Livro do Seminário dos Operadores_Ações

Transcrição

Livro do Seminário dos Operadores_Ações
Janaina de Fatima Silva Abdalla
Saturnina Pereira da Silva
(ORGANIZADORES)
AÇÕES SOCIOEDUCATIVAS
SABERES E PRÁTICAS
FORMAÇÃO DOS OPERADORES DO SISTEMA
SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
1ª Edição
Rio de Janeiro
2013
Conselho Editorial
Comissão Científica
©Janaina de Fátima Silva Abdalla
Janaina de Fátima Silva Abdalla
Elionaldo Fernandes Julião
Soraya Sampaio Virgílio
Alexandre de Moraes Lessa
Christiane Mota Zeitoune
Roberto Bassan Peixoto
Maria Beatriz Barra de Avellar Pereira
Paula Verneck Vargens
Alexandre de Moraes Lessa
Tania Mara Trindade Gonçalves
Direitos desta edição adquiridos pelo
DEGASE. Nenhuma parte desta obra
pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja
eletrônico, de fotocópia, gravação, etc.,
sem a permissão da editora e /ou autor
Janaina de Fatima Silva Abdalla
Saturnina Pereira da Silva
(ORGANIZADORES)
AÇÕES SOCIOEDUCATIVAS
SABERES E PRÁTICAS
FORMAÇÃO DOS OPERADORES DO SISTEMA
SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
1ª Edição
Rio de Janeiro
2013
Presidenta da República
Ministra de Estado Chefe
Secretaria de Direitos Humanos
Secretária Nacional de Promoção dos Direitos
da Criança e do Adolescente
Coordenador-Geral
Programa de Implementação do Sistema
Nacional de Atendimento Socioeducativo
– SINASE
Governador do Estado do Rio de Janeiro
Secretário de Estado de Educação
Diretor-Geral
Departamento Geral de Ações Socioeducativas
DEGASE
Diretora da Escola de Gestão Socioeducativa Professor Paulo Freire
Assessora da Assessoria às Medidas
Socioeducativas e ao Egresso
Dilma Rousseff
Maria do Rosário Nunes
Angélica Goulart
Cláudio Augusto Vieira da Silva
Sérgio de Oliveira Cabral Santos
Wilson Risolia Rodriues
Alexandre Azevedo de Jesus
Janaina de Fátima Silva Abdalla
Saturnina Pereira da Silva
Capa
Fernando Diaz
Diagramação
Gabriela Costa
Revisão
Thiago Pinheiro
Ações Socioeducativas Saberes e Práticas
Formação dos Operadores do Sistema
Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro
Janaina de Fátima Silva Abdalla
Saturnina Pereira da Silva
Organizadores
Curso Operadores do Sistema Socioeducativo
do Estado do Rio de Janeiro
Bianca Veloso
Coordenadora Pedagógica
Assessoria às Medidas
Socioeducativas e ao Egresso AMSEG
Assessora
Saturnina Pereira da Silva
Equipe Técnica
Dulcinéia Seabra de Oliveira
Fatima Dias Alves Tremura
Maria Stela de Araujo
Hilton Luiz Machado Serra
Vera Lúcia da Silva Durão
Daniel Oighenstein Loureiro
Escola de Gestão
Socioeducativa Paulo Freire –ESGSE
Diretora
Janaina de Fatima Silva Abdalla
Equipe Técnica
Andréa Cristina de Castro Gamadano
Bianca Ribeiro Veloso
Maria Beatriz Barra de Avelar Pereira
Tania Mara Trindade Gonçalves
Marizélia Barbosa
Apoio Técnico Administrativo
Érica Peixoto Ferreira
Luciana Cassia Costa da Silva Santos
Mirian Maria da Fonseca
Marcos Aurélio Pinto de Andrade
Estagiários
Thaisa Ambrósio Pinto
Thaysa de Castro Bonfim
Ivonete Guimarães Lima
Samantha dos Santos
Lidiane de Oliveira Braga
Edgar Alves Pacheco
Agradecimentos
Este livro é resultado de um esforço cooperativo e interativo.
Agradecemos, inicialmente, ao Sr. Alexandre Azevedo
de Jesus, Diretor-Geral do DEGASE (Departamento Geral de
Ações Socioeducativas), que, além de acreditar plenamente na
realização deste trabalho, nos possibilitou ampla liberdade em
todas as etapas da organização e execução do Curso de Formação
dos Operadores do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de
Janeiro que deu origem a esta publicação.
A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
Republica, tem sido uma parceira importante do Novo DEGASE,
ao longo do último quinquênio e, desta maneira, dirigimos
nossos agradecimentos a seu coordenador do SINASE Sr. Claudio
Augusto. O seu apoio às atividades de planejamento e execução da
política de formação realizada pela Escola de Gestão Socioeducativa
Paulo Freire e Assessoria às Medidas Socioeducativas e ao Egresso
– AMSEG do Novo DEGASE tem sido decisivo.
No Novo DEGASE , os aportes da direção da Assessoria de
Sistematização Institucional- ASIST, Soraya Sampaio e Gabriela
, juntamente com a Coordenação Administrativa e Financeira
-COAFI, Sr. Wilson Richard e Maurício Gomes Teixeira, foram
essenciais na definição e desenvolvimento do projeto que deu
origem a este livro. Este agradecimento se estende, também,
a todos os profissionais e técnicos, do Novo DEGASE que, de
diferentes formas, têm interagido com nossa equipe.
A nossos parceiros professores, mediadores e cursistas do
Curso de Formação dos Operadores do Sistema Socioeducativo
do Estado do Rio de Janeiro, pela oportunidade de trabalharmos
e aprendermos juntos e por suas valiosas e inspiradoras
contribuições como autores deste livro. Além de dominarem
conhecimentos sobre conceitos e metodologia de atendimento
socioeducativo, as contribuições registradas neste livro
demonstram o comprometimento com as ações socioeducativas
na direção transformadora da doutrina da proteção integral da
infância e juventude brasileira.
Janaina de Fátima Silva Abdalla e Saturnina Pereira da Silva
7
Sumário
Apresentação
13
As Ações De Formação Continuada Do Curso Dos
Operadores Do Sistema Socioeducativo Do Estado Do
Rio De Janeiro: Concepção E Estrutura Pedagógica.
Bianca Veloso
Marizélia Barbosa
19
Parte I Saberes, infância e juventudes
31
Reflexões Sobre A Juventude Em Conflito Com A Lei:
A Infância, A Adolescência E A Família Como Uma
Construção Social E Histórica
Christiane Mota Zeitoune
Elis Regina Castro Lopes
Murilo Peixoto Da Mota
33
InfânciasoMarginalizadas,oAdolescentes
Criminalizados?
Virginia Georg Schindhelm
50
O Adolescente No Sistema Socioeducativo: Uma
Reflexão A Partir Da Psicanálise
Erimaldo Matias Nicacio
64
Violência Doméstica e Direitos Humanos de Crianças
e Adolescentes na Contemporaneidade: Um Processo
de Judicialização da Questão Social?
Paula da Silva Caldas
80
Adolescentes E Medida Socioeducativa: Discursos
em questão
Andreia Gomes Da Cruz
Janaína de Fátima Silva Abdalla
Sharon Varjão Will
102
9
10
Parte II Políticas e Socioeducação
117
O Sistema De Garantia Dos Direitos Da Criança E
Do Adolescente E O Departamento Geral De Ações
Socioeducativas Do Estado Do Rio De Janeiro
Equipe Assessoria Às Medidas Socioeducativas E Ao
Egresso – AMSEG
119
O Adolescente, A Sociedade Dos Direitos E O
Trabalhador Social: Aonde Vai Dar Tudo Isso?
Heloisa Mesquita
Anália Barbosa
134
Panorama Histórico Da Atenção À Criança No Brasil
João Carlos De Paula
149
Notas Criminológicas Sobre Juventude E Controle
Social
Roberta Duboc Pedrinha
159
A Mediação E O Sistema Socioeducativo
Flávia Gallo
Glória Mosquéra
178
Parte III Ações socioeducativas : práxis
191
Violência,oDrogas,oEducaçãooEoInstituição Socioeducativa
A Adolescentes Em Conflito Com A Lei: Uma
Experiência Em Construção
Janaina De Fátima Silva Abdalla
Soraya Sampaio Vergilio
193
Papo Aberto: Uma Proposta E Experiência De Intervenção
Cláudia Da Silva Rodrigues
Juana Dos Anjos Cunha Louzada
207
Famílias E Escola Como Dimensões Possíveis Na (Re)
Construção Da Cidadania Do Adolescente/Jovem Em
Conflito Com A Lei
Ana Maria Vasconcelos Moreira
Fabiana Ferreira Braga
217
Os Desafios Para A Efetivação Do Sinase No Centro De
Referência Especializado De Assistência Social – CREAS
Maurizete Da Silva Arruda
Janine Duarte Fernandes
Renaud Brazileiro Nogueira Da Silva
230
O Sancionatório E O Pedagógico Nas Medidas
Socioeducativas: Reflexões À Luz Do Pensamento De
Erving Goffman E Michel Foucault
Leonardo Possidonio Domingos
Pedro De Oliveira Ramos Junior
240
11
Apresentação
Desde 2007, com a reestruturação do Novo DEGASE,
a Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire, responsável
pela formação dos operadores do sistema socioeducativo do
Estado do Rio de Janeiro vem realizando diversos cursos em
parceria com universidades, instituições públicas e privadas,
promovendo conhecimentos nas diversas áreas que demandam
a problemática do atendimento socioeducativo, possibilitando a
reflexão e mudanças nas práticas institucionais. Tais ações foram
implementadas com o apoio da Secretaria Especial de Direitos
Humanos da Presidência da República. Inicialmente, através da
realização da Pesquisa Perfil das Relações Humanas Institucionais
do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro,
possibilitando o mapeamento das medidas socioeducativas
no Estado, e com o Convênio 076/2007 para Formação de
Operadores do Sistema Socioeducativo Estadual. Este ultima,
possibilitou a formação continuada de servidores do DEGASE e
dos Centros de Referência Especializados de Assistência Social CREAS repercutindo na articulação e construção de redes para a
municipalização das medidas em meio aberto do Estado do Rio
de Janeiro.
Atualmente é possível perceber as mudanças ocorridas
através de alguns indicadores de desempenho, dentre eles, a
participação mais efetiva e consciente dos servidores do Sistema
Socioeducativo Estadual nos processos sociopedagógicos
que permeiam a execução e acompanhamento das medidas
socioeducativas e na promoção da garantia de direitos,
processos estes que foram explicitados no Plano de Atendimento
Socioeducativo do Governo do Estado do Rio de Janeiro - PASE Decreto N°42.715 de 23 de novembro de 2010 e na finalização do
Plano Pedagógico Institucional - Novo DEGASE.
Na medida em que se amplia a possibilidade de debate,
reflexão, conscientização da realidade vivenciada, outras
demandas são geradas, surgindo à necessidade de ações
pedagógicas contínuas e aprimoradas para a melhor direção
do atendimento, necessitando constantemente ser renovado e
13
adequado às necessidades reais do período histórico, político e social.
Cônscios da responsabilidade e da competência atribuída,
a política de formação do Novo DEGASE, em 2011, através
da Secretaria de Estado de Educação/ DEGASE firma novo
convênios com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência
da República SDH/PR – (Convênio 756784/2011) visando a
execução do Curso de Formação dos Operadores do Sistema
Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro
A União e os Estados e o Distrito Federal manterão escolas de governo
para a formação e o aperfeiçoamento dos servidores públicos,
constituindo-se a participação nos cursos um dos requisitos para a
promoção na carreira, facultada, para isso, a celebração de convênios
ou contratos entre os entes federados. (art. 39, CF/88)
Este curso envolveu cerca de 600 (seiscentos) profissionais
que atuam diretamente e indiretamente com as medidas
socioeducativas de restrição e privação de liberdade do
DEGASE e em medidas em meio aberto dos- CREAS e 36
(trinta e seis) municípios. Atuaram diretamente 22 (vinte e dois)
profissionais do DEGASE, pertencentes à Assessoria às Medidas
Socioeducativas e ao Egresso – AMSEG e à Escola de Gestão
Socioeducativa Paulo Freire – ESGSE. Participaram do processo
de elaboração e execução do curso, cerca de 40 (quarenta)
professores-pesquisadores de universidades federais, estaduais
e privadas e 10 (dez) mediadores na gestão pedagógica dos
polos de extensão descentralizados nos municípios de Macaé,
Teresópolis, Nova Iguaçu, Niterói, Belford Roxo, Volta Redonda
e na Capital, este ultimo, nos bairros da Ilha do Governador e
Bangu. Em termos qualitativos de política pública, esse eixo de
intervenção representou um considerável avanço à humanização
do atendimento aos adolescentes e suas famílias, nos princípios
legais e éticos.
Acreditamos que a formação dos profissionais
socioeducativos garante uma abordagem crítica e reflexiva acerca
14
da natureza da atividade socioeducativa, bem como mudança
de mentalidade e do olhar para o sistema, saindo dos moldes
cristalizados de coerção para uma mudança de paradigmas onde
o atendimento realizado se traduza em reinserção do adolescente
em conflito com a lei.
Cabe ressaltar que o processo de formação vem fomentar
a necessidade da implementação e expansão de uma rede de
serviços. Entendendo a incompletude institucional, faz-se mister
destacar que as ações supracitadas encontram-se respaldadas na
Constituição Federal e no SINASE.
Os programas de atendimento que executam a internação provisória e
as medidas socioeducativas deverão buscar profissionais qualificados
para o desempenho das funções utilizando critérios definidos para
seleção e contratação de pessoal, entre eles a análise de currículo,
provas escritas de conhecimento e entrevista. Deve ainda oportunizar e
oferecer formação e capacitação continuada específica para o trabalho
socioeducativo em serviço. (item 6.2.5, SINASE)
Assegurar a implementação de ações e políticas que atendam
às exigências de formação continuada e capacitação em serviço é
um desafio a ser superado cotidianamente. Assim, na formação
dos operadores socioeducativos proposto pelo curso buscou-se a
articulação das parcerias institucionais prevista pela incompletude
institucional e profissional do Sistema Socioeducativo Estadual.
Sistema que se traduz por rede, conjunto, tendo como foco o
atendimento socioeducativo ao adolescente.
A formação continuada dos atores sociais envolvidos no atendimento
socioeducativo e fundamental para a evolução e aperfeiçoamento de
práticas sociais ainda muito marcadas por condutas assistencialistas
e repressoras. Ademais, a periódica discussão, elaboração interna e
coletiva dos vários aspectos que cercam a vida dos adolescentes, bem
como o estabelecimento de formas de superação dos entraves que
se colocam na pratica socioeducativa exigem capacitação técnica e
humana permanente e continua considerando, sobretudo o conteúdo
relacionado aos direitos humanos.
15
A capacitação e a atualização continuada sobre a temática “Criança
e Adolescente” devem ser fomentadas em todas as esferas de governo
e pelos três Poderes, em especial as equipes dos programas de
atendimento socioeducativo, de órgãos responsáveis pelas políticas
publicas e sociais que tenham interface com o SINASE, especialmente a
política de saúde, de educação, esporte, cultura e lazer, e de segurança
publica. (SINASE)
O objetivo deste livro é contribuir para a humanização do
atendimento aos adolescentes envolvidos em atos ilícito a partir de
pesquisas, experiências e saberes produzidos pelos professores,
coordenadores, mediadores, gestores e cursistas durante o Curso
de Formação dos Operadores do Sistema Socioeducativo do Estado do
Rio de Janeiro.
Acreditamos que a formação continuada dos operadores
do sistema possa contribuir em sua qualificação e permitir
mudanças de paradigmas, a fim de garantir a formação plena do
adolescente, autor de ato infracional, o seu exercício de cidadania
e a sua qualificação para o trabalho (Alexandre de Azevedo Jesus,
2010,p :8)
Este livro está organizado em três partes precedidas por um
artigo explicitando a estrutura pedagógica do curso e a política
de formação da Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire.
Esta organização tem como referência três temáticas que
de articulam: “Saberes , infância e juventudes ”, “Políticas e
Socioeducação” e “Ações socioeducativas : práxis ”, procurando situar
o debate e as formas recentes encontradas pelas políticas públicas para
o atendimento socioeducativo na esfera nacional e estadual.
Na Parte I “Saberes, infância e juventudes”, apresentase cinco artigos, de diferentes enfoques teóricos e conceituais,
propõem a problematização, reflexão e análise do processo de
construção histórica e social da infância e “das juventudes”,
que repercute do processo de subjetivação dos adolescentes
envolvidos em atos ilícitos: vítimas e vitimadores da violência
na atualidade.
16
Na Parte II “Políticas e Socioeducação” composta por quatro
artigos, procura-se apresentar o contexto das políticas públicas
no atendimento aos adolescentes autores de atos infracionais e
a interface com os saberes e práxis de seus operadores. Nesse
desdobramento, expõem-se e analisam-se os instrumentos legais,
normativos e as práticas nos arranjos da execução das políticas
públicas do Sistema Socioeducativo.
Na Parte III “Ações socioeducativas” dedica-se a reflexão
da execução das medidas socioeducativas no interior de suas
instituições, a cotidianidade do saber-fazer da socioeducação,
através de cinco artigos, os quais nos convidam a debater e
analisar os discursos, as redes de poder-saber , a construção
de redes institucionais, a gestão e as ações socioeducativas
cotidianas no atendimento aos adolescentes e suas famílias.
Esta publicação reafirma o compromisso do Novo DEGASE/
SDH- PR no investimento na formação dos profissionais que
atuam no atendimento ao adolescente e suas famílias.
Enfim, eis um convite a que todos corroborem para
construção de um Sistema Socioeducativo mais humanitário,
onde todos sejam sujeito de direito e solidários.
Janaina de Fátima Silva Abdalla
Saturnina Pereira da Silva
Rio de Janeiro, novembro de 2013
17
As ações de formação continuada do Curso dos Operadores
do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro:
concepção e estrutura pedagógica
Bianca Veloso1
Marizélia Barbosa2
Transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é
amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo:
o seu caráter formador.
Paulo Freire
Introdução
O curso de formação para os Operadores do Sistema de
Atendimento Socioeducativo ao adolescente em conflito com a
lei objetivou promover a formação continuada dos profissionais
que atuam tanto com as medidas em meio aberto quanto com as
restritivas e privativas de liberdade no estado do Rio de Janeiro,
para o domínio efetivo dos fundamentos teóricos e metodológicos
da prática socioeducativa, em conformidade com o SINASE.
O curso teve a duração de seis meses com carga horária total
de 215 horas. Foi destinado aos profissionais com escolaridade
mínima equivalente ao Ensino Médio, atuantes de forma direta
ou indireta no atendimento socioeducativo ao adolescente em
conflito com a lei.
O currículo se estruturou por módulos ministrados às
terças-feiras, às quartas-feiras e às quintas-feiras, das 8h30min
às 17h30min, em dez turmas descentralizadas e distribuídas em
dez polos pela Capital e pelo Estado do Rio de Janeiro, divididos
em dois eixos: o primeiro com início em novembro de 2012 e o
segundo, em março de 2013.
1
Divisão Técnico Pedagógica da ESGSE/Novo DEGASE
2
Divisão Técnico Pedagógica da ESGSE/Novo DEGASE
19
Concepção pedagógica
A Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire, responsável
pela execução do curso dos operadores do sistema socioeducativo
do Estado do Rio de Janeiro, foi criada em 31 de Agosto de 2001
com o nome “Escola Socioeducativa”. Em 2008, com a alteração da
Estrutura Organizacional do DEGASE, passou a ser denominada
“Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire-ESGSE”.
Partimos da concepção de escola como instituição
histórico-social, inserida na sociedade e, por isso, determinada
por um constructo social e, ao mesmo tempo, reprodutora das
contradições nela existentes.
Sendo a escola uma instituição social, faz-se necessário
que seus projetos de formação sejam elaborados levando
em consideração alguns elementos importantes para a
manutenção de práticas educativas democráticas. Dessa forma,
elencamos alguns elementos que consideramos fundamentais
na construção de ações de formação tendo em vista um viés
humano: a promoção dos sujeitos que compõem a escola como
agentes de intervenção efetiva nas ações por ela promovidas; a
democratização do planejamento das atividades de formação;
a sistematização do conhecimento produzido pelo processo de
formação e a valorização dos saberes e das práticas advindas dos
sujeitos que participam desse processo.
As ações de formação dos Operadores do Sistema
Socioeducativo consideraram todos os aspectos supracitados,
reafirmando a ideia que defende o trabalho como atividade
humana e educativa. O trabalho como atividade humana difere
do trabalho como se apresenta no contexto atual de produção,
dividido, fragmentado, incompleto e alienado. Como apontou
Manacorda (2010), o trabalho no seu sentido genérico se manifesta
como atividade vital de reprodução da condição de existência do
ser humano.
20
Nesse sentido, o trabalho é práxis. Estas categorias – trabalho
e práxis – foram objetos de estudo de incansáveis teóricos no
campo da sociologia do trabalho, esclarecendo que não é nosso
objetivo apresentar as complexas formulações e significações que
envolvem essas categorias, mas elucidar, a partir dessas definições,
algumas questões sobre as ações de formação em voga.
“É na práxis que o homem deve demonstrar a verdade, isto
é, a realidade e o poder, o caráter terreno de seu pensamento.”
(MARX, 1991, p.12) Apesar de o pensamento se antecipar à
prática, esses estão completamente interligados. Sendo assim,
teoria e prática são indissociáveis e interdependentes. “A ação
humana no trabalho pressupõe sempre uma intencionalidade,
um certo grau de racionalidade e o intercâmbio com os outros
seres sociais.” (NEVES, 2008, p.21)
O trabalho histórico-econômico caracteriza-se, no contexto
do capitalismo, como produtor de bens materiais que satisfazem
as necessidades humanas. Nessa tendência, ocorre a coisificação
das relações, em que tudo se torna mercadoria. Assim, a
educação para o trabalho e no trabalho segue essa visão. A
educação se tornou algo comprável e vendível. Em detrimento
dessa concepção que reduz o caráter humano da educação ao
caráter mercadológico, consideramos uma concepção ampliada
de educação e de formação para o trabalho.
Nesse sentido, as ações de formação promovidas pela
Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire, em especial
as desenvolvidas pelo curso dos Operadores do Sistema
Socioeducativo, visam à valorização de espaços formativos
crítico-reflexivos, onde o processo de ensino-aprendizagem
aconteça de forma dialógica, a partir da abordagem históricosocial do sujeito, das instituições de privação de liberdade, das
medidas de atendimento socioeducativo e do próprio adolescente
em conflito com a lei.
Para tanto, estruturou-se o currículo do curso em dez
módulos: a) Infância, Adolescência, Família e Sociedade; b)
21
Marco Legal, Políticas Públicas e Sistema de Garantia de Direitos
da Criança e Educação em Direitos Humanos e PNDH-3 do
Adolescente; c) Instrumentos Legais, Normativos do SINASE,
PNDH-3 e PNEDH; d) Socioeducação e Responsabilização:
Natureza e Dupla Face da Medida Socioeducativa entre o
Sancionatório ao Pedagógico; e) Socioeducação: Práticas e
Metodologias de Atendimento em Meio Aberto; f) Socioeducação:
Práticas e Metodologias de Atendimento em Meio Fechado; g)
Plano Individual de Atendimento; h) Gestão e Financiamento do
Sistema Socioeducativo; i) Programas de Justiça Restaurativa; j)
Parâmetros Socioeducativos – Segurança.
Como estratégia para sistematização do conteúdo
lecionado aos alunos, adotou-se um instrumento avaliativo
de caráter processual, ou seja, os alunos, ao longo do módulo,
foram estimulados à construção de textos a partir das leituras
propostas pelos docentes. Como estratégia de avaliação, adotouse a apresentação oral, pelos grupos discentes, dos trabalhos por
eles elaborados.
Dessa forma, distanciamos nossas ações de formação
continuada das ideias pragmáticas, pontuais, descontextualizadas,
positivistas e tecnicistas de educação. Aproximamo-nos da acepção
de formação continuada destinada a adultos trabalhadores
decorrente das correntes críticas3 da educação brasileira.
Estrutura pedagógica
A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na
vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições
de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da
sociedade civil e nas manifestações culturais.
BRASIL, 1996.
3
Dentre elas, a Pedagogia da Autonomia, de Paulo Freire, e a Pedagogia histórico-crítica, de Dermeval Saviani
22
Acreditamos na ideia do trabalho coletivo. Nesse sentido,
adotamos, durante todo o processo de construção das ementas,
dinâmicas de trabalho que reunissem a equipe técnica e a equipe
docente, conformando, assim, um trabalho mais democrático.
Os professores foram convidados a participar desse projeto,
partindo de critérios de seleção elaborados pela coordenação
do curso, como de análise das suas experiências profissionais
e da formação acadêmica desses. Foi adotado, também, o
critério de referência, convidando professores renomados por
seus trabalhos nas temáticas ministradas em cada módulo. Um
grupo de professores está ligado às Universidades, aos Centros
Acadêmicos, às Instituições parceiras; e outro grupo, aos setores
da Secretaria Estadual de Assistência Social, aos locais onde
se realiza amplo trabalho na área da socioeducação. Teve-se
sempre a preocupação de convidar professores gabaritados não
só no âmbito da titulação, mas também no âmbito da experiência
profissional, para que se alcançassem de forma mais efetiva os
objetivos traçados em cada módulo.
As ementas foram construídas a partir da intervenção
dos professores, que assumiram um papel importante nesse
processo, para além do trabalho técnico, mas também do
trabalho pedagógico, de pensar as aulas de forma didática, com
a elaboração de material de estudo e de projeção, assim como a
pesquisa de filmes e vídeos escolhidos de acordo com os objetivos
de cada conteúdo.
Os conteúdos foram escolhidos pelos professores de cada
módulo, tendo em vista a ementa e as visões teóricas trazidas pelo
corpo docente, a fim de construir um processo que culminasse
nas aulas e nas relações pós-aulas, processo que se inicia
quando findam as aulas, momento em que os alunos tiveram
a oportunidade de ter acesso ao material disponibilizado pelo
professor para estudo pessoal.
A metodologia proposta para as aulas considerou a
centralidade da construção do conhecimento, a partir de
23
análises sócio-históricas da sociedade com relação aos objetos de
conhecimento analisados em cada módulo.
As aulas assumiram um formato didático basicamente
formado por aulas expositivas, dinâmicas em grupo, estudos de
caso, leituras individuais, apresentações projetadas, exibição de
vídeos e filmes e debates. Foram realizadas reuniões periódicas,
em um primeiro momento, com a coordenação pedagógica do
curso e, em segundo momento, entre os próprios professores.
O projeto previu avaliações formais, com a pretensão de
classificação em aprovação ou reprovação a partir do parâmetro
da média no valor de 7,0 (sete) pontos. Entretanto, sabe-se que a
avaliação não deve assumir um sentido classificatório, quantitativo
e pontual, mas um sentido formativo e processual e, nesse sentido,
a partir das discussões realizadas entre a coordenação pedagógica
e os professores, elaboraram-se avaliações como mais um espaço
de reflexão e construção de conhecimento crítico frente às temáticas
e às questões apresentadas pelos módulos. Portanto, apesar
de as avaliações culminarem em valores que determinariam a
aprovação ou reprovação do cursista, usou-se esse espaço como
parte integrante do processo de construção do conhecimento.
O trabalho técnico-pedagógico desenvolvido pela ESGSE
articulou-se ao trabalho técnico-administrativo executado
ao longo dos cursos. A gestão da frequência e da entrega de
trabalhos elaborados pelos alunos foi essencial para auxiliar
o acompanhamento organizacional e pedagógico dos alunos.
Consonante com o projeto que originou o curso, a frequência
mínima para aprovação foi de 75% do total da carga horária e a
média mínima para aprovação no módulo, de 7,0 (sete) pontos.
O curso foi dividido em dois eixos: o primeiro
descentralizado em quatro turmas (duas na Ilha do Governador,
uma em Bangu e uma em Belford Roxo); o segundo em seis
turmas (Ilha do Governador, Macaé, Niterói, Volta Redonda,
Nova Iguaçu e Teresópolis).
24
O primeiro eixo foi destinado aos servidores do DEGASE
lotados em unidades da capital; e o segundo eixo, destinado
aos servidores dos CREAS e CRIAADS. As turmas do segundo
eixo possuíram alguns servidores do DEGASE, assim como
servidores de Conselhos Tutelares, Tribunais e demais entidades
que trabalham com os adolescentes em conflito com a lei.
No polo localizado na cidade do Rio de Janeiro, participaram
os seguintes CREAS: João Manoel, Arlindo Rodrigues, Stella
Mares, SMDS, Wanda Engel, Padre Guilherme, Capital, Janete
Clair, Adaiza Sposati, Nelson Carneiro, Simone de Beauvior,
Márcia Lopes, CSIRS 10ª CAS, Adaiza Sposati, Zilda Arns, João
Hélio, Daniela Perez. No polo de Niterói, Itaboraí, Niterói, S.P.
da Aldeia, São Gonçalo, Magé, Maricá, Saquarema, 5ª Creas/RJ.
No polo de Macaé, Campos dos Goytacazes, Macaé, Quissamã,
Depto. Proteção Social Rio das Ostras, Conselho Tutelar de
Macaé, Cabo Frio. No polo de Volta Redonda, Levy Gasparian,
Resende, Paraíba do Sul, Porto Real, Miguel Pereira, Barra
Mansa, A. dos Reis, Valença, Volta Redonda. No polo de Nova
Iguaçú, Itaguaí, Nilópolis, Japeri, Paracambi, Mesquita, São
João de Meriti, Queimados, B. Roxo P. Amorim, Seropédica, B.
Roxo-S. Amélia, SEMAS-Nova Iguaçu, SMAS-Duque de Caxias.
E, no polo Teresópolis, Nova Friburgo, Três Rios, Teresópolis,
Guapimirim, T.J.R.J, MP Teresópolis.
Na capital e em Nova Iguaçú, não houve a participação
de nenhum CRIAAD. Em Niterói, participaram os CRIAADS
da Ilha e de Niterói. Em Macaé, Macaé e Campos. Em Volta
Redonda, V. Redonda, Barra Mansa. Em Teresópolis: Nova
Friburgo, Teresópolis.
No Eixo I, o dos CRIAADS participantes, temos a seguinte
divisão: CRIAAD Ilha (no polo da ESGSE e do professor Antônio
Carlos Gomes da Costa), o CRIAAD Nova Iguaçú (no polo do
Cai Belford Roxo) e o CRIAAD Bangu (no polo do ESE).
Podemos apontar que a execução do curso apreendeu o
entendimento de que todos os atores nele envolvidos, em certa
25
medida, são educadores ao mesmo tempo em que são educandos.
Sendo assim, a formação continuada dos servidores foi vista
como um dos caminhos para que o DEGASE cumprisse sua
missão de garantir os direitos fundamentais dos adolescentes em
conflito com a lei que cumprem medidas socioeducativas e/ou
protetivas no Sistema.
Conclusão
Compartilhando as experiências e percepções obtidas nesse
processo, podemos concluir que esse trabalho nos levou a refletir
sobre a nossa própria práxis, buscando compreender como os
diferentes temas abordados no curso para os operadores do
Sistema Socioeducativo dariam base para as reflexões sobre o
trabalho nesse sistema.
A ideia de que o DEGASE e cada servidor sozinhos não
podem dar conta de todas as demandas que chegam através
dos adolescentes atravessou todos os módulos. Os diferentes
temas apontaram para o trabalho em rede, para a necessidade do
fortalecimento da rede interna e para a ampliação da rede externa.
Foi predominante o pensamento de que é importante
estreitar o diálogo com os diferentes setores do DEGASE. O curso,
por congregar servidores dos diferentes setores e com variadas
funções e formações, propiciou um espaço de desconstrução de
mitos institucionais e de reafirmação de algumas parcerias.
Através de ações proativas – cursos, palestras, práticas de
trabalho inclusivas, grupos de estudo e outros encaminhamentos
–, o Novo DEGASE vem investindo na valoração de seus
servidores. Temos ações objetivas que buscam a desconstrução de
diferentes estigmas da figura do servidor. Estamos no processo,
construindo novas práxis socioeducativas, em uma perspectiva
crítico-emancipatória. Para isso, nossas finalidades de educação
estão alinhadas às de formação humana, de maneira que os
26
trabalhadores possam, alicerçados por ferramentas conceituais,
teóricas e metodológicas, adquiridas ao longo do curso, atuar
alinhados à prática socioeducativa.
Para Costa (2001), a formação plena do educando contribui
para torná-lo autônomo, com competência para fazer análises
de diferentes circunstâncias, de fazer escolhas, deixando-o apto
a retornar à sociedade, sabendo distinguir o certo e o errado,
sabendo dos seus direitos e também dos seus deveres, ou seja,
tornando-o um cidadão.
O Novo DEGASE, como órgão de proteção integral aos
adolescentes em conflito com a lei, tem caminhado firmemente
em sua missão. Várias unidades têm investido em sua rede
interna e externa, ampliando, assim, as possibilidades de sucesso
às demandas apresentadas pelos adolescentes e seus familiares.
Os desafios continuam muitos, entre esses o de acompanhar
o desenrolar dos diferentes casos quando o adolescente perde o
vínculo formal com a instituição, assim como entender que a sua
reestruturação visa ao adolescente que pretende formar.
As reflexões acima tentam organizar o panorama no qual
está se dando o Curso para os Operadores do Sistema, buscando
estratégias que facilitem a interlocução dos atores citados.
Os espaços ocupados pelos servidores do sistema
socioeducativo ainda estão refletindo o desgaste na “qualidade”
da comunicação dos diferentes sujeitos. Pequenos, mas
importantes acordos podem ser feitos, necessitando-se para isso
de disponibilidade para o “ouvir”.
A partir da execução do curso, algumas demandas advindas
da implementação do curso a partir da sua descentralização
começam a surgir, pedindo urgência em seus encaminhamentos.
As atribuições da equipe, dentre outras, estiveram ligadas às
escolhas dos melhores caminhos para a operacionalização do
curso, ou seja, como fazê-lo acontecer da melhor forma possível.
27
Desde as reuniões com os professores para o planejamento
dos módulos até a elaboração das ferramentas de organização
(inscrições, programas, matrícula, listagens para controle de frequências
e notas e outros), sempre se buscou, dentro das nossas possibilidades,
respeitar as diferenças dos atores envolvidos nessa organização, assim
como considerar as suas capacidades e habilidades.
Alguns encaminhamentos foram necessários para que
houvesse um processo coerente de trabalho, frente às diferenças
supracitadas. As reuniões entre a equipe técnica aconteceram
buscando um enfoque multidisciplinar, que não pretendeu criar
uma “receita”, e sim agregar valores frente aos desafios propostos.
Muitas questões perpassaram o trabalho da equipe
pedagógica, a valer: a) ofereceu-se uma estrutura facilitadora do
processo de formação em serviço?; b) houve acesso aos materiais
didáticos de forma adequada?; c) a dinâmica do curso foi bem
compreendida pelos servidores?
Entendemos a tarefa socioeducativa como sendo de toda a
sociedade, garantindo aos usuários dessas redes, os adolescentes
em cumprimento de mediadas socioeducativas, um suporte
que esteja disponível sempre que necessário. Dessa forma,
verificamos que se faz cada vez mais necessária a promoção da
formação continuada dos operadores do Sistema Socioeducativo,
de forma a atingir o propósito da efetiva garantia dos direitos
do adolescente em conflito com a lei e de aperfeiçoamento das
práticas cotidianas.
28
Referências bibliográficas
COSTA, Antônio Carlos Gomes da. Aventura Pedagógica:
Caminhos e Descaminhos de uma Ação Educativa. Belo Horizonte:
Modus Faciendi, 2001.
BRASIL. Lei n. 9.394 de 1996. Dispõe sobre as Diretrizes e Bases
da Educação Nacional.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática
educativa. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2001.
MARX, K. A ideologia alemã.. São Paulo: Hucitec, 1991.
MANACORDA, Mario Alighiero. Marx e a pedagogia moderna.
Campinas, SP: Editora Alínea, 2010.
NEVES, Lúcia Maria Wanderley. O mercado do conhecimento e o
conhecimento para o mercado: da formação para o trabalho complexo no
Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: EPSJV, 2008.
29
30
Parte I “Saberes, infância e juventudes”
31
Reflexões sobre a juventude em conflito com a lei: a
infância, a adolescência e a família como uma construção
social e histórica.
Christiane Mota Zeitoune4
Elis Regina Castro Lopes5
Murilo Peixoto da Mota 6
Resumo: O presente artigo busca refletir sobre a dimensão
social que envolve os jovens em conflito com a lei, acentuando
uma crítica à perspectiva da análise funcionalista sobre o crime
e a criminalidade. Estão em discussão as ações e intervenções
no âmbito das políticas públicas para a criança e o adolescente,
a partir das aulas realizadas no Curso dos Operadores do
Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro. Imerso em
um campo teórico-metodológico da construção social, abre-se
para um breve panorama social e histórico sobre as categorias
infância, família e adolescência.
Palavras-chave: ato infracional; políticas públicas; criança;
adolescente.
4
Psicóloga. Coordenadora de Saúde Integral e Reinserção Social do
Departamento Geral de Ações Socioeducativas. Doutora em Teoria Psicanalítica –
UFRJ. Mestre em Psicologia Clínica – PUC-RJ. Formação Psicanalítica. E-mail: [email protected]
5
Psicóloga Clinica; Agente Socioeducativo do Departamento Geral de Ações
Socioeducativas; Mestre em Políticas Públicas do adolescente em Conflito com a Lei/
UNIBAN-SP. E-mail: [email protected]
6
Sociólogo do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos
Suely de Sousa Almeida/UFRJ. Doutor em Serviço Social – ESS/UFRJ. Mestre em
Saúde Pública – ENSP/FIOCRUZ. [email protected]
33
Introdução
No decorrer do ano de 2012, a proposta de capacitar os
profissionais do Departamento Geral de Ações Socioeducativas
– DEGASE – foi vislumbrada como um desafio concreto para a
equipe e consultores convidados. A ideia de um projeto planejado
logo estaria em pauta nos comentários do cafezinho, na fila
do almoço, nas conversas informais e reuniões institucionais,
envolvendo estudiosos e pesquisadores, com expertise no campo
de reflexões, que pudessem ampliar uma análise crítica sobre a
clientela abordada, ou seja, jovens em conflito com a lei.
O que era um projeto de curso se evidenciou como uma
realidade interventiva. O Curso dos Operadores do Sistema
Socioeducativo entraria em prática com amplos objetivos e
desafios, principalmente o de possibilitar envolver o profissional
técnico como um protagonista de suas ações, sem determinações
de manuais ou regras impostas. Entrava em questão a efetivação
de um debate crítico e frutífero sobre os amplos aspectos que
envolvem o adolescente em conflito com a lei que aportasse uma
reflexão metodológica, a fim de situar o educador nos amplos
aspectos que a questão socioeducativa envolve.
Salienta-se a convicção de que o trabalho que o educador
do DEGASE desenvolve origina-se no contexto da totalidade
de sua vida, cujos temas infância, família e adolescência não
são conceitos ignorados. Não seria trivial afirmar o fato de que
não há quem não se emocione com as inúmeras questões sociais
que afetam a clientela atendida pela Instituição. De todo modo,
no âmago de todo o processo em discussão está a ampliação de
habilidades já existentes na atividade profissional.
Nos debates sobre o conteúdo do curso, as categorias
infância, família e adolescência logo vigoraram como discussão
obrigatória, considerando que não se poderia falar de jovens
em cumprimento de medidas socioeducativas sem apreciar as
34
abordagens teórico-metodológicas, que porventura esclareceriam
o contexto político no qual tais sujeitos estão inseridos na
sociedade, sob a ótica da integralidade.
Nesse sentido, este artigo apresenta uma breve discussão
analítica sobre as três categorias centrais, que consideramos
ampliar as análises sobre as ações e intervenções no âmbito
das políticas públicas para a criança e o adolescente a partir da
experiência do Curso dos Operadores do Sistema Socioeducativo
do Estado do Rio de Janeiro.
Uma breve reflexão crítica da análise funcionalista sobre a
juventude em conflito com a lei
Estamos imbuídos em esclarecer as consequências da
delinquência juvenil, suas dimensões sociais, os meios de
enfrentá-la ou meramente controlá-la? Nessa questão, está
explícita a preocupação de analisar os posicionamentos teóricos
nos quais muitos de nós estamos inseridos sem ao menos
nomeá-los; isso porque não existe pensamento neutro, ausente
de reflexões anteriores nos quais se formam as bases da análise
sobre os fatos sociais. Nesse sentido, há de se considerar certa
hegemonia do pensamento funcionalista7 sobre as bases analíticas
dos fenômenos relacionados ao crime.
Observa-se ampla tendência de se criminalizar a pobreza
e individualizar a ação criminal no âmbito de um discurso,
que assinala uma natureza moral para o ato criminoso. As
argumentações realizadas no senso comum, construídas pela
mídia em geral, pouco contextualizam o problema como um
fato social. O que se percebe são panoramas simplistas, que não
articulam a conjuntura das questões sociais e as contradições de
um sistema econômico e político desigual, que não oferece ao
7
A corrente sociológica funcionalista foi introduzida por Émile Durheim e,
posteriormente, por Talcott Parsons no contexto do positivismo.
35
indivíduo oportunidades, acesso a políticas públicas no âmbito
da promoção do bem-estar necessário para a vida digna em
sociedade. Em consequência, o olhar para o crime está sempre
voltado para o criminoso considerado naturalmente propenso a
ser mal, cruel e que deve ser punido para o resto de sua vida por
não estar apto à vida em sociedade.
Mesmo em um contexto de mudanças no campo do
judiciário, em que se efetiva a “doutrina da proteção integral”,
fundada com a executividade do Estatuto da Criança e do
Adolescente, até certo ponto pode-se afirmar que ainda impera
a perspectiva simbólica da “doutrina da situação irregular”, de
caráter funcionalista. Há todo um sentido ideológico que norteia
inúmeras ações e intervenções por parte do Estado contra a
criminalidade. Essa análise pode ser exemplificada a partir das
ideias que, volta e meia, entram em pauta na mídia e na agenda
política, tais como: a redução da maioridade penal para os jovens
infratores; a busca de resolutividade em torno do aumento do
número de prisões; individualização da problemática do crime
como argumentação que pauta certo problema da natureza
violenta do criminoso. Tais questões são exemplos do quanto
ainda temos uma análise funcional da delinquência acometida
por jovens em nossa sociedade, cujo mecanismo interventivo
tem como referência a “correção” normativa, certo exercício de
vingança da sociedade, a fim de normalizar a engrenagem da
máquina social e promover uma limpeza dos “maus elementos”.
A dimensão teórica funcionalista é hegemônica em muitas
interpretações dos fenômenos sociais em nossa sociedade,
cujas análises criam vieses equivocados, na medida em que
sugere esquemas baseados em impulsos biológicos e define as
consequências dos atos criminais como patológicas, nas quais
certos indivíduos são vistos como portadores de falhas no
seu desenvolvimento moral determinado por uma natureza
comportamental. Em decorrência disso, a interpretação sobre
o crime está reduzida a sua causa, cujas explicações levam a
generalizações dos fatos sem estabelecer relações com outras
36
variáveis sociais, como classe, etnia, gênero, geração, religião.
Assim, uma proposta funcionalista para a socialização do sujeito
considerado desviante ou criminoso por seu delito consistiria em
impor certo adestramento, em que o indivíduo a ser normalizado
é levado a interiorizar regras, valores, habilidades, atitudes e
doutrinas implantadas mecanicamente sobre o que se pode
entender como sendo uma atitude civilizada e sob a égide da
moral burguesa, que prima pela manutenção do seu status quo.
No âmbito do funcionalismo, a hipótese comumente
sugerida para as pesquisas sobre a delinquência juvenil consiste
em provar que o enfraquecimento do controle social sobre
aqueles indivíduos imersos na pobreza e alijados da sociedade
de consumo é a verdadeira causa do fenômeno do crime; ou
seja, a falta de controle pode se tornar um fator de risco e, nesse
sentido, são os jovens mais desprovidos desse controle que se
tornam delinquentes (DUBAR, 2007). Ademais, essa análise abre
para certa generalização, isso é, a delinquência percebida como
um atributo individual, com diferenciação entre dois tipos de
jovens: um considerado “normal”, geralmente com característica
branca, de camadas médias e bem integrado à sociedade, em
detrimento daquele outro, que não quer estudar, trabalhar, que
é perigoso, geralmente de aparência negra ou parda, que veste
o estigma de delinquente e tira o maior proveito de sua situação
delituosa. Ironicamente, não seria este percebido como em
“situação irregular” da era do Código de Menores?
Para o olhar funcionalista, não entra em discussão a
trajetória de vida da maioria dos indivíduos em nossa sociedade,
que envolve a dimensão do trabalho infantil, desemprego,
desigualdade econômica, violência simbólica estrutural,
desestruturação familiar em meio à exclusão social. Tais aspectos
são traços peculiares da relação capital/trabalho e exploração,
avanço da carência de oportunidades a todos, frágil conteúdo
educacional do ensino público, que não favorece ascensão social
(SOARES, 2007).
37
Considerando os ensinamentos de Pierre Bourdieu (2003),
será preciso ir mais longe e decifrar os conflitos como expressões
simbólicas, que não podem ser feitos a partir de padrões ou crivos
preestabelecidos e soluções pela ótica do “olho por olho, dente
por dente”. Será necessário perceber que os jovens que cometem
atos infracionais o fazem atuando em um campo de poder, em
que o “mundo do crime” é visto como marca de virilidade. Há
de se relativizar o quanto as forças que muitos jovens dispõem
em uma sociedade distintiva como a nossa, que impõe buscar a
qualquer preço ser aceito e integrado socialmente em cujos ritos
de passagens pelas gangues, muitas vezes, passam pela prática
do delito (ZALUAR, 2004).
De todo modo, devemos reconhecer o fato de que todo
indivíduo impulsiona sua experiência de vida sobre determinadas
práticas e são responsáveis por elas. As ações individuais
são relacionais e podem ser previsíveis ou inesperadas, mas
certamente estão baseadas na trajetória de vida de cada um,
em meio a estilos e identidades socialmente construídos. É
importante considerar que esse ato infracional, que teve como
consequência uma resposta jurídica, desempenha uma função na
vida desse jovem e na sua relação com o outro, sendo importante
recuperar a análise sobre o seu envolvimento nesse ato, a fim de
tornar possível para ele responsabilizar-se por isso. No Brasil,
é através do cumprimento da medida socioeducativa que o
adolescente é convocado a responder pelo ato cometido. Só
assim poderá responsabilizar-se por aquilo que lhe escapa e que
aparece realizado em seu desvio com a lei.
O caráter sancionatório e pedagógico das medidas
socioeducativas envolve um modelo de atendimento articulado
ao sistema de garantia de direitos que visam à promoção da
cidadania. A grande questão que se coloca aqui, para um olhar não
funcional, será pensar as ações das instituições que desenvolvem
programas de medidas socioeducativas privativa e restritiva
de liberdade, que priorizam o resgate da cidadania do jovem
em conflito com a lei. Busca-se, assim, ir além das estratégias
38
coercitivas, punitivas e disciplinadoras muito em voga e que
tanto disseminam a violência simbólica. Porém, qual é o objetivo
de tais ações? Integrar, normalizar, doutrinar e adequar? Ou
empoderar tais sujeitos como agentes de sua história e capazes
de buscar em si mesmo novas saídas para o sentido da vida,
como sujeitos detentores de capitais culturais, que possibilitam o
exercício da civilidade?
Podemos analisar, à luz dos ensinamentos de Sigmund
Freud (1930), que a ideia de civilização tem por objetivo
moderar e limitar a vontade de gozo, por meio da formação dos
ideais. Contudo, não estamos mais em uma época como a de
Freud, quando os ideais e as ideologias estavam no zênite do
social (MILLER, 2004). Estamos em uma época em que existem
impasses; uma época em que as leis simbólicas, que regem
os laços sociais, não têm tido consistência para assegurar as
relações do sujeito com o outro, em função do declínio dos ideais.
Consequentemente, estamos confrontados com certos tipos de
comportamentos de jovens que colocam as ações dos educadores
em xeque e nos desafiam a novas intervenções.
A sociedade quer punição, quer a retirada de todos
aqueles que cometem atos de barbárie, mas o aprisionamento
por si só seria suficiente para promover o sentido de civilidade?
Entretanto, direcionar para o sentido de civilidade seria o
interesse da sociedade? Ou interessaria mais puni-lo, encarcerálo e extirpá-lo da convivência como se o curasse um câncer social,
como se promovesse uma limpeza, livrando-se de um indivíduoproblema em uma retomada retórica já vista pela “ideologia da
situação irregular”?
O que se observa é que são amplas as questões que devem
ser relativizadas, a fim de nortear as ações e intervenções com
as medidas socioeducativas, mas sem perder de vista a égide da
integralidade sobre o jovem em conflito com a lei.
