Descarregar número 10 - AIL - Associação Internacional de

Transcrição

Descarregar número 10 - AIL - Associação Internacional de
VEREDAS
Revista da Associação Internacional de Lusitanistas
VOLUME 10
SANTIAGO DE COMPOSTELA
2008
A AIL – Associação Internacional de Lusitanistas tem por finalidade o
fomento dos estudos de língua, literatura e cultura dos países de língua
portuguesa. Organiza congressos trienais dos sócios e participantes interessados, bem como co-patrocina eventos científicos em escala local. Publica a revista Veredas e colabora com instituições nacionais e internacionais vinculadas à lusofonia. A sua sede se localiza-se na Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra, em Portugal, e seus órgãos directivos
são a Assembleia Geral dos sócios, um Conselho Directivo e um Conselho Fiscal, com mandato de três anos. O seu patrimônio é formado polas
quotas dos associados e subsídios, doações e patrocínios de entidades nacionais ou estrangeiras, públicas, privadas ou cooperativas. Podem ser
membros da AIL docentes universitários, pesquisadores e estudiosos aceitos polo Conselho Directivo e cuja admissão seja ratificada pola Assembleia Geral.
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Raquel Bello Vázquez (Univ. Santiago de Compostela); Sebastião Tavares de
Pinho (Univ. Coimbra); Teresa Cristina Cerdeira da Silva (Univ. Fed. do Rio de
Janeiro); Thomas Earle (Univ. Oxford).
Conselho Fiscal
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Porto); Laura Calcavante Padilha (Univ. Fed. Fluminense).
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Veredas
Revista de publicação semestral
Volume 10 – Dezembro de 2008
Director:
Regina Zilberman
Director Executivo:
Benjamin Abdala Junior
Conselho Redactorial:
Aníbal Pinto de Castro, Axel Schönberger, Claudio Guillén, Cleonice Berardinelli, Fernando Gil, Francisco Bethencourt, Helder Macedo, J. Romero de Magalhães, Jorge Couto, Maria Alzira Seixo, Marie-Hélène Piwnick, Ria Lemaire. Por
inerência: Anna Maria Kalewska, Claudius Armbruster, Cristina Robalo Cordeiro, Elias J. Torres Feijó, Fátima Viegas Brauer-Figueiredo, Helena Rebelo, Isabel
Pires de Lima, Laura Cavalcante Padilha, M. Carmen Villarino Pardo, Mirella
Márcia Longo Vieira de Lima, Onésimo Teotónio de Almeida, Petar Petrov, Raquel Bello Vázquez, Sebastião Tavares de Pinho, Teresa Cristina Cerdeira da
Silva, Thomas Earle.
Redacção:
VEREDAS: Revista da Associação Internacional de Lusitanistas
Endereço eletrónico: [email protected]
Realização:
Coordenação: Elias J. Torres Feijó
Revisão: Laura Blanco de la Barrera
Desenho da Capa: Atelier Henrique Cayatte – Lisboa, Portugal
Impressão e acabamento:
Unidixital, Santiago de Compostela, Galiza
ISSN 0874-5102
AS ACTIVIDADES DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE LUSITANISTAS
TÊM O APOIO REGULAR DO INSTITUTO CAMÕES E DA
CONSELHARIA DA CULTURA DA JUNTA DA GALIZA
SUMÁRIO
EDITORIAL ..........................................................................
07
APRESENTAÇÃO ..................................................................
09
ANNA KLOBUCKA
Sobre a hipótese de uma herstory da literatura portuguesa
13
ARTURO CASAS
Constituiçom de umha História literária de base
sistémica: o sistema cultural como objecto de análise
histórica no programa de investigaçom de Itamar EvenZohar .................................................................................
27
BENJAMIN ABDALA JUNIOR
História da literatura brasileira, de Sílvio Romero............
57
FERNANDO CABO ASEGUINOLAZA
Literaturas regionais e História Literária. Perspectivas
comparatistas .....................................................................
87
JOSÉ LUÍS JOBIM
A História da Literatura e as trocas e transferências
literárias e culturais ...........................................................
105
MARGARIDA CALAFATE RIBEIRO
Um desafio a partir do sul –reescrever as histórias da
literatura? ...........................................................................
117
MARIA DE FÁTIMA MARINHO
A construção da memória...................................................
135
MARIA EUNICE MOREIRA
Olhar de Juan Valera: Literatura e cultura na capital do
Império Brasileiro no Século XIX .....................................
149
ONÉSIMO TEOTÓNIO ALMEIDA E LEONOR SIMASALMEIDA
Cânone, cânones em reflexões dialogadas ........................
165
PAULO MOTTA OLIVEIRA
A ascensão do romance em português: para além das
histórias literárias nacionais ..............................................
173
PEDRO SERRA
Transições & passagens. Figuras de uma crítica cultural
da razão histórica peninsular .............................................
183
RAQUEL BELLO VÁZQUEZ
A História da Literatura e algumhas novas técnicas de
estudo. A autonomia da disciplina em causa .....................
253
REGINA ZILBERMAN
Historicidade e materialidade da literatura ........................
269
VANDA ANASTÁCIO
Pensar para além das etiquetas ..........................................
287
ZAHIDÉ LUPINACCI MUZART
Sob o signo do gótico: O romance feminino no Brasil,
século XIX .........................................................................
295
OS/AS AUTORES/AS ............................................................
309
EDITORIAL
Na Assembleia Geral da AIL, celebrada no Funchal com
motivo do IX Congresso da Associação, foi eleita uma nova
direcção, que é a transcrita neste número. Por razões operativas e
atendendo ao desejo do Prof. Benjamin Abdala Júnior de cessar sua
responsabilidade como director executivo da revista, o Presidente
nomeou a Profa. Raquel Bello Vázquez, da Universidade de
Santiago de Compostela, como Directora executiva da revista
Veredas, comunicada a toda a Direcção e vogais na reunião
celebrada na Universidade do Algarve em 26 de Janeiro de 2009.
Em atenção ao facto de os números 10 e 11 da revista,
correspondentes a Dezembro de 2008 e Maio de 2009
respectivamente, estarem prontos durante o período em que a Profa.
Regina Zilberman foi Presidente da AIL e directora da revista e o
Prof. Benjamin Abdala Júnior director executivo, os seus nomes
aparecem como tais nos referidos números. A direcção da revista
agradece sincera e vivamente o seu magnífico labor à frente da
nossa publicação. E igualmente agradece à Profa. Raquel Bello
Vázquez a sua dedicação desde o primeiro dia na preparação da
edição e distribuição destes números e na planificação do futuro da
Veredas.
APRESENTAÇÃO
A revista Veredas convoca neste número uma reflexão
colectiva sobre a historiografia literária, disciplina regrada já antiga
que, nos seus perto de 150 anos de história (para o caso português,
podemos tomar como ponto de referência 1860, data do
preenchimento por António Pedro Lopes de Mendonça da primeira
vaga de Literatura Moderna no Curso Superior de Letras da
Universidade de Lisboa), tem sido objecto de algumas
reformulações mas talvez nenhuma da importância das que
começaram a ser geradas nos finais do século passado.
Os consideráveis avanços metodológicos produzidos nos
últimos 30 anos, com a incorporação de elementos de análise de
disciplinas como a sociologia, a estatística, a ciência política, a
economia, etc. e com a definitiva formulação da Literatura como
mais um dos processos culturais, entendidos, por sua vez, como
processos sociais, mostram de forma cada vez mais acusada a
distância que se abre entre as formulações teóricas e as aplicações
práticas.
A posta em questão das funções da literatura, das funções do
seu ensino, o mesmo questionamento da pertinência do uso de um
cânone literário (ou a pertinência da sua existência mesma)
provocou também um ataque, desde diferentes ângulos, à própria
ideia da História Literária, tal e como a conhecíamos, centrada na
sucessão de autores e obras –nuns casos essa sucessão mais
adornada de “contexto”, noutros menos-, mas sem mudanças
substanciais quanto à sua concepção. A isto há que acrescentar
ainda novas propostas de geografia literária, que focam a
importância de um novo eixo, o espacial, para a análise da produção
cultural, âmbito este no qual se estão a produzir alguns dos debates
mais inflamados dos últimos tempos.
Como transferir as inovações teórico-metodológicas para a
Historiografia Literária e as suas aplicações (as didácticas, por
10
exemplo), como combinar a visão temporal da Historiografia com as
novas achegas espaciais, em que medida os avanços metodológicos
no sentido de estudar a literatura como mais um processo social
afectam as dimensões do campo que delimitamos para os nossos
estudos... Estes são apenas alguns dos desafios que a investigação
recente tem colocado sobre a mesa da História da Literatura.
É neste estado de cousas, que se faz necessária uma reflexão
da perspectiva da lusitanística sobre quais são as possíveis vias de
redefinição da História da Literatura. Muitos dos estudiosos
reunidos neste número têm reflectido sobre estes assuntos em
trabalhos individuais, mas a revista Veredas, na sua vontade de ser
um referente para as Ciências Humanas do âmbito da Lusofonia,
não podia ficar à margem deste debate.
No presente número contamos com as reflexões de
especialistas de diferentes espaços geográficos e também com
diferentes áreas de especialização, que propõem focagens mais
teóricas ou mais de caso, em função dos seus diferentes interesses
investigadores, mas todas elas pondo em questão a sobrevivência de
um modelo de historiografia literária definitivamente superado,
julgo que definitivamente.
O artigo de Regina Zilberman pode funcionar de quadro
referencial para esta reflexão, já que nos coloca precisamente frente
à própria evolução da historicidade da disciplina literária. Ao lado
deste, o trabalho de Arturo Casas servirá para focar
metodologicamente a questão a partir de um dos quadros teóricos
de maior sucesso nos últimos anos, as formulações sistémicas de
Itamar Even-Zohar, aplicadas à Historiografia Literária.
Bejamin Abdala Júnior, por seu turno, faz uma revisão
crítica da História da Literatura Brasileira de Sílvio Romero à luz,
precisamente, das chaves políticas, ideológicas e sociais do Brasil
da década de 60, dando especial destaque a como as questões
relativas com a mestiçagem e a hibridação foram assumidas pola
historiografia literária.
11
Na linha da análise desta historiografia encontra-se também
o texto de Raquel Bello Vázquez, que propõe uma revisão teórica
geral sobre esta questão tendo presentes os avanços metodológicos
produzidos nas últimas décadas. E as histórias da literatura
aparecem também em questão no trabalho de José Luís Jobim, que
foca a ausência do fenómeno da transferência, o que provoca graves
erros de análise nas relações entre diferentes espaços culturais. Isto
faz-se especialmente patente através do caso escolhido, as relações
entre os espaços europeus e as suas ex-colónias latino-americanas.
Um grupo de trabalhos trazem-nos os desafios colocados às
aparentemente pacíficas cronologias das literaturas nacionais
europeias tanto polas literaturas que emergem dentro das próprias
fronteiras dos estados-nação europeus, como o texto de Fernando
Cabo Aseguinolaza, que trata, do ponto de vista do comparatismo,
as relações, neste caso, as literaturas “regionais” e a Histórias da
Literatura, como polas literaturas surgidas em antigas colónias que
só conseguiram a sua independência no séc. XX. É o caso de
Margarida Calafate Ribeiro e o seu estudo sobre as literaturas
africanas de língua portuguesa.
Numa linha também comparatista, inscreve-se o texto de
Pedro Serra, centrado nas relações entre os dous estados ibéricos
nos processos de “transição” e “revolução” das décadas de 70.
Mas há outros desafios para a história da literatura, além dos
geográficos. Assim, apresentamos neste número alguns trabalhos que
focam, através do estudo de algum género literário específico, os
espaços de indefinição da Historiografia tradicional. É o caso do
artigo de Fátima Marinho sobre as relações entre História e
Literatura, através, particularmente, do romance histórico e a função
desenvolvida neste pola memória, ou do de Paulo Motta Oliveira,
que foca os desencontros entre a cronologia do romance português de
Oitocentos e a cronologia assumida para outros sistemas literários.
Há, como é bem conhecido, um outro ângulo de crítica,
talvez dos mais sucedidos quanto à sua repercussão social, que é o
que procede da análise de género e da crítica feminista. Este é o que
12
nos oferece Anna Klobucka, que estuda a possível aplicação do
conceito herstory à literatura portuguesa.
Pegando em elementos do convívio difícil ou impossível
entre as cronologias dos diferentes espaços de produção, e também
no interesse por constituir uma tradição literária feminina, está o
trabalho de Zahidé Lupinacci Muzart, que escolhe o romance
brasileiro escrito por mulheres como o seu caso de estudo.
O desvendamento dos processos de formação de sistemas
literários nacionais e as relações destes processos com os da própria
conformação da nação, são focados no trabalho de Maria Eunice
Moreira, inscrevendo-se noutro dos elementos que têm
fundamentado a crítica contra a Historiografia literária: a sua
vinculação não expressa nem reconhecida com o sustentamento
político e identitário das nações. Numa linha similar, encontra-se o
trabalho de Onésimo Teotónio de Almeida e de Leonor SimasAlmeida, que nos oferece uma reflexão sobre o cânone na literatura
portuguesa em confronto com as discussões tão vivas e persistentes
que se têm produzido no espaço norte-americano.
Finalmente, podemos encontrar nestas Veredas outra via de
ataque a algumha historiografia tradicional, que é a do modo em
que as etiquetas para definir os géneros, os períodos, as cronologias,
etc. são escolhidas e utilizadas. Estas, como evidencia Vanda
Anastácio, servem mais para ocultar do que para analisar os
processos sociais e culturais que correm em paralelo à produção
literária.
Todos estes contributos serão, com certeza, mais do que
conclusões, inícios de debates frutíferos em colóquios, congressos,
departamentos universitários e futuros números desta e doutras
revistas, e é com essa finalidade que são aqui trazidos: para pôr em
conjunto trabalhos muito diferentes, mas que têm similares
objectivos, e para levantar discussões novas sobre assuntos que
levam entre nós já alguns tempos.
Elias J. Torres Feijó
Universidade de Santiago de Compostela
VEREDAS 10 (Santiago de Compostela, 2008) 13-25
Sobre a hipótese de uma herstory da
literatura
portuguesa
ANNA KLOBUCKA
University of Massachusetts Dartmouth, EUA
The teleological and emancipatory premises of the narrative model that structured nineteenth-century national literary histories and has remained influential to
the present day have been challenged, in recent decades, by theorists suspicious
of that model’s identitarian and developmental claims. Feminist literary histories
of women’s writing have responded to this challenge by evoking “the central paradox of feminism: it does its work even as it recognizes the instability and potential impossibility of its subject” (Erkkila 1992, 4). I argue in this brief article
that a putative herstory of Portuguese literature is uniquely well positioned to take advantage of the poststructuralist questioning and reinvention of the literaryhistorical genre, precisely because it appears to lack conditions for the production of a traditionally designed history of the Portuguese women’s writing. Another important advantage of the Portuguese cultural context is the theoretical and
methodological blueprint provided, for this and many other feminist endeavors,
by Novas Cartas Portuguesas (1972) by Maria Isabel Barreno, Maria Velho da
Costa and Maria Teresa Horta.
A consciência da esperança inerente no passado e o reconhecimento correlato do conformismo que incessantemente ameaça
imobilizar o futuro da tradição, noções relevadas por Walter Benjamin nas “Teses sobre a Filosofia da História” (1969: 255), têm
sido subjacentes aos trabalhos da crítica feminista e, muito particu-
14
ANNA KLOBUCKA
larmente, da sua vertente histórico-literária. Tal como o projecto
global de investigação histórica baptizado em inglês com o rótulo,
eloquente e intraduzível, de herstory, a história literária feminista
abrange a recolha de informações e a formulação de questionamentos sobre o protagonismo de mulheres no campo da produção cultural; a revisão do conhecimento histórico institucionalizado à luz de
programas de investigação que legitimam a ênfase no género sexual
como o filtro epistemológico decisivamente relevante; e a desconstrução e reterritorialização das macro-narrativas identitárias com o
objectivo político da renegociação global do contrato social e simbólico que tem regido as relações entre os sexos.1 Os vectores e os
produtos desta polifacetada agenda crítica entram, por sua vez, numa relação de tensão com os desafios surgidos, também durante as
últimas décadas, no campo da teoria crítica e, especialmente, da teoria da história literária. O modelo narrativo e teleológico, de cunho
emancipatório, seguido explícita ou implicitamente pelas realizações canónicas da escrita histórico-literária feminista reflecte, mutatis mutandis, os pressupostos e (prospectivamente) os efeitos identitários do processo da constituição das histórias literárias nacionais
desde os inícios do século dezanove.2 Enquanto tal, torna-se vulnerável às críticas como a de Stephen Greenblatt ao observar que o
padrão nacionalista da história literária, embora minado na sua a1
Em relação à area disciplinar global da história de mulheres, o capítulo
“Women’s History” em Joan Wallach Scott, Gender and the Politics of History (edição
revista; New York: Columbia University Press, 1999) oferece um resumo sucinto,
abundantemente ilustrado com referências bibliográficas, da investigação desenvolvida
neste campo desde os anos setenta do século vinte. Em português, veja-se o artigo de
Gisela Bock, “História, História das Mulheres, História do Género”, Penélope 4 (Nov.
1989), 157-87. Ana Paula Ferreira propõe uma tradução de herstory (literalmente, “história
dela”, por oposição a history que seria “história dele”) no trabalho em que considera “a
emergência de uma história-mulher” (12) no romance Ora esguardae de Olga Gonçalves.
2
Por “realizações canónicas da escrita histórico-literária feminista” entendo
sobretudo tais obras fundacionais da crítica literária feminista anglo-americana como A
Literature of Their Own (1977) de Elaine Showalter e The Madwoman in the Attic (1979)
de Sandra M. Gilbert e Susan Gubar, junto com vários outros estudos que empreendem a
construção de uma tradição literária feminina, surgidos sobretudo nos anos oitenta, em
inglês (embora visando por vezes objectos de investigação não–anglófonos), na esteira
daqueles ensaios pioneiros. Arriscarei a afirmação de que, não obstante a expansão
progressiva da investigação histórico-literária feminista em outras áreas linguísticas e
culturais, é este o único conjunto coerente de publicações a que se pode atribuir a
designação –hoje em dia já um tanto desvanecida– de um modelo propriamente canónico
(isto é, detentor de autoridade institucionalizada e legitimador enquanto referência).
SOBRE A HIPÓTESE DE UMA HERSTORY DA LITERATURA PORTUGUESA
15
cepção original tanto pela crítica filosófica e ideológica das suas
premissas como pelos avanços da globalização,
is not at all disappearing; rather it has migrated from the center to
what was at one time the periphery where it is now flourishing.
(...) What we are witnessing is the pragmatic, highly strategic
appropriation of the national model of literary history–with its
teleological, developmental narrative of progress–in order to
confer authority upon an emergent group. (54-55)
O “grupo emergente” de Greenblatt é constituído, no caso,
pelas literaturas latino-americanas pós-coloniais (a referência específica é The Cambridge History of Latin American Literature, 1996,
organizada por Roberto González Echevarría e Enrique PupoWalker), mas o fenómeno da re-inscrição dos padrões fundacionais
da história literária, vinculados à consolidação do nacionalismo cultural (e, segundo Greenblatt, fatalmente maculados por esta descendência), estende-se de forma ao mesmo tempo geral e diversificada
a «those writing the new literary histories based on race, gender,
sexual choice, or any number of other identitarian categories» (Hutcheon, 2002: 3). David Perkins fundamenta a equiparação entre as
«histories of regions, social classes, women, ethnic groups, and so
on» e as histórias literárias nacionais oitocentistas, enumerando as
suas características comuns:
They assert that the group in question has a literary tradition and
that the works in it are valuable. Thus, in the strife of cultural
politics, they confer cultural importance on the social group. They
create a sense of continuity between past members of the group
and present ones and, by describing a shared past, reinforce the
sense of community in the present. They define the identity of the
group in a certain way in opposition to other definitions of this
contested concept. (181)
Respondendo a estes e outros diagnósticos e preocupadas
em afastar potenciais acusações de “ingenuidade histórico-teórica”
ou “nostalgia conservadora” (Hutcheon, 2002: 15), as narrativas
históricas da tradição literária feminina que continuam a ser escritas
e publicadas têm procurado manter a precária aliança entre a credi-
16
ANNA KLOBUCKA
bilidade do seu enquadramento conceptual e ideológico e a eficácia
política dos seus resultados através da cultivação auto-consciente e
vigilante daquilo que tem vindo a ser reconhecido como o “paradoxo central do feminismo”. Peço emprestada esta expressão a Betsy
Erkkila que, nas páginas iniciais do seu The Wicked Sisters: Women
Poets, Literary History & Discord (1992), propõe «a model of women’s literary history that engages the central paradox of feminism:
it does its work even as it recognizes the instability and potential
impossibility of its subject» (1992: 4). As exigências da acção política feminista parecem impor a aderência –posto que qualificada
como provisória, estratégica ou sur rasure– aos modelos da investigação e escrita histórico-literária alicerçados nas noções de continuidade, comunidade e, sobretudo, progresso e consolidação emancipatória. De acordo com Linda Hutcheon,
through the very structure of this kind of literary history, [feminist
historians] can embody the progressivist intentions of their
political agendas. Their scholarly work is designed to identify,
reevaluate and then institutionalize a usable past–usable, that is,
for the future, for interventionist rather than purely conservationist
(or, for that matter, conservative) purposes. (p. 11)
Consequentemente, ao mesmo tempo que defende o desmantelamento das “narrativas exclusivistas e singulares da identidade contínua”, cujo poder descritivo e ideológico perde a legitimidade em confronto com “as realidades demográficas desterritorializadas dos nossos tempos” (2002: 3), Hutcheon acaba por concluir a
sua análise com uma narrativa metahistórica de cunho precisamente
evolutivo e emancipatório: «Such a familiar bedrock narrative of
development, one that historically guarantees a sense of cultural
legitimacy, may have to be laid down first, before competing, correcting, or even counterdiscursive narratives can be articulated»
(2002: 13).3 Por outras palavras, o modelo do desenvolvimento te3
Valerá a pena lembrar neste ponto que o argumento evocado por Hutcheon –é
preciso atender às prioridades– não tem sido aplicado unicamente à discussão da
problemática histórico-literária dentro do campo intelectual feminista. Para dar apenas um
exemplo, cite-se a réplica de Nancy K. Miller à celebrada crítica a que Michel Foucault
submetera a noção de autoria (“Qu’est-ce qu’un auteur?”, 1969): “What matter who is
speaking? I would answer it matters, for example, to women who have lost and still
SOBRE A HIPÓTESE DE UMA HERSTORY DA LITERATURA PORTUGUESA
17
leológico, deslegitimado enquanto padrão do pensamento históricoliterário, continuaria válido a nível metateórico, com os “grupos
emergentes” a seguirem nos passos epistemológicos (afinal de eficácia política comprovada) dos protagonistas históricos contra cuja
dominação consagrada se insurgem.4
Qual será a pertinência das considerações resumidas acima
para o hipotético projecto da articulação de uma tradição literária
feminina no contexto português? Em primeiro lugar, observe-se que
os modelos da epistemologia histórico-literária feminista que constituem o âmbito referencial das citadas interrogações teóricas e ideológicas se adequam particularmente mal –dada a sua ênfase na identificação e narrativização diacrónica de um repertório relativamente robusto (posto que historicamente negligenciado) das obras
de autoria feminina– ao campo da produção literária em Portugal
desde a Idade Média até aos inícios do século vinte. A masculinidade normativa do sujeito da escrita figura neste campo como uma
circunstância avassaladora, sendo legitimada e reforçada pela ausência absoluta ou, no melhor dos casos, escassez marcada de mulheres escritoras, portadoras potenciais de contra-discursos enraízados numa postura diferencial em relação ao discurso masculino dominante. No livro de Isabel Allegro de Magalhães O Tempo das
Mulheres (1987), que foi na altura da sua publicação uma proposta
pioneira de formulação de uma poética da autoria feminina na ficção portuguesa contemporânea, a constatação desta ausência tornase praticamente um Leitmotiv da parte introdutória do estudo, dedicada a identificar «os antecedentes da actual posição feminina dentro das letras portuguesas» (Magalhães, 1987: 103). Assim, a Idade
Média não legou «a obra literária de nenhuma daquelas mulheres
poetisas e rainhas que ilustram a literatura medieval doutros países»
routinely lose their proper name in marriage, and whose signature –not merely their voice–
has not been worth the paper it was written on; women for whom the signature –by virtue
of its power in the world of circulation– is not immaterial. Only those who have it can play
with not having it” (75; sublinhado original).
4
Greenblatt denuncia vivamente “o risco de oportunismo cínico” inerente nesta
concessão: “How is it possible to keep this defense from becoming an apology for the
most corrosive and ultimately self-defeating cynicism? It is one thing to celebrate powerful
literary achievements and to understand how new work can build upon the work of the
past; it is quite another thing to endorse a theory of evolutionary progress or steady,
organic development that one knows is bankrupt” (58).
18
ANNA KLOBUCKA
(1987: 103); se no século XVI «surgem, embora em número muito
reduzido, alguns escritos de mulheres» (1987: 131), já no século
seguinte se verifica, de novo, «uma aparente ausência das mulheres
na vida cultural do país» (1987: 145). Também a época das Luzes
portuguesa não reflectiu, neste sentido, a importante influência cultural feminina que se registava contemporaneamente em França ou
em Inglaterra; nem o século XIX parece «ter tido em Portugal mulheres como as que outros lugares da Europa viram crescer» (1987:
171). Se, como repetidamente sugere a própria autora, tal imagem
negativa pode derivar, em certa medida, de uma negligência secular
por parte do discurso canónico da história literária, não deixa de ser
verdade que ela contribui para o estabelecimento de um padrão difícil de ignorar, tanto no plano histórico como no simbólico.5 Este
padrão, por sua vez, cria condições muito específicas para a emergência em massa do fenómeno da autoria feminina a partir das primeiras décadas do século vinte. Por comparação com outros países
europeus, como sustenta Graça Abranches,
na cultura portuguesa foi muito mais profundo e prolongado o
mutismo cultural que lhes [às mulheres] foi imposto e mais
absolutista o domínio de um texto social masculino, monológico e
homossocial. Este contexto determinou uma compressão/
aceleração histórica do processo de acesso das mulheres à posição
de sujeitos loquentes e representantes (os caminhos e os atalhos
paralelos desse desaprender a não falar galgariam em poucas
décadas o que em outras culturas se mediu em séculos) e marcou
de vários modos a produção literária das mulheres portuguesas ao
longo destes anos e sua recepção por parte da crítica. (p. 2)
5
O importante estudo recente de Chatarina Edfeldt sobre as representações da
autoria feminina no discurso da história literária portuguesa do século vinte questiona de
forma muito vigorosa a naturalização deste saber recebido, defendendo o argumento, a
meu ver inteiramente convincente, de que a sua aceitação pacífica contribui para
inviabilizar o prospectivo valor académico de projectos de recuperação arqueológica que
tiverem por objecto a escrita feminina nas décadas e nos séculos anteriores aos meados do
século passado. Para uma apresentação eloquente de um programa de investigação que
visa a escrita de autoria feminina no barroco português, ver Anabela Galhardo Couto,
“Literatura de autoria feminina: um património da palavra a reinventar”, em Zília Osório
de Castro (dir.), António Ferreira de Sousa e Marília Favinha (orgs.), Falar de Mulheres:
Da Igualdade à Paridade ( Lisboa: Livros Horizonte, 2003), 43-52.
SOBRE A HIPÓTESE DE UMA HERSTORY DA LITERATURA PORTUGUESA
19
A tradição multissecular de a autoria literária ser largamente
sinónima com a autoria masculina é, portanto, um dado inelidível
no contexto cultural português, tornando fundamentalmente inviável a construção de macro-narrativas evolutivas da tradição da escrita feminina antes do século vinte (sem inviabilizar, contudo, como quero deixar bem claro, outras formas de investigação histórica
do protagonismo cultural e literário feminino). Esta presumível deficiência pode, entretanto, converter-se numa oportunidade fértil se
atendermos às alternativas mais recentemente propostas aos modelos fundacionais da história literária, e que rejeitam as suas premissas de continuidade genealógica (patriarcal) e territorial (nacionalista ou regionalista). Inspiradas na transversalidade programática dos
estudos comparatistas e no questionamento epistemológico pósmoderno, as realizações concretas de tais modelos alternativos incluem, por exemplo, a muito comentada New History of French Literature, organizada por Denis Hollier, uma colagem fragmentária
de pequenos ensaios, dispostos cronologicamente, mas sem qualquer pretensão periodológica, genológica ou evolutiva.6 Uma hipótese estruturante distinta é representada pela Comparative History
of East-Central European Cultures que apresenta a informação histórica à base de uma grelha “nodal” de pontos de convergência entre várias culturas étnicas (os pontos nodais podendo coincidir com
cidades como Gdansk/Danzig, pessoas como Franz Kafka, rios como o Danúbio, etc.) (Hutcheon, 2002: 8).7 Estas e outras propostas
recentes da renovação da escrita histórico-literária constituem, a
meu ver, repositórios muito úteis de inspiração para uma prospectiva história do protagonismo literário das mulheres no contexto português. Ao mesmo tempo, urge reconhecermos a importância crucial que para tal projecto poderá ter a dimensão “metodológica” (Owen, 1995: 190) das sempre pertinentes Novas Cartas Portuguesas
de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da
6
Cambridge: Harvard University Press, 1989. Veja-se os comentários –em ambos
os casos críticos, embora em sentidos e com conclusões diferentes– sobre a New History
de Hollier em Perkins 57-59 e Greenblatt 59-60.
7
A versão definitiva deste projecto (organizada por Marcel Cornis-Pope e John
Neubauer), mantendo embora a intenção revisionista e a estrutura “nodal” da apresentação,
diverge ligeiramente da descrição apresentada no artigo citado de Linda Hutcheon,
inclusivemente no que diz respeito ao título que passou a ser History of the Literary
Cultures of East-Central Europe (Amsterdam: John Benjamins, 2004-2007).
20
ANNA KLOBUCKA
Costa. Bastará lembrar a maneira originalíssima de que as autoras
ficcionalizam a inventada linhagem histórica das descendentes femininas de Mariana Alcoforado através de uma sucessão de sobrinhas, filhas de irmãs e também, muito provavelmente, de irmãos,
desestabilizando o que em mãos menos ágeis e subtis poderia vir a
constituir-se como uma sequência genealógica rigidamente matrilinear, mero reflexo (as)simétrico da linhagem patriarcal.8
Outro desafio que é também, simultaneamente, uma oportunidade tem a ver com o aspecto paradoxal da inscrição da diferença
sexual no discurso da história literária portuguesa. Este discurso
representa uma herança cultural que se autoconstrói como extremamente escassa em mulheres escritoras –ou, de modo mais global,
em evidência empírica do protagonismo feminino na produção literária– e, ao mesmo tempo, intensamente apaixonada pelo mito da
própria androginia metafísica. Já a lírica medieval galaicoportuguesa –tal como a lemos hoje em dia, através dos múltiplos
filtros da tradição editorial e interpretativa que a tem acompanhado
ao longo dos séculos– oferece a versão inicial da distribuição das
prerrogativas: se o sexo do sujeito representado, ou da persona lírica, pode ser masculino ou feminino (a linha divisória entre os géneros dos falantes coincidindo com a distinção entre os géneros literários de cantiga de amigo e cantiga de amor), o lugar do sujeito representante, ou do poeta, cabe invariavelmente aos homens trovadores.9 Por sua vez, este exemplo da organização assimétrica do discurso diferencialmente sexuado que a poesia galaico-portuguesa
proporciona não raro tem sido apresentado pela crítica e história
literária como uma imagem da simetria perfeita de dois “ponto[s] de
8
Para uma análise mais extensa deste aspecto das Novas Cartas, remeto para o
meu estudo Mariana Alcoforado: Formação de um Mito Cultural (150-52).
9
As questões suscitadas pela organização e interpretação da poesia medieval
galaico-portuguesa (e europeia em geral) em relação à diferenciação sexuada dos discursos
líricos apresentam-se demasiado numerosas e complexas para poderem ser aqui
consideradas. Como dois exemplos de abordagem crítica revisionista que, coincidindo em
desafiar a perspectiva histórico-literária tradicional, oferecem ao mesmo tempo leituras
divergentes do protagonismo discursivo feminino na poesia medieval, veja-se Ria
Lemaire, Passions et positions. Contribuition à une sémiotique du sujet dans la poésie
lyrique médiévale en langues romanes (Amsterdam: Rodopi, 1988) e Ana Paula Ferreira,
“Tell Woman What She Wants: The ‘Cantigas d’Amigo’ as Strategies of Containment”,
Portuguese Studies 9 (1993), 23-38.
SOBRE A HIPÓTESE DE UMA HERSTORY DA LITERATURA PORTUGUESA
21
vista sentimenta[is]” equivalentes (Saraiva e Lopes, 1996: 48). O
apelo utópico da postulada relação igualitária verifica-se tão poderoso que até a autora de O Tempo das Mulheres afirma não importar
que as cantigas de amigo «sejam obra de homens, uma vez que as
mulheres não são apenas a fonte e o público desta poesia, elas não
são apenas as suas personagens centrais, mas são ainda o filtro através do qual se olha a vida» (Magalhães, 1987: 108). É semelhante a
perspectiva que Maria Graciete Besse, num estudo mais recente, assume ao sustentar que «as cantigas de amigo desenham uma sociedade matriarcal caracterizada pela ausência do Pai ou do Amante, através do ponto de vista dos poetas que observam o mundo com olhos
de mulher, revelando um certo conhecimento da psicologia feminina» (Besse, 2001: 16). As evidências históricas da desigualdade entre os homens e as mulheres quanto ao nível de acesso e formas de
participação na vida cultural entram, deste modo, numa relação de
contradição com a idealizada representação do equilíbrio entre os
dois “pontos de vista” ou duas formas de sensibilidade a participarem, de modo não apenas paritário mas até harmoniosamente fundido (no ventriloquismo transexuado ou “andrógino” das cantigas de
amigo), na articulação das origens do discurso literário nacional.
Tal contradição não se encontra limitada ao contexto da poesia medieval galaico-portuguesa, sendo embora nesta que se possa
procurar a sua expressão inicial. Um exemplo eloquente do conflito
entre os planos histórico e simbólico da categorização sexualmente
diferenciada do discurso literário é proporcionado pela seguinte
constatação de Agostinho de Campos no seu prefácio ao livro Escritoras de Portugal (1924) de Thereza Leitão de Barros (a história
pioneira da literatura de autoria feminina em Portugal): «Direi (...)
que do livro Escritoras de Portugal ressalta aos meus olhos, com
nitidez nova e grande, a tese seguinte: que a literatura portuguesa,
essencialmente lírica e, dentro do lirismo, essencialmente amorosa,
pode chamar-se (embora exercida quase só por homens até os primórdios do século actual) uma literatura feminil ou mulheril. Penso,
é claro, na poesia lírica» (Barros, 1924: I, 9-10). Não obstante o evidente excesso retórico do prefaciador, que reduz as letras portuguesas à poesia lírica para as poder apresentar em seguida como
“uma literatura feminil” exercida por homens, a declaração oferece
22
ANNA KLOBUCKA
um reflexo útil da percepção enraízada na consciência cultural portuguesa e para a qual a visão canónica das origens da literatura nacional tem proporcionado um solo fértil. Luciana Stegagno Picchio
formulou um diagnóstico particularmente apto da situação, dizendo
parecer que «per secoli la letteratura femminile in Portogallo altro
non sia stato che una letteratura quale i letterati uomini, portoghesi
o no, immaginavano potuto essere una letteratura femminile portoghese se le letterate portoghesi non fossero state donne e cioé, per
costituzione e definizione, incapaci di letteratura» (Picchio, 1980:
6-7). Se as mulheres podiam ser consideradas, pura e simplesmente,
“incapazes de literatura”, os homens letrados tinham, pelo contrário,
razões historicamente consagradas para confiar na própria capacidade de protagonizarem, no discurso literário e não só, uma espécie
de polifonia identitária, fazendo-se porta-vozes da experiência humana em toda a sua diversidade, inclusive a de género. Longe de se
encontrar excluído do espaço textual da tradição literária portuguesa, o sujeito discursivo feminino manteve nela uma posição importante, desde a lírica medieval, através da narrativa romanesca da
Menina e Moça e epistolográfica das Cartas Portuguesas, até à aventura efémera, mas no contexto claramente significativa, de Violante de Cysneiros, colaboradora inventada do grupo de Orpheu.
Importa notar que todos estes casos da dramatização do protagonismo literário feminino viriam a adquirir uma relevância histórica
que ultrapassa os limites do significado que teriam tido no tempo e
no lugar da sua génese: as características temáticas e dicursivas das
cantigas de amigo galaico-portuguesas chegaram a contribuir para a
definição tanto das raízes da literatura portuguesa em geral, como
da própria identidade nacional, o que aconteceria também com a
voz portuguesíssima de Soror Mariana, cuja criação é hoje em dia
quase universalmente atribuída a um autor não apenas masculino
mas também estrangeiro (Gabriel-Joseph Lavergne de Guilleragues). Quanto à produção lírica e à persona poética de Violante de
Cysneiros (heterónimo de Armando Côrtes-Rodrigues), estas inscreveram-se numa experiência artística colectiva de importância
decisiva para a formulação da modernidade literária portuguesa que
foi a publicação, em 1915, dos dois números da revista Orpheu.10
10
Para uma análise aprofundada do fenómeno Violante de Cysneiros e da sua
SOBRE A HIPÓTESE DE UMA HERSTORY DA LITERATURA PORTUGUESA
23
Esta presença destacada das vozes disfarçadamente “femininas” em
alguns espaços textuais que foram cruciais para a autodeterminação
identitária da cultura literária nacional tem um peso simbólico difícil de sobreestimar, mesmo –ou especialmente– se a colocarmos em
confronto com o estatuto efectivamente verificável do protagonismo
cultural das mulheres na história portuguesa.
Se uma das dificuldades principais que tal quadro de referência representa para uma hipótese da intervenção históricoliterária feminista se encontra sintomaticamente reflectida nos comentários acima citados de Isabel Allegro de Magalhães e Maria
Graciete Besse sobre as cantigas de amigo, nos quais a sedução da
utopia paritária se sobrepõe à vigilância crítica, as oportunidades
nele inerentes têm estado a ser realizadas, a meu ver, sobretudo na
dimensão histórica, e inclusivemente histórico-literária, dos textos
narrativos, poéticos e dramáticos abundantemente produzidos, ao
longo dos últimos cem anos, por escritoras portuguesas. (A flexibilidade genológica das Novas Cartas Portuguesas, com o seu apagamento programático das fronteiras entre a escrita literária e crítica, deve ser evocada neste contexto como mais um contributo metodológico importante da obra das “três Marias”.) Dadas as limitações de espaço a que este breve ensaio obedece, mencionarei apenas
um único exemplo: a obra poética de Adília Lopes, em cuja ampla
órbita intertextual se misturam e interagem de muitas e profícuas
maneiras textos, autoras, autores, épocas, discursos e personagens
da história literária portuguesa e ocidental, um perpetuum mobile
significante posto em movimento desde a epígrafe do seu primeiro
livro de poesia, Um jogo bastante perigoso (1985), que foi uma citação de Menina e Moça («e mais, pois é conto de mulher, não pode
leixar de ser triste»). Como salienta Elfriede Engelmeyer no seu
posfácio à Obra de Adília Lopes, a propósito de outra intervenção
proemial da autora, «com as duas epígrafes que antecedem esta edição das suas obras completas, citações de Sophia de Mello Breyner
Andresen e Agustina Bessa-Luís, Adília Lopes assume a tradição da
literatura de mulheres em Portugal. (...) Como ela própria acentua, o
relação para com a questão da autoria feminina na época de Orpheu ver Anna Klobucka,
“A mulher que nunca foi: para um retrato bio-gráfico de Violante de Cysneiros.”
Colóquio/Letras 117/118 (1990), 103-14.
24
ANNA KLOBUCKA
facto de na sua língua materna existir uma linhagem de textos escritos por mulheres foi determinante para a sua própria produção literária» (Engelmeyer, 2000: 470). Penso que este programa poético –
juntamente com muitos outros casos de compromisso intertextual
marcados pela atenção que dedicam ao género sexual, protagonizados por autoras e autores portugueses, que poderiam ser aqui evocados– merece ser lido e explorado como um discurso complexo e
sério (não menos sério por ser, muitas vezes, satírico) sobre a tradição literária e cultural das mulheres portuguesas, tradição que, para
Adília Lopes, engloba tanto as elevadas linhagens do parentesco
poético desta auto-nomeada “freira poetisa barroca” (Engelmeyer,
2000, 339) como os desastres das meninas exemplares da Condessa
de Ségur, para mencionar apenas uma das suas referências recorrentes. Em poemas como “A colecção Barbara Azul” (2000:129), “Uma afirmação de Pessoa sobre Milton” (2000 145), “Patronymica
Romanica” (2000, 339) ou “Emily Dickinson/S. João da Cruz”
(2000: 383) Adília Lopes escreve uma herstory literária, história
esta sempre descontínua e problematizante, frequentemente transnacional, assumidamente arrojada na ênfase nada discreta que coloca no género sexual enquanto um factor centralmente relevante nos
jogos de poder de autoria e autoridade cultural. Aprendermos a conjugar esta e outras herstories de forma atenta e imaginativa com outros discursos histórico-literários global e localmente disponíveis
poderá render resultados muito produtivos para o campo da teoria e
crítica luso-feministas.
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SOBRE A HIPÓTESE DE UMA HERSTORY DA LITERATURA PORTUGUESA
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VEREDAS 10 (Santiago de Compostela, 2008) 27-55
Constituiçom de umha
História literária de base sistémica:
o sistema cultural como objecto de
análise histórica no programa de
investigaçom de Itamar Even-Zohar
ARTURO CASAS
Universidade de Santiago de Compostela
This article presents a series of considerations, founded on Itamar Even-Zohar’s
theory of polysystemic culture, regarding the delimitation of Literary History’s
object of study. My purpose is to organically analyze the four principle challenges of
dynamic functionalism and the systemic model in their application to diachronic
history. These challenges are as follows: 1) to understand polysystemic,
extrasystemic and subsystemic interactions as well as the borders between systemic
cultures as an alternative to traditional comparative methodology; 2) to incorporate
as object of study not only products/texts but also what Pierre Bourdieu’s theory of
social fields describes as “espace des possibles;” 3) to test a sequential model
capable of elucidating dynamic polychronics and systemic changes; and 4) to
configure a critical selection of data that is susceptible to historicization and put it
into dialogue with other concurrent historiographic models.
O propósito das páginas que seguem é fixar de maneira
esquemática umha posiçom sobre algumhas linhas de
desenvolvimento da História literária (HL) e sobre a percepçom da
sua crise como disciplina, para depois concretar um corpo de
propostas referido a umha mudança de rumo na definiçom e
28
ARTURO CASAS
delimitaçom do objecto de estudo, que o será também nas opçons
metodológicas adoptadas nesse giro heurístico. A posiçom que se vai
fixar vem marcada por um carácter sócio-semiótico e sistémico, e
vincula-se a dous factos constatáveis. Em primeiro lugar, que a HL
deixou de existir como disciplina unificada ou ainda coesa. A inegável
resistência de modelos e práticas tardo-positivistas, afiançados
sobretodo no campo educativo, administra uns procedimentos e umha
autoridade herdados, mas esta deve dedicar cada vez maiores esforços
a justificar-se e aqueles som percebidos desde os sectores menos
acomodadiços como claramente inerciais por estarem esgotados os
seus programas-base. O segundo facto tem que ver com as novas
prioridades da HL, concentradas a dia de hoje no estabelecimento de
um objecto de estudo pluralizado e inter-relacionado no campo
sociocultural, irredutível a narrativas lineais e incómodo com a
autoridade discursiva central, ligada a fórmulas obsoletas e, a fim de
contas, deshistorizantes.1 Umha conseqüência é a traslaçom a plano
secundário do debate propriamente metodológico, em algumha
medida posposto enquanto nom exista um acordo de mínimos relativo
a que é o que a HL deve historiar e com que escala deve fazê-lo.2
Contodo, a cartografia internacional da HL nom se move em
bloco. Trás os processos de descolonizaçom, e também pola
emergência de programas nacionalistas em espaços geoculturais ou
administrativos submetidos ou assimilados, existem entidades (nom
só nacionais) que empreendêrom processos aprazados de construçom
nos que a HL adquiriu de novo um claro sentido social-pragmático.
Essa planificaçom historiográfica convive no tempo –ou ainda no
1
Deshistorizantes porque sustentam a ideia de que a evoluçom literária obedece a
ajustes autónomos que nom precisam atender as relaçons históricas do delimitado apenas
como contexto.
2
Resulta indicativo o início de um breve artigo de M.L. Gaspárov, vinculado com a
escola de Tartu e autor de A History of European Versification (1996). O original russo do
artigo, de 2003, começa assim: “A la pregunta ‘¿cómo escribir la historia de la literatura
rusa?’ me hubiera gustado responder enseguida: no hace falta escribirla de ninguna manera,
ya que ahora mismo no la escribiríamos bien: no hay material” (Gaspárov 2007). Outra
perspectiva da complexidade da tarefa é a anotada por Heidrun Olinto (1996: 42-43) tendo à
vista as recentes teorias alemás sobre umha mudança no programa tradicional da HL, em
especial as devidas a S.J. Schmidt. Neste caso, a atençom dirige-se à dúvida sobre a
existência de historiadores preparados (epistemológica, intelectual, academicamente) para
assumir tal repto.
CONSTITUIÇOM DE UMHA HISTÓRIA LITERÁRIA...
29
espaço– com movimentos de signo contrário que afectam outras
entidades (digamos de novo nacionais). Em ocasions, ocorrerá até que
no mesmo espaço geocultural e em simultaneidade distintos agentes
activem processos inversos e que se acabem encontrando no conflito
de discursos, estratégias e programas, em parte dirigidos a destacar a
contingência ou a ilegitimidade das planificaçons alternativas à
própria. Sabemos bem que a HL de base nacional é um plano
performativo validado por necessidades de coesom sociocultural e
política específicas, amiúde muito marcadas polas urgências
históricas. Cobertas essas necessidades, a HL nacional esgota-se como
projecto e cede espaço a planos alternativos, entre o regional e o
mundial, entre a regionalizaçom –a escala menor ou maior que a
própria naçom– e a mundializaçom da perspectiva histórica. Em umha
ordem complementar, a HL nacional tolera contra-discursos
destinados a reverter silêncios e ocultaçons. De facto, a aporia da
estabilizaçom nacional (ou da ultimaçom de um processo dado de
construçom nacional) conduz com freqüência à assunçom política de
que toda História (literária) é um projecto frustrado que ou bem se
deveria refutar ou bem se deveria desconstruir.3 Porém, se a crise
nacional se acentuar aparece com freqüência umha rectificaçom de
signo unitário e “patriótico”. Um caso claro é o representado pola
Hungria de finais do século XIX, quando os modelos historiográficos
nacionalistas de Zsigmond Bodnár e de Zsolt Beöthy tentárom frustrar
qualquer alternativa nom nacional-estatal e qualquer movimento de
integraçom da produçom cultural das plurais minorias lingüísticas e
etno-nacionais, algo que sim contemplara meio século antes, polo
menos parcialmente, o modelo historiográfico de Ferenc Toldy.
3
É legítima (e pertinente) a dúvida sobre a funcionalidade de qualquer automatismo
que postule umha reconduçom a termos historiográfico-literários do binómio crítica da
identidade/crítica da diferença. As práticas contra-historiográficas ou as que se formulam
como supletórias de um discurso histórico (canónico, oficial...) de referência, incluído todo o
que Dominick LaCapra (2004) delimita como giro experiencial da historiografia, se nom se
resolvem em termos relacionais, podem auto-limitar-se e postular-se subsidiárias de raiz. O
melhor campo de provas, como sugere Mario J. Valdés (em Hutcheon & Valdés 2002: 65),
poderia ser o usuário geral da HL: comprovar em que medida recebe e em que grau assume as
contra-propostas parciais. As contradiçons que surgem desse campo conformam um dos
apoios da posiçom de Valdés em favor de umha história efectiva, noçom proveniente da
hermenêutica da consciência histórica de Paul Ricoeur. Para Valdés (2002: 67), “Effective
literary history begins with the recognition that history, and literary history in particular, is
effective insofar as it is used and is of use to would-be readers; it is a concept deeply aligned
with the idea that we are affected in the present by our sense of the past”.
30
ARTURO CASAS
Em termos gerais, a resistência à mudança heurística e
metodológica na HL carece de comparaçom no marco das práticas
historiográficas e das disciplinas humanístico-sociais. A partir da
demorada crise do positivismo, as iniciativas de dinamizaçom
originárom-se basicamente fora da comunidade académica dos
filólogos-historiadores. A intransigência corporativa experimentou-se
com freqüência como umha luita por preservar o domínio epistémicoideológico e o controlo didáctico dos saberes literários e da sua
institucionalizaçom. Também, ao mesmo tempo, como umha
estratégia autonomizadora e monopolizadora para deixar o literário à
margem da confluência com outros produtos culturais ou sociais e, em
sentido amplo, para preservá-lo, em sentido escolástico (Bourdieu
1994), da própria história. Apesar disto, a HL nom está esgotada
como disciplina. Paradoxalmente, e ante todo, por ser História.
Desde as correcçons aplicadas na parte final do século XVIII,
de forma sucessiva como catálogo, erudiçom enciclopedista ou
história filosófico-causal, as mudanças na HL incorporárom-se quase
sempre da mao de assimilaçons provenientes do debate metodológico
referido à História reconhecida como disciplina-quadro. Esse debate
implicou de modo progressivo a abertura das distintas historiografias
a outras ciências humanas e, bastante mais adiante, um
questionamento profundo da centralidade do acontecimento histórico,
algo previsto em algum modo já por Voltaire e por Madame de Staël.
Por contra, a incidência efectiva da teoria literária e da nascente
comparatística no processo disciplinar da HL resultou modesta,
discreta e diferida. As excepçons som escassas. A única clara no
âmbito da romanística europeia, já no século XX, seria a da estilística
idealista, em realidade um processo de retroalimentaçom da própria
historiografia umha vez considerada a repercussom da leitura crítica
que Croce formulou sobre o pensamento de Hegel, com resultados
tam díspares como os oferecidos por Spitzer e por Vossler. Noutros
espaços haveria que mencionar o peso do materialismo histórico e do
pensamento sociológico marxista, assim como a muito adiada
influência dos debates protagonizados polo círculo Bakhtine. E pouco
mais até aos derradeiros vinte anos do passado século. Resulta neste
sentido mais que significativo o tempo que se demorou em assimilar o
legado último das posiçons funcionalistas de Jakobson, Tinianov e
CONSTITUIÇOM DE UMHA HISTÓRIA LITERÁRIA...
31
Sklovski sobre a nom equiparabilidade de sincronia e sistema, sobre a
determinaçom iniludivelmente sistémica de toda evoluçom e sobre a
possibilidade de umha história do sistema literário superadora da
história genética da literatura e do imanentismo lingüístico-literário de
linhagem saussureana (Steiner 2001: 99). As posiçons dos formalistas
russos seriam reelaboradas nos primeiros anos 40 por Felix Vodiþka
(1995) no quadro das investigaçons da Escola de Praga. Estas últimas
permaneceriam inaplicadas na prática, entre outros motivos pola
complexidade de umha combinatória eficaz das dimensons
sociológica, fenomenológica e estético-axiológica, propostas polo
teórico checo em dependência de um propósito de fundo
reconstrutivo. Vodiþka, em efeito, perfilou a tarefa inicial da HL na
reconstruçom da norma literária em um espaço-tempo dado e na
hierarquizaçom do conglomerado formado por obras e valores
estéticos tal como sucessivamente se concretizam no gosto de público
e crítica.
Em umha série de trabalhos publicados nestes últimos anos
salientei a indissociabilidade do curso da HL e o correspondente à
matriz que por antonomásia reconhecemos como História. Trata-se de
laços evidentes, mas amiúde desvalorizados no que representam desde
um ponto de vista operacional e funcional. De umha série de dez
consideraçons anotadas em umha publicaçom do ano 2000, interessame agora recuperar em particular a que abria a relaçom. Insistia na
existência de um conjunto de problemas/respostas iniludíveis
partilhados pola História e a HL, como mínimo no tocante a duas
esferas: as implicaçons entre narraçom e construçom (com posiçons
como as de Ricoeur, White, Gadamer, Koselleck, Derrida, Skinner,
Schmidt, Ankersmit…) e a funçom social e institucional das
disciplinas históricas. Também assinalava algumhas noçons com
capacidade de articulaçom do discurso historiográfico e de centrar
possíveis leis disciplinares da HL, entre elas as de mudança literária,
desenvolvimento gradual, explosom cultural e processo interliterário, para as que os referentes teóricos seriam Vodiþka, a Escola
de Tartu, a Escola de Bratislava, a teoria dos polissistemas, Bourdieu,
Wallerstein e Martindale. Algumhas dessas noçons serám retomadas
aqui, fundamentalmente desde as premissas da semiótica pragmática e
das teorias sistémicas, tendo presentes assim mesmo as observaçons
32
ARTURO CASAS
de Bourdieu, nas suas Méditations pascaliennes (1997), em torno às
práticas deshistorizantes e às resistências à historicisation nos
programas habituais aplicados por filósofos e filólogos para a
constituiçom de umha história da filosofia ou de umha história da
literatura. O esquecimento da história nesses âmbitos associa-se para
Bourdieu à prevalência de umha tradiçom (Kant, Hegel, Heidegger)
que em realidade ritualizou a correlaçom texto-cânon-exegeta e que se
desentendeu da análise da produçom-recepçom e dos processos de
canonizaçom em sociedades históricas concretas. A propósito da
mudança literária/cultural e das descontinuidades na história, um
referente iniludível é, por suposto, Foucault, se bem de Saussure a
Lotman ou Martindale existe umha linha de reflexom sustentada no
século XX sobre a apariçom do aleatório e do casual nos processos
lingüístico-culturais.
*
A opçom sistémica em HL pressupom tomar consciência da
existência de polo menos quatro reptos de importante calado e nom
simples resoluçom: 1) a explicaçom dos limites sistémicos ou de
campo e as interacçons sistema-extra-sistema, sistema-polissistema e
sistema-subsistema; 2) a incorporaçom efectiva de todo quanto se
entende como produto sistémico,4 o qual, em boa lógica, deveria
implicar também a introduçom relacional do que na teoria dos campos
sociais se define como espaço dos possíveis;5 3) a decisom sobre o
modo apropriado de incorporar a diacronia sistémica,6 que no
4
“By ‘product’ I mean any performed set of signs and/or materials, i.e., including a
given behavior. Thus, any outcome of any action, or activity, can be considered ‘a product,’
whatever its ontological manifestation may be, be it a semiotic or a physical ‘object’: an
utterance, a text, an artifact, an edifice, an ‘image,’ or an ‘event.’ In other terms, the product,
the item negotiated and handled between the participating factors in a culture, is the concrete
instance of culture. Obviously, a culture product is any implemented item of the repertoire of
culture” (Even-Zohar 2005: 25).
5
Nas páginas introdutórias ao seu trabalho de 1990 Even-Zohar chamou a atençom
sobre o facto de que Bourdieu alcança-sse conclusons próximas –“in some areas superior”–
às do funcionalismo dinâmico sem que se produzisse nengumha conexom ou aproximaçom
teórica efectiva (Even-Zohar 1990: 3).
6
Incorporaçom que em si mesma constitui já umha prova de notável complexidade
para o modelo sistémico, muito mais rodado e melhor testado em coordenadas sincrónicas; as
quais, por suposto, som também históricas, segundo reitera Even-Zohar em distintos lugares.
De todos os modos, tem interesse lembrar que a partir de 1968 as formulaçons pioneiras das
CONSTITUIÇOM DE UMHA HISTÓRIA LITERÁRIA...
33
fundamental obedecerá ou bem a um critério seqüenciador da
dialéctica continuidade/mudança que percorra com detalhe um trecho
temporal –soluçom que cabe ver como a tradicional– ou bem a um
critério comparativo de cortes temporais nom consecutivos que se
lêem como sucessom discreta de momentos-estados submetidos a
contraste sistémico, dando passo assim ao que com Itamar EvenZohar podemos chamar policronia dinâmica; e 4) a reconduçom do
factor crítico que toda história cultural assume ainda que só seja por
duas razons, polas implicaçons derivadas de considerar ou nom
considerar selectivamente determinados factores, produtos e agentes
participantes nas actividades literárias e, em segundo lugar, pola
representaçom da diferença em relaçom com o que Michel de Certeau
(1975: 63-120) chamou a operaçom historiográfica, que nom só
habilita discursivamente o que já nom está senom que ademais
constitui umha historizaçom do actual, o qual faria inesquivável a
vertente crítica. Parte das consideraçons feitas, com atençom
particular ao alvo da heterogeneidade, complicado sempre de encaixar
em qualquer narraçom/descriçom historiográfica, conflui nas
observaçons que seguem, pertencentes ao artigo “System, Dynamics,
and Interference in Culture: A Synoptic View”, de Even-Zohar (1990:
87):
The system concept had, however, to undergo several
modifications in order to accommodate the conception of
stratified heterogeneity. Firstly, it became necessary to recognize
that both synchrony and diachrony should be admitted as systemic
dimensions, and therefore that the idea of system need not be
exclusively identified with static synchrony (but could be viewed
as dynamic polychrony). Secondly, it was necessary to recognize
that the idea of system does not imply that there can be
observed/hypothesized for any number of phenomena just one
system, i.e., one network of relations. To speak of an activity, be
it language, literature, culture, or ‘history’ in general, as single
systems is a heuristic simplification rather than an adequate
theory.
teorias sistémicas de Ludwig von Bertalanffy no marco de umha biologia organísmica
discriminavam entre os significativamente denominados nível estrutural e nível funcional dos
sistemas, respectivamente atentos às suas vertentes estática e dinâmica.
34
ARTURO CASAS
Lotman e Uspenski (2000: 190), na sua análise dos
processos de autoconsciência e modelizaçom cultural, mencionam
assim mesmo o erro habitual em muitas histórias literárias de
superpor sobre a descriçom rigorosa da literatura/cultura umha
uniformizaçom destinada a alcançar a unidade orgânica e a
eliminaçom de contradiçons. Regressarei a isto mais adiante, em
particular à ideia limitativa dos sistemas únicos, que em efeito
sustenta boa parte das plasmaçons historiográficas –literárias ou
nom, sistémicas ou nom– as que estamos habituados. Um sistema
único entenderá-se aqui como aquele que exclui a relevância
empírica de redes de correlaçom alheias à considerada para a
postulaçom do sistema como entidade existente. Por exemplo, as
naçons e as literaturas nacionais apresentam-se quase sempre, na
prática historiográfica e na historiográfico-literária respectivamente,
como sistemas únicos. É mais, na maior parte das operaçons
históricas/historiográficas dá-se por suposto que sem reduçom de
campo nom há objecto. Por suposto, em termos práticos há algo de
razoável em umha decisom deste tipo, mas o certo é que, por abuso
nom só heurístico, resulta corrente que o excluído passe a ler-se
como inexistente.
É comprovável que as dinâmicas identitárias costumam
conjugar com perícia essa classe de operativos. O anterior
pressupom que por umha decisom limitativa e simplificadora, ao
tempo assumida como legítima e até como apoditicamente
fundamentada, deixam de observar-se e de valorar-se como
pertinentes redes concorrentes doutros factores correlacionados.
Como é lógico, essas redes podem incorporar por desdobramento
alguns dos factores já considerados para postular a existência do
sistema pré-dado (associados agora a outros factores e/ou a outras
redes) ou, alternativamente, outros factores nom incorporados mas
que em efeito existem, intervêm e interactuam. E nom só o fazem
com outros presentes em algumha das redes excluídas senom
também, com muita probabilidade, com os próprios factores
integrados na rede constituinte do suposto sistema único. Umha
comunidade de consumidores CC adscrita a um sistema cultural SC1
pode perfeitamente simultanear actividades de consumo
perceptíveis, e até determinantes no mercado e/ou no repertório, em
um sistema cultural SC2 diferente; e em tal medida que até possa
CONSTITUIÇOM DE UMHA HISTÓRIA LITERÁRIA...
35
chegar a questionar-se a adscriçom primária de CC a SC1. Portanto,
o sistema único nom só ignora a existência de possíveis redes
alternativas à rede sustentadora do sistema senom que ademais
exclui que algum dos seus factores possa sê-lo, em simultaneidade,
doutro sistema.
Umha nova exemplificaçom dotará de maior claridade o que
se quer dizer. Na sua reformulaçom da teoria dos polissistemas,
Even-Zohar (2005: 31) apresenta a instituiçom e o mercado como
os intermediários entre as forças sociais e os repertórios culturais. A
questom é que em situaçons culturais desenvolvidas e nom
submetidas a umha excepcional pressom uniformizadora e censora
nom existe possibilidade de um mercado único nem de umha
instituiçom única, como tampouco de um repertório único.
Evidentemente, isto é assim em sociedades multiculturais
caracterizadas ou nom por processos de hibridaçom, mas é assim
também em sociedades supostamente coesas. O mercado é sempre
plural, o mesmo que o repertório. Segundo acaba de ver-se, sectores
do mercado de um suposto sistema único participarám em mercados
alternativos e/ou extra-sistémicos, e o mercado desse suposto
sistema único será participado por consumidores associados de raiz
a outros sistemas. Isto nom é umha rareza, mais bem é a norma. A
aceitaçom de que todo sistema é em realidade um polissistema ou
“sistema de sistemas” nom é suficiente para desocupar-se deste
complexo assunto, com óbvias repercussons na traslaçom
diacrónica do problema e com evidente incidência na historizaçom
correspondente. De facto, em umha HL de base sistémica nom só
seria inadmissível a postulaçom de um sistema único, também
resultaria inaceitável o critério de localizaçom única aplicado aos
objectos de análise. Todo acto histórico e todo sujeito histórico
formam parte de planos históricos plurais, polo que nengumha
realidade histórica pertence a um plano-relato único. Um dos
problemas, entom, é o da adjectivaçom identitária da HL sistémica,
pois ainda que seja em um nível secundário esse tipo de chaves
(territoriais, culturais, sociais, lingüísticas...) acabam por aparecer. E
quando nom o fazem é simplesmente devido a algumha classe de malentendido conceptual ou impostura epistemológica (p.e., a que leva a
identificar sistema literário e literatura nacional, tam corrente). Em
realidade, o problema dista de ser novo. Qualquer historiografia
36
ARTURO CASAS
literária deve geri-lo optando por algum critério de axializaçom e
vertebraçom. A diferença radica em que umha HL nom sistémica e/ou
nom empírica promoverá a naturalizaçom de tal critério, enquanto que
o operativo irrenunciável de umha HL sistémica devera ser sempre o
contrário: renunciar a camuflar a decisom, sacá-la à luz ao lado da
complexidade de base e mesmo aprofundar na sua problematizaçom
relacional e funcional. Antes de regressar a este terreno perfilarámse outras análises parciais que contribuam a estabelecer um marco
de observaçom conjunta.
Resulta claro que especificar o objecto de umha história
determinada tem conseqüências sobre a classe de conhecimento que
se aspira a constituir e sobre o tipo de discurso associado a tal
eleiçom. A história da biologia e a história da arquitectura, por
exemplo, compartirám alguns operativos e decisons. E sem dúvida
divergirám noutros. Nom só por atenderem realidades objectivamente
diferenciadas senom também porque noçons como organismo ou
construçom som problemáticas de seu e porque nom estám dadas de
antemao de maneira inequívoca, contando cada umha delas com umha
história conceptual própria (Koselleck) ao longo do tempo. E noutro
plano, ademais, porque os discursos habilitados para informar sobre a
diacronia conceptual associada a essas noçons e à sua evoluçom som
igualmente plurais. Nesta ordem de cousas, se se considera o tempo
transcorrido desde a Ilustraçom, costuma-se aceitar como lógico que
em termos comparativos a história da biologia, obrigada a incorporar
os processos específicos da bioquímica, da biologia molecular, da
genómica e doutras disciplinas convergentes, ampliasse o seu núcleo
de atençons bastante mais do que precisou fazer a história da
arquitectura.
A este respeito cabe ainda umha observaçom complementar,
usual como tema recorrente de debate em práticas historiográficas
do tipo das citadas mas quase ausente na esfera da historiografia
literária. Trata-se da questom da idoneidade do perfil autorial
associado ao campo de especializaçom. Em definitiva,
simplificando algo as cousas, da decisom sobre se a história da
arquitectura deveria ser responsabilidade de um historiador ou de
um arquitecto. Ou sobre se a história da biologia corresponderia a
um historiador ou a um biólogo, ou em geral a alguém versado em
CONSTITUIÇOM DE UMHA HISTÓRIA LITERÁRIA...
