaleza humana.
Madrid: Traficante de sueños, 2005. (Trabajo original publicado en 2004, en el cuerpo
del artículo: Virno (2004/2005).
WINNICOTT, D. W. La teoría de la relación entre progenitores-infante. In:______. Los
procesos de maduración y el ambiente facilitador: estudios para una teoría del
desarrollo emocional.Buenos Aires: Paidós, 2011. (Trabajo original publicado en 1960,
en el cuerpo del artículo: Winnicott (1960/2011).
______. La distorsión del yo en términos de self verdadero y falso. In:______. Los
procesos de maduración y el ambiente facilitador: estudios para una teoría
deldesarrollo emocional. Buenos Aires: Paidós, 2011. (Trabajo original publicado en
1960, en el cuerpo del artículo: Winnicott (1960a/2011).
______. (1950) Algunas reflexiones sobre el significado de la palabra “democracia”.In:
______.El hogar, nuestro punto de partida: ensayos de un psicoanalista.Buenos
Aires: Paidós, 1994.(Trabajo original publicado en 1950, en el cuerpo del artículo:
Winnicott (1950/1994).
116
Comentários a partir do Texto de Letícia O. Minhot: El Ambiente: Red de
Cuidados
Elaine Pedreira Rabinovich, IPUSP/UCSal
Resumo: Neste comentário a partir do artigo de Letícia Minhot, são propostas as
seguintes questões: é possível opor totalmente Winnicott ao pensamento psicanalítico?
Como está sendo vista atualmente a fusão na relação mãe-bebê? Necessita o pai como
“corte”, ou como “portador da lei” ser contraditório ao pai como “rede de cuidados”, ie,
não poderiam ser complementares? Uma maternagem, isso existe sem uma sociedade?
Finalizando, a última questão seria: a noção de rede de cuidados como formadora de
uma sociedade solidária não precisaria ser vista a partir de uma compreensão mais
complexa dos fenômenos societais?
Palavras-chave: Winnicott; rede de cuidados; cuidadores; mãe; pai.
Abstract: In this commentary of LetíciaMinhot´s article are proposed the followings
questions: is it possible to totally oppose psychoanalysis to Winnicott´s ideas? How is
seen the mother/baby symbiosis nowadays? Does the father seen as “cutter” or as the
“word of the law” need to be ontradictory to the father as “net of cares”? Does
motherhood exists without a society? Finally, the last question would be: does not the
notion of net of cares as forming society need to be seen from a more complex
understanding of societal phenomena?
Key words:Winnicott; net of cares; caretakers; mother; father.
Resumen: En este comentario del antícolo de Leticia Minhot son propuestas las
siguientes cuestiones: es posible oponer totalmente el psicoanálisis al pensamiento de
Winnicott; como esta sendo vista actualmente la simbiosis madre/bebé; necesita el
117
padre visto como “corte” o como “portador del ley” ser contradictorio al padre como
“red de cuidados”; la maternidad puede existir sin una sociedad; finalizando, la
ultimacuestión seria: la noción de red de cuidados no necesitaría ser vista a partir de una
comprensión más complexa de fenómenos sociales?
Palavras llave:Winnicott; red de cuidados; cuidadores; madre; padre.
Meus comentários serão breves, inclusive porque o texto é bastante claro e
elucidativo. Apresenta ideias sugestivas e inovadoras. Avalio o texto também muito
oportuno dado Winnicott ser um autor facilmente apropriável pela psicologia do
desenvolvimento, pela abertura ao ambiente que seu entendimento propiciou.
No entanto, compreendi minha tarefa de comentadora como um posicionamento
meu ante as ideias expostas no artigo-referência, e apenas nele, o que realizo a seguir.
O artigo de Letícia discute o que é o ambiente para Winnicott, inicialmente
diferenciando-o da posição assumida pela psicanálise freudiana. Contudo, Winnicott é
um “filho” de Melanie Klein, em decorrência tem uma forte influência da psicanálise
em seu pensamento.
Em um artigo publicado no jornal Libération, a propósito de duas biografias
sobre Winnicott, Maggiori (2008) relata que este se manteve ligado à Sociedade
Psicanalítica Inglesa, “entre” o grupo fiel a Anna Freud e o grupo fiel a Melanie Klein,
fundando o middlegroup e permanecendo doze anos como presidente desta Sociedade.
Uma “mãe suficientemente boa”, de Winnicott, pode ser vista como uma
variação do “seio bom” kleiniano, e o pai como integrador pode ser visto como um
objeto total em oposição ao objeto parcial representado pelo “seio”.
Nesta direção, uma primeira pergunta seria: será que dá para opor totalmente a
psicanálise ao pensamento de Winnicott?
118
Sua novidade, em relação à psicanálise, foi considerar o espaço real da criança,
“um bebê, isto não existe”, o ser humano sendo, desde o início, um ser social, gestado
em relações socialmente dadas. A noção de espaço potencial como o lugar da cultura, e
seu correspondente, o de objeto transicional, também iluminam os estudos até hoje. Não
há dúvidas, creio, sobre a colaboração própria e fundamental de Winnicott para a
compreensão do humano.
