cefaléia em salvas.p65 - Sociedade Brasileira de Cefaleia

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cefaléia em salvas.p65 - Sociedade Brasileira de Cefaleia
ARTIGO DE REVISÃO
Cefaléia em Salvas. Quadro clínico e fisiopatologia uma breve revisão
Cluster headache – Clinical features and pathophysiology - a brief review
Roldão Faleiro de Almeida
Neurologista do Hospital Belo Horizonte - BH
Ambulatório Experimental de Cefaléias do
Hospital da Polícia Militar de Minas Gerais
Membro das Sociedades Mineira e Brasileira de Cefaléia.
RESUMO
Introdução: A cefaléia em salvas, a mais dolorosa dentre as
cefaléias primárias, é uma dor estritamente unilateral que
ocorre associada a manifestações disautonômicas e, na
maioria dos pacientes, tem uma notável periodicidade
circanual e circadiana. Sua fisiopatologia é nebulosa e
complexa e ainda não é possível uma explicação unificada.
Objetivos: Revisar e discutir os aspectos mais relevantes da
cefaléia em salvas. Métodos: Foi efetuada uma revisão da
literatura disponível, a qual foi analisada sendo seus
principais aspectos mencionados. Conclusões: Envolvendo
vias centrais e periféricas, as quais resultam em
características únicas de periodicidade e em manifestações
autonômicas associadas à dor, a cefaléia em salvas
permanece como uma das mais complexas, intrigantes e
fascinantes entidades clínicas.
The involvement of both central and peripheral pathways
results in the unique features of cluster headache
regarding its periodicity and associated autonomic
features, resulting in one of the most complex, intriguing
and fascinating conditions known by medicine.
KEY-WORDS
Cluster headache; Horton’s hedache; trigeminalautonomic headaches; SUNCT; paroxysmal hemicrania.
INTRODUÇÃO
ABSTRACT
A despeito de apresentar, de um modo geral, um quadro clínico bem típico e de ser considerada uma das dores
mais atrozes que o ser humano pode suportar (considerada pelas mulheres sálvicas pior que a dor do parto),1 a
cefaléia em salvas (CS) ainda permanece com sua fisiopatologia pouco elucidada e também continua sendo incorretamente diagnosticada.
Introduction: Cluster headache, the most painful of the
primary headaches, is a strictly unilateral headache that
occurs in association with cranial autonomic features and,
in most patients, has a striking circannual and circadian
periodicity. Its pathophysiology is cloudy and complex,
and a unifying explanation is not yet available. Objectives:
To review and to discuss the most relevant aspects of
cluster headache. Methods: The available literature was
reviewed and analyzed, and its aspects considered to be
relevant are discussed. Comments and Conclusions:
Sinonímia. Certamente não encontraremos nenhuma outra entidade clínica que tenha uma sinonímia tão rica
quanto a CS, pois várias denominações lhe são atribuídas
como: “cefaléia do relógio”, “cefaléia suicida”, “cefaléia
de Horton”, “cefaléia histamínica”, “cefaléia em cachos”,
“cefaléia em pencas”, “cefaléia agrupada”, ‘cefaléia acuminada, “cefalalgia paroxística noturna”, ”neuralgia
vidiana”, “neuralgia ciliar”, “neuralgia enxaquecosa”,
PALAVRAS-CHAVE
Cefaléia em salvas; cefaléia de Horton; cefaléias
trigêmino-autonômicas; SUNCT; hemicrânia paroxística.
Migrâneas cefaléias, v.7, n.4, p.133-139,out./nov./dez. 2004
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ROLDÃO FALEIRO DE ALMEIDA
“neuralgia esfenopalatina”, “neuralgia espasmódica, “eritromelalgia da cabeça”, eritroprosopalgia de bing”, “enxaqueca vermelha”...