37
ciências experimentais. Essa classe de correlaçom nom é tam clara
na historiografia literária. Existem por suposto casos de histórias
literárias feitas por poetas e escritores (de Ronald de Carvalho a
Max Aub ou Emma Donoghue), mas o debate sobre se a HL
poderia corresponder plena ou parcialmente aos historiadores
(promovido em termos teóricos por Lucien Febvre, Roland Barthes
e tantos outros) resultou descontínuo e muitas vezes foi calado antes
de tempo polos poderes corporativos e as inércias académicas.
Em todo caso, depois da experiência da escola de Annales
parece consolidada umha compreensom das diversas formas da
historiografia como programas que só garantem rigor e utilidade a
partir da constituiçom de grupos de trabalho colaborativo
interdisciplinares e plurais. Lembre-se que das quatro grandes
vertentes programáticas anunciadas por Lucien Febvre em 1947 ao se
fazer cargo da sexta secçom da École Pratique des Hautes Études de
Paris, umha se orientava precisamente à procura de um reencontro
entre as ciências humanas e outra à promoçom da investigaçom
colectiva entre equipas de historiadores e outros especialistas. Nessa
linha, pode conjecturar-se que em um futuro nom distante se
contemplará como anacrónica e pouco fiável qualquer postulaçom de
umha autoridade e de um discurso historiográficos ligados à
individualidade do sábio/informador. Provavelmente, acabou para
sempre o tempo das narrativas historiográficas unipessoais e o das
expectativas associadas.7 E nom me parece que essa prevençom
demore em estender-se assim mesmo aos grupos de historiadores
submetidos a umha coerência epistemológica blindada e a umha
coesom programática e estratégica percebidas como excessivamente
rígidas, disciplinadas e autotélicas. É provável, porém, que os leitores
futuros demandem de maneira incondicional resolver por si próprios
as contradiçons que os dados e as interpretaçons cruzadas das equipas
de historiadores ponham sobre a mesa. Assim as cousas, parece
provado que o maior repto público (social, político) da HL é a
7
Refiro-me com esta última expressom a situaçons como a vivida pola academia e a
intelectualidade espanhola e latino-americana que a finais do século XIX esperárom
longamente por umha proposta historiográfico-literária de Menéndez Pelayo que nunca
chegaria a concretar-se. González-Millán (2006) compilou os documentos epistolares
referidos a essa espera no período 1877-1901. Inclui correspondência sobretodo com Juan
Valera, Gumersindo Laverde Ruiz e o colombiano Miguel Caro.
38
ARTURO CASAS
renegociaçom
da
autoridade
narrativo-historiográfica
e
administrativo-institucional que está nas suas próprias raízes
disciplinares. E a este respeito, nom me resistirei a deixar anotada
umha advertência destinada a evitar possíveis simplificaçons.
Trata-se do seguinte: sem dúvida, existem formas de
autoridade à margem do relato omnisciente e fora dos mecanismos de
controlo do narrador-historiador. A renúncia à narrativa no ofício do
historiador, que como tem lembrado Peter Burke é umha reclamaçom
presente já no século XVIII,8 nom pressupom de seu a desactivaçom
daqueles mecanismos nem a superaçom de dependências
deterministas, explicativas, causais ou teleológicas. Tampouco
pressupom necessariamente umha suspensom da seqüencialidade, a
linearidade, a continuidade ou o causalismo. Assim, pois, a suposiçom
segundo a qual a mudança de rumo expressada por Lawrence Stone
(1981) como passagem de um modo analítico a outro descritivo
representaria umha correcçom mas nom umha impugnaçom dos
“excessos” da historiografia narrativa deve calibrar-se com atençom.
Igual que trás toda narrativa há sempre um eu-narrador(focalizador), há também, sempre, trás todo discurso descritivo um
eu-descritor(-focalizador). A opçom em prol da descriçom nom
pressupom de seu um seguro de objectividade ou de nomintervençom sobre a matéria da análise. Mais ainda: nom é evidente
a existência de dous princípios construtivos ou estruturas formais
contrapostos na HL (narrar/descrever) –no sentido exposto por
exemplo por Remo Ceserani (1990: 17-32)– se essa oposiçom se
extrapolar fora do paradigma do historicismo teleológico
nacionalista próprio do século XIX.
Voltemos agora brevemente ao debate aberto a propósito da
historizaçom da biologia e da arquitectura. Com a noçom de literatura
e com a historicidade associada som precisas algumhas aclaraçons e
certas precauçons comparáveis às associadas aos conceitos antes
mencionados de organismo vivo e construçom. De facto, os resultados
da HL dificilmente podem homologar-se quando se consideram
práticas suficientemente afastadas no tempo. Isto é assim, de entrada,
8
O escocês John Millar constitui um bom exemplo, sumamente interessante
ademais desde o ponto de vista sistémico.
CONSTITUIÇOM DE UMHA HISTÓRIA LITERÁRIA...
39
porque aquilo ao que fai referência o nome literatura constitui
domínios muito distintos a finais do século XVIII e a começos dos
séculos XX ou XXI. Porém, existe umha tendência inercial e
essencialista, inconveniente em suma, a pensar que essas diferenças
som apenas de matiz. Em conseqüência, assimila-se que o rótulo
História literária nom só conserva vigência plena senom ademais que
é legítimo falar de continuidade epistemológica e funcional entre
práticas historiográficas separadas por duzentos anos e por
considerarem objectos de estudo tam dissímeis como os que por caso
aparecem no modelo de Girolamo Tiraboschi (Storia della letteratura
italiana, 1772-1781) e no dirigido por Alberto Asor Rosa (Letteratura
italiana, 1982-1996). Neste quadro, talvez conviria começar por
explicitar que só por umha espécie de pacto nom escrito aceitamos
que se fale de umha única disciplina apesar de os campos objecto de
historizaçom diferirem tanto. Isto explicaria, contemplado desde um
prisma diferente, a renúncia ao uso da palavra história em
determinados projectos plenamente historiográficos. E até o feito de
que haja quem opte por preterir o rótulo literatura em favor doutros
como cultura literária, quando nom vida literária ou campo literário.
As modalidades historiográficas entendidas como práticas
discursivas possuem de seu umha dimensom performativa com umha
dobre vertente, a dirigida à comunidade referenciada (sujeito da
história, chamou-se-lhe em certa altura) e a dirigida à comunidade
referente, reguladora e institucionalizadora da operaçom e do
conhecimento historiográficos. Enquanto a primeira se configura com
agentes históricos vinculados pola sua relaçom directa com o objecto
prefixado e por algumha forma de conexom de contigüidade e
continuidade que os une no espaço-tempo como grupo (cultural,
lingüístico, religioso, social, nacional…), a segunda integra os agentes
que documentam, constroem, discursivizam… a história e que
participam em um diálogo científico e em umha pugna epistemológica
e ideológica polo controlo do saber e da sua incidência na esfera
pública. Sergio Sevilla (2000: 140-159) vincula acertadamente esta
performatividade com umha mudança epistemológica pola qual a
theoria –antes “duplicado conceptual do real”– passou a tratar-se
como poiesis: a historiografia afrontou assim um giro retóricopragmático, de modo tal que o imaginário passa a ser o que constitui a
40
ARTURO CASAS
realidade social, e é a teoria a que produz, em sentido poiético, o
mundo (White, Durkheim, Mauss, Castoriadis).
Nada do anterior exclui a marca crítica do conhecimento
histórico: será sempre a intervençom historiográfica a que para
começar questione as conexons de contigüidade e continuidade e a
própria existência da comunidade postulada como objecto
específico de atençom. Descontinuidades e alteridades podem
encaixar assim, mediante procedimentos diversos, na série
historiográfica, originando até a refutaçom de objectos/identidades
considerados e acordados por consenso como existentes noutros
momentos e/ou desde outras perspectivas; ou, contrariamente,
reclamando a incorporaçom de objectos/identidades inobservados
ou excluídos pola comunidade reguladora do saber histórico.
Um aspecto destacado da dimensom práxico-agencial dos
historiadores e dos seus discursos radica na possibilidade de umha
aplicaçom nom excludente de métodos e de escalas, assunto que volta
convocar a ideia de pluralidade e que me parece oportuno destacar. As
escalas, por exemplo, aplicadas sobre um mesmo núcleo de referência
submetido a umha contemplaçom em diferentes níveis, originam
propostas nom necessariamente antitéticas nem contraditórias
(tampouco necessariamente complementárias, lidas desde um ponto
de vista informativo). As cartografias e as escalas, contempladas em
chave de aplicaçom histórico-literária, sinalam a inexistência de
comunidades isoladas ou impermeáveis fronte ao seu exterior/ limites
ou fronte a outras comunidades.9 E nom só isso, senom que ademais
ponhem em questom a própria identidade comunitária se esta se
postular sobre bases monoparametrais (língua, religiom, género,
unidade administrativa…). Dito com maior precisom: o que ponhem
em questom é o consenso sobre a postulaçom/invençom de umha
entidade funcionalmente admitida como sujeito histórico.
O anterior nom significa que fique impugnada qualquer
prática historiográfica de escala única, seja esta menor ou maior. Nem
muito menos. Mas sim introduz umha reserva de forte calado
9
Considere-se a este respeito o enunciado do primeiro princípio da interferência
literária/cultural em Even-Zohar, que em “Polysystem Studies” formulou como “Literatures
are never in non-interference” (Even-Zohar 1990: 59) e em Papers in Culture Research
como “Interference is always imminent” (Even-Zohar 2005: 57).
CONSTITUIÇOM DE UMHA HISTÓRIA LITERÁRIA...
41
heurístico e epistemológico, que pode traduzir-se nos termos
seguintes: “quanto aqui se diga é o resultado de informar/interpretar
como se a escala activada fosse a única ou a mais apropriada para a
finalidade estabelecida”. Obviamente, essa finalidade é susceptível de
variaçom, pois dependerá de critérios diversificados e irredutíveis que
vam desde umha suposiçom de nom-intencionalidade ou
intencionalidade nom marcada até algumha classe de compromisso a
priori (académico, sectário, ideológico…). E que dizer sobre os
métodos? Como mínimo, outro tanto.
Regressemos à questom da performatividade, agora em
associaçom com os princípios construtivistas que a teoria dos
polissistemas assume. Quiçá convenha começar por umha
afirmaçom: nom há possibilidade (nunca a houvo) de umha
historiografia (literária) nom performativa. Isto é assim porque toda
história é umha tomada de posiçom por parte de algum agente que
intervém como sujeito de um acto comunicativo-performativo. Um
complemento necessário para esta afirmaçom é o seguinte: cada vez
é mais limitado o espaço para umha História (literária) nom
empírica. Essa possibilidade existiu no passado, de facto há mostras
numerosas dela; porém, apesar do carácter performativo da
intervençom do historiador e em condiçons de normalidade hoje
resultaria anacrónica e intelectualmente recusável umha alternativa
que se evadisse dos dados em direcçom a algumha ordem
metafísica ou transcendente, ou até a um manifesto ponto de fuga
teleológico. Como é óbvio, isso nom anula as conseqüências do
relativismo discursivo nem as derivadas do conhecido como giro
lingüístico. Tampouco as devidas à marca construtivista referida à
correlaçom entre a teoria e os seus objectos, que leva a Even-Zohar
(1990: 3) a afirmar que o único modo adequado ou viável de
observar um determinado objecto de investigaçom é através do
estabelecimento de hipóteses segundo as quais aquele está
efectivamente sujeito a um conjunto localizável e relativamente
sucinto de leis, cujo descobrimento e formulaçom deveria constituir
o objectivo de toda ciência.
A teoria dos polissistemas de Itamar Even-Zohar apresentavase em 1978 como umha aproximaçom propícia à análise da
metodologia histórico-cultural e à concreçom de alternativas
42
ARTURO CASAS
aplicáveis em particular ao tratamento historiográfico dos sistemas
dependentes ou minorizados, talvez porque essa era já desde dez anos
antes umha das preocupaçons básicas do próprio Benjamin Harshav
(Hrushovski), comparatista e professor de Poética na Universidade de
Tel Aviv e um dos referentes da Unidade para a Investigaçom da
Cultura.10 Porém, a perspectiva histórica evidencia-se com menor
ênfase nas posteriores compilaçons de trabalhos de Even-Zohar
(1990, 2005, 2007), se bem costuma deixar-se clara a dupla
possibilidade programática apresentada como umha teoria dos
sistemas estáticos e umha teoria dos sistemas dinâmicos. Um aspecto
destacável dessa alternativa é o que se expressa com firmeza nestes
termos: “it must be admitted that both synchrony and diachrony are
historical, but the exclusive identification of the latter with history is
untenable” (Even-Zohar 1990: 11).
*
A nossa atençom deve cingir-se neste momento à resposta que
umha HL de fundamentaçom sistémica está capacitada para oferecer à
série de quatro reptos heurístico-metodológicos antes citados, que
nom estará de mais sinalar que som convergentes e interdependentes.
Resumiremo-los deste modo: 1) concretizar em perspectiva dinâmica
os limites sistémicos e as interacçons polissistémicas, extra-sistémicas
e subsistémicas; 2) incorporar com sentido relacional nom só produtos
senom também possíveis; 3) optar entre o modelo da seqüenciaçom
tradicional ou o da policronia dinâmica para dar conta da evoluçom e
das mudanças sistémicas; e 4) conformar umha selecçom (crítica?) de
dados heterogéneos historizáveis e ajustar, se nom umha história
efectiva em sentido pleno, sim polo menos um diálogo com os
constructos historiográficos prévios ou concorrentes.
A questom dos limites na teoria de sistemas é fulcral desde
que Niklas Luhmann assumiu os postulados de Humberto Maturana e
Francisco Varela sobre a autopoiese. Como sinala Maldonado Alemán
10
Os epígrafes “história da literatura”, “história cultural” ou “modelo histórico”
vertebram o sumário e os conteúdos de Papers in Historical Poetics (Even-Zohar 1978).
Sobre isto mesmo, veja-se a análise parcialmente divergente de González-Millán (2001:
306), quem considera que em Even-Zohar há umha incorporaçom de um horizonte histórico
sobre o modelo inicialmente constituído, mas que foi obstaculizado pola “mediación dun
esquema heurístico excesivamente sistemático e abstracto”.
CONSTITUIÇOM DE UMHA HISTÓRIA LITERÁRIA...
43
(2006: 19-23), em Luhmann os sistemas sociais autopoiéticos som
sistemas autónomos que se organizam de forma auto-produtora, autoreguladora e auto-referencial e que estabelecem uns limites
diferenciadores com o seu entorno. Assim entendida, é claro que a
autopoiese mantém pontos de convergência com o que noutras
plataformas teóricas podem representar a cultura como sistema
semiótico modelizante na semiosfera (Lotman), o habitus no campo
social (Bourdieu), o repertório no sistema cultural (Even-Zohar) ou a
vida textual e a vida antropo-social nas coordenadas da instituiçom
literária (Moisan). Maldonado Alemán (2006: 27) aponta que seriam
três as relaçons de que deveria ocupar-se umha história dos sistemas
literários: as intra-sistémicas, as extra-sistémicas e as intersistémicas.
Em todo o caso, insistirei de novo na advertência sobre o que antes
interpretei como umha espécie de reduçom aos princípios de sistema e
localizaçom únicos, mediante a qual o analista tenderá
equivocadamente a ignorar a existência de redes sistémicas
alternativas à considerada como referência autopoiética de base, ou
também à pertença a umha rede sistémica outra de algum factor ou
relaçom supostamente intra-sistémico. Dito em palavras mais
categóricas: em um espaço social determinado nom tem por que haver
um único sistema social/cultural (é mais, esse caso seria
excepcional),11 e um factor sistémico dado pode associar-se
simultaneamente (a maioria o fazem) a diversas redes sistémicas, em
definitiva, a diversos sistemas.
Na concreçom dos límites sistémicos seria produtivo fixar-se
nom só nas interferências e no que caberia denominar dimensiom
relacional paratáctica –âmbito do que se vem ocupando assim mesmo
a historiografia comparatista com desigual fortuna– senom também na
dimensom relacional hipotáctica, mais pendente das junturas11
Lembre-se a diáfana posiçom de Even-Zohar ao respeito e as suas reservas sobre
qualquer reduçom da heterogeneidade nos estudos literários: “The acuteness of heterogeneity
in culture is perhaps most ‘palpable,’ as it were, in such cases as when a certain society is bior multilingual (a state that used to be common in most European communities up to recent
times). Within the realm of literature, for instance, this is manifested in a situation where a
community possesses two (or more) literary systems, two ‘literatures,’ as it were. For
students of literature, to overcome such cases by confining themselves to only one of these,
ignoring the other, is naturally more ‘convenient’ than dealing with them both. Actually, this
is a common practice in literary studies; how inadequate the results are cannot be overstated”
(Even-Zohar 1990: 12).
44
ARTURO CASAS
disjunturas e dos encaixes polissistema-sistema-subsistema que de
umha visom intersistémica central-central ou central-radial. O
relevante é entender que o sistema cultural é sempre um sistema
complexo em razom de limites, inter-relaçons e hierarquizaçons.12
Em umha publicaçom anterior explorei a rendibilidade
operativa da noçom de delegaçom sistémica, próxima à de
subsistema13 e igualmente receptiva ao modelo bourdiano dos
campos sociais e ao que poderíamos catalogar como umha topologia
de sistemas (Casas 2003: 74-75). Por afectar às relaçons
intersistémicas hipotácticas tentarei redefinir o conceito com maior
precisom. Umha delegaçom sistémica é o resultado de umha
interferência entre sistemas culturais que projecta à escala e com
carácter global o centro do sistema fonte no centro ou na periferia
do sistema receptor.14 Do que se trata, pois, é de que se exporta ou
desloca em escala menor a outro sistema o conjunto de
características funcionais que definem o centro do sistema fonte.
A existência da delegaçom sistémica liga-se a dous possíveis
factores: o prestígio do sistema fonte e/ou um certo grau de
proximidade sistémica. Tal proximidade pode ser de índole
geográfica, lingüística, político-administrativa, cultural, ideológica,
religiosa.... A marca de globalidade pressupom que a projecçom à
escala do centro do sistema fonte nom se limita a elementos de
repertório, senom também de mercado, de consumo e sobretodo
12
Também –privilegiando nisto a atençom a Lotman– que a fronteira semiosférica é
um factor simultâneo de organizaçom (cara a dentro) e de desorganizaçom (cara a fora).
13
Empregada esta por Elias Torres Feijó em distintos trabalhos a partir do ano 2000
e aplicada nas investigaçons sistémico-culturais do Grupo Galabra, por ele dirigido. Sobre a
teorizaçom de Torres Feijó, muito conectada com o modelo de Even-Zohar, volverei mais
adiante.
14
Nom poria inconveniente a substituir “sistema receptor” por “cultura receptora” se
se registra insuficiência sistémica. Em processos históricos de colonizaçom ou de expansom
imperialista a delegaçom sistémica formaria parte do aparato de assimilaçom cultural que
sucede à fase de maior rigor na aculturaçom das comunidades submetidas. Nestes casos,
acaba sempre por aparecer e estabelecer-se umha burocracia intelectual que é um dos
mecanismos mais efectivos na consolidaçom da hegemonia e que, à sua vez, acabará sendo
alvo preferente das reacçons contra-hegemónicas de resistência cultural. Doutra banda, nos
processos modernos e contemporâneos de centralizaçom derivados da constituiçom de
estados que planificam umha homogeneizaçom cultural (praticamente todos), as delegaçons
sistémicas formam parte das correias de transmissom hierarquizadoras que aspiram a
instaurar um reconhecimento da superioridade da cultura nacional-estatal sobre as
manifestaçons estereotipadas e minoradas do presentado como local/regional.
CONSTITUIÇOM DE UMHA HISTÓRIA LITERÁRIA...
45
institucionais. Portanto, essa globalidade projectada acaba
implicando um repto ao mantimento de umha identidade unida no
sistema receptor (ou na cultura receptora): a delegaçom sistémica,
em quanto sistema à escala, entra em concorrência com o sistema
receptor e desestabiliza ou dilui as suas chaves identitárias.
Além disto, a interferência descrita sujeita-se plenamente às
leis da interferência cultural postuladas por Even-Zohar desde 1990,
o qual significa, entre outros extremos, que se produz de modo
unidireccional desde um sistema forte ou prestigiado a outro
sistema fraco ou dominado; ou, noutras ocasions, a um sistema
emergente em processo de constituiçom. Significa igualmente que a
delegaçom sistémica, como resultante da interferência produzida,
redistribuirá a sua identidade funcional (nom necessariamente
homóloga à do centro do sistema fonte) e normalmente simplificará,
regularizará e esquematizará os elementos e relaçons importados ou
apropriados, se bem tenderá a manter umha relaçom de dependência
com o sistema fonte. Essa simplificaçom redundará, por exemplo,
em umha aceitaçom da minorizaçom sistémica própria, em umha
interiorizaçom da subalternidade e em umha limitaçom ao local e
menor das aspiraçons de todo sistema cultural autónomo. Por outra
parte, quando se diz que a projecçom sobre o sistema receptor pode
recair no seu centro ou na sua periferia, quer indicar-se que a
localizaçom funcional da delegaçom sistémica terá umha
fortaleça/prestígio e exercerá um domínio variáveis, que
dependerám das circunstâncias históricas.
Nom se tem sinalado entre os investigadores vinculados com
o paradigma sistémico a notável quantidade de ocasions em que
Even-Zohar fala de comunidades, noçom acaso ambígüa em sentido
teórico-sistémico mas nom tanto como referente cultural.15
Precisamente, a incorporaçom que sugiro do conceito de delegaçom
15
De facto, nom semelha demasiado arriscada a conjectura de que nos trabalhos de
Even-Zohar “comunidade” é equiparável a maior parte das vezes a “naçom”. Quiçá nom
devam equacionar-se ambos os termos e conceitos no discurso deste teórico, mas quase
sempre e como mínimo –reitero-o– o uso do primeiro engloba o significado do segundo, às
vezes sem menor/maior extensom perceptível. A esta luz, talvez seria necessário matizar a
posiçom de González-Millán (2001: 304) sobre o silêncio ou relegaçom implícita da lógica
discursiva nacional nos textos teóricos de Even-Zohar, juízo que estendeu aos de Pierre
Bourdieu.
46
ARTURO CASAS
sistémica tem um encaixe simples no marco das relaçons entre
comunidades vinculadas por algumha relaçom de domínio e
submetimento ou por laços históricos derivados de processos de
expansom ou colonizaçom.16 De aí a equiparaçom última a umha
polaridade sistema-subsistema e às dinâmicas de emancipaçom/submetimento.
A partir de aqui, como proceder a umha historizaçom da
complexidade e da heterogeneidade? Semelha claro que as dimensons
geográfica e lingüística, inesquiváveis na historiografia literaria, saem
também ao passo quando se opta pola perspectiva sistémica. Umha e
outra deveriam concentrar umha parte importante dos esforços
justamente em pensar a correlaçom autopoiese-entorno, em pensar os
limites e o extra-sistémico como factores construtivos do sistema,
algo que a HL de base nacional nunca fijo,17 basicamente por assumir
a centralidade da ideia da naçom como modelo normativo que se
afirma em operativos de exclusom e que deixa em suspenso ad
kalendas graecas qualquer reconhecimento sobre o seu estatuto
inventado/postulado e acordado por consenso/imposto.
Mas existe mais um factor que afecta a essa correlaçom
autopoiese-entorno nos sistemas culturais e em particular nos
literários: o fenómeno da traduçom, excluído quase sempre da
perspectiva histórica-historiográfica apesar de resultar capital baixo
16
Even-Zohar estabelece nas suas propostas que centro e periferia nom se
configuram necessariamente nos polissistemas culturais como posiçons singularizadas. Em
um mesmo polissistema é possível que existam vários centros e várias periferias. Interpreto
que quanto mais complexo seja o polissistema, em funçom da dinâmica das relaçons entre
factores ou em funçom dos subsistemas integrados, maiores possibilidades haverá de
geraçom de centros-periferias digamos sectoriais. Fica para outro lugar o estudo de umha
possível adaptaçom do conceito de delegaçom sistémica em sentido intra-sistémico (na linha
de hierarquia hipotáctica sistema-subsistema), que iria associada a umha dupla
funcionalidade principal, a coesom e o controlo. Em definitiva, a umha provincializaçom
ecóica da cultura no sentido central-radial.
17
Estimo que nem sequer em projectos receptivos ao paradigma empírico-sistémico.
Um caso significado é o representado polo projecto La Vie littéraire au Québec, na
actualidade dirigido por Denis Saint-Jacques e Maurice Lemire, com cinco volumes
publicados de um total de oito projectados. Nos volumes III, IV e V aparece um capítulo
inicial intitulado “Les déterminations étrangères du champ littéraire”, mas nom julgo que
alcance a ocupar-se das tarefas concretas que acabo de sinalar como obrigadas. O capítulo
correspondente ao volume V, por exemplo, centra a atençom em três esferas de relaçons
exteriores: a literatura francesa, o catolicismo e a cultura estado-unidense (Saint-Jacques e
Lemire 2005: 9-29).
CONSTITUIÇOM DE UMHA HISTÓRIA LITERÁRIA...
47
um ponto de vista sistémico, e nom precisamente por entender a
literatura traduzida como série justaposta de produtos e repertórios
secundários senom como parte integrante, em pé de igualdade, da rede
de factores sistémicos que definem o polissistema.
Entom, descartada a burda equiparaçom entre sistema literário
e literatura nacional, que fazer? Fixar como referente da HL a cultura,
a língua, o espaço social, a esfera pública, a etnia, a comunidade, o
território... e, portanto, umha cultura, umha língua, um espaço social,
um território dados? A soluçom nom é única, e claramente dependerá
da planificaçom prévia e dos efeitos procurados polos agentes que
assumam o programa historiográfico.
José Lambert vem reclamando desde começos dos anos 90
que se privilegie umha localizaçom espacial-administrativa
(“literatura em A”, alternativa a “literatura de A”), nom exactamente
descrita como territorial, na que se trataria de observar as formas de
coabitaçom entre literaturas/línguas/culturas e as instituiçons públicas,
sobretodo o Estado. Além do alcance das aplicaçons específicas
desenvolvidas por Lambert a propósito das sociedades multilíngües e
multiculturais, a proposta tem interesse. E ademais activa encaixes
produtivos com o spatial turn vivido nos últimos decénios polas
ciências sociais. Justamente por isto, apontei em um trabalho recente à
possibilidade de desenvolvimento de umha geohistoriografia literária
organicamente pendente das dimensons local, regional, nacional e
mundial da cultura literária (Casas 2005), para a qual constatei a
existência de quatro programas de investigaçom em marcha com
resultados aproveitáveis. Som os devidos a Dionýz Durišin e à Escola
de Bratislava, às teorias empírico-sistémicas (Schmidt, Even-Zohar,
Tötösy de Zepetnek, o CRELIQ e logo o CRILCQ no Quebeque), aos
estudos pós-coloniais e sobre a subalternidade e a Mario J. Valdés e o
Comité de História literária comparada da Associaçom Internacional
de Literatura Comparada.
Cingindo-nos só à segunda dessas perspectivas, a questom dos
limites sistémicos carece a dia de hoje de umha soluçom de consenso,
em especial a propósito das que denominei relaçons hipotácticas.
Porém, considero que o seu estudo alcança no modelo analítico de
Torres Feijó (2004) úteis ferramentas a propósito da dialéctica
sistema-subsistema, com integraçom assim mesmo de conceitos tam
48
ARTURO CASAS
operativos para umha HL de base sistémica como os de
protossistema, parassistema ou enclave.18 A diferenciaçom prévia
formulada por Torres Feijó (2004: 428) entre espaço social e
conjuntos sociais incorpora em realidade algo mais que as formas de
coabitaçom de Lambert, ao outorgar peso analítico nom ao
reconhecimento institucional da diferença senom à consciência
sociocultural da diferença/dependência/conflito e à decisom e
capacidade de intervir a fim de geri-los e negociá-los na esfera
pública. Parece-me umha opçom viável e prometedora que haveria
que contrastar em relaçom aos diferentes marcos sistémicos. Por
exemplo, o das culturas pós-coloniais latino-americanas no século
XIX, no que a dialéctica historiográfica entre sectores conservadores e
liberais oferece dados de grande alcance político-institucional,
culturológico e performativo em dependência dos modos e dos ritmos
com os que produziu o acesso à independência nas distintas repúblicas
–os casos extremos poderiam ser o chileno e o mexicano–, mas
também em razom do grau de implantaçom e consolidaçom das
tradiçons coloniais.19
18
O subsistema caracteriza-se neste modelo teórico por acolher “práticas que,
mantendo especificidades a respeito do sistema originário, nom pretendem impugnar a sua
pertença a este (o que, provisoriamente e de forma insuficiente e esquemática, se pode fazer
equivaler a ‘literaturas regionais’ tal como entendidas, por exemplo, no contexto cultural
ibérico)” (Torres Feijó 2004: 429). O protossistema acolheria porém “práticas tendentes à
configuraçom de um novo sistema segregado do sistema a que se está vinculado”. E o
parassistema existirá em canto houver “redes culturais, com vínculos de compartiçom
exclusiva entre os seus membros, que actuam e se desenvolvem em um espaço social
ocupado por um sistema a que nom pretende substituir nem impugnar mas com o qual nom
se vincula em modo nengum, do qual nom fai parte” (Torres exemplifica com as práticas
culturais das comunidades ciganas em distintos espaços sociais europeus). Finalmente, um
enclave é um espaço social que se vincula a outro actuante e admitido como metrópole e que
assume umha pertença comum a um único sistema cultural, algo relativamente corrente nas
comunidades de emigrantes europeus que se instalárom nas grandes cidades americanas ao
longo do século XIX e umha parte do século XX.
19
Beatriz González Stephan (1987: 186) explicou-no com detalhe: “donde las
estructuras coloniales tuvieron un arraigo más profundo, el proyecto liberal se cumplió de
forma moderada, dando lugar a un conservadurismo con tintes liberales, que,
paradójicamente, facilitó el surgimiento de historias literarias alrededor de la década del 60
[s. XIX]. Epistemológicamente el discurso histórico tenía un asidero: fundamentar la razón
de la misma historicidad en y desde la Colonia, asumiendo más o menos de forma crítica
el legado hispánico. Son los gobiernos conservadores los que aceleran la aparición de estas
historias, independientemente de que estén concebidas bajo una perspectiva liberal o
conservadora”.
CONSTITUIÇOM DE UMHA HISTÓRIA LITERÁRIA...
49
O fundamental, na problematizaçom aqui estabelecida, seria a
alternativa historiográfica que desde aqueles marcos sistémicos for
factível formular. A opçom de constituir umha HL sistémica como
suma integrada de umha série de histórias parciais dos factores
vinculados à rede investigada (história dos repertórios, do consumo,
das instituiçons...) é nom só inapropriada senom absurda e estéril de
um ponto de vista sistémico. Do mesmo modo, a opçom de configurar
a HL de um polissistema por adiçom das histórias sectoriais dos seus
subsistemas carece de sentido. Apesar disto, existe um número
apreciável de tentativas dessa classe de observaçons, com freqüência
autoproclamadas sistémicas. Sobre elas, só cabe admitir o seu carácter
básico e ancilar, nada mais. O tipo de programas que representam é
claramente insuficiente, por quanto umha história sistémica obriga-se
a dar conta ante todo das relaçons de interdependência factorial (ou,
na segunda vertente, das relaçons hipotácticas sistema-subsistema) e
nom existe possibilidade nengumha de descrever funcionalmente os
factores do polissistema (ou, na segunda vertente, os subsistemas) de
forma isolada e autonomizadora. Traçar de modo autónomo a história
de um factor ou a correspondente a um subsistema –ou, noutro plano,
reduzir a heterogeneidade a homogeneidade– nom é fazer análise
sistémica.
*
A partir de aqui, referirei-me de maneira muito mais sucinta
aos outros três reptos de umha HL sistémica. Em primeiro lugar,
tratarei sobre a dialéctica entre produtos e possíveis. Parece provado
que a análise sistémica prioriza como objecto de atençom os factores e
as relaçons existentes (existentes em quanto efectivos, actualizados), e
que, como mínimo, deixa em um segundo plano a investigaçom sobre
alternativas possíveis de constituiçom factorial e da rede relacional
vinculada. Isto obedece seguramente a um dos objectivos heurísticos
ressaltados por Even-Zohar, sobretodo na sua revisom da teoria dos
polissistemas: a tentativa de reduzir os parâmetros, e as conexons
entre eles, a fim de que o objecto de estudo sistémico assegure um
carácter empírico. Para ser exactos, haverá que acrescentar que a
teoria dos polissistemas assume o que Lotman e Uspenski (2000: 191)
denominam princípio de alternatividade, polo qual elementos,
50
ARTURO CASAS
ordenaçons ou estruturas semiótico-culturais –incluído o sistema
semiótico íntegro– som percebidos como alternativas.
Na dialéctica produtos-possíveis, contemplada basicamente na
perspectiva do repertório e na da correlaçom “culture-asgoods”/“culture-as-tools”,20 Even-Zohar tem presentes vários
modelos, entre eles os da socióloga Ann Swidler e os da escola de
Tartu-Moscova (Lotman, Uspenski e Ivanov em particular),21 mas
evidencia um interesse muito prioritário por dialogar com a teoria dos
campos sociais de Bourdieu e em particular com a noçom de habitus.
Porém, a consideraçom em primeiro plano do repertório como
conjunto de regras e de materiais potenciais para a produçom e o
consumo no marco de um sistema dado, e a própria conexom entre
aquele e o par produtor-produto, resultam insuficientes para explicar
todo o que na teoria dos campos sociais sim explica a correlaçom
entre as posiçons ocupadas no campo, o espaço dos possíveis e as
tomadas de posiçom entendidas como eleiçons entre possibilidades.
Segundo postula Bourdieu, o espaço dos possíveis é um
sistema de coordenadas que medeia sempre entre as posiçons e as
tomadas de posiçons efectivas tal como umhas e outras som
percebidas desde um habitus concreto. Que oferece o espaço dos
possíveis como objecto de análise diacrónica para umha história do
campo? Bourdieu (1992) sinala, entre outras metas, a constituiçom
das trajectórias sociais de grupos de agentes, entendidas como as
séries de posiçons ocupadas em espaços sucessivos em
interdependência com os respectivos espaços dos possíveis. Entendo
que tam complexa tarefa, necessária mas nom suficiente como
20
Even-Zohar observa que a efeitos da concepçom de umha nova HL, mais que
optar por umha história da literatura/cultura como bens ou por umha história da
literatura/cultura como ferramentas, o interessante seria habilitar umha história da
interdependência de ambas as concepçons, “porque podría explicar las circunstancias que
hacen posible que la literatura mantenga o pierda su posición en la actividad incesante para
manejar los repertorios de vida en la sociedad” (Even-Zohar 2007: 34).
21
Neste ponto, discrepo do juízo de Even-Zohar (p. e., em 2005: 37-38) sobre o
carácter passivo da noçom de cultura em Lotman. Em colaboraçom com Uspenski, Lotman
explicou a cultura como mecanismo semiótico de produçom de textos (e lembre-se o sentido
específico deste conceito na escola de Tartu-Moscova). Careço de espaço para ampliar
argumentaçons, polo que me limito a citar: “La cultura en general puede ser presentada como
un conjunto de textos; sin embargo, desde el punto de vista del investigador es más exacto
hablar de la cultura como de un mecanismo que crea un conjunto de textos, y de los textos
como de la realización de una cultura” (Lotman & Uspenski 2000: 178; o itálico é meu).
CONSTITUIÇOM DE UMHA HISTÓRIA LITERÁRIA...
51
programa historiográfico de base sistémica, carece de comparaçom no
modelo de Even-Zohar.
O terceiro repto anunciado consiste na prática em umha
opçom entre modelos de articulaçom da diacronia. Entre a
seqüenciaçom tradicional e a policronia dinâmica, este segundo
modelo parece o idóneo para a concreçom das mudanças sistémicas
mediante um critério comparativo entre cortes temporais, que, como
antes se indicou, poderiam ler-se como umha sucessom discreta de
estados de sistema submetidos a contraste. Deste modo, ademais, a
combinatória descriçom-narraçom ofereceria mecanismos de
segurança limitadores da tendência omni-compreensiva e
uniformizadora do relato historicista tradicional e da autoridade
homogeneizadora do narrador-historiador. Limitaria assim mesmo a
propensom causalista e a ordenaçom cronocausal da realidade
documentada. E activaria quando menos umha disposiçom crítica
fronte ao que Hayden White estudou como meta-história, isto é, a
infra-estrutura discursiva que prefigura umha opçom tropológica
constituinte do discurso historiográfico e que em realidade seria
prévia à diversificaçom de propostas por motivaçons ideológicas ou
metodológicas.
Finalmente, umha HL de fundamentaçom sistémica teria que
resolver o que alguns chamariam a aporia crítica. A expressom é sem
lugar a dúvidas muito exagerada, e ademais está desfocada. Nas
premissas sistémicas, concordantes neste ponto com o que noutra
altura significárom a nouvelle histoire, ou história das mentalidades, e
anos depois a história cultural e os Subaltern Studies, nom se aceita a
preeminência do socialmente prestigiado como objecto privilegiado
de estudo. Como diz Even-Zohar (2007: 5), nom se pode confundir a
investigaçom com a crítica, a análise com a atribuiçom de valores. Por
isso mesmo, na investigaçom sistémica nom se discrimina a atençom
à produçom cultural marginal ou à nom prestigiada. Porque, como
sublinha o teórico no mesmo lugar, nengumha ciência pode permitirse seleccionar a matéria que investiga a partir de critérios que tenham
que ver com o gosto e com juízos de valor. Todo isto é indiscutível.
Apesar do qual deverá advertir-se que crítica nom é um conceito que
necessariamente remeta a valoraçom pessoal ou a um horizonte
axiológico. Nem muito menos.
52
ARTURO CASAS
Conforme antes se adiantou, existem duas vertentes da suposta
aporia crítica que se fai necessário esclarecer. A primeira tem que ver
com a selecçom do que se submeterá a exame. Nom existe
possibilidade nengumha de investigar a totalidade, e ademais, como
tem lembrado Valdés ao fio do debate sobre a laboriosa empresa de
planificar umha história das culturas literárias latino-americanas,
multiplicidade e heterogeneidade nom som equiparáveis na totalidade.
Neste sentido, a aspiraçom à documentaçom e à transcriçom do
absoluto dos dados supom um programa inabordável e inassumível.
Para umha HL de base sistémica ou para qualquer outra via focada no
século XXI em sentido historiográfico. A resistência à tentaçom
neopositivista deveria ser nesta ordem um princípio firme da HL por
vir.
A alternativa é simples. Consiste na aceitaçom do princípio
de selecçom crítica de referentes (agentes, repertórios, produtos,
eventos, instituiçons, espaço dos possíveis, tomadas de posiçom...)
como garantia de umha representaçom da heterogeneidade. Partindo
da proposta formulada por Even-Zohar de que também a
investigaçom sincrónica (e nom só a diacrónica) é histórica de raiz
quando se resolve com metodologia sistémica, o mesmo critério
tem aplicabilidade à análise do sistema cultural no marco de umha
teoria de sistemas estáticos.
Limitarei agora a segunda vertente, que mais acima se
introduziu da mao da chamada operaçom historiográfica, à esfera
autorial do investigador-historiador e às conexons que este possa
traçar entre o sistema/tempo analisado e o sistema/tempo próprio, que
é o da sua investigaçom-escrita. O debate teórico é suficientemente
conhecido. O fundamental é o facto de que toda historizaçom de um
passado pressupom umha compreensom experiencial do presente.
Antes de qualquer outra razom, porque o presente é o único lugar
possível desde o que exercer a observaçom da história e desde o que
proceder a umha enunciaçom historiográfica. Já neste sentido inicial,
nom existe possibilidade de umha história acrítica ou nom
performativa. Motivo polo qual alguns teóricos da história falam de
que o ofício de historiador é um oficio de mediaçom. E nom falta
quem estabelece um correlato pragmático entre história e traduçom.
CONSTITUIÇOM DE UMHA HISTÓRIA LITERÁRIA...
53
Mas mais que a esta classe de consideraçons quereria dirigir-me, para
rematar, ao terreno do que antes tratámos como história efectiva.
No breve texto de Gaspárov que se citou e também nas
páginas que Lotman e Uspenski dedicárom a umha errónea
aplicaçom dos princípios de auto-descriçom e auto-compreensom
das culturas, menciona-se a tendência dos historiadores literários a
introduzir a informaçom sobre a recepçom de um determinado autor
ou poética, em épocas posteriores às suas próprias, como um
complemento da análise realizada sobre aqueles. Incorreria-se assim
em umha deslocaçom nom justificável, porque o interesse dessas
propostas recai precisamente sobre os seus enunciadores, partícipes
em umha história de efeitos aberta no tempo e nas
interpretaçons/análises dos eventos, dos agentes e dos processos.
Pois bem, umha HL de base sistémica deveria assumir o
compromisso de atender e incorporar esses efeitos, nom limitando-se
a umha observaçom supostamente desprejuizada e objectivista de
fenómenos históricos. E julgo que deveria assim mesmo pensar, e
declarar, a posiçom e o espaço dos possíveis desde os que operam o
próprio analista-historiador e o seu discurso. Isto nom tem por que
conduzir a um programa hermenêutico nem a umha ego-história;
tampouco a umha saída epistemológica como a alcançada por Mieke
Bal e a Amsterdam School for Cultural Analysis (Bal 1999), na que o
passado interessa fundamentalmente como umha parte do presente, e
a análise cultural –por oposiçom à história– é entendida como
memória cultural no presente. Mas sim seria oportuno que activasse,
quando menos, um exercício de auto-análise como o afrontado por
Pierre Bourdieu em diversos momentos da sua trajectória. Porque
quem negará validade às palavras com as que ponho fim a estas
reflexons? “Compreender significa compreender primeiro o campo
com o qual e contra o qual um se foi fazendo”.
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VEREDAS 10 (Santiago de Compostela, 2008) 57-85
História da literatura
brasileira, de Sílvio Romero
BENJAMIN ABDALA JUNIOR
Universidade de São Paulo
This is a study of Silvio Romero’s Historia da literatura brasileira (The History
of Brazilian Literature), first published in 1888, in which literature is seen, not as
belles-lettres (the dominant perspective at the time), but as a field of knowledge.
This book comprehends all the Brazilian cultural history, painted with the patterns and colors of the Naturalist imagination in the ending of the XIX Century.
In this sense, the author points out to the crossbreeding phenomenon, but his
ideas still relate to racist theories as he corroborates the ideal of racial “whitening” in the process of this miscegenation. As states Antonio Candido, Silvio
Romero used to employ contradiction as “his own way of living the thinking”.
Em artigo do ano 2000, Ariano Suassuna1 disse que Euclides
da Cunha cometeu um grave erro de interpretação ao afirmar que
como raça os portugueses eram superiores aos africanos e aos povos
indígenas. Esse erro, segundo Ariano, persistiu em Gilberto Freire
que o transferiu da área biológica para a cultural quando considerou
a cultura européia como superior à dos africanos, assim como esta
seria superior, por sua vez, à dos indígenas. Ao fazer essas
observações negativas, Ariano Suassuna não deixa, porém, de
agradecer aos dois e também a Sílvio Romero por terem contribuído
1
Suassuna, 2000: 15-16.
58
BENJAMIN ABDALA JUNIOR
para afastar suas próprias deformações,2 ele que foi educado
conforme os padrões do Brasil oficial, da mesma forma que dela
não puderam se afastar os três grandes intérpretes do país, que
foram decisivos em sua formação intelectual.
Vieram desses intelectuais, de acordo com Suassuna,
imagens amorenadas do brasileiro ideal em Sílvio Romero ou ainda
dos pardos, em Euclides da Cunha –uma forma, na verdade, de se
escamotear os valores dos negros. A valorização do branqueamento
do mestiço em relação ao negro seria uma maneira de se
desconsiderar as contribuições dos povos africanos. Mais, ele
mesmo faz uma autocrítica quando diz que também se colocou
nessa perspectiva quando valorizou o povo castanho em suas
produções, vindo a conscientizar-se depois de que essa era uma
maneira de apagar as manchas negras3 da constituição
antropológica brasileira.
A presença dos povos africanos no país é uma evidência que
não pode ser ideologicamente desconsiderada como mancha negra.
Um estudo sério do hibridismo étnico e cultural do Brasil não pode
diminuir a grande importância desses povos com argumentos que
são no fundo de um racismo mais ou menos evidente. Ocorreram
também manipulações políticas em relação ao conceito de
mestiçagem, como no caso de Gilberto Freire, onde esse conceito
veio a opor-se ao de negritude, quando da ascensão dos movimentos
reivindicatórios dos negros. Entretanto, é necessário se considerar o
fato de que a cultura brasileira é híbrida e que formulações como as
de Gilberto Freire constituíram rupturas decisivas em relação ao
pensamento reacionário do século XIX, eivado de mitologias de
superioridade racial eurocêntricas, que vieram a se projetar de
forma perversa no século XX.
É diante dessas ambigüidades e de sua historicidade, sem
anacronismos, que a História da literatura brasileira, de Sílvio
Romero, pretende ser apresentada neste texto:4 uma construção
discursiva que além dos seus inegáveis méritos, pelos subsídios que
2
Suassuna, 2000: 15.
Suassuna, 2000: 16.
4
Este texto fará referência à 6.a edição desse livro, organizada e prefaciada por
Nelson Romero, Rio de Janeiro, José Olympio, 1960, 5 tomos.
3
HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA, DE SÍLVIO ROMERO
59
apresenta para a compreensão do caráter nacional brasileiro, acaba
por deixar evidentes as contradições do pensamento crítico de seu
autor, um intelectual que dá origem a linhas de reflexões que
contribuirão de forma decisiva para a discussão da maneira de ser
do brasileiro. Tais contradições têm sua historicidade, estando
relacionadas com as convicções de uma época. Não são, pois, de
responsabilidade exclusiva de seu autor, podendo ser creditadas a
todo um campo intelectual de seu tempo. Era essa a maneira como
se pensava cientificamente a literatura e a cultura, com esquemas
importados da Europa. Além disso, deve ser destacado o fato de que
a História de Sílvio Romero significou um avanço para o
pensamento crítico, pela preocupação metodológica do autor, que
veio a constituir um marco inicial, no Brasil, de toda uma linha de
abordagem dos fatos literários e culturais. E também por apresentar
uma síntese importante da cultura brasileira, matizada como não
poderia deixar de ser pelos padrões e as cores de como nos
imaginávamos na virada do século XIX para o XX.
Um polemista
Sílvio Romero (1851-1914) sempre procurou se inserir de
forma explosiva no pensamento crítico brasileiro. Sua trajetória
intelectual é de uma personalidade em constante movimento, mas
atraída por determinados temas. Assim o crítico inquieto os retoma,
ou os reformula em seus artigos e ensaios, confluindo-os depois
para a sua obra-síntese, a História. Motivado por “aperfeiçoar” sua
obra, procura sempre acrescentar novos dados ou nuances a sua
teoria e crítica –uma atitude, é de se entender, homóloga à maneira
de pensar a realidade de seus horizontes ideológicos, o naturalismo
evolucionista: de maneira correlata a um organismo vivo, também
sua obra se aperfeiçoaria e os embates críticos seriam similares aos
aperfeiçoamentos das espécies em suas lutas pela vida. Esse
movimento evolutivo tendente à uniformidade e ao
aperfeiçoamento, quando procurava aparar contradições, era
concomitante com outro, que embalou sua personalidade como
cidadão: o gosto pela polêmica. Esse gosto por contraditar não
deixa de se manifestar inclusive (a despeito de seus cuidados) no
interior de sua própria obra crítica. Talvez se possa afirmar que esse
60
BENJAMIN ABDALA JUNIOR
gosto ou força da contradição explica em parte a heterogeneidade
de seus textos (apontada e discutida pela crítica) e dá elementos
para o seu envolvimento em polêmicas com quem discordasse de
seus pontos de vista. Seria essa a sua luta pela existência de sua
obra crítica. Para Antonio Candido, seu leitor em meados do século
XX,
[...] a contradição era o seu modo próprio de viver o pensamento,
tanto assim que, em vez de paralisá-lo ou fazê-lo voltar atrás, ele
o fazia ir para a frente. As suas idéias não se opunham como
desenvolvimento linear e conseqüente, mas como vaivém,
retomada incessante, tensão de opostos, visão simultânea do verso
e do reverso –o que pode ferir exigências lógicas, mas enriquece o
senso de realidade. Sob esse aspecto, havia algo dialético no jogo
das suas idéias e opiniões, que, se não chegavam a uma síntese
satisfatória, permitiam sempre alguma conclusão interessante,
graças ao entrechoque por vezes antinômico, mas vivo das
proposições, jogadas como pedras.5
As pedras vêm das afirmações peremptórias às vezes com
pouca argumentação do crítico. Elas foram jogadas, além disso, de
forma mais contundentemente contra discursos críticos discordantes
do seu, originando polêmicas, como a que manteve com José
Veríssimo. Este crítico, embora reconhecesse o mérito histórico de
Sílvio Romero, apontava falhas em suas apreciações ou avaliações
literárias.6 Sílvio Romero foi parcial e equivocou-se nas avaliações
de vários escritores, provocando grande impacto, por exemplo, a
casmurrice como analisou a obra de Machado de Assis, um
escandaloso erro crítico.
Sua concepção de crítica –exercida por ele sobretudo em seu
senso comum, no sentido de se apontar com veemência o que
considerava ruim ou errado–, como será desenvolvido mais adiante,
envolvia a consideração mais ampla da cultura –fato que o levou a
procurar desconsiderar o que viesse de quem considerasse
estetizante ou distanciado da cultura brasileira. As polêmicas em
5
Candido, 1978: XI.
Vejam-se, de um lado, Silvio Romero (1909), e, de outro José Veríssimo
(1907a: 1-14) e (1907b: 230-270).
6
HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA, DE SÍLVIO ROMERO
61
que se envolveu não se originaram, entretanto, tão à revelia de
Sílvio Romero. Ao contrário, ele parecia gostar delas, como
manifestação da máscara de um ator crítico implacável, que ele
cultivava, como pode ser observado logo no prólogo à primeira
edição de sua História, quando diz que “as violentas polêmicas em
que se tem achado envolvido”, de Recife ao Rio de Janeiro, vem do
fato de que não faz crítica para agradar, fornecendo a “razão da
bulha, da gritaria, dos insultos”.7
Nascido em Lagarto (Sergipe), Sílvio Romero cursou o
secundário no Rio de Janeiro e formou-se em direito no Recife. Foi
promotor e deputado em seu estado natal; depois, juiz em Parati.
Em 1880 –dois anos antes da publicação de sua Introdução à
história da literatura brasileira, onde esboçou sua História da
literatura brasileira– foi nomeado catedrático do Colégio Pedro II,
no Rio de Janeiro, onde se aposentaria em 1910. Nesse percurso foi
ainda deputado federal por Sergipe, relator do Código Civil
Brasileiro e professor da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais
do Rio de Janeiro. Foi do centro da república que Sílvio Romero
procurou abarcar toda a vida cultural do país, em especial do
Nordeste, procurando relevar a atividade intelectual e artística
daquele que considerava o mais importante grupo de seu tempo, a
“Escola do Recife”. Embora sua obra seja bastante ampla,
distribuindo-se em artigos ou ensaios publicados em periódicos e de
livros, é na História que ele apresenta uma síntese de seu
pensamento sobre a cultura e a sociedade brasileiras, incorporando
o que considerou mais significativo dos outros textos.
Uma idéia de sistema
Sílvio Romero vê em sua História da literatura brasileira
uma evolução natural de sua personalidade. Autor e obra
constituiriam dois organismos que seguiram percursos paralelos,
evoluindo numa sucessão de fases e em interação com o público.
Sua concepção de sistema seguia essa organicidade, de acordo com
modelos biológicos da luta pela vida. O sistema literário seria
resultante de uma interação com outros sistemas e estaria ligado às
7
Sílvio Romero, 1960: 33.
62
BENJAMIN ABDALA JUNIOR
condições da circulação literária de cada momento histórico. Este
seria determinante, colocando a literatura como um produto
cultural, subordinando-a assim aos fatos históricos a determinações
de caráter político-social. Essa idéia de sistema ligado à interação
com o público será retomado em novas bases e maior
complexidade, sem subordinação aos fenômenos políticos e sociais,
por Antonio Candido, em sua Formação da literatura brasileira:
momentos decisivos,8 Para este crítico, o sistema envolve autores,
“caracterizando a existência de uma vida literária”; públicos,
“permitindo sua veiculação; e tradição, para dar continuidade ao
repertório literário”.9
Sílvio Romero preocupou-se sobremodo com a repercussão
da obra nas classes dirigentes, de acordo com os modelos da seleção
natural de seu tempo: a repercussão que importava seria
especialmente as associadas diretamente com o poder político:
A criação das academias literárias no século XVIII na Bahia e no
Rio de Janeiro, fenômeno tão mal apreciado por alguns críticos é,
entretanto, um fato altamente significativo. Indica só por si a
grande coesão de que gozava o país, o lazer que tinham as altas
classes para o cultivo das letras, o gosto reinante pela poesia e as
cousas do espírito.10
Em Antonio Candido, essa idéia de coesão do sistema
literário é vista diferentemente: o sistema já possui dinâmica
própria, permitindo uma autonomia relativa em relação aos fatos
sociais e políticos.
Poder-se-ia, nessa perspectiva, entender essas articulações
literárias, que propiciam a grande coesão, vista por Sílvio Romero,
associando-a às perspectivas hegemônicas do poder simbólico. Esse
poder é exercido pelos intelectuais, com base em determinados
modelos literários considerados canônicos. A perspectiva de Sílvio
Romero seguia critérios diferentes dos críticos anteriores, que
considerava estetizantes. Se os cânones se modificam, também isso
8
9
10
Antonio Candido, 1975.
Benjamin Abdala Junior, 1999: 364.
Romero, 1960: 386.
HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA, DE SÍLVIO ROMERO
63
ocorre com os critérios de legitimação das obras literárias. Por outro
lado, os discursos desse campo intelectual têm especificidades e
dinâmicas próprias, da mesma forma que outros gêneros
discursivos, como a poesia ou o romance. Se essas formulações do
discurso crítico se encontram e se articulam, num mesmo recorte
histórico, com as dos gêneros literários (um período literário, por
exemplo), não deixam de se embalar pelo movimento interno, que
os projetam para outros períodos. Possuem, pois, como foi indicado,
uma autonomia relativa diante de outros campos do conhecimento.
A idéia de sistema em Sílvio Romero, embora ele sempre
buscasse explicações nas ciências naturais, na prática de suas
análises, é genérica: os campos científicos formam sistemas, isto é,
conjuntos ou totalidades de objetos, reais ou ideais, que se articulam
entre si. A energia que os leva a se desenvolver teria por base
motivações raciais e poderiam ser impulsionados pela cultura,
ocorrendo para ele analogias de situação entre o que ocorria na
biologia e nas esferas da cultura. Seu modelo de sistema veio
basicamente da biologia, como tem sido reiterado nesta resenha,
mas procura relativizar esse método em muitos momentos de sua
História. Assim, ele assinala que não poderá haver acordo entre
duas maneiras opostas de encarar a história: aquela que faz
predominar a ação do exterior para o homem (há sempre aqui um
parti pris que ele diz não aceitar) ou a que destaca sua ação moral
sobre o meio (também não a aceita por considerá-la uma
metafísica). E conclui:
Não resta a menor dúvida que a história deve ser encarada com o
um problema de biologia; mas a biologia aí se transforma em
psicologia e esta em sociologia; há um jogo de ações e reações no
mundo objetivo sobre o subjetivo e vice-versa; há uma multidão
de causas móbeis e variáveis capazes de desorientar o espírito
mais observador.11
O sentimento de missão
11
Romero, 1960: 404.
64
BENJAMIN ABDALA JUNIOR
Há em seu texto um sentimento de missão, de dever, de
quem “empenha uma pena no Brasil”,12 um país em via de
formação, que também contribui para o rompimento dessa
pretendida impassibilidade crítica do naturalismo. Esse sentimento
projeta-se na história do país, como um habitus, que havia sido e
que será retomado por outros escritores e intelectuais brasileiros.
Uma tradição, em termos de modelos psicossociais. Assim, ao se
referir à situação de alguém que escreve num momento libertário, a
festa da Abolição, sancionada poucos dias antes, vislumbra já nesse
momento a expressão de um fenômeno bem brasileiro –a
apropriação das “glórias dos feitos”: Singular destino da raça negra
no Brasil. Alimentou o branco, deu-lhe dinheiro durante quatro
séculos e agora por último dá fama aos gananciosos de nomeada
fácil, dá glória aos espertos [...]13
Seria esta uma das características das elites políticas, sociais
e econômicas brasileiras: adaptar-se a novas situações de forma a
continuar exercendo seu poder? Sílvio Romero aponta quem
considera libertadores dos escravos: o povo brasileiro e os homens
representativos com ele identificados, mais importantes do que
figuras oficiais (sempre a idéia de totalidade e unidades ativas
interdependentes, em evolução –essa é sua visão sistêmica). A luta
pela libertação não seria um fato do século XIX, mas muito
anterior: começou já no início da escravidão do índio e, depois, do
negro. E este teria ensinado ao branco o caminho da libertação.
Ao buscar essa “formação” libertária, aponta as muitas
ações/revoluções com esse horizonte, até as ações decisivas dos
últimos tempos, inclusive com sua própria ação. A abolição,
segundo ele, veio da pressão do conjunto, que já ia libertando os
escravos nas fazendas e nos Estados –a tal ponto chegou que, se os
políticos não o fizessem logo, não encontrariam mais a quem
libertar. Coloca como vitória de um sistema evolutivo: a abolição
progressiva, espontânea, popular. Por outro lado, gestos históricos
de grupos ou de indivíduos atenuam o determinismo. É assim que
Sílvio vê o significado da Inconfidência Mineira e sua
12
13
Romero, 1960: 36.
Romero, 1960: 37.
HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA, DE SÍLVIO ROMERO
65
plêiada de poetas, aquele punhado de sonhadores pressentiu, no
vago de suas crenças, todas as vastas idéias que este povo deve
esforçar-se para levar a efeito [...] A Inconfidência não chegou a
ser uma realidade prática; mas é uma realidade doutrinária. Não se
manchou no terreno dos fatos; mas aí está a tremular, há cem
anos, como a suprema realidade no mundo de nossas aspirações.14
Após considerar as aspirações como suprema realidade do
mundo, ela as situa como uma necessária santa utopia: Era
necessário que a santa utopia fosse desdenhada pelos míopes do
tempo, era mister que o sangue ubérrimo dos heróis marcasse os
focos brilhantes em que a alma deste povo deve revigorar-se para
avançar.15 Esse avançar segue perspectiva de civilização, entendida
como independência da pátria, emancipação dos escravos, unidade
federal, vida autonômica e democrática, prosperidade material,
alento científico... Enfim, problemas que o autor descortina na
recém instaurada república.
Esse impulso libertário entra em contradição com o sistema
naturalista e é grande marca do humanismo de Sílvio Romero. Para
Antonio Candido, em O método crítico de Sílvio Romero,16 em toda
sua obra passa um esforço e um convite à libertação: libertação do
peso das raças “inferiores”, libertação da inclemência do clima,
libertação do ensino jesuítico e retórico, libertação dos vícios
políticos coloniais, libertação do servilismo à França, libertação dos
exageros românticos. Conjugadas, todas essas libertações haveriam
de dar-lhe a impressão de que o homem pode agir com relativa
liberdade dentro do determinismo histórico, que lhe condiciona a
existência em sociedade.17
Essa aspiração pela liberdade em certo sentido relativiza o
determinismo histórico que condiciona a vida do homem em
sociedade. Vem daí a idéia de possibilismo com que Antonio
Candido o define, em oposição a um rígido determinismo. Para esse
crítico, excetuando-se o primeiro volume da História e abstraídas as
14
15
16
17
Romero, 1960: 483.
Romero, 1960: 483.
Antonio Candido, 1963.
Antonio Candido, 1963: 109.
66
BENJAMIN ABDALA JUNIOR
premissas gerais preestabelecidas, o que aparece é uma série de
julgamentos funcionais ou mesmo utilitaristas sobre a contribuição
do escritor para o que ele considerava progresso da cultura pátria.
São esses (poucos) indivíduos –homens representativos, de cada
momento histórico, isto é, personalidades literárias criativas que se
destacaram de um contexto amorfo, que acabaram por simbolizar e
dar sentido a uma época. Embora buscasse analogias com a biologia
em suas sínteses analíticas, ele não o faz em profundidade,
recorrendo a ela no fundo para respaldar de tinturas científicas seus
julgamentos subjetivos –ou, se se quiser, adotando um método
pseudonaturalista, de lantejoulas.18
Sílvio Romero considerava-se um naturalista idealista,
procurando afastar-se de uma visão dicotômica tradicional dos
“dois velhos sistemas que devem ser enterrados”: o materialismo e
o espiritualismo. Se pensamento e ação, para ele, teriam origem nos
átomos, estes seriam de natureza diferente, havendo unidades
diferenciadas. Assim, embora todas essas unidades estivessem
regidas pelas mesmas leis da mecânica universal, elas teriam vida e
atividades próprias:
Podemos crer na liberdade como produto da matéria; onde quer
que apareça está integrada de forma a produzir o pensamento,
produz também a liberdade que é uma fórmula de discernimento
[...] Não se deve aceitar, portanto, a opinião daqueles que tratam
os fenômenos sociais pelo mesmo modo que tratariam um
problema de mineralogia, a cristalização de uma rocha, por
exemplo.19
Sílvio Romero desconfiava dos sistemas então estabelecidos,
embora mesmo a liberdade se lhe afigurasse como uma fórmula de
discernimento. Assim esses sistemas, próprios da maneira de se
pensar a realidade de sua época, sempre teimaram em permanecer
em seu horizonte:
A ciência social e a ciência moral, conquanto devam obedecer a
leis gerais naturalísticas, estas leis não estão ainda definitivamente
18
19
Antonio Candido, 1963: 83.
Sílvio Romero, 1960: 627-628.
HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA, DE SÍLVIO ROMERO
67
todas descobertas e formuladas. Existem aí, é certo, quarenta ou
cinqüenta sistemas de sociologia e moral pretensiosos e quase
todos insignificantes em sua pretensiosidade, mas isto não é
verdade definitiva.20
Aspirava, pois, por um sistema definitivo, mas só tem a
evidência de construções relativas, históricas. Não obstante, a idéia
de totalidade de seu sistema inclinava-o, ao mesmo tempo, para o
campo oposto. Assim quando resume sua perspectiva crítica, de
acordo com o método científico de sua época, considera que essa
crítica teve bases históricas, relevando o fato de que ela se
configura no século XIX como sistema mais acabado:
Sabe-se que essa tendência foi inoculada no mundo filosófico por
Kant; da filosofia passou à religião e à história. É que o ilustre
criticista havia retalhado a inteligência humana, pesando-a com a
realidade nua e simples. Mas a filosofia alemã não é a única
responsável pelo pensamento de nossa época: a filosofia dos
orientalistas, o positivismo de Comte e o evolucionismo de
Spencer, são também co-autores. Imprimiram-lhe o caráter que
mais a distingue: o estudo dos fatos e a abstração das causas
transcendentais.21
Observações como as acima mencionadas, que reduzia tudo
a átomos conforme os postulados científicos da época, parecem-nos
hoje bastante ingênuas, mas contribuíram para o avanço de um
pensamento brasileiro. Ao aspirar por uma crítica mais imparcial e
com embasamento científico, relevando o fato de que ela devesse se
situar no horizonte da cultura nacional, Sílvio Romero contribuiu
para que tomássemos conhecimento de nossa situação, em vários
campos da cultura e não apenas da literatura.
Os períodos da literatura brasileira
Sílvio Romero tinha um critério demasiado amplo para
estabelecer o que era ou não literatura: sua noção de sistema
20
21
Sílvio Romero, 1960: 680.
Sílvio Romero, 1960: 635.
68
BENJAMIN ABDALA JUNIOR
literário abarcava inter-relações diretas com outros campos do
conhecimento. Isso o distinguiu da tradição retórica anterior, de
vinculações clássicas, que se limitava exclusivamente ao fato
literário como se ele não estivesse imbricado com o conjunto da
vida histórico-cultural do país. E foi justamente para se contrapor a
essa perspectiva formalista que ele acabou por exagerar o
determinismo do meio. Não o meio físico, que ele desconsiderou,
mas o social em suas interações raciais, como será visto mais
adiante.
O determinismo, aplicado com rigor, leva à subalternidade
dos valores específicos da série literária. A literatura é um campo
do conhecimento e não se limita às belas letras – equívoco, aliás,
que vem até a atualidade. Foi a ênfase na história e por servir-se da
literatura para abarcar toda a história cultural do país, que Sílvio
Romero coloca ao lado da literatura as manifestações culturais em
livro, de caráter paraliterário, como os livros de memória de
naturalistas, ou os de história do país. É exemplar o fato de
consagrar tópicos de sua História aos economistas, jurisconsultos,
publicistas, oradores, lingüistas, moralistas, biógrafos, teólogos etc.