No entanto, a noção de simbiose ou fusão - que marcou a psicanálise e também
Winnicott - é que me parece datada frente aos estudos do que ficou sendo denominado
“bebê competente”, um bebê humano que nasce pronto para sobreviver em um ambiente
humano sócio-histórico-evolutivamente dado (Brazelton, 1987; Klaus e Klaus, 1989;
Rabinovich, 2013). O fato de um bebê humano depender dos cuidados humanos não
implica, necessariamente, em uma fusão. Muito já se escreveu sobre os estudos que
partem dos bebês (Cramer, 1987) para os estudos que partem da fala adulta para deduzir
dinâmicas infantis e suas consequências sobre a formulação de conceitos que subjazem
às teorias desenvolvidas.
A denominação “bebê competente” decorre da compreensão, baseada em
inúmeros experimentos, de que o bebê humano nasce “competente” para sobreviver em
seu meio, qual seja, dentro do contexto sócio-histórico-cultural próprio ao ser humano.
Esta “competência” significa que, embora e inclusive porque necessite de cuidados de
outros humanos para sobreviver – cuidados estes que se estendem por muito mais tempo
do que nos demais primatas – concomitantemente, e por meio de mecanismos
equivalentes aos seus cuidadores, nasce “pronto” para que cuidem dele como necessita
ser cuidado para sobreviver.
Nesta direção, a unidade de estudo do desenvolvimento pode ser considerada o
sistema
formado
pelo
contexto
do
desenvolvimento
e
o
próprio
ser-em-
desenvolvimento, aqui denominado globalmente como “sistema de desenvolvimento”.
O conceito de contexto, aqui tratado como modo de vida, refere-se ao constructo
sócio-histórico, significando que se leva em consideração a totalidade das formas
119
historicamente desenvolvidas e inter-relacionadas, assim como os modos das atividades
sociais – trabalho, lazer, padrões de relacionamentos interpessoais, etc., típicos de uma
dada sociedade, em sua unidade com a estrutura social e o estilo predominante de
pensamento. Assim, segundo Oyama (1989, p. 24), “as ideias, ações, valores, hábitos e
crenças de outras pessoas são parte do rico complexo de influências desenvolvimentais
a partir das quais as vidas são construídas”.
Segundo estes estudos, não haveria um bebê “pré-individual”, como supõe
Letícia. Os bebês viriam ao mundo pré-formatados para se articular a um mundo que
também está pré-formatado para recebê-los. É na interação entre ambos, de modo
dialético e aberto, que ocorre o desenvolvimento único daquele ser humano.
Portanto, a segunda questão seria: como está sendo vista a situação de
simbiose/ fusão na relação mãe-bebê?
Por outro lado, não creio que estes achados invalidem a teoria de Winnicott,
justamente pela sua abertura ao ambiente desde os primeiros momentos de vida do bebê.
Como durante muitos anos estive ligada à psicologia ambiental e/ou sócioambiental, gostaria de discutir a noção de ambiente proposta pela autora.
Por um lado, o sistema de desenvolvimento como contexto pode ser
compreendido como uma explicitação da noção de ambiente. A noção de sistema de
desenvolvimento é uma contribuição da Teoria Geral dos Sistemas aplicada ao estudo do
desenvolvimento da criança. Sistema de desenvolvimento “é um conjunto móvel de
influências e entidades inter-atuantes. Inclui todas as influências sobre o
desenvolvimento, em todos os níveis de análise” (OYAMA, 1989, p.26).
Não contraditoriamente, Letícia apresenta o ambiente como a totalidade de
vínculos estabelecidos. Como frisa a autora, trata-se de uma ontologia relacional em que
o indivíduo é possível graças aos vínculos que permitem ou não o processo de
individuação. Continua ela afirmando que tais relações são as de cuidado e que o
120
ambiente é o próprio processo de individuação. Nesta direção, haveria uma rede de
cuidadores em que o ambiente é a totalidade dos vínculos estabelecidos.
A nosso ver, os cuidados não se dão de forma casual, mas de modo coordenado e
integrado segundo o sistema de objetos materialmente dados, do acesso a estes objetos e
aos valores implicados nesta coordenação. Deste modo, o ambiente não implica apenas
nos vínculos, mas deve ser visto como meio, como o que está no meio, mediando as
relações e os vínculos, recuperando os sentidos de diferenciais de moyen e de milieu.
Assim, por outro lado, o próprio ambiente pode ser concebido como relação
(Berque, 1990), como o momento estruturado e estruturante do ser(verbo)-humano.
Tiberghien (..., p. 93), apoiando-se em Heidegger, diz que “o limite não é onde alguma
coisa cessa, mas onde começa”. O espaço humano só existe na medida em que é
transformado em lugar (Tuan, 1983).
Portanto, o que estou sugerindo é que a noção de ambiente vai além de vínculos
interpessoais para abranger outras relações.
