Pensamento pós-colonialista

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Pensamento pós-colonialista
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Pensamento pós-colonialista
Uma forma humanista de pensar a realidade
Gildson Gomes dos Santos*
RESUMO: Somos o presente de uma história evolutiva que se manifesta, desde o
modo de viver e conviver da espécie hominídea a que pertencemos, como uma rede
fechada de conversações; por isso, espontaneamente, esgrimimos nossos argumentos ancorados nesse background cultural, supondo-o evidente ou fora de questão; a
consequência mais visível dessa ancoragem é que todo argumento desarmônico
com a configuração histórico-relacional em que vivemos e convivemos imersos, geração após geração, via de regra, é lançado como descarte irracional na contabilidade lógica do pensamento hegemônico; não obstante, sustentamos que esse tipo de
cosmovisão se deve a um ativo reducionismo do fenômeno humano, encampado
pelas modernidade e pós-modernidade ocidentais, cujas maneiras de pensar se escoram na cultura patriarcal europeia. A revisão científica dos fundamentos bioculturais da existência humana revela, porém, que as conversações patriarcais são incompatíveis com o modo de convivência postulado pelo Estado democrático de direito do III Milênio; motivo pelo qual somos convidados a refletir sobre uma nova maneira de pensar a realidade, se não desejamos conservar a hipocrisia como bússola
orientadora de nossa práxis cotidiana, fundando o pensamento pós-colonialista, alicerçado no respeito mútuo entre os seres humanos, segundo os parâmetros propostos pela epistemologia unitária de Santiago do Chile. Pretendemos, também, apontar
a existência de duas maneiras básicas de pensar entre os humanos, bem como que
a congruência explicativa da realidade supõe isomorfismo estrutural entre o sistema
conceitual explicativo e o fenômeno explicável, pois não nos parece razoável justificar a democracia fazendo uso das coerências operacionais de um Estado totalitário.
Palavras-chave: Conhecimento. Cultura. Epistemologia. Linguagem. Metafísica.
Ontologia. Pensamento. Realidade.
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RESUMEN: Somos el presente de una historia evolutiva que se manifiesta, a partir
del modo de vivir y convivir de la especie homínida a la cual pertenecemos, como
una cerrada trama de conversaciones; por ello, espontáneamente, esgrimimos nuestros argumentos anclados en ese trasfondo cultural, suponiéndolos evidente o fuera
de toda cuestión. La consecuencia más visible de ese anclaje es que todo argumento poco armónico con la configuración histórico-relacional en la que vivimos y convivimos inmersos, generación tras generación, por norma, es lanzado como descarte
irracional en la contabilidad lógica del pensamiento hegemónico. No obstante, sostenemos que ese tipo de cosmovisión se debe a un activo reduccionismo del fenómeno humano, anulado por las modernidades y posmodernidades occidentales, cuyas maneras de pensar se amparan en la cultura patriarcal europea. La revisión
científica de los fundamentos bioculturales de la existencia humana revela, sin embargo, que las discusiones patriarcal/matriarcales son incompatibles con el modo de
convivencia postulado por el Estado democrático de derecho del tercer milenio; por
tal razón, estamos invitados a reflexionar respecto de una nueva manera de pensar
la realidad —si no deseamos mantener la hipocresía como norte orientador de nuestra práctica cotidiana— construyendo el pensamiento postcolonialista, cimentado en
el respeto mutuo, según los parámetros propuestos por la epistemología unitaria de
Santiago de Chile. Pretendemos también distinguir la existencia de dos maneras básicas de pensar entre los humanos, así como la congruencia explicativa de la realidad que supone el isomorfismo estructural entre el sistema conceptual explicativo y
el fenómeno explicable, pues no nos parece razonable justificar la democracia haciendo uso de las coherencias operacionales de un Estado totalitario.
Palabras clave: Conocimiento. Cultura. Epistemología. Lenguaje. Metafísica. Ontología. Pensamiento. Realidad.
9
ABSTRACT: We are the testimony of an evolutionary history that manifests itself,
according to the lifestyle and coexistence of the hominid species to which we belong,
as a closed net of communication: that is the reason why we spontaneously raise our
arguments anchored in that cultural background, assuming them to be evident or beyond question. The most visible consequence of that anchorage is that every disharmony in the historical-relational setting in which we live and coexist, generation after
generation, as a rule, is released as an irrational discard in the logic of the hegemonic thought. However, we maintain that this sort of world view is due to an active reductionism of the human phenomenon, neutralized by Western modernities and
postmodernities whose ways of thinking seek protection in the European patriarchal
culture. The scientific review of the biocultural fundamentals of human existence reveals, however, that the patriarchal deliberations are incompatible with the coexistence postulated by the democratic rule of law of the third millennium; for that reason,
we are invited to reflect on a new thinking reality —if we reject to keep hypocrisy as
the guiding north in our daily practice—, building the post-colonial thought, enrooted
in mutual respect and according to the framework proposed by Santiago de Chile
unitary epistemology. We also intend to distinguish two basic ways of thinking among
humans as well as the explanatory coherence of reality which presumes the structural isomorphism between the explanatory conceptual system and the explicable phenomenon, since we do not consider being reasonable to justify democracy by the
operational coherences of a totalitarian State.
Keywords: Knowledge. Culture. Epistemology. Language. Metaphysics. Ontology.
Thought. Reality.
10
1 Introdução
1.1 A problemática da realidade
Lembra o biólogo Humberto Maturana Romesín (MATURANA, 1988, p.
25; 2009b, p. 11) que, atualmente, a questão mais importante que a humanidade
tem diante de si é a da realidade, pois o que fazem os seres humanos modernos, em
qualquer sentido, implica uma resposta adequada a essa questão, como base para
os argumentos racionais que aplicam nas justificavas de suas ações. De alguma
maneira, então, o esquadrinhamento do real opera como premissa preliminar à
questão da racionalidade, porque é nele —assim pensa a modernidade—, que a razão encontra a objetividade que a torna mensurável.
Contudo, se é certo que a questão da realidade encontra-se pendente de
uma resposta adequada, menos correto não seria supor que as perguntas também
estão subordinadas à semelhante condição de adequabilidade, mesmo que tal circunstância não seja tão enfatizada pelo observador. Na verdade, no dia a dia, estamos mais habituados a observar os erros e acertos das respostas que a pertinência
lógica e contextual das perguntas. Nessa perspectiva, uma resposta adequada à
indagação sobre quem argumenta racionalmente ou não, do mesmo modo, dependerá da adequação da pergunta às circunstâncias nela envolvidas. E isso se deve à
lógica evidência de que não pode haver resposta adequada para pergunta inadequada, pois esta determina aquela1.
Veremos, por exemplo, que toda resposta a certa pergunta, lançada no
domínio pós-colonialista do saber, será tida como legítima, ainda que desagrade ao
interpelante; ao passo que, no domínio do pensar colonialista, de ordem patriarcal/matriarcal, a resposta dissonante com o escutar do observador será tida como
* Aspirante a doutor da Faculdade de Direito da Universidade Nacional de Buenos Aires (ARG.). Pós-graduado
em Direito Público pela UNIFACS (BA). Graduado em Direito pela UNIFMU (SP). Professor de Direito e Teoria Política da Faculdade Dom Luiz de Orleans e Bragança (BA). Procurador-Geral do Município e ex-presidente
do Conselho Municipal de Educação de Ribeira do Pombal (BA). Sócio fundador da firma G. Gomes dos Santos
Advogados Associados.
1
Segundo o cibernético Von Foerster (1984): “The way in which a question is asked determines the way in
which an answer may be found” (A forma em que uma pergunta é feita determina a forma em que se pode encontrar a resposta).
11
irracional, subjetiva ou tola, mesmo quando seja tolerada; visto que tolerância não
implica, necessariamente, aceitação de um ser humano por outro, como legítimo
outro na coexistência; traduz-se, quando muito, em uma estratégia de retardamento
do rechaço do indesejável.
Bom demais seria se, como regra, a humanidade não considerasse o
pensamento divergente uma distorção do pensamento convergente; se assim o fora,
as controvérsias, ao invés de gerarem vencedores e derrotados, sempre apareceriam como aberturas e excelentes oportunidades para o exercício da reflexão, bem
como da co-inspiração. O problema é que, segundo a lógica do pensamento dominante, as divergências, quando contradizem certezas2 supostamente inabaláveis,
estarão fadadas a sobrepujar o argumento oposto; ou, então, serão rechaçadas como irracionais, despropositadas, absurdas; e, se isso não se dá, de imediato, por
razões de poder ou conveniência, entra em cena a hipocrisia.
Nossa cultura hodierna vivencia, de fato, a lógica da desconfiança, da
apropriação, do desrespeito, que, como bem argumenta Maturana (2002, p. 13),
progride “num âmbito de interações que se define pela negação do outro, sob o eufemismo: mercado da livre e sadia competição. A competição não é nem pode ser
sadia, porque se constitui na negação do outro.”3 E, nesse jogo, então, para o qual
um ser humano é adestrado para vencer ou convencer o outro, até mesmo sem ter
razão4, não pode haver respeito às diferenças. Nele, a igualdade e a liberdade serão, sempre, uma questão formal.
Como o leitor já deve ter percebido, o problema de sabermos se alguém
está, ou não, com a razão, pode ser adequado ou inadequado, a depender do domínio em que a pergunta que seja lançada. Em geral, em sendo suscitada no espaço
do pensamento hegemônico, esse tipo de pergunta nunca deixará de ser oportuna,
porque, efetivamente, somente nele faz algum sentido. A bem de ver, quem leva a
sério as balizas cognitivas da cultura patriarcal/matriarcal ocidental, como bem sustenta Ximena Dávila, dar-se-á conta de que nessa linha de pensamento “siempre
tratamos de convencer al otro de nuestros argumentos, y convencer significa vencer
al otro. […]. A veces escuchamos esperando que el otro valide lo que decimos, porque creemos tener la razón, […].”(DÁVILA, 2010).
2
Sobre o conceito filosófico de “certeza”, cf. Malatesta (1927, p. 21).
Cf. tb. Dávila e Maturana (2010) a respeito da noção de competência.
4
Cf. Schopenhauer (1997).
3
12
1.2 A noção moderna do humano
No fundo, todo ser humano busca explicar a realidade a partir da concepção que tem de si mesmo no mundo. Essa é a premissa fundamental irrenunciável
no domínio cognitivo. De um modo geral, podemos perceber, nas conversações5
humanas, que quando o homem antigo fitava os mitos, toda explicação remetia a um
pano de fundo cultural místico (mitologismo); sob tal episteme, ninguém ousava desafiar os deuses pagãos. De outra banda, enquanto o homem medievo esteve convencido de que Deus o fizera à sua imagem, das suas explicações jorravam discursos sacros e transcendentes, que negavam, sistematicamente, legitimidade ao indivíduo (teocentrismo). Por fim, quando o homem autoproclamou-se centro de si
mesmo, e, assim também, do conhecimento, por tabela, concebera uma cosmovisão
centralizada no seu mais novo feitio individualista (antropocentrismo).
Tudo isso parece intuitivo, mas poucos se dão conta dessas circunstâncias, para delas abstrair as consequências relevantes (MATURANA e VERDENZÖLLER, 2003c). É fato, evidentemente, que, para se distanciar do passado, a modernidade substituíra os deuses, por longo tempo centros de suas visões mundanas,
pela deusa Razão, convertendo, imediatamente, o animal humano (Homo sapienssapiens), pertencente à linhagem primata bípede hominídea, em um ser racional.
Com isso levou a cabo uma das mais bem-sucedidas operações reducionistas de
que temos notícia, no domínio epistemológico, que se dera com a ocultação ativa da
dimensão emocional do ser humano, ainda que essa jamais pudesse ser negada
biologicamente.
Seria uma incoerência refutarmos, é certo, que, naquele momento, para a
modernidade emergente, a desidratação emocional do humano fazia mesmo algum
sentido, na proporção em que toda emoção implicava abertura às superstições, ao
apego a valores irracionais, à fé etc. Dessa maneira, a noção de ser humano passa
a ter uma configuração baseada, fundamentalmente, na dimensão fisiológica, gene5
“Chamo de conversação”, esclarece Maturana (2001b, p. 132), “nossa operação nesse fluxo entrelaçado de
coordenações consensuais de linguajear e emocionear e chamo de conversações as diferentes redes de coordenações entrelaçadas e consensuais de linguajear e emocionear que geramos ao vivermos juntos como seres humanos”. (Na tradução original: “linguajar” e “emocionar”. Atualmente, Maturana e Dávila usam-nas na forma
atualizada neste texto. Cf. Dávila e Maturana, 2008). Vide tb. nota 33.
13
ticamente predeterminada (Darwin), do Homo sapiens-sapiens: um sistema orgânico
aberto, em cujo corpo descansaria um centro de potências ou capacidades in fieri,
pronto para ser ativado mediante próteses organísmicas conectadas a seu sistema
nervoso.
Esse desenho humanal, centrado na dimensão neurofisiológica do organismo, acredite-se, fazia-se necessária, a fim de espancar suspeições sobre a possibilidade de autoafirmação do novo homem, no contexto em que apareceu; sendo
então o centro de si mesmo, o homem moderno passou a autodefinir-se desde o que
lhe seria próprio (propriedades): de seus órgãos, de seu espírito, de seu corpo, de
sua alma, de sua sensualidade; enfim, de sua essência, desvinculando-se, vez por
todas, do sagrado, que o reduzia a uma alma imperfeita, na eterna busca da salvação. Com esse novo upgrade, passamos a imaginar que toda atividade humana não
seria senão efeito de apetites6 intrínsecos ao nosso organismo, também rotulados
pela filosofia da consciência de faculdades ativas ou passivas7.
Desse modo, como ainda reverbera Pérez Barberá (2012., p. 21), em pleno III Milênio d. C., e com ele o pensamento dominante, o conhecimento resultaria
de processo ocorrente na dinâmica neurofisiológica do homem, tanto que sua representação é definida como uma “activación psíquica”. Metafisicamente, o animal humano seria ainda um sujeito dual, provido de uma estrutura espiritual e sensível, cujas dimensões configurariam, cada qual, um tipo correspondente de conhecimento;
sendo a razão a fonte do conhecimento espiritual (interno, subjetivo, lógico, racional); e a experiência, do conhecimento sensível (externo, objetivo, sensual8, empírico).
Via de regra, é com base na correlação entre os extremos da referida dicotomia (ou em cada um deles, isoladamente), que se tenta explicar a existência das
supostas aptidões cognitivas do homem moderno, ou caracterizar o conhecimento
como um “fato gnoseológico”9. Assim, reduzido à sua estrutura material de primata
bípede, pertencente à linhagem hominídea, o homem moderno seria um ser movido
pela razão, posto que a ideia gera a emoção10, e, então, a possibilidade de ação.
6
A tradição metafísica utiliza esse termo no sentido de “aptidão”, “possibilidade”, “faculdade”, “potência”,
“capacidade”, em contraposição a “ato”, “efeito”.
7
Cf. Jolivet (1965).
8
De “sensus” = sentido (HESSEN, 1987, p. 70).
9
Por todos, cf. Hessen (1926) e Reale (1990).
10
Cf. Vives Antón (2011, p. 235).
14
Por outras palavras, não seria senão a aptidão genética de pensar o que faria o homem agir, a se comportar de um ou de outro modo.
Nessa perspectiva, o conhecimento preexiste, como forma, na mente humana, como a priori conceitual, sendo complementado por fenômenos captados externamente ao sujeito cognoscente (observador), com auxílio de próteses cognitivas
(procedimentos metodológicos, interpretação etc.)11. Acontece que a validade desse
padrão cognitivo vem sendo questionada na própria origem, por dissidências pósmodernas; ensejando eloquentes apelos a seu abandono, sobretudo, a partir da
consolidação da filosofia da linguagem, que aparece como alternativa ao sistema
conceitual proposto pela filosofia da consciência.
Ainda assim, em que pese o hercúleo esforço, o pensamento pósmetafísico, o pós-moderno, entre outras dissidências existentes no clube cognitivo
da modernidade patriarcal/matriarcal etnocêntrica12, não lograram descaracterizar o
núcleo do pensamento-raiz, marcado pela objetividade transcendental, que supõe
acesso privilegiado a uma realidade apartada da biologia do observador. Com efeito,
como bem ilustra Enaudeau (2006, p. 209-210), o filósofo “Wittgenstein (…) les atribuye a las palabras el rol que Kant asigna a las representaciones trascendentales,
esos conceptos a priori que son el esquema de lectura de todo objeto conocible”.
E não é senão com base nesse enfoque metafísico que a teoria jurídica
pós-metafísica ou pós-positivista sustenta que “há traços de significado mínimos incorporados ao uso ordinário ou técnico da linguagem” (ÁVILA, 2006, p. 32). Não é
por outro motivo que os juristas, buscando espancar a suspeição de arbitrariedade
que recai sobre a atividade de interpretação jurídica, argumentam que o intérprete
sempre se depara, no processo hermenêutico, com “sentidos a priori” (Wittgenstein),
“estruturas de compreensão a priori” (Heidegger) ou “condições intersubjetivas a pri11
Não desconhecemos que concepções idealistas radicais negam valor cognitivo ao objeto externo, ao eleger a
razão ou o intelecto fonte exclusiva do conhecimento. Contudo, no domínio do pensamento moderno, hodiernamente, prevalecem as correntes filosóficas intermediárias, que medeiam o enlace entre razão e experiência, cada
uma cumprindo função específica no organização do saber.
12
“Não obstante faça ressalvas ao que chama de pós-modernismo celebratório”, aponta Santos (2004) que “são
múltiplas as concepções que se reivindicam do pós-moderno. As concepções dominantes – onde pontificam
nomes como Rorty, Lyotard, Baudrillard, Vattimo, Jameson – assumem as seguintes características: crítica do
universalismo e das grandes narrativas sobre a unilinearidade da história traduzida em conceitos como progresso,
desenvolvimento ou modernização que funcionam como totalidades hierárquicas; renúncia a projectos coletivos
de transformação social, sendo a emancipação social considerada como um mito sem consistência; celebração,
por vezes melancólica, do fim da utopia, do cepticismo na política e da paródia na estética; concepção da crítica
como desconstrução; relativismo ou sincretismo cultural; ênfase na fragmentação, nas margens ou periferias, na
15
ori” (Reale), cujas estruturas transcendentais, de alguma maneira, condicionam-no,
evitando interpretações caprichosas (Id., 2005, p. 24).
Em resumo, é isso o que resulta da arquitetura humana moderna, a partir
da qual a realidade é concebida. Saltam-se as fronteiras do viver humano para, de
fora dele, intentar descrevê-lo. É curioso, mas esse tipo de operação pode ser comparado a um salto para fora do universo; para, de fora dele, tentar explicá-lo; a linguagem, de fora dela própria; a experiência13, de fora da experiência, como se esta
preexistisse a quem a vivencia, que não é ninguém senão o próprio observador (ou
sujeito cognoscente). E o meio para se chegar a tanto é um paradigma: “una construcción artificial del espíritu que fija las condiciones a priori de toda descripción de
los objetos. Nietzsche diría ‘una forma que nuestro intelecto ha inventado e impuesto
a lo real para simplificarlo y asimilarlo’ (ENAUDEAU, 2006, loc. cit.).
Seja como for, cumpre-nos perguntar: essa arquitetura humana inventada
pela modernidade ainda permanece operativa nas atuais circunstâncias? O pensamento pós-colonialista se antecipa para afirmar que não. A conclusão científica segundo a qual o organismo humano constitui uma totalidade sistêmica autopoiética,
determinada por seu estado, opera como óbice intransponível à descrição do ser
humano como um sistema vivente totalmente aberto, exclusivamente racional, que
conhece mediante representações determinadas pelo meio. Ademais, configura inaceitável equívoco homiziar o homem em sua estrutura material (neurofisiológica), já
que o humano, enquanto tal, só faz sentido na unidade sensório-relacionaloperacional organismo-nicho, como veremos adiante.
1.3 Pseudorrupturas paradigmáticas
Este estudo revelará ainda que os supostos “rompimentos”, os “abandonos”, que se dão nos chamados “centros de produção científica” europeus e norteamericanos, geralmente macaqueados pelas periferias colonizadas, não implicam
giro metafísico algum, tampouco quebra de paradigma; pois não são senão pseudorheterogeneidade e na pluralidade (das diferenças, dos agentes, das subjectividades); epistemologia construtivista,
não-fundacionalista e anti-essencialista”.
13
Algo que o observador vivencia em certo momento e distingue nesse mesmo momento como um sucesso perceptível (MATURANA; PÖRKSEN, 2004, p. 21).
16
rupturas da mesma e única matriz de pensamento, gerada no domínio da cultura
patriarcal/matriarcal europeia, com base no feitio humano que dela deriva. O que se
dá, na verdade, com essas peseudodissidências, são casuísticas re-acomodações
epistêmicas no mesmo espaço cognitivo; mantido o conforto, permanece tudo como
dantes no quartel d’Abrantes14.
É com essa lógica hipócrita e enganosa que buscamos romper, ontológica
e epistemologicamente, com apoio da filosofia espontânea, capitaneada por Humberto Maturana e Ximena Dávila; não para com ela rivalizar, visto que não postulamos exclusivismo algum, relativamente à proposta explicativa que emergirá destas
páginas; a não ser a oportunidade de torná-la credível e alternativa. A modernidade,
por mais que tenha se esforçado para se ajustar às contingências da deriva cultural
do Ocidente, esbarra-se em suas próprias contradições. Definitivamente, seu modelo
de pensar, que aqui será rotulado de “colonialista”, já não dá conta das complexas
relações humanas que se processam na Era Pós-colonialista15. Pensemos, por
exemplo, em temas como: a vida; a morte; a reprodução in vitro; as famílias homoafetivas; a dignidade humana; as liberdades científica, intelectual, de pensamento,
crença, opinião, artística.
Por mais que se tente obscurecer, o fato é que, enquanto coerência operacional do patriarcalismo, o sistema colonialista moderno, segue atuante e mais
vivo que nunca16. Não talvez na sua forma primitiva de exploração econômica, mas
no campo das ideias, pois vivenciamos, ainda hoje, o tempo da colonização políticocultural17. Afinal, o que fazemos nos trópicos, senão macaquear as lógicas da apropriação, da competição, que marcam o Velho Mundo? O que criamos, depois das
independências político-formais, que nos assegure uma concepção própria do mundo? O que fazemos em nossas orações e discursos, senão fomentar o egoísmo e a
discórdia, apologizando referências patriarcais/matriarcais colonizadoras?
14
Sobre a origem da expressão, cf. <http://guiadoestudante.abril.com.br/estudar/historia/tudo-como-dantes-quartel-d-abrantes-433893.shtml>.
15
O marco inicial desse período é fixado, na linha do tempo, em 1970, quando o pensador chileno Humberto
Maturana Romesín publica, no Biological Computer Laboratory (BCL), da University of Illinois, dirigido por
Heinz von Foerster, o seminal ensaio Biology of Cognition, propondo uma nova teoria que concebe o conhecimento como um fenômeno biológico (MATURANA, 1970). Cf. tb. Müller (2005).
16
Cf. Naim (2011).
17
Com esta visão parece compartilhar o filósofo espanhol Raimon Panikkar (PANIKKAR, 2011, p. 11) para
quem: “La esencia del colonialismo no es la explotación sino el monoculturalismo, la creencia de que una sola
cultura puede marcar la pauta para solucionar los problemas humanos”.
17
As estruturas hierarquizadas do chamado mundo globalizado não nos iludem, e revelam quem têm, de fato, o controle das cartas, nesse jogo esquizofrênico
que vivenciamos cotidianamente, em função do qual as instituições, as pessoas, a
cultura, os desejos, as preferências se orientam. A modernidade é, com efeito, muito
mais que uma opção pela racionalidade, pelo controle da natureza e da sociedade
ao caos; pelo crescimento e desenvolvimento econômicos à miséria; pela concentração do poder à subserviência política; trata-se de um autêntico modo de vida, que se
caracteriza, principalmente, pela negação de um ser humano pelo outro, na convivência. E não é senão esse o preço que pagamos pelo sucesso de uns e a consequente frustração de outros.
1.4 Super-realismo experimental18
Na verdade, inventamos e criamos algo, sim; uma realidade fascinante,
em termos de reflexão sobre o conhecimento; porém insistimos em render tributos à
colonização, macaqueando nossos patriarcas. É factível afirmarmos que, se se considera o líder revolucionário venezuelano Simón Bolívar, o libertador da América hispânica, por seus atos heroicos e de bravura, sem qualquer exagero, a menção honrosa de libertador da América Latina cabe ao pensador chileno Humberto Maturana
Romesín, por haver inaugurado nesta região um novo modo de abordar a realidade,
originalmente pós-colonialista19. Aliás, como nos lembra Javier Torres Nafarrate
(MATURANA, 2009a, p. X), o risco de se incorrer em equívoco, colocando Maturana
entre os grandes pensadores do Ocidente, é, de fato, desprezível.
O nosso herói e mais recente libertador não precisou de artilharias e canhões para libertar o sul20 do domínio mental eurocêntrico; com humildade e sabedoria, Maturana passou, chilenamente, a sustentar que o critério de validação das
explicações científicas pode se fazer explícito operacionalmente, por completo, sem
demandar qualquer referência a uma realidade independente do observador ou a um
18
Maturana (2004, p. 21) não vincula seu pensamento a etiquetas e rechaça o rótulo de construtivista. Porém,
para satisfazer curiosidades, a título de brincadeira, autodenomina-se “un superrealista que parte de la existencia
de inumerables dominios de realidad, todos y cada uno igualmente válidos”.
19
Maturana e Dávila preferem a rubrica “Post Posmoderno”.
20
Cf. Santos (2007).
18
mundo objetivo transcendental21. Para o biólogo, tal critério “puede ser aprendido,
utilizado, y aplicado con una total independencia de las creencias del observador
tipo respecto a la realidad, los valores y la vida espiritual”. (MATURANA, 2009a, p.
89).
Em outras palavras, o que propõe Maturana é a fundação de uma epistemologia experimental da realidade, sem qualquer conotação autoritária e apriorística22. Oficialmente, numa conferência ministrada no congresso Cognition: a Multiple
View, realizado em Chicago, no fim dos anos 60, sob os auspícios do Biological
Computer Laboratory (BCL), da University of Illinois, dirigido por Heinz von Foerster,
o pensador chileno passou a defender a compreensão da realidade como uma proposição explicativa, quando surpreendeu a seleta plateia, afirmando que “tudo que é
dito é dito por um observador, a si mesmo ou a outrem”23 (MATURANA, 1970); não
sendo possível, portanto, separar uma afirmação de quem a declara. Emerge, desse
modo, uma visão oposta à pregação colonialista/patriarcal/matriarcal, que imagina o
real como um substrato ontológico asséptico ao operar distintivo do observador.
O insight, decerto, não foi casual. Humberto Maturana, que se autodenomina biólogo, estudou medicina na Universidade do Chile, de onde partiu para University College London, para estudar anatomia e neurofisiologia; em 1958, obteve o
título de Doutor, em biologia, da Harvard University; tendo ainda registrado no seu
currículo uma marcante passagem pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT),
a convite do neurofisiologista Jerry Lettvin, onde se tornou PhD, e outra pelo já
mencionado Biological Computer Laboratory (BCL), da University of IlIinois, a convite do cibernético Heinz von Foerster, onde publicou o seminal ensaio Biology of
Cognition (MATURANA, 1970), que inaugura a abordagem enativo-reflexiva24, bem
como a Era Pós-colonialista, no campo do conhecimento.
21
Cf. Maturana e Verden-Zöller (2003c, p. 56 e ss.) a respeito da objetivação das conversações, no âmbito da
democracia clássica grega.
22
“De lo dicho se hace manifiesto que yo pienso que la práctica del pensar objetivo surgió con la democra-
cia inmersa inicialmente en el carácter autoritario de nuestra cultura patriarcal europea aún presente, y en
tanto permaneció así, normativa, permanece aún normativa en la política, en el seno de la vida democrática,
y en muchos aspectos del vivir fuera de ella, y constituye el pensar ideológico y el explicar filosófico” (Id.
Op. cit., p. 57).
23
“Anything said is said by an observer. In his discourse the observer speaks to another observer, who could be
himself; whatever applies to the one applies to the other as well” (Tudo que é dito é dito por um observador. En
seu discurso, o observador fala a outro observador, que pode ser ele mesmo ou outrem também).
24
Trata-se, segundo Francisco Varela (1996, p. 7), aluno e parceiro de Maturana, um dos teorizadores do enfoque enactivo, de “neologismo derivado del inglés "to enact", traer a la mano, hacer emerger”, que em português
19
Em seu relato sobre a história do BCL, Müller (2005, p. 288) noticia que
Maturana e os colegas chilenos, que o acompanhavam, mudaram o rumo das investigações no referido centro de pesquisas; e aproveita para fustigar o MIT, insinuando
que, nesse conceituado centro de pesquisas, Humberto Maturana era visto como um
cabeça-dura (stubborn person), por conta da heterodoxia de suas ideias25. No final
dos anos 60, Maturana retoma suas pesquisas na Universidade do Chile, na capital
Santiago, onde funda com Ximena Dávila, em 2000, a Escuela Matríztica de Santiago (EMS), em cuja instituição, inicialmente denominada Instituto Matríztico, investiga
a matriz biológico-cultural da existência humana26.
A conclusão fundamental a que chegou o pensamento matríztico27 de
Santiago do Chile, desde o advento de Biology of Cognition, é a de que os seres vivos, inclusive os da matriz Homo sapiens a que pertencemos, são sistemas ou unidades interacionais, por viverem e conviverem no meio ambiente, não podendo ser
compreendidos, biologicamente, com independência deste.28 Dessa maneira, o ser
humano de corte matríztico não se reduz, então, a um centro fisiológico de capacipode ser vertido para “fazer surgir”, “produzir”, “gerar”, “executar”. Recentemente, Ximena Dávila e Humberto
Maturana, indagados sobre o sentido da expressão “traer a la mano”, responderam pessoalmente ao autor deste
estudo que a mesma evoca a existência de algo, significando, portanto, “existir” (ESCUELA MATRÍZTICA DE
SANTIAGO, 2012). Cf. tb. Maturana (2009c), onde se pode cotejar a aplicação da expressão “traer a la mano”
em vários sentidos. Sobre o assunto, cf. tb. Di Paolo e Froese (2011); Froese e Stewart (2012).
25
“Maturana had already been to the United States, having worked for some time at MIT, where he had not fit in
so well due to his “stubborn” opinions”.
26
Segundo Ximena Dávila Yáñez: “La matriz biológico-cultural de la existencia humana es la trama relacional
del vivir biológico en que surge, se realiza y conserva lo humano y aparecen todos los mundos que vivimos como las distintas dimensiones de nuestro vivir cultural”. […]; “lo biológico hace referencia a la realización del
vivir y conservación del vivir como condiciones fundantes de todo lo posible en el existir humano, y … lo cultural hace referencia al curso que sigue el vivir según la forma particular del vivir en redes de conversaciones,
entonces lo biológico-cultural hace referencia al entrelazamiento dinámico, operacional-relacional de lo biológico y lo cultural en la realización y conservación de la unidad del vivir humano”. (DÁVILA e MATURANA,
2008, p. 257-259.).
27
Maturana (1999) explica que o termo “matrístico” (com “s”) faz referência a “uma situação cultural na qual a
mulher tem uma presença mística, que implica a coerência sistêmica acolhedora e liberadora do maternal fora do
autoritário e do hierárquico. [Portanto], é o contrário de "matriarcal", que significa o mesmo que o termo "patriarcal", numa cultura na qual as mulheres têm o papel dominante”. Em outras palavras [...], a expressão "matrística" é aqui usada intencionalmente, para designar uma cultura na qual homens e mulheres podem participar de
um modo de vida centrado em uma cooperação não-hierárquica. Tal ocorre precisamente porque a figura feminina representa a consciência não-hierárquica do mundo natural a que nós, seres humanos, pertencemos, numa
relação de participação e confiança, e não de controle e autoridade, e na qual a vida cotidiana é vivida numa
coerência não-hierárquica com todos os seres vivos, mesmo na relação predador-presa”. Ultimamente, o pensador chileno passou a grafar, contudo, “matríztico” (com “z”) para também conotar a cultura não centrada em
relações humanas de autoridade e obediência. E nesse sentido também o fazemos em nosso idioma (português).
Cf. tb. Maturana e Verden-Zöller (2003c, p. 36).
28
“Los seres humanos como todos los seres vivos existimos como organismos en la unidad operacional organismo-nicho; y lo peculiar nuestro es que en ese vivir convivimos en el lenguajear, el conversar y el reflexionar
generando mundos operacionales-relacionales recursivos de sentires, emociones y haceres que ocurren en una
20
dades cognitivas in fieri; não existe pronto e acabado no mundo, como expressão de
suas intrínsecas propriedades, com faculdade ativa capaz de fazer referência a objetos transcendentes, independentemente de seu operar; não existe no vácuo ou
isolado na ecosfera, enfim.
Pelo contrário, o ser vivo primata bípede, da espécie hominídea, tido pela
ciência moderna como humano desde a concepção, no domínio da epistemologia
unitária29, de fundo matríztico-pós-colonialista, somente adquire a condição humana
com a respectiva culturalização, que se dá com a incorporação da linguagem (conotativa ou condutual30) ao modo de vida hominídeo, há três milhões e meio de anos,
aproximadamente. A humanização é, portanto, para o pensamento pós-colonialista,
produto da cultura, enquanto rede fechada de conversações31,32 no linguajear33, e
não produto exclusivo da genética (MATURANA, 2009b, p. 281).
Na realidade, o ser humano, a despeito de sua constituição biogenética,
constitui um ser cultural, porque adquire humanização no curso de sua deriva filogenética cultural, isto é, na realização histórica do seu próprio viver. Uma coisa é a estrutura fisiológica do ser vivente hominídeo (Homo sapiens-sapiens), desprovido de
linguagem; outra é a estrutura do ser vivo linguajeante, expressão da unidade sensório-operacional-relacional organismo-nicho, com fenótipo ontogênico ampliado pela linguagem. Assim, enquanto dinâmica fisiológica, o ser hominídeo traduz apenas a
possibilidade de tornar-se humano, posto que a condição humana mesma só é adquirida na realização do viver, relacionalmente, com o meio envolvente, a partir do
seu nascimento, convivendo imerso no modo de vida linguístico (Id., loc. cit.).
continua trascendencia a la realización molecular de nuestro vivir que buscando en último término vivir en la
armonía de la antropósfera y la biosfera” (DÁVILA e MATURANA, 2008, p. 257-259).
29
Sobre o assunto, cf. Dávila e Maturana (2008, p. 259 e ss.).
30
Neologismo derivado da palavra castelhana “conductual”, utilizado neste estudo para evocar a expressão “de
conduta” , bem como a palavra comportamental com o propósito de enfatizar esse aspecto relacional da convivência humana.
31
Sustenta Maturana (2009a, p. 28, passim) que o humano surge ao surgir a linguagem, definida como coordenações de coordenações recursivas de condutas consensuais, embora se constitua, de fato, como tal na conservação
de um modo de viver particular focado, principalmente, no conversar e no prazer de viver na conversação, em
cuja rede se entrelaçam racionalidade e emoção.
32
Ainda segundo Humberto Maturana, “aquello que connotamos en la vida cotidiana, cuando hablamos de cultura o de asuntos culturales, es una red cerrada de conversaciones que constituye y define una manera de convivir humano como una red de coordinaciones de emociones y acciones que se realiza como una configuración
particular de entrelazamiento del actuar y el emocionar de la gente que vive esa cultura.” (MATURANA e
VERDEN-ZÖLLER, 2003c, p. 30).
33
Originalmente, Maturana (1988, p. 45; 2001a, p. 12) usa a palavra inglesa “languaging”, traduzida para o
castelhano como “lenguajear” a fim de enfatizar a natureza dinâmica e condutual da linguagem. Na língua portuguesa não há lexema equivalente. Assim, com o mesmo propósito, traduzimo-la como “linguajear”, para evocar
o fluir de coordenações consensuais de coordenações de condutas ou fazeres na comunicação.
21
Em resumo, o ser humano é o resultado da unidade relacionaloperacional organismo-nicho. O que lhe empresta, portanto, uma dinâmica neurofisiológica (interna) e outra relacional (externa), ambas disjuntas e não entrecruzadas.
Por isso, nada que a mulher ou o homem pós-colonialista explique como experiência será válido se não for coerente com essa configuração básica. Somente o fato de
concebermos a dinâmica interna humana como uma estrutura operacionalmente fechada, na sua organização (identidade), já nos colocaria fora do domínio cognitivo
da modernidade colonialista. A situação tornar-se mais delicada, porém, quando rechaçamos a ideia de conhecimento como representação, desde a compreensão de
que o sistema nervoso humano “no opera con una representación del mundo” (MATURANA e VARELA, 2003a, p 138).
1.5 Hipóteses explicativas
Podemos antecipar, então, que, se o pensamento colonialista, de raiz patriarcal/matriarcal europeia, não fizesse vista grossa para a condição determinísticoestrutural da existência humana, a possibilidade de as bibliotecas do mundo virem
abaixo seria tão certa quanto o calor do fogo (CAPITAL INICIAL, 2007). Esse é, por
sinal, um motivo bastante forte para o apego incondicional dos colonialistas à objetividade transcendental, cuja renúncia, certamente, desencadearia trágicas consequências em tal modo de vida, por conta de um giro epistemológico dessa magnitude. O pensamento patriarcal hegemônico, de fato, não está preparado para suportar
tamanho desconforto; ainda assim, não vemos como conservá-lo no atual estado da
arte, sem que isso implique indesejável retrocesso.
Por essa razão, o pensamento pós-colonialista vê-se livre para tocar, honestamente, o seu projeto de explicar a realidade, a partir da matriz biocultural da
existência humana; assumindo, então, como pano de fundo de sua proposição explicativa, todas as implicações que possam decorrer da configuração básica do “ser
humano matríztico”, cujo fundamento biológico-cultural elementar descansa na total
confiança e espontaneidade da relação materno-infantil34, que, não obstante as con34
Maturana e Verden-Zöller (2003c) esclarecem que se trata de uma “relação de cuidado” que envolve tanto a
dedicação do pai, quanto da mãe, como adultos, e não como masculino e feminino, na criação da prole. Cf. tb.
Maturana et Rezepka (1999).
22
tradições emocionais de percurso, de algum modo, conserva-se, na fase adulta da
unidade autopoiética humanal em curso.
Seja como for, estudos científicos credíveis revelam que, nos escombros
da cultura patriarcal/matriarcal europeia, por conta de truques reducionistas, escondiam-se inesgotáveis resíduos bioculturais matrízticos35, de cuja escavação arqueológica emergiu, no campo da Biologia do Conhecimento maturaniana, um inovador
sistema conceitual explicativo da realidade, que rompe, definitivamente, com o pensamento objetivo colonialista, para fundar, na América Latina, a epistemologia unitária, esposada pela Escuela Matríztica de Santiago.