Não figuram esses autores apenas como entorno da situação
cultural, mas como objeto de análise histórico-cultural,
conjuntamente com textos literários. Hoje, a cientificidade na
abordagem do texto literário e sua inserção histórica seguem outros
caminhos: é fundamental entender os vários campos do
conhecimento, bem como a literatura, como séries culturais, com
autonomia relativa. E se o objeto da análise é um texto literário,
nele o crítico encontra seu ponto de partida para estabelecer
relações com outras séries discursivas, como as da história,
sociologia, economia, política para a explicação dos autores
enquanto personalidades literárias e não o inverso.
Sílvio Romero que sempre teve obsessão pelas
classificações, à maneira das ciências naturais, acabou por
reformulá-las para com isso melhorá-las. Tinha, pois, consciência
de que se tratava de uma construção, estabelecida a partir da
observação, e que deveria ser aperfeiçoada. Foi muito criticado por
isso. Para o crítico essas contínuas revisões das classificações
seriam um natural processo de evolução. Buscou analogias
HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA, DE SÍLVIO ROMERO
69
superficiais, ou de lantejoulas, como já foi assinalado, através das
formações biológicas: uma espécie de seleção natural através das
idéias, onde as idéias superiores devorariam as mais fracas, por
melhor se adaptarem a novas condições históricas. Talvez as
reformulações se devessem em boa parte, na verdade, a uma outra
sua grande obsessão: a vontade de apresentar quadros sintéticos da
literatura e da cultura brasileiras. Para tanto, seriam necessárias
grandes e mais exaustivas análises dos textos literários, o que não
ocorreu. As classificações de Sílvio Romero tiveram o mérito de
constituir uma tradição, ensejando depois classificações mais
elaboradas. É uma tradição que se inicia, cujo ponto de chegada
(onde a visão sintética se integra a rigor analítico) será a Formação
da literatura brasileira, de Antonio Candido.
Esse distanciamento crítico em relação ao método que dizia
seguir torna-se evidente quando apresenta a tríade determinista de
Taine: meio, raça e momento
são a trindade portentosa do criticar contemporâneo; servem para
sorver todas as dificuldades [...] Onde encontram um fato
qualquer fora do comum recorrem muitos ao meio, e o façanhudo
fator aparece e arreda os embaraços [...] Outros deixam de lado o
meio e agarram a muleta do momento; alguns, finalmente, calçam
as botas da raça [...] Não quero, não posso contestar a influência
de qualquer desses fatores no desenvolvimento e na formação dos
produtos literários. Bem pelo contrário, muitas vezes tenho
recorrido também a eles e ainda agora vou de novo recorrer [...]
Mas sustento que, só por si, eles são incapazes de revelar, de
esclarecer o problema, todo o segredo dos gênios e dos grandes
talentos das letras.22
Período de formação
O primeiro período da História da literatura brasileira foi
designado por Sílvio Romero como “Primeira época ou período de
formação (1500-1750)”, quando apresenta uma linha evolutiva da
adaptação do homem e da cultura de Portugal aos trópicos.
Valoriza, então, José de Anchieta por sua adesão afetiva ao país,
22
Sílvio Romero, 1960, t. 4: 1.136-1.137.
70
BENJAMIN ABDALA JUNIOR
embora seguisse as diretrizes de sua ordem religiosa, os jesuítas.
Mais relevante do que o poema laudatório Prosopopéia, de Bento
Teixeira (primeiro poema brasileiro publicado em língua
portuguesa) foi Gregório de Matos, no século XVII, que considera o
fundador da literatura brasileira pelo seu sentimento de
nacionalidade. O sistema literário se configurará no século XVIII:
“Formam-se tradições intelectuais, fundam-se sociedades
literárias”.23 Sílvio destaca as personalidades representativas da
época, como “os dois irmãos Gusmões, Rocha Pita e Antônio José,
a saber: a política, as invenções, a história e o teatro24 e aprecia com
lucidez suas trajetórias, quando ataca a Inquisição pela tortura e
execução de Antônio José e defende Bartolomeu de Gusmão, o
padre voador, inventor do balão e que havia sido ridicularizado
pelos portugueses (seu mérito foi reconhecido por José Saramago,
em Memorial do convento).25
Nesse período inicial da História já aparece um exemplo da
parcialidade crítica de seu autor. Antônio Vieira foi uma da
personalidade marcante, um verdadeiro homem representativo desse
período, como pretendia Sílvio Romero. Entretanto, ele só dedica
um parágrafo ao jesuíta e desanca sua obra, ao contrapô-la à de
Gregório de Matos. Para o crítico, Vieira é pedante, arrogante,
vazio de idéias: «Vieira é uma espécie de tribuno e de roupeta que
se ilude e ilude os outros com as próprias frases. Matos é um
pândego, um precursor dos boêmios, amante das mulatas,
desbragado, inconveniente, que tem a coragem de atacar bispos e
governadores [...]».26
É assim, desatendo aos valores literários, valorizando a
mestiçagem e a afirmação da nacionalidade no conjunto do campo
intelectual que o crítico vai continuar seu discurso histórico,
ingressando na “Segunda época ou período de desenvolvimento
autonômico (1750-1830)”. Para Sílvio, destacam-se nesse momento
os poetas da Escola mineira, onde o projeto político se imbricou
com o estético. Ao analisar os poetas desse grupo, mais
23
24
25
26
Sílvio Romero, t. 2: 385.
Sílvio Romero, t. 2: 385.
José Saramago, 1982.
Sílvio Romero, 1960, t. 2: 365.
HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA, DE SÍLVIO ROMERO
71
particularmente Tomás Antônio Gonzaga, temos um bom exemplo
da subjetividade do crítico que se pretendia objetivo: após
transcrever a Lira XIX desse poeta, um verdadeiro talento27, ele
emotivamente faz sua apreciação: “Isto é um naturalismo completo
e perfeito; é a pintura da vida”.28 Não aponta o que seja naturalismo
completo e perfeito e menos ainda a razão de o poema trazer a
pintura da vida.
Integram esse período da História oradores, a poesia
religiosa e a poesia patriótica. O autor não deixa de se enveredar
pelas belas-artes, ciências naturais, pela economia, direito, etc. e
também por medíocres poetas clássicos e por poetas de transição
para o romantismo. Enfim, a descrição do sistema cultural exigia
esse detalhamento.
Período de transformação romântica e reações antiromânticas
As produções da “Terceira época ou período de
transformação romântica –Poesia (1830-1870)” já se desenvolvem
em ritmo mais acelerado, exigindo uma divisão em fases, com
escritores representativos: a fase de Gonçalves de Magalhães e seu
grupo; a do indianismo de Gonçalves Dias; a do subjetivismo de
Álvares de Azevedo e seu grupo; a do sertanismo dos poetas do
Norte; a do lirismo de Pedro Luís e Fagundes Varela; e finalmente o
condoreirismo de Tobias Barreto e de Castro Alves e seu grupo.
O autor da História observa que a diferença entre a literatura
do século XIX e a anteriormente produzida seria análoga à que
ocorreu entre a ciência e a filosofia desse século comparativamente
às de outros tempos: antes havia um modelo universal para tudo,
nas artes, na gramática; agora o direito vem em função da vida
nacional; a língua de uma formação nacional; a poesia de uma
idealização nacional.
Em relação à primeira fase, Sílvio Romero destaca o
significado histórico de Gonçalves de Magalhães, mas não aceita o
27
28
Sílvio Romero, 1960, t. 2: 460.
Sílvio Romero, 1960, t. 2: 461.
72
BENJAMIN ABDALA JUNIOR
fato de ele procurar nacionalizar a literatura através das “regrinhas
de programa”.29 Embora não fosse apreciador do indianismo, o
crítico acaba por aceitá-lo pelo fato de essa tendência contribuir
para “afastar-nos da exclusiva influência da imitação portuguesa”.30
Gonçalves Dias coloca-se na História como o ponto mais alto da
segunda fase do romantismo brasileiro, em função da qualidade de
sua obra, que é representativa do “genuímo povo brasileiro”.31
Trata-se, além disso, de um tipo de mestiço físico e moral, que é
símbolo de identidade da cultura brasileira, cujos passos o autor
rastreia ao curso dessa história da literatura.
Álvares de Azevedo foi considerado escritor representativo
da fase seguinte por ser um produto da vida literária brasileira e por
romper com a influência exclusiva portuguesa. Isso foi possível
pela existência de uma vida intelectual (Nabuco, Eusébio, Rio
Branco, etc.), facilitada pela criação de faculdades brasileiras. Ao se
desprender da influência exclusiva dos portugueses, houve o
preenchimento dos espaços literários e culturais pelos franceses,
que Sílvio Romero critica. Para ele, a presença de intelectuais
ingleses e alemães nos cursos superiores do Rio de Janeiro
contribuiu para o “universalismo literário de nosso romantismo”.32
Ao abordar o grupo de poetas sentimentais dessa época, Sílvio
argumenta com sensibilidade crítica que além do sentimentalismo e
das lamúrias, como a crítica literária se acostumou a indicar, é
necessário destacar que eles eram rebeldes, com “muito brado,
muito brado em prol de novas crenças, de novos ideais. Foi um
tempo de agitação e toda época de agitação merece grandes preitos
da história”.33
O relevo dado a autores não literários ou a autores
literariamente secundários como Tobias Barreto desequilibram essa
obra historiográfica. Além disso, a poesia foi supervalorizada, em
detrimento da prosa de ficção, deixando essa obra crítica ainda mais
lacunar. Sílvio Romero consagra um capítulo para discutir a poesia
29
30
31
32
33
Sílvio Romero, 1960, t. 3: 797.
Sílvio Romero, 1960, t. 3: 915.
Sílvio Romero, 1960, t. 3: 917.
Sílvio Romero, 1960, t. 3: 949.
Sílvio Romero, 1960, t. 3: 969.
HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA, DE SÍLVIO ROMERO
73
condoreira de Tobias Barreto, a última fase do romantismo. A
extensão desse estudo é desmedida, quando comparada a de outros
autores. Por exemplo, outro condoreiro, de maior impacto de
público e de crítica, foi Castro Alves. Embora o poeta baiano fosse
de sua predileção, dedica a ele menos de 1/12 das páginas
consagradas a Tobias Barreto. Essa extensão é maior que o total do
número de páginas relativas a Macedo, Alencar, Manuel Antonio de
Almeida, Franklin Távora, Taunay e Machado de Assis.
Em seguida, Sílvio Romero analisa a transformação
romântica no teatro e no romance. Esse tópico conjunto já revela a
minimização da prosa de ficção, mesmo diante do teatro. É
importante indicar, entretanto, como ele justifica o esquecimento
por parte da crítica e do público do principal dramaturgo da época
(Martins Pena): entre outros motivos, pelo fato de ele se referir
constantemente aos escravos, moleques, mucamas e a alta
freqüência de personagens negras e mestiças que contrariavam o
“gosto da branquidade”34 da vida social. Foi essa mesma razão que
fez com que a obra-prima do teatro de José de Alencar –O demônio
familiar– não fosse mais encenada.
A apresentação dos romancistas é feita de forma
sumaríssima, embora considere José de Alencar a personalidade
mais importante do romantismo brasileiro, depois de Gonçalves
Dias. Quem ele destaca mais entre os ficcionistas, em termos de
espaço, é Machado de Assis, justamente para criticá-lo. Seus
preconceitos a avaliações pessoais aí afloram, como foi indicado.
Sua crítica, equivocada, é indigna do próprio Sílvio Romero:
O estilo de Machado de Assis, sem ser notado por um forte cunho
pessoal, é a fotografia exata de seu espírito, de sua índole
psicológica indecisa. Correto e maneiroso, não é vivace, nem
rútilo, nem grandioso, nem eloqüente. É plácido e igual, uniforme
e compassado. Sente-se que o autor não dispõe profusamente,
espontaneamente, do vocabulário e da frase. Vê-se que ele apalpa
34
Sílvio Romero, 1960, t. 4: 1.381.
74
BENJAMIN ABDALA JUNIOR
e tropeça, que sofre de uma perturbação qualquer nos órgãos da
linguagem.35
Outras manifestações em prosa de publicistas, oradores e
historiadores completam esse período, caracterizando a atmosfera
intelectual desse momento de afirmação da nacionalidade. Entre os
artigos esparsos dedicados a personalidades dessa época, inseridos
nesta parte, está um dedicado a Euclides da Cunha. Como fecho, a
História da literatura brasileira traz as reações anti-românticas nas
quais se insere o próprio Sílvio Romero. Em relação à poesia era o
momento dos poetas baudelairianos e parnasianos. A respeito
dessas tendências, o autor da História assinala: “Se Teófilo Dias é o
mais ardente, Raimundo Correia o mais sereno, Alberto de Oliveira
o mais artistas destes poetas, Olavo Bilac é o mais espontâneo, o
mais natural de todos eles”.36 É problemático classificar Bilac como
poeta espontâneo e natural.
Mestiçagem, critério de unidade
Sílvio Romero tem na mestiçagem o ideal da identidade
nacional brasileira. Nessa interação antropológica, procurava aliar
determinantes raciais com os de outras esferas, de ordem
psicológica, sociológica, cultural e também política. Vem do
modelo antropológico da mestiçagem a defesa política do
unitarismo do país, em oposição ao federalismo. Essa idéia de
unidade política, espiritual e étnica do país, não poderia correr um
risco que considerava introjetado em nosso povo: o caráter iberolatino, sempre propício ao desmembramento como ocorreu na
América hispânica. Não aceita, assim, o que designou mania de se
copiar os norte-americanos: «A idéia de federação se assenta em
dois falsos pressupostos: a crença errônea de nos convir o que
convém aos anglo-americanos e a falsa teoria de supor que para lá
nos levam as lições da história».37
35
36
37
Sílvio Romero, 1960, t. 5: 1.506.
Sílvio Romero, 1960, t. 5: 1.506, 1.677.
Sílvio Romero, 1960, t. 1: 44.
HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA, DE SÍLVIO ROMERO
75
Sílvio Romero pode ser situado no quadro geral das classes
médias citadinas que não aceitam as oligarquias regionais, estas sim
descentralizadoras e com vocação separatista. Do seu ponto de vista
vê então a mestiçagem como força biológica capaz de contribuir
para a unidade nacional. Essa interação étnica da história brasileira,
“representada pelo sangue e pela língua”,38 foi-se tornando, para
ele, “o centro de atração constituidor dos grandes focos
nacionais”.39 Para Sílvio Romero o caráter nacional brasileiro
estaria no mestiço: “O mestiço é produto fisiológico, étnico e
histórico do Brasil; é a forma nova de nossa diferenciação nacional.
Nossa psicologia popular seria um produto desse estado inicial”.40
Embora destaque esse caráter étnico-cultural, esse fato não significa
que «constituímos uma nação de mulatos; pois que a forma branca
vai prevalecendo e prevalecerá; quero dizer apenas que o europeu
aliou-se aqui a outras raças, e desta união saiu o genuíno brasileiro,
aquele que não se confunde mais com o português e sobre o qual
repousa o nosso futuro».41
Ao abordar esse caráter nacional na literatura brasileira,
Sílvio Romero destaca o fato de tratar-se de uma literatura
transplantada da Europa. Considerada como apêndice da literatura
portuguesa, nossa literatura figurou no texto de autores portugueses
como acessório do pensamento da antiga metrópole. Entretanto,
essa perspectiva é parcial, pois a história do Brasil e de sua cultura
não podem ser «a história exclusiva dos portugueses na América.
Não é também como quis de passagem supor o romantismo, a
história dos Tupis, ou, segundo o sonho de alguns representantes do
africanismo entre nós, a dos negros em o Novo Mundo».42
Houve, segundo Sílvio Romero, a formação de um tipo novo
pela ação de cinco fatores, onde predomina a mestiçagem, tanto do
ponto de vista físico como cultural. São estes os fatores: o
português, o negro, o índio, o meio físico e a imitação estrangeira.
O horizonte de Sílvio Romero para avaliar um autor está nessa
38
39
40
41
42
Sílvio Romero, 1960, t. 1: 44.
Sílvio Romero, 1960, t. 1: 44.
Sílvio Romero, 1960, t. 1: 120.
Sílvio Romero, 1960, t. 1: 120.
Sílvio Romero, 1960, t. 1:53.
76
BENJAMIN ABDALA JUNIOR
mestiçagem: quanto mais mestiço mais próximo do caráter nacional
brasileiro.
Branqueamento, a máscara da mestiçagem
Embora situe a mestiçagem como própria do caráter
nacional brasileiro, Sílvio Romero indica que com a extinção do
tráfico, o gradual desaparecimento dos índios e a constante entrada
da imigração européia, poderá vir a predominar de futuro, “ao que
se pode supor, a feição branca em nosso mestiçamento”.43 Esse
ideal do branqueamento adquirirá novas nuances, no século XX, na
obra de outros autores, como em Gilberto Freire e mesmo na obra
conservadora de Oliveira Viana. Não obstante, esse ideal de
branqueamento que leva à atenuação das bases étnico-culturais
africanas, o discurso de Sílvio Romero sobre os negros não deixa de
ser reivindicador: «[...] é indispensável restituir aos negros o que
lhes tiramos: o lugar que lhes compete em tudo que tem sido
praticado no Brasil. E o que mais admira é que o não tenham feito
tantos negros e mestiços ilustrados, existentes no país».44
Sílvio Romero fica igualmente contraditório quando
pretende pesar o que existiria de favorável ou de desfavorável na
mestiçagem. Curiosamente, sob este aspecto, o crítico que dizia não
aceitar mistificações, ficou preso a superstições cientificistas. Ele
aceita a idéia de superioridade racial sem verificar sua pertinência,
corroborando acriticamente suas formulações discursivas.
Decorrem dessas concepções racistas suas ambigüidades quando
discorre sobre a mestiçagem. Observa, então, que ela foi positiva
por propiciar a adaptação aos trópicos do europeu, mas que teria
ocasionado, ao mesmo tempo, “certa instabilidade moral na
população, pela desarmonia das índoles e das aspirações no povo,
que traz a dificuldade da formação de um ideal nacional comum”.45
Não obstante, num direcionamento oposto, esse mesmo
mestiçamento promoveu a unidade da geração futura e, se
controlado (fusões sobretudo com a “raça branca”, superior), seria
43
44
45
Sílvio Romero, 1960, t. 1: 291.
Sílvio Romero, 1960, t. 1: 296.
Sílvio Romero, 1960, t. 1: 305.
HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA, DE SÍLVIO ROMERO
77
possível eliminar seus defeitos e insuficiências, através da força da
educação. Ao mesmo tempo que aponta o caminho ideológico do
branqueamento, Sílvio Romero diz: «Aos mestiços devemos, na
esfera literária, mais do que aos outros elementos da nossa
população, as cores vivas e ardentes de nosso lirismo, de nossa
pintura, de nossa música, de nossa arte em geral».46
Entre os poetas envolvidos no abolicionismo, Sílvio Romero
destacou Luís Gama, pela sátira que ele faz à branquidade, mania
que devasta grande porção de verdadeiros mestiços, que pretendem
ter prosápia fidalga. Sabe-se que a mistura das três raças
fundamentais de nossa população deu-se em larguíssima escala, e é
fenômeno ineludível; o número dos brancos puros é muito pouco
avultado, e, não obstante, quase toda a gente tem suas veleidades a
descender de sangue azul...47
Em seguida, Sílvio Romero vai ao extremo de negar a
latinidade brasileira. Seus argumentos são étnicos e não culturais.
Diz que os índios e os africanos evidentemente nada tinham de
latinos e os portugueses eram produtos de uma grande miscigenação
cuja
base fundamental é de iberos a que se ligaram lígures, celtas,
fenícios, cartagineses, godos, suevos, árabes, almóades,
almorávides, mouros de toda a casta, sem falar de escravos negros
e indianos que se lhe adicionaram em tempos./Os romanos
entraram também com o seu contingente, importantíssimo pelo
lado cultural e insignificante pelo número.48
Novamente o autor da História está fazendo uma leitura via
etnologia física, desconsiderando a evidência da apropriação dos
bens culturais que ele admite, pois aponta a importância cultural dos
romanos, na transcrição acima. Tal importância veio do fato de se
estabelecer uma continuidade do repertório cultural romano na
península ibérica, através de setores sociais hegemônicos que os
fizeram seus, alimentando-se ainda dos repertórios de outros povos
46
47
48
Sílvio Romero, 1960, t. 1: 305.
Sílvio Romero, 1960, t. 4: 1.171.
Sílvio Romero, 1960, t. 4: 1.171.
78
BENJAMIN ABDALA JUNIOR
ou classes sociais. Foi ainda decisiva a influência da igreja católica
e dos sistemas de estado que perpetuaram esses repertórios da
práxis social.
A influência estrangeira
A civilização nas Américas, de acordo com Sílvio Romero,
tem sido um processo de aclimação e, inevitavelmente, de
transformação da cultura européia. Nesse processo, nos três
primeiros séculos, quando o país ainda estava sob domínio colonial,
seguiu-se o modelo da metrópole, pois não tínhamos autonomia
política e literária. Haveria uma dupla imitação: imitação de seus
modelos e dos modelos que ela imitava. A posição portuguesa, com
o romantismo, foi desbancada pela francesa. É através da literatura
francesa que conhecemos outras literaturas: a inglesa, a alemã, a
italiana, etc. Um processo de imitação similar ao dos tempos
coloniais. Para o autor da História, essa imitação tornou-se uma
fatalidade em nosso percurso histórico pelo fato de se constituir
aquilo que hoje denominamos um habitus cultural. Olha-se mais
para fora do país, desconhecendo-se o que aqui se aclimatou ou se
criou. Não há por parte do crítico desconsideração em relação às
culturas estrangeiras, mas um questionamento desse habitus que
vem dos tempos coloniais.
Sílvio Romero busca o significado desses habitus na história
do país. São modelos de comportamento que têm dificultado os
indivíduos assumirem suas cidadanias. Seria responsabilidade da
literatura apontar esses problemas, mesmo causando desagrado. O
retrato que traça do país é de ruínas: lavoura decadente, comércio
nas mãos dos estrangeiros e uma atmosfera de opressão social
contra os proletários rurais.49 Busca uma origem histórica para essa
situação: o absolutismo monárquico. A ausência de uma forte
consciência coletiva de povo é também vista por Sílvio Romero
como conseqüência de uma vida geograficamente dispersa, que
inviabilizaria
49
Sílvio Romero, 1960, t. 4: 139.
HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA, DE SÍLVIO ROMERO
79
a formação de uma forte consciência coletiva, um vivaz
sentimento de nacionalidade [...] Uma administração compressora
e rapace habituou o nosso povo, desde suas origens, a considerar
com maus olhos a governança e tudo que com ela se relaciona. Os
chamados aspectos políticos não podiam escapar a esse
desprestígio, a essa falta de simpatia.50
Essa situação fez com que o brasileiro sempre esperasse uma
iniciativa de fora e de cima, não desenvolvendo suas próprias
potencialidades. Faltar-nos-ia, para o autor da História, uma
individualidade característica em termos políticos e intelectuais. Na
literatura, segundo ele, nada mais foi feito do que glosar os
europeus, com idéias tomadas às vezes em segunda e terceira mão.
A cultura popular
Sílvio Romero foi um grande pesquisador da cultura popular
brasileira. Suas recolhas constituíram repertório inicial para outros
estudiosos, entre eles, Mário de Andrade. Em relação às
personagens dessa literatura, ele considerou roupagens de um
mesmo povo o sertanejo, o matuto, o caipira, o praieiro, etc., pois
nesses tipos é dominante o caráter nacional, de origem popular, que
tudo unifica. Esse caráter está igualmente nas produções anônimas
da cultura popular. Isso não significa, entretanto, que se deva sonhar
com “um Brasil uniforme, monótono, pesado, indistinto, nulificado,
entregue à ditadura de um centro regulador de idéias. Do concurso
das diversas aptidões dos Estados é que deve sair o nosso
progresso”.51 É aí que está a grande alma nacional.52
Para o autor da História, a fusão e o mestiçamento das
cantigas populares, romances, xácaras, orações, parlendas, versos
gerais, loas, etc. trazem um mestiçamento psicológico correlato:
Romances e xácaras se nos deparam por este Brasil em fora que
são casos irrefragáveis dessa espécie de hibridização. São
produtos recentes de nossas atuais populações mestiçadas,
50
51
52
Sílvio Romero, 1960, t. 4: 175.
Sílvio Romero, 1960, t. 4: 151.
Sílvio Romero, 1960, t. 4: 151.
80
BENJAMIN ABDALA JUNIOR
moldados sobre velhos elementos tradicionais, inteiramente
transformados pelos cantores modernos, caipiras, tabaréus,
matutos ou sertanejos.53
É dessa perspectiva descentrada que Sílvio procura ver a
cultura brasileira, sem o preconceito que ele atribui para quem a vê
com a cabeça e os pés no Rio de Janeiro.
Sílvio Romero desconsidera os poetastros que tentaram
imitar a cultura popular de forma grosseira, referindo-se
negativamente aos Catulos da Paixão Cearense de todos os tempos.
Diferentes dessas apropriações da cultura popular são as que
encontra nas produções de nossos melhores líricos, como Gonçalves
Dias, Fagundes Varela, Castro Alves, Casimiro de Abreu e outros.
Na História há reiterados comentários do autor, que não se
cansa de repetir que o Brasil não é o Rio de Janeiro. Ao apontar que
o país é mais amplo, em sua diversidade, inclusive literária, procura
destacar as produções culturais nordestinas. Critica, ao mesmo
tempo, a situação social controlada pelos latifundiários regionais.
Sua posição é de intelectual brasileiro das cidades, uma categoria
social originária da ascensão dos filhos de negociantes e
agricultores que conseguiram vencer a coerção desse latifúndio,
chegando aos cursos de Medicina, Direito e Engenharia para
engrossar as fileiras dos funcionários públicos. O esforço desses
intelectuais
seria aviventar o pensamento nacional ao contato das grandes
idéias do mundo culto, sem afogar esta nacionalidade nascente
num pélago de imitação sem critério, esses não são ouvidos pelo
geral do público, ocupado em bater palmas ao último folhetim ou
aos últimos versinhos chegados de Lisboa ou de Paris [...]54
A questão da nacionalidade
A história da literatura brasileira coloca-se para Sílvio
Romero como uma descrição dos esforços de seu povo para pensar
53
54
Sílvio Romero, 1960, t. 4: 161.
Sílvio Romero, 1960, t. 4: 139-140.
HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA, DE SÍLVIO ROMERO
81
por conta própria, através de seus representantes mais significativos
de cada período. Há uma divisão de tarefas nessa empreitada:
compete ao crítico e ao historiador discutir as questões nacionais,
não ao poeta. Este deve ter fundamentalmente talento, sem se
preocupar se o que está criando é ou não nacional. Se tentar ser
nacional à força, o resultado será falso. Não é nacional quem quer,
mas “aquele que a natureza o faz, ainda que não o procure
ostensivamente”.55 Temas universais poderiam e deveriam ser
tratados desde uma ótica brasileira. Sílvio vê, nesse sentido,
múltiplos sistemas na literatura brasileira, conforme a natureza
étnica de origem (africana, indígena e dos mestiços –sertanejos,
tabaréus, matutos, regatões, etc.). Não há referência na História à
diversidade entre índios e africanos, só em relação à variedade dos
mestiços.
O caráter nacional da literatura, de acordo com essa
perspectiva, não se inventa, mas nasce espontaneamente e se
manifesta literariamente mesmo contra a vontade dos escritores. É
por essa razão que Sílvio Romero critica o nacionalismo exterior,
que aparece na literatura brasileira, quando se privilegia a
representação ufanista, por exemplo, do caboclo ou do sertanejo.
Não que a escolha não seja legítima, mas por faltar-lhe a criticidade,
trazendo assim para a literatura as “qualidades nativas, boas ou
más”.56
Na História, o nacional conflui para o mestiço, como tem
sido reiterado. Foi em função dessa mestiçagem que o seu autor fez
uma defesa emotiva do poeta Domingos Caldas Barbosa. É um
exemplo de como – a partir de postulados racistas de seu tempo –
Sílvio Romero procura relevar a maneira de ser do mestiço,
contraditando postulados que julgava acreditar. Nesse sentido, ele
critica Varnhagen que atribuiu à mestiçagem um suposto caráter
submisso desse poeta, segundo ele uma injustiça e um erro grave,
pois o poeta não era submisso,
apenas amorável, alegre, expansivo e divertido: Além disso, se há
alguma coisa no mestiço, que se possa considerar a nota
55
56
Sílvio Romero, 1960, t. 2: 406.
Sílvio Romero, 1960, t. 2: 407, nota 1.
82
BENJAMIN ABDALA JUNIOR
predominante de seu caráter, é a rudeza, a independência, o
orgulho, a tendência ao desrespeito, a falta de senso de
veneração.57
Sílvio Romero projeta no mestiço, traços psicossociais de
altivez e independência que imaginava próprios do caráter nacional
brasileiro. Em relação ao sistema literário, Caldas Barbosa seria um
poeta representativo de sua época também por conseguir
consagração e popularidade. Apropriado pela população anônima,
esta fez seus pedaços das cantigas do poeta –um material que traz a
maneira de ser de uma população tropical, muito doce, distante quer
de Lisboa ou do Rio de Janeiro. Na metrópole, Sílvio vê uma terra
de poetas “mordazes e inchados de retórica” (Bocage e Agostinho
de Macedo); no Rio de Janeiro, a menos nacional de todas as
capitais do mundo.58
Cruz e Sousa e Euclides da Cunha, estratégias
discursivas?
Cruz e Sousa, na poesia, e Euclides da Cunha, na prosa,
poderiam constituir pontos de chegada do discurso crítico da
História. São dois autores estreitamente ligados aos ideais de
mestiçagem de Sílvio Romero e a estratégia discursiva desse crítico
poderia convergir para eles. Na prática, não foi o que aconteceu,
embora eles se aproximem de seus modelos de escritores, pois sua
obra na verdade reúne matéria esparsa, publicada em épocas
diferentes.
Sílvio Romero é eloqüente quando situa Cruz e Sousa como
o ponto culminante da lírica brasileira: Sofreu os terríveis agrores
de sua posição de preto e de pobre, desprotegido e certamente
desprezado. Mas sua alma cândida e seu peregrino talento deixaram
sulco bem forte na poesia nacional. Morreu muito moço, em 1898,
quase ao findar deste século, e nele acha-se o ponto culminante da
lírica brasileira após quatrocentos anos de existência.59 A referência
57
58
59
Sílvio Romero, 1960, t. 2: 476.
Sílvio Romero, 1960, t. 2: 478.
Sílvio Romero, 1960, t. 5: 1 686.
HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA, DE SÍLVIO ROMERO
83
à imagem das almas cândidas certamente deve ser atribuída às
formulações ideológicas do autor já referidas. Mas, procurando
escapar desses horizontes, por via afetiva, reconhece e proclama os
méritos artísticos de Cruz e Sousa –um negro que se colocava à
frente de todos, desdizendo pressupostos de inferioridade racial.
É com Os sertões, embora situado nos “Artigos esparsos” de
sua História, que Sílvio Romero encerra o percurso de seu discurso
histórico-literário. Obcecado por modelos unitários, Euclides da
Cunha como Cruz e Sousa terminaram por serem convenientes ao
crítico que os admirava. Evidentemente essa visão é parcial,
reduzidíssima, pois tende a minimizar o valor de outros autores
significativos, inclusive de outras épocas, para apontar para um
evolucionismo estreito que contraria o rico colorido das produções
literárias indicadas pelo autor em vários momentos de sua História.
Adequaram-se Euclides e Cruz e Sousa, entretanto, ainda
plenamente a suas teses relativamente à unidade nacional com base
no mestiçamento biológico e cultural. N’Os sertões, predominavam
imagens do amorenamento; na poesia de Cruz e Sousa encontrava
um negro que, sem abdicar de sua condição étnica, incorporava a
cultura mestiça do país, dialogando com as tendências mais atuais
da poesia européia.
Euclides trouxe uma síntese do homem brasileiro,
representado de forma superiormente artística. Para Sílvio Romero,
mais do que uma construção, tratava-se de uma representação
autêntica de um homem brasileiro, permitindo-lhe então opor essa
forma de ver a realidade brasileira, dura e áspera, baseada na
observação, aos poetas deliqüescentes “que enfiam frases no Rio de
Janeiro”.60 Os sertanejos são, em oposição a esses deliqüescentes,
tipos rígidos e “expoentes indicadores das correntes subalternas das
multidões” e não expressões passivas “ditadas pela própria
natureza”,61 pois ali estão cristalizações humanas obtidas por
quatrocentos anos de relacionamentos do homem com a terra. A
60
61
Sílvio Romero, 1960, t. 5: 1 793.
Sílvio Romero, 1960, t. 5: 1 795.
84
BENJAMIN ABDALA JUNIOR
superior organização formal do romance coloca-o como “um dos
livros máximos na literatura de língua portuguesa”.62
Hibridismo, uma questão atual
Para concluir, convém relevar o significado históricocultural da História da literatura brasileira, uma obra que vale
como síntese da literatura e da cultura do país, publicada nos inícios
da República. Era esse momento de sonhos libertários e de defesa
de uma metodologia científica para as ciências humanas que
imprimiu as motivações de fundo para o projeto de Sílvio Romero.
Um projeto que não se fechava em si, pois que o autor tinha
consciência de sua historicidade, revisando-a, reformulando-a.
Conformada sua estrutura, a obra tornou-se contexto, isto é, ponto
de partida crítico para outros estudiosos da literatura e da cultura do
país.
Além desse significado histórico, a História é hoje texto de
grande valia para a discussão da cultura brasileira. As questões sobre mestiçagem e hibridismo cultural que levanta colocam-se como
matéria de interesse para a discussão das culturas contemporâneas.
A hibridez é mostrada por Sílvio Romero de forma ambígua: ele a
teme pelo que ela poderia representar em termos de desagregação
política da nascente república, mas ele também a aprecia pelos muitos matizes que apresenta da identidade cultural brasileira. Hoje esse conceito de hibridez é alargado da referência exclusiva aos países
latino-americanos –países de colonização recente–, para o conjunto
da cultura contemporânea. Hibridez, nesse sentido, não é um problema, mas possibilidades abertas por culturas que não se conformam a modelos unitários, avessos à liberdade. Sílvio Romero discutiu essas questões há mais de um século, perseguindo às vezes ambiguamente a possibilidade de se construir no país um espaço de
liberdade. Para tanto, em grandes sínteses, destacou as potencialidades das formas literárias produzidas no país – formas mestiças
embaladas, dir-se-ia hoje, por pedaços de culturas provenientes de
Portugal (para o autor, Portugal também é mestiço), da África e dos
povos ameríndios. Há, pois, uma produtividade interna que motiva
62
Sílvio Romero, 1960, t. 5: 1.797.
HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA, DE SÍLVIO ROMERO
85
a cultura brasileira, sobretudo em nível popular –uma dinâmica cultural que não pode ser desconsiderada por parte da intelectualidade
brasileira, que continua a repetir o habitus adquirido nos tempos
coloniais e do Império, denunciado por Sílvio Romero: o olhar obsessivo para fora do país, desconsiderando o que aqui se produziu.
Essa mesma observação crítica vale igualmente para aqueles que se
admiram com a aparente novidade dos estudos culturais e das teorias relativas à crioulidade ou à hibridez das culturas, não localizando
no pensamento crítico brasileiro toda uma tradição relativa à mestiçagem que viria enriquecer esse debate.
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VEREDAS 10 (Santiago de Compostela, 2008) 87-104
Literaturas regionais e história
literária: perspectivas comparatistas*
FERNANDO CABO ASEGUINOLAZA
Universidade de Santiago de Compostela
Contrasting with the customary substantialist approaches on the idea of regional
literature, this work chooses to ask how the idea of region–a fundamentally heteronomous and unstable notion–functions and has functioned in the literary ambit
from a historiographic point of view. In order to achieve this, the study begins
with the Iberian situation, emphasizing a comparatist perspective, and moves on
to a brief commentary on two concrete situations. The first of these refers to an
exemplary case regarding the complexity and historical density of the regional
category: a vision we are given by perhaps the nineteenth century’s most eminent scholar on Spanish culture, Marcelino Menéndez Pelayo. The second refers
to the influence and international character of the concept of literary regionalism,
with particular attention to the comparative situation of Spain and France at the
end of the 19th century and beginning of the 20th century. Lastly, the reflection
moves towards a consideration of the consequences that categorical considerations, like the regional in this case, have for acting models of literary historiography.
Muito provavelmente um dos aspectos mais difíceis de
ignorar em qualquer possível reflexão sobre a historiografia literária
é a sua conexão íntima e substancial com espaços geográficos, mas
*
Este trabalho está relacionado com um projeto de investigação sobre a
historiografia comparada das literaturas ibéricas que recebe financiamento do Ministério
de Educação espanhol (HUM2004-00324) e da União Européia (fundos FEDER).
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sobretudo culturais e políticos, de todo tipo, desde os mais
estritamente locais, cidades ou comarcas, aos de pretensão mais
abrangente, o mundo sem ir mais longe. O fundamento desta
conexão –além da confiança ainda muito viva de que a história seja
a melhor via para entender a literatura, inclusive quando se concebe
esta como uma entidade principalmente espacial– radica na
suposição de que, efetivamente, existem literaturas de distinto tipo
vinculadas a estes espaços diferentes, ainda que inevitavelmente
devam sobrepor-se em seu alcance e muitas vezes entrar inclusive
em conflito por questões de adscrição ou de pertinência
epistemológica ou ideológica. Temos um ponto de partida
particularmente revelador para algumas observações neste sentido
na situação literária da península ibérica. Em seu âmbito
convergem, efetivamente, literaturas as que se atribuíram estatutos
muito diferentes. Há literaturas vinculadas a estados-nação
(espanhola e portuguesa), literaturas nacionais sem categoria estatal,
ademais de literaturas regionais. Desde um ponto de vista,
sobretudo histórico, também deve se contar com aquelas literaturas
que poderíamos chamar anacionais, como as escritas em hebraico
ou árabe, e inclusive com o que se costumou qualificar, seguindo a
peculiar interpretação deleuziana de Kafka, de ‘pequenas
literaturas’, como fez Jon Juaristi (1994) com a literatura bilbaína
em castelhano de finais do XIX. Para não falar, evidentemente, das
que adquirem uma dimensão extra-peninsular: as literaturas
hispano-americana, lusófona ou, com outro critério, européia... Esta
situação sugere a complexidade do mapa geoliterário ibérico, da
que me aproveitarei para algumas observações esquemáticas sobre
uma destas categorias, a do regional. Será uma oportunidade para
apontar para determinados pontos cegos do que foi a constituição da
historiografia literária que possuímos.
Parece proveitoso descartar inicialmente qualquer tentação
de se lançar a definição do que é uma literatura regional. Frente a
esta questão de um inevitável substancialismo, melhor convém se
perguntar sobre como funciona e funcionou a idéia de região desde
o ponto de vista historiográfico. E isto implica questões relativas,
por exemplo, a dialética entre a auto-imagem e a hetero-imagem
(das literaturas e dos agentes a elas relacionados), a constituição,
polêmica ou negociada, de um repertório que reja as relações e
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hierarquias no interior de âmbito literário, assim como em último
termo aos fatores que determinam o reconhecimento de uma
suposta autonomia literária. O regionalismo, neste sentido, pode, e
seguramente deve, formular-se desde um ponto de vista comparado.
Não se trata tanto, pois, de se ocupar da produção cultural de um
determinado âmbito conceituado como regional, sim de ver que
lições se podem extrair da consideração do conceito de região em
diferentes historiografias literárias. Porque existe algo talvez
evidente que convém reafirmar de entrada: as literaturas regionais
são fenômenos relativos, que, ao contrário da pretensão de
suficiência freqüente na consideração das literaturas nacionais, se
entendem sempre a partir de uma heteronomia ou, se deseja, de uma
parcialidade que podem resultar, às vezes, certamente sugestivas.
O certo é que as literaturas regionais constituem um objeto
de análise muito atrativo. E isto apesar do descrédito e do desdém
com que, de forma reiterada, se tratou a entidade regional tanto
desde o ponto de vista do nacionalismo literário como desde
formulações de alento mundial ou global, que, paradoxicalmente,
costumam insistir numa dialética entre o nacional e o mundial,
ignorando em muita boa medida outro tipo de noções e realidades
culturais. Quase sempre mostra-se latente nestas formulações a
idéia de que a modernização envolve a superação do local, em favor
da nação ou de um cosmopolitismo de maior alcance. O resultado
costuma ser uma visão escalonada ou telescópica que articula as
diferentes realidades de acordo com uma progressão de amplitude e
capacidade de incorporação, que se liga a uma estrutura nitidamente
hierárquica e valorativa. E esse é um dos erros mais graves, já que
ignora de um lado as sobreposições e conflitos de todo tipo entre os
diferentes espaços culturais –tensões vinculadas aos fenômenos de
‘dupla consciência’ (Paul Gilroy) ou a antinomia entre ‘filiaciação’
e ‘afiliação’ (Edward Said)– e de outro conduz a desdenhar
simplesmente a reflexão sobre o papel das literaturas regionais,
considerando como fato que se trata de um fenômeno diáfano e, no
fim das contas, prescindível.
No entanto, uma mera revisão do que acontece com as
literaturas regionais em diferentes tradições historiográficas
aconselha uma chamada de atenção. Esboçarei brevemente três
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situações do âmbito europeu, deixando de lado pelo momento o que
acontece em outros em outros lugares, como na Argentina ou no
Brasil, onde a noção de literatura regional contou também com uma
presença notável.
No caso francês, a regionalização literária esteve ligada de
maneira muito direta a um modelo nacional forte fundamentado
sobre uma hierarquia precisa. É certo que o regional pode supor em
alguns casos um gesto de disensão a respeito do modelo abstrato
dominante da literatura nacional francesa, mas quase sempre este
disenso foi entendido como um reforço das raízes locais da nação. É
exemplar neste sentido uma proposta com a de August Dupouy
(1942), plasmada na tese de uma ‘translatio’ do gênio francês de
umas regiões a outras ao longo do tempo, justificando assim os
revezamentos entre as diferentes regiões francesas na hegemonia
literária até a consolidação definitiva de Paris como capital
inquestionável da França literária.
No que se refere a situação centro-européia, poderia aceitarse –ainda que evidentemente com reservas– que também no literário
«regionalism meant a form of supra-ethnic territorial loyalty to de
Landespatriotismus, which was devoid of ethnic content and hence
could be shared by linguistically or ethnically diverse segments of
the population» (Núñez Seixas 2001: 483-484). Tratar-se-ia, então,
de uma postulação alternativa da nação literária na que são
apreciáveis algumas concomitâncias com as ‘pequenas literaturas’
de que trataram Guattari e Deleuze na seqüência de uma conhecida
apreciação de Kafka.
E no que tange ao âmbito espanhol, a situação é sem dúvida
muito diferente como conseqüência de que as qualificadas em
primeiro lugar como literaturas regionais –uma etiqueta assumida
tanto pelos próprios promotores como por quem as consideravam
com certa desconfiança– foram as que acabariam por ser nacionais
sobre a base de um princípio de identidade filológico. Assume-se
assim um processo teleológico que faz do regionalismo uma fase
prévia e negada do nacionalismo.
É possível distinguir deste modo ao menos três modelos bem
diferentes sob a etiqueta comum de literatura regional: a) a região
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como encarnação e metonímia do nacional; b) a afiliação a uma
geografia como princípio abarcador de diferenças étnicas,
lingüísticas e culturais; e c) a região «as a necessary precondition
that fostered the emergence of several peripheral nationalisms»
(Nuñez 2001: 483) e, portanto, como contradiscurso com uma nítida
projeção ideológica.
Há importantes elementos comuns, não obstante, que
incidem particularmente sobre a conexão íntima do regional ao
nacional, e em particular sobre a idéia do estado-nação.
Recordemos neste sentido duas afirmações de Heinz-Gerhard
Haupt, Günter Müller e Stuart Woolf na introdução a um volume
dedicado à análise destes fenômenos. A primeira é esta: «But if the
two phenomena are inextricably linked, their relationship is asymmetrical, in the sense that it is impossible to conceive of regional
identity without the existence of the nation-state» (1998: 11). Isto,
trasladado ao plano literário, falaria a favor da primazia da
postulação das literaturas nacionais e do entendimento do
regionalismo como, por um lado, uma reação às “pressures of
nation building” e, por outro, como um expoente, das
inconsistências ou incapacidades desse processo. E a segunda
assegura que «regionalism only developed as a political movement
critical of the nation-state during the last decades of the nineteenth
century» (1998: 11). Novamente, poderia se trasladar esta
afirmação ao plano literário, fixando a emergência das literaturas
regionais em um momento histórico preciso e como um fenômeno
em boa medida transnacional, e fundamentalmente europeu em um
primeiro momento.
O conceito de literatura regional, porém, é uma noção que,
quase naturalmente, tende a sobreposição com outras
categorizações geoliterárias e a ser objeto de percepções muito
diferentes por não dizer contrapostas. Vale a pena apontar, então,
algumas idéias sobre uma situação concreta e específica, como é a
que ocorre com determinados usos da noção de literatura regional
no âmbito espanhol, onde uma das características mais evidente é,
em efeito, que muitas das literaturas vindicadas, em um momento
dado, como regionais por seus próprios agentes e aceitadas como
tais por outros alheios a seu âmbito, em virtude de uma identidade
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lingüística diferencial (Valera se referiu a isto com a expressão
“regionalismo filológico”), passaram a ser admitidas como
literaturas nacionais, enquanto o termo regional se mantém, de uma
maneira às vezes um tanto pejorativa, para outras realidades
literárias inscritas geralmente no âmbito da língua castelhana.
Proporei a seguir dois breves apontamentos neste sentido,
referentes a distintas dimensões do regionalismo literário na época
final do século XIX e que toma como referência a situação
espanhola. Ambos sugerem a necessidade de adotar uma
perspectiva comparada no momento de compreender o papel
histórico do regionalismo literário e de desenvolver uma
consciência ainda mais viva sobre os marcos que definiram a
historiografia literária em seu desenvolvimento, assim como a
urgência de vincular a reflexão teórica sobre a historiografia a estes
contextos.
Pode servir como primeiro exemplo da complexidade e da
densidade histórica da categoria do regional o que nos proporciona
quem provavelmente seja o principal estudioso da cultura espanhola
no século XIX. Marcelino Menéndez Pelayo –que, apesar de ter
considerado muitas vezes a idéia, nunca escreveu uma história da
literatura como tal– converteu-se no sucessor de Amador de los
Ríos a frente da cátedra de História crítica da literatura espanhola na
Universidade Central de Madri. E precisamente o programa com
que se apresentou ao concurso desta cátedra em 1878 –José Amador
de los Ríos havia morrido neste mesmo ano– apresentava uma
concepção da literatura espanhola muito distante da opinião
recebida –e em boa parte institucionalizada– até o momento, aquela
que se pode assimilar ao nacionalismo literário espanhol,
inextricavelmente ligado ao modelo nacional propugnado
fundamentalmente pela atitude moderada dos liberais espanhóis a
partir da década de quarenta do século XIX (González Millán
2006). Em suma, Menéndez Pelayo (1941) discordava em grande
medida do princípio implícito da historiografia literária nacionalista
em termos gerais, e desde logo do princípio da historiografia
literária vinculada ao Estado liberal, de acordo com o qual existiria
uma correspondência implícita entre a nacionalidade política e a
nacionalidade literária. Por suposto isto lhe servia para reclamar o
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caráter ‘espanhol’ das literaturas hispano-americanas, atendidas na
medida em que espanholas, mas também para proclamar a
existência possível de nações diversas dentro de um mesmo Estado,
“como acontece en los modernos imperios de Austria y Rusia”.
Contudo, a aplicação deste princípio à situação peninsular, que o
leva a reconhecer ao menos três nacionalidades literárias na
Península, de acordo com as três principais línguas romances
ibéricas da Idade Média, e a se mostrar extremadamente reticente
com a denominação de língua espanhola referida por antonomásia à
de “Espanha central”, não o impedia afirmar a identidade profunda
de todas essas literaturas, e ainda as de expressão latina na
Península, nem o “misterioso sincronismo” que as regeria dentro do
marco geral do que entende este erudito por “ingenio español”.
Ainda que com alguma vacilação, as excluídas desta concepção são
as literaturas de expressão árabe e hebraica, que por sua diferença
quanto à latinidade e ao caráter cristão em que se insere a
espanhola, ficam limitadas no modelo de representação deste
programa de literatura espanhola a seção de “influências semíticas”.
Menendéz Pelayo renúncia, não sem contradições (como a
que se refere às literaturas hipano-americanas), à identificação entre
língua e literatura, e, seguindo em parte a opção adotada por
Amador de los Ríos, o faz em virtude de um princípio de identidade
mais profundo e antigo cronologicamente que o da língua –quase
um epifenômeno, a seu juízo–, onde a latinidade cultural e o
cristianismo religioso se mostram decisivos. Por isso critica, por
exemplo, a Ticknor, que fazia começar a literatura espanhola com a
irrupção súbita do castelhano através do Poema del Cid, algo que
julga ironicamente “mucho más cômodo e até artístico, si el arte de
la historia fuera como el de un poema o una novela” (Menéndez
Pelayo 1941, 11). A dissidência de Menéndez Pelayo não se dirige
tanto para precedentes como o do Marqués de Pidal ou o de
Amador de los Ríos, ou inclusive Gil de Zárate, com os quais existe
uma continuidade de fundo, como para um certo modelo de visão
exógena no que denuncia um princípio epistemológico, a
identificação de língua e literatura, e também um modelo expositivo
“romanesco”.
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A efetiva correção relacionada com historiadores prévios
como o Marqués de Pidal ou, mais parcialmente, Amador de los
Ríos deve ser entendida de outra forma. O que Menéndez Pelayo
incorpora em textos como o citado é a ênfase sobre o que caberia
chamar uma espanholidade plurilíngüe, um paradóxico pluralismo
integrista, onde o conceito de espanholidade –católico e latino–
incluiria o conjunto da Península, também Portugal. Esta posição de
Menéndez Pelayo não pode ser separada do momento histórico em
que é formulada e de uma visão integradora das culturas hispânicas
desde pressupostos muito conservadores. Estamos em plena
Restauração monárquica, na terceira das etapas identitárias
esboçadas pelo historiador Borja de Riquer. E uma das novidades
palpáveis em relação a momentos anteriores é, precisamente, a
emergência já manifestada das chamadas então literaturas regionais
em conjunção com movimentos como a Renaixença catalã ou o
Rexurdimento galego em torno a acontecimentos públicos como os
jogos florais, que se celebraram primeiro em Barcelona, em 1859, e
logo na Galiza e no País Basco. A melhor expressão disto temos
seguramente no regionalismo literário do influente político –várias
vezes ministro do governo espanhol– e historiador barcelonês
Víctor Balaguer, em especial na medida em que se manifesta em
fóruns tão significativos como a Real Academia de la História e a
Real Academia Española, das que foi eleito membro,
respectivamente, em 1875 e 1883. No discurso de recepção à
segunda destas instituições advertia do abuso de reduzir a literatura
espanhola à castelhana, já que, em sua opinião, existiriam em
realidade cinco literaturas espanholas a partir de sua identificação
com línguas e espaços diferentes: a castelhana, a catalã, e a dos
“euskaros”, galegos e asturianos; e reclamava em conseqüência uma
perspectiva diferente da dominante para escrever a história da
literatura da Espanha. Porém, ademais, refletia diretamente na
dimensão identitária desta premissa reclamando “la emancipación
del pensamiento en la literatura, que es el síntoma de la
nacionalidad” (Balaguer 1883, 9). De outro lado, o primeiros dos
discursos, o pronunciado na Real Academia de la Historia,
constituía já uma mostra da emergência historiográfica ligada a
Renaixença literária. Ainda que provavelmente o mais significativo
seja a exposição de uma idéia compartilhada por outras propostas
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historiográficas peninsulares alternativas à espanhola: sua
vinculação a um espaço antigo que contradiz as fronteiras da
articulação estatal da Europa moderna. E o que Balaguer atribui à
cultura catalã é um espaço radicalmente meridional e mediterrâneo,
distante não só do espírito castelhano senão também do próprio das
culturas septentrionais, convertidas em hegemônicas a nível
europeu. É o espaço a que logo dedicaria os seis volumes de sua
Historia política y literaria de los trovadores (1878-1979).
De fato, Menéndez Pelayo participou ativamente nos jocs
florals celebrados em Barcelona em 1888, e com um discurso em
catalão (Peiró 1995, 92-93). Não se esqueça, neste sentido, que
estamos diante de um discípulo, segundo ele mesmo deixou claro
nesta ocasião, do grande erudito Manuel Milá i Fontanals, próximo
ao movimento cultural da Renaixença, além de referência
fundamental, ao mesmo tempo, da historiografia literária castelhana
e catalã (Jorba 1989). Uma das teses de Milá seria, em efeito, a do
caráter plurilíngüe da literatura espanhola, e nesta idéia se manteve
não só Menendéz Pelayo, senão também Antoni Rubió i Lluch,
outro dos discípulos mais destacados de Milá, que esteve entre os
primeiros sistematizadores da história da literatura catalã,
estabelecendo uma linha de continuidade que chega até o presente.
Não há que dizer que não foram estas as teses que se
impuseram no meio prazo. Borja de Riquer (2001, 93) caracterizou
esta terceira etapa identitária, coincidente com o último quarto do
século XIX, como o triunfo de uma identidade espanhola oficial e
conservadora e o bloqueio conseguinte de outras propostas,
reformadores sim, mas não menos tradicionais –em realidade, muito
mais– que as que acabariam por impor-se na historiografia
dominante sobre a literatura espanhola; no fundamental
conservadora e propensa a definir uma identidade em torno ao
princípio cristão, e também rotundamente castelhanocentralizadora. No entanto, este seria também o período no que se
assenta o desenvolvimento, por exemplo, da historiografia da
literatura catalã; porque a Renaixença representou também,
evidentemente, a eclosão de uma historiografia específica, que
compartia os pressupostos étnicos e lingüísticos, nacionais em
suma, da literatura castelhano/espanhola, ainda que centrada agora,
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claramente, na nacionalidade literária catalã. Não em vão
historiadores catalães como Rubió i Lluch afirmaram o caráter
modélico da obra de Amador de los Ríos.
Em diversos lugares se sustentou a tese de que os diferentes
nacionalismos ibéricos, além de em sua dimensão internacional,
devem ser contemplados como aspectos diversos de um processo
único com uma evidente coerência cronológica e fundamentado em
uma interação persistente entre seus diferentes componentes
(Riquer 2001; Martí-López 2005, 156-67). O caso do
desenvolvimento das historiografias literárias é provavelmente uma
das melhores ilustrações desta tese. Já nos referimos, por exemplo,
à posição crucial de Milá i Fontanals nos primeiros estádios tanto da
moderna historiografia literária espanhola como catalã. E não é
tampouco difícil de comprovar que a progressiva afirmação
nacional da literatura espanhola havia implicado a ocupação de
posições muito determinadas, ainda que nem sempre coincidentes,
às outras literaturas do âmbito espanhol. Uma delas se relaciona,
precisamente, com a consideração em um primeiro momento destas
‘outras’ literaturas, a maneira de marginalia, sob o rótulo de
regional, algo que foi assumido parcialmente pelos promotores
destas literaturas e de suas incipientes historiografias. Não obstante,
as implicações desta afirmação do regional sugere que nos
encontramos ante um processo que, quase desde o seu próprio
início, delata as dificuldades para uma compreensão unívoca da
literatura da Espanha, ao mesmo tempo que indica o fato não menos
patente de que essas outras literatura (catalã, galega e inclusive
asturiana em um primeiro momento) derivam em certo modo das
resistências e tensões ante a constituição de uma literatura nacional
espanhola paralela ao Estado liberal em formação durante este
período.
Uma expressão eloqüente desta tese temos em uma obra
como a do padre agostiniano Francisco Blanco García (1894), La
literatura española en el siglo XIX. Na sua parte terceira reserva sua
atenção às literaturas regionais e ao que define como apontamentos
sobre as literaturas latino-americanas. Em conclusão, tudo aquilo
que, sem ser negado de forma radical, não podia tampouco ser
assumido facilmente na noção de literatura espanhola. Aparentes
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marginalia que, no entanto, determinam a compreensão do
conjunto. A atitude de Blanco García para com as literaturas
regionais –catalã, galega e asturiana, pois renuncia a tratar da basca
aduzindo seu desconhecimento da língua– é de uma evidente
reserva diante de suas implicações políticas. O paradóxico, não
obstante, é que desta atitude receosa surgem uns panoramas
historiográficos nada desdenháveis, que se encontram entre as
primeiras visões historiográficas de conjunto de algumas destas
literaturas.
O segundo apontamento que mencionava anteriormente se
refere à influência e ao caráter internacional do conceito de
regionalismo literário. Algo de que era perfeitamente consciente,
por exemplo, o galego Eugenio Carré (1903: 10) quando vinculava
a reclamação ‘regional’ da Galiza, vinculada a postulação de uma
literatura galega, a uma situação européia onde surgia o
protagonismo de âmbitos culturais como o Languedoc ou Flandes.
No entanto o olhar de Carré se dirigia fundamentalmente à França.
Dado o peso específico do modelo de nação-estado francês sobre o
caso espanhol, e da influência do liberalismo doutrinário francês
sobre as posições moderadas do liberalismo espanhol, não seria
estranho, em efeito, que o chamado regionalismo literário tivesse
também um cunho francês. Da comparação e do contraste entre
ambos os processos de constituição uma literatura nacional-estatal,
se derivam algumas observações sumamente interessantes.
Por uma parte, é evidente a incidência sobre o âmbito
espanhol de certos estímulos procedentes da França, como, de
maneira muito particular, o movimento Félibrige (fundado em
1854) com sua reivindicação do occitano e da cultura provençal.
Um efeito especialmente notável sobre o regionalismo catalão, que
por sua vez deixou sentir sua marca muito nítida sobre outras
situações peninsulares. Isto é assim, por exemplo, com os jogos
florais, que, seguindo o modelo Félibrige se celebraram, como já se
disse, primeiro em Barcelona, em 1859 (é o ano de Mireille, de
Mistral), e logo na Galiza e no País Basco. São conhecidas neste
mesmo sentido as conexões do mencionado Balaguer, que havia
estado exilado na Occitânia entre 1865 e 1867, com Frederic
Mistral. Mas também se percebe no fato de que um dos primeiros
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historiadores da literatura catalã (depois de Magí Pers i Ramona), o
francês F.-R. Cambouliu, tivesse notórias relações com o
movimento Félibrige. Cambouliu publicou originalmente sua obra
em francês em 1858, a qual seria posteriormente traduzida ao
catalão. Cambouliu exerceu esse papel, tão comum às diversas
tradições historiográficas, de ‘primeiro historiador’: aquele capaz de
identificar, mediante a epistemologia do método histórico, a
grandeza de uma literatura particular; de fazer evidente sua
condição de nacional para atribuir-se o privilégio da correta
interpretação de uma cultura e da compreensão de seus fatores
profundos. Tudo isto frente à incompreensão, ao desprezo ou às
ignorâncias prévias. Essa posição, e sua influência sobre outros
âmbitos peninsulares, pode ser constatada nas seguintes palavras de
um jovem Valle-Inclán, que em 1888 apontava a emergência da
literatura galega e ao papel de Murguía, apesar de haver utilizado
em seus textos o castelhano, sublinhando seu paralelismo com
Cambouliu (Alonso Montero 1997; Pereiro-Otero 2006):
¡Tiempos aquéllos en que aún había fe, en que tuvo principio
nuestro renacimiento literario! Pasaron ¡ay! Llevándose consigo
los más y los mejores de los que en él tomaron parte. Atrás
quedan la cantora de Follas Novas; el patriarca Añón; el
quijotesco Aguirre; el regionalista Faraldo; el soñador Vicetto; el
romántico Camino, una de las almas más sin ventura que nunca
hayan existido; los precursores, en fin, como les ha llamado aquel
que entre todos, ha sentido mejor la idea regeneradora, aquel que
sin escribir en gallego, hizo por él más que todos juntos. También
Cambouliu, uno de los que más trabajaron a favor de la lengua
d'Oc, escribió en la d'Oil. Las voces de los primeros apóstoles,
han de ser oídas en todos los ámbitos del mundo. (Valle-Inclán
2002: II, 1323-24).
Numa outra ordem das coisas, mas na mesma direção,
haveria de se colocar em relevo também as conexões patentes entre
o discurso disciplinar da romanística e a sua incidência na
reivindicação do provençal e também do catalão –não em vão
confundido sob o termo de lemosino durante muito tempo–, assim
como do galego, e, claro, de suas correspondentes literaturas. É um
fator chave, sem dúvida, na legitimação filológica de um certo
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regionalismo, que teria evidente continuidade no esforço por
assentar as respectivas línguas literárias, às vezes em situações de
uma debilidade referencial tão notável como a do galego.
São patentes, em todo o caso, as semelhanças e paralelismos
na evolução dos movimentos regionalistas nos âmbitos franceses e
espanhóis. Não é difícil apreciar, por exemplo, como em ambos se
produz a convergência de setores políticos contrapostos
(monárquicos como Maurras, junto a republicanos e democratas
como Jean Jaurés na França; carlistas junto a federalistas
republicanos na Espanha); como um primeiro momento retórico e
de convivência dá lugar a outro plasmado em um programa mais
claramente político; assim como a tendência à constituição de
alianças interliterárias periféricas frente ao modelo unitário da
cultura das respectivas nações-estado.
No entanto, não parece apropriado pensar na adaptação passiva da ascendência francesa. Por exemplo, resulta significativo que
os termos regionalismo e regional pareçam haver se difundido bastante antes no âmbito espanhol, que no francês, onde, segundo
Charles Brun, um de seus máximos propulsores, não aparece até
1874 e ainda em 1911 o considerava um recém chegado (Thiesse
1993, 70 e ss). Esta décalage se explicaria, entre outras coisas, porque régional na França teve de lutar, encontrando mais resistência
que na Espanha, com termos como provincial, com conotações muito perceptíveis com o ancien régime, ou com federalismo, cujo uso
por parte de Maurras o havia marcado com conotações reacionárias.
Apesar de que a terminologia não seja muito diferente, os jogos de
linguagem sim que são; já que falam de diferenças contextuais e de
planificações geoliterárias muito importantes. Uma das mais evidentes é o fato de que, em muita boa parte, o nacionalismo francês
se entendesse em linguagem regional/federal. Não há mais que pensar em Maurras ou no tipo de geografia literária que proporia posteriormente Dupouy; Ademais, por suposto, da presença do discurso
regionalista no regime de Vichy através de Maurras o do próprio
Brun. No âmbito espanhol a situação foi bem diferente: a reivindicação nacional e o caráter contra-discursivo do discurso regionalista
foram elementos bem perceptíveis desde muito cedo em paralelo
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com a dificuldade para assimilar a diferença interna regional por
parte do discurso nacional espanhol.
Por tudo isto resulta sumamente ilustrativa a hierarquização
que estabelecia Charles Brun entre as literaturas regionais e a francesa em sua obra sobre Littératures provinciales, assim como a
reconceitualização que efetua da literatura francesa para reservar
um lugar para as primeiras. De um lado, definia as literaturas provinciais como ‘literaturas de grau médio’. Deste modo uma obra
francesa, só consegue quem tem genio, enquanto que a obra provincial, de outro modo, estaria ao alcance quem ‘sinta’ a província. De acordo com a interpretação de Thiesse, segundo os campos
literários (1993: 87): “C’est en fait la position qu’elle tient sur le
marché, où elle occupe le secteur moyen, puisqu’elle correspond à
des oeuvres qui n’appartiennent ni à la production de grande
consommation, ni a l’avant-garde de la recherche esthétique”. O
que não se pode deixar escapar, em qualquer caso, é o paralelismo
entre a relação regional/francês, tal como a postula Brun e a reinterpreta Thiesse, e a que regula a conexão nacional/mundial na linha que propugna uma estudiosa como Pascale Casanova em seu
modelo sobre a República Mundial das Letras, onde se reserva ao
mundial a autonomia estética, o universalismo e a consagração por
pelo centro parisiense, sobre o fundamento de uma dialética necessária para a constituição do próprio centro.
Por outra parte, a virtualidade mesma das literaturas regionais dependia, para Brun, do processo de nacionalização literária.
Assim dizendo, da consideração da literatura francesa como uma
literatura nacional entre outras. Em palavras de Thiesse, «la France
n’a plus une suprématie incontestée en maitère culturelle et l’essor
d’autres littératures nationales, qui ne le fait plus apparaître que
comme un foyer intellectuel parmi d’autres, incite à chercher des
accents singuliers» (1993: 85). E, nesta linha, as chamadas literaturas provinciais seriam como o resultado de uma mîse em abîme: a
imagem interiorizada pela literatura francesa, como noção totalizadora, das outras literaturas nacionais. De fato, as explicações para
dar conta do surgimento das literaturas provinciais replicam as utilizadas para a emergência das nacionais: romantismo, pesquisas folclóricas, teoria das nacionalidades, desenvolvimento dos meios de
LITERATURAS REGIONAIS E HISTÓRIA LITERÁRIA...