39
Infância e adolescência: uma construção social e histórica
Hoje, a ideia de infância e adolescência está amparada a partir
de uma análise histórica e social, o que implica afirmar que é o
resultado variável de um amplo processo social, político e econômico
vivido ao longo de séculos. Nesse sentido, refuta-se qualquer
perspectiva de se afirmar ser um fenômeno meramente determinado
pela natureza, baseado em princípios hormonais e implicados por
relações biocorporais no âmbito de uma faixa etária cronológica.
A análise sobre a infância como questão analítica em
ciências sociais ganha visibilidade com a publicação do livro
de Philippe Ariés, A história social da criança e da família (1981).
Até então, poucos historiadores se manifestaram sobre o tema,
aspecto que colocava o debate sobre a criança na sociedade como
certa penumbra teórica e analítica ou como preocupação para as
políticas públicas fora do cerco assistencialista. O próprio Ariès
(1981) salientou que a falta de uma história da infância e o seu
registro historiográfico tardio são um indício da incapacidade
por parte do adulto de ver a criança em sua perspectiva histórica,
para além de suas capacidades “naturais” vinculadas à idade.
Na sociedade brasileira, ao analisarmos o processo de
construção social da infância desde o período colonial, é
preciso considerar que o Brasil-colônia estava organizado entre
casa grande e senzala, senhores e escravos. As crianças eram
“crianças rapazes” à força. Gilberto Freyre (1983) fez questão
de caracterizar esses homenzinhos obrigados a se comportarem
como gente grande, salientando que a educação dos pequenos
tinha o propósito de destruir toda a espontaneidade e alegria
de quem ainda aprendia a viver em um sistema escravocrata.
Esse autor destaca que, até os cinco anos, “os meninos de família
andavam nus do mesmo modo que os moleques; mais tarde é que
vinham as roupas pesadas e solenes distinguir os filhos-família
dos moleques da senzala com as roupas de homem” (FREYRE,
1983, p. 412).
40
Em 1808, a chegada e estadia da Família Real Portuguesa
no Brasil foram um marco para aquele século. Logo foram
inauguradas as Escolas Militares, a Escola de Direito e Medicina,
a Biblioteca Real, o Jardim Botânico, a Imprensa. A assistência
era feita pela Santa Casa de Misericórdia, onde foram instaladas,
nos moldes de Portugal, as Rodas dos Expostos, primeiro modelo
de acolhimento de recém-nascidos órfãos ou abandonados, seja
por ser pobre seja por ser filho de uma mãe solteira. Pelos códigos
morais da época, era impensável uma mulher mãe solteira. A
uma gravidez ilegítima, fruto de uma relação fora do casamento,
só restava a tentativa de se livrar do filho bastardo.
A Roda dos Expostos consistia em um mecanismo em forma de
tambor com uma portinhola giratória, onde o bebê era colocado.
Bastava tocar um sino e rodá-la para que alguém a pegasse do outro
lado. Tal sistema mantinha o anonimato, uma vez que era construído
de tal forma que aquele que colocava a criança não era visto por
aquele que a recebia. Foram longos os usos desse dispositivo em
nossa História, que datam de 1726 a 1950. Por quase um século e
meio, a Roda de Expostos foi praticamente o único mecanismo de
assistência à criança abandonada em todo o Brasil.
Em 1822, ocorre a proclamação da Independência e, em
1824, a primeira Constituição brasileira, que foi uma Constituição
considerada liberal e moderna para a época. Em 1830, foi
sancionado o primeiro Código Criminal no Brasil. O artigo de
número 10 determinava que os menores de 14 anos não fossem
julgados como criminosos (CARVALHO, 2010). Ademais, a lei
do Ventre Livre teve uma importância estruturante para a época.
Em seu primeiro artigo, salientava que: “Os filhos de mulher
escrava que nascerem no Império desde a data desta lei serão
considerados de condição livre”. Qual é a nossa herança?
No contexto educacional, do Brasil-colônia à República
Velha (1889 -1929), nenhuma mudança estrutural ocorreu em
uma perspectiva de equidade para a qualidade de ensino entre
a elite e as camadas populares. Na assistência, a infância pobre
41
era vista como em situação irregular e desprovida de direitos. De
todo modo, a década de 1920 foi marcada pelas transformações
que consolidaram leis de assistência e proteção aos jovens
como tutela e coerção do Estado. No entanto, a infância pobre
era caracterizada como delinquente. Em 1927, promulga-se o
Código de Menores, momento a partir do qual o Estado passa a
se comprometer e intervir com políticas públicas.
A infância se transformava e a criança de pequenos
adultos passava a ser um problema social em meio às inúmeras
desigualdades sociais vividas, que a expunham em situação
social irregular, sendo percebida como vagabunda, desocupada,
baderneira, capoeira. Nesse sentido, passou a ser objeto de tutela
assistencialista do Estado com vistas a inibir essa constante
situação colocando-a fora das ruas e dentro das instituições penais
em prol da disciplina, normalização social e controle da ordem.
A dimensão política, que passou a reconhecer as opiniões
das crianças e adolescentes, seus desejos e limitações como um
tema para o seu bem-estar, veio à tona com a promulgação da
Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança
em 1989. A partir de então, temos um marco importante, que
acarretou mudanças na definição de infância e fortaleceu no
Brasil a tese da doutrina da Proteção Integral.
A criança e o adolescente, reconhecidos como sujeitos na
sua condição peculiar de desenvolvimento, passam a ter seus
direitos fundamentais respeitados, dentre os quais: vida, saúde,
alimentação, educação, esporte, lazer, profissionalização, cultura,
dignidade, respeito, liberdade, convivência familiar e comunitária,
o que lhes garante consentimentos e confidencialidade no mundo
dos adultos, tal como determinado pela Constituição Federal de
1988 e normatizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
42
Considerações finais
O que podemos alinhavar no âmbito deste debate são as
inúmeras contradições políticas nas quais os temas infância,
adolescência e família envolvem em nosso cotidiano, quais
sejam: trabalho infantil, pobreza, exclusão social, desemprego,
desigualdade social, violência estrutural, a arma como símbolo
de virilidade, o sentido de transgressão pela criminalidade,
acesso a oportunidades, baixa escolaridade, entre outros.
O que buscamos ressaltar, diante desta reflexão, são as
contradições marcantes das questões sociais em voga, que
culminam com a exclusão social, aspectos que elucidam a base
dos indicadores da vulnerabilidade de todos os cidadãos, mas
principalmente das crianças, dos adolescentes e das famílias de
um modo geral. Em meio à ideia de questão social, há a análise
da não naturalização dos problemas sociais. Essa perspectiva se
apoia na apreciação política da estrutural desigualdade de direitos
por parte de setores inteiros da sociedade (CASTELO, 2012).
A partir destas reflexões, reafirmamos a análise de que
a dinâmica das desigualdades são construções e, como tais,
requerem ser analisadas a partir de parâmetros metodológicos,
éticos, críticos e transformadores, que rumam em direção ao
exercício majoritário dos Direitos Humanos como uma prática.
Para isso, acreditamos ser preciso que tenhamos senso crítico. Será
obrigatório abrir mão de conceitos e preconceitos solidificados,
para que possamos olhar para os jovens, principalmente
aqueles que estão em cumprimento de medida socioeducativa,
considerando-os inseridos nos âmbitos das questões sociais que
trazem em suas trajetórias de vida, pois esses jovens não são os
atos infracionais que cometeram.
O que entra em discussão neste debate é perceber a criança
como sujeito de direito, que necessita de cuidados dos adultos e
assistência do Estado. Porém, o adolescente de baixa renda ainda
43
continua a ser percebido como um problema social, sob a ótica
da doutrina da “situação irregular”, mesmo em meio ao Estatuto
da Criança e do Adolescente, que abre legalmente a perspectiva
para sua a análise a partir da doutrina da “proteção integral”.
Enfim, houve um longo percurso histórico das instituições
sociais, inclusive jurídicas e acadêmicas, para que os adultos
das sociedades ocidentais reconhecessem, à criança, o estatuto
de sujeito e a dignidade de pessoa com base no princípio das
obrigações por parte da família, da comunidade e do Estado,
mas não seremos nós a perder o rumo desta história.
As famílias: novos olhares
Pensar família, hoje, requer uma compreensão de famílias
no sentido plural, que interpele novas reflexões para além do
modelo “nuclear burguês”. Essa perspectiva possibilita analisar
a diversidade de relações e arranjos existentes no âmbito
das conjunções familiares contemporâneas. Haja vista que
coexistimos com novas configurações familiares, não se pode
pensar tal instituição fora do contexto mais amplo, que envolva o
reconhecimento de modelos de coabitação diversos. Não se pode
negar, nesse sentido, a influência da família na construção das
identidades e estilos de vida dos sujeitos. Afirma-se o fato de que
a família se transforma e se adéqua às mais diversas formas de
influências sociais e culturais do mundo moderno (HINTZ, 2001).
Podemos conceituar a família como uma instituição na
qual os membros se unem por vínculos de consanguinidade,
afetividade e coabitação, sendo um espaço de proteção e
socialização, mas também de coexistência de conflitos e violência.
Nesse aspecto, será necessário compreender os mais diversos
arranjos, que na atualidade se destacam como diferentes formas
de expressão familiar, a saber: um núcleo familiar formado por
pai, mãe e filhos, no qual o pai tradicionalmente detém maiores
44
poderes simbólicos nas relações de gênero; as famílias extensas
formadas por outros membros, como avós, tios e primos; a
família monoparental, chefiadas por um pai ou uma mãe; as
homoafetivas, formadas por casais homossexuais com ou sem
crianças; reconstituídas, formadas por várias pessoas coabitando
juntas, sem laços legais, mas com forte compromisso mútuo;
entre outros modelos.
De todo modo, havemos de reconhecer que o grupo familiar
irá exercer influência fundamental no desenvolvimento individual
do sujeito, na constituição de suas identidades, seus gostos e estilos
de vida, além de contribuir na formação de sua personalidade, seu
comportamento e suas relações sociais estabelecidas fora e dentro
do ambiente familiar. Há de se levar em conta, nesse contexto, as
mudanças ocorridas na formação da família.
Com as transformações ocorridas a partir da segunda metade do
século XX, quando a sociedade passou por grandes transformações,
houve mudanças fundamentais no âmbito da vida pública e privada,
caracterizadas pela ampla urbanização das cidades, pelos avanços
tecnológicos, pela efetiva participação da mulher no mercado de
trabalho, pelo aumento no número de separações e divórcios, pelo
controle da natalidade como um mecanismo de escolha a partir dos
métodos contraceptivos, entre outros.
O Censo de 2010 apontou novo perfil da família brasileira
(IBGE 2010). Foi apresentado um declínio das uniões formais
para as informais, um crescimento das famílias reconstituídas e
das famílias monoparentais, em especial formadas por mulheres
provedoras do lar. Na atualidade, o Brasil aumenta ainda mais
as desigualdades sociais, acarretando algumas particularidades
próprias de um sistema que sofre com a ausência de políticas
públicas consistentes.
Como fruto de ampla mobilização popular, a Constituição
Federal de 1988 fortalece a instituição familiar e deflagra ampla
consolidação de políticas públicas, com os seguintes destaques: o
Sistema Único de Assistência Social, que passou a apresentar como
45
um de seus pilares norteadores a matricialidade sociofamiliar; e
o Estatuto da Criança e do Adolescente – lei 8069/1990, na qual
a família passa a vigorar com importância vital na construção da
cidadania. Em decorrência, tem-se o Plano Nacional de Promoção,
Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à
Convivência Familiar e Comunitária, que apresenta como uma de
suas principais diretrizes a centralidade da família, a primazia da
responsabilidade do Estado no fomento de políticas integradas
de apoio e o reconhecimento das competências familiares na sua
organização interna e na superação de dificuldades.
Em se tratando especificamente do adolescente-autor
de ato infracional e sua família, o Sistema de Atendimento
Socioeducativo – SINASE – reconhece a participação familiar
como fundamental no processo socioeducativo, a fim de atingir
os objetivos da medida socioeducativa aplicada.
Embora tenha sido descrito um aparato legal como forma
de proteção à família, cabe ressaltar que a aprovação de leis e
a existência dessas não são o suficiente para se garantir uma
proteção real às famílias e a seus membros. As mudanças só
ocorrem realmente a partir do momento em que as leis saem
do papel e se transformam em políticas públicas em meio à
consolidação de uma sociedade mais justa e igualitária.
Considerações finais
O que podemos alinhavar no âmbito deste debate são as
inúmeras contradições políticas nas quais os temas infância,
adolescência e família envolvem em nosso cotidiano, quais
sejam: trabalho infantil, pobreza, exclusão social, desemprego,
desigualdade social, violência estrutural, a arma como símbolo
de virilidade, o sentido de transgressão pela criminalidade,
acesso a oportunidades, baixa escolaridade, entre outros.
46
O que buscamos ressaltar, diante desta reflexão, são as
contradições marcantes das questões sociais em voga, que
culminam com a exclusão social, aspectos que elucidam a base
dos indicadores da vulnerabilidade de todos os cidadãos, mas
principalmente das crianças, dos adolescentes e das famílias de
um modo geral. Em meio à ideia de questão social, há a análise
da não naturalização dos problemas sociais. Essa perspectiva se
apoia na apreciação política da estrutural desigualdade de direitos
por parte de setores inteiros da sociedade (CASTELO, 2012).
A partir destas reflexões, reafirmamos a análise de que
a dinâmica das desigualdades são construções e, como tais,
requerem ser analisadas a partir de parâmetros metodológicos,
éticos, críticos e transformadores, que rumam em direção ao
exercício majoritário dos Direitos Humanos como uma prática.
Para isso, acreditamos ser preciso que tenhamos senso crítico. Será
obrigatório abrir mão de conceitos e preconceitos solidificados,
para que possamos olhar para os jovens, principalmente
aqueles que estão em cumprimento de medida socioeducativa,
considerando-os inseridos nos âmbitos das questões sociais que
trazem em suas trajetórias de vida, pois esses jovens não são os
atos infracionais que cometeram.
O que entra em discussão neste debate é perceber a criança
como sujeito de direito, que necessita de cuidados dos adultos e
assistência do Estado. Porém, o adolescente de baixa renda ainda
continua a ser percebido como um problema social, sob a ótica
da doutrina da “situação irregular”, mesmo em meio ao Estatuto
da Criança e do Adolescente, que abre legalmente a perspectiva
para sua a análise a partir da doutrina da “proteção integral”.
Enfim, houve um longo percurso histórico das instituições
sociais, inclusive jurídicas e acadêmicas, para que os adultos
das sociedades ocidentais reconhecessem, à criança, o estatuto
de sujeito e a dignidade de pessoa com base no princípio das
obrigações por parte da família, da comunidade e do Estado,
mas não seremos nós a perder o rumo desta história.
47
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49
Infâncias marginalizadas , adolescentes criminalizados?
Virginia Georg Schindhelm8
Resumo: O artigo tem como foco os temas infância e
adolescência em diálogo com experiências de vulnerabilidade,
invisibilidade e de risco social. Apresentamos infância e
adolescência como fenômenos socioculturais, construídos
historicamente, e envolvidos nos processos de urbanização,
do trabalho e das relações de produção. As crianças, futuros
adolescentes, vivem com várias realidades sociais e delas
apreendem valores e estratégias de compreensão de mundo
e de formação de suas próprias identidades pessoal e
sociocultural. Quase sempre mediadas por adultos, no interior
de complexos modos de organização e de produção cultural,
crianças e adolescentes desenvolvem-se como participantes
de comunidades e nelas vivem experiências, muitas vezes
configuradas como situações de risco. Nas comunidades com
concentração de famílias de baixa renda, é comum atribuir aos
sujeitos trajetórias que afirmam e potencializam noções subjetivas
e sociais de desqualificação e marginalização. Os jovens emergentes
destas comunidades, comumente, são considerados perigosos em
potencial, inimigos da sociedade e, por isso, sujeitos que devem ser
evitados e excluídos para o melhor desenvolvimento da sociedade.
Nesse contexto, configura-se um processo de criminalização que
atravessa infâncias e jovens que vivenciam políticas públicas
intervencionistas de governo com ações policiais opressoras.
Diante dessas questões, desenvolvemos reflexões sobre crianças
e jovens configurados por identidades homogêneas, inferiores
e desqualificadas e, por isso, atravessados e constituídos por
políticas governamentais que os consideram fora de perspectivas
de normalidade, de autonomia e mesmo de liberdade.
8
Doutora em Educação Universidade Federal Fluminense –UFF.;E-mail: [email protected] Professora Convidada do Curso de Formação de Operadores do
Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro
50
Palavras-chave: crianças, jovens, risco e exclusão social, infração.
Introdução
Este artigo parte da experiência do curso de formação
dos profissionais do sistema socioeducativo ao adolescente em
conflito com a lei do Estado do Rio de Janeiro, que procurou
introduzir os fundamentos teóricos para a prática socioeducativa
sobre os temas infância, adolescência, família e sociedade, em
conformidade com as diretrizes legais e normativas nacionais e
internacionais no âmbito do Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
SINASE e do PNCFC (Plano Nacional de Convivência Familiar
e Comunitária).
Nossa proposta é trazer algumas reflexões sobre infâncias
e adolescentes, entendidos como sujeitos de direitos que se
encontram em processo de desenvolvimento e de construção
de uma identidade social, histórica, psíquica e corporal como
pessoa humana.
Nosso curso partiu de reflexões acerca de conceitos de
infância e adolescência, de modo a entendermos que não são
simplesmente fenômenos naturais e biológicos a partir do
nascimento, mas caracterizam-se como fenômenos históricos,
culturais e sociais.
Para compreendermos a história da infância e da
adolescência, indiscutivelmente, precisamos visitar a história da
família, dos processos de urbanização, do trabalho e das relações
de produção para entendermos que vivemos com uma herança
histórica com particularidades latino-americanas construídas
a partir de sociedades cindidas em classes com marcas de
um passado oriundo de longos processos de colonização e
de escravidão e de um presente configurado por sociedades
com classes dominantes subordinadas aos grandes centros
51
hegemônicos do capital financeiro com a finalidade de auferir
lucros, independente da produção. Neste processo surge a
ideologia do capital humano referindo-se à importância do sujeito
social como mão de obra qualificada para o processo produtivo
numa sociedade que valoriza a pedagogia das competências, a
empregabilidade e o empreendorismo.
Nesta lógica social com espírito mercantil, onde ficam as
crianças que caminham para adolescência num contexto familiar
em situação de pobreza, distanciadas desse ideal social e que,
muitas vezes, é criada num lugar de conflito e num espaço de
violação dos direitos legais que asseguram a sua liberdade,
dignidade, integridade física, psíquica e moral, sua educação,
saúde, proteção, assistência social à cultura, ao lazer, ao desporto,
à habitação, a um meio ambiente de qualidade, dentre outros
anunciados pelos documentos institucionais?
Diante desses pressupostos, apresentamos um breve
histórico da infância, adolescência e famílias pobres no Brasil na
tentativa de situá-los no contexto social nacional.
Contextualizando a infância, a adolescência e famílias pobres
no Brasil
A infância e a adolescência não são simplesmente fenômenos
naturais e biológicos a partir do nascimento, mas caracterizam-se
como fenômenos socioculturais construídos ao longo da História.
Referimo-nos à história do Brasil que começou a ser registrada a
partir do anos 1500, quando europeus aportaram em nossas terras.
Mesmo assim, até a transferência da família real para o Rio
de Janeiro, em 1808, há poucos e esparsos registros da formação
histórico-social da sociedade brasileira. Predominavam aqui
valores tradicionais, herdados das elites rurais escravagistas, que,
na prática, controlavam o poder político local. Existiam crianças
e jovens nas tribos indígenas com culturas singulares e diferentes
52
daquelas que os colonizadores conheciam. Vemos assim, que a
concepção de criança que temos na atualidade ocidental não é a
mesma que a História nos conta.
Até o século XVI ainda estava longe de ser delimitada
enquanto etapa cronologicamente precisa. Na Idade Média
europeia, as crianças misturavam-se aos adultos e participavam de
atividades de diversão, de trabalho e também de sexo, pois eram
livres para assistir a tudo que os adultos faziam. Durante séculos as
crianças foram consideradas como adultos menores, mais frágeis
e menos inteligentes, mostradas através da arte, como adultos em
miniatura, com vestimentas e atitudes próprias da adultez.
Pouco a pouco, diferentes infâncias instituem-se quando
reconhecidas por suas diferentes naturezas: desde a infância
angélica e nobilíssima do Príncipe, passando pela infância dos
filhos das classes privilegiadas até a infância rude das classes
populares, descrevem Varela e Alvarez-Uria (1992, p. 71). Cada
uma dessas infâncias recebia programas educativos diferenciados.
A educação para as classes menos abastadas acontecia por
meio de uma ampla rede de sociabilidade com aprendizagem
gradual dos usos, dos costumes e das técnicas conhecidas pelas
comunidades. Tuteladas por um adulto, as crianças tornavam-se
aprendizes a partir dos sete anos com responsabilidades que se
tornavam progressivamente mais próximas às dos adultos.
Os autores e eclesiásticos, que preocupavam-se com o
ensino das letras aos pequenos, acordavam sobre a necessidade
de que muito cedo fossem os infantes iniciados na aprendizagem
da fé e dos bons costumes, pois conferiam a essa etapa especial
da vida características como a maleabilidade, a fragilidade, a
rudeza, a fraqueza de juízo e, enfim, a necessidade de civilizar
a “natureza em que se assentam os germens dos vícios e das
virtudes”, explicitam Varela e Alvarez-Uria (1992, p. 71).
A inocência infantil é uma conquista posterior a esse período,
efeito, em grande medida, da aplicação de toda uma ortopedia
53
moral sobre o corpo e a alma dos jovens, complementam os
autores (ibidem 1992, p. 72).
De acordo com Ariès (1981), o conceito de infância é recente
na história da humanidade, foi modificado e determinado pelos
interesses sócio-político-econômicos dos movimentos culturais
iluministas e religiosos protestantes, que permitiram, nos séculos
XVII e XVIII, um olhar diferenciado sobre ela. Fundamentalmente,
a partir dessa época, começa a configurar-se o sentimento de
infância, tal como hoje o percebemos, todavia não tinha como
significado a afeição pelas crianças, mas sim a consciência da
particularidade infantil, entendida como uma etapa diferente da
idade adulta e dotada de capacidade de desenvolvimento.
Heywood (2004) ressalta, no entanto, que nos séculos XVI
e XVII já existia uma consciência de que as percepções de uma
criança eram diferentes das dos adultos e que já havia uma
infância presente na Idade Média, mesmo que a sociedade não
tivesse tempo para a criança. Segundo o autor, nessa época a
Igreja já se preocupava com a educação das crianças, colocadas
a serviço do monastério e, no século XII, já existiam indícios
de um investimento social e psicológico nas crianças. Dessa
forma, Heywood considera mais frutífera a busca de diferentes
concepções sobre a infância, uma vez que identificou várias
descobertas sobre ela em diferentes tempos e lugares.
Ariès (1981) elaborou historicamente o estatuto da infância,
relacionou a sua constituição com as classes sociais, com a
emergência da família moderna e com uma série de práticas
educativas aplicadas especialmente nos colégios. Todavia,
relegou a um segundo plano, um tanto longínquo, os métodos
empregados no recolhimento e moralização dos meninos
pobres. A constituição da infância de qualidade fazia parte de
um programa político de dominação: quando rica era governada
e submetida à autoridade pedagógica e aos regulamentos, que
constituíam passos para assumir mais tarde funções do governo,
quando pobre não recebia atenções e tinha nos hospitais, nos
54
hospícios e em outros espaços de correção, os primeiros centrospilotos destinados a modelá-la (VARELA e ALVAREZ-URIA,
1992, p. 75).
A partir dos estudos de Àries e de Heywood podemos
inferir que as crianças sempre estiveram presentes nos diferentes
meios socioculturais, apesar da impossibilidade de categorizar a
uma infância universal, natural, sempre igual, homogênea e de
significado óbvio devido à diversidade de aspectos temporais,
sociais, culturais e políticos e das especificidades diferenciadas
das características adultas que interferiram na sua formação.
Sendo assim, compreender uma história da infância e
da adolescência envolve, indiscutivelmente, estudar outras
histórias, tais como, as da família, dos processos de urbanização,
do trabalho e das relações de produção.
Com a independência do Brasil em 1822 a falta de
compromisso do poder público com a educação do povo
continuou com menos intensidade. Em 1824 com a primeira
Constituição no país, o imperador D. Pedro I determinou a
instrução primária gratuita aos cidadãos, todavia um direito
negado aos escravos.
Em 1834 um Ato Adicional delegou às províncias (atuais
Estados) o direito de elaborar leis e manter o ensino primário e
secundário do povo, retirando a responsabilidade do imperador
que normatizava esses níveis de ensino apenas na capital e sobre
o ensino superior.
Com a proclamação da República em 1889, a primeira
Constituição Federal Republicana de 1891, responsabilizou mais a
família do que o próprio Estado pela educação. Até o ano anterior,
em 1888 com a abolição da escravatura, o Brasil viveu um contexto
histórico marcado pela exclusão de milhares de pessoas que sequer
eram consideradas cidadãs, como a população negra e a indígena.
Assim, as duas primeiras constituições brasileiras (1824 e
1891) nada mencionam à respeito da infância.
55
As primeiras décadas do século XX foram marcadas
por lutas de trabalhadores e educadores reformistas para
democratizar o ensino público. Com a criação do Ministério da
Educação (MEC) em 1934, a Constituição Federal vinculou, pela
primeira vez, recursos para a educação.
A Constituição de 1937 menciona que o Estado deveria
providenciar cuidados especiais à infância, cabendo ao Estado
Novo o cuidado e o amparo, em vez do dever e do direito da criança.
Em 1937 essa vinculação de recursos para a educação foi
revogada pela ditadura do Estado Novo (1937-1945) e retomada
em 1946 por uma Constituição com características mais liberais
que ampliaram para 20% o comprometimento dos municípios
para a manutenção e o desenvolvimento do ensino (artigo 169).
Essa Constituição de 1946, promulgada no clima de pós-guerra
mundial, encontram-se termos amparo e assistência à criança.
No caso brasileiro, até a década de 1930 as autoridades
ignoraram a infância devido às diferentes sociedades que a
formaram: desde a população indígena original passando pelas
diferentes migrações, pelo longo período de escravidão e pelo
imperialismo imposto pelos países europeus. A criança brasileira
só começou a ser atendida com o processo de catequização e de
domesticação dos pequenos pelos jesuítas.
Historicamente já existia a Roda dos Expostos, destinada aos
abandonados das primeiras idades, pois os filhos dos comerciantes
e dos aristocratas eram criados por suas próprias famílias.
As iniciativas de atendimento para o público infantil
partiram de higienistas na intenção de diminuir os altos índices de
mortalidade, de modo especial entre os nascimentos ilegítimos.
A maior parte das crianças que precisavam ser cuidadas eram
produtos de uniões ilegais ou de relações entre senhores de
engenho e suas escravas. Todavia, enquanto existiam algumas
alternativas provenientes de grupos privados formados por
médicos ou por associações de damas beneficentes faltava,
de maneira geral, o interesse da administração pública pelas
56
condições da criança brasileira, principalmente a pobre, esclarece
Kramer (2001).
Existem, ainda hoje, realidades brasileiras onde as infâncias,
mesmo heterogêneas, compartilham de experiências nas quais
os pequenos ficam excluídos de viver e desfrutar dos direitos
e prazeres que marcam o tempo de ser criança, como ilustra
e denuncia o seguinte trecho da música nativista folclórica
riograndense, Piazito Carreteiro de Luis Menezes:
Piazito carreteiro
Do cusco amigo e companheiro
Que nunca teve infância
Pois não pode ser criança
Porque a vida não deixou...
Hoje a infância já é um campo de estudos e tem a visibilidade
de ser constituída por sujeitos historicamente situados e também
de ser estudada na sua alteridade e pelo valor que tem em si
mesma, compreendida como uma categoria que revela práticas
e processos sociais por meio dos quais as crianças agem sobre o
mundo e participam da construção de suas vidas e também da
sociedade (BORBA, 2005).
Apesar disso “algumas vezes as sociedades esquecem que
precisam de suas crianças e que para tê-las há de se respeitar
o direito de viver a infância” observa Vasconcellos (2007, p. 7).
A autora ressalta ainda que as crianças contemporâneas estão
em contato, de forma direta ou indireta, com várias realidades
e delas apreendem valores e estratégias de compreensão de
mundo e de formação de suas próprias identidades pessoal e
social. Vivem experiências e interagem com outras crianças quase
sempre mediadas por adultos no interior de complexos modos
de organização e de produção cultural, por meio dos quais suas
infâncias adquirem contornos e neles e por eles é construída,
muitas vezes destruída ou mesmo reinventada (ibidem, p. 9).
57
Assim, crianças e adolescentes desenvolvem-se como
participantes das comunidades onde foram criados e nelas
vivem experiências, muitas vezes configuradas como situações
de risco e vulnerabilidade social. A noção de risco é inerente à
própria vida, indissociável da experiência humana, gerado em
eventuais desequilíbrios criadores e criativos decorrentes das
interações indivíduo-meio, na medida em que remete ao que é
“desconhecido, indeterminado ou ambíguo, gerador de dúvidas
e ativador de inseguranças”, postula Martins (2008, p. 247).
No domínio da infância o risco reflete a intenção de
vigilância e normalização das práticas e prestação dos cuidados
e dos contextos de vida, de modo a evitar os fatores que
dificultam ou impedem o desenvolvimento por inadequação,
disfuncionalidade, por déficit ou ausência das possibilidades
consideradas normais e necessárias ao desenvolvimento
infantil, acrescenta a autora (MARTINS, 2008). Assim, enquanto
organizador dos processos de regulação da infância, o risco
também participa nos mecanismos de subjetivação infantil.
A cultura e as diferenças culturais têm sido entendidas
como um fator de risco ou vulnerabilidade quando se afastam
daquela típica dominante da classe média, branca e anglo-saxônica
que impôs, historicamente, as suas normas, valores, atitudes e
práticas de cuidados das crianças como referências normativas,
em especial, no que se refere à parentalidade e ao desenvolvimento
infantil. Assim as diferenças relativas a estes padrões dominantes
têm sido equacionadas como desviantes (ibidem).
Por outro lado, Martins (2008, p. 260) postula que “em si
própria, a cultura não constitui uma fonte de vulnerabilidade
ou risco, pelo contrário, pode funcionar como um recurso
desenvolvimental”. Dessa forma, é importante considerarmos
que não podemos atribuir ao ambiente um imenso poder no
desenvolvimento humano, entendendo a criança ou o jovem
como um ser extremamente plástico que desenvolve suas
características e suas competências em função das condições
58
presentes no meio e nos cenários culturais em que se encontram
(DAVIS, OLIVEIRA, 2010).
É bastante comum o trabalho infantil de crianças que
se desenvolvem em comunidades permeadas por atividades
ilícitas, tais como tráfico de armas e de drogas, realizando muitas
vezes pequenos serviços para as figuras de autoridade locais.
Nesses contextos culturais os pequenos convivem com
armas de fogo, violência doméstica e subempregos de suas
famílias no mercado informal, que trazem como consequências
infâncias marcadas pelo abandono da escola, pela tolerância aos
pequenos delitos e por vivências comunitárias permeadas por
condutas que associam a delinquência e a criminalidade como
formas para driblar a pobreza e a exclusão social.
A rua, como um ambiente social, na infância destas
crianças, apresenta-se como um cenário para brincar e também
para realizar pequenas tarefas infracionais para os comandos
comunitários locais.
Na adolescência, a rua torna-se um mundo onde grupos
são organizados para promover atividades delinquentes,
socializados pelo uso da força bruta e da violência e gestados
por códigos severos de comportamento e de lealdade (TOKOY,
OLIVEIRA, 2008).
Dessa forma, nas comunidades com concentração de
famílias de baixa renda, é comum atribuir aos sujeitos trajetórias
que afirmam e potencializam noções subjetivas e sociais de
desqualificação e marginalização. Os jovens emergentes destas
comunidades, frequentemente, são considerados perigosos em
potencial, inimigos da sociedade e, por isso, sujeitos que devem ser
evitados e excluídos para o melhor desenvolvimento da sociedade.
Nesse contexto, configura-se um processo de criminalização que
atravessa infâncias e jovens que vivenciam políticas públicas
intervencionistas de governo com ações policiais opressoras.
59
No entanto, não podemos generalizar e reduzir as
crianças e os adolescentes oriundos de comunidades pobres a
uma concepção ambientalista do desenvolvimento humano,
ou seja, uma corrente de pensamento determinista que atribui
um imenso poder ao ambiente no desenvolvimento humano,
concebendo o sujeito como extremamente plástico, na medida
em que desenvolve suas características em função das condições
presentes no meio em que se encontra. Nessa concepção, a
criança nasceria como uma tabula rasa, comparável a uma folha
em branco com a ausência de qualquer conteúdo e desenvolverse-iam como criaturas passivas face ao ambiente e, assim,
manipuladas e controladas pelas situações em que se encontram.
Dessa forma, as infâncias e adolescências “atravessadas
pela semiótica da pobreza e da favela” (CHACEL, 2012), um
campo atravessado por estigmas e criminalizações, seriam
produzidas no âmbito da marginalização.
Diante isso, questionamo-nos: até que ponto infâncias
criadas em ambientes marginalizados, futuros jovens com suas
alternativas limitadas, podem construir novas configurações
subjetivas, distantes daquelas desqualificadas e serializadas
como os modos de ser naturalizados e vivenciados pelos filhos
de famílias pobres moradoras de comunidades segregadas e
excluídas socialmente?
Articulações que não concluem, mas convidam a refletir
É notória a percepção de como naturalizamos e, portanto,
aceitamos a existência de uma relação indissociável entre pobreza
e criminalidade, isto é, a violência acontece onde o pobre está. Por
outro lado, também é notória a importância de desvenciliarmonos da armadilha de vincular pobreza e violência, com base na
divisão da sociedade em classes sociais e no antagonismo e na
violência resultantes dessa divisão.
60
Também é sabido que, às crianças e jovens moradores de
comunidades pré-conceituadas como cenários perigosos, atribuise identidades homogêneas, inferiores e depreciadas além de
futuros envoltos por trajetórias naturalizadas e potencializadas
com noções sociais de desqualificação e de marginalização.
Perguntamo-nos sobre a possibilidade de visualizar essas
naturalizações como estranhamentos, de modo a provocar outras
formas de entender que existem outras produções de subjetividades
que podem delinear condições psicossociais diferenciadas das
noções de segregação e exclusão vivenciadas pelos jovens moradores
de comunidades marginalizadas pela sociedade.
Como psicólogas entendemos que cada sujeito é um ser
social, um ser de relações e em permanente movimento para
transformação de si, dos outros, do cenário em seu entorno e
também da sua história social. Por que não admitir que podem
existir bifurcações ou linhas de fuga nas produções subjetivas
dessas crianças e jovens considerados como riscos sociais? Por que
não investirmos nosso trabalho e nossos saberes em experiências
que afirmem um caráter processual, histórico e mutável das formas
dessas crianças e desses jovens construírem suas subjetividades
expressando outras formas de viver no social?
Acreditamos que essa seria uma maneira de perceber
não mais um jovem que transgride as regras sociais, mas sim
um sujeito no qual a linha da infração é apenas uma a mais
dentre tantas outras que o compõem. Esse é um desafio para
os profissionais que trabalham com esses jovens, afirmando a
abertura de espaços e de experiências que possam criar outras
vias de relação consigo mesmos e também com a vida.
61
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O adolescente no sistema socioeducativo: uma reflexão a
partir da psicanálise
Erimaldo Matias Nicacio9
Resumo: Um dos elementos que compõem o tripé do SINASE,
conforme o documento que descreve os princípios dessa nova
política (Brasil, 2009, 2ª. edição), é a formação permanente dos
agentes envolvidos. Essa diretriz10 parte do entendimento de
que a formação continuada é fundamental para o constante
aperfeiçoamento do atendimento socioeducativo e, sobretudo,
para superar as práticas assistencialistas e repressivas que
ainda predominam no sistema. E um dos pontos cruciais desse
processo de formação é a reflexão sistemática sobre os sujeitos
atingidos por essa política, isto é, os adolescentes. Por isso,
o objetivo deste artigo é definir a adolescência a partir dos
conceitos da psicanálise e, com isso, desenvolver uma reflexão
sobre o atendimento ao adolescente no sistema socioeducativo.
Uma questão fundamental é como lidar com o adolescente como
um sujeito e não como mero objeto de intervenção.
Palavras chave: Adolescente , sujeito, família e ato infracional
9
Doutor em Saúde Coletiva pelo IMS/UERJ, professor da Escola de Serviço
Social da UFRJ, psicanalista membro do Tempo Freudiano – Associação Psicanalítica.
Esse ponto reaparece com destaque no item “Diretrizes pedagógicas do atendimento
socioeducativo” (Brasil, 2009).
10
Esse ponto reaparece com destaque no item “Diretrizes pedagógicas do atendimento socioeducativo” (Brasil, 2009).
64
Sujeito, linguagem e desejo
A fim de refletir sobre o ato infracional entre adolescentes,
tomemos como ponto de partida a observação de que o sujeito
humano, diferentemente dos animais, não nasce com as regras que
servem para orientar sua conduta, pois essa não é determinada
por um instinto. Ingressar em um mundo propriamente humano
significa entrar no sistema da linguagem, isto é, na ordem
simbólica. O homem é o único animal dotado de um sistema
simbólico, o qual não serve apenas para que nos comuniquemos
uns com os outros. Na verdade, ele determina, modela toda a
nossa existência. Por conseguinte, a relação do sujeito consigo
mesmo, com seu corpo e com os semelhantes é determinada
pela linguagem. A ordem simbólica subverte de tal forma
nossa existência que podemos dizer que quase nada no sujeito
humano é instintivo. As nossas necessidades mais básicas não
são fenômenos puramente biológicos, pois se encontram, desde
a chegada de uma criança ao mundo, marcadas pela linguagem.
Antes de vir ao mundo, a criança já é tomada na ordem
simbólica, na medida em que seu pai, sua mãe e outros adultos
falam dela e com ela. A criança recebe um nome que já carrega em
si a função de dar um lugar para ela na sucessão geracional (ela é
filha de fulano, neta de beltrano etc) e na diferença entre os sexos.
Essa é uma das marcas que o sujeito sofre ao longo da sua vida.
É na família que se dá a transmissão dos elementos de
linguagem que deixarão marcas e definirão o que o sujeito vai ser
na vida. E é preciso dizer que a relação da criança com seus pais
envolve algo mais que a transmissão genética e de valores. Tal relação
envolve alguma coisa da ordem da sexualidade. Freud abordou
isso por meio do conceito de complexo de Édipo. Esse conceito não
se resume a descrever uma fase que todos nós atravessamos na qual
desejamos o genitor do sexo oposto e rivalizamos com o genitor do
mesmo sexo. Embora isso seja um fato trivial e constatável pela
experiência, o conceito quer dizer algo mais profundo que isso.
65
Isso quer dizer que a nossa subjetividade se estrutura a
partir dessa relação com o pai e a mãe. É no laço libidinal que
se estabelece (ou não) entre a criança e seus pais que se constitui
o modo como o sujeito vai se posicionar na sua existência. Na
origem do sujeito, que será sempre um enigma, existe a marca de
um desejo sexual entre um homem e uma mulher. Há também o
amor que enlaça a criança ao seu pai e à sua mãe; um amor que
é sexual, como Freud não hesitava em afirmar, por mais que isso
pudesse causar escândalo. É isso mesmo: Freud descobriu que no
inconsciente há um desejo incestuoso, ao qual não temos acesso
por estar recalcado, ou seja, afastado da nossa consciência.
A mãe fala com a criança, investe nela seu desejo e lhe
empresta seu corpo para que ela também possa vir a formar sua
imagem corporal, que é a base para a constituição do seu eu.
Ao mesmo tempo, a criança se interessa pelo que seria o objeto
de desejo da mãe e ela tenta se colocar no lugar desse objeto. A
partir de uma articulação muito complexa que não retomaremos
aqui, na psicanálise, esse objeto é designado pelo conceito de
falo. A criança quer ser o falo da mãe.
E aí intervém um elemento fundamental da nossa
estruturação psíquica que em psicanálise chama-se o “nome-dopai”. Esse é um elemento da linguagem que introduz a lei da
proibição do incesto. Essa lei não-escrita não se refere tanto à
proibição da relação sexual entre parentes consanguíneos, mas
designa o fato de que não há acesso possível a um objeto que nos
daria uma satisfação garantida e permanente. O nome-do-pai é
um significante que no sistema da linguagem introduz a lei e a
diferença de lugares.
O nome-do-pai intervém, portanto, desalojando a criança
desse lugar de falo ao mesmo tempo em que priva a mãe de tê-la
como objeto exclusivo. Esse corte permite que o sujeito abra mão
de ser o falo e se defronte com a questão de quem tem o falo,
isto é, quem tem o que a mãe deseja. Aqui, o pai intervém na
sua dimensão de potência, como desejante, dirigido à mãe como
66
aquele que tem o falo. É pela via da ameaça de perda do falo que
o menino pode tê-lo, isto é, como um título de propriedade. Ele
tem o falo, mas só poderá usá-lo no futuro. Já a menina, caindo
da dimensão do ser, ao assumir que ela não tem o falo, buscará no
pai o falo que a mãe não pode lhe dar. E, a partir da decepção que
ela encontra, a menina que ela vai poder assumir uma posição
feminina e buscar o falo em outro homem. Portanto, é pela via da
castração que tanto o menino quanto a menina entram no campo
da identificação sexual e do desejo. É por aí que o sujeito encontra
algum acesso ao falo como significante do desejo. Isso mostra que
o pai não é interditor do desejo, mas condição para o desejo. Na
verdade, ele dirige ao sujeito uma prescrição paradoxal: deseje!
E o sujeito só pode ter acesso ao desejo passando pelo outro, pela
mediação da linguagem.
O adolescente
A adolescência não é um conceito psicanalítico, mas um
termo que, na nossa cultura, designa uma fase de transição na qual
as transformações fisiológicas determinam um comportamento
conflituoso em relação à sexualidade e à identidade. Um termo
jocoso, especialmente empregado para se referir ao adolescente,
é “aborrecente”. Ele talvez sirva para indicar não tanto suas
alterações de humor, mas o quanto ele nos aborrece. E isso
acontece menos por algum suposto defeito do adolescente e mais
por nossa dificuldade de lidar com suas questões e seu modo
de viver. Um outro modo de nos referirmos aos impasses da
nossa relação com ele é, muitas vezes, indicado pela referência
aos “hormônios”, o que nos proporciona uma explicação que
dá um sentido aos enigmas e inquietações que eles nos trazem,
apaziguando nossa angústia.
A adolescência é um fato cultural, uma experiência que
é própria da cultura ocidental moderna, o que mostra que
67
a passagem da infância para a vida adulta não se realiza da
mesma forma em todas as sociedades. Segundo Melman (2000),
o adolescente é um sujeito que atingiu a maturidade sexual,
sem que a família e o meio social reconheçam essa maturidade.
Esse fenômeno é recente e surgiu com o desenvolvimento da
sociedade burguesa. Até o século XIX, após terem passado pela
puberdade, os jovens assumiam responsabilidades na sociedade
e no casamento. A sociedade lhes concedia, portanto, um lugar
simbólico, inclusive as condições materiais para assumir sua
identidade sexual.
A pesquisa de Van Gennep (1988) sobre os ritos de iniciação
nos dão subsídios para verificar como nas sociedades tribais não
existia a adolescência. A saída da infância e a posterior entrada
na vida adulta eram mediadas por “ritos de iniciação” nos quais
o jovem participava de uma série de práticas rituais que visavam
separá-lo do núcleo familiar e agregá-lo ao mundo dos adultos.
Nesses rituais, os jovens eram submetidos a mutilações, pinturas,
flagelações e, também, a certas restrições-tabu. Encenavam-se a
sua morte – marcando, assim, uma ruptura com a etapa anterior
de sua vida – e o seu posterior renascimento para a vida adulta.
A partir daí, seu status social mudava: deixavam de ser crianças
e se tornavam homens e mulheres.
No mundo moderno, essa passagem para a vida adulta
deixou de se realizar por um ritual localizado no tempo e se
tornou uma longa preparação, visando à formação do futuro
agente econômico. Essa preparação encontrou uma instituição
social específica: a escola (Ariès, 1981). A adolescência como
um fato cultural supõe o processo de escolarização, no qual se
realiza a formação daquele que, ao final do processo, se tornará
um adulto, cidadão e trabalhador. Doravante, a mensagem
que se transmite ao adolescente é que a necessidade é primeira
em relação ao desejo. Por isso, pede-se que ele recalque suas
pulsões sexuais até que ele adquira a formação necessária e, por
conseguinte, as condições materiais para exercer a sexualidade
no âmbito da união legítima, isto é, o casamento.
68
É nesse contexto cultural que se constitui a adolescência
como um período em que o sujeito está na “passagem”, na
“margem”, no “limiar”. Não é mais uma passagem simbolizada
pelo grupo social, ritualizada e institucionalizada. Trata-se de
uma passagem demorada, que se caracteriza como uma “fase” de
longa duração. Segundo Rasssial (1999, p.58) esse é “um período
de indecisão subjetiva e de incerteza social, durante o qual a
família e as instituições exigem, segundo as circunstâncias, que o
sujeito se reconheça como criança ou como adulto“.
O adolescente está confrontado com o dever de tomar
posição em relação à identificação sexual e de assumir seu desejo
em nome próprio. Ele deve se desprender da criança que ainda o
habita, em certa medida, e abrir mão de um tipo de relação com o
outro ainda muito marcada pelo lúdico, pelo brincar para poder
se engajar em uma relação em que as coisas são “à vera”. O status
ambíguo da condição do adolescente torna problemática para ele
a questão da responsabilidade. Ele, em tese, está se preparando
para assumir determinadas responsabilidades das quais ele
ainda está isento; por isso, esse anseio, tão comum entre nós, de
ter liberdade sem responsabilidade.
Cabe destacar duas consequências importantes dessa
crise vivida pelo adolescente. Uma delas se refere à mudança
que se opera na relação com seus pais, assim como com o saber
desses. A idealização dos pais entra em declínio e o sujeito passa
a considerá-los incapazes de ajudá-los nos seus impasses. O
saber que o interessa é o saber sobre o sexual, ao qual não temos
acesso, na medida em que é inconsciente. Ele quer um saber que
lhe permita se exercer como sujeito desejante. O resto não lhe
interessa. Por isso, o adolescente tende a desacreditar no saber
dos pais e a rebelar-se diante da sua autoridade.
O mesmo descrédito recai sobre os professores. O saber
transmitido pela escola lhes parece muito distante da sua
experiência de vida. Um discurso desencarnado que parece não o
instrumentalizar para lidar com as questões fundamentais com as
69
quais está confrontado. Decorre disso que todas as tentativas da
escola de aproximar seu conteúdo da realidade de vida dos jovens
– necessárias e louváveis – esbarram em um limite estrutural.
Isso porque o saber transmitido pela escola – o saber científico –
implica, por estrutura, a exclusão do sujeito; daí, a dificuldade de
fazê-lo se interessar por um saber no qual ele não se reconhece,
que é distante da sua experiência e não é acessível pela intuição.
Uma segunda consequência é que, para lidar com sua
crise, o adolescente tende a procurar amparo nas relações com
os seus semelhantes daí, a importância do grupo nessa fase.
Os parceiros são aqueles com quem ele pode se identificar por
compartilharem alguma coisa em comum. Certas insígnias
permitem essa identificação: as roupas, o cabelo, as gírias, o
local de moradia etc. Uns se reconhecem nos outros. Uma das
expressões dessa relação em espelho é o amor. Como todos nós,
o adolescente faz muitas coisas para se sentir aceito, ou seja,
amado pelo grupo. E estar mergulhado no grupo lhe dá uma
segurança, pois ele será levado a agir em conformidade com o
outro e isso o economiza de assumir o seu desejo.
O adolescente e a família
Comecemos este ponto com o relato, apresentado por
Vale (2009) em pesquisa realizada no interior de Minas Gerais.
Um jovem de 15 anos, que a autora chama de Killer, encontravase internado por ter sido apreendido com uma moto roubada.
Criado por sua avó materna, o jovem desenvolveu um ódio
pela mãe por esta tê-lo abandonado. Ela só voltou a procurá-lo
depois do falecimento do pai, que deixou uma pensão disputada
desde então pela família materna. Durante a internação, sua
mãe o visitava, contra sua vontade, até que, durante uma das
visitas, Killer lhe falou, diante de outras pessoas, que ela não
o procurasse mais. Logo, em seguida, conforme seu relato ele
70
foi gravemente agredido pelos agentes socioeducativos, com o
argumento de que o castigo serviria para que ele aprendesse a
respeitar sua mãe. Killer foi levado para o pronto-socorro, mas
ficou com sequelas motoras graves que comprometeram sua
marcha de forma definitiva.