Com base nesse fato, sustentaremos que, desde o background cultural
patriarcal/matriarcal europeu, a trivialidade do ato de conhecer desapareceu, no exato momento em que a objetividade transcendental (transcendental objectivity), gerada nas ágoras gregas, apropriada e difundida pela modernidade, foi colocada entre
parênteses pelas ontologias constitutivas, abrindo um espaço reflexivo para objetividade constituída (constituted objectivity), no operar sistêmico-recursivo do observador, quando este conhece o que conhece, deslizando na co-deriva estrutural ontogenética da linguagem, enquanto modo de vida.
Ainda que seja legítima a evocação de conversações patriarcais na deriva
cultural do Ocidente, em função da inegável existência de uma rede fechada de coordenações de coordenações consensuais de fazeres, sentires e emoções, que se
conserva a mais de sete mil anos, as circunstâncias atuais indicam visível esgarçamento na tessitura da cultura colonialista, que nos sufoca diuturnamente. Trata-se de
um câmbio cultural36 espontâneo e irreversível, que emerge entre os fios esgarçados
do tecido pratriarcalista europeu. Recentemente, por exemplo, um ex-chefe de Estado, de uma poderosa nação, se deu conta de que “o futuro pertence aos que praticam a cooperação”37 (VEJA, 2013, p. 91).
35
Santos (2001) define reducionismo como “desconhecimento ativo da complexidade”. Uma forma de privilegiar o conhecimento científico negando validade a outros tipos de conhecimentos. O que teria sucedido, por exemplo, com o termo “emancipação social”. É o que o que manifesta o próprio sociólogo: “não considero que o
termo emancipação social deva ser descartado por ser moderno e ocidental” (SANTOS, 2004). Cf. tb. Santos
(2003). O termo “matríztico” faz referência à cultura ou modo de vida que predominava na Europa central, antes
do aparecimento da cultura patriarcal pastoril procedente da Ásia central. Cf. Maturana e Rezepka (1999).
36
Sobre a noção de mudança cultural, cf. Maturana e Verden-Zöller (2003c, p. 30 et seq.).
37
A frase é do ex-presidente estadunidense Bill Clinton, e não diz muito, porque mira o futuro, e não o presente,
no qual os United States viola a privacidade de milhões cidadãos, acessando contatos e dados pessoais, a pretexto de combater o terrorismo (A TARDE [OBAMA...] 2013, p. B5). Todavia, não deixa de ser um alento.
23
Segue-se, então, que há sinais consistentes de uma emergente rede de
conversações neomatríztica38, obnubilada pelo patriarcalismo, porém especificada
pelo desejo de cooperar, amar, colaborar, respeitar o outro humano, como legítimo
outro na coexistência; em contraposição à gana pela apropriação, potestade, competência, arrogância, inimizade, cujas emoções formam o núcleo duro da cultura colonialista39. Ora, o simples fato de nos darmos conta, hoje, de duas redes fechadas
de conversações ou culturas em curso, especificadas por classes de emoções distintas e contraditórias, é o bastante para negarmos caráter apriorístico e axiomático a
qualquer noção, conceito ou argumento.
À vista dessas considerações, inclinamo-nos, portanto, a aceitar e defender a hipótese básica de que se encontram consolidados, no atual estado da arte,
dois modos fundamentais de convivência humana, que correspondem a duas culturas ou redes fechadas de conversações contraditórias: uma de ordem colonialista
(que conserva e retroalimenta conversações patriarcais), e outra pós-colonialista
(centrada em conversações matrízticas); de modo que, por conta dessa circunstância, duas maneiras de pensar, cada qual correspondente à sua respectiva cultura,
também estão em curso, ambas legítimas, porém, diferentes. Mas não é só isso.
Entendemos, como corolário da hipótese básica anterior, que a cultura patriarcal/matriarcal europeia, aqui denominada de colonialista, desafia a noção de Estado democrático de Direito, por manifesta incompatibilidade entre suas dinâmicas
estruturais. Como veremos mais adiante, essa circunstância, embora pareça, também não é trivial, na medida em que sugere uma necessária relação de congruência
ontológico-epistemológica entre o sistema conceitual explicativo e o objeto, situação
ou estado a ser explicado, a qual denominaremos, neste estudo, de isomorfismo estrutural. Esta é, por sinal, a hipótese específica que mobiliza a presente açãoreflexão.
1.6 Metodologia
38
Cf. Maturana e Verden-Zöller (2003c).
Adverte Maturana que: “En la disposición matríztica, y, por lo tanto, en la democracia como un dominio neomatríztico, se conserva el respeto mutuo; en la disposición patriarcal, y por lo tanto, en la conservación de la
jerarquía y la autoridad, se conservan el poder, la subordinación y la obediencia.” (MATURANA e VERDENZÖLLER, 2003c, p. 57).
39
24
1.6.1 Metáfora cartográfica
Quando o assunto é linguagem, Maturana nunca hesita em chamar a
atenção da ciência sobre o uso das metáforas. Para el Doctor40, as metáforas confundem domínios e são enganosas; “parecen fáciles de entender, pero de hecho dificultan la comprensión” (MATURANA e PÖRKSEN, 2004, p. 100). Não obstante,
acreditamos que o uso pontual dessas figuras linguísticas pode militar em favor da
transparência de discursos muito fluidos, cuja compreensão interessa, sobretudo, ao
público leigo. Por essa razão, com a pretensão de trivializar o abstracionismo de
todo discurso filosófico e/ou científico, é que, ao longo deste estudo, será feito uso
estético da metáfora espacial, proposta pela Cartografia Simbólica das Representações Sociais (CSRS), de Boaventura de Souza Santos (SANTOS, 1988a).
No entanto, se pretendemos esboçar um mapa do pensamento humano
nestas páginas, outras categorias, não menos importantes, terão de ser consideradas na construção dessa carta teórico-reflexiva. É o caso, por exemplo, das noções
de ser humano, pensamento, conhecimento, cultura e realidade. Afinal, quem (ser
humano) deseja formular um mapa cartográfico, de algum modo, terá de conhecer
(conhecimento) o espaço a ser mapeado (realidade), de acordo com alguma configuração psíquica (pensamento) que, geralmente, surge a reboque de alguma mentalidade cultural disponível (cultura).
Todavia, antes de avançar em sua empresa cartográfica o mapeador
responderá, implícita ou explicitamente, a três indagações fundamentais: “em que
domínio se situa o pensamento?”; “como se constitui o “conhecimento?”, “em que
consiste a realidade?”. São as respostas a essas questões preliminares que definirão a consistência e o tipo do mapa a ser projetado. Por ora, o que antecipamos é
que, na Era pós-colonialista, a imagem da realidade social, detectada por intermédio
das tradicionais “ontologias transcendentais”, não dispõe do mesmo grau de resolução41, e não se compara à que se forma através das lentes que equipam as “ontologias constitutivas” (MATURANA, 2009b, p. 21).
A escolha do ferramental analítico mais apropriado, para lidar com a realidade psíquico-cultural, entre os referidos modelos metafísicos, trata-se de decisão a
40
41
Tratamento que as pessoas mais íntimas e discípulos dispensam a Humberto Maturana Romesín.
Sobre o tema, cf. Santos (2003, p. 268-270).
25
ser tomada no seu devido tempo. Neste ponto, urge-nos formular um plano abrangente dos elementos mínimos e necessários à facilitação da leitura e compreensão
do conjunto semiótico do nosso mapa, e que, basicamente, são quatro: 1) o título, 2)
a escala, 3) as coordenadas e 4) as legendas42, podendo ser reduzidos a três mecanismos, como mais adiante veremos, durante a sumária apresentação da CSRS.
Em verdade, todo mapa que se preze há de ter um título, que enuncie,
sem rodeios, o seu objeto. Por exemplo, se a função principal do mapa é representar
as características físicas de uma determinada unidade territorial, o respectivo título
informará tal circunstância; a epígrafe que abre o presente estudo atende, a contento, à exigência metodológica em foco, havendo nela a informação de que o mapa
projetado representará a estrutura dos fenômenos abordados, num determinado espaço cultural. Mas, ainda assim, uma delimitação mais precisa se impõe.
O fato de o título não especificar o domínio cultural mapeável será problemático em face da clareza que todo mapa reclama, e do padrão epistemológico
adotado por este trabalho. Por essa razão, tendo em conta, sobretudo, o fato de que
todo mapa postula pontos de referência espaciais precisos, elege-se, como marco
material deste estudo, o domínio da cultura ocidental. O que fixa, desde logo, a ausência de qualquer ambição universalista; além de aproximá-lo, congruentemente,
das hipóteses explicativas propostas.
A justificativa dos demais elementos cartográficos comporta uma análise
global, em virtude da relação intrínseca que há entre eles. Na realidade, do ponto de
vista da CSRS, falar-se de escala, de coordenadas e legendas não é senão, metaforicamente, apontar para as unidades elementares e relações operacionais que compõem internamente as estruturas de pensamento examinadas: as ontologias transcendentais e as ontologias constitutivas, cujas categorias são escalonadas e simbolizadas de acordo com suas funções sistêmicas, dentre as quais a de organizar, orientar e coordenar as ações dos observadores no espaço cognitivo.
1.6.2 Metáfora da representação
42
Nos estreitos limites deste trabalho não há espaço para aprofundamento do saber cartográfico. O máximo que
se pode ofertar ao leitor são noções elementares imprescindíveis à compreensão do discurso. Neste particular
adotamos a sugestão do Projeto Presente: Formação/Geografia, da Editora Moderna, disponível
em:<http://www.projetopresente.com.br>.
26
De fato, a íntima relação que mantemos com as metáforas não configura
pecado algum; cotidianamente, usamo-las aos borbotões, sem qualquer remorso,
sobretudo quando nos deparamos com dificuldades de ordem emocional, no fluxo do
contínuo e contingente presente da nossa deriva estrutural ontogenética. Cumpre
esclarecer, todavia, desde logo, que, por trás das palavras: metáfora, interpretação e
representação, esconde-se uma sutil armadilha ideológica, associada ao esquema
de pensamento cultivado pela cultura patriarcal/matriarcal europeia; e, em particular,
ao da modernidade (e pós-modernidade) pensante.
Usualmente, aplicamos a palavra mapa para representar certo espaço
geográfico, supondo, por óbvio, que aquele se trata de uma imagem deste, independentemente da operação levada a cabo pelo observador, na configuração do mapa e
do correspondente domínio territorial mapeado. Veremos, contudo, que, na linha explicativa perfilhada neste trabalho, os fenômenos43 (mapas, espaços, temporalidades, pensamentos, intencionalidades, desenhos etc.) emergem enativamente nas
distinções operadas pelo observador, a quem não preexistem, portanto; de modo
que não podem ser interpretados com independência do seu fazer.
É bem verdade que, na posição de observador, quando distinguimos as
formas dos entes, situações e estados, podemos tratar as correspondentes configurações na qualidade de entidades discretas ou totalidades, “como si existiesen por si
mismas”(MATURANA, 2013b). E é isso o que, de fato, ocorre na prática, quando
supomos a possibilidade de interpretar algo. Realmente, no dia a dia, inclinamo-nos
a considerar as configurações dinâmicas, resultantes de nossas distinções, como se
fossem realidades independentes de nosso operar, enquanto observadores.
Esse tipo de cosmovisão não nos é estranha e faz sentido, sem dúvida,
particularmente no domínio da tradição gnoseológica moderna, em cujo espaço as
metáforas são inevitáveis; e o são porque, em tal caminho explicativo, prevalece
uma metáfora fundamental: a da representação, mediante a qual se atribui ao observador a capacidade intrínseca de fazer referência a entidades no mundo, independentemente de seu operar na linguagem; assim, imagina-se que, no ato mesmo
de conhecer, “el observador capta, aunque sea de manera indirecta, la esencia de
esa realidad transcendente, o hace una interpretación de esa realidad subyacente
43
Com efeito, o uso desta palavra neste estudo afasta-se da tradição. Aqui, fenômeno traduz o que o observador
distingue na experiência, quando distingue, como coordenação de coordenações de condutas consensuais. Cf.
Maturana (2003b, p. 211).
27
como una aproximación conceptual a su en sí” (DÁVILA e MATURANA, 2008, p.
115)44.
A bem de ver, o uso de metáforas não caracteriza defeito, tampouco desvirtuamento da linguagem. Pelo contrário, as chamadas figuras de linguagem constituem um valioso recurso linguístico, cujos efeitos muito enriquecem os discursos. O
problema só aparece quando tentamos substituir a experiência do observador por
palavras, interpretações, quando não por metáforas explicativas, defendendo ainda
a possibilidade de que estas representam algo transcendente ao operar do observador. É, exatamente, nesse momento que a nave da inconsistência aterrissa no campo do saber, tendo em vista a impossibilidade de distinguirmos, na experiência, entre
ilusão e percepção, como mais logo veremos.
Em verdade, se podemos apontar um grave problema, nos mapas cognitivos dos pensamentos moderno e pós-moderno, tal não será outro senão a ocultação
proposital dos mecanismos que os distorcem. Argumenta-se, e pronto! Nega-se!
Afirma-se, e pronto! Contudo, em tais mapas, à exceção da simbolização, materializada na linguagem, enquanto sistema simbólico, são omitidas, ativamente, a escala
e a projeção que os constituem45. Por outras palavras, ao tempo em que se pergunta
pelo ser (objetos, estados, situações), omitem-se, normativamente, as condições
ontológicas segundo as quais o ser existe. Ora, a não ser como uma questão de fé,
de que forma podemos afirmar, ou negar algo, na ausência de um substrato epistemológico, que especifique um critério de validez para tanto?
Vale antecipar, então, que a aplicação da metáfora espacial santosiana,
na discriminação das maneiras de pensar, é feita com um propósito estilístico declarado, e não constitutivo. Estamos atentos para o fato de que todo mapa se trata de
um objeto constituído numa operação de distinção, que o observador faz na experiência, no linguajear. Ademais, temos a cautela de declarar as condições segundo as
quais um mapa existe (a linguagem; o observador; e a observação). Isso, porém,
não implica admitir suposição ontológica a priori alguma, porque, na verdade, a for44
É o que, por sinal, pensa Umberto Eco (ECO, 1998, p. 52), quando adverte que o ser: “mesmo que apareça
como efeito da linguagem, não o é no sentido em que a linguagem livremente o constrói. (...). A linguagem não
constrói o ser ex novo: interroga-o, encontrando sempre e de algum modo algo já dado (mesmo que já ser dado
não signifique já estar acabado e completo)”.
45
Pondera Santos (2003, p. 230) que, na produção de um mapa, “cada tipo de projeção representa sempre um
compromisso. A decisão a sobre o tipo e grau de distorção a privilegiar é condicionada por fatores técnicos,
porém não deixa de ser influenciada pela ideologia do cartógrafo e pelo uso específico a que o mapa se destina”.
28
ma não é mais que uma abstração de coerências e relações operacionais, inscritas
na trama biocultural da existência humana, que emerge no operar do observador,
quando este resolve diferenciá-la como tal.
Por conta da empedernida concepção que temos do homem moderno, estamos tão habituados a fazer referência aos objetos, estados, acontecimentos, com
recurso a mapas, palavras e outros símbolos, que ignoramos nossa condição biológico-cultural. Entretanto, mais logo, veremos que o sistema nervoso humano não
opera com representações do mundo, mesmo tendo quem defenda, textualmente,
que “El lenguaje significa porque sustituye a, y se halla envuelto en, la conducta”
(VIVES ANTÓN, 2011, p. 600). Por óbvio, esse tipo de asserção não se aplica no
domínio do pensar pós-colonialista.
Na realidade, “lo simbólico constituye sólo una dimensión (aunque enormemente relevante) de lo social e de lo proprio semiótico” (NEVES, 2004, p. 146); e,
a rigor, não caracteriza linguagem alguma; pois a simbolização, tanto quanto a representação, trata-se de um recurso linguístico-operacional que tem lugar no espaço
de reflexão do observador; e não na linguagem, enquanto modo de vida. Esta, evidentemente, não constitui matéria-prima manipulável por meio de signos; ao contrário, mesmo que, num primeiro momento, soe estranho, cumpre antecipar, de logo,
que a linguagem anda, sempre, um passo à frente dos signos que a simbolizam.
Note-se que não se trata de nenhum paradoxo; pois a linguagem, efetivamente, antecede à respectiva simbolização. De modo que a ideia de que palavras
recheadas de significados constituem a linguagem é, manifestamente, falsa. As palavras têm a ver com a coordenação do fazer. São condutas, e não coisas que passam de lá para cá. E o que coordena [e] o que constitui os significados delas é o
próprio fazer, não o contrário (MATURANA, 2002, p. 88; MATURANA e VARELA,
1995, p. 251)46,47.
46
“Cada vez que miramos o distinguimos algo, y al verlo lo reconocemos dándole un nombre, o lo manipulamos
de un modo u otro de manera que hace sentido, lo hacemos implicando con nuestra reflexión y con nuestro operar una trama de relaciones y operaciones que hace posible y da sentido a lo distinguido como lo que hemos
distinguido” (MATURANA e PÖRKSEN, 2004, p. 7).
47
A “comunicação, que tampouco pode ser vista como ‘algo dado’, não deve partir dos símbolos, das palavras
ou das mensagens, pois estes não passam de tecnologias, símbolos primários que, em verdade, representam comunicabilidades [Kumunikabilien]. Ao contrário, a comunicação baseia-se numa linguagem puramente conotativa, sendo a representação interna de um organismo que interage com uma representação interna de outro organismo, formando comportamentos estáveis (valores próprios). Segundo essa definição, dois sujeitos interagindo
entre si recursivamente formam modos de comportamentos próprios estáveis que, ao olhar de um terceiro, apare-
29
Estritamente falando, a menos que sejam conceitos formais 48, os signos
operam na linguagem, tão somente, como componentes evocativos 49 de coordenações recursivas de condutas, que acontecem nos acoplamentos estruturais das interações recorrentes50. São essas coordenações de comportamentos que são primárias na linguagem, quando se dão de forma recursiva nalgum acoplamento estrutural
cem como signos, símbolos, palavras, a saber, como comunicabilidades, pois realizou-se aí a biestabilidade.
Uma interação entre dois sujeitos que satisfaça essas condições será, então, efetivamente comunicativa ‘se cada
um dos dois vir-se através dos olhos do outro’, diz Heinz von Foerster na pág. 281 de Conhecimento e consciência” (MARCONDES FILHO, 2006, p. 11).
48
Ao tecer considerações sobre o formalismo matemático, Maturana (2011d, pp. 150-151) sustenta que: “1.
Mathematical formalisms are logical transformations around the conservation of certain initial relations. As such
they add nothing to initial relations that are being conserved although they may offer the vision of new possible
circumstances under which they operate. 2. The operational value of a mathematical formalism lies in the initial
conditions adopted because they are arbitrarily chosen by the observer from his or her vision of the situation that
he or she wants to illuminate or manipulate with it. A mathematical formalism formalizes what the observer
thinks about what he or she thinks that he or she is observing, not that which he or she thinks is happening with
independency of his or her observing it. 3. If one has a mathematical formal procedure that one thinks would
permit one to formally handle the relations of reciprocal modulation between the components (the local) of a
system and the operation of the system as a totality (the global), the value of such mathematical formalism will
depend on what the observer thinks that is happening when he or she says “there are material phenomena which
exhibit global-to-local determination and it is possible to address their reciprocal relationship in rigorous manner
through the mathematics of complexity theory” (Froese & Stewart, 2010, p. 44). 4. Historical correlations between non-intersecting operational (phenomenal) domains cannot be formalized without the participation of the
observer that brings forth the broad meta-domain in which he or she makes such correlations”. (1. Formalismos
matemáticos são transformações lógicas em torno da conservação de certas relações iniciais. Como tais, nada
acrescentam às relações iniciais que estão sendo conservadas, embora possam oferecer a visão de novas circunstâncias possíveis em que atuam. 2. O valor operacional de um formalismo matemático se encontra nas condições
iniciais adotadas pelo observador, que as escolhe arbitrariamente segundo a visão particular que tem da situação
que pretende iluminar ou manipular com elas. Um formalismo matemático formaliza a concepção que o observador faz do que está sendo observado por ele, e não o que se passa com a experiência observada, independentemente de sua observação. 3. Se alguém dispõe de um procedimento formal matemático, que, por hipotese,
permite manejar formalmente relações de modulação recíproca entre componentes (local) de um sistema e do
sitema como um todo (totalidade), o valor de tal formalismo matemático vai depender do que o observador pensa
que está acontecendo quando diz que "há fenômenos materiais que apresentam determinação em nível global e
local e é possível abordar a sua relação recíproca de forma rigorosa através da matemática da teoria da complexidade" (Froese & Stewart, 2010, p. 44). 4. Correlações históricas entre domínios operacionais (fenômenos)
disjuntos [não entrecruzados] não são formalizadas sem a participação do observador, que trae a la mano amplo
metadomínio no qual se produzem tais correlações) (tradução nossa).
49
“No hay palabras superfluas, no hay sinónimos efectivos aunque si los haya evocativos. Las palabras no designan absolutos, entidades en sí o conceptos fijos a menos que sean definiciones formales. De hecho, lo que hace
especial a los formalismos matemáticos es que operan con elementos arbitrarios de significados especificados
por definición que se relacionan según algún sistema también arbitrario de coherencias lógicas. El lenguajear del
vivir cotidiano, sin embargo, como no opera como un sistema formal tiene la riqueza evocativa del fluir de la
multidimensionalidad de las circunstancias del vivir y el convivir. Y es en esa multidimensionalidad de las circunstancia del vivir y el convivir donde están el hacer y el no hacer, la acción y la inacción, los sentires íntimos,
las emociones… y el razonar que pretende justificar de una manera formal lo no formalizable, o que pretende
hacer objetivo universal lo que aún no se acerca a serlo en la interobjetividad local de un acuerdo” (MATURANA, 2011b).
50
Na verdade, a vida ordinária, a vida de todos os dias, é uma refinada coreografia de coordenações comportamentais, que são associadas a descrições de interações recorrentes diferenciadas pelo observador num domínio
de acoplamento estrutural, que as determinam congruentemente conforme a situação vivenciada pelo sistema
(MATURANA e VARELA, 1995, p. 252).
30
ontogênico51, porque chegam primeiro. “Los signos, [en ese sentido, por tanto], son
secundarios, y no primarios para el lenguaje” (Id., op. cit., p. 50).
De modo geral, essas coordenações de condutas refletem o encaixe estrutural da acoplagem, que se dá durante a história particular de encontros entre sistemas interatuantes, especialmente no instante em que o organismo (ser humano)
interage com o meio (entorno) ou com outros organismos52. Quando reiterados encontros acontecem, segundo a unidade sensório-operacional-relacional organismomeio, em havendo congruência interacional, o acoplamento resulta num domínio de
adaptação; por outro lado, se a interação se repete, na forma organismo-organismo,
o resultado do acoplamento estrutural é um domínio consensual, em que as mudanças estruturais recíprocas se correspondem, em sequências entrelaçadas (Ib.,
2009b, p. 244).
Por tudo isso, cremos no fechamento coerente de nossa contabilidade lógica, escriturando a representação na conta que lhe é própria: a do observador; e a
interpretação, por sua vez, no marco transcendental do modus vivendi colonialista;
sem perdermos de vista, naturalmente, a íntima imbricação entre os dois conceitos
em foco, favorecida pela uso instrumental da linguagem simbólica, a que ditas palavras se encontram umbilicalmente associadas. Essa reprogramação conceitual, de
corte pós-colonialista, convém esclarecer, não impede que reconheçamos o legítimo
valor comunicativo de tais noções no plano das conversações cotidianas.
De qualquer forma, para o pensamento pós-colonialista, a metáfora cartográfica, assim como a metáfora da representação simbólica, será sempre útil à compreensão da realidade, desde que se tenha presente que o que cria o fenômeno é o
operar constitutivo do observador, na linguagem, e não a escala do mapa, como
propõe a CSRS. Defendemos que a realidade sempre será uma proposição dentro
de uma explicação. Com essa ressalva, não vemos embaraço algum na suposição
segundo a qual a mudança de escala implica mudança de fenômeno53.
1.6.3 Plano de exposição da proposta
51
Cf. Maturana (2001b, p. 178).
Cf. Maturana e Varela (1995, p. 216).
53
Cf. Santos (1988a, p. 144).
52
31
Pois bem. A proposta de explicação da pluralidade ontológica, existente
no espaço cognitivo, decorrerá do confronto dos dois principais mapas metafísicos
em voga no Ocidente: o das ontologias transcendentais, difundido há mais de duzentos anos pela modernidade patriarcal/matriarcal europeia; e o das ontologias
constitutivas, cujo esboço apareceu há pouco mais de quarenta anos, com a publicação de Biology of Cognition (MATURANA, 1970), inaugurando uma nova teoria
reflexiva do conhecimento, bem como a Era Pós-colonialista do saber.
O plano de exposição desta reflexão foi concebido para ser executado em
quatro etapas; inicialmente, situaremos o lugar do pensamento (2) no espaço psíquico, mediante ligeira revisão da concepção tradicional do conhecimento, assim como
dos mais recentes aportes científicos brindados pela biologia do conhecimento; para,
em seguida, revisitarmos, de forma panorâmica, as estruturas das concepções metafísicas (3), predestinadas a viabilizar a compreensão do processo cognitivo como um
fenômeno biológico, ao tempo em que buscaremos, também, identificar eventuais
relações dessas cosmovisões com certos panos de fundo culturais subjacentes.
Feita essa macrorrevisão metafísica, cuidaremos de examinar, na terceira
etapa, as coerências operacionais das principais maneiras de pensar do Ocidente,
rotuladas neste artigo de “mentalidade colonialista” (3.2) e de “mentalidade póscolonialista” (3.3), para, finalmente, examinar a condição isomórfica do pensamento
(4), procurando correlacionar estruturalmente a dinâmica do Estado Democrático de
Direito com a maneira de pensar pós-colonialista, em contraste com o pensamento
colonialista; momento em que poderemos confirmar ou não a hipótese específica
deste trabalho, conforme a qual a coerência explicativa demanda necessária relação
isomórfica (4.3) entre o sistema conceitual explicativo e a experiência explicável.
1.6.4 Objetivos
O presente estudo é mobilizado por dois objetivos básicos; um de ordem
geral, e outro de natureza específica. O primeiro consiste em despertar as comunidades pensantes, em geral, para o giro epistemológico ocorrido na Teoria do Conhecimento, desde o momento em que o Doutor Humberto Maturana Romesín se
32
deu conta de que a cognição se trata de um fenômeno biológico, insuscetível de representação na dimensão neurofisiológica do organismo humano, em virtude da
clausura que encerra o correspondente sistema nervoso, e o determinismo estrutural
de seu estado (MATURANA, 1970).
O segundo objetivo, de caráter específico, traduz a necessidade de levarmos a cabo um esclarecimento de ordem geral, buscando conscientizar o observador científico, ou não, de que, na atualidade, em função das próprias descobertas
a que acabamos de nos reportar, não existe sistema conceitual apto a explicar tudo,
com indiferença às condições ontológicas do objeto explicável. Sustentamos que a
mínima desatenção a essa condição epistemológica, de ordem isomórfica54, quando
intentamos conhecer algo, pode desencadear a produção inesperada de aberrações
frankensteinianas.
1.6.5 Justificativa
Em que pese a impactante repercussão da epistemologia unitária nos
principais centros de produção científica e filosófica do Mundo, a hegemonia acadêmica do patriarcalismo europeu e o predomínio dessa cultura colonialista nas redes
oficiais de educação, na grande mídia, no mercado editorial e, sobretudo, nas demais tradicionais instituições econômicas, sociais e religiosas têm retardado, sem
dúvida, a difusão e consequente aceitação da abordagem enativa55, como alternativa às modernas e pós-modernas ontologias transcendentais.
Nesse contexto, o presente estudo se apresenta como um valioso veículo
de promoção do saber, na proporção em que assume a posição de necessário e
oportuno contributo à expansão do conhecimento humano; e, particularmente, para
constituição e conservação de uma nova maneira de pensar a realidade; de um novo
modo de viver e conviver, com um ser humano respeitando o outro, como legítimo
outro na coexistência. Com efeito, como esclarece Humberto Maturana, a opção por
certo caminho explicativo, quando desejamos explicar algo, revela muito mais que
54
55
Cf. Maturana (2009b, p. 242).
Cf. Froese e Stewart (2012). Vide tb. nota 24.
33
uma simples preferência epistemológica, porque aponta, também, o modo de convivência em que o observador se encontra imerso.
1.6.6 Desenho e meios de pesquisa
Por fim, cumpre assinalar que este estudo será pautado num desenho,
predominantemente, teórico, diacrônico e comparativo. Será teórico no sentido de
que a base de sua formulação partirá de pesquisa bibliográfica centrada, fundamentalmente, na obra do biólogo Humberto Maturana Romesín e coautores, sem prejuízo de consulta a outras fontes científicas e filosóficas suplementares, que serão invocadas ao longo da exposição; também consultaremos revistas especializadas,
bases de dados online etc.; todo material pesquisado será examinado tendo em conta a relevância da fonte e a evolução do fenômeno analisado; no que reside, do
mesmo modo, em particular, o caráter diacrônico do desenho eleito.
Não temos a pretensão de inovar no domínio temático pesquisado, ainda
que seja possível aprofundar a investigação em alguns espaços cognitivos inexplorados, com suporte nas ontologias constitutivas emergentes, tal como o da fenomenologia jurídica. Mesmo assim, não vislumbramos a necessidade de reformulação
das propostas ontológicas56 existentes, muito menos de invenção de um sistema
conceitual que os faça frente. Por tudo isso, a reflexão que propomos, ao derredor
do pensamento pós-colonialista, emergirá do confronto conceitual entre a objetividade constituída, validada pelas ontologias constitutivas, e a objetividade transcendental, que informa o pensamento hegemônico ocidental. Daí a nossa opção, nesse particular, pela análise comparativa.
Vale ressalvar, porém, que, numa abordagem desta espécie, a descrição
de pontos fulcrais da realidade cognitiva parece inevitável, sendo o mesmo válido
para a dimensão quantitativa. A própria formulação das hipóteses explicativas reclama a descrição preliminar do fenômeno a ser explicado 57. Não é possível deixar
56
Neste estudo utilizamos o termo ontologia no sentido maturaniano, isto é, para se reportar a um domínio em
que fazemos referência às condições de produção daquilo que conhecemos ou falamos (MATURANA, 2001b, p.
42-43).
57
“De acuerdo a Maturana (1987 y 1990), una explicación científica consiste en la proposición de un mecanismo o proceso generativo que, si se le deja operar, dará origen en el dominio de las experiencias del observador a
la experiencia que él o ella quiere explicar en una manera que satisface lo que Maturana llama el criterio de vali-
34
de descrever, quando se propõe um modelo alternativo de representação58 do conhecimento, tampouco de quantificar, quando nessa proposta se encontra explícito o
redimensionamento estrutural do objeto pesquisado: a pluralidade do pensamento
humano.
Em sendo uma seleção, isto é, uma distinção efetivada no operar do observador, na linguagem, o modelo de representação que ora propomos não é mais
do que uma possibilidade dentre outras tantas. Definitivamente, não se encaixa no
plano deste estudo a pretensão de desbancar qualquer teoria doutrinária ou reflexiva, com o propósito de abrir caminho para um novo paradigma, supostamente melhor, superior ou mais avançado, mesmo a despeito da existência de uma copiosidade de propostas explicativas visivelmente desconexas e contraditórias, que não nos
conduz a lugar nenhum.
2 O lugar do pensamento
2.1 Configuração
Culturalmente, compartilhamos a certeza de que o lugar do pensamento
humano é o cérebro. Em princípio, alguém que se atreva desafiar essa “evidência”
terá sua sanidade mental questionada —por afronta à realidade—. É o que decorre
da crença na concepção especulativa segundo a qual o ser humano constitui uma
totalidade fisiológica unidimensional, aberta à instrução do entorno, e que opera codación de las explicaciones científicas. Este criterio de validación consiste en la satisfacción de las cuatro condiciones siguientes:
i. Descripción de lo que un observador tiene que hacer para vivir la experiencia a explicar.
ii. Proposición de un mecanismo generativo que si se le deja operar genera en el observador la experiencia a
explicar.
iii. Deducción de todas las coherencias operacionales implicadas en (ii), o de otras experiencias posibles, y de lo
que el observador tiene que hacer para vivirlas.
iv. Realización de lo deducido en (iii), y si pasa, entonces, el punto (ii), se convierte en una explicación científica.
La aplicación del criterio de validación de las explicaciones científicas tiene dos consecuencias básicas:
1. La experiencia del fenómeno a ser experienciado y el mecanismo generativo pertenecen a dos dominios fenoménicos no intersectables; y
2. Las explicaciones científicas no constituyen una reducción fenoménica y son constitutivamente no reduccionistas.” (RUIZ, 1997).
58
A representação é ato do observador, que pode ter acesso simultâneo às dinâmicas interna e externa do organismo. Enquanto uma totalidade orgânica viva, porém, o organismo humano não distingue, no seu operar, entre
ilusão e percepção, porque pressupõe sempre válida sua atuação no meio ambiente.
35
mo um centro de potências ou capacidades in fieri. Não obstante, desde o atual estado da arte, nos inclinamos a pensar que essa cristalizada cogitação não encerra o
debate, por não corresponder à única explicação, tampouco à mais adequada descrição sobre a arquitetura dinâmica do fenômeno humano.
Ainda que por muito tempo a ciência tenha trabalhado com a hipótese de
que o ser humano constitui um sistema vivente aberto, em sua totalidade, a partir do
momento em que a Biologia do Conhecimento demonstrou que todo ser vivo, inclusive o da linhagem primata hominídea, configura, na verdade, um sistema autopoiético, determinado em seu estado (MATURANA, 1970), a consistência dos substratos
epistemológicos anteriores, a respeito da configuração do humano, desvanece-se;
pois nada do que foi dito antes, a respeito da humanidade, poderá ser validado com
base no novo critério de aceitabilidade científico.
No fundo, a distinção da autopoiesis, no quadro metafísico das ontologias
constitutivas, opera uma genuína revolução científica, na medida em que desencadeia um giro epistemológico nos fundamentos do saber produzido e acumulado pela
humanidade (vide 4.2). Em vista disso, mesmo a contragosto da tradição cognitiva59,
ousamos sustentar que, em sendo autopoiético o organismo humano, seu estudo,
como uma unidade sistêmica suscetível à instrução do meio (representação), tornouse impraticável, porque, como tal, o organismo humano é, também, fechado, no que
toca à sua organização (identidade), e determinado estruturalmente, cuja condição o
torna seletivo em relação ao intercâmbio de energia e matéria com o meio envolvente (entorno).
Na verdade, a relação operacional da unidade dinâmica organismonicho60, para o ser humano, equivale à importância que a carne tem para a unha.
Essa imbricação leva Maturana (1970) a definir os sistema vivos (humanos ou não),
59
Por uma questão de lealdade intelectual, convém estimular o leitor a examinar os violentos ataques desencadeados por Morris Berman (BERMAN, 1989) e Jim Birch (BIRCH, 1991a) ao núcleo do sistema conceitual proposto por Humberto Maturana Romesín. A quem desejar conhecer as elegantes réplicas aos sobreditos ataques,
sugerimos consultar Maturana (1991b; 1991c; e 2009b, pp. 255-278). Froese e Stewart (2010) também lançam
uma crítica pontual ao conceito de autopoiese, e foram excepcionalmente prestigiados por el Doctor com uma
contundente resposta reflexiva (MATURANA, 2011d).
60
Maturana (Op. cit.), define nicho “as that part of the medium in which they encounter all the conditions under
which their living is realized and conserved. […]. It is the organism-niche dynamic unity which is conserved
along the individual living of an organism, and along the history of a lineage” (como aquela parte do meio em
que se encontram todas as condições sob as quais a vida se realiza e é conservada. [...]. É a unidade dinâmica
organismo-nicho que se conserva durante a vida de um organismo, e ao longo da história de uma linhagem).
36
como unidades de interação61, tendo em conta que o ser humano não pode ser
compreendido senão como parte do meio em que vive e com o qual interage; o que,
também, ocorre em relação ao nicho62, cuja determinação depende da unidade de
interação que o especifica.
Isso indica que, operacionalmente, a totalidade do humano não se reduz
a uma única dimensão: a neurofisiológica; na verdade, a humanidade do animal
Homo sapiens-sapiens deriva de um jeito de ser social, uma vez que somos humanos, somente, de acordo com as maneiras de se tornar humano nas sociedades a
que pertencemos. O ser humano é constitutivamente social (MATURANA, 2009a, p.
15). Sendo adequada essa abstração, então, será possível afirmar que, a despeito
de sua estrutura material, o ser humano encarna, também, uma dinâmica sensóriorelacional, que o caracteriza como tal na práxis do viver63 e conviver cotidiana.
Visto por esse prisma, o pensamento humano já não será identificado
como uma atividade, exclusivamente, cerebral; mesmo que a dinâmica fisiológica do
organismo o torne possível, ao impulsionar o processo de correlações internas do
sistema nervoso. De qualquer maneira, o fato é que o pensamento somente aparece
e faz sentido na correlativa dinâmica relacional (externa) humana, em que emerge,
como fenômeno psíquico, nas operações de distinção64, levadas a efeito pelo observador, na linguagem65: o lugar em que se expressa a sociabilidade humana.
“Living systems are units of interactions; they exist in an ambience. From a purely biological point of view
they cannot be understood independently of that part of the ambience with which they interact: the niche; nor can
the niche be defined independently of the living system that specifies it.”
62
Essa noção é formulada por Maturana (2009b, pp. 118-119) para indicar a parte do ambiente que o observador
concebe em interação com a unidade operacional dinâmica composta. O nicho, somado às demais distinções que
não participam da estrutura da unidade, levadas a cabo pelo observador no seu domínio de existência, forma o
meio. O nicho é, portanto, uma parte dinâmica do meio. O entorno seria tudo o que o observador distingue ao
redor da unidade.
63
Maturana usa a expressão “praxis de vivir” ou vida cotidiana. O termo “forma de vida” remete à filosofia
wittgensteiniana, aqui utilizado no mesmo sentido.
64
Registra Luhmann (1998, p. 2) que: “De acuerdo con la terminología de Spencer Brown [SPENCERBROWN, 1979], podemos decir que cuando una operación es una indicación distintiva se convierte en una observación. Las observaciones indican uno de los lados de una distinción, presuponiendo que hay otro”. Cf. tb.
Luhmann (2005a; 2007).
65
“An observer claims that language, or better, languaging, is taking place when he or she observers a particular
kind of flow (that I shall describe below) in the interactions and co-ordinations of actions between human beings.
As such, language is a biological phenomenon because it results from the operations of human beings as living
systems, but it takes place in the domain of the co-ordinations of actions of the participants, and not in their
physiology or neurophysiology. Languaging and physiology take place in different and not intersecting phenomenal domains. Or, in other words, language as a special kind of operation in co-ordinations of actions requires the
neurophysiology of the participants, but it is not a neurophysiological phenomenon” (MATURANA, 1988, p.
45).