101
comunicação... Isto explica a semelhança do modelo explicativo de
Thiesse e de Casanova. Mostra-nos também a postulação de uma
literatura como a francesa –tão distante neste aspecto do caso espanhol– que abandona aparentemente sua pretensão de universalidade
e aceita sua condição de nacional, e portanto a concorrência com
outras literaturas igualmente nacionais, e ao mesmo tempo em uma
espécie de introjecção totalizadora assume em seu interior o mecanismo axiológico e hierárquico da literatura mundial.
Desde esta perspectiva, ao menos no que tange a França, se
poderia entender a postulação das literaturas regionais como uma
segunda fase no processo de nacionalização, associada a um efeito
especular com uma dupla saída: a que leva a reforçar e matizar um
modelo nacional-espacial prévio como arcabouço literário; e também a de constituir esse arcabouço literário, com suas hierarquias,
em uma singular e complacente imago mundi. É o que se poderia
pensar, por exemplo, da leitura conjunta e complementária dos citados livros de Thiesse e Casanova, ambos em dívida reconhecida
com Bourdieu.
Mas nem sempre o regional possui essa vocação de subsidariedade ou se acomoda a esta distribuição de papéis. É inegável que,
em muitos casos, depois da proclamação de uma determinada literatura como regional se coloque uma proposta de autonomia e de denúncia de uma hegemonia identificada como uma literatura que
desde esse mesmo momento se estabelece como outra ou diferente
desta. Isto supõe na prática histórica do discurso literário a configuração do campo próprio como um cenário de relações de poder, onde se dá por fato certo isoformismo com o campo geopolítico (ou
vice-versa). Charles-Brun em algum momento, 1902, havia reclamado a “autonomia literária das províncias” (posição muito desvalorizada posteriormente). Entretanto já bem antes a havia estabelecido como horizonte para a literatura da Galiza Leandro de Saralegui em uma passagem que logo recolheria Eugenio Carré em sua La
litertura gallega em el siglo XIX (1903): «Galicia, decimos, constituye bajo el doble aspecto indicado, más bien que una parte del
mismo ser moral que los demás pueblos de la Península, un grupo
independiente, una entidad especial, maravillosamente dotada, por
lo mismo, de verdaderos gérmenes de autonomía literaria como tal
102
FERNANDO CABO ASEGUINOLAZA
vez ninguna otra región de España». A autonomia se coloca assim
como horizonte e, portanto, como objeto de uma determinada planificação. O regional se converte por necessidade interna em uma categoria inconsistente com seus pressupostos implícitos.
Claro que esta pretensão de extravasamento do regional não
está livre de conflitos, muitos ligados a determinação filológica dessa forma de regionalismo literário que aspira desde o primeiro momento a transcender-se a si mesmo. É o que Juan Valera denominou
‘regionalismo filológico’, implicando a existência de vários tipos ou
níveis de regionalismo em função de sua vinculação ou não a uma
identidade lingüística diferenciada. Entre as muitas possíveis observações neste sentido, pode ser ilustrativa a posição do escritor de
Córdoba em relação ao galego e a conhecida reação que suscitou
por parte de Manuel Murguía. Segundo Valera, o galego não seria
mais que um dialeto degradado pelo isolamento, enquanto que o
português representaria o ‘galego literário’ e sua ‘língua escrita’,
assim qualifica de artificioso o galego utilizado pelos escritores da
‘literatura regional’. A reação de Murguía se entende, precisamente,
pelo que significa a posição de Valera de retirar da identidade literária ‘regional’ galega a possibilidade de uma língua diferenciada; e é
uma ilustração diáfana dos numerosos conflitos geoliterários -de
repertório ou, melhor, de repertórios sobrepostos- que deve negociar qualquer postulação de autonomia literária, constituída tantas vezes sobre as relações “entre o nascimento, a língua, a cultura, a nacionalidade e a cidadania”, sempre necessariamente conflitivas –
não unívocas- e, como assegura Derrida (1997, 26), fantasmáticas.
São estes somente uns apontamentos sobre proposições de
fundo que afetam aos modelos historiográficos e à escrita da história da literária. Sem dúvida devem ser levados em conta quando se
trata da especialização da história, por muito que se considerem
poucos pertinentes ou superados em contextos como o presente. O
regionalismo literário não é um fenômeno que se pode desviar o
olhar nem o expoente de um localismo depreciável, senão a manifestação de dinâmicas de alcance muito maior onde se deve buscar
sua explicação. Necessita ser considerado pelas novas proposições
historiográfica, de tom quase irremisivelmente espacial, ainda que
seja somente por como condicionou o discurso literário em sua di-
LITERATURAS REGIONAIS E HISTÓRIA LITERÁRIA...
103
mensão mais primária em razão de sua carga programática e de sua
inserção nos repertórios dos sistemas literários.
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FERNANDO CABO ASEGUINOLAZA
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A história da literatura e as trocas e
transferências literárias e culturais
JOSÉ LUÍS JOBIM
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
When it comes to literary history, it is always difficult to discuss on what
grounds should be held the discussion about literary and cultural encounters. Although there is a traditional way of seeing the colonial and postcolonial artistic
systems as evolving from an imitation/influence (the metropolis playing a central
role) to an autonomy/modernization mode of production, this perspective is highly problematic. We will focus on the theoretical issues related to this discussion.
No contexto atual, não é fácil para a história da literatura
trabalhar conceitualmente com os fundamentos dos quadros de referência a partir dos quais se formulam os próprios julgamentos dos
historiadores que a constroem enquanto tal. Um dos aspectos mais
negligenciados, especialmente quando se elaboram histórias de literaturas nacionais é o das trocas e transferências literárias e culturais.
No que diz respeito a estas, no repertório de termos utilizado para
tematizá-las, há alguns termos que são mais freqüentes na área de
Letras do que “trocas” e “transferências”, principalmente nas excolônias ibéricas: “imitação”, “influência”, “autonomia” e “modernização”, por exemplo. É claro que o uso destes termos não é ino-
106
JOSÉ LUÍS JOBIM
cente, e implica um direcionamento de sentidos. Vejamos o que
queremos dizer com isto.
Circula já há muito tempo nas Américas um certo tipo de
discurso que culpa as antigas colônias ibéricas por seu “atraso”. A
referência é freqüentemente econômica, mas contamina também o
modo de ver a literatura e a cultura.
Junto com a idéia do “atraso” vêm também uma perspectiva
de que é necessário superá-lo e uma série de propostas para a “modernização”, no mais das vezes construídas a partir da história de
ex-metrópoles. Cria-se uma imagem de que há uma receita para
passar do “atraso” à “modernização” e de que existem etapas –que
já teriam sido percorridas pelas ex-metrópoles– para sua superação,
sem levar em conta o fato de que é impossível às ex-colônias refazer “etapas” das antigas (ou das novas) metrópoles, visto que teriam
de reduplicar o próprio sistema colonial dentro do qual foram espoliadas no passado (ou são espoliadas no presente).
É importante assinalar, assim, que a idéia de “atraso” da
América Latina pressupõe: 1) um apagamento da relação colonial,
com suas conseqüências econômicas e culturais; 2) uma tentativa de
continuidade de um quadro de referência que coloca as (atuais ou
ex-) metrópoles em uma posição hierarquicamente superior às (excolônias).
Nesta direção, ecoa uma certa linhagem de pensamento, presente inclusive entre nossos historiadores da literatura no século
XX, linhagem esta que trabalha com o seguinte raciocínio básico:
no período colonial, a literatura brasileira teria primeiramente “imitado” a literatura portuguesa; depois, com a independência e com o
Romantismo, teria passado a desenvolver uma dicção própria, “autônoma”, “individual”, etc. É claro que há variações até engenhosas,
como a de Roger Bastide que argumenta que a imitação era um modo político de mostrar que na colônia também havia escritores capazes de produzir à moda metropolitana, com competência:
Para compreender bem a literatura brasileira dos séculos XVII e
XVIII e a influência que a literatura portuguesa exerceu sobre ela,
devemos partir da “situação colonial”. Não basta mostrar que as
“modas” lusas, como a da Arcádia, passavam da metrópole para a
A HISTÓRIA DA LITERATURA E AS TROCAS E TRANSFERÊNCIAS LITERÁRIAS 107
colônia, apesar da diversidade das sociedades, a primeira baseada
na família particularista, a segunda, na família patriarcal. É preciso entender que o “meio interno” explica esse fenômeno de difusão e que essa difusão é, acima de tudo, um protesto político. Na
verdade, ela se reveste mais de suas formas de “cópia servil”
quando o nativismo está se desenvolvendo, quando a opressão econômica se torna mais difícil de suportar, quando em cada cidade, na praça central, erguem-se o palácio do governador e a prisão. Trata-se, portanto, de mostrar que os crioulos podem realizar
obras estéticas tão bem ou até melhor do que os metropolitanos,
que os “nativos” não são “bárbaros”, que devem ser comandados
de fora, mas que atingiram a maturidade estética, que podem se
governar sozinhos. Não é impunemente que a conspiração de Tiradentes contra Portugal recrutou-se entre os escritores que mais
imitavam as modas literárias “lusas”. Vamos encontrar nas literaturas “coloniais” atuais, de língua inglesa ou francesa, o mesmo
fenômeno repetindo-se tanto atualmente quanto no passado.”1
Neste tipo de versão há alguns problemas, começando pela
idéia de afiliação única do Arcadismo a Portugal, pois sabe-se hoje
que, sem prejuízo das relações luso-brasileiras, deve-se considerar o
Arcadismo como “parte de um amplo fenômeno de civilização que
abrange a Itália, a Espanha, a França, Portugal, o Brasil e outros
países.”2 Como aqui não nos interessa recordar os argumentos específicos sobre esta questão, mas, isto sim, lembrar o quadro de referências maior em que ela se enquadra (quadro de referências que
inclui a tese de que, no Brasil, passamos da fase da “imitação”, no
período colonial, para a de “criação”, no período pósindependência, a partir do Romantismo), voltemos ao fio principal
da argumentação, lembrando que ela também é retomada pelos próprios escritores brasileiros no Modernismo. Em 1924, Mário de Andrade escreve em carta a Carlos Drummond de Andrade:
Nós, imitando ou repetindo a civilização francesa ou alemã, somos uns primitivos, porque estamos ainda na fase do mimetismo.
1
2
Bastide, 2006: 266.
Candido, 1995: XIII.
108
JOSÉ LUÍS JOBIM
Nossos ideais não podem ser os da França porque as nossas necessidades são inteiramente outras, nosso povo outro, nossa terra
outra etc. Nós só seremos civilizados em relação às civilizações o
dia em que criarmos o ideal, a orientação brasileira. Então passaremos da fase do mimetismo pra fase da criação. Então seremos
universais, porque nacionais.3
Neste quadro, passar da “fase do mimetismo” para a “fase da
criação” passa a ser visto como relevante, sem que se perceba o
quanto se está reproduzindo uma série de categorias de pensamento
de momentos anteriores da literatura e da cultura brasileira. Quando
o Romantismo passou a combater a poética da imitação e da emulação –poética esta predominante nos séculos XVII e XVIII e que não
esteve vigente apenas na península ibérica–, e qualificou negativamente a atitude de eleger um certo universo de autores e obras como modelos a serem seguidos (ao mesmo tempo em que apontava
para a necessidade de criar obras que espelhassem não um paradigma textual anterior, mas a suposta personalidade única e original do
escritor e do país em que este se inseria), isto significou também o
estabelecimento de um parâmetro regulador da produção literária:
os poemas do Arcadismo, por exemplo, passaram a ser vistos como
“pouco criativos”, ressaltando-se o “mimetismo” implícito na adequação dos textos aos modelos neoclássicos de escritura, de onde
derivariam as regras de elaboração poética dos árcades e à luz dos
quais seriam aprovados ou recusados no século XVIII.
Antonio Candido ressalta a ambigüidade da atitude dos românticos em relação aos árcades, ao mesmo tempo condenando-os
pela subserviência a padrões literários vistos como imitação dos
metropolitanos e adotando-os como referência local, como prova de
que já havia atividade literária no Brasil antes da independência:
Quando focalizamos o nosso Arcadismo, devemos lembrar que
para os românticos ele foi em grande parte um fenômeno de subserviência em relação à literatura metropolitana, e a Metrópole era
algo que logo depois da independência parecia necessário rejeitar
em todos os campos. Mas, ao mesmo tempo, foi tido como prova
3
Andrade, 2002: 70.
A HISTÓRIA DA LITERATURA E AS TROCAS E TRANSFERÊNCIAS LITERÁRIAS 109
de continuidade da vida do espírito no Brasil, além de justificativa
e fonte das manifestações literárias dos próprios românticos, despertando neles, contraditoriamente, muito orgulho de tipo genealógico. Portanto, funcionou na posteridade imediata, senão como
modelo estético (salvo no que toca ao indianismo dos dois épicos), certamente como fator positivo no sentimento de autonomia,
que enformava então o projeto cultural das gerações contemporâneas da Independência ou imediatamente posteriores.4
Claro está que o “atraso” e o “mimetismo” funcionam em
conjunto, para criar uma idéia de que as ex-colônias sempre produzem a posteriori, conforme modelos importados da Metrópole. De
fato, este pensamento ignora uma certa sincronia que existe na produção literária, não somente entre ex-colônias e ex-metrópoles, mas
entre todas estas e outras nações, em momentos históricos diversos.
Mesmo nos primeiros momentos coloniais, na obra de Gregório de
Matos, por exemplo, podemos observar uma série de ligações intertextuais com as obras de Góngora, Quevedo e Tesauro, ligações que
poderiam ser descartadas, caso supuséssemos que suas fontes são
apenas lusas.5 Talvez possamos dizer que já no século XVII havia
uma espécie de cultura literária abrangente e inter-penetrante no
Ocidente, ainda que esta cultura atingisse somente uma elite minoritária em diferentes lugares, assim como hoje é possível que aceitássemos a opinião de que as elites educadas não se limitam às suas
próprias nações de origem, mas movimentam-se através de ambientes –de investimentos, moda, educação, bens culturais– que ultrapassam fronteiras.
No Brasil oitocentista, em termos de práticas sociais de toda
ordem, pode-se observar que houve de fato um nível de continuidade muito pronunciado entre o Estado colonial e o Brasil independente, pois não só as elites administrativas e políticas do país emergente, mas também as próprias bases em que se assentava a excolônia pagaram pesado tributo à situação anterior. Nosso primeiro
e segundo imperadores eram portugueses e os notáveis do Império –
inclusive a intelligentsia que teve um papel importante na criação
4
5
Candido, 1995: XII.
Para um melhor detalhamento, cf. Hansen, 1989.
110
JOSÉ LUÍS JOBIM
da nacionalidade– eram em sua maioria absoluta descendentes de
portugueses. Em outras palavras, depois da independência o sentido
de ser brasileiro ainda é afetado pela ex-metrópole. No entanto, é
bom lembrar também que não existiu nenhuma situação semelhante
à do Brasil, na história do colonialismo: o Rio de Janeiro foi sede
do império português, com a transferência da corte e do rei, na primeira década do século XIX, em um momento decisivo tanto para o
Brasil quanto para Portugal.
De todo modo, avançando no tempo, se examinarmos o pensamento das vanguardas literárias do início do século XX, podemos
constatar que estas muitas vezes reciclaram e radicalizaram elementos já presentes no Romantismo brasileiro.
De fato, ao tratarmos de períodos ou movimentos literários,
é interessante observar como o contexto em que se inscreve o escritor que fala sobre sua poética acaba de alguma forma projetando-se
sobre seu próprio discurso. Ao evocarem ou justificarem as razões
de produzir sua arte de tal ou qual modo, com freqüência os escritores se dirigem a referentes em relação aos quais o sentido do que
estão produzindo se delineia. Assim, se, por um lado, na poética da
imitação e da emulação ficava claro que havia um cânon de autores
e obras que, por serem exemplares, serviam de referência modelar,
por outro lado, principalmente após o Romantismo, emerge uma
noção de produção artística bem diferente. Enquanto a poética anterior valorizava o passado –quer mais imediato, quer mais remoto–,
onde buscava o exemplo, o modelo, os românticos valorizavam a
estética da expressão do eu-autoral, a presença deste eu-autoral na
origem da obra, o presente do artista, em oposição ao passado de
sua arte.
A luta contra as normas neoclássicas no período romântico é
feita, entre outras coisas, alegando-se que o próprio pressuposto de
produzir um novo classicismo –com suas noções de exemplaridade
e uso dos clássicos como modelo– não teria cabimento, pois um novo tempo exigiria uma nova poética. Uma poética do hoje seria
“melhor” do que a do ontem, por definição. De certo modo, este é
um traço comum também às vanguardas do século XX, que declaram obsoleta toda a produção literária anterior e propõem uma “nova” literatura –a delas– como a única a ter valor.
A HISTÓRIA DA LITERATURA E AS TROCAS E TRANSFERÊNCIAS LITERÁRIAS 111
Assim, o que as vanguardas artísticas no início do século
XX faziam era produzir uma certa “descrição” de aspectos do passado, ainda que para denegá-los, selecionando nesta “descrição” o
aspecto (ou aspectos) em relação ao qual desejavam marcar sua diferença. Ao criar essa imagem do passado, para contrapor-se a ela,
constrói-se também uma relação, que poderia ser discutida, começando-se com o que se escolheu para configurar como “passado”,
com uma análise discursiva dos interesses que presidiram as escolhas feitas, e terminando-se com a constatação de que, ao definir a
produção artística do presente por contraste ou por rejeição da produção artística do passado, de certa maneira, as vanguardas também
ecoam a voz de que discordam.
Se quiséssemos pensar em outra chave sobre a relação das
vanguardas do início do século XX com a literatura anterior, talvez
pudéssemos, em vez de tentar ignorar as ligações delas com esta
literatura, levar em conta que estas vanguardas têm com ela uma
relação diferente. Com efeito, muitos grupos do novecentos ainda
têm como referência autores e obras literárias do passado, mas não
como exemplo, como modelo a ser seguido. Como a auto-imagem
do vanguardista é fortemente marcada pela idéia de sua pretensa
autonomia e genialidade, ele não se sente constrangido a acolher
respeitosamente os paradigmas herdados.
Talvez pudéssemos arriscar uma generalização, argumentando que é numeroso o grupo de artistas do século XX que se apropria da tradição de modo lúdico e arbitrário, conforme os interesses mais momentâneos das estruturas artísticas que se constróem.
Assim, parece que, em substituição ao que se propunha nas práticas
da arte ocidental até, pelo menos, a primeira metade do século XVIII –ou seja, em substituição à regularidade e caráter iterativo da emulação, das práticas de imitação que se sucediam, mas traziam um
certo conforto de retorno à esfera do já conhecido–, emerge uma
nova pauta, onde mesmo a integração do já conhecido aspira a ter a
marca do imprevisto, do aleatório, do contingente.
Será que podemos dizer que esta arte do presente, sem a garantia de uma relação regular e estável com a do passado perde totalmente qualquer pretensão à regularidade, à iterabilidade, à recursividade? Talvez fosse mais adequado argumentar que a incorpora-
112
JOSÉ LUÍS JOBIM
ção dos novos elementos na própria operação artística pode constituir também uma regularidade, uma reiteração, uma recursividade,
uma tradição, mesmo que de curta duração.
A partir do século XX, é importante notar também a complexidade crescente das sociedades em que a produção artística se
insere,6 e a crescente facilidade de comunicação, o que permite um
incremento significativo nas trocas e transferências culturais e literárias. O circuito das obras e artistas passa a abranger lugares muito
distantes das grandes cidades e capitais, onde tradicionalmente se
desenvolveu. Também se desenvolvem técnicas e idéias não só para
a criação de novas formas, mas também de novos suportes para a
arte, de novos lugares para expô-la e de novos modos de divulgá-la,
sendo a World Wide Web paradigmática em relação a isto. E paralelamente desenvolvem-se também teorias sobre o que significam as
trocas e transferências literárias e culturais neste novo ambiente,
contrastando com as teorias desenvolvidas em ambientes anteriores.
Visto que nenhuma teoria nasce no vácuo e que todas podem
ser historicamente contextualizadas, sempre é relevante investigar
as comunidades acadêmicas e/ou literárias organizadas em torno de
conceitos compartilhados; a organização de campos a partir de conceitos comuns –pesquisando sua duração, seu lugar, sua relação
com outros campos; a mudança de conceitos, terminologias e quadros de referência disciplinares, como indicativo possível de mudanças nos critérios de objetividade (e, portanto, nos objetos); o
âmbito de sentido dos conceitos e terminologias em seu contexto de
produção, e a diferença entre a recepção destes, naquele contexto e
em outros posteriores; a relação destas mudanças com o ambiente
sócio-cultural em que se inserem, a partir do qual podem ser vistas
como sintoma, efeito, causa, vestígio ou prenúncio de algo; os termos e conceitos cuja reiterada presença e aparente permanência encobrem diferenças de “conteúdo” no seu emprego em diversos períodos; a genealogia, circulação, predominância ou posição secundária de quadros conceituais e terminológicos; o conceito como uma
6
Mesmo dentro do mesmo movimento artístico, a complexidade se manifesta. É
o que Mário de Andrade observa, em carta a Manuel Bandeira (10/11/1926): “E o chamado Modernismo? Mas eu queria saber quem no mundo poderá definir o Espírito Moderno
sem incluir dentro dele as orientações mais díspares!” (Moraes, 2000, p. 322).
A HISTÓRIA DA LITERATURA E AS TROCAS E TRANSFERÊNCIAS LITERÁRIAS 113
forma única de aglutinar e relacionar determinadas referências vigentes em um momento histórico; etc.
As teorias sobre trocas e transferências literárias e culturais,
por conseguinte, também podem ser analisadas em função de seus
lugares de enunciação. Como já disse antes (Jobim, 2004), um lugar
é, antes de mais nada, uma construção elaborada por várias gerações de homens e mulheres que nele habitaram ou por ele passaram,
e que ajudaram a formular o sentido que tem. Ele é constituído por
redes públicas de sentido, formadoras de subjetividade. Nele se
constituem interpretações públicas simbolicamente mediadas, inclusive sobre o sentido deste lugar e sobre o que significa estar inserido nele. Num lugar, circulam elementos que de algum modo impõem sentido às experiências singulares dos sujeitos, elementos em
relação aos quais estes sujeitos interpretam suas experiências (e os
textos que lêem), bem como direcionam suas ações. Em outras palavras, o lugar é sempre fonte de pré-concepções que de alguma
maneira contribuem para a elaboração de nosso dizer, pois nele se
situa o sistema de referências deste dizer –incluindo o universo de
temas, interesses, termos etc. –, sistema que sempre já estabelece
um limite dentro do qual nosso campo de enunciação se circunscreve. Lugares têm sempre história, e mesmo o apagamento de certos
elementos constitutivos da história do lugar também é decorrente de
razões históricas.
Se falo deste lugar a que chamo Brasil, posso presumir também uma qualidade de pertencer a ele, de pagar tributo à memória
histórica de sentidos que se elaborou neste território e que de alguma forma o constitui e me constitui. Se esta memória corporifica-se
em concepções que passam a fundamentar as visões de mundo vigentes aí, pode ser interessante investigar a sua emergência, continuidade, alteração ou substituição. A comparação com outras memórias, geradas em outros lugares, nas Américas ou em outros continentes, por exemplo, pode permitir verificar analogias e dessemelhanças entre o que se institui como “comunidade imaginada” (Anderson) ou “imaginário coletivo” (Bouchard). Os próprios termos
com os quais se denominam os habitantes já integram quadros de
referência elaborados para representar cada um como parte de grupos a que se atribuem características que têm efeitos sociais.
114
JOSÉ LUÍS JOBIM
Foi no continente americano que se denominou os espanhóis
americanos de “criollos”, diferentemente dos “guachupines” europeus, o que, segundo Tamar Herzog (2006: 116) teria ocorrido quase desde o primeiro momento colonial:
A idéia de que os espanhóis americanos (os “criollos”) eram
diferentes dos europeus (“guachupines”) surgiu quase desde o
primeiro momento colonial e consolidou-se com o passar dos
anos. Essa divisão motivou uma série interminável de protestos
“criollos” que realçavam o modo particular de ser, a cultura e os
costumes dos que haviam nascido ou vivido no Novo Mundo.
Como qualquer outra identidade, o “creolismo” era resultado
“automático” do encontro entre a cultura hispânica e as condições
americanas. Servia para distinguir os americanos dos europeus,
por um lado, e dos indígenas e dos africanos por outro. No centro
da identidade “criolla” estavam a religião e o sangue, mas também
a simples convicção de serem diferentes.
É claro que esta “diferença” só emerge como questão a partir deste “novo mundo”, expressão cunhada por Américo Vespúcio
para o lugar em que aportaram os europeus. A presença deles cria
novos sentidos: entre outras coisas, transforma os descendentes de
espanhóis em “criollos” e os espanhóis transplantados em “guachupines”, como na América portuguesa transformou os habitantes nativos originais em “índios” e os imigrantes compulsórios africanos
em “negros escravos”. Em outras palavras: é neste lugar que se
constituem historicamente os sentidos que se cristalizarão, entre outras coisas, naqueles termos designativos de seus habitantes, e no
quadro de referências dentro do qual estar classificado por qualquer
destes termos gera um efeito social diferente, na estrutura que se
estabelece. Assim sendo, se uma das vertentes mais tradicionais do
comparativismo é a comparação de textos emanados de Estadosnações diferentes, torna-se importante, entre outras coisas investigar
o que é então comparado, por que se dá esta comparação, como ela
se faz e para que é feita.
Se queremos investigar isto, para começar, podemos assinalar que nossa atividade é caudatária da própria herança a partir da
qual a investigação se faz, embora isto não signifique que vá reite-
A HISTÓRIA DA LITERATURA E AS TROCAS E TRANSFERÊNCIAS LITERÁRIAS 115
rar os mesmos termos e interesses vigentes em épocas prévias. Em
outras palavras, se nossa indagação remete a alguma representação
coletiva do passado, isto é, remete a algo que poderíamos chamar de
representação de uma memória coletiva que tem efeitos no presente,
então estamos falando de hoje também, quando falamos de ontem.
Ou seja, quando criamos, a partir do presente, um quadro de referências para o passado, estamos também criando algo para o presente, já que as questões e temas evocados como herança e memória
serão as que julgamos (ainda) relevantes agora, e são enfocadas a
partir de teses, teorias, perspectivas que estão vigentes agora. No
passado, criaram-se teorias sobre trocas e transferências literárias e
culturais (embora, é claro, não se usassem estes termos para nomeálas, nem se designassem estas como “teorias”). Se por um lado a
grande maioria destas teorizações serviu a propósitos colonialistas,
por outro lado a simples denegação delas pode tornar mais difícil a
percepção dos resquícios e substratos destas teorizações nas teorias
de hoje.
A revisão crítica das teorias do passado –sob perspectivas
diferentes daquelas de seu primeiro público– também coloca aquelas teorias em novas redes, nas quais elas interagem com outros critérios de relevância, princípios de julgamento, atribuições de qualidade, interpretações etc. No entanto, aquelas teorias do passado
também são uma configuração de sentidos anteriores aos nossos,
que não podem ser percebidos, a não ser que de alguma forma tentemos compreender a perspectiva que o passado tinha sobre si próprio. Isto não significa adotar novamente aquela perspectiva, nos
termos em que ela se colocava então, mas procurar entender como
ela se configurava naquele momento, para sermos capazes de perceber e confrontar sua diferença em relação ao agora. Assim, podese minimizar um dos principais problemas de nossa relação com o
passado: o de julgá-lo exclusivamente com os parâmetros do presente, produzindo veredictos anacrônicos.
Se, como afirma Michel Espagne (1999: 23) uma transferência cultural não é determinada principalmente por uma preocupação
de exportação, mas, isto sim, pela conjuntura do contexto que a acolhe e que determina decisivamente o que pode ser importado ou o
que, dentro de uma memória nacional latente, deve ser reativado
116
JOSÉ LUÍS JOBIM
para servir aos debates do momento, então, quando falamos em
transferências culturais no âmbito do que se chama de “globalização”, devemos considerar que este termo designa sentidos diferentes, se tratamos das transferências culturais no âmbito do Brasil ou
de um país mais “central” no que diz respeito à participação à gerência efetiva da ordem que se estabelece sob o abrigo do termo
“globalização”.
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VEREDAS 10 (Santiago de Compostela, 2008) 117-133
Um Desafio a partir do Sul –
reescrever as histórias da literatura?
MARGARIDA CALAFATE RIBEIRO
Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra
This paper reflects on some of the fundamental questions for the making of a Literary History, and, consequently, reflects on the canon it contributes to build: the principle of inclusion and exclusion lying on the conceptual basis of histories of literature, anthologies, or text compilations; the permeability of the literary genre, which
is able to assume foundational and historiographical texts; the question of the cultural and literary temporariness linked to the political and cultural identity of a country; and, finally, the determination of the social and geo-cultural space literary analysis speaks from, i. e., the space of enunciation.
Numa entrevista que tive o privilégio de fazer à poeta
angolana Ana Paula Tavares perguntei-lhe a certa altura quais eram
as suas heranças, qual era a sua memória literária autobiográfica.
Olhando-me a partir do Sul, falando-me a partir do Sul, disse-me:
Em Angola a nossa relação com o passado histórico-literário não
é esse mar manso e arrumado das histórias da literatura europeia,
com uma data de nascimento e certificado de baptismo. Há várias
hipóteses de certificado de nascimento, e a discussão inicia-se:
será mil oitocentos e quarenta e tal, quando Maia Ferreira
publicou Espontaneidades da Minha Alma –às Senhoras
Africanas ? Ou será antes 1680, com Cadornega, que escreveu a
História Geral das Guerras Angolanas? E o que muitos angola-
118
MARGARIDA CALAFATE RIBEIRO
nos, ainda hoje, dizem seria: “Não, não: Cadornega tem um olhar
de fora, para dentro”. Cadornega chegou a Angola com 17 anos, e
nessa altura, ninguém olha de fora para dentro – aprende a olhar
no lugar onde se insere, e sobretudo aprende a olhar pelos olhos
dos angolanos, a quem ele chamava os seus pretos informantes.
Após a independência, em 1975 –dizia-me ainda Ana Paula Tavares– houve a necessidade de arranjar uma mitologia de referência
e praticou-se o exercício clássico, que já todos os teóricos exploraram, de matar o pai e a mãe, excluír uns, incluír outros na literatura, na história, na nação. Foi assim que recuperámos para a
história da literatura angolana, Castro Soromenho, que tinha nascido em Moçambique, vivido em Angola como administrador colonial, e depois expulso de todos os territórios então ultramarinos,
acabou por morrer no Brasil. E foi assim que também rapidamente
excluímos Mário António –um poeta notável em alguns dos seus
poemas– mas que pagou caro a diáspora que escolheu. E até hoje,
ainda não foi recuperada toda a sua contribuição para a literatura
angolana, nem a sua enorme contribuição para a história de Angola. Escrevendo e publicando documentozinhos, um atrás do outro,
ele foi juntando “Angolana”, que constitui, à falta de melhor, uma
grande parte da nossa história escrita.1
Posteriormente ouvindo José Luandino Vieira num curso
sobre literatura angolana, o escritor do tão aguardado, quão
fabuloso Livro dos Rios, lançava um pronunciamento sereno, mas
potencialmente revolucionário sobre a escrita da história da
literatura do seu país.2 Após falar do que designou como “buracos
negros” da literatura angolana, trazendo a lume o que classificou
como o primeiro texto escrito em Angola registado sobre uma
pedra, onde se anunciava a chegada das “naus do esclarecido rei D.
João Segundo de Portugal”, as cartas do Rei Afonso do Congo, a
1
Agradeço a Helder Macedo a leitura crítica que fez deste artigo e as suas
valiosas sugestões. Ribeiro entrevista, 2007: 147.
2
Colóquio-curso de Literatura Angolana, Centro de Estudos Sociais,
Universidade de Coimbra, 22 e 23 de Junho de 2007. Agradeço a José Luandino Vieira a
autorização da transcrição de algumas das suas declarações, até agora apenas orais, para
este artigo.
UM DESAFIO A PARTIR DO SUL
119
História Geral das Guerras Angolanas, de Cadornega, as cartas de
D. Francisco Sottomayor, governador de Masangano, ao Conselho
Ultramarino e dos seus poemas referidos no espólio pelo padre que
lhe deu a extrema-unção, Luandino Vieira perguntava: “Não é isto
testemunho, de trezentos e tal anos da nossa História? Quer
queiramos quer não, é a nossa História!” E continuava identificando
outros “buracos negros” na historiografia da literatura angolana
mais recente : “Quem é que fala dos escritores ditos coloniais?
Alguém leu um romance chamado Chão de Kuanhama, de um
senhor natural de Angola chamado António Pires?” E ainda na
historiografia mais recente relativamente às Brigadas da Literatura
questionava: “Fala-se das Brigadas Jovens da Literatura de Luanda
ou de Benguela, mas também houve as Brigadas Jovens da
Literatura de N'dalatando, ou em Mbanza Koongo”.
Finalmente citando um belo trecho de Cadornega sobre as
batalhas nas terras dos Muxicongos em que Angolanos lutavam em
defesa do seu reino, Luandino lançava mais um desafio à
historiografia literária angolana ao de seguida citar um discurso de
1982, proferido pelo General António dos Santos França, sobre a
importante batalha contemporânea de Quifangondo. Vale a pena
citar um passo do texto para ver o tom de crónica à maneira de
Cadornega, que Luandino captou:
Com profunda honra e imenso prazer, aceitei escrever esta breve
introdução à presente crónica sobre a histórica e gloriosa batalha
de Quifangondo. Mais além do seu maior significado, o papel decisivo que desempenhou no futuro da guerra, e provavelmente na
Pátria que nascia, a batalha de Quifangondo começava uma das
mais belas páginas da luta de libertação do povo angolano e do
seu braço armado, (...) No espaço de poucos dias, cinco combates
sucessivos uniram na mesma trincheira homens e mulheres angolanos e combatentes internacionalistas cubanos. Por todas estas
razões, e por aquelas outras de dimensão política e militar que o
tempo permitirá analisar profundamente, assim como pela definição do papel de cada homem, de cada revolucionário que teve a
honra de estar presente, constitui para mim um grande privilégio
expressar estas palavras aqui na primeira das tantas obras que a
proeza de Quifangondo há-de inspirar nos analistas, historiadores,
épicos, e na causa inapagável de heroísmo de angolanos.
120
MARGARIDA CALAFATE RIBEIRO
Esta subtil aproximação de dois textos cronologicamente
distantes –trezentos e dez anos separam estes textos– e de géneros
diferentes –uma crónica de batalha e um discurso político
circunstancial –revela porém um mesmo lugar de enunciação
interior, Angola, e a luta de um povo identificado com um
território. O problema que este gesto de Luandino Vieira levanta
liga-se a algumas questões fundamentais para a elaboração das
histórias da literatura e, consequentemente, do cânone que elas
constroem: a questão do princípio de inclusão e exclusão que está
na base da concepção das histórias da literatura, das antologias ou
das colectâneas de textos; a permeabilidade do género literário ao
poder incluir como textos fundadores de uma literatura, textos
historiográficos, mas que em si, como disse Luandino, são
momentos únicos de literatura, e basta pensarmos, na literatura
brasileira com a Carta de Caminha, para ver que assim é; a questão
da temporalidade cultural e literária ligada à identidade política e
cultural de um país; e finalmente, como já referi, a questão de
determinar a partir de que espaço social e geo-cultural a literatura
em análise fala, ou seja, qual é o seu lugar de enunciação. No fundo,
Luandino Vieira mais do que chamar a atenção para o
questionamento do cânone do género literário, estava de facto a
chamar a atenção para o paradoxo dos nacionalismos literários, que
se caracterizam por incluir e excluir autores e obras, misturando
razões políticas e económicas com razões de ordem histórica,
literária e estética, sob pena de assim estarem a eliminar algo que,
do ponto de vista histórico-cultural, é constitutivo da sua identidade.
Leyla Perrone-Moisés, falando a partir dos nacionalismos literários
latino-americanos, reconhece que este paradoxo matricial, que se
caracteriza pela inclusão e exclusão de certos constituintes
identitários, é típico de uma situação pós-colonial,3 entendo aqui
com Elikia M’ Bokolo, na esteira de Balandier, o pós-colonialismo
com uma “situação” e portanto uma fase, da qual eventualmente se
poderá sair.4 Assim, o momento pós-colonial latino-americano
3
Perrone-Moisés, 1997.
Elikia M’ Bokolo, 2006. Georges Balandier fala em 1951 de “situation
coloniale”, como uma situação razoavelmente estável que se poderia reproduzir durante
algum tempo de uma forma idêntica; M’Bokolo fala de “situação pós-colonial”, na esteira
de Balandier, acrescentando-lhe a noção temporalidade, de dinâmica, de fractura, de corte,
e portanto de possível saída, como aliás, da situação colonial.
4
UM DESAFIO A PARTIR DO SUL
121
situar-se-ia no século XIX, como aliás defendem vários teóricos
reagindo à homogeneização do conceito e da situação, promovida
pelas escolas norte-americanas relativamente ao Sul Global como
um mundo pós-colonial. Basta pensar nas situações políticoculturais da América Latina e a multiplicidade de situações em
África, para perceber que assim não é. Mas voltando à questão
lançada por Luandino Vieira, trata-se portanto de conceber a
literatura angolana como uma literatura com quatrocentos anos,
cujo certificado de nascimento, para voltar às palavras de Ana Paula
Tavares seria, a História Geral das Guerras Angolanas, de
Cadornega, ou até, como sugere Luandino Vieira, o texto anónimo
inscrito junto com as cruzes em Ielala, anunciando a chegada das
naus do Rei D. Joao II ou ainda as conhecidas cartas do Rei Afonso
do Congo, também anteriores a Cadornega, considerando-se assim
fundador, e portanto constitutivo da historiografia literária
angolana, o período de encontro com os europeus, a ocupação
litoral, o tráfico esclavagista e a colonização europeia moderna; ou,
de outro modo, e como até aqui se tem procurado fazer, considerar
a literatura angolana como uma literatura com mais ou menos um
século, o tempo em que se começa a esboçar uma identidade
literária, de matriz europeia e africana, conectável com um desejo
de autonomia proto-nacionalista e depois nacionalista,
retrospectivamente percepcionado.
Daí que, e para voltar às palavras de Ana Paula Tavares, a
geração de críticos angolanos ou moçambicanos pós-independência
e de outros estudiosos destas literaturas se tenha dedicado não apenas a narrar a história destas literaturas, à maneira das histórias da
literatura europeias tradicionais, ou seja, cronologicamente por períodos ou fases, mas sobretudo a identificar o objecto literário das
novas nações. Artigos como “Literatura moçambicana o que é?”, de
Fátima Mendonça, Império, Mito e Miopia. Moçambique como invenção literária, de Francisco Noa, as crónicas de Luís Carlos Patraquim em Moçambique ao longo da década de 80, a actividade da
União dos Escritores Angolanos sob a direcção de José Luandino
Vieira até aos anos 90, os ensaios seminais de Mário António, Gerald Moser, Manuel Ferreira, Russell Hamilton, Michel Laban, Laura Padilha, Pires Laranjeira, Luis Kandjimbo, entre outros, ou as
mais recentes tentativas de sínteses de Patrick Chabal, Hilary
122
MARGARIDA CALAFATE RIBEIRO
Owen5 e outros estudiosos, reflectem arduamente, e de forma diversa, sobre o possível cânone destas literaturas e para ele contribuem,
ao identificarem aquilo que Antonio Candido, referindo-se à literatura brasileira, designou como o “sistema literário”. Mas a pedra de
toque desta narrativa histórico-literária reside ainda na questão que
Luandino subtilmente levanta, e que Ana Paula Tavares tão bem
enuncia: qual é o certificado de nascimento, quando e como se começa a narrar a história literária de Angola, quem são os seus actores?
E volto então à imagem do mar manso a que se referia Ana
Paula Tavares na entrevista que comecei por citar, falando das
histórias das literaturas europeias, e vem-me à memória a história
da literatura portuguesa por onde estudei, com o tal certificado de
nascimento, baptismo e desenvolvimento posterior por fases ordenadas, possíveis de descrever como se aqui não houvesse –como
há– sobressaltos. Refiro-me à História da Literatura Portuguesa, de
Óscar Lopes e António José Saraiva. Publicada pela primeira vez
em 1953 e re-publicada inúmeras vezes em edições revistas ao longo de cinco décadas, esta História da Literatura Portuguesa –e
apesar das conhecidas edições escolares que circulavam no ensino
técnico e liceal durante o Estado Novo6– tornou-se o instrumento de
estudo e análise do imaginário histórico-literário português para gerações de portugueses. Curiosamente escrita por dois oposicionistas
ao regime de Salazar, esta história da literatura sobreviveu à ditadura, ultrapassou a revolução de 25 de Abril de 1974 e todas as sucessivas reformas de ensino e continua em 2007 a ser tida como referência, hoje ao lado das iniciativas de Carlos Reis e de Isabel
Allegro de Magalhaes.7 Poderíamos pensar que as sucessivas reedições trariam grandes mudanças e daí a sua longevidade e se é certo que há mudanças e actualizações (basta comparar os índices e as
notas introdutórias), elas acabam por ser mais circunstanciais do
que fundamentais. Todavia, esta história da literatura problematiza
os períodos literários, e inclui e reflecte criticamente sobre grandes
escritores que, numa visão mais apertada e esclarecida da censura
5
No caso do trabalho de Hilary Owen refiro-me apenas ao estabelecimento de um
cânone de literatura escrita por mulheres em Moçambique, veja-se em Owen, 2007.
6
Sobre isto ver Teresa Seruya e Maria Lin Sousa Moniz, 2001.
7
Isabel Allegro Magalhães, 1997-2007.
UM DESAFIO A PARTIR DO SUL
123
durante o regime salazarista, poderiam ser considerados potencialmente subversivos e, portanto, excluídos do cânone, que, por inclusão e exclusão, qualquer história da literatura constrói.8 Sem
dúvida que o fechamento cultural e político do país provocado pela
ditadura e a sua correspondente universidade, por um lado, e a versatilidade prática e a competência científica desta História da Literatura Portuguesa, por outro lado, contribuem para explicar o atraso e mesmo retracção da crítica portuguesa em abordar as questões
que, no campo da literatura e da teoria literária começaram a ser
formuladas no final dos anos 60. O boom teórico desenvolvido trazia em si o questionamento do próprio objecto literário –o que era
afinal literatura– e dos limites da disciplina. No domínio das histórias da literatura estas mudanças e questionamentos levaram a uma
profunda desestabilização e problematização dos cânones, tanto na
Europa, como, de outra forma, na América Latina. Consequentemente, a procura de tudo o que estava fora do cânone, por um lado,
e, por outro lado, a leitura crítica da crítica literária até então produzida, avançando assim com leituras mais ousadas, menos positivistas, menos excludentes e sobretudo menos reprodutivas das já existentes, tornou-se uma prática. Em Portugal, este primeiro questionamento veio pela mão de vários estudiosos que se encontravam em
academias estrangeiras. Relembro só, a título de exemplo, e muito
rapidamente, a recuperação de textos e a atenção dirigida a áreas até
então inexistentes, como a literatura escrita por mulheres, ou as leituras críticas de textos e escritores canónicos, como os cancioneiros
medievais, as crónicas da expansão ou de Fernão Lopes, Camões,
Bernardim Ribeiro, Oliveira Martins ou Fernando Pessoa. As leituras então avançadas por críticos como Luís de Sousa Rebelo, Jorge
de Sena, Maria de Lourdes Belchior, Helder Macedo, Eduardo Lourenço entre outros vieram desestabilizar o mar manso dos estudos
portugueses medievais, renascentistas, modernos e contemporâneos
e ainda hoje elas afirmam uma diferença crítica cultural dentro da
crítica universitária portuguesa.
A partir do final dos anos 60, princípios dos anos 70, mercê
das grandes transformações geo-políticas, sociais e culturais –a descolonização, primeiro na Ásia, depois em África, os movimentos
8
Ver Regina Zilberman [s.d.].
124
MARGARIDA CALAFATE RIBEIRO
sociais da América Latina, os feminismos, as lutas pelos direitos
civis dos negros na América do Norte e tantas outras convulsões– o
mundo abria-se à pluralidade9 e os grandes questionamentos teóricos impunham-se. Na literatura, na historiografia, na sociologia, e
nas ciências sociais e humanas em geral começava-se a questionar,
primeiro de forma dispersa e depois de maneira sucessivamente
mais sistematizada, sobre tudo o que é que os “cânones” das várias
disciplinas tinham deixado de fora e, consequentemente, sobre as
próprias identidades das várias disciplinas. Assim começaram a
surgir dentro da Europa, mas também fora dela, os pensadores alternativos, e desde então como ironicamente refere Regina Zilberman, “a reflexão sobre o que se deixou de fora tem sido matéria da
história da literatura nos dias de hoje”.10
Relativamente à literatura podemos mesmo dizer que para
além do questionamento das histórias da literatura excessivamente
eurocentradas, tratava-se da mutação do próprio objecto de estudo
da literatura, numa linha aliás próxima do que na historiografia se
veio a designar como “nova história”, em que, como assinala Le
Goff, se lança o questionamento não só sobre as perspectivas e o
modo de narrar a história, mas sobre o próprio objecto de estudo da
história, ou melhor sobre a pluralidade de objectos de estudo11 que
o estudo da história e, por extensão, acrescento eu, da literatura, envolveriam. A atenção que a partir de então se passou a dar à história dos homens e mulheres comuns e dos seus quotidianos contra
uma história feita de heróis, reis e feitos militares, o reconhecimento das mulheres como sujeitos históricos nomeadamente na historiografia das grandes guerras mundiais e, no campo da literatura, a
atenção que se passa a dirigir para uma literatura escrita por mulheres, o reconhecimento de uma literatura feminista, de minorias
étnicas ou sexuais, de uma literatura de cordel e de outros textos
anteriormente considerados exteriores à literatura, ou seja, um reconhecimento de tudo o que o cânone tinha excluído, são exemplos
da mutação e da multiplicação do objecto de estudo. Estas aberturas
teóricas reflectem também as novas textualidades ou textualidades
9
10
11
Ver Ana Pizarro, 2006: 26
Regina Zilberman [s.d.].
Ana Pizarro, 2006: 28.
UM DESAFIO A PARTIR DO SUL
125
emergentes que iam surgindo e que levaram António Candido a falar de “textos indefiníveis”: “romances que parecem reportagens,
contos que nao se distiguem de poemas ou crônicas (...) autobiografias com tonalidade e técnica de romance; (...) textos feitos com justaposiçao de recortes, documentos, reflexões de todo o tipo”.12 E
penso que é de facto a partir do Sul, na pléiade de pensadores da
cultura latino-americanos, que vão de Jose Martí a Roberto Fernández Retamar, de Antônio Candido a Ángel Rama e outros desta importante geração, que inseriram as expressões literárias e culturais
dos seus países nos respectivos contextos nacionais políticos e sociais, que é lançado o grande desafio global. Tratava-se de um desafio não só à América Latina –que então se descobre e se enuncia
como sujeito e produtor cultural múltiplo– mas à própria Europa,
onde os limites do literário se expandem e passam a incluir estas
novas textualidades e estes novos sujeitos, não como excolonizados, mas como pares, criadores de expressão diferente, independente e perfeitamente autónoma de si própria, ou para usar
uma expressão metafórica cara a esta “história de família”,13 uma
literatura produzida pelos “filhos de Colombo”, que transladados da
Europa para o Novo Mundo e aí reterritorializados, “inventaram um
outro Ocidente”,14 transculturalizando-se, para assim voltar ao estruturante conceito veiculado por Ángel Rama.15
O trabalho de identificação, reconhecimento e posterior desconstrução e reconstrução dos factos histórico-literários que os trabalhos destes pensadores trouxeram, bem como as referidas convulsões teóricas europeias e a simultânea construção da América
Latina como um espaço político alternativo à crescente hegemónia
norte-americana, particularmente com a Revolução Cubana, foi sem
dúvida o primeiro passo de emancipação cultural democrática dos
intelectuais latino-americanos. Assim se construíu o húmus onde a
cosmopolita e teoricamente viajada –até porque muitas vezes exilada– geração de Roberto Schuwarz, Silviano Santiago, Ana Pizarro,
12
Antônio Candido, 1995: 310.
A expressão é de Doris Sommer (1990) e é re-utilizada por Leyla-PerroneMoisés (1997) e por Eduardo Lourenço 2005.
14
Eduardo Lourenço, 2005: 16.
15
Refiro-me ao conceito desenvolvido pelo autor em Transulturación narrativa en
América Latina.
13
126
MARGARIDA CALAFATE RIBEIRO
António Cornejo Polar, Beatriz Sarlo entre outros, vai colher e erguer o passo definitivo da transformação na forma de dar conta da
narrativa da história literária dos seus países e do continente. A partir do que Silviano Santiago irá definir como o entre-lugar latinoamericano16 –que ao romper com a noçao eurocêntrica dos processos culturais latino-americanos, concede ao continente um lugar
próprio de enunciação– tudo é posto em questão. O boom de teoria
que caracteriza esta fase da vida cultural latino-americana reflecte a
procura de caminhos para uma narrativa outra, que coloca sob suspeita a narrativa clássica da história e, no caso que aqui nos ocupa,
das histórias da literatura, como se de uma hora zero se tratasse.
Basta ler os interessantes ensaios de Ana Pizarro sobre esta matéria
e sobre a construção da importante obra colectiva América Latina:
palavra, literatura e cultura para ver a riqueza e a novidade dos debates em torno do lugar de enunciação de uma literatura, do fenómeno literário e a forma de o interpretar e historicizar, em resumo e
para re-utilizar um conhecido título de Roberto Schwarz, para colocar as “ideias no lugar”.17 Como refere Ana Pizarro, assinalando a
ruptura promovida pela sua geração, ao propôr uma alternativa aos
modelos críticos europeus da historiografia literária:
Devemos à historiografia tradicional a construção de um corpus.
Ainda que discutível, ele é um ponto de partida fundamental. No
entanto, na linha que viemos desenvolvendo, de ruptura com todo
o tipo de determinismo, a grande referência é a Formação da Literatura Brasileira (1959), de Antônio Candido, um clássico de
nossa historiografia contemporânea (...).
Mas o problema agora é outro. “É possível”, nos perguntamos com Beatriz Sarlo, “captar a densidade semântica feita de cruzamentos sociais, ideológicos e estéticos de um período?’ Este é o
grande problema que se impoe ao historiador da literatura e da cultura e parece não haver respostas definitivas: há tentativas de coerência, há propostas. Daí a importância de que existam sempre
empreendimentos.”18
16
Ensaio de 1971, publicado em Uma Literatura nos Trópicos –ensaios sobre
dependência cultural.
17
Ana Pizarro, 2006; Roberto Schwarz, 1977.
18
Ana Pizarro, 2006: 35.
UM DESAFIO A PARTIR DO SUL
127
Nos anos 80 com o advento dos estudos pós-coloniais, inspirados pelo pronunciamento crítico lançado por Edward Said e por
outras vozes vindas de outras designadas periferias culturais, a reflexão crítica intensifica-se e espalha-se aos mais variados campos
do conhecimento, procurando desta vez a história, a palavra e o rosto de todos aqueles sujeitos e produtores de cultura que ficaram excluídos da história do Ocidente, aquele que até então detinha o poder de narrar a história. Movimentos vários a partir de diferentes
lugares de enunciação despoletam esta profunda revisão epistemológica do mundo: por um lado, os questionamentos teóricos inerentes à matéria em estudo advindos do mundo europeu e dos pensadores alternativos das suas grandes universidades, por vezes “perdidos” na redefinição não só do seu objecto de estudo, mas também
das fronteiras do seu próprio campo de estudos;19 por outro lado, os
questionamentos vindos da designada periferia, nomeadamente da
América Latina, da Índia e da África, ou seja, do que hoje designámos por Sul Global. Mas se em África os movimentos de intelectuais se congregavam à volta das lutas pela libertação do jugo colonial rumo a uma descolonização política, e se a Índia, a partir do
grupo dos Subaltern Studies, visava o questionamento da colonialidade do poder e a luta pela autonomia total, os movimentos sociais
e culturais da América Latina discutiam intensamente a sua identidade, interrogavam a sua “dependência cultural”, para re-utilizar a
expressão de Silviano Santiago no seu importante título, Uma Literatura nos Trópicos –ensaios sobre a dependência cultural e pugnavam por um quadro epistemológico capaz de descrever as suas
diversidades e as suas especificidades.
A urgência em escrever a história dos excluídos da grande
narrativa do Ocidente –aqui entendidos como sujeitos subalternos,
ex-colonizados, sem história– e de analisar criticamente a historiografia influenciada pelo colonialismo, converteu-se no dado intelectual de luta por uma descolonização global: uma descolonização
política, do saber e do poder em todo o mundo, como bem mostra
Shelley Walia, em Edward Said y la Historiografia.20 Tratar-se-ia
19
Refiro-me aos designados Estudos Culturais e toda a polémica envolvente, que
não interessa aqui desenvolver. Sobre esta questão ver António Sousa Ribeiro e Maria
Irene Ramalho, 1998.
20
Shelley Walia, 2004.
128
MARGARIDA CALAFATE RIBEIRO
assim de conceber os estudos pós-coloniais como o grande desafio
das novas modernidades emergentes –como defende o antropólogo
Don Robotham21– ideia aliás confirmada por aquilo que se poderia
chamar o segundo passo político –com grande visibilidade pública–
do mundo pós-colonial: o momento em que o Ocidente quis comemorar Colombo e os cinco séculos da sua descoberta da América e
a América quis “matar Colombo”, não apenas pela mão daqueles
que a chegada de Colombo exterminou, mas também por aqueles
que a aventura de Colombo transladou da Europa para o Novo
Mundo. Nesse momento, como sublinhou Eduardo Lourenço, o
continente descoberto por Colombo «reescreve a sua própria história e remeta-a para a hora-zero de uma “outra história”». Não se trata portanto do fim da História, mas de uma mudança da ordem da
História, narrada a partir de múltiplos lugares e sujeitos e do fim,
sim do Ocidente como mito, ou seja, como a luz do mundo que julgava ser quando chegou as terras de Porto Seguro.22 Mas não se trata também da história narrada pelo Índio, o verdadeiro vencido da
acção colonizadora instituída pela chegada da Europa ao Novo
Mundo, nem do negro, involuntariamente transladado para o Novo
Mundo, mas a de um “ex-europeu perdido na sua Descoberta”.23 As
vozes da subalternidade índia e negra, faziam parte do ruído de fundo de todo este passo, mas a sua luta era para que se fizessem
também ouvir, uma luta inscrita na união de vozes de um subalterno
Atlântico Sul que se une à dorida e dolorosa África em luta contra
todas as formas de colonização de que é vítima, e cujos sujeitos não
podem matar o pai, orfãos que foram de uma Europa colonizadora e
hoje de um pós-colonialismo, também ele orfão, da Guerra Fria.
Não se tratava portanto de defender a ideia cara a alguns teóricos do
pós-colonialismo, de que os subalternos não falavam ou não podiam
falar. Como defende Laura Padilha, eles sempre falaram,24 nunca
foram foi ouvidos, o que é substancialmente diferente. Tratava-se
antes e portanto de revelar o historicamente longo e profundo momento de surdez do Ocidente, que só quando viu o seu Colombo
morto nas mesmas praias onde há cinco séculos aportara em ritmo
21
22
23
24
Don Robotham, 2007.
Eduardo Lourenço, 2005: 16.
Eduardo Lourenço, 2005: 27.
Laura Padilha, 2007.
UM DESAFIO A PARTIR DO SUL
129
de Descoberta, percebeu que havia outros actores desta história aparentemente comum, mas de memórias tão diferentes.
Assim aquando deste apelo dos estudos pós-coloniais se os
latino-americanos tinham avançando para o que vieram a designar
por “La Razón Postcolonial”, nas palavras de Walter Mignolo,25 a
África de língua oficial portuguesa encontrava-se na fase que Elikia
M’Bokolo designou como “situação pós-colonial”, uma fase de
inscrição no seu imaginário literário da diferença cultural que
justificara e reclamara a independência política, formalmente
obtida, mas não culturalmente sentida. E é este facto que leva a que
nesta “situação pós-colonial” só sejam reconhecidos como textos
canónicos da literatura angolana, por exemplo, textos que em si
inscrevem essa diferença cultural imediatamente conectada com a
emancipação política, e sejam rejeitados textos que liguem o
território angolano com à antiga potência colonizadora, gerando
assim aquilo a que Luandino Vieira chamou de alguns dos “buracos
negros” da história da literatura angolana, que desta forma rasura
partes constitutivas da sua identidade.
Mas como bem adverte Laura Padilha num ensaio
significativamente intitulado “A diferença interroga o cânone”, outros “buracos negros” são gerados por este cânone politicamente
correcto. E denuncia, perguntando: “onde estão as mulheres, onde
estão os negros? Será este ‘canône’ reprodutor do tal outro ocidental masculino, branco, revestido de vestes e vozes africanas? Por
que razão se insiste em apontar um centro que apaga as diferenças?26 Como o pronunciamento de Luandino Vieira inicialmente
apontado, também a questão aqui lançada por Laura Padilha é
potencialmente revolucionária. Ela contém em si o questionamento
da própria definição de cânone, da língua em que esse cânone é
veiculado (e que constituirá ela própria um cânone), e chama a
atenção para muito que ele deixa de fora: toda a tradição oral, que
como sabemos influencia o cânone literário escrito, tanto na Europa
–e basta pensarmos nas vozes femininas das cantigas de amigo –
como em África– e basta, por exemplo, olharmos para o trabalho de
etnologia convegrtido em literatura por Mia Couto.
25
26
Walter Mignolo, 2005.
Laura Padilha, 2002: 169.
130
MARGARIDA CALAFATE RIBEIRO
Será que, por sua vez, a “razão pós-colonial” latinoamericana contempla esta série de questões? Podemos dizer
generosamente que está atenta a elas, mas não faz delas o seu centro
de preocupações. A “razão pós-colonial” latino-americana por
oposição à razão moderna, revela o pensamento daqueles que vivem
sobre fortes heranças coloniais, mas na verdade não se opõe à razão
moderna, apenas reclama a sua inclusão na modernidade que define
a Europa como centro das periferias que lhe conferem esse estatuto,
ou seja, pretende a inclusão das periferias como parte da definição,
como defende Enrique Dussell.27 Um outro ponto importante da
“razão pós-colonial” é o da deslocação não só do lugar da
enunciação, mas também do sujeito da enunciação do conhecimento
do primeiro mundo para o terceiro mundo, para finalmente
concluírem antes que a “razão pós-colonial” surge de uma aliança
entre a produção cultural do terceiro mundo e a imaginação teórica
do primeiro. Ora esta ideia de que por um lado, não há modernidade
sem colonialidade e, por outro lado, da deslocação do sujeito de
enunciação, mas nem sempre do local de enunciação, leva estes
pensadores a reflectirem sobre a geopolítica do conhecimento, nos
termos que António Quijano, filósofo mexicano, define como a
“colonialidade do saber” e a “colonialidade do poder”, ou seja do
domínio do conhecimento do norte sobre o sul, reflexão que é hoje
um dos objectos centrais do pensamento pós-colonial de inspiração
Ora
todas
estas
questões
trazem
latino-americana.28
fundamentalmente outros aspectos da descolonização. Trata-se de
uma descolonização do saber e do poder e de uma descolonização
das representações dos sujeitos, ou seja, uma descolonização da
representação do descolonizado e da representação do
descolonizador, como noutro contexto prefigura S. Sayyid.29
Consequentemente, estamos a falar de outro tipo de póscolonialismo. Por isso, como bem adverte Roberto Morales, precisamos de reflectir sobre se somos todos pós-coloniais e em que sentido ou sentidos diferentes o somos,30 pois isso tem os seus profun-
27
28
29
30
Enrique Dussel, 2001.
Aníbal Quijano, 2000.
B Sayyid, 2006: 19-20.
Roberto Morales, 2006.
UM DESAFIO A PARTIR DO SUL
131
dos reflexos nas narrativas que produzimos, sejam elas histórias literárias ou de qualquer outra matéria.
Neste princípio de século em que o tempo europeu não é
mais sinónimo de tempo universal, em que as teorias pós-coloniais
e as práticas literárias de Garcia Marquez, Vargas Llosa, Guimarães
Rosa, Assia Djebar, Salman Rusdhie, V.S. Naipaul, José Luandino
Vieira, Manuel Rui, Mia Couto e tantos outros têm transformado
não só a nossa visão dos processos coloniais, como estão também
desafiando o conceito ocidental de conhecimento ao estabelecer ligações epistemológicas entre o lugar geocultural e a produção teórica, ao contar o outro lado da história europeia, ao apresentar afinal
toda a história da modernidade europeia como uma história local
que se desenvolveu à escala planetária, como poderemos nós europeus continuar a não ouvir o barulho do mundo e a construir mansamente as nossas histórias da literatura quando afinal grande parte
da nossa história se passou fora da Europa, como nos dizem todos
os desafios teóricos, narrativos e epistemológicos do Sul global?
O desafio lançado por José Luandino Vieira à historiografia
literária angolana, e ao seu possível cânone, não se limita portanto à
historiografia literária angolana, ele funciona também como uma
espécie de “the empire writes back to the centre”, na célebre expressão de Salman Rusdhie tão cara aos teóricos do póscolonialismo. Genuinamente interessado em perseguir as criações
desse lugar que se enuncia como Angola, onde há muito se começam a tecer outras vozes em língua portuguesa escrita, Luandino
Vieira subtilmente e, ao mesmo tempo, pisca o olho e parodia o ‘olhar sphyngico e fatal’ de Fernando Pessoa, pelo que também ele
deixa de fora, questionando-nos a nós portugueses: Como poderemos continuar a contemplar quase num capítulo à parte, como um
apêndice incómodo e não constitutivo da nossa identidade, a literatura designada de colonial, que afinal nos conta grande parte da
história de Portugal passada noutras paragens? Onde também nós
portugueses colocaremos Cadornega, os poemas de D. Francisco
Sottomayor ou os escritores ditos coloniais?
Como dizia Angel Rama referindo-se às histórias da literatura latino-americanas de inspiração europeia, “a organicidade rápida
e mecânica das histórias da literatura europeia” –que geram a tal
132
MARGARIDA CALAFATE RIBEIRO
imagem de mar manso evocada por Ana Paula Tavares– “impediram-nos de avançar logo para uma interpretação local, própria e
original dos sistemas literários designados como nacionais”,31 mas
foi esse o caminho traçado pelas gerações seguintes. No entanto,
pós-colonialmente falando, ele enriquecer-se-á e produzirá novos
sentidos quando em diálogo com um imaginário mais abrangente
em que a língua e a tal história comum de memórias diferentes nos
devolvam as imagens múltiplas de rostos pretensamente singulares.
Cartografar o retrato deste rosto fundador da nossa póscolonialidade não pode prescindir da abertura de uma outra espécie
de arquivos literários, históricos e culturais e de outras leituras geograficamente deslocadas onde, para voltar a Camões, se registam
outros “costumes”, onde se guardam outras “leis” e de onde emana
a força de outros “reis” e de outros “conhecimentos”, que hoje nos
compoem a todos.
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31
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VEREDAS 10 (Santiago de Compostela, 2008) 135-148
A construção da memória
MARIA DE FÁTIMA MARINHO
Universidade do Porto
Having been despised by Literature since the vanguard demonstrations, History
has taken on, since the second half of the 19th century, an importance and a role
that can be ignored with difficulty. If the aim of the authors who use History in
texts which do not aspire to being seen as scientific and rigorous studies is to legitimize behaviors, options, or even national codes that call for a construction of
a likely –but not necessarily real– past, then we should not be surprised at the
publication of texts, of doubtful credibility, but which have indisputably been the
founders of essential paradigms.
The historical novel of the 19th century, even when it aspired to teach history to a
wealthy but uncultivated audience, emanating from a revolution or its aftermath,
has never ceased to adapt its avowed didactic objectives to aesthetic and literary
interests, which has caused unavoidable anachronisms.
It was only when historical studies dropped its claim for the immutability which
is characteristic of positivism, having thus accepted the relativity of historical
events and of their questioning, that Literature has realized that it could, legitimately, explore the silenced interstices and the hidden secrets that were signaled
in all the unspoken words and all the unclarified situations.
A História, desprezada pela Literatura desde as
manifestações vanguardistas, assume, a partir da segunda metade de
novecentos, uma importância e um papel difíceis de ignorar. Se os
propósitos de quem usa a História em textos que não pretendem
propriamente fazer estudos científicos e rigorosos, é o de legitimar
comportamentos, opções ou, até, códigos nacionais, que necessitam
da construção de um passado, verosímil, mas não necessariamente,
136
MARIA DE FÁTIMA MARINHO
verdadeiro, então não será de estranhar que apareçam textos, de
credibilidade duvidosa, mas, inegavelmente, fundadores de
paradigmas essenciais.