Aspectos Históricos. Provavelmente a primeira descrição da CS coube ao médico e anatomista de Amsterdan
Nicolaas Tulp (seu sobrenome era Pieterszoon, Tulp era
devido às tulipas que ornamentavam a sua casa) que, em
1641, publicou uma série de casos clínicos, sendo que em
um desses casos ele relatava um paciente que apresentava
cefaléia intensa que ocorria em horários fixos e tinha duração inferior a duas horas. Porém, sua descrição não fazia
menção ao aspecto unilateral da dor, nem às manifestações
disautonômicas.2
Há uma descrição da Babilônia que, apesar se fazer
menção a uma crise migranosa, bem que nos parece mais
sugestiva de um ataque da CS: “A doença da cabeça afetava sua vítima como um raio, tornando o portador afogueado
como uma estrela no céu, sem lhe dar paz, fazendo-o vaguear pela noite, sem rumo”.3
Se levarmos em consideração que, até a classificação
de 1988, a CS pertencia ao Grupo I, considerada como
uma “variante da Enxaqueca”, a descrição da Babilônia poderia ser considerada a primeira descrição da CS (?).
Em 1939, Horton et al descreveram os aspectos da
CS e relataram suas experiências no tratamento da “nova
síndrome da cefaléia vascular”, com histamina.4 Em 1952,
a CS passou a ser conhecida como “cefaléia histamínica”
ou “cefaléia de Horton”. Não vamos confundir “cefaléia
de Horton” com “doença de Horton” (arterite de células
gigantes). Posteriormente, na mesma década, Kunkle criou
o termo “Cluster Headache”. Em 1962 (Comitê de
Bethesda), a CS foi colocada no Grupo I (“Vascular
Headache of Migraine-type”), classificada como I-C.
Em 1979, no Brasil, Raffelli Jr. conseguiu pôr um fim
naquela miscelânea de epônimos e denominações para a
CS, criando para o nosso idioma o termo “Cefaléia em
Salvas”, termo este aceito e recomendado pela então Sociedade Brasileira de Cefaléia e Enxaqueca”.
Em 1988, a CS é, racionalmente, desvinculada da
Migrânea, e passa a compor um grupo à parte (Grupo III)
juntamente com a Hemicrânia Paroxística. Finalmente, em
2003, com a nova classificação da IHS, ocorrem modificações nos critérios diagnósticos da CS e um novo integrante passa a fazer parte do Grupo III: a “SUNCT”.5
EPIDEMIOLOGIA
Prevalência
Rasmussen encontrou uma prevalência de 0,1 % na
população dinamarquesa; Kudrow, na população norte134
americana, encontrou prevalência de 0,08% nas mulheres
e de 0,4% nos homens; Karl Ekbom encontrou em 9.803
recrutas do exército sueco uma prevalência de 0,09%;
Roberto D’Alessandro, em 21.972 habitantes da República de San Marino, encontrou uma prevalência de 0,07%.
Incidência
Baseando-se em estudos retrospectivos de 6.400
prontuários médicos, a incidência da CS foi de 4/
100.000 pessoas por ano para o sexo feminino e de
15,6/100.000 pessoas por ano para o sexo masculino.6
Sexo
A CS apresenta um nítido predomínio no sexo masculino, mas os últimos estudos têm mostrado um aumento
da incidência no sexo feminino, talvez em decorrência das
mudanças nos hábitos de vida das mulheres.7 Horton
(1956), em 1.176 pacientes sálvicos, encontrou uma razão de 6,7:1,0; Kudrow (1980), em 425 pacientes, encontrou razão de 5,0:1,04; Manzoni (1997), em 482 pacientes,
encontrou uma razão de 3,5:1,0.
Idade
Rozen et al encontraram, em 101 pacientes estudados, uma média de idade para início das crises de: 29,4
anos para as mulheres e de 31,3 anos para os homens.8
Ekbom encontrou uma média de 25,6 anos e de 27,8 anos,
respectivamente para as mulheres e para os homens.
Manzoni também encontrou uma idade de início mais precoce nas mulheres (23,3 anos) em relação aos homens
(29,6 anos).
A CS pode também ocorrer em extremos de idade:
Farias da Silva descreveu-a aos 3 anos de idade e aos 72
anos de idade; Kudrow, em um paciente com 3 anos de
idade; Ekbom, aos 8 anos de idade, e Terzano, em um
recém-nascido.
CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS (IHS-2003)
A – Pelo menos cinco crises preenchendo critérios
de A a D;
B – Dor forte ou muito forte unilateral, orbitária, supra-orbitária e/ou temporal, durando de 15 a 180 minutos,
se não tratada;
C –A cefaléia é acompanhada de pelo menos um dos
seguintes itens:
1- hiperemia conjuntival e/ou lacrimejamento ipsilaterais;
2- congestão nasal e/ou rinorréia ipsilaterais;
3- edema palpebral ipsilateral;
4- sudorese frontal e facial ipsilateral;
5- miose e/ou semiptose palpebral;
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CEFALÉIAS EM SALVAS. QUADRO CLÍNICO E FISIOPATOLOGIA – UMA BREVE REVISÃO
6 – sensação de inquietude ou agitação.
D – As crises podem ocorrer na freqüência de uma
crise a cada dois dias a oito por dia;
E – Não atribuída a nenhum outro transtorno.
QUADRO CLÍNICO
Periodicidade
Geralmente, o quadro clínico da CS é muito típico,
sendo a periodicidade um elemento marcante e quem sabe
até exclusivo desta entidade clínica. A CS ocorre em períodos denominados salvas ou surtos que, em média, perduram por duas semanas (mini-bouts)7 a três meses, tendo como principal fator deflagrador o álcool (qualquer
tipo de bebida alcoólica) que parece não exercer influência fora do período susceptível; e é dentro do período da
salva que ocorrem as crises. Deve-se lembrar que existem outros deflagradores, como histamina, vasodilatadores, mudanças climáticas, alteração da pressão atmosférica e, para não deixar de ser, assim como na
migrânea e na cefaléia tensional, o estresse emocional.
A CS tipicamente apresenta períodos de dor intercalados por períodos livres de dor (fase de remissão), sendo
assim possível dividi-la em episódica, que é mais freqüente (em média 85% dos casos), na qual o paciente apresenta períodos de dor que variam de sete dias a um ano, com
período de remissão maior ou igual a trinta dias. Na forma
crônica, ocorrem períodos de dor superiores a um ano,
sendo a fase de remissão menor que trinta dias ou até mesmo ausente.
Os ataques (crises) apresentam início e fim abruptos
e podem ocorrer de um a cada dois dias até oito ataque
diários (em média três/dia) com uma duração de 15 a 180
minutos (45 minutos em média), sendo que os ataques
noturnos são mais freqüentes e ocorrem em torno de 90
minutos após o paciente adormecer, estando assim associados ao início do sono REM. Deste modo, de acordo com
Dodick (2000), o paciente sálvico tenta prolongar ao máximo seu tempo de vigília, ficando o maior tempo possível
acordado, pois a privação do sono encurta o tempo de
latência do sono REM e, quando o sono chega, o paciente
entra mais precocemente nesta fase do sono e, conseqüentemente, o ataque terá menor duração, redundando em
menor sofrimento. Por outro lado, a privação do sono pode
conduzir o paciente à depressão e à ideação suicida.
Passando a tempestuosa fase da salva, o paciente entra na fase de remissão (período livre de dor), que pode
ter, em média, na forma episódica, duração menor que dois
anos (Ekbom, 1970). Kudrow (1980) encontrou período
de remissão de sete a doze meses em 47,7% de seus 428
pacientes.3
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Características do paciente sálvico
Graham apresentou, durante o Simpósio Internacional de Cefaléia em Chicago (1969), os aspectos do paciente sálvico: alto, atlético, pele rosada, áspera, sulcos nasolabiais profundos, telangiectasias no nariz, queixo quadrado (queixo de pugilista), etilista e tabagista.4 Lembramos
que o tabagismo ocorre em até mais de 85% desses pacientes e o etilismo deflagra a crise em 71,13% dos casos
(Farias da Silva). Estas mesmas características podem
ocorrer nas mulheres.
Graham chegou a citar o traço da personalidade do
paciente sálvico: o indivíduo aparenta ser aquilo que na
verdade não é, através de sua aparência, que nos dá a impressão de força, decisão e segurança, porém, na verdade,
trata-se de uma pessoa frágil, indecisa e insegura.