61
37
A concepção do humano, nesses termos, na forma de uma configuração
estrutural dinâmica de ordem bidimensional: fisiológica e relacional, possibilita ao
observador separar bem os fatos. Facilita, por exemplo, a percepção de que, na dinâmica interna do organismo vivo, ocorrem —tão somente— atividades e correlações neuronais, que são abstraídas pelo observador como correlações sensóriomotoras, a partir do espaço psíquico66, encravado na dinâmica relacional humana,
em que habitam conceitos, palavras, categorias, intenções, fins, desejos ou preferências67.
Por esse motivo, aliado a outros que virão ao longo desta explanação,
sustentamos que é na unidade dinâmica sensório-operacional-relacional do sistema
autopoiético molecular humano (organismo-nicho), especificada por configurações
de fazeres, sentires e emoções68, que o pensamento descansa e tem lugar, bem
como de onde emerge, no operar distintivo do observador, no fluxo do linguajear entrelaçado com o emocionear (conversações); manifestando-se de várias maneiras,
na forma de espaços psíquicos, domínios linguísticos, ou de proposições bem delimitadas, a depender do critério de quem discursa ou escuta o discurso69.
2.2 Panorama biocultural
A cultura, que consubstancia uma rede fechada de coordenações consensuais recursivas de fazeres e emoções, também joga um papel decisivo na modulação das diversas cosmovisões mundanas. Basta ver, por exemplo, que é próprio
da cultura colonialista ocidental valorizar a perenidade da matéria, bem como a racionalidade do viver humano; ao passo que, na cultura oriental, a vida é tida como
66
Maturana (2009a, p. 54) explica que se vale do termo “espaço psíquico” para não deixar dúvida de que experiências mentais, espirituais, psíquicas também habitam a dinâmica relacional dos seres humanos. Todo ser vivo
existe en un espacio psíquico. [...]. Sin embargo, al decir que un ser vivo existe en un espacio psíquico, estoy
diciendo también que las experiencias que llamamos mentales, o psíquicas o espirituales, surgen en nosotros
como distinciones reflexivas en lenguaje de nuestro involucramiento emocional con diferentes aspectos de nuestra congruencia dinámica biológica con nuestro dominio de existencia” (Op. cit., p. 61).
67
Cf. Maturana (2009b, p. 206). Vide tb. Von Foerster (1984).
68
Cf. Maturana (2012).
69
Convém antecipar, a título de esclarecimento, que, neste estudo, as várias maneiras de pensar não são formas
diferentes de interpretar a mesma realidade, porque cada espaço de pensamento constitui um domínio particular
de realidade, o que sugere, portanto, a existência de um multiverso de realidades distintas entre si. Cf. Maturana
(2001b, p. 38).
38
uma ilusão70. Essa circunstância, efetivamente, reforça a ideia de que toda maneira
de pensar se encontra imbricada numa rede fechada de conversações que a determina, enquanto nela o ser humano habitar.
Não é por outra razão que falamos em pensamento mítico, focado numa
rede de conversações, tecida com lendas e fábulas, supostamente ingênuas, ou em
pensamento racional, apoiado numa suposta racionalidade objetiva e iniludível. É
fácil perceber que, no consenso anterior à Idade Média, houvera predomínio de uma
mentalidade mitológica, à qual se seguiu, historicamente, períodos de trevas, que,
por sua vez, desaparecem com o império das luzes, forjado pela contemporaneidade. Esse devenir histórico sinaliza, de fato, com todas as letras, a existência de certos padrões bioculturais de pensamento, comumente denominados paradigmas71,
epistemes72 ou eras psíquicas73.
Tudo isso, realmente, é estranho e chocante, embora não implique novidade alguma, como dentro em pouco se verá. Por isso, convém, imediatamente, reafirmar, mais uma vez: o pensamento não habita a cabeça do ser humano74, como
costumeiramente difunde a tradição cognitiva ocidental, mas, sim, o seu respectivo
espaço relacional ou psíquico75; ademais, não se trata de uma coisa em si, dada e
acabada, de uma realidade última, de uma essência; algo a que se possa fazer referência, independentemente da pergunta pela biologia do observador, pois sua existência aparece, sempre, no operar deste na linguagem.
Na realidade, para o pensamento pós-colonialista, tudo o que sucede na
vida humana, só aparece no operar do observador, que não é senão um ser humano76 configurado, biologicamente, como uma unidade vivente interacional. Condição
70
Cf. Gómez (2006) e Maturana (1991c).
Cf. Morin (1999).
72
Cf. Foucault (2007).
73
Cf. Maturana et al (2004 e 2008).
74
Segundo Maturana e Varela (1995, p. 252) “como fenômeno do linguajar na rede de acoplamento social e
71
linguístico, o mental não é algo que está dentro de meu crânio, não é um fluido de meu cérebro: a consciência e o mental pertencem ao domínio do acoplamento social, e é neste que se dá sua dinâmica. É também
nesse domínio que o mental e a consciência operam como seletores do caminho que segue nossa deriva
estrutural ontogênica. Além disso, já que pertencemos a um domínio de acoplamento humano, podemos
tratar a nós mesmos como fontes de interações linguísticas seletoras de nosso vir-a-ser”.
75
Como explica Maturana (2001b, p. 129): “... pensar, andar, falar, ter uma experiência espiritual, e assim por
diante, são todos fenômenos do mesmo tipo como operações da dinâmica interna do organismo (incluindo o
sistema nervoso), mas são todos fenômenos de diferentes tipos no domínio relacional do organismo no qual
surgem pelas distinções do observador”.
76
O observador é sempre um ser humano e nasce como tal quando este faz uma distinção reflexiva do seu próprio operar. O observador surge, então, da reflexão do ser humano sobre si mesmo na linguagem, quando este
toma consciência do seu operar e, consequentemente, da sua própria existência. Por isso, o observador não é um
39
que amplia a possibilidade de vermos ou escutarmos que, efetivamente, nada existe
antes do observador77, e tudo o que existe, existe como fenômeno, resultante de
suas operações de distinção no linguajear, pois “todo lo dicho es dicho por un observador (ser humano) a otro observador que puede ser él o ella misma” (DÁVILA e
MATURANA, 2008, p. 136).
Outra sorte não estaria reservada ao pensamento, enquanto categoria
associada ao domínio psíquico humano, haja vista que, forçosamente, “el pensar
corresponde a una distinción que hace un observador del operar de un sistema nervioso en relación con la generación de conductas que tienen sentido en el espacio
relacional del organismo a que pertenece” (MATURANA, 2009b, pp. 205-206). Essa
conclusão parece reveladora, pois mostra que a existência de espaços triviais de
pensamento não pode ser reivindicada, senão com dificuldades, dada a insondável
variação operacional do espaço psíquico78.
Vale reiterar, contudo, que essa não é a explicação que o pensamento
hegemônico tem para a existência de entes, estados ou situações. Como já o vimos,
a ideia predominante, no domínio colonialista, é a de que a validade de uma afirmação, ou negação, depende de uma referência adequada a um ente externo (objeto),
a quem argumenta (observador); fenômeno que se opera por intermédio de procedimentos que, supostamente, captam tal realidade, ou pela via de “una interpretación de esa realidad subyacente como una aproximación conceptual a su en sí” (DÁVILA e MATURANA, 2008, p. 115).
Destarte, para a tradição, o pensamento ocorre na dinâmica interna do
organismo, na forma de um fato psicológico, e aparece como um objeto no mundo,
independentemente do operar do observador, ao qual este, de algum modo, faz referência, no intuito de validar objetivamente seus argumentos. Com efeito, por essa via
explicativa, “el observador en su sentir distingue lo que distingue como si existiese
con independencia de su operar” (MATURANA, 2011c). Entretanto, para falar de
algo separado de seu operar, o observador pode fazê-lo, tão somente, se lançar
ente primário ou de “primeira ordem”, um ente em si. Alguns autores, como Luhmann (2007) denominam-no de
“observador de segunda ordem”, o que ajuda enfatizar essa circunstância. A posição do observador na escala de
ordenação depende, todavia, do critério em que se funda a classificação.
77
Sustenta Von Foerster (1984) que “the discovery we all have to make for ourselves is the following postulate:
the environment as we perceive it is our invention” (a descoberta de que todos nós temos de fazer por nós mesmos implica o seguinte postulado: o meio ambiente, como o percebemos, é uma invenção nossa).
78
Não ignoramos que para Wittgenstein apud Vives Antón (2011, p. 632), “pensar es esencialmente la actividad
de operar con signos”. No entanto, vide nota 47.
40
mão de algum suposto ontológico, tal como, por exemplo, a noção de realidade objetiva79 (Id., loc. cit.).
O caminho eleito por este estudo, leva-nos, porém, a outro destino. Não
por mero capricho —registre-se—, mas por conta da diferente concepção que o
pensamento pós-colonialista tem do ser humano. Uma coisa é pensar, partindo-se
da premissa segundo a qual o homem se encerra numa estrutura neurofisiológica,
aberta às contingências do meio, geneticamente predeterminada, como o fazem os
colonialistas, influenciados pela tradição darwiniana; outra é refletir, concebendo-se
o ser humano como uma unidade biocultural dinâmica, autopoiética, interacional; e,
determinada por seu estado, consoante propõe a biologia cognitiva maturaniana.
É verdade que —na experiência—, as duas abordagens podem mesmo,
episodicamente, tangenciar algum aspecto do real, todavia, jamais se identificarão
estruturalmente. Pela via epistemológica experimental, o pensamento só encontra
chão e espaço na co-deriva80 estrutural da linguagem, como consequência do operar
do observador, que “al preguntarse cómo distingue lo que distingue se da cuenta de
que es el operar de la operación de distinción lo que constituye y especifica lo distinguido como parte de su mundo”81 (Ibid., loc. cit.). Sendo a linguagem, também, um
fenômeno biológico externo ao organismo82, a convicção de que as ideias residem
no cérebro humano só terá lugar no espaço das ontologias transcendentais.
79
“De hecho, aquí se trata de una situación circular que suspende la clásica separación entre el observador y lo
observado. Mi interés no apunta a la pregunta si realmente existe un mundo independiente del observador conocible para mí o para otro, sino que – sin ninguna hipótesis ontológica – utilizo al observador como punto de
partida de mi propio pensar. Esta decisión se basa exclusivamente en mi curiosidad, en un interés por las preguntas vinculadas; no tengo para ella ni razón superior, ni fundamento ontológico, ni justificación universalmente válida. El observador observa, ve algo, y afirma o niega su existencia y hace lo que hace. Lo que existe
independientemente de él es necesariamente una cuestión de fe, no del conocimiento seguro, porque siempre
tiene que haber alguien que ve algo.” (MATURANA e PÖRKSEN, 2004, p. 18).
80
Em geral, uma deriva corresponde a uma trajetória de mudanças estruturais do organismo, enquanto este flui,
historicamente, no seu viver e conviver, conservando de modo congruente, sua organização e adaptação no meio
que o contém. Essas mudanças estruturais dinâmicas, que se dão na medida em que o organismo interage com o
meio, são abstraídas e caracterizadas pelo observador como derivas (deriva filogenética; ontogênica; natural,
estrutural). Nesse sentido, a linguagem aparece como uma dessas co-derivas, pois o organismo, ao deslizar-se
nas conversações, acaba sofrendo mudanças estruturais ontogênicas e desencadeando modificações no meio (Cf.
MATURANA e VARELA, 1995, p. 129 e ss.)
81
“Cada vez que miramos o distinguimos algo, y al verlo lo reconocemos dándole un nombre, o lo manipulamos
de un modo u otro de manera que hace sentido, lo hacemos implicando con nuestra reflexión y con nuestro operar una trama de relaciones y operaciones que hace posible y da sentido a lo distinguido como lo que hemos
distinguido. […]”. (MATURANA e PÖRKSEN, 2004, p. 7).
82
Segundo Maturana (2003b, p. 201): “El lenguaje, y por lo tanto todos los fenómenos que surgen en él, no
ocurre en el cerebro, no ocurre en el interior del organismo, sino en la dinámica de coordinaciones conductuales
consensuales de los organismos que participan de él”.
41
3 Maneiras de pensamento
3.1 Considerações introdutórias
Nesse passo, deparamo-nos, então, com duas maneiras básicas e distintas de abordar a realidade: uma de natureza transcendental83, que reivindica a separação de sujeito e objeto, configurando este como uma essência do mundo a ser
desvendada por aquele; e, outra de caráter constitutivo, que, grosso modo, postula a
constituição operacional do objeto pelo sujeito (observador), num processo de distinção fenomênica na experiência. Nesta via explicativa, a abordagem enativa84 dá o
tom no processo de coordenação do real, enquanto, naquela, o enfoque descritivo
da realidade transcendental predomina.
Na verdade, essa bifurcação cognitiva corresponde, expressivamente, a
duas concepções ontológicas do conhecimento: a “metafísica transcendental” (tradicional)85 e a “metafísica constitutiva” (enativa)86, cujos aportes simbolizam muito
mais que meras estruturas de pensamento, dado que transbordam o domínio da especulação científica ou filosófica para afetar o modo de viver e conviver do próprio
observador. De fato, quem trilha por uma das duas vias metafísicas87, não se limita a
eleger um enfoque explicativo do real, porque, também, implícita ou explicitamente,
acaba revelando o respectivo modus vivendi no espaço relacional.
A opção pela via ontológica transcendental, realmente, é sinal induvidoso
da presença do patriarcalismo autoritário no fenótipo ontogênico88 do observador,
porque implica, forçosamente, a pretensão de obrigar, de submeter ou negar o outro
na coexistência89. Quem marcha nessa linha, ainda que, ativamente ou não, oculte a
83
Para Maturana, são transcendentais as teorias do conhecimento e conceitos cotidianos que postulam a existência de um mundo —coisas e objetos; processos e relações— independente do operar do observador (MATURANA e PÖRKSEN, 2004, p. 12; cf. tb. MATURANA, 2011c, p. 15; e 2003c).
84
Vide nota 55.
85
“Aqui, o problema da existência é resolvido, ou a pergunta pela existência é resolvida dizendo: os seres, os
objetos, as ideias, meus diferentes modos de aceitar isto ou aquilo existem independentemente do que faço como
observador. A existência é independente do observador” (MATURANA, 2001b, p. 32).
86
“Neste outro caminho explicativo, o da objetividade entre parênteses, a situação é diferente. É diferente porque
não posso pretender um acesso privilegiado no explicar, pois sei que, como ser humano, como ser vivo, não
posso distinguir entre ilusão e percepção. Desse modo, qualquer afirmação minha é válida no contexto das coerências que a constituem como valida” (Op. cit., p. 36).
87
Cf. Maturana e Pörksen (2004, p. 12).
88
Faz referência ao modo de conviver do ser humano.
89
Cf. Maturana (1988).
42
pretensão, tentará vencer o outro ou, então, convencê-lo; o que dá no mesmo; pois
quem busca convencer, deseja, no fundo, vencer alguém, que, eventualmente, consigo esteja no conversar90; ou si a mesmo, quando procura convencer-se de algo. A
conotação colonialista da objetividade transcendental reside precisamente nesse
ponto: no fato de que os argumentos, que lançamos para justificar nossas ações ou
omissões, cobram obediência de quem os ouve.
No domínio da metafísica constitutiva, no qual perguntamos pelas condições do que falamos ou escutamos, não há apelo a exigências objetivistas secas,
tampouco subjetivistas; nele a objetividade é posta entre parênteses, e não há espaço senão para conversas sem qualquer exigência; sendo a aceitação do outro (ser
humano), como legitimo outro, na convivência, uma condição existencial do ser humano. Quem conversa, etimologicamente, convive com o outro, dá voltas com o outro91, sempre respeitando as diferenças, mesmo quando delas não se agrade.
No fundo, pensando bem, o que essas observações estão a indicar, de
algum modo, é que há inevitável imbricação dessas estruturas metafísicas com certas mentalidades culturais92. De mais específico, com duas: uma que se destaca por
seu dístico normativo-potestativo, subordinando a validade do saber, quando se sabe, a uma realidade objetiva, independente do observador; e outra que propõe a
emergência de uma espontânea epistemologia unitária e, radicalmente, humanista,
focada na confiança, na colaboração, no mútuo respeito e na autonomia do sujeito,
que é alçado à condição de ente constitutivo do conhecimento.
Deste ângulo, já se torna possível avistar a razão por que a metafísica
transcendental forma um encaixe perfeito com as pautas de conduta opressoras,
especialmente com a cultura patriarcal/matriarcal europeia, que ainda sufoca a humanidade serviente. Efetivamente, as ontologias transcendentais tendem a exorbitar
a configuração de meras estruturas de pensamento, para, em seu conjunto, converterem-se numa poderosa arma, que, além de provocar epistemicídios93, tem sido
90
Vide nota 5.
Cf. Maturana (2009a, p. 20).
92
Há quem prefira “representação sociocultural” à expressão “mentalidade cultural”. A diferença parece estar,
também, no enfoque eleito pelo observador. Sobre o conceito de cultura, cf. Maturana e Verden-Zöller (2003c, p.
30 e ss.).
93
Sobre a noção de epistemícídio, cf. Santos (2003, pp. 276-277).
91
43
utilizada, ao longo dos tempos, implícita ou explicitamente, para dominar, subjugar,
humilhar, quando não exterminar seres humanos94.
Assim o fizeram os povos colonizadores, abertamente, no passado, apropriando-se de territórios; e, pela via explicativa ontológico-transcendental, continuam
fazendo, dissimuladamente, no presente, impondo aos povos, em geral, explicações,
teóricas ou não, fundadas numa suposta realidade a que somente os próprios (dominadores) têm acesso privilegiado95. E, essa forma de colonização, dando-se de
modo inconsciente, como se dá, efetivamente, será considerada ainda mais bruta e
cruel, na medida em que supõe o ser humano como ente manipulável discursivamente96.
Essa simbiose que a metafísica tradicional mantém com a cultura patriarcal/matriarcal europeia, assim como com a potestade colonizadora dos centros dominantes que a gestaram e difundem, sugere a acomodação das ontologias transcendentais numa rubrica geral, que, neste paper, denominaremos de mentalidade
colonialista. Por seu vez, a maneira cultural de pensar imbricada na metafísica constitutiva, cuja estrutura se assenta, fundamentalmente, na autonomia do ser humano,
na ética e na democracia neomatríztica97, será aqui mapeada, sob a epígrafe mentalidade pós-colonialista, com a função de sinalizar esse novo marco epistemológico
no modo de pensar humano.
3.2 Mentalidade colonialista
3.2.1 Estrutura psíquica
Na linha explicativa concebida pela mentalidade colonialista, o observador, consciente ou inconscientemente, não se dá conta de que suas proposições
são, sempre, resultado de uma escolha, de uma preferência. Afirma-se, e pronto!
94
A notoriedade dos fatos históricos dispensa comentários.
É o caso dos Estados Unidos da América, que, a pretexto de promover a máxima segurança de seus cidadãos
contra o terrorismo, viola a intimidade das pessoas, sobretudo de estrangeiros, bisbilhotando contatos telefônicos
e bancos de dados online, onde possa alcançá-los (A TARDE [OBAMA...], 2013, p. B5).
96
Com esta visão parece compartilhar o filósofo espanhol R. Panikkar (2011, p. 11) para quem: “La esencia del
colonialismo no es la explotación sino el monoculturalismo, la creencia de que una sola cultura puede marcar la
pauta para solucionar los problemas humanos”.
97
Cf. Maturana e Verden-Zöller (2003c, p. 57).
95
44
Nega-se, e pronto! O que menos importa é o que o outro pensa a respeito de seus
argumentos, ainda que, ativamente ou não, tente-se ocultar essa circunstância, com
auxílio de requintados expedientes retóricos. Um dos ensaios publicados pelo filósofo alemão Schopenhauer (1997), vertido para o português sob o título: “Como vencer
um debate sem precisar ter razão: em 38 estratagemas”, corresponde bem à tônica
discursiva dessa maneira de pensar.
Nessa perspectiva, a linguagem opera como um poderoso instrumento
simbólico de ação, a serviço de quem a manipula com habilidade e argúcia, mesmo
mascarando a racionalidade do argumento, que emergiria da especial aptidão do
observador poder fazer referência a uma realidade absoluta, independente de seu
operar98. Por isso, quando alguém pretende obrigar o outro, sem recorrer à violência
física, a título de convencimento, alega que seu argumento é racional ou objetivo,
porque faz referência ao real, a alguma estrutura que se encontra no mundo, independentemente de sua subjetividade.
Nessa deriva cultural, várias consequências são arroladas, a começar pela suposição, tida na conta de trivialidade, de que o homem é um animal racional.
Assim, do mesmo modo que elege a razão, como uma propriedade cerebral constitutiva da realidade; e faz uso de suas tecnologias de conservação, para desidratar gêneros alimentícios, a mentalidade colonialista, com o propósito de atender às suas
conveniências discursivas, também resolveu formular a noção de “ser humano desidratado”, conservando nele somente a racionalidade, em detrimento das emoções,
que especificam e configuram sua dinâmica relacional.
Para a modernidade colonialista, efetivamente, a ideia é que move o ser
humano, enquanto as emoções não são senão uma indesejável fonte de instabilidade e arbítrio, motivo por que são descartadas, no processo de produção do conhecimento. Eis mais uma relevante consequência, derivada dessa cosmovisão racionalista, que, também, estimula o progresso da humanidade, com base na competência
pessoal, cuja lógica consiste em pôr um ente humano contra outro, de modo a acarretar vencedores e derrotados.
Outro importante efeito decorrente dessa miopia racionalista diz respeito
ao fato de a modernidade ter gerado um estereótipo humano, psiquicamente, “irres98
O professor Goffredo Telles Junior (1995, p. 291), da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,
chega a afirmar textualmente que “Somente a realidade é absoluta. A verdade é sempre relativa”. Cf. tb. Santos
(2007b, p. 5).
45
ponsável” por suas ações ou omissões. É, realmente, curioso, mas o que fala esse
animal racional moderno, por alguma razão, não lhe pertence; não traduz uma experiência particular sua, pois a validade de seu argumento assenta-se numa suposta
realidade objetiva99 —que lhe é externa e independente—. Por esse prisma, quem
argumenta tem apenas o ônus de associar a referência postulada ao objeto a que se
refere. Quando a referência é rotulada de irracional, ou não é aceita, como uma
questão de fé, entra em cena a potestade do observador, para, de alguma maneira,
impor o argumento ou, ao seu alvedrio, tolerar a recusa.
Acontece que eventual tolerância às divergências, no espaço psíquico colonialista, não é sinal de bom humor. Em tal domínio, muito se fala em “meio termo”,
“compaixão”, “solidariedade”; estes termos, entretanto, não significam mais que um
modo estratégico de embromar o outro, até que surja uma oportunidade de derrotálo. Complacência não implica, necessariamente, aceitação do outro, como legítimo
outro, na convivência. “A Tolerância é uma negação postergada. Tolerar é dizer que
o outro está equivocado, e deixá-lo estar por um tempo” (MATURANA, 2002, p. 50).
O que nos faz atinar, por conseguinte, que, somente tolera, quem tem o poder de
fazê-lo, segundo as circunstâncias.
O modelo de pensamento dominante, em geral, escora-se em uma cosmovisão transcendental da realidade; e seu viés colonialista nasce dessa pretensão
autoritária de ter-lhe acesso privilegiado. Por isso, o padrão moderno do pensar cobra obediência ao saber, e enxerga o pensamento divergente como ilegítimo, na
convivência social. Nesse tipo de pintura paradigmática, a verdade não reluz por
causa de sua congruência com as coerências e relações operacionais do domínio
cognitivo de que emerge, mas pelo fato de estar ancorada numa fonte de poder100. E
isto pode ser ilustrado com a paráfrase de uma célebre máxima popular: sabe quem
pode, obedece quem tem juízo!101
99
Em “Del ser al hacer”, Bernard Pörksen (MATURANA; PÖRKSEN, 2004, p. 22) se reporta a uma declaração
de Heinz von Foerster, na qual este sustenta que a “objetividade es la alucinación de poder hacer observaciones
sin observador”. [...]; de ahí su popularidad".
100
Para quem acha que o reiterado uso leva ao desuso, pode surpreender-se com a reflexão do jornalista M.
Naim (2011), de El País, a respeito de vetustas práticas colonialistas praticadas por europeus e estadunidenses
em pleno Século XXI. O que mostra que a mentalidade autoritária inaugurada pelo Norte imperial por volta do
Século XVI da Era Cristã, resiste com todo vigor.
101
“En cambio, esclarece Maturana (2003c, p. 57), desde el aspecto patriarcal del pensar objetivamente
que surge con la democracia [griega], es la autoridad lo que manda y determina, y los objetos y procesos
distinguidos son lo que ellos son desde sí mismos, y constituyen autoridad para todo lo que tenga que ver
con ellos desde el operar de sus propiedades y características intrínsecas”.
46
Para Maturana (2009b, p. 107), é, precisamente, essa existência independente das coisas (objetos e ideias), na linha da objetividade transcendental, o
que especifica a verdade. A objetividade, que não está entre parênteses, implica
unidade e, a longo prazo, reducionismo, já que impõe a realidade como o único e
último domínio, definido por uma existência independente. Quem tem acesso à realidade, necessariamente, estará em vantagem em qualquer disputa. A pessoa desprovida de tal privilégio, em tese, estará fadada ao insucesso.
Esse tipo de mundividência, entre outras coisas, corresponde, também, a
um modelo comportamental. Por exemplo, ainda segundo Maturana (Id., p. 12 e 93),
toda vez que pretendemos obrigar alguém a satisfazer nossos desejos, e não podemos, ou não queremos, recorrer à força bruta, alegamos que nossa pretensão é
convincente, porque se funda em argumento racionalmente objetivo, cuja validade,
como tal, descansa em sua referência ao real. Com efeito, dizemos que quem não
cede à razão é arbitrário, ilógico ou louco; com isso, implicitamente, afirmamos que
temos acesso privilegiado à realidade, o que torna racionais e objetivamente válidos
nossos argumentos (Id. Ib., passim; 1988, p. 26).
É o que decorre, normalmente, da lógica transcendental, que postula uma
realidade absoluta e universal, preexistente ao observador, para todas as formas de
verdade imagináveis a posteriori; dentre as quais, apenas uma pode prevalecer, como a “verdadeira verdade”, como muito bem intui o poeta (CIDADE NEGRA, 2001).
E esse fato se dá, sobretudo, porque é pela essência do ser apriorístico que a mentalidade colonialista se pergunta e sobre ela formula suas proposições explicativas.
Em que pese sua engenhosidade argumentativa, o observador colonialista vive mordendo o próprio rabo, toda vez que tenta explicar o mundo. É que, para
descrever um objeto independente si, e cuja existência, supostamente, lhe antecede,
terá ele de criar uma metarrealidade conceptual, na linguagem102; todavia essa metarrealidade constituída, que aparece como uma descrição objetiva, também será
considerada real, tal qual o ente (de primeira ordem) descrito; pois existirá no mundo
como qualquer objeto (de segunda ordem). A diferença é que, ainda que exista no
mundo, como real, a referida metarrealidade será sempre uma invenção do obser102
Cf. Maturana e Pörksen (2004).
47
vador103, e jamais poderá ser apriorística, visto que, efetivamente, surge a posteriori,
no operar reflexivo dele.
3.2.2 Evolução
Esse efeito despigmentador do quadro epistemológico, pintado pela modernidade etnocêntrica, ocorre em um nível muito acelerado, obrigando, paradoxalmente, a própria criatividade colonialista a se reinventar. Não por acaso, novas telas
são produzidas, sob a inspiração do suposto esgotamento do paradigma dominante.
Tema que, por sinal, tem sido explorado à saciedade por artistas, ou melhor, célebres cientistas ligados à denominada subepistemologia pós-moderna, que dá conta,
a exemplo de Boaventura de Sousa Santos104, da emergência de um novo paradigma ainda oculto105.
Segundo Santos (2001, p. 14), trata-se de “um processo de grande criação e de grande destruição”; de complexidade e incertezas. Contra as estruturas
institucionais, criadas e difundidas pela modernidade, erguem-se barricadas pósmodernas, pós-metafísicas, propondo-lhes a desconstrução. De outra parte, outros
enfoques, apesar de compartilharem a mesma cruzada, fogem ao mero radicalismo,
sugerindo soluções moderadas, tal como a escavação dos escombros da modernidade, em busca de resíduos epistemológicos tornados invisíveis, por seu inconsequente reducionismo106, sem ignorar, porém, eventuais conquistas.
Com a experiência de quem conhece, profundamente, a indefinição de
uma paleta paradigmática, Santos (2003, p. 283-284) propõe esboçar a episteme
emergente orientando-se pelos tons de uma segunda ruptura epistemológica, contraposta à primeira ruptura, que aconteceu quando a modernidade logrou operar a
distinção entre conhecimento verdadeiro (científico) e conhecimento falso (senso
comum). Fato que desencadeou o controle absoluto do conhecimento credível pela
103
Cf. nota 77.
Santos (2007b) informa que está revendo sua postura epistemológica, contudo defende um pós-modernismo
de oposição (moderado), como contraponto ao que ele próprio denomina pós-modernismo celebratório (radical).
105
Cf. Santos (2007a).
106
Santos (2001) define reducionismo como “desconhecimento ativo da complexidade”. Uma forma de privilegiar o conhecimento científico negando validade a outros tipos de conhecimentos. O que teria sucedido, por
exemplo, com o termo “emancipação social”. É o que o que manifesta o próprio sociólogo (2004): “não considero que o termo emancipação social deva ser descartado por ser moderno e ocidental”.
104
48
ciência moderna, ao tempo em que as demais experiências do conhecer humano
foram sendo invisibilizadas pela ideologia dominante.
O presente estudo, infelizmente, não comporta detalhamento exaustivo da
mentalidade moderna ocidental. Dessa cosmovisão, interessa destacar, apenas, as
mais densas pinceladas que a estruturaram, ao longo dos últimos duzentos anos,
tais como as ideias de: universalidade, objetividade, neutralidade, racionalidade, totalização hierárquica, linearidade; apropriadas, de um modo geral, pela moderna subepistemologia de corte positivista (Cf. SANTOS, 2001, 2007b e 2007c). Basicamente, é esse o quadro epistêmico da modernidade e de suas derivações colonialistas,
em cujos traços pulsa o emocionear autoritário da cultura patriarcal/matriarcal europeia107.
Não obstante, neste ponto, forçoso é reconhecer que o pensamento crítico, outra subepistemologia moderna, em suas múltiplas variantes108, até que tentou
transformar a situação, minando os pilares do esquema epistemológico ocidental
moderno, que, evidentemente, cumpriu algumas importantes tarefas, sem se preocupar, porém, com as respectivas consequências (Id., 2007b). E o esforço autocrítico, realmente, parece não ter sido em vão. Hoje, de fato, há quem admita, por
exemplo, desassombradamente, a relatividade da verdade109 ou esta como mera
possibilidade110.
Por essas e outras razões, é que Santos (2007a, p. 107) insiste numa dupla ruptura epistemológica, que consiste no rompimento com o padrão científico
(conservador), inaugurado por Galileu Galilei111, a fim de transformá-lo num novo
senso comum (emancipatório)112. Para o nosso autor, tendo o pensamento hegemônico do Ocidente dado sinais de esgotamento, ao revelar-se impotente no tocante à
solução de problemas criados por si mesmo, sua transformação, em conhecimentoemancipação (ou edificante), impõe-se e necessita de ser concretizada.
107
Por todos, cf. Maturana e Verden-Zöller (2003c).
Entre as quais: a Escola de Frankfurt, exemplar questionadora da racionalidade ocidental do tipo cartesiano;
assim como o recorrente pensamento pós-moderno, com forte incursão nas ciências sociais.
109
Escorado nas ideias do filosofo polonês Alfred Tarski, Ferrajoli (2009, p. 50) sustenta que a verdade de uma
teoria científica e, em geral, de qualquer argumentação ou proposição empírica é, em resumo, uma verdade não
absoluta, senão relativa aos estados dos conhecimentos e experiências levados a cabo em relação às coisas de
que se fala.
110
Para Santos (2008, p. 26): “O facto de não ser possível atingir a verdade com precisão não nos dispensa de a
buscar. Ao contrário, o que está para além dos limites (a verdade) comanda o que é possível e exigível dentro
dos limites (a veracidade, enquanto busca da verdade)”.
111
Em geral, a paternidade da ciência moderna é atribuída ao astrônomo italiano.
112
Sobre as principais características do novo senso comum; cf. tb. Santos (2003, p. 121).
108
49
Sem embargo, essa segunda ruptura epistemológica, vislumbrada pelo
sociólogo de Coimbra, a nosso ver, já eclodiu. E desse fato se apercebera o pensador chileno Humberto Maturana Romesín, desde o instante em que concluiu que a
validade de uma proposição mais se avizinha do critério de validação aceito em determinado domínio cognitivo, constituído pela distinção do observador, na linguagem, que de uma suposta realidade objetiva transcendental. Inferência que ingressa
no patrimônio intelectual do próprio Maturana na conta de um giro metafísico (MATURANA e PÖRKSEN, 2004, p. 15).
E o mais emblemático em tudo isso é que o insight maturaniano, convém
registrar, não se dera a partir do centro de produção do saber colonizador; mas, sim,
da periferia colonizada, ou melhor, de um pedaço do Sul, como preferem alguns pósmodernos colonialistas, especialmente Santos (2003, p. 419 e ss.). O que, decerto,
empresta algum sentido à distinção: crítica/autocrítica, haja vista que o que se tinha,
até aqui, na conta de crítica à racionalidade colonialista, não transbordava senão o
cálice de uma amarga frustração.
Na verdade, a moderna subepistemologia crítica esbarrou nos seus mais
íntimos preconceitos, dentre os quais o ponto a partir do qual iniciou suas viagens
teóricas. Talvez por esse motivo não tenha logrado alcançar o cerne da questão
cognitiva, que é o conhecer, como se conhece; como se constitui o saber, e não a
realidade. A propósito, segundo Maturana e Varela (2003a, p. 12, tradução nossa), o
desconhecimento de como se conhece o que se sabe; como se constitui nosso
mundo de experiências, que é, de fato, o mais íntimo de nossa existência, é uma
incoerência. Há muitos escândalos no mundo, e esse tipo de paradoxo é, verdadeiramente, um dos piores.
De fato, assinala Maturana (2001b, p. 32), a cultura ocidental moderna
imagina que “os seres, os objetos, as ideias, meus diferentes modos de aceitar isso
ou aquilo existem independentemente do que faço como observador”. Ocorre que o
observador é sempre um ser vivo e humano, cuja capacidade cognitiva se entrelaça
com sua dimensão biológica. E, quando essa dimensão biológica é levada em conta,
não se pode desconsiderar o fato de que —na experiência— é impossível distinguir
50
entre ilusão e percepção (Id. Ib., p. 34)113. É nesse beco sem saída em que se encontra o pensamento colonialista, neste exato momento.
3.2.3 Metafísicas dos ser e dever-ser
A ilustração dessa circunstância poderá ser colhida em qualquer domínio
do conhecimento científico ou filosófico. Entretanto, por não ter pretensão enciclopédica, este estudo circunscreverá sua análise ao campo do pensamento jurídico, que,
a nosso ver, traduz sobejamente essa transcendentalidade cognitiva a que acabamos de nos reportar, tanto no que respeita à dimensão do ser, quanto em relação à
do dever-ser, pois, queremos crer, se algum espaço cognitivo houver em que o saber colonialista tenha prevalecido plenamente, e com máxima potência, outro não
será senão que o da juridicidade moderna.
Não tardaremos a ver que uma dramática série de fatores corroboram
essa intuição; sendo a malograda tentativa de racionalização dos sistemas jurídicos114, certamente, um dos mais vistosos empreendimentos da modernidade jurídica. Mas poderemos ver, também, que, desde o momento em que a tonelagem para113
Maturana (2001a, pp. 29-30) procura iluminar esta dinâmica exemplificando os seguintes interrogantes:
“¿Cómo nos equivocamos, si de hecho tenemos capacidad de acceder a una realidad independiente de
nosotros en la observación o en la reflexión?, ¿cómo se da el error?, ¿cómo surge la equivocación? Hay, por
ejemplo, situaciones en las cuales uno saluda a alguien: " ‘¡Hola, Juan!’ Y luego dice: ‘Perdón, me equivoqué. No era Juan, tuve una ilusión’. Lo interesante de tal situación es que cuando uno saluda a Juan la
experiencia de uno al decir ¡Hola, Juan! es la de encontrarse con Juan. De hecho uno tiene toda la dinámica
fisiológica de encontrarse con Juan, y tiene reacciones de felicidad o enojo dependiendo de su relación
con Juan en el momento de tener la experiencia de su presencia, cualquiera que sea el veredicto a posteriori sobre si Juan encontrado fue ilusión o real. Las ilusiones, los errores, las equivocaciones, son siempre a
posteriori."
"Consideremos otra situación: la pesca de truchas, por ejemplo. Uno prepara el anzuelo, las botas, la caña;
llega al lago o al río y tira el anzuelo, que pasa apenas rozando el agua. Si uno hace todo esto bien, la
trucha salta y después de morder el anzuelo dice: ‘era un anzuelo’. Lo notable es que el anzuelo aparece
sólo después de morderlo. En otras palabras, el anzuelo es anzuelo sólo posteriori. La trucha no puede
distinguir entre ilusión y percepción y al saltar y morder el anzuelo ella salta a capturar un insecto. Nosotros no podemos distinguir en la experiencia entre ilusión y percepción. Ilusión y error son
calificativos que desvalorizan una experiencia posteriori con referencia a otra experiencia que se acepta
como válida: uno no se equivoca cuando se equivoca."
Outra importante distinção é que Maturana (2001b, p. 26) opera entre erro e mentira: "Quando se diz a outra
pessoa: ‘Você mente’, o que se diz é: ‘No momento em que dizia o que dizia, você sabia que o que dizia não era
válido.’ Mas quando alguém diz: ‘Eu me equivoquei’, o que diz é: ‘No momento em que disse o que disse, eu
tinha todos os motivos para pensar que o que dizia era válido’, quer dizer, não sabia que o que dizia não era
válido, mas o sei a posteriori; sei em referência a outras experiências distintas daquela sob a qual eu fazia tal
afirmação. Quando alguém se equivoca na experiência, não se equivoca. Mas quando alguém mente, mente na
experiência. "
114
Jusnaturalismo.
51
digmática da modernidade tornou-se insuficiente para suportar o excedente de incoerências autoproduzidas no correlato domínio cognitivo, a reboque, surgem as proposições explicativas, com viés salvacionista.
Não por acaso, ao derredor da segunda metade do Século XX, uma suposta crise no direito moderno teria vindo à baila, em virtude das inevitáveis e complexas transformações sociais (FARIA e WARAT, 1988). Nessas circunstâncias, a
modernidade jurídica se torna, de fato, inesgotável fonte de perplexidade, pois, ao
tempo em que promove o direito positivo a centro catalisador de certezas inquebrantáveis, passa a falar, por exemplo, de um direito científico (SANTOS, 2007a, p.120),
ou, então, do direito como um engenho de logicidade115 (MAYNEZ, 1955; BOBBIO,
1995; VILANOVA, 1976), quando não de alogicidade116 (COELHO, 1994); de naturaleza117 (TELLES JUNIOR, 1985), se não for de artefaticidade118 (TEUBNER, 2002).