O romance histórico, mesmo quando pretendia ensinar
história a um público endinheirado mas inculto, saído de uma
revolução ou das suas consequências, não deixou nunca de adaptar
o intuito confessadamente didáctico a interesses estéticos e
literários, que lhe criavam anacronias inevitáveis.1 No século XIX e
nos primórdios do XX, autores como Alexandre Herculano ou
Arnaldo Gama bem insistiam na fiabilidade dos seus escritos e na
reconstrução das outras eras, embora também não deixassem de,
timidamente, aludir às liberdades a que, por vezes, se viam
obrigados a deitar a mão, sob pena de tornar enfadonha,
incompreensível ou lacunar, a narração que pretendiam levar a
cabo. Já Camilo Castelo Branco pouco se incomoda com a pretensa
obediência a manuais, documentos ou crónicas, apesar de,
frequentemente, querer mostrar uma erudição que está longe de
possuir ou de transpor para os seus escritos. Assumindo voluntária e
conscientemente, a faculdade de efabulação, ele chega a modificar
dados estabelecidos, como em O Judeu ou em O Regicida, apelando
para a superioridade da ficção.
À medida que os estudos históricos deixaram de se arrogar
aquela imutabilidade própria do positivismo, aceitando a
relatividade do acontecimento histórico e a sua questionação, a
literatura percebeu que poderia, com toda a legitimidade, explorar
os interstícios silenciados, os segredos escondidos, que lhe
acenavam em todas as palavras não ditas e situações não
esclarecidas. É a possibilidade de sugerir a complexidade da
natureza humana, como escreve Gérard Gengembre2 e de apelar
para o papel inquestionável da memória, tanto mais transgressiva
1
2
Cf. Maria de Fátima Marinho, 1999 e 2005.
Cf. Gérard Gengembre, 2006: 12: «On peut aussi comprendre le rapport intime
et subtil entre Histoire et roman en mettant en évidence la capacité de l'écriture romanesque de nous suggérer les complexités de la nature humaine. Pour être historiquement
situé, l'être humain n'en obéit pas moins à des sentiments, des passions, des désirs constants, sinon éternels.»
A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA
137
quanto individual.3 É essa memória, geradora de uma busca
incessante da identidade, que vai ter um lugar fundamental nas
relações entre a literatura e a história, sempre que aquela se
predispõe a falar desta,4 isto é, desde que se percebeu a necessidade
de repetir a História,5 mesmo se de forma velada ou inovadora.
O romance das últimas décadas parece-se estranhamente
com o que o antecede e, simultaneamente, afasta-se
irremediavelmente desse mesmo modelo que parece preservar.
Assente num paradoxo aterrador, mas estimulante, o romance joga
com o tempo e suas coordenadas, como joga com as semelhanças
especulares de personagens e pessoas e com modos de interpretar e
iludir os enredos repetidos e renovados.6 A transcrição ficcional da
História favorece um processo de re-empenhamento da escrita, que
pode ser ético ou estético,7 e que pode ajudar a criar uma relação de
ambiguidade entre o homem e o mundo,8 na medida em que,
raramente, aquele se sente em total consonância com a descrição
que deste é feita. É que, na realidade, não há coincidência entre o
3
Cf. Brigitte Krulic, 2007: 234: «À l'évidence, le roman historique n'a pas échappé à l'hypermnésie de sociétés hantées par un problématique "devoir de mémoire" qui, de
fait, consacre la fin de l'Histoire telle que l'avaient léguée le XIXe et le premier XXe siècle.
La mode actuelle de la généalogie, le succès du genre biographique, la démultiplication, la
décentralisation et la démocratisation des institutions de conservation de la mémoire, le
succès non démenti de la fiction historique sous toutes ses formes participent du même
souci: affirmer l'égale légitimité des mémoires particulières qui réclament leur propre histoire, mais aussi souligner la place qu'occupe la mémoire dans les processus de formation
de l'identité individuelle et collective.»
4
Cf. Gérard Gengembre, 2006: 17-18.
5
Cf. Jean-François Hamel, 2006.
6
Cf. Emmanuel Bouju, 2006: 202: «C’est de cette façon seulement que j’ai voulu
appréhender certains des paradoxes auxquels nous sommes confrontés: celui d’un rapport
au passé qui privilégie le détour, la référentialisation indirecte, la superposition des
époques; celui d’un roman qui au tournant du XXIe siècle demeure familier des modèles
d’hier, sans cesse appelés à être remotivés; celui d’une littérature qui cherche volontairement dans son propre répertoire les moyens d’affronter les défis du dicible suscités par
l’histoire.»
7
Cf. Emmanuel Bouju, 2006: 185: «Et de façon plus générale, l’ambition d’une
transcription fictionnelle de l’histoire entraîne souvent un processus de ré-engagement de
l’écriture, sur le mode d’une figuration textuelle du geste par lequel l’écrivain s’expose au
jugement du monde. L’imitation ostensible d’une scène histroriographique – dont j’ai déjà
indiqué la prégnance – peut d’ailleurs fort bien être considérée sous cet angle, autant
éthique qu’esthétique.»
8
Cf. Gisèle Séginger, 2005: 11: «Dans les écritures de l’histoire se manifestent les
ambigüités de la relation de l’homme au monde.»
138
MARIA DE FÁTIMA MARINHO
que o leitor pensa, faz, e o que o texto, verdadeiramente,
representa,9 na medida em que a tentação da ucronia e a da
contrafactualidade se completam, sem se tocarem, dando luz a
textos díspares, onde se pode ver a construção de mundos possíveis
como se fossem reais, ou de mundos possíveis, mas com a marca do
condicional, que lhes imprime a contrafactualidade.10 Se Os Infiéis,
de Fernando Dacosta pode ser um exemplo de ucronia, na medida
em que o lugar onde se situa a acção é «Inlocalizavel nos mapas»,11 e
as personagens sentem que estão a entrar «num espaço fora das leis do
tempo»,12 nos romances de Mário Cláudio, de que pode ser exemplo
A Quinta das Virtudes, usa-se de preferência o condicional,
instaurando, de certo modo, o contrafactual, hipotético, mas
convincente. A ambiguidade entre a ilusão do real e a certeza da sua
impossibilidade cria a instabilidade no leitor, que percebe as
incoerências profundas e as aceita, sob pena de recusar a lisibilidade
do texto que se lhe oferece,13 e que tem como tarefa representar o
irrepresentável.14
Mas, contudo, o irrepresentável pode muito bem ser também o
da literatura, de tal forma eles se podem confundir,15 numa
reversibilidade perigosa mas aliciante. Agustina escreve que
«Inventar é o melhor espelho, e o resto não interessa nada».16 Se «O
9
Cf. Richard Saint-Gelais, 2006: 337: «Ce que le lecteur fait est une chose; ce
qu'il considère que le texte est en est une autre.»
10
Saint-Gelais, 2006: p.331: «L'uchronie romanesque, elle, ne s'écrit jamais au
conditionnel (...). C'est que ses rapports avec le contrefactuel sont beaucoup plus distendus: l'histoire altérée n'y est plus donnée comme un monde possible construit par hypothèse (...)».
11
Fernando Dacosta, 1992: 13.
12
Dacosta, 1992: 69.
13
Cf. Philippe Forest, 2007: 288: «Il n'y a d'événement que du réel. Seul le réel
advient. Le réel c'est-à-dire l'impossible lorsqu'il inscrit le césure de son entaille dans le
défilement indifférent de la durée, qu'il y place la scansion d'un irrémédiable à partir duquel tout prend irréversiblement sens.»
14
Cf. Forest, 2007: 45: «(...) le roman s'assigne pour tache contradictoire la représentation de l'irreprésentable.»
15
Cf. Emmanuel Bouju, 2006: 93: «Il n’y a pas de différence de nature entre comprendre la réalité et comprendre la littérature; déchiffrer le texte enfoui, c’est élucider la
violence du réel.»
16
Agustina Bessa-Luís, 1988: 17.
A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA
139
essencial é iludir a verdade com a verdade»,17 na crença de que
«Não há coisas reais»,18 então devemos percepcionar o «mundo
(…) [como] uma colossal ficção»,19 tornando-se «A realidade (…)
um estorvo para os criadores».20
Este estorvo, todavia, só o é ficticiamente, dado que os
narradores facilmente manipulam os factos e as interpretações que
deles se fazem, inflectindo a apreensão do real no sentido que mais
lhes convém,21 com uma autoridade própria de quem detém o acto
de narrar,22 que se assemelha ao de criar.
A interpretação, quase diríamos abusiva, de tempos,
personagens e fenómenos implica a interligação de passado e
presente e a convocação de um futuro, não apenas entrevisto, mas já
capaz de interferir no passado e no presente, pelas potencialidades
que se adivinham plausíveis.23 A reversibilidade temporal e a
crescente importância de um passado tão incompleto como o
presente, legitima e favorece a emergência da memória, como factor
determinante para a recriação, reconstrução, manipulação,
descodificação de dados só parcialmente conhecidos, mesmo se,
aparentemente, já todos os condicionalismos foram estudados.24
17
Bessa-Luís, 1988: 133. Cf., Philippe Forest, 2007: 77: «Touchant au réel, le
roman dit la vérité. Mais la vérité ne dit rien d'autre que le réel en tant que le roman y accède.»
18
Bessa-Luís, 1988: 139.
19
Bessa-Luís, 1988: 202.
20
Bessa-Luís, 1988: 30.
21
Cf. Yves Hersaut, p. 11: « Michel de Certeau defini la stoira comme (…) dotata
(…) di agire sulle opinioni del lettore, di fargli dimenticare ciò che il racconto lascia da
parte (…)» e Jean-François Hamel, 2006: 7: «Car le récit ne se contente jamais de simplement rapporter une expérience, ni d'en témoigner passivement; il la produit, la fabrique, la
modèle.»
22
Cf. Emmanuel Bouju, 2006: 64: «les romans européens de la fin du XXe siècle
sont souvent des figures textuelles de l’exemplartité et de ses failles, où la promotion de la
voix narrative comme autorité s’accompagne d’une mise en suspens de ses garanties externes.»
23
Cf. Bouju, 2006: 109: «L'exploration du lien entre passé, présent et avenir, déjà
ébauchée en première partie, s'accentue à travers l'usage stratégique d'un dédoublement
interne du récit.» e Jean-François Hamel, 2006: 7: «Par son souci de ce qui va disparaissant, il donne jour à ce que nous appelons le passé, mais c'est un passé qui se trouve orienté vers l'avenir, manifestant le présent et sa présence, ses possibilités toujours vives.»
24
Cf. Gianmario Guidarelli e Carmelo G. Malacrino, 2005: 5: «Memoria e oblio,
retorica e falsificazione, argomentazione e censura, svelamento e copertura: il ruolo rivestito dalla narrazione nella pratica storiografica è tanto complesso e variegato da poter es-
140
MARIA DE FÁTIMA MARINHO
Curiosamente, e apesar de rupturas sucessivas, ainda estamos
demasiado ligados ao peso da História, como condicionadora da
visão do passado e da consequente memória que dele possamos
fabricar. Porque, com efeito, a memória é também uma construção,
mais ou menos consciente, de um passado pretendido ou necessário.
A interpretação de determinados acontecimentos ou a leitura que a
memória reivindicará facilitam a construção de passados
convenientes ou legitimadores de crenças ou opções presentes. A
escrita pode muito bem renegociar a importância de determinados
fenómenos, valorizar uns detalhes, esquecer outros, consoante o
propósito.
Conscientes das limitações pré-existentes a qualquer acto de
memória, não devemos omitir a pertinência do segredo e do
interesse em desvendá-lo ou em escondê-lo.25 Um segredo é sempre
algo de assustador ou de intrigante. O detentor do segredo exerce o
poder inerente ao facto de conhecer algo que escapa aos restantes, o
que lhe confere uma superioridade, que tem, necessariamente, os
seus custos. A descoberta do segredo pode ser fatal (no sentido em
que pode desestruturar os conhecimentos prévios e pôr em causa
crenças ancestrais), até por que, o segredo pode ser falso, ou antes,
a sua explicação pode ser fantasiosa ou, voluntariamente,
enganadora. Fernando Campos, em A Sala das Perguntas, alude a
um enigma que pairaria sobre Damião de Góis e vale-se das falhas
da História para construir a sua narrativa: «Historiador é cientista,
romancista é ficcionista. Como tal, eu não tenho que provar coisa
sere affrontato da tutti questi punti di vista, senza d’altronde riuscire a esaurirne il senso e
la portata.»; Brigitte Krulic, 2007: 235: «Le souci de redonner vie à ce qui n'est plus, trait
constitutif de ce sous-genre romanesque qu'est le roman historique, illustre, avec plus ou
moins de bonheur, le désir de prolonger et d'influencer la constitution d'une mémoire.»
25
Carlos F. C. Carreto, 1998: 48: «Daí que o segredo apareça sempre como uma
ameaça: ameaça para a linguagem enquanto exercício do poder que, ao tentar
circunscrevê-lo ou esvaziá-lo, acaba ela mesma por se desgastar e funcionar no vazio;
ameaça para os actores da interacção verbal, uma vez que, escapando radicalmente a um
dictare que se deseja sempre monopolizador do saber, a existência, ou mesmo a simples
suspeita de existência do segredo, (de)nega, à partida, qualquer possibilidade de
comunicação e de apreensão/manipulação do outro na e pela palavra; ameaça finalmente
para o próprio sujeito que dá corpo e encerra, por vezes contra a sua vontade e sem saber
muito bem o que contém e significa, este simulacro de verdade que o segredo representa e
que se transforma, com o decorrer do tempo, num peso insustentável e mutilante.»
A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA
141
nenhuma. Limitei-me a aceitar o desafio de recriar uma hipótese que
pode ter-se como verosímil».26
Depois desta afirmação, não devemos estranhar os dois
primeiros capítulos e o último, narrados em 3.ª pessoa, onde se
estrutura o enigma, o segredo, que teria presidido à vida e morte de
Damião de Góis. No primeiro, que tem como título «Enigma Alfa
1501-1545», remonta-se ao tempo do enunciado, e põem-se em cena
personagens secundárias mas, de certa forma, ligadas ao protagonista,
e que aludem a um terrível segredo, que transmitem umas às outras,
sem nunca ser transcrito no texto; o segundo capítulo, «Enigma
ómega 1941», refere a exumação do escritor quinhentista e alude-se
ao seu possível (ou quase certo) assassinato, descobrindo-se
simultaneamente um cofre que contém um relato; no epílogo, retornase a 1941 e as personagens comentam o que acabam de ler. Ora, o
relato, que constitui a parte fundamental da obra (pp. 24-391), é todo
ele narrado em 1.ª pessoa, sendo Damião de Góis, simultaneamente o
protagonista e o focalizador do seu percurso existencial.
O segredo a que aludimos é logo revelado ao narradorprotagonista nas primeiras páginas, mas continua censurado ao nível
do discurso, aumentando assim o suspense, embora variados indícios
nos vão descobrindo a ponta do véu –D. Manuel seria o pai de
Damião de Góis. Ao longo do romance, vamos deparando com
pequenos pormenores que preparam o desenlace. A semelhança física
impressionante entre o rei e o marido da mãe do humanista favorece o
equívoco (salvaguardando a honra da senhora), equívoco que é
corroborado pela referência ao Auto dos Anfitriões, de Camões, a cuja
representação Damião de Góis assiste. Ao narrar o desenrolar da peça,
vai intercalando reminiscências do segredo tão bem resguardado («Do
passo que se vai desnrolando a farsa, começa-me a voar o
pensamento, a trazer ao de cima a borra que eu quisera para sempre
aquietar.»),27 de molde a podermos considerar a peça de Camões
como uma estrutura em abismo do enigma que nos é proposto. O
narrador reconhece que várias pessoas conheceriam o terrível segredo
(incluindo Camões) o que, de certa forma, justificaria, a sua possível
permanência até ao século XX.
26
27
Fernando Campos, 1998: 398.
Fernando Campos, 1998: 320.
142
MARIA DE FÁTIMA MARINHO
A ambiguidade da morte, que é apresentada como um
assassinato, também acaba por ser sugerida pelo manuscrito. Damião
de Góis, na parte final, refere-se por diversas vezes a um funesto
pressentimento, e o relato termina abruptamente: «Uma agulha de
gelo pareceu-me vir da porta espetar-se-me nas costas. Frinchas
largas, pensei. O vento assobia, uiva, parece até pôr surdos passos no
lajedo da quadra, como se alguém sorrateiro se aproximasse por
detrás…Súbito temor. O coração a bater-me apressado…De novo o
pressent……….».28
O segredo a que se alude neste romance, pontual e discutível,
indicia a forma de aproveitar os interstícios da História, interpretandoos e dando-lhes soluções, nem sempre rigorosamente verificáveis. No
entanto, com resolução satisfatória ou não, a verdade é que o segredo
constitui um elemento fundamental da História e das suas relações
com a Literatura, que pode, sem o risco de cair em impressionismos,
jogar com os possíveis e com as lacunas do que poderia ter sido. Carlos Fuentes, no romance Terra Nostra, equaciona magistralmente essa
«memoria de cuanto pudo ser y no fue»,29 demonstrando que «todas
las posibilidades del pasado, (…) también representan todas las oportunidades del futuro, pues sabiendo lo que no fue, sabremos lo que
clama por ser».30
Para ilustrar melhor esta problemática do enigma e da relação
que a literatura estabelece com os factos do passado e com o relato
que lhes corresponde, escolhemos duas recolhas de textos, que
trabalham com a memória, seus equívocos e seus segredos: falamos
de Fama e Segredo na História de Portugal, de Agustina Bessa-Luís e
Triunfo do Amor Português, de Mário Cláudio.
A obra de Agustina é composta por «12 Óperas», que
reflectem sobre doze figuras ou situações da História portuguesa:
Viriato, D. Afonso Henriques e D. Teresa, Leonor Teles, D. João I,
D. João II, D. Sebastião, Filipe II, D. Pedro IV, D. Carlos, Afonso
Costa e Sidónio Pais, Salazar, Delírio e Melancolia. A rápida leitura
dos títulos das óperas (e esta designação parece querer designar o
carácter teatral, fictício, de cada um dos textos) desvenda, por um
28
29
30
Fernando Campos, 1998: 391.
Carlos Fuentes, 1992 (1975): 566.
Carlos Fuentes, 1992 (1975): 567.
A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA
143
lado, os nomes fundadores da memória nacional, responsáveis por
rupturas vinculadoras ou criações incontornáveis, e, por outro,
chama a atenção para a urgência de interpretar as várias
personagens em jogo, que surgem despidas do código convencional.
O título da última ópera parece condensar as palavras-chave, que
subjazem a todas as outras, com maior ou menor intensidade.
A convicção de que «Não há História sem que o factor
humano intervenha desde o mais profundo da natureza humana»,31 faz
com que se aceite a subjectividade, acreditando-se que a verdade é
apenas aparência, o que destrói a possibilidade de um discurso
histórico totalmente fidedigno. O seu modo de fazer História completa
os dados da historiografia oficial, ao descobrir os meandros da escrita:
«No que me aparento com os cronistas é na tentação de romancear e
meter diálogos fictícios onde só se ajustam secos relatos. A História
faz-se com as vozes do povo e conveniências de cortesãos.»;32 «É
fatal que no edifício da História a intriga e a má língua tinham a
última palavra.».33
A inevitabilidade das aparências («Porque a verdade é a lei
dos vencedores e, sobretudo, o gosto de quem lida com
aparências»),34 que dá azo a discursos errados e com interpretações
erradas, legitima o segredo, elemento imprescindível para a
compreensão de factos que permaneceram obscuros. De D. Teresa,
mãe de D. Afonso Henriques, se diz, e atente-se no modo condicional,
que «Ela estaria na posse de segredos que a História não pode
remover dos seus escombros.»;35 de seu filho se põe a hipótese que
fosse bastardo: «Há quem afirme que Afonso Henriques era um
bastardo de Egas Moniz, seu pai verdadeiro (...)».36
A estética do segredo, «Porque os segredos são mais firmes do
que as palavras públicas»,37 justifica os ataques velados que a
narradora faz a Fernão Lopes, conferindo-lhe o papel de novelista e
não de historiador, já que as suas afirmações sobre determinadas
31
32
33
34
35
36
37
Agustina Bessa-Luís, 2006: 12.
Agustina Bessa-Luís, 2006: 41.
Agustina Bessa-Luís, 2006: 95.
Agustina Bessa-Luís, 2006: 15.
Agustina Bessa-Luís, 2006: 25.
Agustina Bessa-Luís, 2006: 16.
Agustina Bessa-Luís, 2006: 34.
144
MARIA DE FÁTIMA MARINHO
matérias pressuporiam o conhecimento de segredos, dificilmente
comprováveis: «Estas coisas não têm testemunhas, têm espias».38 A
frase com que termina a 5.ª Ópera, intitulada «D. João II», «Mais ou
Menos»,39 traduz a representação dessa estética insegura, que assenta
na culpa e na contínua interpretação dessa mesma culpa: «E a culpa
arrasta o homem para as alturas dos seus sonhos e faz dele um criador,
como um deus.»;40 «a culpa é o centro dos actos humanos»;41 «A
culpa é absolutamente um factor de civilização».42 Partindo do
princípio de que a culpa seria um elemento estruturante da memória e
do segredo, ela representaria o irrepresentável, porque apenas
pressentido e intuído. É com base na noção de culpa, que o narrador
se atreve a interpretações subjectivas, mas que terminam por dar a
medida exacta das razões que determinaram os actos e os
acontecimentos. Quatro exemplos bastarão para se perceber o modo
como Agustina joga com os dados da História, reanalisando-os e
encontrando soluções inusitadas para os explicar:
D. Sebastião lia as proezas de Carlos V com tal despeito que se
tomou de obsessão de lhe merecer o parentesco e o destino. A
impressão que dá é a de um bom aluno de artes que não lhe
competiam, como a da guerra. O facto é que se prepara para a
batalha e procede na mesma batalha duma maneira desordenada;
sobressai o tipo neurótico, e, apesar da extravagância do seu
comportamento, apesar da sua técnica do imaginário e de
fingimento, ele não deixa de se adaptar à realidade.43 Provavelmente
o marquês [de Pombal] não confiava no seu rei nem na corte onde
era tratado como um adventício, e sonhava com qualquer coisa
como uma hegemonia europeia em que comandasse a nobreza
dissidente, isto é, ele próprio.44 Carlota Joaquina é um desses
exemplos de mulheres feias que se virilizam pelas decepções do seu
sexo.45 Um episódio da História de Portugal, que nunca foi
liquidado, foi o regicídio. Digo que nunca foi liquidado porque a
sombra de inocentes, ou que só pecaram por desconforto no seu
38
39
40
41
42
43
44
45
Agustina Bessa-Luís, 2006: 31.
Agustina Bessa-Luís, 2006: 61.
Agustina Bessa-Luís, 2006: 12.
Agustina Bessa-Luís, 2005 [2004]: 11.
Agustina Bessa-Luís, 2005 [2004]: 16.
Agustina Bessa-Luís, 2006: 70.
Agustina Bessa-Luís, 2006: 86.
Agustina Bessa-Luís, 2006: 88.
A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA
145
papel, paira ainda pelos caminhos do presente. (...) Mas a questão é
que o rei fizera um pacto com a fatalidade. Ele estava cansado de ser
rei, de ser marido, de amar os filhos seus herdeiros ou mais seus
herdeiros do que filhos. Há um suicídio encoberto na teimosia de D.
Carlos em ir de Vila Viçosa para Lisboa onde entra em carruagem
aberta. (...) Com a morte do rei, instalou-se o medo na corte, e em
toda a parte. Como sempre sucede quando é praticado um acto
exorbitante e, por isso mesmo, inesperado, a desorientação foi ao
ponto de se desejar não mudar as coisas.46
A leitura que é feita das personagens referenciais, que nos
habituámos a enquadrar em paradigmas fixos, reequaciona a História
e permite afirmar que D. Sebastião é um «quebra-cabeças»,47 pois
«com o manual de psiquiatria muito conferenciado num século de
debates entre o normal e o patológico, é mais fácil percorrer os
caminhos da História e trazer à luz os seus personagens».48 No
entanto, é a mesma narradora que escreve que, provavelmente, o
complexo de Édipo «nem sequer existe e tudo isso da psiquiatria seja
uma boa maneira de esquecer que somos animais ferozes»49
A visão desencantada, que se denota sob a última afirmação,
permite encarar as figuras históricas despidas de heroicidade ou
sentimentos nobres (tal como já acontecera em romances da autora, de
que são exemplo, Adivinhas de Pedro e Inês, O Mosteiro, O Concerto
dos Flamengos, A Corte do Norte ou As Terras do Risco),
apresentando cruamente as motivações que presidem a desejos de
poder. Se «Toda a governação dum povo é a aproximação de uma
síntese»,50 Sidónio Pais só pode fracassar, porque ignora «um dos
princípios fundamentais do poder – defender-se da missão histórica e
guardar a distância entre dirigentes e dirigidos».51
Neste sentido, não será difícil aceitar que os portugueses são
uma «gente louca e fantástica»,52 embora não tenha «o sentido do
46
47
48
49
50
51
52
Agustina Bessa-Luís, 2006: 96, 101 e 105.
Agustina Bessa-Luís, 2006: 71.
Agustina Bessa-Luís, 2006: 65.
Agustina Bessa-Luís, 2006: 22.
Agustina Bessa-Luís, 2006: 49.
Agustina Bessa-Luís, 2006: 114.
Agustina Bessa-Luís, 2006: 82.
146
MARIA DE FÁTIMA MARINHO
futuro; é demasiado virtuos[a] para isso»,53 uma vez que «a lenda
leva a melhor sobre a realidade».54
A reflexão final, que tem como título «Delírio e Melancolia»,
ensaia uma definição do povo, que não se afasta muito da adiantada
por António Cândido Franco, em Sebastião Rei de Portugal: «Ser
português para mim é andar com um letreiro ao pescoço a dizer
Sebastião.»,55 porque o português tem muito desse rei louco, bufão e
trágico: «Estou convencido que quando se deu a Restauração de 1640
os Espanhóis de Mérida até Madrid deitaram foguetes. Estavam fartos
de Portugal, esse país de poetas e de fantoches».56
Agustina diz que «O português não é conflituoso. (...) Como
os gregos, o português não aprende com o passado, não lhe dedica
atenção de maior; prefere seguir o impulso da sua curiosidade que o
leva a algum lugar que pode coincidir com os seus desejos».57
A sentença exarada é mais um elemento de construção da
memória, que se alimenta das forças de poder e do amor, pólos
antitéticos mas complementares, na definição da nacionalidade. Mário
Cláudio, em Triunfo do Amor Português, apresenta onze pares, que
nem sempre fazem jus ao título sob que se incluem. Na verdade, estes
casais são frequentemente unidos por um desespero que ultrapassa a
paixão ou o amor convencionais – falo, por exemplo, de Camilo e
Ana Plácido, Mariana Alcoforado e o Conde de Chamilly, D. João V e
Madre Paula, a Severa e o Conde de Marialva, D. Pedro V e D.
Estefânia. O texto inicial, «A Bela Menina», deveria ser uma espécie
de súmula simbólica de todos os outros. O percurso iniciático que a
protagonista tem de percorrer, as vicissitudes por que passa até beijar
o monstro, que se transforma num belo rapaz, parecem apontar no
sentido da consumação do amor após a ultrapassagem de uma série de
provas, que se destinam a avaliar das qualidades do herói. A felicidade
da menina e do monstro-homem não corresponde, porém, à dos casais
dos capítulos seguintes, que, regra geral, se estiolam em destinos
adversos. A decepção contida neste texto ajuda a ler de modo irónico
53
54
55
56
57
Agustina Bessa-Luís, 2006: 122.
Agustina Bessa-Luís, 2006: 94.
António Cândido Franco, [1993]: 184.
António Cândido Franco, [1993]: 144.
Agustina Bessa-Luís, 2006: 130.
A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA
147
o título da obra e a desvendar o segredo escondido sob a capa da
harmonia. O tradicional amor português mais não é do que um
conjunto de equívocos, logros e angústias. A medida do desespero énos dada através de focalizações heterodoxas, isto é, focalizações que,
conscientemente, se afastam das convencionais, reescrevendo a
História. O capítulo «D. Pedro I e D. Inês de Castro» é narrado por D.
Fernando;58 «Leonor Teles e João Fernandes Andeiro», pelo Mestre
de Avis; «Luís de Camões e a Infanta D. Maria», por D. João III;
«Mariana Alcoforado e o Conde de Chamilly», por Peregrina Maria,
irmã da freira; «D. João V e Madre Paula», por Bonifácia de Lemos,
freira do convento de Odivelas; «Tomás António Gonzaga e Marília
de Dirceu», por uma escrava da menina; «A Severa e o Conde de
Marialva», por Frederico Rebelo Borregana, amigo do Conde;
«Camilo Castelo Branco e Ana Plácido», por Ana Plácido; «D. Pedro
V e D. Estefânia», por um confessor da rainha. Escapam a este
esquema «Roberto Machin e Ana Arfet» e «António Nobre e Alberto
de Oliveira», narrados em terceira pessoa, embora seja uma terceira
pessoa interveniente e comentadora da acção.
A relação dos narradores, que o autor nos oferece, deixa
antever a visão íntima, mas distanciada, perfeita para questionar as
relações da História (lenda) com a Literatura. Se o leitor conhece, à
partida, os nomes convocados, ele desconhece alguns detalhes mais
escondidos, detalhes a que não tinha sido dado qualquer relevo na
História oficial. Segredo e memória, construção da memória e da
identidade, construção de uma historiografia literária à medida das
necessidades dos sujeitos, piões do devir histórico.
O carácter inacabado da História só pode ter como
contraponto o carácter inacabado da Literatura. Por isso se
continuam a escrever romances ou contos com personagens do
passado, para consolidar o sujeito com a memória, individual e
colectiva, para o situar num tempo reversível e utópico.
58
A história de Inês de Castro tem sido narrada dos mais diversos pontos de vista.
Recentemente, Semoara da Veiga Ferreira (2007) publicou um romance, Inês de Castro –A
Estalagem dos Assombros, que tem como narradora D. Brites, mulher de D. Afonso IV e
mãe de D. Pedro.
148
MARIA DE FÁTIMA MARINHO
REFERÊNCIAS
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Transdisciplinaire Franco-portugaise sur le Secret / Revista Transdisciplinar Luso-Francesa
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SÉGINGER, Gisèle (ed.). «Introduction» in Ecriture(s) de l’histoire. Estrasburgo, Presses
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VEREDAS 10 (Santiago de Compostela, 2008) 149-163
O olhar de Juan Valera: literatura e
cultura na capital do império
brasileiro no século XIX
MARIA EUNICE MOREIRA
PUCRS - Brasil
Study on the main ideas of the Spanish writer and diplomat Juan Valera,
published in "Revista Espanhola de Ambos Mundos", adressing Brazilian culture
and poetry in the second half of the 19th century.
O período pós-independência brasileira, ou seja, os anos
posteriores à declaração da separação do Brasil, da metrópole
portuguesa, têm sido assinalados pelos estudiosos da vida cultural
como uma fase marcante do nascimento e da discussão sobre a
nacionalidade literária. Após 1822, ano que marca a separação do
Brasil da coroa portuguesa, a jovem nação do Novo Mundo passa a
vivenciar a fase de autonomia em todos os seus setores. A
necessidade de ser brasileiro e declarar essa condição assume foros
importantes e vem associada, como não poderia deixar de ser, à
tendência de rejeitar tudo aquilo que ainda pudesse marcar a
presença da antiga metrópole, no espaço americano. Nesse período,
nasce o sentimento de lusofobia que toma duas direções: de um
lado, a rejeição a Portugal e aos portugueses; de outro, a
150
MARIA EUNICE MOREIRA
consciência de que um país que se quer livre tem de criar
instituições capazes de confirmar essa condição.
A idéia de que a literatura brasileira devia ser considerada
diferente da literatura portuguesa vinha sendo sugerida nos
primeiros escritos sobre a produção literária brasileira. Ferdinand
Denis, o historiador francês que viveu no Brasil e escreveu sobre a
literatura do país, estimulou essa idéia entre os brasileiros, quando
afirmou, em 1826:
O Brasil, que sentiu a necessidade de adotar instituições diferentes
das que lhe havia imposto a Europa, o Brasil experimenta já
necessidade de ir beber inspirações poéticas a uma fonte que
1
verdadeiramente lhe pertença...
A concretização desse princípio toma vulto após 1840,
quando o Imperador D. Pedro II é declarado maior e assume o
governo monárquico do Brasil. Embora com 15 anos, no momento
em que passa a liderar o país, o monarca vai, pouco a pouco,
estimulando entre os brasileiros o sentimento de nacionalidade,
visível nos mecanismos que passam a constituir o país. Em 1839,
um ano antes da assunção de Pedro II, foi fundado no Rio de
Janeiro, a capital imperial do Brasil, o Instituto Histórico e
Geográfico, instituição ligada ao Império e que promoveu, a partir
de sua instalação, um movimento de nacionalização do país. O
jovem imperador tornou-se figura proeminente na nova agremiação,
presença indispensável nas suas sessões e mentor da política
nacionalista que o Instituto encabeçava.
No período em que o Brasil buscava consolidar-se
politicamente como nação, a discussão em torno da literatura que
começava a ser produzida no país constitui uma força política capaz
de garantir a separação política. Os literatos que compunham a cena
intelectual do período e que orbitavam em torno do Imperador
estavam unidos por duas idéias bem definidas: eram não só
monarquistas
e,
conseqüentemente,
nacionalistas,
mas
preconizavam também os ideais do Romantismo, estética que
favorecia a associação entre arte e nacionalidade.
1
Ferdinand Denis, 1968: 30.
O OLHAR DE JUAN VALERA...
151
As idéias românticas e nacionalistas propagavam-se pelo
Rio de Janeiro e, daí se difundiam por outros centros, sendo
especialmente veiculadas pelas páginas dos periódicos. Segundo o
crítico brasileiro Antonio Candido, autor da obra Formação da
literatura brasileira, essas publicações aglutinavam a geração dos
românticos que oscilava entre duas literaturas –a portuguesa e a
brasileira, dois períodos– o Neoclassicismo e o Romantismo, e duas
eras políticas –a Regência e a Maioridade ou um certo liberalismo
regencial e um acatamento à autoridade do monarca. A importância
que esse crítico concede às publicações periódicas lançadas nesse
período pode ser aquilatada pela citação que faz, abrangendo três
das principais revistas que surgiram no período entre 1836 e 1855:
os primeiros românticos principiam a sua atividade na revista
Niterói (1836), consolidam-na com a Minerva Brasiliense (18431844) e despedem-se na Guanabara (1849-1855).2,3
Embora diferenciadas no tempo de circulação (a Guanabara
sobreviveu por seis anos, enquanto a Niterói manteve-se por um
ano), distintas na apresentação das matérias selecionadas para
publicação, (a Minerva incluía estudos sobre Medicina, Botânica,
Zoologia e ciências exatas) e individualizadas pela formatação, (a
Guanabara apresentava-se materialmente mais rica), essas revistas
caracterizaram-se por alguns aspectos comuns, que excedem a mera
reunião dos românticos brasileiros: todas elas receberam patrocínio
governamental e dependiam, em maior ou menor porcentagem, do
auxílio direto do Imperador. Essa condição limitava as matérias
nelas publicadas, que incluíam, de preferência estudos sobre a
situação sócio-cultural européia e, em especial, a do Brasil,
procurando manter, como diz Santiago Nunes Ribeiro, ao assumir a
redação da Minerva, um nível que não a igualasse a outros
magazines ou armazéns de notícias e descrições nimiamente
superficiais e populares.4
2
Antonio Candido, 1975: 47.
A revista Guanabara circulou entre 1849-1856, conforme comprovam os
estudos de Hélio Lopes em A divisão das águas: contribuição aos estudos das revistas
românticas Minerva Brasiliense (1843-1845) e Guanabara (1849-1856).
4
Hélio Lopes, 1978: 36.
3
152
MARIA EUNICE MOREIRA
Entre os temas tratados, figuravam estudos sobre o
desenvolvimento da ciência no Brasil, páginas acerca da história
brasileira, notas de viagem de artistas nacionais, monografias sobre
economia colonial e até mesmo observações meteorológicas ou
astronômicas, como a passagem de um cometa pela cidade do Rio
de Janeiro. Entretanto, os sustentáculos das revistas foram os
assuntos dedicados às letras. Desde a Niterói, a literatura do Brasil
ocupou posição de destaque entre os demais temas tratados,
avultando-se, nos periódicos subseqüentes, as matérias relativas às
publicações de páginas de ficção, poesia, e, em especial, de estudos
sobre a formação da literatura nacional. A lista de colaboradores
comprova a preferência pelos tópicos literários. Entre os ensaístas
dominavam os literatos, pois aos pioneiros Gonçalves de
Magalhães, Manuel de Araújo Porto-Alegre e Torres Homem,
foram se somando Santiago Nunes Ribeiro, Joaquim Norberto de
Sousa Silva, Carlos Emílio Adet, Antônio Francisco Dutra e Melo,
com contribuições regulares sobre literatura.
Se a regularidade da produção não se impunha como critério
para a chamada dos colaboradores, a fidelidade ao Imperador
transformava-se em aval para a inclusão de um nome nas revistas.
Essa situação de favoritismo levou Hélio Lopes a reconhecer que,
por ocasião do fechamento da Guanabara, as letras passariam a
viver outro período, diferente do até então dominante, em que
prevaleciam as relações de poder, por ele caracterizada como a
literatura dos barões e viscondes.5
Não é de estranhar, portanto, que em 1856, quase ao apagar
as luzes, a Guanabara publicasse o artigo “Da poesia brasileira”, de
autoria de Juan Valera.6 As credenciais desse diplomata espanhol
coadunavam-se com a política editorial para as revistas do Império:
Juan Valera escrevia sobre a literatura brasileira, privilegiava um
tema caro aos nacionalistas românticos e enquadrava-se no batalhão
de elite da política espanhola.
5
Hélio Lopes, 1978: 5.
Juan Valera. Da poesia brasileira. Guanabara, v. 7, 1855 e v. 12, 1856. As
citações serão retiradas desses artigos, mencionando-se apenas o número do volume e das
páginas.
6
O OLHAR DE JUAN VALERA...
153
Juan Valera y Alcalá Galiano era filho do diretor da Escola
de Marinha da Espanha, mas, apesar da profissão do pai, foi
desencorajado a seguir a carreira militar. De família originária do
Sul da Espanha, estudou Filosofia no Seminário de Málaga, Direito
no Colégio del Sacro Monte, em Granada, no qual se licenciou em
Leis. O título de bacharel em Leis, que se seguiu, contou com a
influência de um amigo de seu pai, o Duque de Rivas, então
embaixador da Espanha em Nápoles. A convite do nobre espanhol,
incorporou-se à delegação pátria para viajar para a Itália, onde
permaneceu dois anos, até partir para Lisboa, como agregado de
número um do corpo diplomático de seu país.
É em Lisboa que Valera se entusiasma pelo Brasil, o que o
leva a solicitar sua transferência para o Rio de Janeiro, como
agregado de segunda classe do corpo diplomático. Na Capital do
Império, permanece quase dois anos, de 1851 a 1853, partilhando
não só da vida diplomática, mas se integrando ao grupo de
intelectuais nacionalistas ligados ao Palácio Imperial. De volta a
Madri, fortalece sua carreira política, tendo sido eleito deputado por
sucessivas eleições, galgando as funções de Secretário do
Congresso Nacional. Na carreira diplomática, alcançou o posto de
Ministro Plenipotenciário em Frankfurt, Lisboa, Washington,
Bruxelas, finalizando suas missões como embaixador da Espanha
em Viena, cidade na qual se aposentou.
Sua atividade literária foi tão intensa quanto a diplomática,
tendo publicado inúmeros livros no campo da poesia, ficção, crítica
e história da literatura, o que o levou a ser recebido pela Real
Academia Española, em 1873, com um estudo inovador sobre “La
poesía popular como ejemplo del punto en que debieran coincidir la
idea vulgar y la idea académica sobre la lengua castellana”. Embora
preferisse ser reconhecido como poeta, foi, contudo, com Pepita
Jiménez, obra de 1873, que Juan Valera passou à história da
literatura espanhola, dada a popularidade do romance. Sua produção
mais numerosa, contudo, volta-se para o ensaio, tendo escrito obras
volumosas e fundamentais para o conhecimento da literatura
espanhola, nas quais se destacam Estudios críticos sobre literatura,
política y costumbres de nuestros días, em dois volumes, Florilegio
de poesías castellanas del siglo XIX, em cinco volumes e Crítica
154
MARIA EUNICE MOREIRA
literaria, que compreende trinta volumes, publicados postumamente
entre 1908 e 1912.
Em 1851, quando veio ao Brasil, Juan Valera, contudo,
pouca experiência apresentava nas letras. Com vinte e oito anos de
idade, publicara até então apenas um livro, Ensaios poéticos, em
1844, resultado de suas leituras e interesse pelas letras. Após a
estada no Brasil e, de regresso à Europa, inicia carreira como crítico
literário, divulgando seus trabalhos na Revista Española de Ambos
Mundos e em La Revista Peninsular, que fundou juntamente com
Caldeira y Sinibaldo de Mas, em Lisboa. É nesse primeiro
periódico, que publica um texto intitulado “De la poesía de Brasil”,
posteriormente traduzido e incluído na Guanabara, em 1856, sob o
título “Da poesia brasileira”.
Dividido em duas partes, o artigo de Juan Valera aparece em
dois números da revista carioca, respectivamente, no número sete
do tomo três e no número doze, do mesmo tomo, ambos publicados
em 1856. Segundo o tradutor, seria agradável aos nossos leitores a
tradução de alguns trechos dum artigo inserto na Revista
Espanhola de Ambos os Mundos, relativos à poesia brasileira, por
nos parecer escrito com graça e circunspecção.7 A justificativa
utilizada para a divulgação do texto de Valera encobre os motivos
pelos quais o texto merece divulgação, sobretudo quando se
recupera a moldura política e literária na qual o texto está inserido.
Em 1856, mais precisamente entre abril e agosto desse ano,
José de Alencar, o futuro autor de O guarani, atacou o poema A
confederação dos Tamoios, de autoria do poeta e diplomata
Domingos José Gonçalves de Magalhães. Mais representativo
dentre os escritores brasileiros de seu tempo, Magalhães era
também considerado o difusor das idéias românticas no País,
marcado com o lançamento do livro de poemas Suspiros poéticos e
Saudades, de 1836. A obra que lançava em 1856, financiada pelo
Imperador, vinha precedida de grande expectativa e aguardada
como o poema nacional por excelência. No entanto, o poema
recebeu avaliação negativa de José de Alencar que o analisou em
uma série de cartas divulgadas pelas páginas do Diário do Rio de
7
V. 12, p. 197. [Nota de rodapé, sem autoria].
O OLHAR DE JUAN VALERA...
155
Janeiro. A crítica de Alencar recai sobre o tema escolhido por
Magalhães (a confederação da tribo de índios Tamoios contra os
portugueses); a forma utilizada –a epopéia– considerada
ultrapassada pelo crítico, pois que não se coadunava com a nova
fase política e literária vivida pelo país e as vantagens recebidas
pelo autor, que, dispondo do beneplácito imperial, produziu o
poema longe do Brasil, sua terra de origem, da qual ficou afastado
durante sete anos.
A reação às críticas de Alencar exigiu a entrada em cena de
amigos do poeta (o poeta e pintor Manuel de Araújo Porto Alegre) e
do próprio Imperador, que veio a público para defender seu
protegido. Outros intelectuais, convocados por Pedro II para se
manifestar sobre a nova publicação do poeta do Romantismo, não
ofereceram a contribuição positiva desejada pelo Império e
acabaram por apresentar argumentos desabonadores ao texto.
Esse episódio, que culmina em dezembro de 1856, quando
vem a público a opinião do respeitável Frei Francisco de Monte
Alverne, ficou conhecido como a “Polêmica sobre A confederação
dos Tamoios”. Trata-se, pois, de um evento de caráter literário –a
discussão em pauta reivindica a autonomia da literatura brasileira,
através de uma nova expressão literária– mas que traz, no seu bojo,
a discussão política – a identidade da jovem nação recentemente
emancipada de Portugal.
“Da poesia brasileira”, o texto de Juan Valera publicado na
revista Guanabara, enquadra-se na moldura de transformações
pelas quais passa o país. Nele, seu autor não só privilegia um
assunto que lhe é particularmente interessante, como também
resulta de suas observações uma visão que, em certos pontos,
ratifica as idéias dos românticos nacionais, mas, em outros, amplia
e, de certa forma, contradiz teses defendidas pelos nacionalistas. O
ângulo de visão do crítico europeu é a cidade do Rio de Janeiro e
Valera mostra-se um voyeur perspicaz, que registra o movimento
das ruas, os costumes dos salões, o hábito dos diferentes tipos
raciais e o comportamento das distintas classes sociais.
Valera inicia seu longo texto por um registro já utilizado por
Ferdinand Denis: Esta disposição do povo brasileiro para a poesia
156
MARIA EUNICE MOREIRA
e para a música está em todas as raças de que é composto e
complementa: Pelas ruas do Rio de Janeiro ouve-se de contínuo
música.8 Esse fundo musical advém, sobretudo, dos negros, que
cantam enquanto trabalham, e das senhoras cariocas, que com maior
ou menor êxito, exercitam-se nos lundus e modinhas, as canções
populares do país. Os compositores ainda não se destacam, mas
com o passar do tempo e o exercício constante poderão igualar-se
aos mestres europeus.
O gosto pela música somente é igualado pela paixão pela
poesia. Para Valera, o povo brasileiro, de modo geral, denota um
pendor acentuado para a criação poética e, entre os produtores
poéticos, menciona sobretudo os jovens, registrando que não há
moço que aos quinze anos não escreva sonetos e quadras9 e que
todas as moças no Brasil possuem um álbum10 em que reúnem seus
poemas. Apesar da mediocridade das composições, os versos
revelam mais pureza de linguagem que a língua falada pelos
portugueses, mantendo, entre os brasileiros, a forma dos antigos
clássicos lusitanos. Segundo Valera, a poesia produzida por esses
jovens é divulgada especialmente nas festas familiares, pois não há
batizado, casamento, nem função, que não se celebre com meia
dúzia de epitalâmios, horóscopos, epitáfios e nênias, em diferentes
classes de metros e variados estilos.11 Para extrapolar o âmbito
meramente familiar, é necessário que o autor pague uma certa
quantia para que os versos passem às páginas dos periódicos,
completando com a informação de que há periódicos que ganham
muito com tal indústria12, razão pela qual preparam alentados
volumes semanais com os poemas dos novatos.
É, contudo, quando aborda o tema dos negros e índios como
produtores poéticos, que o texto da Guanabara torna-se mais
inovador e instigante. Nesse ponto, não só compara o Brasil com
outros lugares onde a cultura africana se desenvolveu, como aborda
um tema até intocado pela geração romântica, que desconhecia
8
9
10
11
12
V. 12, p. 197.
V. 12, p. 198.
V. 12, p. 198.
V. 12, p. 198.
V. 12, p. 198.
O OLHAR DE JUAN VALERA...
157
qualquer manifestação poética entre os homens de cor. Para Valera,
quando os negros criam versos, apresentam maior facilidade em
composições em português, porque logo esquecem sua língua-mãe.
Suas criações poéticas, porém tornam-se efêmeras, porque os
autores não as podem registrar em virtude de sua condição de
analfabetismo. Isso acarreta sérios problemas à literatura brasileira e
impede o aparecimento de uma literatura negra, no Brasil, ao
contrário do Haiti e da Libéria, países nos quais a Revista Española
de Ambos Mundos já anuncia esse filão.
A simpatia que Valera demonstra à literatura produzida
pelos escravos não se estende a outro segmento étnico, tão caro aos
nacionalistas românticos, qual seja, a dos índios. Embora ele
reconheça que muito se fala da história dos poetas guerreiros e dos
seus piagas, que profetizavam em verso, Valera opõe-se à tese de
que os selvagens poderiam apresentar versos com qualidade.
Segundo sua opinião, a rudeza da vida selvática não poderia
favorecer a manifestação poética. Além disso, as línguas indígenas
não seriam adequadas para esse tipo de atividade, por serem
imperfeitas e pobres, exigindo muitas palavras para a expressão de
uma idéia. Nesse ponto, também o texto de Valera apresenta-se
instigante, porque sua posição contraria à de alguns nacionalistas,
que se empenhavam na comprovação da existência de literatura
entre os índios, inclusive recuperando e transcrevendo textos
produzidos pelos aborígines, como Joaquim Norberto de Souza
Silva que, na sua inconclusa história da literatura, publicada na
Revista Popular, registra versos produzidos pelos selvagens, ao
lado de uma versão em língua portuguesa e outra em língua alemã.
Valera não acata, portanto, a defesa da tese de que os negros
e especialmente os índios, como queriam os nacionalistas ferrenhos,
fossem reconhecidos como produtores poéticos. Para ele, a
autêntica poesia brasileira deveria ser encontrada entre os
brasileiros, descendentes dos portugueses. A pesquisa não leva a
resultados muito objetivos, pois o crítico, agora historiador, não
encontra nenhum poeta que possa figurar no panteão nacional. Até a
metade do século XIX, não há poeta brasileiro, porquanto os até
158
MARIA EUNICE MOREIRA
então conhecidos só o eram pelo nome e acaso de haverem nascido
no Brasil,13 consoante as palavras de Pereira da Silva.
O título de poeta nacional só pode ser atribuído ao escritor
que aproveitar, em suas criações, a inspiração da natureza
americana, fator de distinção entre a produção européia e a
nacional. Em sua opinião, a originalidade da poesia brasílica
encontra-se na epopéia do século XVIII, nos textos de Basílio da
Gama e de Santa Rita Durão, cabendo ao primeiro, o autor de O
Uraguai, a posição de pioneiro tanto na ordem de publicação, como
na correção.14
Valera aprova em Basílio a facilidade em versificar e
valoriza, no poema, o estilo e a forma. Três episódios, então,
tornam-se paradigmáticos da nova poesia brasileira e são transcritos
pelo historiador espanhol, que ressalta neles o estilo natural e
grandiloqüente: o sonho em que Cacambo é aconselhado por Sepé a
atear fogo no acampamento inimigo, a cena preparatória do
casamento de Lindóia e Baldeta, e a morte de Lindóia. O olhar de
Valera destaca os episódios em que prevalecem as grandes
descrições, mais ainda, as cenas em que as figuras indígenas
tornam-se centrais. Essa seleção é coerente com a idéia que já
expressara em outra passagem desse mesmo estudo, em que destaca
que essas construções encerram muita poesia, ainda que esta poesia
esteja mais na beleza das descrições, e na novidade dos objetos que
nos caracteres, que se traçam, e nos sucessos, que se contam.15
Dois aspectos de O Uraguai desagradam ao crítico: a
escolha do tema e a posição religiosa do autor do poema. O
primeiro elemento o desagrada, porque, segundo sua avaliação, a
epopéia de Basílio da Gama constitui um libelo contra os
representantes da Companhia de Jesus; a segunda questão diz
respeito ao próprio autor: Basílio é ingrato para com os padres da
Companhia de Jesus, religiosos responsáveis por sua educação e
formação. Talvez seja por essas questões, que seus comentários
mais efusivos dirigem-se ao Caramuru, de Santa Rita Durão, poema
13
14
15
V. 12, p. 200.
V. 7, p. 311.
V. 7, p. 311.
O OLHAR DE JUAN VALERA...
159
de mais interessante e variado argumento, de maiores dimensões, e
com mais entusiasmo e delicada ingenuidade escrito, ainda que por
desgraça não muito castigado e correto na forma.16
A preferência pelo poema de Santa Rita Durão faz sentido se
considerada a concepção cristã ao avaliador: o crítico agora aprova
o tema, porque os índios recusam sua mitologia e declaram a
fidelidade ao deus cristão. A aceitação de um Deus católico em
substituição a Tupã é também responsável pela instauração de um
modo de viver mais civilizado entre os silvícolas, que inclusive
abandonam a prática da antropofagia. Valera afirma que Caramuru
se informa miudamente das idéias religiosas dos índios, e vê com
surpresa que sabem cousas tão elevadas acerca de Deus, do diabo
e da vida futura, que não é possível que as hajam inventado,
parecendo reminiscências de uma revelação primitiva, ou da
pregação de S. Tomé.17
A simpatia pelos jesuítas, laboriosos e inteligentes membros
da Companhia de Jesus e, sobretudo, a fidelidade à doutrina cristã,
leva o analista a aprovar mais um elemento no Caramuru sobre o
poema de Basílio: a restauração do equilíbrio em que duas etnias
distintas – índios e europeus – se ajustam e passam a viver em
harmonia, sob a égide de um deus cristão. É evidente que, para
Valera, o tema do poema de Santa Rita deve ser considerado
superior: nele vigoram valores brancos e europeus, e ainda que os
índios apareçam como protagonistas do texto épico, como valentes
e corajosos, tornam-se, ao final, personagens passivas, cuja função
na epopéia resume-se a apresentar a faceta exótica da nação
americana. Daí ser compreensível a avaliação final de Valera sobre
o poema de Santa Rita Durão: ainda que começado prosaicamente
acaba ao gosto de todos, porque não só deixa fundada, senão
florescente a colônia, os índios felizes, e Diogo e Catarina ainda
mais felizes, honrados e queridos nela.18
16
17
18
V. 7, p. 317.
V. 7, p. 319.
V. 7, p. 321.
160
MARIA EUNICE MOREIRA
Comparativamente, a análise de O Uraguai e a de Caramuru
permitem constatar uma inversão entre um e outro poema: enquanto
no texto de Basílio, a forma sobrepuja o assunto, em Santa Rita, o
tema sobrepõe-se à forma, que, em Caramuru, apresenta-se
desalinhada e frouxa.19
Dos extensos comentários sobre as epopéias brasileiras,
Valera dedica, ao final de “Da poesia brasileira”, rápidos registros
sobre a poesia, considerando as obras de Basílio e Durão como
portas de entrada para qualquer criação artística nacional. Assim,
seguindo a influência dos mestres do passado e considerando o
novo quadro cultural propiciado pela Independência, que acelera
nos brasileiros o desejo de se manifestar, observa a proliferação de
escritores nas diferentes classes sociais: políticos, médicos, lentes
de faculdade, gentis-homens, todos se exercitam nos versos,
provando a fecundidade da literatura no Brasil. Entretanto, entre
esse elenco de produtores, destaca apenas um nome que merece ser
particularmente citado. Trata-se de Gonçalves Dias, em cuja
produção ressalta a preocupação em tematizar as coisas do Brasil,
salientando nos versos do poeta brasileiro a índole nacionalista e
americana que já fora observada por outro estudioso europeu,
Alexandre Herculano.20
A relação de poemas do autor de Primeiros cantos, citada no
artigo, comprova que ao crítico espanhol interessam os versos que
exploram o cenário do país. Y Juca Pirama, A mãe d’água, O
gigante de pedra, Gosto de olhos verdes, Marabá, Tabira,
mencionados no artigo, são textos em que o poeta excede-se em
demonstrações patrióticas, comprovando que a seleção do
patrimônio literário se efetiva pela maior representação do espaço
americano. Se a originalidade é o grande mérito de Gonçalves Dias,
Valera ajunta-lhe outro predicado –o de ser o mais popular dentre
19
V. 7, p. 317.
O estudo de Alexandre Herculano sobre os primeiros versos de Gonçalves Dias
foi publicado na Revista Universal Lisbonense, Jornal de Interesses Físicos, Intelectuais e
Morais, de Lisboa, exemplar de 1847-1848. O texto, posteriormente transcrito por Letícia
Malard, encontra-se publicado em: Cadernos do Centro de Pesquisas Literárias da
PUCRS, Porto Alegre, v. 1, n. 2, p. 73-82, jun. 1995.
20
O OLHAR DE JUAN VALERA...
161
todos os poetas brasileiros,21 o que justifica o destaque a ele
concedido.
Para figurar ao seu lado, coloca apenas o autor de Colombo,
segundo ele, um poeta tão novo e extraordinário, tanto em suas
belezas quanto em seus defeitos.22 A valorização da obra de Araújo
Porto Alegre decorre, novamente, da pintura e exaltação das
grandezas e formosuras do Novo Mundo, ratificando, ainda uma
vez, a importância que assume para o autor do artigo a criação
artística consoante com o espírito romântico e, sobretudo,
nacionalista.
Visto sob a ótica da historiografia de nosso tempo, o texto
de Juan Valera pode ser lido como mais um texto incluído na
revista Guanabara pela única justificativa de que seu autor
compartilhava a conhecida turma dos barões e viscondes que
rodeavam o Imperador e garantiam as bases para o fortalecimento
de uma incipiente nação. Diplomata de carreira e entusiasmado pela
natureza brasileira, deixou-se impressionar com o novo cenário que
se deparava frente a seus olhos, fato que se deduz principalmente
porque lamentou, depois de sua volta à Espanha, não ter conhecido
outras grandezas brasileiras, cuja visão lhe possibilitaria sobrepujar
as cosas más estupendas de las que viram y notaram Fernán
Mendez Pinto y Simbad, el marujo, como relata Brito Broca.
No entanto, o artigo de Juan Valera não se limita a uma
avaliação do grupo de literatos que tinham o beneplácito do
Imperador ou a seu deslumbramento frente à natureza brasileira. A
avaliação crítica que expõe sobre as condições de produção da
nascente literatura do Brasil coloca-o ao lado de outros estrangeiros,
como Ferdinand Denis e Simonde de Sismondi, complementando
com dados significativos as observações de seus antecessores sobre
a literatura brasileira. Em primeiro lugar, Valera mostrou-se um
arguto observador da vida cultural da cidade do Rio de Janeiro,
deixando anotadas particularidades da vida urbana, como o
envolvimento das pessoas e das diferentes classes sociais com a
música e a poesia, e conferindo ao seu artigo uma conotação
21
22
V. 7, p. 323.
V. 7, p. 323.
162
MARIA EUNICE MOREIRA
sociológica que comprova a preocupação do crítico em analisar as
manifestações artísticas dentro de seu entorno cultural.
Um segundo ponto positivo do texto de Valera diz respeito à
contribuição do artigo para a história da literatura brasileira,
principalmente quando comparado com o registro de outro
estrangeiro, Ferdinand Denis. Sem desmerecer o autor do Resumo
da história literária do Brasil, Valera registra autores e obras do
passado e da [sua} contemporaneidade, dando provas concretas da
existência de uma literatura autenticamente nacional. Enquanto o
estudioso francês pronunciava-se sobre o futuro das letras no Brasil
e orientava os brasileiros para o trabalho literário, o autor de “Da
poesia brasileira” atestava aos olhos dos europeus que o projeto se
concretizara: o Brasil possuía autores representativos e obras
originais. Para os olhos dos nacionalistas românticos, o fato
revestia-se de dupla importância: o artigo do crítico espanhol não só
divulgava a produção nacional num periódico estrangeiro, como a
seleção do material coincidia com os ideais dos homens de Letras,
ao buscar no passado autores e obras do Brasil, de modo a propiciar
elementos para a escrita da história da literatura.
Apesar dos pontos positivos que podem advir da leitura do
texto de Juan Valera, ao divulgar a literatura de um país nascente
para os leitores do Velho Mundo, é lícito reconhecer que, colocado
ao lado de outros discursos sobre a literatura brasileira, ele
apresenta uma face oculta e perigosa, pois comprova que cabe aos
estrangeiros, ou melhor, aos europeus, definir e ratificar os critérios
para definição de uma literatura que, nesse momento, se quer livre e
original. Nesse sentido, se o critério da representação do espaço
outorga independência à literatura, é esse mesmo índice que acaba
por ratificar a dependência cultural do país, pois a seleção do
nacional ainda constitui um jogo de dependências em que prevalece
o discurso do estrangeiro. Desse modo, talvez se aplique a Juan
Valera as palavras do Cônego Januário da Cunha Barbosa, ao
inaugurar o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, agremiação
que reunia a plêiade da intelectualidade do Império: além de
concorrer para o adorno da sociedade, influi poderosamente na
firmeza de seus alicerces.
O OLHAR DE JUAN VALERA...
163
REFERÊNCIAS
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Belo
Horizonte: itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975.
DENIS, Ferdinand. Resumo da história literária do Brasil. Tradução, prefácio e notas de
Guilhermino César. Porto Alegre: Lima, 1968. p. 30.
LOPES, Hélio. A divisão das águas: contribuição aos estudos das revistas românticas
Minerva Brasiliense (1843-1845) e Guanabara (1849-1856). São Paulo: Conselho
Estadual de Artes e Ciências Humanas, 1978.
VALERA, Juan. Da poesia brasileira. Guanabara, revista mensal, artística, científica e
literária, Rio de Janeiro, v. 7, 1855 e v. 12, 1856.
VEREDAS 10 (Santiago de Compostela, 2008) 165-171
Cânone, cânones em
reflexões dialogadas
ONÉSIMO TEOTÓNIO ALMEIDA
LEONOR SIMAS-ALMEIDA
Brown University
The authors recognize that canons only raise problems but they also admit that
one needs them. The Portuguese literary canon was for decades quite rigid and
unquestionable. The April 25th revolution threw it out just like about everything
else, even though only temporarily. Some time later, old established ideas
returned, but Portugal could not avoid the contemporary battles regarding the
cannon. The debate is lively, perhaps not as much as it should be. Also, some
absences are still notorious. The Autonomous Regions of the Azores and
Madeira are not even considered. Besides, key works of canonic authors are not
easily available in print.
A questão do cânone literário tem sido um tema altamente
debatido nos Estados Unidos e duvido seja possível sobre o assunto
dizer-se algo que já não tenha sido repetidamente afirmado. Só as
respostas aos livros dos dois Bloom, Alan e Harold (The Closing of
the American Mind1 e The Western Canon2 respectivamente,
publicados em décadas diferentes e provenientes de flancos
diversos, mas ambos preocupados com a salvaguarda das grandes
1
2
New York: Simon and Schuster, 1987.
New York: Harcourt Brace, 1994.
166
ONÉSIMO TEOTÓNIO ALMEIDA; LEONOR SIMAS-ALMEIDA
obras da literatura anglo-americana e universal) são de tal ordem
extensas que absolutamente ninguém poderá lê-las todas, sobretudo
se pensarmos que o debate ultrapassou as universidades e se alargou
mesmo à escala internacional.
Que eu saiba, em Portugal não se desencadeou um debate
nacional como o que ocorreu nos Estados Unidos da América,
sociedade de enormes e profundos conflitos sociais e poderosas
minorias que lutam pela sua representatividade no cânone.
Primeiro, a sociedade portuguesa, apesar das imigrações recentes,
ainda é altamente homogénea e os seus imigrantes ainda estão longe
de adquirir peso nos currículos universitários, mesmo tendo em
conta a presença das literaturas brasileira e africanas de língua
portuguesa. Além disso, tratando-se especificamente do cânone
literário nacional, perdura ainda um elevado grau de consenso, pelo
menos em comparação com o que se passa noutros países.
Talvez melhor: existia. Porque o cenário complicou-se
sensivelmente nos últimos trinta anos, não apenas com a explosão
da nossa produção literária e as múltiplas alterações sócio-culturais
ocorridas no país, mas também com as transformações por que vem
passando a universidade portuguesa.
As reflexões que se seguem são avulsas. Não fazem parte de
uma visão particular ou especial sobre o cânone literário português,
apenas pretendem constituir achegas à conversação que
naturalmente com os anos se irá desencadeando sobre esta matéria.
1.
Devo começar por expressar um profundo respeito e até gosto
pelos cânones. Os clássicos, porque eram lidos nas aulas.
Havia uma lista que venerandamente repeitávamos e nos
servia de orientação. Havia os que gostávamos, porque
gostávamos, e os de que não gostávamos porque não
gostávamos – assim em paráfrase à afirmação de Protágoras.
Formados adentro desse paradigma, partilhávamos todos de
referências comuns. E demarcávamo-nos pelos nossos desvios
para um lado ou para o outro. As guerras do gosto visavam
sempre os inimigos de estimação e, se não serviam de árbitro,
apontavam-nos ao menos as sinalizações na estrada.
CÂNONE, CÂNONES EM REFLEXÕES DIALOGADAS
167
2.
Por outro lado, o cânone nacional que todos herdámos foi
elaborado e moldado num regime conservador e dele recebeu
naturalmente as suas marcas. Aquilino Ribeiro não figurava e
o Fernando Pessoa incluído era o da Mensagem, nunca por
exemplo Álvaro de Campos. Os neo-realistas estavam
demasiado próximos, e a verdade é que do século XX quase
ninguém entrava no panteão. Tanto assim que nas
universidades tudo terminava em Camilo. Eça era já
demasiado iconoclasta para as universidades. E para os liceus,
nem falar! Daí aqueles inofensivos excertos de A Cidade e as
Serras. Dizia-se que seria precisa a peneira do tempo para
apurar o trigo do jóio. Boa metáfora para afastar as vozes
incómodas dos escritores mais intervenientes. Além disso,
poderemos perguntar: por que razão figurava o Antero dos
sonetos e nunca o das Causas da Decadência dos Povos
Peninsulares? Porque não era um texto literário? Então vamos
mais atrás: porquê Fernão Lopes e não Gomes Eanes de
Zurara? Porque Fernão Lopes é um cronista entre a história e
a literatura? E Zurara não? Aquela sua passagem sobre as
cinco razões que levaram o Infante à aventura dos
descobrimentos não é um mimo de brilho e concisão? Pois,
pois, não será literatura. Como o não serão o Esmeraldo de
Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, ou os roteiros de D.
