temas jurídicos atuais

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temas jurídicos atuais
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Temas jurídicos atuais: Volume VI
TEMAS JURÍDICOS ATUAIS
Volume VI
4
Temas jurídicos atuais: Volume VI
Carlos Alexandre Moraes
José Francisco de Assis Dias
Larissa Yukie Couto Munekata
(Organizadores)
AUTORES:
Andryelle Vanessa Camilo Pomin
Carolina Emerick de Souza
Claudinéia Veloso da Silva
Diogo Valério Félix
Edmila Adriana Denig
João Paulo Sabaine Fagundes
Marcela Gorete Rosa Maia Guerra
Marcelo Vinícius Dressler
Mateus Augusto Brito de Souza
Mauro Luís Siqueira da Silva
Simone Caroline Mauad
TEMAS JURÍDICOS ATUAIS
Volume VI
Primeira Edição E-book
Editora Vivens
O conhecimento a serviço da Vida!
Toledo – PR – 2016
6
Temas jurídicos atuais: Volume VI
Copyright 2016 by
Carlos Alexandre Moraes / José Francisco de Assis Dias /
Larissa Yukie Couto Munekata
EDITORA:
Daniela Valentini
CONSELHO EDITORIAL:
Dr. Celso Hiroshi Iocohama - UNIPAR
Dr. Daniel Eduardo dos Santos - UNICESUMAR
Dra. Daniela Menengoti Gonçalves Ribeiro - UNICESUMAR
REVISÃO ORTOGRÁFICA:
Prof. Antonio Eduardo Gabriel
CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN:
Bruno Macedo da Silva
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
T278
Temas jurídicos atuais, volume VI. / organizadores
Carlos Alexandre Moraes, José Francisco de
Assis Dias, Larissa Yukie Couto Munekata;
978-85-92670-00-9
autores,ISBN:
Andryelle
Vanessa Camilo Pomin ...
[et al.]. – 1. ed. e-book – Toledo, PR: Vivens,
2016.
222 p.
E-book
Modo de Acesso: World Wide Web:
<http://www.vivens.com.br>
ISBN: 978-85-92670-00-9
1. Meio ambiente. 2. Direito à propriedade. 3.
Agências reguladoras. 4. Direito previdenciário.
5. Direito administrativo. 6. Imposto de renda.
7. Democracia.
CDD 22. ed. 340
Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi
Bibliotecária CRB/9-1610
Todos os direitos reservados com exclusividade para o território nacional. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.
Editora Vivens, O conhecimento a serviço da Vida!
Rua Pedro Lodi, nº 566 – Jardim Coopagro
Toledo – PR – CEP: 85903-510; Fone: (45) 3056-5596
http://www.vivens.com.br; e-mail: [email protected]
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO..............................................................
09
I = ESTADO DEMOCRÁTICO FRENTE
A CRISE ECOLÓGICA
Marcelo Vinícius Dressler.........................................................11
II = O DIREITO À PROPRIEDADE
DO INVENTOR E A INTERVENÇÃO
DO ESTADO NA SUA PROPRIEDADE INDUSTRIAL
Andryelle Vanessa Camilo Pomin
32
Edmila Adriana Denig...................................................................
III = O ESTADO COMO AGENTE REGULADOR:
UMA ANÁLISE DA AUTONOMIA
PÚBLICO-PRIVADA FRENTE O PAPEL
DAS AGÊNCIAS REGULADORAS
68
Marcela Gorete Rosa Maia Guerra..............................................
IV = PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS
NO ÂMBITO DO SISTEMA PENITENCIÁRIO
Carolina Emerick de Souza
99
Claudinéia Veloso da Silva...........................................................
V = O SISTEMA DE REGISTRO DE PREÇOS
E A FIGURA DO “CARONA”
Mateus Augusto Brito de Souza
146
Mauro Luís Siqueira da Silva........................................................
VI - A INCONSTITUCIONALIDADE
DA INCIDÊNCIA DO IMPOSTO DE RENDA
SOBRE JUROS MORATÓRIOS
João Paulo Sabaine Fagundes
168
Mauro Luis Siqueira da Silva........................................................
8
Temas jurídicos atuais: Volume VI
VII = A CRISE NA DEMOCRACIA
NO ESTADO MODERNO BRASILEIRO
Diogo Valério Félix
194
Simone Caroline Mauad...............................................................
APRESENTAÇÃO
A presente obra é o Sexto Volume de uma série
coletânea de “Temas Jurídicos Atuais”, nascida da iniciativa
empreendedora dos organizadores, pretendendo valorizar a
produção científica dos formandos em Direito, na Unicesumar;
levando ao grande público o resultado de seus trabalhos
apresentados como conclusão do curso de bacharelado. Neste
Sexto Volume, são contemplados os seguintes temas:
- no primeiro capítulo, ESTADO DEMOCRÁTICO FRENTE A
CRISE ECOLÓGICA, de Marcelo Vinícius Dressler;
- no segundo capítulo, O DIREITO À PROPRIEDADE DO
INVENTOR E A INTERVENÇÃO DO ESTADO NA SUA
PROPRIEDADE INDUSTRIAL, de Andryelle Vanessa Camilo
Pomin e Edmila Adriana Denig;
- no terceiro capítulo, O ESTADO COMO AGENTE
REGULADOR: UMA ANÁLISE DA AUTONOMIA PÚBLICOPRIVADA
FRENTE
O
PAPEL
DAS
AGÊNCIAS
REGULADORAS, de Marcela Gorete Rosa Maia Guerra;
- no quarto capítulo, PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS NO
ÂMBITO DO SISTEMA PENITENCIÁRIO, de Carolina Emerick
de Souza e Claudinéia Veloso da Silva;
- no quinto capítulo, O SISTEMA DE REGISTRO DE PREÇOS
E A FIGURA DO “CARONA”, de Mateus Augusto Brito de Souza
e Mauro Luís Siqueira da Silva;
- no sexto capítulo, A INCONSTITUCIONALIDADE DA
INCIDÊNCIA DO IMPOSTO DE RENDA SOBRE JUROS
MORATÓRIOS, de João Paulo Sabaine Fagundes e Mauro Luis
Siqueira da Silva;
- no sétimo capítulo, A CRISE NA DEMOCRACIA NO ESTADO
MODERNO BRASILEIRO, de Diogo Valério Félix e Simone
Caroline Mauad.
Boa leitura!
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Temas jurídicos atuais: Volume VI
=I=
ESTADO DEMOCRÁTICO FRENTE A CRISE ECOLÓGICA
Marcelo Vinícius Dressler*
1.1 INTRODUÇÃO
O debate em torno da proteção do meio ambiente e do
novo código florestal não diz respeito apenas a ruralistas e
ambientalistas, mas sim toda a sociedade. Envolve o modelo
exportador brasileiro, a biodiversidade, política agrária,
concentração de terras, enfim, é um objeto de análise que
merece tratamento especial por tratar das condições
necessárias para o desenvolvimento da vida no planeta.
Uma breve análise histórica nos revela a gênese de
nosso país onde encontramos um modelo colonial extrativista,
no qual havia abundância de terras, recursos e mão-de-obra.
Desnecessário seria a preocupação com o meio ambiente em
face da fartura. Essa é nossa raiz. E essa foi à mentalidade
socioambiental que dominou a maior parte da nossa história, sob
a identidade de colônia extrativista. Hoje percebemos que essa
inesgotabilidade dos recursos naturais chegou ao limite.
O advento da sociedade industrial trouxe à situação da
poluição e da devastação ambiental, revelando as cicatrizes da
sociedade capitalista, nos últimos cem anos. Estamos retirando
do ambiente mais recurso que ele pode oferecer, e por outro lado
estamos usando o planeta como nossa “cloaca máxima”,
jogando esgotos, lixo tóxicos, toda forma de resíduos metais
*
Possui graduação em História pela Universidade Estadual de MaringáUEM (2012) e graduação em Direito pelo Centro Universitário de
Maringá - Unicesumar (2014). Atualmente é professor na FASIPE,
Faculdade de Sinop. Tem experiência na área de história, filosofia e
sociologia do Direito, atuando principalmente no seguinte tema:
radicalismo político; fascismo; positivismo jurídico; racismo. Atualmente
cursa mestrado em ciências jurídicas pelo Centro Universitário de
Maringá - Unicesumar, iniciado em 2015, e cursa pós-graduação em
Relações internacionais pela Faculdade Damásio de Jesus, com início
e 2015.
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Temas jurídicos atuais: Volume VI
pesados que não se decompõem, além da sua capacidade de
suportar, devido as maiores cargas advindas da superpopulação
da sociedade de consumo.
A questão se agrava no momento que a água potável dá
sinais de escassez, e a infraestrutura para sua extração,
tratamento e distribuição são precárias e insuficiente. Até
hospitais e escolas sofrem com a escassez. Nós temos um
sistema de abastecimento extremamente fragilizado, onde não
há proteção vegetal as margens dos reservatórios.
Neste sentido é necessária uma nova cultura de cuidado
com a água, na qual parece ser necessário elevar seu status de
bem consumível para Direito Fundamental de 6º Dimensão.
Diante desse contexto objetivamos expor a fragilidade
das instituições democráticas e da incidência das normas
constitucionais frente às tragédias e desastres ambientais, além
de observar a legislação atual vigente de proteção da água e do
meio ambiente. Assim, é imprescindível analisarmos
brevemente as possibilidades de crise ecológica, as
transformações drásticas que a atuação humana - no contexto
capitalista - está infringindo a natureza e a dificuldade das
instituições democráticas fazerem-se valer nos momentos de
desastre pela decretação da Emergência.
Veremos que em situações de desastres ecológicostornados, terremotos, escassez de água- os estados mostramse fracos e não garantem plenamente o exercício da existência
digna à população. Abandonada, esta acaba por regredir a um
estado de selvageria primitiva e violenta, incidindo em saques,
homicídios, vandalismo, sendo obrigada a lutar pela
sobrevivência.
Chega se assim ao conceito de “Cogito Proletário” de
Slavoj Zizek1, ou seja, o “sujeito pós-traumático”, que “sobrevive
à própria morte, à morte (apagamento) de sua identidade
simbólica”, que cai na barbárie e violência generalizada, e
permite ai então, a instauração de um Estado de Exceção
militarizado. Conceito amplamente desenvolvido por Giorgio
Agamben2, enquanto fenômeno político-jurídico expressa o
“desequilíbrio entre direito público e fato político” e que tende a
tornar-se a regra na sociedade atual, e suas características.
1
2
ZIZEK, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos- São Paulo: Boitempo, 2012
AGAMBEM, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
O Estado democrático...
13
Por fim, queremos analisar a legislação brasileira que
tutela o meio ambiente e apresentar a teoria do direito à água
como sexta dimensão dos direitos fundamentais, desenvolvida
por Zulmar Fachin3, em sua obra: Acesso à Água Potável Direito - Fundamental de Sexta Dimensão.
Como o Direito pode contribuir para evitar a degradação
do meio ambiente? O ordenamento jurídico pátrio protege de
forma eficaz, a água e o meio ambiente? Nossas instituições
democráticas são fortes o suficiente para garantir os direitos
fundamentais dos cidadãos nos momentos de crise ecológica?
O direito a água potável merece tutela especial legislativa?
Essas são questões que eu pretendo responder neste artigo.
1.2 TEORIAS DAS CRISES DO MEIO AMBIENTE
Segundo o professor Edgar Morin4, em sua obra Rumo ao
abismo? Vivemos em um tempo de incertezas e de crises de
instituições. Ele afirma que o fim do século XIX e começo do
século XX, os ideais iluministas foram retomados com força nas
quais o Progresso seria provocado pelo desenvolvimento da
razão, da ciência e da educação. Após a segunda guerra
mundial constatou-se que todas essas soluções continham
problemas em si e revelavam ambivalências positivas como
negativas.
A exploração econômica condenada à
lei da concorrência do neoliberalismo, que visa apenas o lucro,
traz consigo a morte da biosfera e, de novo, o fim da vida no
planeta.
A questão da água enquanto bem cada vez mais raro e
ameaçado pela crescente mercantilização, tem o potencial de
tornar-se fonte de novas explorações, conflitos ou de futuras
guerras. Por fim o crescimento exponencial da demografia
humana parece tornar-se o problema mais grave a ser
enfrentado pelos governos.
O autor John Gray, em sua obra Cachorros de Palha,
busca o que significa “ser humano”, e afirma que a tradição do
pensamento ocidental foi baseada em crenças arrogantes e
3
FACHIN, Zulmar. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo:
Método, 2008
4 Morin, Edgar, 2007- Rumo ao abismo? Ensaio sobre o destino da
humanidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.
14
Temas jurídicos atuais: Volume VI
equivocada sobre o lugar dos seres humanos no mundo.
Filosofias tanto liberais como marxistas pensam que é destino
dos homens dominar e conquistar a natureza, para isso abraçam
a ideia de que os humanos são superiores aos outros animais.
O autor argumenta que essa crença não passa de um
preconceito e de uma ilusão cristã e iluminista.
Ele cita em sua obra uma passagem pertinente de
James Lovelock:
Os humanos na terra comportam-se, de alguma maneira,
como um organismo patogênico ou como as células de um
tumor ou neoplasma. Crescemos em números e em
transtornos para Gaia a ponto de nossa presença ser
perceptivelmente inquietante (...) a espécie é agora tão
numerosa que constitui uma séria moléstia planetária. Gaia
está sofrendo de Primatemaia Disseminada, uma praga de
gente5.
Afirma ainda que a destruição do mundo natural é a
consequência do sucesso evolucionário de um primata
excepcionalmente predador. Que ao longo da história e préhistória, o avanço humano coincidiu com a devastação
ecológica.
Em suas palavras:
Uma população humana aproximando-se de oito bilhões só
pode ser mantida devastando a terra. Se habitats selvagens
passarem a ser usados para cultivo humano e habitação, se
as florestas tropicais puderem ser transformadas em desertos
verdes, se a engenharia genética possibilitar cada vez mais
colheitas abundantes a serem extraídos de solos cada vez
mais debilitados, então os humanos terão criado para si
mesmo uma nova era geológica, a Eremozóica, a Idade da
Solidão, na qual pouco restará sobre a terra além destes
mesmo e do meio ambiente protético que os mantem vivos.6
Nas palavras de Gray:
5
LOVELOCK, 1991 apud GRAY, Cachorros de Palha: reflexões sobre
humanos e outros animais. 5º ed.- Rio de Janiero: Record, 2007. Pg.
22.
6 Ib. Pg. 24.
O Estado democrático...
15
se a praga humana é realmente tão normal quanto parece,
então à curva descendente deve espelhar a curva de
crescimento da população. Isso significa que o grosso do
colapso não levará mais que cem anos, e, por volta do ano de
2150, a biosfera deverá ter voltado, com segurança, à sua
população de Homo sapiens pré-praga, algo entre meio e um
bilhão”.7
Neste sentido, pode-se esperar que a Primatemaia
disseminada seja curada por uma queda, em grande escala, no
número de humanos.
Por sua vez, o filósofo e psicanalista esloveno Slavoj
Zizek, em sua obra Vivendo no Fim dos Tempos8, afirma que o
capitalismo aproxima-se de um colapso terminal; e identifica os
quatro cavaleiros do apocalipse com a crise ecológica mundial,
desequilíbrios no sistema econômico (crises de abastecimento),
a revolução da biogenética e o crescimento da desigualdade
social.
O referido autor enumera quarto “picos” (evolução
acelerada) que se aproximam do limite do paradigma da
quantidade e terão de mudar para o da qualidade: crescimento
populacional, consumo de recursos, emissão de gás carbônico
e extinção em massa de espécies.
Zizek cita ainda Dipesh Chakrabarty9, que elabora as
consequências filosófico-históricas do aquecimento global:
Afirma-se que os homens não têm mais uma simples relação
com a natureza, mas afirma-se agora que os seres humanos são
uma força da natureza no sentido geológico.
Segundo o autor:
uma nova era geológica começou, batizada por alguns
cientistas de Antropoceno, (...) Aqui, o contra-argumento
marxista padrão é que a passagem do Pleistoceno para o
Antropoceno se deve inteiramente ao desenvolvimento
explosivo do capitalismo e seu impacto global.10
Um fato preocupante que pode provar a entrada na nova
era são os recentes terremotos que ocorreram no interior da
7
Ib. Pg. 28.
ZIZEK, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos- São Paulo: Boitempo, 2012
9 CHAKRABARTY, 2009 apud ZiZEK, 2012, pg. 222.
10 Ib pg. 222-3
8
16
Temas jurídicos atuais: Volume VI
China, em regiões que nunca experimentavam tais fenômenos.
E a causa mais provável para tais tremores seja a construção da
gigantesca hidrelétrica de Três Gargantas, que resultou em um
enorme lago artificial, e sua pressão sobre a crosta terrestre
influenciou o equilíbrio das fissuras subterrâneas tinham
ocorrido. Ou seja, a ação humana já pode influenciar até mesmo
terremotos.
Para Zizek:
Parece claro que as nações não deveriam adotar rumos
socioeconômicos e tecnológicos que desestabilizassem as
condições necessárias que permitem a existência de vida no
planeta. Infelizmente nos tornamos um agente geológico que
perturba as condições necessárias para nossa própria
existência.11
1.3 INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS FRENTE À CRISE
AMBIENTAL.
Conforme veremos a seguir, são nos momentos de crise
que descobrimos a força de nossas instituições democráticas, e
são inúmeros os exemplos em que elas facilmente desmoronam,
principalmente frente a desastres ecológicos, crises econômicas
ou revoltas sociais.
São inúmeros os casos em que, após desastres
ambientais, como terremotos, inundações ou falta de água, a
população em meio ao desespero, abandona seus valores
éticos, e como se abrisse um “Windows killer”, um estado
psicológico de luta pela sobrevivência, capaz de passar por cima
de qualquer valor moral, resulta em violência generalizada,
abusos de todas as formas, saques estupros e homicídios.
Nessas situações, a resposta do estado é decretar Estado de
Exceção militarizado e governar por medidas de emergência.
Veremos como a ordem pública se desintegra em
explosões violentas e saques após desastres naturais.
O filósofo Slavoj Zizek, em sua obra Violência 12, analisa
minuciosamente o caso do furacão Katrina que devastou o sul
dos Estados Unidos em agosto de 2005. Em suas palavras:
11
Ib pg. 223
ZIZEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. 1 ed. São Paulo:
Boitempo, 2014
12
O Estado democrático...
17
Durante alguns dias, Nova Orleans regrediu aparentemente
para condição de uma reserva natural de saque, chacina e
estupro. Tornou-se uma cidade de mortos e moribundos, uma
zona pós-apocalíptica por onde erravam aqueles a que o
filósofo Giorgio Agamben chama de Homini sacer- pessoas
excluídas da ordem civil. Infiltra em nossas vidas um medo de
que uma desintegração semelhante de todo o tecido social
possa acontecer a qualquer momento, devido a um acidente
natural ou tecnológico- um terremoto, uma ruptura do sistema
elétrico ou até mesmo o velho Bug do milênio. Reduza o nosso
mundo ao estado de selvageria primitiva. Esse sentimento da
fragilidade do nosso laço social é em si próprio um sintoma
social. Precisamente quando e onde é de se esperar um
impulso de solidariedade frente ao desastre, o que surge é o
medo de que o egoísmo mais implacável exploda como
explodiu em nova Orleans13.
Contudo a complexidade desse caso é analisada
profundamente pelo autor. Segundo ele, o que permitiu a onda
de violência foi à demora e omissão do governo norte americano
em tomar providencias e providenciar o resgate e socorro:
o efeito catastrófico imediato ao furacão- a inundação da
cidade- deveu-se em grande medida a falhas humanas: as
barragens de proteção não eram suficientes, e as autoridades
não estavam preparadas para responder às previsíveis
necessidades humanitárias que se seguiram. Mas o
verdadeiro e maior choque teve lugar depois do
acontecimento, enquanto efeito social da catástrofe natural. A
desintegração da ordem social chegou como uma espécie de
ação diferida, como se a catástrofe natural se repetisse como
catástrofe social.14
Por certo que a Luisiana é muitas vezes considerada
para os americanos a “república das bananas dos Estados
Unidos”, o terceiro mundo no território americano. A população
de Nova Orleans era 68% negra e a maioria pobre e
desfavorecida. Seria essa uma boa explicação para o atraso na
reação das autoridades.
13
14
Id pg. 82
Ib pg. 83
18
Temas jurídicos atuais: Volume VI
Contudo, esclarece o autor que investigações
posteriores revelaram que a maioria dos relatos de violência
simplesmente não aconteceu e era boatos criados pela grande
mídia e espalhadas como verdades, revelando o caráter
preconceituoso da divisão racial e classista dentro dos Estados
unidos.
Outro desastre natural mais recente demonstra como as
instituições democráticas perdem força frente à Emergência. Em
novembro de 2013 o Super tufão Hayan, considerado a
tempestade mais forte da história, passou pelas Filipinas e
deixou mais de 10 mil mortos. Os relatos dos sobreviventes
revelam a situação de caos em que se encontravam como
veremos:
De acordo com o Centro de Redução e Gestão de Riscos das
Filipinas, cerca de meio milhão de sobreviventes perderam
tudo durante o fim-de-semana: os familiares, as casas, o modo
de vida, a comunidade. Simplesmente não têm para onde ir os sobreviventes caminham pelos destroços como zombies,
descrevia a Reuters. "Parece um filme de terror", comparava
Jenny Chu, uma estudante de Medicina.15
Em Taboclan, o desespero tomou conta dos sobreviventes.
Foram relatados saques e pilhagens em mercearias,
supermercados e centros comerciais; assaltos a bancos e
roubos de máquinas multibanco; casos de violência em
hospitais, confrontos e agressões no aeroporto, que funciona
como uma plataforma de distribuição de ajuda. "À chegada dos
aviões, as pessoas começavam a empurrar-se, a bater-se, ou
para chegar aos alimentos ou para serem levadas para longe
dali", relataram as irmãs Tayag.16
As pessoas estão a enlouquecer, algumas de fome, outras de
dor por terem perdido toda a família", explicava à AFP um
professor de Tacloban, Andrew Pomeda, de 36 anos. "A
situação é desesperada, as pessoas estão a saquear os
supermercados em busca de leite, arroz. A tensão é palpável,
15
http://www.gazetadopovo.com.br/mundo/tufao-haiyan-pode-terdeixado-10-mil-mortos-nas-filipinas-32n8s36phm0nlwy1f6lowndce
visualizado em 11/06/2015.
16 http://www.publico.pt/mundo/jornal/as-pessoas-estao-a-enlouqueceralgumas-de-fome-outras-de-dor-27384345 visualizado em: 11/06/2015
O Estado democrático...
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e, se a situação se prolongar, na próxima semana vão andar a
matar-se uns aos outros com fome", antecipou.17
Em nossa pátria também encontramos vários casos de
saques, roubos e mortes após desastres ambientais:
Um dia após o rompimento de um dique na cidade de Campos
de Goytacazes, no norte do Rio de Janeiro, os moradores da
localidade de Três Vendas, na zona rural, insistem em ficar em
casa nesta sexta-feira (6). A área foi completamente alagada
depois que um trecho da rodovia BR-356, que serve como
barragem para conter as águas do rio Muriaé, se rompeu,
criando uma cratera de aproximadamente 20 metros. Cerca de
1.000 famílias moram na região.18
O diretor da associação de moradores de Três Vendas, André
Guedes, afirma que metade da população ainda está no local.
“Muitos moradores ainda estão aqui, o medo é de serem
roubados, gente que construiu isso tudo em uma vida corre o
risco de ser roubada. Permanecem em suas casas aqueles
que têm um pavimento acima”, conta o líder comunitário.19
“A reportagem do UOL não viu nenhuma patrulha policial
fazendo a segurança do local20”.
Em março de 2004, Santa Catarina levou um susto com a
aproximação do ciclone Catarina. Nos últimos dias, (novembro
de 2008) o estado sentiu na pele, novamente, uma amostra de
como imprevidência humana amplia o poder de destruição de
uma "catástrofe natural”. O aguaceiro que desabou por lá
arrasou encostas, transbordou rios e deixou um saldo,
segundo a Defesa Civil, de quase 80 mil desabrigados, uma
centena de mortes, 19 desaparecimentos e afetou a vida de
1,5 milhão de brasileiros.21
17
Idem.
http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/01/06/cominundacao-moradores-de-campos-rj-ficam-em-casa-para-evitarsaques-e-criticam-autoridades.htm visualizado em 11/06/2015
19 Idem.
20 Idem.
21 Idem.
18
20
Temas jurídicos atuais: Volume VI
1.4 CRISE HÍDRICA NO SISTEMA CANTAREIRA
O sistema Cantareira é o maior fornecedor de água da
região
metropolitana
de
São
Paulo,
atendendo
aproximadamente 20 milhões de habitantes. Contudo, desde
2013 os especialistas já alertavam para um possível colapso no
fornecimento de água em razão dos baixos níveis dos
reservatórios. “A falsa ideia de abundância hídrica no Brasil é um
dos fatores que alimenta o desperdício22”.
Podemos levantar algum dos fatores que levaram a esta
situação. Em primeiro lugar temos a grande concentração
populacional da região. A questão é agravada com o desperdício
na rede física, com vazamentos e falta de manutenção nas
tubulações. Estima-se que 30% da água tratada é perdida antes
de chegar as casas. Outro fator são os baixos índices de
saneamento básico. De acordo com o Instituto Trata Brasil 23,
apenas 53% do esgoto de São Paulo recebe tratamento
adequado.
A poluição que chega aos cursos d’água na região
metropolitana da capital paulista inviabiliza o reuso da água e
acirra a disputa da água pelos municípios. A estiagem histórica
na região Sudeste nos últimos dois anos é apenas o ápice de
um problema bem maior. Os caminhos para combater esse
problema seriam melhorar o saneamento básico e intensificar
as políticas de preservação ambiental, principalmente a
proteção das áreas produtoras de água e controle do
desmatamento.24
Enquanto a SABESP- empresa de capital misto que atua
em serviços de água e esgoto em 364 das 645 cidades paulistas,
tem o governo de SP como principal acionista - afirma que o nível
dos reservatórios está baixo devido à forte estiagem de chuva
nas cabeceiras das represas, sabemos que a omissão do
22
http://www.namu.com.br/?q=materias/crise-de-agua-no-sistemacantareira
23 INSTITUTO TRATA BRASIL. Saneamento no Brasil. 2014.
Disponível
em:
<http://www.tratabrasil.org.br/saneamento-nobrasil#SP>. Acesso em: 15 jun. 2015.
24
http://www.namu.com.br/?q=materias/crise-de-agua-no-sistemacantareira
O Estado democrático...
21
governo em falta de planejamento e má gestão dos recursos
hídricos são os principais fatores da crise.
A medida adotada pela SABESP para aliviar a crise é a
captação do volume morto das represas:
Chamado pela Sabesp de reserva técnica, o "volume morto" é
toda água que fica abaixo do nível das comportas e nunca
havia sido usado para atender a população. Foi preciso
instalar 3 km de tubulações e sete bombas flutuantes, orçadas
em R$ 80 milhões, para captar o volume morto nas represas
de Nazaré Paulista e Joanópolis. As obras concluídas em maio
acrescentaram 182,5 bilhões de litros de água ao total
disponível.25
Contudo estudos recentes apontam
contaminação da água retirada veste volume morto:
para
a
O promotor de Justiça e secretário executivo do Grupo de
Atuação Especial do Meio Ambiente (Gaema), do Ministério
Público do Estado de São Paulo, Ricardo Manuel Castro,
criticou a captação das reservas técnicas do Sistema
Cantareira durante sessão da CPI na Câmara Municipal, que
investiga contratos da Sabesp. Segundo ele, estudos feitos
pela Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental
(Cetesb), ligada à Secretaria do Meio Ambiente do Estado,
indicam que a qualidade da água traz riscos à saúde pública.26
O promotor de Justiça também rejeitou as afirmações da
Sabesp de que a extensão da crise hídrica era imprevisível.
Segundo ele, o Ministério Público, que ajuizou duas ações civis
públicas, entende que “não se trata de imprevisibilidade, mas
sim de absoluta falta de planejamento e má gestão dos
recursos hídricos do Estado”. “Estou expressando fatos
encontrados pelo Ministério Público em suas investigações”,
frisou, ao ser questionado por suas afirmações pelo vereador
Mário Covas Neto (PSDB). “Há pelo menos 12 anos, a Sabesp
e o governo do Estado praticamente nada fizeram em termos
de obras para reduzir a dependência da região metropolitana
25
http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/07/entenda-crise-nocantareira.html Acesso em 15 jun. 2015.
26
http://planetasustentavel.abril.com.br/blog/planeta-agua/estudosindicam-contaminacao-do-volume-morto-emsp/?utm_source=redesabril_psustentavel&utm_medium=plus&utm_ca
mpaign=redesabril_psustentavel_planetaagua Acesso em 15 jun. 2015.
22
Temas jurídicos atuais: Volume VI
do Sistema Cantareira, e hoje anunciam pacote de obras
dispensando as licitações e dispensando, muitas vezes, o
estudo ambiental necessário”, acrescentou Castro.27
Em 22 de setembro de 2014 uma manifestação contra a
falta de água no centro de Itu (102 km de São Paulo), que estava
há sete meses em racionamento, terminou em tumulto e
violência:
Segundo estimativa da Câmara, cerca de 2.000 pessoas
participaram do ato. Um comitê eleitoral de dois políticos da
região também foi depredado e os lojistas do comércio da
região central fecharam as portas temendo mais confusão.28
"A crise hídrica de São Paulo tem um potencial
socialmente explosivo", diz Ruy Braga, sociólogo da
Universidade de São Paulo (USP), que está entre os que
enxergam potencial por si só na crise hídrica29.
Segundo Braga, a questão da água é representativa de
problemas estruturais não resolvidos relacionados ao processo
de desenvolvimento do país, em que pesam as questões do
modo de viver na cidade, como a luta por moradia, o acesso a
terra e a especulação imobiliária. Para ele, as ainda pouco
numerosas e pouco frequentes manifestações em torno da água
vão ganhar força porque "é uma crise abrangente o suficiente
para detonar o estado de indignação social que tem se
acumulado nos últimos anos". Ele acrescenta que a crise da
água atravessa todo o Estado de São Paulo, parte do Rio de
Janeiro e de Minas Gerais e abarca todas as classes sociais. “A
inquietação se manifesta mais agudamente naqueles setores
que estão vivendo o rodízio de água. Mas essa inquietação
tende a se alastrar, na medida que a crise se aprofunda.”30
Continuando:
27
Idem.
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/09/1520497-camara-deitu-sp-e-apedrejada-em-protesto-por-causa-de-falta-de-agua.shtml
acesso em 15 jun. 2015.
29 http://www.ihu.unisinos.br/noticias/537613-protestos-contra-falta-deagua-podem-se-ampliar- acesso em 15 jun. 2015.
30 Idem.
28
O Estado democrático...
23
Para Braga, o problema do "desapossamento" aproxima a crise
da água com o problema do transporte. "Não podemos esquecer
que a Sabesp foi privatizada. Ela remunera seus acionistas com
milhões de reais todo ano, tem uma gestão financeirizada,
orientada fundamentalmente ao interesse dos seus acionistas e
não em função da maior parte da população, que, nesse sentido,
foi espoliada do recurso natural mais elementar, que é a água.31
Em todas as situações retratadas, com gente demais (São
Paulo), água demais (Rondônia) ou água de menos (Nordeste),
percebe-se que o Brasil ainda não despertou para a necessidade
de adaptar-se a eventos extremos-sejam ou não efeito de
transformações globais– que afetam a mais básica necessidade
humana: água. Para beber, plantar, limpar e pescar.32
Os casos acima expostos revelam a fragilidade das
instituições democráticas frente a desastres naturais e revelam
o surgimento de um novo comportamento humano, cruel e
violento, que frente ao desespero e ao abandono, “luta” para
sobreviver.
Ou seja, vimos o potencial da ordem pública se
desintegrar em explosões violentas e saques e vandalismo após
desastres naturais. A partir de agora será analisado o
comportamento psicossocial desse ser “largado a própria sorte”.
1.5 A PERSONALIDADE TRAUMATIZADA: O HOMEM PÓSTRAUMA
Neste trabalho estamos interessados em investigar o
homem “pós-trauma”, enquanto categoria social e jurídica e
apresentar o que seria uma possível personalidade que explique
o comportamento violento do ser que abandona o convívio
civilizado padrão, e passa a lutar pela sobrevivência, ignorando
padrões éticos e morais, frente à incapacidade das instituições
democráticas e do direito fazer incidir suas normas nos
momentos de crises.
31
32
Idem.
http://arte.folha.uol.com.br/ambiente/2014/09/15/crise-da-agua/
acesso em 15 jun. 2015.
24
Temas jurídicos atuais: Volume VI
Neste sentido o Filosofo e psicanalista Slavoj Zizek, em
sua obra Vivendo no fim dos tempos33, analisa como hoje em
dia, as vítimas de traumas sociopolíticos trazem o mesmo perfil
de vítimas de catástrofes naturais ou acidentes graves.
Traz que, para Freud e Lacan, trauma: “é a intromissão
violenta de algo totalmente inesperado, algo para qual o sujeito
não estava preparado, algo que o sujeito não consegue
integrar34”. E que o trauma externo é “suprassumido”,
interiorizado, e seu impacto se deve ao fato do real ser
despertado por intermédio o trauma.
Importa para o avanço da nossa pesquisa saber que:
Hoje, contudo, nossa própria realidade sociopolítica impõe
versões múltiplas das intromissões externas, traumas que são
apenas interrupções brutais e sem sentido que destroem a
estrutura simbólica da identidade do sujeito. Há em primeiro
lugar a violência física brutal: ataques terroristas como os do
11 de setembro, o bombardeio de “choque e pavor” dos
Estados Unidos contra o Iraque, a violência das ruas, os
estupros etc., as também as catástrofes naturais, os
terremotos, os furacões etc. Há, em segundo lugar, a
destruição “irracional” (sem sentido) da base material de nossa
realidade interior (tumores cerebrais, mal de Alzheimer, lesões
no cérebro etc.), que podem mudar totalmente e até destruir a
personalidade do doente. Há, por fim, os efeitos destrutivos da
violência sociosimbólica, como a exclusão social35.
Continuando, Zizek traz que o capitalismo global gera
uma nova doença traumática com os mesmos efeitos de uma
lesão cerebral:
Se para nós, no ocidente desenvolvido, o trauma é vivido em
geral como uma intromissão momentânea, que perturba
violentamente nossa vida cotidiana (uma ataque terrorista, um
assalto ou um estupro, terremotos ou tornados...), o que dizer
daqueles para quem o trauma é um estado de coisas
permanente, um modo de viver, como para quem vive em
países destruídos pela guerra, como o Sudão e o Congo? (...)
o que resta não é o espectro do trauma, mas o próprio trauma.
33
ZIZEK, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos- São Paulo: Boitempo,
2012
34 Id pg. 197
35 Ib pg. 200
O Estado democrático...
25
É quase um oximoro denomina-los sujeitos “pós-traumáticos”,
já que o que torna a sua situação tão traumática é a própria
persistência do trauma36.
Desta forma ele afirma que hoje em dia as vítimas de
traumas sociopolíticos trazem o mesmo perfil das vítimas de
catástrofes naturais ou acidentes graves. Os choques externos
destroem a psique da vítima, resultando no surgimento de um
novo sujeito que “sobrevive à própria morte”. Suas
características são: “ausência de envolvimento emocional,
profunda indiferença e desapego; trata-se de um sujeito que não
está mais “no mundo” no sentido heideggeriano 37”.
O autor se questiona se: “o século XXI não será o século
do sujeito pós-traumático desengajado, cuja primeira imagem
emblemática, a do muselmann dos campos de concentração,
multiplica-se na forma de refugiados, vítimas de terrorismo,
sobreviventes de catástrofes naturais ou da violência familiar?”38
A relação entre o homem pós-trauma (homo Sacer) e as
crises ecológicas permitem a decretação do Estado de Exceção,
a decretação da “Emergência” pelo poder executivo, e os riscos
que esta prática política pode causar as instituições
democráticas.
Giorgio Agamben39 demonstra como grupos que estão
no poder podem valer-se de momentos de crises e instabilidades
institucionais para legitimar, de forma constitucional, sua
permanência no poder por meio da adoção de “medidas
excepcionais” com os quais possa restringir direitos e garantias
fundamentais dos cidadãos chegando ao extremo da eliminação
física de adversários políticos ou categorias inteiras de cidadãos.
Conforme foi demonstrado, verificamos que não é rara a
hipótese das instituições democráticas- constituição- falharem
após desastres naturais como o Furacão Katrina que assolou
Nova Orleans em 2008, ou a crise hídrica do sistema Cantareira
no solo pátrio no início de 2015. Que o comportamento comum
que pode aparecer nessas situações de caos e desespero é a
36
Ib pg. 200-1
Ib pg. 201
38 Id pg. 202
39 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua I,
trd. Henrique Burigo, 2 ed., Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010 (Homo
Sacer – Il Potere Sovrano e la nuda vita).
37
26
Temas jurídicos atuais: Volume VI
revolta da população frente à ineficiência do Estado em lhe
garantir seus direitos fundamentais, e que este pode aproveitarse da situação de “Emergência” para decretar a Exceção e
governar com amplos poderes, inclusive colocando os militares
contra a população desesperada, para manter a ordem
estabelecida- qualquer ordem.
Vimos ainda à despreocupação dos governos em âmbito
global com a proteção do meio ambiente e as consequências
alarmantes que podem ocorrer em todo o globo como o
aquecimento global que ameaça a vida humana como um todo.
Veremos agora as principais causas e efeitos da crise
hídrica segundo o pensamento de Zulmar Fachin em sua obra:
Acesso à Água Potável- Direito Fundamental de Sexta
Dimensão40.
1.6
ÁGUA
POTÁVEL
CONSTITUCIONAL.
ENQUANTO
DIREITO
Conforme o professor Fachin: “Apesar de parecer
abundante, esse recurso é escasso. A água doce não se acha
distribuída uniformemente no planeta. (...) Se, em termos
globais, a água doce é suficiente para todos, sua distribuição nas
diversas áreas do mundo não segue um padrão homogêneo 41”.
Fachin traz o ensinamento de Maurício Waldman, em
sua obra Natureza e sociedade como espaço de cidadania: “No
início do século XXI, a imagem das grandes cidades está
marcada por favelas, poluição do ar e das águas, enchentes,
desmoronamentos, crianças abandonadas e violência (...). A
depredação ambiental é inseparável do caos urbano nacional. A
ausência de uma política habitacional tem como resposta a
ocupação de áreas ambientais férteis, caso da beira dos
córregos, encostas íngremes, várzeas inundáveis e áreas de
proteção dos mananciais, que constituem a única alternativa
para os excluídos do mercado residencial formal42”.
40
FACHIN, Zulmar. Acesso à água potável: direito fundamental de
sexta dimensão/ Zulmar Fachin e Deise Marcelino da Silva. Campinas,
SP: Millenium Editora, 2010.
41 Ib pg. 18.
42 Ib Pg. 29
O Estado democrático...
27
Logo, temos que a poluição das águas está longe de ser
um fator exclusivamente ambiental, por envolver questões
econômicas, sociais e políticas.
O professor José Afonso da Silva entende que poluição
da água é: “qualquer alteração de suas propriedades físicas,
químicas ou biológicas que possam importar prejuízo à saúde, à
segurança e ao bem estar das populações, causarem dano à
flora e à fauna ou comprometer seu uso para fins sociais e
econômicos43”.
Veremos agora como o professor Zulmar Fachin
enfrenta a questão da constitucionalização do direito à água
potável.
A proteção dos Direitos Fundamentais acompanha o
curso da história e se acresce das novas necessidades
humanas. No contexto atual, novos desafios se apresentam a
sociedade- crise ambiental- e exigem da ciência jurídica novos
instrumentos para garantir o equilíbrio de forças sociais.
De um lado temos o poder econômico, sempre avido por
progresso, que transforma a natureza de forma bruta, nem
sempre para melhor. De outro lado a massa social que sofre com
os desastres ambientais e as doenças, porém não é isenta de
culpa por jogar lixo e contaminar a natureza. Por fim aparece a
figura do Estado, que trabalha de forma lenta e burocrática no
sentido de proteger os bens naturais, desenvolver obras
públicas e infraestrutura de prevenção de desastres e
principalmente por negar acesso à informação e educação da
população, sobre medidas protetivas e preventivas.
Ante o exposto, o professor Zulmar Fachin entende por
necessário a constitucionalização do direito à água potável, para
que esta norma fundamental vincule as três esferas de governo,
incidindo deveres e mudança de atitudes tanto para o poder
judiciário, executivo e legislativo. Logo se vê a necessidade de
uma mudança de atitude, tanto da sociedade como do Estado.
Na referida obra de Zulmar Fachin encontramos que:
Afirma-se agora, a existência de uma sexta dimensão de
direitos fundamentais. A água potável, componente do meio
ambiente ecologicamente equilibrado, merece ser destacada e
43
SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 6º ed. São
Paulo: Malheiros, 2007.
28
Temas jurídicos atuais: Volume VI
alçada a um plano que justifique o nascimento de uma nova
dimensão de direitos fundamentais44.
Neste sentido, água potável deve ser aquela adequada
ao consumo humano, que não cause doenças, enquanto o
tratamento deve reduzir os agentes contaminantes para que não
causem riscos à saúde pública.
Este jurista entende a necessidade da mudança de
atitude na postura do Estado nas três esferas de poder. O
judiciário deve decidir de modo a concretizar água como direito
fundamental. O executivo deve criar políticas públicas para
efetivar o cumprimento das decisões, enquanto o legislativo tem
o dever de promulgar leis que priorizem a proteção e promoção
desse novo direito, e limitem o poder do estado.
Fundamental para a efetivação desse direito é a
conscientização da população, por meio da educação ambiental,
do dever de proteger esse patrimônio coletivo.
Neste sentido ressalta a necessidade de sua
constitucionalização:
Afirmou-se que o acesso à água potável é um direito
fundamental. Nessa condição, ele necessita receber proteção
jurídica expressa em benefício e cada pessoa. Tal proteção
jurídica deve estar primeiramente na constituição federal,
porquanto este é o local específico para abranger tais
direitos45.
Gomes Canotilho ensina que a missão do direto
constitucional é transformar a sociedade e projetá-la aos
objetivos da modernidade, expressando a liberdade, igualdade
e fraternidade elevando-a a uma “utopia transformadora” pela
constituição46.
Segundo Luís Roberto Barroso: “O novo século se inicia
fundado na percepção de que o direito é um sistema aberto de
valores. A Constituição, por sua vez, é um conjunto de princípios
44
Ib Pg. 74
Ib pg. 75
46 CANOTILHO. J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina,
1991.
45
O Estado democrático...
29
e regras destinados a realiza-los, a despeito de se reconhecer
nos valores uma dimensão suprapositiva47”.
1.7 CONSIDESAÇÕES FINAIS
Frente à crise ambiental, à escassez de água potável,
seu desperdício, enfim, e a fim de evitar maiores tragédias
sociais após desastres ambientais, como surgimento do homem
“pós-trauma” e o “Homo Sacer”, entendemos a necessidade de
positivar a água potável enquanto direito fundamental a
existência humana na constituição federal, conforme o
pensamento do professor Zulmar Fachin.
Em sua obra ele esclarece que os direitos fundamentais
são historicamente construídos; que hoje se impõem a
necessidade de proteção da água potável para evitar catástrofes
futuras- como as recentemente vistas no sistema Cantareira em
São Paulo; Sustenta a existência de uma sexta dimensão dos
direitos fundamentais e a necessidade da positivação deste
direito na constituição por meio de uma Emenda Constitucional,
como já ocorreu em outros países.
Tal dispositivo teria o seguinte texto: “Todos têm direito
de acesso à água potável, devendo o Estado criar condições
necessárias à sua efetiva concretização”.
A teoria neoconstitucionalista supera o fracasso político
do positivismo científico ao se comprometer com a positivação
de valores humanos, reforçando a importância da reflexão
filosófica, ética e democrática como o direito à vida e à dignidade
humana.
Neste sentido o estado e a sociedade têm o dever de
preservar os recursos hídricos para a geração presente e futura.
A juridicidade deste direito fica mais forte dentro da constituição,
vinculando o poder estatal e todos os indivíduos.
1.8 REFERÊNCIAS
AGAMBEM, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo,
2004.
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida
Nua I, trd. Henrique Burigo, 2 ed., Belo Horizonte: Editora
47
Idem.
30
Temas jurídicos atuais: Volume VI
UFMG, 2010 (Homo Sacer – Il Potere Sovrano e la nuda
vita).
ARENDT, Hanah. Origens do totalitarismo. 1951.
ARISTÓTELES. A Política. Tradução de Nestor Silveira. 1 ed..
São Paulo: Folha de S. Paulo, 2010. (Coleção Folha: livros
que mudaram o mundo, 11). 208 p
BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos
do novo Direito Constitucional brasileiro. Tema da palestra
proferida na EMERJ/Conselho de Vitaliciamento do TJ/RJ
por ocasião do Seminário “Direito Constitucional”,
realizado em 24.06.01.
BENJAMIN, Walter. Teses Sobre o Conceito de História. P 697.
1942.
CANOTILHO. J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra:
Almedina, 1991.
FACHIN, Zulmar. Acesso à água potável: direito fundamental
de sexta dimensão/ Zulmar Fachin e Deise Marcelino da
Silva. Campinas, SP: Millenium Editora, 2010.
FACHIN, Zulmar. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. São
Paulo: Método, 2008.
GONÇALVES, Diogo Costa. PESSOA E DIREITOS DE
PERSONALIDADE? Fundamentação Ontológica da
Tutela. Coimbra. Almedina. 2008. P.21.
GRAY, John, Cachorros de Palha: reflexões sobre humanos e
outros animais. 5º ed.- Rio de Janiero: Record, 2007. Pg.
22.
MALTHUS, Thomas, Na Essay on the Principle of Population,
ed. Anthony Flew, Harmondsworth: Penguin, 1970.
MORIN, Edgar, 2007- Rumo ao abismo? Ensaio sobre o
destino da humanidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2011.
SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 6º ed.
São Paulo: Malheiros, 2007.
ZENNI, Alessandro Severino Valler. O Direito na Perspectiva
da Dignidade Humana. Transdisciplinariedade e
Contemporaneidade. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor,
2008.
ZIZEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. 1 ed. São
Paulo: Boitempo, 2014.
ZIZEK, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos- São Paulo:
Boitempo, 2012.
O Estado democrático...
31
http://www.gazetadopovo.com.br/mundo/tufao-haiyan-pode-terdeixado-10-mil-mortos-nas-filipinas32n8s36phm0nlwy1f6lowndce visualizado em 11/06/2015.
http://www.publico.pt/mundo/jornal/as-pessoas-estao-aenlouquecer-algumas-de-fome-outras-de-dor-27384345
visualizado em: 11/06/2015
http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimasnoticias/2012/01/06/com-inundacao-moradores-decampos-rj-ficam-em-casa-para-evitar-saques-e-criticamautoridades.htm visualizado em 11/06/2015
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http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/07/entenda-criseno-cantareira.html Acesso em 15 jun. 2015.
http://planetasustentavel.abril.com.br/blog/planetaagua/estudos-indicam-contaminacao-do-volume-mortoemsp/?utm_source=redesabril_psustentavel&utm_medium=pl
us&utm_campaign=redesabril_psustentavel_planetaagua
Acesso em 15 jun. 2015.
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/09/1520497camara-de-itu-sp-e-apedrejada-em-protesto-por-causa-defalta-de-agua.shtml acesso em 15 jun. 2015.
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http://arte.folha.uol.com.br/ambiente/2014/09/15/crise-da-agua/
acesso em 15 jun. 2015.
= II =
O DIREITO À PROPRIEDADE DO INVENTOR E A
INTERVENÇÃO DO ESTADO NA SUA PROPRIEDADE
INDUSTRIAL
Edmila Adriana Denig*
Andryelle Vanessa Camilo Pomin**
2.1 INTRODUÇÃO
A Propriedade Industrial é o título de concessão do
Estado para exploração exclusiva de marcas, de patentes, de
desenhos industriais, e de outros bens. Ela está tutelada no
ordenamento jurídico pátrio e tem a finalidade de proteger o
interesse do inventor e de fomentar o desenvolvimento
econômico e tecnológico do país.
Assim como outras categorias de propriedade, a
propriedade industrial está sujeita ao cumprimento do princípio
da função social.
O respeito incondicionado a este princípio pode ferir o
direito de seu criador, violando alguns de seus direitos
considerados personalíssimos, já que a propriedade industrial é
fruto do seu intelecto e, muitas vezes, resultado de grande
esforço e investimento.
*
Mestranda em Propriedade Industrial e Inovação no Instituto Nacional
da Propriedade Industrial. Possui graduação em Direito pelo Centro de
Ensino Superior de Maringá (2014) e graduação em Ciências
Econômicas pela Universidade Estadual de Maringá (2009). Atualmente
é advogada - Atlas-PI Propriedade Intelectual Ltda. Tem experiência na
área de Direito, com ênfase em Propriedade Industrial, atuando
principalmente no seguinte tema: marca, registro, investimento.
** É graduada em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (2005),
especialista "lato sensu" em Direito Público pela Universidade Potiguar
(2008), e mestre em Ciências Jurídicas pelo Centro Universitário
Cesumar (UniCesumar). Professora dos cursos de graduação em
Direito da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e do UniCesumar.
Coordenadora da Extensão do Juizado Especial Cível do UniCesumar.
Pesquisadora pelo CNPQ em Direitos das Minorias, novos Direitos e
Direitos da Personalidade. Advogada militante.
O direito à propriedade do inventor...
33
O presente trabalho visa analisar este conflito de
interesses entre o particular, daquele que se dedicou a criação
do invento, e por direito detém a propriedade do mesmo, em face
do interesse coletivo, especialmente daqueles que necessitam
se utilizar deste invento, e não podem se submeter às condições
de seu inventor.
Tratará, também, da imposição do Estado sobre a
exploração de patentes, no que diz respeito ao cumprimento de
sua função social. A partir da revisão doutrinária relacionada ao
assunto, da legislação pertinente e de demais documentos
eletrônicos, pretende-se determinar as consequências da
interferência
do
Estado
na
propriedade
industrial,
especialmente, quando o mesmo impõe uma sanção pelo não
cumprimento da sua função social, já que o bem em questão
trata-se de fruto intelectual. E ainda, se essa interferência é
legítima, quando pautada pela defesa do interesse coletivo.