O direito seria, ainda, racional119 (BOBBIO, op. cit.), puro120 (KELSEN, 1984), ou impuro121 (COELHO, L. F., 2003).
Como se não bastara, abordagens sociológicas intentam apontar no fenômeno jurídico certos quês de simbolismo122 (NEVES, 2004; TEDESCO, 2007),
expectabilidade e contrafacticidade123 (LUHMANN, 1983), enquanto estudos outros
optam por avançar na análise de aspectos de natureza factual, axiológica ou dimensional124 (DINIZ, 1991; REALE, 1994). E há, com efeito, quem o queira plural125
(WOLKMER, 1994; SANTOS, op. cit; TEUBNER, 2003), ideológico126 ou teleológico127 (COELHO, L. F., op. cit.; ÁVILA, 2006; BUSTAMANTE, 2008) e, principalmente, comunicacional128 (Cf. FERRAZ JÚNIOR, 2000; TEUBNER, 2002; HABERMAS,
2003; LUHMANN, 2004).
115
Positivismo lógico.
Analitismo.
117
Quantismo jurídico.
118
Construtivismo.
119
Jusnaturalismo.
120
Normativismo.
121
Teoria crítica.
122
Sociologismo jurídico.
123
Funcionalismo-sistêmico.
124
Culturalismo jurídico.
125
Pluralismo jurídico.
126
Teoria crítica.
127
Pós-positivismo.
128
Pragmatismo procedimentalista.
116
52
Por outros ângulos, a juridicidade, antes de conformar um sistema autopoiético (GUERRA FILHO, 2001, LUHMANN, op. cit.) seria alopoiético129 (NEVES,
1996); ou então um constructo lúdico130 (OST, 1993), ficcional (TEDESCO, op. cit.),
quando não seja um objeto cultural131 (CÓSSIO apud DINIZ, 2003; KELSEN, 1952).
Decerto, cometeríamos pecado capital se não feríssemos outras importantes tendências em favor desse redemoinho discursivo, a exemplo do realismo, de corte escandinavo, ou do pragmatismo norte-americano (Cf. ATIENZA, 2007).
O resultado de todas essas contribuições constitui, efetivamente, uma
profusão de discursos jurídicos possíveis, porém desorientadora. Sendo assim, parece razoável supormos que exuberante prodigalidade explicativa há de ter um foco.
E, se esse foco existe, de fato, há de descansar na enigmática dicotomia: ser/deverser (Sein/Sollen), imaginada como uma representação ideal de dois mundos ontologicamente transcendentes e contrapostos; sendo um deles (o mundo do Ser) expressão das coisas da natureza (fatos, estados, situações), regido pelo princípio de
causalidade; e o outro (o do Dever-ser) reflexo da conduta humana (ética, normas,
mandamentos), para alguns, ancorado no princípio de finalidade132.
O fenômeno jurídico seria, então, uma realidade deôntica, lógica, tridimensional, racional, axiológica, cultural, pura, quando não impura, imersa nos quadrantes do dever-ser. Toda essa teia conceitual, diz-se: é trivial ao mais neófito dos
operadores jurídicos; e configuraria falácia naturalista, segundo a lei de Hume133,
deduzir do mundo dos fatos (Ser) conclusões normativas (Dever-ser). É desse modelo metafísico que certas correntes críticas de jurisconsultos134 partem, para sustentar o desmoronamento das estruturas tradicionais do direito moderno.
Neste diapasão, por oportuno, vale registrar que a operacionalidade da
dogmática jurídica moderna, reduzida ao par filosófico ser/dever-ser, especialmente
imaginada pela subepistemologia positivista, é tema fora de questão, independentemente das consequências, benignas ou malignas, produzidas ao longo desses
dois últimos séculos. Bem ou mal, o fato é que funcionou e funciona. No espaço jurí129
Simbolismo jurídico
Pós-modernismo.
131
Egologismo.
132
“Costumamos dizer, recorrendo à metáfora, que ser e dever ser são como que olho esquerdo e olho direito
que, em conjunto, nos permitem "ver" a realidade, discriminando-a em suas regiões e estruturas, explicáveis
segundo dois princípios fundamentais, que são o de causalidade e o de finalidade.” (REALE, 1990, p. 188).
133
Um ser não pode derivar do dever-ser ou vice-versa.
134
Particularmente, a teoria crítica do direito, e o denominado pensamento pós-positivista jurídico.
130
53
dico, as consequências decorrentes dessa estratégia pseudoepistemológica são por
demais conhecidas do Ocidente e, no âmbito deste mapa cognitivo, não vêm ao caso, bastando anotar que, com fundamento no direito positivo moderno: falsas guerras são travadas cotidianamente135; seres humanos foram exterminados em campos
de concentração nazistas136.
Neste instante, o que importa remarcar, porém, é que a concepção dualista de mundo patina (num movimento repetitivo), mesmo na seara do pensamento
colonialista mais avançado (pós-metafísico). E a forma ser/dever-ser não seria uma
exceção. Luhmann (1983, p. 57), por exemplo, sustenta que “o sentido do ‘dever ser’
não é menos fático do que o do ‘ser’”. E esclarece:
Toda expectativa é fática. Seja na sua satisfação ou no seu desapontamento, o fático abrange ao normativo. A contraposição convencional do fático ao
normativo deve, portanto, ser abandonada. Ela é uma construção conceitual
errônea, como no caso de se querer contrapor ser humano e mulheres; uma
manobra conceitual que nesse caso é prejudicial às mulheres, e naquele ao
dever ser. O oposto adequado ao normativo não é o fático, mas sim o cognitivo. Só é possível optar-se coerentemente entre essas duas orientações
com respeito ao tratamento de desapontamentos, e não entre o fático e o
normativo.
Em outro trabalho mais recente, o sociólogo alemão faz questão de vincar
sua posição a respeito do tema:
Uma observação externa do direito que se valha dessa redefinição do dever-ser[,] como expectativa contrafactual, pode ganhar perspectivas as
quais não seriam acessíveis ao sistema jurídico em si e nem mesmo pela
teoria jurídica. O observador reconhece o risco que as expectativas possuem quando elas se mantêm obstinadamente firmes [no caso de eventuais
decepções].(LUHMANN, 2004, p. 62).
Por conta de tudo isso, uma informação precisa de ser antecipada, para
que o leitor não perca tempo, tentando desvendar o óbvio. O que, efetivamente, nos
move na elaboração deste trabalho chama-se: desapontamento, frustração —e o
acúmulo de decepções, decorrentes das expectativas geradas pela consciência jurídica dominante—; porque, a cada livro, uma expectativa; a cada leitura, uma decep135
A guerra do Iraque, iniciada em 2003, foi fabricada pelos estadunidenses com base é falsa suspeita de armas
químicas em poder do ditador executado Saddam Hussein.
136
É o caso de o Holocausto, executado nos campos de concentração Auschwitz-Birkenau, no sul da Polônia,
durante a II Guerra Mundial.
54
ção. Revendo, por exemplo, a explicação de Hans Kelsen (KELSEN, 1984, p. 21)
sobre sua concepção normativa do direito, colhemos que “o termo ‹norma› quer-se
significar que algo deve ser ou acontecer, especialmente que um homem se ‹deve›
conduzir de determinada maneira”137.
No passo seguinte, o filósofo de Viena esclarece o que, para si, significa
esse dever imanente ao conceito de norma, argumentando fazer uso do termo num
sentido mais amplo que o aplicado na linguagem ordinária. Na realidade, a acepção
do verbo dever, eleita pela Teoria Pura do Direito, quer “significar um acto intencional dirigido à conduta de outrem. Neste ‹dever› vão incluídos o ‹ter permissão› e o
‹poder› (ter competência)” (Ib., p. 22); a norma seria, então, “o sentido de um acto
intencional através do qual uma conduta é prescrita, permitida ou, especialmente,
facultada, no sentido de adjudicada à competência de alguém” (Id. Ib.).
Num sentido estrito, prossegue Kelsen (1984), a norma é um dever-ser, e
o ato de vontade, de que ela constitui o sentido, é um ser. Por isso, a situação fática,
perante a qual nos encontramos na hipótese de tal ato, será descrita pelo enunciado
seguinte: um indivíduo quer que o outro se conduza de determinada maneira. A primeira parte refere-se a um ser, o ser fático do ato de vontade; a segunda parte refere-se a um dever-ser, a uma norma como sentido do ato (KELSEN, op. cit.)138. “A
distinção entre ser e dever-ser não pode ser mais aprofundada. É um dado imediato
da nossa consciência” (Id. Ib., p. 23). Algo trivial, talvez, para o nosso jurisfilósofo.
É, com base nessa cosmovisão dogmática, que ainda “caminha a humanidade, com passos de formiga e sem vontade” (SANTOS, L., 1994). Alguma razão
parecer assistir, portanto, ao sociólogo lusitano Boaventura de Sousa Santos (SANTOS, 2007a, p. 141), que enxerga na dicotomia ser/dever-ser um manifesto viés ide137
Grifos do texto original.
Como já vimos em (3.3.3.4), extremamente equívoca, sob qualquer ponto de vista, a palavra sentido torna
praticamente impossível a tarefa de construir seu significado a partir de um dicionário comum. A ontologia do
observar parece ter, porém, uma justificativa muito plausível para a configuração de qualquer tipo de sentido. O
sentido não pode ser nada mais do que uma qualidade da unidade gerada, constitutivamente, pela diferenciação
levada a efeito pelo observador na linguagem, e, por conseguinte, na sua forma de vida ou práxis de viver. É o
que resulta como diferença das conexões experimentadas no conjunto de coerências operacionais estruturante da
unidade (coisa, situação, estado), e torna esta distinta do seu meio. É exatamente o meio, do qual se destaca a
unidade, que empresta sentido a esta, enquanto referência necessária. Os sentidos também podem ser considerados “pontos de referência” no domínio de existência do observador ou estruturas resultantes de distinções específicas, levadas a efeito no processo comunicacional, com o fim de tornar significativa a realidade constituída. Do
lado ambiente, isto é, do lado oposto à fronteira do sistema jurídico, encontra-se o entorno, um nonsense, algo
sem sentido para a juridicidade, pelo próprio fato de lhe faltar fronteiras, ou melhor, coerências operacionais
específicas do direito positivo. Na falta de uma definição mais precisa, é dessa noção de sentido que a concepção
jurídica pós-colonialista faz uso nas fronteiras do Direito Matríztico , aliada às condições vistas em (3.3.3.4.2).
138
55
ológico. Um providencial e utilíssimo mecanismo de distorção da realidade, que muito diz respeito aos propósitos do pensamento ortopédico139, visivelmente redutor140.
No fundo, como podemos ler, mutatis mutandis, em Maturana e VerdenZöller (2003c, p. 57), ainda que seja pretensamente descritivo, o sistema conceitual
colonialista é, fundamentalmente, normativo, na medida em que escora sua validez
epistemológica numa exigência improvável: a da objetividade transcendental, que,
no frigir dos ovos, se resolve pela via potestativa. Ao desamparo dessa engenhosa
transcendentalidade (achada ou construída a priori, em algum dos dois mundos), o
edifício metafísico da modernidade desmorona; e nisso reside a sua intrínseca normatividade. Desse modo, a suposta descritibilidade do ser e do dever-ser, tão cara
aos colonialistas, não vai além de um enganoso artifício filosófico, que poderíamos
rotular, sem menosprezo algum, de “truque da transcendência”, por tudo que já vimos e veremos a seguir.
3.3 Mentalidade pós-colonialista
3.3.1 Estrutura psíquica
O modo de pensar pós-colonialista é tão singelo e despretensioso quanto
o amor: a emoção que o especifica e lhe dá suporte explicativo. Desde que concebamos o fenômeno amoroso como uma disposição corporal do ser humano, inclinada à confiança, à colaboração, ao respeito do outro, como legítimo outro, na coexistência, e que faz sentido na respectiva dinâmica operacional-relacional do organis139
Santos (2008, p. 15), inspirado em Ortega Y Gasset, define pensamento ortopédico como “o constrangimento
e o empobrecimento causado pela redução dos problemas a marcos analíticos e conceptuais que lhes são estranhos.”
140
“Actualmente habitamos a nivel mundial en una cultura cuyo sustrato epistemológico está fundado en el ser
en sí de todo lo que existe, en la pregunta por el ser de las cosas y las entidades, resultando en una epistemología
básicamente dualista que en todos los ámbitos separa al que observa de lo observado, y no considera las regularidades biológico-culturales de los procesos de distinción que traen a la mano los mundos que nos aparecen,
viviéndolos entonces como existiendo independientes de nuestro operar en el observar ya que éste es siempre un
operar inconsciente.
“Es un trasfondo epistemológico el de la pregunta por el ser, que genera miradas desde donde no se ven las dinámicas que constituyen a los sistemas sino que se atiende linealmente a supuestas causas y efectos, donde no se
ven matrices sino objetos. Una de las características propias de este trasfondo epistemológico es que desde él se
generan principios explicativos y definiciones que en tanto sustantivos siempre ocultan las dinámicas que traen a
la mano los fenómenos que se busca explicar, es decir, los verbos se cosifican al pretender describir y explicar
56
mo. Além disso, por se tratar de uma atitude reflexiva e super-realista, o póscolonialismo reclama destemor e sacrifício, na medida em que pressupõe desapego
e risco de imprevisão.
Deveras, a suspensão espontânea das certezas, bem como dos valores
que orientam o convívio humano, na práxis cotidiana, é um dos importantes sacrifícios a que se submete, num primeiro momento, um pensador pós-colonialista, visto
que, quem detém certezas, é naturalmente desestimulado a refletir sobre o que tem
por evidente, ou a respeito do que lhe é caro, conforme o grau de petrificação da
certeza ou do valor. Diz-se: “— Se já estou certo disso, tenho que seguir em frente!”.
“— Se tal ou qual valor me conforta, dele não posso abrir mão!”. O apego às certezas e aos valores, além de limitar o observador, opera, portanto, como evidência
íntima do conhecer e do bem-estar. Parece claro, então, que, no campo do conhecimento, certeza e reflexão, de ordinário, operam com sinais trocados.
Alguém que pensa a partir de certezas busca e encontra conforto nos supostos objetivos de suas próprias certezas; exatamente ao contrário de quem trilha
pelo caminho da reflexão, em cujas sinuosidades, geralmente, descansam descobertas inesperadas. Mas, como já dito, o operar pós-colonialístico, além de sacrifício,
implica também exposição ao risco; isto é, ao perigo de termos de abrir mão de certezas e valores considerados irrenunciáveis e inabaláveis, a priori. O que, inevitavelmente, cobra destemor ante ao frequente desafio do recomeço, mesmo depois de
longa e árdua jornada reflexiva.
Por tudo isso, o pensamento pós-colonialista se apresenta na forma de
um convite. De um convite à ação-reflexão-ética, que opere como alternativa às certezas e aos valores cultivados pela mentalidade colonialista. E, por ser alternativo,
desde logo, renuncia à tentação de se tornar exclusivo, universal, linear, abstrato,
objetivo, neutro, absoluto, totalizante, hierarquizante. O espaço do pensar póscolonialista, definitivamente, não se forma com categorias dessa ordem, e não se
predispõe a substituir ou desconstruir cosmovisões inconsistentes, ainda que refute
veementemente seus fundamentos epistemológicos e filosóficos.
Enquanto alternativa, a mentalidade pós-colonialista almeja alcançar tão
somente o que lhe é próprio: a condição de opção cognitiva credível; a de uma outra
las experiencias que como observadores tenemos al no atender a la operación misma con que traemos a la mano
lo observado en la operación de distinción que lo constituye.” (DÁVILA et alii, 2009c).
57
maneira honesta de pensar, que permita ao ser humano escutar desde si mesmo,
com autonomia. E ser outra forma de pensar, evidentemente, pressupõe conviver ao
menos com mais alguma; do contrário seria única, e não outra. Essa atitude pode
até parecer, mas está longe de configurar mera lateralidade, pois não falta quem
sustente a impossibilidade de convivência de paradigmas, por supor que a emergência de uma nova episteme cultural implica no esgotamento da mais antiga141.
Esse tipo de visão exclusivista, por óbvio, não se acha solto no mundo; e
seu suporte teórico talvez resida na teoria da evolução de corte darwiniano, que,
com base na competência, supõe a perseverança dos indivíduos mais fortes e eficientes em detrimento dos menos eficientes e fracos. A mentalidade pós-colonialista
emergente, não obstante, enxerga as coisas de outra forma. Recusa o
(pre)determinismo genético de Darwin, em favor de uma coderiva ontogenética, que
permite a realização contingente do fenótipo ontogênico humano142, a partir da conjunção de sua dinâmica fisiológica com a relacional, na contingência de acoplamentos estruturais143 recorrentes (MATURANA, 2009a, p 152 et seq.).
O que as descobertas científicas mais recentes informam é que o modo
de vida humano (fenótipo ontogênico) se forma, neotênica e epigeneticamente144,
momento a momento, no presente do curso contingente da deriva estrutural do organismo. Aliás, segundo o biólogo Maturana (1997a):
El fenotipo ontogénico no está determinado genéticamente, pues,
como modo de vivir que se desenvuelve en la ontogenia o historia individual de cada organismo, es un fenotipo, y como tal se da en esa
historia individual necesariamente como un presente que resulta generado en cada instante en un proceso epigenético.
Lo que la constitución genética de un organismo determina en el momento de su concepción es un ámbito de ontogenias posibles en el
cual su historia de interacciones con el medio realizará una en un
proceso de epigénesis.
141
Por todos, cf. Kuhn (2006).
Identidade biológica.
143
Relação interacional que a unidade mantém reciprocamente com seu entorno durante sua ontogenia, mantendo sempre a organização e adaptação. Quando a interação se dá entre organismo e meio ambiente, fala-se em
adaptação ontogênica (histórica), mas se os sistemas plásticos são organismos, o resultado do acoplamento estrutural ontogênico é um domínio consensual, em que, para o observador, as mudanças estruturais recíprocas se
correspondem em sequencias entrelaçadas (MATURANA, 2009b, p. 244).
144
Transformação de um organismo no curso de sua ontogenia (história particular), a partir da respectiva estrutura inicial (genótipo total), isto é, desde a sua concepção à idade adulta do indivíduo, independentemente da
composição genética.
142
58
Não há como, portanto, com base no genótipo humano, predeterminar o
viver, a sorte ou o azar das pessoas, mesmo que ao observador seja possível antecipar consequências, em função do determinismo estrutural que marca a feitura dos
seres vivos. Se assim o é, não pode causar estranheza, por exemplo, o fato de um
ser humano pós-moderno agir de forma jurássica145. Por sinal, é o que muito vemos,
no nosso dia a dia. E a mentalidade colonialista, induvidosamente, na atualidade,
tem muito a ver com esse tipo de comportamento pré-histórico146.
3.3.2 Multiverso pós-colonialista
3.3.2.1 Arquitetura humana147
Em definitivo, a maneira concreta de pensar de corte pós-colonialista
rompe, radicalmente, com a tradição intelectual, abstrata e transcendental do Ocidente, ao postular que, atualmente: a) há duas configurações arquitetônicas básicas
do ser humano; b) a arquitetura do sistema humano determina o caminho explicativo a ser trilhado pelo observador; c) à feitura humana, que o observador distingue no
seu operar, correspondem modos de viver e conviver específicos, que não se aplicam à generalidade dos desenhos humanos; d) toda experiência não é senão um
aspecto do viver; e, como tal, só existe na vida, não podendo, fora dela, ser explicada.
Dos feitios estruturais básicos do ser humano atual já discorremos à saciedade. Explicativamente, um corresponde ao “ser humano moderno”, e outro ao “ser
humano matríztico”. O primeiro é configurado como uma unidade neurofisiológica,
dotada de propriedades cognitivas, aberta ao meio e predeterminada geneticamente;
ao passo que o último desenho se distingue do anterior segundo a forma de uma
unidade dinâmica interacional autopoiética, determinada em sua estrutura; sendo
fato, também, que os referidos traços arquitetônicos humanos operam como condi145
Aliás, é até comum às pessoas notáveis o reconhecimento social, geralmente post-mortem, pelo fato de “terem
pensado além do seu tempo”, quando no seu presente são tachadas de arrojadas ou loucas.
146
A Escola Matríztica de Santiago propõe-se a examinar a evolução da mentalidade cultural humana a partir da
matriz biológico-cultural Homo sapiens sapiens amans constitutiva da era psíquica arcaica especificada pela
emocionalidade do amar (Cf. DÁVILA e MATURANA, 2008, p. 35 et seq.).
147
Cf. Dávila e Maturana (Op. cit., p. 342), sobre o uso do termo “arquitetura”.
59
ções epistemológicas das maneiras de pensar, assim como os modos de viver, conviver, conhecer e de escutar, de cada tipo humano.
Malgrado o desinteresse da tradição científica pelo tema, não configura
demasia remarcar que homem moderno foi moldado, segundo os termos da cultura
patriarcal/matriarcal europeia, para se apropriar, competir, controlar e, então, tornarse um vencedor; se eficiente não for, será um derrotado, ou, na melhor das hipóteses, um frustrado. Nesse contexto, a competência humana constitui uma condição
do progresso vislumbrado pela modernidade; logo, sua força motriz; assim, toda vez
que, nesse jogo colonialista, sobrevir o empate, a frustação despontará por conta do
insucesso dos competidores; e, a derrota, a consagração do vencedor. Bem diferente do jogo que se dá nos domínios matrízticos, que se realiza na emoção do brincar,
do divertir-se, antecipando que as regras não são em si mesmas.
Visto, então, por esse ângulo privilegiado, o modo de vida colonialista
aparece, essencialmente, como uma trama maniqueísta; pois, nele, um ser humano
nega o outro, como legítimo outro na convivência. O indivíduo exitoso, que vence ou
convence, além de derrotar o concorrente ineficiente, deixa-o, sempre, numa posição de desconforto. Os próprios postulados lógicos de identidade148 e do terceiro
excluído149, tão caros à racionalidade colonialista, autorizam esse tipo de ilação: ou
somos vencedores, competentes, eficientes, ou não o somos. É claro que, na medida em que a ciência avança, a força retórica de tais princípios lógicos vai minguando; sabemos, hoje.
Paradoxalmente, a competência, como condição de êxito pessoal, bem
assim da consequente conservação da corporalidade humana, converte-se, então,
numa via segura para o mal-estar social; porque a derrota sempre estará contrastando com a vitória. À alegria de uns, corresponderá a frustração de outros. No geral, o modo de vida colonialista é marcado pelo submetimento, pela agressividade,
arrogância, alienação, onipotência e irresponsabilidade. São essas classes de emoções básicas que, em regra, caracterizam as eras psíquicas moderna e pósmoderna, configurações sensório-operacionais-relacionais preponderantes no espaço colonialista150.
148
“O que é, é; o que não é, não é”.
Não há meio-termo, uma proposição: é afirmativa ou negativa.
150
Cf. Dávila e Maturana (2008, p. 49 e ss).
149
60
Essas particularidades ajudam a estabelecer, na práxis cotidiana, um modelo curioso de comunicação: quem escuta, limita-se a comparar o argumento do
outro com suas próprias certezas; se com elas não coincidem, as razões de quem
fala serão, então, consideradas como equívoco, ou irracionais. Com efeito, na linha
explicativa colonialista, escutamos para descobrir se o que o outro diz coincide, ou
não, com o que pensamos. Com isso, fechamos os espaços de conversações reflexivas e colaborativas. Ao contrário, no domínio pós-colonialista, escutamos para
descobrir desde onde é válido o que o outro diz. Por conseguinte, abrimos espaços
de conversações reflexivas e colaborativas.
No momento em que a humanidade se encontra mais reflexiva e propensa a admitir que antiquíssimos princípios racionais (de identidade, da nãocontradição, do terceiro excluído e da razão suficiente) foram abalados pela própria
razão, no evolucionar do conhecimento científico, a necessidade de se fazer ciência
não pode ser substituída pelo fantasma do ceticismo; mas, sim, por uma firme atitude no sentido de estabelecermos os reais fundamentos da objetividade151, se é que
esses existem e fazem sentido no atual estado da arte152.
A pretensão à objetividade transcendental, postulada pela mentalidade
colonialista, manifesta-se como um caminho aberto às relações de exigência e submissão; com base nela, escutamos desde a posse da verdade, única e verdadeira
verdade, que inculca, no observador, um senso de irresponsabilidade por suas
ações e omissões. Exatamente o oposto do que se dá no plano da objetividade
constituída153 pós-colonialista, que —operando entre parênteses—, abre espaço para as relações de co-inspiração e mútuo respeito, na medida em que escutamos cultivando respeito, por nós mesmos e pelo outro; o que gera um modo de viver res151
Esclarece Maturana que “Cuando los asuntos de la comunidad pasaron a ser públicos en las ciudades-Estado
griegas, y el hablar de ellos se convirtió en parte de la manera diaria del vivir, el emocionar que hace posible el
pensar objetivo, esto es, el pensar que trata a los objetos que surgen en la experiencia del observador como si
ellos constituyesen entidades y procesos con existencia independiente de su hacer, llegó a ser el punto de partida
para dos maneras diferentes de pensar y tratar el mundo de las experiencias, específicamente, la ciencia y la
filosofía. Estas dos maneras de pensar y tratar con los fenómenos de la experiencia, difieren en que lo que una
persona quiere hacer en sus relaciones al hablar de ellos. En la cultura matríztica, donde el orden de las relaciones humanas no está fundado en relaciones de autoridad y obediencia, los objetos son lo que son en la relación
en que ellos surgen al ser distinguidos. En la cultura patriarcal donde el orden en las relaciones humanas está
fundado en la autoridad y la obediencia, los objetos son lo que son, determinados desde la autoridad de su creador, es decir, son en sí mismos. [...].” (MATURANA e VERDEN-ZÖLLER, 2003c, p. 56).
152
Cf. Chauí (1997, pp. 61-62).
153
Vide nota 151.
61
ponsável, autônomo e ético154, compatível com a estrutura biocultural do homem
matríztico.
É realmente importante que compreendamos essa dinâmica, porque, decerto, o que anima o pensamento colonialista a conceber o conhecimento como efeito de uma suposta relação gnoseológica, que se estabelece entre o sujeito cognoscente (observador) e o mundo (objetos, situações e estados), fixando este como determinante daquele, é o fato de tal cosmovisão não se dar conta da unidade operacional-relacional organismo-nicho; da autopoiese; e do determinismo estrutural dos
seres vivos, cujos legítimos conceitos permanecem íntegros, a despeito dos frustrados ataques a que nos referimos155.
De fato, razão mais plausível não há para que as ontologias transcendentais sustentem, com tamanho vigor: a) a condição aberta dos sistemas viventes; e,
por via de consequência, a possibilidade de os mesmos serem instruídos pelo meio;
b) a representação do mundo, de forma unívoca, relativamente a todos os observadores, e, desse maneira, o universalismo da verdade; c) a ilusão, quando não a própria ineptidão, se observador não logra captar, objetivamente, a essência da realidade observada; quer dizer, com outras palavras, quando o defeito é atribuído ao procedimento de captação, ou de interpretação da realidade externa, a falha é tratada
como um erro, ilusão ou equívoco; mas, se não, a falha será atribuída à incapacidade fisiológica do observador.
Por esse prisma, seríamos forçados a concluir, portanto, que a ignorância
se trata de um fenômeno neurofisiológico, limitador da aptidão intelectual do observador, na proporção em que o processo cognitivo se daria na sua corporalidade, ou,
mais especificamente, no cérebro. Entretanto, cumpre assinalar, novamente, que a
arquitetura dinâmica do ser humano matríztico não comporta tal descrição, pois toda
unidade interacional autopoiética, determinada por seu estado, inadmite instrução
do entorno. O máximo que o meio (objetos, situações, estados) provoca em um sistema vivo fechado são perturbações, estímulos ou irritações, e não instruções, como
condição de realização e conservação do próprio viver.
154
155
Cf. Maturana (2009a; 2009b; EMS, 2012).
Vide nota 59.
62
3.3.2.2 Processo cognitivo
Por tudo isso, o caminho explicativo pós-colonialista encontra-se interditado ao trânsito de representações de objetos, situações ou estados captados, externamente, no mundo. É que, como vimos, essa noção tão somente se aplica a sistemas abertos, tal qual o homem racional, inventado pela modernidade e conservado
pela derivação pós-moderna. Sendo o sistema fechado, na sua organização, embora
aberto ao fluxo de matéria e energia, a explicação para o processo cognitivo será
outra, visto que nenhuma unidade autopoiética, estruturalmente determinada, opera
com representação do meio156. O que, de fato, nos ajuda compreender por que todo
ser vivo constitui uma unidade de interações157.
Na verdade, apenas para nos manter coerente com nossa própria linha
de conduta, respeitamos a configuração humana proposta pela modernidade; mesmo que não vejamos nela razoabilidade alguma. A possibilidade de lidarmos com um
ser humano autônomo, responsável e ético não implica que o próprio seja, predominantemente, racional, ou o centro de si mesmo. A biologia cognitiva maturaniana
aponta que a questão da racionalidade humana está associada, umbilicalmente,
com o processo de reflexão humano, que emerge com a agregação da linguagem a
seu modo de vida158. Antes desse fato, as interações entre primatas bípedes hominídeos, davam-se com base nas emoções. Tudo como acontece, hoje, em relação
ao animais não-linguajeantes.
A propósito, se nos dermos conta de que todo organismo humano interage desde a sua concepção, no útero materno, e que, quando chega ao útero terrestre, permanece interagindo com a biosfera, como parte dela, na medida em que
constitui sua própria antroposfera159, como forma de conservar e realizar sua autopoiese, fica fácil entendermos por que nenhum ser humano encontra-se solto no
mundo, e que sua existência depende, necessariamente, do complexo relacionamento alinhavado com seu entorno, que forma a unidade dinâmica organismo-nicho.
156
Cf. Maturana e Varela (2003a, p. 138).
Cf. nota 50.
158
Cf. Maturana (1997a).
159
Segundo Dávila e Maturana (2008, p. 23), âmbito de coerências ecológicas em que se realiza e conserva o
humano, e que surge com o viver humano, como um modo humano de estar inserido na biosfera, sendo parte
dela. Enfim, tudo o que constitui o viver humano (inclusive o operar biológico natural e as grandes fantasias de
nossos artifícios criativos).
157
63
As relações do ser humano, com o meio que o envolve, dão-se de forma
vertical e horizontal; assim como o feto não sobrevive em um útero seco, sem se
relacionar com os componentes do líquido amniótico intrauterino, não é possível
concebê-lo, como humano, depois de nascido, dissociado da ecosfera. A unidade
operacional-relacional organismo-nicho é, portanto, mais que uma abstração, já que,
manifestamente, aparece como uma de condição de existência, irrenunciável aos
seres vivos. Só ignoramos essa evidência quando esquecemos que todo ser vivo,
inclusive o animal humano, necessita de um nicho para conservar e realizar sua sobrevida. E não é senão nas fronteiras desse nicho que o conhecimento, enquanto
aspecto do viver e conviver, tem seu lugar.
Pois bem. Mas se o organismo humano não conhece captando representações do mundo, como se dá, efetivamente, o processo cognitivo humano? Em verdade, conhecer não é senão viver; sendo, por isso, a vida cotidiana o ponto de partida e, sobretudo, o ponto de chegada da explicação do conhecimento. Sem vida, não
podemos conhecer. Para conhecermos é necessário vivermos. Do mesmo modo
que, para vivermos e convivermos, torna-se necessário conhecermos. É por essa
razão que inexiste conhecimento independente do operar de quem o vivencia, já que
nenhuma experiência humana acontece fora da vida.
Tudo que ocorre na vida, e as experiências cognitivas não escapam a essa condição, somente se explica com coerências operacionais da própria vida. Nesse sentido, todo ser vivo constitui um sistema cognitivo, porque, se não o fora, morreria, tendo em vista que, para se adaptar ao meio, necessita, de algum modo, conhecê-lo. E, esse processo de conhecimento, dá-se na vivência e convivência, ao
mesmo tempo em que o organismo, efetivamente, atua com relevância para conservação de si mesmo (autopoiese), em um domínio de interações que ele próprio elege.
O processo cognitivo se resume, então, à atuação ou ao comportamento
efetivo da unidade de interações (ser humano), no correspondente espaço relacional160. “Tudo isso pode ser condensado no aforismo: Todo fazer é conhecer e todo
conhecer é fazer.” (MATURANA e VARELA, 1995, p. 68). Não obstante, não falta
160
Esclarece Maturana (1970, p. 13) que: “A cognitive system is a system whose organization defines a domain
of interactions in which it can act with relevance to the maintenance of itself, and the process of cognition is the
actual (inductive) acting or behaving in this domain. Living systems are cognitive systems, and living as a process is a process of cognition. This statement is valid for all organisms, with and without a nervous system.”
64
quem resista à contingência dos tempos, defendendo a inexistência de consciência
(mente) sem objetos, pois:
Se os objetos de meu conhecimento não fossem os reflexos de cousas existentes por si, de cousas independentes de meu cogito e de
meu ato de pensar; se o conhecimento não fosse efeito da ação dos
objetos sobre os órgãos dos sentidos, não haveria explicação possível para a existência de tais objetos na minha consciência, nem para
as formas que esses objetos assumem, sendo exatamente o que são.
Nenhuma análise da natureza das sensações e dos processos de sua
produção, por mais meticulosa que a façamos, será capaz de fornecer a razão da existência de sensações, se não se admitirem objetos
externos, provocadores dos impulsos nervosos que acionam os cen161
tros cerebrais. (TELLES JUNIOR, 2004b, pp. 196-197).
Essa parece ser, também, a tese perfilhada pela generalidade dos juristas
modernos e pós-modernos, inclusive pelo professor Pérez Barberá (2011, p. 31 e
ss.), que apresenta a intenção, o conhecimento, a vontade, a representação, como
“meros datos empíricos de índole psíquica”. O problema é que experimentações científicas rigorosas, levadas a efeito no campo da Neurobiologia162, invalidam essa
vetusta especulação metafísica, dando conta de que: “A pergunta, ‘Qual é o objeto
do conhecimento?’ carece de sentido. Não há objeto de conhecimento. Conhecer é
poder operar efetiva e adequadamente numa situação individual ou coperativa”163
(MATURANA, 1970, p. 53).
A partir de Biology of Cognition164, a ciência chega à conclusão de que
conhecer é fazer, isto é, atuar adequadamente em certo domínio linguístico, especificado por uma pergunta formulada pelo observador; desde então, portanto, o conhecimento deixou de ser um processo ocorrente no cérebro humano, cujo órgão,
ao ser ativado por entes provocadores de impulsos nervosos, funcionaria como um
receptáculo de imagens, dados, representações ou formas de objetos capturados no
mundo circundante. Para a nova ciência, em se tratando de uma rede neuronal fe161
Cf. Pörksen e Maturana (2004, p. 35).
Sobre o tema, cf. Maturana (2001a; 2001b; 2003b; 2009a e 2009b); Maturana e Pörksen (2004); Maturana e
Varela (2003a) DÁVILA e MATURANA (2008), e Varela (1996).
163
Tradução livre: “The question, 'What is the object of knowledge?' becomes meaningless. There is no object of
knowledge. To know is to be able to operate adequately in an individual or cooperative situation”.
164
Vide nota 15.
162
65
chada em sua organização165 e determinada em sua estrutura, o sistema nervoso
rejeita interações instrutivas, não acumula, não processa, nem emite informações.
[Entonces] cambia todo el enfoque [respecto del conocimiento]. Ya no
podemos recurrir a aquellas descripciones que pintan al sistema nervioso como calculando la representación de un mundo exterior y procesando la información que recibe desde afuera para generar a partir
de ahí la conducta adecuada y la reacción apropiada. El sistema nervioso aparece como una red estructuralmente determinada con su
propio modo de operar. Los cambios en él solamente son gatillados,
pero no determinados o definidos unilateralmente, por los rasgos y
características del mundo exterior. El mismo sistema nervioso calcula
sus transiciones de un estado a otro. (MATURANA e PÖRKSEN,
2004, p. 35).
Seja como for, não nos convém abandonar a tarefa de buscar, para a razão, um cantinho só seu, no mapa do conhecimento; ao contrário da mentalidade
moderna reducionista, que pretende tornar o ato cognoscitivo a suprema expressão
da razão, a mentalidade pós-colonialista, ao tempo em que reconhece a relevância
da razão, sustenta que não há argumento racional isolado de um fundo emocional,
porque “todo sistema racional se constitui no operar com premissas previamente
aceitas, desde certa emoção” (MATURANA, 2001a, p. 8)166.
Assentamos, então, desde logo, que, para a mentalidade pós-colonialista,
o saber não se encerra numa questão de racionalidade, mas também de emocionalidade. Se, de fato, for razoável compreender que o ato de conhecer configura uma
conduta, como qualquer outro tipo de ação, a exemplo dos atos de comer, escrever,
beber, falar, andar, respirar, jogar, raciocinar, julgar, admirar, voar, pensar, separar,
beijar, abraçar, rezar, incluir, meditar, excluir, argumentar etc., então ficará fácil perceber por que o emocional é o primeiro passo rumo ao racional, para, em algum
momento, ambos se entrelaçarem no linguajear167.
É evidente que a noção de emoção, a que se reporta este estudo, não se
confunde com certas sensações que, de algum modo e inefavelmente, provocam
165
Maturana aponta duas dimensões nos sistemas autopoiéticos, a organização (fechada), que define a identidade do sistema, e a estrutura (feitura do sistema, cujos componentes e suas relação podem cambiar com conservação da identidade).
166
Zaffaroni (2010, 291-292), sem se dar conta, implicitamente, admite essa tese, ao afirmar que “Una verdadera
teoría dogmática nunca puede prescindir de una decisión previa y extralegal que le da sentido y unidad a la construcción”.
167
A linguagem aqui tomada como fenômeno biológico, fundadora da própria espécie humana.
66
prazer, remorso ou dor em quem as sente.168 As emoções a que nos referimos são
aquelas tidas como disposições ou estados de ânimo corporais para ação ou omissão, que, no fluxo do viver, de momento a momento, especificam domínios cognoscitivos, linguísticos ou de realidade, dos quais, enativamente, emergem as múltiplas
dimensões do ser humano, moduladas de forma congruente por suas respectivas
dinâmicas interna e externa.
Como esclarece o neurobiólogo Francisco Varela (VARELA, 1996, p. 5),
“tenemos una disposición a la acción propia de cada situación específica que vivimos. Nuevas formas de conducta y las transiciones y puntuaciones que las separan
corresponden a minirupturas que experimentamos continuamente”. Em outras palavras, o que, de fato, ocorre em nossa experiência cotidiana, enquanto animais bípedes e mamíferos, a todo instante, é que cada situação ou estado, que vivenciamos,
estará sempre pontuada por alguma correlativa emoção, que a especifica. Durante a
vivência ou convivência, fluímos, estrutural e ontogenicamente, no contínuo presente
do emocionear; e essa é uma condição existencial inescapável.