João de Castro. Mas afinal não são ambos autores de uma
escrita moderna, meticulosa e preocupada com a observação
do real, muito à frente da sua época? Por que razão há-de a
prosa de Frei Amador Arrais ter sobre eles primazia? E a
Peregrinação de Fernão Mendes Pinto e toda a notabilíssima
literatura de viagens do período dos descobrimentos, por que
motivo não faziam parte do velho cânone? Porque não a
História Trágico-Marítima, com as suas fabulosas narrativas
plenas de tensão dramática e, ao fim e ao cabo,
extraordinários retratos de exemplares da natureza humana
reflectindo agudamente os conflitos e dilemas que lhe são
inerentes?
3.
Tenho pessoalmente uma querela particular com o cânone
nacional, ou cânones nacionais, por sistematicamente
ignorarem escritores ilhéus cujas obras não são divulgadas no
168
ONÉSIMO TEOTÓNIO ALMEIDA; LEONOR SIMAS-ALMEIDA
Continente. Nunca houve a preocupação de os fazedores de
selectas literárias se interrogarem sobre o que se publicava
nos Açores e na Madeira, e assim se foi sistematicamente
ignorando por exemplo um poeta da qualidade de Roberto de
Mesquita. Não posso, a propósito, esquecer-me de uma
conversa com um poeta e cronista continental. Quando lhe
chamei a atenção para a envergadura da poesia de Emanuel
Félix, retorquiu: Se ele fosse bom eu já o conheceria. A
verdade é que ele é bom, muito bom mesmo, na opinião
abalizada de muita gente de fino gosto poético, mas o dito
poeta não só o não conhecia como não mostrou qualquer
interesse em conhecê-lo. (Em Portugal a representação
açoriana ou madeirense não conta porque não se aceita pensar
em termos de quotas, porém os mesmos defensores dessa
posição são os primeiros a exigir que no cenário europeu
Portugal esteja devidamente representado).
4.
Assim em jeito de àparte, permita-se-me que acrescente umas
considerações adicionais a propósito dessa dupla bitola que se
manifesta de variadíssimas maneiras. Só ela explica que S.
Tomé e a Guiné, por exemplo, tenham passado a ter as suas
literaturas reconhecidas imediatamente a seguir às
independências dos respectivos países, como se por decreto e
com direito a repesentatividade na constelação lusófona,
enquanto os Açores e a Madeira continuam sem receber
qualquer atenção, visto fazerem parte do todo nacional. Os
ilhéus que entram nos cânones estão lá porque viveram no
Continente e são tidos como “nacionais” (Nemésio, Antero,
Herberto Helder, Natália Correia, entre outros).
5.
Na mesma ordem de ideias, Portugal ignora sistematicamente
a sua diáspora e a literatura por ela produzida, a não ser que se
trate de autores que, mesmo fisicamente ausentes, tenham
vivido sempre culturalmente na lusa pátria, como Jorge de
Sena. José Rodrigues Miguéis já não tanto mas esse escritor
não foi nunca, julgo eu, devidamente apreciado. Um poeta
como Garcia Monteiro levou cem anos para ser finalmente
publicado em Lisboa. Foi em 1896 que saiu o Rimas de Ironia
Alegre desse faialense imigrado em Boston, mas apenas há
CÂNONE, CÂNONES EM REFLEXÕES DIALOGADAS
169
pouco mais de dez anos ele entrou no circuito continental,
muito embora tivesse desde sempre merecido reconhecimento
nos Açores e na diáspora.
6.
O mundo entretanto mudou. Tornou-se difícil separar as
águas e, no meio do turbilhão, ainda quando abrandem elas
ficam sempre turvas. Natural é que da confusão emerja às
vezes a saudade dos tempos em que tudo era límpido, mesmo
que fosse só porque as águas estavam paradas.
7.
Mudaram-se os códigos, bem como as constituições sobre que
eles assentam os seus juízos práticos. Tudo ficou à deriva,
sobretudo na estética, e os cânones viraram peças de museu.
A preocupação com o novo, a sua instauração na praça do
quotidiano e a sua frequente identificação com qualidade
contribuiram para a instabilidade e a insegurança. Levaram
também a nos voltarmos inteiramente para o que vai vir e a
relegarmos para o museu as obras do passado –tanto mais
que, na sua maioria, foram escritas por homens brancos já
bem mortos.
8.
No caso particular português, os cânones parecem ser mais
importantes para se saber quem é ou não incluído nas selectas
literárias do ensino secundário do que para se decidir quem é
ou não estudado nas universidades. As antologias são rígidas
na medida em que fica clara a linha divisória entre quem é
seleccionado ou não, enquanto nas universidades a autonomia
de cada instituição, bem como a autonomia dos professores na
elaboração dos seus programas, tornam tudo imensamente
fluido.
9.
No meio de tudo isto, a pergunta poderá legitimamente ser
feita (ou colocada, como agora soi dizer-se): os cânones ainda
servirão para alguma coisa? Em resposta, eu gostaria de dizer
que sim. Mesmo que seja para entrarmos em disputa com eles
pela inclusão de X e exclusão de Y. Na prática, e de novo no
caso específico português, custa a compreender para quê, uma
vez que quem quiser adquirir livros de clássicos para
utilização nas aulas confronta-se com um problema material
170
ONÉSIMO TEOTÓNIO ALMEIDA; LEONOR SIMAS-ALMEIDA
de modo nenhum irrelevante: onde adquiri-los, se grande
parte deles está simplesmente esgotada.
Passemos a algumas conclusões igualmente genéricas e tão
avulsas como as observações precedentes:
1.
Sejamos honestos: ninguém leu o cânone todo. Nem sequer
de certeza o fizeram Óscar Lopes e António José Saraiva,
autores do mais respeitado cânone português, a sua História
da Literatura Portuguesa. Nem muito menos Harold
Bloom. Basta ver como este, antes de ler Saramago, apenas
o incluía numa lista em apêndice, provavelmente por dele
ter ouvido falar. E de Eça incluiu A Relíquia e não Os
Maias, por exemplo, porque certamente nunca leu essa nem
a maioria das obras do nosso Queirós. Um cânone é uma
elaboração colectiva de séculos, um guia para nos
orientarmos, não se pode pois esperar que as pessoas todas
leiam todas as obras. Por ser impossível e por não fazer
sentido. Os cânones são fruto dos gostos de quem os
elabora. Não se pode impô-los a toda a gente por mais
conveniências que abundem.
2.
Mais importante do que uma lista de clássicos como
acontece na classicíssima História da Literatura
Portuguesa, de António José Saraiva e Óscar Lopes, é haver
disponíveis as principais obras clássicas para que se possa
adquiri-las sempre que necessário. Alunos e professores
deveriam poder tê-las a fácil alcance para os seus cursos e
pesquisas.
3.
Os nossos cânones devem incluir uma lista alargada e plural
de autores e livros que sirvam de referência básica a quem
quiser ler, manusear, consultar as obras neles referidas.
4.
Um cânone é obviamente produto de factores múltiplos,
onde se incluem não só os saberes tradicionais como as
variações do gosto e do pensamento próprias de diferentes
períodos históricos. Se é verdade que um camelo é um
cavalo desenhado por um comité, nisso de gosto, quanto
mais diverso for o grupo construtor do dito cânone mais
probabilidades há de se esquecerem obras de valor, e menos
CÂNONE, CÂNONES EM REFLEXÕES DIALOGADAS
171
probabilidade existirá de se incluirem obras badaladas no
seu tempo por razões completamente alheias à qualidade
delas. (E suspeito que desse tipo de obras andam os nossos
cânones cheios).
VEREDAS 10 (Santiago de Compostela, 2008) 173-181
A ascensão do romance em
português:
para além das histórias
literárias nacionais
PAULO MOTTA OLIVEIRA
Universidade de São Paulo -Brasil
Starting from some episodes occured in the 19th century, specially in the 50's
and 60's, we intend to reflect about several aspects of the anomalous history of
the rise of the novel in Portuguese-speaking countries.
Comecemos por algumas cenas casuais, que poderão servir
para melhor localizar o que aqui pretendemos discutir.
Em 1853, Alfredo Hogan, que já havia publicado dois anos
antes Mistérios de Lisboa, lançou A mão do finado, continuação
portuguesa de O Conde de Monte Cristo. Esta obra, provavelmente
o maior best-selller português do terceiro quartel do século XIX, é
atribuída, na maioria dos países, ao próprio Alexandre Dumas, como acontece, entre outras, com edições brasileiras, portuguesas e
174
PAULO MOTTA OLIVEIRA
espanholas, apesar da grande diferença entre a obra e sua aparente
continuação.1
Dois anos antes Camilo Castelo Branco havia começado a
sua carreira de romancista, com a publicação de Anátema. Um ano
depois de Hogan produzir o seu pseudo-Dumas, seria a vez de Camilo lançar o seu Mistérios de Lisboa, cuja continuação O livro negro do Padre Dinis, seria publicado no ano seguinte. Ao longo da
década de 50 o escritor seria responsável por 12 romances, número
largamente superado na década seguinte, em que chegaria a lançar
30, além de várias outras obras de outros gêneros. Com esta vasta
produção, Camilo acabaria por se constituir no primeiro escritor
profissional de seu país.
Foi ainda na década de 50 que o poeta português Faustino
Xavier de Novais, em função do grande sucesso que o seu livro de
poesias tinha tido no Brasil, resolveu tentar a sorte no novo mundo.
Para cá veio em 58, e quatro anos depois lançaria a revista O Futuro, em que colaborariam portugueses e brasileiros, entre eles, dos
primeiros, o seu amigo Camilo Castelo Branco e a sua então amante
Ana Plácido, e dos segundos o seu futuro cunhado Machado de Assis. Será em suas poesias póstumas, publicadas em 70 em livro de
propriedade de Machado de Assis, que sairá uma longa poesia dedicada a Camilo, em que temos um trecho que merece ser citado:
Ninguém hoje sai à rua
Por saber novas da terra;
Se ao longe o vapor flutua
Já cá sabemos que encerra
Notícia de uma obra tua.
E apenas a vista alcance
Por sinal o galhardete,
Ao vê-lo, em rápido lance,
Ninguém diz – “Chega o paquete”
1
Analisei este aspecto em artigo ainda não publicado, apresentado no XXI Encontro Brasileiro de Professores de Literatura Portuguesa, que ocorreu de 3 a 6 de setembro na Universidade de São Paulo. Neste ensaio, entre outros aspectos notei que no livro
de Hogan a questão da penitência e da religiosidade possuem uma relevância que não pode
ser encontrada no livro de Dumas.
A ASCENSÃO DO ROMANCE EM PORTUGUÊS...
175
Dizem só – “Lá vem romance”2
Poderíamos aqui arrolar algumas outras cenas semelhantes,
mas nos deteremos em apenas mais uma. Em 1876 Machado de Assis lançaria Helena, mesmo ano em que, do outro lado do Atlântico,
Camilo publicaria o seu Cego de Landim. No livro de Hélio Seixas
Guimarães, Os leitores de Machado de Assis, podemos encontrar
reproduzida uma crítica publicada no A reforma, de 19 de outubro
deste mesmo ano, em que os dois livros são analisados. O autor tece
vários elogios ao primeiro, chegando a afirmar que “o Sr. Machado
de Assis pode sem receio deixar que o seu romance seja confrontado com os melhores que nos chegam de Portugal, e que são aqui
lidos com tanta sofreguidão”.3 Quanto ao romance de Camilo, bem
podemos imaginar o que diz o crítico sobre um livro em que o Brasil aparece como um ótimo lugar para falsários e criminosos e que,
além de tudo, ainda tem trechos como o que abaixo reproduzimos,
que se passa no Brasil:
Aqui me contam eles (os meus apontamentos) os amores da morena filha de Landim com o chefe de polícia. Este episódio poderia ser o esmalte do meu livrinho, se em um chefe de polícia coubessem cenas de amor brasileiro, mórbidas e sonolentas, como tão
languidamente as derrete o Sr. J. de Alencar. Em país de tanto
passarinho, tantíssimas flores a recenderem cheiros vários, cascatas e lagos, um céu estrelado de bananas, uma linguagem a suspirar mimices de sotaque, com isto, e com uma rede – ou duas, por
causa da moral –, a bamboarem-se entre dous coqueiros, eu metia
nelas o chefe da polícia e a irmã do cego, um sabiá por cima, um
papagaio de um lado, um sagüi do outro, e veriam que meigas
moquenquices, que arrulhar de rolas, eu não estilava desta pena de
ferro!4
Julgo que já podemos parar por aqui, pois afinal a lista de
cenas poderia ser quase infinita: avançando pelo século poderíamos
pensar na crítica que Machado faz ao grande sucesso que foi O primo Basílio; na desconstrução paródica que Camilo produz, do sério
2
3
4
Novais, 1870. p. 19-20.
Folhetim. In: Guimarães, 2004, p. 326.
Castelo Branco, 1988, p.103.
176
PAULO MOTTA OLIVEIRA
universo de Emile Zola, com a carnavalesca história de Eusébio
Macário e de sua família; ou, já quase no fim do século, Eça de
Queirós preocupado com os leitores brasileiros de sua Revista de
Portugal, afinal, sem os assinantes deste lado do Atlântico a revista
não teria como sobreviver. 5
Todas estas cenas acabam por ser manifestações de uma
mesma questão. Façamos um breve interlúdio crítico-teórico, como
gosta de escrever o autor que aqui nos servirá de guia.
Em um trecho do Atlas do romance europeu de Franco Moretti, este afirma:
Sim, uma vez que um modelo “satifatório” é encontrado, a história de uma forma se torna realmente diferente. Por volta de 1750,
na época da primeira ascensão do romance, ainda não existe tal
modelo e o romance é tão diversificado, tão livre – tão louco, de
fato – quanto podia ser: Sátira e Lágrimas, Picaresca e Filosofia,
Viagem, Pornografia, Autobiografia, Cartas... Mas, cem anos
mais tarde, o paradigma anglo-francês está no lugar e o segundo
surto é uma história completamente diferente: romances históricos
em terceira pessoa, não muito mais. Mais nenhuma invenção morfológica. Difusão: a grande força conservadora. Uma forma: e im6
portada.
Mas a história não será bem assim no Portugal e no Brasil.
Se são raros os dados mais abrangentes sobre o mercado português,
e desconheço se existem dados consistentes sobre o Brasil, podemos por analogia pensar na vizinha Espanha. Como mostraram
Martí-Lopez e Santana, foi justamente neste período que se inicia
com a década de 50 que ocorreu a ascensão do romance neste país.
Como mostram os críticos, o gênero se firma, após a emergência no
período 1843-1854, no período subseqüente, de 1855 a 1870.7 Época, devemos notar, que coincide em Portugal com a de maior produção de Camilo e com a sua transformação em principal romancista do país, status que a geração seguinte, a de Eça, tentará destruir.
5
Sobre a relação entre a Revista de Portugal ver Bueno, 2007 e outras reflexões
da crítica sobre o assunto.
6
Moretti, 2003, p. 201.
7
Cf Martí-Lopez, Santana, 2002.
A ASCENSÃO DO ROMANCE EM PORTUGUÊS...
177
Por sinal, qualquer leitor habitual do autor de Anaátema, quando lê
o trecho acima reproduzido de Moretti, percebe que as características que mais se aproximariam da produção romanesca camiliana
são justamente aquelas que o crítico aponta como típicas da primeira ascensão do romance. Em suas obras podemos encontrar,
pelo menos, sátira e lágrimas, picaresco e viagens, cartas e autobiografia. Ou seja, é como se em Portugal, nesse extremo ocidental da
Europa, país semiperiférico como o considera, com precisão, Boaventura de Sousa Santos,8 com um século de defasagem, a aventura
de descobrir uma forma satisfatória para o romance estivesse a ser
refeita, como, por sinal também ocorria na Espanha.
Mas a aventura não tinha como ser simplesmente repetida.
Como nos mostra Moretti, na periferia do sistema a história não se
reproduz: ela é diferente. Diferente pois, como afirmou Schwarz9
em relação ao Brasil, em constatação que também é válida para Portugal, o romance aqui aportou antes de termos romancistas, e os leitores brasileiros e portugueses aprenderam as regras do gênero lendo em outra língua, ou em traduções feitas a partir de obras originalmente produzidas, em sua maior parte, em uma das duas potências narrativas: Londres ou, principalmente em nosso caso, Paris. A
história da ascensão do romance em português é uma história anômala, naturalmente anômala, para parodiarmos o título da breve “La
storia del romanzo italiano? Naturalmente, uma storia anomala” de
Alberto Asor Rosa.10
Podemos pensar que se o romance ascende como gênero
fundamental do século XIX através de uma guerrilha discursiva –
de que, como apontou Abel Barros Batista, Camilo foi mestre–11
esta guerrilha não é apenas, nos países romanescamente periféricos–
contra a alta cultura, ou a velhas formas. A guerrilha é também outra, mais árdua: contra a avalanche de obras originais ou traduzidas
que vinham de Paris. No pequeno mercado português ou brasileiro,
era necessário oferecer os leitores tramas interessantes como as
francesas, mas, ao mesmo tempo, suficientemente próximas das ex8
9
10
11
Cf. Santos, 1997.
Cf. Schwarz, 1981.
Cf. Rosa, 2002.
Cf. Baptista, 1988.
178
PAULO MOTTA OLIVEIRA
periências cotidianas de brasileiros e portugueses para que estes, na
hora decisiva da compra, preferissem um Camilo ou um Alencar, a
um Eugênio Sue ou Alexandre Dumas.
Existem, obviamente, várias tensões entre o mercado brasileiro e o português, tensões que se perpetuariam por todo o século,
atingindo mesmo o início do XX. Mas estas tensões só nos mostram
que efetivamente, ao longo de todo este período, existia um mercado comum, com muitas assimetrias, uma evidente supremacia de
Portugal, cuja literatura era muito mais conhecida no Brasil que a
brasileira em Portugal, mas uma supremacia com pés de barro: o
mercado brasileiro era fundamental para a sobrevivência da cultura
portuguesa, como pode ser comprovado, entre outros, pela aventura
de Faustino Xavier de Novais, pela referida preocupação de Eça,
ou, já na década de vinte do século seguinte, pela experiência carioca do editor portuense Álvaro Pinto, que aqui emigrou trazendo, em
navio, a sua casa publicadora.12
A literatura portuguesa e a literatura brasileira podem ser
vistas por vários ângulos. Mas, creio, se quisermos pensar o século
XIX, e em especial a ascensão do gênero burguês por excelência
que é o romance, só o podemos fazer se considerarmos que ela é
tecida em português, dos dois lados do atlântico, criando uma tradição outra, que reconstrói de forma particular e híbrida, o imaginário
produzido em Paris ou Londres.
Não tenho como aqui desenvolver de forma consistente algumas das conseqüências desta hipótese. Mas uma delas é a de que
uma interessante forma de se pensar uma outra história literária do
século XIX seria tentando recuperar em que medida as experiências
anômalas e, se pensarmos em termos franceses ou ingleses, anacrônicas do romance em português constroem uma tradição de combate, de obras que acabam por não se enquadrar bem em lugar algum,
de autores que acabam por extrapolar os rótulos com que tentam ser
classificados.
Apenas um exemplo, retirado do autor com que tenho, nos
últimos anos, mais trabalhado.
12
Sobre este tema ver Oliveira, 1999.
A ASCENSÃO DO ROMANCE EM PORTUGUÊS...
179
Os romances de Camilo Castelo Branco, quando comparados com os franceses, certamente a mais importante referência da
novelística portuguesa do período, parecem não caber bem em parte
alguma: possuem algumas relações com o romance balzaquiano,
mas geralmente os seus narradores, nem um pouco transparentes, os
distanciam muitíssimo dos escritos pelo autor da Comédia Humana.
Por outro lado a imensa produção do autor, que certamente não
permite o cuidado da frase lentamente burilada, o coloca a grande
distância de Flaubert, que é, devemos aqui lembrar, apenas quatro
anos mais velho que Camilo. Mesmo se tentarmos ligar a sua produção com um conjunto de autores hoje tidos como menores, ou
menos importantes, de Eugênio Sue a Alexandre Dumas, essa proximidade poderá ser maior em uma obra ou outra, mas não será aplicável a muitos dos romances que escreveu.
Mas tudo isso não significa que não possamos ligar Camilo
a uma tradição. Como afirmou Paulo Franchetti:
(...) Camilo aparecerá estilisticamente, num nível macroestrutural,
como um homem próximo de Garrett. E, como este, muito
próximo de escritores do século anterior, tal qual Stern ou De
Maistre, que viam o texto romanesco não como sendo
basicamente o desenvolvimento de uma intriga nos moldes mais
propriamente românticos, mas como uma prática narrativa em que
o comentário filosófico ou simplesmente digressivo e espirituoso
aparecia como o ponto distintivo do gosto.
Mas Camilo não é um homem do século XVIII. Está submetido à
prática da literatura como profissão e, portanto, condenado ao
público que tem. (...) a genialidade de Camilo está em utilizar
criticamente as expectativas de leitura e as formas em que se
cristalizam, sejam elas a novela sentimental, a novela picaresca,
ou a narrativa naturalista. O que quer dizer que a matéria principal
de seus textos são as imagens da narrativa e da sua função na
sociedade burguesa.
É no trabalho com as formas (...) que vamos encontrar o Camilo
que melhor corresponde aos valores do nosso próprio tempo. Aí
podemos reconhecer a sua modernidade, o seu interesse para nós.
E desse esforço por uma nova descrição resultará um escritor que
180
PAULO MOTTA OLIVEIRA
situaremos numa outra família espiritual, diferente da que tem sido a sua. Nessa nova família, como já deve ter ficado claro (...),
estará também, entre outros, Machado de Assis (...).13
Poderíamos assim supor que, numa tradição em português,
seria possível pensar em uma família de escritores que, começando
em Garrett, passaria por Camilo para chegar a Machado. Eles formariam, ouso supor, um conjunto de criadores que elaboraram, entre os anos 40 do XIX e o início do século XX, o romance em português. Todos, por este motivo, difíceis de serem enquadrados nas
formas usuais com que dividimos a história da literatura. Grupo de
que não escaparia mesmo parte importante da produção de Eça, que
afinal foi realista-naturalista por um curto espaço de tempo.
Buscar esta outra tradição, construir a sua história, em que
poderemos incluir vários outros autores, é, certamente, uma tarefa
que nos parece imprescindível para melhor entendermos a literatura
construída em português ao longo do século XIX. Imprescindível
para que possamos repensar a ascensão do romance em português,
para além de centros e periferias, para além das sempre limitadas
histórias literárias nacionais.
REFERÊNCIAS
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BAPTISTA, Abel Barros. Camilo e a revolução camiliana. Lisboa: Quetzal, 1988.
BUENO, Aparecida de Fátima. “A Revista de Portugal: crônica de uma morte anunciada”.
In: BUENO, Aparecida de Fátima et al.. Literatura Portuguesa História, memórias e perspectivas. São Paulo: Alameda, 2007.
BRAGA, Teófilo. As modernas idéias da Literatura Portuguesa. Porto: Chardron, 1892.
CASTELO BRANCO, Camilo. Obras completas. v.1-18. Porto: Lello & Irmão, 19822002.
FRANCHETTI, Paulo. Apresentação. In: Castelo Branco, Camilo. Coração, cabeça e
estômago. São Paulo: Martins fontes, 2003.
GRIECO, Agripino. Machado de Assis. Rio de Janeiro: José Olympio, 1959.
GUIMARÃES, Hélio Seixas: Os leitores de Machado de Assis. São Paulo: Edusp, 2004.
MARTÍ-LOPES, Elisa, SANTANA, Mário. Espagna 1843-1900. In: MORETTI, Franco
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MONTELLO, Josué. Os inimigos de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1998.
MORETTI, Franco. Atlas do romance europeu 1800-1900. São Paulo: Boitempo, 2003.
13
Franchetti, 2003, p.XXXI-XXXII.
A ASCENSÃO DO ROMANCE EM PORTUGUÊS...
181
NOVAIS, Faustino Xavier. Poesias póstumas. Rio de Janeiro: Tipografia do Imperial Instituto Artístico, 1870.
OLIVEIRA, Paulo Motta. Terra de Sol: entre Portugal e a América. IN: MACIEL, Maria
Esther, ÁVILA, Myriam, OLIVEIRA, Paulo Motta (Org). América em movimento. Rio de
Janeiro: Sete Letras, 1999. p. 235-255.
ROSA, Alberto Asor. La storia del “romanzo italiano”? Naturalmente, uma storia “anomala”. Il romanzo – storia e geografia. Torino: Enaudi, 2002. p.255-306.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice. 6.ed. Porto: Afrontamento, 1997.
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1981.
VEREDAS 10 (Santiago de Compostela, 2008) 183-252
Transições & passagens
Figuras de uma crítica
cultural da razão histórica peninsular
PEDRO SERRA
Universidade de Salamanca
O que é a porta? Um vão.
Mas um vão que separa dois
domínios: o domínio dos deuses e o dos mortais –a porta
do templo; o domínio da vida
privada e o da vida pública –
a porta da casa; a cidade e o
campo –a porta da muralha.
Ora a passagem de um lugar
a outro é tão perigosa como a
de uma época a outra.
Roger Bastide, “Variações
sobre a porta barroca”.1
The aim of this paper is to present a part of a research project on the representations of social fenomena through different novels written by contemporary Iberi1
Bastide 2006, 129.
184
PEDRO SERRA
an writers, who have developed their writing under the dictatorial regimes from
Salazar-Marcelo, late Franco's regime and the period immediately after the reinstitution of democracy. The main motivation of choosing Iberian novels and novel
writers is the relation existing between the narrative forms and the historical processes –both Portuguese and Spanish– driving from dictatorship to democracy.
The drives and symbolic flows can be seen as ways of living those Iberian transitions & passages.
Nos amplos arquivos dos discursos simbólicos dos territórios peninsulares, o acontecimento fundamental da “actualidade”
sócio-política é o advento da Democracia, depois de duas ditaduras
muito pouco proclives ao cruzamento de olhares mútuos,2 dois estados ditatoriais basicamente solipsistas, enclaustrados numa autoimagem que prolongou no tempo ontologias nacionais sustentadas
como corpos místicos imperiais. A replicação desse acontecimento,
enquanto momento que galvaniza a relação do presente com o passado, mostra-nos como a “actualidade” peninsular é ainda a da
construção das democracias, cujos processos obrigam a continuar a
pensar as suas origens ou, para utilizar um termo certamente menos
marcado, os seus começos. Recentemente, o historiador Fernando
Rosas formulava o seguinte imperativo, motivado pelo diagnóstico
que faz do devir histórico dessa “actualidade”, no caso português:
«[T]alvez um dos desafios centrais da cidadania dos nossos dias seja
o de saber se o processo histórico de esvaziamento das conquistas
fundamentais da democracia logrará ou não transformá-la num ente
radicalmente contraditório com a sua génese ».3 Pensado em função
desse modelo fundacional, tomado como origem ou como começo,
o advento complexo da Democracia é um módico de mitologia, de
ansiedade ou metafísica das origens, de que talvez não seja conveniente, pelo menos de momento, prescindir. Um módico de idealização, um módico de nostalgia –não sendo possível determiná-los a
ponto de os tornar necessidades!– são modestamente necessários.
Tal como alguma literatura que é (ou continua a ser) ficção necessária, certamente aquela literatura de grandes “fracassos” vitais que
perseveraram no fracasso, aquela literatura que perfaz a hipóstase
de um futuro sempre a vir ou, tendo no horizonte uma conhecida
2
Não há que esquecer o que significaram as ditaduras peninsulares: um salazarismo pouco inclinado para literatura comparada e um Franco muito dado ao monolinguismo (cfr. Seixo 2005).
3
2005: 193.
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
185
formulação derridiana, uma Democracia sempre a vir.4 Coloco entre
aspas a palavra “fracasso” porque cito Augusto Abelaira, concretamente uma passagem de Enseada Amena (1966) que faz a descrição
breve da complexa ontologia da escrita que mais adiante vou percorrer: “Recentemente, estive para recomeçar a escrever, sempre é
uma maneira de enganar-nos a nós próprios quanto ao fracasso das
nossas vidas... Mas desisti. Ser romancista não ajuda a diminuir esse fracasso, é apenas um meio de confessá-lo publicamente”.5 Esta
descrição não funcionará como um retrato cuja verdade pudesse ser
aferida pelo estabelecimento de correspondências. Trata-se, antes,
de um conjunto de problemas postos pela escrita na sua implicação
com uma democracia por vir. É a escrita que configura um “fracasso vital”, nos idos de meados de sessenta, certamente determinado
pela obturação de vários futuros –socialismo, revolução, etc. -e a
sua substituição por outros -desenvolvimento da sociedade de consumo, tardo-capitalismo, etc.
É alguma desta literatura de grandes “fracassos” vitais -mas
não apenas tratarei de objectos literários, como se verá -que pretendo percorrer no presente ensaio, uma literatura para a qual talvez
valha também aquela impressionante imagem de um poema de Aníbal Núñez intitulado “Prólogo / (Porvir devorado por um incêndio)”. Eis o poema, que o poeta salmantino colocou no lugar proemial do fabuloso livro Primavera Solúvel: “Débil na tarefa que a si
mesmo se impôs / a imperfeição de que teve de se servir / faz com
que deploremos vivamente / o deterioramento da sua companhia.”6
Ao sujeito colectivo que o poema “Prólogo” diz deplorar o deterioramento do débil, pertence todo o sujeito que aceite a imersão na
dialéctica negativa que supõe uma solidariedade na mais profunda
4
Sublinho, claro está, a tensão entre a presença da democracia e a promessa da
democracia. Ainda, a aporia no âmago do democrático: “A antinomia no coração do democrático, reconhecida de há muito, clássica e canónica, é a do binómio constitutivo e
diabólico da democracia: liberdade e igualdade. Traduziria este binómio dizendo que a
igualdade tende a introduzir medida e cálculo (por conseguinte, condições) lá onde a liberdade é por essência incondicional, indivisível, heterogénea ao cálculo e à medida” (Derrida
2003, 74). Tensada entre presença e promessa, os condicionalismos e o incondicional, a
democracia é forma informe que permite precisamente reconhecê-la sempre “em perigo”, e
possibilita o seu aperfeiçoamento.
5
Abelaira 1997, 55.
6
Núñez1992.
186
PEDRO SERRA
solidão. É esta, antecipo já, uma das descrições possíveis dos escritores e intelectuais que mais adiante invocarei: enquanto sujeitos da
escrita, encarnam (sub specie trágica) o binómio solidariedade/solidão. A companhia a que alude Aníbal Núñez -certamente de
amigos que se sabem unidos pela memória da morte e do morto: em
última instância um passado a que se não pode regressar e que, todavia, persiste em retornar sempre outro– é toda ela conjurada neste
talvez impossível “Prólogo”. Justamente, um prólogo é o lugar do
dictum anterior a todo o dizer, anterior a todo o dizer que nunca coincide consigo mesmo. Neste “Prólogo” anuncia-se que a Primavera
Solúvel que se anuncia vem depois da possibilidade de todo o anúncio. Assim, o livro começa como termina: “Não há nada a dizer”.
Anterior a uma Primavera está a sua dissolução. Anterior a uma
Democracia está a sua dissolução, um perigo de incêndio.
Temos aqui, segundo creio, uma potente alegoria da possível
retrospecção desse acontecimento paulatinamente anacrónico, mas
animado por um contumaz eterno retorno que é o advento das democracias peninsulares. Tanto a Transição como a Revolução –e é
certamente ocioso recordar aqui a variedade de formalizações que
tem vindo a conhecer a Revolução, é uma variedade conhecida:
“pioneira”, “tardia”, “imperfeita”, “curto-circuito histórico”,7 etc.;
no caso do processo de democratização espanhol, destaco obviamente o paradigma histórico-político hegemônico de uma ‘transição’, que tem, nos seus antípodas, uma formalização como a que foi
proposta por Eduardo Subirats: a de uma ‘intransição’8 –podem ser
subsumidas a uma “razão histórica peninsular”. O tempo das ditaduras é sucedido pelo tempo das democracias. Pensado em função
desta lógica temporal, o advento das democracias é objectivado por
uma legenda aurea que, espectacularizando o passado, supõe a obturação daqueles “sonhos” de que o presente –sigo uma lição benjaminiana– já só pode ser “vigília”. O modelo temporalizado da legenda aurea certamente cancela a aporética da democracia por vir,
ou, remetendo para o excerto de Roger Bastide que serve de epígrafe e este ensaio, “a passagem de um lugar a outro é tão perigosa
7
8
Cfr. Cruzeiro 1994.
Cfr. Subirats 2002.
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
187
como a de uma época a outra”. O modelo narrativo da legenda áurea rasura o risco, o perigo inerente ao advento da democracia.
São por demais conhecidas –vindas de ângulos quer epistemológicos, quer hermenêuticos, etc.– as objecções que se vêm articulando a respeito de um modelo narrativo da História –“óbices” do
pretenso objectivismo, da função teleológica, da pulsão utópica, do
pendor absolutizante, etc.–, objecções que respondem muitas das
vezes a uma discursividade dita “pós-moderna” certamente débil.
No prefácio ao estudo de Carlos Manuel Ferreira da Cunha sobre a
historiografia literária portuguesa oitocentista –os seus fundamentos
e desenvolvimentos romântico e positivista–, Aguiar e Silva aponta
a problemática que determina a falência do projecto heróico de uma
História Literária: “Esta aura de objectividade, de rigor metodológico e de cientificidade da história literária, que se projectou e dominou quase todas as Universidades do Ocidente até meados do século
XX, carece de fundamento e de consistência”.9 Reconduzo esta
complexa matéria, no presente ensaio, à perda de evidência de uma
História como magistra vitae de que vem falando largamente Hans
Ulrich Gumbrecht.10 A tópica ciceroniana tem um segundo termo,
como é sabido: Historia magistra vitae est, seguido de et testis temporum. A perda de exemplaridade da história, de que Gumbrecht
tem extraído consequências e desenvolvimentos produtivos, vai a
par da falência de um modelo reflexivo ou testemunhal do relato
histórico, latamente enredado na “crise da representação”. Uma
“crise de representação” que implica, claro está, outros genera discursivos. A questão que coloco, neste sentido, é a de ponderar a discursividade gestada nos processos de advento da Democracia sem
perder de vista a derrogação de uma teleologia histórico-literária e a
deflação do paradigma romanesco representativo. Antecipo já, entretanto, que autores e obras que destacarei não rasuram a função de
representação da sua escrita: essa função, muito embora, é crítica e
entra em crise.
Não tem deixado de ser testada a operatividade, muito embora, diríamos, em clave revisionista latamente “pós-colonial”, de
uma história comparada das literaturas peninsulares. É o caso, pre9
10
Aguiar e Silva 2002, 4.
Cfr. Gumbrecht 1997.
188
PEDRO SERRA
cisamente, de um projecto que, numa das suas objectivações, produz um volume como Bases metodolóxicas para unha historia
comparada das literaturas da península Ibérica, editado recentemente por Anxo Abuín González e Anxo Tarrío Varela.11 No amplo
leque de ensaios aí coligidos, sem entrar de momento nas particularidades de cada um deles, temos claramente plasmado, para além da
problemática da literatura comparada enquanto campo de estudos
do fenómeno literário, a continuação do que poderíamos chamar
“apelo da história”. Assumo o risco de simplificar as posturas e postulados dos diferentes ensaios, mas gostaria de destacar que esse
“apelo da história” tem vários níveis ou graduações. Um ensaio como o de Mario J. Valdés, apostado na necessidade de ‘desnacionalização’ do comparativismo peninsular –ou seja, comprometido com uma representação do peninsular que supere a hegemonização dos casos “espanhol” e “português”–, ensaio atento ao pesadelo empírico que supõe esse gesto e à imperatividade do processo
“colaborativo” na construção de uma história literária da península
Ibérica, explicita a teoria da história que lhe subjaz num passo como
o seguinte: «A história em geral e a história literária em particular, é
um processo de mediação pelo qual se supera incessantemente a
antinomia do passado e do presente. A história literária apresenta
um caso exemplar para realizar o nosso interesse na emancipação
dos valores culturais e ao mesmo tempo permite-nos questionar a
identidade que recebemos. O conflito entre valores literários recebidos e valores novos pode expor-se, sem dúvida, num relativismo
ilimitado, o que seria anti-histórico e tornaria impossível todo o labor de reinterpretação do passado. Mas, pelo contrário, se o conflito
de valores se situa dentro da realidade material da produção cultural
histórica, estabelece-se um quadro explicativo. Estes valores por
meio da sua encarnação no marco empírico da vida surgem-nos
como acção vital, acção que foi, modos de ver e sentir que foram
vividos».12 Por outro lado, respigo o ensaio de Fernando Cabo Aseguinolaza sobre o “giro espacial” da historiografia literária. Assumindo o carácter problemático da espacialidade, o desenvolvimento
do uma historiografia literária de pendor espacial é descrito nos seguintes termos por Cabo Aseguinolaza: a “nova pertinência da es11
12
Cfr. Abuín González/Tarrío Varela 2004.
Valdés 2004, 14.
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
189
pacialidade pode entender-se como uma manifestação clara da crise
da temporalidade contínua e homogénea da história de cariz mais
teleológico, assim como, em muitos casos, das tradicionais histórias
das literaturas nacionais”.13 Ao mesmo tempo que de diferentes
âmbitos se vem articulando o esgotamento dos fundamentos filosóficos da pulsão historiográfica de raiz oitocentista –aquela que implica directamente os processos da literaturas nacionais e do projecto concomitante de configuração de um instigante comparativismo
literário “peninsular”. O pendor espacializante de que fala Cabo
Aseguinolaza supõe, certamente, a metaforologia espacial inerente à
categorização histórica, como recorda Koselleck: «Todas as categorias históricas, incluída a de progresso, que é a primeira categoria
especificamente moderna de tempo histórico, são expressões espaciais na origem, e a nossa disciplina prospera porque podem ser traduzidas».14
Um volume como Bases metodolóxicas para unha historia
comparada das literaturas da península Ibérica mostra como um
comparativismo de base “nacional” imperativa –isto é, de base “étnico-cultural”–, aquele que foi legado pela tradição historiográfica
oitocentista, talvez não seja a melhor via de perspectivar o trabalho
comparatista, do qual se fizesse “teoria” ou que significasse apenas
uma práxis de campo académico. Outra coisa é que o linguísticoliterário possa sequer ser pensado sem o marcador “nacional”. O
processo de modernização/globalização “esvazia” o peculiar “étnico”; um comparativismo linguístico-literário de base “étnicocultural”, assiste certamente mais à paisagem do espectáculo cultural que ao povoamento. Enfim, a imaginação de algo como um “futuro comum” que animou, em tempos o comparativismo literário,
um “futuro” instigado por uma história moderna de relações linguísticas e literárias não rima propriamente com a determinação “nacional” da ampla fenomenologia linguístico-literária peninsular, uma
questão que não há que descurar tão-pouco.
Tanto a Transição como a Revolução –ou melhor, o momento revolucionário que se seguiu ao golpe militar do 25 de Abril–
coincidem com uma cultura histórica e filosófica que nos devolve
13
14
Cabo Aseguinolaza 2004, 22.
Koselleck 2002, 7.
190
PEDRO SERRA
uma historização do “tempo histórico”, nos termos de Hans Ulrich
Gumbrecht. Transição e Revolução, súbitas entradas no futuro que,
todavia, não podem já ser assistidas por uma “experiência histórica”
que permitisse aos sujeitos –individuais e colectivos– escolher ou
abrir possíveis. Enceta-se um presente que, mais do que um ponto
transicional de abertura, é um “espaço de simultaneidade”. Transição e Revolução, nas sociedades periféricas peninsulares, nomeiam
a inflação tanto do futuro (a sequência de um progresso exponencial, catalizado em ambos os casos pelo projecto de construção europeia) como o presente desassistido pelo cancelamento dessa tensão
prognóstica. É esta a valência alegórica do poema de Aníbal Núñez
–poema que remete, por igual, para o pessoal e o colectivo: um futuro ainda hipostasiado mas também cancelado pela sua destruição.
E, talvez, a necessidade dessa hipóstase decorra do facto de, como
recorda o já mencionado Koselleck, “não [ser] o passado, mas o futuro do tempo histórico que torna a similitude dissimilar”.15
Respigo, ainda, um último bom exemplo, do meu ponto de
vista, desse continuado “apelo do passado” mediando-o, muito embora, pelo “estranhamento” das suas imagens, é também o que temos no livro La guerra que nos han contado. El 36 y nosotros de
Jesús Izquierdo y Pablo Sánchez León. A páginas tantas, os autores
reclamam “Um mapa ou um dicionário” a fazer. Dicionário que,
formulam, “não é um vocabulário. Tão-pouco é um elenco de termos dispostos por ordem alfabética”.16 Ressonâncias foucaultianas,
pois, neste dicionário de uma ordem discursiva que os historiadores
concebem como complexa pragmática vocabular que refracta um
“mundo que se nos insinua por detrás dessas palavras permanec[endo] opaco”. Jesús Izquierdo e Pablo Sánchez León, diríamos,
propõem um dicionário de palavras em regime moderno, um dicionário de palavras que matam, palavras guerreiras. Eric Hobsbawm
começa o seu tríptico de estudos dedicados ao período da história
ocidental que vai de 1789 a 1914 –da Revolução Francesa até à eclosão da Primeira Guerra Mundial– destacando a importância das
palavras para o conhecimento do mundo moderno, para o conhecimento da ‘Modernidade’: “As palavras –assevera o autor de The
15
16
Koselleck 2006, 44.
2006, 219.
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
191
Age of Revolution– são testemunhas que muito frequentemente falam mais alto que os documentos”. A Modernidade, neste sentido,
enquanto complexa etapa de profundas transformações, é perspectivada como um acontecimento que implica a significação e a poiesis
verbal. O “mais alto” que as palavras falam requer, para ser audível,
mais do que arquivo documental –se bem que seja, sem dúvida, necessário–, a captação dessas mudanças significativas e dessa poética
da significação.
Talvez que sempre se nos estejam a contar guerras; talvez
que todo o presente, futuro do passado, seja predicado na infinita
narração da incontornável violência bélica. Um dos lances fundamentais do livro La guerra que nos han contado estriba-se no facto
de que as palavras da Guerra de 36-39 foram continuadas por uma
«guerra de palavras». Jesús Izquierdo y Pablo Sánchez León vão
desdobrando este quiasmo. Não menos notória é a cartografia do
comportamento da discursividade coeva em determinados momentos álgidos: o ano de 31 e o advento da República, os anos de 34, 36
e 39. Igual tratamento é dado, ainda, à discursividade “académica”
que sobreveio e nos vai sendo interrogada na sua opacidade e seus
agonismos, agonismos determinados por implacáveis escatologias.
O dicionário a fazer é o dicionário destas ordens discursivas.
A demanda, por parte dos autores, de um dicionário certamente impossível, obedece, em última instância, a um imperativo
ético. Próximos dos textos e da sua subordinação a um gesto interpretativo, a pulsão da escrita de Jesús Izquierdo e Pablo Sánchez
León é modulada como acto cívico. Historiadores, sim, mas é todavia a partir da construção de uma “cidadania” ainda por vir que
pensam e escrevem La guerra que nos han contado. El 36 y nosotros. O historiador não ocupa um lugar auto-complacente –como
tão-pouco supõe auto-complacência a memória e a história a que
nos convidam–; é, em suma, um lugar ético. Não se trata de uma
ética relativista, antes é entendida fundamentalmente como operador heurístico. Um lance metodológico que responde cabalmente à
necessidade de “estranhar” o passado, à necessidade de lê-lo sabendo-o opaco. O livro vai reflectindo en abyme sobre o trabalho historiográfico de um modo propedêutico. A suspensão do juízo moral é
extensão da pulsão crítica necessária para situar as “palavras de
192
PEDRO SERRA
guerra” e a “guerra de palavras” no seu contexto histórico. Ainda, o
momento propriamente interpretativo-explicativo é articulado em
função do lugar moral ou cívico –o lugar do cidadão– que é precisamente o sujeito que escava um abismo entre o presente e o passado com que o presente continua a ter que enfrentar-se. O momento
culminante é aquele em que os autores reclamam, como corolário
do seu trabalho, um direito, o seguinte direito: “Estes são os motivos para ser cautelosos à hora de continuar a falar da guerra de 36
como uma guerra civil. Somos nós os que denominamos aquele
processo com este nome; ao faze-lo estamos, não obstante, a falar
da nossa guerra, não da sua, a dos nossos antepassados e avós que
lutaram nela ou foram as suas vítimas. Para evitar continuar a impostar quem a viveu e em nome de quem a contamos, neste livro
optámos por deixar de empregar essa denominação de ‘guerra civil’
comum em todos os relatos do último meio século. É uma opção a
que cremos ter direito”.17 Não é apenas uma questão de palavras, as
questões de palavras nunca são só de palavras. Sem sujeitos “civis”,
a guerra foi “social” ou “de religião”. Assim, onde se vai lendo
Guerra Civil, deverá ler-se Guerra Social ou Guerra de Religião.
Ou, ainda, Guerra Incivil.
Recordar a linguagem é o cerne do livro La guerra que nos
ha contado. El 36 y nosotros. Recordar a linguagem é repetir a linguagem na sua diferença. Em todo o caso: a palavra –enquanto revólver carregado, enquanto dinamite– é-nos mostrada no centro dos
processos históricos. Jesús Izquierdo e Pablo Sánchez León, ‘netos’
da Guerra Incivil de Espanha, escrevem para recuperar a irrecuperável língua da infância: “Nós, pelo contrário, estamos convencidos
de que sem o concurso dessas palavras não se poderiam ter feito as
coisas que se fizeram. As palavras que contém este texto têm certa
relevância para a peripécia de duas crianças que, sendo pequenos,
leram –ou acreditam ter lido– que a sua escola foi destruída por
‘hordas marxistas’, uma vez que projecta uma importante luz acerca
do sentido daquela placa comemorativa, e de passagem acerca de
toda a racionalidade subjacente a essas palavras que matavam”.18
Jesús Izquierdo y Pablo Sánchez León, no seu livro, re17
18
2006, 221.
Ibid., 217.
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
193
lêem/repetem a memória dessa infantil placa [esp. estela] do ‘Colegio Ramiro de Maeztu’, uma placa que é como aquela concha de
que falava Nietzsche: “Um instrumento de sopro feio para a vista:
primeiro é preciso soprá-lo”.19
Não é, sublinho, a pulsão historiográfica a que insufla umas
“Transições & Passagens. Figuras de uma crítica cultural da razão
histórica peninsular”. Nem sequer, ainda, um ponto de vista da narração como aquele que temos em Cravos de Abril, documentário de
Ricardo Costa,20 ou nas várias entregas do documentário La transición da jornalista Victoria Prego. Antes, o mapeamento dos cronótopos transicional/pós-transicional e revolucionário/pós-revolucionário em função dos processos culturais, como a proposta, para
ambos mundos, por Teresa M. Vilarós ou Eduarda Dionísio.21 O
saldo devolve-nos ares de família, na medida em que equacionam
esse processo pela sua subsunção ao advento da Indústria Cultural e
o Estado Cultural, ambas realidades socio-políticas determinadas
pela entrada na história dos estados peninsulares pós-ditatorias, isto
é, com a entrada na CEE em 1986, terminus a quo do cronótopo
galvanizado pela dialéctica sobrevivência do fascismo vs. utopia
democrático-socialista. Em ambos os casos, a falência dos projectos
sociais é associada à politização da cultura e à objectivação da cultura como mercadoria. Seja como for, o saldo maior é a mais instigante –e a bem dizer, inevitável– produção de diferenças.
Assim, dirá Dionísio que “a cultura (sobretudo o cinema e a
literatura, numa primeira fase) desempenhou um papel importante
na tarefa que o Poder (AD, Bloco Central, PSD) assumiu com afinco: construir uma imagem de Portugal e dar ‘autoconfiança’ aos
portugueses –duas condições necessárias ao êxito da operação da
integração na CEE, que se desenha como objectivo central, a partir
dos primeiros anos da década. São as políticas culturais que vão introduzindo os temas que os intelectuais e artistas, mesmo quando
partidariamente se lhes opõem, acabam por adoptar e que a sociedade vai de certo modo e mais tardiamente assumindo, pelo menos
no discurso: a identidade nacional, a separação entre política e cul19
20
21
Nietzsche 2005, 129.
Cfr. Costa 1999.
Cfr. Vilarós 1998 e Dionísio 1993.
194
PEDRO SERRA
tura, a inoperacionalidade da utopia”.22 Digamos que a pax politica
instaurada a partir de meados da década de 80 –Governo Cavaco
(PSD), Presidência Soares (PS)–, no que tem de ‘normalização’ da
vida político-social, significaria o início do fim do défice de modernidade que a sociedade portuguesa arrastara e aprofundara com a
ditadura.
A contraparte espanhola tratada por Vilarós, por seu turno,
toma como referência a vitória do PSOE, início da etapa do Governo González, ainda que a investigadora proponha como termo propriamente dito do período transicional a data de 1993, ano de assinatura do Tratado de Maastricht: “a razão pela qual incluo neste estudo a assinatura do pacto de Maastricht como simbólica data terminal da transição, é coerente com a vontade de integração europeia
seguida pela sociedade espanhola nestes vinte anos pós-ditatoriais, e
motor principal da mudança política basicamente não violenta seguida depois da morte do general Franco. A afirmação europeísta
seguida na pós-ditadura enlaça com a anterior eliminação de Carrero [Blanco] em 1973, enquanto figura política que tornava impossível tal integração”.23 Seja como for, esta data de 1993 responderia,
na verdade, ao programa social e político detonado pela vitória eleitoral dos socialistas em 1982.24
Enfim, um ensaio como o que proponho visa interrogar o
que se pode imaginar e pensar nos mundos teóricos, poéticos e
políticos peninsulares contemporâneos, mundos que, valendo-me de
Ortega y Gasset, se terão sentido ‘do século XX’ mas não
22
Dionísio 1993, 352. Assevera, de forma lapidar: “A partir de 85, a ‘Revolução’
que já não era uma realidade, também já não será um tema” (ibidem).
23
Vilarós 1998, 1, n. 1. Acrescenta, ainda: “Por outro lado, a vontade de integração europeia espanhola que Maastricht ractifica concorda tanto com o programa do governo socialista de Felipe González, como com os eventos culturais de 1992 (Exposição Universal de Sevilha, Jogos Olímpicos de Barcelona, Madrid como Capital Cultural Europeia,
a entrega das chaves de Sepharad à comunidad judaica, ou mesmo a pouco afortunada
‘celebração do descobrimento da América’, entre outros), acontecimentos simbolicamente
continuadores de tal programa e programados com e a partir da auto-consciência política
dedicada a conseguir uma Espanha plenamente integrada na Europa” (ibidem).
24
Labrador Méndez 2006, 89: “Por um lado, assume-se que a transição acaba em
1982, coisa completamente certa ao nível do discurso político-jurídico, e que depois começa outra coisa, nova e diferente, o que já não é tão evidente ao nível das práticas de simbolização e dos factos de cultura”.
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
195
propriamente ‘modernos’.25 Que podemos imaginar e pensar nos
‘espaços lixo’, na nossa ‘cidade genérica’?26 O que é possível imaginar e pensar no mundo globalizado, desterritorializado, fractalizado que é o “nosso” (aceitemos, provisoriamente, este tropo, certamente injusto)? Nos idos de 60 e 70, ambas ‘raças’ fundadoras de
mundos, fundadoras de impérios, geriam a custo os respectivos
‘corpos místicos’ ou, se se quiser, faziam-no com o luto que se deve
a corpos presentes. Nos restos desse planeta ibérico, nos restos dos
discursos da laus hispaniae, os cidadãos que são poetas foram
‘testemunhas’ –i.e., ‘sujeitos em deslocação’– desses lutos, sujeitos
políticos a quem faltava polis e a quem também ia faltando a poesia.
Revoluções e trânsitos chegariam demasiado tarde ou demasiado
cedo, na ressaca da longa agonia daqueles ‘corpos místicos’. Seja
como for, uma nova entrada na História em meados dos 70, num
momento em que a história era também nova: como formulou
Clifford, as topografias dos ‘testemunhos’ –interessam-me as suas
declinações poética e cívica– já não respondem àquele ‘lar’ que
fosse ‘lugar estável para contar as nossas histórias’.27
Não apostarei, claro está, por uma crono-topologia rígida,
rebaixando a tensão de quaisquer datas “culminantes”. Sim respondo a uma Península das Ditaduras enquanto Península de Imagens,
enquanto, diria, Península Estética. É necessária, obviamente, uma
drástica redução fenomenológica desta Península Estética, redução
que devolve o carácter ensaístico da minha proposta. As imagens
que detonam o meu ensaio, contudo, se resistem a ser conceito de
um cronótopo, são aquelas “imagens mais ricas possíveis da alteridade histórica”.28 Assim, se na iconografia de Francisco Franco se
destaca a inquietante imagem final da agonia de um ditador prostrado numa cama de hospital, entubado, encordoado a máquinas que
lhe prolongam artificialmente a respiração vital, da iconografia de
Oliveira Salazar podemos relevar –na esteira é certo da invectiva
republicana– a imago de um “fradalhão de Santa Comba”.29 Se, por
25
Cfr. Ortega y Gasset 1963.
Cfr. Koolhas 2006 e 2007.
27
Cfr. Clifford 1989.
28
Gumbrecht 1998, 11.
29
Esta imagologia do ditador é bem conhecida, integra a “construção do mito” e
circula na imprensa escrita desde o início do estado de excepção ditatorial. Cfr. Matos
26
196
PEDRO SERRA
um lado, temos um “Franco como cyborg”, na feliz formulação de
Francisco Larubia-Prado,30 sintagma que nos devolve um corpomáquina, significante maior de uma ditadura que perfez o aggiornamento científico-técnico responsável pelo desenvolvimentismo
sessentista da sociedade espanhola, factor determinante no ulterior
processo transicional; por outro lado, no ‘caso português’ –que poderíamos reescrever nos termos de uma proposição que seja “Salazar cum asceta das finanças”– temos o significante de uma ditadura
que projectou de si uma imagem beata, sacrocatólica, refracção de
uma sociedade estruturalmente ‘rural’ e anti-urbana, pré-moderna e
alimentando como seu principium individuationis a reprodução das
estruturas mentais e materiais dessa pré-modernidade.
Diria que se vislumbra, na cifra simbólica da noite salazarista, algo como uma hagioditadura –passe o neologismo, que arrisco
com propósitos–, aquela que é tatuada por um ditador que se constrói como máquina célibe, uma tecnologia celibatária que tem, seguramente, na “retórica da invisibilidade” de que fala José Gil um dos
2003 e 2004. Trata-se não só de um complexo imagético das contra-imagens da ‘oposição’
à figura do ditador, como do próprio modo como Salazar se projecta no espaço público.
Helena Barbas recolhe o seguinte lugar de uma carta anónima dirigida ao providencial
‘Ministro das Finanças’, datada de Junho de 1928: “desejais impor a perto de seis milhões
de habitantes as vossas teorias, próprias dum sacristão de há duzentos anos! Então imbecil
e parvo, não vês que administrar as finanças dum país não é papar hóstias? § Vai para um
convento, antes que o Povo te dê o correctivo que mereces. Pois tu, parvalhão, não mereces sequer o desperdício de uma bala... vai pois para onde estavas, debaixo das saias da
mamã, ou então, não é demais repetir, vai para um convento” (vol. I, ed. cit., p. 35). Sobreleve-se, nos tempos conturbados da pós-monarquia republicana, tempos ‘fora dos gonzos’,
os tropos utilizados. Já em 1932, entretanto, se concretizara a versão positiva da imagologia, na representação pública de um “asceta das finanças”. Helena Barbas faz a seguinte
reflexão a este respeito, e a propósito da intervenção de um Salazar-pai-dos-pobres noticiada no Diário da Manhã de 26 de Janeiro desse ano: “Mas em Janeiro de 1932, a história,
pelo seu carácter inédito, chama a atenção e acaba por ser um dos primeiros elos na cadeia
de notícias, editoriais e entrevistas que, desde o início deste ano, dão conta de uma mudança qualitativa na forma de apresentar Salazar. Agora que estão assegurados os seus créditos técnicos, é sobretudo das suas qualidades morais que chegou a hora de falar; daí a importância destas pequenas histórias protagonizadas por crianças, pobres e estrangeiros, ou
seja, personagens que pela sua idade, estuto social e origem geográfica têm a pureza de
atitudes inerente aos que não têm nem influência directa nem interesses pessoais a defender na vida política portuguesa” (ibidem, p. 223). Sublinho, agora, a construção de um
‘sujeito moral’ que, com ser inventio, tem uma dimensão estética. Como mais adiante esclareço, é a poética da política do corpus ditatorial que tenho no horizonte de análise deste
ensaio. Estetização do político e suas tecnologias, afinação das diferenças nas ditaduras
peninsulares.
30
Larubia-Prado 2000, 135-152.
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
197
seus traços mais determinantes.31 Uma “retórica sem retórica”, um
discurso de verdade que independe de consensos, uma retórica que,
muito ao jeito do contemptus mundi de eremitas e cenobitas, mortifica absolutamente o corpo. Como argumenta José Gil, Salazar –que
não é um orador– faz assentar o seu discurso de verdade, e a sua
engenharia de almas, numa máquina discursiva objectivada em “pedaços de prosa que foram ditos”. A hagioditadura é uma tecnologia
escritural que impostou a voz, subrogando-a. A hagioditadura é uma
máquina celibatária, como quer que seja, excretando terminantemente a “passionalidade” da loquacitas, calcando a física da oratória e do orador. É este o fulcro enigmático da “retórica sem retórica”, na formulação de José Gil: “como pensava ele comunicar ‘profundamente’ –já que esta era a sua intenção confessa– com os seus
auditores, se recusava toda a dimensão ‘passional’ ou ‘irracional’ da
eloquência (aquilo que Aristóteles designava por atechnon, ‘sem
arte’)? Questão ainda mais intrigante, se tivermos em conta que ele
sabia sem dúvida que a ‘racionalidade’ e a ‘clareza’ dos seus discursos eram incapazes de, por si só, provocarem a convicção dos
‘corações’, como dizia”.32 Escrita que imposta a voz, ou seja, língua
natural que oculta o ser produção de natureza segunda, rasurando no
mesmo lance metafísico a organicidade de corpos gestantes. Salazar
incriado, ou auto-inventando-se como sujeito da História. Salazar,
hipermassa encefálica de um sacro-império que, para se inventar
‘corpo místico’, segrega detritus. Emblema da extirpação desse lixo,
da ‘mística imperial’ como clínica que intervém directamente no
coffret do crânio: a lobotomia humanista de Egas Moniz, cutelo na
língua, violentação da gramática, como mostram Joaquim Jordà e
Núria Villazán no documental Mones com la Becky (1999).33
A hagioditadura, a máquina celibatária, opera sobre este horror corporis, esta mortificação da corporeidade, instaurando um cenário de reprodução dos seus valores e diktakts em grande medida
semelhante à leitura seminarista/conventual e suas determinações.
A imago de um “fradalhão de Santa Comba”, muito embora a vis
satírica que a insufla, pertence à simbólica que envolve o cronótopo
31
Refiro-me ao ensaio Salazar: a Retórica da Invisibilidade. Lisboa: Relógio d’
Água, 1995.
32
Op. cit., p. 11.
33
Cfr. Jordà 1999.
198
PEDRO SERRA
salazarista, uma simbólica que, num dos seus ângulos, remete para
o imaginário peninsular sacrocatólico e os seus exempla sacerdotais
e celibatários. Ora bem, como tentativa de entrada nesta problemática, proponho uma outra imagem que percorrerá, como epígrafe, o
ensaio que se segue. Um micro-retrato do ditador que encontramos
no primeiro romance de António Lobo Antunes, Memória de Elefante, publicado pela primeira vez em 1979.34 Esta imagem funcionará, por certo, como primeira estação da análise da figura que venho chamando ‘hagioditadura’, uma imagem que, antecipo já, atrai
outras imagens. Seja, pois, o lugar do romance que sobrelevo, locus
textual em que acompanhamos o fluxo de consciência da personagem central, o psiquiatra, enredado na interpelação paroxística de
um “colega” (na cena romanesca desconversa-se sobre “África”,
outra corporeidade excrementícia mortificada pelo corpo místico
imperial), colega cuja nomeação é amplificada no sintagma “padeira de Aljubarrota do patriotismo à Legião”:
Que sabe este palerma de África, interrogou-se o psiquiatra, para
além dos cínicos e imbecis argumentos obstinados da Acção Nacional Popular e dos discursos de seminário das botas mentais do
Salazar, virgem sem útero mascarada de homem, filho de dois cónegos explicou-me uma ocasião uma doente, que sei eu que durante durante vinte e sete meses morei na angústia do arame farpado por conta das multinacionais, vi a minha mulher a quase
morrer do falciparum, assisti ao vagaroso fluir do Dondo, fiz uma
filha na Malanje dos diamantes, contornei os morros nus de DalaSamba povoados no topo pelos tufos de palmeiras dos túmulos
dos reis Gingas, parti e regressei com a casca de um uniforme imposta no corpo, que sei eu de África?35
Ecce imago: “Salazar, virgem sem útero mascarada de homem”. Retrato mínimo do ditador que no-lo representa, diríamos,
em regime de cross-dressing feminino. Mas um regime peculiar,
uma vez que conjuga a impostura de uma máscara “de homem”
(sobre um corpo feminino) com uma figuração do feminino a que se
rasurou um princípio de individuação (sexo/género), a matrix uteri34
Utilizo a seguinte edição: Memória de Elefante, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1987.
35
Op. cit., ed. cit., p. 43. Eu sublinho.
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
199
na (a maternidade enquanto papel social e o órgão físico que o inscreve). Podemos indexar este constructo teratológico ao discurso
figural da hagioditadura, o passo transcrito, de resto, menciona explicitamente os “discursos de seminário” salazaristas. Noutro lugar
do romance, ainda, descreve-se o país do cronótopo estadonovista
como “seminário domesticado”.36
“Franco como cyborg” –como propôs em tempos Francisco
Larubia-Prado e retomou, recentemente, Teresa M. Vilarós37– e
“Salazar, virgem sem útero mascarada de homem”, certamente dois
ícones dos corpora místicos imperiais peninsulares prédemocráticos, da cronotopologia da “morte lenta” em declinação
ibérica. Ícone visual, de um lado; ícone de factura verbal, do outro.38 Seja como for, imagens cuja poética e cuja política instiga a
leitura. No amplo comentário ecfrástico que leva a cabo a partir da
célebre fotografia publicada em La Revista nos idos de 1984, Vilarós destaca precisamente: “De forma perversamente poética la política se torna poesía en el cuerpo-cyborg del dictador”.39 Sem dúvida
a fotografia expõe a imbricação e esbatimento do binómio homem/máquina numa cyber-ditadura, num cyber-ditador, seja ele
Franco ou Salazar. Salazar: também ele um híbrido que integra o
humano e o maquínico, o sujeito e a tecnologia (low tech) da escri36
Antunes 1987, 66-67.
Vilarós 2005, 30-56.
38
No caso da imago “Salazar, virgem sem útero mascarada de homem”, é verdade,
não podemos falar propriamente de um ícone. Entendo-a, contudo, como potente cifra
ficcional, imagética miniaturizada, de toda uma iconografia que participou na “construção
do mito” Salazar.
39
Op. cit., p. 34. O ensaio de Teresa M. Vilarós, incidindo num primeiro compasso sobre a imagem de Franco-cyborg, acaba por propor uma nova imagem forte, um novo
emblema, um novo ícone: o do banho de Fraga Iribarne em Palomares, após o conhecido
acidente nuclear ocorrido em 1966. Do meu ponto de vista, o argumento da ensaísta supõe
um desforço por encontrar uma nova imagética poético-política que, retroactivamente, relê
a década de sessenta –fulcral para o posterior processo transicional– em função já não da
sobrevivência do franquismo –enquanto macro-aparato disciplinador, moderno (o ensaio
segue Foucault), mas em função do embrionário desenvolvimento de uma “biopolítica”
que cruza, sem sobressaltos, os tempos do tardofranquismo e a democracia. A Espanha do
Turismo e do Tijolo (i.e., do crescimento imobiliário), a Espanha pós-moderna, póspolítica, neoimperial e neoliberal, em tempos do capitalismo globalizado, como vai argumentando Vilarós, é melhor representada pela fotografia do banho de Fraga, ministro do
Turismo, e do embaixador norte-americano, Duke. De algum modo, a eleição da nova
imagem funciona no contexto actual “revisionista”, no âmbito da chamada “segunda Transição”.