Sintomatologia migranosa
Rozen et al chamaram atenção para a sintomatologia
migranosa associada à CS. Estudando 69 homens e 32
mulheres (total de 101 pacientes), estes autores encontraram náusea em 62,5% das mulheres e 43,5% dos homens;
vômito em 46,9% das mulheres e 17,4% dos homens;
fotofobia em 75% das mulheres e 81,2% dos homens e
fonofobia em 50% das mulheres e 47,8% dos homens,
lembrando que, apesar destes sintomas ocorrerem com
uma certa freqüência (em média 53%, 32%, 78% e 49%,
respectivamente), eles não fazem parte dos critérios diagnósticos.8
Aspectos da dor
Como nas demais cefaléias, a dor é o elemento capital
do quadro clínico, sendo que, na grande maioria das vezes, trata-se de uma dor atroz, insuportável, intolerável,
indescritível. É considerada uma dor excruciante (lancinante), Isto é, punitiva, aflitiva, atormentadora. Em torno
de 80% dos casos, a dor apresenta uma qualidade terebrante
(perfurante), como se uma verruma fosse usada de encontro ao olho; e em torno de 20% dos casos, o paciente
pode relatar uma dor de qualidade pulsátil.
Em relação à localização, quase sempre a dor é estritamente unilateral, periorbitária, retro-orbitária, podendo
iniciar-se também nas regiões temporal, maxilar, mandibular e occipital.
A dor também pode ocorrer sempre do mesmo lado
durante todo o tempo de existência da CS.4
Manifestações disautonômicas (Quadro 1)
As manifestações disautonômicas ocorrem de modo
associado e contemporaneamente ao quadro álgico, sendo
que as manifestações de disfunção simpática (Horner parcial: miose e semiptose palpebral) podem persistir além do
período da dor, especialmente após ataques freqüentes.1,4,7
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ROLDÃO FALEIRO DE ALMEIDA
Quadro 1
Percentuais de manifestações disautonômicas em
pacientes com cefaléia em salvas 8,9,10
Sintomas
autonômicos
Lacrimejamento
Hiperemia conjuntival
Congestão nasal
Rinorréia
Síndrome de Horner parcial
Rozen
et al*
73
66
42
22
50
Sanvito
%
82
71
60
39
28
Farias da
Silva
79
76
72
69
37
* baseados nos resultados de 12 grandes estudos
Aliás, temos um colega médico no Hospital Militar BH o qual, praticamente durante todo período de salva,
apresenta miose e semiptose palpebral, que permanecem
depois de cessada a crise (ataque).
Lembramos que uma ou mais das manifestações pode
faltar (todas podem faltar em torno de 3% dos casos)4 e
que edema palpebral, rubor e sudorese são de ocorrência
rara.
Rubor, apesar de não fazer parte dos critérios diagnósticos, é citado por Lance (1971) em 12 dos seus 60
pacientes, representando 20% de sua casuística.11 Por outro
lado, Kudrow e Ekbom citam que este achado é nada mais
que o resultado da mão comprimindo a área conflagrada.
Também podem ocorrer manifestações disautonômicas sistêmicas, como bradicardia, hipertensão arterial e
aumento da secreção gástrica.4
Comportamento do paciente durante uma crise
Podemos dizer que, durante uma crise, o paciente pode
apresentar um comportamento irracional. Ao contrário do
migranoso, que prefere permanecer quieto (apenas o fato
de abaixar a cabeça ou bater o pé no chão piora sua dor), o
sálvico fica agitado, inquieto, andando de um lado para o
outro com a mão colada contra a área dolorosa. Vale a
pena lembrar que, apesar de fazer parte dos critérios diagnósticos da atual classificação (2003), há vários anos que
Kudrow já considerava a impossibilidade do paciente permanecer quieto durante uma crise, patognomônica da CS.3
Alguns pacientes chegam a empurrar familiares, quebrar
objetos e até mesmo, em atitudes amedrontadoras, de forma enlouquecida, ficam dando murros na parede ou batendo violentamente a cabeça contra a mesma. Tomado
pelo desespero, o paciente pode chegar a fantasiar o autoextermínio (atendemos em junho do ano passado, no ambulatório no Hospital Militar – BH, um policial militar portador da forma crônica, proveniente do interior do estado,
que, totalmente sem esperanças e sem credibilidade, confidenciou-nos o desejo de pegar sua arma e “dar um tiro em
cima da dor”, apontando o local com o dedo indicador),
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ou então suplicar a um familiar que dê fim ao seu sofrimento.4 Graham chegou a comparar o paciente em crise
ao cão de caça. Dócil e obediente em relação ao seu dono,
o cão subitamente é surpreendido por uma carga de espinhos lançada em seu focinho pelo porco espinho. O animal
torna-se agitado, inquieto e agressivo, não mais obedecendo ao seu dono, correndo em círculos, salivando e lacrimejando, tentando assim desvencilhar-se desesperadamente
dos espinhos e, ao conseguir, entra finalmente num quadro de exaustão profunda.12
Nuances do quadro clínico
As nuances são raras, porém existem e devem ser
lembradas, pois, caso contrário, poderemos deixar de “fechar” um diagnóstico de CS.