3.3.2.3 Racioemocionalidade
3.3.2.3.1 Racionalidade
Uma argumentação dessa natureza, infelizmente, não se torna possível
em um espaço cognitivo de caráter meramente formal, que, como vimos, não obstante a beleza do constructo, depende de truques argumentativos e frequentes ajustes para se manter em sintonia com os desígnios da ideologia dominante, que enxerga nas emoções um intransponível obstáculo ao progresso da ciência 169, e, porque não dizer, às suas preferências. Por essas e outras, no domínio colonialista do
saber, diz-se que a ideia gera a emoção; ou, por outras palavras, que a razão de168
Sobre o tema, cf. Telles Junior (1988).
Vale recordar, com Maturana (2001a, p. 8), que “Las emociones no son lo que corrientemente llamamos
sentimientos. Desde el punto de vista biológico lo que connotamos cuando hablamos de emociones son disposiciones corporales dinámicas que definen los distintos dominios de acción en que nos movemos. Cuando uno
cambia de emoción, cambia de dominio de acción”.
169
67
termina a ação170. É dessa forma que a racionalidade se apresenta como farol-guia
do saber, em qualquer âmbito do realismo filosófico (externo ou interno) moderno.
A redução do humano à sua dimensão racional não é trivial, portanto. Trata-se, na verdade, de uma invenção ontológica a que se associa a um isomórfico
desenho epistemológico, apto a satisfazer aos declarados e inconfessados desejos
do pensamento patriarcal/matriarcal dominante. Essas circunstâncias indicam que o
ser humano ainda vive e convive em plena Era Colonialista, num mundo racionalista,
em que a emocionalidade é exibida como evidencia de obtusão intelectual. Essa,
contudo, não é noção compartilhada pela biologia cognitiva do Doutor Humberto Maturana Romesín, para quem:
[…]. Decir que la razón caracteriza a lo humano es una anteojera, y lo
es porque nos deja ciegos frente a la emoción que queda desvalorizada como algo animal o como algo que niega lo racional. Es decir, al
declararnos seres racionales vivimos una cultura que desvaloriza las
emociones, y no vemos el entrelazamiento cotidiano entre razón y
emoción que constituye nuestro vivir humano, y no nos damos cuenta
de que todo sistema racional tiene un fundamento emocional. […]. En
verdad, todos sabemos esto en la praxis de la vida cotidiana, pero lo
negamos, porque insistimos en que lo que define nuestras conductas
como humanas es su ser racional. (MATURANA, 2001a, p. 8).
Não negaremos, evidentemente, que o ser humano opera, também, com
racionalidade; todavia não temos razão suficiente para desprezar a fisiologia emocional de todo animal, impossível de desaparecer do organismo vivente por conta de
mera conveniência epistemológica. O fato de a modernidade não ter se apercebido
das coerências operacionais históricas necessárias à completa descrição do ser humano, não a libera para enquadrá-lo num conceito emocionalmente asséptico. Daí a
necessidade de conciliação, no plano explicativo, do racional com o emocional.
Por isso, enxergamos o ser humano, primeiramente, como um animal, cujo modo de vida encontra-se imerso no linguajear. Sendo um animal mamífero, o ser
humano é, intrinsicamente, emocional, como qualquer outro da espécie, e não perde essa condição pelo fato de ser também linguajeante; ainda que esse traço ontogênico o distinga dos demais animais. Na verdade, poderíamos afirmar, com base
em abundantes dados empíricos, que o decisivo —na diferenciação entre um animal
humano e outro qualquer— é a estupidez, pois, dentre todas as espécimes do Reino
170
Cf. Davidson apud Vives Antón (2011, p. 235).
68
Animal, o ser humano é único estúpido, na proporção em que tenta ocultar na linguagem simbólica sua inevitável condição animalesca.
Ironia à parte, ainda que com evidente foro de veracidade, nos limitamos
a configurar o ser humano, singelamente, como como um animal racioemocional171,
ressalvando, porém, que, no domínio da linguagem, enquanto modo de convivência,
as palavras são secundárias. O que mais importa são as coordenações recursivas
de ação ou omissão. Desse modo, o fato de o prefixo ratio (= razão) anteceder ao
vocábulo emocional (derivado do francês émotion + al), na composição da palavra
proposta, não implica manter o status quo da racionalidade, como característica especificadora do humano; a opção é, aqui, puramente estilística.
Da mesma maneira, nada tem a ver o étimo da palavra emoção, que, na
origem, indica perturbação, entorpecimento ao raciocínio, à faculdade intelectual.
Pelo contrário, no domínio pós-colonialista, ainda que não a valide, a emoção sempre antecederá à razão, na medida em que a especifica nos entrelaçamentos das
conversações172. Neste estudo, então, o neologismo racioemocionalidade é aplicado
para evocar o entrelaçamento da emocionalidade com a racionalidade, no fluxo do
contínuo presente cambiante da deriva estrutural ontogênica do ser humano matríztico, que opera na co-deriva da linguagem.
No fundo, e nunca induz demasia repetir: “não é a razão o que nos leva à
ação, mas a emoção” (MATURANA, 2002, p. 23). E nesse sentido, igualmente, o
pensamento pós-colonialista aparta-se das proposições explicativas de ordem colonialista. Para reforçar essa premissa fundamental, intrínseca às ontologias constitutivas, e, logo, à epistemologia unitária de Santiago do Chile, vale a pena escutar, pela
enésima vez, o diagnóstico do biólogo Maturana (2001b, p. 48) sobre o tema:
[...]. Sim, não há nenhuma atividade humana que não esteja fundada,
sustentada por uma emoção, nem mesmo os sistemas racionais, porque todo sistema racional, além disso, se constitui como um sistema
de coerências operacionais fundado num conjunto de premissas aceitas a priori. E essa aceitação a priori desse conjunto de premissas é o
espaço emocional. E quando se muda a emoção, também muda o
sistema racional.
171
Trata-se de neologismo não utilizado por Maturana, aqui aplicado no sentido de pontuar o entrelaçamento
entre razão e emoção, que conformam a Ontologia do Conversar defendida pelo pensador chileno. Ao invés de
racional, o ser humano melhor seria racioemocional, então. Convém assinalar que a referida palavra já não é tão
nova, uma vez que ela foi usada em outros contextos (Cf. JARA, 2003, p. 6).
172
Cf. Maturana (2001b, p. 132).
69
Com efeito, não deixa de ser constrangedor e doloroso termos de abrir
mão de algumas certezas tão caras, para conviver com ideias aparentemente tão
assombrosas. O assombro, contudo, é algo ínsito à ignorância humana, e não existe
como um em si173. O fato é que, quando alguém se surpreende, com o que chamamos de novo, não é senão porque se encontrava vivenciando um estado de cegueira
cognitiva, relativamente a certas coerências operacional-relacionais, que se achavam invisíveis no seu próprio domínio de existência174.
De qualquer modo, como existem sistemas vivos e institucionais, cujas
estruturas não se comprazem com a inconsequência do formalismo colonialista, a
inevitabilidade da opção impõe que conheçamos a alternativa, de maneira a evitar
previsíveis incongruências estruturais, senão a porta estaria aberta ao mascaramento de reflexões levadas a cabo em espaços-tempo175 especificados por emoções
contraditórias. Por exemplo, como aceitaríamos, sem hipocrisia, a realização das
matrizes bioculturais Homo sapiens-amans agressans e arrogans em domínios informados por coerências operacionais e classes de emoções inerentes à matriz Homo sapiens-amans ethicus, que evocam confiança, autonomia, democracia e respeito mútuo entre humanas e/ou humanos? (DÁVILA e MATURANA, 2008, p. 63).
Na atualidade, a configuração de qualquer domínio de ação humana só
será racional se for levada em conta a correlata dimensão emocional da unidade
autopoiética. Disso resulta, portanto, que racionalidade e emocionalidade caracterizam domínios de realidade disjuntos, que se entrelaçam nas conversações. Embora
o humor do organismo não valide a adequação do modo comportamental observado176 em certo espaço especificado por uma pergunta, não hesitamos em sustentar
que o aspecto emocional sempre determinará a plasticidade da interatuação do ser
humano, no correspondente acoplamento socioestrutural.
173
A respeito do sentido de “assombro”, cf. tb. Wittgenstein (2008).
Quando um observador vê um ser humano interagindo no seu domínio de existência, pode descrever as interações como diferentes tipos de condutas. Não obstante, pode dar-se conta, facilmente, de que o meio no qual o ser
humano interatua dispõe de muito mais dimensões ou configurações de relações do que aquelas que podem ser
utilizadas na descrição dos comportamentos, e que, geralmente, essas dimensões e configurações de relações não
podem ser descritas com facilidade, a menos que o fluxo vital do ser humano permita mostrá-las (MATURANA,
2009a, p. 54).
175
“En verdad el espacio es impensable sin el tiempo, por lo que es más correcto hablar de una entidad compleja,
el espacio-tiempo, en el cual la dimensión espacial ha adquirido preminencia recientemente. Este hecho resulta
de las transformaciones por las que pasó nuestro modo de vida en las últimas décadas” (SANTOS, 1991, p. 2).
176
Na linguagem de Von Foerster. Vide nota 47.
174
70
A racionalidade tem a ver, portanto, com o manejo adequado de coerências operacionais em certo domínio cognitivo (matemático, sociológico, político, moral, religioso, econômico, jurídico), delimitado por uma pergunta; mas a preferência
pela pergunta feita, dentre tantas outras possíveis, bem como por uma ou outra coerência operacional, a despeito de outras também legítimas, trata-se de uma escolha,
da satisfação de um desejo; logo, de uma questão emocional. Daí porque, no dizer
de Humberto Maturana, todo argumento racional tem um fundamento emocional177.
3.3.2.3.2 Emocionalidade
A afirmação de que todo fazer ou não fazer racional se apoia sobre certa
emoção que o determina, não se trata de mera definição abstrata, porém de uma
condição de existência biológica, decorrente das próprias características estruturais
ontogênicas do ser vivo humano178. Definitivamente, são as emoções que mobilizam
o ser humano, inclusive os bebês, que, pouco tempo depois de nascerem, não hesitam em reivindicar o colo das mamães, principalmente no momento da amamentação; no entanto, nada disso é seguro, pois, até os bebês, dependendo do estado
pós-parto, não estarão a salvo da rejeição de suas genitoras179.
Mesmo o professor Goffredo Telles Junior, que no seu leito de morte devotou lealdade canina ao pensamento aristotélico-tomista180, não titubeou a respeito
da relevância das emoções, para a configuração do ser humano. De fato, sustenta o
saudoso jurisfilósofo que: “Os sentimentos, repetimos, é que levam à ação. Por tal
motivo, podem os sentimentos ser propriamente chamados de emoções” (TELLES
JUNIOR, 2004b, p. 220)181. O problema é que, pouco depois, Telles Junior, talvez
177
Sobre o conceito de inteligência, cf. Maturana (2003b).
Sobre o assunto, cf. Maturana e Varela (2003a).
179
Sobre a origem do ser humano sob uma perspectiva sistêmica-sistêmica, cf. Maturana (2001a, p. 10 et. seq.).
180
Cf. Youtube (2009b). A doutrina jurídica do jurisfilósofo brasileiro, basicamente, apoia-se na filosófica clássica de Aristóteles e São Tomás de Aquino, fitando Bergson na questão evolucionista. Telles Junior, contudo, foi
o primeiro jurista a dar-se conta da dimensão biológica da juridicidade, ainda à luz da perspectiva darwinista,
uma vez que seus estudos biojurídicos desenvolveram-se praticamente de forma simultânea às investigações de
Humberto Maturana Romesín no campo da Biologia do Conhecimento, a partir dos anos 60 do Séc. XX.
181
Segundo Maturana (2002, p. 15): “As emoções não são o que correntemente chamamos de sentimento. Do
ponto de vista biológico, o que conotamos quando falamos de emoções são disposições corporais dinâmicas que
definem os diferentes domínios de ação em que nos movemos. Quando mudamos de emoção, mudamos de domínio de ação. Na verdade, todos sabemos isso na práxis da vida cotidiana, mas o negamos porque insistimos
que o que define nossas condutas como humanas é elas serem racionais. Ao mesmo tempo todos sabemos que,
178
71
por injunção do ambiente acadêmico de sua época182, é forçado a “concluir que os
sentimentos dirigem o comportamento, mas que a inteligência183 é o que determina
os sentimentos” (Id. Op. cit., p. 222).
Eis, então, mais um inequívoco indício de que, na metafísica da consciência, a razão domina a configuração humana monodimensional, mesmo que se admita, explicitamente, a inexistência de ação desprovida de emoção. Ocorre que, segundo Maturana, o ser humano melhor seria definido não como um “animal racional”,
mas, sim, como um “animal emocional”, melhor dizendo, “linguajeante”, que usa seu
intelecto e sua razão para negar as emoções, ou também justificá-las. Todavia, o
fato é que as emoções estão na base de qualquer ação, sendo, portanto, inexoravelmente, o fundamento da atividade humana; logo, por conseguinte, da racionalidade (MATURANA e PÖRKSEN, 2004, pp. 64 et 107).
E, para economizar palavras, convém anteciparmos o argumento decisivo, que inverte a compreensão sobre o tema, registrando, ainda, o que tem a dizer
Maturana (Op. cit., p. 74):
[…].Yo digo que las emociones son lo que determinan si, o en qué
grado, uno es capaz de utilizar sus propias capacidades y su inteligencia fundamental. La emoción de cada momento es lo que modula
decisivamente la conducta inteligente. Quizás alguien simplemente no
puede concentrarse porque tiene miedo; en todo caso se conducirá
de otra forma que alguien que está deprimido o que derechamente
está aburrido y tiene otros intereses. […]. Reitero: la inteligencia no la
entiendo como una actividad determinada, sino como una capacidad
general para moverse con flexibilidad y plasticidad interior en un
mundo cambiante.
Como vemos, então, não pertence à Biologia do Conhecimento a obsessão de privilegiar a emocionalidade, em detrimento da racionalidade, pois sabemos
que a vida se vive e convive em um devenir ontogênico, num fluxo cambiante de interações recursivas, em que razão e emoção se entrelaçam na linguagem, em forma de conversações, preservando cada qual a sua função. Em última análise, o que
desejamos pontuar é que, de fato, a cegueira ativa da ciência ocidental, relativamenquando estamos sob determinada emoção, há coisas que podemos fazer e coisas que não podemos fazer, e que
aceitamos como válidos certos argumentos que não aceitaríamos sob outra emoção.”
182
Cf. Telles Junior (1949).
183
Para Telles Junior (2004b, p. 223) “A inteligência do ser humano é a sua requintada faculdade de resolver os
problemas da vida pela adaptação de meios a fim.”
72
te à dimensão emocional do ser humano, limita drasticamente a consistência do saber colonialista184.
A Telles Junior assiste, portanto, carradas de razão, no ponto em que
afirma, sem hesitação, ser a emoção o motor da ação humana; antecipando, com
isso, uma nova perspectiva na metafísica do saber jurídico, ao se dar conta da íntima relação entre os fenômenos biológicos e culturais; todavia, outro tanto merece
ser atribuído a Maturana (2002, p. 23), por ter percebido que a razão não determina
a ação; tampouco a emoção185. Pelo contrário, para o pensador chileno, como vimos
há pouco, é esta que modula, plasticamente, o intelecto, ainda que não valide sua
atividade, é certo.
Realmente, não é o fato de os modelos descritivos colonialistas exorcizarem as emoções, o que torna o ser humano apático, visto que, apesar de tudo, a
mulher e o homem continuam sendo animais emocionais, que também agem racionalmente, ou não. Em definitivo, vale dizer, as emoções não operam como limitação
à razão; somente a modulam e especificam. Na realidade, para cada ação, uma
classe de emoção que a delimita186. “A razão se funda sempre em premissas aceitas
a priori. A aceitação apriorística das premissas, que constituem um domínio racional,
pertence ao domínio da emoção, e não ao domínio da razão, mas nem sempre nos
damos conta disto”187 (Id., op. cit., p. 51).
Enfim, antecipando mais uma conclusão preliminar desse estudo, ainda
nas pegadas de Humberto Maturana, cumpre repisar que:
184
Cf. Maturana (2009b, p. 45). “Segundo sabemos que en toda relación interpersonal hay un trasfondo biológico
constitutivo último en el cual nos podemos encontrar como seres humanos. Si uno logra estar en ese trasfondo,
las conversaciones de aceptación mutua, de cooperación 'y de conspiración para un proyecto común son posibles
y durarán hasta que uno u otro salga de ese espacio emocional. Así, si el otro dice: "soy musulmán shiita" y yo
contesto: "soy católico", es posible que pasemos a otro espacio emocional de negación y no de aceptación, porque el "ser musulmán shiita" y el "ser católico", traen consigo dinámicas emocionales diferentes.” (Id., 2001a, p.
56).
185
“Finalmente, não é a razão o que nos leva à ação, mas a emoção. Cada vez que escutamos alguém dizer que
ele ou ela é racional e não emocional, podemos escutar o eco da emoção que está sob essa afirmação, em termos
de um desejo de ser ou de obter. Cada vez que afirmamos que temos uma dificuldade no fazer, existe de fato
uma dificuldade no querer, que fica oculta pela argumentação sobre o fazer. Falamos como se fosse óbvio que
certas coisas devessem ocorrer em nossa convivência com os outros, mas não as queremos, por isso não ocorrem. Ou dizemos que queremos uma coisa, mas não a queremos ou queremos outra, e fazemos, é claro, o que
queremos, dizendo que a outra coisa não pode ser feita”. (MATURANA, loc. cit.).
186
“Por isso mesmo, sustento que não há ação humana sem uma emoção que a estabeleça como tal e a torne
possível como ato”. (Id., 2002, p. 22).
187
“Quer dizer, ao nos declararmos seres racionais, vivemos uma cultura que desvaloriza as emoções, e não
vemos o entrelaçamento cotidiano entre razão e emoção, que constitui nosso viver humano, e não nos damos
conta de que todo sistema racional tem um fundamento emocional.” (Id. Ib., p. 15).
73
O que conotamos na vida cotidiana ao distinguirmos aquilo que chamamos de emoções são domínios de ações. Por isso, enfatizo que o
que distinguimos biologicamente ao falar de diferentes emoções são
as diferentes disposições corporais dinâmicas que especificam os diferentes domínios de ações onde nós, os animais, nos movemos. Por
isso, na medida em que diferentes emoções constituem domínios de
ações distintas, haverá diferentes tipos de relações humanas dependendo da emoção que as sustente, e será necessário observar as
emoções para distinguir os diferentes tipos de relações humanas, já
que estas as definem. (MATURANA, 2002, p.68).
É isso! Nada mais, nada menos que isso.
3.3.2.4 Relação de seletividade
Pois bem, rudimentarmente falando, da conjunção de determinada dinâmica situacional (ou relacional) com certa emoção modulada pelo sistema nervoso
(dinâmica neurofisiológica) tende aparecer um domínio de conduta (positiva ou negativa) de onde emerge um microcosmo (micromundo), bem como a identidade (situacional) do indivíduo. Assim, é turista quem se encontra viajando e na emoção de
excursionar, de se divertir; por outro lado, o indivíduo humano que estiver viajando,
porém involucrado na emoção de auferir vantagem por conta do resgate de alguém
que o acompanha, o mais provável é que seja identificado como sequestrador, e não
como turista188.
Cada domínio cognitivo tem sua própria configuração estrutural-relacional,
com específicas coerências e relações operacionais, e emerge como uma matriz
sensório-relacional-operacional na distinção do observador, na linguagem; ademais,
no nível da organização, inexiste interseção entre a multiplicidade de micromundos,
a despeito do acoplamento estrutural189 que possa haver entre estes. “En fin, lo que
le da el carácter relacional propio a cualquier actividad de convivencia humana es la
188
O exemplo sugerido é nosso.
Segundo Maturana: “Un acoplamiento estructural está dado cuando las estructuras de dos sistemas estructuralmente plásticos se modifican debido a interacciones recurrentes, sin que por eso se destruya la identidad de los
sistemas interactuantes” (MATURANA e PÖRKSEN, 2004, p. 48). Cf. tb. Maturana e Varela (2003a, p. 137) e
Maturana (2009b, p. 244).
189
74
configuración de sentires íntimos y emociones que guía el curso que sigue el convivir” (MATURANA, 2012)190.
De fato, segundo a maneira pós-colonialista de pensar, cada domínio de
conduta constitui uma unidade relacional disjunta de outras unidades relacionais
constitutivas de fenótipos ontogênicos (modos de viver). E as relações entre os elementos que compõem a unidade sistêmica são descritas pelo observador como coerências operacionais históricas recorrentes (DÁVILA e MATURANA, 2008, p. 331),
cujo adequado manejo, nas fronteiras de certo domínio de realidade, configura um
comportamento, que o observador distingue como racional ou adequado191.
Tudo isso nos induz à conclusão de que somente é possível falarmos de
racionalidade na extensão interna de cada domínio linguístico particular, porque a
forma como se dá a constituição de cada espaço cognitivo é, de fato, incompatível
com a suposição de que existem verdades universais e a priori, invocáveis generalizadamente. Ao contrário do que acontece no universo (ou mundo), reivindicado pelos colonialistas, no multiverso, dos pós-colonialistas, cada verso (ou micromundo)
se funda num substrato epistemológico, ou critério de aceitabilidade particular, que
valida o operar constitutivo do observador, no linguajear192. No espaço colonialista, a
validação supõe um substrato ontológico descritível do ser, jamais explicável.
Ademais, a emoção que fundamenta um critério constitutivo de certo domínio de realidade será, também, distinta das demais emoções que configuram outros versos (microcosmos) na linguagem. Dessa forma, no domínio cognitivo, em
cujo âmbito o observador opera, constitutivamente, gerando microcosmos diferentes,
momento a momento, não há espaço para uma racionalidade que abarque, num só
golpe, todas as realidades particulares, externas a tal domínio. E, nesse sentido, a
universalidade da razão, suposta pelo colonialismo cognitivo, também não deixa de
ser um mero argumento proposto como explicação.
Cabe ressaltar, mais uma vez, que o determinismo estrutural dos sistemas vivos autopoiéticos193 importa o reconhecimento da impossibilidade biológica de
190
As consequências derivadas deste raciocínio são, efetivamente, extraordinárias. Estaríamos autorizados a
sustentar, por exemplo, que o indivíduo que não for surpreendido numa configuração situacional especificada
pela emoção de omitir não poderá ser tachado de omisso sem alguma injustiça.
191
Sobre o assunto cf. Maturana (1988, p. 41 et seq.).
192
É o substrato epistemológico que especifica o critério de validez da distinção levada a efeito na experiência.
Cf. Maturana (1988, p. 29).
193
De autopoiese (auto + produzir-se).
75
interações instrutivas externas a qualquer ser vivente194; todas as atividades ocorrentes no âmbito interno do organismo são autoproduzidas recursivamente195, não
sendo mero efeito, portanto, de irritações, estímulos ou perturbações, provindas do
meio ambiente. O determinismo estrutural, segundo Maturana (2001b, p. 174), “é
uma abstração que fazemos das regularidades e coerências de nosso viver cotidiano
ao explicarmos nosso viver cotidiano com as regularidades e coerências de nosso
viver cotidiano”.
Por essa mesma razão, sustentamos a inexistência de relação de causalidade entre sistemas determinados em sua estrutura. Na verdade, as coerências
operacionais-relacionais sistêmicas, que vemos num acoplamento estrutural, são
abstrações de correlações históricas, que, como observadores, efetuamos “al relacionar momentos disjuntos de las continuas transformaciones arquitectónicas cíclicas
que ocurren en el sistema cerrado”, na conservação e realização deste como totalidade (DÁVILA e MATURANA, 2008, p. 336).
As mudanças de estado, reciprocamente desencadeadas entre unidades
interacionais autopoiéticas e o meio que as envolve, jamais serão efeito de uma
causa cambiante do outro, pois os referidos sistemas (unidade e meio) tão somente
admitem interações seletivas, e nunca instrutivas, portanto (MATURANA, 2003, p.
22). O meio não é causa de um efeito, enfim; pois somente desencadeia perturbações no sistema, que as seleciona de acordo com sua estrutura. Desse modo, o que
há é seletividade, na relação entre sistema e entorno, e não relação de causalidade,
tal como sugerem os colonialistas. Na realidade, o que a tradição cognitiva vê como
causa, controle, ou regulação de um fenômeno, dá-se apenas no espaço de reflexão
do observador, como um truque argumentativo, uma inventiva limitada pelas circunstâncias e contingências da sua deriva estrutural.
Por esse indesculpável fundamento, somos constrangidos racionalmente
a concluir, com todas as letras, que o fato de a dinâmica interna de um sistema fe194
É o que ocorre, por exemplo, no âmbito social, quando o sistema político irrita o direito com artefatos legislativos incompatíveis com os valores que afetam a organização do sistema jurídico. O filtro estrutural do controle
judicial de legalidade ou inconstitucionalidade impede a inovação do direito positivo com a finalidade de preservar a identidade da ordem jurídica.
195
Que se volta sobre si mesmas. Segundo Maturana apud A. Ruiz (1997, p. 8), há sempre uma recursão quando
o observador pode afirmar que a reaplicação de uma operação ocorre como consequência de sua aplicação anterior. Por outro lado, quando a operação é repetida independentemente das consequências da operação antecedente temos uma mera repetição.
76
chado constituir a possibilidade da respectiva dinâmica relacional não implica que
esta seja efeito daquela, ou vice-versa196, pois:
Debido al determinismo estructural de los seres vivos, estos dos dominios operacionales [interno y externo] son disjuntos, no se intersectan, y no son operacionalmente reducibles el uno al otro. De esto resulta que aunque las conductas surgen en las interacciones del ser
vivo como resultado de su dinámica estructural, ésta no es causa de
ellas” (MATURANA, 2009a, p. 118).
3.3.3 Metafísica do fazer
3.3.3.1 Reformulação explicativa da experiência
A escala mediana do nosso mapa impede a simbolização detalhada dos
elementos cognitivos que formam a epistemologia unitária de Santiago; e, por via de
consequência, em particular, das ontologias constitutivas: do observar, do conversar, do linguajear, do emocionear, do amar. Aqui, importa reter apenas a ideia-base,
segundo a qual "tudo o que é dito é dito [na linguagem, desde determinada emoção]
por um observador a outro observador, que pode ser ele ou ela mesma" (DÁVILA e
MATURANA, 2008, p. 136). Aliás, como oportunamente propõe Maturana (2009b,
159):
Sin los observadores nada existe, y con los observadores todo lo que
existe existe en las explicaciones. (...). Al poner entre paréntesis la
objetividad […] aceptamos que la existencia está especificada por
una operación de diferenciación: nada existe antes que su diferenciación. En ese sentido, casa, personas, átomos o partículas elementales no son diferentes.
Todos esses argumentos são, realmente, avassaladores e chocantes.
Mas o fato é que, ainda segundo o pensador chileno (MATURANA, op. cit., p. 163):
No existimos en un dominio preexistente de existencia física: lo producimos y especificamos al existir como observadores. La experiencia
del físico, sea su ciencia física clásica, relativista o cuántica, no refleja
la naturaleza del universo, refleja la ontología del observador en tanto
196
Sobre a concepção colonialista ao derredor do tema, cf. Malatesta (1927, p. 184).
77
que sistema viviente que al operar en el lenguaje produce las entidades físicas y las coherencias operativas de sus dominios de existencia. Einstein hizo la afirmación de que «las teorías científicas (explicaciones) son creaciones libres de la mente humana»…”
A ontologia constitutiva do observar, em cujo domínio fazemos referência
às condições do que falamos ou escutamos, esclarece que a realidade não é um
acontecimento; porém um argumento ou proposição dentro de uma explicação que
resulta de uma reformulação de determinada experiência (acontecimento, estado,
situação) aceita pelo observador (Id. Ib., p. 31; Id., 2001b, p. 43). “Nenhuma proposição explicativa é uma explicação em si. É a aceitação do observador que constitui a
explicação...” (Id., 2002, p. 41).
Qualquer experiência é explicada, isto é, reformulada de acordo com as
coerências operacionais da própria experiência. Contudo o que define uma reformulação experiencial, como explicação, é a sua conformidade com o critério de aceitabilidade do domínio cognitivo de quem a escuta. É o que se dá na linha explicativa
da objetividade constituída ou “entre-parênteses” (objectivity-in-parenthesis)197. No
domínio das ontologias transcendentais, ou da objetividade-sem-parênteses (objectivity-without-parenthesis), como já o sabemos, a realidade se apresenta como um
algo dado ou construído no mundo, independentemente do operar do observador198.
Para a perspectiva pós-colonialista do saber, convém esclarecer, a experiência será sempre uma questio facti199. Simplesmente, acontece, quando acontece,
ante a sensorialidade humana, e, como tal, não pode ser disputada no campo da
argumentação. As divergências surgem em outro domínio: o das explicações, que
nada mais são que propostas de reformulação da experiência, com as coerências
operacionais200 da própria experiência. Nesse sentido, qualquer proposição de reformulação da experiência, quando aceita pelo observador, de acordo com seu pe197
Varela (1996, p. 33) lembra que, esse procedimento de “poner entre paréntesis” a realidade, cuida de um
constructo da fenomenologia husserliana da segunda década do Século XX. Maturana (1988, p. 30) emprega-o,
porém, com a finalidade de chamar à atenção para o fato de que objetividade não existe independentemente das
condições biológicas do observador, porque este é quem a constitui nas suas operações de distinção, aplicando
seus próprios critérios de aceitabilidade na formulação de explicações sobre a experiência sensorial.
198
A respeito dos termos “objetividade-entre-parênteses” (objectivity - in - parenthesis) e “objetividade- sem parênteses” (objectivity - without - parenthesis), que Maturana (1988, p. 28) associa aos dois modos fundamentais de escutarmos uma explicação, convém esclarecer que, no lugar do primeiro, também pode ser usado o termo “objetividade constituída” (constituted objectivity), e, no lugar do segundo, “objetividade transcendental”
(transcendental objectivity).
199
Questão de fato.
200
Cf. Dávila e Maturana (2008, p. 331).
78
culiar critério de aceitabilidade, torna-se uma explicação da experiência, e não a
própria experiência primária explicada.
Na verdade, a explicação não deixa de ser, também, uma experiência, na
medida em que sucede na práxis de viver do observador, como uma reflexão deste
na linguagem. Contudo, em relação à experiência explicada, a explicação (reformulação da experiência) trata-se de uma experiência de segunda ordem201. Como visto,
o fato de a explicação da experiência ocorrer com as coerências operacionais da
própria experiência, torna-a uma metarrealidade; logo, uma experiência secundária;
ou melhor, uma proposição em uma explicação. Sendo assim, quando explicamos a
natureza, o que explicamos, de fato, não é a natureza em si, mas, sim, a experiência que temos da natureza. É o que pensa a mentalidade pós-colonialista.
Entretanto, em última instância, o que importa reter é que, a partir do giro
metafísico operado pela epistemologia unitária, que nega validez à dicotomia percepção/ilusão, como noção explicativa do operar dos sistemas autopoiéticos, passou-se a cogitar sobre a existência de tantos domínios de realidade, quantos forem
os domínios linguísticos, que, por sua vez, correspondem a outros tantos e distintos
critérios de validação, constitutivos dos domínios de existência do observador. Por
essa razão, a ciência recupera seu genuíno fundamento: a emoção, pois esta, enquanto disposição corporal dinâmica, é fator biológico especificativo de todo domínio
de ação, inclusive daqueles mensuráveis por critérios de validação não científicos.
Esclarece Maturana (2009a, p. 88, tradução nossa) que não encontramos
problemas ou perguntas, para estudar ou explicar, fora de nós mesmos, em um
mundo independente, porque constituímos nossos problemas e perguntas enquanto
fluímos em nossa prática de vida cotidiana, e perguntamos as perguntas que, dentro
de nossa emocionalidade, desejamos perguntar. É certo que nossas emoções não
são parte da validação de nossas explicações científicas, mas o que explicamos
surge, porém, através de nossa emocionalidade, como uma inquietude que não queremos ignorar, e explicamos o que desejamos explicar; e o explicamos, cientificamente, porque gostamos de explicar de tal maneira.
Na realidade, o que distingue o conhecimento científico dos demais domínios explicativos é o critério de validação das explicações científicas 202, aceito por
201
202
Cf. Maturana (1988, p. 39).
Vide nota 57.
79
certa comunidade de observadores-tipo. Ontologicamente, a ciência não é diferente
de outros domínios explicativos, uma vez que está constituída da mesma forma, especificamente, como um domínio de ações definidas por um critério de validação203
(Id., Ib., p. 85). E mais. O fato de a ciência ser validada e constituída nas coerências
operacionais da prática de vida dos observadores não faz com que suas declarações ou proposições sejam subjetivas. A dicotomia objetivo-subjetivo pertence, unicamente, ao domínio cognitivo em que, o lado objetivo, indica a realidade como se
fora independente do observador (Ib., p. 88).
A proposta segundo a qual o conhecimento há de ser buscado sempre na
experiência, é, portanto, plenamente compartilhada pelo pensar pós-colonialista, haja vista que o que se chama de ilusão, ou de erro, é sempre resultado de um confronto de experiências diferentes entre si. A experiência, tida como errada, sê-lo-á,
sempre, em relação à outra experiência, considerada aceitável ou verdadeira. As
divergências não repousam, então, na experiência primária, porém, na sua explicação a posteriori, a experiência de segunda ordem (MATURANA, 2002, p. 57). Independentemente da maneira como são explicadas, as experiências não se alteram;
simplesmente, sucedem como fenômenos. Na verdade, o que pode mudar, em última análise, são as explicações sobre certa experiência, e não esta enquanto tal.
3.3.3.2 Objetividade constituída
É nessa quadra de reflexão que avistamos a eclosão da terceira virada
paradigmática204 ou, como sugerem os pós-modernos (SANTOS, 2003, p. 424), da
dupla ruptura epistemológica no modo de pensar do Ocidente. Bem ao contrário do
pensamento autocrítico pós-moderno, que se limita a apontar disfunções e inconsistências do paradigma-mãe, a Escuela Matríztica de Santiago, agora, sim, criticamente, brinda a humanidade com um esquema explicativo inovador, ao propor, co203
Segundo Maturana e Varela (2003a): “La diferencia específica entre la explicación mágica y la científica está
en el modo como se genera un sistema científico, el cual constituye de hecho su criterio de validación.”
204
A segunda virada paradigmática teria ocorrido com a suplantação da filosofia da consciência pela filosofia da
linguagem, ainda no campo da modernidade empedernida. A terceira virada se dá agora com o ataque frontal
levado a termo pela filosofia espontânea, capitaneada por Humberto Maturana, ao pensamento moderno em
geral. No plano, epistemológico esse giro corresponde à segunda ruptura paradigmática vislumbrada por Santos
(2003), desde Galileu Galilei (Vide nota 111).
80
mo alternativa à racionalidade metonímica205, o seguro e libertador caminho da metafísica constitutiva, ou da objetividade constituída (constituted objectivity)206.
A forma como Maturana e seus discípulos constroem seu modelo de “racionalidade integral”207, quer dizer, de racioemocionalidade208, não abre espaço para
reducionismos inconsequentes. De fato, configuraria rotunda incoerência admitirmos
a pluralidade da realidade, excluindo dos multiversa existenciais a objetividade-semparênteses, ou transcendental. Não. O domínio cognitivo que supõe o universum,
como referência última de validação a qualquer explicação, é deslocado para seu
habitat existencial: o das ontologias transcendentais, passando, na Era Póscolonialista, que ora se inicia, a coexistir com outros multiversos ou caminhos explicativos que sentam praça no domínio das ontologias constitutivas (MATURANA,
2009b, p. 106; e 2002, pp. 42-43).
Resumindo, com Aurora Rabelo (apud MATURANA, 2002, p. 7):
A concepção de Maturana do vivo, dos seres humanos como sistemas fechados operacionalmente, autopoiéticos e estruturalmente determinados, inutilizou as velhas dualidades: indivíduo x sociedade,
natureza x cultura, razão x emoção, objetivo x subjetivo. Ao mostrar
que “emoções são fenômenos próprios do reino animal”, onde nós,
humanos, também nos encontramos, e que o chamado “humano” se
constitui justamente no entrelaçamento do racional com o emocional,
na linguagem, fez desabar o imperialismo da razão.
São essas as razões fundamentais que nos levam a atribuir, à sulamericana epistemologia unitária, expressiva do novo senso comum postulado por
Santos (2003), o emblema “pós-colonialista”, em contraposição às ontologias trans205
Santos (2007c, p. 25) utiliza essa figura literária para destacar a dimensão reducionista do pensamento hegemônico de corte eurocêntrico, que toma a parte pelo todo, e nada do que é excluído dessa totalidade, composta
de partes homogêneas, interessa.
206
Cf. nota 197.
207
Sustenta a Escola Matríztica, conduzida por Maturana (2009a, pp. 22-23; 2009b, p. 34; 2003b p. 106-107),
que a razão constitui somente um dos fatores do conhecimento humano. O outro é a emoção, tão fundamental à
compreensão do conhecer quanto à razão. O pensamento moderno, em vão, imputou à emoção as pechas da
instabilidade, da arbitrariedade do desequilíbrio. O que faltava à humanidade era encontrar o espaço da razão,
bem como o da emoção, definindo-se biologicamente o que cada uma significa na concertação do saber. Tanto a
lógica do pensar, como o racional, pertencem às coerências operacionais recorrentes da linguagem, são independentes do argumento esgrimido e se aplicam a todos os domínios experienciais que o observador trás à mão. A
velha ideia de que o ser humano se caracteriza como um ser racional, para Maturana, é um engodo. “Quer dizer,
ao nos declararmos seres racionais[,] vivemos uma cultura que desvaloriza as emoções, e não vemos o entrelaçamento cotidiano entre razão e emoção, que constitui nosso viver humano, e não nos damos conta de que todo
sistema racional tem um fundamento emocional” (MATURANA, 2002, p. 15).
208
Vide nota 171.
81
cendentais, próprias da modernidade ocidental patriarcal; pois, toda explicação, seja
ela científica ou não, subordina-se a um critério de aceitabilidade, definido por quem
escuta, a partir da emoção que especifica o seu domínio de ações. No fundo, o que
realmente distingue uma explicação científica de outra qualquer é apenas a paixão
pelo explicar com rigor sistemático; e não a capacidade de fazermos referência a
uma suposta realidade objetiva transcendental (MATURANA, 2009a, pp. 79 e 86).
Fora do domínio cognitivo das ciências, são utilizados inúmeros critérios
de aceitabilidade para justificar nossos argumentos ou explicações, que, evidentemente, não se comprometem com a severidade aplicada às explicações científicas.
No entanto, o que importa assinalar, é que as ciências dispõem de seus peculiares
critérios de validação, das reformulações levadas a efeito pelos observadores, na
experiência, tanto quanto os demais domínios explicativos: quer sejam de ordem
espiritual, jurídica, econômica, moral, política etc. E o que é racional e universal, segundo as coerências operacionais de um domínio cognitivo, não se aplica a outros
domínios de existência diferentes, visto que os versos do multiverso são disjuntos e
especificados por emoções diferentes.
No espaço das ontologias constitutivas, concluiu Maturana (Op. cit., p.