37
200
PEDRO SERRA
ta, em demanda de um irrealizável –Portugal sujeito transcendental
de uma destinação providencialista, corpo místico determinado por
uma missão histórica –, dínamo transformador de consciências que
funciona ininterruptamente e ad aeternum, líbido canalizada numa
auto-satisfação solitária. Em clave alegórica, no Dinossauro Excelentíssimo (1972) de José Cardoso Pires diz-se-nos dessa voz impostada na escrita e tecnologias que exponencialmente a potenciaram: gravação, telex, telégrafo, satélite, jornais, rádio, televisão... o
scriptorium do professor/imperador é um “altifalante”.40 Scriptorium-altifalante: outro emblema do prazer narcísico no cronótopo salazarista, Portugal-baleia/spermacetus orwelliana.41
E, todavia, pretendo ensaiar neste texto a análise de um outro aspecto não contemplado por Vilarós em relação à fotografia de
“Franco-cyborg” e que, por seu turno, a imagem de um “Salazar,
virgem sem útero mascarada de homem” sim expõe. Há um punctum na fotografia publicada em La Revista em 1984 que não entra
na reflexão proposta em “Banalidad y biopolítica”: refiro-me à figura da enfermeira que, situada no ângulo esquerdo da imagem do
ponto de vista do observado, se confunde com o décor maquínico.42
Não lhe vemos o rosto, duplicando-se assim a invisibilidade. Rosto
que significa muito nessa sua colocação “fora” do enquadramento,
nessa sua ausência que deixa o rasto do ausente. E todavia, se reintegrarmos esse corpo feminino incompleto, des-figurado, ao conjunto pictórico, vislumbramos, paulatinamente, uma enigmática e sem
dúvida perversa Pietá. Sim, a enfermeira erguida nas suas atenções
maternais assépticas e o ditador no entre-dois vida/morte, configuram uma outra cena, ou melhor, suplementam o tropo do esbatimento homem/máquina que tem vindo a ser glosado.43 Uma cena que
40
O “Imperador” –como é nomeado o ditador– “Continuava a discursar –mas em
privado, no gabinete. A voz escrita e gravada seguia direitinha aos continentes universais
através das agências telexe e do telégrafo traço-ponto; entrava em órbita, perdurava já
distante das leis da terra como um eco... eecooo... Logo pela manhã o Imperador encontrava-a reproduzida nos jornais, e era admirável no fraseado e no subentenda-se, o pensamento a desdobrar-se. A rádio e a televisão transmitiam-na entre marchas invencíveise compassos de procissão, um-dois, esquerda-direita, laus Deo; o altifalante do gabinete despejava-a continuamente.” (Pires 2003 [1.ª ed.: 1972], 59).
41
Cfr. Orwell 1986, 47 e ss.
42
Cfr. Vilarós 2005, 35.
43
Numa outra oportunidade farei considerações mais elaboradas sobre as diferentes valências do uso poético e político do cyborg em Vilarós e Haraway. Registo, desde já,
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
201
sobreleva um espaço íntimo e privado, uma óikos, um lugar doméstico em que comparece um outro binómio: homem/mulher. Suplemento, de facto, pois o tubo introduzido na boca do ditador, para
além de o acordoar à máquina, sugere uma conexão umbilical à enfermeira.
“La agonia de Franco” publicada em La Revista em 1984:
Pietá perversa, sacroprofana, desfigurando-se: a enfermeira, dir-seia, quer sair ‘daquela’ cena. A célebre fotografia impõe-nos um regresso, uma revisitação, que dê conta de uma tensão: recuperando
para a cena pictórica a figura feminina, é como se a fotografia nos
representasse não apenas a comparência do cyborg, mas também a
resistência ao cyborg. Reinscrevedo na cena a questão do sexo/género, como que recuamos um pouco no salto pós-genérico
[“post-gender”] que um cyborg simboliza, como articulou Donna J.
Haraway.44 Verifica-se uma continuidade equívoca entre a enfermeira e a máquina, o que sem dúvida reedita a contiguidade “moderna” entre o elemento femenino e o maquínico.45 Em todo o caso,
um resto de Natureza, talvez já só o seu cadáver posposto, a casca
oca de um mito de origens, a facies hippocratica do seu regime de
dominação.
No engendro “Salazar, virgem sem útero mascarada de homem” –imagem do romance de António Lobo Antunes, livro percorrido pela náusea, por diferentes náuseas e abjecções; figura maior do “abjecto”: o ditador, precisamente –, neste corpo ditatorial
aberrante, também comparece a questão do sexo/género. Para esta
imagem de Salazar, como para a imagem de Franco, valerá a seguinte questão formulada por Donna Haraway: “Cyborg ‘sex’ restoque a comparação deverá partir da seguinte base. Se, em Haraway, o cyborg é um mito
pleno de potencialidades utópicas, em Vilarós, por seu turno, o que temos é o oposto: o
cruzamento homem/máquina configura uma distopia. Do meu ponto de vista, o ensaio de
Vilarós demoniza a máquina, certamente na esteira de uma tradição de teoria crítica muito
descrente de possíveis maquínicos, descrente da mecanização de possíveis.
44
Cfr. 1991, 150.
45
Na Modernidade, a ergonomização da Máquina é um processo fundamentalmente erótico: “Le plus souvent, les diverses transpositions de la machine –et la féminisation ou érotisation implicite ou explicite qui l’ accompagne– mettent entre parenthèses sa
dimension et sa masse propres. Partenaire de l’ homme, la machine s’ adapte silencieusement à sa taille, à ses proportions, à ses mesures, et une ‘anthropo-métrie’ truquée se charge de corriger les décalages les plus choquants entre les deux échelles” (Quiguer 1979,
270).
202
PEDRO SERRA
res some of the lovely replicative baroque of ferns and invertebrates
(such nice organic prophylactics against heterosexism). Cyborg replication is uncoupled from organic reproduction”.46 Novo input,
ainda que, penso, não perdemos a conexão argumentativa: o input
da teratologia barroca. Mais adiante darei continuidade a esta replicação do barroco, que muito importa para a noção proposta de uma
‘hagioditadura’.
Como quer que seja, sublinho neste momento o retorno da
máquina celibatária, que tem no micro-retrato destacado de Memória de Elefante a sua exposição. A máquina celibatária, no que possa ter (e tem) de “cyborg”, rasura a reprodução orgânica, carece de
útero, mortifica o corpo feminino “virgem”. A partenogénese47 do
ditador –concluirei este ensaio, precisamente, recuperando este desdobramento da imagem eleita do romance de António Lobo Antunes –, o “Salazar” continuado por “Salazarzinhos” detona a língua
da “heterossexualidade compulsória”48 e suas estabilidades figurais;
fá-lo, assim, produzindo ‘monstros’ como o colega do psiquiatra,
“padeira de Aljubarrota”. A detonação é, ainda, responsável pela
“máscara de homem”, trajo impostado, casca oca. Tanto na “virgem
sem útero” como na “máscara de homem” temos contrafacta que,
com ser mimos (paródias), o são de uma natureza cuja faculdade
originante e cuja origem assenta na naturalização de sexos/géneros
e marcação biológica de corpos. Imaginário do cronótopo salazarista, todo ele subsumível à ontologia do cross-dressing: “asceta das
finanças”, “botas mentais” ou “casca de um uniforme imposta no
corpo”, entre outras mascaradas cuja metafísica se manifesta, no
mundo prático, com violência.
Seja, de momento. O que a imago também convoca é todo
um imaginário sacrocatólico, genealogia da hagioditadura. Não andam longe da potente imagética de uma “virgem sem útero” os exempla femininos da legenda aurea. Mais concretamente, e dada a
amplificatio da imagem com o sintagma “mascarada de homem”, o
pequeno núcleo de fábulas hagiográficas que narram as vitae de
“santas que foram monges”. Santas que “tomaram trajo de homem”,
46
47
48
Op. cit., p. 150.
Utilizo o termo a partir de Mourão 2001, 87-97.
Sigo Butler 1990. Butler modula a conhecida noção a partir de Adrienne Rich.
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
203
santas que se travestiram de modo a entrar na instituição cenobítica.
Ora bem, proponho como estação necessária da prospecção da ‘hagioditadura’, da ditadura como máquina celibatária, a recuperação
destas legendas que activam o motivo do travesti feminino, o motivo do cross-dressing feminino, um motivo que certamente replica
no micro-retrato de um “Salazar, virgem sem útero mascarada de
homem”.
Concluo, do cross-dressing hagiográfico à hagioditadura,
máquina celibatária, “Salazar, virgem sem útero mascarada de homem”. Emblema poético-político de uma esterilidade produtiva.
Mais acima comprometia um retorno à partenogénese do ditador.
Eis o desdobramento da imagem no romance de António Lobo Antunes: “No fundo, meditava o médico contornando o Jardim das
Amoreiras, o Salazar estoirou mas da barriga dele surgiram centenas de Salazarzinhos dispostos a prolongarem-lhe a obra com o zelo
sem imaginação dos discípulos estúpidos, centenas de Salazarzinhos igualmente castrados e perversos, dirigindo jornais, organizando comícios, conspirando nos entrefolhos das Donas Marias deles, berrando no Brasil o elogio do corporativismo”.49 “Salazar, virgem sem útero” excreta uma ninhada teratológica, máquina celibatária que perfaz a sua autonomia e movimento autónomo pela execração. Lemo-lo, enfim, na hagiografia salazarista escrita por Franco Nogueira: em Abril de 1928, “todo vestido de escuro, como de
luto, tem o ar ascético, escanhoado e nítido, de um clérigo anglicano ou de um sábio alheio ao mundo”50; aos 57 anos, no imediato
pós-guerra, integra uma genealogia –que o hagiógrafo sublinha ser
cristológica– onde figuram “o Infante, D. João II, Albuquerque,
Pombal, os heróis, os Santos, os poetas, os sábios, os obscuros, os
que não deixam pegadas na areia”;51 e nesse mesmo Verão de 1945,
“sente por tudo e por todos, uma repugnância, uma saturação, uma
misantropia invencível”.52
A 25 de Novembro de 1975, na conferência “In Memoriam
F. F. B. 1892-1975”, proferida num encontro de hispanistas na Li49
50
51
52
Antunes 1987, 122.
Nogueira 1978, 1.
Ibidem, vol. III, 590.
Ibidem, vol. IV, 11.
204
PEDRO SERRA
brary of Congress, Washington, Juan Goytisolo leva a cabo, como
podemos ler no título, uma significativa subtracção. Reduz a sigla
um nome, um nome próprio agora grafado com três letras capitulares: ‘F.’, ‘F.’ e ‘B.’. Antecipa assim, pelo título, um exercício de
luto, mas de um luto impossível, pois o nome de cuja memória se
faz o in memoriam é um nome inominável: no mínimo, no hic et
nunc da apresentação pública, o conferencista oferece resistência à
vocalização do nome. Em lado nenhum deste obituário redigido por
Juan Goytisolo se pronunciará o nome, que deste modo priva o antropónimo de invadir o sopro e as cordas vocais do seu corpo presente. Dir-se-ia que vocalizar ‘F. F. B.’ –enquanto des-escrita do
nome próprio– é como cantar o Cara al Sol, desrealizando-o, no estudio de montagem de Canciones para después de una guerra, de
Basilio Martín Patino,53 documentário concluído já em 1971 mas
apenas publicitado em 1976.
Em certo sentido, a subtracção visa ‘estranhar’ a estesia desse nome próprio, desautomatiza-a, num movimento que nos devolve, assim, uma voz e uma escrita levantadas sobre uma aporia. O
ausente, na redução do nome, ou (i) nos devolve um excesso de presença ou (ii) uma cifra escrita, uma sigla, que opera uma rasura. A
fórmula ‘F.F.B.’ não solicita um auditor/leitor que se lançasse a um
jogo de linguagem detectivesco. In memoriam: a pulsão rememorativa conjura, na verdade, um esquecimento. Rememoração impossível, sim, mas esquecimento igualmente impossível. O objecto referenciado –distinga-se, claro, referenciação de referente– é, enfim,
representado, é assumido pela plena autonomia do verbo, que sempre acontece na posteridade da coisa.
Esta perda estrutural do verbo, esta perda do obscuro objecto
de desejo –aquele complexo desejo que se pode manifestar em conhecidos enunciados como “contra Franco estávamos melhor”–,54
53
Conta o próprio Martín Patino, ao recordar o processo de montagem do documentário: “Acumulei todos os planos que havia sobre a entrada em Madrid e montei-os
dando-lhes uma estrutura in crescendo –uma pura armadilha de montagem– ambientandoos ao ritmo do Cara al Sol, que cantámos todos os membros da equipa [de montagem] no
estudio (os Viva España são igualmente nossos). Era o complemento enriquecedor destas
imagens. Não é um Cara al Sol realista” (apud Conesa Navarro 2006, 92).
54
Eu sublinho. O enunciado, da responsabilidade de Manuel Vázquez Montalbán,
tem sido lido e capitalizado como uma máxima geracional, lema que alude a uma geração
que, tendo lutado contra o regime franquista, acabará por se desfuncionalizar com o adven-
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
205
revela, nessa assunção da autonomia da escrita, uma mais ampla
perda de mundo. É esta perda de mundo pela qual começa, precisamente, Juan Goytisolo: «Há acontecimentos –diz-nos no limiar da
conferência– que, de tão esperados, quando finalmente têm lugar,
perdem completamente a impressão de realidade ».55 Atentemos,
pois, neste dispositivo mortuário complexo, de um luto sempre a
vir, da compulsão do luto, da interacção rememorativa desse Outro
fúnebre. Não se trata de um mecanismo de acedia, nem de fazer da
rememoração um mecanismo de identificação com o mundo perdido, com esse nome miniaturizado.
O in memoriam, na sua aporética estrutural, mata e não mata
o morto. Por outras palavras, instala o sujeito escrevente, porque
escrevente, numa retórica da temporalidade. Instala o sujeito escrevente numa perturbação discursiva: a da impossibilidade de o verbo
nomear essa morte, que é como quem diz, negar esse morto. Não é
possível, por outras palavras, performativizar a memória do morto.
O círculo é vicioso. O círculo é, enfim, traumático, devolvendo-nos
um sintoma: o sintoma do trauma justamente. A 25 de Novembro
de 1975, uma conferência ‘em memória’ de Francisco Franco Bahamonde enovela-se num trabalho de luto que é também labor
traumático.
Como, por esses mesmos idos, formula uma cidadã na rua
recém conquistada: a morte de Franco chegava “demasiado cedo ou
demasiado tarde”. Veja-se o rosto e a voz dessa cidadã no documentário Después de... (1981) de Cecilia Bartolomé e José Bartolomé,56 concretamente na primeira parte, titulada No se os puede
dejar solos, fascinante testemunho coral do prematuro divórcio, no
período de transição da ditadura para a democracia, entre o processo
social e o espectáculo político pós-franquista. O embaraço temporal
valerá também para o advento da Revolução dos Cravos, sem dúvito da Transição. O enunciado, segundo creio, opera a dois níveis, referenciando tanto um
‘estado de mundo’ como auto-referenciando a linguagem de um presente de enunciação.
Ambos mundos ‘em perda’.
55
Goytisolo 1978, 11. Ao longo deste ensaio, todas as traduções do espanhol para
o português são da minha responsabilidade.
56
Bartolomé & Bartolomé 1981. O conjunto fílmico é, como estabelecem, num
ensaio notável, Labrador Méndez & Monasterio 2006, 45: “documento gráfico de uma
transição contada do ponto de vista da cidadania e da opinião pública”.
206
PEDRO SERRA
da. A derrocada do salazarismo e a sua recidiva marcelista acontecia ‘demasiado tarde’ –a Guerra Colonial foi também resultado dessa morosidade– e ‘demasiado cedo’ pois lançava de bruços uma sociedade estruturalmente pré-moderna na versão europeia da póshistória neoliberal, i.e., no mercado da CEE. Sociedade de consumo, liberalismo económico, capitalismo tardio, que sobrevém como
algo súbito. Especialmente eloquente é, neste sentido, a sequência
dos verdugos Antonio, Vicente e Bernardo em peregrinação pela
ruas de Madrid, no documentário Queridísimos verdugos (1973) de
Basilio Martín Patino.57 Deambulação urbana de figurae simbolicamente fulcrais para o aparelho de estado franquista, a sequência
mostra-nos uma visitação por uma cidade crepuscular iluminada por
néons, acelerada e seccionada por automóveis, e estimulada por
uma líbido fria de montras e manequins; cidade em pleno desenvolvimento, contrastando com o tempo dos verdugos –no filme, três
rostos, três máscaras, três avatares do ditador Franco, nesses idos de
73 já uma presença ausente–, própria de uma “Espanha Negra”, supostamente cainita. A sequência, do meu ponto de vista, instiga duas leituras: tanto a ‘irrupção’ dessa nova Espanha na temporalidade
lenta e anacrónica do cronótopo franquista; como a ‘irrupção’ dos
verdugos na temporalidade progressiva de uma sociedade já imersa
no consumismo. Península Negra de garrotadores cordiais.58 Entranháveis verdugos, também eles victimizados pela máquina repressora do estado ditatorial, sociedade sobrecarregada por entranhas
inquisitoriais objectivadas em tecnologias de repressão e teatros de
violência; enfim, por uma perversa gramática de Manual de Inquisidores (1996) como propôs António Lobo Antunes. Península Negra que regurgita a sua metafísica ‘barroca’, como têm vindo a articular Fernando R. de la Flor para o caso espanhol e Boaventura
Sousa Santos, para a ala lusitana.59
57
Filmado em 1973, só seria exibido em salas comerciais em 1977.
Como assevera um dos verdugos do garrote vil retratados por Basilio Martín
Patino: “Este é um ofício que todo aquele que tiver coração pode desempenhar”.
59
Cfr. R. de la Flor 1999, entre outros títulos possíveis deste autor; e Santos 1996,
135: “Em meu entender, o elemento barroco da cultura portuguesa faz com que a mimesis
da ‘civilização superior’ ocorra sempre com uma distância lúdica e um espírito de subversão, selectiva, superficial e ambiguamente combinados com a dramatização do próprio, do
vernáculo, do genuíno”. Salvadas distâncias e difereças nos implicados, tento modular o
cronótopo peninsular sub specie “hagioditadura”, enquanto avatar dessa regurgitação ‘barroca’.
58
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
207
O documentário dos irmãos Bartolomé supra citado não identifica a cidadã cujo enunciado ilumina a complexa retórica da
temporalidade dos tempos peninsulares transicionais. Dir-se-ia uma
voz anónima, mas a sê-lo é-o daquele anonimato que atravessa o
social na chamada Modernidade. De um lado, Juan Goytisolo, o intelectual comprometido, o sujeito moderno que possui assinatura,
sujeito escrevente que escava a sua autonomia moral através da escrita. Do outro, uma cidadã anónima que, em pleno processo de
transição, adquire uma voz assistida pela mediação da imagem filmada. Ambos sujeitos situados no enredo de um tempo fora dos
gonzos.
Emblema maior desta retórica da temporalidade peninsular é
o documentário El desencanto que trata, como é sabido, do círculo
vicioso do luto da família do poeta Leopoldo Panero, que morreu
em 1962. Filmado pouco tempo antes da morte do caudilho, começa
e acaba com a estátua de Leopoldo Panero ominosamente encasulada por um plástico que a reveste por completo. Estátua comemorativa, inagurada em cerimónia pública a 28 de Agosto de 1974. Dirse-ia que morta e enterrada, a figura paterna permanece presente
encasulada nessa roupagem de plástico. É bem a figura do fantasma
que, invidente, ainda observa os vivos que por ele se sentem observados. Eis a primeira imagem, pois, esta imagem de uma estátua,
por definição invidente, mas cujo olhar ainda tutela o mundo dos
vivos. Não será necessário recordar o seu valor alegórico, que de
resto devolve bem a importância do documentário de Chávarri, de
1974, para compreender a cultura da chamada Transição Espanhola.
A elevação de El desencanto a emblema maior do processo transicional é assinalada imediatamente, tal o convite de Jorge Semprún
no prefácio do script do filme, publicado nos finais de 1975: “há
que escutar –eis a injunção de Semprún– estas vozes que falam de
nós, daquilo que é mais obscuro e subterrado da nossa intimidade”.60 Quem ousa pronunciar este ‘nós’ remete-nos para a tradução
política da obra.
Entretanto, num ensaio notável, Teresa M. Vilarós virá a argumentar como a figura do poeta morto mas ainda presente, é bem a
alegoria da ausência do ditador enquanto figura paterna e patriarcal
60
Semprún 1975, 17.
208
PEDRO SERRA
também ela omnipresente.61 O plástico produzirá essa presença do
ausente, ao mesmo tempo que no-lo devolve na sua absoluta distância. Tem vindo a ser lido esse irrepresentável encapsulado no plástico. Todavia, poderemos suplementar essa leitura com uma ponderação do plástico enquanto tal. Como lembra Roland Barthes, burguês
na origem, o plástico perfaz algo insólito: a banalização prosaica
das aparências, a des-hierarquização das substancias. Realidade negativa –quer dizer: não existe um ‘plástico enquanto tal’, nem a sua
ontologia responde à mimese–, o plástico devolve-nos um mundo
que inexiste, por isso que é todo ele plastificável.62 Eis a hipótese,
então, de uma sua leitura em El desencanto: o plástico envolve a
ausência do patriarca poeta, o plástico seria a forma não-mimética
dessa ausência.
Seja. Mas acrescentaria agora que é também no entre-dois
da presença e da ausência que podemos ler o plano em contraluz de
Felicidad Blanc no documentário El desencanto (1976). Mulheríssima do poeta Leopoldo Panero, mãe de Juan Luís, Leopoldo María
e Michi: sozinha, sentada num sofá, recordando –na casa vazia de
Castrillo de las Piedras (Astorga)– os momentos fulcrais do enamoramento e casamento com Leopoldo. O registo fotográfico do filme
de Jaime Chávarri,63 diríamos, sublinha ainda mais o efeito de contraluz; um excesso de luz –uma revelação sobre-exposta, ‘queimada’– vai como que absorvendo Felicidad Blanc. Ao mesmo tempo,
eis-nos perante a figura de Felicidad Blanc instalada, também ela –
como Goytisolo ou a cidadã anónima– numa aporia enunciativa.
Por um lado, a demanda do íntimo, tanto pessoal como familiar,
demanda crepuscular pautada pela Sonata para piano n.º 20 en Lá
Maior, D 959 de Schubert. Este íntimo demandado é a sobrevivência do oitocentismo romanesco que a identifica. Felicidad Blanc
imagina-se heroína de romance do século XIX, uma Mm. Bovary.64
Um rasgo que, como mais adiante explicito, a assimila a uma qualquer personagem de ficção, e.g. Maria dos Prazeres de Uma Abelha
na Chuva (1953) de Carlos de Oliveira.
61
Vilarós 1998, 47 e ss.
Cfr. Barthes 1957.
63
Ideia inicial de Michi Panero, o documentário acabaria por ser dirigido por
Jaime Chávarri e produzido por Elías Querejeta.
64
Cfr. Blanc et alii 1975, 100.
62
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
209
Complexa matéria também a exposta pelo romance familiar
dos Panero. Vejamos. Se lermos de perto uma interpretação do caso
como a que é levada a cabo por Teresa Vilarós65, damos conta da
centralidade que nela ocupa a figura do poeta Leopoldo Panero, o
pater familias. Todavia, na leitura que proponho gostaria de centrar
a atenção em Felicidad Blanc. Ou melhor, suplementando o elenco
de casais atrás discriminado, em Felicidad/Leopoldo. Mais ainda,
farei a entrada no círculo do trauma familiar através da mater familias. Para tanto, recorro ao volume Espejo de sombras, publicado
em 1977, relato autobiográfico de Felicidad Blanc, onde se diz do
fim de uma propriedade: a casa de família de Felicidad, a casa paterna.
Memória de ausências, nascida da falta, nascida de um vazio
que, contudo, deixa uma marca indelével: “A casa já não existe,
mas volto a vê-la na minha memória na parede deteriorada da escadaria, ou naquela aldraba estragada que não fecha, ou naquela roseira doente à esquerda que nunca cresceu como as outras. Pormenores
que aparentavam ser nada e que, contudo, com o passar do tempo,
regressam com a humildade das coisas pequenas em que um dia te
fixaste, objectos que olhaste com o desdém com que observas o que
é susceptível de ser um dia arranjado. E agora são elas que te atraem e que transportas contigo ao subir, na lembrança, aquelas escadas, ou abrir aquela porta que já nada abrirá”.66 Felicidad pretende,
assim, resolver o problema económico da família depois da morte
do poeta Leopoldo Panero.
A venda da casa paterna remonta a 1964, dois anos depois
da morte do marido. Salva, nessa ocasião, os móveis de família, que
traslada para Castrillo de las Piedras, a casa em Astorga onde viveu
com Leopoldo e onde nasceram Juan Luís, Leopoldo María e Michi.67 Tão-pouco essa propriedade acabará por pertencer-lhe, é he65
Cfr. Vilarós 1998.
Blanc 1977, 230.
67
Lemos em Zavala 1998, 125: “A medio camino del triunfo y la derrota cabe
situar la obra de Felicidad Blanc, Espejo de sombras (1977), viuda del poeta falangista
Leopoldo Panero, otro ejemplo de documento hablado cuya confección final es debida a
Nati Massanés de quien, por lo visto, surgió la idea del libro a raíz de visionar la película
El desencanto, un sorprendente y audaz ejercicio de libertad al exponer ante la cámara la
vida de la familia Panero”. E, ainda no mesmo lugar: “El resultado es excelente: el relato
de Felicidad Blanc se desenvuelve, en efecto, en medio de sombras pero lo bastante explí66
210
PEDRO SERRA
rança dos filhos e dos irmãos do marido. Também no documentário
se faz alusão à venda dos bens patrimoniais, neste caso o recheio da
casa de Castrillo, em Astorga. Em primeiro lugar, venderam-se os
livros, vendeu-se a biblioteca do poeta falangista Leopoldo Panero.
De tal modo que, quando revisitado Castrillo de las Piedras, a casa é
já uma casa esvaziada, destripada. São, aliás, vários os travellings
por esse espaço doméstico ausente, que a câmara de Chávarri vai
sublinhando na sua espectralidade e tumularidade, com uma veemência melancólica acompanhada pela supra mencionada Sonata
para piano nº 20 en Lá Maior, D 959 de Schubert. O operador narrativo do documentário, sublinho este facto, é a memória de Felicidad Blanc. Espejo de sombras concluirá com a referência às filmagens de El desencanto: “Depois veio a filmagem em Castrillo, após
vários anos de ausência. As casas destruídas, as vidraças partidas, o
frio insuportável e as minhas lágrimas que interrompem as filmagens”.68 Como testemunho e documento, o relato de Felicidad
Blanc visa, pois, através da escrita e do livro, responder ao documentário de Jaime Chávarri, El desencanto.
Como se o documentário pretendesse encerrar a vida de Felicidad e da família Panero, como se se jogasse nele a verdade daquele romance familiar. E, contudo, há algo de irredutível nesse
romance, algo que o documentário não consegue reduzir a imagens
ou palavras, algo que tão-pouco é abarcado pelo livro autobiográfico Espejo de sombras. Documentário e livro pretendem dar voz à
sombra especular que Felicidad Blanc foi durante toda a vida –na
infância, na juventude, como mulher do poeta Leopoldo Panero–,
encarnar-lhe a voz, incorporar-lhe a voz. Todavia, algo se perde
nessas narrativizações. É a própria Felicidad Blanc quem no-lo diz,
comentando o tempo que veio depois de El desencanto: “[Senti] que
por fim me separei do que ainda me prendia a uma sociedade que
não me interessava. O ser eu, eu mesma”.69 Separou-se de si, a imacitas como para comprender las líneas que gobernaron su vida y, fundamentalmente, la
radical soledad de una mujer sensible enfrentada a un estricto círculo de hombres (Panero,
Rosales, Vivanco…) al que resulta imposible acceder”. Noutra oportunidade articularei a
necessidade de, do meu ponto de vista, inquirir os termos de uma leitura ‘feminista’ do
livro de Felicidad Blanc.
68
Ibidem, 243.
69
Ibidem, 244.
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
211
go fílmica adquire autonomia, diríamos que em contraponto com a
autonomia que Felicidad nunca teve. Felicidad interpreta, pois, que
a imago se torna um correlato que lhe objectiva essa sua condição
heterónoma, alienando-a ainda mais. Assim, na primeira projecção
privada do filme, sobrevém a sensação de “não acabar de encontrarme, a sensação de não ser completamente eu. Aquela mulher irritava-me. E na estreia, presa à cadeira, sentindo pela primeira vez que
aquilo não é uma ficção”.70 Note-se a aporética de uma pendular
oscilação entre real/ficção. Há que paroxisticamente suplementar a
fronteira do binómio, como o faz Juan Luís: “Mas penso (é a minha
opinião) que um filme como El desencanto, ao contrário do que
possa parecer à primeira vista, algo relacionado com o cinéma vérité, o documentário ou qualquer coisa no estilo, não é mais do que
um ritual de máscaras. Que este ritual possa interessar ou aborrecer
o espectador é algo que, sinceramente, não pretendo vaticinar”.71
Mais adiante voltarei a esta figura da ‘indiferença’, que nos devolve, assim, uma ordem para além do ‘ritual de máscaras’.
Algo acontece durante as filmagens do documentário, algo
de verdadeiramente profundo e de grande significado psico-social e
político-cultural. Algo que não obedece a um dizer unívoco: a câmara de filmar entra num espaço insular que, em princípio, seria de
absoluta oclusão: o espaço doméstico, íntimo, secreto, deste modo
desventrado, submetido ao olhar do terceiro excluído. Mas não é
apenas este o acontecimento. Verdadeiramente determinante é, de
igual modo, a ‘invisibilidade’ da câmara nesse espaço doméstico,
íntimo, secreto. Esta ‘invisibilidade’ não se verifica em todo o documentário, é certo, ainda assim muito determinado pela autoconsciência dos diferentes intervenientes. Todavia, há momentos
vários em que não se obedece a um script estabelecido ou previamente preparado. Nessas ocasiões pontuais, o grau de exposição
devolve-nos uma sociedade ainda não imersa na cultura audiovisual, ou pelo menos que ainda não aprendeu as gramáticas dos media.
Um desses momentos –do meu ponto de vista, sublinho, são vários,
mas centro-me agora apenas num deles, fazendo dele exemplum de
todos eles– acontece durante a conversa entre Leopoldo María, Mi70
71
Ibidem, 243.
Em Blanc et alii 1976, 110.
212
PEDRO SERRA
chi e Felicidad nos jardins do colégio italiano que a ninhada do casal Panero frequentou na infância. Felicidad propusera um pequeno
roteiro para estruturar a conversa. Os filhos, em princípio, aceitam.
E, contudo, durante a efectiva filmagem da conversa, «quando menos espero ouço a voz de Leopoldo María que começa a atacar-me.
E agora já só me interessa defender-me. Não importa a câmara, sou
eu com os meus velhos problemas, e tremem-me de raiva as mãos e
as pálpebras».72
A luz queimada que envolve Felicidad –mas também Juan
Luis, Leopoldo María ou Michi– é, digamos, o significante proposto pelo documentário cinematográfico de um halo ameaçador que
envolve e devora vorazmente o núcleo familiar conspurcado. Expulsão do éden, ninho progressivamente corroído, que sugere, aliás,
enterramento in vivo, esterilidade uterina ou crime doméstico. Crime doméstico transferido metonimicamente para aquela ninhada de
cachorros que Felicidad sacrifica, para grande estupor de Michi.
Aquele mesmo halo que temos a envolver a Gândara de Carlos de
Oliveira, em uma Abelha na Chuva (1953), halo que progressivamente se foi objectivando até ao seu último romance, Finisterra
(1978). No centro da óikos, no âmago da domus aurea burguesa, a
irradiação do crime, um crime que fascina os indivíduos, que os
lança no entre-lugar do privado vs. público, do sonho (pesadelo) vs.
vigília, do sujeito vs. estado, da confissão vs. manifesto.
Como quer que seja, o ‘problema da habitação’ é também
conjurado por Augusto Abelaira em A Cidade das Flores (1959)
através da alusão a um dos seus emblemas mais potentes: o da família originária. A cena, agora, é a da contemplação de um quadro,
concretamente da Expulsão de Adão e Eva do Paraíso, quadro de
Masaccio que se encontra na Capela Brancacci da Igreja de Santa
Maria del Carmine, em Florença. O contemplador é a personagem
Giovani Fazio, que visita a igreja florentina. Lemos na obra, pois,
seguindo o ponto de vista de Giovani Fazio, enfatizando desde já a
obstrução da vista do expulsado Adão e da expulsada Eva: “E o Anjo terrível expulsa Adão e Eva do Paraíso. Mas porque cobre Adão
o rosto com as mãos? Saberá ele o que é a Terra, para fechar assim
os olhos? Porquê essa certeza antecipada de que a Terra é um mal?
72
Blanc 1977, 243. Eu sublinho.
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
213
Eva grita como se conhecesse toda a miséria, todo o sofrimento que
a espera. Mas não sabe, não pode saber. Têm medo daquilo que ignoram: choram, embora desconheçam; fecham os olhos para não
ver o que ainda não sabem se é bom, se mau”.73 Temos também aqui, como vemos, outra modulação de um ‘desencanto’, aquele que
é devolvido pela certeza antecipada de um futuro suspenso. Contudo, há ainda uma abertura, que é de resto a que tensa um romance
como o de Abelaira onde revebera uma “cidade das flores”. Abertura significa, neste sentido, que o futuro oscila ainda entre uma certeza e um desconhecimento: uma espera, em suma.
Tanto no halo lumínico envolvendo Felicidad Blanc, como
na invidência voluntária do casal original do quadro de Masaccio,
temos dois momentos narrativos em que se obstrui a possibilidade
de objectivar uma visio de reconciliação da sociedade. Há sem dúvida diferenças entre as duas imagens. Todavia, convergem ambas
no colapso de uma retórica da temporalidade em que a visão do social reconciliado se apoia numa metafísica secularizada da História.
O que, enfim, está em causa tanto na vidência obturada de Adão e
Eva e no drama psicossocial da família Panero é a possibilidade de
a arte mediar a prognose de um tempo que, assolando o presente,
não permita ao presente ser o melhor dos mundos possíveis.
Pensadas em função do cronótopo ibérico a que me reporto
–o da passagem de um tempo ditatorial a um tempo democrático–,
ambas as imagens são-no de um futuro suspenso, ficções que não
visam produzir alternativas, provocar decisões. Ficções também elas obstruídas que, seguindo uma conhecida formulação adorniana,
não propõem a representação de verdades políticas: “Quanto menos,
porém, as obras têm que anunciar algo em que elas não podem acreditar completamente, tanto mais coerentes se tornam elas próprias”.74 Um bom exemplo encontramo-lo ainda em Quatro Paredes Nuas, do já citado Augusto Abelaira, num lugar do conjunto
ficcional onde ecoa a Guerra Civil Espanhola: “–A vitória republicana em Teruel marcou uma volta decisiva na evolução da guerra.
Os nacionalistas estão perdidos, não há auxílio estrangeiro que lhes
73
74
Abelaira 1990, 37.
Adorno 1973, 63.
214
PEDRO SERRA
valha”.75 A vitória, recordemo-lo, seria determinada por algo como
a “marcha implacável da história”, uma História legiferada por coisas como as “contradições do capitalismo” ou a “luta de classes”.76
Teruel tomada, Madrid inconquistável... Contrafactuais que não obviam que, todavia, como lemos no mesmo Quatro Paredes Nuas, de
1972, essa “marcha implacável da história é uma fantasia”.77
Enfim, algo irredutível nas Ditaduras peninsulares pervive
para além do advento das respectivas Democracias, cuja instauração
é subsumida ainda por um universo Sem Tecto, Entre Ruínas. Neste
romance de 1978, Abelaira ajustará os tempos português e espanhol, pela boca das personagens Ernesto e João Gilberto: «O que
vemos em Espanha pode vir a repetir-se em Portugal.– Já lá chegou
a democracia, o Franco acabou?».78 Franco não acabara, como tãopouco a figura paterna do poeta Leopoldo Panero no documentário
El desencanto, figura cuja presença post-mortem, cuja presença in
absentia, trunca a possibilidade de um tempo adventício. Simbólica
pregnante, esta, e que responde claramente a ditaduras demasiado
longas, suficientemente longas para determinar a exautoração das
pulsões prognósticas. Democracias que, enfim, sobrevêm como algo súbito e simultaneamente tardio, como formulava a cidadã anónima de No se os puede dejar solos.
Retomemos a imagem inicial do plano em contraluz de Felicidad Blanc. O efeito é o de des-realizar a silhueta, que assim adquire contornos fantasmáticos. Persona na mais descarnada solidão
–baixo-contínuo cuja veemência é ensurdecida pela Sonata para
piano nº 20 en Lá Maior, D 959 de Schubert –, persona que constrói
e rememora um mundo progressivamente perdido. É ela própria, ao
cifrar-se como persona(gem), que se vai perdendo. Como produção
de uma auto-consciência tem como corolário o enfrentamento à
mais absoluta anacronização de Felicidad, que acabará por reconhecer não ter presente, e, mais ainda, nunca o ter tido: “O meu século
foi o século XIX, na minha infância sentia ainda o seu esplendor”.79
O momento de verdade da personagem, enfim, acontece nesta auto75
76
77
78
79
Abelaira 1972, 140.
Cfr. ibidem.
Cfr. ibidem, 142.
Abelaira 1982, 17.
Blanc 1977, 245.
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
215
assunção como imagem fantasmática. Felicidad é uma sombra geradora de sombras.80 O halo lumínico expõe e absorve Felicidad e
os filhos, é o limite do espaço tumular, do encoframento na casa de
Castrillo de las Piedras. A memória é também esse cofre.
Esta imagem, insisto, serve de ‘passagem’ para reler a cultura peninsular das etapas político-sociais de transição da ditadura
para a democracia em Espanha e em Portugal em função do problema da ‘intimidade’, do homo interior que palpita no documentário de Chávarri. Numa re-descrição possível, interessa-me destacar
o que na ampla fenomenologia da cultura romanesca transicional se
representa como ‘processo à família’, para utilizar a expressão de
uma notável ensaísta catalã, Maria José Ragué Arias. Ragué –
também autora de livros de referência para conhecer a cultura transicional peninsular como California Trip e Los movimientos pop–
organizou um volume intitulado Proceso a la familia española
(1979),81 reunindo nele entrevistas e depoimentos de políticos centristas e da esquerda ideológico-partidária, membros destacados do
movimento e organizações feministas, intelectuais de vários âmbitos (escritores, sociólogos, juristas, médicos, psicólogos figuras do
mundo do espectáculo). A família é, enfim, pensada no quadro de
um pensamento da utopia, isto é, de um pensamento revolucionário:
«Como alternativa utópica cabe pensar numa sociedade sem classes
formada por indivíduos livres, autónomos e solidários entre si, que
se relacionem livremente e na qual o território da afectividade pertencesse à intimidade e não estivesse institucionalizado nem condicionado por interesses materiais. Neste caso, a família actual poderia ser uma alternativa mais livremente escolhida e não institucionalizada».82 Verdadeiro tema ‘do tempo’, que foi averbando documentos, textualidades, testemunhos. Como os que temos no número es80
O final da autobiografia é o mar como imagem da morte, a ondulação, no seu
vaia-e-vem, a espera que imobiliza: “Há algo na minha vida que é linear, inquebrantável,
que nada pôde alterar. Nem as circunstâncias adversas, nem a guerra, nem o meu marido
com uma personalidade tão absorvente, nem os meus filhos, puderam destruir o que fui, o
que sou agora. O que procurei não o encontrei ou encontrei-o a meias, mas continuo a estar
acompanhada pelos meus queridos fantasmas que são os mesmos de sempre. De vez em
quando regresso a eles, limpo-lhes o pó e as teias-de-aranha e revivo de novo com eles os
escassos momentos do passado” (ibidem, 245-246).
81
Devo esta referência a Fernando R. de la Flor.
82
Ragué Arias 1979, 22.
216
PEDRO SERRA
pecial da revista O Tempo e o Modo, caderno dedicado ao ‘Casamento’ (c. 1968); como os que temos no número extra da revista
Triunfo, ‘El matrimonio’, de 24 de Abril de 1971.
‘Processo à família’ no cronótopo das ditaduras peninsulares, entomologia das ‘transfigurações da intimidade’, do vínculo
inextricável entre a “história emocional secreta” de Giddens83 e a
reprodução do poder e suas estruturas. ‘Transfigurações’ de uma
‘intimidade’ enquanto “efeito de linguagem”, um passo atrás na equação privado/público.84 Certamente, um campo de matérias com
entradas e desdobramentos múltiples, como aquele que se refere a
diferentes recidivas, no âmbito da modulação de uma indiscutível
‘família católica’ (Salazar dixit), da cultura ‘barroca’ e dos seus discursos moralistas persistentes. Tempo de marialvismos, como ensaiou José Cardoso Pires na sua Cartilha do Marivalva (1960);85
tempo também de estudo dos Usos amorosos del dieciocho en
España (1972), de Carmen Martín Gaite, em que a libido sciendi
que move a autora é a arqueologia do presente: “preocupada por
sondar possíveis influências de leituras juvenis nas mulheres da minha idade, ter-me-ia dedicado ao estudo do romance cor de rosa,
propósito que levaria a compreender o século XIX, e o mais provável é que, abrindo uma brecha para trás no tempo à procura de explicações, teria chegado também por essa via a topar com a corte”.86
Sim, tempo de educação de uma moral matrimonial que ‘naturaliza’
a hierarquia patriarcal no âmbito doméstico. Tempo ainda, por exemplo, de estudo ‘auto-complacente’ de uma Carta de Guia de
Casados (1.ª ed.: 1651), de Francisco Manuel de Melo, bachelor e
marialva. O prefácio à edição de 1965, da responsabilidade de João
Gaspar Simões, é bem o exemplo de como a erudição crítica ia manifestando, nesses idos da década de sessenta, incomodidade em
relação ao patriarcalismo doméstico. O texto oscila entre, por um
lado, a necessidade de editar um ‘clássico’ pelo que significa de salto qualitativo na história da prosa literária portuguesa; e, por outro,
a perda de legitimidade de uma doutrina que, a bem dizer, é já ana83
Cfr. Giddens 1992.
Cfr. Pardo 1996.
85
Pires 1966. Agradeço a Hugo Milhanas Machado o exemplar deste livro que
pude consultar.
86
Martín Gaite 1994, XV-XVI.
84
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
217
crónica em meados de seiscentos. Diz-nos Gaspar Simões: “Para
que colaboramos nós então nesta malvadeza contra o sexo frágil?
Para saborearmos a maneira como o nosso tempo receberá uma obra que tão graciosamente aponta as mulheres”.87 Este paladar, na
óptica de Gaspar Simões, teria chegado àquele momento inofensivo
em que, dada a senectude da moral veiculada, seria amplamente
compensado pelo prazer da prosa. Efectivamente, a Carta teria significado um acontecimento no desenvolvimento da “moderna prosa
portuguesa”, antecipando o ‘estilo coloquial’ garrettiano: “Modelo
de linguagem viva, pitoresca, brincada, de onde em onde quase
gongórica ou conceptista, aqui a temos, velha e revelha nos conceitos e costumes, mas jovem muito jovem na maneira de os articular”.88 Descontinuando forma e conteúdo, Gaspar Simões salva o
texto da mediocridade do século seiscentista –sendo o próprio Francisco Manuel de Melo representativo dessa mediocridade– em virtude do que nele se manifesta de aproximação a uma discursividade
próxima de um uso social abrangente da língua literária. A Carta é
tesauro de uma coloquialidade que teria de esperar a modernidade
‘romântica’ para impregnar o literário e, assim, fazer dele factor de
coesão social. À verdade do estilo, assim, opõe-se a falsidade da
moral que veicula. Mas, cabe perguntarmo-nos, que moral falsa é
essa a imputada ao texto de Francisco Manuel de Melo por Gaspar
Simões? Um escrutínio que se aproxime do prefácio, permite concluir que o crítico escora o anacronismo da Carta num único aspecto
–a suposta inferioridade intelectual das mulheres. Gaspar Simões
centra-se na ‘doutrina de recoveiro’, a doutrina ‘reaccionária’ da
Carta –o marido deve evitar uma esposa dada o ‘saberete’ do latim,
às leituras, à conversação em público. Quer dizer, exonera aquelas
virtudes que muito assistem a sociabilidade feminina de salão. Gaspar Simões obvia, pois, os lugares de produção de violência disciplinar que encontramos no tratado barroco, e que, entretanto, não
passaram despercebidos a José Cardoso Pires: “com muitas vénias
galantes e muito saber de experiência feito, acaba por nos deixar um
álbum de crueldades em estado bruto e tão ingènuamente à vista
que, a partir deles, é possível chegar-se a certos mitos contemporâ87
88
Simões 1965, 15.
Simões 1965, 16.
218
PEDRO SERRA
neos altamente elaborados”.89 Como se vê, gesto em tudo assimilável ao de Carmen Martín Gaite, para quem os usos e costumes do
‘cortejo’ setecentista mantêm um vínculo com as “falácias e subterfúgios aninhados na raíz de muitas das relações extra-conjugais padecidas pelas mulheres de hoje”.90
Nos idos de 1979, ano de publicação do volume organizado
por Maria José Ragué, o momento é vivido como tentativa de abertura utópica de uma instituição que, pelo contrário, e como no-lo
refractam diferentes romances, era antes a cifra da alienação dos
indivíduos. Violência no âmago do núcleo doméstico, também, no
mundo ficcional do conjunto narrativo O crepúsculo e as formigas
(1961), de Xosé Luis Méndez Ferrín, universo entre o onírico e o
real, de atmosferas ora góticas ora lovecraftianas, pejado de uma
humanidade demasiado humana e de relações sociais assentes na
crueldade mais absoluta. Destaco apenas dois contos, “A Casa Azul” e “O Quadro Assassinado”, embora outros pudessem ser igualmente mencionados. Este último, que encerra a colectânea,
propõe um myhtos mínimo, escasso: “Quase ninguém nesta história. Apenas um homem e mais uma mulher dentro dum quarto
quente. Cheirava a óleo”.91 Um casal de pintores, um casal de artistas, ‘matam’ um quadro pintado a dois a que chamam ‘filho’. Uma
vez pintado, a casa torna-se um ‘inferno’, pois o filho pintado devolve o olhar –os seus não eram “olhos e mãos desejáveis para um
filho”–,92 ‘olha’ os progenitores, autonomiza-se dos criadores. Sílvio tê-lo-ia afogado depois de Helena lhe ter “posto no leite uma
dose de barbitúrico suficiente para dormir um boi”.93 O assassinato
do quadro/filho repõe a normalidade do casal: “Era algo de anormal. Um produto de excepção. O próprio absurdo que se instalou
entre os dois. Agora nascemos para a normalidade. Agora nascemos
para a lógica”.94 No conto “A Casa Azul”, por seu turno, é também
a alienação da progenitura a que se implica. Uma vez mais, um casal: Rosa, que tem “20 anos e não é formosa nem nada”, e o Portu89
90
91
92
93
94
Pires 1966, 117-118.
Martín Gaite 1994, XVII.
Martín Gaite 1994, XVII.
Ibidem, 113.
Ibidem, 114.
Ibidem.
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
219
guês, que “tem um bigode imbecil”.95 Rosa engravida, o Português
manda-a para a Casa Azul: “costume” inescapável do lugar quando
as mulheres engravidam. O conto centra-se, então, na força dessa lei
não escrita que, dirá Rosa, prescinde de um poder transcendental de
coerção “–Mas ninguém manda. Ninguém manda. Tenho medo e
não vou”. É então que “[o] Português blasfema e lhe dá uma bofetada. Depois, Rosa cai ao chão e perde o sentido por segunda vez. O
Português cospe ao lado e beija-lhe os olhos. Passa um tempo e ela
acorda”.96 Sobrevém, por fim, a imperatividade do ‘costume’: Rosa
acaba por anuir, seguindo a caminho da Casa Azul. Enfim, no universo ficcional de Méndez Ferrín, a humanidade demasiado humana
é figurada, muitas vezes, numa espécie de devir-animal negativo,
devir de uma animalidade alienada e alienante: “Os homens são
como formigas, na aldeia sem nome. § E eu, neste instante crepuscular, vejo-os des-desenhados, esvaídos, pois o alento da minha boca vai embaciando progressivamente o vidro que se interpõe entre
os homens e o meu olhar. § Não limpo o vidro, não abro a janela”.97
Não limpar o vidro, não abrir a janela: mundo que devén progressivamente opaco; sujeito cognitivo e sensible paulatinamente enclaustrado.
Desencanto e crepuscularidade, ainda, em Uma Abelha na
Chuva (cuja 1.ª ed. data de 1953, mas que viria a ter uma 4.ª e definitiva versão em 1962)98 de Carlos de Oliveira, que nos diz de um
mundo –a Gândara– que vai progressivamente perdendo latência,
sem todavia se extinguir por completo. Por um lado, é um mundo
todo, auto-contido, auto-suficiente. Mas, por outro, é um universo
progressivamente crepuscular. É uma escala de ‘íntimos’, alguns
deles já plenamente calcificados, alienados, objectivados. Tem vindo a ser destacado, justamente, o carácter fantasmático do mundo
nomeado Gândara, e Uma Abelha na Chuva é bem o exemplo do
assédio de diferentes mortos ao crânio dos vivos. Gostaria, neste
sentido, de propor a figura de um mundo que, com ser morto, é sobretudo um mundo enterrado vivo, um mundo de enterrados vivos.
É sob esta luz, sob a luminosidade deste topos de longa tradição li95
96
97
98
Ibidem, 83.
Ibidem, 85.
Ibidem, 17.
Cfr. Camilo dos Santos 1987.
220
PEDRO SERRA
terária, que leio um conjunto de imagens que percorrem a obra, e
que reduziria a essa ideia de um encoframento in vivo. Lemos logo
no primeiro capítulo: lHavia sobre a vila, ao redor de todo o horizonte, um halo de luz branca que parecia rebordo duma grande concha escurecendo gradualmente para o centro até se condensar num
côncavo alto e tempestuoso».99 Um universo que se dobra sobre si
próprio, que se enconcha, simile que atrai o halo que envolve, como
dizia mais acima, Felicidad na casa de Castrillo de las Piedras. A
mesma sugestão de fechamento podemos encontrá-la no seguinte
passo, emblema do casal do Montouro: lQuantas vezes o vira meter
o ombro à muralha que ela erguia entre os dois, como quem bate às
cegas numa porta recôndita que não sabe onde é nem para onde dá e
ali fica toda a noite, aos umbrais, gelado e miserável».100 Enterramento, asfixia a dois, mas também no círculo mais reduzido do ego.
A crítica ao casamento burguês, cuja dramatização é encarnada pela conjugalidade alienada de Álvaro Silvestre e Maria dos
Prazeres, passa pela necessidade de o interpretar como Utopia que
falha. Com ser “bela” –o casal do Montouro é “colmeia”, uma figuração do belo– a Utopia é vítima de si própria: “O ponto fraco das
utopias, porque têm um, consiste na sua qualidade de negócios perdidos à priori; belos mas (redundantemente) utópicos”.101 Carlos de
Oliveira remete, neste sentido, para a problemática conjugal em
Augusto Abelaira,102 mas o que medita afecta retroactivamente a
encenação de Uma Abelha na Chuva: «A crítica de Abelaira ao casamento burguês irradia de uma ideia semelhante, pelo menos em
parte. O casamento, donde sai a juventude a reencontrar (os filhos),
não constitui uma venda da alma (da liberdade de amar) ao único
Diabo que conhecemos, as instituições, a moral corrente?».103 Reflui
aqui a aporética já enunciada: o casamento é investido de uma carga
utópica (juventude/filhos), sendo igualmente instituição moral que
99
Oliveira 2001, 2.
Ibidem, 46.
101
Oliveira 1992, 547.
102
Família, casamento, amor são, em Abelaira, observados enquanto objectos ‘políticos’: “Mas –especifica– o amor é um amor situado: as histórias de amor existem dentro
de um quadro que é em última análise político, pois que a vida social condiciona o amor, e
a vida social é condicionada pela política” (Armando 1988, 28). Obviamente, ‘família’,
‘casamento’ ou ‘amor’, não replicam como naturezas mas como situações.
103
Ibidem, 548.
100
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
221
determina a redundância desse utopismo. O que a Carlos de Oliveira interessa é a retórica da temporalidade associada ao “casamento
burguês”. Nele um passado por cumprir –a juventude, ou o irrealizado nesse momento de origem– é lançado como futuro que clama
uma realização impossível: um regresso impossível. Assim, é essa
“juventude a reencontrar” que sustenta a “instituição moral”, colectivização desse anelo do indivíduo. A “moral corrente” é venda da
alma enquanto esquecimento (individual e colectivo) desse inalienável diferimento.
Em sede adorniana, ainda que por via diferente, identifica-se
também a tensão aporética que ‘envilece’ a instituição matrimonial,
“artimanha para a auto-conservação”, que leio como um equivalente
da “juventude a reencontrar”: «Um casamento aceitável seria apenas
aquele em que ambos tivessem a sua própria vida independente,
sem nada daquela fusão produto da comunidade de interesses determinada por factores económicos, mas que assumissem livremente uma responsabilidade recíproca. O casamento como comunidade
de interesses supõe irrecusavelmente a degradação dos interessados,
e o pérfido desta organização do mundo é que ninguém, ainda que
sabendo porquê, pode escapar de tal degradação».104 Neste sentido,
o ‘amor’ não redime, como de resto o sabia bem Álvaro Silvestre:
“mas eu amo-a apesar de tudo, amo-a tanto que não posso vê-la no
inferno, sufocada, perdida”.105 Não adianta descontar o que neste
enunciado possa ser enunciação do brandy –ou não fosse o ‘amor’
assimilável a um estado de embriaguez; ou a embriaguez fonte de
momentos de ‘verdade’ da personagem. O casamento por interesse,
o casamento concertado, de que é exemplo o casal do Montouro –
aliando aristocracia provinciana decadente e burguesia rural –, não
é incompatível com a ideologia do amor.
‘Crime doméstico’, igualmente, em A Esmorga (1956) de
Eduardo Blanco-Amor. Lembremos os três companheiros de farra,
adentrando-se na casa do casal Andrada, esventrando um universo
aristocrático quieto, vazio e desfuncionalizado: lEntrámos –depõe
Cibrán, perante o magistrado que o deverá julgar– em vários daque104
Adorno 1951, 27. Traduzo este trecho para o português, fazendo-o muito embora pela tradução espanhola.
105
Oliveira 2001, 72.
222
PEDRO SERRA
les compartimentos sem tropeçar com vivalma, era grande aquele
mistério, tanto que nos ía sufocando... Pelos vistos naquela casa não
havia ninguém, e no que a mim dizia respeito desejava que aparecesse alguém, fosse quem fosse, preferia andar ao soco e à facada,
tudo menos aquele silêncio, tantos quartos, cheios de coisas luxosas, mesas postas, preparadas para grandes refeições, tudo aceso, e
aquelas camas, como se tivessem sido acabadas de fazer, ainda que
nelas ninguém dormisse|.106 Uma domus aurea fantasmática, onde
afinal se revela a impostura de uma vida doméstica inexistente,
muito embora fascinante, de um fascínio que provém do ocultamento, da invisibilidade, da suspeita de violência e crime: «Alguns diziam que tinha [a mulher] fechada a cal e canto, pelos ciúmes que tinha até do ar que a roçava, dizem que ela lhe tinha faltado ao respeito com um amigo nessas terras por aí adiante, e que a trouxera à
força para a ter, para toda a vida, metida em casa como numa prisão. Outros diziam que ela endoidecera de saber-se tão desprezada,
pois até se diz que ele lhe pagava quando estava com ela como marido e mulher, como se fosse uma meretriz; e outros asseguravam
que a tinha matado e que a enterrara no quintal».107 O périplo terá
como momento culminante a des-realização última da mulher de
Andrada, afinal uma boneca articulada que o Bocas esfacelará com
sanha. Episódio gótico, de ressaibo hoffmanesco.
Entretanto, num romance como Tiempo de silencio (1962)
de Luis Martín-Santos, o valor projectivo num “tempo de silêncio”
franquista –na obra articulado como desgarramento entre a continuidade de uma sociedade miserável e a emergência do desenvolvimentismo sessentista– proviria de um desenlace matrimonial também “arranjado”, mythos certamente melodramático; projectividade,
como se sabe, truncada pelo assassinato de Dora, a noiva destinada
a Pedro. Ao mesmo tempo, e em contraponto com as disfunções
morais do universo social pequeno-burguês e burguês urbano, temos o núcleo familiar patriarcal extramuros da família de Muecas.
Um núcleo também ele extra-moral, que oculta um crime, o crime
do incesto Muecas/Florita.
106
107
Blanco-Amor 2001, 103.
Ibidem.
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
223
No quadro do casamento arranjado o amor pode conservar o
carácter de “imponderado” ou acaso, à volta do qual de resto orbita
o casamento em Bolor (1968) de Augusto Abelaira.108 A paixão do
amor pressupõe a sua plena autonomia, o que significa o poder unir
um homem a uma mulher ou outra,109 ou uma mulher a um homem
ou outro. O amor-sentimento como codificação da intimidade não é,
neste sentido, sem concessões ao social –por outras palavras “não é
um sentimento em si mesmo, mas antes um código de comunicação”110– e, enquanto tal, código comportamental simulável como
formula Niklas Luhman: «Estas condições ajudam a compreender o
facto de a codificação da intimidade (de base sexual) ter sobretudo
início à margem da ordem estabelecida e que se tenha de remir esta
possibilidade através de ‘concessões’ feitas à semântica –sobretudo
através do reconhecimento da insensatez, da loucura, da instabilidade. Só após a habituação a um tal programa se poderia iniciar com
seriedade a construção de uma reciprocidade social visar a formação sistémica assim estabilizada –cujo sucesso é discutido até aos
dias de hoje».111 O preço que paga esta autonomia de código, pela
qual o amor se justifica a si próprio apoiado numa “semântica
transmitida pela tradição”,112 é o de se saber como “se tivesse origem no nada”113 e o de “tornar difícil a reprodução da intimidade”:
«Os casamentos são contraídos no céu, no carro verifica-se a separação, pois aquele que está ao volante comporta-se de acordo com a
situação e conduz –pensa ele– tão bem quanto sabe; mas aquele que
vai ao lado e o observa sente-se objecto do modo como o outro
conduz, remetendo esse mesmo modo de conduzir para as características do condutor. Só pode agir de uma maneira, precisamente
através do comentário e da crítica; e é pouco provável que ao fazêlo obtenha o assentimento do condutor».114 Álvaro Silvestre e Maria
dos Prazeres também perfazem esta cena de separação, não no carro
mas na charrete, não conduzindo mas sendo conduzidos. O que fica
imediatamente claro é que a falta de assentimento mútuo nos devol108
109
110
111
112
113
114
Abelaira 1986, 69.
Ibidem, 165.
Luhman 1982, 21.
Ibidem, 38.
Ibidem, 45.
Ibidem, 52.
Ibidem, 40.
224
PEDRO SERRA
ve a ausência dessa intimidade, consumação dessa sua reprodução
inverosímil. A crise, e a crítica, do ‘casamento burguês’ implica,
pois, a crítica da individuação burguesa.115 Desse ponto de vista, o
encoframento é a cifra de uma solidão ensimesmada. O homo interior não abdica de uma pessoal promesse de bonheur num universo
que, como diagnosticou Freud, lhe nega a todo o momento esse horizonte redentor. O nó cego é este: de um lado, a impossibilidade de
retorno da inocência; do outro, a necessidade de uma transparência
–uma confissão absoluta que se objectivasse como num diário: a
confessionalidade impossível de um Álvaro Silvestre ou uma Felicidad Blanc– que tiraniza. As personagens aferram-se aos sonhos
(intransitivos) como expediente de conservação (ilusória) da ‘intimidade’: o desforço vai exaurindo a energeia.
Por último, aludo a La fea burguesía (1971-1976) de Miguel
Espinosa, romance que perfaz a summa teologiae deste esgotamento
energético, talvez por isso multiplicando paroxisticamente –um paroxismo ‘frío’– os avatares conjugais. “Suma teológica”, insisto, do
tardofranquismo e, na leitura de Teresa M. Vilarós, anunciação do
pós-franquismo dos anos 80. A família burguesa –que aqui refere
fundamentalmente a classe burocrática que legitima e é legitimada
pelo aparelho de estado fascista –, ao contrário dos exempla até agora considerados, não assenta numa conjugalidade enredada em
dramas de consciência que vão exautorando o homo interior. O cenário do “desencanto”, a compulsão a produzir mais e mais “solidão”, desapareceu por completo. Dito de outro modo, o mundo perdeu toda e qualquer latência.
Neste sentido, não subscrevo parte da seguinte descrição da
obra: «O romance [La fea burguesía] multiplica-se em fragmentos,
em quadros ‘vivos’ que nos mostram, quase como uma ‘câmara indiscreta’, diferentes momentos, posições e atitudes daqueles que
115
Esta questão foi tratada por Vilma Arêas num notável ensaio sobre Augusto
Abelaira, onde lemos: “Aos leitores de Abelaira não é estranha a idéia de que a individualidade em crise no mundo contemporâneo encontre seu contramolde nos muros desguarnecidos. Quatro Paredes Nuas, como sabemos, é o título de seu livro de contos, empenhado
em tematizar essa questão. Segundo ele, a subjetividade não parece encontrar mais apoio
material (quadros, memória, em suma, o ‘tempo comprimido’ da história individual) para
interagir e conseqüentemente ex-sistir” (Arêas 1999, 304-305). Cfr., também sobre Augusto Abelaira, Arêas 1997.
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
225
pertencem à burguesia. Estes passam diante dos nossos olhos descritos pelos seus gestos e atitudes rituais, os seus comportamentos
sociais e os seus hábitos».116 Não partilho, muito concretamente, a
figura da ‘câmara indiscreta’. Sim diria que este é um tropo que valeria, por exemplo, para o documentário de Chávarri. Todavia, no
romance de Espinosa não há nenhum ‘íntimo’ notório, nenhum significativo ‘interior’, que nos devolvesse a replicação da domus aurea em processo de encasulamente da casuística ficcional até aqui
tratada, toda ela tensada pela hipóstase do homo interior e da utopia.
Algo novo, do meu ponto de vista, é enfrentado por La fea
burguesía. Para dizer essa diferença, que tem uma determinante
contrapartida na poética do romance, Miguel Espinosa articulou a
noção –densa noção– de “utopia negativa”. Um único atributo destes burgueses feios torna notória a diferença: a burguesia vive num
“presente absoluto”, isto é, realizou-se por completo, para ela o
tempo não está fora dos gonzos como para Goytisolo, Felicidad ou
a cidadã anónima supra citados. É essa plena realização burguesa
que se nos representa em La fea burguesía.
Diria, então, que estes romances propõem diferentes expulsões de Evas e Adões do paraíso, cifras ficcionais a par de vitae que
não são menos ficção. Num extremo, e.g., Carmen Polo e Francisco
Franco no palácio de El Pardo, ou no Pazo de Meirás, lugares sacrais onde se protege “o mais recôndito da nossa intimidade”.117 No
outro, a folie à deux de Pepi e Juan Manzanares, casal principal no
documentário Veinte años no es nada de Joaquim Jordà,118 espécie
de Bonnie & Clyde da acção directa, da luta anti-sistema. Ou, ainda
num último: Salazar aninhado nos seus scriptoria, cortejando pelo
telefone. Como quer que seja, percorre, pois, o mínimo corpus romanesco peninsular em análise o centramento das respectivas fábulas num ‘espaço íntimo’ reificado por valores burgueses e pequenoburgueses. Na domus aurea burguesa imiscui-se um “bolor”. Confrontado com a ausência de um fundamento metafísico para a sua
relação, o casal formado por Maria dos Remédios e Humberto (Bolor) representa uma intimidade auto-ilusória que tem na distorção e
116
117
118
Vilarós 1992, 680.
Vázquez Montalbán 2005 [1982], 570.
Cfr. Jordá 2004.
226
PEDRO SERRA
progressiva evanescência da voz narrativa a sua contrapartida.
Também Dora/Pedro (Tiempo de silencio), Maria dos Prazeres/Álvaro Silvestre (Uma Abelha na Chuva), Cecilia/ Castillejo,
Pilar/Clavero, Cayetana/Krensler ou Purificación/Paracel (La fea
burguesía), nomeiam esta como que ‘estética de desaparição’ da
domus aurea burguesa.