2.2 DO CONCEITO E DISCIPLINA
PROPRIEDADE INDUSTRIAL
JURÍDICA
DA
A criação de soluções para problemas do dia a dia, e a
invenção de novos objetos para facilitar a vida humana, estão
inteiramente ligados ao desenvolvimento da sociedade. Cada
descoberta nova, desde a pré-história até a atualidade, foram
ampliando a capacidade do homem. Tais descobertas e
invenções estão presentes em todas as áreas necessárias para
a sobrevivência humana, como a medicina, a química, a
mecânica a elétrica e outras.
O advento da industrialização, e o consequente
acirramento da concorrência entre as nações, intensificou a
necessidade de criação de um meio para se proteger as
invenções, o que fez surgir o sistema de Propriedade Intelectual.
A propriedade intelectual é o meio pelo qual as ideias
criativas humanas são protegidas, tornando-se então uma
propriedade daquele que se esforçou intelectualmente para
produzi-la, nos campos industrial, científico, literário e artístico.
Como conceituou Robert M. Sherwood:
A propriedade intelectual é um conjunto de duas coisas:
primeiramente são idéias, invenções e expressão criativa, que
são essencialmente resultado da atividade privada. Em
34
Temas jurídicos atuais: Volume VI
segundo lugar, há o desejo do público de fornecer o status de
propriedade a essas invenções e expressões. Em outras
palavras, a invenção e a expressão criativa, mais a proteção,
constituem a propriedade intelectual.1
Essas atividades intelectuais são também chamadas de
ativos intangíveis ou bens incorpóreos, que por definição, são os
bens que não possuem existência física e são baseados em
conhecimento.
A Lei da Propriedade Industrial nº 9.279 de 1996, em seu
art. 5º, considera a propriedade industrial como bens móveis
para os efeitos legais2.
A propriedade intelectual é, usualmente, dividida em
direito autoral e propriedade industrial. Esses dois segmentos,
apesar de serem similares, recebem tratamento jurídico distinto,
tanto quanto a proteção, bem como quanto aos direitos pessoais
e patrimoniais deles decorrentes.
Tal é a relevância do tema, que em convenções
internacionais já foi objeto de discussão em diversos tratados.
Um dos tratados internacionais mais importantes sobre a matéria
– A Convenção da União de Paris (CUP) 3, definiu a propriedade
industrial como o conjunto de direitos que compreende as
patentes de invenção4, os modelos de utilidade5, os desenhos
ou modelos industriais6, as marcas de fábrica ou de comércio,
1
SHERWOOD, Robert M. Propriedade Intelectual e Desenvolvimento
Econômico; tradução de Heloísa de Arruda Villela. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 1992, p 22.
2 BRASIL. Lei nº 9.279 de 14 de maio de 1996. 17 ed. São Paulo:
Saraiva 2014.
3
INPI
2013,
disponível
em:
http://www.inpi.gov.br/images/stories/CUP.pdf
4 Patente de invenção é o invento que cumpre os requisitos legais de
novidade, atividade inventiva e aplicação industrial (artigo 8º da Lei nº
9.279 de 1996).
5 Modelo de Utilidade é o objeto de uso prático, ou parte deste,
suscetível de aplicação industrial, que apresente nova forma ou
disposição, envolvendo ato inventivo, que resulte em melhoria funcional
no seu uso ou em sua fabricação (artigo 9º da Lei nº 9.279 de 1996).
6 Desenho Industriai é a forma plástica ornamental de um objeto ou o
conjunto ornamental de linhas e cores que possa ser aplicado a um
produto, proporcionando resultado visual novo e original na sua
configuração externa e que possa servir de tipo de fabricação industrial
O direito à propriedade do inventor...
35
as marcas de serviço7, o nome comercial8, as indicações de
procedência9 ou denominações de origem10 e a repressão da
concorrência desleal11. Note-se contudo, que dentre todos estes
apenas a patente será objeto de análise neste trabalho.
No Brasil, o órgão responsável pelo andamento dos
processos e concessão das propriedades industriais é o Instituto
Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Trata-se de uma
autarquia vinculada ao Ministério de Desenvolvimento, Indústria
e Comércio Exterior, e é órgão responsável na esfera
(artigo 95 da Lei nº 9.279 de 1996). A expressão modelo industrial era
a terminologia utilizada na lei anterior pertinente à matéria: Código da
Propriedade Industrial, Lei No 5.772, de 21 de Dezembro de 1971,
termo não mais utilizado atualmente no ordenamento pátrio.
7
Marcas são os sinais distintivos visualmente perceptíveis, não
compreendidos nas proibições legais (artigo 122 da Lei nº 9.279 de
1996. O Código da Propriedade Industrial, Lei No 5.772, de 21 de
Dezembro de 1971 fazia a divisão entre marca de fábrica e comércio e
marca de serviço, tal divisão terminológica não foi adotada da nova lei
da Propriedade Industrial, que a apenas adota a divisão entre classes
de comércio e classes de serviço. Por outro lado, a nova lei (artigo 123
da Lei nº 9.279 de 1996 faz a distinção de marca de produto e serviço
(aquela usada para distinguir produto ou serviço de outro idêntico,
semelhante ou afim, de origem diversa), marca coletiva (aquela usada
para identificar produtos ou serviços provindos de membros de uma
determinada entidade) e marca de certificação (aquela usada para
atestar a conformidade de um produto ou serviço com determinadas
normas ou especificações técnicas, notadamente quanto à qualidade,
natureza, material utilizado e metodologia empregada).
8 Considera-se nome empresarial a firma ou a denominação adotada,
para o exercício de empresa (artigo 1.155, Código Civil de 2002).
9 Considera-se indicação de procedência o nome geográfico de país,
cidade, região ou localidade de seu território, que se tenha tornado
conhecido como centro de extração, produção ou fabricação de
determinado produto ou de prestação de determinado serviço (artigo
177 da Lei nº 9.279 de 1996).
10 Considera-se denominação de origem o nome geográfico de país,
cidade, região ou localidade de seu território, que designe produto ou
serviço cujas qualidades ou características se devam exclusiva ou
essencialmente ao meio geográfico, incluídos fatores naturais e
humanos (artigo 178 da Lei nº 9.279 de 1996).
11 Constitui ato de concorrência desleal todo ato de concorrência
contrário às práticas honestas em matéria industrial ou comercial (Art.
10 bis (2ª p. da Convenção da União de Paris).
36
Temas jurídicos atuais: Volume VI
administrativa e ainda, consultado pela esfera jurídica em caso
de conflitos12.
Segundo dados disponíveis no site do INPI, só no ano
de 2013, foram realizados 33.989 pedidos de patentes, número
que reforça a relevância deste estudo.
A lei brasileira que regula a matéria de propriedade
industrial é a Lei nº 9.279 de 1996 – Lei da Propriedade
Industrial, que substitui a Lei nº 5.772 de 1971 denominada de
Código da Propriedade Industrial, substituição esta que surgiu
da necessidade do Brasil em se adequar às normas
internacionais de proteção industrial, após a Rodada Uruguai do
Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, em inglês, General
Agreement on Tariffs and Trade (GATT)13, que se iniciou em
1986.
Após várias discussões e negociações, no ano de 1994
esse acordo deu origem ao Acordo TRIPS – Acordo Sobre
Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio14.
Este buscava a unificação da propriedade intelectual entre os
países desenvolvidos e os emergentes, e representava um
pressão internacional para modernização e adequação da
legislação brasileira, já que a globalização e o avanço
tecnológico aumentaram a circulação de mercadorias e
informações, oportunizando a pirataria.
Segundo Haroldo Romanzini Júnior o Brasil resistiu em
tratar sobre propriedade intelectual:
Os países em desenvolvimento, com destaque para o Brasil e
para a Índia, reagiram com vistas a tentar reduzir a
interferência do GATT na dinâmica doméstica e bloquear a
12
O INPI pode ser consultado, por exemplo, pelo juízo de onde tramita
um processo judicial para confirmar a validade ou andamento do
processo do registro ou patente. É ainda obrigatória sua participação
como réu em processos de nulidade ou adjudicação de um determinado
registro ou patente.
13 GATT passou por diferentes rodadas de negociação, a Rodada do
Uruguai, que deu ênfase aos assuntos pertinentes a países em
desenvolvimento. Dentre outros resultdados o final da Rodada Uruguai
criou a Organização Mundial do Comércio e deu início às negociações
do primeiro relevante acordo internacional sobre propriedade industrial.
14 INPI 2013, disponível em: http://www.inpi.gov.br/images/stories/27trips-portugues1.pdf
O direito à propriedade do inventor...
37
incorporação de novos temas na agenda, em especial, serviço,
propriedade intelectual e investimentos. 15
Entende-se que tal resistência deve-se justamente ao
fato da incorporação de novas categorias de patentes, o que
acarretaria em uma edição de lei totalmente nova e na
necessidade de adequação do corpo técnico do INPI, já que até
este momento não existia na legislação brasileira, patentes de
fármacos, de químicas e de alimentos, mas, sobretudo, pelo
aumento dos custos de produtos que seriam novos objetos de
patente no Brasil.
Neste sentido:
Os países de origem das grandes empresas, como maciços
investimentos em pesquisa, ciência e tecnologia, querem,
evidentemente, que as patentes tenham a maior proteção
possível, porque isso é benéfico para eles. Os países que
produzem poucos produtos patenteados são, em geral,
consumidores, como o Brasil, e querem, ao contrário, que as
patentes, se existirem, tenham a maior flexibilidade possível.16
Foi também pelo fato do Brasil aderir ao acordo TRIPS
que surgiu a necessidade de aprimorar as regras para a licença
compulsória para as patentes no ordenamento pátrio. Pois, ao
se introduzir os medicamentos como produtos passíveis de
exploração exclusiva, problemas como necessidade pública,
calamidades, epidemias e tudo que estivesse relacionado com
questões de saúde, poderia sofrer sérios problemas se a
possível solução fosse um medicamento que estivesse no
domínio de um único titular.
O decreto que prevê a licença compulsória será
apresentado no item 3 deste trabalho, destinado a tratar da
função social da propriedade industrial.
15
ROMANZINI JÚNIOR, Haroldo, O Brasil e as Negociações no
Sistema GATT/OMC: Uma análise da Rodada Uruguai e da Rodada
Doha, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012, p. 26 e 27.
16 INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS. Acordo TRIPS:
acordo sobre aspectos dos direitos de propriedade Intelectual. Brasília:
INESC, 2003, p. 21.
38
Temas jurídicos atuais: Volume VI
Antes do acordo TRIPS, a Constituição Federal de 1988
em seu art. 5º, inc. XXIX, já previa a proteção dos direitos à
propriedade industrial como garantia fundamental:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,
nos termos seguintes:
XXIX - a lei assegurará aos autores de inventos industriais
privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção
às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes
de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o
interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico
do País;
O inc. XXIX destaca a importância do interesse social e
do desenvolvimento tecnológico e econômico do país que
também serão abordados no item 3 deste trabalho.
2.2.1 Invenções
As criações humanas são frutos da adaptação do
homem à própria vida, uma forma de sobreviver e evoluir. Neste
sentido
O poder da inteligência do homem e a atividade da sua
imaginação criadora manifestam-se no domínio das artes e
das ciências, como no campo da técnica e das industrias, em
obras de vários gêneros, que encontram proteção na lei e
constituem origem de variadas relações jurídicas.17
Uma criação intelectual, portanto, pode encontrar
proteção jurídica em diferentes textos legais, isso porque, são
classificados em direitos imateriais distintos, com objetivos
também distintos.
A invenção, por sua vez, está relacionada como uma
nova forma de tecnologia, no sentido de criar novos objetos que
visam solucionar problemas de ordem prática. Segundo José
Henrique Pirangeli:
17
CERQUEIRA, João da Gama. Tratado de propriedade industrial. 2ª
ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, v. 1, t.1, p. 33.
O direito à propriedade do inventor...
39
[...] criações se distinguem da invenção pelos fins que
almejam, pois, enquanto as invenções se dirigem para a
satisfação de exigências e necessidades de ordem prática ou
técnica, as criações artísticas objetivam uma satisfação de
ordem espiritual [...]. Seguindo essa ordem de ideias, não se
pode incluir no âmbito de abrangência da lei as concepções
meramente teóricas ou abstratas, que não podem oferecer
qualquer conteúdo prático [...].18
Neste sentido, denota-se que a invenção se distingue da
criação, pela finalidade a que se destina, sendo que a invenção
está voltada a atividade industrial. Outra distinção que deve ser
observada é a diferença da invenção em relação as descobertas
e concepções abstratas, porque aquela não resulta, em si, da
criação do homem, não podendo ser considerada invenção ou
modelo”19. Descobrir algo não requer atividade inventiva,
portanto, não pode ser considerada uma invenção. Já a
concepção abstrata, por sua vez, de acordo com a definição
dada pelo INPI é o processamento que não manipula
diretamente forças da natureza ou proporciona a transformação
da matéria, tampouco representa dados físicos e que
proporcionem efeitos técnicos tais como métodos que otimizam
recursos de hardware ou que confiram maior confiabilidade e
segurança20.
Logo, uma invenção, requer uma atividade intelectual de
seu criador, deve ainda, compreender as leis da física e da
mecânica para que seja possível transportar a ideia do campo
intelectual para o campo material, dessa forma alcançara o
objetivo a que se destina, sendo possível sua industrialização,
conforme denota João da Gama Cerqueira:
Todas as invenções industriais visam a um destes fins: criar
novos produtos ou objetos materiais, ou criar novos meios para
18
PIERANGELI, José Henrique. Crimes Contra a Propriedade Industrial
e Crimes de Concorrência Desleal. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2003, p. 86.
19 Instituto Danneman Siemsen de Estudos de Propriedade Intelectual.
Comentários à Lei de Propriedade Industrial. Rio de Janeiro: Renovar,
2005, p. 24.
20 Coordenação-Geral De Patentes, Procedimentos para o Exame de
Pedidos de Patentes Envolvendo Invenções Implementadas por
Programa de Computador, INPI 2011, p.10.
40
Temas jurídicos atuais: Volume VI
se obter determinados efeitos, os quais tanto podem
concretizar-se em um corpo ou objeto material (produto), como
manifestar-se em um simples estado de coisas (resultado).21
No entanto, entender do que se trata uma invenção não
é suficiente para chegar ao conceito de uma patente, pois a
patente, protege o invento concedendo o direito de privilégio do
inventor.
Assim, deve-se ressaltar que nem todas as invenções,
podem ser objeto de privilégio, mas apenas as que satisfizerem
as condições que a lei estabelece. Dessa forma, concluísse, em
primeiro lugar, que a noção de invenção privilegiável, pressupõe
o conhecimento do conceito de invenção, em seu aspecto
técnico, pois privilegiável é, simplesmente, a invenção que
preenche as condições a que a lei subordina a concessão de
patente. Em segundo lugar, mas com o mesmo entendimento
que a noção de invenção privilegiável decorre exclusivamente
da lei, a qual, pressupondo a existência de invenção, estabelece
condições para a concessão da patente, ao mesmo tempo que
indica as invenções excluídas da proteção legal. 22
Portanto, para se conseguir obter uma patente é preciso
que o objeto tenha a característica de invenção e,
necessariamente, atenda os requisito legais. O próximo item
trata da definição e dos requisitos legais da patente.
2.2.2 Patente
Para o art. 6º da Lei da nº9.279/1996, ao autor de
invenção ou modelo de utilidade será assegurado o direito de
obter a patente que lhe garanta a propriedade, nas condições
estabelecidas nesta Lei.
Por este dispositivo legal, observa-se que a patente é o
título que irá conferir a propriedade da invenção ao autor, desde
que esta obedeça aos requisitos legais.
João da Gama Cerqueira define que:
Por meio da patente o Estado reconhece o direito do inventor,
assegurando-lhe a propriedade da invenção e o seu uso
21
CERQUEIRA, João da Gama. Tratado de propriedade industrial. 2ª
ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, v. 2, t.1, p. 37.
22 Ibidem, p. 33.
O direito à propriedade do inventor...
41
exclusivo pelo prazo da lei. Além disso, pela patente
determina-se precisamente o objeto da invenção, sobre o qual
recai o direito do inventor, e fixam-se os termos inicial e final
do privilégio.23
É a patente, portanto, que irá garantir que a invenção
criada por um sujeito que preencha os requisitos legais irá
proporcionar o privilégio da propriedade da invenção e garantir
seu uso exclusivo por prazo determinado.
A definição dada pelo INPI, acrescenta ainda algumas
vantagens da patente, como a sucessão e o direito de impedir
que terceiros façam uso da sua invenção:
A Patente é um título de propriedade temporário outorgado
pelo Estado, por força de lei, que confere a seu titular, ou aos
seus sucessores, o direito de impedir terceiros, sem o seu
consentimento, de produzir, usar colocar a venda, vender ou
importar produto objeto de sua patente e/ou processo ou
produto obtido diretamente por processo por ele patenteado. 24
Dessa forma, a patente implica nas mesmas vantagens
e características de qualquer outra propriedade. Seu titular se
torna detentor exclusivo dela e tem o direito de controlar seu
domínio, seja licenciando, alienando ou explorando, direito esse
que tem efeito sobre terceiros e que não cessa com a morte do
inventor, passando a constituir o patrimônio dos herdeiros.
Uma das principais diferenças entre a propriedade de
uma patente comparado a outro bem tangível é o meio de
obtenção. Conforme determina o Ministério da Indústria e
Comércio, “a concessão da patente é um ato administrativo
declarativo, ao se reconhecer o direito do titular, e atributivo
(constitutivo), sendo necessário o requerimento da patente e o
seu trâmite junto à administração pública.” 25
23
24
Ibidem, p. 103.
INPI 2012. Disponível em: http//www.inpi.gov.br.
25
http://www.mdic.gov.br/sistemas_web/aprendex/cooperativismo/index/
apexctd/id/33
42
Temas jurídicos atuais: Volume VI
2.2.2.1 Requisitos da patente
A obtenção de uma patente é bastaste criteriosa, o
pedido deve conter informações suficientes para que o técnico
do INPI analise seu funcionamento, objetivo e aplicação
industrial, conforme o art. 19 da Lei 9.279/1996, a descrição
deverá ser pormenorizada:
Art. 19. O pedido de patente, nas condições estabelecidas pelo
INPI, conterá:
I - requerimento;
II - relatório descritivo;
III - reivindicações;
IV - desenhos, se for o caso;
V - resumo; e
VI - comprovante do pagamento da retribuição relativa ao
depósito.
Para a invenção alcançar uma carta patente deverá
atender os requisito legais de novidade, atividade inventiva e
aplicação industrial, elencados no art. 8º (se for considerada
uma patente de invenção) e 9º, (se considerado um modelo de
utilidade) da Lei 9.279/1996:
Art. 8º É patenteável a invenção que atenda aos requisitos de
novidade, atividade inventiva e aplicação industrial.
Art. 9º É patenteável como modelo de utilidade o objeto de uso
prático, ou parte deste, suscetível de aplicação industrial, que
apresente nova forma ou disposição, envolvendo ato inventivo,
que resulte em melhoria funcional no seu uso ou em sua
fabricação.
Marcelo Augusto Scudeler esclarece o conceito desses
requisitos nos seguintes termos:
A novidade deve ser entendida como condição fática de que
um objeto, para ser patenteado, deve representar uma
novidade para a sociedade, isto é, totalmente desconhecido
[...]
O segundo requisito para a concessão da carta patente é que
o objeto seja resultado de uma atividade inventiva, que
corresponde ao esforço intelectual do inventor. Nos termos do
artigo 13 da LPI, a invenção é dotada de atividade inventiva
O direito à propriedade do inventor...
43
sempre que, para um expert, a criação não represente um
objeto de conteúdo óbvio e comum.
[...]
Por fim, exige-se que o objeto patenteado tenha aplicação
industrial, no sentido de que esse objeto possa ser reproduzido
em escala industrial, em uma linha de produção. Nesse ponto
é afastada a possibilidade de patenteamento de manifestações
artísticas, ou ideias e conceitos abstratos.26
Consequentemente, uma invenção, para ser objeto de
patente, além de ser nova para a sociedade, constituir atividade
inventiva de seu criador, deve ser voltada para a indústria, tendo
capacidade de ser produzida em escala, tornando-se um
produto tangível, assim, descantam-se ideias e concepções
abstratas.
O art. 10 da Lei 9.279/1996 apresenta uma extensa lista
do que não pode ser patenteado:
Art. 10. Não se considera invenção nem modelo de
utilidade:
I - descobertas, teorias científicas e métodos
matemáticos;
II - concepções puramente abstratas;
III - esquemas, planos, princípios ou métodos
comerciais,
contábeis,
financeiros,
educativos,
publicitários, de sorteio e de fiscalização;
IV - as obras literárias, arquitetônicas, artísticas e
científicas ou qualquer criação estética;
V - programas de computador em si;
VI - apresentação de informações;
VII - regras de jogo;
VIII - técnicas e métodos operatórios ou cirúrgicos, bem
como métodos terapêuticos ou de diagnóstico, para
aplicação no corpo humano ou animal; e
IX - o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais
biológicos encontrados na natureza, ou ainda que dela
isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de
26
SCUDELER, Marcelo Augusto. Do Direito das Marcas e da
Propriedade Industrial. Campinas, SP: Servanda Editora, 2013, p. 36 e
37.
44
Temas jurídicos atuais: Volume VI
qualquer ser vivo natural e os processos biológicos
naturais.
Algumas dessas delimitações impostas pelo art. 10
estão totalmente em harmonia com os requisitos de atividade
inventiva ou de aplicação industrial, outros, são excluídos do
processo de patente, por estarem previstos em legislação
específica, e ainda, podem constituir apenas proibição legal.
Desse modo, carecem de atividade inventiva a
“descoberta” (inc. I), conforme explica o Instituto Dannemann
Siemsen de Estudos de Propriedade Intelectual.
A simples descoberta não resulta, em si, da criação do homem,
não podendo ser considerada invenção ou modelo. Porém, os
meios para se chegar à descoberta e seu uso, podem,
eventualmente, constituir matéria privilegiável.27
E também “o todo ou parte de seres vivos naturais” (inc.
IX), “(...) foi introduzida neste artigo para representar
“descobertas”, onde não houve processo criativo desenvolvido
pelo homem que resulte em uma invenção” 28
Quanto à inaplicabilidade industrial, esta é intrínseca às
“teorias científicas e métodos matemático” (inc. I), às
“concepções puramente abstratas” (inc. II), aos esquemas ou
métodos comerciais (inc. III), e às apresentação de informações
(inc. VI).
Já as “obras literárias e científicas” (inc. IV);
os“programas de computador” (inc V); e as “regras de jogo” (inc
VII), além de não ter aplicação industrial, são disciplinados pela
Lei dos Direitos Autorais: Lei nº 9.610 de 1998 e Lei de
Programas de Computador: Lei nº 9.609 de 1998.
Em relação às “técnicas operatórias ou cirúrgicas e
métodos terapêuticos” (inc. VIII), observa-se que trata-se de uma
proibição legal, na qual, foi uma inovação da Lei nº 9.279/1996 29,
27
Instituto Danneman Siemsen de Estudos de Propriedade Intelectual.
Comentários à Lei de Propriedade Industrial. Rio de Janeiro: Renovar,
2005, p. 24.
28 Ibidem, p. 26.
29 O inc VIII tem basicamente o mesmo texto do Acordo TRIPs art. 27
(3.a) 3. Os Membros também podem considerar como não
patenteáveis:
O direito à propriedade do inventor...
45
porém, na opinião do Instituto Dannemann Siemsen, a proibição
se dá, provavelmente por um posicionamento filosófico:
Não é pacífico, no entanto, o entendimento de que estas
matérias não constituem invenção por definição e a exclusão
aqui deve ser creditada mais a um posicionamento filosófico
do que conceitual, inclusive porque o Código de 1971 não
excluía a patenteabilidade dos métodos de diagnóstico.
Havendo possibilidade de executar um técnica ou método em
escala, deve se considerar que o requisito de aplicabilidade
industrial está presente.30
Logo, o motivo da proibição não conta com consenso
doutrinário, visto que estão revestidos de atividade inventiva e
aplicação industrial.
2.2.2.2 Algumas observações da tramitação do processo de
patente
Atendidos os requisitos formais de suficiência descritiva,
pagamento da retribuição e identificação do inventor,
mencionados no item anterior e elencados no art. 19 da Lei nº
9.279/1966, o INPI irá aceitar o pedido de patente. Este
permanece em sigilo durante 18 (dezoito) meses 31 e
posteriormente é publicado para que aqueles que tiverem
interesse em seu indeferimento, ou seja, aqueles que se
entendam lesados pelo novo pedido colidir com invenção já
existente, tenham a oportunidade de apresentar subsídios 32 ao
exame. Portanto, qualquer pessoa interessada poderá interferir
a) métodos diagnósticos, terapêuticos e cirúrgicos para o tratamento de
seres humanos ou de animais;
30 Instituto Danneman Siemsen de Estudos de Propriedade Intelectual.
Comentários à Lei de Propriedade Industrial. Rio de Janeiro: Renovar,
2005, p. 26.
31 Lei nº 9.279 de 1996, Art. 30. O pedido de patente será mantido em
sigilo durante 18 (dezoito) meses contados da data de depósito ou da
prioridade mais antiga, quando houver, após o que será publicado, à
exceção do caso previsto no art. 75.
32 Lei nº 9.279 de 1996, Art. 31. Publicado o pedido de patente e até o
final do exame, será facultada a apresentação, pelos interessados, de
documentos e informações para subsidiarem o exame.
46
Temas jurídicos atuais: Volume VI
no exame de uma patente, apresentando para isso documentos
ou informações técnicas que dizem respeito ao invento.
O titular que pretender dar continuidade ao processo de
patente deve solicitar o pedido de exame33 e quitar taxas de
retribuições anuais34 ao INPI. Sem as devidas quitações o
pedido é arquivado35 e sequer será analisado, caindo a invenção
em domínio público se o titular não solicitar o desarquivamento
ou restauração no prazo legal36.
Destarte, para evitar a extinção do pedido da patente, e
consequente domínio público do pedido o titular deverá estar
atento aos requisitos legais, estará submetido ainda, a
apreciação dos documentos de terceiros apresentados ao INPI,
visto que é um processo público em que qualquer interessado
poderá se opor.
Diante da complexidade e considerável burocracia de
um processo de patente, supõe-se a carta patente recebida pelo
titular, na oportunidade do deferimento de seu pedido, estará
caracterizada de validade e conformidade legal, fazendo jus às
suas prerrogativas de propriedade.
Deve-se salientar, porém, que embora complexo e
criterioso, uma carta patente não confere propriedade vitalícia ao
inventor, pois tem seus efeitos válidos por 20 (vinte) anos se for
uma patente de invenção ou 15 (quinze) se for de um modelo de
utilidade37. Ou seja, mesmo o processo sendo considerado
33
Lei nº 9.279 de 1996, Art. 33. O exame do pedido de patente deverá
ser requerido pelo depositante ou por qualquer interessado, no prazo
de 36 (trinta e seis) meses contados da data do depósito, sob pena do
arquivamento do pedido.
34 Lei nº 9.279 de 1996, Art. 84. O depositante do pedido e o titular da
patente estão sujeitos ao pagamento de retribuição anual, a partir do
início do terceiro ano da data do depósito.
35 Lei nº 9.279 de 1996, Art. 86. A falta de pagamento da retribuição
anual, nos termos dos arts. 84 e 85, acarretará o arquivamento do
pedido ou a extinção da patente.
36 Lei nº 9.279 de 1996, Art. 87. O pedido de patente e a patente
poderão ser restaurados, se o depositante ou o titular assim o requerer,
dentro de 3 (três) meses, contados da notificação do arquivamento do
pedido ou da extinção da patente, mediante pagamento de retribuição
específica.
37 Lei nº 9.279 de 1996, Art. 40 - A patente de invenção vigorará pelo
prazo de 20 (vinte) anos e a de modelo de utilidade pelo prazo 15
(quinze) anos contados da data de depósito.
O direito à propriedade do inventor...
47
difícil, a propriedade de uma patente terá um prazo relativamente
curto no que tange a exploração exclusiva pelo titular.
2.3 DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL
O homem, ao longo de sua evolução atribuiu grande
importância à propriedade. O instinto de se apropriar e de atribuir
grande valor às coisas podem ser considerados como algo
intrínseco ao ser humano, o que trouxe consequências para
formação do modelo de sociedade.
Neste sentido Maria Helena Diniz afirma:
O homem, como ser racional e eminentemente social,
transforma seus atos de apropriação em direitos que, como
autênticos interesses, são assegurados pela sociedade,
mediante normas jurídicas, que garantem e promovem a
defesa individual, pois é imprescindível que se defenda a
propriedade individual para que a sociedade possa sobreviver.
Sendo o homem elemento constitutivo da sociedade, a defesa
de sua propriedade constitui defesa da própria sociedade.
Assim, a propriedade foi concebida ao ser humano pela própria
natureza para que possa atender suas necessidade e às de
sua família. 38
Logo, a propriedade faz parte do simples fato de se estar
vivo e de conviver em sociedade, pois é a propriedade que irá
atender as necessidade do homem e de sua família.
No conceito jurídico, propriedade é o direito de usufruir,
gozar, dispor do bem e reavê-lo daquele que o tiver possuído
injustamente, como expressa Código Civil em seu art. 1.228.
Mesmo bem antes da vigência do Código Civil atual,
mas já em consonância com o mesmo, Luiz da Cunha
Gonçalves, conceituou a propriedade como um direito efetivo,
exclusivo e que deve obrigatoriamente ser respeitados por
todos:
O direito à propriedade é aquele que uma pessoa singular ou
coletiva, efetivamente exerce numa coisa determinada, em
regra perpetuamente, de modo normalmente absoluto, sempre
38
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, 4º Volume:
Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva 2007, p 104.
48
Temas jurídicos atuais: Volume VI
exclusivo, e que todas as outras pessoas são obrigadas a
respeitar. 39
Maria Helena Diniz, estabelece os elementos que
constituem o direito de propriedade:
Os elementos que constituem o domínio, quais sejam: o direito
de usar ou o jus utendi é o direito tirar do bem todos os serviços
que ela pode prestar, empregando em seu próprio proveito ou
de terceiros, bem como deixa-lo inerte; o direito de gozar ou o
jus fruendi é o direito de explorar economicamente a coisa e
de perceber seus frutos; o jus abutendi ou disponendi equivale
ao direito de dispor da coisa ou poder de aliená-la, consumi-la,
gravá-la de ônus ou submetê-la ao serviço de outrem; e por
fim, o direito de reivindicar ou jus vindicatio, é o poder que tem
o proprietário de mover a ação para obter o bem de que
injustamente o detenha. 40
Assim como as demais espécies de propriedade, a
propriedade industrial também contempla os atributos do
domínio, quais sejam, de usar, gozar, dispor e reaver. Também
está sujeita ao cumprimento da sua função social. A principal
diferença entre a propriedade intelectual e as demais espécies
de propriedade reside no fato de ela ser imaterial.
Antes de adentrar a questão da função social da
propriedade industrial, é preciso analisar a função social da
propriedade, que é uma garantia constitucional, conforme art.5º,
inc. XXIII, “a propriedade atenderá a sua função social”.
Em harmonia com a Constituição o art. 1.228 do Código
Civil dispõe os direitos do proprietário e, em seus parágrafos,
limita expressamente esses direitos:
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e
dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer
que injustamente a possua ou detenha.
§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em
consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e
de modo que sejam preservados, de conformidade com o
39
GONÇALVES, Luiz da Cunha. Tratado de Direito Civil, Volume X,
Tomo I. São Paulo, 1955, p. 199.
40 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, 4º Volume:
Direito das Coisas. – São Paulo: Saraiva 2007, p. 114 e 115.
O direito à propriedade do inventor...
49
estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas
naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e
artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
§ 2o São defesos os atos que não trazem ao proprietário
qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela
intenção de prejudicar outrem.
§ 3o O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de
desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou
interesse social, bem como no de requisição, em caso de
perigo público iminente.
[...]
Conforme pode ser observado nos parágrafos do art.
1.128, colacionados acima, o mesmo dispositivo legal determina
os direitos de propriedade e também estabelece limites a ele.
O §1º versa sobre o respeito ao objetivo econômico e
social. O legislador observa que pode haver outras razões para
se limitar o poder do proprietário, como o equilíbrio ambiental,
ou ainda, razões que podem estar determinadas em outras
legislações além do Código Civil, ou seja, o rol de limitações não
é exaustivo, mas sim exemplificativo.
No §2º há uma proibição do uso da propriedade em
virtude de má-fé. E o §3º, determina que no caso de necessidade
ou utilidade pública o proprietário pode perder o poder sobre o
bem em atendimento ao interesse social.
Apesar das limitações poderem ser entendidas como
uma proteção ao princípio da função social da propriedade, para
José Afonso da Silva, a função social vai além das limitações,
sendo parte do própria existência da propriedade:
A função social da propriedade não se confunde com os
sistemas de limitação da propriedade. Estes dizem respeito ao
exercício do direito ao proprietário àquela à estrutura do direito
mesmo à propriedade. Constitui, portanto, o regime jurídico, na
própria existência do direito à propriedade. 41
Logo, no entendimento deste autor, a função social não
se refere à limitação dos direitos do proprietário, mas ao próprio
direito ao acesso à propriedade.
41
SILVA, José Afonso da, Curso De Direito Constitucional Positivo. 28
ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 211.
50
Temas jurídicos atuais: Volume VI
Neste sentido, ao garantir o direito de propriedade, o
Estado pretende uma eficiente utilização para a mesma:
A implementação da função social pressupõe, não a sua
supressão, mas a sua utilização conformada à ordem
econômica e financeira, bem como à ordem social. É por meio
do uso da propriedade e do desempenho das atividades
econômicas, criadoras de novas riquezas, portanto, de novos
tipos de propriedade, que podemos almejar a efetivação de
sua verdadeira função social42.
Sobre um enfoque mais fraterno, Eduardo Salles
Pimenta defende que função social visa dar um equilíbrio às
discrepâncias sociais:
(...) a função social é um valor para equilibrar os excluídos
sociais, os quais tem mínimas ou quase nenhuma condição
social, transformando a ação, direcionando o excluído social
para a inclusão social, socializando-o com os demais
membros, ordenando os fatos fenômenos e condições que
ocorrem na sociedade de forma a diferenciar a existência
humana normal, desequilibrada pela deficiência da falta de
iniciativa individual na ordem econômica.43
Desse modo, a função social da propriedade visa dar
uma utilização adequada a mesma, pautada na ordem
econômica e social, o que, consequentemente resulta no
equilíbrio social, de modo a permitir que os menos favorecidos
sejam incluídos socialmente, como reflexo da propriedade de
outrem.
A função social dependerá da natureza da propriedade,
e para cumpri-la, deverá atender às carências da sociedade na
qual está inserida.
Quanto à função social da propriedade industrial, é
importante ressaltar que no ano de 1809, D. João VI publicou o
Alvará de Patentes, nesta oportunidade, o Brasil foi o 4º país a
42
VAZ, Isabel, Direito Econômico das Propriedades. 2 ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1993, p. 7 e 8.
43 PIMENTA, Eduardo Salles [et. al.]. Direitos Autorais: Estudo em
homenagem a Otávio Afonso dos Santos. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2007, p. 76.
O direito à propriedade do inventor...
51
se manifestar quanto a criação de um sistema de propriedade
industrial.
Neste documento, um trecho se monstra muito
importante para análise da função social da propriedade
industrial:
Sendo muito conveniente que os inventores e introdutores de
alguma nova máquina e invenção nas artes gozem do
privilégio exclusivo, além do direito que possam ter ao favor
pecuniário, que sou servido estabelecer em benefício da
indústria e das artes, ordeno que todas as pessoas que
estiverem neste caso apresentem o plano de seu novo invento
à Real Junta do Comércio; e que esta, reconhecendo-lhe a
verdade e fundamento dele, lhes conceda o privilégio exclusivo
por quatorze anos, ficando obrigadas a fabricá-lo depois, para
que, no fim desse prazo, toda a Nação goze do fruto dessa
invenção. Ordeno, outrossim, que se faça uma exata revisão
dos que se acham atualmente concedidos, fazendo-se público
na forma acima determinada e revogando-se todas as que por
falsa alegação ou sem bem fundadas razões obtiveram
semelhantes concessões. (Grifo nosso)
O Alvará deixa claro que a instituição do sistema de
propriedade industrial tinha o intuito de, ao recompensar o
inventor, fomentar e incentivar a criação de inventos, mas
também, como consequência, beneficiar a indústria,
desenvolver o país e dar a oportunidade a toda nação de gozar
do fruto dessa invenção.
O “caput” do art. 2º da Lei nº 9.279/1996 reproduz
praticamente o mesmo texto do disposto na Constituição Federal
(art.5º, XXIX): “A proteção dos direitos relativos à propriedade
industrial, considerando o seu interesse social e o
desenvolvimento tecnológico e econômico do País, efetua-se
mediante: (...)”. Denis Borges Barbosa, quando faz uma análise
das demais Constituições brasileiras constata:
A posição de ambas as Cartas e todas as anteriores se
mantém inalterada: a concessão do privilégio, visando não o
interesse do indivíduo, mas sim o interesse geral da sociedade,
52
Temas jurídicos atuais: Volume VI
conceito abrangente no qual se acham contidos o interesse
social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país.44
A partir deste dispositivo da atual Lei da Propriedade
industrial, pode-se observar que o direito à propriedade
industrial, não é um direito absoluto e independente, pois só
existe para atender requisitos de interesse social, bem como e o
desenvolvimento tecnológico e econômico do país. Como se o
sistema de proteção à propriedade industrial fosse criado
justamente para fomentar o e crescimento e o desenvolvimento
do Estado.
Observa-se ainda, que o legislador manifesta uma
expectativa em beneficiar a economia, a sociedade, e o país
como um todo, a partir da propriedade, que será concedida pelo
sistema de propriedade industrial.
Denis Borges Barbosa faz a seguinte observação:
Note-se aqui que essa constituição de direitos exclusivos é
diversa da propriedade tradicional. Nesta, a relação se ancora
até em estamentos pré-jurídicos, enfatiza a proteção dos
interesses próprio do titular, apenas condicionados à função
social; na propriedade intelectual, e especialmente nas
patentes, a propriedade nasce não sob a contenção, mas por
inspiração e determinismo de interesse plúrimo.45
Como pode-se constatar, a função social é também um
requisito para se ter acesso à propriedade industrial, ou mesmo
sua razão de existir.
Para José Henrique Pierangeli, a questão da função
social da propriedade já é algo pacificado não só no Brasil mas
também em vários países. Ao explicar as razões do sistema de
proteção às patentes, o autor faz a seguinte anotação:
Constitui algo perfeitamente aceito no âmbito da doutrina e nos
méritos governamentais dos vários países, que o sistema de
patente é fonte de desenvolvimento. Daí a sua adoção por
quase todos os países do nosso mundo, qualquer que seja seu
estágio de desenvolvimento, não obstante algumas opiniões
de que o privilégio produz efeitos negativos no campo do
44
BARBOSA, Denis Borges. Usucapião de Patentes e Outros Estudos
de Propriedade Industrial. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2006, p 102.
45 Ibidem, p. 103.
O direito à propriedade do inventor...
53
desenvolvimento industrial, pela limitação que impõe à livre
concorrência.
A realidade, porém, é bem outra, pois é justamente nos países
em que não se resguarda o invento por meio da concessão do
privilégio, que o desenvolvimento industrial é encolhido, às
vezes até ínfimo. A falta de um sistema de patentes, e isso tem
sido constatado, cria uma atmosfera de desanimo entre os
empresários, que passam a não investir, ou a investir com
muita parcimônia, na instalação de novas industrias.
Sendo assim, nota-se, que é irrefutável a importância da
propriedade industrial no desenvolvimento da sociedade. Ela
está presente quando se obtém um resultado positivo em
pesquisa e promoveu o desenvolvimento em todas as áreas da
indústria, desde simples objetos que facilitam diferentes
trabalhos até as mais modernas máquinas, ricas em tecnologia
que permitiram o acesso à informática e à robótica; em alimentos
com funções específicas para saúde humana até os mais
modernos medicamentos que tratam de doenças que pareciam
sem solução; nas produções agrícolas, otimizando a produção,
etc.
Essa notória importância destaca ainda mais o princípio
da função social da propriedade já que os benefícios advindos
da sua existência deverão ser refletidos não só na defesa dos
direitos do detentor da propriedade, mas também na defesa da
sociedade como um todo, no sentido de que, protegendo sua
criação, o detentor tem garantida a exclusividade, e o sociedade,
tem a confiança na procedência e análise prévia do Estado.
2.3.1 Meios de intervenção
propriedade industrial
estatal
no
domínio
da
A propriedade industrial cria, para seu titular, por meio
dos instrumentos da patente e do registro, direitos morais e
patrimoniais exclusivos, que funcionam como recompensa
pecuniária pela sua criação. Mas, a utilização dos bens
produzidos pela criatividade humana vincula-se a observância
dos interesses sociais, à necessidade de capacitação
tecnológica nacional, ao progresso e ao bem-estar de toda a
comunidade, conforme já demostrado.
Neste sentido, percebe-se a conveniência de se
conciliar o legítimo interesse do inventor, enquanto criador de
54
Temas jurídicos atuais: Volume VI
um bem socialmente útil e economicamente valorável, com a
necessidade de torná-lo acessível à sociedade46. Quando essa
conciliação não for possível o inventor terá seus direitos
restringidos, conforme afirma Gama Cerqueira:
A propriedade das invenções, como a de direito comum, está
sujeita à desapropriação por necessidade ou utilidade pública,
ou por interesse social art. 141, § 15, da Constituição Federal
(1946) [Na Constituição de 1988 art. 5º, XXIV]. Permite ainda
a Constituição que o invento seja vulgarizado, se isso convier
à coletividade (...)47
Logo, em respeito à função social imposta à propriedade
industrial, os direitos do inventor poderão ser violados e, mesmo
sem o seu consentimento, a exclusividade de sua criação pode
ser desrespeitada e até mesmo extinta.
Como forma de se efetivar o cumprimento da função
social da propriedade, o legislador previu a licença compulsória,
a nulidade e a caducidade das patentes.
Conhecida popularmente como “quebra de patentes”, a
licença compulsória na realidade não significa a quebra da
patente, trata-se de uma previsão legal que obriga o titular da
patente a licenciá-la em três casos específicos.
O primeiro é quando o titular exercer os direitos
concedidos sobre a patente de forma abusiva ou pratica abuso
de
poder
econômico,
após
verificação
do
fato
administrativamente ou judicialmente48. Ou seja, mesmo
possuindo propriedade sobre a patente, o titular não poderá
exercer como bem entender o poder de monopólio sobre seu
invento, não poderá abusar da exclusividade e buscar lucros
exorbitantes, sob pena da perda do domínio temporário da
patente.
46
VAZ, Isabel, Direito Econômico das Propriedades. 2 ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1993, p. 420.
47 CERQUEIRA, João da Gama. Tratado de propriedade industrial. 2ª
ed.Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, v. 1, t.1, p. 187.
48 Lei nº 9279 de 1996, Art. 68. O titular ficará sujeito a ter a patente
licenciada compulsoriamente se exercer os direitos dela decorrentes de
forma abusiva, ou por meio dela praticar abuso de poder econômico,
comprovado nos termos da lei, por decisão administrativa ou judicial.
O direito à propriedade do inventor...
55
A segunda hipótese de licença compulsória, ocorrerá
quando a patente não for explorada de forma adequada e
completa ou a exploração que não satisfaça as necessidades do
mercado49. Além de não poder explorar de forma abusiva, o
detentor deverá atender satisfatoriamente o mercado.
E a terceira hipótese será nos casos de emergência
nacional ou de interesse público50.
Esta última hipótese, foi criada no ano de 1999, pelo
Decreto nº 3.201, com a finalidade de regulamentar a licença
compulsória, como os prazos de licenciamento, forma de
remuneração, produtos que possam ser de interesse público,
possibilidade de prorrogação da licença compulsória, quais as
questões que podem ser entendidas como de interesse público,
possibilidade do licenciamento ser instaurado de ofício, extinção
da licença compulsória e prerrogativas do INPI.
Neste sentido, indispensável a análise dos dispositivos
abaixo:
Art. 4o Constatada a impossibilidade de o titular da patente ou
o seu licenciado atender a situação de emergência nacional ou
interesse público, o Poder Público concederá, de ofício, a
licença compulsória, de caráter não-exclusivo, devendo o ato
ser imediatamente publicado no Diário Oficial da União.
Art. 5o
O ato de concessão da licença compulsória
estabelecerá, dentre outras, as seguintes condições:
I - o prazo de vigência da licença e a possibilidade de
prorrogação; e
II - aquelas oferecidas pela União, em especial a remuneração
do titular.
49
Lei nº 9279 de 1996, Art. 68 § 1º: Ensejam, igualmente, licença
compulsória:
I - a não exploração do objeto da patente no território brasileiro por falta
de fabricação ou fabricação incompleta do produto, ou, ainda, a falta de
uso integral do processo patenteado, ressalvados os casos de
inviabilidade econômica, quando será admitida a importação; ou
II - a comercialização que não satisfizer às necessidades do mercado.
50 Lei nº 9279 de 1996, Art. 71. Nos casos de emergência nacional ou
interesse público, declarados em ato do Poder Executivo Federal,
desde que o titular da patente ou seu licenciado não atenda a essa
necessidade, poderá ser concedida, de ofício, licença compulsória,
temporária e não exclusiva, para a exploração da patente, sem prejuízo
dos direitos do respectivo titular.
56
Temas jurídicos atuais: Volume VI
§ 1o O ato de concessão da licença compulsória poderá
também estabelecer a obrigação de o titular transmitir as
informações necessárias e suficientes à efetiva reprodução do
objeto protegido e os demais aspectos técnicos aplicáveis ao
caso em espécie, observando-se, na negativa, o disposto no
art. 24 e no Título I, Capítulo VI, da Lei no 9.279, de 1996.
§ 2o Na determinação da remuneração cabível ao titular, serão
consideradas as circunstâncias econômicas e mercadológicas
relevantes, o preço de produtos similares e o valor econômico
da autorização.
A partir do Decreto, em especial dos arts. 4º e 5º
colacionados acima, é possível observar que, antes do
licenciamento compulsório, serão tomadas certas precauções
em respeito aos direitos do titular, como a verificação de que o
mesmo não tem condições de atender a demanda, bem como a
possibilidade de licenciamento por meio de contrato, e sua
remuneração.
Logo, de alguma forma, mesmo tendo sido criado para
disciplinar a licença compulsória nos casos de necessidade
social, o Decreto defende os direitos do titular da patente, como
por exemplo, ao determinar que haverá um prazo de licença
compulsória, o que dá a oportunidade para que o titular se
estruture a fim de dar o atendimento necessário, ou seja, não
será por todo o tempo de validade da patente, podendo o titular
voltar a ter o controle da sua patente.
O Decreto observa ainda, a hipótese de remuneração do
inventor, que considerará as condições mercadológicas, o preço
de produtos similares, ou seja, será feita uma análise econômica
para se chegar há uma remuneração justa ao inventor, portanto,
nesta hipótese, não será “quebrada” a patente, mas sim,
licenciada de forma obrigatória.
Porém, importa ressaltar que o Decreto prevê uma
exceção no que tange os direitos do inventor:
Art. 7o No caso de emergência nacional ou interesse público
que caracterize extrema urgência, a licença compulsória de
que trata este Decreto poderá ser implementada e efetivado o
uso da patente, independentemente do atendimento prévio
das condições estabelecidas nos arts. 4º e 5o deste Decreto.
Assim, a exceção contida no neste artigo diz respeito à
emergência extrema, ou seja, quando a necessidade de
O direito à propriedade do inventor...
57
atendimento imediato se sobrepõe ao cumprimento das
condições estabelecidas nos arts. 4º e 5º, o que poderia ser o
caso de uma epidemia que se alastra rapidamente e os
pacientes precisam de determinado medicamento patenteado
para sobreviver, e o laboratório não poder atender a todos.
Para Denis Borges Barbosa, a instauração da licença
compulsória de ofício se dará quando a necessidade se sobrepor
à dilações probatórias.Neste sentido:
O pressuposto da concessão de ofício é a simples constatação
de que o titular da patente ou seu licenciado não atende à
emergência nacional ou interesse público. A natureza muitas
vezes iminente da necessidade dispensa dilações probatórias
minuciosas, sem prejuízo da eventual reparação do titular do
direito licenciado.51
Muito embora, seja aplicada a licença compulsória em
caso de necessidade, pelo abuso ou atendimento insatisfatório,
pode-se concluir que para evitá-la, o detentor de patente
relevante para o desenvolvimento e o bem estar social, deverá,
independentemente de sua vontade, aliar o invento com
estratégia de produção e de distribuição no mercado e isso, sem
explorá-la de forma abusiva. Assim se deu o recente caso do
medicamento Tamiflu, cuja patente pertence ao laboratório
Roche.
Segundo a Fundação Osvaldo Cruz, com a crescente
demanda pelo referido medicamento, em decorrência da
disseminação da gripe H1N1, houve por parte do governo
brasileiro a consideração de licença compulsória, mas o governo
e o laboratório Roche chegaram a um acordo e o licenciamento
foi voluntário.52
51
BARBOSA, Denis Borges. As modificações do Decreto
Regulamentador da Licença de Patentes por Interesse Público, S D,
Disponível em < http://www.denisbarbosa.addr.com/doha.doc>, Acesso
em 05 de outubro de 2014.
52
http://www2.camara.leg.br/atividadelegislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cssf/audienciaspublicas/audiencia-2013/audiencia-13.08/apresentacao
58
Temas jurídicos atuais: Volume VI
Importante, esclarecer ainda, que a caducidade prevista
no art. 80 da Lei nº 9.279/199653, diz respeito à falta de uso por
parte do titular quando, mesmo após ter sido licenciada
compulsoriamente, o detentor não inicia a exploração ou no caso
de não exploração, somada com o interesse de um terceiro em
explorá-la. Logo, a patente, necessariamente, terá que ser
utilizada, sob pena de prevalecer o interesse de terceiros sobre
ela.
E a nulidade, prevista no art. 50 da Lei nº 9.279/1996 54,
trata da invalidade da patente, quando não atendeu os requisitos
formais, ou seja, mesmo após o titular ter em mãos a carta
patente que lhe garante a propriedade, são verificados
elementos que possibilitam de ela ser anulada judicialmente, por
meio de ação movida pelo próprio INPI, ainda que a concessão
seja consequência de seu próprio erro técnico.