83), não há abertura, portanto, para certos conceitos modernos e pós-modernos do
tipo: falseabilidade ou refutação; verificabilidade ou confirmação. Essas são categorias conceituais exclusivas das ontologias colonialistas, que postulam a transcendência da realidade. Ao colocar a objetividade dentro dos parênteses, para enfatizar
a condição constitutiva do operar do observador, na linguagem, a mentalidade póscolonialista assume que o conhecimento científico deriva de um mecanismo generativo (ou hipótese explicativa), que, posto para funcionar, gera o fenômeno a explicar,
sendo essa proposição sempre ad hoc209 (MATURANA, 2001b, p. 55-56).
3.3.3.3 Existência do ser
3.3.3.3.1 Condições do existir
Em resumidas contas, as ontologias constitutivas encerram, fundamentalmente, uma metafísica do Fazer, como, aliás, sugere a obra seminal Del Ser al
209
Cf. nota 57.
82
Hacer, de Humberto Maturana, em coautoria com Bernhard Pörksen (MATURANA e
PÖRKSEN, 2004). Por isso, para evitar mal-entendidos, convém esclarecer, a tempo
e a hora, que não negamos a experiência de um mundo circundante210, ou a experiência de que algo exista ou perdure211 externamente; o que rechaçamos é a suposição de que o conhecimento tenha, como condição de validade, a existência de um
mundo exterior, independentemente do operar do observador, e que faça algum sentido relacionar as operações do sistema nervoso, com esse meio circundante, ou
dele derivá-las.
O ponto fulcral da questão cognitiva não reside, portanto, na realidade objetiva, mas, sim, em conhecer como conhecemos, o que dizemos que conhecemos;
ou seja, na maneira como alcançamos e validamos o conhecimento que dizemos
saber de alguma forma. Seja como for, é importante realçar a premissa fundamental
segundo a qual toda experiência será sempre explicada, implícita ou explicitamente,
queiramos ou não, desde as coerências operacionais da própria experiência explicada; do viver e conviver do observador, no seu cotidiano; pois a vida, que não se
trata de uma propriedade dos seres vivos, porém de uma ocorrência, acontecimento
ou fato212, é explicada na vida, e a partir dela mesma.
210
“Nuevamente tengo que rechazar la clasificación de mi enfoque como solipsista. Repito: como observador
que soy no niego la experiencia de un mundo exterior, la experiencia de nuestro diálogo, la experiencia de que el
otro existe; pero sí niego vehementemente que tenga. El sistema nervioso opera como una red cerrada de correlaciones cambiantes de actividad neuronal que cada vez llevan a sucesivas correlaciones cambiantes de actividad
neuronal. Para su operar como sistema, solamente existen sus propios estados internos; sólo el observador es
capaz de distinguir un dentro y fuera, o input y output, y como consecuencia afirmar que el estimulo externo
actúa al interior del organismo, o a la inversa diagnosticar una acción del organismo sobre el mundo exterior. Lo
que es descrito como conducta adecuada es el resultado de una relación establecida por el observador: éste atribuye al organismo y al sistema nervioso las características de un mundo exterior que no son parte del operar del
organismo ni del modo de operar del sistema nervioso.” (MATURANA e PÖRKSEN, 2004, p. 35-36).
211
Há quem defenda o uso da palavra “existência” (existence) apenas para fazer referência aos seres que morrem, na hipótese dos sistemas autopoiéticos (seres vivos), aplicando ao seres não-autopoiéticos (inanimados) o
vocábulo “persistência” (persist). É o que sugerem Froese e Stewart (2011, p. 61): “[…]. This is because only
mortal beings can be concerned about their existence and therefore value its continuation and realization. Nonautopoietic systems persist, but they do not exist. [...]”. (Isto se deve a que somente os seres mortais podem estar
preocupados com sua existência, razão pela qual valorizam sua conservação e realização. Os sistemas não-vivos
perduram, porém não existem).
212
Cf. Maturana (2011d, p. 146): “Sometimes people ask me, “what is your definition of life?” To accept this
question is always a mistake because life and living are not to be defined. Living beings are happenings in our
existence that we can either observe and study or accept as a matter of fact, and we are members of that kind of
happenings. We human beings can make theories about the nature of life when we think that life is some property of living beings, but life is not a property of living beings, the word life only evokes or names an invented
abstract entity that we claim that must be there to sustain the living of a concrete singular living being. Living
does not need any theory to occur; it is the occurring of a molecular autopoietic system”. (Às vezes me perguntam: “qual é a sua definição de vida?”. A aceitação dessa pergunta induz sempre um equívoco, porque a vida e o
viver não estão por definir. Os seres vivos são acontecimentos de nossa existência, que podemos observar, estudar ou aceitar como um fato pertencente a certo tipo de acontecimento. Como seres humanos podemos inventar
teorias sobre a natureza da vida, quando pensamos que a vida é uma propriedade dos seres vivos; porém a vida
83
Nada, para o ser humano, existe fora da vida. Não existe algo vivenciado,
tampouco conhecido, desvinculado de alguém que o tenha vivido ou conhecido. Pode parecer óbvio. Mas, às vezes, mesmo o óbvio demanda explicitação. Por isso,
afirmamos que o “existir” se trata um fenômeno precário, cuja duração se conta, a
partir do seu início até o fim; com toda a dinâmica que o envolve, quer dizer, no contínuo presente dinâmico da existência, nem antes, tampouco depois. Nada existe
antes do próprio existir, e menos ainda a posteriori à própria existência.
Na verdade, quando dizemos que algo não “existe”, o que efetivamente
dizemos é que a existência ainda não começou; logo, se trata de um não existir; a
seu tempo, quando dizemos que algo “existiu”, o que afirmamos, no fundo, é que
algo cessou de existir; logo, do mesmo modo, se trata de um não existir. Por favor,
relevem mais essa redundância, pois não achamos melhor maneira dizer: a existência só existe enquanto o ser vivo se conserva e se realiza” —no contínuo presente
cambiante de sua deriva estrutural ontogênica.
O conceito de existência é, intrinsicamente, dinâmico e relacional, portanto; porque, tudo que existe, somente existe como tal, em relação a alguém: o observador, que é um ser humano. Antes de seu nascimento, nada existe para si; depois
que nasce, a existência o acompanha em seu viver; com sua morte, a existência desaparece213, porque cessa a possibilidade da experiência. Não confundamos, todavia, a existência, que expressa um acontecimento, com o tempo, que nada mais representa que uma invenção cultural.
É que a existência dos sistemas viventes se dá, sempre, em tempo zero,
no contínuo presente cambiante do viver e conviver no meio envolvente. A referência
ao passado e ao futuro constitui somente uma maneira de o observador se reportar
ao presente, em suas correlações sistêmicas, no espaço relacional. Os sistemas
vivos fluem, simplesmente, numa deriva estrutural, em um presente contínuo de mudanças estruturais ontogênicas. Na vida não há fuso horário. Nela a hora é sempre a
mesma; desse modo, as convenções espaciotemporais aproveitam somente às openão é uma propriedade dos seres vivos, já que a palavra vida somente evoca ou rotula uma entidade abstrata
inventada, que sustentamos que deve haver aí para dar suporte à vida de um ser vivo singular e concreto. A vida
não necessita de nenhuma teoria para que se produza, porque constitui apenas a ocorrência de um sistema autopoiético molecular). (tradução livre nossa)
213
Sobre o modo como a metafísica transcendental, particularmente a de corte aristotélico-tomista, enxerga a
questão da existência, cf. Jolivet (1965).
84
rações de distinção do observador, não aos sistemas viventes, que vivenciam,
atemporalmente, todas as suas operações como válidas.
Para um observador, repita-se, que é sempre um ser humano, algo existe
somente durante o seu viver e conviver, isto é, na sua existência, como distinção
levada a efeito na linguagem, que remete ao marco existencial do próprio observador. Em verdade, quando este vê ou escuta algo, pode distingui-lo ou não. Se o fizer, terá de explicar a experiência vivida, com elementos da própria vida, ou seja, a
partir da experiência acumulada em seu viver, não lhe sendo possível, então, extravasar da própria vida, no intuito de explicá-la; porque, quando alguém pergunta pela
vida, já está nela mesma, vivendo; daí a razão pela qual dizemos que a experiência
somente pode ser explicada com a própria experiência. É o círculo cognitivo que se
perfaz, como uma condição existencial, e não como um defeito lógico, como imaginam os colonialistas.
Ainda que esses, de seus diversos domínios, vejam como problemático
esse tipo de conclusão, uma vez que se negam a reconhecer a circularidade do processo cognitivo, talvez por ignorarem que a explicação jamais substitui a experiência214, cumpre reafirmarmos que o próprio observador, também, só existe, como
distinção de si mesmo, na linguagem; haja vista que só esta lhe permite ter autoconsciência, no curso do processo de reflexão215. É por isso que o observador, ao
indicar um objeto ou entidade, na operação de distinção, necessariamente, já se encontra na linguagem, que opera como uma coderiva estrutural do sistema humano,
no meio que o envolve, enquanto coordenação de coordenações consensuais de
condutas216.
Vale pontuar, com efeito, que a linguagem, na qualidade de fundamental
condição existencial do Ser, não configura um sistema de signos217, estruturado
semântica, sintática e pragmaticamente, e que operaria tangenciando consciências
214
Vide nota 199.
Vejamos um dos propósitos de Maturana e Varela (1995, p. 233): “queremos identificar a característicachave da linguagem, que modifica de modo tão radical os domínios comportamentais humanos possibilitando
novos fenômenos como a reflexão e a consciência. Tal característica é que a linguagem permite a quem opera
nela descrever-se a si mesmo e às suas circunstâncias.”
216
Quem pratica cooper (“jogging”) ou já correu numa esteira ergométrica sabe do que estamos falando. Ante o
sinal de cansaço, tendemos encerrar o treino. Contudo, se necessitamos correr um pouco mais, damos início a um
processo de reflexão sobre as vantagens de insistir na prática do exercício, e, geralmente, prosseguimos desafiando a dor. É nesse momento que a auto-observação aparece, e passamos a atuar, simultaneamente, como sistema (correndo) e (auto)observador de nós mesmos, nos autoanalisando.
217
Em sentido contrário, Vives Antón (2011, p. 637 e 644) sustenta que “el lenguaje constituye un sistema y sólo
dentro de ese sistema pueden tener sentido las oraciones particulares; […].”
215
85
psicofísicas, ao modo de ver luhmanniano (LUHMANN, 2007). Não é isso. A linguagem não opera nos corpos humanos218; trata-se, na verdade, de um modo de comportamento, e, como tal, de um aspecto da vida de relação humana. Ressalvando as
peculiaridades das definições estritamente formais219,220, a linguagem aparece nas
distinções do observador como uma coderiva estrutural do modo humano de viver e
conviver em sociedade, na forma de coordenações recursivas de coordenações
consensuais de condutas.
Com palavras pobres, o que sustentamos é que a linguagem é produto da
convivência social, em cujo fluir, e no curso de sua duração, os organismos interagem, recorrentemente, provocando entre si mudanças estruturais congruentes com
as circunstâncias convividas no meio. Como já esclarecemos alhures, essas interações recorrentes, que afetam reciprocamente a dinâmica estrutural dos sistemas
interatuantes, sem comprometer as respectivas identidades ou organizações, são
vistas e abstraídas externamente pelo observador como coordenações de condutas.
No entanto, se a convivência persiste, repetitivamente, de modo que os
organismos permaneçam interagindo durante o acoplamento estrutural ontogênico, é
muito provável que se produza o que um observador pode ver, não somente como
coordenações de condutas, senão também como coordenações de coordenações
de condutas, que surgem, precisamente, da intimidade dessa convivência, aparecendo ainda, plasticamente, ao observador como consensuais221. O resultado que
emerge dessa operação cíclica222 será um novo modo de convivência. E quando
isso ocorre o que o observador passa a ver, de fato, é o operar dos organismos na
linguagem (MATURANA, 2009b, p. 199-200, tradução nossa).
218
Cf. Maturana e Varela (2003a, p. 129, 137-139; 2003b, p. 87).
“Las palabras no designan absolutos, entidades en sí o conceptos fijos a menos que sean definiciones formales”. (MATURANA, 2011b).
220
Cf. nota 49.
221
Maturana (2001b, p. 71) opera uma distinção entre acordo e consenso. O acordo envolve a condição explícita
da coincidência na ação sobre algo. O consenso, entretanto, não precisa ser explícito. De modo que no consenso não há uma explicitação da coordenação de ação à qual se faz referência, mas há uma clara sinalização
de que é o resultado de estar juntos, o resultado de um conversar.
222
Para Maturana (MATURANA; PÖRKSEN, 2004, p. 51), “Lo decisivo es que en esta coordinación de coordinaciones conductuales se evidencia una recursión, una operación cíclica que se aplica cada vez a las consecuencias de su aplicación anterior. ¿Por qué me parece tan importante este punto para la comprensión del lenguaje? La respuesta es que cada vez que observamos recursión aparece algo nuevo, cada vez que ocurre una
operación cíclica de esta naturaleza resultan fenómenos novedosos”.
219
86
En otras palabras, lo que estoy diciendo, vivifica Maturana (Id. Op.
cit., p. 200), es que yo estimo que lo que constituye al lenguaje como
fenómeno es el operar de dos o más organismos en coordinaciones
de coordinaciones conductuales consensuales, y que, por lo tanto,
todo lo que hacemos en el lenguaje, entre otras cosas, la distinción
de objetos, el observador y el observar, la conciencia, el yo, la posibilidad de distinguir adentro y afuera… resulta de ese operar.
Vemos, desse modo, que a totalidade da unidade operacional humana
não se encerra na corporalidade do ser vivo humano. Esta sinaliza apenas uma possibilidade da humanização, e não é “causa” do qualquer comportamento. Em assim
sendo, certo organismo, fisiologicamente humano, somente se constitui ser humano,
quando acoplado ao domínio relacional próprio dos humanos. E esse acoplamento
estrutural somente se viabiliza com a mediação da linguagem, que, num sentido antropológico, além de conotar a origem do humano como tal, consegue arrancar, do
âmbito da pura estrutura material, a biologia humana e, no domínio desta, incluir
uma estrutura conceptual, fazendo possível um mundo de descrições, em que o ser
humano pode conservar, plasticamente, sua organização e adaptação (MATURANA,
2003b, p. 83, tradução nossa).
Essa reconfiguração conceitual faz-se necessária para explicitar, de uma
vez por todas, que a moderna concepção do humano, como expressão de certo predeterminismo genético223, não vem ao caso, visto que a condição humana de um ser
vivo não se reduz à pura fisiologia224, pois todo ser humano manifesta, também, em
sua totalidade, uma dimensão relacional225, que resulta da unidade dinâmica sensório-operacional-relacional organismo-nicho. A esse respeito, a Escola Matríztica de
Santigo é categórica, ao assinalar que:
La genética es la condición inicial, un punto de partida desde el cual
se puede crecer de una manera u otra, según el espacio de convivencia en que se viva. En nosotros esto es particularmente visible en
la tremenda diversidad de formas humanas que se puede adoptar
(DÁVILA e MATURANA, 2009b, p. 148).
223
Corresponde ao que a ciência biológica tradicional define como “determinismo genético”. A Biologia do
Conhecimento prefere, contudo, indicar tal configuração com a palavra “predeterminismo” (anotações pessoais
do Curso de Formação – Verão 2012. In: ESCUELA MATRÍZTICA DE SANTIAGO, 2012).
224
“Nuestra fisiología constituye nuestra posibilidad, pero nuestro ser humano se da en nuestro fluir en coordinaciones de coordinaciones conductuales, y todas as nuestras vivencias como seres humanos pertenecen a nuestro ser en el conversar aun en la soledad o el sueño” (MATURANA, 2002, p. 62; 2009b, p. 201).
225
Id. (Op. cit., p. 20): “Penso que o que define uma espécie é seu modo de vida, uma configuração de relações
variáveis entre organismo e meio, que começa com a concepção do organismo e termina com sua morte, e que se
conserva geração após geração, como um fenótipo ontogênico, como um modo de viver em um meio, e não
como uma configuração genética particular”.
87
Sendo assim, não é possível pensarmos, bem como distinguirmos objetos, entes, estados, situações, condutas fora da linguagem, inclusive a autoimagem
do próprio observador; e, para efetivar essa distinção, além de palavras, este evoca
coerências operacionais de origem histórica226, que passam a configurar o domínio
de existência, indicado na diferenciação227. Mas, não é só isso, porque a distinção
ainda depende do contexto, que se trata de um domínio definido por uma pergunta
formulada, explícita ou implicitamente, pelo observador; afinal, “dependemos de un
contexto humano que nos rodea como el aire que respiramos” (MATURANA e VARELA, 2003a, p. 114).
Vemos, então, em definitivo, que o pensamento pós-colonialista não nega
a experiência do Ser. Porém, na esperança de nos anteciparmos a respeitáveis contra-argumentos, é prudente que façamos, sem demora, mais um importante aditamento, ao que já sustentamos ao longo destas páginas. E, para realizar essa tarefa,
ninguém mais apto que o nosso biólogo Humberto Maturana Romesín, para quem a
epistemologia unitária:
[...] no niega la distinción de objetos y la experiencia del ser, pero las
explicaciones no están basadas en la referencia a objetos sino en la
coherencia entre experiencias. Desde esta perspectiva, el observador
se convierte en la fuente de todas las realidades, creándolas él mismo
mediante sus operaciones distintivas. Aquí entramos en el dominio de
las ontologías: el ser se constituye a través del hacer del observador.
Cuando se toma este camino de explicación, uno se da cuenta que
nadie está en posesión de la verdad y que existen muchas realidades
posibles (MATURANA E PÖRKSEN, 2004, p. 24).
3.3.3.3.2 Reflexão sobre a existência dos planetas
A propósito, a história dos planetas ilustra muito bem o desenho metafísico traçado pela Escola Matríztica de Santiago. Com efeito, há cinco mil anos, o povo
sumério, na região da Mesopotâmia (atual Iraque), identificou cinco estrelas que se
moviam no céu, ao tempo em que as demais permaneciam inertes. Por conta desse
226
227
Cf. DÁVILA e MATURANA (2008, p. 331).
Cf. nota 64.
88
curioso fenômeno, os sumérios passaram a aceitar os corpos celestes semoventes
como deuses, que eram evocados com nomes místicos (Enki, Inanna, Gugalanna,
Enlil e Ninurta). Mais tarde, os romanos resolveram prestigiar seus próprios deuses,
passando a identificar tais estrelas, respectivamente, com os nomes de Mercúrio,
Vênus, Marte, Júpiter e Saturno.
No final do Século XVIII (1781 d.C.), foi descoberto o planeta Urano; em
1846, Netuno; e, em 1930, surgiu Plutão; todos batizados com nomes de deuses
greco-romanos, tendo sido o planeta Terra associado sempre à deusa Gaia. Não
obstante, as descobertas astronômicas não cessam. Até o momento, aproximadamente, cento e cinquenta planetas vieram à tona. Sucede que:
esse número não é exato porque novos planetas são descobertos o
tempo todo, assim como equívocos são admitidos. Às vezes, os cientistas acham que descobriram um planeta (que gira em torno de estrelas), mas depois veem que era só uma lua (que orbita planetas) ou
cometa com trajetória errante” (MUNDO ESTRANHO [online], s/d.).
Esse relato mostra algumas situações interessantes: 1) há mais de cinco
mil anos a humanidade tem contato visual com corpos celestes (experiência), os
quais, num primeiro momento, foram descritos como estrelas semoventes, deuses,
e, muito tempo depois, como planetas; 2) esses objetos celestes, de vez em quando,
mudam de nome ou são reclassificadas, como aconteceu, recentemente, com Plutão, que foi rebaixado à categoria formal de planeta anão; 3) muitas vezes a ciência
astronômica confunde espécies de corpos ou astros e, por isso, recua nas suas
classificações.
Em verdade, circunstâncias como essas não ocorrem somente no domínio da Astronomia, mas na práxis cotidiana, em geral. Quando Maturana esclarece
que a metafísica do Fazer não nega a “experiência do ser”, tampouco a “distinção de
objetos”, apenas afirma óbvio. A experiência é um fato (estado, situação ou acontecimento), e como tal, sempre estará fora de questão. Note-se que a experiência dos
sumérios, com os cinco primeiros corpos celestes, não é diferente da que se tem
hoje, a não ser pelo fato de podermos vê-los com maior nitidez, em virtude da evolução tecnológica. De qualquer sorte, os corpos celestes são os mesmos, com ou sem
telescópios.
89
Aliás, a experiência que os cientistas tiveram, ao distinguirem Plutão, em
1930 d.C., não foi modificada pelo fato de a autoridade astronômica ter decidido rebaixá-lo à categoria de planeta anão, em 2006. O que mudou, vale repetir, foi apenas a explicação (reformulação da experiência). Incialmente, o critério de classificação planetária admitia a inclusão de Plutão na classe básica dos planetas; todavia,
em 2006, o critério foi alterado, forçando a reclassificação de Plutão 228. Esse singelo
exemplo revela, dramaticamente, que os corpos celestes jamais tiveram uma essência universal que pudesse ser captada de forma idêntica pelos sumérios, romanos,
gregos ou troianos, tampouco pelos astrônomos contemporâneos.
O que um observador pode ver é que, na origem, os cinco corpos celestes, que, até hoje, movimentam-se nos céus, foram diferenciados como “estrelas”,
depois como “deuses”, “planetas”, “planeta anão”, a partir de experiências semelhantes, diga-se de passagem. E não há qualquer problema nisso, porque essa é a maneira como o ser humano opera na experiência, tendo, sempre, como válidas suas
distinções, por conta da determinação estrutural de seu estado. Assim, quando os
sumérios distinguiram como estrelas os cinco corpos celestes, os critérios classificatórios que dispunham eram tão legítimos como os atuais e autorizavam tal distinção.
Com o tempo, entretanto, outras civilizações conseguiram enxergar, na
mesma experiência, novas coerências sensório-operacional-relacionais antes não
percebidas pelos sumérios e os romanos. Então, os referidos corpos celestes passaram a ser indicados como planetas, com configuração epistêmica diversa. O mesmo
aconteceu com outros entes celestiais, num primeiro momento, classificados como
planetas, para depois serem reclassificados em outras categorias.
A cada distinção, uma existência experiencial. É nesse sentido que Maturana apresenta o observador, ou melhor, o ser humano que opera no linguajear e no
emocionear, como “fonte de todas as realidades”, porque estas, definitivamente,
emergem em suas operações de distinção, na linguagem, em cuja dinâmica emocionear e linguajear se entrelaçam, formando redes de conversações fechadas, e, portanto, o caldo cultural em que vivemos e convivemos imersos.
228
Pela Resolução de Praga, de 2006, adotada pela União Astronômica Internacional, Plutão era o nono planeta
do Sistema Solar. Contudo foi reclassificado na categoria de planeta anão. Com isso os planetas do Sistema Solar
foram reduzidos a oito.
90
3.3.3.4 O sentido das coisas
3.3.3.4.1 Confronto de mundividências
Uma maneira honesta de fazermos um ajuste de contas com a mentalidade colonialista, como também com o passado que lhe antecedera, talvez seja admitindo, abertamente, que sua obra não foi inócua, em que pese o desperdício de experiência, conforme pondera Santos (2003). Nessa altura dos acontecimentos, configuraria manifesto desatino ignorarmos as consequências de tudo o que foi dito, ao
longo dos tempos. Nada, certamente, foi em vão. E, do que foi dito, no transcurso de
sucessivas epistemes, muito pode ser aproveitado, sem dúvida, tendo em vista que
o passado, não é senão uma das formas de falarmos do nosso contínuo presente
cambiante, na história evolutiva da linhagem hominídea a que pertencemos.
Não podemos ignorar os fatos, simplesmente; pois, biologicamente, é
inegável que, de alguma forma, tudo o que foi dito durante a evolução de nossa espécie repercutiu e repercute no modo de vida ocidental. Afinal de contas, “nada de lo
dicho en el lenguajear es trivial porque siempre implica la modulación del curso de la
deriva estructural del ser humano” (EMS, 2012). Nesse sentido, Nietzsche, ao sustentar que não há fatos, senão interpretações, e Wittgenstein, ao proclamar que os
limites do mundo coincidem estritamente com os limites da linguagem 229, inevitavelmente, desencadearam mudanças na deriva cultural do Ocidente, em particular, da
mesma maneira que o fizeram outros pensadores.
Sucede que Nietzsche e Wittgenstein, como todos os demais sábios que
os antecederam, são observadores de seu tempo; e disseram o que disseram, no
fluxo de um contínuo presente de câmbios estruturais ontogênicos, nas respectivas
práxis de suas vivências e convivências. De modo que, tal como qualquer ser humano, somente formularam explicações sobre suas próprias experiências, e a partir
delas mesmas230, tendo em vista que “el vivir humano es el origen de todas las co229
Cf. Enaudeau (2006, pp. 177 e 215), tradução adaptada.
Cf. tb. Maturana (2001b, p. 103-104): “Nenhum discurso é trivial, mesmo que pareça ser um discurso absolutamente esotérico ou volátil. Nunca é trivial, porque sempre se insere na dinâmica da mudança estrutural dos
participantes”.
230
91
sas”231. E, justamente por isso, não seria razoável, neste momento, confrontar suas
experiências e cosmovisões com coerências operacionais históricas 232 antes ignoradas. Sob essa ótica, podemos afirmar, então, que as circunstâncias são absolutórias.
Ressalvemos, porém, que ignorância, sob a perspectiva pós-colonialista,
não implica limitação neurofisiológica ou cognitiva do observador, mas somente uma
situação de indistinção, ou de opacidade, relativa a certas coerências, ou relações
operacionais, que se acham no espaço psíquico humano; isto é, na experiência vivida ou convivida pelo organismo, no curso de sua deriva estrutural. É o que, provavelmente, obnubilava a ciência, até o instante em que Maturana (1970), no fluxo de
sua experiência como biólogo233, dera-se conta de coerências e relações operacionais sistêmicas que o animaram a propor uma radical reformulação nos fundamentos
ontológicos do conhecimento humano, abrindo um espaço reflexivo para constituição
de uma nova concepção metafísica a respeito do real.
De fato, o ser humano, que vivia na solidão de sua dinâmica interna (fisiológica), predeterminada geneticamente234, e desprovida de clausura operacional
(aberta)235, desde Maturana, passou a habitar em uma dinâmica sistêmicasistêmica236 bidimensional (fisiológica e relacional), com clausura operacional (fechada)237 e determinada estruturalmente, mas aberta ao fluxo de matéria e energia;
o que implicou no deslocamento da psique humana, e, por conta disso, também, do
231
“Los seres humanos operamos en nuestro vivir siendo el centro un cosmos que surge con nuestro vivir en el
proceso de explicar nuestro vivir con las coherencias operacionales de nuestro vivir. El ser humano no es la medida de todas las cosas, el vivir humano es el origen de todas las cosas” (DÁVILA e MATURANA, 2008, pp.
176-177).
232
Sobre o assunto, cf. Dávila e Maturana (2008, p. 331 e ss.).
233
Cf. Maturana (2001b, p. 19 e ss.).
234
Segundo Maturana (Op. cit., p. 190), “Nós não somos nem geneticamente predeterminados nem algo do gênero para nos tornarmos o tipo de seres humanos que nos tornamos em nosso viver.”
235
Assim pensava o saudoso ministro Carlos Maximiliano, do Supremo Tribunal Federal (MAXIMILIANO,
1991, p. 106): “[...]. Quando alguém pretende despertar em outrem ideia semelhante à que irrompeu no seu próprio cérebro, por meio dos nervos motores engendra um produto físico, qual, por sua vez, impressiona os órgãos
sensitivos do outro indivíduo, em cuja alma faz brotar a imagem planejada. O mais importante desses produtos
físicos é a linguagem, falada ou consistente em escrita, gestos, figuras, sinais. A comunicação completa-se desde
que a imagem criada por um se reproduz com impressionar o intelecto do outro.”
236
Sobre o tema, cf. Dávila e Maturana (2008, p. 393).
237
Sobre o uso do termo “fechado”, Maturana esclarece que: “Si hablo de cerrado no es en un sentido físico, sino
en relación con una dinámica interna: pase lo que pase en un dominio, pasa dentro de ese dominio y queda ahí;
se trata de las operaciones que un sistema realiza, que definen sus bordes y lo convierten en una entidad determinada” (MATURANA e PÖRKSEN, 2004, p. 37).
92
comportamento —até então alojados no sistema nervoso—, para a respectiva dinâmica externa238 do organismo.
Na mesma conjuntura, ao tempo em que o colonialismo cognitivo insiste
na construção de um paradigma gnoseológico da realidade, quer desde interpretações (Nietzsche); de categorias apriorísticas (Kant); ou da gramática filosófica
(Wittgenstein), perguntando, inclusive, por “quem fala?”239, Maturana aponta para o
determinismo estrutural dos sistemas viventes, que inviabiliza a metáfora da representação; e, por via de consequência, a possibilidade de captação do Ser num âmbito transcendental240, seja lá qual for o procedimento de acesso ao real. Na verdade, argumenta o Doctor Maturana: “la suposición de que esta realidad externa independiente de nosotros existe, parece una idea absurda y sin sentido: es absolutamente imposible de validar” (MATURANA e PÖRKSEN, 2004, p. 17).
Quem fala, afinal? Maturana responde, já o vimos: o observador. Tudo
que é dito é dito por um observador a outrem ou a si mesmo241. O que deduzimos
das seguintes razãoes básicas: a) o dito, sob nenhuma hipotese, pode ser separado
da biolgia de quem o disse; b) a suposição de um objeto dado e acabado, prexistente ao observador, necessariamente, requer linguagem para ser descrita; c) a referência a qualquer verdade, ou realidade, não pode ser feita senão com a linguagem;
d) qualquer situação, estado ou coisa, supostamente independente do observador,
somente aparece numa operação de distinção linguística (Op. cit. pp. 17-18); e) o
próprio observador “surge en la distinción reflexiva y recursiva que un ser humano
hace de su proprio operar” [en el lenguajear] (DÁVILA e MATURANA, 2008, p. 138).
Porque é importante, convém repisar que a linguagem, a que se refere
Maturana, não se trata da linguagem-prótese (simbólica), que funciona como uma
extensão da corporalidade humana, ou, mais precisamente, como uma prótese da
aptidão de falar do animal humano. Para que mal-entendidos sejam evitados, vincamos, então, que a ideia segundo a qual o corpo humano depende de próteses, para
realizar seus apetites, encontra-se implícita na definição de ser humano postulada
pela metafísica do Ser, que o imagina como um centro de potências, ou de capacidades in fieri (TELLES JUNIOR, 2006, p. 54 e ss.). É nessa situação que a lingua238
Cf. Maturana (2009, p. 279 e ss.).
Sobre o assunto, por todos cf. Enaudeau (2006, p. 186).
240
Cf. Dávila e Maturana (2008, p. 187).
241
Cf. Dávila e Maturana (2008, p. 202).
239
93
gem, enquanto sistema simbólico, desponta ao modo de uma prótese, à semelhança
do que sucede com a visão, que, para enxergar micropartículas, ou objetos distantes, também necessita de óculos, microscópios, telescópios.
De qualquer forma, cumpre admitir, serenamente, desde logo, que quem
vê a linguagem simbólica como “produto do cérebro” (TELLES JUNIOR, op. cit., 278)
está sendo apenas coerente com seu modo de viver, cuidando de enxergar a vida
com a cor das lentes mais adequada ao padrão humanal que o satisfaz, qual seja,
desde um modelo hominídeo ajustado a uma estrutura fisiológica em que residem
potências ativas (faculdades) e passivas (formas) 242. Ora, um animal humano, com
uma conformação estrutural dessa natureza, sem dúvida, para se realizar enquanto
ser no meio que o envolve, realmente, necessita de próteses.
Assim sendo, como corolário lógico de tal condição existencial, não deve
configurar exagero algum supormos que o ser humano colonialista convive, diuturnamente, com a possibilidade de ajuste, ou de revisão técnica, em seus instrumentos de ação, sob o risco de não se adaptar ao mundo que o circunda. Trata-se, por
sinal, de um procedimento muito frequente, no domínio jurídico colonialista, em que
a linguagem simbólica, de ordinário, apresenta-se como serva das circunstâncias
(SANTOS, G., 2013, p. 128 et. seq.).
Na verdade, nesses ajustamentos de ordem poética, há indícios de que o
pensamento colonialista, mesmo não admitindo abertamente, já não ignora que a
representação do real não implica um quadro mental, interior e incomunicável, nem a
percepção imediata de um objeto interior, senão o esforço por acolher a polissemia
da realidade ou, por outras palavras, uma técnica, um modo de tratar o percebido,
posto que: “Los vocablos no representan las cosas percibidas, no las significan, no
se corresponden con ellas; se insinúan en ellas, las hienden, así como las cosas hacen estallar las palabras, las abren y las dispersan, hasta el silencio de la obra”
(ENAUDEAU, 2006, pp. 232 et 242).
3.3.3.4.2 A emersão do sentido
242
Cf. Telles Junior (2006, p. 56).
94
Agora que sabemos que as palavras não representam as coisas, não as
significam, mas apenas as insinuam243, vale perguntar: como poderemos, então, determinar o sentido de uma experiência, de modo que não possamos tê-lo como mero
capricho do observador? Por ora, a única resposta sensata para essa questão é a
de que, no domínio colonialista do saber, não há orientação filosófica, menos ainda
científica, que aponte para uma solução coerente com seus próprios critérios de racionalidade.
Segundo Luhmann (2007, p. 247): “todas las distinciones que intentan
aprehender el sentido se implican a sí mismas y se vuelven autológicas. Para explicar qué se entiende por sentido es menester usar el sentido” (g. n.). O que, para alguns, é anticientífico; e, para outros, uma circunstância inevitável, posto que inerente
ao processo cognitivo. Mas o fato é que, na prática cotidiana, fazemos uso da palavra sentido, sem qualquer dificuldade. Sua utilidade comunicativa encontra-se à
margem de qualquer discussão. Assim dizemos, a todo momento, que algo faz ou
não sentido; que isso ou aquilo constitui um nonsense. Às vezes, também, perguntamos pelo sentido de tal ou qual situação, estado, fato, buscando compreender a
realidade em que nos encontramos imersos.
Enfim, de um modo geral, indagações dessa natureza não geram perplexidades, e são vistas com naturalidade, na práxis do viver e conviver. Porém, quando procura explicar a ontologia do sentido, isto é, as condições que nos permite falar
que conhecemos o que dizemos conhecer, curiosamente, a carruagem do pensamento colonialista se desgoverna, rumo ao abismo céptico244. As causas prováveis
desse descontrole cognitivo já o sabemos, e não convém aqui repeti-las todas. Apenas para argumentar, destacamos a obsessão colonialista por captar, com auxílio de
próteses hermenêuticas, num universo externo ao observador, certas mônadas de
valor, propriedades, ou substâncias, que “dariam sentido aos fatos, expressos em
esquemas formais ou normativos” (REALE, 1990, p. 540).
Na verdade, segundo o pensar pós-colonialista, inexiste universo apto a
validar, indiferentemente, toda e qualquer experiência. Como já o vimos em (3.3.2),
243
Cf. Foucault (2007, p. 12) para quem: “por mais que se diga o que vê, o que se vê não se aloja jamais no que
se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas, comparações, o lugar onde estas
resplandecem não é aquele que os olhos descortinam, mas aquele que as sucessões da sintaxe definem”. Não
obstante, parece que há quem pense diferente; Luhmann (2007, p. 239), defende, explicitamente, v. g., que: “Es
necesario echar mano de la palabra sentido para que se haga presente el sentido.”
244
Sobre o assunto, por todos, cf. Vives Antón (2011, p. 463 e ss.).
95
no domínio do conhecimento, essa validação se dá em cada verso dos multiversos,
ou micromundos, gerados pelo observador, mediante distinções levadas a efeito na
linguagem; quer no espaço físico, quer no domínio cultural, nada existe independentemente do operar do observador, tampouco sem a linguagem, enquanto fenômeno
biológico e co-deriva estrutural dinâmica do próprio sujeito cognoscente.
Para as ontologias constitutivas, no âmbito do explicar, a natureza do
substrato ontológico ou lógico245 é irrelevante, posto que tanto uma partícula atômica, quanto um murmúrio, seguem a mesma condição explicativa246, no sentido de
que sempre serão o resultado de um substrato epistemológico, inventado ad hoc
pelo observador, para reformular situações de experiência. Cotidianamente, todo ser
humano se conduz sempre por algum substrato epistemológico, que ele inventa ou
assume como próprio, quando resolve explicar determinada situação de experiência.
Tal substrato, embora esteja ancorado a certa rede fechada de conversações (cultura), não existe, todavia, a priori, como uma coisa em si. Trata-se, na verdade, de um sistema conceitual criado pelo observador para atender a sua necessidade explicativa, no exato instante em que tenta reformular certa experiência, ou se
pergunta como algo ocorre247. E é com esse mecanismo generativo (ou hipótese
explicativa) que surgem especificados, também, os critérios de validez para os argumentos que são validados a partir dele mesmo248.
Assim, posta para funcionar, a hipótese explicativa, como resultado do
operar distintivo do observador, pode reproduzir a experiência, cuja explicação se
busca, trazendo à tona um domínio de realidade, que será descrito, semanticamente, conforme as implicações do acoplamento estrutural observado, bem como associado a um background (fundo) que lhe empresta sentido; e este processo —convém
registrar—, não se dá de forma caprichosa, visto que:
245
Cf. Pérez Barberá (2012).
Afinal, tudo o que é dito é dito por um observador a outro observador que pode ser ele ou ela mesma (MATURANA, 2008, p. 136). “Lo dicho, bajo ninguna circunstancia puede ser separado del que lo dice; no existe
ningún método verificable para establecer un nexo entre las propias afirmaciones y una realidad independiente
del observador cuya existencia uno a lo mejor da por sentada. Nadie puede reclamar un acceso privilegiado a una
verdad o realidad externa” (MATURANA; PÖRKSEN, 2004, p. 17). “Sin los observadores nada existe, y con
los observadores todo lo que existe en las explicaciones. (...). Al poner entre paréntesis la objetividad […] aceptamos que la existencia está especificada por una operación de diferenciación: nada existe antes que su diferenciación. En ese sentido, casa, personas, átomos o partículas elementales no son diferentes” (MATURANA,
2009b, p. 159).
247
Cf. Maturana (2002, p. 38).
248
Sobre o tema, cf. nota 57.
246
96
El observador sólo puede traer a la mano lo que puede traer a la
mano según su presente estructural en las circunstancias estructurales en las que se encuentra, en la dinámica espontánea de las coherencias de su arquitectura variable con la arquitectura variable del
medio que surge en su presente” (DÁVILA e MATURANA, 2008, p.
155).
Dito isso, não é necessário descer às profundezas da gramática filosófica
wittgensteiniana, para nos darmos conta de que a ideia de “apreensão de um sentido”, a que se referem Luhmann (Op. cit.) e o nosso juiz Maximiliano (1991), pressupõe a existência de uma realidade transcendente ao operar do observador, em cuja
estrutura o sentido capturável estaria alojado. Nessa linha de argumentação, a captura de algum sentido transcendental somente seria mesmo possível em um meio
com sentido, pois, antolhar-se-ia um despropósito, a captura de sentido num semsentido, a não ser que fosse racional admitir a existência de racionalidade no próprio
nonsense.