Aura: até alguns anos atrás, a CS não era considerada
estar associada a aura (como podemos ver na migrânea),
mas Silberstein, em 2000, apresentou seis casos de aura
(cinco casos de aura visual) precedendo a crise.
Lateralidade da dor: em torno de 89,20% dos casos
(Farias da Silva, 2002), a dor ocorre sempre do mesmo
lado, porém pode haver alternância de lado de uma salva
para outra em 10% dos casos, de acordo com Sjaastad
(Farias da Silva encontrou 8,52%). Também a dor pode
mudar de lado na mesma salva em 5% dos casos e, até
mesmo, ocorrer simultaneamente nos dois lados em
2%-3% dos casos.
Manifestações disautonômicas: como nós sabemos,
estas manifestações ocorrem ipsilateralmente e contemporaneamente associadas à dor, porém Farias da Silva ,em
176 pacientes, encontrou distúrbio autonômico bilateral com
dor unilateral em dez pacientes, distúrbio autonômico
contralateral em um paciente; distúrbio autonômico unilateral com dor bilateral em um caso; distúrbio autonômico
sem dor em um caso; dor sem distúrbio autonômico em
três casos.
DIAGNÓSTICO
Exceto nuances do quadro clínico que são raras, o
diagnóstico da CS não é muito difícil de ser realizado; entretanto, por vezes, encontramos o paciente sálvico perambulando por consultórios, “desorientados”, tentando desesperadamente um alívio, uma explicação para tamanho
sofrimento. Portanto, é muito importante que tenhamos
sempre em mente os pilares que compõem o quadro clínico da CS:
• Periodicidade: aspecto circadiano das crises e o
aspecto circanual e sazonal das salvas;
• Lateralidade da dor: dor quase sempre estritamente unilateral, periorbitária ou retro-orbitária;
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CEFALÉIAS EM SALVAS. QUADRO CLÍNICO E FISIOPATOLOGIA – UMA BREVE REVISÃO
• Intensidade da dor: na grande maioria dos casos,
trata-se de uma dor atroz, insuportável, atormentadora e
terebrante;
• Manifestações disautonômicas: ocorrem ipsilateralmente e contemporaneamente à dor, sendo as mais freqüentes hiperemia conjuntival, lacrimejamento e congestão nasal.
DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Apesar da riqueza do quadro clínico da CS, às vezes
nos defrontamos com algumas formas de algias primárias,
e, até mesmo as secundárias, as quais podem nos trazer
algumas dificuldades diagnósticas. Mas, vale a pena lembrar do inestimável valor de uma boa anamnese e de um
detalhado exame clínico e neurológico. Contudo, às vezes
poderá ser difícil distinguirmos uma cefaléia secundária
que mimetiza a CS (Cluster Secundário), sendo necessária
neste caso a realização de exames complementares. Autores como Spierings apud Krymchantowski13 preconizam a
solicitação de exames de imagem para todos os pacientes
que estão começando a apresentar a CS pela primeira vez.
Por outro lado, outros autores como Farias da Silva não
compartilham esta conduta, uma vez que a ocorrência do
Cluster Secundário é muito rara. Dentre as cefaléias secundárias, podemos citar como exemplo: tumores cerebrais, aneurismas, malformações arteriovenosas, dissecção de vasos cervicais, glaucoma agudo e até mesmo
sinusopatias.