O INPI é o órgão responsável pelo controle e concessão
da propriedade industrial, dentro de suas prerrogativas está a de
fiscalização de contrato de licença e transferência de tecnologia
que regulam a forma de como a propriedade industrial será
explorada, e ainda, o julgamento de nulidades administrativas e
de caducidades, que podem ser instauradas de ofício pelo INPI
ou por legítimo interessado. Esta é uma forma extrajudicial de
53
Art. 80. Caducará a patente, de ofício ou a requerimento de qualquer
pessoa com legítimo interesse, se, decorridos 2 (dois) anos da
concessão da primeira licença compulsória, esse prazo não tiver sido
suficiente para prevenir ou sanar o abuso ou desuso, salvo motivos
justificáveis.
§ 1º A patente caducará quando, na data do requerimento da
caducidade ou da instauração de ofício do respectivo processo, não
tiver sido iniciada a exploração.
§ 2º No processo de caducidade instaurado a requerimento, o INPI
poderá prosseguir se houver desistência do requerente.
54 Art. 50. A nulidade da patente será declarada administrativamente
quando:
I - não tiver sido atendido qualquer dos requisitos legais;
II - o relatório e as reivindicações não atenderem ao disposto nos arts.
24 e 25, respectivamente;
III - o objeto da patente se estenda além do conteúdo do pedido
originalmente depositado; ou
IV - no seu processamento, tiver sido omitida qualquer das formalidades
essenciais, indispensáveis à concessão.
O direito à propriedade do inventor...
59
desapropriar a propriedade industrial, sempre oportunizando a
defesa do titular55.
Pelo exposto, identificam-se nas patentes, regras e
imposições que ultrapassam a função social presente em outras
formas de propriedade, justamente devido a sua natureza de
buscar proporcionar o desenvolvimento econômico social.
2.4 O DIREITO À PROPRIEDADE INDUSTRIAL E INTERESSE
COLETIVO: APARENTE COLISÃO ENTRE DIREITOS
FUNDAMENTAIS
O direito à propriedade industrial está intimamente
ligado ao íntimo do ser humano, pois é fruto de sua inteligência,
desse modo, pode-se considerar que uma criação intelectual faz
parte da personalidade de seu autor.
Segundo Silvio Romero Beltrão os direitos da
personalidade são fundamentados na dignidade da pessoa
humana:
Os direitos da personalidade podem ser definidos como uma
categoria especial de direitos subjetivos, que, fundamentados
na dignidade da pessoa humana, garantem o gozo e o respeito
ao seu próprio ser em todas as suas manifestações espirituais
ou físicas.
O autor destaca ainda que:
Esses direitos são inatos, tendo existência concomitante com
a própria existência da pessoa humana e além disso são
absolutos, irrenunciáveis e intransmissíveis, porque, sendo
componentes da personalidade humana, não podem ser
dissociados do seu titular. 56
Por ser decorrente do intelecto humano, a propriedade
industrial está ainda mais associada ao instinto de apropriação
do homem, como uma necessidade de tornar o fruto de sua
inteligência como parte de si mesmo.
55
Lei nº 9.279 de 1996, Art. 52. O titular será intimado para se
manifestar no prazo de 60 (sessenta) dias.
56 BELTRÃO, Silvio Romero. Direitos da Personalidade: de acordo com
o novo Código Civil. São Paulo: Atlas, 2005, p. 135.
60
Temas jurídicos atuais: Volume VI
Carlos Alberto Bittar incluiu as criações intelectuais entre
os tantos outros direitos da personalidade, destacando a
importância do atributo moral e do direito patrimonial.
O elemento “moral” é a expressão do espírito criador de
pessoa que se manifesta com a criação, e o elemento
patrimonial consiste na retribuição econômica pela produção
intelectual. 57
Aline Storer, entende que além de a invenção ser um
direito de propriedade, constitui também um direito natural, de
ocupação e intelectual, sendo este direito garantido por dois
elementos fundamentais e inalienáveis, que são a inteligência do
homem, seu intelecto e sua livre disposição de vontade, pois
ninguém poderá tirar do homem sua inteligência, mas apenas
desfrutá-la, quando assim o consentir pela espontaneidade da
vontade. 58
Dessa forma, é possível considerar os frutos do intelecto
humano como direitos da sua personalidade, e por isso
indissociável da pessoa de seu titular. E, consequentemente o
direito à propriedade industrial se resulta em uma forma ainda
mais importante, no sentido psíquico, de direito à propriedade.
Neste sentido, mesmo tendo sido criado mecanismos de
defesa para o detentor da propriedade industrial, ainda assim, o
obriga a cumprir os requisitos aqui tratados, sob a pena de
violação de seus direitos.
O problema que consequentemente surge é que a
imposição da função social seria uma forma de limitar um direito
fundamental. Porém, conforme já tratado neste trabalho, tanto o
atendimento à função social da propriedade quanto à segurança
do privilégio de exclusividade da propriedade industrial estão no
rol dos direitos e garantias fundamentais apresentadas no art. 5º
da Constituição Federal.
57
BITTAR, Carlos Alberto. Tutela dos direitos da personalidade e dos
direitos autorais nas atividades empresariais. São Paulo: Revistas dos
Tribunais, 1993, p.89
58 STORER; MACHADO, Propriedade Industrial e o Princípio da Função
Social
da
Propriedade.
Disponível
em:
<http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/
aline_storer.pdf>. Acesso em: 20 de março de 2012, p.3.
O direito à propriedade do inventor...
61
Direitos fundamentais nascem e se desenvolvem com as
Constituições nas quais foram reconhecidos e assegurados 59.
As funções dos direitos fundamentais dividem-se em função de
defesa ou de liberdade, prestação social, de proteção perante
terceiros e de não discriminação60.
Sendo o Brasil um Estado democrático de direito,
constitui-se em um Estado intervencionista que tem o dever, por
mandamento constitucional de intervir concretamente na
realidade social para efetivar, concretizar, os direitos
fundamentais61. Compete, portanto, ao Estado a garantia dos
direitos fundamentais, porém, tanto o cumprimento da função
social quanto o privilégio da exclusividade devem ser conferidos
pelo Estado.
Os dois direitos, estão ainda previstos na Declaração
Universal dos direitos do homem:
Art. 17°
1. Toda a pessoa, individual ou coletivamente, tem direito à
propriedade.
2. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua
propriedade.
Art. 27°
1. Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na
vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no
progresso científico e nos benefícios que deste resultam.
Contudo, ao conviver em sociedade, o indivíduo deve
buscar o bem desta na qual está inserido, devendo prevalecer o
interesse social.
Neste sentido, Eliana Y. Abrão indica que o legislador
constitucional já observa que os interesses sociais devem
prevalecer aos privados: “Contemplando a propriedade, o
legislador constitucional faz observar que seus fins sociais
59
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2.ed.
Porto Alegre: Libraria do Advogado, 2001, p. 37.
60 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e direitos
fundamentais. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 404.
61 GOTTEMS, Claudinei J; SIQUEIRA, Dirceu Pereira (org). Direitos
Fundamentais, da normatização à efetividade nos 20 anos de
Constituição Brasileira. São Paulo: Boreal Editora, 2008, p.12.
62
Temas jurídicos atuais: Volume VI
devem prevalecer em relação aos privados, do mesmo modo
como faz em relação aos inventos.”62
Para Maurício Kioshi Kanashiro a melhor forma de
solucionar estes conflitos está no equilíbrio, já que interesses
públicos e coletivos sempre devem ser harmonizados:
Talvez, a fórmula para solucionar conflitos e promover o
desenvolvimento da sociedade esteja realmente relacionado
ao equilíbrio, no entanto, temos no direito a expressão “função
social” que parece ser mais apropriada e de maior abrangência
para o fim proposto.
Além disso, evidenciam-se em muitos casos dois interesses a
serem harmonizados pelo direito, qual sejam, o público (da
coletividade) e o individual (do autor).63
Neste conflito entre dois direitos fundamentais caberá
apenas a analise justa do caso concreto a fim de solucionar a
questão, veja-se:
Não há discricionariedade na concretização dos direitos
fundamentais. Com efeito, podemos encontrar no caso
concreto, eventual ponderação dos valores diante de um
aparente conflito com outro direito fundamental. Em tais casos,
a aplicação se dará” [...] mediante ponderação: à vista do caso
concreto, o intérprete irá aferir o peso que cada princípio irá
desempenhar na hipótese, mediante concessões recíprocas, e
preservando o máximo da cada um, na medida do possível.64
Justifica-se o conflito aqui levantado pelo fato de que
não é possível respeitar incondicionalmente o direito da
personalidade de um inventor, tornando intocável sua criação, e
ao mesmo tempo respeitar a coletividade e seus interesses.
Conferir direitos a um inventor, deixando que este se utilize de
sua propriedade industrial da forma que lhe for conveniente,
62
ABRÃO, Eliane Yachouh. Direitos do Autor e Conexos. São Paulo:
Editora do Brasil, 2002, p 167.
63 KANASHIRO, Maurício Kioshi. A Proteção do Autor Empregado sob
a Perspectiva da Função Social do Direito Autoral. Rio de Janeiro:
Revista ABPI – Associação Brasileira da Propriedade Intelectual nº 131,
2014, p. 22.
64 GOTTEMS, Claudinei J; SIQUEIRA, Dirceu Pereira (org). Direitos
Fundamentais, da normatização à efetividade nos 20 anos de
Constituição Brasileira. São Paulo: Boreal Editora, 2008, p.16.
O direito à propriedade do inventor...
63
acarretará na consequência de que aquele poderá ferir a
necessidade da população. Ainda mais, quando houver abuso
na forma que um produto patenteado está sendo
comercializado, porque isso poderia atingir a dignidade daqueles
que dependem dele.
De qualquer forma, diante da complexidade deste
conflito, entre dois direitos fundamentais, não se pode negar que
a função social da propriedade industrial está fundamentada na
dignidade da pessoa humana, visto que a mesma é meta do
Estado democrático de direito, bem como princípio norteador de
todos os outros presentes no ordenamento jurídico pátrio.
A limitação imposta aos direitos do inventor edifica a
dignidade da pessoa humana, no sentido de preservar àquilo
que é mais precioso no convívio em sociedade que é o bem estar
coletivo, função está atribuída ao próprio direito.
É importante ressaltar que não foi só com a finalidade de
fomentar o desenvolvimento econômico, mas também de
garantir a dignidade da pessoa humana que o sistema de
proteção da propriedade industrial fora criado, e como bem
observa o doutrinador Gama Cerqueira. “As invenções, modelos
de utilidade, desenhos e modelos industriais não patenteados
não podem ser protegidos com base nos princípios da repressão
da concorrência desleal, por pertencerem ao domínio público” 65.
Em outras palavras, sem a criação por parte do Estado
de mecanismos de proteção, seria impossível a defesa dos
direitos do inventor. Então, de certa forma, pode-se até
considerar que existe uma relação de troca.
Assim, nota-se que o princípio da dignidade da pessoa
humana é um elemento edificador da função social da
propriedade industrial, que deverá prevalecer em caso de
necessidade e de respeito ao bem estar social.
65
CERQUEIRA, João da Gama. Tratado de propriedade industrial. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 1997, v. 2, t.2, p. 379.
64
Temas jurídicos atuais: Volume VI
2.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, a propriedade industrial tem grande
relevância na atualidade, sua exclusividade é garantida pela
Constituição Federal. As patentes tem um importante papel junto
ao desenvolvimento econômico e social, na criação de soluções
das mais variadas áreas.
Sendo que a patente é um título de propriedade
temporário outorgado pelo Estado, por força de lei, que confere
a seu titular, todas as prerrogativas de qualquer outra
propriedade, com exceção do fato da mesma ser temporária.
Assim como outras formas de propriedade as patentes
também devem cumprir a função social, e, diferente das demais
espécies de propriedade, as patentes surgiram na ordenamento
jurídico justamente por questões de função social.
Pode-se considerar que no que se refere à concessão
da patente por parte do Estado é uma relação de troca, o Estado
reconhece e concede o direito à propriedade industrial e em
troca o inventor oferece os dados de sua invenção na íntegra.
Essa oferta por parte do inventor pode permitir que
ocorra a licença compulsória, se esta for de interesse público;
consiste também em um relação de troca a própria concessão
da propriedade industrial, como é o Estado que concede os
direitos de exclusividade e oferece ainda, uma série de
dispositivos legais para proteger seu proprietário do uso
indevido.
O licenciamento compulsório e demais formas de perda
dos direitos sobre a patente, são, na verdade, meios para
equilibrar as diferenças sociais e garantir que todos tenham
acesso ao progresso científico e, principalmente, direito à
dignidade. Logo, as intervenções estatais estão previstas para
se fazer prevalecer o bem estar coletivo.
Sendo patentes, consideradas bens imateriais
intelectuais, que muitas vezes se confundem com o próprio
detentor, já que são frutos do seu conhecimento, decaem sobre
eles direitos da personalidade que não podem ser meramente
desconsiderados quando se trata da prevalência do interesse
público.
Assim, observa-se que pode haver um conflito entre dois
direitos fundamentais, de um lado de privilégio do inventor e de
outro o atendimento da função social fazendo prevalecer o
O direito à propriedade do inventor...
65
interesse coletivo, sendo que ambos estão elencados do rol do
art. 5º, da Constituição Federal.
Portanto, nesse impasse entre direito do inventor e
direito da coletividade aos acesso aos bens necessários a
manutenção da vida, claro de após devidamente analisado o
caso concreto, o princípio da proporcionalidade e demais
princípios constitucionais, deverá prevalecer a dignidade da
pessoa humana, sendo esta considerada como um edificador da
função social da propriedade industrial, que se demostra tão
importante para o desenvolvimento das nações.
2.6 REFERÊNCIAS
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Paulo: Editora do Brasil, 2002.
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= III =
O ESTADO COMO AGENTE REGULADOR: UMA ANÁLISE
DA AUTONOMIA PÚBLICO-PRIVADA FRENTE O PAPEL
DAS AGÊNCIAS REGULADORAS
Marcela Gorete Rosa Maia Guerra*
3.1 INTRODUÇÃO
Em todos os modelos políticos e ideológicos do Estado
é possível analisar o conflito entre a liberdade individual e os
interesses públicos.
No processo evolutivo do Estado, a autonomia privada,
em diversos momentos, é elevada a garantia fundamental
sobreposta aos interesses da coletividade.
Contudo, este modelo de Estado Liberal mostrou-se
ineficaz diante das inúmeras necessidades públicas. Assim, uma
mudança de ideologia deste Estado foi medida necessária para
assegurar a própria harmonia social.
Diante disto, com a proclamação do Estado Democrático
de Direito pela Constituição Federal/88, vivencia-se um novo
modelo ideológico-político estatal, que se apresenta, ao menos
em tese, preocupado em conciliar interesses públicos e
privados.
Trata-se do Estado regulador, interventor da ordem
econômica, que visa assegurar a efetivação dos princípios
constitucionais.
Para o auxílio desta atividade interventora, o Estado irá
criar entes dotados de significativa independência e autonomia,
responsáveis pela expedição de normas regulatórias, que
devem ser observadas pelos agentes econômicos de
determinado setor da economia. Contudo, infere-se que referida
*
Discente do programa de Mestrado em Ciências Jurídicas com ênfase
em Direitos da Personalidade do Centro Universitário de Maringá –
CESUMAR. Bolsista da CAPES pelo Projeto PROSUP. Pós-graduada
em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Estado do Paraná.
Advogada
em
Maringá/Paraná.
Endereço
eletrônico: [email protected].
O Estado como agente regulador...
69
delegação de competência normativa a tais entes não está
consubstanciada expressamente na Constituição Federal, o que
ensejaria a dúvida quanto a sua constitucionalidade.
Além disso, até que ponto o Estado consegue conciliar
a autonomia privada frente a interesses públicos? Como a
Constituição Federal pode garantir a livre iniciativa e a
propriedade privada, ao mesmo tempo em que pretende
assegurar a todos uma existência digna e a valoração do
trabalho humano? Seria possível para uma economia de
mercado capitalista, voltada para fins sociais?
Ainda, em face da nova etapa da globalização, em que
as
empresas
nacionais
competem
com
empresas
transnacionais, verifica-se um segundo embate vivenciado pelo
Estado Regulador o qual ao mesmo tempo em que deve prever
o incentivo da empresa nacional para expansão dos mercados,
deve propor medidas regulatórias para impedir a dominação dos
mercados e o abuso do poder econômico, em nome dos
princípios da livre iniciativa e da livre concorrência.
O objetivo deste trabalho é responder a estas questões,
demonstrando qual o papel do Estado e de suas entidades
reguladoras e similares na regulação da ordem econômica,
verificando a constitucionalidade de sua atuação, bem como
quais suas formas intervencionistas.
3.2 AGÊNCIAS REGULADORAS:
AUTONOMIA PÚBLICO-PRIVADA
UMA
ANÁLISE
DA
A criação das agências reguladoras marca uma
evolução do modelo ideológico-político do Estado.
Desde os seus primórdios, o Estado, como ente
dinâmico, apresentou diversas formas sociais, políticas e
econômicas, de sorte que a diversidade de concepções e
ideologias do Estado significa também diferentes formas de
atuação na sociedade, tanto na vida dos subordinados quanto
na ordem econômica1.
No processo evolutivo do modelo estatal, verifica-se que
o Estado de Direito, originário no limiar do sec. XVIII,
simplificadamente definido como “submissão do poder a um
1
FARIA, Heraldo Felipe de. A intervenção do Estado na Economia. p.
1.
70
Temas jurídicos atuais: Volume VI
regime legal e afirmação dos direitos individuais do cidadão”2,
surge comprometido com o liberalismo, inspirado nos ideias de
Adam Smith, construídos a partir de uma visão individualista,
que no plano econômico expressa a atuação limitada do Estado
na esfera econômica.
Assim, naquela época, as relações contratuais eram
formadas de acordo com a livre vontade das partes, isto é, sem
qualquer interferência do Estado como regulador da economia,
vigorando a autorregulação dos negócios jurídicos e do próprio
mercado, através da “mão invisível”, na expressão teórica de
Adam Smith3.
Dessa forma, no Estado liberal não havia espaço para o
que denomina de bem estar social, haja vista estar
fundamentado no ideal de liberdade, pilar da Revolução
Francesa do séc. XVIII, cujo objetivo primordial consistia em
construir regras jurídicas para concretizar a liberdade individual
e dar suporte formal às relações comerciais da iniciativa privada.
Infere-se que neste momento, a autonomia privada se
sobressaia diante dos interesses coletivos 4.
A liberdade proclamada pelo liberalismo conduzia, de
fato, a irreprimíveis situações de arbítrio. No domínio econômico
expunha a classe menos favorecida à sanha dos poderosos.
Logo na primeira fase da Revolução industrial, de que foi palco
o Ocidente, é possível evidenciar os efeitos da liberdade do
contrato, a desumana espoliação do trabalho, o doloroso
emprego de métodos brutais de exploração econômica5.
Logo, como consequência inevitável, o regime liberal
entrou em crise pelas próprias contradições do sistema
econômico que produziu. Após os eventos catastróficos como
Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Crise de 1929 e Segunda
Guerra Mundial, a intervenção estatal na economia era
necessária.
A liberdade humana deveria ser resguardada em direitos
e garantias6, tendo como pressuposto a própria igualdade.
2
Ibidem. p. 2.
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988;
15ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2012, p. 91.
4 FARIA, Heraldo Felipe de. op. cit. p. 2-3.
5 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social; 9ª ed. São
Paulo: Malheiros Editores, 2009. p. 59.
6 Ibidem.
3
O Estado como agente regulador...
71
As Constituições Mexicana de 1917, Soviética de 1918
e Weimar de 1919 com seus ideais sociais, os quais procuravam
garantir o direito das coletividades, embasaram o surgimento do
chamado Estado Social, a partir do qual, o Estado de Direito
deveria garantir a consecução de objetivos sociais, atuando
diretamente na economia7.
Por sua vez, o Estado Social significa intervencionismo,
enquanto instrumento para efetivação dos direitos proclamados
como sociais, assim, tendo como pano de fundo a própria
democracia, pretende oferecer a todos a garantia tutelar dos
direitos da personalidade8.
Após a 2ª Grande Guerra, o Estado do bem-estar social
se dedicou, especificamente, as seguintes formas de
intervenção pública na economia: redistribuição de renda, que
caracteriza como a transferência de recursos de determinado
grupo de indivíduos, região para outra, bem como a provisão de
garantias fundamentais, tais como educação, seguridade social,
assistência médica, entre outras; e a estabilização
macroeconômica, consistente em manter níveis satisfatórios de
crescimento econômico e de emprego9.
Contudo,
depreende-se
que
referidos
meios
interventivos restaram insuficientes para a efetivação dos
interesses coletivos, haja vista o surgimento das falhas de
governo ou falhas de mercado10.
Neste contexto, os Estados Modernos dedicam-se a um
novo meio de intervenção pública, além das supracitadas, à
regulação dos mercados, que visa corrigir as “imperfeições” do
mercado.
Assim, ao longo desta transformação do modelo políticoeconômico do Estado, a liberdade individual, nitidamente, sofreu
limitações, sendo que a autonomia privada encontrou restrições
na supremacia do interesse público sobre o privado, nos
fundamentos e objetivos que a Constituição Federal instituiu
7
SANTOS, Aloysio Vilarino dos. O Papel das Agências Reguladoras na
Ordem Econômica e Social. Revista da Faculdade de Direito. p. 12.
8 BONAVIDES, Paulo. op. cit. p. 61.
9 MAJONE, Giandomenico. Do Estado Positivo ao Estado Regulador:
causas e consequências da mudança no modo de governança. Livro:
Regulação Econômica e Democracia: o Debate Europeu. São Paulo:
Editora Singular, 2006. p. 2-5.
10 Ibidem, p. 4.
72
Temas jurídicos atuais: Volume VI
para a efetivação do Estado Democrático de Direito, quais
sejam: dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho
e livre iniciativa, construir sociedade livre, justa e solidária,
garantir o desenvolvimento nacional11.
Por conseguinte, a partir da atuação estatal na atividade
econômica, há passagem do voluntarismo para o dirigismo
contratual, onde o Estado, como agente regulador da economia
e garantidor dos interesses públicos (sociais), de uma sociedade
livre, justa e solidária, bem como da ordem econômica, passa a
ditar regras, instituir fundamentos que devem, em regra,
obrigatoriamente ser observados e respeitados pelas partes
contratantes12.
Este modelo regulatório de Estado tem o fim de realizar
os valores de solidariedade social com a manutenção da
democracia e da liberdade, conjugando a capacidade
empresarial com a efetivação dos interesses públicos 13, através
da instituição de mecanismos jurídicos e materiais para
acompanhamento da atividade privada no mercado, amparados
juridicamente pelos princípios constitucionais da ordem
econômica14, especialmente a livre concorrência, prejudicada
pela liberdade econômica.
A regulação da economia significa o “estabelecimento e
a implementação de regras para a atividade econômica
destinadas a garantir o seu funcionamento equilibrado, de
acordo com determinados objetivos públicos”15.
A Constituição Federal prevê que o Estado é
responsável para exercer, na forma da lei, as funções de
fiscalização, incentivo, como agente normativo e regulador da
atividade econômica16. Não obstante, para fortalecer e qualificar
esta intervenção no domínio econômico, o Estado criou as
agências reguladoras17, enquanto pessoas jurídicas de direito
11
Cf. art. 1º, incisos III e IV, e art. 3º, incisos I a III, ambos da CF/88.
GRAU, Eros Roberto. op. cit. p. 92.
13 SANTOS, Aloysio Vilarino dos. op.cit. p. 14-17.
14 Cf. art. 170 e seguintes da CF/88.
15 MOREIRA, Vital. Auto-regulação profissional e Administração
Pública. Coimbra: Almedina, 1997, pág. 9 apud SANTOS, Aloysio
Vilarino dos. op. cit. p. 18.
16 Vide Artigo 174, caput, CF/88.
17 NETO, Floriano Peixoto de Azevedo Marques; FERNANDES, Luís
Justiniano de Arantes. As Agências Reguladoras no Direito Positivo
12
O Estado como agente regulador...
73
público interno, em regra constituídas sob a forma de autarquia
especial, caracterizadas como instrumentos de descentralização
ou desconcentração da Administração Pública, cujo papel
fundamental consiste em regular a atividade econômica das
empresas privadas, agindo como verdadeiros órgãos
fiscalizadores, visando à proteção do interesse público, bem
como dos princípios e fundamentos da ordem econômica18.
A origem de uma agência reguladora relaciona-se a
certa funcionalidade no mercado, isto é, nasce para atuar
especificamente em determinado setor econômico ou atividade,
como, por exemplo, para disciplinar a defesa da concorrência e
condutas antitrustes; ou para regular as atividades mais
específicas e complexas dos serviços públicos de infraestrutura
econômica19.
No Brasil, há uma diversidade de agências reguladoras
federais atuantes nos diversos setores da economia (energia
elétrica, telecomunicações, produção e comercialização de
petróleo, recursos hídricos, mercado audiovisual, planos e
seguros de saúde suplementar, mercado de fármacos e
vigilância sanitária, aviação civil, transportes terrestres), tais
como: Agência Nacional de Telecomunicação - ANATEL,
Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, ANCINE –
Agência Nacional do Cinema, Agência Nacional de Aviação Civil
Brasileiro. In: CARDOZO, José Eduardo Martins; QUEIROZ, João
Eduardo Lopes; SANTOS, Márcia Walquiria Batista dos (coord). Direito
Administrativo Econômico. São Paulo: Editora Atlas, 2011. p. 1083.
18 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho
humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência
digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes
princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função
social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor;
VI - defesa do meio ambiente; VI - defesa do meio ambiente, inclusive
mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos
produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII
- redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno
emprego; (...) ambos da CF/88.
19 ALVEAL, Carmem. Estado e Regulação Econômica: O Papel das
Agências Reguladoras no Brasil e na Experiência Internacional.
Conferência proferida no Seminário de Direito Internacional e
Regulação Econômica. Escola Superior do Ministério Público da União.
Núcleo Regional no Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1920/05/2003. p. 3.
74
Temas jurídicos atuais: Volume VI
- ANAC, Agência Nacional de Transportes Aquaviários ANTAQ, Agência Nacional de Transportes Terrestres - ANTT,
Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis ANP, Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA,
Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS e Agência
Nacional de Águas – ANA .
Em regra, como características comuns às agências
reguladoras, relacionam-se20:
(...) 1 – serem constituídas como autarquias de regime
especial, afastando-se da estrutura hierárquica dos Ministérios
e da direta influência política do Governo, com acentuado grau
de independência; 2 – serem dotadas de autonomia financeira,
administrativa e especialmente, de poderes normativos
complementares à legislação do próprio setor; 3 – possuírem
poderes amplos de fiscalização, operar como instância
administrativa final nos litígios sobre matéria de sua
competência; 4 – possuírem controle de metas de
desempenho fixadas para as atividades dos prestadores de
serviço, segundo as diretrizes do governo e em defesa da
coletividade, às quais se acrescentam; 5 – possuírem direção
colegiada, sendo os membros nomeados pelo Presidente da
República, com aprovação do Senado Federal; 6- seus
dirigentes possuírem mandato com prazo de duração
determinado; 7 – após o cumprimento do mandato, seus
dirigentes ficarem impedidos, por um prazo certo e
determinado, de atuar no setor atribuído à agência, sob pena
de incidirem em crime de advocacia administrativa e outras
penalidades.
Assim, estes entes da administração indireta
representam inovadora forma de fortalecer e qualificar a
intervenção do Estado no domínio econômico, pois atuam de
forma conjunta com o Estado no exercício de atividades
regulatórias, isto é, que envolvem tanto regulação, fiscalização,
sanção e solução de controvérsias no âmbito administrativo do
setor econômico para o qual foram criadas21.
20
ARAUJO, Edmir Netto de. A Aparente Autonomia das Agências
Reguladoras. In: MORAES, Alexandre de (org.). Agências Reguladoras.
São Paulo: Atlas, 2002. p. 42.
21 NETO, Floriano Peixoto de Azevedo Marques; FERNANDES, Luís
Justiniano de Arantes. op. cit. p. 1083.
O Estado como agente regulador...
75
3.2.1 Surgimento das agências reguladoras no Brasil
A origem das agências reguladoras no Brasil encontrase amparada pelo direito comparado.
A ideia de criação de entes reguladores surge na
Inglaterra, a partir de 1834, quando o Parlamento institui entes
autônomos, com a finalidade de aplicação e concretização de
medidas previstas em lei, bem como decidir suas
controvérsias22.
Por sua vez, os Estados Unidos da América sofreram
influência inglesa, e a partir de 1887, iniciaram a proliferação de
uma série de agências, o que caracterizou o chamado “direito
das agências” no Direito Administrativo norte-americano, por
conta da organização descentralizada de tais entes 23.
Contudo, em razão desta descentralização e a
consequente desvinculação com o poder político americano,
aquelas agências sofreram fortes influências de agentes
privados entre os anos de 1965-1985, momento em que o
modelo começou a ser redefinido para a consolidação da
independência destes próprios órgãos, através de um controle
externo adequado24.
Diferentemente do ocorrido nos EUA, o Brasil teve forte
influência francesa, e incorporou em seus entes reguladores as
ideias de centralização administrativa e forte hierarquia 25.
No Brasil, a ideia de entes reguladores surge em
meados de 1918, com a criação do Comissariado de
Alimentação Pública, e cria novos traços com a instituição do
Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE pela lei
4.137, de 10 de setembro de 1962.
Mas, somente na segunda metade da década de 1990
que as agências reguladoras foram introduzidas no Brasil,
apresentando traço distintivo dos supracitados entes: a sua
22
GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. As Agências Reguladoras.
REDAE: Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, n. 6,
maio/junho/julho de 2006 – Salvador/BA. Disponível em:
http://www.direitodoestado.com/revista/redae-6-maio-2006-dinora.pdf,
Acesso 04/12/2012. p. 3.
23 MORAES, Alexandre de. Agências Reguladoras. In: MORAES,
Alexandre de (org). op. cit. p. 23.
24 GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. p. 4.
25 MORAES, Alexandre de. op. cit. p. 23.
76
Temas jurídicos atuais: Volume VI
independência, isto é, a autonomia funcional e financeira, com a
responsabilidade em auxiliar o Estado no papel de agente
normativo e regulador da ordem econômica, atuando em
diversos setores econômicos, para as quais forem criadas.
3.2.2 A intervenção do estado na ordem econômica
Com advento do Estado Liberal, suas razões de
existência foram direcionadas ao mínimo existencial, cumprindo
estabelecer a ordem e a paz social, relegando o mercado às
regras da iniciativa privada, pautadas meramente em critérios
econômicos. Porém, ao final do século XIX, vislumbra-se que o
mercado não é capaz de satisfazer as necessidades humanas e
tampouco possibilitar à justa distribuição de tudo aquilo que o
sistema econômico capitalista produz. Surge, então, a figura do
Estado Regulador cujo papel determinante é de fato intervir na
ordem econômica para satisfazer as necessidades públicas
definidas enquanto objetivos do Estado.
3.2.2.1 A ordem econômica e a sistemática constitucional
Ordem econômica, em regra, é uma expressão “usada
para referir uma parcela da ordem jurídica”26, significando o
conjunto de todas as normas, qualquer que seja a sua natureza,
atinentes à regulação do comportamento dos sujeitos
econômicos.
Por outro lado, na Constituição Federal, referida
expressão transcende a relação com norma, significando um
indicativo no modo de ser da economia brasileira, designando
um verdadeiro “dever-ser”27.
A Constituição, em seu Título VII, nos artigos 170 a 192,
estrutura a ordem econômica brasileira com fundamentos
voltados na valoração do trabalho humano e na livre iniciativa,
tendo o fim de assegurar a existência digna, bem como dispõe
princípios como a livre iniciativa, livre concorrência, redução das
desigualdades regionais e sociais, função social da propriedade
privada, entre outros. Assim, é com base nestes valores que as
relações econômicas “deverão ser” (estar).
26
27
GRAU, Eros Roberto. op. cit. p. 59.
Ibidem. p. 66-67.
O Estado como agente regulador...
77
A Carta magna é programática, compreendendo além
de regras, princípios gerais que se apresentam por todo o texto
constitucional e orientam o processo de hermenêutica 28. Nesse
sentido, os preceitos dos artigos 1º, 3º e 170 revelam-se
verdadeiras normas diretivas do contexto constitucional.
Alguns bem jurídicos contam com proteção especial nos
dispositivos constitucionais, estando mencionados em diferentes
qualidades ou funções 29, e se relacionam, desde os seus
fundamentos, objetivos, direitos e garantias fundamentais, até
às disposições da ordem econômica e social, como por exemplo,
a dignidade da pessoa humana.
Logo, os fundamentos e princípios da ordem econômica
estão relacionados com os próprios fundamentos e objetivos da
Constituição, e, portanto, a atuação estatal, bem como à
iniciativa privada, deve atentar-se a todas estas normas a fim de
garantir o harmônico funcionamento da economia, que significa
garantir que as relações econômicas se estabeleçam com
respeito à dignidade do trabalhador, à livre iniciativa do
empresário, à livre concorrência, visando à erradicação das
desigualdades, entre outros30.
Com efeito, para garantir a boa funcionalidade da ordem
econômica, a Constituição Federal dispõe diversas formas de o
Estado, seja enquanto agente regulador ou sujeito econômico,
atuar/intervir na ordem econômica, sanando as chamadas
“falhas de mercado”31.
3.2.2.2 Atuação e intervenção
Os termos atuação e intervenção apresentam
significados distintos. A intervenção estatal significa uma
28
SARLET, Ingo Wolfgang. As Dimensões da Dignidade da Pessoa
Humana no Estado Democrático de Direito. In: MOURA, Lenice S.
Moreira de (org.). O Novo Constitucionalismo na Era Pós-Positivista:
Homenagem a Paulo Bonavides; São Paulo: Saraiva, 2009. p. 85-120.
29 MELLO, Celso Antônio Bandeira de; Curso de Direito administrativo;
22ª edição; São Paulo: Malheiros Editores, 2007. pág. 764-765.
30 Ibidem, p. 762-763.
31 TAVARES, André Ramos. A Intervenção do Estado no Domínio
Econômico. In: CARDOZO, José Eduardo Martins; QUEIROZ, João
Eduardo Lopes; SANTOS, Márcia Walquiria Batista dos (coord). op. cit.
p. 227.
78
Temas jurídicos atuais: Volume VI
atuação na economia além da esfera pública, portanto, na área
de titularidade do setor privado, portanto, no domínio econômico.
Por outro lado, atuação estatal é a ação do Estado tanto
na área de titularidade própria, quanto em área de titularidade
do setor privado, ou seja, no campo da atividade econômica em
sentido amplo, enquanto que a intervenção reporta-se ao campo
da atividade econômica em sentido estrito32.
Em vista disto, quando o Estado presta serviço público
ou regula a prestação de serviço público, está atuando na
atividade econômica em sentido amplo, não praticando ato de
“intervenção”.
A Constituição confere tratamento diferenciado aos
termos “atividade econômica” e “serviço público”. No art. 173
enuncia as hipóteses, em caráter excepcional, em que é
permitida a exploração direta de “atividade econômica” pelo
Estado. Em contrapartida, no art. 175, define incumbir ao Poder
Público “a prestação de serviços públicos”; e, no art. 174,
determina a obrigação do Estado, como agente normativo,
regular a atividade econômica33.
Atividade econômica em sentido amplo é gênero, que
comporta as espécies: atividade econômica em sentido estrito e
serviços públicos.
Serviço público é um tipo de atividade econômica de
satisfação concreta de necessidades individuais ou
transindividuais, vinculadas diretamente a um direito
fundamental, destinadas a pessoas indeterminadas, cujo
desenvolvimento compete preferencialmente ao setor público34.
Atividade econômica em sentido estrito englobará as
demais atividades que faltar característica de essencialidade,
mesmo que seja desempenhada pelo Estado.
Assim, no art. 173 tem-se a definição de atividade
econômica em sentido estrito. As hipóteses do art. 173 são
aquelas nas quais é permitido ao Estado - União, EstadosMembros ou Municípios, atuar no campo da atividade privada.
Enquanto que o art. 174 refere-se à atividade econômica em
32
GRAU, Eros Roberto. op. cit. p. 90.
Cf. Artigos 173 a 174, CF/88.
34 MARÇAL FILHO, Justen. Serviço Público no Direito Brasileiro. In:
CARDOZO, José Eduardo Martins; QUEIROZ, João Eduardo Lopes;
SANTOS, Márcia Walquiria Batista dos (coord); op. cit. p. 370.
33
O Estado como agente regulador...
79
sentido amplo, aponta à globalidade da atuação estatal como
agente normativo e regulador35, de mesma forma com o art. 170.
3.2.2.3 As falhas de mercado
Para a ideologia do liberalismo econômico, a economia
de mercado não apresentaria distúrbios que afetassem as
transações privadas. O próprio mercado se autorregularia 36.
Entretanto, no decorrer da história, os princípios liberais
restaram insuficientes para o devido amparo de funcionamento
da economia e das necessidades públicas, em virtude disto a
intervenção pública tornou-se imprescindível para corrigir os
problemas de mercado que afetam as transações privadas.
As “falhas de mercado” são circunstâncias que
prejudicam o desenvolvimento equilibrado da ordem
econômica37.
Costuma-se reconhecer a existência de cinco falhas de
mercado38: “1ª existência de monopólios naturais e de
concentração econômica; 2ª presença de bens públicos; 3ª
externalidades; 4ª assimetrias de informação; e 5ª problemas de
coordenação”.
Na primeira falha de mercado, a capacidade de
concorrência dos mercados é comprometida. Os princípios da
livre iniciativa e da livre concorrência 39 são desrespeitados,
havendo deficiência de mercado e prática de abuso do poder
econômico.
Quanto à segunda falha de mercado, os bens públicos
envolvem a questão da dificuldade de individualizar o custo a ser
incorrido por cada um de seus usuários, tendo em vista que seu
consumo não é exclusivo, o que acaba gerando um desestímulo
35
GRAU, Eros Roberto. op. cit. p. 101-106.
SCHAPIRO, Mario Gomes. Estado, Economia e Sistema Financeiro:
Bancos Públicos como Opção Regulatória e como Estrutura de
Governança. In: LIMA, Maria Lúcia L. M. Padua (coord.) Agenda
Contemporânea: Direito e Economia, 30 anos de Brasil; Tomo 2; Cap.
04. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 120-123.
37 TAVARES, André Ramos. op. cit. p. 227.
38 SCHAPIRO, Mario Gomes. op. cit. p. 125.
39 Cf. art. 170, CF/88.
36
80
Temas jurídicos atuais: Volume VI
aos agentes econômicos a empreendê-los, haja vista nenhuma
pessoa ter sua cota parte do bem 40.
As externalidades, em regra, são problemas que o
sistema de preços, por si só, não consegue combater. Já as
assimetrias de informações traduzem a diferença de capacidade
das partes contratantes em exercer sua livre vontade contratual.
Enquanto que os problemas de coordenação relacionam-se com
problemas empresarias de investimentos interdependentes.
Estas falhas representam limites para o funcionamento
“autorregulável” dos mercados41.
Por sua vez, a mitigação de tais vícios requer do Estado
à composição de instrumentos interventores capazes de atuar
de maneira corretiva na economia, o desenvolvimento de
atividades regulatórias, tais como, criação de dispositivos
regulatórios na defesa da livre concorrência e lei antitruste,
fixação de tarifas, controle ambiental, estatização de alguns
setores econômicos (monopólios naturais), entre outras 42.
3.2.3 Formas de intervenção no domínio econômico
A doutrina clássica apresenta três modalidades de
intervenção: intervenção por absorção ou participação;
intervenção por direção e intervenção por indução 43.
No primeiro caso, o Estado intervém no domínio
econômico, no campo da atividade em sentido estrito, isto é,
suas ações são desenvolvidas enquanto agente (sujeito)
econômico.
Na intervenção por absorção, o Estado assume
integralmente o controle dos meios de produção em
determinado setor econômico, atuando em regime de
monopólio. Quanto à intervenção por participação, o Estado
assume o controle de parcela dos meios de produção, atuando
em regime de competição com as demais empresas privadas
que permanecem a exercitar suas atividades no mesmo setor44.
Verifica-se que a segunda e terceira formas de
intervenções citadas, significam uma ação do Estado sobre o
40
SCHAPIRO, Mario Gomes. op. cit. p. 127.
Ibidem.
42 TAVARES, André Ramos. op. cit. p. 225-227.
43 GRAU, Eros Roberto. op. cit. p. 143.
44 TAVARES, André Ramos. op. cit. p. 230-231.
41
O Estado como agente regulador...
81
domínio econômico, ou seja, um agir também no campo da
atividade econômica em sentido estrito, todavia, não como
sujeito econômico, e sim, como agente regulador,
desenvolvendo atividades reguladoras da ordem econômica, as
quais utilizará de seu “poder de polícia” para interferir na
economia, através da instituição de leis e atos administrativos,
conforme previsto no art. 174 da CF/8845.
Em relação à intervenção por direção, a ação do Estado
está voltada em estabelecer mecanismos e normas de
comportamento compulsório, imperativas e cogentes, que
devem ser observadas por todos os sujeitos do domínio
econômico.
Por fim, a intervenção se dará por indução quando o
Estado, manipulando os instrumentos de intervenção em
conformidade das leis que regem os funcionamentos dos
mercados, direciona a economia para os fins que almeja, como
por exemplo, através de estímulos, incentivos de toda ordem, a
quem participe de determinada atividade46.
3.3 ESTADO EMPRESÁRIO E REGULAÇÃO DO MERCADO
Regular os mercados, de uma forma geral, significa,
para o Estado, empreender ações para manter o equilíbrio das
relações econômicas, garantindo que os valores e princípios da
ordem econômica sejam respeitados 47. O Estado interfere na
ordem econômica de diversas formas, seja instituindo regras
disciplinadoras, ou participando diretamente da exploração da
atividade econômica48.
A modalidade de intervenção no domínio econômico
pressupõe atuação direta do Estado na ordem econômica,
45
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. op. cit. p. 765.
Vide ADI 3512, Relator Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, julgado em
15/02/2006, DJ 23-06-2006 PP-00003 EMENT VOL-02238-01 PP00091 RTJ VOL-00199-01 PP-0029 LEXSTF v. 28, n. 332, 2006, p. 6982.
47 Cf. item 1.2.
48 SANTOS, Cristiana Espírito Santo Rodrigues. A Excepcionalidade
Constitucional do Estado-Empresário Brasileiro. Revista Controle –
doutrina e artigos, V. IX – n.1 – Jan/Jun 2011; Tribunal de Constas do
Estado do Ceará, Instituto Escola e Capacitação Ministro Plácido
Castelo. p. 317-318.
46
82
Temas jurídicos atuais: Volume VI
assumindo o controle dos meios de produção de determinado
setor da economia.
Com efeito, a lei define os meios e possibilidades de
intervenção
estatal
enquanto
agente
econômico49,
estabelecendo quais as atividades econômicas que serão
desenvolvidas em regime de monopólio – intervenção por
absorção50, como também às hipóteses em que competirá com
a iniciativa privada nos demais setores econômicos –
intervenção por participação, caracterizando a figura do Estado
Empresário51.
A ordem econômica traz princípios e fundamentos
voltados à atividade econômica, desenvolvida por particulares.
Ficando a encargo do Estado, em regra, os serviços públicos52.
Quando o Estado presta serviço público ou regula a
prestação de serviço público não pratica ato de intervenção na
economia53.
Assim, o Estado Empresário significa a forma de
exploração da atividade econômica em sentido estrito que,
embora de titularidade do setor privado, em caráter excepcional,
tratam-se dos casos de: imperativo da segurança nacional (CF,
art. 173, caput); relevante interesse coletivo (CF, art. 173, caput);
e monopólio outorgado à União (CF, art. 177) 54.
Nos artigos 177, 21, inciso XXXIII, da CF/88, estão
dispostas as atividades exercidas em regime de monopólio, e no
artigo 173 a possibilidade excepcional de atuar nos demais
setores econômicos ao lado da iniciativa privada, quando
necessária aos imperativos da segurança nacional ou a
relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
No caso do art. 177 – monopólio do petróleo, gás
natural, e mesmo do artigo 21, XXXIII - energias nucleares, por
exemplo, as razoes creditadas aos imperativos da segurança
nacional é que justificam a previsão constitucional de atuação do
Estado, como agente econômico, no campo da atividade
49
Cf. art. 170 a art. 181 da CF/88.
Cf. art. 177, incisos I a V, CF/88.
51 Cf. item 1.3.
52 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. op. cit.
53 Cf. Item 1.2.2.
54 BARROSO, Luís Roberto. Apontamentos sobre as Agências
Reguladoras. In: MORAES, Alexandre de (org.). op. cit. 113-118.
50
O Estado como agente regulador...
83
econômica em sentido estrito, a título de monopólio, pelo
interesse nacional na exploração de tais atividades.
Não há neste caso a prestação de serviço público, haja
vista para isso o Estado não necessitar de “autorização”
constitucional, já que atender as necessidades públicas é seu
dever55.
Por sua vez, o art. 173 contempla a possiblidade de o
Estado atuar em qualquer outro setor econômico, desde que
esta intervenção seja necessária também aos imperativos da
segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, diferindose da forma de monopólio, pois, além das atividades para
exploração não estarem expressamente previstas na
Constituição, o exercício da atividade econômica se dará ao lado
de empresas privadas, em regime de competição.
Verifica-se que a presença destes requisitos para este
meio de intervenção desestimula a estatização da atividade
econômica56.
Quando a intervenção for necessária aos imperativos da
segurança nacional, significa dizer que será imprescindível para
garantir a própria existência e razão de ser do Estado. Isto
porque, determinadas atividades econômicas são estratégias
para se garantir a soberania do Estado e independência da
nação. Quanto ao interesse coletivo, embora tratar-se de
espécie de interesse público, não é o mesmo que o dos serviços
públicos. Neste caso, interesse coletivo expressam
particularismos, interesses corporativos 57.
Além disso, em proteção aos princípios da livre
concorrência e da livre iniciativa, as empresas públicas estarão
sujeitas ao mesmo regime jurídico das empresas privadas,
inclusive enquanto obrigações tributárias, comerciais,
trabalhistas e civis, sem privilégios fiscais 58.
Ainda, a lei reprimirá o abuso do poder econômico que
vise à dominação dos mercados, qualquer forma que vise
eliminar a concorrência entre a iniciativa privada e o aumento
arbitrário dos lucros do Estado-Empresário, haja vista que o seu
fim, em tese, é interferir na ordem econômica como, agente
55
GRAU, Eros Roberto. op. cit. p. 125.
TAVARES, André Ramos. op. cit. p. 243.
57 SANTOS, Cristiana Espírito Santo Rodrigues. op. cit. p. 325-328.
58 Cf. Art. 173, § 1º, inc. II e § 2º, CF/88.
56
84
Temas jurídicos atuais: Volume VI
empresário, para equilibrar os mercados, mantendo a essência
de agente regulador, e não apenas lucrar com referida atividade.
Contudo, nas últimas décadas, este modelo interventivo
enfrenta uma decadência, deixando de ser a principal forma
interventiva, dando lugar a privatização e à intervenção sobre o
domínio econômico, na medida em que as funções regulatórias
desempenhadas pelo Estado Empresário restaram ineficazes e
insuficientes59.
Diante disto, a criação das agências reguladoras marca
um novo modelo de Estado, o Estado Regulador, que concede
parcela de seu poder regulatório para estes órgãos da
administração pública indireta, enfatizando a intervenção sobre
o domínio econômico.
3.3.1 A livre iniciativa e a livre concorrência: uma análise
crítica
A livre iniciativa, um dos fundamentos da ordem
econômica, a princípio, representa a liberdade econômica ou de
iniciativa econômica do setor privado em explorar a atividade
econômica em sentido estrito.
O Estado não tem a prerrogativa de privar os
particulares do direito ao desempenho de determinada atividade
econômica ou mesmo condicioná-la a autorização do poder
público, salvo as exceções previstas em lei, como nos casos de
monopólio estatal (art. 177, CF)60.
A atividade a ser empreendida, e os meios usados para
tanto, resultam de uma livre decisão dos agentes econômicos,
por expressa previsão constitucional. Neste sentido, basta
observar que no art. 174 da Constituição, a livre iniciativa resta
assegurada na medida em que o planejamento, obrigatório para
as atividades desenvolvidas pelo Estado, é mero indicativo para
o setor privado61.
Contudo, esta é somente uma das faces da livre
iniciativa, a expressão, ainda, revela, além da liberdade
econômica da empresa privada, a liberdade titulada pelo
59
BARROSO, Luís Roberto. op. cit. p. 116-117.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. op. cit. p.766.
61 Cf. art. 170, CF/88.
60
O Estado como agente regulador...
85
trabalho, tendo em vista ser corolária da valorização do trabalho
humano62.
Com efeito, no art. 1º, a Constituição traça como um dos
fundamentos da República Federativa do Brasil os valores
sociais do trabalho e da livre iniciativa. E como alicerce da
ordem econômica, prevê, novamente, a livre iniciativa ao lado da
valoração do trabalho humano.
Assim, a Constituição Federal garante tanto a liberdade
de escolha do empresário em explorar determinado ramo do
setor econômico, como também a liberdade de escolha do
trabalho pela pessoa individualmente considerada. Além disso,
concilia esta livre iniciativa aos demais fundamentos e princípios
constitucionais, tais como: a própria valoração do trabalho
humano, dignidade da pessoa humana, defesa do consumidor,
livre concorrência, valores supralegais que consistem em
verdadeiras garantias individuais, que obrigatoriamente devem
ser preservados pelo Estado e por toda sociedade.
Evidente, portanto, a limitação da autonomia privada
diante da autonomia pública, na medida em que o Estado, com
auxílio de seus entes reguladores, institui normas orientadoras
da atividade econômica, para manter equilíbrio da ordem
econômica, do mercado e das forças sociais.
Basta uma análise do conjunto de princípios e
fundamentos esculpidos desde os artigos 1º, 2º e 3º, até o art.
170 da Constituição Federal para lograr na referida conclusão.
Constata-se que a livre iniciativa, que garante o exercício da
atividade econômica livre de impedimentos, ao mesmo tempo
deve respeitar o trabalho humano, tendo como fim assegurar a
todos, empresários e trabalhadores, uma existência digna.
Por sua vez, a livre concorrência, princípio da ordem
econômica63, é consectária da livre iniciativa. O princípio
completa o fundamento. Desrespeitada a livre concorrência, a
livre iniciativa resta prejudicada, e o abuso do poder econômico
caracterizado.