Esse episódio ilustra, em primeiro lugar, como, nas
instituições correcionais, qualquer desvio em relação a uma
norma, prescrição ou um ideal torna-se um delito que deve ser
punido. E tal lógica punitiva (a ser abordada mais adiante) sempre
prevaleceu nas instituições de internação de adolescentes e ainda
está presente em muitas delas. Qualquer conduta fora da norma
deve ser punida com rigor, realizando uma micropenalidade que
não tem limite. O discurso supostamente pedagógico – segundo
o qual o castigo serve para que o jovem aprenda a agir de forma
correta – apenas encobre uma moralidade regida pelo puro
desejo de punir.
Um outro aspecto que está presente na situação descrita
é a desconsideração da complexidade da relação desse menino
com sua mãe. Esse é um caso extremo, mas ilustra algo que está
presente, de forma velada ou não, em muitas instâncias que
lidam com o adolescente infrator: a referência a um ideal de
família nuclear, estruturada e harmônica.
Em alguns casos, como no exemplo acima, o jovem é
condenado não apenas por seu ato, mas por ter desrespeitado a
família. Ao mesmo tempo, a família do jovem em conflito com
a lei tende a ser diagnosticada como desestruturada, violenta,
negligente ou ainda incapaz de assumir suas responsabilidades
em relação ao adolescente. Assim, há uma tendência a
culpabilizar o adolescente e/ou sua família pela situação em que
ele se encontra.
De fato, quando nos aproximamos da biografia desses
jovens, podemos constatar diferentes situações de abandono,
violência, miséria, reproduzidas ao longo de sucessivas gerações.
Um elemento chama a atenção na história desses jovens: muitos
71
chegam ao sistema socioeducativo sem certidão de nascimento.
Além de se constituir como um procedimento jurídico, o registro
civil de nascimento é também um gesto simbólico, pois ele
expressa a função de nomeação do pai que tem o poder de dar
um lugar ao sujeito. Em muitas situações, ou não há o registro
ou, quando há, muitas vezes não inclui o nome do pai. Esses
fatos são significativos e somos levados a levantar a hipótese de
que expressa o declínio do nome-do-pai na modernidade.
Em todo caso, a experiência mostra como a relação
com o pai e a mãe é crucial na história de vida de um sujeito,
independentemente dos arranjos familiares e das situações
concretas de vida em que ele está situado. Uma educadora11 ,
referindo-se à sua experiência em um abrigo, relatou como os
adolescentes se interessavam em conhecer algo sobre sua família
de origem. Eles queriam saber alguma coisa sobre seus pais,
avós, irmãos: “já presenciei situações em que, ao ver os nomes
dos seus pais nos prontuários, os adolescentes começavam a
tremer”. Isso mostra como o sujeito não é indiferente em relação
à questão da sua origem. Esse ponto é importante.
O adolescente e o ato infracional
As considerações a seguir são hipóteses a serem verificadas
e visam basicamente levantar questões para provocar uma
reflexão sobre o ato infracional na adolescência. Embora esteja
claramente tipificado no Estatuto da Criança e do Adolescente,
o ato infracional na adolescência é um fenômeno complexo e
possui múltiplas determinações a serem verificadas em cada
caso. No seu Art. 103, ato infracional é definido como toda
“conduta descrita como crime ou contravenção penal” praticada
por criança ou adolescente (Brasil, 1990).
11
Relato feito em uma das aulas do Módulo I do Curso dos Operadores do
Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro, em 2013.
72
Levando em consideração o levantamento feito pelo
Conselho Nacional de Justiça (Brasil, 2012), com o intuito de
traçar um panorama da situação dos adolescentes em conflito
com a lei no Brasil, pouco mais da metade dos atos infracionais
é cometido contra o patrimônio, dentre os quais predominam
o roubo. Chama a atenção, também, que a grande maioria dos
jovens que comete atos infracionais é do sexo masculino. O que
esses dados podem nos revelar?
Segundo Melman (2000a), o que caracteriza o roubo é
tentativa de acesso ao objeto pela apreensão, pela violação. Sendo
assim, no ato de roubar, o jovem tenta buscar de uma forma
violenta, no real, aquilo que não pode ser transmitido pela via
simbólica. Na medida em que a instância paterna não oferece
condições para que o jovem possa vir a se apossar desse objeto
simbólico que é o “falo”, que lhe permitiria assumir as insígnias da
virilidade, ele vai buscar esse objeto no real e de forma violenta. Por
isso, Melman diz que as condutas do jovem infrator são símbolos
da falta de acesso ao falo, de modo que o roubo passa a ser o único
acesso possível à virilidade. No entanto, há de se acrescentar que
esse acesso à virilidade tende a se dar por uma via imaginária,
isto é, pela incorporação de uma imagem idealizada do que é ser
homem: ter mulheres, dinheiro, poder. A prevalência dos jovens
do sexo masculino, mencionada anteriormente, entre os jovens
infratores deve ser objeto de reflexão.
Como ilustração, podemos citar o caso de um rapaz de
19 anos, cuja família possuía uma boa situação financeira. Ao
relatar em uma sessão como iniciou o uso do crack, enfatizou em
seu discurso a maneira pela qual ele foi incluído em um grupo
de traficantes que dominava determinada comunidade. Foi um
amigo da escola o convidou, pois conhecia todo mundo. Quando
começou a frequentar a favela, alguns usuários de drogas e até
mesmo os próprios traficantes diziam algo do tipo: “Fala playboy!
Se eu fosse um playboy eu ia ficar na pista, sai dessa, cara!”.
Mesmo assim, ele continuou frequentando esse local até receber
uma arma como símbolo de inclusão no grupo. Ele encontrou
73
ali um lugar. O paciente disse “Eu me senti o cara, igual o dono
da boca!”; ao ser perguntado sobre o que é “ser o cara”, ele
respondeu: “O cara lá têm reconhecimento. Ele chega assim...
portando (referindo-se à arma)... Quando tem algum problema,
ele pergunta o que tá acontecendo e ninguém fala mais nada. Ele
marca lá. Quando eu passei a frequentar a favela, a usar drogas
e portar arma, me sentia assim também. As meninas chegam
junto. Droga, dinheiro no bolso, arma, elas não resistem. É fácil”.
Não se pretende sustentar que essas considerações são
válidas para a totalidade dos casos, mas talvez ajudem a perceber
a complexidade do que está em questão.
Como foi visto anteriormente, a crise psíquica vivenciada
pelos adolescentes pode ser considerada uma expressão do
modo como nossa cultura os trata. Ela produz uma discordância
entre sua maturidade sexual e a ordem simbólica que não
reconhece essa maturidade. Diante disso, o adolescente pode
realizar ações de diferentes ordens. Melman (1997) distingue o
acting out e a passagem ao ato. O acting out é um pedido de ajuda,
implica o endereçamento de uma mensagem a um outro. Além
disso, envolve um certo mise-en-scène, algo que é uma ordem da
encenação. Pode-se dizer que é um certo apelo a um pai ideal
que viria remediar o impasse vivido pelo sujeito. Diante disso,
podemos pensar que, em alguns casos, o ato infracional pode ser
considerado um pedido de ajuda, mesmo que não seja formulado
explicitamente como tal.
Já na passagem ao ato, não há endereçamento, não há
pedido. É uma passagem direta à ação, na qual não se espera
nada de ninguém. Melman chama atenção para o fato de que,
nesse segundo tipo de ato, é comum que o jovem tenha um apego
libidinal às figuras que representam a lei. É como se houvesse
um jogo que tornaria necessário se subtrair ao poder da lei para,
em seguida, chamar seu exercício.
A instância do nome-do-pai é o que faz, como nos
lembra Melman (2000a), com que as estruturas sociais se tornem
74
simbólicas para cada sujeito e é assim que ele pode legitimar
o lugar da autoridade. As estruturas sociais são simbólicas no
momento em que elas são constituídas a partir de um pacto no
qual o sujeito e o outro estão empenhados e consentem em se
submeter espontaneamente a ele. “Espontaneamente” quer dizer
sem o uso da força de uma instância real, policial, por exemplo.
Segundo Melman,
quando as estruturas sociais se tornam reais, o poder é então figurado
na sua representação real e inclusive policial. O objeto mesmo, o objeto
que conta cessa de ser simbólico para tornar-se nada mais que um
objeto real. O pai vai estar assim privado de todas as suas incidências
simbólicas para valer somente em sua realidade. Portanto, vai se
encontrar desfigurado por representações que são asseguradas pelas
instâncias educativas, correcionais, policiais ou judiciárias. (2000a, p.47)
Por isso, na falta de um enquadramento simbólico
que lhes dê proteção e um rumo, é comum que alguns jovens
se façam gerir jurídica e institucionalmente, oscilando entre
o abrigo, a prisão e o hospital. Os muros dessas instituições
acabam proporcionando para eles um enquadramento real,
na falta de um enquadramento simbólico (Czermack, 2004).
Em uma conjuntura em que a referência paterna se encontra
privada de sua incidência simbólica, sua autoridade só terá valor
manifestando-se como um poder real.
O pacto simbólico se sustenta pela palavra endereçada pelo
sujeito ao outro. Se a palavra perde o valor, o laço social se torna
frágil. Esse ponto talvez nos permita abordar uma dificuldade
no trabalho dos diferentes agentes do sistema de garantia de
direitos junto com os jovens infratores, que é a dificuldade de se
estabelecerem pactos em torno de projetos, encaminhamentos e
decisões. É comum que os profissionais relatem como é difícil que
o jovem cumpra certas combinações e faça valer as pactuações
realizadas, a fim de viabilizar medidas de proteção e inclusão
social. Se o laço social perde sua incidência simbólica, a função
da palavra perde o sue valor e o sujeito passa a depender mais da
75
sanção jurídica ou até mesmo da força. E, então, um dos desafios
para os referidos profissionais é, no seu trabalho, tentar reabilitar
a função da palavra e fazer uma aposta no pacto simbólico, sem
garantias de sucesso.
O adolescente como sujeito
O que seria lidar com o adolescente como um sujeito?
Alguns operadores do sistema socioeducativo questionam
que só se fala dos direitos desses jovens, mas não se fala dos deveres.
De fato, com a promulgação do ECA o adolescente passou a ser
definido como um sujeito de direitos, no plural. Essa ênfase nos
direitos tem a sua razão de ser derivada de toda uma mobilização
social diante das graves violações de direitos das crianças e dos
adolescentes, ainda mais em um contexto social como o brasileiro,
marcado por acentuada desigualdade social, em que as crianças
e os adolescentes pobres foram historicamente excluídos de uma
série de bens, serviços e direitos básicos de cidadania.
O discurso dos direitos pretende superar a perspectiva
punitiva e objetivante que predominava nas instituições de
“menores”, muito marcadas pela ideia de que “o menino não
tem que ter direitos, pois ele é um infrator”. Tal fixação do
sujeito em uma identidade, atribuindo-lhe uma essência, tende
a ser incorporada pelo próprio adolescente, quando ele diz, por
exemplo: “Eu sou fulano de tal, menor infrator” ou “eu vou
continuar sendo bandido”. Ao ser fixado nesse lugar, ele se torna
um mero objeto de intervenção, sobretudo do exercício do poder
e do castigo físico.
Uma das dificuldades apontadas por alguns operadores
do sistema socioeducativo é a de conseguir implicar o adolescente
no ato infracional, isto é, fazer com que ele extraia consequências
do fato de estar sofrendo uma medida socioeducativa e se
responsabilizar pela infração que ele cometeu. Percebem uma
76
apatia, desinteresse pelas atividades, projetos e iniciativas de
promover a educação e inclusão social.
Na teoria do direito civil, um sujeito de direito (no singular)
é o ente suscetível de adquirir direitos e contrair obrigações.
Portanto, os deveres não estão excluídos e isso nos coloca diante
das questões da responsabilidade e da sanção. Alguns autores do
campo da psicanálise têm se interrogado sobre as consequências
de uma lei que se concentra na garantia de direitos. Em que
medida a lei corre o risco de se colocar a serviço da satisfação
completa dos sujeitos? (Dzu, 2007). Multiplicando normas
destinadas a garantir o bem-estar como possibilitar que o jovem
assuma responsabilidade por seu ato (Silva, 2007)?
Uma outra questão que se impõe para os operadores
do sistema de garantia de direitos é como promover o acesso a
direitos que são de caráter universal e, ao mesmo tempo, levar
em consideração a singularidade de cada caso. Isso porque, se o
direito é universal, o sujeito não é universalizável.
77
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VAN GENNEP, A. Os ritos de passagem. Petrópolis: Ed. Vozes, 1988.
79
Violência doméstica e direitos humanos de crianças e
adolescentes na contemporaneidade: um processo de
judicialização da questão social?
Paula da Silva Caldas12
Resumo: O presente artigo traz a discussão acerca do fenômeno
da violência doméstica de crianças e adolescente, relacionada
ao atual tratamento dado pelas diversas autoridades À questão
social, no sentido de criminalizar seus sujeitos, sem levar em conta
os diversos mecanismos de defesa dos direitos humanos deste
segmento, implementados com o advento da Constituição de 1988.
Palavras-chave: direitos humanos, violência doméstica, infância
e juventude.
Iniciando o debate: a constituição dos direitos humanos no Brasil
O tema Direitos Humanos no Brasil tem sido central na
agenda de discussões políticas nos dias atuais, tendo em vista
a vertiginosa onda de violência que assola a nossa sociedade
contemporânea. Tal fato toma real destaque quando se trata da
violação de direitos de crianças e adolescentes, em específico a
questão da violência doméstica perpetrada nesse público.
Sabemos que no Brasil a luta pelo reconhecimento dos
direitos humanos, no decorrer de sua história, deu-se de forma
bastante peculiar, remontando desde o nosso descobrimento e
ocupação europeia, as lutas e resistências dos nossos primeiros
habitantes indígenas e, mais tarde, pelos negros africanos
escravizados e demais imigrantes europeus (tais como os
12
Assistente Social; Mestre em Serviço Social ( PUC - Rio); Doutoranda em
Políticas Sociais (UFF)
80
italianos, entre outros).
Posteriormente, a conformação de nossos primeiros
direitos e, especificamente, do Estado de Direito no país dá-se
com a promulgação da Constituição Federal em 1824 e, a partir
de então, a construção do processo de geração dos diretos que
se faz no âmbito da articulação no cenário internacional e na
construção das diversas convenções internacionais, conformando,
assim, as diferentes gerações de direitos, desde os direitos civis,
reconhecidos no século XVIII, passando pelos direitos políticos,
instituídos no século XIX, pelos direitos econômicos e sociais,
datados do início do século XX e culminando com os direitos de
solidariedade, que surgem no final da primeira metade do século
XX. (AGUINSKY e ALENCASTRO, 2006)
No entanto, é notadamente nos anos 80, com o fim do
período ditatorial no Brasil e com o protagonismo dos movimentos
sociais em defesa e pela construção de uma sociedade mais justa
e igualitária, no que concerne ao reconhecimento dos direitos de
cidadania da população, que é promulgada a Constituição Federal
de 1988. Ela é reconhecida como marco legal na constituição dos
direitos humanos no país e pelos avanços que trouxe em suas
concepções e forma de construção, imprimindo, pela primeira
vez no cenário nacional, o viés democrático.
Vale ressaltar que, apesar dos avanços e conquistas que
se obtiveram com a promulgação da Constituição de 1988 nos
diversos setores da sociedade, não podemos esquecer que,
após dois anos de sua vigência, temos atrelado a esse processo
de construção de uma nova sociedade, pautada pelo viés da
democracia e cidadania, o advento do Neoliberalismo, em 1990,
com a eleição do presidente Fernando Collor de Mello. Esse
traz, nas suas plataformas de governo, uma série de diretrizes
elencadas através de um pacto com o grande capital financeiro
e internacional, realizado entre os organismos multilaterais,
tais como o Fundo Monetário Internacional-FMI, Organização
Mundial do Comércio e Banco Mundial, através do Consenso de
81
Washington nos EUA, no qual se priorizava uma Reforma Estatal
com ênfase para o enxugamento nos gastos com as políticas
sociais (focalização nos gastos sociais), privatização das políticas
públicas, descentralização político-administrativa, incentivo às
ações e empreendimentos do mercado e da sociedade civil, entre
outras ações que visavam demonstrar a ineficácia do Estado no
trato com as diferentes expressões da questão social13 .
Em detrimento disso, percebemos que esse processo
neoliberal vem se aprofundando ao longo das décadas,
orquestrado pelos demais presidentes como Fernando
Henrique Cardoso, que pautou seus dois mandatos em ações
que enfatizavam as transações de mercado privado, os altos
investimentos no capital financeiro internacional, as ações
flexibilizadas e globalizadas, relacionadas ao mercado de
trabalho e suas desregulamentações trabalhistas. Promoveu,
assim, o crescimento do desemprego e o trabalho precário no
país, a desproteção social, o aumento desordenado da pobreza e
o alto índice de segmentos populacionais excluídos dos direitos
sociais e do exercício de sua cidadania.
No governo de Luis Inácio Lula da Silva, considerado
um ícone na defesa dos direitos dos trabalhadores da sociedade
brasileira, também foram demandados muitos desafios a
serem superados diante do quadro complexo no qual o país
se encontrava: alto índice de desemprego, pobreza extrema,
aumento da violência estrutural. Contudo, pouco se viu de
alterações nesse cenário de mundialização do capital e de meta
13
A questão social, segundo Marilda Iamamoto, é entendida como: “[...] conjunto das desigualdades sociais engendradas na sociedade capitalista madura, impensáveis sem a intermediação do Estado. Tem sua gênese no caráter coletivo da produção contraposto a apropriação privada da própria atividade humana- o trabalho-, das
condições necessárias à sua realização, assim como de seus frutos. É indissociável da
emergência do ‘trabalhador livre’, que depende da venda de sua força de trabalho
com meio de satisfação de suas necessidades vitais. A questão social expressa, portanto, disparidades econômicas, políticas e culturais das classes sociais, mediatizadas
por relações de gênero, características étnico-raciais e formações regionais, colocando
em causa as relações entre amplos segmentos da sociedade cível e o poder estatal”.
(IAMAMOTO, 1999, pp. 16-17).
82
de “tornar o Brasil um país de primeiro mundo”, tal como a
constituição de um Sistema Único de Assistência Social. Trouxe,
com isso, o reconhecimento da Assistência Social como uma
política pública de Seguridade Social e de direito do cidadão, mas
que diante de um cenário neoliberal precisa aprimorar suas bases
de implementação que ainda permanecem pautadas nas ações
do seu carro chefe de campanha – o Programa Bolsa Família,
o qual se apresenta com diretrizes fragmentadas e focalizadas
na pobreza extrema e em critérios de elegibilidade que ainda
promovem a exclusão de importantes segmentos populacionais.
Nesse mesmo cenário, tem sido trazida à tona, pelos
diversos segmentos da sociedade civil organizada, a discussão
em torno da violência doméstica e da afirmação dos Direitos
Humanos no país (com ênfase para os diretos da criança e do
adolescente) como questão central, tendo em vista que o Brasil
é um dos países signatários da Organização das Nações UnidasONU para a implementação de políticas públicas que promovam
uma sociedade livre de práticas de violações de direitos. Todavia,
dentro de uma sociedade globalizada e neoliberal, vem tomando
contornos difusos, no que se refere à retração do papel do Estado
no trato com as expressões da questão social e na reedição de
práticas já refutadas de voluntariado e solidariedades que vêm
delegando à sociedade civil organizada e à família o papel de
protagonistas desse processo.
Entretanto, sem uma efetiva política de proteção social no
país, o fracasso dessa família e da sociedade civil em prover as
necessidades básicas de seus entes tem sido uma tônica e tem
levado esse mesmo Estado a perpetrar ações que culpabilizam
esses atores e “judicializam a questão social”14 , ou seja, levam
para o plano jurídico questões que deveriam ser solucionadas
pelos poderes legislativos e executivos com a formulação,
14
Para maior compreensão sobre a judicialização da questão social, ver:
AGUINSKY, Beatriz G. e ALENCASTRO, Ecleria H. Judicialização da questão social:
rebatimentos nos processos de trabalho dos assistentes sociais no poder judiciário. In:
Revista Katálysis, Florianópolis – Santa Catarina: 2006 – V. 9 N.1 jan/jun.
83
investimentos e implementação de políticas sociais públicas pelo
Estado, real provedor social de direitos.
Esses novos reordenamentos legais têm sido usados como
subterfúgios para solucionar os problemas ligados à violência
doméstica de crianças e adolescentes (principalmente os segmentos
mais empobrecidos e vulnerabilizados), culpabilizando as
famílias por suas práticas e supostos “fracassos”, sem levar em
conta o contexto social e de violência estrutural no qual a grande
maioria se encontra inserida, ou seja, tem sido recorrente associar
a violência doméstica às classes mais pobres de nossa sociedade.
É diante de tal contexto que propomos, neste texto, discutir
a questão da violência doméstica, a constituição dos Direitos
Humanos no Brasil na contemporaneidade e o apelo que tem
sido feito às práticas jurídicas para a solução de problemas no
âmbito da questão social, apontando para uma atuação que esteja
pautada nos programas de enfrentamento à violência doméstica
de crianças e de adolescentes de cunho Estatal, enfatizando o
protagonismo desses atores no bojo de suas ações.
A violência doméstica contra crianças e adolescentes na
contemporaneidade: um tema em debate
A questão da criminalidade e violência vem sendo muito
explorada na atualidade, contudo pouco enfoque tem se dado a
discussões que incorrem a violência no ambiente familiar, diante
de sua importância e impacto social, em detrimento daquelas
pesquisas que exploram situações de vitimização decorrentes
de roubos, furtos, agressão física e sexual, invasão/roubo de
domicílio, como no artigo de Beato et ali “Crime, oportunidade e
vitimização”, 2004.
O tema da violência tem sido constante em nossas agendas
contemporâneas de discussões políticas, porém tem sido tratado
de maneira diversa, uma vez que, através de um discurso teórico
84
globalizado, temos visto algo em torno daquilo que Santos (2004)
chama da “perda do monopólio da violência” pelo Estado (uma
característica que, segundo o autor, foi mantida durante dois
séculos para dar conta da resolução dos problemas sociais), mas
que hoje tem sido substituído diante dos novos limites impostos
pela formação de uma “modernidade tardia”, caracterizada
pelos atos violentos difusos da sociedade, que se legitimam em
processos de fragmentação social, individualizam as práticas
sociais e, assim, inviabilizam os processos de construção dos
direitos sociais e de cidadania, uma vez que a ordem do dia
está pautada na incerteza, ou seja, naquilo que é insolúvel, que
é fluído, como nos diz Bauman (1998, p. 32): “o mundo pósmoderno está se preparando para a vida sob uma condição de
incerteza que é permanente e irredutível”.
Nesse ínterim, o que se percebe é que estamos diante de um
processo que se fundamenta em problemas oriundos da questão
social de natureza global, ou seja, em fenômenos que se expressam
através de uma violência que é difusa, tal como a fome, a exclusão
social, a violência ecológica, a violência de gênero, a violência na
escola (bullying), os diversos tipos de racismos, discriminações e
segregacionismos, desconstruindo, assim, os elos da cidadania; isso é,
aquilo que Michel Foucault (1994) chamou de Microfísica do Poder (em
uma outra conjuntura histórica e política), entendendo-a como uma
rede de articulação de poderes, que atravessa as relações sociais e as
interações entre os grupos e as classes. Hoje, Tavares dos Santos (2002)
conceitua como “microfísica da violência”, visando assim classificar
esses episódios da vida cotidiana que se colocam na atualidade e que
não apresentam uma solução por parte dos organismos estatais ou,
quando esses se manifestam, apontam para práticas que associam a
criminalidade à pobreza e exclusão social, como no caso do Rio de
Janeiro, que tem realizado investimentos maciços nas Unidades de
Polícia Pacificadora-UPP como política de segurança pública, nas áreas
de favela da região metropolitana, promovendo, assim, a associação
entre violência versus pobreza versus criminalidade, algo já refutado
por vários pesquisadores da área.
85
É das mais perversas a associação de pobreza com
violência. As noções das violências como derivadas diretamente
da população pobre são amplamente divulgadas em nossa
sociedade, em um processo que constitui uma dupla violência:
já punidas pelas violências geradas pela própria pobreza,
as camadas pobres de nossa sociedade sofrem por serem
consideradas “classes perigosas”. Soares (2004) acredita ser
preciso reconhecer que há laços prováveis entre determinadas
realidades que, “conseqüentemente, tendem a conviver (ou
seja, quando encontrarmos uma delas, será mais provável que
encontremos as demais)” (BARROS, 2005, p. 24).
É partindo dessa análise que se insere a discussão
sobre a questão da violência doméstica no contexto do Brasil
contemporâneo, ressaltando que, no estudo de tal temática, tornase relevante sobressaltarmos a questão de gênero, destacando que
as análises sobre a violência doméstica perpetrada em mulheres
têm sido realizadas, na literatura, de maneira difusa e, em alguns
contextos, até de forma contraditória, não se levando em conta
as questões acerca da violência de gênero ocorrida, como os
discursos sexistas, a dominação masculina, as humilhações que
buscam ajustar “os comportamentos anormais”, o assédio sexual,
entre outros (OSÓRIO, 2005).
Saffioti (2004) coloca que existe uma determinada omissão,
que ocorre em relação à violência no ambiente doméstico e se dá
por dois motivos: a vergonha sentida pela vítima da violência e o
“pacto de silêncio”, ou “muro do silêncio”, que a sociedade criou
para tratar das questões pertinentes a comportamentos e problemas
dentro da família, tornando o problema privado, ou seja, particular.
Essas práticas demonstram que ainda permanece em nossa
sociedade muito presente a concepção de “família” influenciada
por questões tradicionais e místicas: envolta como uma instituição
“sagrada”, pela superioridade masculina (destacando o papel do
homem como provedor/chefe de família) sobre a feminina (cujo
papel é o de mãe/cuidadora da família). Percebe-se, nesse caso,
86
uma postura de preservação da instituição familiar através da
dominação patriarcal e nas relações de desigualdades de gênero
(muito presentes nas diferenças salariais, na divisão das tarefas
entre os sexos etc), reforçando a dominação do homem perante a
mulher, ou seja, o patriarcalismo (ANDRADE, 2005).
Nesse caso, nota-se uma grande variação das
Representações Sociais15 no que concerne à questão da violência
doméstica, bem como relacionada à idade e ao sexo desses
sujeitos, o que denota uma apropriação difusa e por vezes
oscilante desta temática, necessitando, dessa forma, de uma (re)
construção de significados e de valores inerentes a essas práticas,
para que se sobrepujem alguns conceitos como o de patriarcado
e dominação masculina, ainda vigentes em nossa sociedade.
No que tange à violência doméstica contra crianças e
adolescentes, sabemos que é um fenômeno social que vem
crescendo a cada dia e apresenta caráter democrático, acometendo
todas as classes sociais. Ela é concebida, segundo Azevedo e
Guerra, (1998, p. 34) como
todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis contra
a criança e adolescente que, sendo capaz de causar, à vítima dor ou
dano de natureza física, sexual e/ou psicológica, implica, de um lado
uma transgressão do poder/dever de proteção do adulto. De outro,
leva a coisificação da infância, isto é, a uma negação do direito que
crianças e adolescentes têm de serem tratados como sujeitos e pessoas
em condição peculiar de desenvolvimento.
Ela se expressa no âmbito das relações domésticas, ou
seja, é mais abrangente que a violência intrafamiliar (aquela
15
As Representações Sociais nas Ciências Sociais são definidas como categorias de tripla natureza: pensamento, ação e sentimento. Estas reproduzem a realidade
através de explicação, justificativa ou questionamento. Sua maior importância está na
característica de mostrar-se presente nas mais diversificadas correntes ideológicas sobre o social ao longo da história e também por abranger elementos cognitivos, afetivos
e sociais. Para obter maiores esclarecimentos, ver: SPINK, Mary J. Desvendando as
Teorias Implícitas: uma metodologia de análise das representações Sociais. In: Textos
em Representações Sociais. Pedrinho A. Guareschi e Sandra Jovchelovitch. 2ª edição.
Petrópolis: Vozes, 1995.
87
que ocorre apenas dentro das relações familiares) e ainda pode
ser agrupada em cinco tipos de violência, de forma geral: a
Negligência, o Abandono, a Violência Psicológica, a Violência
Física e a Violência Sexual (envolvendo o Abuso Sexual e a
Exploração Sexual Comercial)16 .
Sabemos que os prejuízos causados àquelas pessoas vítimas
de violência doméstica são incomensuráveis. Contudo, para
título deste estudo, não nos aprofundaremos nas descrições dos
diversos tipos de violência, mas nos novos contornos políticos
que têm sido dados a essa questão.
Por se tratar de um tema delicado, complexo e que permeia o
imaginário social das pessoas, uma vez que a violência doméstica,
principalmente a sexual, implica a violação dos direitos de
crianças e adolescentes (na construção de sua sexualidade, na
aniquilação da pessoa como sujeito) através de tabus sociais
como o incesto e o assédio sexual, essa discussão causa grande
desconforto na família e entre os próprios profissionais e
autoridades envolvidas nessas questões, os quais muitas vezes
corroboram discursos e práticas voltadas à estigmatização e
simbolismos sobre o controle do corpo sexual feminino, como
no caso da menstruação, da maternidade e de outras funções
ditas femininas, sem falar da afirmação de práticas que reforçam
modelos pautados na figura masculina, sem levar em conta os
novos contextos sociais que se instalaram na dinâmica familiar.
Conforme vários estudos e pesquisas realizados em torno da
temática, verifica-se que a maioria dos indivíduos que praticam
atos de violência doméstica contra crianças e adolescentes são
familiares, amigos íntimos da família ou pessoas conhecidas nas
quais esses sujeitos confiam (ABRAPIA, 2002). Tal posição de
confiança na qual esses agressores se encontram, bem como a
posição indefesa das crianças e adolescentes em seu seio familiar,
aliada, em algumas situações, aos processos de dominação
16
Para maior detalhamento das ações, ver: ABRAPIA. Maus-tratos contra criança e adolescentes – proteção e prevenção: guia de orientação para profissionais da saúde. 2ª.
Edição. Petrópolis, RJ: Autores & Agentes & Associados, 2002.
88
exercidos sobre a utilização do corpo feminino como objeto sexual
(práticas ainda muito permissíveis em nossa sociedade) torna
mais fácil o crime ser encoberto ou a criança ou o adolescente ser
persuadido(a) a manter-se calado(a).
Dessa feita, para o desvelamento de questões que encobrem
a violência doméstica contra crianças e adolescentes, tornase necessário um conjunto de políticas públicas voltadas para
o reconhecimento dos direitos dessa parcela da população, ou
seja, desse público que se encontra em pleno desenvolvimento.
Do mesmo modo, é necessária a formação de uma equipe
multidisciplinar especializada que compreenda os diferentes
fenômenos que encobrem a violência doméstica perpetrada,
as questões de gênero suscitadas, favorecendo a superação
da situação da violação de direitos, a reparação da violência
vivida, o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários,
a construção de rede de proteção social para a família, a
potencialização da autonomia e o resgate da dignidade, assim
como a construção de uma sexualidade “natural” para crianças
e adolescentes, visando, assim, à implementação de políticas
sociais, preconizadas pelo Estado e capazes de atender às
demandas postas e ao cumprimento da lei.
A Constituição dos Direitos Humanos de Crianças e
Adolescentes no Brasil
Como já explicitado, a discussão acerca do reconhecimento
dos direitos humanos de crianças e adolescentes é recente e toma
relevância com a articulação da sociedade civil organizada, os
movimentos sociais na década de 1980, com o surgimento do
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do AdolescenteCONANDA e a entrada da questão social e seus determinantes
voltados ao público infanto-juvenil na agenda de problemas
públicos, principalmente preconizados pela Constituição Federal
89
de 1988, pela Convenção Internacional de Direitos Humanos (1989)
e pelo Estatuto da Criança e Adolescente (ECA – Lei 8069/90).
Segundo Rodrigues e Lima (2007), o significado que a infância
adquire ao longo da história aponta para uma ambivalência de
uma classe rica e outra pobre, em que a primeira estava protegida
no aconchego de seu lar, enquanto à outra cabiam a vigilância, a
liberdade e os perigos da rua. À criança rica era dada a educação;
à criança pobre, o trabalho e a formação profissional. Assim, o
modelo de família burguês e sua concepção de infância, com
o apoio da Psicologia, médicos higienistas e dos filantropos,
tornam-se hegemônicos na sociedade durante longos períodos.
A Organização das Nações Unidas-ONU foi um ator
importante na construção dessa nova “consciência” de infância,
porém é somente com a aprovação, em 1959, da Declaração dos
Direitos da Criança (Resolução nº. 1386) que as crianças deixam
de ser “meros recipientes passivos”, para serem reconhecidos
como sujeitos de direito internacional.
Assim, no Brasil, desde a gênese dos Códigos de Menores
de 1927 e 1979, pela criação do Sistema de Atenção ao MenorSAM (1941), que originou a Fundação Nacional de Bem-Estar
do Menor-FUNABEM e as Fundações Estaduais de Bem-Estar
do Menor-FEBEM’s, notadamente instaurou-se, até a década de
80, uma política de atenção à infância e juventude direcionada à
criminalização da pobreza referente a esse segmento. Da mesma
maneira, suas vulnerabilidades sociais eram enfrentadas como
“casos de polícia”, em uma ótica repressora, sem qualquer
atenção aos seus direitos enquanto sujeitos em desenvolvimento.
Nos anos 80, surge no cenário nacional uma série de
movimentos sociais, dentre eles o Movimento Nacional dos
Meninos e Meninas de Rua-MNMMR e, em destaque, a
Pastorada Criança17 , visando mudar o paradigma assistencialista
17
A Pastoral da Criança foi lançada em maio de 1982, por Dom Paulo Evaristo
Arns, Cardeal Arcebispo de São Paulo, e pelo Mr. James Grant, então Diretor Executivo
do UNICEF, em Genebra, durante debate sobre os problemas da pobreza e a paz no
Mundo. No ano seguinte, a CNBB confiava a tarefa de criação e desenvolvimento da
90
de atenção ao “menor”, o qual privilegiava apenas o discurso
de “enquadramento social” de crianças e adolescentes que
manifestavam vários problemas ligados aos determinantes da
questão social, tais como a pobreza, a fome, a dependência química,
a violência doméstica, a prática de pequenos furtos, dentre outros.
Entretanto, é pela Constituição Federal de 1988 que
a infância passa a ser protegida por lei, fazendo com que a
criança e o adolescente tornem-se cidadãos com suas próprias
necessidades, conforme nos mostra o artigo 227:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e
ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura,
à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL,
1988, p. 148)
Como continuidade da proposta de atenção integral
à criança e ao adolescente, após a pressão dos movimentos
sociais, cria-se o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente
- Lei 8.069/90), atentando para o aspecto de que esses agora
são sujeitos de direitos e pessoas em condição peculiar de
desenvolvimento, sendo o Estado, a família, a comunidade e a
sociedade os responsáveis por provê-los em suas demandas.
É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder
Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos
referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer,
à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e a
convivência familiar e comunitária (Brasil, 1991, Art. 4, § 2).
Pastoral da Criança a Dom Geraldo Magella Agnelo, então Arcebispo de Londrina - PR
e à médica pediatra e sanitarista Dra. Zilda Arns Neumann. Em setembro de 1983, a
Pastoral da Criança iniciava suas atividades no Município de Florestópolis, no Paraná.
Hoje, a organização está presente em todo o Brasil, com uma metodologia própria de
atenção à criança e sua família, envolvendo fé e vida, tendo como centro a criança dentro
do contexto familiar e comunitário. Retirado do site: www.pastoraldacrianca.org.br
91
É importante ressaltar o grande salto que o ECA significa no
que tange às representações sobre a infância em nossa sociedade.
Contudo, não podemos esquecer que a maior parte de suas
atribuições continua restrita ao domínio legal, não tendo sido
definitivamente implantada na sociedade em forma de ações
concretas. A qualificação dos serviços e programas voltados para
os direitos da criança e do adolescente começou a se explicitar mais
claramente nos últimos anos, tornando-se necessário que sejam
realizadas medidas estratégicas que garantam a potencialização
dos usuários, a qualificação e melhora dos serviços e programas
oferecidos, principalmente aqueles voltados à violação de
direitos, como a violência sexual.
Contudo, hoje, quando se fala em direitos de crianças
e adolescentes, coloca-se em discussão que os mesmos são de
resposabilidade da família, do Estado e do poder público de
forma geral, fazendo com que tais ações sejam desenvolvidas por
um sistema interligado e trazendo à tona o conhecido Sistema de
Garantia de Direitos-SGD.
De acordo com Neto (2005), o Sistema de Garantia de
Direitos da Criança e do Adolescente-SGD constitui-se na
articulação e integração das instâncias públicas governamentais
e da sociedade civil, na aplicação de instrumentos normativos
e no funcionamento dos mecanismos de promoção, defesa e
controle social para a efetivação dos direitos da criança e do
adolescente, nos níveis Federal, Estadual, Distrital e Municipal,
envolvendo, de forma articulada, dieferentes atores: Conselho
Tutelar, Ministério Público, Defensoria Pública, Delegacias
Especializadas, Vara da Infância, Juventude, a Família, o Tribunal
de Contas, as Prefeituras, entre outros.
No entanto, após quase 18 anos de implantação do ECA,
esse sistema, na prática, não está integralmente institucionalizado
e vem trabalhando de forma desarticulada, com problemas
na qualificação de seus operadores, e isso causa prejuízo na
implementação de políticas públicas que garantam os direitos
92
assegurados pela legislação em vigor.
Todavia, novos dispositivos legais vêm sendo criados para
dar conta de um Estado que, ao longo dos tempos, não tem logrado
êxito em relação à proteção social destinada à sociedade, tais como
as novas legislações voltadas ao fortalecimento e cumprimento
dos direitos da criança e do adolescente. Entre elas, destacamse o Plano Nacional de Convivência Familiar e ComunitáriaPNCFC, de 2006, que enfatiza a importância da convivência
familiar e comunitária de crianças e adolescente como um direito
fundamental, reforçando o papel da família como rede primária
de socialização e tentando minimizar o problema das mais de
20 milhões de crianças em situação de acolhimento institucional
no país; e a Lei 12.010 de 03 de agosto de 2009, conhecida como
a “Nova Lei da Adoção”, que altera diversos artigos do ECA
e ainda destaca a premência na celeridade nos processos de
adoção (institui o prazo máximo de acolhimento institucional de
crianças e adolescentes, que agora não deve ultrapassar 2 anos),
entre outras alterações que se fazem necessárias para resguardar
a esses sujeitos o direito de serem criados em suas famílias ou, na
impossibilidade dessas, em uma família substituta.
De forma mais recente, foi sancionado, em 14 de dezembro
de 2011, o Projeto de Lei-PL 7672/10, que prevê a punição de
pessoas que praticarem agressões físicas contra crianças e
adolescentes, referendando a determinação do ECA de que
crianças e adolescentes são sujeitos de direitos e devem ser
privados de qualquer ato violento. A lei ficou conhecida como a
“Lei da Palmada” e gerou grandes questionamentos em diversos
setores da sociedade civil organizada ao retomar discussões de
temas recorrentes, como a “intromissão do Estado na vida das
famílias”, “o policiamento da educação da classe popular”, a
criação de leis para destacar a ausência do Estado no investimento
de políticas sociais, a “judicialização da vida”18 , a “judicialização
18
A expressão “judicialização da vida” pode ser mais bem aprofundada em:
FOCAULT, 1999, e PASSET, 1999 e 2006.
93
da questão social19 e, especialmente, a “penalização da pobreza”,
entre outros temas que já estiveram presentes em nosso processo
histórico e que hoje revisitam as práticas assistenciais com uma
nova roupagem.
As representações sociais da população pobre enquanto
“classe perigosa” expressam a singularidade dos espaços
sociais no processo de reprodução social, espaço em que a
miséria e a ausência das garantias de cidadania são peculiares,
acrescidas da negação dos padrões próprios culturais e das
estratégias de sobrevivência desenvolvidas. A demonização da
família enquanto espaço restrito da violência contra crianças e
adolescentes recai sobre as famílias pobres da sociedade, que
passam a ser destacadas como principais focos de violência
doméstica, ocasionando a punição dos pobres como “nova
tecnologia de gestão da miséria nas sociedades desenvolvidas”
(WACQUANT, 2001, p. 6) e ganhando expressão também nas
sociedades menos desenvolvidas. (BARROS, 2005 p. 25)
Como se pode observar, apesar dos significativos
progressos proporcionados pelo advento do ECA, no sentido
da garantia de direitos de crianças e adolescentes, percebemos
que tem sido uma questão bastante incisiva deste século XXI
a sobrevalorização da responsabilidade da família no que
tange à provisão dos seus bens, uma vez que temos visto uma
progressiva retirada das funções do Estado como provedor de
políticas sociais e uma postura de punibilidade dessas famílias
diante de seus “fracassos”, associando a violência doméstica a
sua condição social, como se a pobreza estivesse condicionada à
criminalidade e violência.
Como vimos, é a recorrência de tal processo que tem sido
chamada de “judicialialização da questão social”, ou seja, repassamse para o plano jurídico, como forma de punição dessas famílias
19
Para maior compreensão sobre a judicialização da questão social, ver:
AGUINSKY, Beatriz G. e ALENCASTRO, Ecleria H. Judicialização da questão social:
rebatimentos nos processos de trabalho dos assistentes sociais no poder judiciário. In:
Revista Katálysis, Florianópolis – Santa Catarina:2006 – V. 9 N.1 jan/jun.
94
pobres, questões (como no caso da violência doméstica contra
crianças e adolescentes) que poderiam ser solucionadas no plano
legislativo, com a formulação de projetos de leis que atendessem
às demandas efetivas da população, e no plano executivo, através
da implementação de programas e projetos sociais.
Finalizando o debate: a consolidação de uma política de direitos
humanos para crianças e adolescentes no Brasil
O ECA, diante dos seus 20 anos de implementação, apresentou
significativos avanços em nossa sociedade, principalmente no
que concerne à mudança de paradigma relacionado à infância e
juventude, não entendendo essas pessoas como objeto de ação do
Estado, ou seja, pelo viés da “questão social/pobreza como caso
de polícia”, mas vinculando a sua condição de sujeitos de direitos,
pessoas em condição de desenvolvimento de suas potencialidades.
Contudo, sabemos que a efetiva materialidade do ECA ainda
se encontra em um processo de construção e atrelada às demais
conquistas no campo das mobilizações sociais acerca da questão da
criança e do adolescente que também enfrentam alguns obstáculos
para a efetivação diante das políticas sociais de corte neoliberal,
que surgem em seu bojo, subjulgadas a um Estado reduzido em
suas funções como provedor público e que implementa políticas
focalizadas, clientelistas, assistencialistas, visando apenas tratar
de forma paliativa e privatista a questão social.
Assim, no caso da violência doméstica, surgem alguns
desafios que são impostos ao trabalho com crianças e adolescentes.
Dentre eles, destaca-se o trabalho com famílias em situação de
vulnerabilidade social20 e que, de acordo com Draibe (2004),
20
Cabe aos profissionais o entendimento de que hoje não se pode mais falar de
um modelo único de família como no passado (patriarcal, nuclear burguesa), mas de
modelos de “famílias”, já que a família hoje deixou de ser uma unidade de produção
para ser uma unidade de consumo e não mais se caracteriza por laços de consanguinidade, mas principalmente por laços de afinidade.
95
tem como um dos grandes objetivos a utilização dos Programas
de Renda Mínima como um reforço complementar à renda
dessa clientela, no sentido de garantir alimentação e o acesso a
equipamentos sociais básicos. Amplia, assim, a capacidade das
mesmas de suprir suas necessidades sociais básicas, que devem
ser providas por políticas públicas relacionadas a esse segmento.
Nessa perspectiva, faz-se necessário que o Estado invista
em uma política social de qualidade e com sólidos objetivos de
erradicação da miséria, fome, violência, violações de direitos e
vulnerabilidade social, viabilizando Educação, Saúde, Habitação,
Programas de Geração de Emprego e Renda, Rede de Serviços
Comunitários de Apoio Psicológico, Social e Cultural às Famílias,
visando atender às demandas reais dessa população que se encontra
em contextos sociais diversos e está arregimentada nas legislações
sociais vigentes em nosso país. Só dessa maneira poderemos ver o
Estatuto da Criança e do Adolescente e o ECA em sua materialidade.
Valeoaindaoressaltaroqueoéorompendoocomopráticas
assistencialistas, moralistas, centralizadas e impregnadas de
um discurso que ainda promove a desigualdade nas relações de
gênero (quando se utiliza da dominação masculina para propagar
o uso do corpo feminino na infância e adolescência ainda como
moeda de troca e, a partir de então, permitir a propagação das
diversas violações sexuais, como a exploração sexual comercial
e os casamentos prematuros) e de classe (quando se dá um
tratamento desigual às classes mais empobrecidas, em que
suas demandas por direitos humanos são repassadas ao plano
jurídico para serem legitimadas, seja através das ações públicas
seja nos Juizados Especiais) que estaremos refutando esses novos
fenômenos como a “judicialização dos conflitos sociais”.
Segundo Esteves (2005), utilizando-se das ideias de Garapon
(1999, pp. 227-228), a sociedade vem passando por uma evolução
em que se consolida a ideia que “se no século XIX, da ordem liberal,
houvera uma preponderância do legislativo, e no século XX, sob a
égide da providência, foi a vez do executivo, o século XXI caminha
para ser o da supremacia do judiciário”. Ele ainda destaca:
96
Enfraquecidas as formas de reivindicação social através do diálogo
parlamentar possibilitado pela cidadania política, através do qual se
reconheceram direitos que foram positivados, mas não adquiriram
eficácia, e da constatação de que, muitas das vezes, é a própria atividade
governamental realizada pelo executivo que impede a consolidação dos
direitos sociais, a sociedade passa a incumbir o judiciário na tarefa de
possibilitar a efetividade dos direitos sociais e realização da cidadania
social. (ESTEVES, 2005, p.16)
Nesse ponto, não estamos suprimindo a importância que o
poder judiciário detém em nossa sociedade no sentido de manter
a chama da justiça acesa e reparar as ações voltadas para práticas
de violações de direitos humanos no país, conforme preconiza a
Declaração de Viena de 1993, Art. 27:
Qualquer Estado deverá dispor de um quadro efetivo de soluções para
reparar injustiças ou violações dos direitos humanos. A administração
da justiça, incluindo departamentos policiais e de promoção penal
e, nomeadamente, a independência do poder judicial e estatuto das
profissões forenses em total conformidade com as normas aplicáveis
contidas em instrumentos internacionais de direitos humanos, são
essenciais para a concretização plena e não discriminatória dos direitos
do homem [...].
O que ressaltamos e em que acreditamos é que o judiciário
deve ser apenas uma das ferramentas a ser utilizada pela sociedade
no caso de reparação das violações de direitos humanos, dentre
elas a questão da pobreza, da violência doméstica contra a
mulher, a criança e o adolescente, mas não pode ser utilizada
como a principal, na aquisição de direitos humanos, uma vez
que, conforme Lima Junior,
(...) o caminho legal não esgota as possibilidades de realização de direitos
e há outra forma que se impõe à efetivação dos direitos humanos, que
é dada pelas políticas públicas. E falar em políticas públicas é falar em
um movimento maior àquele operado pelos três poderes que compõem
o Estado. Pressupõe falar em sociedade civil organizada, em atores
sociopolíticos, que, na condição de sujeitos históricos, buscam, através
97
de um processo de luta, a construção de uma nova história, de uma
nova sociedade, com justiça. (2002, p. 663)
Destarte, conforme ressalta o autor supracitado, a condição
de promoção de uma efetiva política de direitos humanos que
dê conta da superação dos determinantes da questão social no
país só será possível quando houver o entendimento (a vontade
política de nossos governantes) de que será necessário capitalizar
esforços do Estado na implementação de políticas sociais nas
três esferas de governo: União, Estados e Municípios, de forma
pactuada com uma sociedade civil organizada e consciente
de seu papel complementar na execução dessas políticas e de
protagonista na defesa de seus direitos. Há também a importância
da atuação das atribuições dos três poderes de forma conjunta,
sendo o Legislativo, o Executivo e o Judiciário parceiros em suas
ações, entendendo-se que já se vão 21 anos de promulgação
de uma política que referencia crianças e adolescentes como
sujeitos de direitos, a qual necessita ser respeitada e consolidada
(o ECA), atendendo a todos os seus preceitos legais na busca
para uma sociedade menos violenta, desigual e mais cidadã, sem
qualquer tipo de revitimização daqueles que já possuem seus
direitos extremamente violados, como é o caso das classes mais
empobrecidas de nossa sociedade.
98
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101
Adolescentes e medida socioeducativa: discursos
em questão
Andreia Gomes da Cruz21
Janaína de Fátima Silva Abdalla22
Sharon Varjão Will23
Resumo: Este trabalho surgiu como um dispositivo de análise
das nossas experiências como professoras do curso de formação
continuada realizado pela Escola de Gestão Socioeducativa Paulo
Freire, do DEGASE, envolvendo cerca de duzentos operadores
do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro, e teve
como objetivo analisar alguns discursos construídos a respeito dos
adolescentes internados em medida socioeducativa de privação
de liberdade, recorrendo às falas dos sócio-educadores agentes
e técnicos, participantes desse curso. Tais discursos contribuem
para o processo de subjetivação dos jovens e constituem a própria
instituição e seus operadores sociais.