Em relação às cefaléias primárias, o diagnóstico diferencial deve ser feito com as demais cefaléias do grupo
III, lembrando que a Hemicrânia Paroxística Crônica (diagnóstico diferencial mais próximo da CS) é mais comum
no sexo feminino, e suas crises são de menor duração e
maior freqüência e são responsivas à indometacina. O
SUNCT, por sua vez, caracteriza-se por crises ainda mais
freqüentes e de menor duração que a Hemicrânia Paroxística
Crônica e não responde nem ao tratamento para a CS, nem
à indometacina.
A Cefaléia Hipnica pode também ser citada como diagnóstico diferencial, apesar de ser mais comum acima de
60 anos de idade, ocorrer exclusivamente à noite, ser uma
dor geralmente difusa, que melhora assim que o paciente
se levanta e, além do mais, não apresenta o efeito devastador da CS.
A Migrânea, a princípio parece ser um diagnóstico
diferencial fácil, contudo as coisas podem complicar, uma
vez que algumas formas de enxaqueca ocorrem de modo
agrupado, ou associadas a manifestações disautonômicas.
Por outro lado, a CS pode vir associada à sintomatologia
migranosa e até mesmo à aura.
Migrâneas cefaléias, v.7, n.4, p.133-139,out./nov./dez. 2004
A Neuralgia do Trigêmeo (NT) também deve ser lembrada como diagnóstico diferencial. A dor é tão intensa
quanto a CS, todavia, de duração mais curta e de ocorrência muito rara no território da primeira divisão do nervo
trigêmeo (menos de 5% dos casos). Às vezes o diagnóstico pode ser mais difícil quando a NT vem associada a
sinais disautonômicos (hiperemia conjuntival e lacrimejamento) os quais, por sua vez, ocorrem quando a crise é
mais intensa e prolongada, porém a resposta à carbamazepina é muito boa.
Finalmente temos ainda com diagnóstico diferencial a
Cluster-Tic syndrome (síndrome Sálvica-Trigeminal), que
implica crises do tipo trigeminalgia e do tipo cefaléia em
salvas, sendo os dois primeiros casos publicados no Brasil por Monzillo, Sanvito e Peres, em 1996.14 Posteriormente, Monzillo, Sanvito e Costa relataram mais cinco
casos.15
FISIOPATOLOGIA
Complexa e nebulosa, a fisiopatologia da CS ainda não
está totalmente elucidada. Assim sendo, nada poderemos
acrescentar, apenas tentaremos, de modo singelo e resumido, mesclar as hipóteses central e periférica.
Uma explicação unificada para a fisiopatologia da CS
ainda não é possível, pois qualquer hipótese a respeito do
assunto precisa justificar os três aspectos clássicos desta entidade clínica: 1) localização da dor; 2) presença de
manifestações disautonômicas; 3) aspecto circadiano das
crises e circanual das salvas.
Se considerarmos que substâncias vasodilatadoras
como o álcool (em especial), a histamina e a nitroglicerina
podem deflagrar uma crise no período susceptível, e que o
oxigênio e drogas vasoconstritoras como os derivados
ergotamínicos e os triptanos podem abortá-la; e se ainda
acrescentarmos que foi constatada uma acentuada dilatação da artéria oftálmica ipsilateral à dor durante ataque espontâneo de CS através de angiografia cerebral (Ekbom,
1970) e angiorressonância magnética (Ekbom,1993),16 não
poderemos negar que a participação vascular pudesse merecer um certo respaldo. Mas, se existe a possibilidade da
participação vascular, onde se encontraria o “teatro de operações” que pudesse justificar as tão complexas manifestações que compõem o quadro clínico da CS?! Onde se
encontraria o “sítio vascular?!” Bem, este “sítio vascular”
poderia ser o local para onde se convergem fibras simpáticas, fibras parassimpáticas, artéria carótida interna e a
primeira divisão trigeminal. Portanto, este local seria o seio
cavernoso. Se já elegemos um sítio vascular, que processo ocorreria? Haveria uma inflamação neurogênica mediada por peptídeos vasoativos. Goadsby e Edvinson17 en137
ROLDÃO FALEIRO DE ALMEIDA
contraram na veia jugular externa ipsilateral à dor em pacientes sálvicos durante a crise, um significativo aumento
do peptídeo intestinal vasoativo (VIP), que é um neurotransmissor encontrado nas fibras parassimpáticas. Este
aumento também pode ocorrer na hemicrânia paroxística
e até mesmo durante uma crise migranosa, desde que esta