Em continuação, a autora contrapõe a noção derivada da psicanálise a respeito
da função paterna como portador da Lei, por meio do complexo de Édipo, para uma
função paterna de cuidados, principalmente de cuidados em relação à mãe, ou
substituto. Para ela, os cuidados são a totalidade dos cuidados maternos e a mãe,
enquanto cuidadora, necessita também ser cuidada, por exemplo, pelo pai, assim como o
pai precisa de suporte familiar e, em círculos mais amplos, societais.
Pode-se pensar que Winnicott coloca esta função de “corte”, de certo modo, na
própria mãe quando esta “desilude” o bebê, no denominado desmame em que o bebê sai
da uma posição inicial de onipotência. No entanto, a figura/função paterna claramente
não pode ficar restrita a isto.
Parece-me, contudo, que o pai como corte, como portador da lei, não precisa
ser necessariamente contraditório com o pai como rede de cuidados, ie, não poderiam
ser complementares?
121
Sobre o lugar do pai como agente protetor e sobre quem cuida do pai, creio que a
rede de cuidados atua em todos os momentos e em todos os níveis e em todos
cuidadores e cuidados na forma de sistemas abertos. Quer dizer: não teria a mãe, depois
o pai, depois os parentes, depois a sociedade, como as camadas de uma cebola: todos
estes níveis atuariam ao mesmo tempo em interações múltiplas, tipo o átomo. A mãe já
é a mãe+opai+parentes+sociedade=sistemas de cuidados.
Parafraseando Winnicott “Um bebê, isso não existe sem a maternagem”, poderse-ia dizer: Uma maternagem, isso não existe sem uma sociedade?
Nos estudos sobre família, atualmente, o conceito de rede tem sido cada vez
mais aplicado em decorrência, em parte, da “individualização da sociedade” (DeloryMomberger, 2012). Letícia sugere que a Teoria do Amadurecimento forneceria uma
base para uma teoria sobre a sociedade vista como “uma rede de cuidados”. Mas
considerar a sociedade como uma extensão de indivíduos democraticamente ou
solidariamente criados não me parece ser uma generalização que possa ser
legitimamente feita.
Finalizando, a última questão seria: a noção de rede de cuidados como
formadora de uma sociedade solidária não precisaria ser vista a partir de uma
compreensão mais complexa dos fenômenos societais?
Referências
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BERQUE, Augustin; BIASE, Alessia de; BONIN, Philippe. L´habiter dans sa
poétique premiére:actes du colloque de Cerisy-la-Salle. Paris: Editions Donner Lieu,
2008. p.84-101.
BRAZELTON, T. Berry. O bebê: parceiro na interação. In: BRAZELTON, T. Berry et
al. A dinâmica do bebê. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.p. 9-23.
CRAMER, Bertrand. A psiquiatria do bebê: uma introdução. In: BRAZELTON, T.
Berry et al. A dinâmica do bebê. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.p. 24-74.
122
DELORY-MOMBERGER, Christine. A condição biográfica:ensaios sobre a narrativa
de si na modernidade avançada. Natal: EDUFRN, 2012.
KLAUS, Marshall; KLAUS, Phyllis.O surpreendente recém-nascido. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1989.
MAGGIORI, Robert. Winnicottpapy ours.Libération,Paris, 24 jeudi, p. 2.,25 déc.,
2008.
MOREIRA, Lúcia Vaz de Campos. Psicologia, família e direito:interfaces e conexões.
Curitiba: Juruá, 2013. p.135-146.
OYAMA, S. Ontogeny and the central dogma: do we need the concept of genetic
programming in order to have an evolutionary perspective? In: GUNNAR, M. R.;
THELEN, F. (Eds.). Systems and development: the Minnesota Symposium on Child
Psychology. New Jersey: Lawrence Erlbaum,1989. v.27.
RABINOVICH, Elaine Pedreira. O bebê competente como o « elo perdido ». In:
TIBERGHIEN, Gilles A. Demeurer, habiter, transiter:une poétique de la cabane.In:
TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar. São Paulo: Difel, 1983.
i
Esta tesis fue originariamente desarrollada por Virno (2004).
ii
Cabe aclarar que así como mamá es una función, pues si bien habitualmente la madre es la
persona mejor capacitada para el cuidado del bebé, pero que cuando por alguna razón la madre biológica
no puede llevar a cabo esa función otra persona puede cumplirla y ser la garante del “seguir siendo” del
niño pequeño. Cuando aquí hablamos de padre no nos estamos refiriendo al padre como otra madre. Papá
es una función, en este caso, es el que cuida de la mamá para que ésta pueda cumplir su función.
iii
Término latino acuñado por Lucrecio (TitusLucreciusCarus) por el que traducía el término
griego "parénklesis" con el que Epicuro se refería a la desviación espontánea de la trayectoria rectilínea
que experimentaban los átomos para explicar su agregación con otros átomos. Con esta desviación
Lucrecio intenta solucionar el problema del libre albedrío, pues mediante ella se rompe el determinismo
de sus movimientos.
123