Palavras chaves: adolescentes, discursos, sociopedagógico
e privação de liberdade
21
Doutoranda em Educação e Mestre em Educação pela Universidade Federal
Fluminense (UFF).
22
Doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Diretora
da Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire, do Departamento Geral de Medidas
Socioeducativas – DEGASE
23
Psicóloga, Mestre em Educação e Doutoranda em Educação pela Universidade
Federal Fluminense (UFF).
102
Introdução
Na ocasião trabalhamos ministrando aulas e promovendo
o debate sobre a prática socioeducativa. Em nossa proposta de
trabalho, dedicamo-nos a desconstruir/construir conceitos sobre
o sentido de infância e de adolescência; os diversos conceitos de
família; as questões referentes ao uso de drogas e à criminalização;
o conceito de instituição fechada e a medida de internação; a
contextualização sócio-histórica dos diversos processos de punição
e como se constrói o que temos hoje, como medida socioeducativa,
definida pelo ECA, dentre muitos outros atravessamentos sobre a
prática de trabalho direta com os adolescentes.
Um dos aspectos interessantes deste trabalho foi a
oportunidade de visitarmos alguns institutos, conversarmos
com os socioeducadores e observarmos a estrutura e o modo de
funcionamento um pouco mais de perto, já que para entrar nestas
instituições é necessário autorização da direção e, muitas vezes,
até mesmo autorização judicial.
O presente trabalho foi escrito, então, a partir das experiências
como professoras no referido curso, em que participamos
de debates e, também, a partir da análise dos textos escritos
pelos alunos para sua avaliação do curso, em que se discutiu a
temática socioeducacional e, principalmente, desenvolveram-se
pensamentos sobre a prática de cada um.
Política pública , Socioeducação e adolescentes
Diante de uma conjuntura extremamente complexa, notase que o adolescente tem uma participação “chave” nos vários
segmentos que o envolve, ou seja, a política governamental, a
mídia, o ministério público, as empresas de modo geral, entre
outros. O assunto adolescente pobre e/ou em conflito com a lei
103
atravessa esses setores das mais variadas formas, promovendo e
produzindo subjetividades, isso é, modos de perceber e encarar a
realidade, alcançando uma maioria, como sendo o ideal de vida,
uma gradativa escala que promove um bem-estar social padrão.
Coimbra e Nascimento nos alertam que o que se pensa e espera
da realidade não existem em si; são constantemente fabricados.
Assim, as diferentes subjetividades se presentificam e se espalham
por todo o tecido social. Engendram, por meio de nossas práticas,
diferentes dispositivos de poder, diferentes máquinas sociais que,
em seu funcionamento, fortalecem certas modalidades de vida e de
existência. Ao entender e problematizar as forças que estão no mundo e
os modos como elas nos atravessam e nos constituem, podemos pensar
como se dá, hoje, a gestão das vidas, em especial as dos jovens. Que
subjetividades vêm sendo produzidas hegemonicamente como técnicas
de governo, de tutela sobre as vidas? Quais tem sido construídas para
determinados segmentos como os marginalizados, os desqualificados,
os inferiores? (COIMBRA e NASCIMENTO, 2009, p.42)
Nota-se que, em virtude da ação esmagadora de diversas
forças de influência e determinação de um ideal de sociabilidade,
o jovem vem sendo enquadrado na categoria de ser em formação
e lhe é atribuída uma natureza, uma essência. Suas características
são generalizadas e enquadradas em rótulos. Ao adolescente, são
atribuídas características como vigor, entusiasmo, impulsividade,
questionamento, rebeldia, utopia, agressividade – combustíveis
históricos para as grandes transformações. Assim, as resistências e
lutas que se fazem cotidianamente são percebidas como perigosas.
Atribui-se a essas subjetividades características próprias de
certas classes. Assim, os jovens das elites seriam naturalmente
alegres e entusiasmados e os das classes pobres, violentos,
agressivos, perigosos e criminosos em potencial. Desse modo, o
poder responde a esses movimentos de resistência, cria normas,
medidas e identidades, no caso dos adolescentes, o poder captura
aquilo que pode se tornar perigoso.
104
Desse modo, certos pontos-chave encontram-se suprimidos
e diretamente ligados a processos de exclusão dos adolescentes,
ou seja: a família, a escola, o mercado de trabalho etc. Meninos
e meninas pobres e/ou em conflito com a lei são construídos a
partir de um modelo que representa a situação de vida de uma
minoria. Tenta-se inseri-los em uma realidade que não é aquela
com que se defrontam.
Energia fundamental na constituição do mercado de mãode-obra, os adolescentes acabam sendo, ao longo da história,
objeto permanente do poder punitivo e do encarceramento.
Mostra-nos Malaguti Batista que
entre os séculos XVI e XVII, a constituição de uma sociedade de classes
impões novas necessidades de ordenação. O Estado reprime a vadiagem
e gera leis de expropriação de terras comuns, que concentrarão os
pobres na cidade. Nesse contexto, surge na Inglaterra a lei dos pobres,
de 1601. Em tal conjuntura, o rei Henrique VIII determinou a execução
de 72 mil ladrões, a maioria dos quais “ladrõezinhos”, como as crianças
e os jovens miseráveis descritos nos romances de Charles Dickens.
(BATISTA, apud BOCAYUVA, 2009, p.93)
A partir dos séculos XVII e XVIII, com a constituição da prisão
como pena, descrita por Foucault em Vigiar e Punir 24, o crime passa
a ser tratado pela lógica penal e um grande contingente de crianças
e adolescentes passa a ser internado – seja em reformatórios, em
colégio internos, seminários católicos ou mesmo na prisão. A
internação, o controle e a exclusão social vão se construindo desde então.
A partir do ECA se modificam, na lei, os direitos da
população infanto¬-juvenil brasileira. Nele se afirma o valor
intrínseco da criança e do adolescente como ser humano, a
necessidade de especial respeito à sua condição de pessoa em
desenvolvimento, o valor prospectivo da infância e adolescência
como portadora de continuidade do seu povo e o reconhecimento
da sua situação de vulnerabilidade. Isso torna as crianças e
24
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Nascimento da prisão. Tradução de Raquel
Ramalhete. 19. ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes Ltda., 1999.
105
adolescentes merecedoras de proteção integral por parte da
família, da sociedade e do Estado. devendo esse atuar mediante
políticas públicas e sociais na promoção e defesa de seus direitos.
A adoção dessa doutrina em substituição ao velho paradigma
da situação irregular (Código de Menores – Lei n° 6.697, de 10 de
outubro de 1979), com seu caráter discriminatório que associava
pobreza à “delinquência”, omitindo, assim, as reais causas da
exclusão, acarretou mudanças de referenciais e paradigmas com
reflexos inclusive no trato da questão infracional. No plano legal,
essa substituição representou uma opção pela inclusão social do
adolescente em conflito com a lei e não mais um mero objeto de
intervenção, como era no passado. Essa concepção cedeu espaço,
assim, à garantia de direitos. Nesse sentido, com o ECA as
crianças e adolescentes tornaram-se sujeitos de direitos, inclusive
os jovens em conflito com a lei.
Visando concretizar os avanços contidos na legislação e
contribuir para a efetiva cidadania dos adolescentes em conflito
com a lei, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente (CONANDA)25 , responsável por deliberar sobre a
política de atenção à infância e adolescência – pautado no princípio
da democracia participativa –, tem buscado cumprir seu papel
normatizador e articulador, ampliando os debates e sua agenda
com os demais atores do Sistema de Garantia dos Direitos (SGD).
Dois anos depois da criação do CONANDA, no estado do
Rio de Janeiro, o DEGASE26 passa a ser responsável pela execução
das medidas socieducativas.
Assim, aos adolescentes que praticam atos infracionais
recorre-se ao Estatuto da Criança e Adolescente (1990), que
dispõe sobre o cumprimento de medidas socioeducativas.
25
O CONANDA. foi criado por Lei Federal no 8.242. de 12 de outubro de 1991.
26
Decreto 18.403 de 26/01/93, por publicação no D.O.E.R.J de 27/01/1993, estrutura básica da Secretaria de Estado de Justiça.
106
O ECA tem como finalidade assegurar a esses adolescentes a
possibilidade de superar a sua condição de exclusão, nesse sentido,
as medidas socioeducativas englobam desde advertência; obrigação
de reparar dano; prestação de serviço à comunidade; liberdade
assistida; até a inserção em regime de semiliberdade ou a internação
em estabelecimento educacional. (Art.112, I a VI)
Silva aponta que as medidas socioeducativas seguem o
princípio da brevidade e da excepcionalidade, levando-se em
conta sempre a condição peculiar do adolescente em conflito
com a lei; além disso, a autora expõe também que a execução
de medidas socioeducativas está amparada tanto no ECA (Lei
nº 8069/1990) e na Lei 12.594/2012, bem como nas legislações
internacionais. Nesse sentido,
a política de sócio educação é, portanto, responsável por proporcionar o
atendimento socioeducativo aos adolescentes e jovens em conflito com
a lei. Durante o processo socioeducativo, busca-se desenvolver ações
de promoção pessoal e social, trabalho de orientação, educação formal,
atividades pedagógicas, de lazer, esportivas, de profissionalização,
bem como demais questões inerentes ao desenvolvimento do sujeito
frente aos desafios da vida em liberdade. (SILVA, 2009, p.107)
Assim, no Estatuto da Criança e Adolescente, a doutrina de
proteção integral à criança e ao adolescente torna-se de fundamental
importância para o desenvolvimento de políticas e ações voltadas
a esses jovens, além de ser o lastro de sustentação para medidas
socioeducativas em nosso país. Destacamos, também, que as bases
legais das políticas de socioeducação não se restringem apenas
ao ECA e ao SINASE (2012), estando assentadas em legislações
internacionais27 , nas quais o Brasil é signatário.
Compreendemos que a socioeducação é uma política pública
resultante da participação e construção coletiva que englobam o
27
Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), Declaração dos Direitos
da Criança e do Adolescente (1959), Convenção Internacional sobre os Direitos da
Criança (1989), Regras de Beijin e Regras Mínimas das Nações Unidas para proteção
dos menores privados de liberdade (1990).
107
Estado e a Sociedade Civil, objetivando a proteção, a promoção
pessoal, social, educacional, cultural etc; dos adolescentes que
cometem atos infracionais e, consequentemente, encontramse em conflito com a lei. Nesse sentido, compreendemos
que a socioeducação se constitui como uma política jurídicasancionatória de cunho sociopedagógico.
Cabe, assim, ao adolescente em processo socioeducativo
receber atendimento multidisciplinar, ou seja, oportunidade
de acesso à educação, à profissionalização e, principalmente,
de estímulo ao vínculo familiar e comunitário. Dessa forma,
a socioeducação precisa desempenhar um papel importante
de mediadora entre os adolescentes em conflito com a lei e a
sociedade, contribuindo, assim, para sua ressocialização, para
que não voltem a cometer novos atos infracionais.
A sócio educação visa construir junto dos adolescentes e jovens
novos e apropriados conceitos de vida, pela reflexão sobre valores,
o fortalecimento dos princípios éticos da vida social e ainda o acesso
destes aos bens e serviços socialmente construídos, de tal forma que
os adolescentes e jovens privados de liberdade possam retornar
ao convívio em sociedade, ressignificando o lugar que ocupam na
sociedade enquanto sujeitos livres e cidadãos autônomos no âmbito
das esferas social, cultural e política. (SILVA, 2012, p.107).
O adolescente e o discurso que se constrói sobre ele
Tomando o discurso como própria prática, a partir do
referencial de Michel Foucault, tomaremos a seguir como
documento de análise algumas descrições sobre o perfil do
adolescente e sobre a medida socioeducativa, a partir da
construção dos agentes disciplinares, dos professores, dos
técnicos, dos gestores e diretores do DEGASE, ou seja, daqueles
que vivem o processo na prática.
Observamos que na construção deste perfil se atravessam
diversos discursos; seguem algumas falas:
108
Quando o menor infrator entra para o cumprimento da sua medida
socioeducativa ele se depara com regras e deveres aos quais não estão
habituados no seu dia-a-dia. Desta forma tornando sua ressocialização
mais difícil...
...o menor infrator hoje não vê a vida de seu semelhante como algo
importante para outrem, eles não possuem padrões de respeito,
dignidade e afeição. A vida de outrem é somente uma vida, a dele
será sempre a mais importante e a forma que busca para aliviar um
sofrimento, uma angústia ou mesmo desprezo que recebe de sua
família ou comunidade.
Assim, o termo “menor”, como vimos nas falas acima,
ainda é muito usado, apesar de o ECA aboli-lo. Vemos que
muitas vezes ele diferencia o adolescente por sua classe social.
Afinal, dificilmente um jovem de classe média recebe medida
socioeducativa de internação.
Essa situação se mostra pela análise do perfil dos atendidos,
nas falas daqueles que trabalham diretamente com eles:
Nós temos políticas diferenciadas para pobres e ricos, isso caracteriza
preconceito, é o sistema de dois pesos e duas medidas, o rico dificilmente
chega a responder o processo em regime fechado, o pobre sempre é
encaminhado aos educandários, de onde sabemos que não sai muito
diferente do que entrou.
Podemos ver na fala de dois diretores de unidades diferentes
que, apesar de terem opiniões completamente opostas sobre
a necessidade de internação e o tempo de permanência dos
adolescentes internados, no que se refere à crítica à arbitrariedade e
à política de diferenciação dos juízes, seus discursos se encontram.
O juiz pega o adolescente e joga aqui dentro, o garoto que foi pego pela
primeira vez com droga, que nem está tão envolvido assim... Aí que ele
entra no crime mesmo. E pelo estatuto (ECA), quem é pego pela primeira
vez nem têm que ser internado, mas quem bate o martelo é o juiz. Aí aqui
fica superlotado. O juiz não quer saber, pega e joga eles aqui.
O adolescente é pego com droga e o juiz solta. Porque pelo ECA,
quem é pego pela primeira vez não pode ficar internado. Isso faz os
adolescentes se sentirem inatingíveis, porque eles sabem que não vão
109
ficar aqui. E os que ficam sabem que vão sair logo. O garoto entra e
quando a gente tá começando a fazer um trabalho com ele o juiz solta.
Nesta última fala, podemos ver um discurso muito comum,
inclusive usado pelos defensores da diminuição da maioridade
penal – o de que as medidas socioeducativas, da forma como
são propostas, tornam-se um instrumento para a impunidade.
Vemos outro exemplo na fala de um socioeducador agente:
O modelo de internação juvenil que hoje se apresenta é totalmente
ineficaz, primeiro porque o menor já sabe que vai pra lá, o crime
organizado já avisa “você vai ficar lá só até os 18 ou 21 anos depois você
tá livre.” Já com isso em mente o jovem infrator se recusa a participar
de qualquer programa ou projeto de ressocialização.
Essa diferenciação pela origem social e pela cor se agrava
com a premissa da cultura da violência na favela que produz
uma imagem negativa do seu morador. Ou seja, a ideia de
que a sociabilidade da favela, fortalecida pelos efeitos da
presença do tráfico, produziria efeitos negativos sobre os
jovens, caracterizando-os como agressivos, inquietos, bárbaros
e perigosos, ou em situação de risco, de vulnerabilidade social.
Crianças crescem ouvindo o tempo todo que o policial é o homem mau
que sobe o morro e que o traficante da favela muitas das vezes é quase
um herói para a maioria das crianças e adolescentes, que passam a
sonhar em ter um fuzil tão grande e potente quanto os que eles veem
todos os dias passando pela sua porta. E a primeira oferta de emprego
que ele tem com chances de ganhar algum dinheiro (que não é pouco
mediante o que se paga de salário mínimo) é no tráfico, lugar onde a
maioria deles viram a vida toda irmãos, vizinhos e primos quando não
pai e mãe vivendo nesta atividade por diversos motivos, inclusive por
ter neste meio uma fonte de renda na comunidade. Esses adolescentes
chegam no DEGASE vendo o agente como inimigo e o sistema em
geral como um lugar que impõe regras e normas até então nunca
experimentadas por eles...
Outra problemática advinda das questões das drogas é a efetiva divisão
dos internos em grupos diferentes devido à localidade onde moram.
A rivalidade nas comunidades pobres e a disputa do tráfico e drogas
110
por território de venda se reflete dentro do sistema. São colocados juntos
adolescentes de comunidades diferentes, rivais ou que tiveram algum
embate violento entre si no mesmo espaço interno da instituição. O
resultado não poderia ser pior: separação de grupos por facção, agressões
mútuas entre adolescentes cumprindo medida socioeducativa.
Ou seja, prevalece a premissa de que o morador da
favela, por natureza (social, cultural, genética ou qualquer
outra explicação), é bandido ou um potencial bandido. É o que
chamamos de criminalização da pobreza. Como explica Paiva
(PAIVA apud BURGOS, 2009, p.25),
Este “outro”, habitante dos espaços pobres segregados, é visto como
ameaçador e é sujeito a toda uma espécie de preconceitos, discriminação,
estigmas e violência física, que o transforma em um outro sempre suspeito,
para o qual o remédio usualmente pensado é o maior incremento nas
políticas punitivas de segurança e a possibilidade de encarceramento
para que o “nosso” possa seguir vivendo sua esquizofrenia social.
Coimbra, em seu texto Direitos Humanos e Criminalização
da Pobreza, mostra como,
[...] desde o final do século XIX, já se encontravam presentes nas
elites brasileiras as subjetividades que constituem o dispositivo
da periculosidade. Dispositivo este, apontado por Foucault (1996),
que emerge com a sociedade disciplinar, em meados do século XIX.
Presente entre nós até os dias de hoje, esse dispositivo vai afirmar que
tão importante quanto o que um indivíduo fez, é o que ele poderá vir
a fazer. É o controle das virtualidades; importante e eficaz instrumento
de desqualificação e menorização que institui certas essências, certas
identidades. Afirma-se, então, que dependendo de uma certa natureza
(pobre, negro, semi-alfabetizado, morador de periferia, etc etc etc)
poder-se-á vir a cometer atos perigosos, poder-se-à entrar para o
caminho da criminalidade (PAIVA apud BURGOS, 2009, p.25).
Visitando algumas escolas dentro das unidades de
internação e também a partir de conversas com diretoras e
professoras dessas escolas, percebemos o quanto é valorizado o
estudo como grande intervenção na vida dos jovens. Porém, todos
111
com que conversamos, ao descreverem a escola e os atendidos,
tinham um discurso unanime: que a escola era muito fraca, que
os meninos tinham dificuldade de aprendizagem, eram muito
atrasados, que muitos iam só porque eram obrigados e não faziam
as atividades. Vejamos a fala de uma socioeducadora técnica:
Os adolescentes, mesmo sabendo que as atividades pedagógicas são
obrigatórias e que é direito dele receber escolarização e profissionalização,
costumam rejeitar tais práticas. Por isso, esclarecemos constantemente
que a reavaliação da medida é realizada a cada seis meses através de
um relatório em concordância com o PIA que apresenta pareceres de
cada membro da equipe técnica em colaboração com os demais agentes
educacionais que estão em contato mais direto com os mesmos.
Essa fala sobre a obrigatoriedade da escola nos alarma,
mas nos mostra também que nem sempre o poder e o controle se
exercem na forma da violência física. Quando falamos de direito
a estudar, também precisamos pensar em seus aspectos de
controle, afinal não há nada mais disciplinador do que uma escola.
Um direito que na prática se torna mais um aspecto da medida,
pois, se não for para escola, não é avaliado positivamente, e isso
influencia no tempo em que vai ficar internado. Como a medida
sócio educativa não determina um tempo (como a sentença no
sistema prisional), mas se fundamenta em avaliações semestrais,
o adolescente acaba indo para a escola obrigatoriamente. Nesse
ponto, cabe questionar: a escola não poderia ser atrativa?
O adolescente consegue compreender a importância da
escolarização em sua vida? Por que eles preferem ficar trancados
nos alojamentos em vez de ir pra escola?
Na prática, a medida socioeducativa se resume a ficar fora
do convívio familiar e social, recebe do Estado o mínimo em
educação, saúde, habitação, trabalho e lazer dentro do espaço
institucional e, ao deixá-lo, não encontra nem esse mínimo; como
não voltar às práticas infracionais mais comuns nos dias de hoje,
sendo elas estratégia de sobrevivência?
112
Considerações Finais
Muito embora o ECA e os órgãos normatizadores como o
CONANDA apresentem significativas mudanças e conquistas
em relação ao conteúdo, ao método e à gestão, essas ainda estão
no plano jurídico, político-conceitual e administrativo, não
chegando efetivamente aos seus destinatários: os adolescentes
em conflito com a lei. Como vimos nas falas acima, a medida de
internação ainda está muito longe de atender às exigências do
ECA e do SINASE.
A esses adolescentes, a sociedade busca controlar recolhendoos das ruas e reservando-lhes espaços próprios, fechados,
longe dos “olhos” da classe média e elites. A exclusão engaja
sempre uma organização específica das relações interpessoais
ou intergrupais, de uma forma material ou simbólica, através
da qual ela se traduz. Nesse caso, é a exclusão por meio de um
afastamento, da manutenção de uma distância topológica, mais
especificamente, a segregação, o asilo. Dessa forma, fica afastado
da sociedade tudo que pode significar um mal ou uma ameaça;
limpa-se da família e do corpo social tudo que pode contrariar
os interesses de uma elite social e economicamente privilegiada.
O que temos é toda mídia e outros dispositivos sociais
produzindo uma forma de encarar as crianças pobres de modo
que a solução está sempre na segregação, no asilo, na internação
– ou estão enquadrados como “infratores” vistos como monstros,
bandidos e a esses só restam a vigilância e a privação da liberdade
nos chamados pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente),
art. 122 – VI, “estabelecimentos educacionais”; ou quando não
foram pegos cometendo ato infracional; ou os menores de 12 anos
de idade, que são vistos como carentes, abandonados, coitados, e
o asilo se justifica como “programa de proteção”.
Esse último deveria servir para salvaguardar os direitos
previstos no ECA, inclusive os artigos 3, 4, 15, 16, entre outros,
113
que se referem ao direito de liberdade. De fato, o que vemos é a
privação desse direito, a partir do momento em que não se cumprem,
com algumas exceções, o que está previsto no art. 92. Esse artigo
define alguns princípios de funcionamento dos abrigos, como, por
exemplo, o inc. VII – “Participação na vida da comunidade local”.
Muitas vezes, justificando determinadas práticas pela falta de
recursos e de segurança, vemos se mascarar a exclusão.
A medida de internação está prevista no ECA, no art. 112VI, e o artigo 121 a descreve: “a internação constitui medida
privativa de liberdade, sujeita aos princípios da brevidade,
excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento”. Para que possamos pensá-la, a partir de
um enfoque histórico e genealógico, é preciso refletir como
essa medida foi se constituindo através dos diversos jogos
de verdade que foram sendo estabelecidos. O sentimento e os
afetos com relação à criança foram se transformando ao longo
dos séculos e com eles se institucionalizam as diferentes práticas
de atendimento; práticas essas que produzem os objetos em
cada momento da história, isto é, eles criam funções diferentes
segundo épocas e práticas diferentes.
Entendemos, então, que durante séculos foram sendo
produzidos práticas de atendimento às crianças e aos adolescentes,
sempre legitimadas pelas referências dominantes da época, e a
contextualização histórica nos permite ultrapassar a visão simplista
da internação de adolescentes e crianças como prática isolada.
Precisamos pensar quais são as práticas segundo as quais se
constroem a criança, o adolescente ou menor infrator; precisamos
atravessar as práticas disciplinares, de poder e produção de
verdades, que estabilizam as objetividades na história.
Todos nós atuamos de alguma maneira na produção
de subjetividade. Sendo assim, encontramo-nos em uma
encruzilhada fundamental: ou vamos trabalhar na reprodução
de modelos, ou vamos trabalhar agenciando novos modos e
permitindo saídas para esse processo de produção de modos e
sentidos de vida.
114
Colocar em análise as práticas educativas é pensar o lugar
e o poder que ocupamos: agentes, pedagogos, professores,
psicólogos, assistentes sociais, médicos etc. Até que ponto nossa
prática reproduz a neutralidade, o assistencialismo, a verdade
e outras instituições, relações de forças que se estabelecem,
tornando-se cristalizadas, naturalizadas, na forma de um saber
que se apodera do outro?
Desimplicar-se das discussões acerca de nossa prática
é desimplicar-se dos efeitos que ela produz. Acreditamos
que uma proposta de política não soluciona/transforma em
si os problemas nos quais estão circunscritos todo o sistema
socioeducativo, que uma transformação não pode ser promovida
apenas no patamar dos decretos institucionais, se não acontecer
também nas aspirações daqueles que afinal vão efetuá-la.
Sendo assim, acreditamos que as práticas socioeducativas, assim
construídas devem ser problematizadas, visto que as entendemos
como produções históricas. Entender a situação presente exige uma
análise do campo de força, do modo de funcionamento dos discursos
e práticas construídos ao longo dos tempos.
115
Referências bibliográficas
COIMBRA, Cecilia Maria Bouças e NASCIMENTO, Maria Livia
do. Juventude Normatizada, Moralizada e Violentada: Alguns
modos de Subjetivação Contemporâneos. In: BOCAYUVA,
Helena e NUNES, Silvia Alexim [org.] Juventudes, subjetivações e
violências. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009.
COIMBRA, C. M. B. Direitos Humanos e Criminalização da Pobreza.
Trabalho apresentado em Mesa Redonda: “Direitos Humanos e
Criminalização da Pobreza no I Seminário Internacional de Direitos
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na América Latina hoje”, realizado pela UERJ, em outubro de 2006.
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BOCAYUVA, Helena e NUNES, Silvia Alexim [org.] Juventudes,
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MARASCHIN, Cleci; RANIERI, Édio. Socioeducação e identidade:
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www.scielo.br/pdf/rk/v14n1/v14n1a11.pdf > Acesso em: maio 2013.
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menores privados de liberdade (1990). Disponível em: http://
www.rolim.com.br/2002/_pdfs/066.pdf Acesso em: mai 2013.
116
Parte II “Políticas e Socioeducação”
117
O sistema de garantia dos direitos da criança e do
adolescente e o Departamento Geral de Ações Socioeducativas
do Estado do Rio de Janeiro
Saturnina Silva28
Equipe Assessoria às Medidas Socioeducativas e ao Egresso-AMSEG29
Resumo: O presente artigo apresenta o Sistema de Garantia
de Direitos da Criança e do Adolescente e sua articulação com o
Sistema Socioeducativo.
Palavras-chave: adolescente,
institucional, SINASE.
direitos,
incompletude
A estruturação do sistema de garantia dos direitos
A ideia de estruturação de um sistema de garantia dos direitos,
na área da criança e do adolescente, foi evocada pela primeira vez
por Wanderlino Nogueira no III Encontro Nacional da Rede de
Centros de Defesa, realizado em Recife em outubro de 1992.
Para Nogueira, a estruturação desse sistema objetivava
acentuar a especificidade da política de garantia dos direitos de
crianças e adolescentes dentro do campo geral das políticas de
Estado, reforçando seu papel no conjunto de ações estratégicas
de “advocacia de interesses de grupos vulnerabilizados”.
Essa estruturação não contemplaria uma política setorial
apartada, mas iria ressaltar a perspectiva de integralidade da
ação, que deveria cortar transversal e intersetorialmente todas as
28
Assessora –AMSEG;
29
Dulcinéia Seabra de Oliveira; Fatima Dias Alves Tremura; Maria Stela de
Araujo; Hilton Luiz Machado Serra e Vera Lúcia da Silva Durão
119
políticas públicas, incluindo nesse sistema o campo da “administração
da justiça”, ao lado do campo das “políticas de atendimento”.
Para a implementação do sistema, evidenciava-se a
necessidade de repensar as ações e as inter-relações institucionais
relacionadas às diversas situações em que crianças e adolescentes
necessitam de proteção, de forma a garantir direitos, definindo
mais claramente os papéis dos diversos atores sociais responsáveis
pela operacionalização do Estatuto da Criança e do Adolescente
e da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da
Criança, situando-os em eixos estratégicos e inter-relacionados.
Evidenciava-se também a necessidade de fortalecer o controle
externo e difuso da sociedade civil sobre todo esse sistema.
Nessa mesma perspectiva, a Secretaria Especial dos
Direitos Humanos e o Conselho Nacional dos Direitos da
Criança e do Adolescente-CONANDA, em deliberação
conjunta, assinaram, em abril de 2006, a Resolução de nº 113,
que dispõe sobre parâmetros para a institucionalização e o
fortalecimento do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança
e do Adolescente, com a competência de promover, defender e
controlar a efetivação dos direitos civis, políticos, econômicos,
sociais, culturais, coletivos e difusos, em sua integralidade, em
favor de todas as crianças e os adolescentes, de modo que sejam
reconhecidos e respeitados como sujeitos de direitos e pessoas
em condição peculiar de desenvolvimento, colocando-os a salvo
de ameaças e violações a quaisquer de seus direitos e garantindo
a apuração e reparação dessas ameaças e violações.
Nessa Resolução, a configuração do Sistema de Garantia
dos Direitos da Criança e do Adolescente se estrutura a partir
da articulação e integração em rede das instâncias públicas
governamentais e da sociedade civil, a partir de três eixos
estratégicos de ação na área dos direitos humanos: I) da defesa;
II)da promoção; e III) do controle de sua efetivação.
120
O eixo da defesa do direito
Art. 6º: O eixo da defesa dos Direitos Humanos de Crianças e
Adolescentes caracteriza-se pela garantia do acesso à justiça, ou seja,
pelo recurso a instâncias públicas e mecanismos jurídicos de proteção
integral dos direitos humanos, gerais e especiais, da infância e da
adolescência, para assegurar a impositividade deles e sua exigibilidade,
em concreto. (Resolução nº113, CONANDA, 2006)
Este eixo tem por finalidade o enfrentamento das ameaças e
violações dos direitos de crianças e adolescentes a partir das ações
e programas implementados pelas políticas públicas e órgãos
incumbidos pela defesa dos direitos através de ações judiciais;
apuração de irregularidades em instituições de atendimento a
esse público; fiscalização das mesmas; mobilização social, entre
outras mecanismos. Aqui, encontram-se as Varas da Infância
e da Juventude, Promotorias públicas, Conselhos Tutelares,
Secretarias Estaduais de Segurança pública, Delegacias
Especializadas, entre outros. Incluem-se também os órgãos de
defesa da Cidadania, como os Centros de Defesa dos Direitos da
Criança e do Adolescente (CEDECAS). Todos são responsáveis
por prestar atendimento jurídico-social.
O eixo da promoção do direito
Art. 14º: O eixo estratégico da Promoção dos Direitos Humanos de
Crianças e Adolescentes operacionaliza-se através do desenvolvimento
de ‘políticas de atendimento dos direitos da Criança e do Adolescente’,
previstas no artigo 86 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que
integra o âmbito maior da política de Promoção e Proteção dos Direitos
Humanos. (Resolução 113, CONANDA, 2006)
A política de atendimento descrita no ECA em seu artigo 86
estabelece que sua operacionalização seja realizada “(...) através de um
conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais,
da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios”.
121
Ainda especifica, respectivamente em seus artigos 87 e
88, as linhas de ação e as diretrizes da política de atendimento
com o objetivo de criar uma estrutura básica para que ocorram
a promoção e a universalização dos direitos assegurados pelo
estatuto. Entre as 7 (sete) linhas, estão: políticas sociais básicas;
proteção jurídico-social por entidades de defesa dos direitos
da criança e do adolescente; serviços especiais de prevenção e
atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência,
maus tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão. E, entre
as 7 (sete) diretrizes, estão: municipalização do atendimento;
criação de conselhos municipais, estaduais e nacional dos direitos
da criança e do adolescente, órgãos deliberativos e controladores
das ações em todos os níveis, assegurada a participação popular
paritária por meio de organizações representativas, segundo leis
federais, estaduais e municipais.
O eixo da promoção tem por finalidade promover os
Direitos Humanos no sentido de propiciar através das políticas
públicas a construção de espaços, programas e demais ações afins,
que garantam a proteção integral à criança e ao adolescente e
proporcionem o pleno desenvolvimento dos mesmos, fomentando
a educação, a cultura, o esporte, o lazer, a saúde, a profissionalização,
o atendimento de proteção especial, entre outros.
O eixo do controle do direito
Art. 21º: O controle das ações públicas de promoção e defesa dos
Direitos Humanos da criança e do adolescente se fará através de
instâncias públicas colegiadas próprias, onde se assegure a paridade da
participação de órgãos governamentais e de entidades sociais, tais como:
I – Conselhos dos direitos de crianças e adolescentes; II – Conselhos
setoriais de formulação e controle de políticas públicas; e III – os órgãos
e os poderes de controle interno e externo definidos nos artigos 70, 71,
72, 73, 74 e 75 da Constituição Federal. O controle social é exercido
soberanamente pela sociedade civil, através das suas organizações e
articulações representativas. (Resolução nº 113, CONANDA, 2006)
122
Refere-se ao controle da efetivação dos direitos da criança
e do adolescente, às ações de monitoramento da efetivação dos
direitos desempenhado principalmente pelos Conselhos de
Direitos, municipais, estaduais e nacionais, em conjunto com a
sociedade civil organizada no sentido de acompanhar, propor,
avaliar de uma forma geral os serviços prestados pelos órgãos
e pelas entidades incumbidos de executá-los. Destacam-se os
grupos religiosos, sindicatos, centros de pesquisas, fóruns,
entre outros. Esses podem atuar de forma a acompanhar o
funcionamento do SGD, apresentando demandas da sociedade
e propostas na formulação das políticas.
O controle social do direito é campo preferencial e
peculiar das organizações representativas da população, isto é,
da sociedade civil organizada para o exercício desse controle,
principalmente por meio de instâncias não institucionais de
articulação (fóruns, frentes, pactos etc) e de construção de
alianças entre organizações sociais.
Além das organizações da sociedade civil, esse eixo opera
também a partir de instâncias públicas colegiadas próprias, em que,
na maior parte das vezes, é assegurada a paridade da participação
de órgãos governamentais e de entidades sociais, tais como os
conselhos de direitos, os conselhos setoriais de formulação e controle
de políticas públicas, os órgãos e poderes de controle interno e
externo de fiscalização contábil, financeira e orçamentária.
Para acompanhar as formas de gestão, as avaliações e os
encaminhamentos relacionados ao Sistema de Garantia dos
Direitos da Criança e do Adolescente, é preciso estar atento às
seguintes instâncias:
1) Secretaria de Direitos Humanos-SDH: órgão da
Presidência da República que trata da articulação e implementação
de políticas públicas voltadas para a promoção e proteção dos
direitos humanos.
123
2) Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente:
instância colegiada de caráter deliberativo, formulador e
normatizador de políticas públicas, controlador das ações e
articulador das iniciativas de proteção e defesa dos direitos da
criança e do adolescente. Os Conselhos constituem uma das
formas de participação popular na gestão das políticas públicas
e contemplam a seguinte organização política do país:
a) Nacional: CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos
da Criança e do Adolescente.
b) Estadual: CEDECA – Cada Estado organiza o seu
Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente.
c) Municipal: CMDCA – Cada município organiza o seu
Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.
3) Conselho Tutelar: órgão público permanente e autônomo
que deve zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do
adolescente em conjunto com a rede de políticas públicas e da
sociedade civil de cada município. As atribuições do Conselho
Tutelar estão descritas no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Em cada Município e em cada Região Administrativa do Distrito
Federal haverá, no mínimo 1 (um) Conselho Tutelar como órgão
integrante da administração pública local, composto de 5 (cinco)
membros, escolhidos pela população local para mandato de 4
(quatro) anos.
4) Iniciativas da sociedade civil com práticas que buscam a
defesa dos direitos da Criança e do Adolescente e complementam o
atendimento oferecido pelo Poder Executivo.
124
Atribuições e Competências de alguns dos Órgãos e
demais atores que integram o Sistema de Garantia dos Direitos,
responsáveis por assegurar efetivar a Proteção Integral.
1) Família: a primeira a ser responsável pela atenção à criança
a ao adolescente, por proteger e zelar pelo os seus direitos, cabendo
ao Estado oferecer à mesma condições para tal. A entrada do
adolescente no Sistema Socioeducativo busca uma aproximação
com a família, sendo essa chamada para uma ação em conjunta.
2) Os Conselhos de Direitos e Setoriais: são responsáveis pelo
controle social e visam zelar pelos preceitos legais, pelas políticas
públicas, e abertos à participação popular, como os conselhos do
Direito da Criança e do Adolescente municipal (CMDCA), estadual
(CEDCA) e nacional (CONANDA).
3) As ONG’s: responsáveis por complementar o atendimento
através de projetos, programas nas diversas áreas e acesso às
políticas públicas; sociedade civil organizada – participação popular
a partir de representações e práticas nos espaços democráticos
voltados para decisões relativas à população infanto-juvenil, nos
fóruns, conferências, pactos, parlamento, auditoria, Conselhos;
como exemplo, no processo de elaboração das propostas de leis
orçamentárias pelo Executivo, nas discussões e aprovações pelo
legislativo; participação essa prevista na Lei Complementar nº
101/00 (Lei de Responsabilidade Fiscal) e Lei nº 10.257/00 (Estatuto
das Cidades); os Conselhos, que possuem dentre outras funções:
“(...) formular, deliberar e fiscalizar a política de atendimento
e normatizar, disciplinar, acompanhar e avaliar os serviços
prestados pelos órgãos e entidades encarregados de sua execução”
(CONANDA, 2010, p. 68).
4) Conselho Tutelar: conforme Art. 131 do ECA, este órgão
é permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela
sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do
adolescente. Dentre as ações de sua competência, estão: representação,
125
encaminhamento ao Ministério Público (MP), aplicação de medida
de proteção adequada, atendimento e aconselhamento, aplicação
de medida de responsabilidade, entre outras ações.
5) Ministério Público: órgão constitucional autônomo,
incumbido de zelar pela defesa da ordem jurídica, dos interesses
sociais e individuais indisponíveis e do próprio regime democrático.
6) Defensoria Pública: é um órgão público que garante às
pessoas o acesso à justiça, ou seja, que permite às pessoas que
não podem pagar ter um advogado especializado para orientálas e defender seus direitos na Justiça.
7) Juizado da Infância e da Juventude: correspondentes às
Varas da Infância e Juventude, são responsáveis por acompanhar
o cumprimento das leis e das medidas de proteção, assim como
das medidas socioeducativas e sua aplicação. Têm o dever de
promover a interligação dos serviços entre o Conselho Tutelar, o
Poder Executivo e a sociedade civil.
8) Delegacias de polícia especializadas: a Delegacia de
proteção à Criança e ao Adolescente-DPCA é responsável pela
repartição policial especializada para atendimento ao adolescente.
9) Poder Legislativo: responsável por promover a revisão
das leis, monitorando e zelando para que o orçamento público,
por ele apreciado e votado, contemple os recursos necessários à
implementação das políticas públicas deliberadas pelos conselhos
de Direitos e Setoriais e ao respeito ao principio constitucional da
prioridade absoluta à criança e ao adolescente.
10) O Poder Executivo: responsável pela execução das
políticas públicas, suas ações são executadas intersetorialmente
a fim de garantir o acesso e a participação dos usuários. Inserese aqui o DEGASE – Departamento de Ações Socioeducativas,
enquanto órgão executor das medidas socioeducativas de
semiliberdade e internação.
126
Departamento Geral de Ações Socioeducativas – Novo DEGASE
“...O maior desafio do trabalho socioeducativo
é o desenvolvimento nos adolescentes autores
de atos infracionais de novas competências
pessoais e relacionais: aprender a ser e conviver”
Antonio Carlo Gomes da Silva,
Desenvolvimento Social e Ação Educativa, 2004
Instituição integrante do Sistema de Garantia dos Direitos
da Criança e do Adolescente, fazendo parte do eixo de promoção,
tem suas ações pautadas nas Normativas Internacionais, na
Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente e nas
diretrizes do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo,
agregando todas as mudanças estruturais apontadas no PASE-RJ
(Plano de Atendimento Socioeducativo do Governo do Estado
do Rio de Janeiro) e no PPI (Projeto Pedagógico Institucional).
127
O Novo DEGASE – Departamento Geral de Ações
Socioeducativas –, órgão vinculado à Secretaria de Estado
de Educação, tem como missão promover socioeducação no
Estado do Rio de Janeiro, favorecendo a formação de pessoas
autônomas, cidadãos solidários e profissionais competentes e
possibilitando a construção de projetos de vida e a convivência
familiar e comunitária.
Criado pelo Decreto nº 18.493, de 26 de janeiro de 1993, o
Departamento Geral de Ações Socioeducativas é um órgão do
Poder Executivo do Estado do Rio de Janeiro, responsável pela
execução das medidas socioeducativas de privação e restrição
de liberdade, preconizadas pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) e aplicadas pelo Poder Judiciário aos jovens
autores de atos infracionais.
Na sua implantação, foram formuladas as “Linhas
Programáticas e Diretrizes Gerais para Estruturação do Sistema
de Ação Socioeducativa”, destacando e reconhecendo a condição
da criança e do adolescente de sujeito de direitos:
Assumir os paradigmas da Lei 8069/90 quando considera crianças
e adolescentes: sujeito de direitos, pessoas em condição peculiar de
desenvolvimento, prioridade absoluta. Promover ações de prevenção geral:
na articulação com as políticas sociais básicas [...]. (Diretrizes Gerais, p.08)
As políticas sociais básicas citadas são as existentes na
Constituição Federal de 1988, no artigo 227, que devem garantir
o direito de forma universal, visando prevenir o ingresso de
crianças e adolescentes no sistema jurídico-criminal, que dispõe:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar a criança e
ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito a vida, a saúde, a
alimentação, a educação, ao lazer, a profissionalização, a cultura,
a dignidade, ao respeito, a liberdade e a convivência familiar e
comunitária, alem de colocá-los a salvo de toda forma de negligencia,
discrição, exploração, violência, crueldade e opressão.
128
Com o objetivo de alcançar a eficiência no cumprimento
de ações socioeducativas sustentadas nos princípios dos direitos
humanos, entendendo as medidas como responsabilizadoras, de
natureza sancionatória e de conteúdo socioeducativo, essas ações
devem sempre envolver o contexto social em que se insere o
adolescente e a sua família e a integração operacional dos órgãos
que integram o Sistema de Administração da Justiça Juvenil –
Subsistema de Segurança Pública; o Subsistema Jurídico; e o
Subsistema Executivo – todos necessariamente comprometidos
com a inclusão desse adolescente e integrante do Sistema de
Garantia dos Direitos.
Dessa forma, o DEGASE está em processo de reordenamento
institucional participativo interno e externo, no âmbito de
conteúdo, método e gestão sob a perspectiva e a necessidade da
articulação dos três níveis de Governo e da corresponsablidade
da família, da sociedade e do Estado, conforme diretrizes do
Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo-SINASE e do
Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária-PNCFC.
A perspectiva de garantia de direitos e as medidas
socioeducativas para adolescentes
O Sistema de Garantia dos Direitos-SGD é constituído na
articulação de políticas e de instâncias públicas que envolvem a
União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios, os Poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário, e de instâncias da sociedade
civil que asseguram ações de Promoção, Defesa e Controle Social
dos direitos e da política de atenção da criança e do adolescente.
O Sistema Nacional de Atendimento SocioeducativoSINASE faz parte das ações do SGD e apresenta referências
detalhadas para execução da política nacional de atendimento
aos adolescentes autores de atos infracionais. O SINASE é a lei
que sistematiza um conjunto ordenado de princípios, regras e
129
critérios, de caráter jurídico, político, pedagógico, financeiro e
administrativo, envolvendo desde o processo de apuração de ato
infracional e a execução da medida socioeducativa até os modos
de gestão, avaliação e controle social.
Para assegurar o conjunto de ações que envolvem o Sistema
de Garantia de Direitos no acompanhamento aos adolescentes em
medidas socioeducativas, é necessária uma prática intersetorial
na rede de políticas públicas, entre as quais destacamos:
1) O Sistema de Justiça, que envolve desde a apuração do
ato infracional até a aplicação da medida socioeducativa, além
do acompanhamento de seu cumprimento com instâncias que
envolvem o Ministério Público, a Defensoria Pública e o Poder
Judiciário. A Associação Brasileira de Magistrados, Promotores
de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude
indica, em estudo realizado em 2008, os Desafios do Sistema
de Justiça da Infância e da Juventude para cumprir os papéis
propostos pelo ECA.
2) O Sistema Único da Assistência Social-SUAS, que
desenvolve um conjunto de ações socioassistenciais e tem como
definição, entre seus usuários de serviços de média complexidade,
o atendimento ao adolescente em cumprimento de medida
socioeducativa em Liberdade Assistida e/ou Prestação de
Serviço à Comunidade.
3) O Sistema Único de Saúde-SUS, que considera o
atendimento em saúde conforme os princípios da universalidade
e integralidade no acesso aos serviços em todos os níveis de
assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das
ações e serviços preventivos e curativos, exigidos para cada caso
e em todos os níveis de complexidade do sistema.
4) A Lei de Diretrizes e Bases da Educação NacionalLDB, que assegura o acesso à educação como dever da família
e do Estado, com a finalidade do pleno desenvolvimento do
educando, envolvendo seu preparo para o exercício da cidadania
e sua qualificação para o trabalho.
130
Conclusão
Pode-se concluir que, no Sistema de Garantia dos Direitos,
a organização das práticas de atendimento, a relação com o
usuário e a gestão dos serviços devem estar pautadas no princípio
da integralidade, entendido como um princípio de ação e não
meramente como um conceito, levando a pensar em um atendimento
em que haja integração tanto interdisciplinar quanto intersetorial.
Quer tomemos a integralidade como princípio orientador
das práticas, quer como princípio organizador do trabalho, quer
da organização das políticas públicas, integralidade implica
numa recusa a objetivação dos sujeitos e talvez uma afirmação
da abertura para o diálogo. (MATTOS, 2001)
É interdisciplinar, porque exige da relação dos gestores
com os demais profissionais uma atuação em que haja a
interligação dos conhecimentos, a fim de desenvolver um
trabalho comprometido com um acolhimento de respeito e uma
qualidade no atendimento, escapando de práticas reducionistas
em que ocorre um trabalho fragmentado. Nessa perspectiva, há
de se considerar os diferentes aspectos da vida, não somente dos
adolescentes do sistema socioeducativo, mas de toda criança
e adolescente enquanto sujeitos que possuem necessidades
objetivas e subjetivas, ou seja, sociais, emocionais, biológicas,
espirituais, entre outras.
É intersetorial, porque as instituições de atendimento não
são completas em si mesmas, ou seja, necessitam da articulação
e integração entre as diversas políticas públicas e sociais,
abordada pelo SINASE (2006) como o princípio da incompletude
institucional, ao se referir aos programas socioeducativos e da
rede de serviços:
(...) a incompletude institucional é um princípio fundamental norteador
de todo o direito da adolescência que deve permear a prática dos
programas socioeducativos e da rede de serviços. Demanda a efetiva
131
participação dos sistemas e políticas de educação, saúde, trabalho,
previdência social, assistência social, cultura, esporte, lazer, segurança
pública, entre outras, para a efetivação da proteção integral de que são
destinatários todos adolescentes.
Segundo o SINASE, os parâmetros norteadores da ação
e gestão pedagógicas para as entidades e/ou programas de
atendimento as medidas socioeducativas devem propiciar aos
adolescentes o acesso a direitos e às oportunidades de superação
de sua situação de exclusão social. O atendimento deve estar
pautado na incompletude institucional. Assim, a inclusão dos
adolescentes pressupõe a articulação com todos os sistemas que
compõem o Sistema de Garantia dos Direitos.
Os direitos sociais devem ser providos através da
articulação e integração entre as diversas políticas públicas,
inclusive buscando o fortalecimento da rede de atendimento
para que ocorra efetivamente a proteção integral.
No entanto, para a efetivação do SGD é importante deter
as condições necessárias para operar atividades de formação
continuada, tendo em vista a construção de uma cultura de
cidadania, na qual a exigibilidade e o respeito aos direitos
humanos sejam princípios fundamentais.
A inclusão dessa discussão poderá constituir-se como uma
estratégia primordial, por um lado, para difundir uma cultura
de promoção, defesa e garantia dos direitos e, por outro, para
mobilizar a sociedade em favor da efetivação desses direitos em
parceria com os demais eixos do sistema, de modo articulado,
integral e integrado.
132
Referências bibliográficas
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133
O adolescente, a sociedade dos direitos e o trabalhador
social: aonde vai dar tudo isso?