venha associada a manifestações disautonômicas. Assim
sendo, um aumento do VIP poderia indicar um aumento da
atividade parassimpática. Também foi encontrado um importante aumento dos níveis do peptídeo relacionado ao
gene da calcitonina (CGRP) que, por sua vez, é um neurotransmissor encontrado nas fibras trigeminais. Um aumento
do CGRP indicaria uma ativação trigeminal. Goadsby e
Edvinson relatam não ter havido modificação nos níveis
sangüíneos do neuropeptídeo Y (NPY), nem nos níveis da
substância P (SP). Além do mais, os níveis do VIP e do
CGRP voltaram ao normal após uso de oxigênio e sumatriptano, enquanto os opiáceos não alteraram os níveis desses peptídeos.17 Dessa forma, tanto o CGRP, que marca o
sistema trigêmino-vascular quanto o VIP, que marca a atividade parassimpática, estão ambos elevados no sangue
venoso de pacientes durante uma crise de CS. Podemos
dizer que haveria uma inflamação neurogênica que levaria
a uma vasculite venosa, com uma conseqüente congestão
do seio cavernoso. Este quadro levaria não apenas à dor
(fibras trigeminais), mas ao envolvimento de fibras simpáticas que trafegam junto à artéria carótida interna, com
conseqüente disfunção simpática. Além do mais, esta
vasculite levaria hipoteticamente a uma isquemia hipotalâmica e hipofisária que duraria o tempo da inflamação,
causando assim uma disfunção temporária do hipotálamo
(aspecto cíclico da CS?). Em relação às manifestações de
hiperatividade parassimpática, Goadsby e Lipton (apud
Rozen8) têm sugerido que estas poderiam ser anatomicamente explicadas pela presença de uma via reflexa
autonômico-trigeminal, sendo a via aferente a primeira divisão trigeminal (responsável pelo estímulo nociceptivo) e
via eferente formada por fibras parassimpáticas (resposta
vasodilatadora e de hiperatividade parassimpática), sendo
assim a vasodilatação apenas um fenômeno posterior ao
aparecimento da dor.
Mas, talvez seja difícil explicar o aspecto cíclico da
CS, baseando-se apenas em mecanismos hemodinâmicos.4
Isto nos faz acreditar que a CS tenha origem em algum
mecanismo central, pois os surtos quase sempre ocorrem
nas mesmas épocas do ano e as crises ocorrem quase que
com hora marcada. Assim sendo, a periodicidade da CS
sugere o envolvimento de um relógio biológico ou de um
marca-passo, o qual, em humanos, encontra-se localizado
no hipotálamo. O hipotálamo, através do núcleo supraquiasmático, é considerado o principal marca-passo do ritmo
circadiano da produção de vários hormônios nos mamífe138
ros. Estudos têm mostrado alterações hormonais em pacientes sálvicos (níveis basais de cortisol elevados, diminuição da melatonina, diminuição de testosterona, dentre
outras), durante o período de surto. Kudrow (1975) mediu os níveis plasmáticos de testosterona em 19 pacientes
sálvicos (nove pacientes encontravam-se no período de
surto e dez pacientes na fase de remissão) que foram comparados com um grupo controle. Os pacientes na fase de
remissão apresentavam níveis mais baixos que o grupo controle, enquanto os demais pacientes (fase de dor) apresentavam níveis mais baixos ainda. Kudrow cita que sintomas
similares ao do climatério masculino (dificuldade de concentração, fadiga, depressão e choro) podem ocorrer no
paciente durante o período de salvas.18 A melatonina é uma
indolamina derivada da serotonina, produzida pelos pinealóticos (células estruturalmente análogas aos cones da retina), apresentando níveis normalmente baixos durante o dia
e elevados durante o período noturno.19 Em pacientes sálvicos
ocorre diminuição da produção deste hormônio, durante a
fase de surtos. Baixos níveis de melatonina podem decorrer
da diminuição da disponibilidade da serotonina, a qual é necessária para a sua síntese. A diminuição da função serotoninérgica pode ocorrer na CS que, segundo D’Andrea
(apud Nobre, 2001), caracteriza-se por um aumento dos
metabólitos da serotonina plasmática que poderia refletir um
envolvimento do sistema serotoninérgico central na patogênese desta entidade clínica.20
O hipotálamo também é considerado o principal núcleo regulador das funções do sistema nervoso autônomo.