A imagem é, de fato, assombrosa. Contudo, não se trata de truque retórico, ou de mero jogo de palavras. Na verdade, acabamos de exibir apenas um representativo exemplar das armadilhas autoproduzidas pela metafísica colonialista, também conhecidas como: “autologias”, “aporias”, “paradoxos”, que, já o vimos, insinuam-se no alicerce da dita cosmovisão transcendental: a concepção redutora do humano a um ser neurofisiológico, racionalista, objetivista, universalista, dependente
de próteses organísmicas para potencializar suas faculdades, assim como, parafraseando Luhmann (1983, p. 55), de um serviço de manutenção e reparos de estruturas ortopédicas.
A mentalidade pós-colonialista, por seu turno, não obstante suas imperfeições, nasce imune a esse tipo de crise ontológica; pois, desde os pressupostos biológicos, segundo os quais o organismo humanal traduz um sistema dinâmico e interacional, com clausura organizacional, determinado em sua estrutura, porém aberto
ao fluxo de matéria e energia, reconhece, explicitamente, a condição tautológica do
ser humano249; e, por consequência, do seu operar, enquanto observador.
Estritamente falando, sendo tautológica a própria condição humana, a
pergunta pela natureza autológica do sentido, realmente, carece de sentido, ao menos no domínio do pensamento pós-colonialista, visto que a explicação do sentido
249
Cf. Maturana e Varela (1995, p. 49).
97
de certa experiência somente é possível com as coerências operacionais da mesma
experiência. Ainda que não seja imprescindível, não configura demasia reafirmar
que:
o fenômeno do conhecer não pode ser equiparado à existência de
"fatos" ou objetos lá fora, que podemos captar e armazenar na cabeça. A experiência de qualquer coisa "lá fora" é validada de modo especial pela estrutura humana, que torna possível “a coisa" que surge
na descrição.
Tal circularidade, tal encadeamento entre ação e experiência, tal inseparabilidade entre ser de uma maneira particular e como o mundo
nos parece ser, indica que todo ato de conhecer produz um mundo.
(MATURANA e VARELA, 1995, p. 68).
Com efeito, o sentido de uma experiência humana, tal como a experiência mesma, será sempre um aspecto do viver humano, e somente nele encontrará
explicação. Alguém que se depara com um objeto qualquer sempre terá a opção de
não explicá-lo; no entanto se o fizer, somente o fará no seu próprio viver. Não é possível conceber um ser vivo humano tentando captar o sentido de algo, desde fora do
seu próprio viver, porquanto, se tentar fazê-lo, já se encontrará vivendo; logo dentro
da vida. Viver é fazer; e somente é possível fazer vivendo.
Lo que nosotros los seres humanos, como seres vivos que existimos
en el lenguajear, agregamos a esta condición fundamental del vivir
con nuestro operar como observadores, es el acto reflexivo que capta
las coherencias de la arquitectura dinámica que constituye nuestro vivir y convivir, y que abstrayéndolas del dominio de su ocurrir concreto,
expresamos bajo la forma de descripciones que muestran o evocan
las regularidades de nuestro operar como observadores haciéndolas
de manera recursiva parte de nuestro ámbito de existencia. (DÁVILA
e MATURANA, 2008, pp. 122-123).
No fundo, o que os colonialistas tentam emplacar como a palavra sentido,
independentemente de outras acepções que tal vocábulo enuncie, é o truque da objetividade transcendental, para desvalorizar a importância das chamadas “percepções subjetivas”, supostamente geradas na dinâmica interna do organismo; logo,
cientificamente imprestáveis. Sem embargo, essa circunstância, no domínio da objetividade constituída, não é problemática, posto que, nele: os seres vivos humanos
não distinguem, no momento mesmo do fazer, entre ilusão e percepção250; e, todos
250
Vide nota 113.
98
os fenômenos só fazem sentido na dinâmica externa do observador, modulada pela
linguagem condutual251.
Com o fenômeno do conhecimento, a situação não poderia ser diferente,
pois: “Todo fazer é conhecer e todo conhecer é fazer” (MATURANA e VARELA,
1995, p. 68). Assim sendo, o sentido de qualquer experiência apenas se faz presente como efeito do fazer do observador, no linguajear; antes de sua operação de distinção, nada existe. Aliás, a despeito de seu radical formalismo, até mesmo Luhmann (2007, p. 239) admite, explicitamente, que: “el sentido se experimenta siempre
bajo la forma de una distinción”, que o observador constitui, enativamente, no fluxo
recursivo de coordenações de coordenações consensuais de fazeres, sentires e
emoções, vale acrescentar.
Por tudo isso, sem menosprezar a importância dos signos, ou das palavras, no processo comunicativo, em que operam como nós da rede linguística252, ou
máscaras de coordenações consensuais de condutas, ocorrentes nos domínios linguísticos, é fundamental reconhecermos que é no linguajear253 que, de fato, as coisas acontecem; ou aparecem recursivamente como objetos254. Entretanto não podemos perder de vista que o linguajear, enquanto coderiva de coordenações consensuais de comportamentos, não se encontra determinado pela descrição semântica atribuída às condutas; mas pelo acoplamento estrutural255.
251
Cf. SANTOS, G. (2013, p. 137). Utilizamos o termo “linguagem condutual” (como um modo de conviver),
contrapondo-nos à ideia corrente de linguagem, na forma de um sistema simbólico, com estrutura semântica,
sintática e pragmática.
252
“Nodes of the linguistic network”.
253
Cf. nota 33.
254
Ainda segundo Maturana: “el fenómeno del lenguaje se basa, por un lado, en una congruencia estructural
especial que es el resultado de la historia de las interacciones. Si se considera qué condiciones deben darse para
poder hablar de la existencia de lenguaje, se verá que debe haber una coordinación de coordinaciones de conductas. Los signos, digo yo, son secundarios, y no primarios para el lenguaje. La situación originaria de uso de
lenguaje la puedo graficar con un ejemplo muy cotidiano: un hombre está parado en una calle de doble vía. Necesita un taxi, pero los taxis que pasan por su lado van todos llenos. Finalmente, gesticula a un taxista que pasa
en sentido contrario, y cuando capta la atención del conductor, gesticula de nuevo, esta vez dibujando un círculo
con su brazo en el aire. […]. Como resultado de este segundo movimiento de brazo se cambia de vía para tomar
a su pasajero. ¿Qué pasó? Bueno, lo que pasó quedará claro si uno se imagina que de repente el hombre decide
subirse a otro taxi que justo llegó un poco antes, y el conductor al que le hizo señas se queja: "¿Por qué toma otro
auto si me llamó a mí?" Todo lo que hubo fue un contacto visual y dos movimientos de brazo, sobre los cuales
sin embargo se habla en analogía a una expresión. Todo lo que pasó fue una coordinación de la coordinación de
conductas: desde el momento del contacto visual, el taxista y el hombre en la vereda están coordinados y fijados
el uno en el otro. El segundo movimiento de brazo, el círculo dibujado en el aire, coordina entonces su coordinación. Resumiendo: cada vez que en el devenir de las interacciones nos encontramos con una coordinación de
coordinaciones conductuales, tenemos que ver con lenguaje. Afirmo que esos son los procesos que tienen que
pasar para que uno pueda decir que en una situación dada se usó el lenguaje” (MATURANA e PÖRKSEN,
2004, p. 50 e ss).
255
Vide nota 189.
99
Inobstante respeitáveis opiniões em contrário256, temos que as palavras,
os signos não substituem a experiência, exceção feita às definições eminentemente
formais (cf. 1.6.2). Por isso mesmo, vemos, agora, sem qualquer dificuldade, por
que toda proposição explicativa, da práxis cotidiana, edificada, exclusivamente, a
partir de sistemas formais, quer seja linguístico, quer seja lógico, tende a fracassar,
pois, evidentemente, não dispõe de estrutura que dê conta da complexidade do real,
e, por conseguinte, da “multidimensionalidad de las circunstancias del vivir y el convivir donde están el hacer y el no hacer, la acción y la inacción, los sentires íntimos,
las emociones…” (MATURANA, 2011b).
À vista do exposto, podemos verificar, finalmente, que a captura do sentido de um ente, ou de um fato, por intermédio de procedimentos hermenêuticos, está
mais para uma questão de fé, que para um operar efetivo, pois tal operação involucraria, no mínimo, as seguintes variáveis imprescindíveis: a) o observador; b) a experiência; c) a linguagem, como modo comportamental; d) a distinção; e) a interação; f) os sistemas interatuantes; g) o meio envolvente; h) o acoplamento estrutural;
i) as emoções especificadoras das condutas; j) os modos de escutar: dos sistemas
interatuantes, bem como do observador; l) a descrição semântica das coordenações
de condutas.
Muito bem. Agora, com calma, imaginemos todos esses dados devidamente sopesados por um intérprete ou hermeneuta, formando um sentido objetivo
comum (universal), como propõe a tradição metafísica! De fato, certas tarefas somente são factíveis ao gênio colonialista, que, fazendo jus às suas façanhas, também resolveu criar um tipo humano à sua imagem, absolutamente falto de emoções.
Um animal genuinamente racional, provido de aptidões neurofisiológicas, que viabilizam seu acesso às propriedades definitórias do mundo circundante; e, ainda, colocam-no em condição de determinar o sentido das coisas. O homem colonialista é,
realmente, fenomenal; um autêntico colosso do Reino Animal.
256
Escudado em Wittgenstein, sustenta Vives Antón (2011, p. 466), que o significado será buscado nas práticas
sociais que: “delimitan objetos y conductas y permiten sustituirlos por símbolos lingüísticos, por las palabras.
Las palabras adquieren, así, significado, en contextos de uso y toda extrapolación del contexto originario ha de
asentarse, también, en prácticas”. El significado consiste, pues, en el uso que las palabras expresan simbólicamente. Cuando utilizamos las palabras al margen de eso contexto, como a menudo ocurre en filosofía y también
en Derecho, el significado ‹se toma vacaciones›: las proposiciones no dicen ya nada o, lo que es peor, distorcionan la comprensión”.
100
4 Condição isomórfica do pensamento
4.1 Esclarecimento preliminar
Na prática, abrimos as cortinas desta reflexão no intuito de explicitar a
existência de uma articulação isomórfica na relação explicação/experiência. Hoje,
sabemos que quando propomos uma explicação para a realidade que nos interroga,
não o fazemos para descrever a coisa em si, com a qual temos contato, por exemplo; mas, sim, para explicar a experiência decorrente do contato que tivemos com a
coisa em si, ao vê-la ou ouvi-la em certo contexto (background). Nesse perspectiva,
então, grosso modo, o objeto da explicação é a experiência, que emerge como
sucesso perceptível da distinção feita pelo observador, na linguagem, no exato momento em que distingue tal coisa.
Enquanto estivemos convictos de que a “realidade em si” (objeto cognoscível) representava um substrato ontológico da resposta, a pergunta pela correspondência estrutural entre explicação e experiência, realmente, não fizera falta, pois,
no Ocidente, vivíamos imersos nos fundamentos de um monoculturalismo universal
e linear, que, inconsequentemente, postulava a existência de uma única resposta
legítima e correta para cada pergunta formulada, com base na suposição de que a
realidade seria transcendente à biologia do observador.
Sucede que a evolução da ciência, em particular da biologia do conhecimento maturaniana, nos permite afirmar, racionalmente, neste momento, que as
respostas não se sustentam em apriorísticos substratos ontológicos, que remetem a
uma pressuposta objetividade transcendental, independente do operar distintivo do
observador; ou, por outras palavras, que a repetida suposição de que o sujeito cognoscente pode conhecer fazendo referência a algo externo a si mesmo, independentemente de sua biologia, não faz sentido algum, a não ser no domínio cognitivo que
a conserva: o colonialista.
É claro que, com isso, não desejamos afirmar que o pensamento colonialista seja defeituoso, ou que maltrate, apenas; porque, não raras vezes, também salva. E, aqui, não convém perguntar a quem a salvação aproveita. O decisivo é termos
presente que a perspectiva colonialista do real caracteriza um domínio de realidade
dentre tantos outros, não sendo, portanto, único ou exclusivo, como pensávamos,
101
bem como que essa maneira de pensar se encontra, necessariamente, associada a
um fenótipo ontogenético (modo de convivência) especificado por certa classe de
emoções.
Como muito bem pondera Maturana (2002, p. 68-69, grifos do autor),
“nosso problema é que confundimos domínios, porque funcionamos como se todas
as relações humanas fossem do mesmo tipo, e não [o] são”. As relações humanas
são determinadas por diferentes disposições fisiológicas dinâmicas, que evocamos,
via de regra, com a palavra emoção, e são constitutivas de domínios de ações ou
omissões. Assim, haverá diferentes tipos de relações humanas dependendo da
emoção que as sustente, e será necessário observar as emoções para distinguir os
diferentes tipos de relações humanas [...].”
Geralmente, não temos dificuldade em identificar os hábitos de brincar,
andar, correr, comer, ler, com ações; todavia, nos esquecemos, às vezes, de que o
hábito de pensar também se trata de um fazer; de um fazer reflexões, de um fazer
raciocínios, ilações (FERREIRA, 2010); logo, por conseguinte, de uma ação. Sendo
assim, de algum modo, pensar é também agir, e, como tal, um fazer determinado por
certa classe de emoções, que especifica certo modo de vivência ou convivência, em
cujo domínio as relações humanas têm lugar. Parece razoável supor, então, que a
coerência de uma resposta, para certa pergunta, se acha condicionada à isomorfia
da relação explicação/experiência, uma vez que a heteromorfia tende a distorcê-la,
como veremos mais adiante.
E essa questão, no atual estado da arte, conquanto pareça, não é tão trivial. É que, se aceitamos como fato a existência de pelo menos duas maneiras de
pensar diferentes (uma colonialista e outra pós-colonialista), para sermos coerentes
e racionais, temos de aceitar, do mesmo modo, que cada maneira de pensar se operacionaliza sob condições dessemelhantes; do contrário, não seriam diversas257 E
isso se dá, como já antecipamos, por conta das emoções que as especificam. No
modo de convivência colonialista, por exemplo, a desconfiança, a competição e o
desrespeito predominam; enquanto na práxis pós-colonialista prevalece o oposto: o
respeito, a confiança e a colaboração.
Por tudo isso, fica fácil perceber por que a relação heteromórfica entre
pergunta e resposta (formuladas em diferentes domínios cognitivos) é sinônimo de
257
Cf. Maturana (1997b, p. 25).
102
incongruência explicativa, ainda que essa circunstância possa ser negada, eventualmente. Afinal, o que asseguraria a adequabilidade de uma resposta, gerada num
espaço pós-colonialista, relativamente à forma de uma pergunta formulada em um
espaço colonialista, se as coerências operacionais de tais domínios cognitivos são
especificados por emoções opostas?
De fato, como conciliaríamos uma pergunta, gerada num espaço-tempo258
configurado por emoções concernentes ao Homo sapiens-amans arrogans, com
uma resposta estruturada desde coerências operacionais democráticas, inerentes à
matriz Homo sapiens-amans ethicus, que evoca autonomia e respeito mútuo entre
humanas e/ou humanos!? Seja como for, para não ficarmos num plano meramente
especulativo, e pelas mesmas razões já declinadas em (3.2.3), alvejaremos novamente o fenômeno jurídico, de cuja estrutura tentaremos abstrair as coerências experienciais necessárias ao desate desse busílis metafísico.
4.2 Da oposição ser/dever-ser ao fazer
4.2.1 Transição conceitual
Pois bem, a essa altura, o leitor atento deve ter percebido que a maneira
de pensar pós-colonialista se encontra desonerada de responder à pergunta pelo
ser, assim como pelo dever-ser259, uma vez que não enxerga a realidade, inclusive
as normas, como um em si transcendental. De modo que, perguntas essencialistas
do tipo: O que é o direito?; O que são as normas?; O que deve ser uma conduta? O
que é o saber?; O que é o conhecimento?, focadas na descrição das propriedades
do ente perscrutado, escapam ao écran da epistemologia unitária, que as tem como
irrespondíveis.
258
“En verdad el espacio es impensable sin el tiempo, por lo que es más correcto hablar de una entidad compleja,
el espacio-tiempo, en el cual la dimensión espacial ha adquirido preminencia recientemente. Este hecho resulta
de las transformaciones por las que pasó nuestro modo de vida en las últimas décadas” (SANTOS, 1991, p. 2).
259
Como já vimos, anota o 1º Luhmann (1983, p. 57), em sua fase interacionista, que “o sentido do ‘dever ser’
não é menos fático do que o do ‘ser’”; o que continua a reafirmar o 2º Luhmann (2005a, p. 86), já na sua fase
construtivista operativa: “El concepto de norma se refiere a una forma específica de expectativa fáctica, la cual
puede ser observada psíquicamente o mediante el sentido mentado que se vuelve comprensible en la comunicación. Estas expectativas o existen —o no existen. [...]. El derecho no tiene ningún poder obligatorio; se compone
únicamente de comunicaciones y sedimentaciones estructurales de comunicación, las cuales desembocan en una
interpretación normativa”.
103
Vejamos, a título ilustrativo, o que Dávila e Maturana (2008, p. 187) pensam a respeito:
La pregunta por la naturaleza del ser, o por el ser trascendente del
ser, no es contestable desde la orientación filosófica metafísica que
busca la naturaleza del ser en sí en um ámbito trascendente. Por el
contrario la pregunta por el hacer siempre es contestable mostrando o
describiendo como se hace lo que se hace. […] Es más, nos damos
cuenta de que como seres humanos somos de hecho el centro cognitivo del cosmos que surge en nuestro vivir al describir y explicar nuestro vivir y convivir con las coherencias operacionales de nuestro vivir.
As observações pós-colonialistas, de fato, não se ocupam com a substância das coisas: com o que é isso, ou aquilo. Mas, sim, com a dinâmica dos processos, ou operações que nelas sucedem; isto é, como ocorre isso?; com o fazer ou
não fazer, quando fazemos ou não fazemos, o que fazemos ou não fazemos; enfim,
o que fazemos, quando fazemos o que fazemos? É sempre o operar e a experiência
do observador que estão em jogo. Isso porque, de fato, é o operar humano a condição de existência de tudo o que aparece como realidade, a começar pelo próprio
éthos da juridicidade, cuja função básica não é outra, senão o disciplinamento do
fazer ou não-fazer, quando os seres humanos fazem o que fazem, ou deixam de
fazê-lo, no contínuo presente da dinâmica relacional, que se dá na praxe cotidiana.
Na verdade, o que é, é, não conota, prima facie, modulação disciplinar alguma. Somente o fazer, ou o não fazer, ou melhor, —o operar humano— evoca disciplinamento de várias ordens, por sinal, inclusive jurídico; porque é o resultado que
colhemos, quando nos perguntamos pelo que fazemos; quando fazemos o que fazemos, na deriva cambiante do convívio humano. Jamais faltarão respostas para
perguntas do tipo: “Por que faço, quando faço o que faço?”; “Por que não faço, se
posso fazê-lo?” “Porque faço, quando poderia não fazer o que estou fazendo?”. Ainda que algumas agradem, outras desagradem, o fato é que: respostas operacionais
a tais questionamentos sempre estarão disponíveis, a depender do escutar do observador, que, em última instância, é quem valida, ou não, de acordo com seu peculiar critério de aceitabilidade, as proposições explicativas.
Então, ao invés de procurar o inescrutável: a coisa em si260, para a qual
não há resposta possível, o pós-colonialismo acolhe —como sua—, a hipótese da
260
Cf. Jolivet (1965)
104
ontologia do observar, que versa sobre as condições de constituição do conhecimento, como fenômeno biológico. Por isso, ao invés de perguntar pelo ser do pensamento (O que é pensamento?), ou do conhecimento (O que é conhecimento?),
questionamos como sucede o pensamento, ou o conhecimento, no operar do observador, na contínua e dinâmica realização de seu viver e conviver na práxis cotidiana;
portanto, o mundo pós-colonialista é o do fazer; e, não, o do ser, tampouco o do dever-ser; se isso for, realmente, suscetível de afirmação.
Na realidade, nesse giro metafísico, o ser não perde sua condição de algo
que existe; pois não seria concebível, a essa altura do nosso contínuo presente evolutivo, falarmos de algo inexistente, à exceção do “nada”. O ser deixa de sê-lo, somente, na forma proposta pelas ontologias transcendentais: um ser estático, inerte e
pretérito, para reaparecer, no domínio das ontologias constitutivas, como um ser dinâmico, operacional e continuamente presente, em tempo zero. Neste sentido, o que
existe (o ser), digamos, é tão somente deslocado do passado para o presente; deixando de ser, portanto, um ente preexistente ao observador: um a priori, tanto quanto o dever-ser.
Com o advento da ontologia do observar, o ser perdeu sua condição meramente descritível, passando a existir no fazer; quer dizer, como diferença na operação de distinção do observador, em seu fluir nas conversações; logo, o ser, que se
encontrava à margem da operação de distinção do observador, existirá, operacionalmente, com este, e a partir deste (o observador), sempre no contínuo presente
cambiante, histórico e estruturalmente determinado. Uma dinâmica que admite, por
inevitável, a conservação de relações estruturais; ao tempo em que mudanças sistêmicas-sistêmicas (recursivas) seguem seu curso, na realização da práxis cotidiana.
É nesse sentido que se afirma a inexistência do ser e do dever-ser, antes do fazer
do observador261. Senão, vejamos.
4.2.2 A dinâmica do fazer
Sob a perspectiva pós-colonialista, o dever-ser conforma uma dimensão
do fenômeno jurídico, enquanto matriz institucionalizada de coerências e relações
261
Cf. Maturana e Dávila (2008, p. 149).
105
operacionais, constituída em função do disciplinamento da convivência humana, no
domínio de uma unidade sociopolítica (SANTOS, G., 2013)262. No entanto, vale destacar que disciplinamento não é, necessariamente, sinônimo de força, ameaça, retribuição, controle, tampouco de castigo, como cria Carnelutti (2010, p. 26). O fato de a
coerção jurídica, em nossa cultura patriarcal/matriarcal, estar implícita em tal noção
não indica que o disciplinamento da convivência humana se caracterize, primariamente, como uma dinâmica associada ao uso da força, do controle, ou do submetimento.
Pelo contrário, o que vemos, na dinâmica do contínuo presente de transformações da deriva estrutural de nosso fenótipo ontogenético é a convivência fluindo e se realizando espontaneamente, com a força aparecendo episódica e excepcionalmente, até para salvar. No fundo, o disciplinamento opera como uma condição
de conservação e realização dos sistemas determinados em sua estrutura, que, como tais, necessitam de modulação, no meio que os envolve; e a atividade modulatória, evocada pela acepção etimológica do verbo modular, não implica senão: regulação, ordenação, disposição regular263.
De fato, não deixa de ser curioso que, na origem, as coordenações consensuais de fazeres e sentires, evocadas pelo verbo “disciplinar”, tinham exatamente
o sentido positivo de “ensinar”, “formar”264. O que indica, de alguma maneira, que,
com essa função pedagógica, o uso da força, ou melhor, da palmatória, desde sempre foi considerado normal e edificante265; fato que nos induz à conclusão de que, se
algum efeito negativo podemos ver no disciplinamento social, tal problema não reside na atividade de modulação da convivência humana em si, necessária à conservação do bem-estar humano, mas, sim, em quem dela faz uso, pois é na dinâmica
do fazer, ou do não-fazer, especificado por certa classe de emoções, que a convivência se realiza.
Não nos esqueçamos que a todo ser humano cabe, em última análise,
eleger a configuração do seu modo de convivência (MATURANA, 2013b). O poder é
apenas uma questão de submissão. E, como a força, não é algo em si mesmo; não
se trata de um dado imanente às relações sociais. Ao uso do poder e da força po262
Cf. tb. Maturana (2013b).
Cf. a etimologia do verbete MODULAR. In Houaiss (2001).
264
Cf. a etimologia do verbete DISCIPLINAR. Op. cit.
265
Sobre o assunto, cf. Revista Educação (2011).
263
106
demos recorrer, ou não, e essa recorrência tem muito a ver com a emoção que especifica a rede de conversações em que fluímos; e, mais particularmente, com o
modo de escutar da unidade interacional humana266. Com efeito, orteguianamente
falando, dependendo das circunstâncias, o poder e a força não só oprimem e castigam, mas também salvam.
É, portanto, no fluir do emocionear, entrelaçado com o linguajear, ou seja,
nos amplos domínios das redes fechadas de conversações (culturas), que temos a
exata noção do uso da força e do poder. É que tanto o poder quanto a força, antes
da operação de distinção do observador, no linguajear, simplesmente não existem;
e, a partir da distinção na linguagem, tal como a explicação que, agora, propomos,
só existem com borbulhas de ações humanas, que flutuam no nada267.
Não obstante, é oportuno que reiteremos: nem toda interação humana
depende de disciplinamento jurídico. Os encontros interacionais, fundados na dinâmica emocional da aceitação do outro (ou sociais propriamente ditos) 268, não reclamam intervenção estatal negativa, uma vez que confirmam a dinâmica sistêmica básica do sistema social. São consensuais e convergentes com os propósitos da convivência socialmente estabelecida. É o que vem acontecendo, ultimamente, no Brasil, por exemplo, com a política judiciária de conciliação de litigantes, realizada por
iniciativa do Conselho Nacional de Justiça, a qual, ao invés de gerar vencedores e
derrotados, abre espaço à coinspiração, em cuja dinâmica as partes atuam cooperativamente.
Interações recorrentes, baseadas no respeito mútuo ou na aceitação do
outro, como legítimo outro na convivência, são descritas, na linguagem maturaniana,
como agonais (confirmatórias), no sentido de que perturbações, desencadeadas pelo meio, não infirmam os estados dos sistemas perturbados; pelo contrário, confirmam-nos, na forma determinada em sua estrutura. De outra banda, os encontros
recorrentes, que resultam na modificação dos estados dos sistemas interatuantes,
são caracterizados como interações ortogonais (não-confirmatórias)269. É, portanto,
266
Vide (3.3.2.1).
Cf. Maturana (2009b, p. 169).
268
Maturana (2002, p. 45) distingue na dinâmica relacional humana duas espécies de relação: sociais, que se
fundam na disposição corporal da aceitação do outro, e não sociais, que implicam exigências.
269
“Dicho de una manera más general, un sistema puede definirse como una red de relaciones. Y al actuar al
interior de esta red relacional que constituye el sistema, uno elige una forma de interacción que yo llamo agonal:
actúa de un modo que concuerda con las conductas establecidas, tradicionales del sistema. […]. Un encuentro
ortogonal en cambio se da cuando uno actúa de una manera que no confirma al sistema sino que lo modifica en
267
107
a partir desse nível interacional, que a modulação jurídica faz algum sentido, se com
vistas a conter excessos.
A rigor, o que efetivamente distinguimos como disciplinamento, no mecanismo generativo do fenômeno jurídico, trata-se, na verdade, de modulação. Estritamente falando, a função primordial dos sistemas jurídicos, em qualquer Estado Democrático de Direito, consiste em modular a dinâmica relacional dos seres humanos,
em interação no acoplamento socioestrutural. Como bem sustenta Maturana (2001b,
p. 112), os sistemas jurídicos são necessários para criar pontes entre sistemas sociais, mediante as quais disciplinam ou modulam o fluxo das interações recorrentes no
espaço relacional (dizemos nós).
O ideal seria mesmo que todas as interações humanas confirmassem o
sistema, naquilo que importasse à conservação de sua organização, estabelecida
democrática e consensualmente, a despeito das normais modificações que se dão
na sua estrutura. Do mesmo modo, seria de todo conveniente que os sistemas selecionassem, a um só tempo, as perturbações do meio, bloqueando as interações instrutivas, em consonância com o determinismo estrutural. Uma dinâmica como essa,
é o que se chamaria, de fato, de estado de normalidade.
O problema é que, num domínio de relações humanas patriarcais, como o
nosso, essa dinâmica não ocorre de maneira tão espontânea. Decerto, por haver
algum déficit de congruência, ou desequilíbrio nos encontros interacionais. Na prática, como diria Luhmann (1983, p. 45-46), o que se dá, nesse modo de convivência
dominante, é que o excedente de coerências operacionais, decorrente da complexa
variação do meio, torna vulnerável o filtro interno do sistema perturbado; logo, carente de intermediação externa. É, nesse contexto, que os sistemas jurídicos fazem
sentido, operando como comportas moduladoras do fluxo relacional humano. Esse
fato se torna muito mais claro quando questionamos o motivo pelo qual um ser humano necessita de direitos.
Afinal, fundamentalmente, por que os seres humanos necessitam de direitos? Crê-se que por uma razão muito simples. Os direitos são constituídos para assegurar um modo de vida que a sociedade política deseja conservar. Logo, quando
o jeito particular de viver de alguém nega a dinâmica relacional eleita socialmente,
su estructura. La intervención de cierto modo se hace en ángulo recto respecto de aquellas dimensiones que participan en la formación y conservación del sistema.” (MATURANA; PÖRKSEN, 2004, p. 65).
108
aparece a juridicidade para modular as relações humanas, ajustando-as à práxis de
convivência básica de cada sociedade (DÁVILA e MATURANA, 2009b, p. 148). Nesse contexto, então, é possível vislumbrar que o direito se trata de uma coerência
operacional inventada com intuito de demover pela força a autonomia dos insubmissos, que transitam na rede de conversações patriarcais.
Não é por outra razão que o fenômeno jurídico se afigura tão banal, a
ponto de não ser percebido nas mais comezinhas relações sociais. Todavia, se a
juridicidade passa despercebida, no incessante fluir cambiante das interações sistêmicas confirmatórias (agonais), indubitavelmente, não é porque não se faça presente
nesse tipo de relação social. Na cultura patriarcal em que nos encontramos imersos,
toda interação humana, de algum modo, carrega em si uma dimensão jurídica. Onde
há relação humana, também existe juridicidade; onde há juridicidade, do mesmo
modo, há interação humana270 (MATURANA e VERDEN-ZÖLLER, 2003c).
Essa não se trata, contudo, de uma hipótese inquestionável, já que numa
cultura neomatríztica, centrada no encontro271, na confiança mútua, na amorosidade,
na colaboração, na coinspiração, o direito não faria falta. Com efeito, na dinâmica de
um modo de convivência especificado pelas emoções do respeito mútuo, da confiança, da colaboração, não pode haver espaço para o desencontro, heteronomia,
exigência, imposição, controle, submetimento. Pelo contrário. Numa rede conversações como essa, o fato de alguém invocar um direito pode ser um sinal de que a vida de relação na vai bem, de que o desencontro anuncia-se.
Assim, numa sociedade constituída por seres humanos autônomos272, éticos273 e democráticos274 a pergunta pelo direito configura um ridículo nonsense. E
essa paradoxal constatação, apenas na aparência, por óbvio, nos conduz à conclusão de que o fenômeno jurídico se manifesta como um sintoma de certa patologia
relacional, tal como se dá com a febre ou a cefaleia (dor de cabeça), que sinalizam a
270
Nessa afirmação não há, de fato, novidade alguma. Até mesmo a sabedoria clássica chegou a intuir que “onde
está o homem existe sociedade; onde há sociedade, há direito” ("Ubi homo ibi societas; ubi societas, ibi jus"),
segundo as palavras atribuídas ao jurisconsulto romano Ulpiano.
271
Nos referimos à “cultura do encontro”, da busca pelo outro, do escutar pacientemente o outro, proposta pelo
papa Francisco, guia espiritual da Igreja Católica, em homilia proferida na catedral São Sebastião do Rio de
Janeiro, durante a Jornada Mundial da Juventude, em 27/07/2013, às 9h30min., como contraponto à cultura
dogmática do pragmatismo e da eficiência. (Celebração transmitida ao vivo pela Rede Vida).
272
Que pensam e agem desde si mesmos, sem necessidade de líderes ou de mentores.
273
Que se preocupam com as consequências de seus atos em relação aos demais seres humanos.
274
Que convivem na emoção de colaborar com um projeto comum, escutando e respeitando o outro, numa convivência sem discriminação ou negação dos outros seres humanos. Cf. Dávila e Maturana (2009b).
109
ocorrência de anomalias na dinâmica fisiológica do organismo. A diferença é que o
direito aparece para indicar a indiferença do ser humano no trato com seus semelhantes. Nesse sentido, o direito traduz um sintoma; um sintoma da estupidez humana. O que há de mais infinito, segundo Einstein275.
4.2.3 Determinação e plasticidade
4.2.3.1 Determinação estrutural
Definitivamente, o direito não traduz qualquer essência heterônoma, coativa, coercitiva ou autárquica. Nessa mesma linha de considerações, convém destacar que todo sistema determinado em sua estrutura276, vivo ou não, orienta-se segundo sua própria legalidade277, como condição de conservar sua identidade ou organização278. Legalidade que se manifesta de várias formas: como regularidades;
condições; normas; relações, de ordem natural ou cultural; e que, em tal qualidade,
opera no espaço sistêmico, apenas segundo uma disposição regular, uma disciplina.
Como se não bastara, os sistemas determinados estruturalmente ainda têm características que dependem de como essas unidades sistêmicas estão feitas279.
Sob essa perspectiva bem abrangente, é possível vislumbrarmos, nessa
legalidade, um modo de expressão do determinismo estrutural, no domínio sistêmico, se, em boa conta, tivermos que todo sistema, estruturalmente determinado, arrasta, em sua configuração, coerências e relações operacionais invariantes, por conta de sua organização, como uma condição irrenunciável de existência, posto que,
na falta dessas regularidades, a unidade sistêmica se decompõe, desintegra-se,
perde a identidade280.
No nível dos sistemas jurídicos, parte dessas relações e coerências operacionais, que se mantêm invariantes, é diferenciada como normas, e expressam
275
Cf. <http://www.citador.pt/frases/citacoes/t/tolice>. Acesso em: 2 abr. 2013.
Explicam Maturana e Varela (1995, p. 132) que: “A chave para a compreensão disso tudo é, de fato, muito
simples: como cientistas, só podemos tratar com unidades determinadas estruturalmente. Ou seja, só podemos
tratar com sistemas cujas mudanças são determinadas por sua estrutura, seja qual for. Essas mudanças estruturais
ocorrem como resultado de sua própria dinâmica ou são desencadeadas por suas interações”.
277
Num sentido amplíssimo.
278
Cf. Pörksen e Maturana (2004, p. 56).
279
Cf. Maturana (2001b, p. 73).
280
Vale assinalar, com Maturana (2001b, 75), “que o meio também é um sistema determinado estruturalmente”.
276
110
função análoga à condição determinístico-estrutural de qualquer outro sistema, no
sentido de admitir, tão-somente, mudanças estruturais seletivas e contingentes, nas
interações recorrentes, mantidas com o meio envolvente281. Dessa maneira, sendo
determinados em sua estrutura, os sistemas jurídicos rejeitam a instrução de outros
sistemas, mesmo daqueles com os quais mantêm estreito acoplamento estrutural,
como, por exemplo: o político, o ético e o moral.
Nesse diapasão, um importante ponto convém ser relembrado: determinismo estrutural não é sinônimo de autopoiese, tampouco de predeterminismo. O
determinismo estrutural, a que se reporta o pensamento pós-colonialista, trata-se de
“uma abstração que fazemos das regularidades e coerências de nosso viver cotidiano, ao explicarmos nosso viver cotidiano com as regularidades e coerências de nosso viver cotidiano” (MATURANA, 2001b, p. 174), e indica apenas que os sistemas,
determinados em sua estrutura, operam seletivamente em relação às perturbações
do meio, admitindo, a partir de si mesmo, as mudanças que lhes convêm.
Note-se que o determinismo maturaniano faz referência, particularmente,
às estruturas dinâmicas (fisiológica e relacional) das unidades interacionais, e não
ao processo de como a vida sucede na experiência, que é evocado pelo vocábulo
autopoiese. Por outro lado, o determinismo genético, a que se referem os darwinistas, e os aristotélico-tomistas evocam-no com a palavra potência, Maturana o reconceitua com a palavra predeterminismo, para enfatizar o sentido apriorístico que emprestam a tal fenômeno biológico. É que, ao contrário do que pensa o darwinismo,
Maturana sustenta que a dinâmica fisiológica não determina, a priori, a configuração
do sistema vivente, constituindo, apenas, uma possibilidade para tanto.
Dessa forma, o fato de serem determinados em sua estrutura, não implica, automaticamente, que os sistemas jurídicos sejam, também, autopoiéticos, como
propõem alguns juristas luhmannianos, ou alopoiéticos, como sugerem certos habermasianos. A discussão segundo a qual o direito configura ou não um sistema autopoiético, quando não alopoiético, definitivamente, não alcança o pensamento póscolonialista. No domínio deste, o que afirmamos é que os sistemas jurídicos são estruturalmente determinados, sendo a ordem constitucional brasileira excelente ilustração dessa condição.
281
Cf. Maturana (Op. cit., p. 82).
111
Realmente, no Estado Democrático de Direito brasileiro, por conta da positivação das chamadas cláusulas pétreas282, o sistema político encontra-se impedido de deliberar sobre proposta de emenda à Constituição, tendente a abolir estruturas jurídicas constitutivas, digamos, do fenótipo que o identifica como organização
estatal autônoma e soberana. É o que, por sinal, justifica a afirmação de que o sistema político não pode tudo, mesmo quando o sistema jurídico tem uma feição predominantemente legislativa.
Por seu turno, o controle abstrato de leis, ou de atos normativos estatais,
exercido pelo Poder Judiciário, em face da Constituição, quando não os susta, em
caráter liminar, pode suprimi-los definitivamente do sistema jurídico, se verificada
qualquer incompatibilidade com a respectiva organização sistêmica. Assim, nada
assegura, a priori, que um ato legislativo qualquer, produzido pelo sistema político,
seja convertido, automaticamente, em componente estrutural da ordem jurídica. E,
assim o é, porque quem determina o que convém a si mesma, é a própria unidade
de interação perturbada, na hipótese: o sistema jurídico283.
Podemos supor, então, que, do ponto de vista biológico, a legalidade é
uma forma de expressão da condição determinístico-estrutural das unidades autopoiéticas interacionais. E, nesse sentido, trata-se de uma condição de existência vital, na medida em que atua como fator de conservação do organismo no entrono. No
domínio da matriz biológico-cultural da existência humana, a situação parece se replicar, tendo em vista que certas espécies normativas e, particularmente, as modulatórias expressam função análoga, encarregando-se da preservação da unidade sis282
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: Art. 60. A Constituição poderá ser emendada
mediante proposta: [...] § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma
federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais. [...].”