Heloisa Mesquita30
Anália Barbosa31
Resumo: Considerando as legislações vigentes e o debate
atual referente ao adolescente autor de ato infracional, o presente
trabalho se propõe a fazer uma reflexão acerca da metodologia
das equipes multidisciplinares no trabalho desenvolvido com
os adolescentes em conflito com a lei. Nesse sentido, apontamos
as competências, responsabilidades e a importância de uma
equipe qualificada, comprometida e proativa, possibilitando aos
adolescentes e a suas famílias que o cumprimento da medida
socioeducativa seja um momento potencializador e estratégico
na construção de uma nova perspectiva de vida.
Palavras-chave: adolescente autor de ato infracional,
equipe multidisciplinar, medida socioeducativa.
Introdução
Tratar dos direitos de crianças e adolescentes nos remete
ao histórico das conquistas de tais direitos. Não será possível ir à
linha do tempo em longínquo processo, mas é possível destacar
marcos legais que passam pela Declaração Universal dos Direitos
da Criança (1959), pela Convenção sobre os Direitos da Criança
30
Doutoranda em Política Social pela Escola de Serviço Social pela Universidade
Federal Fluminense. Superintendente da Proteção Social Básica da Secretaria de Estado
de Assistência Social e Direitos Humanos – SPSB – SEASDH.
31
Mestranda em Serviço Social pela Escola de Serviço Social da Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Assessora Técnica da Coordenadoria Geral de Gestão do Sistema Municipal
de Assistência Social – SIMAS da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social – RJ.
134
– resolução da ONU em 1989, ratificada pelo Brasil em 1990, e
chegar ao processo mais recente dessa história no Brasil, quando o
ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) –, o PNCFCN
– Plano Nacional de Convivência Comunitária (2005) –, o SINASE
– Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, ratificado
pela Lei nº 12.594, de 18 de Janeiro de 2012, merecem destaque.
O reconhecimento do direito tem um longo caminho para
se constituir como tal e envolve diferentes atores e agentes, isto
é, um sistema que tem o eixo condutor como garantia e nele estão
envolvidos, entre outros, o Judiciário e também o Executivo por meio
de diversas políticas públicas e profissionais de diferentes formações.
É pertinente lembrar que, nesse contexto, a sociedade civil
tem papel importante e que os movimentos em favor da criança
e do adolescente são partes responsáveis por importantes
conquistas que se expressam no rompimento com práticas
assistencialistas e institucionalizantes; implica, também, novos
olhares, posturas e práticas.
Esse movimento abrange uma cultura civilizatória na qual os
profissionais, trabalhadores do campo social, merecem destaque na luta
por marcos democráticos na afirmação de direitos. É necessário reconhecer
que esse debate vem ganhando a adesão de outros profissionais.
A luta por uma sociedade justa e democrática tem no
reconhecimento do direito importante ponto de convergência,
que se expressa em questões específicas da classe trabalhadora
por melhores condições de trabalho, por exemplo, mas também
no projeto ético-político que traz o reconhecimento do outro e a
aliança com ele na luta pela justiça social. Dessa pauta, faz parte o
adolescente em cumprimento de medida socioeducativa que vive a
contradição de infringir o direito e por ele ser responsabilizado, assim
como ter historicamente ao longo de sua trajetória de vida tantos
outros direitos violados, na medida em que, em geral, vê-se excluído
de oportunidades e de condições dignas de sobrevivência. Há,
portanto, um desafio para o profissional: desenvolver seu trabalho em
articulação com os demais atores, potencializando as oportunidades
visando reverter na vida do adolescente o histórico de exclusão.
135
O direito como referência
A história de direitos tem importante bibliografia. Como um
dos importantes teóricos, citamos Bobbio, para quem o direito é
uma entidade complexa, não sendo exclusivamente racional ou
lógica, mas também um fato, uma realidade empírica e, dessa forma,
contextualizada historicamente. Ele afirma que as constituições
modernas se baseiam na proteção dos direitos do homem, o que
tem relação com a paz e a democracia com as quais forma uma
interdependência, em que um é pressuposto do outro.
Essa afirmação trata da questão presente no Estado Moderno
e trouxe uma mudança no modo de encarar a relação política, ao
considerar o cidadão e seus direitos, o que ganha espaço em âmbito
internacional, como na Declaração Universal dos Direitos do Homem,
adotada pela ONU em dezembro de 1948 32.
A questão do direito não pode ser desvinculada do modelo
de sociedade em que está inserida. No caso brasileiro, que tem
sua história assinalada por períodos não democráticos33 , a
matéria tem sido marcada por profundas desigualdades sociais,
de injustiças, que provocaram mudanças não só no olhar, mas
também no fazer, e acompanhada de proposições igualitárias,
tendo como pauta o direito à cidadania. Essa questão, para
o trabalhador social, envolve a proposição de nova cultura
profissional calcada em um projeto ético-político hegemônico 34.
32
Fixou princípios importantes de proteção à família e a seus membros, declarando: “a maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as
crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio gozarão da mesma proteção social”
33
O Brasil viveu períodos de ditadura, merecendo destaque a longa gestão de
Getúlio Vargas e governo Militar.
34
Bobbio acredita serem os direitos oriundos de uma evolução histórica, uma
vez que não nascem de uma única vez. Classificou os direitos em direitos de primeira
geração (representados pelos direitos civis; as primeiras liberdades exercidas contra
o Estado); segunda geração (representados pelos direitos políticos/sociais bem como
seu perdão em razão do indultos; direitos de participar do Estado); terceira geração
(econômicos, sociais e culturais; cujo mais importante seria o representado pelos movimentos ecológicos) e quarta geração (exemplificados pela pesquisa biológica, defesa
136
No Brasil, a Constituição define o tripé da seguridade
social: assistência, saúde e previdência, visão que demarca uma
nova relação com a cidadania dos sujeitos, em particular no que
se refere à assistência social regulamentada em 1993, pela LOASLei Orgânica da Assistência Social, complementada pela Lei
12.435/2011. Assim, o caráter de política pública não contributiva
é afirmado, como também seu papel junto ao adolescente em
cumprimento de Medida Socioeducativa, como poderá ser visto
adiante. Outro marco legal presente e que traz importantes
avanços para a política é o ECA (1990), que reconhece a criança
e o adolescente como sujeitos de direito, tratados como foco
prioritário na efetivação de políticas públicas. O Estatuto, dentre
outras normas, afirma que a política de atendimento à infância e
à juventude deve ser executada mediante uma articulação entre
ações governamentais e não governamentais da União, Estados,
Distrito Federal e Municípios, envolvendo as políticas sociais
setoriais e diferentes formações profissionais.
O adolescente e seus direitos
Na perspectiva da responsabilização/proteção integral de
adolescentes frente ao ato infracional, Garrido de Paula considera que:
A criminalidade infanto-juvernil brota, na maior parte das vezes, da
ausência do Estado Social, ao mesmo tempo em que atenta gravemente
contra a cidadania. Evidencia-se um procedimento de retroalimentação
a incivilidade, de modo que causa e efeito se confundem, misturamse num cipoal onde a barbárie revela-se sob a face da inevitabilidade.
Estado de Desvalor Social, como um dos resultados e fonte principal da
criminalidade infanto-juvenil. (DE PAULA, 2006, p. 27)
do patrimônio genético etc). Dessa classificação, podemos apreender que os direitos
surgem de acordo com o progresso técnico da sociedade, isto é, as fases ou gerações
refletem as evoluções tecnológicas da sociedade, que cria novas necessidades para os
indivíduos. Essas ganham prioridade e hegemonia.
137
Portanto, é necessário enfatizar a questão do direito da
criança e do adolescente, reafirmando o dever do Estado de
garanti-los por meio de políticas públicas que devem reduzir
os fatores que possibilitam a aproximação do adolescente com
o crime e da responsabilização frente a atos infracionais. Nesse
sentido, envolve estabelecer medidas jurídicas que podem
ser de proteção, como definido no ECA em seu capítulo II,
merecendo destaque o artigo 101, em que as seguintes medidas
são previstas: I) encaminhamento aos pais ou responsável,
mediante termo de responsabilidade; II) orientação, apoio e
acompanhamento temporários; III) matrícula e frequência
obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental;
IV) inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à
família, à criança e ao adolescente; V) requisição de tratamento
médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou
ambulatorial; VI) inclusão em programa oficial ou comunitário
de auxílio, orientação e tratamento a alcoolatras e toxicômanos;
VII) acolhimento institucional; VIII) inclusão em programa de
acolhimento familiar; IX) colocação em família substituta 35.
Cabe também estabelecer medidas socioeducativas e,
nesse sentido, merece destaque o artigo 112 do ECA, segundo
o qual, verificada a prática de ato infracional, a autoridade
competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas:
I) advertência; II) obrigação de reparar o dano; III) prestação de
serviços à comunidade; IV) liberdade assistida; V) inserção em
regime de semiliberdade; VI) internação em estabelecimento
educacional; VII) qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI.
Destaca-se ainda que a medida aplicada ao adolescente levará em
conta a sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade
da infração; descarta qualquer possibilidade de trabalho forçado
e, reconhecendo os possíveis limites, enfoca que os adolescentes
portadores de doença ou deficiência mental receberão tratamento
individual e especializado, em local adequado às suas condições.
35
138
Redação dada pela Lei nº 12.010, de 2009.
Garrido de Paula (2006) sintetiza sua análise sobre o
reconhecimento à responsabilização sem perder de vista a
proteção integral:
Pretendendo sair da retórica da promoção dos direitos, disciplinou
com exaustão a atividade de fiscalização dos estabelecimentos de
internação coletiva, adotando a idéia da co-legitimação (Judiciário,
Ministério Público e Conselho Tutelar), regulamentando punições
administrativas, entre as quais o afastamento do dirigente de entidades.
(DE PAULA, 2006, p. 38)
Reconhece, portanto, agentes estratégicos aos quais
ouso agregar profissionais como o assistente social e outros
trabalhadores sociais que atuam nas instituições e têm a obrigação
de atentar para o cumprimento das medidas de forma saudável,
com garantia de integridade e na perspectiva da integralidade.
O respeito à doutrina da proteção integral e à garantia de direitos
envolve conhecer as bases legais e também desenvolver capacidade
crítica. Assim, mais uma vez Garrido de Paula merece destaque:
O sistema de responsabilização, portanto, integra ramo autônomo do
Direito, tendo base normativa internacional e regras constitucionais,
sendo distinguido por princípios próprios, contando com diploma legal
específico (ECA) que o separa das demais subdivisões. Além disso, o
Direito da Criança e do Adolescente encerra disciplina própria, cuja
didática particular determina o aprendizado de suas diferenças. (DE
PAULA, 2006, p. 39)
A análise das normas vigentes que embasam o trabalho dos
profissionais na execução da medida socioeducativa destinada
aos adolescentes que praticaram ato infracional leva a observar
a existência de um sistema formado pelo Estatuto da Criança e
do Adolescente, Lei nº8.069, de 13 de Julho de 1990, e a atual Lei
que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
– SINASE, Lei nº 12.594, de 18 de Janeiro de 2012, como já citado,
e desafia a conhecer processualmente seus trâmites para melhor
orientar e garantir direitos.
139
O SINASE traz como novidade a elaboração do Plano
Individual de Atendimento, no qual deve conter o acompanhamento
realizado pela equipe técnica e os procedimentos realizados com o
adolescente em conflito com a lei para a superação da situação atual.
Segundo a Lei, no seu artigo 52, parágrafo único, o cumprimento
das medidas socioeducativas, em regime de prestação de
serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade ou
internação, dependerá de Plano Individual de Atendimento
(PIA), instrumento de previsão, registro e gestão das atividades
a serem desenvolvidas com o adolescente, e deverá contemplar
a participação dos pais ou responsáveis, os quais têm o dever de
contribuir com o processo ressocializador do adolescente, sendo
passíveis de responsabilização administrativa, conforme previsto
no ECA em seu art. 249.
A atuação profissional na garantia de direitos – participação
da equipe técnica
O PIA é um instrumento que leva o profissional a atuar
mediante um plano pactuado principalmente com o adolescente,
envolvendo também sua família ou responsáveis.
A atuação profissional é também reconhecida no artigo 39,
que determina como uma das peças, que deve conter os autos do
processo, os estudos técnicos, como sinalizado abaixo.
Para aplicação das medidas socioeducativas de prestação
de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade
ou internação, será constituído processo de execução para cada
adolescente, respeitado o disposto nos arts. 143 e 144 da Lei nº8.069,
de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), e
com autuação das seguintes peças:
140
I) documentos de caráter pessoal do adolescente existentes no processo
de conhecimento, especialmente os que comprovem sua idade;
II) as indicadas pela autoridade judiciária, sempre que houver
necessidade e, obrigatoriamente:
a) cópia da representação;
b) cópia da certidão de antecedentes;
c) cópia da sentença ou acórdão; e
d) cópia de estudos técnicos realizados durante a fase de conhecimento
Conforme disposto no artigo 42 do mesmo diploma, no
que se refere à reavaliação da medida, o documento que instrui a
audiência e que dá subsídio à autoridade judiciária diz respeito ao
relatório da equipe técnica; portanto, é importante que o técnico
esteja bem ciente de sua responsabilidade face aos procedimentos
que definirão a medida socioeducativa aplicada. Após revisão, o
parágrafo único do artigo citado deixa a questão bem evidente:
“A audiência será instruída como relatório da equipe técnica do
programa de atendimento sobre a evolução do plano de que trata
o art. 52 desta Lei e com qualquer outro parecer técnico requerido
pelas partes e deferido pela autoridade judiciária”.
Mais uma vez, cabe reiterar a importância de o profissional
ter o domínio do trâmite processual e também destacar a
necessária apropriação técnica e metodológica no trato da
questão, norteada pelo seu compromisso ético-político e legal
sob pena de inviabilizar/postergar acesso a direitos.
O cometimento de ato infracional não está desvinculado
de um processo histórico que, em geral, revela direitos negados.
É importante que se tenha a preocupação de compreender as
circunstâncias jurídicas da situação em questão, em especial
quanto à pertinência da medida socioeducativa aplicada.
Nesse sentido, cabe à equipe e em especial ao advogado que a
compõe buscar informações sobre o processo judicial do qual o
adolescente é parte.
Um dos avanços do reconhecimento do direito se manifesta
nas políticas públicas em particular, na assistência social, quando
141
lhe atribui a responsabilidade de atuar no acompanhamento do
adolescente nas Medidas Socioeducativas em Meio Aberto, seja na
Prestação e Serviços à Comunidade seja na Liberdade Assistida.
Trazendo a ótica da relação familiar e comunitária que a
assistência social tem como matriz de trabalho, essa nova forma
de ver o cumprimento das medidas socioeducativas, sob um novo
paradigma, representa para profissionais que atuam na área o
desafio de desenvolver a visão interdisciplinar e intersetorial e,
mais do que isso, o desafio de “conquistar” o adolescente e orientálo para novas pactuações em sua vida, sendo esse adolescente
protagonista de tal processo. Isso implica desenvolver formas
de trabalho que comecem desde a acolhida – a partir da qual se
espera que o adolescente e sua família sintam-se bem no espaço
de atendimento e reconheçam na equipe de trabalho pessoas
confiáveis – até o momento do cumprimento da medida, o que
exige esforços conjuntos dos diferentes profissionais e atores,
compreendendo as peculiaridades envolvidas e o momento
único em que o cumprimento da medida pode significar o
desenvolvimento de potencialidades e a mudança na trajetória
de vida desse adolescente e de sua família. Assim, a continuidade
do trabalho será facilitada.
Certamente que a demanda, quer do adolescente, quer de
sua família, envolve questões que estão para além da assistência
social, o que impõe ao profissional e à coordenação da unidade
onde o serviço é prestado a necessidade de desenvolver seu
trabalho em articulação junto à rede de atendimento, bem como
a identificação do déficit dessa rede, apontando para a gestão
municipal as necessidades, as demandas, e as possibilidades
para resolução e adequação.
O fortalecimento do vínculo, da confiança entre profissional
e usuário, não se reduz a respostas externas que a rede pode
oferecer; remete, sim, a estudo criterioso do processo de cada
indivíduo e família e, portanto, de planejamento sistemático,
discutido em equipe, mas, acima de tudo, discutido também
142
com muita honestidade e tranquilidade com o adolescente e sua
família, de acordo com a forma pactuada com esses, tornando-os
protagonistas no processo.
Os espaços institucionalizados de atendimento
Os espaços institucionalizados de atendimento precisam
levar em conta diferentes dimensões, sem perder de vista que,
com a Constituição de 1988, alargaram-se as possibilidades
de consolidação de direitos, refletindo no espaço ocupacional
do assistente social, com direcionamento do trabalho para a
viabilização e acesso aos direitos sociais.
Sabe-se que, apesar de as leis apontarem para a direção dos
direitos, elas não são suficientes para a efetivação de políticas
públicas e para a garantia da proteção integral a crianças e
adolescentes. É nesse cenário tenso e tênue que o assistente
social se insere no acompanhamento qualificado e propositivo
aos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa,
em espaços que possibilitem a construção de novos caminhos
e alternativas, em um atendimento dialógico, reflexivo e
propositivo, respeitando seus valores, crenças, anseios e
aspirações; na elaboração de instrumentos que ofereçam
subsídios norteadores para a decisão do judiciário e, mais do que
isso, de instrumentos que demonstrem o trabalho desenvolvido
e estratégias alcançadas para a superação do risco tanto do
adolescente quanto de sua família.
Esse não é um trabalho fácil, pois demanda tempo, esforço,
qualificação, acionamento da rede para oferta de um leque de
opções ao adolescente, entre outras. Trata-se de um desafio
que leva o profissional a refletir quanto à oportunidade de ser
“voz” no processo de acompanhamento dos adolescentes em
cumprimento de medida socioeducativa e, assim, intervir nas
decisões das medidas a eles designadas, mas leva também
143
à construção com o adolescente de sua própria “voz”, no
desenvolvimento do protagonismo necessário a sua vida.
A perspectiva ético-política deve nortear as diferentes
profissões e no trabalho social desafia as diferentes formações e a
busca conjunta de caminhos de acesso ao direito. Nesse sentido,
cabe destacar Alchorne e Maciel (2012), as quais, referendadas em
autores como Iamamoto (2009), Nogueira (2001) e Coutinho (2000),
enfatizam dimensões ético-políticas e teórico-metodológicas para
ação profissional no mundo contemporâneo e destacam o contexto
socio-histórico que vem exigindo a construção de uma nova forma
de fazer política. Essa questão impõe muitos desafios, dentre os
quais a visão da questão social e a
necessidade de acumular forças na construção de novas relações entre
Estado e sociedade civil, de forma a reduzir o distanciamento entre
desenvolvimento econômico e social, apontando para uma cidadania
que considere a capacidade de todos os indivíduos se apropriarem dos
bens socialmente produzidos e para uma democracia que caminhe na
direção emancipadora. (MACIEL, 2012, p.07)
Assim, fica evidenciado que o trabalho social como
garantidor de direitos exige mecanismos éticos e perspectiva
interdisciplinar, em que os saberes específicos de cada formação
profissional, juntamente com as bases legais de cada política,
possibilitem uma atuação que considere o intersetorial, o
interinstitucional e o interdisciplinar para garantir direitos.
Considerações finais
O processo histórico que reconhece direitos tem base
legais que cristalizam o reconhecimento das diferenças entre
adolescentes e adultos diante de um ato infracional e, ainda
que sejam encontradas resistências, estamos diante de uma
nova cultura que desafia a sociedade e o Estado a superarem
144
suas crises, conforme destaca Mundez (2006). Há uma crise de
implementação, reconhecida na impossibilidade de acesso por
parte de muitas crianças e adolescentes a direitos básicos como
saúde e educação, e outra de interpretação, que deve consolidar a
doutrina da proteção integral, reafirmando que adolescentes devem
ser responsabilizados, sim, mas, ao mesmo tempo, oportunizados,
tendo por base o reconhecimento de seus limites que passam pelo
reconhecimento a diferenças, aos diferentes, mas também às suas
potencialidades. Trata-se de um novo padrão civilizatório para
o qual o conjunto de profissionais tem a responsabilidade de
contribuir para o patamar de sociedade, que reconhece e garante
direitos em especial de crianças e adolescentes.
O objetivo na requisição de um especialista deve, então, ser
visto na perspectiva de garantia de direitos, portanto, o fato de
serem oferecidos subsídios técnico-científicos deve ser visto como
forma de possibilitar ao juiz a aplicação da lei com maior segurança,
reduzindo-se a possibilidade da prática de erros e/ou injustiças.
O trabalho realizado e a atuação profissional estão
carregados pelo acúmulo do profissional que o dia a dia
proporciona e pelo projeto de classe. Assim, em seu processo
de trabalho, o profissional precisa constituir a articulação dos
objetos, dos meios de trabalho, das atividades e das finalidades,
tendo clareza da construção histórico-social, que exige, para
sua constituição, uma competência teórico-técnica, política e
ideológica que precisa estar interligada e articulada a outras
formações profissionais.
Além do anteriormente mencionado, considera-se que
o SINASE é um sistema que precisa manter a interlocução
com outros sistemas pelos quais as políticas públicas vêm se
organizando. Nesse sentido, o SUS – Sistema Único de Saúde –
tem responsabilidades no acompanhamento físico e emocional
dos adolescentes que cometerem ato infracional; o sistema
educacional tem a responsabilidade de garantir sua inclusão
na educação, adequando o projeto pedagógico à realidade em
145
que o adolescente se encontra e garantindo a continuidade
da proposta educacional posteriormente ao cumprimento da
medida. No SUAS – Sistema Único de Assistência Social, por
sua vez, esse diálogo tem uma relação intrínseca e permanente,
isto é, antes, durante e posteriormente ao cumprimento
da medida, cabe às equipes técnicas do CRAS – Centro de
Referência da Assistência Social – e do CREAS – Centro de
Referência Especializado de Assistência Social – tornarem-se
referência para o adolescente e seus familiares, quer no território,
quer na rede, que precisa se mobilizar no enfrentamento
das questões que envolvem o adolescente e seus familiares,
possibilitando, assim, o fortalecimento dos vínculos familiares
e comunitários e a visibilidade de novas perspectivas. Para
tanto, é necessária, para além de um esforço profissional, uma
rede que se mantenha fortalecida e articulada, e que compreenda
que é parte integrante no processo do cumprimento da medida
socioeducativa. Ainda é importante destacar a relação com o
meio fechado, reafirmando que o acompanhamento da família
do adolescente em seu território, concomitante ao cumprimento
da medida, é fundamental para que o seu retorno à casa possa
emblematicamente estar permeado de novas pactuações.
Iniciamos a presente reflexão com uma indagação: o
adolescente, a sociedade dos direitos e o trabalhador social:
aonde vai dar tudo isso?
Entendemos que o “aonde vai dar” depende do conjunto
de atores e do que eles constroem no dia a dia de acordo com seu
papel. Os caminhos não podem perder de vista a justiça social,
a responsabilidade de cada um na construção de um mundo
decente para os adolescentes de hoje, os adultos de amanhã.
146
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148
Panorama histórico da atenção à criança no Brasil
João Carlos de Paula 36
Resumo: Este artigo resulta de um publicado em 2005
nos Anais do XIII Seminário de Formação Profissional e
Movimento Estudantil em Serviço Social, promovido pela
Pontífice Universidade Católica de Belo Horizonte sob o título
“Crianças e Adolescentes do Brasil: uma História de Desvalor”.
Retrata a atenção dirigida à criança e ao adolescente ao longo da
história, revelando o desvalor com que sempre foram tratados.
Esse fenômeno vem sendo (re)produzido pelo desrespeito da
sociedade em relação aos seus membros, em especial a essa parcela
populacional. Desse modo, nossa história prossegue carregando o
peso da consequência dos atos praticados e implantados na sua
origem, cristalizando posturas e comportamentos que influenciam
o modo de pensar e agir ao lidar com a essa problemática.
Palavras-chave: criança, adolescente, história, políticas sociais.
Introdução
O objetivo maior deste trabalho consiste em despertar o
interesse do leitor pelo assunto. Trata-se, pois, de um trabalho de
informação propedêutica sem maior preocupação analítica. Busquei
discorrer de forma cronológica e linear sobre a atenção dispensada
aos infantes através do tempo. O recorte temporal abarca da
colonização ao advento do Estatuto da Criança e do Adolescente;
as recentes transformações foram suprimidas por entender que
36
Bacharel em Serviço Social pelo Centro Universitário de Volta Redonda;
Especialista em Docência e Educação para o Pensar pela Universidade Gama Filho;
Coordenador do CREAS/SMASDHH/PMI.
149
merecem um trabalho à parte. Observa-se a coexistência do
paradigma punitivo-corretivo, autoritário e perverso, ainda hoje
presente em nossa sociedade; são reflexos da introjeção secular de
ações moralistas e apolíticas em “defesa do menor”37 . Considerar
fatos passados para compreender a forma como o fenômeno se
apresenta atualmente significa perceber a existência de relações e
conexões entre os diversos momentos e acontecimentos históricos.
Colonização e assistência ao menor
Em 21 de abril de 1500, os portugueses que aqui chegaram
não faziam uma incursão turística, mas objetivavam conquistar
novos mercados. Desse modo, ao aportarem, começava o
processo de aculturação dos aborígines; importava subjugar os
nativos para que pudessem ser mais controlados e submetidos
ao trabalho escravo.
As ações praticadas pelos jesuítas na terra recém-descoberta estavam
radicalmente distantes da cultura indígena. Os jesuítas visavam ordenar
e adestrar as almas indígenas para receber a semeadura da palavra de
Deus, transformando os nativos em cristãos (Assis, 1995, p. 27).
Todavia, a resistência dos índios ao trabalho forçado
levou os colonizadores a importarem mão-de-obra dos negros
africanos, que eram comprados como mercadorias pelos novos
donos das terras e submetidos às mesmas atrocidades que os
índios. Além do uso da força de trabalho, as mulheres, negras ou
índias, foram objetos de prazer dos senhores brancos.
Desses relacionamentos, surgem os primeiros brasileiros.
“Somos filhos da violência e do estupro (...) usados como
combustível nos engenhos”. (MORAES et al., 1991, p. 515). Muitas
também eram as crianças que morriam ainda no ventre materno
37
O termo menor foi usado segundo o conceito das obras pesquisadas, não
correspondendo necessariamente ao meu entendimento
150
pelos maus tratos a que se submetiam suas mães. Muitos abortos
ou perdas eram por vezes bem recebidos como demonstração
da revolta sentida por não poderem gerar filhos a partir de uma
relação desejada, querida e, ainda, como forma de impedir um
futuro sombrio que sabiam aguardar seus filhos. Os donos de
escravos utilizavam uma saída estratégica para se livrarem do ônus
da criação dos filhos de suas cativas, abandonando-os e alugando
suas mães como amas-de-leite, o que proporcionava maiores lucros
com maior rapidez.
No Brasil, desde o “descobrimento” pelos portugueses e
do surgimento dos primeiros brasileiros, “a criança escrava não
era objeto de proteção por parte da sociedade. Sua sina estava
traçada como propriedade individual do senhor seu dono, como
patrimônio e mão-de-obra” (FALEIROS, 1995, p. 224). Como
nesse processo de vida ou de morte, o que importava era o lucro;
esperar sete ou oito anos significava prejuízo financeiro, daí
surgem as primeiras formas de abandono.
O trabalho educacional ou de catequização realizado
pelos jesuítas pode ser considerado uma das primeiras formas
de atenção com as crianças índias, órfãs e enjeitadas no Brasil:
“pode-se dizer que, durante três séculos e meio, as iniciativas em
relação à infância pobre no Brasil foram quase todas de caráter
religioso” (ABRANTES, 1995, p. 194).
Além desse tipo de assistência, surge em 1726, na Bahia,
uma forma alternativa denominada roda dos expostos, modelo
europeu que consistia em um equipamento cilíndrico que girava
através de uma parede e onde se colocava a criança enjeitada ou
exposta, que era recebida por alguém do outro lado, sem que
se pudesse ver quem a colocava nem quem a recebia. Algumas
dessas crianças “permaneciam de um a dois meses na casa
da roda”, quando eram destinadas a famílias que obtinham
pequena remuneração pelos cuidados. Outras ficavam na casa
dos expostos até os sete anos, idade em que se colocavam à
disposição do juiz, que as entregaria a alguma família que
151
desejasse sustentá-las, ou encaminhavam-se os meninos para
a marinha e as meninas para o recolhimento das órfãs, onde
deveriam trabalhar gratuitamente durante sete anos, servindo
ao Estado e recebendo apenas teto e alimentação; “a vida das
crianças abandonadas ou cedidas ao Estado pelos senhores se
configurava noutra forma de escravidão” (ASSIS, 1995, p. 37).
O sistema de roda, embora deficitário, representou um
instrumento importante na história da construção de políticas
públicas de assistência à criança. A partir dela, podem-se
observar a participação da opinião pública, a interferência
dos profissionais de saúde e a reflexão sobre a proposta de
atendimento à criança como ser humano. “As iniciativas do
Estado nesse setor só ganharam relevância a partir do inicio do
século XX, pressionado, entre outros fatores, pelo movimento
médico higienista que se propagou por todos os cantos do Brasil
(...)” (ABRANTES, 1995, p.195).
Em 1903, o sistema de colônias correcionais nos estados da Bahia e
do Rio de Janeiro desde suas origens foram fadadas ao insucesso, em
virtude da característica de ação correcional-punitiva que prevaleceu
sobre a educação da criança e do adolescente.
Somente vinte anos mais tarde surgiram as primeiras
tentativas de elaborar um regulamento para a casa de correção. A
idéia era criar um estabelecimento com previsão de alas separadas
- uma de veio correcional para menores delinqüentes, mendigos e
vadios ‘condenados à prisão com trabalho’ e outra para os demais
presos destinados à divisão criminal (RIZZINI, 1995, p.105).
Entende-se que, até então, não se preconizava a
necessidade de um tratamento singular para cada caso. Meninos
de diferentes níveis de experiências eram expostos juntos a uma
assistência precária. Sendo assim, em mais uma tentativa de
mudança do modelo vigente, foi criado, em 1921, o “Serviço de
assistência e proteção à infância abandonada e ao delinquente”.
Em 1923, instituiu-se o código de menores, que só foi aprovado
152
em forma de decreto em 1927. A partir de então, inicia-se uma
nova concepção de assistência, a começar pela extinção formal
da casa dos expostos e a asseguração de alguns direitos.
(...) o menor de quatorze anos não será submetido a processo penal
de espécie alguma o que tiver idade superior a quatorze e inferior a
dezoito terá processo especial, instituindo-se também a liberdade
vigiada. O trabalho fica proibido aos menores de doze e aos menores
de quatorze que não tem cumprido instrução primária. O trabalho
noturno e aquele considerado perigoso à vida, a saúde e a moral são
vedadas aos menores de dezoito anos. O olhar do juiz deve ser de total
vigilância e seu poder é indiscutido. ( FALEIROS, 1995, p.63).
A referida lei causou contestação por parte de empresários
da indústria, que exploravam a mão de obra infantil. Contraargumentavam que o trabalho era o caminho mais adequado para
tirar os meninos da rua e desenvolver neles o lado profissional e
o senso de responsabilidade. Evidentemente, tal medida incorria
em aumento de custo com seus empregados, uma vez que o
trabalho infantil admitia salário baixo, assim como o baixo nível
de exigência da criança – todos os ingredientes necessários para
a produção da mais-valia.
Industrialização: criação e transformação da Política de
Assistência ao Menor
Na década de 30, o clima de tensão se intensificou no país
e o então governo de Getúlio Vargas, na tentativa de manter
a “ordem social”, dispôs-se a fazer algumas concessões aos
trabalhadores, incluindo, entre outros, a criação de creches e
a implantação do serviço de assistência a menores (SAM), em
1941. Não demorou muito e já estava o SAM reprovado por sua
atuação marcada pela corrupção e pelos maus tratos aos menores,
o que lhe rendeu vulgos do tipo “universidade do crime”.
153
Em 1964, no auge da Ditadura Militar, em substituição ao
SAM foi instituída a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor
(FUNABEM), que objetivava implantar a política nacional do bemestar do menor, mediante o estudo do problema, o planejamento
das soluções, a orientação, coordenação e fiscalização das
entidades que executavam essa política. A FUNABEM, quando
criada, possuía autonomia financeira, técnica e administrativa,
além de ser representada nos estados pela FEBEM. Entretanto, a
partir de 1974, essa autonomia foi se perdendo, quando, com base
na justificativa de que a questão do menor deveria ser tratada
no conjunto das ações sociais, ela passou a ser subordinada ao
Ministério de Previdência e Assistência Social, passando, então,
a transitar desorganizadamente entre os ministérios.
Desse modo, a FUNABEM, que foi criada para executar
uma política de assistência contrária à do antigo SAM, acabou
por reproduzir esse modelo carcerário-punitivo pernicioso ao
desenvolvimento da criança e do adolescente. “(...) A assistência
caminhou no sentido de ajustamento do desviante ao meio,
produzindo a ‘inadaptação’, onde o individuo é responsabilizado
por não se ajustar ao processo produtivo e às normas sociais
dominantes” (RIZZINI, 1993, p.98).
No ano de 1979, aprovou-se o código de menores,
basicamente uma revisão do anterior. A urgência em que se
colocava a necessidade de avaliação do antigo código de menores
perpassava aspectos como a contemplação da criança como
sujeito de direito e a humanização da atenção a ela dirigida. À
parte as discussões que geraram tal perspectiva, o novo código
de menores traz como inovações a eliminação da denominação
“menor abandonado e delinquente” e a manutenção da
responsabilidade penal aos 18 anos e amplia os poderes do juiz
de menores. Algumas das críticas em torno desse dispositivo
atentavam para o fato de que, a partir da nova lei, menores
infratores podiam ser submetidos a medidas penais sem a
necessidade de constituírem-se provas ao suspeito. Para prova
ao contrário, o acusado é que deveria apresentar advogado de
154
defesa e abrir processo, o que seria praticamente inviável para os pobres.
Em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
foi um marco, sancionado a partir da Lei nº8069/90 (Brasil,
1991), fruto de diversos movimentos sociais organizados em
todo o país. Esses movimentos tinham por objetivo explicitar a
falência do modelo de internato aplicado e baseado na correção
e repressão; denunciava, entre outros, a exploração dos menores
por adultos e, ainda, a utilização para roubos e tráfico de droga;
e reclamava uma sociedade mais igualitária e menos excludente.
A partir das diretrizes preconizadas no ECA, pressupõese um redirecionamento da assistência à criança e ao adolescente
no país, considerando-se a humanização dos procedimentos, a
capacitação dos agentes, a modernização das estratégias, a maior
alocação de recursos, a compreensão da infância e da adolescência
como momentos singulares no desenvolvimento desses sujeitos
e a proteção necessária à construção da cidadania.
Os instrumentos de operacionalização do Estatuto são
os Conselhos Municipais de Direitos da Criança e o Conselho
Tutelar. No município, implantar o estatuto inicialmente
requer a instalação do Conselho Municipal, que é constituído
paritariamente por representantes da sociedade cível organizada
e do governo municipal. Para que o Conselho Municipal possa
atingir sua competência, necessita-se de algumas condições,
dentre elas, está a financeira. Dessa forma, atrelada ao Conselho
está a criação do Fundo Municipal, cujos recursos são utilizado a
partir de critérios estabelecidos pelo referido Conselho.
Na composição desse Conselho, deve-se atentar, entre
outros critérios, para o da competência técnica, visto que
terá de lidar com as mais variadas situações, e, ainda, para o
critério político que deverá permear todas as ações. A tríade
compreendida pelo Conselho Municipal, pelo Conselho Tutelar
e pelo Fundo Municipal representa uma condição indispensável
para que o Estatuto se torne uma realidade e avance rumo à
cidadania das crianças e dos adolescentes.
155
Todavia, não é só com boa intenção e adoção de dispositivos
legais que se constrói uma política pública, principalmente
quando essa prática impõe mudanças de atitudes, valores e
compartilhamento de poder. Esse último acaba sendo o maior
dos entraves. Implantar Conselhos e Fundo implica negociar a
hegemonia do poder estabelecido, significa redistribuir o poder.
E a quem vai interessar isso? Justo quem deverá abrir mão dele?
Considerações Finais
Conforme observamos, o fenômeno da exclusão de
crianças e adolescentes pode ser considerado tão antigo quanto o
“descobrimento” desse país. O nascimento dos primeiros brasileiros
evidencia isto: não eram nem brancos nem negros, mas o fruto
da expropriação dos corpos das mulheres escravas. As crianças
enjeitadas e desassistidas começaram a aparecer progressivamente.
Mais tarde, a abolição da escravatura fez engrossar a fila
dos desprotegidos, uma vez que aos negros não foram oferecidas
condições de adaptação ao mundo do trabalho assalariado
e nenhuma qualificação que lhes permitisse concorrer em
igualdade de condições com a mão-de-obra imigrante. Surgem,
desse modo, as favelas e aumentam os marginalizados.
Somando-se a esses elementos, o Brasil industrializado
representou um período de intensificação da pobreza, com alta
taxa de inflação, desemprego, centralização de renda e quase
ausência de políticas sociais. Essa pobreza estabelecida no país
mexeu com os papéis desenvolvidos pelos membros da família.
Dessa forma, os pais, impossibilitados de prover o sustento
da família, acabam por utilizar a mão-de-obra infantil para
contribuir no orçamento.
A revelação desse momento evidencia as razões políticoeconômicas como matrizes da desigualdade, que levou a família,
cuja função cultural é a reprodução das relações primárias – a
156
proteção, o cuidado, o amor –, a impelir seus filhos para a rua
como lugar de luta pela sobrevivência, trabalho e, até, moradia.
Certamente, essa causa primordial é consolidada pela persistente
falta de medidas governamentais mínimas.
Esses acontecimentos reforçaram essa nova e aviltante
forma de viver, que acelerou o desmantelamento da família
nuclear, a partir da exposição dessas a valores morais e sociais
contraditórios. Ocorrem, nesses momentos, grandes mudanças,
que, em geral, são acompanhadas de perdas, as quais possuem um
poder de desarmonia intensa que atinge o ser em sua totalidade.
Vivenciando esse cenário adverso, estão a crianças e
o adolescente que experimentam um momento de transição
com conflitos biopsicossociais próprios; constitui-se, assim, um
frágil elo da cadeia familiar exposto aos apelos da sociedade
de consumo e à “liberdade das ruas”. A rua caracteriza-se pela
ausência de normas, como lugar que tem a marca do desprestígio
e abandono e que, por sua vez, legitima a violência e estabelece
a não cidadania. Na rua, são oferecidos todos os tipos de riscos
travestidos de aventura e liberdade e, nela, os adolescentes
ficam completamente vulneráveis a pessoas inescrupulosas,
desenvolvendo, sob esse referencial, uma identidade e um estilo
de vida, pernicioso a si e à sociedade.
A persistência desse estado de não cidadania e ignorância
é terreno fértil para o crescimento de uma personalidade
violenta, que nada mais é que fruto dessa mesma violência
que lhe é imposta, deixando claro que se tornar uma criança
ou adolescente em situação de rua, um delinquente ou mesmo
assassino, como no caso de muitos, não é e não foi uma opção
consciente, mas um legado histórico de uma nação omissa, que
não valoriza a vida e não soube prever consequências nefastas
para si mesma, ao negligenciar essa situação.
157
Referências bibliográficas
ARANTES, E.M. de M. Rostos de Crianças no Brasil. IN: PILLOT,
F., (Org.). A arte de governar crianças: A história das políticas sociais,
da legislação e da assistência a infância no Brasil. Rio de Janeiro:
Santa Úrsula, 1995.
ASSIS, S.G. de. Trajetória sócio-epidemiológica da violência contra crianças
e adolescentes: metas de prevenção e promoção. Rio de Janeiro, 1995.
Brasil. Ministério da Criança. Projeto Minha Gente. Lei 8069, de
13/06/1990. Estatuto da criança e do adolescente. Brasília, 1991.
FALEIROS, V. de P. Infância e processo político no Brasil. IN:
PILOTT, F., Rizzini, I.(Org.). Arte de governar crianças: A história
das políticas e da legislação e da assistência a infância no Brasil. Rio de
Janeiro: Santa Úrsula, 1995.
MORAES, A.F. ett al. Meninas do rio meninas da rua. Rio de janeiro:
Vozes, 1991.
158
Notas criminológicas sobre juventude e controle social
Roberta Duboc Pedrinha38
Resumo: O artigo retrata as formas de controle
social exercidas sobre a juventude, desde a constituição da
modernidade, através das casas de correção, às atuais, pelas
medidas socioeducativas. Critica a internação e estabelece suas
similitudes com a instituição prisional.
Palavras-Chave: teorias sociológicas, controle social,
medidas socioeducativas, jovens.
Noções introdutórias
O florescimento da vida se dá na fase da juventude. Com
ela, despertam-se as grandes paixões, as emoções desenfreadas
e os impulsos súbitos. No transcorrer dos tempos, em vários
momentos a confluência dos sentimentos, das sensações, dos
38
Advogada. Doutoranda em Sociologia Criminal pela Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (IESP-UERJ). Doutoranda em Direito Penal pela Universidade de Buenos
Aires (UBA-Argentina). Mestra em Criminologia e Direito Penal pela Universidade
Candido Mendes (UCAM). Pós-graduada em Criminologia pela Universidade de Havana
(UH-Cuba). Graduada em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro (UNI-RIO). Professora e Coordenadora da Pós-graduação em Criminologia,
Direito e Processo Penal da Universidade Candido Mendes (UCAM). Professora Convidada
de Direito Penal da Pós-graduação da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Professora
Convidada de Direito Penal das Pós-graduações de Saúde e Gênero da Fundação Oswaldo
Cruz (FIOCRUZ). Professora Concursada de Criminologia do Ministério de Justiça (MJ).
Professora Convidada de Sociologia Criminal dos Cursos de Formação da Academia
Nacional de Polícia do Departamento da Polícia Federal (ANP-DPF-Brasília). Professora
Convidada de Criminologia da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ).
Professora Concursada de Criminologia da Academia de Polícia do Estado do Rio de Janeiro
(ACADEPOL). Professora Convidada do Curso de Operadores do Sistema Sócio-educativo
do Estado. Ex-Avaliadora da Banca Examinadora de Direito e Processo Penal da Ordem dos
Advogados do Brasil – Seção Rio de Janeiro (OAB-RJ).
159
comportamentos e das ações exasperadas dos jovens foi mal
compreendida, particularmente a dos mais pobres.
Desde o fim do século XVII e ao longo do século XIX,
muitos desses jovens foram submetidos a formas de controle
social. Trata-se do controle social de viés institucionalizado,
pelo Estado, através do sistema penal (ZAFFARONI &
PIERANGELI, 1997). A atuação do sistema penal se iniciava com
a criminalização de condutas e se encerrava com o confinamento
em estabelecimentos específicos. Esses eram chamados de Casas
Correcionais e funcionavam como instrumento de reclusão, para
moldar os corpos jovens ao trabalho, inculcando-lhes disciplina.
A respeito da disciplina, pode-se afirmar que
produz, a partir dos corpos que controla quatro tipos de
individualidades, ou antes, uma individualidade dotada de quatro
características: é celular pela repartição no espaço, é orgânica pela
codificação das atividades, é genética pela acumulação do tempo, é
combinatória pela composição de forças. (FOUCAULT, 1996, p. 150)
A institucionalização da disciplina deu-se através de
técnicas de adestramento dos indivíduos, loucos, adultos, idosos,
jovens; ninguém escapava.
As Casas de Correção de jovens consistiam em instituições
absolutizantes, intituladas por Erving Goffman de instituições
totais (GOFFMAN, 1961), que suprimiam as singularidades
dos internos, seus gostos, traços característicos, peculiaridades,
comprimidos pelos rígidos comandos, que aniquilavam suas
identidades. As instituições totais espraiavam-se homogêneas
e englobavam prisões, manicômios, conventos, que se
assemelhavam às fábricas, às escolas, ao exército.
Nessa linha, Melossi investigou na Europa as Casas de
Correção, Bridewells e Workhouses na Inglaterra e Rasphuis na
Holanda, desde o século XVII. Pavarini dedicou-se ao sistema
penal dos EUA, dos séculos XVIII e XIX, à prisão de Walnut Street
em Filadélfia (1790), do modelo do isolamento absoluto, para a
160
prisão de Auburn em Nova York (1818), com a transição para o
modelo do trabalho diurno e do isolamento noturno, para incutir,
paulatinamente, a disciplina. Demonstraram a atuação do cárcere
como fábrica de homem, na relação entre o cárcere e a fábrica, da
ótica punitiva com a produtiva (MELOSSI & PAVARINI, 2006).
Os autores mencionados acima verificaram que
trabalhadores marginalizados eram capturados pelo sistema
penal, para que, através do trabalho forçado imposto nos
cárceres, introjetassem a disciplina necessária ao adestramento
nas fábricas. Os jovens pobres desempregados consistiam em
alvo, pois concederiam o vigor de sua força física, que deveria
ser aproveitado. Logo, o cárcere se constitui enquanto fábrica
não só do velho como do jovem proletariado. Trata-se de uma
relação simbiótica entre cárcere-fábrica, a qual caminha para
fábrica-cárcere. Então, os detidos deveriam ser trabalhadores e
os trabalhadores deveriam ser detidos. Logo, os jovens deveriam
ser trabalhadores-detidos (MELOSSI & PAVARINI, 2006).
Todavia, a internação dos jovens nas Casas de Correção
conduziu a um processo de estigmatização, na medida em que
toda a ampla dimensão da grandeza do ser humano deveria se
restringir apenas ao estigma de apenado. O estigma desqualifica
o seu portador. “A manipulação do estigma é uma ramificação
de algo básico na sociedade, ou seja, a estereotipia ou o ‘perfil’
de nossas expectativas normativas em relação à conduta e
ao caráter.” (GOFFMAN, 1988, p. 61) Dessa maneira, toda
a complexidade afetiva, valorativa, inteligível do jovem era
reduzida à noção de delinquência, que o marcaria por toda a
vida. Afinal, sabe-se que, mesmo após cumprir a pena, o estigma
de ex-detento acompanhará o jovem, obstará sua inserção social,
impossibilitará sua subsistência e seu ingresso no mercado de
trabalho. Trata-se de uma neutralização (PEDRINHA, 2009) que
o encaminhará para reincidir.
Nessa linha, constata-se a importância de se evitar a
internação dos indivíduos em instituições totais, e especialmente
161
a dos jovens, o que macularia suas formas de socialização. Todavia,
durante muito tempo, buscou-se apresentar justificativas para
o seu confinamento nas Casas de Correção e comportamento
desviante, desde fins do século XVIII e ao longo do século XIX,
com o Positivismo Criminológico. Porém, foi apenas no início
do século XX que, paulatinamente, algumas teorias sociológicas
e novos aportes criminológicos foram traçando um novo
paradigma diante da questão da juventude.
Teorias sociológicas e aportes criminológicos no estudo da juventude
No limiar do século XX, vários estudos se destacaram
a respeito do comportamento dos jovens, para deslindar a
ocorrência de desvios. Partiam de uma concepção etiológica,
pautada na análise causal explicativa do fenômeno delitivo.
Vale conferir os ensaios das bases sociológicas das Ciências
Sociais Americanas, a respeito da “delinquência juvenil”. Assim,
sublinham-se as análises da Escola de Chicago, em sua primeira
fase, de 1915 a 1940, com a colaboração de Robert Park, em
1934. Atribuíam o desvio à desordem urbana, ao caos social, à
desorganização da sociedade, diante do exponencial aumento
da população, com a chegada de imigrantes estrangeiros, bem
como judeus sem pátria e negros vindos do sul dos EUA. Nesse
diapasão, foram salientadas a posição de externalidade dos
grupos internacionais e a dificuldade de adaptação dos diferentes
grupos étnicos e culturais, especialmente quando referente aos
jovens, muitas vezes sem identidade (MANNHEIM, s/d).
Em seguida, autores como Cohen, Cloward, Ohlin
e Thrasher apresentaram pesquisas acerca das gangues de
adolescentes e adultos jovens, cujas idades relatadas variavam de
14 a 30 anos. Nessa gama, estabeleceram os fatores criminógenos
de grupos etários jovens, do sexo masculino. Thrasher enfatizou
os desvios oriundos de uma juventude desprivilegiada, localizada
162
nas grandes cidades, em ambientes desfavoráveis, cuja linguagem
da brutalidade com recurso à violência estava em evidência. Para
Cloward e Ohlin, uma gangue de jovens correspondia a um tipo
específico de aprendizagem para o subsequente desenvolvimento e a
sedimentação da carreira criminosa. As gangues consubstanciavamse em grupos sociais não coesos, que na sua organização encontravam
o apoio de que necessitavam e a lealdade de que precisavam entre
seus membros (MANNHEIM, s/d).