O princípio da livre concorrência significa o livre jogo das
forças de mercado na disputa da clientela64.
62
GRAU, Eros Roberto. op. cit. p. 203.
Cf. art. 170, inciso V, CF/88.
64 PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem
Econômica: o significado e o alcance do art. 170 da Constituição
63
86
Temas jurídicos atuais: Volume VI
Trata-se de igualdade jurídico formal no processo
comportamental competitivo no mercado, e não de igualdade
material entre os agentes econômicos, uma vez que o próprio
sistema de mercado garante a manifestação de poder
econômico, sendo a desigualdade inafastável em um regime de
livre iniciativa65.
O que não se admite é o abuso do poder econômico que
vise à dominação dos mercados, ou qualquer forma que objetive
eliminar a concorrência entre a iniciativa privada e o aumento
arbitrário dos lucros, de acordo com art. 173, § 4º, da CF/88.
A livre concorrência, por conseguinte, é forma de tutela
tanto do consumidor como da própria iniciativa privada. Afinal, o
abuso do poder econômico que elimine a concorrência, por
exemplo, a formação de trustes e cartéis, frustra a iniciativa
privada, ao mesmo tempo em que prejudica o direito do
consumidor em comprar produtos na lei da melhor oferta, é
maléfica a livre iniciativa.
Para reprimir o abuso do poder econômico e zelar pelos
princípios constitucionais, foi criado o Conselho Administrativo
de Defesa Econômica – CADE, inicialmente pela Lei 4.137/62,
transformado em autarquia federal pela Lei 8.884/94, alterada
recentemente pela Lei 12.529/2011, vinculado indiretamente ao
Ministério da Justiça66.
O CADE é encarregado da fiscalização da livre
concorrência no País, suas missões institucionais tem natureza
repressiva, preventiva e educativa, exercendo funções
judicantes, cujas decisões não se submetem a revisão
hierárquica, porém não se caracteriza como agência reguladora:
é uma simples autarquia, não uma autarquia especial, mas que
da mesma forma, auxilia o Estado na intervenção econômica
Federal. 2ª ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2008. p. 247.
65 REALE JR., Miguel. A Ordem Econômica na Constituição. Texto
Inédito. apud GRAU, Eros Roberto. op. cit. p. 206.
66 JÚNIOR, João Carlos Leal; PRADO, Martha Asunción Enriquez.
Análise Crítica ao Modelo de Apreciação de Atos de Concentração pelo
CADE em Cotejo com o Sistema Europeu de Defesa da Concorrência.
p. 7-12.
O Estado como agente regulador...
87
sobre o domínio econômico67, atuando na prevenção e
repressão às infrações contra a ordem econômica68.
De todos os princípios e fundamentos esculpidos,
depreende-se que a Constituição Federal apesar de adotar
como regime econômico o capitalismo, por outro lado consagra
o Estado Social, com valores sociais supremos que devem
obrigatoriamente seguidos nesta econômica de mercado.
Há uma proposta constitucional de harmonia entre a livre
iniciativa privada, a liberdade individual, proteção à propriedade
privada, exploração da atividade econômica, obtenção de lucro
do empresário, conciliada a interesses públicos, isto é, que se
referem à sociedade como um todo, como a função social da
propriedade, valoração do trabalho, dignidade da pessoa
humana, que limitam a autonomia privada.
Não obstante esta ideia de consonância entre o
capitalismo com o Estado Social, para teoria crítica, a
Constituição propõe a falsa ideia de Justiça Social, apenas
promove os ideais desta sociedade capitalista que se encontram
somente no “mundo do dever-ser”, já que a economia de
mercado perpetua e aprofunda desigualdades que estão em sua
própria origem69.
Todavia, o fim de criação do Estado é organizar a
sociedade e proteger seus administrados. Assim, sua
intervenção na ordem econômica capitalista, seja como agente
econômico, ou regulador, é necessária para que os valores
sociais sejam respeitados e efetivados, afinal, não estamos
diante do liberalismo econômico, a proposta da Constituição
Federal é de fato, de uma sociedade capitalista comprometida
com valores sociais.
67
FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Agências Reguladora: Legalidade e
Constitucionalidade. p. 19.
68 Cf. art. 36 da Lei 12.529/2011, que dispõe sobre as infrações contra
ordem econômica.
69 NOBRE, Marcos; A Teoria Crítica: Filosofia - passo a passo 47. 3ª ed.
Zahar: Rio de Janeiro, 2011. p. 21-34.
88
Temas jurídicos atuais: Volume VI
3.3.2 A internacionalização dos mercados.
A atual fase da globalização do mundo expressa um
novo clico de expansão do capitalismo70. O processo de
integração das economias e sociedades de diversos países
assume uma perspectiva surpreendente. Verifica-se um
verdadeiro “surto de universalização do capitalismo, como modo
de produção e processo civilizatório”, que cria uma nova etapa
na economia mundial: mundialização dos mercados71.
A produção capitalista ultrapassou os limites das
fronteiras geográficas, os bens produzidos nos diversos países
circulam por todo o mercado global.
Assim, a perspectiva do desenvolvimento econômico,
em razão deste mercado globalizado, não é mais local, restrita
ao mercado nacional, e sim internacional. Neste cenário, surge
para as empresas, grandes, médias e pequenas, um grande
desafio em sua reestruturação para adequarem-se as novas
exigências de produtividade, agilidade e capacidade de
inovação, a fim de ampliação dos mercados consumidores 72.
Diante disto, o Estado juntamente com suas entidades –
agências reguladoras assumem papel primordial na regulação
da economia, especialmente na proteção da livre iniciativa, para
garantir o desenvolvimento e expansão do poder econômico das
empresas nacionais para que possam competir em condições de
igualdade com as multinacionais.
Todavia, este fomento para as empresas nacionais
expandirem seus mercados pode ser prejudicial à própria livre
iniciativa dos pequenos empresários, que diante da
concentração de capital, não terão condições de sobreviverem
em seu próprio território 73.
De fato, a constituição de monopólios estatais prejudica
a livre iniciativa, afinal, o controle exclusivo de uma atividade
econômica por uma única pessoa jurídica, gera acúmulo de
grande poder econômico, sendo prejudicial aos consumidores e
a toda ordem econômica.
70
IANNI, Octavio. A Era do Globalismo. 9ª ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2007. p. 11.
71 Ibidem, p. 13.
72 Ibidem, p. 14.
73 PETTER, Lafayete Josué. op. cit. p. 179.
O Estado como agente regulador...
89
Entretanto, o incentivo de desenvolvimento das
empresas nacionais para expandirem os seus mercados, não
deve ser voltado para a dominação do mercado nacional, e sim
para a expansão do mercado a nível global.
O Estado brasileiro vivenciou grandes fusões entre
importantes empresas de vários setores econômicos. Infere-se
que dentre estas incorporações empresarias, algumas foram
benéficas para a expansão do mercado nacional, elevando a
economia a nível internacional, como por exemplo, o caso da
BRF – Brasil Foods, empresa nascida da união entre os
frigoríficos Sadia e Perdigão, e o caso da AmBev, união entre as
cervejarias Antarctica e Brahma, atualmente no ranking das três
maiores cervejarias do mundo, responsável gerar milhões de
empresas e circulação de capital no país, bem como o
recolhimento de impostos.
Por outro lado, uma fusão que a princípio não logrou
nesta “expansão do mercado”, malgrado estar aprovada pelo
CADE, foi entre as empresas Gol - Linhas Aéreas e Webjet –
Linhas Aéreas. Neste caso, a empresa Gol adquiriu a Webjet,
mas, com o intuito de dominação do mercado local, visto que a
maioria das linhas aéreas oferecidas são domésticas, e não
internacionais. Além disso, verifica-se que foi uma incorporação
maléfica ao sistema econômico constitucional, haja vista que
logo após a extinção da empresa Webjet, houve aumento de
preços das passagens aéreas, desrespeitando o direito dos
consumidores e a livre concorrência, e demissão de milhares de
trabalhadores.
Assim, o incentivo ao desenvolvimento empresarial
nacional não é sinônimo de expansão da economia no mercado
global. É necessário que o Estado e suas entidades reguladoras
ponderem sobre as atitudes empresarias que visem à
dominação do mercado nacional que prejudica a livre
concorrência, e não a internacionalização, a fim de manter em
harmonia e equilíbrio os princípios constitucionais da ordem
econômica.
3.4 A FORÇA NORMATIVA DAS AGÊNCIAS REGULADORAS
As agências reguladoras foram constituídas no Brasil
como autarquias de regime especial, integrantes da
administração pública indireta, dotadas de autonomia político-
90
Temas jurídicos atuais: Volume VI
administrativa e autonomia econômico-financeira, para realizar
as tradicionais atribuições do Estado de regular e fiscalizar a
ordem econômica74.
Por sua vez, a noção de regulação da economia implica
na integração de diversas funções75: editar regras, assegurar
sua aplicação e reprimir infrações contra ordem econômica, a
fim de manter equilíbrio dos interesses das diversas forças
sociais existentes.
Portanto, no exercício de suas prerrogativas, as
agências reguladoras detém certa competência normativa76.
Trata-se de uma forma de delegação legislativa, sendo
uma consequência do novo panorama administrativo do Estado,
que exige a descentralização da administração pública, para
efetivar as novas exigências de celeridade, eficiência, e eficácia
fiscalizatória77.
Contudo, este poder normativo das agências
reguladoras é limitado frente aos preceitos constitucionais sobre
competência legislativa, e diante da separação dos poderes, a
qual deve ser integralmente respeitada, mantendo a
centralização governamental no Poderes Políticos – Executivo e
Legislativo78.
Neste sentido, as agências reguladoras poderão receber
do Poder executivo, por meio de lei de iniciativa do Poder
executivo, uma delegação para exercer seu poder normativo de
regulação, competindo ao Congresso Nacional a fixação das
finalidades, dos objetivos básicos e da estrutura das Agências,
bem como a fiscalização de suas atividades.
Diante disto, as agências reguladoras não poderão, no
exercício deste poder normativo, inovar primariamente a ordem
jurídica, ou seja, regulamentar matéria para a qual inexista um
prévio conceito genérico em sua lei instituidora, tampouco criar
ou aplicar sanções não previstas em lei.
74
MORAES, Alexandre de. op. cit. p. 25.
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Regulação da Economia: Conceito
e Características Contemporâneas. In: CARDOZO, José Eduardo
Martins; QUEIROZ, João Eduardo Lopes; SANTOS, Márcia Walquiria
Batista dos (coord). op. cit. p. 1035.
76 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Agências Reguladoras: Legalidade e
Constitucionalidade. pág. 1.
77 MORAES, Alexandre de. op. cit. p. 19.
78 Ibidem, p. 20.
75
O Estado como agente regulador...
91
É um poder normativo complementar com fundamento
no princípio da eficiência da Administração Pública79, afinal, a
eficiência cria para o Estado a responsabilidade que não se
reduz nem ao risco administrativo, nem à igualdade perante os
encargos públicos, mas antes as incorpora em nome da
obrigação que lhe é imposta, ao exercer funções reguladoras no
mercado, de evitar as assimetrias de informação que funcionem
como um incentivo para o comportamento oportunista dos
agentes privados, levando o mercado a uma disfunção80.
A eficiência é a base constitucional da delegação de
poder às agências, por isso inexiste inconstitucionalidade. Afinal,
referido princípio exige que a Administração seja dotada de
competências reguladoras de natureza técnica e especializada,
sob pena de ineficácia dos meios regulatórios. Além disso, esta
delegação de competências é necessária como forma de
garantia da própria independência da agência reguladora, de
modo que possa tomar as imediatas decisões para a plena
regulação econômica.81
Assim, o poder normativo das agências reguladoras não
abrange o poder de inovar na ordem jurídica ou contrariá-la, mas
sim o de definir regras instrumentares que visem à proteção dos
preceitos constitucionais da ordem econômica de forma célere,
em respeito ao princípio da legalidade, e a separação dos
poderes82.
3.4.1 A regulação do direito concorrencial
Todas as leis de criação das agências reguladoras
preocupam-se em ter uma previsão para proteger a livre
concorrência e, consequentemente, o direito do usuário em
escolher livremente pelo prestador do serviço ou produtor do
bem, impedindo assim, a dominação de mercados e o abuso do
poder econômico83.
79
Cf. Art. 37, CF/88.
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. op. cit. p. 10.
81 Ibidem, p. 12.
82 ARAUJO, Edmir Netto de. op. cit. p. 55.
83 MANEZELLO, Maria D’Assunção Costa. Agências Reguladoras e o
Direito Brasileiro. São Paulo: Atlas, 2002. p. 149.
80
92
Temas jurídicos atuais: Volume VI
Todavia, além das agências reguladoras na proteção da
livre concorrência, verifica-se a presença primordial do Conselho
Administrativo de Defesa Econômica – CADE, com a atuação
regulatória prevista pela lei 12.529/10.
O CADE é entidade estatal responsável em fiscalizar os
agentes econômicos, e coibir a prática de infrações à ordem
econômica e condutas anticoncorrenciais84.
Além disso, exerce controle de atos e contratos
empresariais que possam limitar ou de qualquer forma prejudicar
a livre concorrência, ou resultar na dominação de mercados
relevantes de bens ou serviços, e das fusões e incorporações de
empresas, no sentido de impedir a dominação dos mercados 85.
Infere-se que a atuação na proteção da livre
concorrência entre o CADE e as agências reguladoras é
conjunta, afinal, diversas leis criadoras das autarquias especiais,
como, por exemplo, a lei de criação da ANATEL – lei 9.472/97
prevê a aplicação das normas gerais de proteção à ordem
econômica prevista na lei 12.529/1086.
Entretanto, desta parceria em salvaguarda da livre
concorrência, é possível que surjam conflitos de competência de
julgamentos das infrações à ordem econômica, por isso é
necessário que haja uma harmonia procedimental e decisória
entre estes entes da administração pública indireta, para que
não seja comprometida a eficiência de abertura do mercado para
a livre concorrência, e a proteção ao consumo87.
3.4.2 Regulação e normatização
A Constituição Federal, no Art. 174, expressamente faz
distinção entre os termos normatizar e regular:
Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade
econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de
fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este
84
Cf. Art. 36 da Lei 12.529/10
Cf. item 3.2.
86 Cf. art. 7º da Lei 9.472/97.
87 LEHFELD, Lucas de Souza. ANATEL e as Novas Tendências na
Regulamentação das Telecomunicações no Brasil. In: MORAES,
Alexandre de. op. cit. p. 91.
85
O Estado como agente regulador...
93
determinante para o setor público e indicativo para o setor
privado.
Normatizar é o conjunto de medidas legislativas criadas
pelo Estado para exercer as funções previstas no supracitado
artigo, como interventor econômico. Tais normas devem ser
editadas a luz das regras constitucionais de competência
legislativa, em respeito à Separação dos Poderes, cabendo,
assim, ao poder legislativo, por natureza, a edição de leis que
inovem na ordem jurídica, criando direitos, obrigações, aos
agentes econômicos.
Por outro lado, depreende-se que o termo regular possui
parcela de normatização, afinal, a regulação inclui dentre suas
funções, a de editar regras para o setor econômico88.
Contudo, como a função precípua do Poder Executivo é
de administrar, cabe a este apenas estabelecer regras
infralegais, orientadoras e disciplinadoras da ordem econômica,
que não sejam contrárias a leis, ou que caracterizem atos
autônomos89.
Assim, trata-se de uma questão definidora de
competências. E como as agências reguladoras foram criadas
justamente como órgãos da administração pública indireta,
independentes e autônomos, com o fim de regulação
econômica, não há como negar que possuem parcela de
competência normativa, que por sua vez, não se confunde com
o poder normativo do legislativo ou com o regulamentar do
executivo90.
Logo, o poder normativo das agências reguladoras é
vinculado às normas legais pertinentes, sem inovar na ordem
jurídica, e não de regulamentar leis e muito menos criar
situações jurídicas autônomas que estabeleçam novos direitos,
deveres ou penalidades, em respeito à garantia fundamental
prevista no artigo 5º, inciso II, que ninguém será obrigada a fazer
ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei, isto é, em
observância ao princípio da legalidade91.
88
Cf. item 4.
ARAUJO, Edmir Netto de. op. cit. p. 41.
90 ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de. Teoria da Regulação. In:
CARDOZO, José Eduardo Martins; QUEIROZ, João Eduardo Lopes;
SANTOS, Márcia Walquiria Batista dos (coord). op. cit. p. 1022.
91 ARAUJO, Edmir Netto de. op. cit. p. 41
89
94
Temas jurídicos atuais: Volume VI
Desta forma, tais preceitos normativos estarão
subordinados a lei criadora da agência reguladora, a qual deverá
atuar no ramo específico da atividade econômica que foi criada,
e terão como objetivo corrigir as falhas de mercado, como, por
exemplo, promovendo a adequada informação dos
consumidores, coibir práticas que visem à dominação dos
mercados e abuso do poder econômico e controlar preços 92.
3.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A economia capitalista sofreu um processo de
transformação ideológica. Com origem nos ideais do Estado
liberal, laissez faire - laissez passe, o mercado se autorregularia.
Contudo, com o passar das décadas, verificou-se, em verdade,
justamente o contrário, o mercado não consegue se
autorregular, sendo a intervenção estatal necessária para
corrigir as falhas de mercado.
Assim, o modelo de Estado Regulador surge após a
decadência deste Estado Liberal, conciliado a ideia de Estado
Social, com o objetivo de intervir direta e indiretamente na ordem
econômica, para assegurar a concretização dos interesses
públicos.
Dessa forma, para auxiliar o Estado nesta intervenção
indireta sobre o domínio econômico, surgem as Agências
Reguladoras, criadas na forma de autarquias especiais, com o
objetivo de regular a ordem econômica, fiscalizando os agentes
econômicos em suas atividades, a fim e zelar pela preservação
dos princípios da ordem econômica: valoração do trabalho
humano, livre iniciativa, livre concorrência, direito ao
consumidor, entre outros.
Depreende-se que esta regulação estatal deve ser feita
a luz novo estágio da globalização no cenário mundial: da
internacionalização dos mercados. Dessa forma, as ações
regulatórias, além de garantir a efetivação dos princípios da
ordem econômica, devem propiciar o fomento da empresa
nacional na expansão de seus mercados, a fim de que possam
92
PEREZ, Marcos Augusto. As Vicissitudes da Regulação Econômica
Estatal: Reflexão sobre as Lições do Direito Norte-Americano em
Comparação com o Direito Brasileiro. In: CARDOZO, José Eduardo
Martins; QUEIROZ, João Eduardo Lopes; SANTOS, Márcia Walquiria
Batista dos (coord). op. cit. p. 1071.
O Estado como agente regulador...
95
competir com as empresas transnacionais, sob pena de
dominação do mercado nacional pelas empresas estrangeiras.
Por outro lado, para que este processo regulatório reste
plenamente eficaz, com base no princípio constitucional da
eficiência da Administração Pública, foi delegada às agências
reguladoras uma parcela de poder normativo, respaldado em
sua independência. Todavia, este poder normativo das agências
reguladoras limita-se a expedição de regras disciplinadoras e
orientadoras da atividade econômica, não podendo inovar na
ordem jurídica, ou serem contra lei, em respeito à separação dos
poderes e ao princípio da legalidade.
Diante deste cenário de intervenção econômica, inferese que autonomia privada está limitada frente à autonomia
pública, haja vista ser função do Estado Democrático de Direito
garantir a todos os seus administrados uma sociedade livre,
justa e solidária, satisfazendo as necessidades públicas, ou seja,
embora a liberdade individual, a livre iniciativa, propriedade
privada sejam ideais liberais consagrados na Constituição, não
são absolutos, estando limitados diante dos princípios e direitos
fundamentais consagrados pelo Estado Social.
Portanto, a interpretação constitucional revela, que
malgrado o regime econômico adotado ser capitalista, existem
valores sociais que devem ser garantidos, a fim de que a própria
ordem jurídica, econômica e social seja assegurada.
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= IV =
PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS NO ÂMBITO DO
SISTEMA PENITENCIÁRIO
Carolina Emerick de Souza*
Claudinéia Veloso da Silva**
4.1 INTRODUÇÃO
O Direito Administrativo origina-se no século XVIII em
decorrência da Revolução Francesa e com ele o Estado Liberal.
Ao passar dos anos o modelo estatal evolui originando o Estado
Social e posteriormente o Estado Democrático de Direito. Neste
último modelo surge à ideia de Estado Subsidiário, onde o
contexto de incentivo a iniciativa privada e a busca da
concretização de parcerias entre ente público e privado originou
a criação das Parcerias Público-Privadas.
O surgimento das PPPs no ordenamento jurídico
brasileiro deu-se sob inspiração nas normas inglesas, tendo em
vista que o Private Finance Initiative (PFI) surgiu na Inglaterra
visando à solução ao deficit público limitador do
desenvolvimento do país. A partir de tal influência o governo
federal editou algumas leis visando fomentar a iniciativa privada
e a celebração de parcerias, sendo estas a Lei nº. 8.666/93; Lei
nº. 8.987/95; Lei nº. 9.074/95; e Lei nº. 9.648/98, e ainda a Lei nº
11.079/2004, que institui normas gerais para licitação e
contratação de parceria público-privada no âmbito da
administração pública.
As Parcerias Público-Privadas são contratos que
estabelecem vínculo obrigacional entre a Administração Pública
e a iniciativa privada visando à implementação ou gestão, total
ou parcial, de obras, serviços ou atividades de interesse público,
em que o parceiro privado assume a responsabilidade pelo
financiamento, investimento e exploração do serviço,
Graduanda do Curso de Direito. Centro Universitário Cesumar –
Maringá/PR. E-mail: [email protected]
** Professora Mestre. Universidade Estadual de Londrina – Londrina/PR.
E-mail: [email protected]
*
100
Temas jurídicos atuais: Volume VI
observando, além dos princípios administrativos gerais, os
princípios específicos desse tipo de parceria.
Neste contexto, no ano de 2009 o Governo de Minas
assinou com o consórcio nacional Gestores Prisionais
Associados (GPA), o contrato de Parceria Público-Privada (PPP)
para construção e gestão de um complexo penitenciário em
Ribeirão das Neves/BH. Tal parceria originou primeiro complexo
penitenciário do Brasil construído e administrado por empresas
particulares que fora inaugurado no ano de 2013.
O presente artigo, através da análise do contrato de PPP
prisional, traz a discussão acerca da importância da implantação
destes projetos no âmbito do sistema penitenciário brasileiro,
tendo como principais objetivos a reabilitação e ressocialização
dos condenados. Apresentando como problemática o choque de
uma garantia constitucional, que assegura a dignidade da
pessoa humana como direito fundamental, com a lei
infraconstitucional, que prevê a impossibilidade da delegação do
poder de polícia administrativa à iniciativa privada.
4.2 PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS (PPPs) NO BRASIL
4.2.1 Desenvolvimento histórico
O surgimento dos primeiros traços do Direito
Administrativo deram-se com o grande impacto da Revolução
Francesa no século XVIII, originando o Estado Liberal, modelo
estatal que caracterizava-se por um Estado com intervenção
mínima e uma sociedade civil de atuação máxima. Nesse
sentido a finalidade do Estado limitava-se em assegurar a ordem
pública, como expõe o doutrinador constitucionalista Luís
Roberto Barroso:
[...] foi a Revolução Francesa, com seu caráter universal, que
incendiou o mundo e mudou a face do Estado – convertido de
absolutista para liberal – e da sociedade, não mais feudal e
aristocrática, mas burguesa. Mais que isso: em meio aos
acontecimentos, o povo torna-se, tardiamente, agente de sua
própria história. [...]1
1
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional
Contemporâneo: os Conceitos Fundamentais e a Construção do Novo
Modelo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 47.
Parcerias público-privadas...
101
Assim o Estado pouco intervia nas questões
econômicas e sociais, restringindo-se em apenas determinar os
direitos individuais na medida do necessário para assegurar a
ordem pública, pois acreditava-se que liberdade e igualdade
existentes no meio social seriam capazes de equilibrar tais
questões, como bem aduz Pedro Lenza:
Podemos destacar então, nesse primeiro momento, na
concepção do constitucionalismo liberal, marcado pelo
liberalismo clássico, os seguintes valores: individualismo,
absenteísmo estatal, valorização da propriedade privada e
proteção do indivíduo.2
No entanto, em meados do século XIX, começam a
surgir reações negativas em relação ao Estado Liberal, tendo em
vista que, ante a falta de intervenção estatal, a burguesia passa
a ter grande atuação no poder, marginalizando os não
pertencentes a esta classe; surgindo uma nova classe social - o
proletariado - que vivia a margem da sociedade, gerando uma
enorme desigualdade econômica e social. Assim discorre Maria
Sylvia Zanella Di Pietro:
Em meados do século XIX, começam as reações contra o
Estado Liberal [...] as grandes empresas tinham se
transformado em grandes monopólios e aniquilado as de
pequeno porte; surgia uma nova classe social – o proletariado
– em condições de miséria, doença, ignorância, que tendia a
acentuar-se com o não intervencionismo estatal pregado pelo
liberalismo.3
Fica evidente que os ideais propostos na Revolução
Francesa - liberdade, igualdade e fraternidade - voltados para a
proteção da sociedade e economia, não foram de fato
observados, tornando-se impossível o fim da desigualdade
gerada pelo modelo estatal em questão, nos dizeres de Irene
Patrícia Nohara, “[...] muito embora o lema da Revolução tivesse
2
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 16. ed. São
Paulo: Saraiva, 2012. p. 58.
3 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública:
concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada
e outras formas. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 8.
102
Temas jurídicos atuais: Volume VI
sido liberdade, igualdade e fraternidade, apenas o primeiro
princípio foi efetivamente perseguido [...]”4.
Deste modo, após a Segunda Guerra Mundial,
apresenta-se uma nova modalidade estatal, o Estado Social,
visando findar com o problema advindo do modelo estatal
anterior, ou seja, o abismo existente entre os detentores do
capital e os proletariados. Para Celso Antônio Bandeira de Mello:
Até um certo ponto da História havia a nítida e correta
impressão de que os homens eram esmagados pelos
detentores do Poder político. A partir de um certo instante
começou-se a perceber que eram vergados, sacrificados ou
espoliados não apenas pelos detentores do Poder político,
mas também pelos que o manejavam: os detentores do Poder
econômico. Incorporou-se, então, ao ideário do Estado de
Direito o ideário social, surgindo o Estado Social de Direito,
também conhecido como Estado de Bem-Estar (Welfare State)
e Estado-Providência.5
O Estado passa a ter como objetivo a busca pela
igualdade entre as pessoas, intervindo na ordem econômica e
social, visando sempre o bem comum, não mais individualismo
existente no modelo estatal anterior. Nas palavras de Maria
Sylvia Zanella Di Pietro:
O Estado do Bem-estar é um Estado mais atuante; ele não se
limita a manter a ordem pública, mas desenvolve inúmeras
atividades na área da saúde, educação, assistência e
previdência social, cultura, sempre com o objetivo de promover
o bem estar coletivo.6
O novo posicionamento interventivo do Estado, onde
este monopoliza a realização de serviços públicos com a
atuação no âmbito da saúde, educação, assistência e
previdência social e cultural, ao passar do tempo apresenta
problemas pelo seu caráter impositivo e a falta de liberdade
4
NOHARA, Irene Patrícia. Direito administrativo. 2. ed. São Paulo:
Atlas, 2012. p. 19.
5 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo.
22. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 48.
6 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 24. ed. São
Paulo: Atlas, 2011. p. 3.
Parcerias público-privadas...
103
individual da população. Surgem os primeiros problemas
derivados da insuficiência do Estado em prestar serviços à
população, problemas estes gerados pelo seu crescimento e
também pela crise financeira enfrentada por este. Diante disto,
Celso Antônio Bandeira de Mello afirma:
É verdade que nos últimos anos o Estado Social de Direito
Passou, em todo o mundo, por uma enfurecida crítica,
coordenada por todas as forças hostis aos controles impostos
pelo Estado e aos investimentos públicos por ele realizados.7
Tais fatos originam um novo modelo estatal, o Estado
Democrático de Direito, segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro
neste modelo “[...] O que se almeja é a participação popular no
processo político, nas decisões do Governo, no controle da
Administração Pública”8. Ocorre neste momento a humanização
do interesse público, passando a levar em consideração os
valores essenciais à existência digna. Visando-se reduzir as
desigualdades sociais, propiciando o bem-estar social a toda a
coletividade e ainda, submeter o Estado a uma ideia de justiça,
e não à lei em sentido apenas formal.
Neste sentido, complementa Irene Patrícia Nohara:
Neste contexto, surge, a partir da segunda metade do século
XX, a reflexão acerca da necessidade de enunciação de um
Estado Democrático de Direito, isto é, de um Estado que
preservasse os objetivos sociais do Estado Social, mas que
simultaneamente procurasse garantir princípios democráticos
de uma perspectiva pós-positivista.9
Juntamente com este Estado Democrático surge a ideia
de Estado Subsidiário, não se tratando de um novo modelo
estatal, mas sim da aplicação do princípio da subsidiariedade no
modelo atual. O princípio em questão prega a diminuição da
7
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo.
22. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 49.
8 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública:
concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada
e outras formas. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 14.
9 NOHARA, Irene Patrícia. Direito administrativo. 2. ed. São Paulo:
Atlas, 2012. p. 23.
104
Temas jurídicos atuais: Volume VI
barreira entre Estado e sociedade, cabendo ao Estado por um
lado abster-se de exercer atividades que o particular tem
condições de exercer mediante sua própria iniciativa e com seus
próprios recursos, e por outro, segundo Maria Sylvia Zanella Di
Pietro, “Cabe a este promover, estimular, criar condições para
que o indivíduo se desenvolva livremente e igualmente dentro
da sociedade”10.
Esta característica determina que o Estado apenas
exercerá as atividades extremamente essenciais, tais como
defesa, segurança, legislação, polícia e justiça, delegando todo
o resto para a iniciativa privada; Tal fato gera três mudanças
marcantes no âmbito administrativo do país, sendo estas: a
prática de privatizações, o crescimento das técnicas de fomento,
e por fim, as várias ferramentas de parcerias celebradas entre o
setor público e o privado. Nesse sentido aduz Maria Sylvia
Zanella Di Pietro:
[...] a existência de serviços públicos exclusivos do Estado é
contrária ao princípio da livre iniciativa; e a ideia de que
serviços públicos possam ser prestados por empresas estatais
contraria a livre concorrência. A consequência foi a
liberalização de serviços públicos, ou seja, a privatização, não
da forma de gestão, mas das próprias atividades, que
perderam a qualidade de serviços públicos e passaram a ser
consideradas atividades privadas, abertas à livre iniciativa.11
Foi nesse contexto de incentivo a iniciativa privada e
busca da concretização de parcerias entre ente público e
privado, que se deu a criação das Parcerias Público-Privadas
(PPPs), tendo como pioneira nesta iniciativa a Inglaterra. Este
sistema surge objetivando atender à necessidade de realização
de obras de infraestrutura, para as quais o governo não dispõe
de recursos suficientes, e também privatizar a Administração
Pública, transferindo ao ente privado grande parte das funções
administrativas do Estado. Nas palavras de Fernando Vernalha
Guimarães:
10
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública:
concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada
e outras formas. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 16.
11 Ibidem, p. 17.
Parcerias público-privadas...
105
O progressivo recurso a formas de direito privado na atuação
estatal, caracterizando o que se batizou no passado de fuga
para o direito privado, introduz o direito administrativo numa
renovada esfera de relação com os privados. [...] o contraponto
da ausência de suficiente fluxo de recursos públicos à
necessidade de expansão e desenvolvimento dos Estados,
calcado primordialmente na execução de obras e serviços de
infraestrutura, conduziu à busca por novos instrumentos de
financiamento do setor público.12
Conclui-se que o surgimento das PPPs no âmbito
mundial e no âmbito nacional, é fruto de uma longa evolução do
Estado, desde a Revolução Francesa até a contemporaneidade.
Originando-se da necessidade da criação de mecanismos que
suprissem a carência do ente público e promovessem ao
máximo o bem estar social.
4.2.2 Aspectos legais
O surgimento das PPPs no ordenamento jurídico pátrio
deu-se sob inspiração nas normas inglesas, tendo em vista o
pioneirismo da Inglaterra em desenvolver projetos de parceria
entra Estado e empresas privadas, criando inicialmente o Private
Finance Initiative (PFI), visando à solução ao deficit público
limitador do desenvolvimento do país. Outros países europeus
desenvolveram formulas similares ao contrato criado na
Inglaterra, surgindo posteriormente uma terminologia universal
para tais contratos, batizada de Public Private Partnerships.
Fernando Vernalha Guimarães descreve:
Algumas iniciativas, como do Reino Unido, desenvolveram
projetos de parceirização entre Estado e empresas privadas
(Private Finance Initiative), buscando-se soluções ao déficit
(sic) público limitador do desenvolvimento. Outros países
europeus desenvolveram fórmulas similares [...] Planta-se,
nesse cenário, a noção de uma fórmula contratual
universalmente batizada de Public Private Partnerships.13
12
GUIMARÃES, Fernando Vernalha. PPP: Parceria público-privada. 1.
ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 17.
13 GUIMARÃES, Fernando Vernalha. PPP: Parceria público-privada. 1.
ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 17.
106
Temas jurídicos atuais: Volume VI
É valido ressaltar ainda a influência do ordenamento
jurídico francês, tendo em vista que a teoria do contrato
administrativo no Brasil edificou-se sobre os elementos jurídicoestruturais herdados da teoria geral e do pensamento civilista
francês do início do século XX.
Realizando inicialmente a distinção entre contrato
administrativo e contrato privada, tendo relevância apenas no
âmbito processual; sendo que no início do século, origina-se o
critério material de serviço público, fundamentando as
diferenças entre atividade pública e privada, tendo em vista que
o serviço público que busca o interesse geral, trata-se de direito
comum e portanto deve submeter-se à jurisdição administrativa.
Neste sentido afirma Fernando Vernalha Guimarães “A doutrina
francesa, acolhendo o critério do serviço público – e já
influenciada por este –, cuidou de construir uma base teórica
para a explicação do contrato administrativo [...]” 14.
Assim evidencia-se a influência estrangeira no
ordenamento jurídico pátrio, seja no que diz respeito ao sistema
de PPP propriamente dito, ou ainda, no que refere-se a teoria do
contrato administrativo, tendo em vista que esta é indispensável
para a formulação do contrato de parcerias entre ente público e
privado. Sob tal influencia complementa Maria Sylvia Zanella Di
Pietro:
Mais uma vez, o legislador brasileiro baixa normas sob a
inspiração do direito estrangeiro, seja do sistema da common
law (já que a parceria público-privada teve origem no direito
inglês), seja no direito comunitário europeu, onde o instituto
vem sendo também adotado, sem que haja um modelo único
para parcerias.15
A partir de tais influências o governo federal editou
algumas leis visando fomentar a iniciativa privada e a celebração
de parcerias, dentre estas se destacam: Lei nº. 8.666/93; Lei nº.
8.987/95; Lei nº. 9.074/95; Lei nº. 9.648/98. Tais leis são de
suma importância para o ordenamento administrativo brasileiro,
pois através do sancionamento destas foi possível editar a Lei nº
14
Ibidem, p. 28.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública:
concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada
e outras formas. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 145.
15
Parcerias público-privadas...
107
11.079/04, que veio a tratar especificamente do sistema de
PPPs, ocasião em que as leis anteriores passaram a ser
utilizadas subsidiariamente nos casos de PPP. Deste modo,
para um melhor entendimento se faz necessário tecer breves
considerações a respeito de cada uma delas, o que se passa a
fazer:
A Lei nº. 8.666, de 21 de junho de 1993, instituiu normas
para licitações e contratos da Administração Pública; e, após
algumas alterações, passou a disciplinar todos os contratos
administrativos. No que diz respeito aos contratos de obra e
serviços, abrangendo a empreitada e a tarefa, destacam-se
duas características, a de estabelecer regras próprias do regime
administrativo e também a supremacia da administração pública
sobre o ente privado, neste sentido afirma Maria Sylvia Zanella
Di Pietro:
[...] a Lei nº. 8.666/93 não apenas estabeleceu sujeições
próprias do regime administrativo (arts. 7º a 12), como também
assegurou à Administração uma série de prerrogativas que a
colocam em situação de supremacia sobre o particular.16
Sabendo-se que a Lei nº. 8.987/95 dispõe acerca da
concessão e permissão de serviços públicos, e também sobre a
concessão de obra pública; e ainda, que a Lei nº. 9.074/95
estabeleceu normas para outorga e prorrogações das
concessões e permissões de serviços públicos; a doutrinadora
Maria Luiza Machado Granziera traz em sua obra a tradicional
distinção entre concessão e permissão de serviço público, as
caracterizando da seguinte forma:
Concessão de serviço público é o contrato pelo qual a
Administração Pública delega a um particular a execução de
um serviço público em seu próprio nome, por sua conta e
risco. A remuneração dos serviços é assegurada pelo
recebimento da tarifa paga pelo usuário. 17
16
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 24. ed. São
Paulo: Atlas, 2011. p. 263.
17 GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Contratos administrativos:
gestão, teoria e prática. São Paulo: Atlas, 2002. p. 111.
108
Temas jurídicos atuais: Volume VI
Ainda no entendimento da doutrinadora, a permissão de
serviço público não possui natureza de contrato, sendo um ato
unilateral da Administração Pública, podendo ser revogado a
qualquer momento, e ainda “[...] discricionário, porque
depende de decisão de mérito administrativo [...]”18, onde devese verificar a conveniência e a oportunidade da permissão.
Já a doutrinadora Irene Patrícia Nohara afirma que
algumas diferenças entre concessão e permissão de serviço
público, anteriormente identificadas na doutrina, encontram-se
ultrapassadas na atualidade, tendo em vista o reconhecimento
da natureza contratual da permissão. Assim o artigo 40 da Lei nº
8.987/95 reiterou, ainda que em redação confusa, o
reconhecimento contratual dado pela Constituição Federal à
permissão. Sendo que o caráter de precariedade não se
coaduna com a natureza contratual da permissão, sendo esta
extinta.
Nas palavras de Irene Patrícia Nohara:
Antes se dizia que enquanto a concessão tinha natureza
jurídica contratual, a permissão era ato unilateral e precário.
Também se costumava reservar a concessão para contratos
em que houvesse investimentos mais expressivos, sendo a
permissão utilizada com maior frequência para negócios
menos dispendiosos.19
A mencionada doutrinadora destaca ainda que a
revogabilidade unilateral do contrato na modalidade de
permissão é algo que já ocorreu na concessão, mudando-se
apenas a denominação de revogação para encampação, não
devendo ser tratada como diferenciação dos institutos.
E que nem mesmo o fato do contrato de permissão ser
da modalidade de adesão diferencia-o do contrato de
concessão, pois ambos são contratos cujas cláusulas já vêm
preestabelecidas, seja nas disposições regulamentares ou na
minuta do contrato previsto no edital da licitação, sem a
possibilidade de o particular vencedor do certame inferir em sua
composição.
18
Idem.
NOHARA, Irene Patrícia. Direito administrativo. 2. ed. São Paulo:
Atlas, 2012. p. 468.
19
Parcerias público-privadas...
109
Neste sentido, na ADI nº 1.491-DF o STF decidiu que o
artigo 175, parágrafo único, da Constituição Federal, “afastou
qualquer distinção conceitual entre permissão e concessão, ao
conferir àquela o caráter contratual próprio desta”.20
Restando assim, na concepção de Irene Patrícia
Nohara, apenas duas características contrastantes entre
concessão e permissão, sendo estas:
1. concessão é feita à pessoa jurídica ou consorcio de
empresas (art. 2º, II da lei); enquanto a permissão é feita à
pessoa física ou jurídica (art. 2º, IV, da lei) – assim, não há
concessão para pessoa física, nem permissão para consórcio
de empresas; e
2. enquanto a concessão é feita na modalidade de licitação
concorrência, a permissão admite outras modalidades de
licitação.21
Consequentemente, nota-se que não há traços
relevantes para diferenciar a concessão da permissão de serviço
público, o que na prática ocasiona confusão na utilização dos
institutos. Neste sentido Celso Antônio Bandeira de Mello,
reconhece que o uso da permissão vem sendo desvirtuado,
destacando o fato de a Administração estar conferindo, a título
de permissão, serviços públicos que demandariam
permanência, estabilidade e garantias razoáveis em prol de seu
prestador. 22
A respeito da Lei nº. 9.648, de 27 de maio de 1998, essa
altera dispositivos das Leis nº. 8.666, 8.987 e 9.074; Maria Sylvia
Zanella Di Pietro leciona que por tratarem-se de leis que
dispõem sobre contratos administrativos e licitações, aplicam-se
aos Estados, Distrito Federal e Municípios apenas as normas
gerais nelas contidas.23
20
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo STF nº 117, jul. 1998.
Relator: Ministro Carlos Velloso. 1º de julho de 1998. Disponível em:
http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo117.htm
. Acessado em: 08 de out. de 2014.
21 NOHARA, Irene Patrícia. Direito administrativo. 2. ed. São Paulo:
Atlas, 2012. p. 469.
22 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo.
22. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 703.
23 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 24. ed. São
Paulo: Atlas, 2011. p. 264.
110
Temas jurídicos atuais: Volume VI
Quanto a Lei nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004,
esta institui normas gerais para licitação e contratação de
parceria público-privada no âmbito da administração pública.
Para Juarez Freitas a criação desta lei deu-se como “[...]
tentativas adicionais de enfrentar, sem recorrer à privatização
pura e simples, [...] as graves deficiências na prestação dos
serviços públicos”.24
A justificativa para criação desta lei ampara-se no
sucesso alcançado em diversos países que adotaram este
sistema, tais como Inglaterra, Irlanda, Portugal, Espanha e África
do Sul, e também na possibilidade de crescimento da econômica
nacional, tendo em vista que o ente privado supriria a carência
do ente público. Aduz Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
As justificativas constam na mensagem que acompanhou o
projeto de lei encaminhado ao Congresso Nacional [...] depois
de assinalar que o procedimento das parcerias “alcançou
grande sucesso em diversos países, como a Inglaterra,
Irlanda, Portugal, Espanha e África do Sul, como sistema de
contratação pelo Poder Público ante a falta de disponibilidade
de recursos financeiros e aproveitamento da eficiência de
gestão do setor privado”, acrescenta-se que "no caso do Brasil,
representa uma alternativa indispensável para o crescimento
econômico, em face das enormes carências sociais e
econômicas do país, a serem supridas mediante a colaboração
positiva do setor privado”.25
Por fim, percebe-se que as influências inglesa e
francesa foram indispensáveis para a evolução do ordenamento
administrativo brasileiro, tendo em vista que na primeira surgiu o
sistema de PPP propriamente dito e na segunda deu-se a
criação da teoria do contrato administrativo. Nota-se ainda que
todas as leis foram criadas com o intuito de reestruturar a
infraestrutura básica, suprindo a carência do ente público e
promovendo o bem estar social, visando a garantia dos direitos
fundamentais previstos na Constituição Federal.
24
FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios
fundamentais. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 318.
25 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública:
concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada
e outras formas. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 145.
Parcerias público-privadas...
4.3 PECULIARIDADES DO CONTRATO
ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO
111
DE
PPP
NO
4.3.1 Características dos contratos de PPP
A Lei nº 11.079/04 institui normas gerais para licitação e
contratação de parceria público-privada no âmbito da
administração pública brasileira. De acordo com essa legislação,
a contratação das PPPs poderá ser realizada por toda a
administração pública, no âmbito dos poderes da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
A partir da leitura do artigo 2º, da lei já mencionada, é
possível conceituar a PPP como um contrato administrativo de
concessão de serviço público, na modalidade patrocinada ou
administrativa; devendo o valor do contrato ser superior a
R$20.000.000,00 (vinte milhões de reais); com prazo de vigência
não inferior a cinco, nem superior a trinta e cinco anos; não
podendo ter como objeto unicamente o fornecimento de mão-deobra, o fornecimento e instalação de equipamentos ou a
execução de obra pública;
Vale ressaltar que antes da celebração do contrato, deve
ser constituída sociedade de propósito específico, incumbida de
implantar e gerir o objeto da parceria, e ainda, que a contratação
de parceria público-privada será precedida de licitação na
modalidade de concorrência, conforme prevê os artigos 9º e 10
da Lei de PPP.
Nas palavras do doutrinador Alexandre Mazza:
[...] podemos conceituar parceria público-privadas como
contratos administrativos de concessão, nas modalidades
administrativa ou patrocinada, com duração entre cinco e
trinta e cinco anos, mediante previa concorrência, com valor
do objeto superior a R$20.000.000,00 (vinte milhões de reais),
caracterizados por um compartilhamento de riscos entre
Estado (parceiro público) e pessoa jurídica privada (parceiro
privado), sendo pactuada a criação de uma sociedade de
propósito específico para administrar a parceria.26
26
MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. 3. ed. São
Paulo: Saraiva, 2013. p. 448.
112
Temas jurídicos atuais: Volume VI
Nos termos do artigo 2º, parágrafo 1º da Lei nº
11.079/04, entende-se por concessão patrocinada “a concessão
de serviços públicos ou de obras públicas de que trata a Lei nº
8.987/95, de 13-2-1995, quando envolver, adicionalmente à
tarifa cobrada dos usuários contraprestação pecuniária do
parceiro público ao parceiro privado”.27
Já a concessão administrativa, segundo o parágrafo 2º
do artigo anteriormente citado, “é o contrato de prestação de
serviços de que a Administração Pública seja a usuária direta ou
indireta, ainda que envolva execução de obra ou fornecimento e
instalação de bens”.28
Do artigo 2º e seus parágrafos, resulta que a parceria
público-privada pode ter por objeto a prestação de serviços
público ou de obras públicas, ou ainda, a prestação de serviços
de que a Administração seja a usuária direta ou indireta,
envolvendo ou não, no segundo caso, a execução de obra e o
fornecimento e instalação de bens.
Na primeira modalidade, tem-se a concessão
patrocinada, em que a remuneração compreende tarifa do
usuário e contraprestação pecuniária do parceiro público ao
parceiro privado; na segunda modalidade, tem-se a concessão
administrativa, em que a remuneração é feita exclusivamente
por contraprestação do parceiro público ao parceiro privado.
Neste sentido Fernando Vernalha Guimarães faz a
seguinte distinção:
A concessão patrocinada é um contrato administrativo de
concessão que pressupõe necessariamente o sistema tarifário
integrado por contraprestações pecuniárias da Administração
Pública.29
Na concessão administrativa não haverá tarifação como via de
ressarcimento do concessionário. O pagamento do contrato
será provido exclusivamente pela Administração.30
Para diferenciar a parceria público-privada da
concessão prevista na Lei nº 8.987/95, a Lei de PPP denominou
27
BRASIL, Lei nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004.
Idem.
29 GUIMARÃES, Fernando Vernalha. PPP: parceria público-privada. 1.
ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 90.
30 Ibidem, p. 168.
28
Parcerias público-privadas...
113
a concessão de serviço público genérica de concessão comum,
deste modo José dos Santos Carvalho Filho chama a PPP de
contrato de concessão especial de serviços públicos. 31
A Lei de Parceria Público-Privada define ainda, em seu
artigo 4º, sete diretrizes de observância obrigatória na
celebração de parcerias público-privadas, sendo estas: a)
eficiência no cumprimento das missões de Estado e no emprego
dos recursos da sociedade; b) respeito aos interesses e direitos
dos destinatários dos serviços e dos entes privados incumbidos
da sua execução; c) indelegabilidade das funções de regulação,
jurisdicional, do exercício do poder de polícia e de outras
atividades exclusivas do Estado; d) responsabilidade fiscal na
celebração e execução das parcerias; e) transparência dos
procedimentos e das decisões; f) repartição objetiva de riscos
entre as partes; g) sustentabilidade financeira e vantagens
socioeconômicas dos projetos de parceria.
Quanto às garantias, o artigo 8º da Lei de PPP prevê que
as obrigações pecuniárias contraídas pela Administração
Pública em contrato de parceria público-privada poderão ser
garantidas mediante: a) vinculação de receitas; b) instituição ou
utilização de fundos especiais previstos em lei; c) contratação de
seguro-garantia com as companhias seguradoras que não
sejam controladas pelo Poder Público; d) garantia prestada por
organismos internacionais ou instituições financeiras que não
sejam controladas pelo Poder Público; e) garantias prestadas
por fundo garantidor ou empresa estatal criada para essa
finalidade; f) outros mecanismos admitidos em lei.
Ainda acerca do artigo 8º, Alexandre Mazza destaca a
inconstitucionalidade do inciso I deste, através das seguintes
palavras:
A previsão de vinculação de receitas de impostos (art. 8º, I, da
Lei n. 11.079/2204) como forma de garantia das obrigações
assumidas pela Administração Pública é inconstitucional por
violar a norma do art. 167, IV, da Constituição Federal [...]32
31
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito
administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 415.
32 MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. 3. ed. São
Paulo: Saraiva, 2013. p. 451.
114
Temas jurídicos atuais: Volume VI
Por fim, conclui-se que a parceria público-privada, tanto
na modalidade administrativa, quanto na patrocinada, é
realizada após a análise da conveniência e da oportunidade do
emprego de PPP ao serviço que se pretende implementar, e
ainda, a avaliação de sua viabilidade econômico-financeira,
sendo esta a responsável pela definição do modelo de parceria.
4.3.2 Atividades de interesse público que podem ser
abrangidas pela PPP
Para entrar no mérito das atividades de interesse
público, inicialmente, é necessário definir seu significado, sendo
este a reunião de interesses individuais que se torna o interesse
de todos, interesse comum a cada um dos membros da
sociedade. Podendo o interesse público confrontar um direito
individual de um cidadão específico, mas nunca contrapor-se ao
conjunto de interesses individuais.
Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello:
[...] o interesse resultante do conjunto de interesses que os
indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua
qualidade de membros da sociedade e pelos simples fato de o
serem.33
Neste sentido, destaca-se a divisão criada por Renato
Alessi entre: interesse público primário e interesse público
secundário.34 Segundo expõe Marçal Justem Filho na primeira
espécie enquadram-se aqueles interesses que a Administração
deve perseguir no desempenho genuíno da função
administrativa, uma vez que abarcam os interesses da
coletividade como um todo; já a segunda diz respeito aos
33
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo.
22. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 58.
34 ALESSI, Renato. Sistema istituzionale del diritto amministrativo
italiano. Milano: Giuffrè, 1953, apud BAPTISTA, Isabelle de. O princípio
da supremacia do interesse público sobre o privado: uma análise à luz
dos direitos fundamentais e do Estado Democrático de Direito. Revista
TCEMG. Belo Horizonte. n. 1, jan. fev. mar. de 2013.