283
No Brasil, o Congresso Nacional aprovou e o Poder Executivo sancionou a Lei nº 10.406/2002, de 10 de
janeiro, que institui o Código Civil. Este dispõe no seu artigo 1.723, que “é reconhecida como entidade familiar a
união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.” Ocorre que o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle
abstrato de validade da lei, na Ação Direita de Inconstitucionalidade nº 4.277-DF, decidiu ajustar a norma à
estrutura do sistema jurídico, dando-lhe interpretação conforme à Constituição, para admitir, também, nas mesmas condições da união estável entre o homem e a mulher, união estável entre “o homem e o homem”, e união
estável entre “a mulher e a mulher”, ainda que o legislador ordinário não tenha concebido tais possibilidades
(BRASIL, 2002 e 2011). Com a “Lei Ficha Limpa” (Lei Complementar nº 135/2010, de 4 de junho) ocorreu algo
semelhante. Havia um clamor público para que a lei gerasse efeitos jurídicos imediatos, no ano de sua aprovação. Entretanto entendeu o Supremo Tribunal Federal que essa interpretação estava em desacordo com o sistema
jurídico reinante, motivo pelo qual declarou que o referido ato legislativo só poderia produzir efeitos um ano
depois da sua vigência (VEJA, 2011).
112
têmica, assim como da modulação operacional-relacional desta, no curso das interações recorrentes com o meio (cf. MATURANA, 2009, pp. 9-14).
4.2.3.2 Plasticidade estrutural
Também é certo que, inexistindo acoplamento estrutural, quer dizer, plasticidade entre si, no curso de suas interações recorrentes, os sistemas humanos e
não humanos se desintegram, desaparecem com o meio284. Assim, com base no
exposto, reafirmamos, também, que o direito, e, por via de consequência, o disciplinamento da convivência humana, aparecem, na matriz biológico-cultural da existência humana, como manifestação do determinismo estrutural sistêmico-sistêmico,
modulando, seletivamente, as coordenações comportamentais, que se processam,
normal e necessariamente, no fluir das conversações humanas.
Na verdade, quando, em um Estado Democrático de Direito, o sistema jurídico comunica ao meio, com suas fórmulas legisladas ou consuetudinárias, a criminalização de certa conduta, tal como: é proibido trafegar pela direita, ou pela esquerda; bem como vender cigarros, ou bebidas alcoólicas a crianças e adolescentes,
estritamente, não está forçando, tampouco obrigando ninguém a nada. É o que estamos autorizados a concluir, racionalmente, quando nos damos conta de que o sistema perturbador (jurídico) não pode especificar o que o sistema perturbado (pessoa) escuta, em virtude de sua determinação estrutural. Com isso, se confirma a tese de que o Direito não coage, porque, biologicamente, está impedido de fazê-lo,
podendo, somente, autorizar a coação (TELLES JUNIOR, 1985).
Efetivamente, a concepção de que uma norma, por conta de suas propriedades deônticas, tem o condão de reorientar o comportamento humano, no espaço
sociopolítico, menospreza a condição determinístico-estrutural dos sistemas, que
dependem das características de como são feitos, pois uma comunicação dessa natureza redundaria, inevitavelmente, na instrução do entorno, que também se trata de
um sistema determinado estruturalmente. Assim sendo, uma vez que tanto a conservação do sistema jurídico, quanto a do meio, depende de correspondência estru284
Não existe sistema sem meio ou vice-versa. Ademais, as mudanças estruturais que um desencadeia no outro
hão de ser congruentes, se não ambos desaparecem.
113
tural entre ambos, a instrução de um sistema por outro implicaria a desintegração do
sistema instruído.
A demonstração cabal de que essa instrução não se dá, automática e necessariamente, tampouco direta ou indiretamente, como imagina o pensamento colonialista, é que as normas, isto é, as comunicações jurídicas são maravilhosamente
ignoradas; e, quando não o são, não é senão porque o sistema humano perturbado:
ou já evita, espontaneamente, a prática da coordenação de condutas criminalizadas,
satisfazendo, portanto, aos imperativos da juridicidade, ou acolhe a perturbação jurídica, como parte de sua dinâmica relacional285, em consonância com seu determinismo estrutural, havendo, portanto, mera consensualidade ou adaptação, conforme
o caso286. Ora, quando isso não ocorre, aparecem para o sistema jurídico, os fora da
lei.
No fundo, pós-colonialisticamente falando, o que o sistema jurídico indica,
com suas comunicações, é que certas coordenações de condutas, que são obscurecidas pelas descrições do domínio linguístico, descalibram ou desconfiguram a matriz sociopolítica, estabelecida consensualmente287, razão pela qual se tornam indesejáveis à composição do fenótipo social. Nesse momento, como expressão do determinismo estrutural do meio, entra em jogo o sistema jurídico, para modular tais
coordenações de ações ou omissões, toda vez que os indivíduos não o fizerem por
si, ou não estiverem em condição de fazê-lo288. É claro que as respostas operacionais, exigíveis por conta dessa modulação, também se inserem nessa “dinâmica sistêmica, que se constitui no encontro organismo-meio.” (MATURANA, 2002, p. 62).
Desse modo, o que temos como obrigatório, facultativo, proibido, lícito, ilícito, jurídico, injurídico, conforme, desconforme, encerra-se, então, nas reflexões
285
A propósito, ao se reportar à linguagem ordinária, sustenta Maturana (1970, p. 34): “Such rules, as rules, lie
exclusively in the cognitive domain of the observer, in the realm of descriptions, because the transitions from
state to state as internal processes in any system are unrelated to the nature of the interactions to which they give
rise. Any correlation between different domains of interactions lies exclusively in the cognitive domain of the
observer, as relations emerging from his simultaneous interactions with both”(“Tais regras, como normas, encontram-se exclusivamente no domínio cognitivo do observador, no reino das descrições, porque as transições de
estado para estado como processos internos em qualquer sistema estão relacionados à natureza das interações a
que dão origem. Qualquer correlação entre diferentes domínios de interações reside exclusivamente no domínio
cognitivo do observador, como as relações emergentes a partir de suas interações simultâneas com ambos”).
286
Nesse aspecto, o pós-colonialismo jurídico diverge de Maturana (2004, p. 29) para quem: “las así llamadas
leyes e imperativos éticos destruyen la posibilidad de reflexión: privan el actuar responsable de su fundamento,
exigen la sumisión, y por ende, mirándolo bien, son otra palabra para tiranía”.
287
Particularmente, nos Estados Democráticos de Direito, todo “sistema jurídico estabelece um sistema de normas que, sabe-se, é consensual, porque está aceito através de algum acordo” (Id. Ib., p. 112).
288
Não se pode ignorar, afinal, que a legitima defesa é uma forma de autodefesa.
114
feitas pelo observador, na linguagem, para evocar certas coordenações de fazeres,
sentires e emoções, abstraídas de acoplamentos sociais, durante o fluxo ontogênico
de derivas estruturais contingentes, que se conservam e se realizam no meio envolvente. O obrigatório, o facultativo, o proibido, o lícito, o ilícito, o jurídico e o injurídico
não são substâncias, em si. São distinções realizadas, convenientemente, pelo observador, na linguagem, com vistas ao disciplinamento das relações humanas. A
propósito, como bem pontua Telles Júnior (2006): “a ordem é uma disposição conveniente de coisas”. Ainda assim, vamos aos fatos.
No Brasil, nos idos de 1940, devido ao regime monogâmico adotado pela
sociedade política, como padrão de sociedade conjugal, a prática adulterina era
considerada socialmente grave. Então, o cônjuge, que interatuasse numa relação
extraconjugal, mediante coordenações consensuais de fazeres sexuais, praticava,
segundo a ordem jurídica vigente, crime de adultério, conforme descrição verbal
enunciada no Código Penal (BRASIL, 1940, art. 240). Todavia, depois de seis décadas, a distinção jurídica foi revista, tornando as referidas coordenações de ação penalmente lícitas (BRASIL, 2005, art. 5º).
O mesmo estatuto criminal (BRASIL, 1940, artigos 213 e 224), até 2009,
configurava como crime de estupro toda coordenação de ação que “constrangesse
mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”, presumindo, ainda, como tal, se a vítima fora: a) menor de catorze anos; b) alienada ou débil mental,
e o agente conhecia esta circunstância; ou c) não pudesse, por qualquer outra causa, oferecer resistência. Em outro enunciado específico, descrevia, também, o crime
de atentado violento ao pudor (art. 214)289, para cuja ocorrência exigia coordenação
de ação diferente da do delito de estupro.
Acontece que, por razões operacionais, que aproveitam somente ao observador jurídico (legislador), a distinção do crime de estrupo foi modificada com a
edição da Lei nº 12.015, de 2009 (BRASIL, 2009, art. 2º), de modo a abranger a
descrição primitiva, bem como as coordenações de ação do crime de atentado violento ao pudor, que, por esse motivo, deixou de existir, no direito positivo brasileiro.
Diante de uma situação como essa, seria racional afirmarmos que as coordenações
289
BRASIL (1940, Art. 214): “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir
que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal”.
115
de ação, que correspondiam ao extinto delito, também teriam desaparecido da matriz social?
Se a resposta for negativa, podemos sustentar, desassombradamente,
que um enunciado, texto, dispositivo ou tipo legal, não constitui norma alguma, mas
somente uma pauta preliminar da qual o observador faz uso no confronto da distinção da coordenação de ação indicada como criminosa. Dessa maneira, qualquer
norma, no espaço da juridicidade matríztica, só existe como dever-ser no operar distintivo do observador, que a tem como uma coerência operacional moduladora de
coordenações de condutas, no âmbito de incidência do ordenamento jurídico a que
corresponde. É nesse sentido que ser e dever-ser aparecem como borbulhas do fazer, enquanto o observador flui, constitutiva e operacionalmente, nas redes de conversações.
4.3 Explicações isomórfica e heteromórfica
4.3.1 Heteromorfia explicativa
Essa concepção neomatríztica do fenômeno jurídico nos permite sustentar que o único responsável pelo uso da força ou da coação, no espaço jurídico, é
quem dela se utiliza parar ameaçar e obrigar o outro, pois somente quem a aplica,
solicita ou determina sua utilização é que está em condição de distinguir, na experiência, sua necessidade ou não, na situação concreta, na forma e segundo os parâmetros disponíveis; a investidura do agente na autoridade do cargo, ou eventual direito-dever, pode imunizá-lo das consequências dos seus atos, mas não torna a força e a ameaça transcendentes ao operar do observador. O mesmo pode ser dito em
relação aos diagnósticos médicos290.
Em seu Direito e Razão, Ferrajoli (2009, p. 45-46) identifica, internamente,
no juízo judiciário, uma relação heteromórfica indissolúvel: entre conhecimento (veritas) e decisão (auctoritas); expressável na fórmula saber-poder, que, na prática, re290
“Como se sabe, en la Unión Soviética, con el simple argumento que sus ideas eran patológicas, innumerables
disidentes fueron internados en hospitales psiquiátricos donde recibían terapias de electroshock contra sus ‘alucinaciones democráticas’. La atribución de enfermedad constituye la base para terminar con cualquier discusión
ulterior” (MATURANA e PÖRSKEN, 2004, p. 68).
116
plica um nexo de causalidade entre duas grandezas inversamente proporcionais;
pois, conforme declara o próprio jurista italiano: “En semejante entrelazamiento,
cuanto mayor es el poder tanto menor es el saber, y vice-versa”.
Ferrajoli (Op. cit., p. 47) lembra ainda que o mérito da revelação dessas
conexões entre: garantismo, convencionalismo legal e congnoscitivismo jurisdicional,
de um lado; e, entre: despotismo, substancialismo extralegal e decisionismo valorativo, de outro, é atribuível ao esforço epistemológico desenvolvido pelo pensamento
penal ilustrado, a que denomina de cognoscitivo ou garantista, o que, sem dúvida,
configura um insight de extrema radicalidade, para os parâmetros da mentalidade
patriarcal/matriarcal europeia hegemônica.
Realmente, é causa de contentamento nos deparar com um consagrado
jurista, especialmente no domínio da dogmática penal, que admita, ainda que de
forma implícita: a) a íntima relação da teoria jurídica moderna com a objetividade
transcendental, correlativa à matriz biológico-cultural do Homo sapiens-amans arrogans; b) a existência da dimensão epistêmica da juridicidade, mesmo a despeito de
não se ter dado conta das correspondentes implicações estruturais. Nesse sentido,
Ferrajoli equivale, sem dúvida, a uma bela surpresa; ou, mais propriamente, a uma
espécie de agulha no palheiro jurídico colonialista.
Não obstante o arrojo, externado em favor da racionalidade jurídica, e
ainda que tenha tido acesso à obra medular das ontologias constitutivas, Ferrajoli
(Ibid., p. 897) preferiu manter-se no conforto das ontologias transcendentais (Id., p
881); tendência revelada, sobretudo, na sua tentativa de construção de “una adecuada teoría de la verdade, de la verificabilidad e de la verificación procesal...”, no domínio da dogmática penalista (Id. Ib., p. 47). Circunstância que, iniludivelmente, indica sua forte atração pelo coturno colonialista, uma vez que todo procedimento de
verificação, supõe a existência de realidade transcendente ao observador.
O curioso é que, mesmo optando pela via da objetividade seca, transcendental, Ferrajoli se apercebe de que há um nexo matricial entre: a maneira de
pensar o mundo e o mundo pensado, isto é, uma imbricação entre: a matriz biocultural pensante e a matriz experiencial pensada. Segundo o jurista italiano, por exemplo, uma matriz epistemológica decisionista não seria compatível com a fundação de
uma ordem jurídica garantista (FERRAJOLI, 2009, p. 46). No que anda muito bem,
117
pois a conservação e realização, tanto da unidade sistêmica, quanto do meio que a
contém, plasticidade estrutural entre domínios disjuntos291.
Por outro lado, é lamentável que Ferrajoli não tenha se dado conta de que
a linha de montagem cognitiva, utilizada na produção de seu garantismo, é a mesma
que alavancou horrores, ocorridos nos campos de concentração nazistas, e que
produziu outras monstruosidades satanizadas pela humanidade292: a objetividade
transcendental. De qualquer forma, desse perfil camaleônico, extraímos mais uma
lição: a metafísica colonialista comporta-se, de fato, como uma espécie de bombril293, pois tem mil e uma utilidades: ora é garantista, ora é tirânica; ora salva, ora
mata; ora tolera, ora subjuga —com a diferença de que o famoso esfregão, comprovadamente, limpa sujeiras— e não serve para imunizar cinismos, ditaduras, práticas
terroristas, genocídios e epistemicídios.
Na práxis cotidiana, se alguém nos diz que mudou de endereço, não resistimos em perguntar, imediatamente: para onde?, pois temos por certo que qualquer mudança de endereço implica deslocamento no espaço físico. Portanto, se uma
pessoa diz que mudou de endereço, mas permanece no mesmo local, com ânimo
definitivo, algo de anormal pode estar acontecendo, sobretudo se a presença de
quem a escuta for habitual na residência dela, particularmente, nos almoços de final
de semana, porque alguém que está imbuído na emoção de mudar, não pode fluir
simultaneamente na emoção de permanecer. E essa conclusão, de fato, também é
válida para as mudanças que se dão no espaço psíquico.
O truque da mudança só é possível num domínio cognitivo em que a biologia do observador não influiu em suas coordenações consensuais de ação; num
espaço em que a linguagem simbólica seja alçada à condição de prótese organísmica meramente descritiva do meio envolvente, com potencialidade para substituí-la294,
como pensa a filosofia da linguagem. Com efeito, o simbolismo linguístico produz
nos ouvintes desatentos a impressão de que a palavra substitui a experiência, passando, com isso, a ideia de que a simples enunciação do vocábulo mudança realiza,
concretamente, a coordenação comportamental do organismo, correspondente ao
efetivo deslocamento físico ou psíquico.
291
Cf. Maturana (2001b, p. 79).
O tema é magistralmente sumariado pelo professor pernambucano Cláudio Brandão (2002).
293
Cf. BOMBRIL. In Houaiss (2001).
294
Cf. Vives Antón (2011, p. 600).
292
118
É o que se dá, geralmente, no domínio colonialista, em cujo espaço cognitivo “fazemos sem fazer”, “mudamos sem mudar”; quer dizer, onde vivenciamos o
genuíno mundo do faz de conta, no qual Ferrajoli se mantém confortavelmente, a
despeito de seus truques retóricos. Sinceramente, ainda que o célebre jurista italiano
assim não o veja, temos séria e justificável dificuldade em aceitar que, num domínio
especificado pela emoção de obrigar, controlar, derrotar o outro, possa haver espaço
para garantismo, a não ser pela via da tolerância, que, como já o vimos (3.2.1), encerra odiosa postergação de rechaço ao ser humano.
Por conta disso, sustentamos, desde a maneira de pensar póscolonialista, que a objetividade transcendental não se acopla, estruturalmente, com
o regime jurídico do Estado Democrático de Direito, bastião dos direitos e garantias
fundamentais do ser humano295. E as notórias disfunções sociais, que decorrem
dessa relação heteromórfica, são a prova cabal dessa asserção. Afinal, como seria
possível garantir, por exemplo, as liberdades de consciência; crença; opinião; informação, num caminho explicativo em que um ser humano nega o outro, como legítimo outro na convivência? Se o que escutamos, quando escutamos, impõe-nos a
obediência, de que tipo de liberdade estaremos falando?
Ora, ontologicamente, a única condição que obriga um ser humano a acatar ou tolerar o argumento de outro, não é senão a que decorre da objetividade
transcendental, que corresponde à suposição de que a realidade transcende o operar biológico do observador, que é, repita-se, um ser humano, como qualquer outro.
Sucede que, quando o observador flui no emocionear296, para a linha explicativa da
objetividade constituída297, a configuração relacional se modifica, porque, nesse vínculo, o outro ser humano aparece como legítimo outro, na coexistência. Daí por dian295
BRASIL (1988): Preâmbulo da Constituição Nacional: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em
Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos
direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça
como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e
comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a
proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
296
Esta noção é fundamental na composição da epistemologia unitária, que a utiliza para enfatizar a dinâmica
relacional humana, indicando o fluir emocional de um domínio de realidade a outro ou de uma emoção a outra
nas conversações, onde o emocionear (emotionig) se entrelaça com o linguajear (languaging) (DÁVILA e MATURANA, 2008, p. 130). Convindo esclarecer, porém, que, até pouco tempo, Maturana (2009a, p. 23) aplicava
no mesmo sentido o vocábulo emocionar. Cf. tb. Maturana (1988, p. 48 et seq.).
297
Maturana (op. cit., p. 21) esclarece que sua maneira de pensar não se inclui no chamado pensamento construtivista, pois sua ontologia da observação é constitutiva a partir das habilidades cognoscitivas do observador, e
não construtivista, que supõe a construção de realidade independente do observador com base em dados achados
no mundo.
119
te, o mútuo respeito, a empatia, tornam-se farol de uma congruência estrutural, em
que as crenças, opiniões, ideias, argumentos do outro, ainda que nos desagradem,
serão sempre considerados legítimos.
A mentalidade colonialista, do mesmo modo, desafia o fundamento ético298 dos sistemas jurídicos democráticos, na medida em que estimula um ser humano a derrotar o outro na dinâmica da competição. Fenômeno que se reproduz,
milimetricamente, nas estruturas dos aparelhos judiciais, modelados para promoverem a pacificação social, a partir da institucionalização de contendas, em cuja trama
o sucesso de um litigante, necessariamente, corresponde à decepção do outro. A
lógica é a mesma, desde sempre: vencer ou convencer; as consequências desse
processo são o que menos interessa ao pensamento colonialista.
4.3.2 Isomorfia explicativa
Lamentavelmente, os estreitos limites deste estudo não comportam a lista
completa dos desserviços que a metafísica colonialista presta ao Estado Democrático de Direito. Seja como for, num espaço orientado pelo respeito mútuo, desprovido
de hierarquização, que não cobra obediência ao saber, nada assegura, a priori, que
a proposição explicativa de alguém seja melhor ou superior à proposição de outro.
Inversamente, num domínio marcado pela obediência, ao que se ouve, com base
numa referência objetiva transcendental, não há espaço para garantismo, senão para corruptelas de garantias, convenientes, apenas, a quem faz a lei, e dela faz uso
estratégico-potestativo.
O emblemático: “Por que não te calas!” (YOUTUBE, 2007), dirigido por
um chefe de Estado a outro colega não menos arrogante, no princípio deste milênio,
é o ranço mais proeminente desse tipo de racionalidade autoritária. Em que pese o
esforço de algumas correntes colonialistas, no sentido de recalcar o autoritarismo
imanente ao pensamento ocidental hegemônico, próprio da rede fechada de conversações que informa a dinâmica de nosso modo de convivência, não nos é possível
afirmar que tenha havido avanço positivo nessa temática.
298
A ética matríztica não tem qualquer relação com as noções clássicas de moral ou de ética (costume). Ética,
neste estudo, conota somente a preocupação ou o interesse que o ser humano tem a respeito das consequências
de seus atos na convivência com outro (MATURANA, 2001b, p. 150; 2009a, p. 18).
120
Mesmo o colonialismo requintado e honesto professado por Ferrajoli
(2009, p. 47), parece vislumbrar esse grave problema:
Hoy aparece como sin duda inadecuado y no fiable el realismo gnoseológico vulgar que estuvo en la base de la concepción ilustrada del
juez como «boca de la ley». Sin embargo, a falta de alternativas epistemológicas adecuadas, el descrédito científico que acompaña a esta
concepción ha generado en la cultura jurídica una difusa desconfianza hacia el mismo concepto de «verdad» en el proceso, alimentando
actitudes escépticas y tentaciones decisionistas.
Não obstante, para a mentalidade pós-colonialista, essa inadequação
epistemológica não se encerra num ponto isolado do mapa cognitivo do colonialismo
jurídico, tal qual a Escola de Exegese. O que se observa, ao contrário do que vê Ferrajoli, é que a matriz jurídica colonialista opera como expressão fenotípica de regimes autoritários, de exceção. Sendo inadequada, portanto, para moldar soluções
coerentes com as estruturas operacional-relacionais, específicas dos Estados Democráticos de Direito, que pressupõem a dignidade humana como farol da modulação jurídica. Seguramente, num domínio em que não há confiança, respeito, cooperação na convivência, nele não será possível distinguir dignidade alguma.
Mas, neste passo, o que mais importa é reter a ideia de isomorfismo estrutural (correspondência estrutural), que Ferrajoli deixa implícita no seu garantismo
cognoscitivo, segundo a qual existe um nexo entre: a maneira de pensar e o objeto
pensado (saber/poder)299; pois, com lastro nessa condição, é possível ao observador
antecipar a congruência, ou não, de certa proposição explicativa, em face das coerências operacionais e relacionais do critério de aceitabilidade de certo domínio de
realidade. O que pode ser muito útil à reformulação isomórfica da experiência, como
condição inescusável da coerência explicativa300.
Exemplificando: em qualquer Estado, que compartilhe, positivamente, da
ideia de democracia procedimental; de asseguramento aos direitos individuais e sociais; de proteção ao meio ambiente equilibrado; de autonomia das instituições de
ensino; de liberdade de comunicação e de imprensa; de respeito à igualdade, tanto
quanto às diferenças, o caminho explicativo da objetividade transcendental mais se
afigura a um beco sem saída, como está acontecendo, agora, na Great Disorienta299
300
Cuida-se de uma espécie de acoplamento estrutural no campo das ideias. Sobre esse conceito, cf. nota 189.
Cf. Maturana (2009c, p. 242).
121
tion301. O suposto acesso privilegiado ao conhecimento sobre o terrorismo, particularmente, é utilizado pelos governos para cercear direitos e liberdades individuais de
cidadãos, presumivelmente, suspeitos e ignorantes302.
Tudo indica, portanto, que pensar o fenômeno jurídico não se trata apenas de uma questão de gosto, embora de gosto também se trate303. É iniludível, porém, que, por detrás das preferências, encontra-se, à espreita, algum código de
compatibilidade, pronto para estabelecer um vínculo coerente entre o modelo explicativo e a experiência a ser explicada. Seria mesmo surpreendente nos deparar, em
um Estado totalitário, com frequentes manifestações da classe social dominante em
prol da liberdade de pensamento, ou pregando o respeito do ser humano a seus
semelhantes, como legítimos outros na coexistência, segundo a maneira profetizada
pela Biologia do Amar304.
Ora, por que nos Estados Democráticos de Direito o uso inconsequente
da racionalidade transcendental não haveria de provocar perplexidade? É, realmente, com estranheza que vemos o país da 1ª Emenda305 escaneando peças íntimas
femininas de cidadãs, que transitam por seus portos e aeroportos, por exemplo, ou
espionando indiscriminadamente países parceiros e aliados. Tudo bem, na ausência
de uma cosmovisão epistêmica alternativa, por conta da prevenção, justificava-se a
301
Reportamo-nos à Grande Desorientação norte-americana, depois dos ataques terroristas às torres gêmeas do
World Trade Center, em Manhattan, Nova York, e ao Pentágono, no Condado de Arlington, na Virgínia, em
2001. No entanto, sabemos, hoje, graças à generosidade de um “espião estadunidense terceirizado”, que o governo norte-americano, em particular, se vale desse suposto combate ao terror para praticar espionagem em outros
domínios, tendo chegado ao ponto de bloquear o espaço aéreo internacional, na Europa, para o sobrevoo do
avião oficial de um indócil chefe de Estado latino-americano, por conta de tal espião (SANTOS, 2013).
302
Cf. Cohen (2013).
303
Sustenta Maturana (2002, p. 16) que “Todo sistema racional se baseia em premissas fundamentais aceitas a
priori, aceitas porque sim, aceitas porque as pessoas gostam delas, aceitas porque as pessoas as aceitam simplesmente a partir de suas preferências. E isso é assim em qualquer domínio, seja o da Matemática, da Física, da
Química, da Economia, da Filosofia ou da Literatura. Todo sistema racional se baseia em premissas ou noções
fundamentais que aceitamos como ponto de partida porque queremos fazê-lo, e com as quais operamos em sua
construção. As diferentes ideologias políticas também se baseiam em premissas que aceitamos como válidas e
tratamos como pontos de partida porque queremos fazê-lo. E se discutimos as razões para justificar a adoção
dessas premissas, o sistema racional que justifica essas razões se baseia em premissas simplesmente aceitas,
porque, consciente ou inconscientemente, assim o queremos”.
304
Seria mesmo muito curioso esperar de um governo ditatorial concessões rotineiras à livre manifestação do
pensamento!
305
A Primeira Emenda, cujo texto serviu de modelo para o mundo dito civilizado, é uma espécie de “Declaração
de Direitos Civis dos Estados Unidos da América”. Eis a sua redação: "Congress shall make no law respecting
an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of speech, or of
the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to petition the Government for a redress of grievances." ("O congresso não deve fazer leis a respeito de se estabelecer uma religião, ou proibir o seu livre exercício; ou diminuir a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou sobre o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações por ofensas.)". Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org>. Acesso em 4 de dezembro de 2010.
122
arrogância com base em teorias doutrinárias306, remedos filosóficos e epistemológicos autoproduzidos, sobretudo pelas subepistemologias autocríticas. Até aí, aparentemente, nada de anormal. Sucede que, em plena Era Pós-colonialista, esse tipo de
desculpa já não mais encontra respaldo ético-democrático, tampouco científico.
Desde o momento em que surgiu uma maneira respeitosa de pensar os
mundos que geramos na convivência, não vemos sentido algum em render tributo à
arrogância, quanto a menos à violência, ao arbítrio. Hoje, definitivamente, existe uma
maneira de pensar isomórfica as condições ontológicas do Estado Democrático de
Direito, produzida no arcabouço da epistemologia unitária chilena: a ideia que mira a
unidade sistêmica-sistêmica307 humana, colocando a objetividade entre parênteses,
como alternativa credível e viável ao pensamento hegemônico autoritário. Com efeito, já tardava a existência de uma explicação para a mais recente perplexidade de
Umberto Eco (ECO, 2010): “O mundo protesta contra a pena de morte no Irã, mas
não se opõe à injeção letal nos EUA”.
Desse modo, por compreendermos que, no campo do saber humano, não
podemos ignorar a) a existência de acoplamento estrutural308 entre sistemas sociais309, com todas as implicações que desse encontro possa decorrer; b) assim como
que são biológicas as circunstâncias consoante as quais o ser humano: i) escuta
desde si; ii) não pode especificar o que o outro escuta; iii) limita-se a desencadear
um processo de escuta determinado em quem o ouve (EMS, 2012), em função do
determinismo estrutural do organismo humano, é que abstraímos da matriz biocultural da existência humana o isomorfismo estrutural, como uma coerência operacional
da perspectiva explicativa pós-colonialista, tendo em vista que o seu menosprezo
implicaria altíssimo risco de incongruência cognitiva.
Em face do exposto, concluímos que a explicação da dinâmica sistêmica
do Estado Democrático de Direito é, de fato, incompatível com uma metafísica que
supõe o universo, o ser ou o dever-ser transcendentais, como critérios de validação
de todas as explicações possíveis, pois inexiste coerência ou racionalidade na explicação que: a) ignora as coerências operacionais biológicas do processo cognitivo; b)
nega o ser humano como outro ser legítimo na coexistência; c) não respeita as dife306
MATURANA (2013a).
Cf. Dávila e Maturana (2008, p. 393).
308
Vide nota 189.
309
Sobre esse tema, cf. Neves (2006, p. 97 e ss.).
307
123
renças, a liberdade e a igualdade; d) quando não tolera, impõe a opinio auctoritas
como ultima ratio; e) rechaça o critério de aceitabilidade de quem escuta, num espaço em que certas opiniões são superiores a outras, independentemente da pergunta
pela biologia do observador.
É do nosso pensar, portanto, que a condição determinístico-estrutural do
ser humano, bem como o viver-conviver deste, imerso na emoção do respeito recíproco, da amorosidade, da confiança, supõem um multiverso (multiplicidade de
mundos, de domínios de realidade, semânticos ou simplesmente linguísticos) 310; logo, também, uma correlação isomórfica entre o sistema conceitual explicativo e o
fenômeno explicável, visto que num espaço ético e democrático, compartilhado por
seres autônomos, não se antolha coerente, tampouco racional, cobrar obediência a
qualquer tipo de argumento, objetivamente seco. O manejo adequado de coerências
operacionais e relacionais, em determinado domínio cognitivo, definitivamente, não
induz transcendentalidade, menos ainda hierarquia, ou ainda nivelamento de ideias.
5 Conclusões
Para o leitor habituado a ter como assentadas as condições de acesso ao
saber, formuladas pela tradicional Teoria do Conhecimento, este estudo pode parecer, em princípio, um acinte à racionalidade hegemônica, particularmente desde o
cogito de Descartes. O que não significa privilégio algum à sabedoria clássica, de
Platão a Aristóteles. Sem embargo, nada do que afirmarmos nestas páginas constitui
libelo desabonador ao saber produzido por nossos antepassados, que, como antecipamos em (3.3.3.4.1), de uma forma ou de outra, desencadearam câmbios relevantes na deriva cultural do Ocidente, notadamente, nos domínios científico e filosófico.
Sucede que Platão, Sócrates, Aristóteles, Aquino, Descartes, Spinoza,
Marx, Hegel, Kant, Nietzsche, Wittgenstein, Heidegger, Habermas, Foucault, Luhmann, dentre tantos outros sábios contemporâneos, ou que os antecederam, são
observadores de seus respectivos espaços-tempo e disseram o que disseram, no
contínuo presente cambiante de suas correspondentes derivas estruturais ontogené310
A partir de outro tipo de abordagem, no universo cognitivo transcendental, Wittgenstein (2008) fala de formas
de vida ou jogos de linguagem (Sprachspiele). A fenomenologia tardia de Husserl apud Varela (1996, p. 34) se
reporta ao “mundo vivido” (Lebenswelt).
124
ticas. De modo que, tal como qualquer ser humano, somente formularam explicações sobre suas próprias experiências, a partir delas mesmas, posto que “el vivir
humano es el origen de todas las cosas”311.
Por essas e outras tantas fortes razões, seria desonesto, no atual estado
da arte, confrontar suas configurações cognitivas com coerências operacionais históricas antes ignoradas. A inteligência pretérita não conheceu, por exemplo, a determinação estrutural biológica dos sistemas autopoiéticos. Assim sendo, com essas
oportunas ressalvas, passamos a enumerar as principais conclusões, cuja validade
decorre, racionalmente, dos mecanismos generativos propostos neste estudo:
1) A maneira de pensar é correlativa à concepção que o ser humano tem
de si mesmo;
2) Existem duas maneiras de pensar e conhecer a realidade: uma que
corresponde à cosmovisão colonialista do humano, concebida pelo pensamento moderno; e, outra, associada à ideia pós-colonialista ou neomatríztica do ser humano,
que emerge da chilena epistemologia unitária;
3) O homem colonialista é configurado como um centro de potências ou
capacidades in fieri, pronto para ser ativado mediante próteses organísmicas, que
são ancoradas a seu sistema nervoso, a exemplo da chamada linguagem como sistema simbólico; por isso que, para se comunicar, precisa acoplar à sua estrutura fisiológica uma prótese linguística, na forma de um sistema simbólico, com a função de
representar o real com palavras. Trata-se, com efeito, de uma estrutura neurofisiológica aberta, predeterminada geneticamente. Nessa via cognitiva, é-se humano
mesmo antes de nascer; define-se o ser humano como um animal racional que vive
num vazio relacional, e, para satisfazer suas necessidades, vale-se de aptidões cognitivas, que são constitutivas de si mesmo, tais como as faculdades ativas (ou capacidades) de falar, andar, conhecer, correr, calcular, raciocinar etc.;
4) A configuração humana pós-colonialista parte de um substrato epistemológico biocultural, pois supõe que, como ser vivo, o ser humano é, necessariamente, um sistema autopoiético, bidimensional e interacional, existente no meio am311
“Los seres humanos operamos en nuestro vivir siendo el centro un cosmos que surge con nuestro vivir en el
proceso de explicar nuestro vivir con las coherencias operacionales de nuestro vivir. El ser humano no es la medida de todas las cosas, el vivir humano es el origen de todas las cosas” (DÁVILA e MATURANA, 2008, pp.
176-177).
125
biente, motivo pelo qual dispõe de uma estrutura fisiológica e outra relacional, que
constitui a unidade sensório-operacional-relacional organismo-nicho. Para essa
perspectiva, ainda que a dinâmica fisiológica seja sua condição de possibilidade, a
humanização configura uma forma que só faz sentido no meio que envolve o organismo; por tal razão, ninguém nasce humano, torna-se humano, a partir de uma estrutura inicial que se realiza em um meio social; mas não só o ser humano depende
do meio em que vive, porque o meio também depende do ser humano para ser caracterizado como tal; logo um não existe sem o outro; sendo ambos ainda determinados em sua estruturas, que se transformam congruentemente no curso das interações físicas ou linguísticas, mantendo as respectivas identidades de classe (organizações), quer dizer: não obstante a íntima relação, o meio não especifica o humano,
tampouco este especifica o meio;
5) A clausura operacional da unidade autopoiética humana torna determinada a totalidade de sua estrutura (não apenas a dimensão fisiológica), e consequentemente seu sistema nervoso; o que o impede de operar com representações
do entorno (realidade), simbólicas ou não;
6) O determinismo estrutural torna o organismo humano seletivo, como
uma condição existencial, pois a sua instrução pelo meio implicaria, também, na sua
destruição sistêmica ou morte; por isso que a cura, com a simples ingestão de um
medicamento, não pode ser antecipada; geralmente, o médico aconselha o retorno
do paciente para revisão, no intuito de verificar se o remédio prescrito surtiu efeito, e
não para ganhar por uma nova consulta. A cura só virá se a estrutura orgânica aceitar as propriedades medicamentosas. Essa afirmação também se aplica ao domínio
cultural humano (dimensão relacional), que configura uma rede fechada de coordenação de coordenações consensuais de fazeres e emoções, que se conserva transgeracionalmente, como um modo de viver-conviver humano (fenótipo ontogenético);
7) Por conta do determinismo estrutural, são condições biológicas da convivência humana: a) todo ser humano escuta desde si; b) ser humano nenhum pode
especificar o que o outro ou a outra escuta; c) todo ser humano limita-se a desencadear certo processo de escuta em quem o ouve, sem qualquer conotação instrutiva,
mesmo que deseje isso;
126
8) A epistemologia unitária é expressão da dupla ruptura epistemológica
do saber contemporâneo, inclusive do jurídico, cujas condições explicativas se equiparam às de qualquer outro tipo de saber;
9) As ontologias transcendentais e as ontologias constitutivas representam mais que duas maneiras diferentes de explicar objetos, estados ou situações,
pois configuram modos alternativos de convivência humana;
10) No campo do conhecimento, há isomorfismo estrutural entre o caminho explicativo, eleito pelo observador, e o fenômeno a ser explicado, como condição de coerência explicativa; as ontologias transcendentais estão associadas à representação do ser e dever-ser; enquanto o fazer é explicado pelas ontologias constitutivas, a partir do critério de validação das explicações científicas, quando o observador estiver na emoção do rigor explicativo;
11) A linha explicativa transcendental é incompatível com o regime de um
Estado Democrático de Direito, em cujo espaço se postula a dignidade humana, a
liberdade de pensamento ou de opinião, pois nele não pode haver um pensamento
mais livre, mais digno, melhor ou superior a outro, em virtude da determinação estrutural dos seres humanos, que, no momento mesmo da experiência, impede a distinção entre percepção e ilusão; o erro e o acerto decorrem sempre do confronto, a
posteriori, da experiência vivenciada com outra já tida como válida;
12) No domínio das ontologias constitutivas, todo fenômeno tem natureza
biológica e cultural (biocultural), porque sua constituição se dá na vida (bio) do observador, como distinção no linguajear (fluxo da linguagem) e no emocionear (fluxo
da emocionalidade), que se manifestam, entrelaçadamente, em redes fechadas de
conversações (cultura); assim, linguagem e pensamento não habitam o cérebro do
ser humano, mais, sim, a sua dinâmica relacional, sendo externos, portanto;
13) A diferença específica do animal humano, em relação ao animal nãohumano, não reside na presença ou ausência de racionalidade, porém na linguagem, como um fenômeno biocultural, que expande ao infinito as possibilidades de
interação do primeiro; a racionalidade nada mais conota que a expressão da coerência operacional humana na linguagem;
127
14) No domínio das ontologias constitutivas, não existe explicação em si,
pois toda explicação conota reformulação da experiência, e somente pode ser tida
como tal se for aceita pelo ouvinte; desse modo, qualquer argumento, afirmação,
negação, inclusive a realidade, aparece ao observador, necessariamente, como um
proposição explicativa, e nunca como uma definição;
15) O espaço psíquico não existe no cérebro do ser humano, porque tem
lugar na dinâmica relacional deste, em cujo domínio faz sentido; assim, categorias,
tais quais: intenção, fenômeno, mente, pensamento, espírito, alma, linguagem,
omissão, ação, emoção, direito, moral, norma, política, jurídico etc. têm lugar na vida
de relação humana, como distinções operadas pelo observador, na práxis do viver e
conviver.
Aqui, evidentemente, não se encerra a reflexão sobre a maneira de pensar pós-colonialista, tampouco sobre a questão do processo cognitivo, pois este trabalho representa, como é natural, um dos muitos passos que serão dados ao longo
da trilha explicativa aberta pela epistemologia unitária, com o valiosíssimo aporte
estético da cartografia simbólica santosiana. Não temos dúvida de que muito ainda
há por fazer, principalmente no sentido de aprimorar a resolução do nosso mapa
cognitivo, cujas linhas constitutivas acabam de ser rabiscadas.