A Escola Sociológica Francesa também ofereceu sua
contribuição para pensar a delinquência juvenil. A Teoria
Estrutural Funcionalista da Anomia, de Émile Durkheim, revelou
o declínio da solidariedade social, a ausência de pauta normativa,
o excesso de normas ou, ainda, o excesso de crimes. Nesse ínterim,
a pena inferia uma reação da coletividade. Contudo, um pequeno
grau de crime era considerado normal em uma dada sociedade. Em
seguida, Robert Merton estabeleceu a diferença entre os padrões
culturais almejados e os meios sociais institucionalizados, em que
os indivíduos, ainda que de modo transverso, para atingir aos
fins culturais, na impossibilidade de acesso pela estrutura social,
através da inovação desviavam (FALBO e NICODEMOS, 2009).
Nessa diretriz também se incluíam os jovens, que se fascinavam
pelo padrão cultural difundido.
Já mais recentemente, na segunda metade do século XX,
nota-se de grande relevância a contribuição, mais precisamente
na década de 60, dos trabalhos de Howard Becker, a respeito do
fenômeno da rotulação na construção do desvio. Esse informa
que o desvio, que consiste na dificuldade de obedecer às regras,
não é qualidade do ato. É ato qualificado como criminoso, através
de rótulos, ou seja, de etiquetas que são atribuídas a alguém.
Desse modo, os jovens dos segmentos sociais mais pobres são
os que se revelam mais vulneráveis, logo, aptos a receber tais
rótulos de desviantes. Por conseguinte, o caráter criminoso do
comportamento não é uma característica da ação, mas uma
qualidade conferida ao comportamento pelo controle social.
Portanto, trata-se de reação da sociedade e do Estado.
163
Nessa esteira, como bem lembra Sack, há uma filtragem da
população criminosa, sendo pinçada pelo sistema penal apenas
a integrante do estrato social mais baixo, posto que existe aquilo
que Sutherland chamou de cifra dourada da criminalidade, dos
desvios dos ricos, que permanecem despercebidos. Nesse viés,
a Teoria da Meta-Regra alerta que não é pelo desvio ao tipo
penal que se determina a criminalização de uma conduta, ou
seja, apenas pela violação à regra, e sim pela Meta-Regra, que
é mecanismo no psiquismo do operador, que aposta na posição
social do autor para criminalizá-lo (ANITUA, 2008).
Finalmente, para a Criminologia Crítica, oriunda dos
fins da década de 60 e início da década de 70, o comportamento
desviante do jovem é considerado normal, só merece atenção nos
casos de elevado grau de violência. Por conseguinte, afirma que os
jovens cometem ao menos um ato infracional, mas fica camuflado
na cifra oculta da criminalidade. Conforme a Criminologia
Crítica informa, o comportamento antissocial também pode ser
necessário ao desenvolvimento humano; portanto, assevera a
teoria da normalidade do desvio na adolescência. Na mesma linha,
tece crítica ao controle social, que se exerce através das medidas
socioeducativas rígidas, como a internação, pois é inútil no que
diz respeito à prevenção e danosa no que tange à retribuição.
Aspectos relevantes do controle social nas legislações nacionais
Após uma singela retomada das teorias sociológicas e
aportes criminológicos referentes à juventude e ao desvio, vale
a pena realizarmos uma breve digressão para a reconstrução
do processo histórico das legislações republicanas brasileiras
ao longo do século XX, que passaram a incluir as crianças e os
jovens em diferentes formas de controle social. Inicialmente, a
Justiça de Crianças deu-se através da Vara de Órfãos, de 1907
a 1914, que funcionava abrangendo, em sua maioria, meninas,
164
através de uma agência de serviços domésticos. Foi em 1923 que
surgiu a Justiça de Menores, a qual criou o Juizado de Menores,
que atuava através de seus Comissários da Vigilância. É dessa
época que remonta o Código de Menores.
Cumpre assinalar que o termo “menor” foi definitivamente
associado à criança e à juventude pobre (BATISTA, 1998, p. 60).
No Brasil, no século XX, os jovens passaram a ser chamados
pejorativamente de “menores”. Acompanhou-se um processo de
transformação do “menor” carente em “menor” infrator, apto à
incidência do controle social.
No período do Estado Novo, de 1930 a 1945, foi criado
por Getúlio Vargas o Serviço de Assistência ao Menor (SAM),
instrumento de política social com uma infraestrutura planejada,
junto à implantação de vários programas como LBA, Fundação
Darcy Vargas, Casa do Pequeno Jornaleiro, Casa do Pequeno
Lavrador e a Casa das Meninas. O declínio do SAM deu-se com o
aumento da repressão; de 1945 a 1964, com internação por tempo
necessário à reeducação, funcionou como uma instituição total,
com maus tratos e torturas (BATISTA, 1998).
Com o Golpe Militar de 1964, adveio a Lei 4.513 de 1964,
que delineou a Política Nacional de Bem Estar do Menor e o
novo Código de Menores, através da Lei 6.697 de 1979, dirigido
aos menores em situação irregular.
Em detalhada pesquisa realizada, referente a esse período
da ditadura militar brasileira, de 1964 a 1979, Gutemberg
Alexandrino Rodrigues (2001) demonstrou a face oculta da
menoridade e retratou o controle social incidente através das
formas de institucionalização pela Fundação Estadual do Bem Estar
do Menor (FEBEM) e Fundação Nacional do Bem Estar do Menor
(FUNABEM), previstas no Código de Menores. O autor discutiu
os excessos da institucionalização com maior rigor repressivo, que
não apontava direito algum à criança e nem mesmo à presença de
advogado ou defensor, semelhante a um processo inquisitorial.
165
De acordo com Maria de Fátima Migliari (MIGLIARI,
1993, p. 67), há conexão entre a criação dos órgãos executores
nacionais e a doutrina de segurança nacional, difundida pela
Escola Superior de Guerra (ESG), em que a juventude pobre era
relevante para a defesa do Estado. Assim, a FUNABEM deveria
propagandear a ideologia de defesa nacional, difundindo-a para
disciplinar e punir os menores.
Vera Malaguti Batista, em sua original pesquisa, retratou
o olhar seletivo incidente sobre a juventude pobre. Narrou casos
de delações, de denúncias anônimas e de detenções em blitzen,
que ilustravam a prática do autoritarismo em face dos jovens.
Enfatizou a intitulada “atitude suspeita”, que carregava forte
conteúdo de estigmatização. Cunhada pelo controle social, que
variava suas nuances até atingir as formas mais repressivas, como
as internações no Instituto Padre Severino ou em Sanatórios, com
sessões de sonoterapia e eletrochoques.
A autora averiguou processos do Juizado de Menores,
de 1968 a 1988. Neles, constatou a crescente criminalização
da juventude pobre, inicialmente por violação ao patrimônio
e depois por drogas, em razão da Lei 5.726 de 1971 e, depois,
da Lei 6.368 de 1973. Observou que em 1968 cerca de 7% dos
adolescentes estavam envolvidos em atos infracionais, por tráfico
e consumo de drogas, e que em 1988 16%, sendo em ambos os
intervalos de tempo, em sua maioria, jovens do sexo masculino,
pretos e pardos, com escolaridade concentrada entre analfabeta
e primária; sendo a moradia em favela a categoria que duplicou
no mesmo intervalo de 20 anos da pesquisa. Contudo, constatou
não haver casos de sentenças pesadas para adolescentes de
classe média (BATISTA, 1998, p. 105 e 124 a 134). Hoje, sabese que aproximadamente mais da metade dos atos infracionais
decorrem das drogas39 .
39
http://coletivodar.org/2011/07/trafico-de-drogas-ja-e-o-crime-mais-cometido-por-adolescentes/
166
Vera Malaguti, além dos processos dos operadores
jurídicos, mapeou os diagnósticos, relatórios e pareceres, repletos
de conteúdo moral dos operadores sociais, que traziam descrições
de duvidosa cientificidade, como sintomatologia depressiva
neurótica, personalidade mal plasmada e inadaptabilidade social,
para descrever e explicar os comportamentos desviantes e afirmar
as punições com funções correcionais (BATISTA, 1998, p. 118 e 119).
A seletividade imperava na atribuição de carga negativa atribuída
às famílias pobres, que não se amoldavam à família padrão, bem
constituída, de classe média alta, branca e proprietária, sendo as
demais rotuladas como família desestruturada, família ilegalmente
constituída e estrutura de família irregular. A seletividade se
difundia por todo o sistema penal, reproduzindo as desigualdades
do sistema social. Nesse aspecto, estriba-se uma permanência da
categoria seletividade, na contemporaneidade.
Juventude e controle social na atualidade brasileira
No interregno do século XX, das diversas legislações
pátrias às atuais, há algumas permanências. Contudo, brotam
relevantes rupturas. A Constituição da República Federativa
Brasileira de 1988 retirou o termo “menor”, bem como sua
percepção pejorativa. Ademais, junto ao Estatuto da Infância e
da Adolescência, a Lei 8.069 de 1990 imprimiu nova concepção
ao caracterizar a Justiça da Infância e da Juventude, bem como
a Vara da Infância e da Juventude. Logo, atualmente, tem-se o
jovem em conflito com a lei, não se fazendo mais uso da acepção
“delinquente juvenil”.
Cumpre rememorar que o conceito de “delinquência
juvenil” adveio da expressão usada na Inglaterra, de tempos
idos, desde 1815, a partir de um caso que julgou cinco meninos
de 12 anos de idade. Então, essa noção de “delinquência juvenil”
expandiu-se pelo mundo (LEAL, 1983). Inseridos na perspectiva
167
etiológica, alguns autores brasileiros apontam e explicam a
“delinquência juvenil” a partir dos fatores exógenos e descrevem
seus elementos característicos.
Nessa esteira, merece destaque: pobreza, ruptura dos
laços de família, maus tratos, abandono moral, privação material,
ausência de figura paterna, falta de escolaridade. Certos autores
mencionam ainda a presença dos fatores biopsicossociais do
jovem, que muitas vezes o conduzem aos atos antissociais,
cujos mais comuns colocam-se contra o patrimônio, como furto
e roubo, além do uso e tráfico de drogas (LEAL, 1983). Além
desses tipos de desvios, entre os jovens reprimidos pelo controle
social, encontram-se casos de: permanência na rua, absenteísmo
escolar, emprego de linguagem obscena, mendicância, vadiagem,
rebeldia, não sujeição aos pais e inadaptação, taxados como
delinquência juvenil.
Todavia, o renomado professor titular da Universidade
Federal do Paraná, Juarez Cirino dos Santos (SANTOS, 2000),
adverte acerca do emprego dessa terminologia, bem como a de
“adolescente infrator”, comumente empregada. Afirma que a má
qualidade dirigida ao sujeito apresenta traço ou característica
pessoal negativa, que contrasta o jovem desviante do comum,
quando a infração é ação comum. O autor refuta o modelo
meramente causal-explicativo dirigido à juventude. Tece críticas
à criminalização da juventude por condições sociais adversas,
entendendo o comportamento antissocial como normal e, muitas
vezes, necessário. Ratifica que se deve levar em conta que a
qualidade de infrator não é intrínseca aos adolescentes. Trata-se
de um rótulo atribuído pelo controle social, em razão da posição
social desfavorável, decorrente da desigualdade estrutural em
que estamos imersos (SANTOS, 2000).
Hoje, a Constituição Republicana Federativa Brasileira
em seus artigos 227 e 228, bem como o Estatuto da Criança e
do Adolescente previsto na Lei 8.069 de 1990 são diplomas
que priorizam as crianças e jovens. Logo, assiste-se a um
168
grande desajuste entre o previsto nas legislações apontadas
e os mecanismos perpetrados pelo controle social. Ou seja, o
Estatuto propugna uma política de proteção integral à criança
e ao adolescente, absoluta e irrestrita. O critério infanto-juvenil
necessita de uma abordagem especial, já que se trata de um ser
em formação, em estado de desenvolvimento.
Portanto, o jovem e a criança devem ser percebidos como
sujeitos de direitos. Entretanto, ocorre uma negação dos direitos, por
variáveis intervenientes e em face da condição de classe do sujeito,
variável independente (FALBO e NICODEMOS, 2009). Registrase que cabe à União, aos Estados e aos Municípios o atendimento
aos direitos dos jovens, em consonância com o artigo 86 do
Estatuto; daí a necessária implantação de ações governamentais,
conjuntamente articuladas às ações não-governamentais.
Cumpre ressaltar que os jovens não são autores de crimes;
podem cometer um ato infracional. Esse consubstancia-se em
uma nova categoria jurídica, produzida por jovem, quando ocorre
ameaça ou lesão a um bem jurídico, mas que difere do termo crime.
Trata-se de um ato análogo ao descrito como delito, mas configurase enquanto ato infracional, como prescreve o artigo 103 do
Estatuto. Nesse diapasão, esses comportamentos não têm o condão
jurídico da aplicação da pena, pois a inimputabilidade do jovem,
pela ausência de maturidade, exclui a reprovação de sua conduta,
elimina a culpabilidade e, por sequência, o próprio crime.
Logo, os atos infracionais apresentam consequências
jurídicas que diferem da pena. Configuram-se nas chamadas
medidas protetivas e nas medidas socioeducativas. As
primeiras destinam-se às crianças (com idade de zero a doze
anos incompletos) e aos adolescentes (com idade de doze anos
completos a dezoito incompletos), cumulativamente, previstas no
artigo 101 do Estatuto. São medidas protetivas: encaminhamento
aos pais mediante termo de responsabilidade; orientação, apoio
e acompanhamento temporário por equipe interdisciplinar,
matrícula e frequência obrigatória em estabelecimento de Ensino
169
Fundamental; inclusão em programa comunitário de auxílio à
família, criança e adolescente; requisição de tratamento médico,
psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial;
inclusão em programa de auxílio, orientação e tratamento a
alcoolatras e toxicômanos; colocação em abrigo temporário; e
colocação em família substituta (FRANCO & FELTIN, 2002).
As segundas destinam-se apenas aos adolescentes e estão
descritas no artigo 112 do Estatuto. São medidas socioeducativas:
a advertência ou admoestação verbal reduzida a termo, como
disparado pelo artigo 115; a reparação de danos, com fulcro no
artigo 116, em que os pais deverão restituir a coisa; a prestação
de serviços à comunidade, por até seis meses, em entidades
assistenciais, com no máximo 8 (oito) horas semanais, consoante
às aptidões dos adolescentes, elencada no artigo 117, cuja falta
de programas recebe largas críticas; a liberdade assistida, com
determinação no artigo 118, cuja ausência de orientadores
capacitados, designados pela autoridade para acompanhar
o caso, coloca-se como grande problema contemporâneo; a
semiliberdade descrita no artigo 120, como forma de início de
cumprimento medida ou ainda como transição para o meio aberto,
com escolarização e profissionalização, sem tempo determinado.
A questão é que, em geral, faltam vagas e as entidades localizamse muito distantes das casas de origem dos jovens; e, por fim, a
internação, medida extrema de restrição da liberdade, em caso
de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência,
ou reiteração de infração grave, ou descumprimento reiterado
e injustificável de medida imposta, com lastro no artigo 121 do
mesmo diploma legal (TAVARES, 1997).
A internação deve ter a natureza de excepcionalidade e ser
aplicada com brevidade, somente para jovens com idade dos 12
anos completos aos 18 anos incompletos, sendo prevista em seu
prazo máximo pelo período de três anos ou compulsoriamente,
quando o jovem completar 21 anos. Cabe notar a discrepância
diante do modelo alemão, que se dirige à aplicação de tais
medidas apenas aos jovens com idade superior aos 14 anos
170
completos até os 18 anos incompletos. Há a previsão da internação
provisória, pelo período máximo de 45 dias. A internação é uma
solução apresentada pelo Estado que se dá através do controle
social institucionalizado punitivo, mas na prática simboliza uma
escolarização às avessas, pois se coloca como punição, assemelhase em tudo à prisão.
Entre as críticas à prisão (BITENCOURT, 1993,
p. 63) destacam-se: insalubridade; propensão a doenças
(respiratórias, sexuais, alérgicas, dermatológicas, mentais e
emocionais); problemas psicossociais (autoafirmação agressiva,
comportamento subalterno de assujeitamento, rebaixamento da
autoestima, depressão, estado permanente de ansiedade, sensação
de desespero, alteração ou mesmo anormalidade da linguagem,
tendência ao alcoolismo, tabagismo e uso de outras drogas ilícitas,
perda de expectativa em face do futuro, perda do sentido de
responsabilidade, afastamento do meio social, distanciamento ou
mesmo perda da convivência familiar e do vínculo com amigos,
alterações ou até redução da afetividade, restrição ou privação da
sexualidade, perda do gerenciamento da própria vida); ociosidade
(pois não há atividades a desenvolver); estigmatização social;
subcultura carcerária; impotência diante dos excessos cometidos
com os familiares, quando da “revista”; isso sem considerar os
frequentes castigos impostos pela administração dos presídios
e espancamentos, que se caracterizam em torturas físicas e
psicológicas, que geralmente não aparecem nas estatísticas.
Se a prisão destinada aos adultos conserva características que
lhe impõe várias formas de sofrimento físico e mental, a internação
destinada aos jovens revela as mesmas incompatibilidades, frente à
natureza de reclusão, ao impossibilitar a concretização das garantias
referentes à dignidade da pessoa humana, particularmente
daquelas ainda em formação e desenvolvimento. Logo, destaca-se
a função de retribuição (em consonância à teoria absoluta), pelo
intuito de impingir dor, sofrimento ao interno. Ignora-se a função
de prevenção especial ou individual positiva (correspondente
à teoria relativa), de ressocialização e reintegração do interno,
171
conflitiva com o confinamento pelo afastamento da sociedade.
Porém, reforçam-se metas ou funções informais, como disciplina
e segurança (THONPSON, 1980). Assiste-se à maximização da
vigilância, ao gerenciamento absolutizante da vida e à aniquilação
da personalidade (PEDRINHA, 2010). Logo, como na prisão, na
internação os jovens desaprendem os valores da vida social e da
condição humana. Por conseguinte, a internação deveria chamarse medida de dessocialização.
Vale notarmos, em abordagem filosófica e criminológica, a
perspectiva do tempo na internação. O prazo máximo de duração
é de três anos. Embora apontado como lapso curto, caracterizase, verdadeiramente, como longo período, pois trata-se de outra
dimensão de atuação, na escala proporcional à juventude. Logo, a
conjugação do elemento temporal tem um peso diferenciado. Na
vida em sociedade, extramuros, o tempo é valorizado, percebido
de modo acelerado. Predomina a máxima “time is money”. Em
contraposição, na vida confinada imperam a imobilidade, o ócio;
o tempo não passa; reverbera a morosidade das instituições
jurídicas. Há estagnação, como se os relógios travassem no instante
do desvio, como se o futuro não tivesse perspectiva (PEDRINHA,
2011). O tempo é incorporado à pena como antivalor, como tempo
morto (GOIFMAN, 1998, pp. 14-16). A instituição captura o tempo
no passado e o indivíduo vive a sua rememorização (MESSUTI,
2003), principalmente quando se tem o frescor e vigor da juventude,
o auge do esplendor físico, a intensidade dos desejos. Trata-se de
um tempo mágico que jamais voltará. Esse reverbera a ansiedade,
o desejo de liberdade e de vida do jovem. Logo, se o tempo
integra-se à medida-castigo, para o jovem a amplia, alterando-a
qualitativa e até quantitativamente, prolongando-a bem mais, na
constituição de sua maior severidade. Assim, modela-se como
um sofrimento no “presente-perpétuo”, pois, se para quem está
no inferno um minuto é lento, para quem nele está jovem cada
segundo é a eternidade.
172
Considerações Finais
Contemporaneamente, assiste-se ao flagrante desrespeito
à Constituição Republicana Brasileira e ao Estatuto da Criança e
do Adolescente, no exercício do controle social, em que, frente às
desigualdades da estrutura socioeconômica, milhares de jovens
pobres são etiquetados e rotulados de infratores e superlotam os
estabelecimentos de internação.
Vale destacar que cerca de mais de 2/3 (dois terços) dos
atos infracionais são de delitos de bagatela, como furto, dano e
lesão corporal leve. Cerca de menos de 1/3 (um terço) dos atos
infracionais apresentam mais agressividade, como roubo e lesão
corporal grave. Raramente aparece o homicídio, pois só 3% dos
atos infracionais são hediondos40 .
Cabe uma crítica contundente ao Poder Judiciário, que
não aplica as medidas socioeducativas, as múltiplas medidas
não privativas de liberdade, uma vez que, reiteradamente, fixase na internação. Na prática, não se pode distinguir a medida
socioeducativa de internação da própria prisão, aplicável aos
adultos imputáveis, autores de crimes, por ambas terem natureza
segregadora, estigmatizante e de confinamento.
Além dos excessos cometidos pelas medidas
socioeducativas, que por eufemismo intitulam de internação a
prisão, travestindo de medida uma sanção, assiste-se ainda à
profusão de campanhas de redução da maioridade penal em que
se estima uma elevação para mais de 30 mil internações, mesmo
frente às críticas dos penalistas e defensores de direitos humanos
(LINS E SILVA, 2007); buscam ainda no Congresso Nacional
ampliar o prazo de internação.
Notadamente, ocorre a ausência da chamada prevenção
primária, com incidência lenta, de longo prazo, por políticas
40 h t t p : / / w w w . g a z e t a d o p o v o . c o m . b r / v i d a e c i d a d a n i a / c o n t e u d o .
phtml?id=1371530&tit=Apenas-3-dos-delitos-cometidos-por-jovens-sao-graves.
173
públicas sociais, através da educação, da saúde, do lazer, da
cultura e dos esportes. Sabe-se que essa verdadeira prevenção
já encontra guarida na execução do projeto constitucional que
prevê a consolidação de uma sociedade mais justa e igualitária.
Contudo, não é por essa razão que a internação como forma de
controle social institucionalizado se exerce, mas, sobretudo, para
seletivamente criminalizar e punir, ainda que por ato infracional e
medida socioeducativa de internação, a juventude pobre.
174
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177
A mediação e o sistema socioeducativo
Flávia Gallo 41
Glória Mosquéra42
Resumo: Este trabalho busca apresentar o papel da mediação
como possibilidade de nova significação das relações sociais,
valorizando e encorajando a cooperação através da facilitação
da comunicação. Dessa forma, assinalamos a importância da
introdução dos procedimentos da Mediação nos Departamentos
Socioeducativos. Apresentamos os princípios fundamentais da
Mediação, nossa experiência como mediadoras e nossa visão
sobre a eficácia desse procedimento. A ideia não é ser pontual
e adotar uma atitude assistencialista ou autoritária, mas propor
considerações sobre ações e suas consequências, com base em
princípios de autonomia e equidade. A reflexão possibilita a
mudança da lógica determinista, promovendo abertura para
discussões capazes de desestabilizar as posições defendidas e
possibilitando o surgimento de outras histórias.
Palavras-chave: Mediação de conflito, autonomia e socioeducação
41
Especialista em Psicologia Jurídica UERJ; Psicóloga SEAP desde 1998;
Mediadora do TJRJ; Integrante do Espaço Rio Mediação. Formação em Psicanálise pela
Escola Brasileira de Psicanálise MF. Psicóloga UFMG. [email protected],br
42
Psicóloga, Terapeuta de Família, Mediadora, Docente da Pós-graduação em
Mediação na Faculdade Candido Mendes, Instrutora de Mediação formada pelo CNJ,
integrante da Comissão de Mediação da OAB RJ e Integrante do painel de Mediadores
do TJ RJ. [email protected]
178
Introdução
Reforçar e desenvolver novos métodos de resolução
pacífica de conflitos demonstra ser um potente caminho para
ampliar a cultura de paz, tornando-a mais abrangente. Diversas
pesquisas ressaltam que um dos obstáculos para atingirmos o
ideal de pacificação das relações sociais é a forma como vemos
e lidamos com o conflito e seus desdobramentos. Pensadores
contemporâneos têm se ocupado dessas questões de forma
intensa e constante, pois o conflito é uma realidade presente
na vida de relações e faz parte da nossa natureza; por isso,
precisamos entendê-lo melhor. Os estudos sobre cooperação são
imprescindíveis na contextualização desses conceitos, na medida
em que demonstram que o conflito está presente em nossa
sociedade pelas dificuldades de comunicação e pelo desinteresse
na cooperação (SENNET 2012).
Compreendemos a realidade conflituosa da sociedade
contemporânea quando consideramos o ponto de vista histórico,
visto que ficamos centenas de anos tendo nossa individualidade
negada em prol de uma total dedicação a um ser maior ou à
vida que estaria por vir; destarte, entramos no mundo moderno
sentindo urgência em viver o individualismo. Como consequência,
na atualidade, vivemos em uma sociedade que “desabilita” as
pessoas da prática da cooperação. Para cooperar, necessitamos
desenvolver habilidades e capacidades, a fim de entender e mostrarnos receptivos ao outro e, assim, agir em conjunto. Para tal, faz-se
necessário focar nossa atenção fora de nós mesmos, no outro.
Quando tentamos reunir pessoas de interesses diferentes
ou conflitantes, que não se sentem bem em relação umas às
outras, que são desiguais e que têm como desafio final reagir
nos termos do outro, teremos aí, em linhas gerais, a maior
tarefa da gestão de conflito. Ou seja, é preciso “trabalho” para
desenvolver a capacidade de foco no outro. Averiguamos como
resultados desse processo, quando conseguimos a cooperação
179
entre os diferentes, a sustentação das relações nos momentos de
infortúnios e nas reviravoltas da vida e a responsabilização dos
indivíduos e dos grupos por suas ações; para tal, faz-se necessária
a elaboração de nossos atos. A compreensão de nós mesmos é o
que conseguimos com tipos mais exigentes de cooperação.
Lidar com o conflito de maneira produtiva consiste em
reagir aos outros nos termos elencados por eles próprios. Essa
capacidade de ser receptivo ao outro, mesmo na diferença, é
considerada como disposição ética, um estado de espírito que
trazemos em nós como indivíduos. No entanto, essa habilidade
surge da atividade prática e não é, em absoluto, inerente à condição
humana. A difícil tarefa de cooperar com aqueles que diferem
sempre foi algo raro. A metodologia da Mediação de Conflitos,
enquanto técnica inserida nesse contexto, terá como objetivo básico
facilitar a comunicação entre as pessoas e, consequentemente,
possibilitar o desenvolvimento da capacidade de cooperação.
O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
(SINASE), em seu artigo 35, versa que seja dada prioridade
a práticas ou medidas que sejam restaurativas, favorecendo
meios de autocomposição de conflitos. Dessa forma, o SINASE
reforça a proposta do Estatuto da Criança e do Adolescente –
ECA – que tem, dentre seus objetivos, o de regular a medida
socioeducativa, traçando diretrizes para que ações públicas se
tornem um conjunto articulado de ações globais, incluindo o
jovem em conflito com a lei na sociedade de maneira produtiva e
ampla. Esses serviços e programas deverão ser inovadores, cujo
objetivo primordial deverá estar pautado no atendimento de
excelência a essa população. Sabemos que os projetos pontuais e
as emergências, em geral, interrompem o processo de construção
de um estado Democrático de Direito; assim, faz-se necessário que
novos mecanismos sejam implantados e tenham continuidade.
180
Nova possibilidade
Acreditamos que a Mediação de Conflitos será uma
ferramenta crucial que contribuirá para a garantia de direitos do
jovem em conflito com a lei e sua rede de pertinência. Apostar na
potencialidade desses atores é construir, junto a eles, as políticas
públicas necessárias à garantia de seus direitos, considerando seus
anseios, desejos e necessidades. Edificando processos coletivos de
funcionamento e problematizando as situações rotineiras, iremos
avançar. Para tal, faz-se necessário localizar iniciativas e incentivar
outras ações, visando a um atendimento integrado que possibilite
a Construção de processos coletivos de funcionamento.
O trabalho realizado pela Mediação deverá incluir os
diversos atores envolvidos nessa seara, promovendo a interação do
servidor, adolescente, família e comunidade. Dessa forma, estaremos
ampliando os serviços da rede como um todo, estimulando parcerias
e movimentos, articulando outras possibilidades transformadoras.
A inauguração dessa nova modalidade de integração,
proposta pela Mediação, traça outra diretriz, diferente daquela de
outrora em que a medida de internação, imposta ao adolescente
em conflito com a lei, assemelhava-se à pena de suplício.
Percebemos que essa medida socioeducativa é eficaz quando
se trata de excluir e segregar, mas falha quando visa à transformação,
inclusão e garantia dos direitos dos adolescentes em conflito com
a lei. Constatamos a deficiência no sistema Socioeducativo quanto
à inclusão social para além dos muros da instituição. A medida é
inoperante quando se trata de incluir e educar.
Novos dispositivos que provoquem rupturas à exclusão
desses jovens deverão estar aliados às práticas coletivas, sendo
constantemente reafirmados. O respeito à diferença deverá ser
valorizado por ser alicerce na construção do diálogo. A qualidade do
serviço prestado deverá ser responsabilidade de todos – servidores,
adolescentes, familiares, acadêmicos, enfim, da sociedade em geral.
181
Sobre a técnica
A mediação é um processo pelo qual um terceiro imparcial
facilita a comunicação entre pessoas em conflito, habilitando-as a
assumir controle de suas vidas e a encontrar soluções que sejam
compatíveis aos seus interesses e necessidades. A mediação
é um processo voluntário, informal, no qual o mediador, ou
mediadores, fortalece as partes, motivando-as a solucionar a
lide. A participação no processo é voluntária e sigilosa. O terceiro
imparcial deverá ser especialmente treinado, tendo como objetivo
fundamental facilitar a comunicação entre as pessoas que se
encontram em conflito e possibilitando o restabelecimento do
diálogo. Como procedimento técnico, a Mediação deverá ocorrer
em local reservado, podendo ocorrer em diversos encontros.
Na primeira sessão, deveremos apresentar o método,
explicando os procedimentos e assegurando de que as pessoas
estão presentes por livre e espontânea vontade, pois a Mediação
implica a voluntariedade.
O Mediador jamais deverá impor uma decisão, a autoria
da solução será sempre das partes em conflito. Sendo esse
processo confidencial, os atores envolvidos não poderão servir de
testemunha em processos jurídicos. O procedimento é informal
(não há produção de provas); as partes deverão observar as
regras fundamentais para participarem do processo. Cada um
falará apenas na sua vez e o mediador deverá controlar o tempo
da fala com precisão, dando oportunidade para que todos falem
com a mesma medida de tempo. A mediação será desenvolvida
em conjunto, com a escuta atenta, sem interrupções, e o uso de
uma linguagem sempre neutra e não agressiva.
Nesse processo, visando à cooperação entre as partes,
faz-se necessário certo manejo para que os medianos se sintam
acolhidos. Esses deverão estar à vontade e o mediador deverá
acreditar no procedimento e buscar auferir a confiança das
182
partes para que essas possam expressar seus pensamentos,
sentimentos, medos e expectativas sem receio. Na acolhida,
deverão ser desenvolvidos o reconhecimento e a valorização
dos sentimentos, possibilitando aos participantes a avaliação da
circunstância e a busca de alternativas para resolução.
Consideramos que a procura do efeito emancipador na Mediação
permitiria ao adolescente em conflito com a lei poder transformar a
expressão de violência do ato infracional na compreensão do pedido
de auxílio envolvido nela, ao verbalizar, num diálogo respeitoso e
cooperativo, suas necessidades e pressões e, assim, remanejar seus
relacionamentos estruturais. Neste trabalho, o adolescente poderia
tomar consciência de si, de sua identidade, de sua inserção social e de
seus direitos, aceitando a sua contrapartida: as obrigações para com os
outros. (VEZULLA, 2004 p. 82)
Percebemos que a possibilidade de o sujeito ser escutado com
atenção, ao falar sobre si mesmo e sobre sua situação, faz com que se
sinta respeitado e acolhido, e isso o encoraja a procurar falar sobre
as motivações e situações que envolvem sua realidade. No caso do
adolescente em conflito com a lei, essa escuta poderá possibilitar uma
ressignificação de sua conduta do ato infracional cometido.
Em alguns casos, os maus-tratos sofridos na infância, que, como
descreve Veronese, se encontram associados à imposição de um modelo
de violência e à autoria de ato infracional, o que aumenta a desconfiança
do adolescente. A mesma pressão sentida pode ser produzida, também,
pela situação que está vivendo, que faz com que o adolescente não
consiga expressar verbalmente sua história, suas emoções. Nestes
casos, o mediador deverá recorrer a uma comunicação não verbal pelo
lúdico, propondo um jogo que inicialmente se pede para ser escolhido
pelo adolescente. O jogo do enforcado, onde um enigma (palavra) deve
ser decifrado; o jogo da garrafa, que autoriza a quem toca em sorte fazer
uma pergunta a quem escolher, são jogos que facilitam a comunicação
e a expressão. Muitos adolescentes desenham seu próprio nome como
forma de construir uma unidade identificatória mínima a partir da qual
se constituir. É fundamental compreender o trabalho de elaboração da
própria identidade que se produz ao poder o adolescente dar conta
de si, expressar verbalmente sua realidade e fortalecer assim seu ser
sujeito. (VEZULLA 2004, p. 48)
183
Ao possibilitar a entrada no simbólico, ao postar em
forma de palavras seus sentimento e emoções, constatamos que
a energia antes dispersa passa a ter um endereço. Para Vezulla
(2004), facilitando a expressão e o acesso ao simbólico, a mediação
poderá atuar reforçando a função paterna.
Lacan (1985)43 reinscreveu o mito de Freud como uma
operação designada de metáfora paterna ou função paterna, como
nos diz Vezulla (2004). Essa operação demonstra que o desejo (da
mãe, união simbiótica para com o filho) é barrado pelo Nome do Pai,
sendo que esse tem efeito de corte. Para Lacan, a primeira relação
entre a criança e sua mãe diz respeito ao desejo da mãe, cujo objeto
é o filho. A metáfora paterna substitui o desejo da mãe, que toma
seu filho como objeto (sendo si mesma em outro) pelo significante
– Nome do Pai. Esse substituto produz ruptura, abrindo outras
possibilidades ao desejo; desvinculando o filho-objeto do desejo da
mãe, ocorre uma interdição e se estabelece a lei, que permite novas
possibilidades ao desejo e abre vias para o reconhecimento.
Sobre o reconhecimento
O reconhecimento é recíproco na medida em que um sujeito
se vê reconhecido por outro em suas propriedades e capacidades,
considerando suas singularidades e se contrapondo como sujeito
particular de um todo social; assim, o processo de socialização
ocorre entre os vínculos estabelecidos na comunidade com base nas
formas elementares de convívio intersubjetivos; porém, a demanda
por reconhecimento desencadeada através do conflito surge a partir
de experiência(s) de desrespeito(s) ainda na infância.
O conceito de reconhecimento recíproco desenvolvido
por Hegel (1770-1831) esclarece que a motivação dos sujeitos, em
busca de outras relações éticas e o abandono daquelas em que se
encontravam, será fixada pelo não reconhecimento pleno de suas
43
184
LACAN, J. O Seminário. Livro III: As Psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
identidades. Portanto, não será a punição que irá apaziguar essa
busca por relações éticas, e sim o reconhecimento do sujeito.
Relações desse tipo podem ser chamadas solidárias, pois desperta a
tolerância para com as particularidades individual da outra pessoa,
como também o interesse afetivo por essa particularidade: só na medida
em que eu cuido ativamente de que suas propriedades, estranhas a
mim, possam se desdobrar, os objetivos que nos são comuns passam a
ser realizáveis. (HONNETH, 2003, p. 211)
Na ausência de possibilidade de reconhecimento social,
o adolescente estará condenado a criminar para se fazer existir
enquanto sujeito de direito. Reforçando o reconhecimento imposto
a esses pela sociedade e pelos grupos organizados, a medida
de internação servirá apenas para circunscrever o espaço a ser
destinado às classes perigosas. Dessa forma, aquele que cumpre
medida nesse sistema será sempre um delinquente a ser excluído
da sociedade, e a “inserção social” só poderá ser vislumbrada como
possibilidade de inserir o egresso em seu próprio meio social, nos
guetos destinados as essas “supostas classes”, em que poderão ser
reconhecidos, legitimados e estimados por seus pares.
Lima (2010)44 esclarece que em uma sociedade existem
diversas formas de reconhecimento que se diferenciam umas das
outras segundo o grau de autonomia do sujeito. Honneth (2003)
ressalta que o reconhecimento dessa autonomia por todos poderia vir
a substituir categorias imutáveis ou com pouca mobilidade social por
outras forjadas através do vínculo social de reconhecimento solidário.
O discernimento temperante de que toda organização futura da
sociedade depende de uma esfera de produção e distribuição de bens
mediada pelo mercado, na qual os sujeitos devem estar incluídos pela
liberdade negativa do Direito formal (...) onde as atividades mediadas
pelo mercado e os interesses dos indivíduos particulares seriam uma
zona constitutiva do todo ético. (...) a formação de uma organização
social com coesão ética no reconhecimento solidário da liberdade
44
LIMA, A. F. Psicologia Social Crítica Paralaxes do Contemporâneo. Porto Alegre:
Sulina, 2012.
185
individual de todos os cidadãos, propõe substituir as categorias
atomísticas, por outras forjadas através do vínculo social entre os
sujeitos. (HONNETH, 2003, p. 42)
A questão da responsabilidade está associada ao modo
de avaliar desejos. Dessa forma, responsabilidade se articula à
noção de desejo, sendo esse entendido como uma escolha – uma
aposta. Se podemos nos considerar como sujeitos responsáveis
por nossos atos e pela escolha de nossa vida, isso se deve a
nossa capacidade de articular e avaliar desejos. “Somos nós que
criamos os nossos valores e estes dependem de nossa própria
ação.” (TAYLOR, 2011, p. 36)
Portanto, o conceito de identidade poderá ser definido por
avaliações fundamentais, só possíveis com base em uma lista de
propriedades, tais como: descrição física, procedência, origem,
habilidades; mas essas propriedades só poderão constituir uma
dada identidade se for algo essencial e o sujeito em questão tiver
orgulho disso e conceber esse pertencimento como alguma coisa
que o inclui em uma classe de pessoas, cujas qualidades sejam
valorizadas em sua condição de agente. A noção de identidade
traz como referências avaliações que são essenciais, pois essas
definem o horizonte a partir do qual nos tornamos pessoas que
refletem e avaliam. Não ter ou não encontrar esse horizonte é
uma experiência de perda e desagregação.
No entanto, o sujeito tem capacidade de se reinventar,
se autointerpretar. A identidade não é fixa, não é uma escolha
radical, uma vez que essa pressupõe uma aposta, na medida em
que são articulações do que consideramos como valioso. Nossas
escolhas são interpretações dos nossos desejos. Nossas avaliações
são articulações do que sentimos como valoroso, mais altivo, mais
íntegro, mais realizador. Como articulações, elas nos oferecem
outro ponto de apoio para o conceito de responsabilidade.
Para Taylor (2011), grande parte de nossas motivações
é formulada em palavras. A relação de nosso desejo e nossas
aspirações está atravessada por pulsões psíquicas articuladas.
186
Essas articulações seriam ensaios para reformular o que está
incompleto e confuso.
Fornecer uma determinada articulação é moldar o sentido
do que nós desejamos ou do que consideramos importante – o que
chamamos neste trabalho de (re)significação. As articulações, que
modelam os objetos, implicam responsabilidade de um modo que
não ocorre como meras descrições ou podem ser postas em categorias
a serem mensuradas, mas são limitadas pela nossa experiência.
A capacidade de avaliar desejos é um traço do humano.
Sendo a avaliação qualitativa uma característica essencial da
pessoa, isso esclarece o sentido que atribuímos à reflexão, à vontade
e à responsabilidade; transformar o sujeito em mero objeto a ser
quantificado, medido, classificado equivale a retirar do homem o
que ele tem de humano. Afinal, na experiência do amor está inserida
a possibilidade da autoconfiança; na experiência do reconhecimento
jurídico, a possibilidade do autorrespeito; na experiência da
solidariedade, a possibilidade da autoestima; e na experiência da
análise do desejo, a possibilidade de autointerpretação. São essas as
experiências que nos tornam humanos.
Ainda a considerar
Valorizar os vínculos sociais construtivos, possibilitar
o acesso dessa população fragilizada aos setores de educação,
saúde, justiça e cidadania é o mínimo a ser pensado para o
desenvolvimento social.
Quando o sujeito tem a oportunidade de contribuir para
o corpo social, independentemente de seu status e de seu grupo
social, pode-se chegar a um reconhecimento recíproco de seus
atores. As relações solidárias tecem nesse corpo social novas
possibilidades que podem neutralizar as desigualdades. Outras
experiências de reconhecimento, mais significativas, poderão
propiciar um desenvolvimento saudável desses atores. Conforme
187
apreendemos com Honneth (2003), na experiência do amor está
inserida a possibilidade da autoconfiança; na experiência do
reconhecimento jurídico, a possibilidade do auto respeito; e na
experiência da solidariedade, a possibilidade da autoestima.
Dessa forma, acreditamos que a mediação desenvolvida
no sistema socioeducativo contribuíra para a construção da
história do adolescente e para a ponderação sobre si e sobre
seus relacionamentos com sua família, escola, comunidade e
outros grupos, garantindo-lhe o sigilo sobre o que for dito, não
incluindo o falado e nem apresentando as sessões de mediação,
pois a mediação é um procedimento informal.
Acreditar na potencialidade desses adolescentes é
construir, junto com eles, as políticas públicas necessárias à
garantia de seus direitos, considerando seus anseios, desejos e
necessidades. Edificando processos coletivos de funcionamento e
problematizando as situações rotineiras, iremos avançar. Apostar
em instituições permeáveis, com ampla participação da comunidade
e dos familiares, é uma saída possível. Fragilizada tanto no plano
econômico como no cultural, essa população carece de assistência e
de referência que lhes permitam saber dos seus desejos.
Assim,
parafraseando
Vezzula,
pensamos
ser
imprescindível o trabalho do núcleo de Mediação no Sistema
Socioeducativo. Como ele nos diz,
Por meio da mediação, estas pessoas podem exercer seus direitos
ao estar em condições de entender, elaborar e resolver os próprios
conflitos, sendo possível comparar o trabalho do mediador com o do
fruticultor que, para poder obter as melhores frutas, não se preocupa
por elas, mas sim pelas árvores e plantas que as produzem. Igualmente,
o mediador preocupa-se pelos mediados e suas necessidades subjetivas
e objetivas, para que, logo que atendidas, os próprios mediados possam
estar em condições de produzir os melhores acordos, de encontrar as
melhores soluções que atendam às necessidades expressadas nos seus
conflitos; de produzir seus frutos.(VEZZULA, 2004, p. 86)
188
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Ministério da Justiça, 2010.
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Palma Souza. Florianópolis 2004
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P. Teoria Crítica no Século XXI. ANNLUME, 2010
TAYLOR,C. As fontes do self. São Paulo: Loyola, 1997.
189
Parte III - Ações Socioeducativos: práxis
191
Violência, Drogas, Educação e Instituição Socioeducativa a
adolescentes em conflito com a lei: Uma experiência em construção
Janaina de Fátima Silva Abdalla45
Soraya Sampaio Vergilio 46
Resumo: O avanço nas garantias de direitos dos jovens,
sobretudo os debates e aumento de visibilidade acerca dos
que se encontram em situação de vulnerabilidade e risco, pode
também ser atribuído às normativas legais e legislações nacionais
e internacionais- Regras de Beijing(1985), Estatuto da Criança e
do Adolescente(ECA/1990), Constituição Federal(1988) dentre
outros. O ECA estabeleceu um marco histórico com as doutrinas
da proteção integral e da prioridade absoluta fazendo com que
crianças e adolescentes deixassem para trás a concepção de
“menores” para passarem a ser sujeitos de direitos. O ECA elenca
as medidas protetivas destinadas àqueles que tiveram os direitos
ameaçados ou violados. A imposição de um tipo de proteção
pode acontecer simultaneamente durante o procedimento de
apuração de autoria de ato infracional ou à determinação de
medidas socioeducativas a adolescentes em conflito com a lei.
O art. 101 (ECA) assegura “inclusão em programa oficial ou
comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e
toxicômanos” será com este público, os “usuários” de drogas,
o desdobramento do trabalho sobre uma nova perspectiva
no tratamento: políticas públicas assegurando direitos em
substituição à lógica penal. Esta pesquisa propõe o estudo do
atendimento aos adolescentes em conflito com a lei e usuário
de drogas na interface educacional de medida de proteção/
tratamento e
medida segurança /socioeducação que se
encontram no Centro Integrado de Tratamento de Uso e Abuso
45
Doutora em Educação UFF, DEGASE e FGS;diretora da Escola de Gestão
Socioeducativa Paulo Freire –DEGASE , Prof Faculdade Gama e Souza
46
Mestre em Educação UFRJ , Pesquisadora UERJ e DEGASE
193
de Drogas, unidade do Novo DEGASE-executor de medidas
socioeducativas e protetiva no Estado do Rio de Janeiro.
Palavras chaves: violência , drogas , legislação , educação
e socioeducação
Introdução
O tema da violência urbana vem mobilizando vários setores
da sociedade brasileira nas últimas décadas. O comércio ilegal
de entorpecentes e o avassalador envolvimento e uso de drogas
pelos jovens tem suscitado um panorama de medo e insegurança
especialmente aos habitantes das grandes cidades. A demarcação
espacial em áreas de risco, sobretudo as favelas e demais áreas
diretamente afetadas pela criminalidade e ocupação dos grupos
usuários de drogas repercutiu no binômio pobreza-violência
associando aos moradores de comunidades pobres à noção de
“classes perigosas”.
A construção de significados e a representação social
da população pobre enquanto “classe perigosa” reforçam os
nexos simbólicos de territorialização da pobreza e da violência
no processo de reprodução social, espaço onde a miséria e a
ausência das garantias de cidadania são peculiares, acrescidas
da negação dos padrões próprios culturais e das estratégias de
sobrevivência desenvolvidas (BARROS e FREITAS, 2009). E no
desdobramento, a tendência da tradicional sociedade brasileira
de associar diretamente a miséria como causa da criminalidade e
da violência: a criminalização da pobreza.
Soares (2004) indica elementos da realidade social das
populações pobres que tendem a produzir efeitos sobre os sujeitos
gerando ciclos de violências contra crianças e jovens. Essas
consonâncias são mais facilmente evidenciadas em situações de:
194
(a)pobreza; (b) menor escolaridade; (c) menor acesso a oportunidades
de trabalho; (d) maior chance de sofrer o desemprego e o desamparo
econômico e social; (e) angústia e insegurança; (f) depressão da
autoestima; (g) alcoolismo; (h) violência doméstica; (i) geração de
ambiente propício ao absenteísmo, à desatenção e à rejeição dos filhos;
(j) vivência da rejeição na infância, o que fragiliza o desenvolvimento
psicológico, emocional e cognitivo, rebaixa a autoestima, estilhaça as
imagens familiares que serviriam de referência positiva na construção
da identidade e na absorção de valores positivos da sociedade; (l)
crianças e adolescentes com esse histórico tendem a apresentar maior
propensão a experimentar deficiências de aprendizado (tanto por
razões psicológicas quanto pelo fato de que as limitações econômicas
dos pais impedem a oferta de acesso a escolas mais qualificadas,
inclusive para lidar com essas deficiências e para estimular os alunos,
valorizando-os); (m) dificuldades na família, na escola e pressão para
o ingresso precoce no mercado de trabalho (mesmo que seja por uma
participação intermitente e informal) tendem a precipitar o abandono
da escola, sobretudo no contexto de desconforto e inadaptação, e de
falta de motivação; (n) a saída da escola reduz as chances de acesso
a empregos e amplia a probabilidade de que o círculo da pobreza se
reproduza por mais uma geração; (o) configurando-se este quadro,
aumentam as probabilidades de que o adolescente experimente a
degradação da autoestima, especialmente se considerarmos o contexto
social e cultural em que prosperam os preconceitos, o padrão da duplamensagem e as artimanhas da invisibilização. (SOARES, 2004: 139)
Outro aspecto da violência é o significativo número de
jovens oriundos das classes pobres envolvidos em atos ilícitos,
no uso abusivo de drogas e vitimados por homicídios, tornando
a realidade ainda mais contundente: pobreza, delinquência e
violência (ABDALLA, 2011).
Segundo Marcia Leite (2000) há duas posturas perante a questão
da violência: “a disciplinarização das classes perigosas” em nome de
uma pretensa ordem e segurança, nem que para isso se rompa com as
garantias constitucionais de direito e outra atenta para a formulação e
aplicação de uma política de cidadania, sobretudo para os jovens, em
busca de alternativas no campo da segurança .
Vivemos entre os movimentos de direitos humanos para
a juventude, as inúmeras conquistas no plano da legislação na
195
expansão aos direitos de cidadania e um sistema paralelo de
violência e exclusão contra o jovem, principalmente para aqueles
das populações pobres. Esse paradoxo faz parte do cotidiano
brasileiro e mapeia, de forma contundente, o cenário nacional.
Os jovens envolvidos em situação de violência, ora são descritos
como vítimas, ora como causadores da violência urbana.
Segundo Adorno (2003), fala-se com frequência de
crianças e adolescentes como responsáveis pelo crescimento da
violência nas grandes cidades brasileiras, em especial dos crimes
violentos como homicídios. Na mídia impressa e eletrônica,
cotidianamente, veiculam-se imagens que mostram indivíduos,
nesses grupos etários, cometendo audaciosas ações, cada vez
mais precocemente e principalmente a devastadora imagem do
envolvimento com o uso de drogas como o crack.