A estimulação nas regiões ântero-laterais e póstero-laterais
hipotalâmicas produz, respectivamente, resposta parassimpática e simpática.
A via simpática descendente do hipotálamo (via hipotalâmica-espinal descendente) ao que parece quase não
apresenta (ou não apresenta) decussação. Exames de PetScan têm demonstrado ativação hipotalâmica ipsilateral à
dor, alteração esta que parece ocorrer apenas na CS e nas
outras cefaléias do Grupo III. A via parassimpática descendente não é bem conhecida. Esta via contém fibras que
emergem do mesencéfalo (núcleo de Edinger Westphal com
nervo óculo-motor) e da ponte (núcleo supraquiasmático
com o nervo facial). As fibras que emergem da ponte junto
ao nervo facial, terminam por inervar as glândulas da
mucosa nasal e glândulas lacrimais (fibras eferentes secreto-motoras), determinando assim a base anatômica dos
sintomas cranianos de hiperatividade parassimpática da CS.
Assim sendo, ocorreria uma disfunção hipotalâmica
que, por sua vez, acarretaria uma disfunção do núcleo
supraquiasmático, levando a alterações cronobiológicas do
paciente sálvico. Este transtorno do hipotálamo levaria a
uma disfunção simpática e também causaria a ativação do
sistema trigêmino-vascular (STV). Esta ativação do STV
Migrâneas cefaléias, v.7, n.4, p.133-139,out./nov./dez. 2004
CEFALÉIAS EM SALVAS. QUADRO CLÍNICO E FISIOPATOLOGIA – UMA BREVE REVISÃO
levaria a uma inflamação neurogênica do seio cavernoso,
mediada por peptídeos vaso-ativos (CGRP) através da
condução antidrômica. Pela condução ortodrômica, o estímulo passaria pelo núcleo caudado e tálamo, chegando a
nível cortical, onde seria dada a sensação de dor. Haveria
uma ativação reflexa do núcleo salivatório superior na ponte,
tendo como aferente a via trigeminal e como eferente a via
parassimpática (sinais de hiperatividade parassimpática).
A natureza desta disfunção hipotalâmica ainda não foi
elucidada.4
CONCLUSÕES
O aspecto cíclico associado às manifestações disautonômicas fazem da CS uma das mais típicas dentre as
cefaléias primárias. Em relação aos critérios diagnósticos,
lembramos que há vários anos Kudrow já chamava a atenção para o fato do paciente sálvico não conseguir permanecer quieto durante uma crise. Também ressaltamos que
a hiper-hidrose decorre de uma hiperfunção simpática e
que o edema palpebral e rubor são de ocorrência muito
rara. Assim sendo, quando fazemos menção às manifestações disautonômicas associadas ao quadro clínico da CS,
devemos falar em hiperfunção parassimpática e disfunção
simpática, devendo evitar o termo “hipofunção simpática”.
Na verdade, segundo Bordini, ambas as hipóteses
(central e periférica) utilizam-se basicamente dos mesmos
elementos, divergindo-se apenas em relação ao sítio inicial
gerador da CS: seio cavernoso ou hipotálamo.21
O mais intrigante aspecto da CS é a sua natureza
episódica, da qual deriva o seu nome, aliás, muito bem
indicado. As crises “ligam-se” e “desligam-se” como se o
paciente fosse uma máquina, na qual vem acoplado um
“piloto automático”, respeitando assim algum ritmo que
tenha o selo do relógio biológico.
Apesar de ter importante participação na fisiopatologia
da CS, o seio cavernoso não se parece digno de atuar como
centro gerador de uma das mais complexas, intrigantes e
fascinantes entidades clínicas conhecidas pela Medicina.
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Migrâneas cefaléias, v.7, n.4, p.133-139,out./nov./dez. 2004
Endereço para correspondência
Roldão Faleiro de Almeida
R. Castelo de Guimarães, 471/401 – Castelo
31330-250 – Belo Horizonte-MG
e-mail: [email protected]
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