Disponível
em:
http://revista.tce.mg.gov.br/Content/Upload/Materia/1768.pdf. Data de
acesso: 27 de jul. de 2014.
Parcerias público-privadas...
115
interesses imediatos do aparato administrativo, independente
dos interesses coletivos.35
Vale ressaltar ainda, que o ideal é que os interesses
primário e secundário coincidam, mas havendo conflito entre
eles, sempre prevalecerá o interesse público primário.
Faz-se necessário também a definição de serviços
públicos, sendo estes todas as atividades administrativas
executas pelo poder público de forma direta ou indireta, ou
ainda, por colaboração dos particulares, sob regime de direito
público, para que desta forma sejam atingidas as finalidades
essenciais do Estado. Neste sentido aduz Maria Sylvia Zanella
Di Pietro:
Toda atividade material que a lei atribui ao estado para que a
exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o
objetivo de satisfazer concretamente às necessidades
coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público.36
O serviço público é sempre incumbência do Estado,
conforme previsto no artigo 175 da Constituição Federal. No
entanto não só o poder público realiza a prestação de serviços
públicos, o que faz por meio dos entes da administração pública
direta (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e indireta
(autarquias, fundações públicas, empresas públicas e
sociedades de economia mista); mas também ocorrem as
parcerias firmadas entre a administração e os particulares, como
no caso das concessionárias e permissionárias de serviços
públicos.
Nos termos do artigo 175 da Constituição Federal
“Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob
regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação,
a prestação de serviços públicos”.37
Neste contexto, é valido destacar que a transferência do
serviço público de titularidade do Estado pode dar-se através da
outorga ou pela delegação. Sendo a outorga a transferência da
35
JUSTEM FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo:
Saraiva, 2005. p 38-39.
36 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 24. ed. São
Paulo: Atlas, 2011. p. 103.
37 BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de
outubro de 1988.
116
Temas jurídicos atuais: Volume VI
própria titularidade do serviço da pessoa política (Estado) para a
pessoa administrativa (entidade criada pelo Estado), que o
desenvolve em seu próprio nome e não no de quem transferiu,
é sempre feita por lei e somente por outra lei pode ser mudada
ou retirada.
Já na delegação, o Estado transfere unicamente a
execução do serviço, sem transferir a titularidade, para que o
ente delegado o preste ao público em nome do Estado, mas por
sua conta e risco; assim ocorre com a concessão, permissão e
autorização, como modalidades de delegação de serviços.
A esse respeito declina Irene Patrícia Nohara:
Diz-se que o Estado tanto pode praticar descentralização por
serviços ou por colaboração. Na descentralização por
serviços, há o fenômeno da outorga, ou seja, o Estado cria ou
autoriza a criação de uma pessoa jurídica à qual se transfere
por lei a titularidade do serviço público. [...]
Já a descentralização por colaboração designa a
transferência da execução de determinado serviço por meio de
contrato ou por ato unilateral, à pessoa privada previamente
existente e que vença a licitação, caso em que o Estado
conserva a titularidade do serviço. Delegação a particulares é
a transferência pela via contratual de serviços públicos.38
Evidencia-se que para a atividade de interesse público
ser abrangida pela PPP depende da delegação desta por parte
do Estado, como exemplo tem-se o ato do Comitê Gestor de
Parceria Público-Privada Federal - CGP, por intermédio da
Resolução nº 3, de 14 de dezembro de 2011, que definiu os
projetos prioritários para execução no regime de parceria
público-privada, abaixo relacionados:
I - modernização da infraestrutura e operação dos órgãos
destinados ao reparo e à manutenção dos meios navais
(Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro);
II - implantação de infraestrutura, operação e manutenção do
complexo esportivo do Centro de Educação Física Almirante
Adalberto Nunes (CEFAN);
III - construção e manutenção de empreendimento residencial
a ser empregado como Próprio Nacional Residencial (PNR), a
38
NOHARA, Irene Patrícia. Direito administrativo. 2. ed. São Paulo:
Atlas, 2012. p. 467.
Parcerias público-privadas...
117
fim de atender o pessoal que comporá as instalações das
Organizações Militares do Complexo Naval em Itaguaí;
IV - construção e manutenção de novo Colégio Militar em
Manaus - AM;
V - modernização da infraestrutura de abastecimento de
veículos militares e seus serviços correspondentes
(Abastecimento e Gerenciamento de Frota);
VI - fabricação e manutenção de novo fuzil desenvolvido pela
Indústria de Material Bélico do Brasil (Fuzil-Imbel);
VII - concessão dos Parques Nacionais de Jericoacara, Serra
das Confusões, Sete Cidades e Ubajara; e
VIII - concessão dos Parques Nacionais de Brasília, da
Chapada dos Veadeiros e das Emas.39
Serve também como exemplo o projeto aprovado pela
Câmara Municipal de Maringá, na data de 06 de agosto de 2014,
que autoriza a Prefeitura de Maringá a abrir licitação para
conceder os serviços de coleta, tratamento e destinação final
dos resíduos sólidos por meio de parceria público-privada
(PPP).40
Tem-se ainda, a PPP Prisional de Ribeirão das
Neves/BH, onde no ano de 2009 o Governo de Minas assinou
com o consórcio nacional Gestores Prisionais Associados
(GPA), o contrato de Parceria Público-Privada (PPP) para
construção e gestão de um complexo penitenciário, visando
através da modernização da gestão pública atingir uma política
de segurança ligada aos direitos humanos, prezando pela
reintegração do preso e o bem-estar da sociedade.
Frequentemente a PPP também é utilizada em setores
como rodovias, ferrovias, aeroportos, portos, transporte urbano,
39
COMITÊ GESTOR DE PARCERIA PÚBLICO-PRIVADA FEDERAL CGP. Com base no disposto pelo art. 14, I, e pelo art. 2º, § 3º, do
Decreto nº 5.977, de 1º de dezembro de 2006, por unanimidade,
resolve. Resolução nº 3, de 14 de dezembro de 2011, publicada no
Diário Oficial de 27 de agosto de 2012. Disponível em:
http://www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/Arquivos/ppp/legisl
acao/federal/resolucoes_2e3_2011.pdf. Acesso em: 26 de jul. 2014.
40 GATTI, Murilo. Câmara aprova PPP para a coleta de lixo. odiario.com,
Maringá,
06
de
ago.
de
2014.
Disponível
em:
http://digital.odiario.com/cidades/noticia/854896/camara-autorizaprefeitura-terceirizar-a-coleta-de-lixo/. Acessado em: 07 de ago. de
2014.
118
Temas jurídicos atuais: Volume VI
saneamento e tratamento de esgotos, geração, transmissão e
distribuição de energia elétrica, petróleo e gás, construção de
prédios públicos, unidades prisionais, habitação, escolas,
hospitais, centros de convenção, entre outros.
Assim sendo, os projetos de PPP abrangem diversos
setores de infraestrutura, bastando para tanto haver a carência
da atividade e a possibilidade de delegação por parte do Estado.
4.2.3 Vantagens e desvantagens dos projetos de PPP
Todo e qualquer empreendimento é passível de
vantagens e desvantagens, o objetivo do tema ora abordado é
enumerar os benefícios e os riscos que advém das PPPs.
A doutrina acusa vantagens relevantes para a Parceria
Público-Privada no que tange aos riscos da atividade e aos
fatores econômicos do empreendimento:
Compartilhamento de riscos entre a Administração Pública e o
setor privado no contrato de PPP; eficiência, aperfeiçoamento
e qualidade na prestação do serviço público, tendo em vista o
emprego das competências do setor privado e a vinculação da
sua remuneração ao seu respectivo desempenho; otimização
da construção em termos de prazo e custo devido à ausência
de descontinuidades;41
Também aponta como positivas a “integração do
projeto, da construção e da operação permite ponderações
(trade-offs) entre investimentos e custos de manutenção,
operação e modernização e atualização das facilidades”;
igualmente, a “garantia na prestação do serviço, pois a
remuneração está vinculada à disponibilidade de uma utilidade
ou à prestação de um serviço, não a uma atividade isolada
(projeto, execução, manutenção, etc.)”.42
41
FIOCCA, D. e OLIVEIRA, G., apud GRILO, Leonardo, et al. A
implementação de Parcerias Público-Privadas como alternativa para a
provisão de infra-estrutura e serviços públicos no brasil: visão geral.
Secretaria de Estado de Economia e Planejamento: Programa de
Parcerias Público-Privadas do Estado do Espírito Santo. . Vitória.
Disponível
em:
http://www.ppp.es.gov.br/_midias/pdf/914b4477c456a43.pdf. Data de acesso: 27 de jul. de 2014.
42 Idem.
Parcerias público-privadas...
119
Da mesma forma tem-se a possibilidade de antecipar
investimentos, que pode ser quitado ao decorrer do tempo,
através de recursos advindos da exploração econômica do
serviço ou pela remuneração paga pela administração.43
Além desses aspectos, a doutrina ainda destaca como
vantajosos:
Aumento da carteira de projetos economicamente viáveis,
tendo em vista a possibilidade de execução de projetos sem
auto-sustentação financeira com contraprestação do Estado;
confiabilidade para o setor privado, em virtude da estabilidade
e das garantias no contrato; flexibilidade do contrato, uma vez
que o contratado assume não somente obrigações de meio
como também de resultado e dispõe de certa liberdade para a
execução do serviço;44
Outrossim ressalva-se a “possibilidade de um
investimento contínuo do ente privado durante todo o contrato”;
e também o “prazo limite de execução (35 anos) superior ao
fixado na legislação atual (05 anos), possibilitando o
desenvolvimento de projetos de infra-estrutura (sic) de grande
porte”;45
Por fim, pode-se apresentar a possibilidade da partilha
entre setor público e privado de ganhos como vantajosa, e ainda,
o aumento da eficiência no desempenho do serviço visando o
bem comum.46
Embora possuam inúmeras vantagens, as PPPs podem
oferecer sérios riscos, caso sua adoção seja feita sem um bom
planejamento e sem mecanismos de controle, afetando a
eficiência na realização da obra. Assim, Valter Moura do Carmo
e Thalita Carneiro Ary pontuam como desvantagens das PPPs o
choque de interesses entre o setor privado envolvidos nas PPP
43
FIOCCA, D. e OLIVEIRA, G., apud GRILO, Leonardo, et al. A
implementação de Parcerias Público-Privadas como alternativa para a
provisão de infra-estrutura e serviços públicos no brasil: visão geral.
Secretaria de Estado de Economia e Planejamento: Programa de
Parcerias Público-Privadas do Estado do Espírito Santo. . Vitória.
Disponível
em:
http://www.ppp.es.gov.br/_midias/pdf/914b4477c456a43.pdf. Data de acesso: 27 de jul. de 2014.
44 Idem.
45 Idem.
46 Idem.
120
Temas jurídicos atuais: Volume VI
e a sociedade destinatária dos serviços e atividades; o
planejamento inadequado dos arranjos; o risco acentuado de
aumento do endividamento público; o excesso de projetos; a
gestão de projetos ineficientes; os atrasos e aumentos de
custos; a degradação prematura dos ativos; e por fim os custos
elevados de operação e manutenção.47
Pode-se destacar ainda como desvantagem específica
da PPP no âmbito penitenciário, a colisão entre a
indelegabilidade do poder de polícia, prevista na Lei
11.079/2004, com os direitos fundamentais inerentes a cada ser
humano, previstos na Constituição Federal. Onde de um lado
têm-se os defensores da impossibilidade da delegação de
determinadas funções ao ente privado para a manutenção do
poder administrativo nas mãos do Estado, e de outro os que
colocam acima de qualquer outra norma a garantia de preceitos
fundamentais como a dignidade da pessoa humana, saúde,
trabalho, entre outros.
Por fim, nota-se que o número de desvantagens se faz
menor do que o número de vantagens proporcionadas pelas
PPPs, o que torna esta espécie de parceria eficiente e vantajosa
para o Estado, ainda que possua alguns riscos, tendo em vista
que trata-se de um mecanismo que visa suprir a carência do ente
público e promover a garantia do bem estar social através da
preservação dos direitos fundamentais.
4.3.4 Necessidade de um regulamento adequando o
contrato de PPP
A Lei nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004, instituiu
normas gerais para licitação e contratação de parceria públicoprivada no âmbito da Administração Pública, no entanto a partir
de uma análise minuciosa desta lei é possível notar a
necessidades de ajustes normativos e uma sistemática
redefinição da ambiência regulatória. Nas palavras de Juarez
Freitas:
47
CARMO, Valter Moura do. ARY, Thalita Carneiro. A parceria públicoprivada como forma de viabilizar os investimentos em infra-estrutura no
país. Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Florianópolis,
2006.
Disponível
em:
http://www.sbpcnet.org.br/livro/58ra/SENIOR/RESUMOS/resumo_112
3.html. Data de acesso em: 27 de jul. de 2014.
Parcerias público-privadas...
121
As parcerias público-privadas/PPPs, previstas na Lei
11.079/2004, embora imprescindíveis ajustes normativos e
aconselhável uma sistemática redefinição da ambiência
regulatória, são tentativas adicionais de enfrentar, sem
recorrer à privatização pura e simples, os sérios “gargalos” da
congestionada infra-estrutura (sic) e as graves deficiências na
prestação dos serviços públicos.48
Neste sentido, nota-se que o doutrinador Juarez Freitas
é um dos pioneiros na discussão acerca da inicial
desnecessidade da criação do modelo de contrato de PPPs, e
posteriormente a criação da Lei nº 11.079 de 2004, destaca a
necessidade de um regulamento adequando o contrato de PPP.
Primeiramente Juarez Freitas destaca que o contrato de
PPPs é um modelo de “concessão” do Poder Público
diferenciado das “concessões comuns” previstas na Lei nº 8.987
de 1995, distinguindo-se no que diz respeito à contraprestação
pecuniária. Sendo que esta prestação poderia ocorrer através da
admissão do adicional da tarifa pelo Poder Público no contrato
de “concessão comum” por meio da complementação da Lei nº
8.987. Assim o meio juridicamente mais viável teria sido inserir
aperfeiçoamentos às Leis de Concessões e de Licitações, com
muito maior sistematicidade e proveito prático, ocasião em que
seria dispensável a criação do modelo de PPP.
Em seguida o doutrinador afirma que, a criação da lei de
PPPs foi mais impactante na esfera do marketing político do que
seria a simples alteração das Leis de Concessões e de
Licitações, e tendo em vista que já há a previsão do contrato de
PPP em uma lei específica, a solução atual é a alteração e
melhoria da lei existente.
As PPPs, no demasiado estrito modelo brasileiro, são
“concessões” do Poder Público (ao lado das examinadas
“concessões comuns”) que assumiram versão limitada no
cotejo com a experiência internacional. Isso porque quiseram
ser versões “blindadas” de contratos administrativos, com
profusão de garantias apenas de pergaminho. Teria sido
juridicamente viável – ainda que menos impactante na esfera
48
FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios
fundamentais. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 318.
122
Temas jurídicos atuais: Volume VI
do marketing político – inserir aperfeiçoamentos às Leis de
Concessões e de Licitações, com muito maior sistematicidade
e proveito prático.49
Nota-se que regulação pública das PPPs e também das
concessões “comuns” deve fazer parte do rol das mudanças
institucionais urgentes, com incorporação do que há de melhor
nas tendentes mudanças de paradigma do Direito
Administrativo.
Dentre as reconfigurações necessárias Juarez Freitas
destaca que:
Deve haver uma mudança de estilo da regulamentação estatal,
abandonando as práticas de imposição unilateral e autoritária,
reconhecendo a primazia vocacional da conciliação, da
arbitragem e da mediação, sem abdicar, quando impositivo, de
seu poder-dever de punir; o desenvolvimento de competência
técnica compatível com o primado da persuasão e da
negociação, ou seja, investir na qualificação específica dos
agentes reguladores.50
Aponta ainda a necessidade de alcançar o equilíbrio
entre retornos econômicos e sociais, respeitando a
intangibilidade da equação econômico-financeira, e também a
divisão de ganhos e benefícios entre o parceiro público com o
usuário.51
A doutrina destaca ainda como indispensável:
a regulação de PPPs e das concessões “comuns” deve ser
socialmente controlada, assim como a atuação do Órgão
Gestor, para evitar excesso intrusivo do Executivo; profunda e
democrática reforma institucional que consagre as Agências e
as demais autarquias reguladoras (tais como o CADE e a
CVM) como órgãos de Estado, mais que de governo, apesar
de integrarem a Administração indireta; evitar o equívoco
assaz comum de facciosismo ou de unilateralismo: seu
objetivo é o de tutelar a pluridimensionalidade da delegação
49
FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios
fundamentais. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 319.
50 FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios
fundamentais. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 350.
51 Ibidem, p. 351.
Parcerias público-privadas...
123
contratual, não hesitando em adotar medidas sancionatórias
até em ralação às pessoas jurídicas de direito público;52
E ainda, salienta que “o Estado Regulador tem o dever
de observância da rede de direitos fundamentais, mais que das
regras, não podendo praticar o não direito”; e acrescenta “a
regulação estatal precisa operar como redutora consistente dos
custos de transação”.53
Por fim traz o fato de que deve haver a promoção do
desenvolvimento, em todos os âmbitos, destacando-se o
desenvolvimento humano, e ainda, tendo em vista função social
da PPP, deve haver também a transparência no âmbito do setor
regulado e no exercício da sua própria missão.54
Em resumo são estas as propostas, apresentadas por
Juarez Freitas, voltadas a renovar a regulação brasileira,
visando aperfeiçoamento do Direito Administrativo, ante as
necessidades do Século XXI e sua crise regulatória mundial.
4.4 PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS (PPPs) NO ÂMBITO
DO SISTEMA PENITENCIÁRIO
4.4.1 Implantação de projetos de PPP no âmbito do sistema
penitenciário
Um dos grandes problemas enfrentados pela
administração pública é a precariedade e ineficiência do sistema
prisional brasileiro, onde os locais que em tese serviriam para
reabilitação e ressocialização dos condenados, na prática são
caracterizados pela superlotação carcerária. Assim a estrutura
física dos estabelecimentos penais tornam-se insuficientes para
a demanda, submetendo os presos a um ambiente insalubre, de
condições precárias de alimentação, vestuário e higiene.
A ex-detenta, Rosiane Cristina R. Costa, consegue
retratar em seu artigo, Memória do Cárcere, de uma forma clara,
profunda e chocante, a falência do sistema prisional e a violação
dos direitos humanos, regra dentro do cárcere:
52
Ibidem, p. 352.
Ibidem, p 353.
54 Ibidem, p 354.
53
124
Temas jurídicos atuais: Volume VI
Ninguém ali dentro está comprometido com a ressocialização,
nos dizem o tempo todo que somos culpadas, vagabundas,
burras, inúteis... Fazem com que a gente se sinta como vermes
perto delas, passam para gente que elas são certas porque
estão cumprindo com o dever social (trabalhar por um mísero
salário até a morte), e nós não, somos seres anormais,
aberrações e muito mais...
O Estado finge que está tudo bem e para a sociedade fica a
impressão de que uma pessoa que é presa não muda porque
não presta. Mas não é essa a realidade. O Estado não oferece
as mínimas condições para que um criminoso seja reintegrado
na sociedade. Não há saúde no sistema prisional em nenhum
sentido, não há saúde física e muito menos psicológica. Para
quem não tem visita não há o que comer, não há remédios e o
pior: essas pessoas são as mais castigadas porque eles
sabem que não vai haver ninguém para denunciar.55
Tendo em vista que o Estado encontra dificuldades em
administrar o sistema prisional e garantir os direitos humanos
mais elementares, a proposta de constituir Parcerias PúblicoPrivadas aparece como uma das soluções viáveis para a crise
atual.
O Estado de Minas Gerais, objetivando atrair empresas
privadas para construir e gerenciar os presídios, no dia 17 de
janeiro de 2008, lançou o modelo de PPP, na modalidade de
concessão administrativa, aplicado no sistema penitenciário pela
primeira vez no Brasil. Envolvendo a construção de cinco
unidades prisionais que abrigarão sentenciados do sexo
masculino e uma central de serviços em Ribeirão das Neves,
região metropolitana de Belo Horizonte, numa área cedida pela
CODEMIG (Companhia de Desenvolvimento Econômico de
Minas Gerais), conforme disposto no edital de concorrência n.º
01/2008 do Estado de Minas Gerais:
O ESTADO DE MINAS GERAIS, por meio da SECRETARIA
DE ESTADO DE DEFESA SOCIAL – SEDS –, torna público
55
COSTA, Roseane Cristina R. Memórias do Cárcere. In: MATTOS,
Virgílio de (Org.). Desconstrução das Práticas Punitivas, apud
GUEDES, Cristiane Achilles. A Parceria Público-Privada no sistema
prisional. Revista do CAAP. Belo Horizonte. v. 31, n. 1, jan.-jun. de
2010.
Disponível
em:
http://www2.direito.ufmg.br/revistadocaap/index.php/revista/article/view
File/267/265. Data de acesso: 27 de jul. de 2014.
Parcerias público-privadas...
125
que fará realizar a LICITAÇÃO acima identificada, sob a
modalidade de concorrência internacional, para a seleção de
proposta mais vantajosa e contratação de CONCESSÃO
ADMINISTRATIVA para a construção e gestão de complexo
penal no Estado de Minas Gerais, em conformidade com a Lei
Federal nº 11.079/04, a Lei Estadual nº 14.868/03 e,
subsidiariamente, com a Lei Federal nº 8.666/93 e suas
alterações, Lei Federal nº 8.987/95, Lei Federal nº 9.074/95, e
demais normas que regem a matéria, regulando-se pelo
disposto no presente EDITAL.56
O Complexo Penal será composto das seguintes
Unidades Penais: 3 unidades - Regime Fechado com 608 vagas
cada uma; 2 unidades – Regime Semiaberto com 608 vagas
cada uma; 1 unidade Central de Serviços denominada Célula–
mãe; Portanto a capacidade total do Complexo Penal será de
3.040 vagas, assim distribuídas: 1.824 vagas em Regime
Fechado e 1.216 vagas em Regime Semiaberto.
A assinatura do contrato para início da construção do
complexo penitenciário deu-se em 16 de junho de 2009, pelo
então governador Aécio Neves e pelo ex-secretário de Estado
de Defesa Social, Maurício Campos Júnior, com o consórcio
Gestores Prisionais Associados (GPA), vencedor da licitação.
Ao assinar o contrato para a construção do complexo
penitenciário de Ribeirão das Neves, o ex‐governador enfatizou:
Estamos fazendo mais uma vez história em Minas. O que
estamos contratando não são apenas vagas no sistema
prisional que, eventualmente, poderia levar à impressão de
que haveria privatização do setor, estamos contratando
resultados. Foram estabelecidos parâmetros muito objetivos
que a empresa terá que cumprir, do ponto de vista da garantia
da segurança, por exemplo, como inibição de fugas, seja o
caminho da ressocialização dos presos, e oportunidade de
trabalho e de educação.57
56
ESTADO DE MINAS GERAIS, Edital de Licitação: Concorrência nº
01/2008 – SEDS/MG, de 17 de janeiro de 2008. Disponível em:
http://www.ppp.mg.gov.br/images/documentos/Projetos/concluidos/Co
mplexo_Penal/edital_e_anexos/Corpo%20do%20Edital%2001.2008.p
df. Acessado em: 08 de out. de 2014.
57 Aécio Neves assina contrato para da construção da primeira
penitenciária do país por meio de PPP. SEDS, Belo Horizonte.
126
Temas jurídicos atuais: Volume VI
No contrato de PPP prisional foram firmados os deveres
de cada um dos parceiros, onde o ente privado é responsável
pela execução de projetos de educação de qualidade,
frequência de presos trabalhando e estudando, atendimento
psicológico e jurídico, sistema de contenção de presos,
infraestrutura da cela e do presídio, alimentação, rouparia,
higiene, cuidados com a saúde, entre outros.
Já o Estado, por sua vez, é responsável pela custódia,
tutela, encaminhamento e execução da pena dos condenados.
Neste sentido explica o coordenador da unidade setorial de PPP
da Secretaria de Estado de Defesa Social (SEDS), Marcelo
Costa:
Em cada unidade há um gerente de operações do parceiro
privado e um diretor público de segurança, responsável pelas
questões disciplinares, o que é uma função indelegável.58
A transferência de presos começou no dia 18 de janeiro
de 2013, sendo que no dia 28 do mesmo mês, o governador
Antonio Anastasia inaugurou a Unidade I do Complexo Prisional
Público-Privado, ocasião em que afirmou:
Essa inovação das PPPs é fundamental, porque conseguimos
conciliar as questões formais, próprias do processo de
execução penal, com aquilo que há de mais moderno em
gestão privada, especialmente nas questões relativas àquilo
que é o cerne dessa PPP, que é a reinserção da pessoa na
sociedade, dando a ela trabalho e educação.59
Disponível
em:
https://www.seds.mg.gov.br/index.php?option=com_content&task=vie
w&id=673&Itemid=71. Acessado em: 21 de ago. de 2014.
58 Tecnologia e humanização são destaques na PPP Penitenciária.
SEDS,
Belo
Horizonte.
Disponível
em:
https://www.seds.mg.gov.br/index.php?option=com_content&task=vie
w&id=1651&Itemid=71. Acessado em: 21 de ago. de 2014.
59 Governo de Minas inaugura primeira penitenciária do Brasil feita em
parceria público-privada. SEDS, Belo Horizonte. Disponível em:
https://www.seds.mg.gov.br/index.php?option=com_content&task=vie
w&id=2102&Itemid=71. Acessado em: 21 de ago. de 2014.
Parcerias público-privadas...
127
Deste modo, nota-se que o objetivo central da PPP
prisional é garantista, cumprindo o ideal constitucional da pena
privativa de liberdade que é a reinserção do sentenciado à
sociedade, preservando todos os seus direitos e garantias
previstos na Lei Maior; gerando um grande benefício não só para
o egresso, mas também e principalmente para toda a sociedade,
que se beneficia com maior chance de reabilitação do outrora
delinquente, diminuindo as chances desse individuo incorrer em
um novo desvio de conduta.
As Unidades II e III foram inauguradas em setembro de
2013 e junho de 2014, respectivamente. Cada um dos presos do
CPPP custa atualmente ao Estado cerca de R$ 2.700 por mês,
incluindo os custos da construção dos pavilhões, em
contrapartida no sistema presidiário de Minas Gerais, o custo
mensal de cada preso é de R$ 2.800. 60
De acordo com o Ministério da Justiça, o custo per capita
mensal, nas 1.420 penitenciárias estaduais do país, é em média
de R$ 1.800. Já nos quatro presídios federais de segurança
máxima (Campo Grande, Catanduvas, Porto Velho e Mossoró),
que abrigam os criminosos mais perigosos do país e chefes de
quadrilhas organizadas, o custo por mês de cada preso é de R$
3.312, também em média. 61
O custo mensal por preso vem previsto na Cláusula 12
do contrato de PPP prisional:
CAPÍTULO V – DO VALOR ESTIMADO DO CONTRATO E
DA REMUNERACAO DA CONCESSIONÁRIA
CLÁUSULA 12 – DO VALOR ESTIMADO DO CONTRATO
12.1. O VALOR ESTIMADO DO CONTRATO é de R$
2.111.476.080 (dois bilhões e cento e onze milhões e
quatrocentos e setenta e seis mil, setecentos e oitenta reais),
calculado com base na soma dos valores nominais, constantes
em valores de 2008, da CONTRAPRESTAÇÃO PECUNIÁRIA
MENSAL e da PARCELA ANUAL DE DESEMPENHO,
60
Com custo mensal de R$ 2.700 por detento, primeiro presídio privado
do país é inaugurado em Minas Gerais. SEDS, Belo Horizonte.
Disponível
em:
http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimasnoticias/2013/01/17/com-custo-mensal-de-r-2700-por-detentoprimeiro-presidio-privado-do-pais-e-inaugurado-em-minas-gerais.htm.
Acessado em: 08 de out. de 2014.
61 Idem.
128
Temas jurídicos atuais: Volume VI
calculadas com base no teto do VALOR DA VAGA DIA
DISPONIBILIZADA E OCUPADA EM UNIDADE DE REGIME
FECHADO, ao longo do período de CONCESSÃO
ADMINISTRATIVA.
12.2. O teto do VALOR DA VAGA DIA DISPONIBILIZADA E
OCUPADA EM UNIDADE DE REGIME FECHADO previsto no
item 10.12 e do EDITAL DE CONCORRÊNCIA Nº 01/2008 SEDS é de R$ 75,00 (setenta e cinco reais), sendo que o
VALOR DA VAGA DIA DISPONIBILIZADA E OCUPADA EM
UNIDADE DE REGIME FECHADO proposto pela
CONCESSIONÁRIA e adjudicado na LICITAÇÃO é de R$
74,63 (setenta e quatro reais e sessenta e três centavos), na
base da PROPOSTA ECONÔMICA.62
Neste sentido, nota-se que a implantação do CPPP
torna-se vantajosa também aos cofres públicos, pois o valor de
R$ 2.700 pagos por mês por cada preso da CPPP inclui os
custos da construção dos pavilhões, já o custo de R$2.800 ao
mês de cada preso no sistema presidiário de Minas Gerais não
inclui tais valores, assim o sistema de PPP prisional gera uma
economia nos custos que o Estado teria na construção de uma
unidade prisional do mesmo porte.
Na data de 27 de novembro de 2013 surge a primeira
falha do Complexo Prisional, a fuga de um detento da Unidade
I, apesar de ser considerada uma prisão moderna e de extrema
segurança, a penitenciária começa a apresentar problemas
internos comuns às prisões existentes em todo o país. Pela
gravação do sistema de vigilância do CPPP conclui-se que a
fuga ocorreu em razão de falha na segurança, haja vista que
nenhum funcionário vigiava a unidade onde são fabricados
macacões, lá estavam somente o fugitivo e outros dois detentos
que colaboraram com a fuga.
Conforme previsto no contrato, o não cumprimento das
condições estabelecidas, como por exemplo, a ocorrência de
fugas e rebeliões, implicará em desconto automático no valor a
ser pago pelo Estado. Portanto devido ao ocorrido, a Empresa
GPA, parceira privada na administração do CPPP, pode ser
multada em R$ 900 mil pelo Estado, além disso, foi realizado um
62
Contrato de Concessão Administrativa Nº 336039.54.1338.09.
SEDS,
Belo
Horizonte.
Disponível
em:
https://www.seds.mg.gov.br/images/seds_docs/editalpppnovo/anexo%
206%20-%20contrato%20concess%E3o%20adm%20ppp.pdf.
Acessado em: 21 de ago. de 2014.
Parcerias público-privadas...
129
corte nos repasses do governo ao parceiro privado no valor de
R$ 10.108,31. Nos termos do contrato:
CAPÍTULO XIII – DAS SANÇÕES E PENALIDADES
APLICÁVEIS ÀS PARTES
CLÁUSULA 33 – DAS SANÇÕES ADMINISTRATIVAS
33.1. No caso de inadimplemento total ou parcial das
obrigações deste CONTRATO pela CONCESSIONÁRIA, a
CONCESSIONÁRIA estará sujeita, sem prejuízo das sanções
de natureza civil e penal, às penalidades aplicáveis pelo
PODER CONCEDENTE, nos termos deste CONTRATO:
33.1.1. Advertência forma, a versar sobre o descumprimento
das obrigações assumidas e a determinação da adoção das
necessárias medidas de correção;
33.1.2. Multa;
33.1.3. Caducidade da CONCESSÃO ADMINISTRATIVA;
33.1.4. Suspensão temporária do direito de participação em
licitações e impedimento de contratar com a Administração
Pública, por prazo definido no art. 6º, da Lei Estadual nº
13.994, de 18.09.01, e no art. 24, do Decreto Estadual nº
44.431, de 29.12.06;
33.1.5. Declaração de inidoneidade para licitar ou contratar
com a Administração Pública, enquanto perdurarem os
motivos determinantes desta punição e até que seja promovida
sua reabilitação perante a Administração Pública Estadual,
que será concedida sempre que a CONCESSIONÁRIA
ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes;
33.1.5.1. A aplicação da sanção de declaração de
inidoneidade é de competência exclusiva do Secretário de
Estado de Defesa Social.
33.1.6. Descredenciamento do sistema de registro cadastral.63
Ainda neste sentido, na data da assinatura do contrato o
ex-governador Aécio Neves havia afirmado:
Foram estabelecidos parâmetros muito objetivos que a
empresa terá que cumprir, seja do ponto de vista da garantia
da segurança, por exemplo, com inibição de fuga, seja no
63
Contrato de Concessão Administrativa Nº 336039.54.1338.09.
SEDS,
Belo
Horizonte.
Disponível
em:
https://www.seds.mg.gov.br/images/seds_docs/editalpppnovo/anexo%
206%20-%20contrato%20concess%E3o%20adm%20ppp.pdf.
Acessado em: 21 de ago. de 2014.
130
Temas jurídicos atuais: Volume VI
caminho da ressocialização dos presos, com oportunidade de
trabalho e de educação.64
Vale ressaltar que por ser pioneiro na implantação do
mecanismo das PPP no sistema prisional o Estado de Minas
Gerais deve enfrentar todos os tipos surpresas e falhas, e ainda,
aprender como solucioná-las, o que de certo modo facilita a
gestão das futuras PPPs prisionais em outros Estados, pois já
terão um modelo a ser seguido.
Por fim, destaca-se o fato de que seguindo o exemplo
do Estado de Minas Gerais, outros Estados como Amazonas,
Goiás, Pernambuco, Rio Grande do Sul e São Paulo, também
estão direcionando a construção e gestão de presídios a
contratos de PPPs, buscando a modernização da gestão pública
e uma política de segurança ligada aos direitos humanos,
prezando pela reintegração do preso e o bem-estar da
sociedade.
4.4.2 Impossibilidade da delegação do poder de polícia
administrativa na modalidade contratual dentro do sistema
jurídico nacional
A parceria público-privada caracteriza-se pela
delegação de algumas funções estatais ao parceiro privado,
sendo estas atividades denominadas instrumentais ou
secundárias, ressalvando que determinadas atividades estatais
jamais serão delegáveis, por serem competências decisórias
imperativas e coercitivas da Administração Pública e
pressuporem o exercício do poder estatal destinado à realização
de valores fundamentais.
Nessas condições afirma Fernando Vernalha
Guimarães:
Nos casos em que houver atos meramente matérias e
instrumentais à manifestação jurídica de competências
exclusivas ou típicas estatais (preparatórios ou sucessivos),
64
Aécio Neves assina contrato para da construção da primeira
penitenciária do país por meio de PPP. SEDS, Belo Horizonte.
Disponível
em:
https://www.seds.mg.gov.br/index.php?option=com_content&task=vie
w&id=673&Itemid=71. Acessado em: 21 de ago. de 2014.
Parcerias público-privadas...
131
não haverá atribuição de competência decisória acerca das
razões que conduzem à interferência na propriedade e
liberdade dos particulares.65
O legislador brasileiro ao elaborar os diplomas que
cuidam do regime jurídico das PPPs teve o cuidado de preservar
a atuação estatal da delegação à gestão privada relativa ao
exercício de certas funções públicas, como a manifestação do
poder de polícia, da função jurisdicional, entre outras exclusivas
do Estado. Segundo Juarez Freitas:
A PPP deve respeitar a indelebilidade de funções exclusivas
do Estado. Convém sulcar que, assim como nas mencionadas
leis estatais, a Lei 11.079/2004 deixa expresso que, na
contratação de PPP, uma das diretrizes reside na
indelegabilidade, mencionando, de modo não-exaustivo (sic),
as funções de regulação e do exercício do “poder de polícia”
(art. 4º, III).66
Ocorre que, apesar de previstas na legislação, há uma
ausência de fechamento tipológico quanto às atividades estatais
indelegáveis, pelo fato do artigo 4º, inciso III da Lei 11.079/2004
finalizar a previsão legal com os termos “de outras atividades
exclusivas do Estado”. Assim evidencia-se a dificuldade de
especificar os grupos de atividades que devem ser
obrigatoriamente reservadas ao Estado. Nos termos do artigo:
Art. 4º Na contratação de parceria público-privada serão
observadas as seguintes diretrizes:
[...]
III – indelegabilidade das funções de regulação, jurisdicional,
do exercício do poder de polícia e de outras atividades
exclusivas do Estado; [...]67
Para a delimitação do que é atividade indelegável é
necessário a análises dos casos concretos, onde deve ser
observado o princípio da república, buscando sempre satisfazer
o interesse coletivo através da atuação do Estado. E se a
65
FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios
fundamentais. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 247.
66 Ibidem, p. 334.
67 BRASIL, LEI Nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004.
132
Temas jurídicos atuais: Volume VI
concessão de determinada função puder gerar riscos de
frustração da garantia deste princípio, então esta atividade não
deve ser delegada. Nas palavras de Fernando Vernalha
Guimarães:
A indelegabilidade de certas atividades estatais pressupõe
compreender o conteúdo jurídico do princípio da república, que
impõe a reserva de poderes instrumentais à satisfação do
interesse do povo nas mãos do Estado. A sua partilha não
poderá ser admitida ante o risco de frustração de objetivos
constitucionais que deverão ser perseguidos pelo Estado.68
Para tanto, existe uma distinção classificatória entre
gestão estratégica, que é a função mais elevada,
compreendendo a direção e orientação de um serviço; a gestão
operacional, abrangendo a gestão do funcionamento de um
serviço em seus aspectos de regulação e otimização – logística,
resolução de conflitos, racionalização, dentre outros; e a gestão
executiva, referente à execução material da prestação.
Novamente Fernando Vernalha Guimarães destaca:
Usando-se desse critério de classificação, seria lícito afirmar
que os particulares poderão receber, no terreno da prestação
de serviços relacionados a funções típicas do Estado,
transferência da função executiva. Nunca delegação de
competências decisórias (presentes na gestão estratégica e,
em alguma medida, na gestão operacional de serviços),
próprias da manifestação exclusiva da Administração.
Transfere-se não a autoridade decisória, mas os instrumentos
de que esta serve.69
Nesse sentido já se posicionou o STF na ADI 1717, pela
indelegabilidade da atividade típica de Estado ao ente privado:
DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 58 E
SEUS PARÁGRAFOS DA LEI FEDERAL Nº 9.649, DE
27.05.1998, QUE TRATAM DOS SERVIÇOS DE
68
GUIMARÃES, Fernando Vernalha. PPP: Parceria público-privada. 1.
ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 242.
69 GUIMARÃES, Fernando Vernalha. PPP: Parceria público-privada. 1.
ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 249.
Parcerias público-privadas...
133
FISCALIZAÇÃO DE PROFISSÕES REGULAMENTADAS. 1.
Estando prejudicada a Ação, quanto ao § 3º do art. 58 da Lei
nº 9.649, de 27.05.1998, como já decidiu o Plenário, quando
apreciou o pedido de medida cautelar, a Ação Direta é julgada
procedente,
quanto
ao
mais,
declarando-se
a
inconstitucionalidade do "caput" e dos § 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º e
8º do mesmo art. 58. 2. Isso porque a interpretação conjugada
dos artigos 5º, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149
e 175 da Constituição Federal, leva à conclusão, no sentido da
indelegabilidade, a uma entidade privada, de atividade típica
de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de
punir, no que concerne ao exercício de atividades profissionais
regulamentadas, como ocorre com os dispositivos
impugnados. 3. Decisão unânime.
(STF - ADI: 1717 DF, Relator: SYDNEY SANCHES, Data de
Julgamento: 07/11/2002, Tribunal Pleno, Data de Publicação:
DJ 28-03-2003 PP-00061 EMENT VOL-02104-01 PP00149).70
No Brasil, as atividades essenciais de produção e
aplicação do direito são indelegáveis, visando o monopólio da
força e da imposição, atividades estas que manifestam o poder
e império do Estado. Neste sentido Juarez Freitas afirma “A
idéia-guia (sic), aqui e sempre, reside no caráter vinculante do
direito fundamental à boa administração pública e na
indissociável valorização das Carreiras de Estado”. 71
Ao que diz respeito especificamente ao poder de polícia,
esse se evidencia pelo uso de poderes imperativos e coercitivos
destinados a assegurar a manutenção da ordem pública e a
realização de direitos fundamentais. Podendo os atos de polícia
serem gerais e abstratos, ou específicos e concretos,
apresentando os atributos da exigibilidade e da coercibilidade.
Segundo Irene Patrícia Nohara:
70
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 1717 DF. Brasília, 7 de novembro de 2002.
Disponível em: http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/772345/acaodireta-de-inconstitucionalidade-adi-1717-df. Acessado em: 11 de out.
de 2014.
71 FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios
fundamentais. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 335.
134
Temas jurídicos atuais: Volume VI
Em sentido vulgar, a palavra polícia no Brasil é associada mais
comumente à corporação encarregada de zelar pela ordem e
da segurança pública. Contudo, do ponto de vista do Direito
Administrativo, poder de polícia possui significado mais amplo,
consistente na atividade de condicionar e restringir o
exercício dos direitos individuais, tais como a propriedade
e a liberdade, em benefício do interesse público.72
Este poder caracteriza-se pela discricionariedade, auto
executoriedade e coercibilidade. Sendo que a primeira
característica significa a liberdade que a Administração Pública
tem de estabelecer, de acordo com sua conveniência e
oportunidade, quais serão as limitações impostas ao exercício
dos direitos individuais e as sanções aplicáveis nesses casos. A
segunda característica diz respeito à Administração Pública
poder exercer o poder de polícia sem a necessidade de
intervenção do Poder Judiciário. E por fim, a terceira
característica refere-se ao fato dos atos do poder de polícia
poderem ser impostos aos particulares, mesmo que, para isso,
seja necessário o uso de força para cumpri-los.
Vale ressaltar ainda, que para Maria Sylvia Zanella Di
Pietro, atualmente deve ser acrescentada uma quarta
característica, a indelegabilidade, sendo este o tema central
desta seção, nas palavras da doutrinadora:
Costuma-se apontar como atributos do poder de polícia a
discricionariedade, a autoexecutoriedade e a coercibilidade,
além do fato de corresponder a uma atividade negativa. Podese atualmente acrescentar outra característica que é a
indelegabilidade do poder de polícia a pessoas jurídicas de
direito privado.73
Ante a impossibilidade de delegação do poder de polícia,
o Complexo Prisional de Ribeirão das Neves sofre as primeiras
consequências advindas da intervenção do particular no sistema
prisional brasileiro, tais como a ação civil pública que acusa o
Governo de Minas Gerais de terceirizar atividades indelegáveis.
72
NOHARA, Irene Patrícia. Direito administrativo. 2. ed. São Paulo:
Atlas, 2012. p. 136.
73 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 24. ed. São
Paulo: Atlas, 2011. p. 120.
Parcerias público-privadas...
135
O Ministério Público do Trabalho (MPT), baseado na
tese de que é ilícito terceirizar funções integrantes do sistema
prisional, propôs ação civil pública, contra o governo de Minas
Gerais e o consórcio nacional Gestores Prisionais Associados
(GPA), processo nº PAJ: 869.2011.03.000/0.
Nesses termos, o procurador do Trabalho, Geraldo
Emediato de Souza, afirma:
Entre os postos de trabalho terceirizados estão atividades
relacionadas com custódia, guarda, assistência material,
jurídica e à saúde, uma afronta à Lei 11.078/04 que classifica
como indelegável o poder de polícia e também a outros
dispositivos legais. Além de ser uma medida extremamente
onerosa para os cofres públicos, poderá dar azo a abusos sem
precedentes.74
Para a juíza da ação, Jane Dias do Amaral, trata-se de
típico poder de polícia que limita o direito de ir e vir dos presos
com os objetivos de preservação da paz social, da segurança
pública, além dos objetivos pedagógicos em relação ao
condenado, afirmando: “Assim a execução penal e todos os
serviços a ela inerentes devem ser realizados por funcionários
públicos concursados, nos termos do art. 37 da CF/88”.75
A sentença fixou o prazo de 365 dias para que o
Governo do Estado promovesse concurso público para a
substituição dos empregados irregulares por servidores
públicos, cominando multa de R$ 10 mil por dia em caso de
descumprimento. O Estado também estaria impedido de assinar
novos contratos com pessoas físicas ou jurídicas para atuar na
administração das unidades prisionais, sob pena de multa de R$
500 mil por contrato.
Desse modo, percebe-se que o entendimento do
referido julgado é no sentido da “indelegabilidade do poder de
polícia” entendendo esse de modo a abranger toda a tutela do
74
Justiça do Trabalho considera ilícita a terceirização no Presídio
Público Privado de Ribeirão das Neves. MPT 3ª Região, Belo
Horizonte,
02
de
abr.
de
2014.
Disponível
em:
http://www.prt3.mpt.gov.br/procuradorias/prt-belohorizonte/170-justicado-trabalho-considera-ilicita-a-terceirizacao-no-presidio-publicoprivado-de-ribeirao-das-neves. Acessado em: 25 de ago. de 2014.
75 Idem.
136
Temas jurídicos atuais: Volume VI
preso, desde a sua segurança até o cuidado com a sua
salubridade e higidez física e mental. Apontando como solução
a substituição dos funcionários contratados pelo parceiro privado
por servidores públicos, a serem contratados pelo regime de
concurso.
Todavia, o posicionamento exarado do referido julgado,
colide em parte com a proposta da parceria público-privada,
como se pode observar no “CAPÍTULO VII – DAS
OBRIGAÇÕES DAS PARTES” do contrato firmado entre o
Governo de Minas Gerais e a GPA, onde visando suprir a
carência Estatal no âmbito penitenciário e garantir a dignidade
da pessoa humana prevista na Constituição Federal, busca-se
uma melhor qualidade de vida para os detentos.
Incumbindo ao ente privado o dever da construção e
gestão do complexo prisional, no que diz respeito à educação,
trabalho, atendimento psicológico e jurídico, infraestrutura das
celas e do presídio, alimentação, rouparia, higiene, cuidados
com a saúde, entre outros, e permanecendo a segurança,
execução da pena e força policial, a cargo do Estado. Havendo
em cada unidade prisional um gerente de operações do parceiro
privado e um diretor público de segurança, responsável pela
execução das funções indelegável do Estado.
Ademais, parte da doutrina admite a delegação da
atividade típica de Estado para o ente privado, em circunstâncias
excepcionais ou hipóteses muito específicas, mediante
delegação propriamente dita ou em decorrência de um simples
contrato de prestação de serviços. Como exemplo tem-se os
poderes reconhecidos aos capitães de navios, ou ainda, a
fiscalização de normas de trânsito por meio de radares
eletrônicos, neste sentido o STF reconheceu a repercussão
geral do tema no ARE 662186, de relatoria do Ministro Luiz Fux:
RECURSO
EXTRAORDINÁRIO
COM
AGRAVO.
ADMINISTRATIVO.
DIREITO
CONSTITUCIONAL
E
ADMINISTRATIVO. APLICAÇÃO DE MULTA DE TRÂNSITO
POR SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. PODER DE
POLÍCIA. DELEGAÇÃO DOS ATOS DE FISCALIZAÇÃO E
SANÇÃO A PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO.
AGRAVO PROVIDO PARA MELHOR EXAME DO RECURSO
EXTRAORDINÁRIO. Decisão: Trata-se de agravo contra
decisão que inadmitiu Recurso Extraordinário interposto com
fundamento no artigo 102, III, “d”, da Constituição da
Parcerias público-privadas...
137
República, em face de acórdão proferido pelo Tribunal de
Justiça do Estado de Minas Gerais, assim do: “Ação ordinária.
Objeto. Declaração de ilegitimidade e restituição de multas de
trânsito quitadas. Ilegitimidade da BHTrans. Sociedade de
economia mista. Impossibilidade. STJ. Procedência dos
pedidos iniciais. Firmado, pelo Superior Tribunal de Justiça, o
entendimento sobre a inviabilidade da BHTrans, sociedade de
economia mista, na aplicação de multas de trânsito, declarase a ilegitimidade dos autos de infração elaborados e
determina-se a restituição dos valores arrecadados pela
entidade. Recurso não provido.” No recurso extraordinário, a
recorrente argui ofensa aos artigos 5º, inciso XXXV, 30, incisos
I e V, 37, cabeça e inciso XIX, e 175, da Carta da Republica.
Para tanto, sustenta que o exercício do poder de polícia de
trânsito pode ser delegado à sociedade de economia mista.
Assevera que a Lei Municipal 5.953/91 autorizou a criação da
BHTrans com a finalidade de controlar e executar os serviços
de trânsito no Município de Belo Horizonte, consoante o
disposto no art. 24 do Código de Trânsito Brasileiro (Lei
9.503/97), bem como no interesse público local, nos termos do
art. 30 da Constituição da República da 1988. Em
contrarrazões, a recorrida alega que a BHTrans tem apenas
poder de polícia fiscalizatório, sendo vedada a imposição de
sanções. Acrescenta que os agentes da recorrida são
empregados celetistas, pertencentes à administração indireta
e, portanto, incompetentes para o exercício do poder de
polícia. O extraordinário não foi admitido na origem. Em
sequência, a recorrente interpôs o presente agravo.
Finalmente, por entender que o tema constitucional versado
nestes autos é relevante do ponto de vista econômico, político,
social e jurídico, além de ultrapassar os interesses subjetivos
da causa, esta Corte reconheceu a repercussão geral do tema
constitucional. É o Relatório. DECIDO. O agravo preenche
todos os requisitos de admissibilidade, de modo que o seu
conhecimento é medida que se impõe. Ex positis, PROVEJO
o agravo e determino a conversão em recurso extraordinário
para melhor exame da matéria. À Secretaria para a reautuação
do feito. Publique-se. Brasília, 04 de setembro de 2014.
Ministro Luiz Fux Relator Documento assinado digitalmente
(STF - ARE: 662186 MG, Relator: Min. LUIZ FUX, Data de
Julgamento: 04/09/2014, Data de Publicação: DJe-176
DIVULG 10/09/2014 PUBLIC 11/09/2014).76
76
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com
Agravo: ARE 662186 MG. Brasília, 04 de setembro de 2014. Disponível
138
Temas jurídicos atuais: Volume VI
Com efeito a problemática se mostraria melhor
solucionada com a observância da Constituição Federal, que é
taxativa em seu artigo 1º, inciso III, ao tratar a dignidade da
pessoa humana como direito fundamental:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal,
constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos:
[...]
III - a dignidade da pessoa humana; [...]77
E ainda, em seu artigo 5º, inciso XLIX, a Constituição
Federal garante aos presos o respeito à integridade física e
moral. Nos termos do artigo:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,
nos termos seguintes:
[...]
XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física
e moral; [...]78
Neste sentido, o artigo 38 do Código Penal, segue a
previsão da Lei Maior, ao garantir a manutenção dos direitos dos
condenados no que diz respeito a sua integridade física e moral,
nos termos do artigo tem-se que “o preso conserva todos os
direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a
todas as autoridades o respeito à sua integridade física e
moral”.79
em:
http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronic
o/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=4162202.
Acessado em: 11 de out. de 2014.
77 BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de
outubro de 1988.
78 BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de
outubro de 1988.
79 BRASIL, Código Penal, de 7 de dezembro de 1940.
Parcerias público-privadas...
139
Segundo Ingo Wolfgang Sarlet, tem-se por dignidade da
pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser
humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração
por parte do Estado e da comunidade. Gerando um complexo de
direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto
contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano,
como garante condições existenciais mínimas para uma vida
saudável.80
Outrossim, há que se verificar que empiricamente a
gestão prisional pelo parceiro privado consegue com sucesso
preservar as garantias e preceitos constitucionais dos detentos,
conferindo-lhes maior dignidade no cumprimento da pena. O que
em mais de 180 anos não foi conseguido pelo Estado, que
atualmente é um dos maiores problemas a ser enfrentado pelos
governantes, haja vista a falência do sistema carcerário,
juntamente com a saúde, educação, entre outros. Neste sentido
aduz Guilherme de Souza Nucci:
Na prática, no entanto, lamentavelmente, o Estado tem dado
pouca atenção ao sistema carcerário, nas últimas décadas,
deixando de lado a necessária humanização do cumprimento
da pena, em especial no tocante à privativa de liberdade,
permitindo que muitos presídios se tenham transformado em
autênticas masmorras, bem distantes do respeito à integridade
física e moral dos presos, direito constitucionalmente
imposto.81
Conclui-se assim que a interpretação da lei não pode
obstar a efetiva aplicação dos direitos sociais e fundamentais do
indivíduo, como no caso dos sentenciados, sob pena de
flagrante inconstitucionalidade, trazendo uma insegurança
jurídica sem precedentes. Ante tal fato, entende-se que a
segurança deve permanecer como dever do Estado, devendo
ser delegada apenas a gestão da infraestrutura e prestação de
serviços básicos para a garantia do cumprimento de uma pena
digna nos ditames da Lei Maior, preservando assim a dignidade
da pessoa humana.
80
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos
fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 60.
81 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução
Penal. 6ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 990.
140
Temas jurídicos atuais: Volume VI
4.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O surgimento da Parceria Público-Privada no âmbito
mundial deu-se através de uma longa evolução do Estado,
desde a Revolução Francesa até a contemporaneidade.
Originando-se da necessidade da criação de mecanismos que
suprissem a carência do ente público e promovessem ao
máximo o bem estar social.
Nota-se que as influências das normas inglesa e
francesa foram preponderantes para a evolução do
ordenamento administrativo brasileiro, tendo em vista que o
sistema de PPP propriamente dito surgiu na Inglaterra e a
criação da teoria do contrato administrativo deu-se na França. A
Lei nº 11.079/2004, juntamente com as leis nº 8.666/93,
8.987/95, 9.074/95 e 9.648/98, foram criadas com o intuito de
reestruturar a infraestrutura básica do Brasil, visando à garantia
dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal.
A PPP pode ser em duas modalidades, administrativa ou
patrocinada, devendo essa contratação ser realizada após a
análise da conveniência e da oportunidade do emprego de uma
destas modalidades ao serviço que se pretende implementar, e
ainda, a avaliação da viabilidade econômico-financeira da
parceria, sendo esta a responsável pela definição do modelo de
parceria.
Quanto às vantagens e desvantagens advindas do
contrato de PPP, fica claro que o número de desvantagens se
faz menor do que o número de vantagens, o que torna esta
espécie de parceria eficiente e vantajosa para o Estado, ainda
que possua alguns riscos. Por tratar-se de um mecanismo que
visa suprir a carência do ente público e promover a garantia do
bem estar social através da preservação dos direitos
fundamentais.
O contrato de PPP trata-se de um modelo de
“concessão” do Poder Público diferenciado das “concessões
comuns”, no que diz respeito à contraprestação pecuniária.
Deste modo, teria sido viável inserir aperfeiçoamentos às Leis
de Concessões e de Licitações, o que tornaria dispensável a
criação do modelo de PPP. Entretanto, tendo em vista que tal lei
já foi criada, surge a necessidade de renovar a regulação
brasileira, visando aperfeiçoamento do Direito Administrativo,
Parcerias público-privadas...
141
ante as necessidades do Século XXI e sua crise regulatória
mundial.
No âmbito prisional, o Estado de Minas Gerais foi
pioneiro ao firmar essa modalidade contratual com o consórcio
nacional Gestores Prisionais Associados, envolvendo a
construção de cinco unidades prisionais que abrigarão
sentenciados do sexo masculino e uma central de serviços em
Ribeirão das Neves, região metropolitana de Belo Horizonte.
Tendo como objetivo principal a reinserção do sentenciado à
sociedade, preservando todos os seus direitos e garantias
previstos na Lei Maior.
A exemplo do Estado de Minas Gerais, outros Estados
como Amazonas, Goiás, Pernambuco, Rio Grande do Sul e São
Paulo, também estão direcionando a construção e gestão de
presídios a contratos de PPPs, buscando a modernização da
gestão pública e uma política de segurança ligada aos direitos
humanos.
No entanto, ao firmar parceria com o setor privado, o
Estado
depara-se
com
o
obstáculo
denominado
“indelegabilidade do poder de polícia”, sendo este entendido de
modo amplo, abrangendo toda a tutela do preso, desde a sua
segurança até o cuidado com a sua salubridade e higidez física
e mental. Sendo uma possível solução para a terceirização em
tese ilegal do poder de polícia a substituição dos funcionários
contratados pelo parceiro privado por servidores públicos, a
serem contratados pelo regime de concurso, alternativa essa
apresentada pelo judiciário, no processo nº PAJ:
869.2011.03.000/0.
Por outro lado, há que se considerar os benefícios
trazidos pela PPP prisional aos reclusos, onde a gestão prisional
pelo parceiro privado consegue com sucesso preservar suas
garantias constitucionais, conferindo-lhes um cumprimento de
pena digno.
Em vista de tudo o que foi debatido, entende-se que o
melhor caminho para reestruturação do sistema penitenciário
brasileiro seria através da realização de contratos de PPPs,
devendo a segurança permanecer como responsabilidade do
Estado, e sendo delegada apenas a gestão da infraestrutura e
prestação de serviços básicos aos detentos, de modo a garantir
a humanização da pena, prevista no artigo 5º, XLIX da
Constituição Federal.
142
Temas jurídicos atuais: Volume VI
4.6 REFERÊNCIAS
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=V=
O SISTEMA DE REGISTRO DE PREÇOS E A FIGURA DO
“CARONA”
Mateus Augusto Brito de Souza*
Mauro Luís Siqueira da Silva**
5.1 INTRODUÇÃO
O Estado é a força central que impulsiona o
desenvolvimento de um país, recolhe tributos, presta serviços
públicos e controla as atividades econômicas. A contratação de
serviços e a aquisição de bens não são o objetivo da
administração estatal, porém são inerentes a esta atividade uma
vez que são essenciais para que se alcance o interesse público.
Já disse o mestre Hely Lopes Meirelles “na
administração pública não há liberdade e nem vontade
pessoal”.1 Ou seja, o administrador deve sempre fazer aquilo
que a lei lhe ordenar e como nos diz Márcio alexandrino “o
estado de direito é assim chamado, pois nele vigora o império
da lei”2. Destarte pode-se concluir que os procedimentos para
aquisição de bens ou para contratação de serviços devem ser
pautados pelos princípios norteadores da administração pública,
quais sejam o princípio da legalidade, da impessoalidade, da
moralidade, da publicidade e da eficiência. Logo fica claro a
importância de se estabelecer uma forma de contratação
Advogado. Graduado em Direito pela UniCesumar – Centro
Universitáro de Maringá – PR.
** Mestre em Direito - UEL - Universidade Estadual de Londrina.
Especialista em Direito do Estado - UEL - Universidade Estadual de
Londrina. Graduado em Direito - UEM - Universidade Estadual de
Maringá.
1 MEIRELLES, Hely Lopes; AZEVEDO, Eurico de Andrade; ALEIXO,
Délcio Balestero; BURLE FILHO, Jose Emmanuel. Direito
administrativo brasileiro. 37° Ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 89.
2 ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO Vicente. Direito Administrativo
Descomplicado.14° Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2007, p. 138.
*
O sistema de registro...
147
diferenciada para o poder público, da onde surge então o dever
de licitar por expressa disposição constitucional3.
Hodiernamente as bases do procedimento licitatório
estão estabelecidas na Lei Geral de Licitações e Contratos 4 que
em seu artigo 15, inciso II, esgrima: “as compras sempre que
possíveis, deverão ser processadas através de sistema de
registro de preços”. Claro fica que o sistema de registro de
preços pode ser um método dotado de grande potencial e que
contribui de forma eficiente para os contratos por parte da
administração pública, trazendo à esta vantagens tanto em
relação aos preços dos produtos/serviços contratados, como em
relação à própria licitação já que aparece neste sistema a figura
do “carona” que utiliza-se da ata de registro de preços já
aproveitada por licitação anterior, tornando o procedimento mais
célere e econômico. No entanto a figura do carona não é aceita
de forma pacífica pela doutrina e nem pela jurisprudência, o que
demonstra a necessidade de uma análise sobre sua utilização.
5.2 LICITAÇÕES
A licitação surge como forma de se garantir que a
administração pública contrate aqueles fornecedores com
melhores condições. Em outras palavras, é uma série de atos
que obedecem de forma rígida à lei e deste modo não admite
discricionariedade na escolha do contratado, evitando assim que
fique a livre escolha do administrador público. José Cretella
Júnior5, aduz sobre a licitação:
Procedimento administrativo preliminar complexo, a que
recorre à administração quando, desejando celebrar contrato
com o particular, referente a compras, vendas, locações,
obras, trabalhos ou serviços, inclusive os de publicidade,
seleciona, entre várias propostas feitas, a que melhor atende
ao interesse público, baseando-se para tanto em critério
objetivo, fixado de antemão, em edital, a que se deu ampla
publicidade.
3
Artigo. 37, inciso XXI.
Lei 8666/1993
5 CRETELLA JÚNIOR, José. Dicionário das Licitações Públicas. 3 ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 115.
4
148
Temas jurídicos atuais: Volume VI
A licitação é contrato por excelência, ou seja, é um
acordo de vontades, firmado entre as partes e que cria direitos e
gera deveres entre estes, embora seja típico do direito privado,
o contrato é utilizado pela administração pública na sua pureza
originária ou com as adaptações necessárias aos negócios
públicos.6
Porém a licitação possui a natureza jurídica de
procedimento administrativo com fim seletivo, isto é, um conjunto
de atos e documentos que serão empregados na confecção de
uma decisão administrativa.7
Entende-se que o contrato dito administrativo guarda
algumas características ou exigências que o diferencie do
contrato particular, essas exigências podem ser classificadas em
dois tipos: Internas, o contrato há de ser sempre consensual,
oneroso, comutativo, geralmente formale realizado intuitu
personae; consensual, pois é de mutuo acordo entre as partes;
oneroso, pois será remunerado conforme por ele for estipulado;
comutativo porque deve gerar compensações recíprocas entres
as partes; formal, quando não dispensado por lei, deve ser
escrito conforme os requisitos legais exigidos; intuitu personae
se caracteriza na exigência de que o próprio contratado realize
o ato.
A segunda característica é denominada externa e se
trata da exigência de prévia licitação para a contratação pública,
entende-se a licitação como o processo pelo qual um ente
público, percebida a necessidade de novos produtos ou
serviços, abre aos interessados a possibilidade de realizarem
ofertas para prestação e/ou entrega do produto. Trata-se de
processo obrigatório conforme a constituição 8, salvo hipóteses
previstas em lei.
Porém embora seja obrigatória em regra para se
descobrir quem contratar e, vincule desde então a administração
a contratar com o vencedor, a licitação não gera a obrigação de
contratar uma vez que apenas habilita o vencedor a contratar
6
MEIRELLES, Hely Lopes; AZEVEDO, Eurico de Andrade; ALEIXO,
Délcio Balestero; BURLE FILHO, Jose Emmanuel. Direito
administrativo brasileiro. 37° Ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p.211.
7
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito
administrativo. 24. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2011.
8 Artigos 37, XXI e 175.
O sistema de registro...
149
com a administração e gera mera expectativa de direito, se trata,
portanto, de ato discricionário.
O procedimento licitatório começa com a abertura do
processo pela autoridade competente, esta determina a
realização e define o objeto e os recursos hábeis para despesa.
Logo após, segue-se a audiência pública, esta necessária para
divulgar e tornar claro para a população o interesse e a
conveniência da obra ou serviço. Após a audiência segue o
edital de convocação que como lei interna da concorrência e da
tomada de preços, vincula inteiramente a administração e os
proponentes9. “Licitação é, pois o processo geral, prévio e
impessoal empregado pela administração para selecionar entre
várias propostas apresentadas, a que mais atenda ao interesse
público”10.
O processo licitatório é complexo e por vezes falho é
regido inicialmente pela lei 8.666/93, este processo recebeu
duras críticas com o passar dos anos devido a sua rigidez. No
entanto toda sua burocracia justifica-se no artigo 3° da referida
lei, artigo este que determina a observância dos princípios da
isonomia, legalidade, impessoalidade, moralidade, igualdade,
publicidade e a probidade administrativa, bem como a
vinculação de todo o processo ao seu instrumento convocatório
e ao julgamento objetivo.
5.3 SISTEMA DE REGISTRO DE PREÇOS
Trata-se de um conjunto de procedimentos,
regulamentado pelo decreto n° 7892, de 2013, que objetiva
registrar preços de produtos e/ou serviços, através de licitação
na modalidade de concorrência ou pregão, esta última sendo
precedida por ampla pesquisa de mercado - para que a
administração pública possa utilizá-los futuramente. Mesmo que
não se constitua como modalidade de licitação, o sistema de
registro de preços depende do procedimento licitatório, seja na
modalidade de pregão ou concorrência.
9
MEIRELLES, Hely Lopes; AZEVEDO, Eurico de Andrade; ALEIXO,
Délcio Balestero; BURLE FILHO, Jose Emmanuel. Direito
administrativo brasileiro. 37° Ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 289.
10 CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Direito Administrativo. 18 ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 302.
150
Temas jurídicos atuais: Volume VI
O sistema de registro de preços envolve no mínimo três
participantes que são: o órgão gerenciador, que é o responsável
pelo certame e gerenciamento da ata de registro de preços; o
licitante, que participa da licitação e integra a ata de registro de
preços; a administração pública que utiliza a ata de preço; a ata
de registro de preços ao qual é instrumento vinculativo onde se
registram as condições estabelecidas para que possam ser
reivindicadas futuramente.
O sistema de registro de preços não segue a mesma
sistemática dos procedimentos de aquisição de bens ou
serviços, pode-se concluir que ele é uma ferramenta que objetiva
realizar contratações de forma a equalizar o estrito cumprimento
da lei com a necessária eficiência da administração pública.
O registro de preços por parte do fornecedor não obriga
a administração a contratar, respeitando assim sua
discricionariedade, obriga porém o fornecedor, caso contratado
a entregar o produto ou serviço nas condições estabelecidas,
salvo em caso fortuito ou força maior. A administração pública
terá a faculdade de realizar licitação específica para a aquisição
pretendida, desde que assegurada preferência ao fornecedor
registrado em igualdade de condições.
Este sistema de contratações é recomendado quando
não for possível definir a quantidade exata a ser contratada ou
quando houver a necessidade de contratações frequentes,
devido a este fim, os órgãos ou entidades da administração
pública poderão manter os registros cadastrais da ata de registro
de preços por até um ano.
Diante da impossibilidade de se definir a quantidade a
ser contratada é recomendado cautela, é de extrema
importância que se possa ao menos definir a quantidade máxima
a ser contratada no período licitado, pois será defeituoso o edital
que deixar a livre discricionariedade da administração à
quantidade a ser contratada visto que a incerteza sobre
quantitativos mínimos e máximos afasta os empresários sérios
e acaba por elevar os preços para a administração pública, pois
é de notório saber que os custos são diversos em razão da
quantidade. A administração deve evitar o sistema de registro de
O sistema de registro...
151
preços para preços de retalho e aproveitá-la para preços por
atacado11.
Todavia deve-se levar em conta que o contrário também
pode ocorrer, a administração poderá ter a oportunidade de
contratar uma quantidade baixa pelo valor de uma compra
vultosa, e ainda existe a discricionariedade da contratação e
verificando que ocorreria uma desvantagem econômica o órgão
público poderia realizar uma contratação específica, embora
seja claro que boa parte destes transtornos podem ser evitados
com uma ampla pesquisa mercadológica realizada antes do
sistema de registro de preços.
Sendo assim percebe-se que as vantagens da adoção
do sistema de registro de preços são muitas, destaca-se, por
exemplo, a redução do número de licitações, celeridade no
processo de aquisição, redução do volume de estoque e do
espaço físico utilizado para guarda, somente a compra das
quantidades necessárias, evitando o desperdício, o fato de
atender outras unidades e não só a licitadora e a
desnecessidade de reserva orçamentária.
5.4 DA CONTRATAÇÃO CONTINUADA.
As contratações de serviços continuados envolvem a
necessidade de planejamento e uma prévia elaboração de um
projeto básico para aquele serviço, logo, considerando como
certos e determinados os serviços continuados, não podem
estes participarem da sistemática do Sistema de Registro de
Preços, pois o artigo 3° do Decreto n° 7.892/2013 em seu inciso
IV esgrima:
Art. 3º O Sistema de Registro de Preços poderá ser adotado
nas seguintes hipóteses:[...] IV - quando, pela natureza do
objeto, não for possível definir previamente o quantitativo a ser
demandado pela Administração.
As hipóteses previstas nesse inciso visam atender a
imprevisibilidade da quantidade ou do momento a se contratar,
11
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos
administrativos – 15. Ed. São Paulo: Dialética, 2012.
152
Temas jurídicos atuais: Volume VI
já os serviços continuados previstos na Lei 8.666/93 12, são
serviços de natureza ininterrupta e portanto não tem fundamento
para a contratação de serviços terceirizados.
Além de que, se levar em consideração a necessidade
de se planejar a contratação, compromete-se a possibilidade da
participação dos “caronas” nas respectivas atas de registro de
preços, em razão de que muito provavelmente aquele
quantitativo cotado não irá suprir esse atendimento, por
conseguinte, em respeito aos princípios da eficiência e da
economicidade, nesses casos deve-se utilizar a modalidade de
pregão em sua forma ordinária, sem registro de preços, casos
os bens a serem fornecidos sejam do tipo “comum”.
5.5 DO CARONA
O sistema de registro de preços traz sérias dúvidas em
relação à figura do carona, regulamentada pelo artigo 22 do
decreto 7.892/13, a figura do carona causa controvérsia por
permitir que qualquer órgão do governo utilize da ata de registro
de preços mesmo que não tenha participado da licitação que lhe
deu origem13.
Vale salientar, porém, que a norma não autorizou
simplesmente qualquer órgão a aderir ao resultado de qualquer
licitação promovida, não se encontra esta elasticidade na lei.
Pelo contrário, essa possibilidade é restrita ao sistema de
registro de preços.
Desta forma podem-se classificar os usuários da ata de
registro de preços em dois grupos: órgãos participantes ao qual
comparecem e participam da implantação do sistema de registro
de preços, com atuação prevista pelo artigo 2°, IV do decreto n°
7892/02; e órgãos não participantes que são comumente
chamados de “carona” e estão previstos no artigo 2°, V do
mesmo Decreto.
Logo fica evidente a vantagem do órgão participante em
relação ao carona, já que aquele tem suas expectativas de
12
Artigo 57, inciso II.
Decreto n°7822/02 art. 22: Desde que devidamente justificada a
vantagem, a ata de registro de preços, durante sua vigência, poderá ser
utilizada por qualquer órgão ou entidade da administração pública
federal que não tenha participado do certame licitatório, mediante
anuência do órgão gerenciador.
13
O sistema de registro...
153
consumo previstas em ato convocatório; tem o compromisso dos
fornecedores para com o fornecimento; e pode solicitar de forma
automática os serviços/produtos previstos no sistema de registro
de preços. Enquanto que este depende de consulta e anuência
prévia do órgão gerenciador; indicação do órgão gerenciador do
fornecedor/prestador
de
serviço;
aceitação
do
fornecedor/prestador; e ainda devem-se manter as mesmas
condições do registro.
Primeiramente verifica-se a vantagem, a validade e a
compatibilidade da ata de registro de preços, em sequência
solicita-se a intervenção do órgão gestor para negociar como
fornecedor, só então o fornecedor é contatado para definir as
condições de preço e fornecimento, desde que não prejudique o
cumprimento das obrigações já assumidas, poderá, o
fornecedor, aceitar fornecer o bem/serviço.
5.6 A INTENÇÃO DE REGISTRO DE PREÇOS
Trata-se de um procedimento sistematizado e
operacionalizado, que pode ser acessado através da rede
mundial de computadores e que possibilita aos interessados na
realização da licitação o uso do sistema de registro de preços de
um determinado bem ou serviço divulgando sua intenção de
compra para o restante da Administração Pública Federal, o que
oportuniza a realização do certame licitatório de forma conjunta.
Em outras palavras, a intenção de registro de preços permite a
realização de uma única licitação com a junção das
necessidades de vários órgãos federais. A principal meta da
intenção de registro de preços é que esses órgãos informem de
forma antecipada às quantidades que desejam contratar,
estimulando-os dessa forma a integrar a fase de planejamento
de compra compartilhada, o que fortalece a economia quanto ao
aumento da escala. À vista disso, os possíveis “caronas” podem
se tornar participantes, já dos procedimentos iniciais da licitação,
o que reduziria o número de adesões a ata de registro de preços,
por órgãos não participantes. O Decreto n° 7.892/13 em seu
artigo 4° torna obrigatória a utilização da intenção de registro de
preços e estabelece ainda, a sua operacionalização.
Notório se faz as vantagens da implementação da
intenção de registro de preços, dentre as quais cumpre ressair;
a redução das licitações e seus custos administrativos; a
154
Temas jurídicos atuais: Volume VI
padronização dos bens e serviços contratados; o aumento da
participação dos órgãos nas licitações e a consequente
diminuição do número de “caronas”; o ganho de escala, pois,
quanto maior a quantidade que se contratada maior poderá ser
o desconto ofertado, o que atende ao princípio da
economicidade previsto pela Constituição Federal de 1988 em
seu artigo 70.
5.7 DA LEGALIDADE
A principal divergência se dá no âmbito da legalidade,
parte da doutrina entende que não há permissão legal para a
figura do carona, já que essa figura foi criada pelo Decreto
3.931/01 sendo posteriormente regulada pelo Decreto 7892/13
não sendo prevista, porém pela Lei 8.666/93 que é a
responsável pela regulamentação das licitações. Assim se
manifesta Joel de Menezes Niebuhr14:
Em outras palavras, somente a lei pode obrigar alguém a fazer
ou deixar de fazer alguma coisa; somente ela é quem pode
criar primariamente direito. Os decretos do Presidente da
República, dos governadores ou dos prefeitos estão sempre
abaixo dela: servem apenas para dizer como elas devem ser
cumpridas, operacionalizadas pela Administração Pública. Os
decretos não criam direitos, apenas dizem como eles devem
ser executados pela Administração Pública, e, no máximo,
determinam como os cidadãos devem cumprir as suas
obrigações, criadas por lei, perante a mesma Administração
Pública.
Nota-se diferença de grau hierárquico entre as leis e os
decretos. Além disso, de todo modo, há normas jurídicas que
não podem ser baixadas através de decretos, mesmo que não
sejam contrárias a leis, dado que os mesmos não podem,
repita-se, criar primariamente direitos, mas tão-só estabelecer
como eles devem ser cumpridos. Noutras palavras, há
questões que, sob pena de serem reputadas inconstitucionais,
não podem ser objeto de decreto; dependem de lei.
A prática do carona seria inválida, portanto na medida
em que frustra a obrigatoriedade da licitação prevista no artigo
14
NIEBUHR, Joel de Menezes. Pregão Presencial e Eletrônico.
Curitiba: Zênite, 2004, p. 29.
O sistema de registro...
155
37, inciso XXI da Constituição Federal e não cabe invocar uma
licitação já realizada com tempo e finalidade já definidas 15.
Em sentido contrário argumenta Sergio Veríssimo de
Oliveira Filho16.
Em nosso sentir [...] a prática limitada do carona não fere os
princípios da legalidade e da obrigatoriedade de licitação.
Não fere o princípio da legalidade porque a própria Lei n.
8.666/93 conferiu a cada ente federativo a prerrogativa de
regulamentar o seu SRP de acordo com as peculiaridades
regionais ou locais. E a prática do carona, embora não tenha
sido prevista na Lei geral, decorre da dinâmica do
procedimento licitatório e da execução da ata de registro de
preços, razão pela qual não pode ser considerada inovação
indevida por parte do Chefe de Executivo.
Igualmente, não fere o princípio da obrigatoriedade de
licitação, pois, embora o ente ou o órgão não participante do
certame, ao “tomar carona” em ata alheia, deixe de realizar a
sua própria licitação, o bem ou o serviço registrado e o seu
fornecedor foram selecionados mediante procedimento
licitatório promovido pelo ente que empresta a sua ata de
registro de preços, pelo que a afirmação de que o carona
equivaleria a uma dispensa indevida de licitação não parece
correta.
E assim se posiciona a maioria dos tribunais brasileiros,
como por exemplo, o tribunal de contas da união:
A resposta é a extensão da proposta mais vantajosa a todos
os que necessitam de objetos semelhantes, em quantidade
igual ou menor do que o máximo registrado.
Depois de ressalvar os casos de contratação direta e impor,
como regra, o princípio da licitação, a Constituição Federal
define os limites desse procedimento, mas em nenhum
momento obriga a vinculação de cada contrato a uma só
licitação ou, ao revés, de uma licitação para cada contrato.
Essa perspectiva procedimental fica ao alcance de
formatações de modelos: no primeiro, é possível conceber
15
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos
administrativos – 15. Ed. São Paulo: Dialética, 2012.
16 OLIVEIRA FILHO, Sérgio Veríssimo. O Sistema de Registro de
Preços e o Carona. Revista Zênite — Informativo de Licitações e
Contratos (ILC), Curitiba, n. 204, p. 120, fev. 2011.
156
Temas jurídicos atuais: Volume VI
mais de uma licitação para um só contrato, como na prática se
vislumbra com o instituto da pré-qualificação em que a seleção
dos licitantes segue os moldes da concorrência, para só depois
licitar-se o objeto, entre os pré-qualificados; no segundo,
afigura do carona para em registros de preços ou a previsão
do art.112 da Lei nº 8.666/93. Desse modo, é juridicamente
possível estender a proposta mais vantajosa conquistada pela
Administração Pública como amparo a outros contratos.
O fornecedor do carona é uma empresa que assegurando ao
órgão gerenciador a certeza da disponibilidade do objeto,
ainda pode se for da sua conveniência, suportar a demanda de
outros órgãos, pelo mesmo preço declarado na licitação como
proposta mais vantajosa.
O carona no processo de licitação é um órgão que antes de
proceder à contratação direta sem licitação ou a licitação
verifica já possuir, em outro órgão público, da mesma esfera
ou de outra, o produto desejado em condições de vantagem
de oferta sobre o mercado já comprovadas. Permite-se ao
carona que diante da prévia licitação do objeto semelhante por
outros órgãos, com acatamento das mesmas regras que
aplicaria em seu procedimento, reduzir os custos operacionais
de uma ação seletiva.
É precisamente nesse ponto que são olvidados pressupostos
fundamentais da licitação enquanto processo: a finalidade não
é servir aos licitantes, mas ao interesse público; a observância
da isonomia não é para distribuir demandas uniformemente
entre os fornecedores, mas para ampliar a competição visando
a busca de proposta mais vantajosa [...].
Aliás, importa destacar que depoimentos colhidos de
servidores integrantes de órgãos que sistematicamente têm
sido carona em registro de preços revelam inclusive que o
procedimento serve para desestimular a oferta de preços
elevados, nas licitações convencionais. De fato se o órgão
decide fazer uma licitação porque não tem certeza de que o
Sistema de Registro de Preços de outro órgão é, de fato, a
proposta mais vantajosa, a hipótese de poder ser carona inibe
a pretensão de sobrevalorização de propostas.
O aprimoramento do Sistema de Registro de Preços e a
intensificação do uso do carona levarão inevitavelmente ao
expurgo dos preços abusivos, pois a publicidade de ofertas
disponíveis será cada vez mais ampliada [...].
Por fim, é importante assinalar que nenhum sistema está
imune a desvios de finalidade, mas essa possibilidade não
pode impedir o desenvolvimento de processos de
modernização.
O sistema de registro...
157
O Tribunal de Contas da União teve a oportunidade de analisar
afigura do carona, admitindo a sua regularidade como
procedimento em tese.
O TCU considerou regular a utilização de Sistema de Registro
de Preços para a contratação de operadora de planos de
saúde, impondo a condição de o edital vedar a utilização da
ata de registro de preços por órgãos/entidades nãoparticipantes. Embora não apresentando restrições à tese de
adesão de não-participantes – caronas – nesse caso
específico, entendeu não haver possibilidade de aferir se o
preço vencedor será mais vantajoso ou compatível com a faixa
etária do quadro de pessoal do “carona”, pois o valor original
da contratação é vinculado às peculiaridades das faixa
sectárias do pessoal do órgão gerenciador.
Porém o tribunal de contas do Paraná diverge:
O TCE/PR recebeu consulta sobre a possibilidade de os
municípios deste estado aderirem às atas de registros de
preços de outros entes administrativos da esfera federal,
estadual ou municipal. Analisando o art. 15 e parágrafos da Lei
n. 8.666/93, o relator ressaltou que ‘em nenhum momento esse
dispositivo prevê a possibilidade de que uma entidade pública
que não tenha participado da elaboração do edital licitatório
possa aproveitar-se desse procedimento para efetuar a
aquisição de produtos do vencedor do certame’. Logo, no
entender da Corte de Contas paranaense, o Decreto n.
3.931/01, que regulamentou o Sistema de Registro de Preços,
extrapolou os limites constitucionais de sua utilização no que
concerne ao carona. Ainda, ressaltou tratar-se, ‘por vias
oblíquas, da introdução de uma nova causa de dispensa de
licitação, mediante decreto do Poder Executivo Federal, não
prevista na norma geral’. Por fim, a Corte de Contas estadual
decidiu por considerar ‘inconstitucional a adesão a ata de
registro de preço na forma prevista no art. 8º do Decreto n.
3.931/01, por ofensa aos arts. 22, XXVII, e 37, XXI e 84, IV da
Constituição Federal, que exigem lei federal para a disciplina
do processo licitatório, notadamente, quanto à previsão de
causa de dispensa ou inexigibilidade, e por ofensa à disciplina
da habilitação, ao princípio da legalidade, da vinculação ao
edital, da isonomia, da impessoalidade, da moralidade e da
economicidade’ (TCE/PR Consulta n. 19310/2010.Rel. Auditor
Ivens Zschoerper Linhares. DJ: 09/06/2011) [grifo nosso].
158
Temas jurídicos atuais: Volume VI
Embora ainda haja polêmica quanto ao uso do carona,
logo se percebe que a aceitação desta modalidade é majoritária
entre os tribunais brasileiros, levando-se em conta a praticidade
e a economia gerada pela realização de uma consulta em ata de
licitação já realizada. Destarte pode-se ter a figura do carona
como benéfica a administração pública visto que este instituto
permite ao órgão administrativo verificar o produto desejado em
condições de vantagens em relação ao mercado diante de prévia
licitação realizada por outro órgão e que com o acatamento das
mesmas regras que aplicaria em seu procedimento reduziria
seus custos administrativos. Deve-se entender que a finalidade
da licitação não é servir os licitantes, mas servir o interesse
público e permitir, portanto a administração pública o acesso aos
melhores bens pelos melhores preços. Pois a possibilidade de
aderir à ata é conhecida dos licitantes, o que leva a crer que os
fornecedores podem oferecer um preço mais razoável a
administração pública, esperando uma aquisição de “escala” a
seus produtos.
Apesar de amplamente aceita nos tribunais a figura do
carona, estes recomendam certa cautela quanto a seu uso e
impõem
algumas restrições, quais sejam: comprar
individualmente até o limite do que foi registrado ou de forma
conjunta até o máximo do quíntuplo do registrado; não aderir a
atas que tenham licitado quantidades inferiores a sua própria
demanda; obedecer às regras de pagamento impostas pelo
órgão gerenciador em edital; provar que o preço licitado é
compatível com o de mercado17.
Neste moldes pretendem os tribunais regularizar o uso
do carona e tentar pacificá-lo dentro da doutrina.
Seguindo este pensamento, têm-se que a Constituição
Federal de certa forma define os limites deste procedimento,
mas não obriga que cada contrato seja vinculado a apenas uma
licitação ou, ao contrário, que se tenha uma licitação para cada
contrato. Esse prisma procedimental está ao alcance de
formatações de modelos: primeiro é possível ter mais de uma
licitação para um único contrato, como pode verificar no instituto
da pré-qualificação em que a seleção dos licitantes segue a
17
FERNANDES, J. U. Jacoby. Carona em Sistema de Registro de
Preços: uma opção inteligente para redução de custos e controle. O
Pregoeiro, v. 3, out. 2007.
O sistema de registro...
159
regra da concorrência, e somente depois há a licitação do objeto,
entre os pré-qualificados. Segundo, com a figura do carona é
possível de forma jurídica alcançar a proposta mais vantajosa
com o amparo de outros contratos.
Neste sentido o Plenário do Tribunal de Contas da União
prolatou acórdão n° 2692/2012, que impõem certos limites a
figura do carona.
Assim, embora o instituto da adesão a ata de registro de
preços possibilite, conforme salientou o recorrente, a redução
dos custos com licitações e a desburocratização, sua utilização
de forma ilimitada não pode ser aceita, por contrariar princípios
básicos que vinculam a Administração Pública ...
O fato de as adesões às atas estarem sujeitas aos controles
dos órgãos de fiscalização, como, aliás, ocorre com qualquer
outro ato que envolva recursos públicos, não é garantia de que
não haverá dano ao erário, uma vez que, em geral, o controle
ocorre após o ato. Outrossim, a sujeição a diversos tipos de
controle não retira das adesões ilimitadas o caráter de
infringência aos princípios isonomia, da competitividade e da
economicidade ...
Vê-se que, associada à "escolha livre e incondicionada" do
gestor, o efeito multiplicador das contratações propiciado pela
atual sistemática do "carona" - aventado como fator de
economia processual - vulnera a Administração Pública,
expondo-a a riscos desarrazoados...
Dessa forma, uma vez que, em consonância com as
reconhecidas vantagens do Sistema de Registro de Preços, a
determinação contida no subitem 9.2.2 do Acórdão 1.487/2007
- Plenário não teve como objetivo vedar por completo a prática
da "carona", mas tão somente buscar limites para a adesão
tardia de registro de preços realizados por outros órgãos e
entidades, "visando preservar os princípios da competição, da
igualdade de condições entre os licitantes e da busca da maior
vantagem para a Administração Pública ...
Dessa forma, a fixação do limite a ser adquirido em edital [...]dá
plena transparência aos fornecedores a respeito da estimativa
de quantitativos a serem adquiridos por cada participante. O
entendimento detalhado pelo TCU na referida deliberação
reduz a assimetria de informações associada à absoluta
imprevisibilidade, na sistemática até então adotada pelos
órgãos e entidades federais, do total de "caronas" que
eventualmente poderiam ser agregados ao certame original e
mitiga, assim, a possibilidade de comportamento oportunista
por parte de eventuais licitantes fraudadores.
160
Temas jurídicos atuais: Volume VI
Até então admitia-se que qualquer órgão ou entidade
que aderisse, poderia contratar a mesma quantidade designada
na ata de registro de preços, ou seja, se dez órgãos aderissem
à ata de preço, o montante licitado poderia ser acrescido em dez
vezes, o que descaracterizaria o objetivo da licitação, uma vez
que quanto maior a quantidade contratada maiores são as
chances de se alcançar um preço razoável, enquanto a retórica
se faz verdadeira, quanto menor a quantidade contratada mais
custosa pode ser a licitação, portanto, entendeu o egrégio
tribunal que todos os contratos não devem ultrapassar a
quantidade que foi licitada na ata de registro de preço,
independentemente do número de aderentes. Em outras
palavras, orienta o Tribunal de Contas da União que o detentor
da ata e os eventuais caronas não poderão contratar em
conjunto quantidade superior a inicialmente licitada. De forma
que se preserve o objetivo da licitação de encontrar o fornecedor
mais benéfico para a administração pública e não há dúvidas
que na grande maioria dos casos o fornecedor mais benéfico é
aquele que oferece os melhores preços.
5.7.1 Existências de um mercado paralelo
É cada vez mais frequente a utilização da figura “carona”
e de sua utilização pela Administração Pública, assim como sua
presença nos meios de divulgação, criando-se assim um
mercado paralelo de bens e serviços que surge, oferecendo à
administração pública os objetos de atas de Registro de preços
em vigor.
Se anteriormente a administração pública precisava se
preocupar em publicar editais e divulgar licitações, hoje em dia
os particulares detentores de atas de registro de preços são
quem divulgam seus produtos de forma muito vantajosa para o
administrador, pois estes produtos não precisam de licitação. O
carona proporciona o oferecimento de produtos ou serviços que
já se encontram na ata de registro de preços, o que pode vir a
se tornar um avassalador balcão de negócios e um incontrolável
mercado paralelo às aquisições pelos órgãos públicos através
de processos licitatórios. Transformando-se em uma gigantesca
rede de corrupção, pois a forma de adesão não possui qualquer
O sistema de registro...
161
tipo de controle sobre os atos praticados, tal como publicação,
que o decreto sequer mencionou sua necessidade.
Fato este que inspirou Joel de Menezes Niebuhr 18, fazer
um verdadeiro desabafo:
O carona é o júbilo dos lobistas, do tráfico de influência e da
corrupção, especialmente num País como o nosso, com
instituições e meios de controle tão frágeis. Os lobistas e os
corruptores não precisam mais propor o direcionamento de
licitação; basta proporem o carona e tudo está resolvido.
Ademais há de se falar que a figura do carona é muito
útil ao administrador que não planeja que subverte a correta
ordem de atos necessários para a aquisição de bens ou
serviços, que consta na lei. A aquisição pelo carona é na maior
parte das vezes realizada de forma inversa, estando o produto
em ata é este oferecido ao administrador e este por sua vez
verifica sua necessidade considerando a facilidade da aquisição,
ignorando dessa forma alternativas que poderiam ser mais
vantajosas a administração.
Não há, portanto, planejamento ou estudo prévio para
verificar se o produto/serviço atenderia às necessidades, nem
qual o quantitativo ou a forma de aquisição mais benéfica.
Assim se pronunciam Madeline Rocha Furtado e Antonio
Pereira Vieira19:
Na necessidade de adquirir um bem ou um serviço, adere-se
às Atas, nas quais o objeto não contempla a real necessidade
do
órgão
interessado,
modifica-se
o
pedido,
suascaracterísticas, suas especificidades, periodicidade,
freqüência na execução, prazos derecebimento, quantitativos,
métodos, etc. Modifica-se o projeto inicial, visando aatender à
Ata quando deveria ser o inverso, a Ata poderá ou não atender
ao requisitado.” [...]
NIEBUHR. Joel de Menezes. “Carona” em Ata de Registro de Preços:
Atentado Veemente aos Princípios de Direito Administrativo. ILC –
Informativo de Licitações e Contratos, nº 143. Curitiba: Zênite jan. 2006
19 FURTADO, Madeline Rocha e VIEIRA, Antonieta Pereira. Cuidados
nas aquisições pelo sistema de registro de preços. Fórum de
Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 6. n. 67, jul.
2007, p. 70-72.
18
162
Temas jurídicos atuais: Volume VI
Nessa ótica, ainda poderíamos trazer uma prática
desordenada da adesão pelo "carona", quando da
"substituição" do objeto inicialmente registrado na Ata, por
equivalente, quando o fornecedor não detém o quantitativo
necessário para a adesão, muitas vezes negocia-se a
substituição do objeto por outro, porém, utilizando-se os itens
registrados na Ata.
Esta inversão de valores é prejudicial ao interesse
público, inibe e frustra a concorrência e a isonomia, pois adéqua
o interesse público às condições de um fornecedor específico.
Evidente se faz este mercado paralelo, com
negociações feitas antes e durante o processo de adesão a uma
ata de registro de preços, e que se destina a proporcionar o
mínimo de transparência e publicidade e como consequência
alcança-se o controle das contratações da administração pública
de forma irregular e prejudicial aos cofres públicos e ao próprio
estado democrático de direito. Assim se posiciona Justen Filho20
A consagração do 'carona' favorece a prática da corrupção. Em
primeiro lugar, envolve a realização de licitações destinadas ao
fornecimento de quantitativos enormes, o que se constitui em
incentivo a práticas reprováveis. Isso não significa afirmar que
existem desvios éticos apenas nas licitações de grande porte. O
que se afirma é que a grande dimensão econômica de uma
licitação eleva o risco de corrupção em vista do vulto dos valores
envolvidos. Mais grave, consiste na criação de competências
amplamente discricionárias. Ao assegurar ao ente administrativo a
faculdade de escolher entre utilizar ou não utilizar um registro de
preços, abre-se oportunidade para a corrupção. Não significa que
a existência do registro de preços seja um instrumento
intrinsecamente propício à corrupção: a figura do "carona" é
intrinsecamente propícia à corrupção. E o é porque uma entidade
pode ou não se valer de um registro de preços, segundo uma
escolha livre e incondicionada.
5.8 DA DISCRICIONARIEDADE DO ATO
A administração pública possui alguns poderes que lhe
permitem garantir a prevalência do interesse público sobre o
particular. Destaca-se o poder discricionário que permite uma
20
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos
administrativos. São Paulo: Dialética, 2008, p. 197.
O sistema de registro...
163
maior liberdade para a prática dos atos administrativos,
permitindo ao administrador um juízo de oportunidade e
conveniência.
Diogenes Gasparini explica que:
Há conveniência sempre que o ato interessa, convém ou
satisfaz ao interesse público. Há oportunidade quando o ato é
praticado no momento adequado à satisfação do interesse
público. São juízos subjetivos do agente competente sobre
certos fatos e que levam essa autoridade a decidir de um ou
outro modo. O ato administrativo discricionário, portanto, além
de conveniente, deve ser oportuno. A oportunidade diz
respeito com o momento da prática do ato. O ato é oportuno
ao interesse público agora ou mais tarde? Já ou depois? A
conveniência refere-se à utilidade do ato. O ato é bom ou ruim,
interessa ou não, satisfaz ou não o interesse público?21
Este poder de decisão sobre a oportunidade e
conveniência deve ser sempre norteado para um fim de
interesse público, sem que nunca se relacione ao interesse
pessoal do administrador público, sob pena de ilegalidade.
Necessário se faz deixar claro que não são todos os
elementos que compõe os atos administrativos que são
discricionários. Em se tratando de competência, forma e
finalidade, o ato administrativo sempre deverá ser vinculado, de
forma a se sujeitar aos limites estabelecidos em lei22.
A discricionariedade trata-se, portanto, de uma escolha
permitida ao administrador, dentro dos limites legais, sendo
assim a lei permite que o administrador opte por uma entre as
várias ações possíveis, sendo, no entanto, todas igualmente
válidas à luz do direito, o administrador deve então levar em
conta critérios subjetivos para sua escolha, partindo do ideal que
deseja alcançar e guiando-se dentro dos princípios legais,
considerando critérios como, conveniência, oportunidade e
justiça, que são de certa forma, inerentes a própria
administração pública.
21
GASPARINI, Diogenes, Direito Administrativo, 14ª ed., Saraiva, 2009,
p. 97
22 CATANESE, Elisabeth; MURTA, Camila C, GARCIA, Gisele Clozer
P. Os Limites do Poder Discricionário da Administração Pública. Dez.
2010.
164
Temas jurídicos atuais: Volume VI
Evidencia-se, portanto o importante papel da
discricionariedade dentro da administração de forma à permitir
ao administrador escolher a melhor hora e maneira de agir,
tornando o ato mais eficiente, relevante e democrático.
A discricionariedade torna, portanto, o ato inerente a
moral do próprio administrador, uma vez que cabe à este o juízo
de valores que levará ou não o ato a se concretizar, trazendo
para si a responsabilidade da pratica ou da ausência da pratica
deste ou daquele ato.
Partindo desta premissa, chega-se a ideia de que não
há como julgar um procedimento administrativo como bom ou
ruim, este será uma coisa ou outra dependendo de quem decide
quando e como usá-lo, logo a figura do “carona”, data vênia
opinião contrária, não é automaticamente um convite à
corrupção ou à prática de atos administrativamente imorais,
trata-se apenas de um procedimento que a luz do direito permite
ao administrador público uma resposta mais ágil e adequada à
necessidade de sua administração, cabe portanto à este
administrador avaliar como se utilizar desta ferramenta.
5.9 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A guisa do aqui exposto chega-se a ideia do importante
papel que o sistema de registro de preço pode desempenhar
para a melhora da prestação dos serviços públicos, tornando-os
menos custosos para a administração o que se reflete em toda
a sociedade. Como qualquer ideia ou projeto, o sistema de
registro de preços não está isento de erros, mas devido a sua
crescente utilização, aos poucos os erros vão sendo sanados,
até que se tenha um sistema que ao menos em tese seria um
modelo a ser seguido por toda a administração pública. Não
obstante, diante da realidade que se apresenta esse modelo,
está cada dia mais distante, não sendo assim porém
inalcançável.
O sistema de registro de preços traz em seu bojo o poder
discricionário do administrador de optar por uma ata de preços
de uma licitação já realizada ou a criação de uma nova licitação.
Através da figura do carona, portanto, como todo ato
discricionário, cabe ao administrador a decisão, e as
consequências dessa decisão refletem a própria efígie do
administrador, estando assim sujeito a moral de quem o utiliza.
O sistema de registro...
165
Se utilizado for, de boa-fé, com planejamento e impessoalidade,
o sistema de registro de preço pode ser um importante aliado da
administração, melhorando assim a qualidade de todo o serviço
prestado, desde o preço da mercadoria, até a logística de
armazenamento, que neste caso pode ser reduzida.
Em contracorrente, ao utilizar-se deste sistema de forma
pessoal, irresponsável ou visando lucro próprio, o sistema de
registro de preços pode ser um importante aliado do
administrador e um grande inimigo da administração, permitindo
não apenas que se comprem produtos ou serviços sem o uso de
licitações, como também permite a criação de um mercado
paralelo e ainda o direcionamento dos pedidos para um produto
ou fornecedor específico.
A figura do carona segue a mesma lógica, é inerente a
personalidade daquele que detém o poder de escolha. Devido a
essa característica, o carona, não é ainda aceito por todos os
tribunais pátrios, aqueles que aceitam tal figura tomam o cuidado
de tentar controlá-la, essa falta de unanimidade reflete na
administração pública, pois, não permite que haja uma certeza
jurídica a respeito, por exemplo, da legalidade dessa
sistemática.
Faz-se necessário, portanto, um posicionamento
coordenado dos tribunais quanto à figura do carona e sua
utilização. E mais importante que isso, faz-se necessário a
conscientização do administrador público dos limites da
utilização desta figura suas consequências. Frente à uma
natureza humana extremamente gananciosa cabe ainda uma
maior fiscalização junto ao poder público, de forma a fazer com
que os administradores hajam de forma correta seja por boa-fé
ou por temor.
Como corolário deste artigo, fica-se a ideia de que a
figura do carona é um procedimento muito importante e eficiente
para a administração pública, mas por depender de
características subjetivas, fica à mercê do administrador
podendo ser uma grande vantagem ou uma grande
desvantagem para o poder público, não podendo porém confiar
plenamente na boa vontade do administrador, cabe ao ministério
público, a sociedade e aos tribunais de contas, uma fiscalização
mais rígida e profunda, não apenas nesta situação em especial,
mas em todos os atos da vida pública. Cabe ao administrador a
prestação de contas sempre que lhe for solicitado, em
166
Temas jurídicos atuais: Volume VI
contrapartida é dever moral da sociedade, participar mais
ativamente do controle de gastos públicos.
Quanto à legalidade desta figura, a jurisprudência ainda
não foi pacificada, mas tudo leva a crer que embora tenha suas
divergências é cada vez mais aceito que se trata de um sistema
legal, o que em pouco tempo poderá ser aceito com
unanimidade pelos tribunais.
5.10 REFERÊNCIAS
ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO Vicente. Direito
Administrativo Descomplicado. 14° Ed. Rio de Janeiro:
Impetus,2007.
BRASIL. Constituição, 1988.
BRASIL. Controladoria Geral da União – Secretaria Federal de
Controle Interno. Sistema de Registro de Preços –
Perguntas e Respostas, Brasília, 2014. Disponível em:
http://migre.me/mgqFm. Acesso em 13 de out. 2014.
BRASIL. Decreto n° 7892, de 23 de janeiro de 2013.
BRASIL. Lei n ° 8.666, de 21 de junho de 1993.
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 668/2005.
Plenário. Relator: Ministro AUGUSTO SHERMAN
CAVALCANTI. Sessão de 25/05/2005. Disponível
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BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 2692/2012.
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CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito
administrativo. 24. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2011.
CATANESE, Elisabeth; MURTA, Camila C, GARCIA, Gisele
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Administração Pública. Dez.2010. Disponível em
<http://migre.me/m5xp9> Acesso em 03 out.2014.
CRETELLA JÚNIOR, José. Dicionário das Licitações Públicas.
3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
CRETELLA JUNIOR, José. Manual de direito administrativo. 5
ed. Rio de Janeiro. Forense, 1989.
DORELLA, Micheli Ribeiro Massi; SOARES, Roberta Moraes
Raso Leite. Sistema de Registro de Preços: O “carona” à
luz das inovações decorrentes do Decreto Federal n°
O sistema de registro...
167
7892/13. Revista TECMG, abr. 2013 – Disponível em:
<http://revista.tce.mg.gov.br/Content/Upload/Materia/1965.
pdf> Acesso em 30 set. 2014.