A política e legislação no Brasil e os adolescentes em conflito
com a lei
Estudos voltados para a relação que o adolescente estabelece
com as drogas e o ato infracional (ZEITOUNE, 2008,2009 e 2010;
CARVALHO,1996; CONTE, et al.2008) indicam a necessidade
de considerar criticamente diferentes fatores: no campo o
jurídico-político (estereótipo da criminalidade), o imaginário
social em torno do usuário e das drogas, as políticas públicas e
as concepções terapêuticas que permeiam os discursos médicosanitarista (estereótipo da dependência) e os processos de
subjetivação do adolescente, as transformações psico-fisiológicas
ligadas à maturidade sexual ( ZEITOUNE, 2010 ).
O estereótipo da dependência entende que existe um vínculo
necessário entre consumo, irreversibilidade da dependência
e formação de carreira criminal. Esse estereótipo se estende
para a categoria do inimigo interno, visualizado na droga e no
traficante, assim como no inimigo externo, localizado nos países
196
terceiro-mundistas, produtores e exportadores de drogas. Impõese, assim, ao senso comum a ideia de que esse inimigo deve ser de
qualquer forma eliminado através de ação conjunta, pois representa
perigo social a toda comunidade internacional. O estereótipo da
criminalidade se funda na ideia de uma realidade intrínseca do
comportamento que é desviante em si e preexiste ao controle social
e penal ( CARVALHO 1996, apud CONTE et al , 2008 p.606)
Historicamente no Brasil, as políticas públicas voltadas
para o atendimento aos adolescentes autores de atos infracionais
e usuários de drogas a visão jurídico-político marcada pelo
estereótipo da criminalidade ( os delinquentes ) se sobrepuseram
a visão do estereótipo da dependência. Entendemos que esta
visão pendular e simplista não nos possibilita uma abordagem
critica da realidade, tampouco aos processos de subjetivação
destes jovens na construção de sua identidade e de seu projeto
de vida saudável e cidadã.
Desde a promulgação do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA -Lei nº 8.069), de 13 de julho de 1990, as
crianças e adolescentes passam a ser considerados como sujeitos
de direito sendo adotado a doutrina da proteção integral expressa
na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito da Criança.
Em relação às drogas, o ECA (artigo 81) proíbe a venda à criança
e ao adolescente, tanto de bebidas alcoólicas, quanto de produtos
cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica.
O ECA estabelece medidas específicas de proteção47 e
medidas socioeducativas48 , em quaisquer das hipóteses é
47
Art. 101. ECA Medidas Protetivas :I - encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; II - orientação, apoio e acompanhamento
temporários; III - matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de
ensino fundamental; IV - inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à
família, à criança e ao adolescente; V - requisição de tratamento médico, psicológico ou
psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; VI - inclusão em programa oficial
ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; VII abrigo em entidade;VIII - colocação em família substituta.
48
A Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente
poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas sócio-educativas: I - advertência;II
197
direito dos adolescentes matrícula e frequência obrigatórias
em estabelecimento oficial de ensino. A educação é um direito
subjetivo e dever do estado49 .
No que se diz respeito ao uso de drogas está prevista a
aplicação de medidas de proteção especificadas no artigo 100.
Elas poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de
acordo com o caso. Essas medidas visam garantir o acesso a
programas oficiais ou comunitários de auxílio e tratamento a
alcoolistas e toxicômanos, com o apoio à família.
Contudo, verificada prática de ato infracional por
adolescentes, aplicam-se as medidas socioeducativas previstas
no artigo 112, bem como as protetivas previstas nos artigos 99 e
100. As medidas socioeducativas vão da advertência à internação,
como medida privativa de liberdade.
A consequência da prática do ato infracional (conduta
descrita nas leis penais), por meio da medida socioeducativa,
constitui a responsabilização do adolescente. Sendo incontestável
que o jovem é responsável frente à legislação especial, o
ECA, e reconhecida a natureza das medidas socioeducativas:
sancionatória embora predominantemente educativa.
A internação – sem eufemismos – é a privação da liberdade,
isto é, a suspensão do direito de ir e vir, porém, a suspensão deste
direito não se caracteriza pelo enfoque repressivo clássico que
tinha por base a teoria da incapacitação, ou seja, a criminalização da
juventude pobre. Na perspectiva da Proteção Integral, a medida de
internação prevê a garantia de direitos, as condições de atendimento
e o impacto dessas ações sobre o jovem. Segundo Costa :
- obrigação de reparar o dano;III - prestação de serviços à comunidade;IV - liberdade
assistida;V - inserção em regime de semi-liberdade; VI - internação em estabelecimento educacional;VII - qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI.
49
Art.54.Educação dever do estado:§ 1º O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo.§ 2º O não oferecimento do ensino obrigatório pelo
poder público ou sua oferta irregular importa responsabilidade da autoridade competente. § 3º Compete ao poder público recensear os educandos no ensino fundamental,
fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsável, pela frequência à escola.
198
Toda internação é uma forma consciente de segregação, quanto mais
completa for a estrutura de um internato, levando-o a não ter que recorrer
a recursos institucionais e serviços externos, maior a sua capacidade
de segregar. E quanto maior for a capacidade de o internato segregar,
maior será a sua capacidade de exercer violência e arbitrariedade sobre
os internos. Por isso, nenhum serviço que possa ser realizado por outro
órgão deve ser exercido pela instituição responsável pela aplicação das
medidas socioeducativas de internação (COSTA, 2006, p.60 )
Tal visão distorcida dos princípios propostos pela legislação
em vigor tornam invisíveis as políticas materializadas em práticas
institucionais de grupos que lutam cotidianamente na garantia
dos direitos humanos dos adolescentes infratores nos sistemas
socioeducativos no Brasil.
Destacamos que as políticas precisam estar sempre
associadas ao diálogo com os interlocutores/autores das práticas
cotidianas na busca de formas de articulação, superando as
produções fragmentadas e positivistas.
DEGASE e CITUAD
No Rio de Janeiro a responsabilidade pelo atendimento ao
adolescente em conflito a lei – sob suspeita de cometimento de
ato infracional e o adolescente infrator é do Departamento Geral
de Ações Socioeducativas - DEGASE, órgão do governo estadual
e parte da Secretaria de Estado de Educação.
Desde 2007, o Novo DEGASE, vem produzindo inúmeros
documentos que indicam uma mudança significativa na política
de atendimento ao adolescente em conflito com a lei no Estado
do Rio de Janeiro.
Medidas concretas como o investimento na formação
dos profissionais; reformas nas unidades socioeducativas;
construções de unidades descentralizadas; diminuição do
percentual de internação; normatização dos procedimentos
199
e abertura para a realização de pesquisas acadêmicas nas
unidades; convênios com instituições públicas, privadas e do
terceiro setor; e o processo de municipalização das medidas em
meio aberto (ABDALLA, 2010b), são apresentas e registradas
nos documentos institucionais. Órgãos de controle do sistema da
sociedade civil e do sistema jurídico e do sistema de garantia de
direitos veem acompanhando estas mudanças
O presente trabalho é um recorte da pesquisa em
desenvolvimento sobre o acesso a Educação Formal para jovens
do Centro Integrado de Tratamento de Uso e Abuso de Drogas
(CITUAD), unidade do Novo DEGASE para tratamento de
adolescentes em medida protetiva e que fazem uso e abuso de
drogas. O CITUAD busca promover, junto aos adolescentes e suas
famílias, ações motivacionais voltadas para o desenvolvimento da
saúde integral e redução de danos, inclusive sociais, provocada
pela utilização de substâncias psicoativas.
Em 1999 foi inaugurado o Projeto Nossa Casa, unidade
ambulatorial de tratamento. No ano seguinte, foi fundado
o Centro de Tratamento de Dependência Química (CTDQ),
unidade de internação e execução de medida protetiva. Em
2003, o DEGASE resolve unificar as duas unidades - Nossa Casa
e CTDQ – criando o CITUAD com a perspectiva de tratamento
ambulatorial e internação concomitantemente.
No ano de 2009, após o término da municipalização da
medida de Liberdade Assistida no Estado do Rio de Janeiro e
a descentralização do tratamento ambulatorial para todas as
unidades de internação e internação provisória, nasce a atual
proposta de atendimento para o CITUAD: “alternativa terapêutica
multidisciplinar, voltada para desenvolvimento e implantação de
programas de tratamento, visando contribuir para a elevação da
qualidade do estado de saúde dos adolescentes e seus familiares”.
Ao mesmo tempo em que se consolidava o modelo e
proposta de atendimento do CITUAD agregavam-se diferentes
atividades. Uma delas, foco da nossa pesquisa, a escolarização.
200
Educação e CITUAD – Uma experiência em construção
No fim de 2002, foi publicada em Diário Oficial a
implementação de uma sala multisseriada para atendimento aos
jovens internados no CTDQ. A classe é uma extensão do Colégio
Estadual Padre Carlos Leôncio da Silva, unidade escolar da
Secretaria de Estado da Educação responsável pelo atendimento
dos jovens em internação provisória no Instituto Padre Severino.
Apesar da internação provisória não ser, de fato, uma
medida socioeducativa, e sim uma medida processual de
natureza cautelar, alguns aspectos referentes a ela precisam ser
esclarecidos. Segundo ABDALLA:
Internação provisória aproxima-se bastante da medida de internação,
ainda que tenha finalidade totalmente diversa: enquanto esta tem caráter
sancionatório e implica o reconhecimento de que o adolescente cometeu
um ato ilícito, aquela tem o escopo de garantir a aplicação da lei e está
ligada aos fins do processo judicial. Ambas as medidas, entretanto,
retiram do jovem o direito de ir e vir e, portanto, devem ser aplicadas
em último caso, isto é, somente quando imprescindíveis para se atingir a
finalidade pretendida: a proteção integral . (ABDALLA, 2012)
A classe multisseriada no CTDQ inicialmente atendia apenas
aos jovens do 2º segmento (6º ao 9º ano) do Ensino Fundamental,
mas logo se entendeu a necessidade de ampliar o atendimento
também para os jovens dos anos iniciais (1º ao 5º ano).
Por se tratar de uma extensão, o anexo funcionava nas
dependências do então CTDQ. Os problemas eram inúmeros.
Desde a dificuldade de o aluno entender que a sala de aula era
um “espaço” diferenciado até a incompreensão dos servidores
da importância do trabalho proposto.
Os relatos de professores que ensinavam neste contexto
de atendimento apontavam que não eram poucas as vezes
que não conseguiam realizar as atividades propostas. Alguns
outros funcionários muitas vezes em seus discursos, inclusive na
201
frente dos adolescentes, desconstruíam a relevância do acesso a
Educação e na prática retiravam os jovens durante as aulas para
outras atividades e tratamento. Os alunos saiam do quarto e na
porta ao lado já estava a sala de aula. Os docentes relatavam que
visivelmente eles não conseguiam enxergar-se como alunos, para
além de jovens internados para tratamento. O movimento que
normalmente os jovens fazem na saída de suas residências para
a escola, os adolescentes internados não faziam. Goffman (2005)
aponta que algumas instituições ao criarem barreiras com o mundo
exterior corroboram para a mortificação/multilação do eu.
Uma disposição básica da sociedade moderna é que o indivíduo tende
a dormir, brincar e trabalhar em diferentes lugares, com diferentes
co-participantes, sob diferentes autoridades e sem um plano racional
geral. O aspecto central das instituições totais pode ser descrito com
a ruptura das barreiras que comumente separam essas três esferas da
vida. (GOFFMAN, 2005. p.17)
No final de 2010 em uma ação articulada pelos docentes,
direção do Colégio e gestor do CITUAD propôs-se a mudança
das aulas dos alunos para dentro das dependências da escola.
A transferência de espaço logo mostrou-se exitosa. Os
jovens passaram a ter a possibilidade de sair do Centro. Tal
movimentação implicava diariamente na destituição do papel
de “internados” para a de alunos. Ao transitar pelas ruas e no
caminho até a escola passaram a ter a chance de interagir, mesmo
que sob supervisão dos socioeducadores , com a sociedade.
Atualmente, dentro das dependências do Colégio, não são
mais agrupados em turmas multisseriadas, mas sim, obedecendo
a ano/fase ao qual pertencem. Oportunizando a convivência com
outros pares. O critério que antes era “internados” anos inicias
ou anos finais passa a significar “serem alunos” do 1º ano, 2º ano
e assim em diante. O número de professores que os atuavam
junto a estes jovens aumentou significativamente. Os jovens
participam de todas as atividades programadas pela escola.
202
Houve também a necessidade de adequar todos os
procedimentos do Colégio a estes “novos velhos” alunos, uma
vez que não estariam mais agrupados em duas turmas anexas,
mas distribuídos por todas da “escola”. Atividades pedagógicas
individualizadas, seguindo o interesse e mobilização do próprio
aluno, foram realizadas como o “para casa”. De acordo com
o tempo de permanência na escola, progressão de ano de
escolaridade. A interface educação e tratamento também foi
revista. A escola passou a ir além “do passar conteúdo”, mas
incentivar estes alunos para que não evadam do tratamento
através das ações cotidianas de valorização dos mesmos.
Considerações finais
Os estudos sobre adolescentes em conflito com a lei e o
seu envolvimento no uso abusivo de drogas e a interface com
o sistema de atendimento socioeducativo ainda é insipiente.
Atrelar estes estudos a um modelo pioneiro de educação/
escolarização - tratamento ao uso de drogas e instituição privativa
de liberdade/socioeducação e proteção – internação provisória
nos desafia e estudar pesquisar diferentes campos de saberes e
a produzir novos saberes. Este é um desafio que se inicia para
nós pesquisadoras, mas que está sendo produzido na prática
pelos professores, gestores , técnicos e operadores do sistema de
garantia de direito – O Novo DEGASE.
A possibilidade em apresentar este modelo dual de
atendimento pioneiro no Brasil – tratamento e educação subsidia a necessidade de ampliarmos discussão sobre direitos
para jovens em medidas protetivas.
O recorte na mudança de espaço de escolarização dentro
da trajetória do CITUAD e de seus jovens mostra-nos que não
bastou apenas assegurar o acesso a escola formal, mas sim a
permanência e, sobretudo o sucesso destes alunos.
203
A garantia aos direitos públicos é para todos e, portanto a
história da escolarização destes jovens aponta a necessidade de
repensarmos a implementação de políticas que se adequem as
especificidades dos sujeitos.
Neste artigo elencamos alguns temas que nos desafiaram a
iniciar esta pesquisa, certamente outros surgirão no decorrer dos
estudos e nas vozes dos jovens e educadores-socioeducadores
que transformam em realidade cotidiana os sujeitos de direitos
(e deveres) os adolescentes-alunos-cidadãos brasileiros.
204
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Disponível em: http://www.nucleosephora.com/asephallus/
numero_08/artigo_03_port.htm
206
Papo aberto: uma proposta e experiência de intervenção
Cláudia da Silva Rodrigues 50
Juana dos Anjos Cunha Louzada51
Resumo: O presente artigo, em consonância à perspectiva
da socioeducação, visa publicizar a experiência de atendimento
em grupo realizado no CREAS Niterói, partindo do pressuposto
de que o desenvolvimento integral do adolescente perpassa a
dimensão do ser social em processo de constituição, apreendido
na sua relação com o outro. Seu pensar e agir tornam-se reflexo
tanto dessa dinâmica interrelacional quanto de condicionantes
históricos, sociais, econômicos, subjetivos e culturais, que
marcam sua tenra história, muitas vezes pela reiterada violação
de direitos. O olhar que aqui se lança sobre o adolescente em
cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto não
descarta esses condicionantes, até porque tal postura seria no
mínimo ingênua, mas defende que esses não são determinantes,
conforme apregoa Freire. O trabalho em grupo, complementar
ao atendimento individual, propicia a percepção do adolescente
enquanto partícipe de grupos sociais, aos quais vincula-se pelos
laços da identidade e da construção história e dos quais emanam
as características e percepções de si e do mundo, mediante a
oferta de um espaço de reflexão, socialização, reforço de vínculos
e descoberta de potencialidades, por vezes camufladas pelo ato
infracional cometido, despertando no adolescente sua condição
de constructor social e potencializando seu protagonismo juvenil.
50
Pós-Graduada em Terapia de Família pela UCAM/IAVM, Assistente Social
do CREAS/Niterói. E-mail: [email protected]
51
Pós-Graduanda do Curso de Especialização em Serviço Social e Saúde pela
UERJ, Assistente Social do CREAS/Niterói e Assistente Social do Quadro de Oficiais de
Saúde da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]
207
Palavras-chave: representação
educação problematizadora, reflexão.
social,
socioeducação,
Introdução
É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para
sempre, à margem de nós mesmos.
Fernando Pessoa
Torna-se cada vez mais frequente no cenário brasileiro e
além fronteiras a participação de adolescentes e jovens como
protagonistas de violências e atos infracionais, de modo que a
sociedade, amedrontada com tais práticas e intencionalmente
instigada pelas mídias sociais que endossam essa realidade,
impõe a esses adolescentes, ainda que de forma inconsciente,
uma identidade funesta. A representação social do adolescente
em conflito com a lei se configura como uma construção
histórica marcada pelo preconceito e pela exclusão social, que
deixam marcas negativas e profundas na existência daqueles
considerados pela lei como pessoas em desenvolvimento.
As Representações Sociais enquanto ideias, imagens,
concepções, senso comum e visão de mundo, que os atores
sociais possuem sobre a realidade, colocam-se como material
importante a ser considerado e decifrado no âmbito do
atendimento ao adolescente que cometeu um ato infracional.
Tais representações desdobram-se em condutas, podendo chegar
a serem institucionalizadas. Assim, conforme aponta Minayo,
podem e devem ser analisadas a partir da compreensão dos
comportamentos e das estruturas sociais.
As representações sociais possuem núcleos positivos de transformação
e de resistência na forma de conceber a realidade. Portanto, devem
ser analisadas criticamente, uma vez que correspondem às situações
reais de vida. Nesse sentido, a visão de mundo dos diferentes grupos
expressa as contradições e conflitos presentes nas condições em que
foram engendradas. (MINAYO, 1994, p 173)
208
Ao tentarmos romper com essa representação simbólica
pejorativa e estigmatizada – movimento de ruptura esse apreendido
como sendo um dever-ser dos papéis desempenhados pelos
profissionais que atuam na execução de medidas –, deparamonos não somente com os obstáculos simbólicos, mas também com
a concretude das complexas realidades que envolvem o universo
desses adolescentes. Muitas delas transcendem o contexto
unicamente familiar, sendo agravadas pelas limitações das
instâncias de saúde, educação, trabalho e renda, apontando para
a transversalidade das políticas públicas como um dos caminhos
para a sua inclusão social ou se desdobrando, na ausência de sua
efetividade, na exclusão social.
Essa proposta de intervenção denominada “Papo Aberto”
foi gestada em meio às inquietações e aos desafios oriundos
dessa realidade e do processo de acompanhamento individual
a adolescentes em conflito com a lei, encaminhados ao CREAS
pela Vara da Infância, Juventude e Idoso da Comarca de Niterói,
visando dar direcionamento a algumas das inúmeras questões que
o trabalho nos impõe, sem, no entanto, ter a pretensão de esgotá-las.
Tal proposta almeja contribuir positivamente para a construção de
um espaço de reflexão, socialização, reforço de vínculos e descoberta
de potencialidades, por vezes camufladas pelo ato infracional
cometido, em consonância com a proposta da socioeducação.
Partimos do entendimento de que a atuação dos profissionais
que se voltam ao atendimento dos adolescentes em conflito com a
lei precisa considerar a análise de Abramo (1997, p.33), segundo a
qual, na medida em que os jovens são vistos como “a encarnação
de impossibilidades, eles nunca podem ser vistos, ouvidos, e
entendidos, como sujeitos que apresentam suas próprias questões,
para além dos medos e das esperanças dos outros”. A atitude de
debruçar-se sobre as realidades explícitas e sobre as mais implícitas
dos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas,
para além das aparências e dos discursos pré-elaborados, revelase um dos grandes desafios desse acompanhamento.
209
Apresentação
Antepondo-nos ao aprofundamento acerca do trabalho
em grupo enquanto proposta e experiência de intervenção,
urge trazer à luz a definição referenciada na PNAS (1994) sobre
as ações socioeducativas, em que sócio pressupõe a interação
entre sujeitos e o meio (conjuntura econômica, cultural, social
e histórica) e educativa pressupõe um processo que possibilita
ao sujeito se perceber como ser humano com potencialidades
e possibilidades de desenvolvê-las, mediante apropriação de
informações e conhecimentos para intervenção na realidade.
O termo socioeducação designa, portanto, um campo de
aprendizagens voltadas a assegurar proteção social e oportunizar
o desenvolvimento de interesses e talentos múltiplos. As ações
socioeducativas não têm objetos de conhecimento pré-definidos;
elas são construídas a partir das especificidades dos sujeitos
envolvidos e da sua realidade sócio- histórica.
Dessa forma, a realidade do adolescente em cumprimento
de medidas socioeducativas e a intervenção junto a esse público
específico vão sendo paulatinamente desveladas se construídas
durante o acompanhamento, desconsiderando-se possíveis
pré-determinações, a fim de fundamentar a prática profissional
naquilo que Freire (2005) define como educação (ou ação cultural)
problematizadora, libertária, oposta à concepção da educação
enquanto transmissão do saber unicamente pelo educador.
Para Freire (2005), a educação problematizadora propõe
um refazer o mundo, ou seja, ver sob vários ângulos as razões
de como os atores sociais estão sendo no mundo, enquanto
a educação, que se pretende transmissora, assistencializa.
Segundo o autor, a razão de ser da educação libertadora implica
a superação da contradição educador-educandos, de forma que
se tornem ambos, simultaneamente, educadores e educandos. O
educador intitula como pedagogia do oprimido aquela que:
210
tem de ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos,
na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que
faça da opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos, de
que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação,
em que esta pedagogia se fará e refará (FREIRE, 2005, p. 34).
Em consonância, partindo-se do pressuposto que o
adolescente não é um ser isolado, mas partícipe de grupos sociais,
aos quais vincula-se pelos laços da identidade e da construção
história e dos quais emanam as características e percepções de si
e do mundo, Aguiar (2001,.) diz que: “o indivíduo e a sociedade
não mantêm uma relação isomórfica entre si, mas uma relação de
mediação, na qual um constitui o outro, sem que com isto cada
um dos elementos perca sua identidade”. Assim sendo,
O jovem não é algo por natureza. Como parceiro social, está ali, com
suas características, que são interpretadas nessas relações; tem, então,
o modelo para sua construção pessoal. Construídas as significações
sociais, os jovens tem a referência para a construção de sua identidade
e os elementos para a conversão do social em individual. (AGUIAR;
BOCK; OZELLA, 2001, p.168).
A partir desses pressupostos, torna-se de suma relevância,
a quem aplica seu trabalho ao acompanhamento de adolescentes
em conflito com a lei, pensar acerca de qual identidade tem sido
imperiosamente imputada a esses adolescentes e jovens e de
que maneira a família, o Estado e a sociedade têm corroborado,
ao longo dos anos, com o preconceito, o descrédito, a exclusão
e a violação de direitos, impedindo-os de construir uma nova
identidade e uma diferente trajetória pessoal e social. Desse
modo, “não estamos nos referindo, portanto, a condições sociais
que facilitam, contribuem ou dificultam o desenvolvimento
de determinadas características do jovem; estamos falando de
condições sociais que constroem uma determinada adolescência”
(AGUIAR; BOCK; OZELLA, 2001, p.169).
No que diz respeito ao adolescente em cumprimento de
medidas socioeducativas, essa “determinada adolescência” está
211
sujeita também a concepções equivocadas do senso comum
e, ainda, ao enquadramento em perfis que deixam escapar a
subjetividade e especificidade de cada caso. Nesse sentido,
Selosse (1997) ratifica essa concepção, na medida em que
considera o jovem não apenas sujeito à lei, mas também visto
como sujeito psicológico com sua história, sua palavra e sua
verdade. O ato infracional é tido como resultado de múltiplas
determinações de caráter social e psicológico, em que o jovem
é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto, agente e paciente de seu
processo de socialização.
Nesse sentido, o trabalho em grupo vem reiterar e transcender
o atendimento individual, na medida em que é uma estratégia
de intervenção que nos permite apreender o adolescente na sua
correlação com o outro, conforme a conceituação de grupo de Gomes
(1996, p. 33): “resultado da intersecção da história dos grupos com a
história dos seus indivíduos e seus mundos internos, suas projeções
e transferências na sociedade em que estão inseridos”.
Referenciando Pichón- Rivière em sua teoria dos grupos
operativos, o trabalho em grupo consiste em buscar a coerência
entre o pensar, o sentir e o agir, de modo que, a partir do que o grupo
traz explicitamente, poderemos chegar às demandas implícitas.
Segundo a interpretação de Berstein (1989) sobre a proposta de
Pichón-Rivière, é no grupo que se dão dois níveis de articulação: a
verticalidade e a horizontalidade. A verticalidade está relacionada
à história individual de cada integrante, que permite assumir certos
papéis que foram atribuídos pelos demais. A horizontalidade é
compartilhada pelo grupo e se constitui o denominador comum
que os unifica, que pode ser de natureza consciente ou inconsciente.
Nessa mesma direção, na Tipificação Nacional de Serviços
Socioassistencias é assegurado ao adolescente o acesso a experiências
para se relacionar e conviver em grupo, administrar conflitos por
meio do diálogo, compartilhando modos de pensar, agir e atuar
coletivamente, assim como experiências que possibilitem lidar de
forma construtiva com potencialidades e limites.
212
Dessa forma, o atendimento em grupo se constitui como
uma estratégia de intervenção na qual o adolescente depara-se
com um ambiente propício para colocar-se em relação com o
outro, sendo levado a refletir e levando os demais participantes
a refletir acerca de sua condição enquanto sujeito social, que
promove uma intervenção no mundo, ampliando, assim, suas
possibilidades/potencialidades de intervenção consciente
nos rumos de sua própria história. Nesse sentido, reitera-se a
concepção de Leonardo Barbosa (2002, p. 10), quando defende
que “o processo de desenvolvimento do adolescente passa pela
aprendizagem de um posicionamento crítico e responsável em
relação às suas condutas”.
Em conformidade com o SINASE, a intervenção em grupo
assume a condição de prática transformadora, na medida em que
encarna a ação educativo-crítica apregoada por Freire (2007, p.
23), quando propõe que o pensador parte do pressuposto de que
não existe educador sem educando e de que os dois, apesar das
diferenças, não se reduzem à condição de objeto um do outro,
já que “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina
ao aprender... Quem forma se forma e re-forma (sic) ao formar e
quem é formado forma-se e forma ao ser formado”.
Com essa assertiva, Freire propõe uma ação pedagógica
segundo a qual os envolvidos no processo são vistos como atores
e sujeitos do processo educativo em constante diálogo, dispostos
a se posicionarem contra e a superarem as diversas situações de
opressão e exclusão social a que são submetidos e se submetem.
Em sua pequena trajetória, a proposta de intervenção “Papo
Aberto” tem se esmerado por consolidar-se enquanto espaço de
reflexão e socialização, encontrando, em seu transcurso, desafios
– alguns declarados, outros velados –, mas também alternativas
de superação. Um dos desafios a serem enfrentados situa-se no
âmbito do grupo propriamente dito.
Os adolescentes, ao serem individualmente convidados a
participar do trabalho em grupo e, cabe ressaltar, escolhidos e
213
separados segundo alguns critérios básicos, entre outros, como
identificação prévia das facções e territórios de pertencimento,
mostram-se solícitos. Porém, a realidade de colocar-se em
grupo desperta, preliminarmente, insegurança, fato superado à
medida que a proposta de trabalho é apresentada e os vínculos,
garantidores da confiança, estabelecidos.
A partir dessa primeira conquista, o uso da liberdade de
expressão, por meio da fala e da linguagem corporal, sinaliza
o início de uma nova fase, na qual o grupo ruma pelas veredas
da conquista de alguns dos objetivos específicos propostos: a
socialização das experiências, o fortalecimento dos vínculos
sociais, o desenvolvimento do pensamento crítico-reflexivo, o
reconhecimento de suas habilidades e limites, dentre outros.
Observamos que a dinamicidade característica desse
trabalho, a princípio, provoca certo espanto, por se verem
envolvidos em um outro contexto que reforça a proposta da
socioeducação no que tange ao protagonismo de sua história.
Um outro desafio, mais difícil de ser suplantado, refere-se à
aderência à proposta por parte de todos os executores de medidas
atuantes no equipamento, não por descrédito na aplicabilidade da
mesma, mas pelo aumento progressivo das atribuições técnicoburocráticas. Diante do acúmulo e da sobrecarga de trabalho, já
tão intenso, notamos resistências e dificuldades dos atores em
assumir o compromisso com um novo investimento a ser inscrito
no plano de atendimento.
Quanto aos entraves sob o ponto de vista dos recursos para o
trabalho, preferimos não os elencar, por acreditarmos que nossos
discursos e nossas práticas têm sido sorrateiramente impregnados pelo
que ousamos chamar de “cultura da lamentação”, que vem descartando
o caráter propositivo que a queixa pressupõe. Não queremos, com
isso, desconsiderar o papel simbólico da queixa, haja vista seu aspecto
minimizador do sofrimento e da frustração que as precárias condições
de trabalho nos causam, mas ressaltar que a contestação desprovida de
possibilidades perde seu sentido por excelência.
214
Considerações finais
Trabalhar com adolescentes e jovens é um enorme desafio que
exige formação continuada, técnica, escuta qualificada, criatividade e,
principalmente, atitudes acolhedoras que possam reforçar a autoestima,
transparecendo a confiança que devemos depositar em sua capacidade
de ressignificação frente à vida e a possibilidade de novas escolhas. A
proposta de intervenção em grupo, ultrapassando seu aspecto mais
imediato de propiciar a reflexão conectada ao protagonismo juvenil,
visa contribuir, a longo prazo, com a mudança de paradigmas culturais
presentes em nossa sociedade.
Segundo Gramsci (apud ABREU, 2008), a criação de uma
nova cultura não significa somente fazer descobertas ditas originais;
significa, também e sobretudo, difundir com criticidade as verdades já
descobertas, socializando-as, transformando-as em bases de ação vitais,
em elemento de coordenação e de ordenação intelectual e moral. Para
o autor, a cultura está enraizada na relação orgânica entre a estrutura e
a superestrutura, corporificando nexos entre os interesses econômicos,
políticos e ideológicos.
A experiência advinda do acompanhamento das medidas
socioeducativas, em meio aberto, aponta para o ato infracional
como um subterfúgio de vulnerabilidades muito mais profundas e
conflitantes a permear o cotidiano desses adolescentes, exigindo, da
equipe técnica, uma postura que ultrapasse os dados explícitos ou
do senso comum, revestindo-se do que Freire (2005, p. 21) propõe:
“a história é tempo de possibilidades e não de determinismo, que o
futuro, permita-me reiterar, é problemático e não inexorável”. Ou seja,
somos seres condicionados, mas não determinados.
215
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216
Famílias e Escola como dimensões possíveis na (re)construção
da cidadania do adolescente/jovem em conflito com a lei
Ana Maria Vasconcelos Moreira52
Fabiana Ferreira Braga53
Resumo: Este artigo propõe alguns pontos para reflexão
acerca das questões relacionadas ao adolescente/jovem em
conflito com a lei, no Brasil, a partir de duas esferas imprescindíveis
para o desenvolvimento e a formação da pessoa humana, que são
a família e a escola, e as condições determinadas e determinantes
de uma identidade cidadã.
Palavras-chaves: adolescência, educação, família, cidadania
Introdução
Este artigo é produto de debates e reflexões coletivas iniciadas
a partir dos encontros sistemáticos promovidos pelo Curso de
Formação dos Operadores do Sistema Socioeducativo do Estado do
Rio de Janeiro, convênio firmado entre o governo do Estado do Rio de
Janeiro, DEGASE, e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência
da República, sob a coordenação pedagógica da Escola de Gestão
Socioeducativa Paulo Freire e da Assessoria de Medidas em Meio
Aberto e ao Egresso, AMSEG, com o grupo de trabalho interdisciplinar
do Centro de Atividades Intensivas, CAI-Belford Roxo.
52
Assistente social do Departamento Geral de Ações Socioeducativas, desde
1998, e trabalha no Centro de Atividade Intensiva - CAI-Belford Roxo, Unidade de
internação, com adolescentes do sexo masculino
53
Professora de Língua Portuguesa e Literaturas da Diretoria Especial de
Escolas Prisionais e Socioeducativas- SEEDUC, desde 2010, e trabalha no Colégio
Estadual Jornalista Barbosa Sobrinho, anexo ao Centro de Atividade Intensiva - CAIBelford Roxo, com adolescentes masculinos, em privação de liberdade
217
Está sob o título “Famílias e Escola como dimensões possíveis na (re)
construção da cidadania do jovem/adolescente em conflito com a lei”,
porém o tema central do texto não são as famílias, nem a escola e nem
o adolescente, mas a cidadania e a problematização de sua dimensão
complexa de construção e reconstrução em um país demarcado por
profundas desigualdades, ainda mais quando se trata da condição de
privação de liberdade.
Marshall atribui à conquista da cidadania:
A universalização progressiva de três tipos de direitos: os direitos civis
(todos são cidadãos livres), os direitos políticos (todos devem eleger
quem os representa no governo e parlamento) e os direitos sociais (acesso
a um conjunto básico de políticas sociais), sendo que esses direitos se
configuraram em diferentes momentos da história da humanidade e foi a
partir do século XX que as três dimensões se juntaram para a constituição
da cidadania integral ou plena. (PEREIRA, 2008, .)
Essa dimensão da cidadania ainda não se configurou no Brasil,
principalmente entre as classes de menor poder aquisitivo, como as
famílias dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa
de internação, em decorrência de o país apresentar um quadro de
desigualdade econômica e social entre as classes sociais.
O artigo é um produto oriundo de reflexões e debates a
partir de nossas práticas de trabalho nos espaços sócio-ocupacionais
das instituições CAI-Belford Roxo e Colégio Estadual Jornalista
Barbosa Lima Sobrinho, onde transitam as equipes de trabalho
interdisciplinares (direções, equipe técnica, administrativos, agentes
educacionais e disciplinares, professores, instrutores) e os adolescentes
em cumprimento de medida socioeducativa de internação54 .
O nosso objeto de estudo é a cidadania enquanto uma questão
política e a sua dimensão no âmbito do espaço privativo das famílias e
no espaço público da escola.
54
A internação é uma medida privativa de liberdade prevista no art. 121 do
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), está sujeita aos princípios da excepcionalidade, brevidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento e
constitui a mais rigorosa das medidas.
218
Foram selecionados as famílias, no plural em decorrência
de seus múltiplos arranjos, e a escola, por ser o lócus privilegiado
de mediação e aquisição não apenas do saber, mas de interação,
socialização, reciprocidade e troca – entretanto, no interior
dessas instituições educadoras e formadoras, há contradições e
conflitos – e, por fim, os adolescentes em conflito com a lei, em
cumprimento de medida de internação no CAI-Belford Roxo, por
serem os principais usuários de nossas intervenções de trabalho.
Entendemos que “toda a vida social é essencialmente
prática. Todos os mistérios que desviam a teoria para o
misticismo encontram a sua solução racional na prática humana
e na compreensão dessa prática” (MARX, 1845.).
Os nossos objetivos, ao levantarmos essa temática
relacionada à adolescência em situação de institucionalização, à
família e à escola enquanto espaços instituídos e relevantes para
o exercício da cidadania, são:
1 Suscitar o debate e a reflexão em torno de duas instituições
vitais, Família e Escola, para o desenvolvimento da pessoa e a
convivência em sociedade;
2 Compreender a educação (formal e informal) como um ato
político, cultural e social, a fim de que haja transformação efetiva
de seus participantes;
3 E identificar os elementos constitutivos para a (re)construção
da “cidadania” do jovem/adolescente em privação de liberdade.
A motivação para a construção deste trabalho partiu de
nossas inquietações no exercício da prática profissional e da
necessidade de refletirmos acerca da base de sustentação para
o desenvolvimento do adolescente autor de ato infracional55 ,
visando às mudanças objetivas e subjetivas para o rompimento
com as práticas criminosas.
55
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - Art. 103. Considera-se Ato
Infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal.
219
Família e Escola como espaços de formação e educação Cidadã
As famílias referenciadas neste artigo apresentam
características monoparentais e extensivas, isto é, são formadas
por apenas uma das partes, representadas ora pelo pai, ora pela
mãe, que, na sua maioria, constituíram novos arranjos familiares,
por meio de relacionamentos com outros parceiros.
O conceito de família monoparental brasileira, que a
princípio era restrito ao campo do Direito Constitucional, a partir
da Constituição Federal de 1988, com o novo Código Civil56 ,
ganhou reconhecimento por meio do “direito de família”, como
“a família é formada pelo casamento civil ou religioso, pela união
estável ou comunidade formada por qualquer dos pais com seus
descendentes; e as mães solteiras formam família com seus filhos”.
As famílias que têm seus filhos no CAI-Belford Roxo quase
em sua totalidade têm no poder familiar as mulheres como as chefas
de família, com dupla ou tripla jornada de trabalho – trabalhando
dentro e fora de casa para o sustento da família e, dentre outros
motivos, acabando por ter que assumir o papel de “pãe”57.
É preciso não esquecer que as mulheres chefes de família costumam ser
também “mães-de-família”: acumulam uma dupla responsabilidade,
ao assumir o cuidado da casa e das crianças juntamente com o sustento
material de seus dependentes. Essa dupla jornada de trabalho geralmente
vem acompanhada de uma dupla carga de culpa por suas insuficiências
tanto no cuidado das crianças quanto na sua manutenção econômica.
É verdade que essas insuficiências existem também em outras famílias,
e igualmente é verdade que ambas têm suas raízes nas condições
geradas pela sociedade.
Porém, esses fatores sociais são ocultados pela ideologia que coloca a culpa
na vítima, e o problema se torna mais agudo quando as duas vítimas são
encarnadas por uma só pessoa. (BARROSO & BRUSCHINI, 1981, p.40)
56
Código Civil Brasileiro - LEI No 10.406, De 10 de Janeiro de 2002; entrou em
vigor em 03 de janeiro de 2003.
57
Pãe – Neologismo criado para designar o sujeito que ocupa simultaneamente
os papéis de pai e mãe.
220
Outro aspecto observado é que as famílias responsáveis
pelos adolescentes institucionalizados, quase majoritariamente,
apresentam baixo nível de escolaridade, inserem-se no mercado
de trabalho informal e a dimensão política vivenciada é a da
cidadania invertida.
Sonia Fleury conceituou cidadania invertida como
Quando o indivíduo entra em relação com o Estado no momento em
que se reconhece como não-cidadão. Tem como atributos jurídicos e
institucionais, respectivamente, a ausência de relação formalizada
de direito ao benefício, o que se reflete na instabilidade das políticas
assistenciais, além de uma base que reproduz um modelo de
voluntariado das organizações de caridade, mesmo quando exercidas
em instituições estatais. (FLEURY, 2003, p.76)
O termo “cidadania” no Brasil se difundiu no decorrer dos
movimentos sociais a partir dos meados dos anos 70 do século XX,
com o processo de redemocratização, e teve a sua condensação
por meio dos direitos sociais previstos na Constituição de 1988,
expressão de conquista da sociedade civil organizada. Entretanto,
percebe-se que os direitos sociais, apenas pela letra da lei, não
são suficientes para assegurar o acesso às políticas sociais.
O Bolsa Família, por exemplo – um programa de
transferência de renda com condicionalidades, para beneficiar
famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza, previsto
na Lei Orgânica de Assistência Social58 (LOAS), sendo um dos
critérios a presença de crianças e adolescentes na composição do
grupo familiar –, deveria contemplar a maioria das famílias dos
adolescentes tratados neste artigo, entretanto são poucas as que
estão inseridas nessa política socioassistencial.
Nas atuais políticas de Assistência Social no Brasil, estão
previstos os serviços e atendimentos básicos e, ainda, os de
58
LOAS Lei 8742, de 07.12.1993 - Art. 1º A assistência social, direito do cidadão
e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que prove os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública
e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas.
221
média e alta complexidade a serem executados pelos aparelhos
de assistência social pela esfera municipal, através do Centro de
Referência e Assistência Social-CRAS e do Centro de Referência
Especializado em Assistência Social-CREAS, cujas ações são
direcionadas principalmente para o provimento e a sustentação
das necessidades das famílias. Tais políticas de proteção social
significam um grande avanço e são resultados de lutas sociais.
Entretanto, observam-se práticas de cunho moralista no
atendimento aos usuários desses equipamentos de referência.
Além disso, os serviços ofertados ainda não fornecem cobertura
para a totalidade da população que dele necessita, pois não há
alcance em todas as regiões do Brasil.
Em nosso entendimento, o grupo familiar é (ou deveria ser) o
primeiro espaço de socialização. Nas relações sociofamiliares, estão
presentes múltiplas possibilidades de vida, tanto na esfera da produção
quanto na da reprodução biológica e social, porém não podemos
esquecer que os setores econômicos, políticos e comunitários também
influenciam nos aspectos ideoculturais da comunidade familiar.
Dessa forma, ao habitar em determinados espaços geográficos,
denominados como cidade, bairro, favela, comunidade,
independentemente da representação concebida acerca do solo
urbano, a questão relevante está na ocupação dominadora do
narcotráfico nos territórios onde os sujeitos habitam.
Nesses locais, habitam, majoritariamente, as famílias dos
adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, que
se tornam vítimas e/ou autores da cultura da violência. Os
condicionamentos ideoculturais da violência criam seus próprios
códigos de condutas e rivalidades entre as populações habitantes
de qualquer um dos diversos domínios faccioso-criminosos, e
os reflexos das rixas e discórdias irão aparecer no cotidiano das
localidades e, posteriormente, na escola onde estão inseridos
os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de
internação em questão.
222
Entendemos que a escola localizada no espaço institucional
do CAI-Belford Roxo é o local onde os jovens/adolescentes em
conflito com a lei e, também, alunos podem “livremente” despertar
as suas potencialidades nas relações sociais de construção do saber,
de troca dos saberes e, também, por ser reconhecida como espaço
para relações afetivas, possibilitando comportamentos sociais
revertidos, construídos e reconstruídos, por meio da compreensão
da identidade estudantil dos jovens estudantes.
Segundo Paulo Freire, “a conscientização é um compromisso
histórico [...], implica que os homens assumam seu papel de
sujeitos que fazem e refazem o mundo. Exige que os homens
criem sua existência com um material que a vida lhes oferece
[...], está baseada na relação consciência-mundo”.
A base dessa pedagogia pela prática de liberdade é o diálogo,
visto, principalmente pela educação em espaços de privação de
liberdade, como o mais importante instrumento para a educação
como prática emancipatória.
O diálogo é essencial para quem exerce o papel de
educador-libertador. O verdadeiro diálogo ocorre quando os
agentes envolvidos na relação educacional se comprometem com
o pensamento crítico, que só se concretiza quando há humildade
e esperança, possuindo a função emancipadora e visando à
construção da autonomia do educando.
Para Paulo Freire, o princípio da proteção integral perpassa
pela educação enquanto instrumento de realização do humano,
particularmente na oportunidade aos que estão em pleno
desenvolvimento físico e mental. Nessa perspectiva, há uma
superação do modelo de educação opressora para a educação
transformadora, enquanto prática de liberdade.
Somente uma educação que privilegie o sujeito enquanto
construtor da própria história poderá gerar transformação.
Privilegiar os sujeitos, mas não os excluir de responsabilizações
pela autoria infracional é um dos principais desafios da escola,
223
assim como, também, o de lhes oferecer cidadania e mostrar “o
direito de ter direitos” enquanto adolescentes atendidos pelo
sistema socioeducativo de medida de privação de liberdade.
É observado que alguns adolescentes, ao chegarem à unidade
escolar situada no interior do CAI-Belford Roxo, parecem seres
em sua natureza primária: brutalizados, sem referências, sem a
apropriação de sua cidadania, sem a concepção dos seus direitos
e deveres como cidadãos, uma vez que tiveram os seus direitos
violados ou, até mesmo, não se reconhecem como portadores de
direitos, por terem vivenciado somente a subcidadania.
Logo, o primeiro papel da escola deve ser o de trabalhar,
junto aos alunos institucionalizados no CAI-Belford Roxo, a noção
de cidadania e os fundamentos dos direitos humanos, a fim de que
se reconheçam como cidadãos e, então, partícipes da sociedade.
No que se refere à metodologia de ensino para os alunos que
também são autores do ato infracional e estão em cumprimento
de medida socioeducativa de internação, temos que refletir sobre
algumas questões:
1 Estamos educando para uma mera transmissão de
conhecimentos e reprodução de saberes ou para o reconhecimento
da cidadania?
2 Qual escola se deseja na socioeducação?
3 Qual é o propósito do adolescente em conflito com a lei,
ao ser inserido na escola?
Essas indagações devem ser compartilhadas com toda a
comunidade escolar, tais como os professores versus os alunos versus
o pessoal de apoio, e se estender para as equipes interdisciplinares
da Unidade de Execução de Medida Socioeducativa.
224
Elementos Constitutivos da Cidadania na Privação da Liberdade
Uma nova compreensão e um novo olhar para a criança e o
adolescente surgem com a promulgação da Carta Magna de 1988, que
registra uma revolução constitucional na defesa e na garantia dos direitos
da criança e do adolescente, quando passam a ser compreendidos
como sujeitos de direito, adotando a doutrina de “Proteção Integral”,
tendo por base as Convenções e Leis Internacionais dos Direitos das
Crianças59 , dos quais o Brasil faz parte como Estado Membro.
Os marcos legais acima mencionados são considerados
elementos constitutivos de cidadania, acrescidos dos “direitos de
família”, com o atual Código Civil, que irá descaracterizar o termo de
família desestruturada, quando reconhece a família monoparental.
Entretanto, o acesso aos direitos socais ainda está na letra da lei e se
observa a discriminação e o estigma, principalmente, ao adolescente
pobre e negro, sendo esse em maior numero no cumprimento de
medida socioeducativa de internação.
Deve-se atentar para o ECA, especialmente nos artigos 103
e 111, que se referem às medidas socioeducativas aplicáveis a
adolescentes autores de atos infracionais, ou seja, quando passam à
condição de vitimizadores; mas, em muitos casos, antes de chegarem
a essa condição, os adolescente foram vítimas da exclusão social, da
omissão do Estado ou vieram de famílias negligenciadas.
No Rio de Janeiro, as medidas socioeducativas de privação
total e parcial de liberdade (internação e semiliberdade) são de
competência do poder executivo do Estado, e as medidas de meio
aberto (liberdade assistida e prestação de serviço à comunidade) são
de competência do poder executivo municipal, conforme orientação
do SINASE – Sistema Nacional Socioeducativo.
59
Leis internacionais que se referem aos direitos das crianças e dos adolescentes, como a Declaração dos Direitos da Criança (Resolução 1.386 da ONU - 20 de novembro de 1959); as regras mínimas das Nações Unidas para administração da Justiça
da Infância e da Juventude - Regras de Beijing (Resolução 40/33 - ONU - 29 de novembro de 1985); e as Diretrizes das Nações Unidas para prevenção da Delinqüência
Juvenil - diretrizes de Riad (ONU - 1º de março de 1988 - RIAD)
225
O DEGASE – Departamento Geral de Ações Socioeducativas
– é o gestor normativo, administrativo e executivo das medidas
socioeducativas de internação e semiliberdade, e o CAI-Belford
Roxo é uma delas.
O CAI-Belford Roxo tem uma unidade executiva de
internação provisória, com capacidade de atendimento para
19 adolescentes, sendo 1 (uma) vaga destinada a adolescente
portador de necessidade especial, em anexo à unidade de medida
socioeducativa de internação, com capacidade de atendimento de
124 adolescentes, destinada exclusivamente para o sexo masculino,
na faixa etária de 12 a 18 anos, podendo se estender até os 21
anos. Porém, ainda se aguarda pela adequação dos parâmetros
arquitetônico, pessoal, etc, que atenda às exigências do SINASE.
Conforme consta no ECA, Artigo 121, “A internação
constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios
de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar
de pessoa em desenvolvimento”; logo, o direito de ir e vir
está cerceado, mas outros direitos estão previstos, tais como
ser tratado com respeito e dignidade; receber escolarização e
profissionalização; realizar atividades culturais, esportivas e de
lazer; ter acesso aos meios de comunicação social; em nenhum
caso, haverá incomunicabilidade, dentre outros.
A Escola Estadual Jornalista Barbosa Lima Sobrinho assiste o
direito de escolarização previsto no ECA e funciona junto ao CAIBelford Roxo, atendendo ao Ensino Fundamental na modalidade
regular anual, e ao Ensino Médio pelo Projeto Autonomia60. Já a
internação provisória é assistida pela Educação Multiseriada.
Contudo, a dimensão política da educação, seja por meio
da transmissão da rede oficial de ensino, seja pela informalidade
da “educação” sociofamiliar, necessita contemplar a totalidade
humana nos aspectos éticos da cidadania e dos direitos humanos.
60
Projeto Autonomia é uma parceria entre a Secretaria de Estado de Educação
(SEEDUC) e a Fundação Roberto Marinho, visando À diminuição da distorção idade-série dos alunos da Educação Básica com idade mínima de 15 anos no Ensino
Fundamental e de 17 anos no Ensino Médio.
226
A “cidadania” deve ser a mediação entre os aspectos
sancionatório e o pedagógico, pois o respeito e a dignidade são
vias de mão dupla, pautadas na responsabilização tanto dos
adolescentes quanto dos que lhes garantem a custódia.
Considerações Finais
Ao nos debruçarmos sobre este trabalho, foi-nos possível
perceber o quanto o nosso fazer profissional nos mobiliza e nos
impulsiona para a reflexão, para o debate e para a exposição do
pensar e do fazer.
Nosso propósito, ao realizarmos um artigo sobre “Família e
Escola como dimensões possíveis na (re)construção da cidadania
do jovem/adolescente em conflito com a lei”, foi, também, o de
refletir sobre o tipo de cidadania que nós temos.
Pudemos perceber que muito avançamos, mas ainda temos
muito a conquistar, pois a Constituição Federal, o Estatuto da
Criança e do Adolescente e o Código Civil atual são expressões
de conquistas da sociedade civil organizada.
O estigma deixado pelo Código de Menores ainda se faz
presente na visão elitista, ao tratar a delinquência juvenil como
“coisa” à parte da sociedade, e não pertencente à própria sociedade.
O nosso compromisso profissional é, também, o de expor
nossas inquietações.
227
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São Paulo: Cortez, 1997.
229
Os desafios para a efetivação do SINASE no Centro de
Referência Especializado de Assistência Social – CREAS
Maurizete da Silva Arruda61
Janine Duarte Fernandes62
Renaud Brazileiro Nogueira da Silva63
Resumo: Este artigo versa sobre uma abordagem reflexiva
conceitual do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
(SINASE) e tem por objetivo identificar e explicitar os desafios
atinentes à efetivação do SINASE na realidade microssocial
do Centro de Referência Especializado de Assistência Social
(CREAS) Padre Guilherme Decaminada, que é um dispositivo
de Média Complexidade, vinculado à Secretaria Municipal de
Desenvolvimento Social da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro.
O referencial teórico pauta-se no paradigma de teoria crítica
e, nesse sentido, explicita discussões sobre descentralização,
participação e medidas socioeducativas. Trata-se de um estudo
qualitativo no qual se adotou como instrumentos de coleta de
dados: a) pesquisa exploratória referente ao tema em questão; e
b) entrevista semiestruturada com a equipe técnica do CREAS
envolta no acompanhamento dos adolescentes em cumprimento
de medidas socioeducativas em meio aberto. Os resultados do
estudo mostraram que o SINASE constitui um avanço no tocante
ao tratamento para com adolescentes em conflito com a lei, pois
regulamenta questões previstas no Estatuto da Criança e do
Adolescente, mas necessariamente não se constitui a garantia
para a efetivação da intersetorialidade, mas uma possibilidade.
Verificou-se, também, que, apesar da lei do SINASE, ainda
existem desafios a serem superados que requerem dos atores
61
Assistente Social, mestre em Educação e diretora do CREAS Padre Guilherme
Decaminada da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social da cidade do Rio de Janeiro.
230
62
Assistente Social da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro.
63
Psicólogo do CREAS Padre Guilherme Decaminada
sociais envolvidos nesse processo empenho, compromisso e
amadurecimento na formação de cultura política, construção de
estratégias, desconstrução de estigmas, de forma a contribuir para
a efetivação do SINASE e consolidação de que os adolescentes,
mesmo em conflito com a lei, são sujeitos de direitos.
Palavras Chaves: Descentralização, participação e medidas
socioeducativas.
Introdução
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) surge da
necessidade de um reordenamento jurídico no Brasil, uma vez que
o Código de Menores tornou-se incompatível com os princípios
da Constituição Federal, de 1988, e da Convenção Internacional
dos Direitos da Criança, de 1989, da qual o país é signatário.
Em um cenário marcado por vulnerabilidades de toda
ordem, o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
(SINASE) vem como estratégia para reverter a situação. O desafio
versa garantir prioridade do poder público nos investimentos
em medidas socioeducativas, mudando a lógica, até então
predominante, de repressão e punição dos adolescentes autores
de ato infracional, garantindo-lhes os direitos preconizados
pelo ECA. Assim, obriga a garantia da educação para os
adolescentes, por meio da aplicação das medidas socioeducativas,
estabelecendo uma maior coordenação entre União, Estados e
Municípios e instituindo práticas de controle social nas políticas
e na execução das medidas de recuperação.
Segundo Souza (2008), as medidas socioeducativas podem
ser consideradas uma resposta dada pelo Estado à prática do
ato infracional, cuja finalidade visa favorecer a emancipação e
o protagonismo do adolescente. Nessa perspectiva, as medidas
231
socioeducativas “não podem ser vistas como uma forma de
“punição” dirigida às condutas consideradas desviantes em
relação à norma penal, entretanto devem ser eficazes a ponto de
interromper o ciclo de envolvimento do adolescente com o ato
infracional” (SOUZA, 2008, pp. 27-28).
A Liberdade Assistida e a Prestação de Serviços a
Comunidade legitimam-se como Medidas Socioeducativas em
Meio Aberto, a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA); todavia, somente com a Lei do SINASE (Lei n 12.594)
em 2012, as medidas socioeducativas ganham uma legislação
detalhada, que ordena desde a parte conceitual até o financiamento
do Sistema Socioeducativo, definindo papéis e responsabilidades.
No tocante à Liberdade Assistida, essa tem como uma
de suas potencialidades a aproximação com a realidade dos
adolescentes autores de atos infracionais. É uma medida que,
pela sua natureza, implica a permanência do sujeito em seu local
de origem, pois exige o fortalecimento dos vínculos familiares e
comunitários. Outro ponto relevante da Liberdade Assistida é
a importância que se dá ao acesso à cidadania. Assim, com a lei
do SINASE o meio aberto possui prioridade na socioeducação e
ressocialização dos adolescentes autores de ato infracional.
O SINASE pressupõe a incompletude institucional em que se
faz necessário o entrosamento, uma articulação mais efetiva entre
os diferentes atores sociais do Sistema de Garantia de Direitos, no
sentido de possibilitar a inserção, o atendimento do adolescente
em conflito com a lei, de modo a contribuir para o empoderamento
do mesmo com vistas à criação e ao fortalecimento dos vínculos
sociocomunitários e familiares, implicando necessariamente
processos de descentralização e participação.
232
Apresentação da temática
Os aspectos acima mencionados constituem o objeto deste
artigo, que, nesse sentido, consiste em explicitar os desafios afetos à
efetivação do SINASE na realidade microssocial do CREAS Padre
Guilherme Decaminada no processo de acompanhamento dos
adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas.
O procedimento metodológico percorrido no sentido de
explicitar os desafios para a efetivação do SINASE no CREAS
envolveu o aprofundamento teórico conceitual de categorias
como descentralização, participação e medidas socioeducativas,
assim como a realização de entrevistas com a equipe técnica
do CREAS que acompanha os adolescentes e jovens em
cumprimento das medidas socioeducativas de Prestação de
Serviços à Comunidade (PSC) e Liberdade Assistida (LA).
Em que pese à categoria descentralização, neste artigo
privilegiamos a perspectiva dialética, sobre a qual Nogueira (1997)
afirma que se estabeleceu certa confusão entre descentralização,
democratização e participação, como se a descentralização
contivesse em si mesma o impulso necessário para democratizar
a sociedade e ampliar a participação dos cidadãos. É que a
descentralização, como valor e como proposição operacional,
acabou sendo historicamente determinada pela luta em favor da
democratização, tendendo a ser vista como instrumento dela, ou
seja, como sendo sinônimo incontestável de democracia, fator
que levaria por si só à maior equidade na distribuição de bens e
serviços e maior eficiência na operação do aparato estatal.
Nogueira (1997) destaca ainda que a descentralização
e participação não são termos, e muito menos operações,
necessariamente complementares. Nem toda descentralização
leva automaticamente à maior participação. A descentralização
pode ser “imposta” por força de lei, estabelecida, mas a
participação não, pois essa depende de fatores sócio-históricos
233
e de graus de amadurecimento político-ideológico e organizacional
que, muitas vezes, aparecem após um longo período de tempo. Ela
existe ou não no processo, não cabendo ao órgão central concedê-la
ou delegá-la (NOGUEIRA, 1997). O que a descentralização permite:
(...) é uma melhor canalização ou vocalização das demandas da
população, mas isso só ocorre em comunidades que estão mobilizadas
na defesa de seus interesses. Assim a descentralização pode ser
instrumento de poder das comunidades organizadas, mas também pode
ser um instrumento de opressão das comunidades com baixo grau de
consciência e organização. (MÉDICI, 1995:96 apud NOGUEIRA, 1997)
Apoiado em Nogueira (1997), é possível desconfiar que
a descentralização não seja necessariamente a solução para as
mazelas das políticas sociais, pois democracia e participação
dependem das relações sociais, e não em si só da descentralização.
Nesse sentido, a abordagem explicitada pelo autor corrobora
com a fundamentação teórica que se pretende adotar a respeito
da descentralização.
Nessa perspectiva, a descentralização deve ser pensada
dialeticamente, considerando a historicidade e as contradições
das relações sociais e podendo ser concebida como o processo
que possibilita a gestão descentralizada e participativa
que está longe de ser uma operação simples, que dependa
exclusivamente de boas doutrinas, de tecnologias gerenciais
refinadas, recursos metodológicos modernos ou mesmo de
uma impetuosa vontade política, pois diz respeito tanto ao
envolvimento de instâncias sob controle do Estado, quanto ao
envolvimento de entidades, movimentos e dinâmicas societais
que fogem do aparelho estatal. E, nesse caso, o êxito da gestão
descentralizada e participativa necessariamente dependerá
mais das relações estabelecidas entre os atores envolvidos do
que dos ditames do arcabouço jurídico constitucionais.
Ao contextualizar a discussão teórica com a realidade
microssocial do CREAS Padre Guilherme Decaminada, afirma-
234
se que o êxito do processo que implica descentralização e
participação refere-se à possibilidade de as relações no âmbito local
estarem efetivamente pautadas no compromisso dos diferentes
atores sociais do Sistema de Garantia de Direitos no tocante
ao cumprimento de suas responsabilidades e competências.
Outra questão é que, como se refere ao acompanhamento de
adolescentes e jovens em conflito com a lei, esses devem ser
concebidos como pessoas em processo de desenvolvimento e
como sujeitos de direitos.
Apesar de o arcabouço teórico e o marco legal existentes
– como a Constituição Federal de 1988, o ECA e o SINASE –
explicitarem, no tocante à participação e responsabilidade, que
é dever do Estado, da família e da sociedade zelar e primar, a
fim de assegurar a proteção e as garantias previstas nas referidas
leis, não é o que se constata no cotidiano dos profissionais
que acompanham os adolescentes e jovens em cumprimento
das medidas socioeducativas no CREAS Padre Guilherme
Decaminada – não que esses negligenciem as prerrogativas, mas
pelo fato de as competências e os compromissos ficarem muito
no âmbito da política de assistência social.
Segundo o universo dos 8 técnicos entrevistados do
CREAS – a saber: 3 (três) assistentes sociais, 2 (dois) psicólogos,
2 (dois) pedagogos e 1 (um advogado) – sobre a participação e
o envolvimento dos atores sociais do sistema de garantias de
direitos no sentido de contribuir para a efetivação e consolidação
do SINASE, todos foram unânimes ao responderem a respeito
da dificuldade de viabilizar uma instituição, a fim de inserir
um adolescente para a Prestação de Serviço à Comunidade,
pois na maioria das vezes, por parte de muitos dirigentes de
instituições, alega-se o receio de o jovem “aprontar alguma coisa
no equipamento” ou mesmo pelo fato de rotular o adolescente
vendo-o como uma ameaça à ordem vigente.
Contrapondo a realidade na operacionalização do sistema
socioeducativo com o que é previsto no ECA e SINASE, pode-
235
se afirmar que esses se propõem a garantir os direitos a todas
as crianças e adolescentes, não excluindo os que cometeram ato
infracional. Isso significa dizer que o cometimento de infração
não faz cessar o direito, o qual deve ser assegurado, inclusive,
durante a vigência da medida socioeducativa, embora ainda seja
desafiador, segundo os técnicos entrevistados, no sentido de se
deparar com preconceitos, estigmas e afins.
Oportuniza-nos mencionar que as medidas socioeducativas
entre outros têm o caráter de responsabilizar o adolescente em
conflito com a lei, mas simultaneamente o protege. Tal afirmativa
está em consonância com o que Gonçalves (2005) aborda ao
mencionar que “a associação entre as medidas socioeducativas e
protetoras quer minimizar os efeitos de uma cultura jurídica que
cerceava a liberdade sem acusação nem processo e acreditava
que a internação pudesse, de per si, restaurar a ordem social”
(GONÇALVES, 2005, p. 50).
Com base no que se foi apurado se faz necessário afirmar
que não se deve ignorar o peso da exclusão social, miséria
e violação de direitos na produção da violência no Brasil. O
constante convívio de toda a sociedade com o crime, não apenas
os mais jovens e pobres, parece indicar que essa é também uma
forma de inserção no mundo do consumo. Há de relacionar a
análise das reproduções sociais, saindo do campo do individual,
e das particularidades da família, como se essa por si fosse
responsável pelas situações das violações.
Outro desafio, segundo a equipe técnica, versa sobre a
necessidade de sensibilização dos demais atores sociais que
compõem o sistema de garantia de direitos, no sentido de
desconstruir estigmas enraizados na sociedade, que só reforçam
a exclusão social e segregam os jovens. Tal procedimento
deve ser processual e continuado, de modo a contribuir para a
formação de cultura, desconstrução de estigmas e propiciar o
fortalecimento dos vínculos sociocomunitários e familiares.
236
Faz-se necessário também rever as formas de contratação da
equipe, os vínculos e as relações trabalhistas com vistas a propiciar
a continuidade e maior permanência da equipe envolvida no
acompanhamento dos adolescentes em decorrência dos vínculos
estabelecidos, assim como para evitar a descontinuidade das ações.
Outra questão apontada pela equipe do CREAS é que se deve
também primar pela capacitação dos envolvidos no processo,
não apenas da equipe do CREAS, pois o SINASE pressupõe a
incompletude institucional, devendo necessariamente haver
articulação e fortalecimento da rede socioassistencial. Assim,
as capacitações devem envolver todos os atores do Sistema de
Garantia de Direitos (Educação, Trabalho e Renda, Esporte e
Lazer, Saúde, Habitação e afins).
Considerações finais
O conceito central da cidadania é a emancipação, no
sentido da construção de sujeitos. A condição de sujeito só
ocorre na relação com o outro, não mais feito objeto, mas também
sujeito, uma relação dialógica entre sujeitos emancipados. Não
há cidadania no isolamento, sem o referencial do outro. Vivemos
hoje imersos no social. O que penso, o que sei, aquilo em que
acredito são construções pessoais nutridas na relação com o outro;
o outro enquanto também sujeito autônomo, diferente ao mesmo
tempo em que igual, diferença, portanto, não hierarquizável
(BORDIGNON, 1993).
A descentralização implica gestão democrática que, para
ser viável, precisa romper a cultura da não participação ou da
participação que se efetiva apenas no sentido de aprovar o que já
veio decidido por outras instâncias, e os atores envolvidos devem
responder às novas demandas que emergem, abrindo novos
caminhos de mudanças. Bedin (2007) destaca que sua construção
e efetivação passam pelo compromisso e o envolvimento mútuo
237
dos atores sociais envolvidos, sem os quais o ideário proclamado
de democracia não se concretizará, podendo seu vigor ficar
reduzido a aspectos formais e aparentes.
Para concluir, busca-se um novo modelo, fundado na
emancipação de uma nova cidadania. Trata-se da elevação da
categoria sociológica do poder local, aliando a descentralização
com a participação popular no exercício do poder político e
inaugurando uma forma mais democrática de gestão pública
aliada aos principais objetivos da Constituição Federal e do
Estado Democrático de Direito.
Com base nas discussões apresentadas, busca-se
ressignificar a participação, vencer as resistências pessoais e
hábitos profundamente arraigados, passando a acreditar nas
possibilidades de construir outra realidade na busca de um bem
coletivo comum, através das relações construídas dialeticamente.
Nessa perspectiva, é possível afirmar que um dos principais
desafios para a efetivação do SINASE é o de incrementar o acesso
à informação no sentido de sensibilizar, instruir e potencializar os
atores envolvidos no processo. Implica, também, a desconstrução
de estigmas e preconceitos e a formação de cultura política que
efetivamente conceba o adolescente em conflito com a lei como
pessoa em processo de desenvolvimento e sujeito de direitos.
Entendemos que, nesse sentido, as capacitações continuadas
dos atores sociais envolvidos possibilitariam contribuições
significativas (GOHN, 2001).
238
Referências bibliográficas
BEDIN, Silvio Antônio. Processos, desafios e exigências na construção
da gestão democrática da educação. In: XXIII Simpósio Brasileiro
de Política e Administração da educação - V Congresso Luso
Brasileiro de política e administração da educação - I Colóquio
Ibero-americano de politica e administração da educação,
2007, Porto Alegre. XXIII Simpósio Brasileiro de Politica e
Administração da educação, 2007.
BORDIGNON, Genuíno. “Gestão Democrática do Sistema
Municipal de Educação”. In GADOTTI, M e ROMÃO, J. E.
Município e Educação. São Paulo: Cortez, 1993.
CARTILHA DO SINASE. Disponível em: <www.ebookbrowse.
com/cartilha-sinase-pdf-d204091899>. Acessado em: 28 jun 2013.
GOHN, Maria da Glória. Educação Não formal e Cultura Política:
impactos sobre o associativo do terceiro setor, 2ª ed. São Paulo: Cortez,
2001 – (Coleção Questões da Nossa Época).
GONÇALVES, Hebe Signorini. Medidas Socioeducativas:
avanços e retrocessos no trato do adolescente autor de ato
infracional. IN: ZAMORA, Maria Helena (Org.). Para além das
grades: Elementos para a transformação do sistema socioeducativo. Rio
de Janeiro: PUC; São Paulo : Loyola, 2005.
NOGUEIRA, Marco Aurélio. A dimensão política da descentralização
participativa. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 11, n.3, p.819, jun./set. 1997.
SOUZA, Rosimeri de e LIRA, Vilnia Batista de. Caminhos para
a Municipalização do atendimento socioeducativo em meio aberto:
liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade. Rio de Janeiro
: IBAM/DES; Brasília : SPDCA/SEDH, 2008.
239
O Sancionatório e o Pedagógico nas Medidas Socioeducativas:
reflexões à luz do pensamento de Erving Goffman e Michel
Foucault
Leonardo Possidonio Domingos64
Pedro de Oliveira Ramos Junior65
Resumo: Este artigo objetiva, por meio das contribuições de
Goffman e Foucault, uma reflexão sobre o sistema socioeducativo
no que se refere à tênue linha que separa o punitivo do pedagógico,
pensando um trabalho socioeducativo que se afaste cada vez mais
da lógica prisional que ainda permeia as instituições, dentro de
um contexto sócio-histórico.
Palavras Chaves: Adolescente; conflito com a lei; Instituições
totais; panótico; socioeducação.
Introdução
Nem sempre é tarefa fácil discorrer sobre um tema como
este: o sancionatório e o pedagógico nas medidas socioeducativas.
Conhecer o funcionamento dessas Instituições não é salvoconduto para entendê-las. A experiência adquirida no trato
com os adolescentes em conflito com a lei e o trabalho com os
socioeducadores66 ajudam-nos a refletir sobre a realidade com
64
Assistente Social da Equipe Técnica Interdisciplinar Cível - 9º NUR - Tribunal
de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, E-mail: [email protected]
65
Psicólogo do Departamento Geral de Ações Socioeducativas - DEGASE, lotado no CRIAAD Teresópolis, E-mail: [email protected]
66
Consideramos que todos os que trabalham nas unidades socieducativas são
socioeducadores, do auxilar de serviços gerais aos gestores. Dessa forma, não reduzirmos o termo para designar especificamente os agentes de disciplina.
240
maior discernimento, gerando saberes e teorias explicativas
sobre as instituições socieducativas e os sujeitos: adolescentes e
operadores do sistema.
Embora sejam valorosos os recortes teóricos e a
importância de sermos conhecedores das legislações que se
referem ao adolescente, é mister a interlocução entre a teoria e a
prática. E é sobre essa prática que falaremos neste trabalho, em
seu entrelaçamento com o tema proposto.
O sistema socioeducativo vem sofrendo grandes
transformações, alinhadas com as normativas internacionais e
nacionais. A mudança de paradigmas nos faz crescer e repensar
a nossa prática institucional, pois aponta o novo direcionamento
no atendimento ao adolescente em conflito com a lei.
Mesmo estando em consonância com essas mudanças,
devemos ter o cuidado de não nos cegarmos diante dos desafios
que temos e ainda teremos pela frente.
A questão do sancionatório e do pedagógico remontam
ações que são anteriores a um código menorista. Após um
processo de lutas e conquistas, vemos uma legislação para o
adolescente que visa à garantia de seus direitos.
Diante do quadro atual, são importantes o conhecimento das
leis, as mudanças arquitetônicas nas unidades socioeducativas
no Estado do Rio de Janeiro e a capacitação profissional
continuada. Igualmente importante é a discussão ético-política
nas unidades sobre o trabalho na socioeducação, pois essa é uma
das estratégias para continuarmos mobilizados e avançando nas
questões do adolescente em conflito com a lei em nosso Estado.
241
Do código de menores ao SINASE: desafios e reflexões
importantes para a contemporaneidade
A substituição do Código de Menores (1979) pelo Estatuto
da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8069/90) gerou uma
mudança no trato desses, em que passa a vigorar a doutrina da
proteção integral, substituindo a doutrina da situação irregular.
O “menor”, termo muitas vezes usado pejorativamente, dá lugar
ao termo “adolescente”. O menor infrator passa a ser reconhecido
como um adolescente que cometeu ato infracional, mas detentor
de direitos. Essa mudança, muito mais significativa do que
uma mera mudança gramatical, está embasada nas normativas
nacionais e internacionais das quais o Brasil é signatário.
O novo entendimento do ECA traz, na sua essência, não
apenas o adolescente como um ser em desenvolvimento, mas
um sujeito de direitos fundamentais e inerente à pessoa humana,
como sinaliza o estatuto, e sob a égide da proteção integral. Os
direitos dos adolescentes devem ser assegurados por todos –
família, sociedade civil e Estado.
Evidentemente, estamos falando de uma mudança legal
(jurídica), que está permeada por contradições e disputas. Nesse
sentido, a conversão proposta pelas entidades e movimentos da
infância e adolescência teve como gênese o ECA e outras leis e
aparatos de políticas públicas, mas não necessariamente rompe
com o modo de pensar que estigmatizava o adolescente.
Na história de nossa sociedade, veremos a hegemonia de
um pensamento e política higienista, assistencialista e repressor
que culminou em uma série de medidas que constituíam um
aparato médico-jurídico-assistencial do Estado brasileiro, tais
como a “Roda dos expostos”, Código Criminal do Império,
Código Penal de 1980, Código de Menores de 1927, FUNABEM
e FEBEM. O advento do ECA, infelizmente, não representa, de
fato, uma mudança de hegemonia em direção ao respeito do
242
ser humano (igualidade e a ampliação e efetivação dos direitos
humanos); pelo contrário, estamos diante da perpetuação de um
processo histórico de marginalização da população pobre.
Ter essa clareza política é importante para a disputa e
implementação de projetos ético-profissionais com uma direção
social humanitária no seio das relações de forças existentes nos
espaços institucionais e na sociedade, além de nos prevenir
de possíveis ilusões no que toca a um suposto progresso no
reconhecimento dos direitos humanos – em especial, no caso de
adolescentes que cometeram ato infracional.
É importante frisar que o pensamento hegemônico,
que também norteia as medidas socioeducativas e as políticas
públicas do Estado brasileiro, tem como origem e/ou referência
a nossa (perversa) experiência colonial e ditadorial, que gera um
pensamento conservador, patriarcal, opressor e medieval. Sendo
assim, a promulgação do ECA ora é expressão de uma vitória
diante de tais correlações de força, ora é uma contradição de um
Estado omisso e punidor.
Os movimentos de reabertura democrática no Brasil, na
segunda metade do século passado, pautavam não só a doutrina
da proteção integral resumida a uma única lei, mas a um conjunto
de medidas (leis, políticas públicas, reconhecimento histórico
de erros do estado etc) que se entrelaçam com os direitos da
criança e do adolescente. Concretamente, podemos citar como
exemplos de tais medidas: a Constituição Federal/1988; a
adesão à Convenção Internacional dos Direitos da Criança –
ONU/1989; a constituição da secretaria nacional de direitos
humanos/1997; o Plano Nacional de Direitos Humanos (1996,
2002 e 2010); a Lei Orgânica da Saúde/1990; a Lei Orgânica da
Assistência Social/1993; o Programa de Erradicação do Trabalho
Infantil/2000; o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa
dos Direitos de Crianças e Adolescentes à Convivência Familar e
Comunitária-PNCFC/2006; o Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo-SINASE /2006; etc.
243
Ainda que se possa considerar que houve avanços
importantes no reconhecimento e trato da infância e adolescência,
há outros desafios e questões fundamentais postos neste debate.
Estão no bojo dessa angústia: a vulnerabilidade social, a que
crianças e adolescentes (pobres) estão submetidos e/ou expostos
ao aliciamento para o trabalho no tráfico de drogas e/ou grupos
criminosos de roubos e furtos, somado à debilidade e fragilidade
da política educacional brasileira; a “questão urbana”, com sério
déficit habitacional e desestrutura das periferias brasileiras de
equipamentos de saúde, assistência, segurança-pública, geração
de emprego, educação e lazer – com o devido respeito ao ser
humano e ao direito de ir e vir; e o reconhecimento do Estado da
necessidade de se debruçar sobre temas recorrentes na política de
saúde, nesse caso a legalização do aborto e das drogas “culturais”.
No que tange especificamente aos adolescentes em
instituições socieducativas privativas e restritivas de liberdade,, que
são os que cometeram algum tipo de ato infracional, ainda vemos
práticas de muitos profissionais da comunidade socioeducativa que
em nada se assemelham ao novos paradigmas da proteção integral.
Entramos, pois, no século XXI ainda com resquícios do
código de menores e com unidades socieducativas, sejam de
internação, internação provisória ou semiliberdade, que ainda
perpetuam a lógica prisional sob o manto da disciplinarização
– ou dos corpos no modelo foucaultiano, ou com a anulação da
personalidade do sujeito, como caracteriza Goffman.
Embora com muitos avanços, ainda observamos momentos
em que a punição, mascarada de lei/ordem, sobrepõe-se à
educação – o pedagógico. Atravessando essas questões, alguns
profissionais, ainda impregnados com o Código de Menores (79),
entendem erroneamente o ECA como apenas punitivo ou, então,
consideram-no como um “mini código penal para inimputáveis”.
O trabalho diário com os adolescentes em conflito com
a lei é difícil e árduo. E a questão que surge é: como garantir
direitos a um sujeito adolescente?
244
Nas unidades socioeducativas, a questão da cidadania
salta aos olhos: sem Certidão de Nascimento, Identidade, alguns
sem referência familiar. Onde foi parar sua cidadania? Ele já se
sentiu um cidadão? Sente ou sabe que tem direitos básicos? Sabe
que tem deveres?
Dentro das unidades, todos parecem um só. Histórias
semelhantes, direitos aviltados, deveres que não respeitam,
uniformizados, estigmatizados, sem nome etc. No lugar da sua
história individual, eles parecem substituí-la por uma história da
Instituição. Afinal, boa parte da adolescência é passada em um outro
lugar (Instituição/vias públicas) que não a sua casa, com sua família.
Tanto o PNCFC quanto o SINASE apontam ações que
minimizam os efeitos da Institucionalização.
O PNCFC cita autores como Winnicott e Dolto, que falam
dos efeitos nefastos para crianças e adolescentes que são separadas
da família e institucionalizadas. Efeitos esses que podem ser
minimizados se a criança ou o adolescente conseguem receber
cuidados e estabelecer um relacionamento estável e confiável
com um adulto, na instituição, até o retorno ao seio familiar.
O SINASE direciona para a prevalência da ação
socioeducativa sobre os aspectos meramente sancionatórios,
uma vez que as medidas socioeducativas possuem uma
dimensão jurídico-sancionatória e uma dimensão substancial
ético-pedagógica. O SINASE inscreve sua operacionalização na
perspectiva ético-pedagógica, na medida em que sua execução
está condicionada à garantia de direitos e ao desenvolvimento de
ações educativas que visem à formação da cidadania.
Dessa forma, os operadores socioeducativos, no exercício
de suas atividades, devem estar em consonância com o
que preconizam as normativas nacionais no que se refere
ao atendimento ao adolescente, procurando prevalecer o
pedagógico sobre o sancionatório na atuação dentro do sistema
socioeducativo e, fundamentalmente, garantindo os direitos do
adolescente estabelecidos pelas leis vigentes.
245
A nova roupagem do conservadorismo e da opressão no sistema
socioeducativo na sociedade brasileira pós-ditadura militar
A reabertura à democracia burguesa no final da década
de 80 permitiu à sociedade entender e reconhecer uma série de
violações e omissões em relação a direitos (humanos, civis, sociais,
políticos etc.), da qual o Estado brasileiro era protagonista; ações
essas praticadas por diversos atores sociais do Estado (militares;
parlamentares; chefes, ministros e secretários do poder executivo;
agentes do judiciário, do poder executivo etc).
A derrubada da ditadura significava, em tese, o
reconhecimento desses direitos de todos os seres humanos
e, consequentemente, o atendimento pelo Estado. Porém, a
história dessa sociedade permeada por constantes lutas de
classes (antagônicas), relações de forças e a constituição de
um pensamento dominante revela-nos que acreditar que essa
mudança geraria um processo de osmose súbita na consciência
dos atores sociais do Estado seria, no mínimo, uma atitude
ingênua, quando não burra.
Se, durante o período da constituição da república
federativa brasileira até o regime ditatorial, o Estado e seus
atores sociais podiam agir de forma explicitamente violenta –
em conformidade com o pensamento conservador – sem serem
repreendidos, seja pela “legitimidade” existente à época, seja
pela não compreensão dessa noção de direitos que temos hoje
– é importante mencionar isso para não cairmos na tentação do
anacronismo), após a reabertura à democracia burguesa, isso já
não era facilmente possível sem ser alvo de crítica e reação da
sociedade civil. Contudo, superada a ditadura, mas não o Estado
capitalista, veremos novamente a ação violenta e repressora e a
omissão do Estado. Podemos citar como exemplo marcante de
uso da violência para não atender a direitos o uso da força militar
em conflitos agrários no Norte do Brasil em meados da década
de 90, com dezenas de camponeses mortos, feridos, presos e
246
torturados. Portanto, até aqui não há nenhuma novidade no que
toca aos direitos humanos e às violações.
É importante ressaltar que, em paralelo, há o surgimento
e fortalecimento de organismos, instituições e organizações
nacionais e internacionais de defesa dos direitos humanos. Esse
fator é importante para prevenir e punir possíveis violações.
Ainda que o pensamento burguês e sua essência revolucionária
apresentam novas formas e métodos para reproduzir a
dominação sobre uma determinada classe, nesse caso estamos
nos referindo a adolescentes pobres e/ou negros. Essa nova
roupagem permite ao Estado e a seus atores sociais uma ação
de forma violenta, discriminatória, higienista, assistencialista e
repressora, sem atrair grande atenção (retaliação) da sociedade
civil e constituindo-se em uma forma extremamente peculiar que
dificulta a denúncia por parte dos organismos e organizações de
defesa dos direitos humanos.
No sistema socioeducativo, podemos, resumidamente,
notar essa nova roupagem desde a leitura conservadora e
opressora de determinado adolescente em conflito com a lei por
parte de atores sociais do Estado. Leitura essa que desconsidera
o histórico daquele adolescente; a omissão do Estado, família e
sociedade civil ao longo da infância e/ou adolescência desse;
a sociabilidade desse ser humano; a formação da consciência,
valores e conhecimento do adolescente; a falta de referências
pessoais (família e amigos) e/ou públicas (atores sociais
e Estado corrompidos) etc. Passa-se pela apuração do ato
infracional (delegacia policial, ministério público, juizado),
que pode apresentar como gênese uma ação disciplinadora
(enquadramento) do comportamento do adolescente, além
disso, pode ocorrer ações (ou omissões) alvitadoras dos direitos
de defesa e auxílio jurídico, por vezes carregada de visões
estigmatizadoras (adolescentes “considerados” problemáticos,
adolescentes em recorrência de ato infracional etc) e, finalmente,
a decisão de aplicar determinada medida socioeducativa
(MSE) sem ter como norte a isonomia e a equidade – em que
247
esse adolescente ainda passará pela execução de sua MSE em
determinado equipamento do poder executivo.
Portanto, se antes essas ações do Estado e seus atores
sociais podiam ser notados facilmente, hoje podem se dar por
meio da violência e/ou violação moral, física e psicológica ou, até
mesmo, pela omissão. O conservadorismo e a opressão assumem
uma nova roupagem pós-ditadura militar.
Intituições socieducativas como Instituição Total
O sociólogo canadense Erving Goffman nos ensina que
uma instituição total é organizada para anular a personalidade
do interno67 . Essas instituições levam à fragmentação do sujeito,
à perda de identidade social e à anulação da personalidade. Essa
anulação começa com a identificação automática a que os internos
estão sujeito nessas Instituições, ou seja: o detento, identificado
automaticamente como criminoso; o cliente psiquiátrico, como
doente/insano; o adolescente em conflito com a lei, como a
semente do mal; e assim sucessivamente.
O autor fala de elementos que provocam um eclipse da
identidade, uma mortificação do eu; entre eles, a impossibilidade
de administrar a própria imagem, a eliminação das roupas,
símbolos e materiais necessários para compor a própria
identidade. No momento da entrada nessas Instituições, tais
características são eliminadas e substituídas pela roupa grosseira
ou, poderíamos também dizer, padronizadas dessas Instituições.
Apesar de estarmos sempre buscando as melhores soluções para
lidarmos com a rotina Institucional, sabemos que ainda encontramos
muitos entraves, pois lidamos com a perversão institucional dentro de
uma Instituição total. Perversão essa que não se restringe ao sadismo
de um socioeducador ou ao masoquismo de um jovem.
67
O termo usado por Goffman servirá para identificar, neste trabalho, tanto o
adolescente em internação quanto em semiliberdade.
248
Nós, técnicos, por exemplo, não estamos a salvo de
reproduzirmos esse movimento perverso, posto nas Instituições,
de privação ou restrição de liberdade. Não estamos livres de
sermos envolvidos pela teia da perversão, simplesmente porque
sabemos que ela existe. Corroborando com o nosso pensamento,
citamos a psicóloga Leila Torraca, que pontua que, em alguns
projetos, os conhecimentos da Psicologia são evocados não para
ultrapassar a lógica da punição, mas para legitimá-la68 .
No que tange às Unidades de Internação, não é novidade
para ninguém, no contexto brasileiro, que as Instituições
onde esses adolescentes são ressocializados, muitas vezes,
caracterizam-se por serem espaços com a cultura da coerção
e violência. Essas ações tendem a reforçar a exclusão social
dos adolescentes e a potencializar as tendências antissociais,
agravando a situação de marginalização dos jovens em conflito
com a lei. Marginalização essa que se coloca também sobre os
socioeducadores da Instituição.
As notícias que saem na imprensa, por seus vários
canais, amiúde são tendenciosas em relação ao que acontece
nas unidades e ao adolescente em conflito com a lei. São os
agentes rotulados sempre como violentos ou técnicos que não
fazem nada em um sistema que não ressocializa ninguém. Ou
seja, os funcionários, de certa forma, também se encontram na
identificação automática caracterizada por Goffman. O agente é
identificado automaticamente como torturador e o técnico, como
descomprometido com o trabalho.
Essas questões têm relação direta, entre outras, com a
superlotação nas Unidades de internação e o número insuficiente de
funcionários, sem desconsiderar os aspectos das facções dentro das
unidades, o despreparo de alguns socioeducadores e as internações,
por vezes, desnecessárias e excessivamente prolongadas, em
desacordo com o sinalizado nos artigos 121 e 122 do ECA.
68
Diálogos. Psicologia Jurídica. Psicologia Ciência e Profissão. Ano 9, nº8.
Outubro, 2008
249
Sobre as unidades de restrição de liberdade, também podem
ser espaços de coerção e violência, sobretudo a psicológica,
vilipendiando direitos garantidos por lei, como a visita de final de
semana, que ainda é usada como barganha e como um método torpe
de controle, disciplina e adestramento do adolescente. Essa atitude
faz com os adolescentes se utilizem de “táticas de adaptação”,
para a garantia de seus direitos pelo bom comportamento.
Goffman fala sobre essas táticas como sendo a maneira pela qual
o sujeito responde às regras estabelecidas e que os ajustes que são
necessários para essa adaptação estão intrinsecamente ligados
com os mecanismo de mortificação do eu.
Encontramos, ainda, operadores do sistema de medidas
de restrição de liberdade (semiliberdade) que consideram a
saída de final de semana uma benesse da instituição (e não um
direito do adolescente) ou interpretam o ECA como punitivo (e
não dentro de um sistema de garantia de direitos), olvidando
que o estatuto, diferentemente do SINASE, é para todos os
adolescentes, e não somente para os que estão em cumprimento
de medida socioeducativa. Neste aspecto, ainda há em alguns
estados brasileiros a falta de investimento em unidades de
semiliberdade, privilegiando o sistema de internação.
Esse tipo de “profissional” são os que promovem conflitos
em vez de mediá-los, que estimulam a autoridade escalonada
(autoridade em que qualquer pessoa da classe dirigente está apta
a impor disciplinação/sanção à classe de interno, o que aumenta
visivelmente a possibilidade de sanção e a angústia neles; em
alguns casos na semiliberdade, só o autor da sanção aplicada ao
adolescente tem o poder de retirá-la), que abusam da autoridade
não só em relação aos adolescentes, mas também em relação aos
funcionários, que incitam o bullying, o assédio moral e situações
que poderíamos caracterizar como violência psicológica no
trabalho e, em alguns casos, com a conivência, seja ativa seja
passiva, de outros membros da equipe, que acabam também se
sentindo ameçados em meio a esse círculo perverso.
250
Tal postura anteriormente mencionada leva, em alguns
casos, à impossibilidade da construção e manutenção da rede
de assistência externa e da rede interna. Na medida em que há
conflitos de interesses entre socioeducadores, operadores do
judiciário e potenciais parceiros, o resultado é ter o trabalho
socioeducativo obliterado. Somam-se a isso os socioeducadores,
que se equivocam diante de conceitos indispensáveis em nosso
trabalho, tais como a incompletude institucional e a instituição
total, que são conceitos distintos, entretanto não excludentes.
Sob essa ótica, é fundamental que as unidades
socioeducativas, sejam elas de internação, internação provisória
ou semiliberdade, despertem em nós a consciência de que ela
pode ser visualizada como uma instituição total nos moldes
analisados por Goffman, principalmente nos conceitos de
mortificação do eu e da autoridade escalonada.
Essa consciência irá nos fazer pensar em um novo
ordenamento institucional, ou seja, ter o pensamento focado
no aparelhamento da unidade em seus recursos humanos e
físicos. A percepção nas unidades tanto de internação quanto de
restrição de liberdade do modelo de Goffman pode nos ajudar a
minimizar os impactos de um novo ordenamento que surge, pois
a cultura policialesca, repressiva e panótica nunca desaparece
por completo.
Contudo, de maneira nenhuma esse conhecimento significa
que devemos retroceder ao modelo assistencial-repressivo,
no atendimento socioeducativo; muito pelo contrário, é uma
forma de avançarmos tendo como referência o que é feito e o
que poderemos mudar, como transpormos obstáculos e nos
referenciarmos pelos novos paradigmas. Só assim abriremos
a possibilidade de reflexão e reformulação do trabalho
socioeducativo, sempre em consonância à proposta da garantia
de direitos e da proteção integral ao adolescente.
251
O panótico e as relações de poder
O panótico não é uma teorização foucaultina, e sim um
dispositivo de poder disciplinar idealizado pelo jurista inglês
Jeremy Bentham, cuja arquitetura permitiria uma vigilância
em que os submetidos a ela não observariam diretamente a
vigilância exercida. Sob essa ótica, a máxima da arquitetura
panótica seria: “O saber da existência da vigilância faz com que
não se precise vigiar objetivamente” e, dessa forma, assegura-se
o funcionamento automático do poder.
No que se refere às Unidades de Internação, identificamos
similaridades com o modelo panótico. Existem, nessas unidades,
os postos de observação chamados “águia”, locais bastante altos de
onde se tem uma visão de todo o perímetro da Instituição; é onde
se pode ver sem ser visto. Algumas unidades ainda contam com os
recursos das câmeras, visando a um melhor controle e segurança.
As unidades de restrição de liberdade também são
referências a um modelo panótico. Eles revelam uma arquitetura
que facilita o controle dos adolescentes, quando se posicionando
no vão central. Estando no centro do pátio ou ao passar por
ele, tem-se uma visão ampla. Na semiliberdade, também há os
recursos das câmeras de vigilância 24 horas por dia, também
visando ao controle, à segurança e à disciplina.
Segundo Foucault, o corpo está intrinsecamente ligado ao
campo político, visto que podemos estabelecer que as relações
de poder marcam esse corpo, controlam-no e tornam-no dócil e
submisso. Para o autor, há um entrelaçamento entre o poder e
saber, e não uma relação de causa e efeito de um sobre o outro.
Nesse prisma, constituir-se-á a sociedade disciplinar.
Assim, o conceito de disciplina em Foucault está a
serviço do controle e sujeição do corpo. Essa compreensão
pode nos levar a uma reflexão e um entendimento sobre as
sanções empregadas, as relações de poder e a própria rotina que
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encontramos nas Instituições. Temos, como exemplo máximo
da rotina institucional das unidades de internação e internação
provisória, a clássica postura de cabeça baixa e mãos para trás
como forma de manter a ordem, mostrar o poder, o controle
e a disciplina. Seria, ainda hoje, aceitável esse tipo de postura
em um momento em que preconizamos um tratamento mais
humanizado aos adolescentes?
A relação entre a disciplina e as punições é complexa.
Os temas são próximos, mas não necessariamente nos remetem
a uma ligação direta ou de causa e efeito. Entretanto, como
pensar a disciplina desmembrada da punição? Vislumbrando
uma alternativa que pode ser possível em nossa relação com
os adolescentes que cumprem medida socioeducativa nas
instituições degaseanas, Foucault nos orienta:
O professor deve evitar, tanto quanto possível, usar castigos; ao
contrário, deve procurar tornar as recompensas mais freqüentes que
as penas, sendo os preguiçosos mais incitados pelo desejo de ser
recompensados como os diligentes que pelo receio dos castigos; por
isso será muito proveitoso, quando o mestre for obrigado a usar de
castigo, que ele ganhe, se puder, o coração da criança, antes de aplicarlhe o castigo. (FOUCAULT, 1992. )
Dessa forma, o que devemos avaliar é se nós,
socioeducadores, realmente queremos uma mudança e se
estamos verdadeiramente afinados com os novos paradigmas
da socioeducação. Nós estamos trilhando o caminho profícuo,
porém trabalhoso do pedagógico, ou buscamos, mesmo que
inconscientemente, o caminho mais fácil, que é o do sancionatório?
Até porque calar o adolescente, estigmatizá-lo, domesticá-lo com
o uso da imposição e do autoritarismo realmente é mais simples,
embora ineficaz.
Deixemos, pois, uma questão para ser respondida por
aqueles que se debruçaram sobre estas linhas e que, ao mesmo
tempo, possibilitará uma reflexão a cada um de nós que
trabalhamos com a socioeducação: afinal, qual caminho realmente
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estamos percorrendo em nosso trabalho com os adolescentes em
conflito com a lei?
Considerações Finais
Este trabalho não teve como propósito uma critica pela
crítica, como se em todos esses anos não tivessem ocorrido avanços
significativos no atendimento aos adolescentes. A história das
instituições socieducativas, no Brasil e em especial no Rio de Janeiro,
hoje DEGASE, nos mostra o quanto evoluiu, principalmente no
que tange à capacitação dos funcionários, às instalações físicas e às
diversas atividades culturais, desportivas e profissionalizantes para
os adolescentes, procurando a cada ano garantir seus direitos nas
unidades socioeducativas em nosso estado.
A crítica, contudo, é direcionada àqueles operadores do
sistema socioeducativo que não refletem sobre a sua prática
profissional; àqueles que mantêm o mesmo pensamento inerte
através dos tempos, que não se qualificam, que maculam a imagem
da Instituição e de colegas com suas ações, que não se comprometem
com os novos paradigmas do sistema socioeducativo nacional e
que, em alguns casos, contaminam toda uma unidade com ideias
e ações incongruentes com a socioeducação.
Os gestores das Unidades socioeducativas têm um papel de
grande relevância para a garantia dos direitos dos adolescentes.
Eles devem ser qualificados, estar abertos ao diálogo e às críticas,
sendo inviável um trabalho socioeducativo se sua gestão não
estiver alinhada às novas diretrizes preconizadas, por exemplo,
pelo ECA, SINASE e pelo Plano Nacional.
A qualificação profissional não é simplesmente estar
em sala de aula para cursos de capacitação. É preciso que o
socioeducador leve para a prática institucional as leis, diretrizes
e códigos que regem o trabalho da socioeducação em nosso país.
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Ao descrever um modelo panótico das instituições
socieducativas de privação e restrição de liberdade, ainda
existente, buscamos fomentar um debate sobre socioeducação
e segurança, para além de um versus outro. Acreditamos que
esses temas não são excludentes. Entretanto, já passou da
hora daqueles que regem as politicas públicas dos sistemas
socieductivos entenderem que a socioeducação não é uma
dicotomia segurança ou educação, mas, sim, uma questão de
segurança, educação, saúde, assistência social, direitos humanos
etc. Acreditamos que, os operadores socioeducativos do Estado
do Rio de Janeiro deveriam visualizar a importância de uma
secretaria de ações socioeducativas que englobasse todas essas
questões ligadas ao adolescente em conflito com a lei.
Basear o trabalho no conhecimento das teorias de Goffman
e Foucault nos serve como alerta, pois as obras desses autores
fomentam uma reflexão sobre o nosso trabalho, não esquecendo,
portanto, que, em uma Instituição total, convivemos e, muitas
vezes, reproduzimos a perversão e as mazelas institucionais.
O entendimento do limite tênue entre o sancionatório
e o pedagógico é fundamental no dia a dia institucional. Os
adolescentes têm não só direitos, mas também deveres. A aplicação
das sanções é importante, contudo só serão significativas à medida
que os jovens entendam o porquê delas. Só dessa forma estaremos
contribuindo para que o adolescente entenda as regras e os limites
para viver em sociedade, que entenda a medida socioeducativa
imposta, reflita e entenda sua responsabilidade no ato infracional
praticado. É uma questão essencial a responsabilização, e não a
culpabilização do jovem e suas famílias.
No trabalho socioeducativo, é fundamental não
dessubjetivar o sujeito adolescente. Ele deve ser mais que uma
matrícula, um número, um infrator, um drogado. Temos que
trabalhar de modo que o “ser adolescente infrator” não engula
o sujeito e não transforme sua fala em um discurso vazio,
dessubjetivando-o. Não devemos esquecer que esse jovem tem
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uma história de vida que não pode e não deve ser relegada.
O punir por punir será contraproducente, pois apenas
afastará o adolescente da equipe socioeducativa. Em nossa
atuação, precisamos de um mínimo de proximidade, se realmente
pensamos em ajudá-lo em suas dificuldades ou ajudá-lo no
desenvolvimento de suas potencialidades.
Aos que são afinados com as diretrizes propostas
nacionalmente, o texto tem a ousadia de servir como um alerta
para que não nos deixemos abater com as dificuldades e que não
esqueçamos que somos socioeducadores, portanto temos que
garantir (e não restringir ou retirar) os direitos dos adolescentes
que atendemos.
Propomos, ainda, uma reflexão sobre a tênue linha entre o
sancionatório e o pedagógico e sobre a nossa prática profissional.
Acreditamos que ter a consciência destas questões aqui colocadas
é fundamental para que nós, socioeducadores, busquemos
alternativas para melhorar nossa atuação profissional no sentido
de garantir, cada vez mais, os direitos desses adolescentes que
atendemos no sistema socioeducativo. Adolescente esse sujeito
de direitos, deveres e, também, desejos.
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