FERNANDES, J. U. Jacoby. Carona em Sistema de Registro
de Preços: uma opção inteligente para Redução de custos
e controle. O Pregoeiro, v. 3, out. 2007 — Disponível em:
<http://www.jacoby.pro.br/Carona.pdf>. Acesso em: 16 set.
2014.
FILHO, Sérgio Veríssimo. O Sistema de Registro de Preços e o
Carona. Revista Zênite — Informativo de Licitações e
Contratos (ILC), Curitiba, n. 204, p. 120, fev. 2011
FURTADO, Madeline Rocha; VIEIRA, Antonieta Pereira.
Cuidados nas aquisições pelo sistema de registro de
preços. Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP,
Belo Horizonte, ano 6. n. 67, jul. 2007.
GASPARINI, Diógenes, Direito Administrativo, 14ª ed., Saraiva,
2009.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e
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2012.
MEIRELLES, Hely Lopes; AZEVEDO, Eurico de Andrade;
ALEIXO, Délcio Balestero; BURLE FILHO, Jose
Emmanuel. Direito administrativo brasileiro. 37° Ed. São
Paulo: Malheiros, 2011.
NIEBUHR, Joel de Menezes. Pregão Presencial e Eletrônico.
6° Ed. Curitiba: Zênite, 2004.
NIEBUHR. Joel de Menezes. “Carona” em Ata de Registro de
Preços: Atentado Veemente aos Princípios de Direito
Administrativo. ILC – Informativo de Licitações e
Contratos, nº 143. Curitiba: Zênite jan. 2006.
= VI =
A INCONSTITUCIONALIDADE DA INCIDÊNCIA DO
IMPOSTO DE RENDA SOBRE JUROS MORATÓRIOS
João Paulo Sabaine Fagundes*
Mauro Luis Siqueira da Silva**
6.1 INTRODUÇÃO
Pensar no Poder de Tributar do Estado pressupõe
encontrar os limites de sua atuação. A Carta Constitucional não
se limita em reconhecer a insurgência dos contribuintes face ao
exercício desmedido do Estado de seu poder de tributar,
reconhecendo também uma séria de direitos e garantias
oponíveis ao Estado, que no exercício de seu poder de tributar
avança sobre o patrimônio do particular.
Assim, o interesse fazendário não se apresenta absoluto
ou, em certa medida, afastado de limites, tratando-se de um
poder que encontra limites delineados no Estado de Direito, daí
decorrendo a importância da regra matriz tributária, em especial
do imposto de renda, que ao determinar o critério material, não
deixa margem ao fisco federal para dar outro contorno ao que
denomina renda ou proventos. Para tanto, há que se considerar
um incremento patrimonial real ou efetivo desprovido de
qualquer característica ou aspecto indenizatório, na medida em
que a natureza jurídica da indenização se funda no
ressarcimento do prejuízo sofrido pela parte, tendo, portanto,
seu fundamento no âmbito da responsabilidade civil.
Bacharelando de Direito pelo UniCesumar – Centro Universitário
CESUMAR, orientando do Professor Mestre Mauro Luis Siqueira da
Silva.
** Mestre em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL)
*
A inconstitucionalidade da incidência...
169
6.2 CONSIDERAÇÕES GERAIS ACERCA DA TRIBUTAÇÃO
E COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA SOBRE O IMPOSTO DE
RENDA
Em primeiro plano, destaque-se o papel da tributação no
sentido de ser o principal meio de manutenção do Estado, com
a finalidade, conforme ensina Roque Antonio Carrazza 1, de
arrecadar os recursos necessários para a realização dos fins
sociais como garantia de segurança, saúde, educação, dentre
outros.
Neste mesmo sentido, dispõe Hugo de Brito Machado 2:
A tributação é, sem sombra de dúvida, o instrumento de que
se tem valido a economia capitalista para sobreviver. Sem ele
não poderia o Estado realizar seus fins sociais, a não ser que
monopolizasse toda a atividade econômica. O tributo é
inegavelmente a grande e talvez única arma contra a
estatização da economia.
Para tanto, a Constituição Federal, considerada “fonte
direta por excelência do direito tributário, no Brasil”3, para evitar
abusos do Estado, detentor do poder de tributar, e garantir a
segurança dos contribuintes, traçou diretrizes e limites acerca da
tributação, fixando cinco espécies de tributos, quais sejam: os
impostos; as taxas; as contribuições, contribuição de melhoria e
os empréstimos compulsórios, cumprindo no presente estudo
identificar as características genéricas do imposto, que, nas
lições de Luciano Amaro4, são:
a) são instituídos mediante previsão legal de fatos típicos (em
regra descritos na norma definidora de competência), que,
uma vez ocorridos, dão nascimento à obrigação tributária;
1CARRAZZA,
Roque Antonio. Imposto sobre a Renda (Perfil
Constitucional e Temas Específicos). 3. ed. São Paulo: Malheiros,
2009, p. 30.
2 MACHADO ,Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 35. ed. São
Paulo: Saraiva, 2014, p. 24.
3 CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a Renda (Perfil
Constitucional e Temas Específicos). 3. ed. São Paulo: Malheiros,
2009, p. 29.
4 AMARO, Luciano da Silva. Direito tributário brasileiro. 20. ed. São
Paulo: Saraiva, 2014, p. 103.
170
Temas jurídicos atuais: Volume VI
b) não se relacionam a nenhuma atuação estatal divisível e
referível ao sujeito passivo;
c) não se afetam a determinado aparelhamento estatal ou
paraestatal, nem a entidades privadas que persigam fins
reputados de interesse público.
Desta forma, temos que os impostos se destinam à
manutenção das atividades gerais do Estado, não se limitando a
financiar um ou outro serviço público específico, como ocorre
com as taxas e contribuições, ainda, há que se mencionar o fato
da existência de um sistema rígido de competências, muito bem
definidas e dividas entre os entes da federação.
Nas lições de Roque Antonio Carrazza 5, ao determinar
as competências tributárias, a Carta Magna criou uma regramatriz de incidência que indicou a hipótese de incidência
possível, o sujeito ativo possível, o sujeito passivo possível, a
base de cálculo e a alíquota possível dos grupos de espécies
tributárias.
No que se refere especificamente aos impostos, esta
regra-matriz discriminou, a fim de se limitar a ação do legislador
infraconstitucional, o poder de criação de cada um dos entes
federativos, ou seja, delimitou quais impostos podem ser
criados, em caráter exclusivo, pela União, os Estados, os
Municípios e pelo Distrito Federal.
Neste diapasão, o imposto sobre a renda e proventos de
qualquer natureza é de competência exclusiva da União,
conforme determina o artigo 153, em seu inciso VIII da
Constituição Federal de 1988.
Hugo de Brito Machado6 nos apresenta a justificação da
competência da União para a criação do Imposto de Renda:
Justifica-se que seja esse imposto da competência federal
porque só assim pode ser utilizado como instrumento de
redistribuição de renda, buscando manter em equilíbrio o
desenvolvimento econômico das diversas regiões (...).
5
CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a Renda (Perfil
Constitucional e Temas Específicos). 3. ed. São Paulo: Malheiros,
2009, p. 33.
6 MACHADO ,Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 35. ed. São
Paulo: Saraiva, 2014, p. 319.
A inconstitucionalidade da incidência...
171
6.3 ASPECTOS DA REGRA MATRIZ TRIBUTARIA DO
IMPOSTO SOBRE A RENDA E PROVENTOS DE QUALQUER
NATUREZA
Na dicção do artigo 43 do Código Tributário Nacional, o
Imposto de Renda incide sobre aquisição da disponibilidade
econômica ou jurídica de renda ou de proventos de qualquer
natureza, desde que indiquem um acréscimo patrimonial do
contribuinte.
Neste sentido, a doutrina de Yoshiaki Ichihara 7 traz o
seguinte conceito de Imposto de Renda:
Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza, de
competência privativa da União, incide sobre a renda
proveniente do capital, do trabalho e da combinação de ambos,
que importe na aquisição da disponibilidade jurídica ou
econômica que resulte um acréscimo patrimonial e por
proventos de qualquer natureza, qualquer acréscimo
patrimonial não compreendido no conceito de renda, sujeito à
observância dos princípios constitucionais, tributários,
explícitos e implícitos, além das limitações constitucionais ao
poder de tributar, podendo o contribuinte ser pessoa física ou
jurídica, devendo a tributação ser uniforme em todo território
nacional, mas sujeita a uma tributação segundo a capacidade
contributiva, com a observância dos princípios da
universalidade, generalidade e progressividade.
Em suma, Imposto de Renda prescinde da
disponibilidade jurídica ou econômica de todo e qualquer
acréscimo patrimonial, desde que proveniente de uma renda ou
de proventos de qualquer natureza.
Ainda, há que se mencionar os critérios informadores
acerca da incidência do Imposto de Renda, quais sejam: a
generalidade, a universalidade e a progressividade, conforme
determina o artigo 153 da Constituição Federal, em seu
parágrafo 2°.
7
ICHIHARA, Yoshiaki. Direito Tributário: atualizado até EC 67/10 e
LC 138/10. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 238.
172
Temas jurídicos atuais: Volume VI
Neste sentido, leciona Roque Antonio Carrazza8 acerca
da generalidade:
Por generalidade entendemos que o imposto há de alcançar
todas as pessoas que realizam seu fato imponível. E isto
independentemente de raça, sexo, convicções políticas, credo
religioso, cargos ocupados etc. noutros falares, este critério
veda as discriminações e privilégios entre os contribuintes.
Sobre a universalidade, ensina o mesmo autor9:
Já por universalidade temos que o IR deve alcançar todos os
ganhos ou lucros, de quaisquer espécies ou gêneros, obtido
pelo contribuinte no território brasileiro e – desde que
respeitados os acordos que visam a evitar bitributação
internacional – também no exterior. Em linha de princípio, nada
deve escapar à sua incidência, pouco importando a
denominação dos rendimentos, sua origem, a condição
jurídica de quem os aufere ou a nacionalidade da fonte. Tal
avaliação global conecta o tributo aos princípios da capacidade
contributiva e da igualdade.
Já para Yoshiaki Ichihara10, a universalidade e a
generalidade seriam quase sinônimos no sentido de incidir sobre
o todo, sem qualquer tipo de distinção, ou seja, tratar os iguais
como iguais e os desiguais como desiguais, à luz do princípio da
igualdade, que deve ser concretamente aplicado quando da
incidência do Imposto de Renda.
Em resumo, podemos entender que o critério da
generalidade vem para determinar que o Imposto de Renda deve
ser aplicado a todos indistintamente, sem discriminação de
qualquer tipo, ressaltando, que este é aplicável tanto a pessoas
físicas, quanto à pessoas jurídicas, ainda que por alíquotas
distintas em respeito ao princípio da isonomia de que trata o
artigo 5° da Constituição Federal.
8
CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a Renda (Perfil
Constitucional e Temas Específicos). 3. ed. São Paulo: Malheiros,
2009, p. 68.
9 CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a Renda (Perfil
Constitucional e Temas Específicos). 3. ed. São Paulo: Malheiros,
2009, p. 69.
10 ICHIHARA, Yoshiaki. Direito Tributário: atualizado até EC 67/10 e
LC 138/10. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 238.
A inconstitucionalidade da incidência...
173
E que o critério da universalidade vem para determinar
que o Imposto de Renda deve incidir sobre tudo o que for renda
ou proventos, na forma da Lei, incluindo tanto os elementos
positivos, quanto os negativos, que venham a aumentar ou
diminuir o patrimônio do contribuinte.
Por fim, o critério da progressividade vem determinar
que as alíquotas aplicáveis na base de cálculo do Imposto de
Renda devem ser progressivas, ou seja, quanto maior a base de
cálculo, maior será a alíquota aplicada.
Destarte, conforme ensina Roque Antonio Carrazza 11, a
progressividade é corolário dos princípios da igualdade e da
capacidade contributiva, posto que os contribuintes com maiores
rendimentos são atingidos por um tratamento fiscal de maior
gravidade do que os contribuintes que tenham uma capacidade
econômica diminuta, contribuindo assim para a distribuição de
renda e efetivação da igualdade material aclamada pela
Constituição Federal.
Voltando ao cerne da materialidade do Imposto de
Renda, esta se consubstancia com a percepção de renda e
proventos de qualquer natureza. Sendo estes definidos como
acréscimos patrimoniais de origem diversa da renda, a qual se
trata do produto do trabalho, do capital ou de ambos
conjuntamente, tudo na forma do artigo 43 do Código Tributário
Nacional.
O mesmo artigo traz como fato gerador “a aquisição da
disponibilidade econômica ou jurídica” sobre a renda ou
proventos de qualquer natureza, denominação que traz certa
confusão acerca do que se trata disponibilidade jurídica, por um
lado, e do que se trata disponibilidade econômica, do outro.
A definição de renda e sua natureza jurídica, bem como
as diferenças entre disponibilidade jurídica e disponibilidade
econômica, serão abordados mais adiante no capítulo 4 deste
estudo, devido à importância de se detalhar as particularidades
destes institutos jurídicos para melhor entendimento da
inconstitucionalidade da incidência do imposto de renda sobre
juros moratórios, tema objeto deste artigo.
11
CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a Renda (Perfil
Constitucional e Temas Específicos). 3. ed. São Paulo: Malheiros,
2009, p. 72.
174
Temas jurídicos atuais: Volume VI
Uma vez que o fato gerador e suas especificidades
serão explanados em momento oportuno, cumpre, ainda se
tratando das características gerais da materialidade do imposto
de renda, tratarmos de seus aspectos pessoal, espacial,
temporal e valorativo.
No seu aspecto pessoal, encontramos os personagens
que integram a relação jurídico tributária. No polo ativo, por se
tratar de um imposto federal cuja competência, conforme já
estudado, é determinada pela Constituição, temos a União. Já
no polo passivo, temos o contribuinte, conforme ensina Alimoar
de Andrade Baleeiro12:
Assim, poderá figurar no polo passivo o contribuinte
pessoa física ou jurídica, desde que “titular da disponibilidade”
conforme preconiza o artigo 43 do Código Tributário Nacional.
Devido à possibilidade da retenção ou desconto na fonte do
imposto de renda, surge ainda mais uma figura no polo passivo:
o “responsável tributário”.
Acerca do responsável tributário, ensina Yoshiaki
Ichihara13:
A possibilidade de transferir o encargo de reter na fonte, com
a transferência da responsabilidade, no caso de omissão, à
fonte pagadora, não transforma o responsável em contribuinte,
mas esta figura do responsável tributário, é aquele previsto no
art. 121, parágrafo único, II, do CTN, que por ligação indireta
com o fato gerador, o nexo causal é por ter contribuído para
que o tributo deixe de ser recolhido pelo descumprimento de
um dever instrumental ou acessório, ou ainda pelo critério de
benefício.
Destarte, no polo passivo da relação jurídico tributária do
imposto de renda os contribuintes, temos a pessoa física ou
jurídica, residente ou não em território nacional, desde que o fato
gerador tenha ocorrido neste; e o responsável tributário, mesmo
que, neste último caso, se perca a natureza pessoal do imposto.
12
BALEEIRO, Aliomar de Andrade. Direito tributário brasileiro. 11.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 313.
13 ICHIHARA, Yoshiaki. Direito Tributário: atualizado até EC 67/10 e
LC 138/10. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 239.
A inconstitucionalidade da incidência...
175
Sobre o seu aspecto espacial, ensina Yoshiaki Ichihara 14
que, por se tratar de imposto federal, o imposto de renda poderá
ser aplicado por toda extensão do território nacional, podendo
ocorrer “incentivos localizados”, admitindo exceções ao princípio
da territorialidade. No mesmo sentido, Alfredo Augusto Becker 15,
tratando do aspecto espacial define como “coordenadas de
lugar” da hipótese de incidência do imposto de renda.
Assim, o aspecto espacial nos traz que o imposto de
renda poderá incidir sobre a renda ou proventos de qualquer
natureza, desde que produzidos e/ou percebidos dentro do
território nacional, independentemente se o contribuinte é ou não
residente no país.
Tratando-se do seu aspecto temporal, temos, como
regra geral, que o imposto de renda incide sobre a renda ou
proventos de qualquer natureza percebidos dentro de um lapso
temporal determinado. É o que Luciano Amaro16 chama de “fato
gerador periódico”, que se dá nas hipóteses de incidência anual.
Em consonância a esta hipótese, leciona Hugo de Brito
Machado17:
Tratando-se de imposto de incidência anual, pode-se afirmar
que o seu fato gerador é da espécie dos fatos continuados. E
em virtude de ser a renda, ou o lucro, um resultado de um
conjunto de fatos que acontecem durante determinado
período, é razoável dizer-se também que se trata de fato
gerador complexo.
Partindo desta premissa, temos que o artigo 105 do
Código Tributário Nacional, que determina que “a legislação
tributária aplica‐se imediatamente aos fatos geradores futuros e
aos pendentes”, não foi recepcionado pela Constituição Federal,
posto que contraria o disposto no artigo 150, III, deste dispositivo
legal.
14
Ibid.
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3. ed.
São Paulo: Lejus, 2002, p. 403.
16 AMARO, Luciano da Silva. Direito tributário brasileiro. 20. ed. São
Paulo: Saraiva, 2014, p. 142.
17 MACHADO ,Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 35. ed. São
Paulo: Saraiva, 2014, p. 234.
15
176
Temas jurídicos atuais: Volume VI
Neste diapasão, ainda tratando da regra geral acerca do
aspecto temporal da incidência do imposto de renda, temos o
sistema de “ano base” 18 para se apurar a base de cálculo,
caracterizada pela aquisição de renda ou proventos de qualquer
natureza, como veremos adiante, percebidos dentro do lapso
temporal de um ano.
Da análise deste sistema, entendemos o porquê a
questão da violação do princípio da irretroatividade por este
sistema encontra-se há muito superada. Isto porque, como
vimos, considera-se que o fato gerador se dá no último momento
do ano base, ou seja, no dia 31 de dezembro de cada ano, assim
qualquer alteração da legislação anterior à ocorrência do fato
gerador não viola os princípios da anterioridade e da
irretroatividade da lei, conforme doutrina de Yoshiaki Ichihara 19.
Esta hipótese de incidência do imposto de renda pelo
sistema de ano base, como vimos, é a regra geral para
tributação. Há, porém, outros métodos de arrecadação em que
o fato gerador não ocorre durante um determinado período de
tempo20, é o que ocorre, por exemplo, com o imposto
descontado na fonte.
Assim sendo, o imposto de renda poderá ter sua
incidência tomando como base vários momentos de ocorrência
do fato gerador, cabendo ao legislador, dentro dos limites
constitucionais, definir em que hipóteses se utilizará o sistema
de “ano base” ou se fará a arrecadação através da retenção na
fonte pagadora.
Por fim, o aspecto valorativo da materialidade do
imposto de renda se desprende do que preconiza o artigo 44 do
Código Tributário Nacional que a base de cálculo do imposto é
o montante, real, arbitrado ou presumido, da renda ou dos
proventos tributáveis. No mesmo sentido, Eduardo Sabbag 21
discorre em sua doutrina:
18
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3. ed.
São Paulo: Lejus, 2002, pp. 403 e 404.
19 ICHIHARA, Yoshiaki. Direito Tributário: atualizado até EC 67/10 e
LC 138/10. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 239.
20 ICHIHARA, Yoshiaki. Direito Tributário: atualizado até EC 67/10 e
LC 138/10. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 239.
21 SABBAG, Eduardo de Moraes. Manual de direito tributário. 4. ed.
São Paulo: Saraiva, 2012, p. 1.135.
A inconstitucionalidade da incidência...
177
(...) É o montante real, arbitrado ou presumido, da renda e do
provento de qualquer natureza. Aliás, é bom que se memorize
que não existe “renda presumida”. Presumido ou arbitrado
pode ser o montante da renda. Adota-se, no Brasil, um critério
de aferição de base de cálculo “pelo montante absoluto da
renda ou provento” (critério global ou unitário), segundo o qual
as alíquotas incidem sobre o total dos rendimentos,
independentemente de sua origem ou razão. Assim, a
incidência ocorre sobre o crédito líquido do contribuinte, ou
seja, a diferença entre a renda ou provento bruto auferido e os
encargos admitidos em lei, tais como gastos com
dependentes, planos de saúde etc. devem-se somar todos os
rendimentos e lucros de capital da pessoa física e seus
dependentes (rendimento bruto) e subtrair os encargos (reais
ou presumidos) autorizados pela legislação (rendimento
líquido).
Há de se destacar, porém, conforme nos traz Alfredo
Augusto Becker22, nos casos em que o cálculo da renda líquida
é impraticável ou incontrolável, o legislador opta, como base de
cálculo, pela “receita bruta”. Contudo, embora o legislador utilize
esta denominação, não chega a ser uma “receita bruta”, mas
apenas a receita ou rendimento bruto, o que descaracteriza a
natureza jurídica do imposto de renda, como veremos logo
abaixo.
Esta é a atual regra para a pessoa física, incidindo o
imposto de renda sobre o rendimento bruto mensal auferido.
Porém, como visto, esta regra irá admitir algumas exceções
como, por exemplo, as despesas com dependentes e com
planos de saúde.
Todavia, nas lições de Hugo de Hugo de Brito
Machado23, verificamos uma violação desta regra aos preceitos
constitucionais, senão vejamos:
A rigor, na definição da base de cálculo do imposto de renda
pela legislação ordinária podem ser constatadas diversas
violações da Constituição, posto que levam à incidência do
imposto sobre algo que não é renda. Por outro lado, o próprio
22
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3. ed.
São Paulo: Lejus, 2002, p. 399.
23 MACHADO ,Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 35. ed. São
Paulo: Saraiva, 2014, p. 327.
178
Temas jurídicos atuais: Volume VI
sistema do qual decorre o pagamento do imposto na fonte em
valor superior ao devido na declaração anual de ajuste também
fere a Constituição Federal, pois termina sendo uma forma
oblíqua de instituir empréstimo compulsório.
Assim, como medida de justiça tributária e em
atendimento aos preceitos constitucionais, a fim de atender os
objetivos fiscais e extrafiscais do imposto de renda, como melhor
forma de direito teríamos que voltar a considerar como base de
cálculo, no caso de pessoa física, a renda líquida por esta
auferida, posto que uma tributação arbitrária sobre a renda bruta
do contribuinte, pode assumir, conforme observado, caráter de
empréstimo compulsório, que na legislação brasileira atual, só é
admitido em casos específicos.
Já com relação à pessoa jurídica, a base de cálculo do
imposto de renda é o lucro que, conforme disposto no artigo 44
do Código Tributário Nacional, poderá assumir o caráter de real,
arbitrado ou presumido.
Neste sentido, Yoshiaki Ichihara24 dispõe em sua
doutrina:
Assim, a legislação do Imposto de Renda e Provento de
Qualquer Natureza admite três formas de apuração: do lucro
real, que é a regra das pessoas jurídicas em geral, apurada
considerando a receita, menos as despesas e com as adições
e exclusões; lucro presumido, aplicável por opção às pessoas
jurídicas que tenham uma receita inferior ao limite fixado por
lei, através de uma presunção de lucro e com isso dispensando
o cumprimento de algumas obrigações acessórias; e lucro
arbitrado, quando na falta de informações, descumprimento de
obrigação acessória ou dever instrumental formal etc., todas
as condições fixadas em lei, o fisco arbitra o lucro tributável.
Esclarecidos as diferenças de base de cálculo para a
pessoa física e para a pessoa jurídica, ainda em relação ao
aspecto valorativo, importante ressaltar que, da mesma maneira,
as alíquotas de incidência do imposto de renda, serão aplicadas
de maneira distintas.
24
ICHIHARA, Yoshiaki. Direito Tributário: atualizado até EC 67/10 e
LC 138/10. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 241.
A inconstitucionalidade da incidência...
179
Assim, conforme ensina Hugo de Brito Machado 25, a
alíquota para as pessoas jurídicas será proporcional, ao passo
que para as pessoas físicas, atenderá ao critério da
progressividade, já exaustivamente explanado neste estudo.
Em suma, assim como as limitações advindas da
competência estabelecida pela Constituição Federal, as
características gerais acerca da materialidade, aqui
demonstradas, se apresentam como inibidores da atuação
arbitrária do legislador na determinação dos parâmetros para
incidência do imposto de renda.
No capítulo que segue analisaremos a fundo o conceito
de renda e suas consequências jurídicas, que, na maioria das
vezes, também se mostram como limitadores à atuação estatal,
os quais passamos a analisar a partir de agora.
6.4 DEFINIÇÃO E NATUREZA JURÍDICA DE “RENDA” PARA
FINS DE TRIBUTAÇÃO
Ao que se observa a Constituição Federal em seu artigo
153, III determina a competência da União para instituir imposto
sobre “renda e proventos de qualquer natureza”, dispondo,
ainda, sob quais critérios este deverá se orientar.
Desta forma, é transparente que a Carta Magna adotou
um conceito amplo e genérico de renda, abrangendo,
igualmente, os proventos de qualquer natureza. O artigo 43 do
Código Tributário Nacional, ratifica e complementa este conceito
quando dispõe que renda é “o produto do capital, do trabalho ou
da combinação de ambos” e que proventos são “acréscimos
patrimoniais” não compreendidos no conceito de renda.
Em análise ao acima exposto, percebemos que não há
um conceito restritivo, tanto na Constituição quanto no Código
Tributário Nacional, do que seria renda ou proventos, o que leva
alguns estudiosos à falsa conclusão de que o legislador ordinário
é livre para conceituar o que seria renda e proventos de qualquer
natureza.
Neste sentido, ensina Hugo de Brito Machado 26:
25
MACHADO ,Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 35. ed. São
Paulo: Saraiva, 2014, p. 325.
26 MACHADO ,Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 35. ed. São
Paulo: Saraiva, 2014, p. 321.
180
Temas jurídicos atuais: Volume VI
Em face das controvérsias a respeito do conceito de renda, há
quem sustente que o legislador pode livremente fixar o que
como tal se deva entender. Assim, porém, não nos parece que
seja. Entender que o legislador é inteiramente livre para fixar o
conceito de renda e de proventos importa deixar sem qualquer
significação o preceito constitucional respectivo. A
Constituição, ao atribuir competência tributária à União, alude
a renda e a proventos. Assim, entender-se que o legislador
ordinário pode conceituar, livremente, essas categorias implica
admitir que esse legislador ordinário pode ampliar,
ilimitadamente, essa atribuição de competências, e tal não se
pode conhecer em um sistema tributário como o brasileiro.
Corroborando com este entendimento, Roque Antonio
Carrazza27, aponta no sentido de que, mesmo que o legislador
tenha certa liberdade para definir o que é renda, este deverá
fazê-lo observando os conceitos oferecidos pelas Ciências
Econômicas e esteja em consonância com os princípios
constitucionais que limitam a incidência do imposto de renda,
observando-se, principalmente, o princípio da capacidade
contributiva, posto que a Constituição estabelece que renda e
proventos devem se mostrar como riquezas ou ganhos novos.
Posto que o legislador deva atuar dentro destes limites
constitucionais, não poderá denominar renda ou proventos,
aquilo que não seja renda ou proventos, ou seja, que não se
caracterize por ganho ou riqueza nova. Neste sentido a doutrina
nos traz conceitos destes institutos em análise, a fim de facilitar
o entendimento do que o legislador estaria autorizado, ou não,
de aplicar a incidência do imposto de renda.
Começaremos exaurindo o que a doutrina conceitua
como “proventos de qualquer natureza”. Assim Humberto Ávila 28
discorre sobre o conceito de proventos:
O conceito de proventos de qualquer natureza compreende
todos os acréscimos patrimoniais não incluídos na noção de
renda. Tudo aquilo que foi acrescido ao conjunto de direitos e
27
CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a Renda (Perfil
Constitucional e Temas Específicos). 3. ed. São Paulo: Malheiros,
2009, p. 57.
28 ÁVILA, Humberto. Conceito de Renda e Compensação de
Prejuízos Fiscais. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 32.
A inconstitucionalidade da incidência...
181
obrigações de um sujeito considera-se acréscimo patrimonial.
Nesse patrimônio incluem-se, em função do princípio da
capacidade contributiva, apenas os direitos avaliáveis
economicamente que são acrescidos ao patrimônio.
Em sentido distinto dispõe Misael Abreu Machado
Derzi29:
provento é forma específica de rendimento tributável,
tecnicamente compreendida como o que é ‘fruto não da
realização imediata e simultânea de um patrimônio, mas sim,
do acréscimo patrimonial resultante de uma atividade que já
cessou, mas que ainda produz rendimentos’, como os
benefícios de origem previdenciária, pensões e aposentadoria.
Já proventos em acepção ampla, como acréscimos
patrimoniais não resultantes do capital ou do trabalho, são
todos aqueles de ‘origem ilícita e bem aqueles cuja origem não
seja identificável ou comprovável’ (cf. MODESTO
CARVALHOSA, op. cit., p. 194);
Porém, no nosso entendimento, a melhor definição é a
dada por Roque Antonio Carrazza30, que em uma conceituação
una para renda e proventos de qualquer natureza, os define
como os ganhos econômicos, fruto do capital e trabalho, ou de
ambos, apurados em seu valor líquido, ou seja, a soma das
entradas mais a subtração das saídas, em um determinado
período de tempo. Em suma seria o “acréscimo patrimonial no
tempo”.
Neste sentido, Humberto Ávila31 corrobora com esta
conceituação quando ensina que a renda seria o “produto líquido
calculado durante o período de um ano”, dispondo ainda que:
O conceito de renda pressupõe uma fonte produtiva. Ora,
somente uma atividade organizada para o ganho é que pode
29
DERZI, Misabel de Abreu Machado. Os conceitos de renda e de
patrimônio: efeitos da correção monetária insuficiente no imposto
de renda. Belo Horizonte: Del Rey, 1992, p. 24.
30 CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a Renda (Perfil
Constitucional e Temas Específicos). 3. ed. São Paulo: Malheiros,
2009, p. 39.
31 ÁVILA, Humberto. Conceito de Renda e Compensação de
Prejuízos Fiscais. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 34.
182
Temas jurídicos atuais: Volume VI
perceber ‘renda’. Elemento subjetivo da hipótese de incidência
do imposto sobre a renda é a finalidade de auferi-la.32
Em suma, podemos conceituar “renda e proventos de
qualquer natureza” como o acréscimo patrimonial, advindo de
uma fonte produtiva, seja esta o capital, o trabalho ou ambos,
apurado em seu valor líquido produzido em um determinado
período de tempo.
Esta única conceituação tanto para renda, quanto para
proventos de qualquer natureza, se faz cabível mesmo que,
como visto, alguns doutrinadores apresentem distinção acerca
da conceituação destes dois institutos. É o que passamos a
deslindar a partir de agora, para melhor entendimento do objeto
em estudo.
Em princípio, cumpre lembrar que o artigo 43 do Código
Tributário Nacional já nos traz uma distinção entre renda e
proventos de qualquer natureza, quando coloca aquela como “o
produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos”, e
estes como “os acréscimos patrimoniais não compreendidos no
inciso anterior”, caracterizando um aspecto residual.
Daí podemos extrair que renda seria todo acréscimo
patrimonial fruto do capital, do trabalho ou da combinação de
ambos, e que proventos seriam todo acréscimo patrimonial não
decorrentes do capital ou do trabalho. Ocorre que a Constituição,
desde 1934, não nos revela tal entendimento, conforme ensina
Luciano Amaro33:
Em suma, quando a Constituição (desde 1934) se reporta a
“renda e proventos de qualquer natureza”, está utilizando
sinônimos imperfeitos, e a locução “de qualquer natureza”
parece-nos ter sido utilizada para não deixar dúvida de que
todo ingresso de riqueza nova no patrimônio de alguém,
qualquer que seja a origem deste proveito, é passível de
incidência do tributo. Em rigor, ainda que a Constituição
dissesse “renda”, tout court, não estaria vedada essa definição
32
Ibid., p. 32.
AMARO, Luciano da Silva. Imposto de Renda: Regime Jurídico. In:
MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.); NASCIMENTO, Carlos
Valder do (Coord.); MARTINS, Rogério Gandra da Silva (Coord.).
Tratado de direito tributário: volume 1. São Paulo: Saraiva, 2011, p.
395.
33
A inconstitucionalidade da incidência...
183
ampla do campo material do imposto, segundo a teoria do
acréscimo patrimonial.
Assim, tal entendimento vem para ratificar a
conceituação una para renda e proventos de qualquer natureza,
posto que a Constituição adotou a teoria do acréscimo
patrimonial, sendo este o objeto de incidência do imposto,
independentemente de sua origem, vindo a denominação destes
institutos apenas como forma de firmar tal teoria e impor limites
à ação do legislador infraconstitucional.
Oportuno se faz, também, aclararmos a distinção entre
renda e rendimentos para melhor compreensão de nosso
estudo. Assim sendo, conforme doutrina de Roque Antonio
Carrazza34, rendimento seria “qualquer ganho, isoladamente
considerado”, já renda, como já vimos, seria o acréscimo
patrimonial, apurado em seu valor líquido, em determinado lapso
temporal.
Em consonância com este entendimento, leciona
Misabel Abreu Machado Derzi35:
A ideia de rendimento é só a de determinado ganho e
sua noção independe do tempo. Já a noção de renda
está integrada necessariamente pela ideia de período de
tempo (cf. op. cit., p. 2-3). A soma dos rendimentos
pessoais (como remunerações de fatores produtivos),
por certo lapso de tempo, é que configura a renda.
Destarte, fica transparente a diferença entre renda e
rendimentos, posto que o conjunto destes por um certo período
de tempo é que irá formar aquela, que se trata do objeto da
hipótese de incidência do tributo em análise. Não fosse assim, o
imposto de renda, ao incidir sobre rendimentos simplesmente,
estaria adentrando no patrimônio do contribuinte, que também
se difere do conceito de renda como veremos a seguir,
34
CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a Renda (Perfil
Constitucional e Temas Específicos). 3. ed. São Paulo: Malheiros,
2009, p. 39.
35 DERZI, Misabel de Abreu Machado. Os conceitos de renda e de
patrimonio: efeitos da correçao monetaria insuficiente no imposto
de renda. Belo Horizonte: Del Rey, 1992, p. 19.
184
Temas jurídicos atuais: Volume VI
caracterizando assim o confisco, que, como já estudamos, é
proibido pela Constituição Federal.
Para o artigo 91 do Código Civil, patrimônio é toda
“universalidade de direito o complexo de relações jurídicas, de
uma pessoa, dotadas de valor econômico”, ou seja, é toda
universalidade de bens e direitos já adquiridos em tempos
passados, constituindo a “renda”, um mero acréscimo
patrimonial em um determinado período de tempo.
Neste sentido, Misabel Abreu Machado Derzi 36,
trazendo patrimônio como sinônimo de capital, ensina:
Esse capital, possuído em determinado momento no tempo
por seu titular, não é passível de tributação pelo imposto de
renda, nem como pagamento, nem como transferência.
Configuram pagamentos de capital os meros fluxos de moeda,
bens ou serviços que correspondem a simples trocas onerosas
entre patrimônios distintos, de forma equivalente, de modo que
não advenha daí nenhum acréscimo para algum deles (com a
consequente perda no outro). (...)
Assim sendo, proibido fica o legislador de adentrar na
esfera patrimonial do contribuinte, salvo no que se refere ao
acréscimo patrimonial acumulado dentro de um determinado
lapso temporal, sob pena de violar o princípio de proibição ao
confisco, posto que o patrimônio particular é inviolável nos
termos da Carta Magna.
Vencidos os aspectos gerais acerca da conceituação de
“renda e proventos de qualquer natureza”, de suma importância
se faz adentrarmos na análise aprofundada da materialidade do
fato gerador, ou seja, a “aquisição da disponibilidade econômica
ou jurídica” de que trata o artigo 43 do Código Tributário
Nacional.
O referido dispositivo legal, ao determinar o fato gerador
do imposto de renda, nos traz uma problemática de distinguir o
que seria disponibilidade jurídica e o que seria disponibilidade
36
DERZI, Misabel de Abreu Machado. Os conceitos de renda e de
patrimonio: efeitos da correçao monetaria insuficiente no imposto
de renda. Belo Horizonte: Del Rey, 1992, p. 19.
A inconstitucionalidade da incidência...
185
econômica. Nesta seara, Eduardo Sabbag 37 faz uma análise
acerca destes institutos:
Passemos agora à análise dos conceitos de disponibilidade
econômica e disponibilidade jurídica:
a) Disponibilidade econômica: é a obtenção da faculdade de
usar, gerar e dispor de dinheiro ou de coisas conversíveis. É
ter o fato concretamente. A disponibilidade “financeira” não é
sinônimo de disponibilidade econômica. Esta última é somente
aquela que representa incorporação ao patrimônio. Nada
impede, no entanto, que a lei ordinária agregue o “elemento
financeiro” ao fato gerador, desde que tenha havido prévia
disponibilidade econômica ou jurídica.
b) Disponibilidade jurídica: é a obtenção de direitos de créditos
não sujeitos à condição suspensiva, representados por títulos
ou documentos de liquidez e certeza. Representa o “ter o
direito, abstratamente”. O IR só pode incidir quando há
acréscimo patrimonial, salientando-se que não há necessidade
de o rendimento ser efetivamente recebido pelo sujeito
passivo, sendo suficiente que este tenha adquirido o direito de
crédito sobre ele, ou seja, a disponibilidade jurídica. Portanto,
se um comerciante vende um produto no último dia do ano,
porém só recebe o pagamento no 1° dia do ano subsecutivo,
considera-se para fins de tributação, a data da venda, e não a
do “recebimento”, pois com a venda o contribuinte adquire a
disponibilidade jurídica sobre o rendimento tributável.
No mesmo sentido, Hugo de Brito Machado 38, ensina
que disponibilidade econômica advém do recebimento efetivo do
valor que caracteriza um acréscimo patrimonial. E a
disponibilidade jurídica se caracteriza pela simples obtenção do
crédito deste valor, ainda que não esteja efetivamente em poder
do contribuinte, conforme esclarece o mesmo autor na
sequência:
Para uma adequada compreensão do sentido da expressão
“disponibilidade jurídica”, todavia, deve ser esclarecido que o
crédito capaz de configurar essa disponibilidade é somente
aquele que esteja efetivamente à disposição do contribuinte,
37
SABBAG, Eduardo de Moraes. Manual de direito tributário. 4. ed.
São Paulo: Saraiva, 2012, p. 1.135.
38 MACHADO ,Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 35. ed. São
Paulo: Saraiva, 2014, p. 322.
186
Temas jurídicos atuais: Volume VI
vale dizer, o crédito do qual este possa lançar mão sem
qualquer obstáculo, de fato ou de direito. Para que se
considere consumado o fato gerador do imposto de renda é
necessário que exista a efetiva disponibilidade da renda ou dos
proventos.
Em suma, a disponibilidade econômica se daria em
relação ao valor proveniente de acréscimo patrimonial já
realizado e em efetivo poder do contribuinte, ao passo que a
disponibilidade jurídica existiria em relação à simples obtenção
do direito (crédito) ao valor decorrente de acréscimo patrimonial.
Ocorre que, na lição de Luciano Amaro39, tal
diferenciação se mostra errônea, uma vez que o dispositivo legal
normatiza o fato econômico de se ter disponibilidade, quer seja
econômica ou jurídica, sobre valor proveniente de acréscimo
patrimonial realizado, percebido ou não, dentro de um lapso
temporal.
Desta forma, pouco importa se o contribuinte percebeu
efetivamente o acréscimo patrimonial ou se apenas ocorreu a
realização deste, constituída na forma de um crédito. Importando
para a lei somente se este se encontra disponível para
tributação, dentro dos limites estabelecidos pelo conceito de
“renda e proveitos de qualquer natureza”.
Neste diapasão, assevera Luciano Amaro40:
A ideia geralmente condensada é a de que, em princípio, tanto
é tributável a renda percebida quanto a renda ganha (embora
ainda não recebida). A discussão, portanto, é, antes de tudo,
terminológica. Em suma, o CTN acolheu as expressões (que
nos parecem impróprias) “disponibilidade econômica” e
“disponibilidade jurídica” para explicitar a referida ideia de que
a renda pode ser tributada desde o momento em que, tendo
sido produzida, se incorpora ao patrimônio do titular (quer essa
agregação se dê em dinheiro, quer se dê em bens ou em
créditos).
39
AMARO, Luciano da Silva. Imposto de Renda: Regime Jurídico. In:
MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.); NASCIMENTO, Carlos
Valder do (Coord.); MARTINS, Rogério Gandra da Silva (Coord.).
Tratado de direito tributário: volume 1. São Paulo: Saraiva, 2011, p.
390.
40 Ibid., p. 391.
A inconstitucionalidade da incidência...
187
Assim sendo, tratar-se-iam as expressões “econômica”
e “jurídica” de determinar o modo de utilização da renda, e não
a forma como ela é adquirida, pouco importando, assim, para se
determinar sua disponibilidade para fins de tributação.
Desta forma, poderíamos chegar a conclusão de que o
fato gerador do imposto de renda se materializa com a aquisição
da renda ou proventos, desde que disponíveis, caracterizados
pelo acréscimo patrimonial, apurado em seu valor líquido dentro
de um determinado período de tempo.
6.5 NATUREZA JURÍDICA DOS JUROS MORATÓRIOS
Adentrando na análise específica sobre a incidência do
imposto de renda sobre juros moratórios, de suma importância
se faz definirmos a natureza jurídica destes, posto que, uma vez
aclarada esta natureza, simples será a conclusão de que a
hipótese de incidência do tributo em estudo é inconstitucional.
Para tanto destrincharemos o conceito de juros
moratórios, analisando o que é juros e o que é mora, para, então,
definirmos a natureza jurídica deste instituto jurídico que advém
da teoria das obrigações do direito civil.
Começamos esta análise definindo o que são os juros,
para tanto, invocamos os ensinamentos de Maria Helena Diniz41,
que dispõe:
Os juros são o rendimento do capital, os frutos civis produzidos
pelo dinheiro, sendo, portanto, considerados como bem
acessório (CC, art. 92), visto que constituem o preço do uso do
capital alheio, em razão da privação deste pelo dono,
voluntária ou involuntariamente. Os juros remuneram o credor
por ficar privado de seu capital, pagando-lhe o risco em que
incorre de não mais o receber de volta.
Assim, os juros, como bem acessório, integrará o
principal toda vez em que, como forma de remuneração, for feito
o uso do bem de certa pessoa, ficando esta privada de sua
utilização, mesmo que involuntariamente, ou quando, como
forma de indenização, vem para ressarcir à privação indevida do
bem ao credor.
41
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria geral
das obrigações - volume 2. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 430.
188
Temas jurídicos atuais: Volume VI
Destarte, a doutrina classifica os juros em dois grandes
grupos: os juros remuneratórios e os juros moratórios ou devidos
como consectário, conforme doutrina de Fábio Ulhoa Coelho42
que assim ensina:
Devem-se distinguir os juros remuneratórios dos devidos a
título de consectário. Remuneratórios são os juros contratuais
que o mutuário ou o devedor de valor parcelado devem pagar
ao mutuante ou credor. Representam parte da obrigação
principal do objeto de contrato. Já os juros devidos a título de
consectário são os que o inadimplente deve à parte inocente
da relação obrigacional como um dos desdobramentos da
indenização.
Desta forma, os juros moratórios, objeto de nosso
estudo, se mostra como um dos efeitos da mora, caracterizado
pela sua natureza indenizatória. Para melhor entendermos esta
natureza, imperioso se faz a análise da mora e suas
consequências.
Para tanto, indispensável se faz a leitura do artigo 394
do Código Civil que dispõe que “Considera‐se em mora o
devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser
recebê‐lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção
estabelecer”.
Neste sentido, ensina Sílvio de Salvo Venosa 43:
A mora constitui o retardamento ou mal cumprimento culposo
no cumprimento da obrigação, quando se trata de mora do
devedor. Na mora solvendi, a culpa é essencial. A mora do
credor, accipiendi, é simples fato ou ato e independe de culpa.
Corroborando com este entendimento, Fábio Ulhoa
Coelho44 dispõe que a mora se caracteriza pelo atraso no
cumprimento de uma obrigação do devedor que não realiza a
contraprestação na data aprazada ou do credor que se recusa a
aceitá-la.
42
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil: volume 2. 2. ed. rev.
São Paulo: Saraiva, 2005, p. 183.
43 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações
e teoria geral dos contratos. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 316.
44 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil: volume 2. 2. ed. rev.
São Paulo: Saraiva, 2005, p. 171.
A inconstitucionalidade da incidência...
189
Assim sendo, transparente fica a natureza indenizatória
da restituição advinda da mora de uma das partes da relação
obrigacional, posto que, o descumprimento ou mal cumprimento
desta resulta em um dano ao patrimônio da pessoa prejudicada,
que contava com o adimplemento da obrigação na data
aprazada.
Percebemos isso na análise que Silvio de Salvo
Venosa45 elabora acerca dos efeitos da mora, senão vejamos:
O devedor moroso responde pelos prejuízos que a mora der
causa. Ele paga, portanto, uma indenização. A indenização
não substitui o correto cumprimento da obrigação. Toda
indenização serve para minorar os entraves criados ao credor
pelos descumprimentos; no caso, cumprimento defeituoso da
obrigação. Se houve tão só mora e não inadimplemento
absoluto, as perdas e danos indenizáveis devem levar em
conta o fato. No pagamento de dívida em dinheiro, por
exemplo, os juros e a correção monetária reequilibram o
patrimônio do credor. (...)
Desta análise chegamos a melhor conceituação acerca
dos juros moratórios, em nossa opinião, apresentada por Maria
Helena Diniz46 que transcreve que “Os juros moratórios
consistem na indenização pelo retardamento da execução do
débito”.
Por oportuno, ainda, se faz citar que os juros moratórios
são classificados em dois grupos: os juros moratórios
convencionais e os juros moratórios legais. Os primeiros,
também chamados de contratuais, são aqueles advindo do
acordo de vontade entre as partes, não podendo exceder ao
montante de 12% anuais. Já os segundos, são os devidos
mesmo na omissão de acordo entre as partes, e se regularam
pela mesmas taxas da mora relativa ao pagamento de tributos
federais, tudo conforme ensina Fábio Ulhoa Coelho 47.
45
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações
e teoria geral dos contratos. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 319.
46 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria geral
das obrigações - volume 2. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 433.
47 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil: volume 2. 2. ed. rev.
São Paulo: Saraiva, 2005, p. 183.
190
Temas jurídicos atuais: Volume VI
Por fim, transparente fica que a natureza jurídica dos
juros moratórios é indenizatória, decorrente dos prejuízos
decorrentes do descumprimento da relação obrigacional, razão
pela qual se mostra inconstitucional a incidência do imposto de
renda sobre estes, como passamos a explanar a partir de agora.
6.6 INCONSTITUCIONALIDADE DA INCIDÊNCIA DO
IMPOSTO DE RENDA SOBRE OS JUROS MORATÓRIOS
O debate acerca da inconstitucionalidade da incidência
do imposto de renda sobre juros moratórias, gravita em torno do
requisito do acréscimo patrimonial, pois tudo aquilo que assim
não se caracterizar, não configurará renda ou proventos, não
podendo, desta maneira, serem alcançados pela incidência do
Imposto de Renda do artigo 153, III, da Constituição Federal e
ratificada e complementada pelo art. 43 do Código Tributário
Nacional.
É o que ocorre com as indenizações, conforme ensina
Roque Antonio Carrazza 48:
Tal se dá com as indenizações, que não tipificam rendas
tributáveis por meio de IR, já que nelas se mostra todo ausente
este sentido de acréscimo patrimonial. Melhor esclarecendo,
nas indenizações transparece a vocação meramente
compensatória ou reparatória por perdas sofridas por uma
pessoa em decorrência do fato de outra haver se comportado
de modo contrário ao devido.
De fato, a indenização se presta para reestabelecer o
equilíbrio patrimonial que tenha sido atingido por um dano
causado por outra pessoa, ficando esta obrigada a reparar o
prejuízo causado. Desta maneira, não há como se considerar a
indenização como um acréscimo patrimonial, posto que esta tem
a função de reparar danos causados ao patrimônio 49, ou seja,
reagregar aquilo que foi perdido por conduta danosa de outrem.
48
CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre
Constitucional e Temas Específicos). 3. ed. São
2009, p. 191.
49 CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre
Constitucional e Temas Específicos). 3. ed. São
2009, p. 191.
a Renda (Perfil
Paulo: Malheiros,
a Renda (Perfil
Paulo: Malheiros,
A inconstitucionalidade da incidência...
191
Em suma, é transparente que a indenização, de
qualquer modalidade, não figura como um acréscimo
patrimonial, mas sim como um ressarcimento aos danos
causados ao patrimônio do contribuinte, não revelando, desta
forma, sua capacidade contributiva.
Neste diapasão, a capacidade contributiva se mede pela
disponibilidade de riqueza nova auferida em determinado
período de tempo, levando-se em conta o mínimo existencial do
contribuinte para que não se exceda os fins da tributação. Assim,
sabendo-se da natureza das indenizações, claro fica que esta
não caracteriza capacidade contributiva 50.
Além do princípio constitucional da capacidade
contributiva, uma eventual tributação de quantia advinda de
verba indenizatória pelo Imposto de Renda, também
caracterizaria expressa violação ao princípio da vedação ao
confisco, também, preceito constitucional que restringe a
atuação do legislador.
Ora, autorizar que o legislador infraconstitucional
decrete a incidência do Imposto de Renda sob verbas
indenizatórias, seria o mesmo que permitir que este, ao seu
arbítrio, adentrasse na esfera patrimonial do contribuinte,
passando assim a constituir um confisco por parte do Estado 51,
o que é vedado pela atual Constituição.
Então, é transparente que qualquer dispositivo
infraconstitucional que determinasse a tributação dos valores
advindos de verbas indenizatórios caracterizaria séria violação
ao preceitos constitucionais que orientam e limitam a ação do
legislador na determinação das hipóteses de incidência do
Imposto de Renda.
Assim sendo, qualquer lei que, porventura, determine
esta tributação, deverá ser declarada inconstitucional, é o que
nos esclarece Misabel de Abreu Machado Derzi52:
Será inconstitucional, então, a lei federal que tribute a receita
representativa de mera reposição de bens patrimoniais
(por terem sido objeto de aplicação de capital da pessoa),
50
Ibid., p. 195.
Ibid., p. 196.
52 DERZI, Misabel de Abreu Machado. Os conceitos de renda e de
patrimonio: efeitos da correçao monetaria insuficiente no imposto
de renda. Belo Horizonte: Del Rey, 1992, p. 20.
51
192
Temas jurídicos atuais: Volume VI
como pagamento de capital ou reembolso das despesas feitas
para a produção da receita. (...)
Como exaustivamente trabalhado no capítulo anterior,
os juros moratórios em sua essência possuem natureza
indenizatória, posto que se prestam a ressarcir os danos
causados pela demora do adimplemento, ou pelo mal
cumprimento, de obrigação quer pelo devedor, quer pelo credor.
Desta forma, como acabamos de aclarar, sendo
inconstitucional a hipótese de incidência do Imposto de Renda
sobre valores que advenham de verbas indenizatórios, por
consequente, inconstitucional será, também, a incidência do
imposto de renda sobre juros moratórios.
6.7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A guisa de uma conclusão, o imposto de renda tem sua
materialidade definida pelos aspectos constitucionais, e, como
pressuposto o incremento patrimonial, assim, guardando relação
direta com a capacidade econômica do sujeito passivo.
Ao que se observa, o exercício da competência da União
para instituir o imposto de renda e proventos de qualquer
natureza, não se justifica fora do eixo, o qual se denomina
acréscimo patrimonial.
Assim, a incidência do imposto de renda deve ser aferida
mediante a identificação da natureza dos vários elementos que
compõe valores recebidos pela totalidade, ou seja, na
composição do montante recebido pelo contribuinte, deve-se
identificar claramente a natureza de cada encargo financeiro, de
sorte que os juros moratórios, por sua natureza, guardam um
elemento de reparação do patrimônio do contribuinte do imposto
de renda, na medida em que, o importe pago a título de juros de
mora representa, sobretudo paga pelo atraso no pagamento,
evidenciando, assim, sua natureza reparatória, e, portanto, não
agregando valor ao patrimônio do contribuinte, não se
justificando, assim, a incidência do imposto de renda.
A inconstitucionalidade da incidência...
193
6.8 REFERÊNCIAS
CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a Renda (Perfil
Constitucional e Temas Específicos). 3. ed. São Paulo:
Malheiros, 2009.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 21.
ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
ICHIHARA, Yoshiaki. Direito Tributário: atualizado até EC
67/10 e LC 138/10. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2011.
MACHADO ,Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 35. ed.
São Paulo: Saraiva, 2014.
SABBAG, Eduardo de Moraes. Manual de direito tributário. 4.
ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
AMARO, Luciano da Silva. Direito tributário brasileiro. 20. ed.
São Paulo: Saraiva, 2014.
______. Imposto de Renda: Regime Jurídico. In: MARTINS,
Ives Gandra da Silva (Coord.); NASCIMENTO, Carlos
Valder do (Coord.); MARTINS, Rogério Gandra da Silva
(Coord.). Tratado de direito tributário: volume 1. São
Paulo: Saraiva, 2011.
COSTA, Regina Helena. Principio da capacidade
contributiva. São Paulo: Malheiros, 2003.
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito
tributário. 3. ed. São Paulo: Lejus, 2002.
BALEEIRO, Aliomar de Andrade. Direito tributário
brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
ÁVILA, Humberto. Conceito de Renda e Compensação de
Prejuízos Fiscais. São Paulo: Malheiros, 2011.
DERZI, Misabel de Abreu Machado. Os conceitos de renda e
de patrimonio: efeitos da correçao monetaria
insuficiente no imposto de renda. Belo Horizonte: Del
Rey, 1992.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria
geral das obrigações - volume 2. 29. ed. São Paulo:
Saraiva, 2014.
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil: volume 2. 2.
ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2005.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das
obrigações e teoria geral dos contratos. 11. ed. São
Paulo: Atlas, 2011.
= VII =
A CRISE NA DEMOCRACIA NO ESTADO MODERNO
BRASILEIRO
Diogo Valério Félix*
Simone Caroline Mauad**
7.1 NTRODUÇÃO
No âmbito familiar, social, midiático e até mesmo
acadêmico, emprega-se a palavra democracia como algo
corriqueiro, compreendido e significado por todos, sem a
indagação de sua real definição nos dias atuais e sua
constituição significativa ao longo da história da humanidade.
A democracia percorreu um longo caminho desde a sua
emergência na Grécia Antiga encontrando-se hoje numa
encruzilhada frente ao aumento da exclusão social, fragilidade
da representação política, insuficiência do funcionamento das
instituições jurídicas e ausência de espaços públicos de debate.
Frente ao entendimento que a democracia não consiste
em mero instrumento de escolha de governantes, nem com ele
se confunde, ao passo que o exercício da soberania popular não
se esgota no momento do voto, a presente investigação se
direcionará, primeiramente, a uma breve explanação dos
*
Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário de Maringá
(2008). Mestrado em Direito pelo Centro Universitário de Maringá
(2012), tendo como linha de pesquisa os direitos da personalidade e
seu alcance na contemporaneidade. Defendeu a dissertação Crítica a
Teoria Clássica dos Direitos da Personalidade. Atualmente é professor
da UNICESUMAR - Centro Universitário de Maringá e da Faculdade
Cidade Verde – FCV. Coordenador do Curso de Pós Graduação em
Planejamentos e Projetos Ambientais da Faculdade Cidade Verde FCV. Integrante da Rede Internacional de Estudos Schmittianos (RIES),
composta por especialistas de diversos países. Tem experiência na
área de Teoria Geral do Direito e Filosofia do Direito.
** Graduada em Direito pela UniCesumar – Centro Universitáro de
Maringá – PR. Endereço eletrônico: [email protected]
A crise da democracia...
195
diversos entendimentos de democracia, para posteriormente
tratar dos modelos representativos de democracia frente à
soberania popular no decorrer da historicidade humana.
A hipótese que orienta o presente trabalho é
substancialmente a crise da democracia brasileira, reduzida a
mera normalização das instituições políticas, por intermédio da
crise das instituições jurídicas, bem como do espaço público,
enquanto arena de debate, onde os argumentos serão lançados
à apreciação política.
7.2 DEMOCRACIA NA FORMAÇÃO DO ESTADO MODERNO
A palavra democracia tem origem grega, sendo formada
pela união do termo demos que significava povo e kratia (de
kratos) que significava poder, ou seja, o poder nas mãos do
povo, o direito popular de participar (via debate e decisão) da
política de uma comunidade1. Dessa forma, tomando a etiologia
da palavra, a democracia vinculava-se originalmente ao poder
de decisão, soberania popular e distribuição equitativa de
poderes de decisão e de execução. Todavia, esse conceito
apresentou diferentes representações ao longo do contexto
histórico humano, sofrendo mudanças no decorrer da
Antiguidade Clássica, na Idade Moderna e no período
contemporâneo.
Bobbio2 explica que, desde a Idade Clássica o termo
democracia foi empregado para designar uma das formas de
governo, ou melhor, um dos diversos modos com que pode ser
exercido o poder político, especificando na atualidade uma
forma de governo na qual o poder político é exercido pelo povo.
De acordo com a Teoria Clássica, a democracia é a forma de
governo pela qual o poder é exercido por todos os cidadãos
juridicamente assim considerados, contrapondo a monarquia e
a aristocracia, regimes nos quais o governo incumbe,
respectivamente, a um só e a poucos. A Teoria Medieval, de
origem romana, acrescenta o elemento soberania ao poder do
1
CABRAL NETO, Antônio. Democracia: velhas e novas controvérsias.
Estudos de Psicologia. v.2, n.2, p.287-312, 1997.
2 BOBBIO, Noberto. Democracia. In Dicionário de Política. BOBBIO,
Noberto; MATTEUCI, Nicola; e PASQUINO, Gianfranco. São Paulo.
Editora Unb. 5. ed., 2004. p. 319-329.
196
Temas jurídicos atuais: Volume VI
povo, que se torna representativo ou é derivado do poder do
príncipe. Por fim, a Teoria Moderna, ou Teoria de Maquiavel,
distingue as formas básicas de governo: a monarquia e a
república, equiparando essa última à democracia3.
As democracias gregas, que correspondiam a uma
aristocracia, eram classificadas como democracias diretas, visto
que os cidadãos reuniam-se em assembleias para resolver
assuntos do governo da cidade. Em Atenas, berço da
democracia direta, o povo reunia-se no Ágora (praça pública
central) para o exercício direto e imediato do poder político (o
Ágora pode ser comparado ao que se compreende nos tempos
modernos como parlamento). Todavia, o comparecimento à
assembleia era permitido apenas aos indivíduos do sexo
masculino, com mais de dezoito anos, filhos de pai e mãe
atenienses.
A democracia ateniense foi, dessa forma, marcada por fortes
elementos de exclusão, na medida em que não se estendia a
toda população. Dela foram excluídos os metecos –
estrangeiros domiciliados em Atenas, na sua grande maioria
gregos de outras regiões - que, mesmo estando obrigados a
pagar impostos e a prestar o serviço militar, tinham vedada a
participação em cargos públicos por não pertencerem à
demos. Foram igualmente excluídos os escravos, que
constituíam a grande parte da população, as mulheres e os
jovens com idade inferior a dezoito anos [...] Os estudos que
tratam dessa problemática destacam a existência de indícios
os quais sugerem que apenas um número reduzido de
cidadãos exerciam o direito de falar na Assembléia. Era
depositada em alguns líderes uma certa credibilidade no
sentido de formular as linhas da conduta política a ser seguida.
Entretanto, a decisão sobre a adoção ou não dessa política
cabia sempre à assembléia popular e não ao líder4.
Dessa forma, a democracia ateniense formalmente
assegurava a igualdade política a todos os cidadãos, mas, no
plano real também acabava expressando o caráter limitativo da
participação política.
3
4
Idem.
CABRAL, p.289.
A crise da democracia...
197
Após o esvaecimento da experiência democrática dos
gregos antigos (guerra ocorrida entre os anos 431 e 404 a.C.),
os ideais democráticos praticamente desapareceram do cenário
político, instaurando-se, por toda a Idade Média o absolutismo
(sustentáculo a governos despóticos) 5. Dessa forma, a
democracia ressurge no panorama político, somente dois mil
anos depois, com o constitucionalismo moderno, por meio da
democracia representativa, no qual o povo passou a não
participar diretamente da tomada de decisão sobre os temas de
seu interesse, mas a escolher representantes que deveriam
representá-los e tomar tais decisões.
Nesse contexto, como forma de o povo ser soberano,
decidir e ter poder, mesmo sendo numeroso e espalhado em
grande território, passa a instaurar-se o regime representativo de
democracia, no qual a vontade do povo passa a ser expressa
em órgãos competentes e representantes, fundados e
legitimados no consentimento da maioria dos cidadãos. Assim,
na democracia indireta ou representativa mantém-se a
soberania popular, via vontade geral, o sufrágio universal, com
pluralidade partidária e de candidatos, separação dos poderes,
regime presidencialista, limitação das prerrogativas do Estado e
a igualdade de todos perante as leis 6.
Já a democracia semidireta trata-se de uma modalidade
em que se alternam as formas clássicas da democracia
representativa, aproximando-a para da democracia direta
idealizada e praticada pelos gregos. Configuram-se como
institutos representativos da democracia semidireta o
referendum, o plebiscito, a iniciativa, o voto popular e o recall,
direcionados a garantir a intervenção e poder de decisão
popular7.
Visto que a essência da democracia funda-se na ideia
de que a decisão deve abranger a escolha da maioria (de
maneira a cumprir a função de ser modelo de governo eficiente
para o povo), que cabe ao povo tomar as decisões políticas de
interesse relevante (de forma direta ou indireta, por meio de
representantes eleitos) e que a democracia depende
5
CABRAL, p.289.
6 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. O princípio democrático no ordenamento jurídico brasileiro.
Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 43, 1 jul. 2000.
7 Idem.
198
Temas jurídicos atuais: Volume VI
diretamente do contexto político, histórico, cultural, econômico e
ideológico de cada país, buscou-se demonstrar nesse trabalho,
como o conceito de democracia sofreu transformações no
decorrer da história da humanidade e se faz presente na
representação política brasileira.
7.2.1 O contrato social como instrumento de instituição
do Estado Liberal
Avaliar o processo histórico que refletiu na formação do
atual Estado Democrático de Direito, consiste em analisar a
forma do sistema governamental despótico, regime comum na
maioria dos Estados antes do processo de democratização no
final do século XVIII, além de compreender sob a ótica dos
filósofos racionalistas da época, a transformação do homem
natural para o homem civil, na busca por direitos sociais negados
por um Estado totalitário.
Os sinais iniciais ocorreram com a Revolução Francesa
no final do século XVIII, conhecido como o “século das luzes”,
pois segundo Florenzano foi o marco da queda do Regime
Absolutista, da separação do Estado da Igreja, bem como o
desenvolvimento do pensamento filosófico e científico baseado
no racionalismo, individualismo e liberdade absoluta do homem 8.
Contudo, com a dissolução da monarquia, houve a
implantação do sistema capitalista, como resultado da grande
expansão do mercado de capitais, desse modo, a liberdade
positiva que o homem ansiava fervorosamente iria deixar de ser
absoluta, sendo assim em conformidade com Hobbes no dizer
que é da natureza do homem ser guiado por um líder, com o
intuito de colocar limites aos instintos naturais que pertence a ele
desde o nascimento, pois da mesma forma que o rebanho de
ovelhas precisa de um pastor para guiá-las, o homem precisa de
um soberano9.
Nesse sentido, segundo Rousseau, o homem ao sair de
seu estado de natureza, ao qual lhe é movido pelo instinto de
justiça, encontra-se a necessidade de controlar suas ações por
8
FLORENZANO, Modesto. As Revoluções Burguesas. São Paulo: Ed.
Brasiliense, 1981, p.24.
9 HOBBES, Thomas. Leviatã, ou matéria, formas e poder de um estado
eclesiástico e civil. tradução Rosina D’Angina; consultor jurídico Thélio
de Magalhães. São Paulo: Martim Claret, 2009,
A crise da democracia...
199
meio da moralidade, razão pela qual outorga o direito ilimitado
ao qual gozava anteriormente, para obedecer às leis impostas
por um soberano10.
A esse respeito para Rousseau, as leis são as formas de
liberdade que o homem delegou a si, mas, diferentemente da
Idade Média, onde a liberdade é faculdade de querer e não
querer, independentemente da razão, fato que, na modernidade
a liberdade se traduz no sentido negativo11.
Corroborando esta ideia, Locke afirma que, o homem é
um ser livre para adquirir e administrar os bens de acordo com
os próprios interesses, mas que esta faculdade não é absoluta,
pois não lhe é permitido atentar contra a vida de outrem,
segundo seus instintos naturais para defender a propriedade 12.
Há que se observar que na concepção do mundo,
segundo o pensamento cristão, o próprio Deus outorgou leis
para limitar as ações humanas, ora, os direitos naturais são à
base fundamental da elaboração dos direitos civis, que nada
mais é do que a vontade geral para a formação do contrato
social.
Assim, continua o pensamento de Locke13:
O estado de natureza tem para governá-lo uma lei da natureza,
que a todos obriga; e a razão, em que essa lei consiste, ensina
a todos aqueles que a consultem que, sendo todos iguais e
independentes, ninguém deveria prejudicar a outrem em sua
vida, saúde, liberdade ou posses. Pois sendo todos os homens
artefato de um mesmo Criador onipotente e infinitamente
sábio, todos eles servidores de um Senhor soberano e único,
enviados ao mundo por Sua ordem e para cumprir Seus
10
ROUSSEAU, Jean Jacques. O Contrato Social: princípios do direito
político. Tradução de Edson Bini. Obra de 1985. Bauru: EDIPRO, 2. Ed,
2015, p.24.
11 ZENNI, Alessandro Severino Vallér. A Crise do Direito liberal na PósModernidade. Porto Alegre: Antonio Sérgio Fabris Editor, 2006, p. 30
apud VALLERZENNI, Alessandro Severino; FÉLIX, Diogo Valério
Crítica à teoria clássica dos direitos da Personalidade. apresentação,
Prof. Dr. Elimar Szaniawskii. 2. Ed. Maringá, PR: HumanitasVivens,
2015, p.29.
12 LOCKE, John. Dois Tratados sobre o governo. Tradução Julio
Fischer. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. – (Clássicos), p. 384385.
13 Idem.
200
Temas jurídicos atuais: Volume VI
desígnios, são propriedade de Seu artífice, feitos para durar
enquanto a ele aprouver, e não a outrem.
Para Hobbes, viver em sociedade é estar em guerra, e
somente o Estado, a geração do grande Leviatã, - o soberano
absoluto e ser mortal na terra -, ou somente Deus – ser único e
imortal - são capazes de assegurar a paz e a defesa dos povos 14.
Na concepção de Hobbes15, temos como exemplo as
formas de se exercer o poder:
Uma pela força natural, como quando um homem obriga seus
filhos a se submeterem e a submeterem seus próprios filhos a
sua autoridade, sendo capaz de destruí-los em caso de recusa;
ou ainda, como quando um homem poupa, durante a guerra, a
vida de seus inimigos, desde que se sujeitem a sua vontade.
A outra forma é quando os homens concordam entre si em se
submeterem voluntariamente a um homem, ou a uma
assembléia de homens, esperando serem protegidos contra
todos os outros (...).
Essa situação reflete na forma como o homem abdica
parte da própria liberdade colocando-a nas mãos do Estado, na
busca de obter proteção e o estabelecimento da ordem no meio
social vivido, por esta razão originou-se o contrato social.
Desse modo, o Estado civil deve agir com fulcro na
legalidade dos atos, isso quer dizer que “a lei é direto para o
dominante e dever para o dominado (...)”.16
Em virtude dos pactos, Rousseau17, assevera:
Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de
toda a força comum à pessoa e os bens de cada associado e
pela qual cada um se unindo a todos obedeça, todavia, apenas
a si mesmo e permaneça tão livre como antes. Eis o problema
fundamental para qual o contrato social oferece a solução. As
cláusulas desse contrato são de tal forma determinadas pela
natureza do ato que a menor modificação as tornaria vãs e de
nenhum efeito, de sorte que, mesmo sendo enunciadas de
maneira formal, são em todas as partes as mesmas, em todas
14
HOBBES, p.126.
Ibidem, p.127.
16 CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. 2.ed. São Paulo: Brasiliense,
2008, p.87.
17 ROUSSEAU, p.20.
15
A crise da democracia...
201
as partes tacitamente admitidas e reconhecidas, de modo que
sendo o pacto social violado, cada um retornaria aos seus
primeiros direitos e retomaria sua liberdade natural, perdendo
a liberdade convencional pela qual renunciara a favor daquela.
Saliente-se que, ao homem a decisão de alienar sua
liberdade natural, para viver uma liberdade negativa não poderia
fazer de qualquer maneira, isto é, deveria haver uma garantia do
pactuante o cumprimento do acordo, pois a qualquer deslize o
homem poderá entrar em guerra como dispõe Locke18, já que
seus instintos naturais falarão mais alto, paralelamente segundo
Hobbes, “se não for instituído um poder considerável para
garantir a sua segurança, o homem, para protege-se dos outros,
confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria
força e capacidade”19 logo não aceitará tão sutilmente o
rompimento daquele (Estado) ao qual outorgou o poder, gerando
um conflito entre a vontade geral e os interesses do líder.
Quanto a Maquiavel20, o contrato social na visão do
Príncipe, poderá ser obtido o poder de dominação por duas
matrizes de combate: uma, por meio das leis, outra pelo uso da
força. A primeira é própria dos homens; a segunda, dos animais.
Assim, para o filósofo, o príncipe tem que saber dominar as duas
naturezas, para então atingir o objetivo final, o controle da nação,
mesmo que para isso tenha que muitas vezes se utilizar da força
e da astúcia contra a plebe.
Observe-se que, por este viés o contrato social para
Maquiavel, era uma forma política de dominação, acreditava-se
que a essência da natureza humana estava na maldade e que
os súditos somente obedecem ao seu soberano quando
forçados, por isso, a importância do contrato social.
Portanto, com a queda do absolutismo, e início da era
moderna formaram-se às instituições, assim o homem deixou
seu “estado natural” para se tornar um ser político-social,
utilizando dos mecanismos do contrato social ao qual lhe
18
LOCKE, p. 395.
HOBBES, p.123.
20 MAQUIAVEL, Nicolau.O príncipe; tradução de Maurício Santana
Dias; prefácio de Fernando Henrique Cardoso. São Paulo:
PenguinClassics Companhia de Letras, 2010, p.105.
19
202
Temas jurídicos atuais: Volume VI
conferiu a possibilidade de discutir a proteção da propriedade
privada e dos demais conflitos21.
Enfim, diante dessa mudança será possível analisar o
desenvolvimento do homem e do Estado, quais os interesses
serão colocados em jogo quando a discussão se direciona para
a convivência do homem em uma sociedade quando se verifica
a substituição do modelo de produção, possibilitado e fomentado
pelo próprio direito como consequência do contrato social, cujo
aspecto fundamental está no interesse de obter e defender a
propriedade privada como fonte de riqueza, e no bem estar
social.
7.2.2 Revolução industrial: do estado liberal ao estado do
bem-estar-social
O final do século XVIII trouxe uma mudança geral no
cenário geopolítico, pois com a forte ascensão do capitalismo
impulsionado pela Revolução Industrial, os regimes até então
monárquicos não conseguiram se adaptar ao novo sistema
liberal político e mercantil, assim a queda dos Reis foi inevitável,
razão pela qual no novo sistema econômico não era mais
necessário o trabalho manual, uma vez que as máquinas vieram
pra substituir e garantir uma mão de obra mais barata e
vantajosa para a nova classe de comerciantes e consumidores22.
Com a substituição do modelo de produção os Estados
saíram de uma Monarquia (Estado Absolutista) no qual o poder
se concentra nas mãos de um só governante perante o povo de
acordo com leis fixas e estabelecidas 23, para se tornar um
Estado liberal, com funções e poderes limitados as classes
possuidoras24. Esse período foi fortemente influenciado pelo
individualismo filosófico e político vivido à época (Revolução
21
HOBBES, op. cit., p.124.
BRAVO, Maria Inês Souza. In: PEREIRA, Potyara A. P. (Orgs).
Política social e democracia. 2.ed. São Paulo: Cortez; Rio de Janeiro:
UERJ, 2002. 254p.
23 MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat. Do espírito das leis:
introdução e notas de GonzagueTruc; tradução de Fernando Henrique
Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. 2ª. Ed. São Paulo: Abril Cultural,
1979, p.31.
24 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. Tradução Marco
Aurélio Nogueira. São Paulo: Brasiliense, 2000, p.07.
22
A crise da democracia...
203
Americana de 1776 e Francesa de 1789) e pelo liberalismo
econômico, no qual firmava-se a livre concorrência, a não
intervenção estatal e clerical e a institucionalização do direito de
liberdade, igualdade e fraternidade25. Dessa forma,
O grande desenvolvimento do pensamento democrático se
processou, no entanto, no seio das revoluções burguesas que
eclodiram nos séculos XVII e XVIII na Europa. Essas
revoluções engendraram e, ao mesmo tempo, se
fundamentaram no ideário liberal que, ao lado da democracia
moderna, se constitui em produto do capitalismo26.
Conforme Giddens27 “o iluminismo chamou a si a tarefa
de destruir a autoridade da tradição”, pois para os racionalistas
a tradição nada mais é que uma criação dos soberanos para se
legitimarem no poder28.
Nesse contexto histórico e ideológico, o pensamento
democrático liberal trouxe o alvedrio almejado, abrigado no
ideário da liberdade de expressão, religião, política, locomoção,
crença e liberdade de decidir quem serão os governantes da
nação29. Todavia, o aparecimento dos grandes aglomerados
urbanos, também representou mudanças nas relações sociais,
passando a ser exigido do Estado, maior número de atribuições
e intervenções na estrutura política, econômica e social, de
modo a compor os conflitos e satisfazer as necessidades de
interesses de grupos e de indivíduos 30. Nesse contexto, a
conformação da ordem social, política e econômica pelo Estado
enseja o surgimento do Estado de Direito do Bem Estar Social,
que longe da função passiva e não intervencionista,
fundamenta-se no prestacional e efetivador das necessidades
coletivas essenciais tais como a saúde, educação, trabalho,
assistência social, transportes, entre outros.
25
CABRAL, p.289.
CABRAL, p. 291
27 GIDDENS, Anthony. O mundo na era da globalização. Lisboa: Ed.
Presença, 2000, p.49.
28 Idem.
29 DONALD, Stewart Júnior. O que é liberalismo. 4ª ed. Rio de Janeiro:
Instituto Liberal, 1990, p.73-74.
30 CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de Direito Constitucional. 3. ed.
Salvador: Juspodivm, 2009.
26
204
Temas jurídicos atuais: Volume VI
Nessa conjuntura, o Estado Liberal acabou de
configurando como contemporâneo ao Estado de Direito,
surgindo da passagem do Estado Absolutista para as idéias
liberais de defesa da liberdade, quer no plano político quer no
econômico, social, cultural, filosófico, entre outros 31.
O Estado liberal, segundo Bobbio32 “é justificado como o
resultado de um acordo entre indivíduos inicialmente livres que
convencionam estabelecer os vínculos estritamente necessários
a uma convivência pacífica e duradoura.” Isso significa, que o
liberalismo relacionava-se com o bem estar físico e metafísico
do ser humano, na melhoria da condição de vida, sem a figura
do Estado como agente intervencionista nas relações sociais.
Nas palavras de Cabral Neto33:
O grande mérito histórico do liberalismo é, no entanto, o
reconhecimento da igualdade individual, ainda que essa
igualdade seja a igualdade formal. O fato do ideário liberal
reconhecer formalmente que todos os homens são iguais
perante a lei, representou um significativo avanço para a
história da humanidade. Porém, não significou que, na prática,
esse direito fosse viabilizado.
Assim, no ideário da igualdade nas relações sociais,
base do pensamento liberal, encontrava-se o desejo pela
igualdade de oportunidade e eliminação de privilégios
hereditários. Ou seja, por meio da representação política,
atender aos interesses da nação e não aos interesses
particulares dos representados. Nesse ensejo, acontecimentos
históricos, políticos, econômicos e sociais acabaram
influenciando as ideias liberais, de modo que muitos autores
passaram a questionar seus princípios, possibilitando o
surgimento da divisão entre o liberalismo clássico e liberalismo
moderno:
Enquanto os primeiros liberais queriam que o governo
interferisse o mínimo possível na vida dos cidadãos, o
liberalismo moderno passou a acreditar que o governo deveria
ser responsável por proporcionar serviços de bem-estar social,
31
Idem.
BOBBIO, p.15.
33 CABRAL, p.289 - 294.
32
A crise da democracia...
205
como saúde, habitação, aposentadoria e educação, além de
gerir a economia ou ao menos regulá-la34.
Dessa forma, se inicialmente os liberais deram ênfase à
liberdade individual, social e fraterno, posteriormente passaram
a defender o princípio na esfera econômica, criando a ideia de
uma economia de mercado “livre” da influência do governo.
Contudo, visto que o sistema capitalista tem como fulcro
a produção de riquezas e, neste viés, somente uma parte dos
indivíduos (os empresários) tende a se beneficiar com os lucros,
ficando os operários com o papel de realizar a mão de obra.
Observa-se, assim, que o sistema liberal passa a ditar os
caminhos políticos e econômicos do Estado, embora muitas
vezes seja necessário se sobrepor as leis.
Desse modo, um Estado que não cumpre com as leis
estará rompendo o compromisso assumido com o povo, pois
estará governando contra o texto constitucional e está ação se
compara aos governos tiranos, onde a lei é a vontade do ditador.
Por esta razão, afirma Locke que “onde não há lei, não há
liberdade”35. Sendo assim, a classe menos favorecida será
obrigada a cumprir ordens que vão contra suas vontades, pois
nesta condição se retira definitivamente a liberdade facultada
pelo contrato social.
Para Locke36
sendo todo homem, tal como foi demonstrado, naturalmente
livre, sem que nada possa colocá-lo em sujeição a qualquer
poder terreno a não ser o seu próprio consentimento, deve-se
considerar agora o que entenderemos por uma declaração
suficiente do consentimento de um homem, para sujeita-lo às
leis de qualquer governo. [...] até que ponto alguém deve ser
considerado como tendo consentido, e com isso tendo-se
submetido a algum governo, nos casos em que não o tenha
expressado de modo algum. [...]
Rousseau, considerado um dos pais da democracia
moderna, em sua obra O Contrato Social, direciona-se a
34
HEYWOOD, Andrew. Ideologias Políticas: do liberalismo ao
fascismo. São Paulo: Ática, 2010, p.39.
35 LOCKE, p. 433.
36 LOCKE, p. 491.
206
Temas jurídicos atuais: Volume VI
formular as primeiras críticas à democracia representativa,
sustentando que:
É nula toda lei que o povo diretamente não ratificar; em
absoluto, não é lei. O povo inglês pensa ser livre e muito se
engana, pois só o é durante a eleição dos membros do
parlamento; uma vez estes eleitos, ele é escravo, não é nada.
Durante os breves momentos de sua liberdade o uso, que dela
faz, mostra que merece perdê-la37.
Para Rousseau o simples ato de votar em eleições não
traduz a expressão da vontade popular. Assim, ao apontar os
limites da democracia representativa, o autor acaba propondo a
participação popular como eixo das exigências democráticas
contemporâneas38.
Locke expõe na obra “Segundo Tratado Sobre o
Governo Civil”, que os homens vivem, antes do pacto social, em
um estado de natureza no qual todos são livres e iguais, portanto
detentores do direito natural à liberdade, à autopreservação e à
propriedade (fundada na apropriação da natureza através do
trabalho)39. Nesse estado o autor defende que todos os homens
têm direito a julgarem aqueles que infringirem os direitos
naturais, ou seja, a igualdade natural entre os homens,
compreendendo que cada um deve julgar os meios necessários
à sua conservação, pois a utilidade dos “meios necessários” é
relativa ao indivíduo que julga40, com isso cria-se uma situação
conflituosa, onde a forma de garantir tais direitos acaba
mesclando-se ao dever de promover um contrato civil em favor
do poder político do governo civil, responsável pela manutenção
da ordem política41.
O governo civil seria o agente público responsável pela
manutenção da soberania do povo (oriunda da vontade dos
homens), devendo julgar por meio das leis, consentimento e
imparcialidade, os conflitos estabelecidos entre os indivíduos e
37
ROUSSEAU, p.108.
Idem.
39LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo - ensaio relativo à
verdadeira origem, extensão e objetivo do governo civil. Trad. de E.
Jacy Monteiro. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 35-39.
40 Ibidem, p. 40.
41 Ibidem, p. 64.
38
A crise da democracia...
207
sociedades, justamente de modo à evitar os julgamentos
individuais do estado de natureza, que tantos conflitos
causavam (sendo os magistrados escolhidos pelo parlamento,
na Inglaterra desse período).
A partir de tais condições estão articuladas as bases
teóricas do Estado Moderno, a partir da centralização política do
poder de estabelecer o direito, e a delimitação da esfera estatal
com a filosofia política do Liberalismo, que deu origem ao
Constitucionalismo moderno42. Opera-se, assim, uma mudança
no perfil de atuação do Estado, na medida em que deixa de atuar
somente nas atividades clássicas, limitadas pelos direitos
individuais de liberdade e propriedade e passa a desempenhar
um papel de indutor do desenvolvimento econômico por via
direta e articulados de políticas públicas com o objetivo de
atender demandas sociais (educação, saúde, previdência,
seguro-desemprego). Ou seja, a noção moderna de que a
democracia seria o governo por representantes escolhidos pelo
povo, com a definição da tripartição do poder e a sua
separação43.
Neste contexto surgem as Constituições (que acaba por
assumir o status de marco jurídico), a normatização e a
positivação dos direitos individuais.
O Estado Liberal nasce sob o signo de liberdade do cidadão.
Limitando o poder absoluto do Estado, afirma os direitos
individuais e políticos. A ordem econômica se fundamenta no
princípio da liberdade de iniciativa e de comércio, assegurando
o florescimento da burguesia e a disseminação do regime
capitalista. A ação do Estado visa a facilitar e garantir o livre
jogo dos negócios, tendo como base jurídica a autonomia da
vontade, em que se apóia a liberdade de contrato e de
associação44.
Na síntese do Estado Liberal os indivíduos possuem
autonomia para a tomada de decisão sobre o aspecto
42
CAPELLARI, Eduardo. A crise do poder judiciário no contexto da
modernidade - a necessidade de uma definição conceitual. Revista
Seqüência, n.39, Curso de Pós Graduação em Direito, UFSC, dez/99,
p. 09-31.
43 Idem.
44 TÁCITO, Caio. Do Estado Liberal ao Estado do Bem-estar Social, in Temas de Direito Público. V. 1 Rio
de Janeiro: Renovar, 1997, p. 377.
208
Temas jurídicos atuais: Volume VI
econômico de suas relações, aprimorando sua experiência
social como indivíduo livre que este modelo promove.
Segundo as perspectivas do Estado Liberal, cabe ao
ente estatal a garantia dos direitos fundamentais, sobre a letra
da segurança da garantia de propriedade, a liberdade contratual
e a livre iniciativa. Vale lembrar que, neste modelo de Estado, o
poder de decisão de agentes privados não descaracteriza a
possibilidade de atuação da autoridade para limitar direitos e,
eventualmente conceder benefícios.
A lei, como atuação do Estado, deve garantir a liberdade da
pessoa humana e deve limitar a atuação do próprio Estado, de
tal sorte a garantir o desenvolvimento natural do homem em
todas as suas atividades. donde os três grandes princípios da
liberdade, o princípio da legalidade e o princípio da
igualdade45.
A principal característica do Estado Social, com relação
ao trato dos sujeitos, é sua marcante propensão ao
planejamento de políticas compensatórias que visem amenizar
as exclusões sociais que foram firmadas pela distinção das
classes sociais e pelo favorecimento de condutas individualistas
(pensamento individual) potencializadas pelo liberalismo
econômico.
Enquanto no Estado de Direito Liberal os direitos de
liberdade eram exercidos e oponíveis contra o Estado, no Estado
de Direito do Bem Estar Social os direitos de liberdade e
igualdade materiais passam a ser usufruídos perante e por meio
do Estado, por conta da assunção, por aquele, do dever de
satisfação das necessidades sociais.
7.3 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: SOBERANIA
POPULAR E REPRESENTATIVIDADE AO EXERCÍCIO DO
PODER
No estado democrático de direito, o sufrágio é o voto,
empregado para eleger quem deverá decidir pelo povo. Assim,
a democracia vincula-se a um método político que se
caracteriza, fundamentalmente, pela competição pelos votos do
povo nas eleições periódicas de escolha daqueles que tomam
45 FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito Econômico. Rio de Janeiro: Forense, 1995
A crise da democracia...
209
as decisões46. Na configuração da representação política
entrelaça-se o legislativo como lócus da representação, as
eleições, eleitores, políticos eleitos e partidos políticos e a
relação entre representantes e representados. Assim, a
expressão representatividade significa genericamente que as
deliberações coletivas, isto é, as deliberações que dizem
respeito à coletividade inteira, devem ser tomadas não
diretamente por aqueles que dela fazem parte, mas por pessoas
eleitas para esta finalidade47.
Morais48 enfatiza que o Estado para ser Democrático de
Direito deve atender os princípios da constitucionalidade,
democracia, sistema de direitos fundamentais, justiça social,
igualdade, divisão de poderes, legalidade, segurança e certeza
jurídica.
Locke em sua obra Segundo Tratado sobre o Governo
Civil, escrita em 1689, defende que a formação do Estado não
assinala a transferência dos direitos de todos os súditos a ele,
mas somente os direitos de criar leis (poder legislativo) e impôlas (poder executivo). Para esse autor, o poder soberano deve
permanecer nas mãos dos cidadãos competindo ao Estado,
garantir o máximo de liberdade possível a cada cidadão 49.
Montesquieu em O Espírito das Leis, datado de 1748, defende o
governo constitucional como o melhor mecanismo para garantia
dos direitos dos cidadãos. Para esse autor, a divisão dos três
poderes: executivo, legislativo e judiciário no governo
representativo, deve estar atrelado à soberania popular por meio
da participação eleitoral dos cidadãos, ou seja, processo de
autorização política50.
46
LAISNER, Regina 1A participação em questão: ponto ou contraponto
da representação na teoria democrática? Estudos de Sociologia,
Araraquara, v.14, n.26, 2009, p.17-35.
47 BOBBIO, Norberto. O futuro da Democracia.Trad. Marco Aurélio
Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
48 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 2 ed., São
Paulo: Atlas, 1998.
49 LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. Tradução:
Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. São Paulo: Editora Vozes, 2002.
50 MONTESQUIEU, Charles Louis de. O Espírito Das Leis. In Coleção
Os Pensadores - Montesquieu. São Paulo, Abril Cultural, 1973.
210
Temas jurídicos atuais: Volume VI
O conceito de soberania popular deve-se à apropriação
republicana e à revalorização da noção de soberania surgida
no início da Era Moderna e inicialmente associada aos
déspotas que governavam de modo absolutista. O Estado, que
monopoliza os meios da aplicação legítima da força, é
concebido como um concentrado de poder, capaz de
prevalecer sobre todos os demais poderes do mundo51
Nesse contexto, o Estado Democrático de Direito não
representaria apenas o somatório dos direitos individualista,
apregoados no Estado Liberal, e dos direitos sociais, do Estado
de Bem-Estar Social. Habermas explica o Estado Democrático
de Direito visa buscar uma nova forma de legitimação:
É que o Direito não somente exige aceitação; não apenas
solicita dos seus endereçados reconhecimento de fato, mas
também pleiteia merecer reconhecimento. Para a legitimação
de um ordenamento estatal, constituído na forma da lei,
requerem-se, por isso, todas as fundamentações e
construções públicas que resgatarão esse pleito como digno
de ser reconhecido52.
Para Habermas o direito moderno fornece igual
tratamento aos cidadãos, quando essa igualdade é firmada em
leis gerais e abstratas.
Frente ao aumento contingencial da população,
diversidade e pluralismo de assuntos a serem discutidos e
inviabilidade de organizar milhões de cidadãos em um mesmo
local para deliberações, a democracia exercida de maneira
direta tornou-se inviável para os dias atuais. Nesse contexto, a
democracia representativa surgiu e instaurou-se como
alternativa à democracia direta. Assim, por meio da delegação
de representantes (vereadores, prefeitos, deputados e
senadores), por tempo determinado, o povo soberano deve ter
sua vontade respeitada por meio de representantes eleitos.
Neste modelo democrático, cabe ao Estado “[...] representar a
51
HABERMAS, Jurgen. A Inclusão do Outro. Estudos de Teoria Política.
São Paulo: Loy, 2004, p. 282.
52 HABERMAS, Jurgen. Mudança estrutural da esfera pública:
investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. 2. ed.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003c.
A crise da democracia...
211
vontade do povo, ou melhor, a vontade da maioria que o
elegeu.”53
Tem-se defendido que o Brasil enfrenta uma crise de
legitimidade do Poder Legislativo, causada pelo distanciamento
entre representantes e representados e pela incompatibilidade
entre a vontade popular e a vontade expressada pela maioria
parlamentar54
A Constituição Federal de 1988 prescreve, dentre seus
princípios e diretrizes, “a participação da população mediante
organizações representativas, na formulação das políticas e no
controle das ações em todos os níveis” 55 instituindo a
participação social enquanto princípio constitucional por meio da
democracia direta e representativa, por meio da opinião e
fiscalização. O que implicitamente exige-se que a população
tenha direito à informação, com possibilidade de ingeri-la:
O direito às informações de que o Estado dispõe fundamentase no princípio da publicidade dos atos administrativos e na
eliminação dos segredos públicos. Neste sentido, o direito à
informação constitui um indicador significativo dos avanços em
direção a uma democracia participativa: oponível ao Estado,
comprova a adoção do princípio da publicidade dos atos
administrativos; sob o ponto de vista do cidadão, é instrumento
de controle social do poder e pressuposto da participação
popular, na medida em que o habita para interferir
efetivamente nas decisões governamentais e se analisado em
conjunto com a liberdade de imprensa e banimento da
censura, também funciona como instrumento de controle
social e poder56.
53
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 4.ed. São Paulo: Martins
fontes, 2000, p. 33.
54BITTENCOURT, Caroline Müller; DORNELLES, Tiago. A Insuficiência
do modelo representativo: a necessária construção de uma democracia
efetiva à luz de “novas formas” de participação popular. In:
GORCZEVSKI, Clovis. Direitos Humanos e Participação Política. Porto
Alegre: Imprensa Livre, 2013. v. IV.
55 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa
do Brasil. Organização de Alexandre de Moraes. 16.ed. São Paulo:
Atlas, 2000, art. 204.
56 GRAF, Ana Cláudia Bento. O direito à informação ambiental.
Curutuba: Jyruá, 1998, p.91
212
Temas jurídicos atuais: Volume VI
O processo de democratização ocorrido no contexto
político brasileiro, na década de 1990, favoreceu a
institucionalização de movimentos sociais, principalmente no
âmbito dos conselhos do poder público municipal (Estatuto da
Cidade, Plano Diretor, Orçamento Participativo e Conselhos
Municipais de Saúde, Educação, Assistência Social, etc.)
Nesse contexto o controle social na sociedade brasileira
contemporânea pode ser compreendido sob duas perspectivas:
relacionada ao controle do Estado sobre os cidadãos, e o
controle dos cidadãos sobre o Estado. Na perspectiva que situa
o Estado como instrumento de controle sobre a sociedade, onde
o Estado constitui-se em um agente que garante que os homens
não se autodestruam, visto que a natureza humana, segundo
Thomas Hobbes57 é potencialmente competitiva, desconfiada e
egoísta.
Nessa direção, Bobbio58 salienta duas formas de
controle social, sendo a primeira relacionada ao controle
externo, relativo aos mecanismos de repressão utilizados para a
manutenção da ordem, tais como legislações, tribunais,
políticas, etc. Já no segundo, relativo a um controle interno que
utiliza os valores e crenças a favor de uma “socialização que
naturaliza as desigualdades sociais e individuais, que justifica
privilégios e que consente discriminações” 59
A outra tendência concebe o controle social como um
controle exercido pela sociedade civil sobre o Estado, pode ser
exercido na dimensão da natureza técnica que fortalece as
estruturas estatais, visto que, acentua a fiscalização
administrativa na aplicação de recursos, e outras de natureza
sócio-política que pressupõe o envolvimento da sociedade civil
nos assuntos públicos, aliado a um ideal radicalmente
democrático, com ênfase no cotidiano.
57
HOBBES, p.123.
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: Ed.
Universidade de Brasília, 1997.
59 CAMPOS, Edval. Assistência Social: do descontrole ao controle
social. Revista Serviço Social e Sociedade. n°88, ano XXVI, nov. 2006,
p. 101-121
58
A crise da democracia...
213
7.4 DEMOCRACIA NO ESTADO BRASILEIRO: CRISE
DEMOCRÁTICA E A PARTICIPAÇÃO POPULAR
A primeira forma de governo adotada pelo Brasil foi a
monarquia, visto que em 1822, com a vinda da família real
portuguesa para o Brasil, foi assinado na cidade do Rio de
Janeiro, a Ata de Aclamação de D. Pedro como Imperador
Constitucional, adotando-se no país, a monarquia hereditária.
Assim, em 1891 foi promulgada a primeira Constituição
Republicana dos Estados Unidos do Brasil, na qual estabeleceuse como forma de governo a República Federativa, constituída
pela união perpétua e indissolúvel dos seus Estados via regime
representativo60.
Todavia, com a Revolução de 1930 e instauração do
Governo Provisório, Constituição de 1891 foi substituída pelo
Decreto n.º 19.398 e, posteriormente, pela Constituição
Provisória de 1934. Com a decretação do Estado Novo e a
permanência de Getúlio Vargas no poder, foi revogada a
Constituição de 1934 e "promulgada" a Constituição de 1937
que, frente ao Golpe Militar de 1964, foi substituída pela
Constituição de 1967. Assim, como a constituição de 1937, a de
1967, tenteou ao autoritarismo apesar de afirmar a existência
dos três poderes. Em 1985, iniciou um período de transição
denominado "A Nova República", sendo eleita a Assembleia
Nacional Constituinte, livre e soberana, que em 1988 promulga
a Constituição democrática e social.
Essa constituição passa a estabelecer em seu primeiro
artigo que a República Federativa do Brasil caracteriza-se como
Estado Democrático de Direito, baseada na participação livre e
igualitária dos cidadãos no processo de tomada de decisões
políticas. Desse modo, prevaleceu no texto constitucional
brasileiro a chamada legitimação substancial dos objetivos
fundamentais (artigos. 1° e 3°), na fixação das regras que
controlam as formas de acesso e exercício do poder (artigos. 14
a 17, que versam sobre os direitos e os partidos políticos) e no
estabelecimento do controle de constitucionalidade (artigos. 52,
X; 97; 102, I, a, III, a, b, c; 125, § 2°).
60
MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. O princípio democrático
no ordenamento jurídico brasileiro . Jus Navigandi, Teresina, a. 4, n. 43,
jul. 2000.
214
Temas jurídicos atuais: Volume VI
Todavia, apesar da promulgação dessas normativas, a
sociedade ainda convive nos dias atuais com as desigualdades
sociais,
econômicas
e
educacionais,
favorecendo,
principalmente entre os indivíduos das classes mais inferiores, o
sentimento de abandono e desilusão, pois o Estado não está
cumprindo com o dever de manter a ordem e o progresso ao
qual lhe foi delegado pelo sufrágio universal, ora, “aquele que
ordena e estabelece um regime, como primeiro fundador de um
Estado (seja ele uma monarquia, uma aristocracia ou uma
democracia), precisa ter poder soberano sobre o povo, durante
todo o tempo em que permanecer no cargo” 61, tendo em vista
que todo o poder do soberano foi dado pelo povo devendo ser
utilizado em benefício do povo a fim de atender os interesses
coletivos e não uma pequena classe abastada.
Essa crise cultural, educacional econômica e, mais
amplamente, social acaba por determinar rachaduras nas
paredes institucionais e rompimento no verniz das ideologias 62.
As formações ideológicas estariam, assim, relacionadas
com a divisão de classes, favorecendo uma (privilegiada) e se
impondo à outra (espoliada na própria base da sua existência
material). Tal dominação, evidentemente, não será eterna, pois
as contradições da estrutura acabam rompendo a pirâmide do
poder e, conscientizados, nisto, os que carregam o peso da
opressão, abre-se espaço à contestação da ideologia “oficial”.
A falsa consciência introduz-se nas análises da
ideologia, sobretudo a partir das contribuições marxistas. Não se
trata de má fé, assinalam Marx e Engels, de vez que a má fé
pressupõe uma distorção consciente e voluntária; a ideologia é
cegueira parcial da inteligência entorpecida pela propaganda
dos que a forjaram. O “discurso competente”, em que a ciência
se corrompe a fim de servir à dominação, mantém ligação
inextrincável com o discurso conveniente, mediante o qual as
classes privilegiadas substituem a realidade pela imagem que
lhes é mais favorável, e tratam de impô-la aos demais, com
todos os recursos de que dispõem (órgãos de comunicação de
massas, ensino, instrumentos especiais de controle social de
que participam e, é claro, com forma destacada, as próprias leis).
61
62
HOBBES, p. 325.
HOBBES, p.13.
A crise da democracia...
215
A ideologia, portanto, é uma crença falsa, uma “evidência” não
refletida que traduz uma deformação inconsciente da realidade.
Lyra Filho63 explica que
A identificação entre Direito e lei pertence, aliás, ao repertório
ideológico do Estado, pois na sua posição privilegiada ele
desejaria convencer-nos de que cessaram as contradições,
que o poder atende ao povo em geral e tudo o que vem dali é
imaculadamente jurídico, não havendo Direito a procurar além
ou acima das leis. Entretanto, a legislação deve ser examinada
criticamente, mesmo num país socialista, pois, como nota a
brilhante colega Marilena Chauí, seria utópico/ilusão) imaginar
que, socializada a propriedade, estivesse feita a transformação
social completa.
Assim, apesar da constituição dirigente encontrar-se
intencionalmente direcionada a garantir os direitos sociais à
efetiva educação, saúde, moradia, trabalho digno, lazer,
segurança e previdência social, as finalidades instituídas nos
programas não são atingidas, e em alguns casos, sequer
buscadas,
ocasionando,
no
Estado
Brasileiro,
um
distanciamento
entre
a
prática
estatal
e
as
promessas/aplicabilidade contratual.
Compreende-se então que, o desprezo aos direitos
sociais humanos, via implementação das políticas públicas leva
o Estado ao descrédito, bem como ao formalismo monopolista
tendencioso (projeção para satisfação de interesses de
determinados grupos sociais) contribui, direciona, favorece e
incentiva a inoperância, a ingerência e a insuficiência do Estado
na aplicabilidade dos fundamentos essenciais de sobrevivência
e dignidade.
7.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
No Brasil elegeu-se o regime democrático de direito,
mediante a democracia representativa, pela qual, deliberações
coletivas devem ser tomadas não de modo direto pelos
integrantes da sociedade, mas por meio de seus representantes,
eleitos por voto. Todavia, a Constituição Brasileira de 1988
63
LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. São Paulo: Brasiliense, 1982,
p. 03-04.
216
Temas jurídicos atuais: Volume VI
instituiu formas de Democracia Participativa, de modo a
possibilitar uma participação democrática mais descentralizada
e o controle social das políticas públicas.
Nesse contexto, o controle social acaba sendo
permeado pela dimensão ética mas, direcionado pela visão
ideológica da democracia participativa e possibilidade de
monitoramento, fiscalização e avaliação da efetividade.
Dessa forma, a crise da democracia brasileira vincula-se
a inoperância das instituições e ausência de garantias aos
direitos fundamentais do cidadão, evidenciando que o Estado
brasileiro foi construído para não funcionar. O Soberano não
quer que o povo se manifeste e participe ativamente das
decisões tomadas, pois se quer suprimir o debate, já que uma
discussão entre o ente público e o povo seria uma forma de
contrato, pois se estaria negociando o que é melhor para cada
lado, sem que ajam conflitos de interesse, mas sim concessão
entre ambos os lados, e não apenas o interesse do soberano se
sobressair.
Em outras palavras, o Brasil apresenta políticas públicas
de incentivo social dentre outros, todavia, não estão funcionando
corretamente
(inoperância
estrutural,
funcional
e
representacional) possibilitando corrupção e uma população
apática, sem interesse em questionar, participar dos atos do
governo e reivindicar por melhoras.
Como alternativas à superação desta crise, faz-se
necessário um resgate à cidadania política, à cultura cívica e
uma nova consciência a respeito do sufrágio, pois a democracia
representativa expressa um importante mecanismo de
efetivação dos direitos individuais e coletivos, não devendo ser
utilizada pelo soberano como instrumento de manutenção do
poder.
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