Evanescência em regime crepuscular que, ao mesmo tempo,
abisma a inflação do espectáculo. Neste sentido, Teresa M. Vilarós
propõe El desencanto como preterição de formatos mediáticos, hoje
hegemónicos, como os reality shows: «A fascinação do público pelo
filme tem que ver não tanto com a morbosa curiosidade proporcionada pelo que poderia muito bem ser uma antecipação dos actuais
reality shows diante de uma das mais disfuncionais famílias espanholas, mas sim com a especial deslocação do referente que o texto
propõe».119 Será assim? A formulação, como se pode ler, não é categórica. Tão-pouco subscrevo totalmente esta leitura. As determinações dos “actuais reality shows” distam muito do que acontece
em El desencanto. Determinações certamente materiais –a começar
pelo facto de o documentário ter um curso cinematográfico, distando muito a sua situação da acessibilidade quase universal do meio
televisivo–, mas também formais: El desencanto não se joga no ‘directo’, os realities suspendem razoavelmente a interacção familiar;
119
Vilarós 1998, 49. A sugestão deste vínculo entre o documentário de Jaime Chávarri e os reality shows foi, entretanto, retomada por María Villalba nos seguintes termos:
“Os lugares recônditos da sua psicologia são apresentados ao espectador em toda a sua
complexidade, em jeito de ferida aberta pela qual no apenas se vislumbra o desencanto da
Espanha do franquismo –que Chávarri pretendia reflectir –; a morte do pai dá azo a um
exercício de crítica alheia e própria, com ferocidade pouco frequente, sem dúvida, para os
espectadores no momento da estreia (e à que hoje nos habituou já a proliferação dos reality
shows). Os filhos tratam de pôr no devido lugar a figura de um pai que, falecido tempo
atrás, não pode defender-se; fazendo-o, é inevitável que se analisem uns aos outros, tentando definir as suas respectivas posições dentro da família. Mas a crueza das suas declarações (à diferença dos espectáculos a que nos tem acostumado a nossa actualidade) despe
as suas almas e o enfrentamento dos membros do núcleo familiar dos Panero, em jeito de
reunião de máscaras gregas, provocam a catarse do público, ao exibir as suas pequenas
misérias, ínfimas, como cabezas de alfinete; nalgunos momentos a máscara cai, mostrando, quase insensivelmente, a dor íntima –e, por que não, deleitosa– que encerram as suas
vidas” (Villalba 2004, inum.). Poderá cair uma máscara? Isto é, pode ser pensada a expressividade de um ‘deleite cum dor’, seja ela oral ou escrita, que nos devolvesse um momento
de absoluta ‘liberdade’? Para a escrita, a leitura ou, já agora, a narração fílmica, como
lugar de constrangimentos que sempre contrafazem essa naturalização expressiva, cfr.,
e.g., Said 1997, 24.
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
227
enfim, o reality não obedece ao protocolo ‘criativo’ da montagem
de um documentário cinematográfico. O lance de Vilarós implica,
de algum modo, uma leitura ex post facto que encontraria uma forma do presente potencialmente inscrita numa forma pretérita. Vilarós pretende que o presente degradado da sociedade e cultura “espanholas” responda a uma ‘cena originária’. Trata-se de prolongar o
trauma, a dor, a um presente que seria legatário dessa herança de
uma memória impossível. Uma dor que, lembremos Nietzsche, é
um dos mais potentes operadores mnemotécnicos.120
Ora bem. Toda a leitura de Vilarós assenta na ‘identificação’
dos espectadores com as personagens do filme. Para tanto necessita
de produzir um modelo de textualidade que apague a manipulação
do artefacto. Assim, dirá de Chávarri que “Com frialdade e distância científica, anota mas não comenta. Olha e escuta apresentandonos o que vê e o que ouve sem pretender emendar, suturar ou arranjar. O filme assenta na realidade da total e definitiva separação entre
pais e filhos e apresenta-a de forma brutal”.121 Prescindindo de um
registo ‘simbólico’, Chávarri teria optado por uma “maneira absolutamente real, absolutamente quotidiana e, portanto, absoluta e terrivelmente histórica”.122
Ao mesmo tempo, e precisamente agenciado por esse modo
de transparência expositiva, a identificação com o sujeito colectivo
‘nós’ –leia-se, a sociedade espanhola no imediato pós-franquismo–
seria também ela absoluta: «O final da saga dos Panero é também o
nosso, assim como também é próprio de nós o seu discurso desgarrado [‘deshilvanado’], esquizofrénico, delirante e patético. As suas
feridas são as nossas feridas, e é nossa a sua confissão desgarrada
diante da câmara».123 Repare-se como este asserto pressupõe uma
perfeita univocidade de algo como uma ‘confissão’. É porque o
120
Lemos na Genealogia da moral: “Jamais deixou de haver sangue, martírio e
sacrifício, quando o homem sentiu a necessidade de criar em si uma memória; os mais
horrendos sacrifícios e penhores (entre eles o sacrifício dos primogênitos), as mais repugnantes mutilações (as castrações, por exemplo), os mais cruéis rituais de todos os cultos
religiosos (todas as religiões são, no seu nível mais profudo, sistemas de crueldades) –tudo
isso tem origem naquele instinto que divisou na dor o mais poderoso auxiliar de mnemônica” (Nietzsche 2006, 51).
121
Vilarós 1998, 48.
122
Ibidem.
123
Ibidem, 49-50. Eu sublinho.
228
PEDRO SERRA
confessionalismo dos Panero se supõe expresso que ‘nós’ podemos
reconhecer nele a nossa própria confissão. Deste modo, na óptica de
Vilarós, o espectador perfaz a desidentificação com o patriarca/caudilho: identificando-se com os seus órfãos, isto é, identificando-nos como legatários desse grande Ausente como, ainda, legatários do modo mimético de reprodução social que lhe subjaz.
Gostaria de propor, precisamente, uma alternativa a este
modelo mimético. Porque, do meu ponto de vista, El desencanto
enfrenta já um problema que, em grande medida, rasura a simbólica
e a lógica dos legatários. Propunha, no início deste texto, uma hipótese de leitura da estátua do poeta patriarca encapsulada pelo plástico: o plástico envolve a ausência do patriarca poeta, o plástico seria
a forma não-mimética dessa ausência. A ser possível aceitar esta
leitura, dela podemos extrair consequências hermenêuticas. É verdade que o documentário tematiza um modelo mimético –enfim,
edípico– de relacionamento pais/filhos. Juan Luís, Leopoldo e Michi, cada um a seu modo, pretendem ‘ocupar’ o lugar paterno. Neste
sentido, sim podemos dizer que El desencanto nos devolve algo
como aqueles romanescos “herdeiros herdados pela herança” de que
fala Bourdieu.124 Todavia, a questão que pretendo formular é a de
ponderar se este regime é extrapolável para o âmbito da relação espectador/filme. É aqui que a mediação do Ausente pelo plástico,
também ele “realidade negativa” como propõe Roland Barthes, pode ser capitalizada numa leitura alternativa. A ‘estátua encasulada
no plástico’ é um significante cinematográfico, cuja ontologia assenta antes, do meu ponto de vista, na ordem do ‘virtual’.125 Imagética que independe do binómio realidade/ficção. Imagética que é
antes fluxo que supera a catalepsia convulsiva da ‘imagem barroca’
–como formula Román Gubern na esteira de André Bazin–,126 sem
a possibilidade de nela ancorar um dispositivo de identificação.
124
O “herdeiro herdado pela herança” é “invariante estrutural” que, talvez possamos especular, pode “originar relações de identificação entre o leitor e a personagem”
(Bourdieu 1995, 34 n. 1).
125
Este modo é também o implicado no literário. É assim que entendo, se leio bem,
a noção de Said de uma ‘repetição excêntrica’, isto é, de uma repetição que faz descaso da
dualidade original/cópia. Cfr. Said 1997, 12.
126
Gubern 2005, 88: “La catalepsia convulsiva de las imágenes barrocas, en donde
residía gran parte de su potencial dramático y efectista, fue aniquilada por la imagen móvil
del cine, que tendría que buscar, como decíamos, nuevas estrategias expresivas”.
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
229
Seja como for, eis uma tensão que nem o documentário El
desencanto nem o relato autobiográfico Espejo de sombras podem
remover: a memória como imperativo que mobiliza o presente de
Felicidad Blanc, que promove a sua construção como ego que diz
ego; a memória como produção de amnésia, de esquecimento, pois
ao ser cifrada como discurso –como dispositivo do pacto social–,
perde o sujeito na sua singularidade. Na verdade, Espejo de sombras, do meu ponto de vista, é o enfrentamento ao efeito desrealizador do documentário; um enfrentamento que, no limite, produz mais
desrealização; um enfrentamento que produz, enfim, mais desencanto. Como ‘testemunho’, ambos os textos plasmam a condição de
um ‘testemunho’: testemunhar é ver, ver em terceira pessoa –a câmara representa esse terceiro olho do social que se imiscui no espaço íntimo da família Panero–, uma visão que instaura a possibilidade de ficção.
Romance familiar? História familiar? Sem dúvida, romance
ou história como lendas, jogadas ora no registo épico, ora em declinação negra. É esta de resto a equação que instigaria a ‘entrada’ de
Leopoldo María Panero no filme. Na primeira metade do documentário, o poeta autor de Así se fundó Carnaby Street está ausente, a
montagem final do filme introduz apenas uma breve sequência de
um Leopoldo María Panero a vaguear por um cemitério, como fantasma, vampiro ou profanador de túmulos.127 O motivo vampírico
activa, claramente, uma memória literária gótica –exacerbação romântica e malditismo teatralizado, cifra de uma temporalidade fora
dos gonzos– mas também uma memória cinematográfica. Recordese, neste sentido, a inserção de sequências do Nosferatu, de Murnau, num filme de João César Monteiro muito próximo a El desencanto, documentário filmado em pleno ciclo revolucionário –refirome, concretamente, a Que Farei Eu Com Esta Espada?, de 1975.128
Ora, só a partir do meridiano do documentário irrompe a figura do poeta, fazendo-o, como manifesta diante da câmara, para
contraditar a lenda épica da família Panero com a sua lenda negra.
127
A rodagem da sequência foi levada a cabo no cemitério de Loeches, em Novembro de 1974. Cfr. Blanc et alii 1976, 139.
128
A referência regressará, 20 anos depois, nas Recordações da Casa Amarela, na
sequência final do filme, em que a personagem João de Deus emerge do subsolo da cidade
de Lisboa, clara alusão ao vampiro de Murnau.
230
PEDRO SERRA
O momento que mais acima recordava de absoluta ‘exposição’ de
Felicidad Blanc à visão da câmara corresponde a esse gesto de contradição. Um double bind que se pode, ainda, re-descrever nos seguintes termos: o “desencanto” produz ficção, a produção de ficção
produz mais “desencanto”. Tanto Felicidad Blanc como Leopoldo
María Panero (enfim, também Juan Luis e Michi) querem corrigir a
imagem que supostamente os representa. Uma pulsão que, diga-se,
é muito romanesca, de uma vida subsumida pela arte, e a sua exautoração no plano inclinado da mentira. Por esses idos dos primeiros
anos da década de 70, neste sentido, era traduzido para o espanhol o
ensaio de Marthe Robert Roman des origines et origines du roman,
onde precisamente se sobreleva o ímpeto não prioritariamente mimético do romance, um ímpeto que é, antes, decididamente “transformador da realidade”.129
É neste contexto teórico-crítico, de resto, que também devemos ler aquela “perda de impressão de realidade” enunciada por
Goytisolo no in memoriam proferido na Library of Congress, Washington, em 1975. Os antecedentes estético-ideológicos ainda latentes nas determinações do corpus ficcional em consideração é o
do realismo social, se bem que se imponha advertir que, sendo comensuráveis, não são exactamente homologáveis o neo-realismo
português e o realismo social espanhol. A cifra objectivista, neste
sentido, decorre da pulsão prognóstica. O influxo do materialismo
histórico, mais ou menos conspícuo, fizera da prognose a condição
de possibilidade de interpretar e, sobretudo, intervir, na realidade.
Ramón J. Sender, nos idos republicanos de 1936, formulara nos seguintes termos essa “nova realidade” e esse “realismo” que fosse
“nosso”, isto é, que se actualizasse em relação ao legado oitocentista: «O que distingue o realismo burguês do nosso é que nós vêmos a
realidade dialecticamente e não idealmente. O nosso realismo não é
apenas analítico e crítico como o dos naturalistas, antes parte de
uma concepção dinâmica e não estática da realidade. A nossa realidade, com a qual não estamos satisfeitos a não ser que forme parte
dinâmica de um processo de mudança e avanço constante, não é
estática nem produz em nós a ilusão da contemplação neutra».130
129
130
Robert 1973, 31.
Sender 1936, 37.
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
231
Actualização que passa, pois, por uma atenção à “cultura integral do
indivíduo”, como propunha em 1933 Bento de Jesús Caraça. Em
consonância com a ‘dinâmica’ de Sender, temos o carácter ‘processual do homem’. E é este o “problema central do nosso tempo”.
Lemos, justamente, em A Cultura Integral do Indivíduo. Problema
Central do nosso Tempo (1933): “em cada momento o homem age
sobre o meio que o cerca e o meio age sobre ele”,131 dialéctica tensada precisamente pela prognose aludida.132
No pós-guerra, a partir de finais da década de quarenta,
inícios da década de cinquenta, um grupo de romancistas em que
pontuam o já mencionado Juan Goytisolo, Luis Goytisolo,
Fernández Santos, Sánchez Ferlosio ou Martín Gaite, entre outros,
aposta numa poética referencial do romance, isto é, num romance
determinado por princípios representacionais objectivistas. É esta
afinidade com o neo-realismo português que destacarei de
momento, recordando muito embora o facto de o movimento ter
coagulado uma década antes, e se subsumir a uma estética marxista.
Tomemos novamente como exemplum –assumindo, muito
embora, a contigência de qualquer exemplo, que dirá de si o que
pode sem de todo poder subsumir os casos– o itinerário estético de
Juan Goytisolo que, como dizia mais acima, também obedece à inflexão de um momento em que predominam romances objectivistas
–pense-se em obras como El Circo, de 1957, Fiestas, de 1958 e La
resaca, do mesmo ano– para uma fase dita experimental. O ponto
de viragem, como é sabido, acontece com Señas de identidad, cuja
primeira edição data de 1966, romance que inaugura a saga de Álvaro Mendiola, o protagonista. Em data recente, Goytisolo reeditou
a trilogia, agregando os três romances sob o título Tríptico del mal
(2004), integrando assim, num único objecto, o romance de 66, La
reivindicación del conde don Julián, de 1970, e Juan sin tierra, de
1975. Destaco, então, que Goytisolo, com Señas de identidad,
transmuta a poética dos anteriores romances, sendo consciente de
131
Apud Pita 2002, 62. Cfr. Reis 1983.
Num alinhamento de Gramsci e Caraça, António Pedro Pita formula: “De certo
modo, ambos desenvolvem uma ontologia do presente: o presente constitui um desenlace
de todo o passado; trata-se, todavía, de um desenlace peculiar, que leva o passado a uma
espécie de obscuridade que o transforma em ‘não existente’ ou em ‘o que ainda não é’, de
onde, para além de toda a lógica da previsibilidade, surgirá o futuro” (Pita 2002, 63).
132
232
PEDRO SERRA
inaugurar uma nova linguagem ficcional. É o próprio romancista
que assevera: «propus-me fazer um collage de materiais sem os fundir completamente no corpo do romance, tentei evitar toda e qualquer sistematização para sair desta espécie de impasse, de beco sem
saída em que os romancistas espanhóis nos sentimos encerrados».133
Em Señas de identidad, efectivamente, o romance é submetido a uma sistemática destruição da gramática formal legada pela
tradição, hegemonicamente realista. A morigeração da poética romanesca objectivista, e este é também um dos fulcros do meu argumento, responde à necessidade de assumir as contradições intrínsecas de um escritor que progressivamente cifra uma crítica radical
à sociedade espanhola franquista do pós-guerra, mediando esta crítica em clave autobiográfica. Álvaro Mendiola, como tem vindo a
ser formulado por diferentes estudos sobre o romance, é projecção
ficcional do próprio Goytisolo. Neste sentido, a impossível demanda de marcas de identidade é tanto individual como colectiva. Para
além de outras formas que objectivam uma narração truncada no
seu funcionamento referencial, considero especialmente relevante o
complexo diálogo estabelecido entre um narrador em segunda pessoa e uma focalização narrativa em terceira pessoa. Assim, a negação radical de quaisquer raízes culturais –negação que contrasta
com uma sociedade que, no franquismo tardio, absolutiza os seus
fundamentos na Família, em Deus e na Nação Unificada– impele o
narrador fracturado e o próprio autor a uma auto-vingança trágica.
Num momento crucial do romance, Álvaro Mendiola, fotógrafo em
Paris que regressa a Barcelona depois de dez anos de auto-exílio,
questinando o seu périplo vital e dirigindo-se a si próprio em segunda pessoa, diz: “a tua própria aventura e a aventura do teu país
[Espanha] tinham seguido caminhos diferentes. Por um lado, cortaste qualquer vínculo que te ligava ao passado da tribo, embriagado e
surpreendido com a tua nova e incrível liberdade; por outro lado, o
teu país e os teus amigos, que persistiram no nobre esforço de transformar a pátria comum, pagando o preço que por cobardia ou indiferença tu te recusaste a pagar”.134 Eis aqui, bem explícito, o double
bind moral que determina a impossibilidade de o narrador, e Goyti133
134
In Rodríguez Monegal 1975, 113.
Goytisolo 1999, 167.
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
233
solo, recuperarem uma perdida unidade ontológica, individual e colectiva. O diálogo entre um narrador em terceira pessoa e um narrador em segunda pessoa, o diálogo entre os restos fragmentados de
um impossível objectivismo e um subjectivismo alienado, estruturam a representação de um universo ficcional que, apesar desta enunciação esquizóide, é alvo de uma radical negação.
Anos mais tarde, concretamente em 1977, Juan Goytisolo
explicitaria a pulsão formalista que o animara. Num volume de ensaios intitulado Disidencias, no ensaio “Literatura española contemporánea”, formula: “Tanto a praxis dos formalistas russos como
o desenvolvimento da linguística a partir da publicação póstuma dos
cursos de Ferdinand Saussure ensinaram-nos que as palabras não
são os nomes dóceis das coisas, antes formam uma entidade autónoma, regida pelas suas próprias leis”.135 Em 1970 é publicado em
España o livro Formalismo y vanguardia, reunindo ensaios de Eijhenbaum, Tinianov, Chklovski, cinco anos depois da influente antologia de Todorov.136 É bem significativo o ensaio de Goytisolo.
Devolve-nos muito explícitamente um romancista a fazer a revisão
do vínculo inicial a um “realismo social” determinado por uma Ditadura que trava o tempo espanhol, tanto no que se refere à vida social como às formas simbólicas.
Também Juan Benet, nos meados dos anos 60, procurava ‘acertar’ o relógio espanhol, alienado do tempo do que chama “estilo
internacional” e determinado, em claro regime anacrónico, pelo oitocentismo galdosiano, naturalista e realista. Assim, polarizando a
prosa de ficção entre a que é subsumida pela pulsão documental e
aquela que aspira, nos antípodas, a uma vontade de estilo, afirma,
em claro gesto genoclástico: “«Esfumou-se, daqueles romances naturalistas, todo o seu valor documental e, paradoxalmente, morreram, estão bem mortos, porque não souberam dar à informação um
valor permanente que mantivesse o interesse no momento em que
essa informação tivesse perdido actualidade. E aqui roçamos um
dos grandes temas do problema do estilo: o de que a coisa literária
135
Goytisolo 1977, 154: “Tanto a práxis dos formalistas rusos, como o desenvolvimento da linguística a partir da publicação póstuma dos cursos de Ferdinand Saussure,
ensinaram-nos que as palavras não são os nomes dóceis das coisas, constituem, antes, uma
entidade autónoma, regida pelas suas próprias leis”.
136
Théorie de la littérature, Paris, Seuil, 1965.
234
PEDRO SERRA
só pode ter interesse pelo estilo, nunca pelo assunto».137 Na mira de
Benet temos, ainda, não apenas o legado ‘costumbrista’ de oitocentos, mas também o realismo social das décadas de 50 e 60.
Retorno, pois, a esse momento que é, como formulou num
ensaio fundamental J. M. Castellet, da ‘hora do leitor’. La hora del
lector (1957),138 isto é, necessidade social e de campo de produzir
as condições –discursivas, materiais– que promovam uma ‘educação estética’. No momento de irrupção histórica da absoluta estetização das classes médias –a sociedade de consumo, a massificação
cultural– o reforço da defesa de uma suspensão ‘estética’ é um gestus com notória valência política pois é nele/por ele que se produz
‘distância crítica’. É neste enclave que se situa a problemática das
‘culturas do romance’ no cronótopo peninsular da passagem das
ditaduras para as democracias. É, enfim, no enclave de uma ‘idade
da inflação’, sintagma que colijo do estudo de Charles Newman.139
Sobrelevo, fundamentalmente, o que nesta noção de Newman excede um determinação económica imperativa. O argumento de uma
‘idade da inflação’ “não se baseia no determinismo económico. A
inflação é um mal-estar cultural de dimensões morais genuínas,
com causas psicológicas e sintomas económicos”.140 O que os escritores e intelectuais, a que tenho vindo a fazer referência, enfrentam
é a ‘indiferença’, a ‘anomia cultural’. É esta anomia e inflação que,
enfim, podemos ler no ‘plástico’ que envolve o poeta patriarca ausente.
A perda de especularidade do romance, entretanto, é manifesta na pulsão genoclástica que percorre o breve corpus ficcional a
que venho aludindo. A ruptura do objectivismo na ficção peninsular, a partir grosso modo da década de sessenta, soma diferentes episódios singulares. Uma Abelha na Chuva, de Carlos de Oliveira,
inflecte de forma decisiva os imperativos da estética neo-realista.
137
Benet 1973 [1ª ed.: 1966], 135: “Daqueles romances naturalistas esfumou-se
todo o seu valor documental e, paradoxalmente, morreram, e é justo que assim seja, porque
não souberam dar à informação um valor permanente que mantivesse o interesse quando
viesse a perder actualidade. E aqui roçamos um dos grandes temas do problema do estilo:
o de que a coisa literária só pode ter interesse pelo estilo, nunca pelo assunto”.
138
Cfr. Castellet 2001.
139
Cfr. Newman 1985.
140
Ibidem, 7.
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
235
Romance sustentado por uma narração clivada entre o referencial e
o auto-reflexivo, o universo social aí representado, uma comunidade rural dominada por valores morais pequeno-burgueses, contrasta
com a pulsão modernista do processo enunciativo.141 O narrador
diabólico, isto é, o narrador auto-referencial de Uma Abelha na
Chuva transfere para uma cena da escrita uma realidade que se representasse como exterior à representação, e que se movesse nessa
exterioridade independendo de uma representação. O romance devém exercício filológico.142
De igual modo se perfila o acontecimento discursivo que é
Tiempo de silencio de Luis Martín-Santos. Relevo desse romance,
muito concretamente, a perda de auto-evidência de um mundo que
absolutamente se objectivasse, facto que na obra assume teor dramático na patologia da culpa de Pedro em relação à morte de Florita, corpo morto que acabará por significar a inconsequência do futuro casal Pedro/Dora. Cito: «Tu não a mataste. Estava morta. Não
estava morta. Mataste-a, sim. Por que razão dizes tu? –Eu».143 Nem
um objecto estável –isto é, nem uma realidade ontologicamente estável, de resto sub specie mortis –, nem um sujeito estável, definido
antes como clivagem eu/tu no monologismo interior do foco narrativo.144
Também em Bolor de Augusto Abelaira, como sabemos, a
referencialidade do género é, logo desde o início, truncada pela absolutização da escrita, pela omnipresença do romance como teatro
da escrita. O universo representado é subsumindo por um enredo
metaficcional, por uma escrita narcisista que coloca a referencialidade em perda.145 Eis o tropo da página em branco que determina a
radical suspeição da ficção diarística proposta: «Olho para o papel
branco (afinal um tudo-nada pardacento) sem a angústia de que falava Gauguin (ou era Van Gogh?) ao ver-se em frente da tela, mas
com apreensão, apesar de tudo. Que vou eu escrever - eu, a quem
nada neste mundo obriga a escrever? Eu, antecipadamente sabedor
141
Esta fractura temporal –o tempo pré-histórico do mundo narrado, o tempo progressivo da narração– foi explicitada por Diogo 2003.
142
Cfr. Serra 2004.
143
Martín-Santos 1987, 217.
144
Cfr. Knickerbocker 1994, 15.
145
Cfr. Silvestre 1994.
236
PEDRO SERRA
da inutilidade das linhas que neste momento ainda não redigi, dentro de alguns minutos (de alguns anos) finalmente redigidas?».146
Visa-se, assim, o estranhamento do homo interior pequeno-burguês
(sujeito escrevente), dado no romance pela falência matrimonial de
Maria dos Remédios e Humberto, sintomática de um social amplamente alienado.
Enfim, entre 1971 e 1975, Miguel Espinosa terá escrito La
fea burguesía. Romance que ainda revisto em 1980,147 já só seria
publicado na versão final em 1990. Edição póstuma, pois. La fea
burguesía articula uma singular poética romanesca, apostada na representação da burguesia, também referida como “classe gozante”.
‘Classe’, advirta-se, não obedece a um sentido estritamente materialista, nem o universo social representado se subsume a uma dialéctica de classes, antes à cristalização do seu cancelamento. O romance é constituído por duas partes. A primeira delas, sob o título de
“Classe média”, é integrada por cinco histórias independentes. Cada
uma delas centra-se num casal, sendo que cada um dos cinco casais
nomeia as diferentes histórias: ‘Castillejo e Cecilia’, ‘Clavero e Pilar’, ‘Krensler e Cayetana’ e ‘Paracel e Purificación’. A segunda
parte do livro, por seu turno, tem por título “Classe gozante”. É
composta por apenas um capítulo, subtitulado com os nomes de um
outro casal, ‘Camilo e Clotilde’.
Sublinho, enfim, um único aspecto formal deste romance,
concretamente aquele que estrutura o pacto narrativo da segunda
parte do livro. O narrador de “Classe gozante” é um narrador em
primeira pessoa, o contador da história é precisamente a personagem Camilo. O pacto narrativo desta segunda metade de La fea
burguesía implica que a voz ficcional que se dirige ao leitor seja um
burguês exemplar. Esse leitor potencial, e este é um ponto importante, é ficcionado pelo próprio romance. A história é contada por
Camilo, figura paradigmática da “classe hedonista”, a uma outra
personagem, Godínez, indivíduo que se situa, de um ponto de vista
social, nas margens do círculo propriamente burguês. Enquanto
Camilo é um alto funcionário do aparelho burocrático do Estado –
epítome, pois, da alta classe média que sustentou e foi legitimada
146
147
Abelaira 1986, 9.
Cfr. Jambrina 1998.
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
237
pelo franquismo– Godínez pertence a um stratum social também
referido como classe média, mas que não se manifesta absolutamente como “classe gozante”. Na verdade, a peculiaridade da personagem reside precisamente no facto de nunca poder vir a aceder a esse
círculo social de eleição. Godínez é –e este termo é o termo usado
no romance– um ‘proletário’. Ser ‘proletário’ significa prioritariamente, dentro dos limites nocionais do romance, que Godínez é exposto à fealdade burguesa mas que nunca encarnará esse mal absoluto.
E, todavia, a condição de ouvinte e tentado pela sedutora
língua de Camilo não esgota o estatuto ficcional de Godínez. Constatamo-lo apenas no último parágrafo do romance, que explicitamente situa Camilo e Godínez numa cena de ‘tentação’. Camilo é o
tentador e Godínez o tentado. Camilo fala –narra, é o narrador– e
Godínez escuta, isto é, é tentado pelo discurso da voz autoritária do
primeiro. São estas as palavras finais do romance: «Um homem foi
tentado, por outro homem, a inclinar-se diante do que não podia alcançar, dada a sua natureza, o que implica a mais alta tentação, pois
conduz ao desespero. O tentado, contudo, resistiu à sedução mediante a acção de a escutar e transcrever, retratando assim o tentador e
afastando-o de si».148 Notável este turn of the screw final do romance! Godínez não apenas ouve o relato de Camilo: Godínez é, também, responsável pela sua transcrição. Escrever as palavras da vida
social alienada, da fealdade burguesa, significa simultaneamente
ceder/resistir à alienação.
O narrador diabólico de Uma Abelha na Chuva, o narrador
clivado de Tiempo de silencio, a evanescência do foco narrativo em
Bolor, e o complexo pacto narrativo de La fea burguesía, são figurae da lei formal do fenómeno estético que mais acima mediei pelas
reflexões adornianas.Neste sentido, o compromisso –uma política
do compromisso e o compromisso de uma resistência às ditaduras e
à sociedade legitimada pelas demasiado longas ditaduras peninsulares– para estes escritores peninsulares, no cronótopo balizado pelas
décadas de cinquenta e setenta, significou enfrentar as contradicções de uma estética desinteressada: todos perspectivam o estético
(a poética dos seus romances) como alegoria de uma redenção soci148
Espinosa 1990, 292.
238
PEDRO SERRA
al progressivamente privada de caução na história.149 Cada um destes escritores incorporou a consciência desesperada de que as Ditaduras pareceriam não ter fim. Como Beckett no ensaio de Adorno,
esse desespero não sucumbe no silêncio, ainda que sejam contínguos: il faut continuer. Simultaneamente, empenhados como estavam na negação das sociedades salazarista/marcelista e franquista/tardofranquista, as suas escritas incorporaram um sentido de culpa, de cumplicidade em suma. Vejamos, pois, em que termos, ainda
que com brevidade.
O enredo do processo de passagem da Ditadura à Democracia na Península Ibérica é articulado sobre um argumento principal:
mais do que uma ideologização da arte, os romancistas do período
que destaco como corpus de trabalho, sugerem uma poética do
compromisso predicada justamente na superação da dualidade arte/política. É nela que radica uma ética da autoria, sempre suplementada por um influxo autobiográfico que, em momentos fulcrais,
agoniza a tensão entre compromisso e cumplicidade. Cumplicidades
geracionais mobilizadas por um alento revolucionário Moderno
que, não obstante, acaba por sucumbir perante uma realidade social
irredimível. Vemo-lo tanto no progressismo do círculo universitário
de Últimas tardes con Teresa (1966), de Juan Marsé –utopismo alto-burguês barcelonês do pós-guerra– como no romance Retrato
dum Amigo Enquanto Falo (1979), de Eduarda Dionísio, tableaux
de (auto)revisão geracional que vai percorrendo o ímpeto utópico
que, detonado na década de sessenta, acabará por entrar em regime
de deflacção nesses anos imediatamente posteriores à Revolução,
enquanto processo que rapidamente “domestica” as armas.150 Textos e agentes textuais como os que vimos percorrendo, vão enfrentando a seguinte questão, gerindo de modo complexo os implicados
dela: que significa ‘ser moderno’ em Portugal, como formulou Ernesto de Sousa, na posteridade daquele “Mesmo, sem contágio nem
mudanza” do cronótopo salazarista?151 Sentir-se do século XX sem
149
Cfr., para o caso de Carlos de Oliveira, Silvestre 1994.
Romance onde se lê a imagem de um “[afagar dos] tanques como grandes animais domésticos” (Dionísio 1979, 72).
151
Cfr. Sousa 1998. Ensaio publicado, pela primeira vez, na revista Opção a 26 de
Julho de 1978.
150
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
239
se ser moderno, tinha dito, de Espanha, um Ortega y Gasset?152 Enfim, que significa ser moderno na Península Ibérica no século XX?
Fazer memória desta questão não esquecendo que o trabalho intelectual é vivido na seguinte aporia, aquela que agoniza o narrador
psiquiatra de Memória de Elefante: «[a psiquiatria –diz-nos– é uma]
arma real da burguesia a que por nascença pertenço e que se torna
tão difícil renegar, hesitando como hesito entre o imobilismo cómodo e a revolta penosa, cujo preço se paga caro porque se não tiver
pais quem virá querer, à Roda, perfilar-me».153
Compromisso e cumplicidade, enfatizo a necessária articulação de ambas as noções. Não esgoto as implicações da sua justaposição, articulá-las em conjunto, creio, é produtivo do ponto de vista
da leitura –sempre re-leitura– tanto da literatura que se quer comprometida, como da própria teoria dessa escrita comprometida. O
meu ponto de partida será, concretamente, o ensaio de Theodor W.
Adorno de 1962, publicado em 1965, intitulado em inglês Commitment, em francês Engagement e, em português e espanhol, Compromis(s)o.154 Um ensaio bem conhecido, pelo que escuso uma síntese mais demorada dos argumentos adornianos aí esgrimidos. Todavia, impõem-se umas breves observações. Recordemos que neste
ensaio Adorno parte da negação mútua que supõe a polarização entre uma arte comprometida e a concepção da autonomia estética.
Não se trata apenas de que cada um dos pares cancele o outro. A
aporia reside no facto de negar seja também uma auto-negação.
Nem o conteudismo de um compromisso redutor –isto é, de uma
arte subsumida apenas pelos seus fins– nem o formalismo da art
pour l'art –cujo ensimesmamento desvicularia a arte do social– define, para Adorno, a verdadeira lei formal da arte. Essa lei formal
não é outra que a de uma dialética dos dois momentos.155 É assim
152
Cfr. Ortega y Gasset.
Antunes 1987, 48. Memória de Elefante: romance que, do meu ponto de vista,
visa perfazer a ‘abjecção’ do Ditador. Dir-se-ia que num gesto equivalente àquele de um
Basilio Martín Patino no documentário Caudillo. Diz-nos o cineasta: “Este tipo de películas [Caudillo] surge de una necesidad rara: de algo que te obsesiona y que es preciso echar
fuera. En mi caso era el fenómeno del poder, que tomó la forma de un friso sobre el franquismo, pensado inicialmente como trilogía. Cuando murió Franco, aquello dejó de tener
sentido y el equipo se disolvió” (apud Pérez Millán 2002, p. 187).
154
Cfr. Adorno 1973a.
155
Cfr. ibidem, 52.
153
240
PEDRO SERRA
que Adorno responde à versão existencialista do compromisso de
Jean-Paul Sartre, por um lado, e ao compromisso ideologizado de
Brecht.
Por outro lado, no ensaio de Adorno reverbera, ainda, outro
conhecido tópico, um tópico, aliás, nem sempre bem citado. O lugar
é também sobejamente conhecido: “escrever lírica depois de Auschwitz é bárbaro”.156 Na verdade, não se tratou nunca, para Adorno,
de um problema específico da poesia. É um problema inerente a
toda a cultura posterior aos horrores da Segunda Guerra Mundial. E
é um problema na medida em que o que está em causa não é –ao
contrário de algumas leituras algo simplificadoras da aporia adorniana; penso, por exemplo, no ensaio de Susan Sontag titulado “Aesthetics of Silence”, de 1967157– votar a arte (a poesia, a literatura, a
cultura) a um devir de silêncio. A barbaridade inerente à cultura
pós-Auschwitz é o seu momento negativo, o impulso a partir do
qual se deve animar a cultura a vir. Esta aporia é, para Adorno, estruturante do processo cultural, é irremovível tanto por uma poetologia apostada na heteronomia do estético, como por uma poetologia que se subsuma à sua autonomia. O saldo que fica é o de uma
poiesis cuja necessária resistência se define, justamente, na resistência ao veredicto da barbárie estruturante. O lugar do artista –do
poeta, do romancista, do dramaturgo– é um lugar incerto, isto é, é
um lugar atravessado pelas dilacerações que a aporia arrasta. O seguinte passo da obra Dialéctica Negativa é, enfim, lapidar: «Quem
apelar para a ressurreição desta cultura culpada e gasta torna-se seu
cúmplice, enquanto que quem nega a cultura promove directamente
a barbárie que a cultura revelou ser. Nem mesmo o silêncio nos faz
sair deste círculo, uma vez que com o silêncio apenas usamos o estado de verdade objectiva para racionalizar a nossa incapacidade
subjectiva, novamente degradando a verdade em mentira».158 O que
está em causa, como podemos ler, é que o que liga indissoluvemente o momento artístico da arte ao momento não-artístico da arte, o
que agencia a mediação do social na arte, é precisamente isso a que
Adorno chama ‘culpa’. Uma ‘culpa’ que determina a cultura –a
156
157
158
Ibidem, 64.
Cfr. Sontag 1994.
Adorno 1973b, 360. Traduzo do inglês este passo.
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
241
‘culpa’ de não ser possível remover a culpa da cultura. Sigo aqui
Frederic Jameson que, lendo Adorno, repete a fórmula: «Nesse sentido, a culpa da qual todas as obras de arte estão impregnadas será
uma das mediações por meio das quais a obra que de outro modo
seria monádica se relaciona de maneira profunda e interna com a
orden social que de outro modo seria externa».159 Eis, pois, ainda
que neste momento tenha de abreviar algumas etapas do meu argumento, a inextricabilidade do vínculo compromisso/cumplicidade.
Interessa-me sobremaneira, precisamente, aqueles criadores e criaturas em que se agoniza a contradição inerente ao processo cultural,
em que se agoniza o fundamento da escrita. Este agonismo, muito
concretamente, objectiva-se, num certo sentido, num problema de
sociologia da escrita, que é também –passe o jogo quiasmático– de
escrita do social na ficção contemporânea portuguesa e espanhola.
De modo também aqui simplificado, o problema a que me refiro é o
da contradição irresolúvel do estatuto do escritor, que nos idos a
que me reporto encarna uma cultura burguesa anti-burguesa. Enfim,
uma literatura que não perfaça aquele desígnio burguês de “educação sentimental e sensível” da civilização.160 O momento álgido
desta encarnação, no enredo de passagens que proponho, é, antecipo, precisamente a fascinante obra de Miguel Espinosa, La fea burguesía. A ela voltarei mais adiante.
Carlos de Oliveira, Eduardo Blanco-Amor, Juan Goytisolo,
Luís Martín Santos, Augusto Abelaira, Xosé Luís Méndez Ferrín ou
Miguel Espinosa: romancistas, entre outros, cuja poética do empenhamento com a escrita e a sociedade é predicada justamente na
superação da dualidade arte/política. De facto, considero que cada
um destes romancistas incorpora uma ética da autoria subordinada a
diferentes aporias, mas em última instância não fazendo qualquer
concessão a uma prática auto-indulgente da escrita. Os romances
em causa são disso exemplos cabais, tensados entre a negação radical de espaços sociais alienados e o bloqueio de visões de uma sociedade reconciliada. O ethos autoral destes romancistas, neste sentido, determina ficções que agonizam o legado da ‘culpa’, em sentido
adorniano, anteriormente explicitado.
159
160
Jameson 1997, 173.
Enzensberger 2002, 41.
242
PEDRO SERRA
Enfim, é nos finais da década de 50, princípios da década de
60 que o romance espanhol entra na sua específica ère du supçon.
Os casos averbados –Goytisolo, Castellet ou Benet– são emblemáticos. Em cada um deles o que se verifica é o re-enactment de uma
conhecida razão moderna. Procuram, pela modernização do fundamentos estéticos, agenciar uma resistência ao social reificado e alienado. E fazem-no, precisamente, no momento em que a sociedade
espanhola franquista, e em larga medida pela mão do franquismo,
perfaz uma renovada entrada na modernidade, uma renovada entrada na História. Tanto é assim que, a resistência a partir desses idos
terá de articular não apenas uma resistência ao franquismo, mas ainda a resistência a uma sociedade cuja deriva obedece já à lógica
do capitalismo tardio.
Contudo, do meu ponto de vista –e este é o argumento que
proponho para a ponderação deste cronótopo da cultura literária
espanhola– teremos autores em claro ciclo tardo-modernista
respondendo a uma sociedade e a uma cultura determinadas por
uma inflacção pós-moderna. Assim, e como procurarei explicitar
mais adiante, um romancista como Miguel Espinosa, romancista
que refracta uma sociedade pós-moderna, perfila-se, do meu ponto
de vista, como um autor tardo-modernista.
Pouco tempo depois do advento das Democracias no espaço
peninsular, concretamente em 1976, Miguel Espinosa, referindo ao
romance Escuela de Mandarines, assimila os fascismos peninsulares no que a longevidade diz respeito: «O livro [i.e., Escuela de
Mandarines] poderia ser classificado, do meu ponto de vista, como
utopia negativa do fascismo espanhol, como declaro no recorte de
jornal que lhe envio; por utopia negativa entendo a exposição do
que não deve ser. Também se podería definir como tentativa de
descrição ontológica, ou seja, na sua real ultimidade, do fascismo,
tal e como floresceu em Espanha durante quarenta anos; a obra pretende pintar, pormenor a pormenor, uma sociedade fascista, na sua
totalidade e em cada consequência. Como só em Espanha, se exceptuarmos Portugal, perdurou o fascismo quase meio século, creio que
só aqui podería escrever a obra que descreve o seu ser imoral».161
161
Numa carta enviada a Jean Tena, a 28 de Janeiro de 1976. Citado por Ferreras
1992, 149.
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
243
Nem Balzac, nem Dostoievski; um modelo assumidamente
‘realista’, mas sem pulsão mimética. O ‘realismo’ é poético ao ser,
fundamentalmente, produção de auto-referencialidade que transforma o discurso social que constrói a ‘realidade’: «se o romancista
não transforma a linguagem que ouve em linguagem literária, não
recolhe nada do real, capta o silêncio da aparência».162 Enquanto,
diríamos, realismo poético, o projecto estético de Miguel Espinosa
produz uma textualidade que assenta na dialéctica de dois termos:
por um lado, na objectivação absoluta do ‘real’ enquanto produto do
uso socialmente consensuado da linguagem; por outro lado, no estranhamento desse ‘real’ por uma linguagem novelesca autoral que
se sustenta na auto-referencialidade. Completa este quadro estético,
a sua subsunção a uma distribuição moral totalmente objectivada: o
fascismo é o mal absoluto, essa maldade absoluta é a absoluta realidade do fascismo; a utopia negativa é a dissolução desse absoluto
pelo estranhamento. É especialmente notória, do meu ponto de vista, em La fea burguesía, ficção implacável na negação de um horizonte de reconciliação social.
Os termos da utopia negativa enquanto projecto de renovação do romance devolvem-nos uma explícita ética do estético que,
do meu ponto de vista, tem notória matriz ‘modernista’. É na produção de uma auto-referencialidade intrinsecamente negativa que
Espinosa cumpre o desígnio de uma arte social contra a sociedade.
Esta ética da forma –uma ética da forma que pode ser lida como
pulsão neobarroca163 que introduz o inactual num tempo realizado
pós-moderno–,164 do meu ponto de vista, tem um vínculo forte como as versões fortes do formalismo modernista. Neste sentido, proporia a obra ficcional de Miguel Espinosa como o caso exemplar de
um tempo tardo-modernista da ficção contemporânea espanhola.
Talvez se possa ler o trabalho de linguagem levado a cabo
por Miguel Espinosa em função de uma conhecida dilemática adorniana, que tem nessa década a sua recidiva e também a sua exautoração. Eis o lugar da Teoria Estética a que me refiro: «A aporia da
arte, entre a regressão à magia literal ou a transparência do impulso
162
163
164
Ibidem, 153.
Cfr. R. de la Flor 1992.
Cfr. Vilarós 1992.
244
PEDRO SERRA
mimético para racionalidade coisificante, prescreve-lhe a sua lei de
movimento; tal aporia não se pode remover».165 Diríamos que é a
impossibilidade de remoção deste movimento aporético que ‘anacroniza’ ou prescrece o carácter ‘tardio’ do Modernismo. Miguel
Espinosa, tardo-modernista na medida em que a ficção é, ainda,
centelha sacral da realidade. Uma realidade em que se não crê –
sendo a fealdade absoluta– e que independe dessa incredulidade.
Miguel Espinosa como que retrai o foco narrativo a um lugar ascético,166 rasurando o gestus interpretativo, o olhar do theoros.
Ao mesmo tempo, objectiva aquele objecto em princípio menos objectivável: a linguagem. Língua burguesa estática, intratável pela
interpretação, daí a sua opacidade e dureza. Cristalizada no seu
momento performativo, a língua burguesa envelhece no seu hic et
nunc enternizado. Língua passada presente. A língua burguesa devém objecto estético, sendo que ela mesma é objecto estético, aliás
de curso universal absoluto. O que Espinosa nos propõe é que um
mundo social estetizado, e autonomizado como estética, independendo de um sentido. Não há sentido latente na língua burguesa. Ela
significa aquilo que literalmente significa. Lembra, de algum modo,
uma outra injunção adorniana, concretamente a de que o literal é a
barbárie. Daí a importância do pacto narrativo da segunda metade
da obra. Como escriba, o narrador transcreve ‘ipsis verbis’ a palavra
estetizada burguesa. Godínez é bem o objecto correlativo do escritor que, mediador funcional inter-classista –proletariado/burguesia–
se cumpre também (e ainda) como sujeito autónomo. É, a sua, uma
crítica indiscernível de uma auto-crítica à consciência burguesa. A
língua burguesa é reconhecida como ‘monumento’, sim. Mas tal
reconhecimento, diríamos, enfim, na esteira benjaminiana, pressupõe ainda algo como a antecipação da sua ‘ruína’.167
Mas, dados dois, avancemos agora um passo atrás. Um passo ainda aquém desses avatares absolutamente reificados da domus
aurea burguesa que temos em La fea burguesía. Retrocedamos a El
desencanto, documentário em que a demanda de intimidade é ob165
Adorno 1991: 69.
Fernando R. de la Flor articula para Miguel Espinosa a construção de um “lugar
de dissidência”. Cfr. R. de la Flor, s.d., inum.
167
Cfr. Benjamin 2005, 49.
166
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
245
jectivada no tropo –também oitocentista– do ‘interior’ habitado. A
questão deste documentário –como de resto, a questão e o tema do
breve corpus ficcional que elejo como objecto de análise neste ensaio– é oitocentista na medida em que é na narrativa burguesa heróica de oitocentos que se coagula o que chamaria ‘problema da habitação’. Habitar o íntimo convoca a tropologia sedimentada pela
afirmação histórica –mitificação e naturalização históricas– da burguesia. Contudo, esta habitação do íntimo e do interior ocorre num
momento –o momento especular e auto-referencial do documentário– em que esta epopeia e esta etopeia burguesas claudicam, conhecem o seu desenlace.
Sigo, aqui, muito concretamente, um insight benjaminiano
que encontramos no Livro das Passagens. Convoco uma nota mínima, um facto mínimo, mas que como facto é toda uma teoria. Diznos Benjamin: «Desenlace do capítulo sobre o interior: aparição do
adereço no cinema».168 É essa transmutação degradada que temos
em El desencanto: o ‘interior’ da casa de Castrillo de las Piedras
(Astorga) impondo-se gradualmente como adereço. O objecto doméstico vai cedendo o papel de vestigium da subjectividade em detrimento da sua funcionalização como ‘atrezzo’ cenográfico. O
‘problema da habitação’, tal como é performativizado por Felicidad
Blanc, assenta na progressiva distensão da dialéctica entre a conservação do ‘íntimo’ (pessoal, familiar, comunitário) e a sua degradação. Progressivamente se deflecte, para seguir os termos benjaminianos, a tensão entre o ‘estojo’ e o ‘adereço’:169 «A maior dificuldade
na ponderação do facto de habitar reside, por um lado, em termos
de reconhecer nele o antiquíssimo –talvez o eterno: a reprodução da
estância do homem no seio materno; por outro lado, à margem deste
motivo pré-histórico, há que compreendê-lo na sua forma mais extrema como estado existencial do século XIX. A forma prototípica
de toda a habitação não é estar numa casa, mas sim num estojo. Este
estojo exibe as marcas do seu inquilino. No extremo, a vivenda
converte-se em estojo. O século XIX estava mais ansioso de habitar
do que nenhum outro».170
168
169
170
Benjamin 2005, 242.
Nas vozes espanholas ‘estuche’ e ‘atrezzo’, respectivamente.
Ibidem, 239.
246
PEDRO SERRA
Eis, pois, os termos do ‘problema da habitação’: a vivenda
como ‘estojo’, como lugar em que habitam as marcas do inquilino;
a vivenda como ‘adereço’, como lugar em que sobrevém a abjecção
do inquilino. El desencanto lança-nos de borco neste processo de
transformação da domus aurea burguesa. O documentário colige
imagens que são, sem dúvida, ‘passagens’ obrigatórias para equacionar este ‘problema da habitação’ na cultura peninsular contemporânea. Sendo que esta contemporaneidade peninsular, do meu
ponto de vista, imperativamente responde à transição das Ditaduras
para as Democracias. É verdade que o discurso historiográfico tem
vindo a explorar os termos da afinação das transições “mediterrâneas” tardias, isto é, os processos político-sociais de democratização na sequência desenvolvimento mais universal da chamada “terceira vaga”171 –abarcando os casos de Espanha, Portugal e Grécia–
em meados dos anos setenta. O grau de “satisfação”, registe-se, é
pensado prioritariamente em termos de transição institucional ou
política: «A comparação do que sucedeu, em meados da década de
setenta, nos três países mediterrâneos deve fazer-se tendo em conta,
simultaneamente, o ponto de partida –isto é, o tipo de regime ditatorial existente e as dificuldades objectivas antes do processo de democratização– e o ponto final, ou o que é o mesmo, os problemas e
perigos experimentados e o grau de consolidação do sistema democrático. Em ambos os domínios, a transição espanhola oferece um
balanço mais positivo do que a dos outros países: o ponto de partida
era mais dificultoso, e o desenlace resultou ser mais satisfatório.
Claro está que a razão desta diferença não radica em nenhum tipo
de factor étnico ou particularidade cultural. Uma razão crucial para
explicar a diferença reside em que o caso espanhol teve lugar quando se tinha iniciado a ‘terceira vaga’ e algo podia aprender-se com o
sucedido até então (mas mais ainda se haveria de aprender com ela).|172 Fundamentalmente, a brevidade e fragilidade da ditadura
grega, a escassa ‘fascistização’ da ditadura portuguesa, contrastam
com o carácter estrutural e institucional da ditadura franquista.173
171
Entenda-se democratização de “terceira vaga” no sentido que lhe confere, por
exemplo, Huntington, 1991.
172
Tusell 2007, 31.
173
Cf. Tusell 2007, 33 e ss. Para uma comparação dos casos português e espanhol,
cfr. Torre 1989 e o número monográfico da revista Studia Historica (cf. Aa. Vv., 2003).
TRANSIÇÕES & PASSAGENS...
247
“Processo à família [peninsular]”, pois, nas ficções de Eva e
Adão; de Carmen e Franco; de Oliveira Salazar nos seus escritórios
ao telefone e, do outro lado da linha, e.g. Carolina Asseca; de Felicidad Blanc e Leopoldo Panero; de Maria dos Prazeres e Álvaro
Silvestre; de Dora e Pedro; de Maria dos Remédios e Humberto; de
Cecilia e Castillejo; de Pilar e Clavero; de Cayetana e Krensler; de
Purificación e Paracel; de Clotilde e Camilo; de Pepi e Juan Manzanares... Um processo que, evidentemente, tem uma notória tradução
política, ao ser a ‘família’ fundamento ideológico das ditaduras peninsulares, ou não fossem etapas histórico-sociais legendadas pelo
dictum inviolável e indiscutível “Deus, Pátria, Família”.174 Elenco
de casais certamente incompleto –qual a soma dessas ficções matrimoniais? qual a soma dos vestigia em que cifraram o espaço íntimo?– mas que, sem obviar as diferenças das determinações contextuais dos romances em causa, nos convida a pensar a “intimidade
familiar”, a sua crítica e sua crise, como bojo das sociedades corporativas peninsulares. Enfim, da quietude eterna do scriptorium de
Oliveira Salazar, do palácio de El Pardo ou do Pazo de Meirás de
Carmen Polo e Francisco Franco; ao passeio por um bairro em
construção, de uma cidade em construção, do casal Juana Rodríguez
e Iván Guzmán na sequência final do documentário de José Luis
Guerín En construcción (2000)175 ou à deambulação fantasmal de
Ventura pelo bairro ‘branco’ social, post-Fontainhas, no filme Juventude em Marcha (2006)176 de Pedro Costa, encerrando a trilogia
Ossos (1997) e No Quarto de Vanda (2000). O ‘problema da habitação’, jogado no inquilinato benjaminiano entre o estojo e o adereço, devolve-nos um complexo sintoma com que reequacionar as
passagens peninsulares das Ditaduras para a Democracias.
174
Cfr. Blesa 1999, 302: “Y era la época en que Marcuse y Laing, etc., habían
hecho circular análisis, de los que resultaba que la familia no era sino una célula de represión. Pero en España en particular había más razones para llevar a cabo la revuelta contra
la institución”. Recorde-se, ainda, o vínculo entre “amor”, “casamento”, “família”, “sociedade” e “estado” postulado por Hegel nos Elementos de Filosofia do Direito (cfr. 1991, §
158-181).
175
Cfr. Guérin 2000.
176
Cfr. Costa 2006.
248
PEDRO SERRA
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VEREDAS 10 (Santiago de Compostela, 2008) 253-267
A História da Literatura e algumhas
novas técnicas de estudo.
A autonomia da disciplina em causa
RAQUEL BELLO VÁZQUEZ
Universidade de Santiago de Compostela -Grupo GALABRA
The study of the literary system has mainly used, until nowadays, techniques and
methodological applications based on a static positivism (consisting on the
rescue and edition of texts) and, after that, on the interpretation, appreciation and
the study of texts reception. Since early 70's, when sociological and systemic
theories begun to turn popular, a change in the point of view has proved a
dislocation between traditional "authors-and-works" history and new knowledge
plus scientific evidences that put the main focus on new elements of the system,
turning some issues more relevant for their study: i.e. repertoires, producers
(being “authors” in the traditional way or not) and groups promoting repertoires
and supporting producers. Our main goal in this paper is to show how the
embodiment of these analysis techniques made us conclude that History of
Literature, as an autonomous discipline, makes no sense in the scientificmethodological framework of the cultural systems. Although this does not
necessarily mean that some of the usual aptitudes and resources of this discipline
could not be used as ancillary elements for the knowledge of the system's
behavior.
O questionamento de que seja a História da Literatura e
quais as suas funçons nom é estritamente umha reflexom nova e, de
facto, nos principais repositórios científicos na Rede (JSTOR e
ScienceDirect, por exemplo) podemos encontrar umha abundante
254
RAQUEL BELLO VÁZQUEZ
bibiografia sobre o tema produzida desde 1904.1 Como indica
Wendell Harris (1994: 434), os debates sobre o significado da
etiqueta «História da Literatura» tenhem sido abundantes em toda a
segunda metade do século passado:
The meaning of «history» in «literary history» is a more recalcitrant topic than our familiarity with the term is likely to suggest.
The question is hardly new; the last half-century has seen a good
many hard-fought matches between notable critics and this complexity recalcitrant topic. René Wellek's «Six Types of Literary
History» (1946) and «The Fall of Literary History» (1973), R. S.
Crane's «Critical and Historical Principles of Literary History»
(1967), Geofrey Hartman's «Toward Literary History» (1970),
Hans Robert Jauss's «Literary History as a Challenge to Literary
Theory» (1970), Robert Weimann's Structure and Society in Literary History (1976; Epilogue, 1984), and David Perkins's Is Literary History Possible? (1992) represent a range of perspectives
intriguingly reflecting changes in literary theory over four decades.
Insistindo ainda nom apenas na disputa académica em torno
a este assunto, mas na variedade de usos atribuídos à etiqueta
mesma:
Clarity as to the role, indeed the meaning, of literary history has
acquired a special exigence in the last half-dozen years as historicisms of various hues have been regaining respectability in literary theory and practice. A good deal of writing about literature
would be clearer if critics and theorists explicitly recognized the
number of different ways in which «literary history» is presently
used. It is no at all difficult to find the term shifting meanings
within the same essay, for instance here designating historical
context, there designating the history of literary form. But state1
Nesta altura, Gustave Lanson, um dos pais do positivismo, chamava a atençom
para as funçons da História da Literatura com estas palavras: «It is impossible, in fact, not
to recognize that every literary work is a social phenomenon. It is an individual act but a
social act of the individual» (Lanson1904: 226) ou ainda «Most of the time we are studying not strictly individual phenomena but rather phenomena of the same order as those that
by definition belong to the study of sociology, namely, the actions and conditions of persons in society, actions and conditions to which society contributes just as much as the
individual does» (Lanson, 1904: 230).
A HISTÓRIA DA LITERATURA E ALGUMHAS NOVAS TÉCNICAS DE ESTUDO 255
ments applicable to literary history in one sense are not necessarily applicable to it in one of the others.
Isto fai com que algumhas das questons aqui abordadas
podam ser já clássicos da teoria literária, mas achamos que a
novidade da nossa proposta nom consiste em tentar umha nova
definiçom de História da Literatura, mas na explicitaçom de que as
diversas teorias elaboradas sobretodo desde a década de setenta,
suficientemente provadas, assentes e assumidas (ao menos
aparentemente) polo mundo académico devem ter o seu reflexo na
consideraçom da autonomia e no tratamento desta disciplina.
Os estudos desenvolvidos por Itamar Even-Zohar desde a
década de 70, mas com especial sucesso desde os inícios dos 90,
tenhem vindo a demonstrar por um lado, que a literatura como
fenómeno semiótico nom tem nengumha especificidade a respeito
de outros fenómenos similares e, por outro, que o que deve ser
estudado nom é um corpus de textos, mas as funçons desenvolvidas
em cada momento polos diferentes fenómenos culturais. Isto, claro,
tem como principal efeito nos estudos literários a relativizaçom da
sua posiçom como fenómeno cultural privilegiado, já que as
investigaçons sistémicas, se bem ajudárom a explicar a importáncia
da formaçom das literaturas nacionais, também datárom essa
importáncia, substituída nos últimos anos, em boa medida, por
outros fenómenos de maior alcance, e insistírom na ideia das
funçons dos produtos literários como plataformas de promoçom de
repertórios, o que contribuiu para a o fim de umha certa magia que
o fenómeno literário incorporava através do seu ensino. Em
palavras do próprio Even-Zohar (2005a: 1), o principal objectivo da
ciência moderna é «the detection of the laws governing the diversity
and complexity of phenomena rather than the registration and
classification of these phenomena», mas este «registo e
classificaçom» tem sido e ainda é o objectivo fundamental da
História da Literatura.
Paralelamente, desde França e desde o campo da sociologia,
Pierre Bourdieu demonstrava sem demasiado espaço para a dúvida,
que alguns dos principais alicerces que sustentavam a História da
Literatura como disciplina reconhecida nom suportavam umha
256
RAQUEL BELLO VÁZQUEZ
análise desta perspectiva científica. Os seus estudos demonstram,
como é bem conhecido, que o gosto é construído e que até os
comportamentos que consideramos mais íntimos respondem a
regras impostas. Igualmente, Bourdieu (1979, 1989, 1991 e 1992,
por exemplo) insistia na funçom reprodutora das instituiçons
académicas, o que tinha também as suas repercussons nas funçons
da História da Literatura. Conceitos hoje difundidos como capital,
doxa, distinçom, trocas simbólicas, etc. ajudavam a desenvolver
pesquisas anteriores como as de Norbert Elias (1969), baseadas
também no estudo das funçons dos agentes, e nom dos agentes
mesmos, e no estudo dos comportamentos.
Mas estas nom som as únicas propostas que no século
passado puxérom em dúvida de um modo ou doutro (por vezes com
objectivos ideológicos e/ ou metodológicos bem diferentes) o
estátus ocupado pola História da Literatura. É bem conhecida a
incidência do desenvolvimento dos «Cultural Studies» no
questionamento dos modos de construçom do cánone (acusado de
ser constituído quase em exclusiva por varons brancos do primeiro
mundo) e no que se deu em chamar a sua «abertura», que supuxo a
introduçom, sobretodo nos países anglo-saxónicos, de quotas
daqueles grupos que se consideravam minorizados. Neste sentido, é
salientável o Western Canon de Harold Bloom (1994) e a
discussom lançada em torno à sua publicaçom e à sua famosa lista.
Em tempos mais recentes, novas técnicas de estudo,
desenvolvidas para outros campos científicos tenhem sido aplicadas
com sucesso ao campo literário. Referimo-nos concretamente à
Análise de Correspondências Múltiplas e à Análise de Redes.
Através delas podemos nom apenas verificar a falta de rigor
científico e de veracidade de umha historiografia literária focada
para os textos publicados e para os seus autores2 mas também
2
Entendemos escritor ou autor nom como sinónimos de produtor, embora em
muitas ocasions sejam assim interpretados. Por escritor ou autor entendemos aqueles
agentes do campo que escrevem textos literários e que, de forma preferente, publicam
estes textos. Por produtor, todos aqueles agentes que produzem elementos repertoriais ou
produtos culturais que veiculam estes repertórios. Na versom de 1990 (35) da teoria dos
polissistemas, Even-Zohar afirma que «the role of text-making in the sum total of production may be rather small, e.g., in periods and cultures where the major task of a literary
producer is performing established texts or reshuffling ones, or when the major “merchandise” is actually only overtly and officially “the text,” but the actual one lies in a com-
A HISTÓRIA DA LITERATURA E ALGUMHAS NOVAS TÉCNICAS DE ESTUDO 257
quantificar exactamente a releváncia de cada um dos elementos que
intervenhem no sistema, assim como estabelecer critérios fiáveis
para a definiçom de grupos.3
Nos últimos anos, nas faculdades de Filologia pode ser
detectada umha tendência para incorporar alguns dos termos
derivados das análises de tipo sociológico ou sistémico
(principalmente aqueles fixados por Itamar Even-Zohar e por Pierre
Bourdieu nos seus trabalhos mais conhecidos) ao discurso literário.
É bem sabido que a palavra sistema tinha em grego o sentido de
grupo ou conjunto e que, aplicado no seu sentido menos específico
exprime a ideia de «combinação de partes coordenadas entre si e
que concorrem para um resultado ou para formarem um conjunto».
Nas suas diferentes aplicaçons científicas, sistema indica sempre
um conjunto de factores interrelacionados cuja alteraçom individual
provoca a alteraçom do grupo. É neste sentido que Even-Zohar
escolhe o termo «(poly)system» para se referir ao conjunto fechado
de relaçons em que cada um dos membros recebe o seu valor em
funçom da sua posiçom e oposiçom aos outros. Algo similar
acontece com as teorias do campo de Pierre Bourdieu. A própria
ideia de campo implica para o sociólogo a existência de lutas, e
estas lutas tenhem como resultado ganhos ou perdas de capitais (de
diferente tipo) e variaçons nas posiçons. À luz destes dous pequenos
recordatórios, deveremos reflectir sobre se as incorporaçons que de
algumhas etiquetas procedentes destas teorias nom suponhem, na
realidade, unicamente umha substituiçom terminológica de uns
verbetes considerados mais ou menos conservadores ou
ultrapassados por outros mais modernos ou científicos.
Simplesmente a modo de exemplo, sem pretendermos fazer
umha pesquisa exaustiva, revisámos os últimos números de duas
revistas editadas no ámbito académico galego e que tenhem como
assunto principal os estudos filológicos e/ ou literários. Trata-se das
revistas Grial, e Agália representativas de duas posiçons diferentes
pletely different socio-cultural and psychological sphere: interpersonal as well as political
production of images, moods, and options of action». Para umha visom mais recente deste
tipo de funçons, veja-se Even-Zohar 2005b.
3
Para umhas aproximaçom a este tipo de estudo vejam-se, por exemplo, os
trabalhos sobre o Renascimento florentino do professor John F. Padgett, da Chicago
University (http://home.uchicago.edu/~jpadgett/).
258
RAQUEL BELLO VÁZQUEZ
no sistema, de forma que a posiçom mais ou menos
institucionalizada ou central nom condicione a sua abertura para
novas propostas metodológicas.4 Esta pequena amostra serviu para
verificar umha hipótese formulada a partir do desenvolvimento do
nosso trabalho no quadro de umha faculdade de filologia: a
presença de palavras como campo ou sistema é relativamente
abundante, mas os modos de realizar os estudos som
substancialmente os mesmos.5
Se isto se produz tanto ao nível da crítica como da pesquisa
em literatura, algo similar podemos detectar no nível docente. Se
dermos umha vista de olhos aos programas das cadeiras de História
4
Devemos indicar que revisámos também os últimos números da revista A Trabe
de Ouro, mas o completo afastamento dos contributos ali publicados de qualquer teoria
sistémica ou de campo invalidava a sua inclusom aqui, já que o nosso objectivo era
verificar a hipótese de que a utilizaçom de determinadas palavras ou referências
bibliográficas nom significam necessariamente a assunçom de umha teoria em toda a sua
complexidade. O dito serve, sim, para mostrar que a evidência científica nem sempre é
suficiente no ámbito das Humanidades para desterrar velhos hábitos.
5
Indicamos alguns exemplos como a recensom «Unha panorámica polas estatuas
do século XX» (Grial, n.º 173 [Abril 2007]: 111-113) que, embora iniciada com
referências ao Campo Literário e às redes de distribuiçom, acaba por ser umha revisom
estilística do texto recensionado. No mesmo número da revista (pp. 74-81) encontramos
ainda umha entrevista de Carlos Lema e Dolores Vilavedra com Alberto Manguel em que
o assunto central é o fascínio que os livros e a leitura exercem sobre o leitor, destacando,
precisamente, que esse fascínio é real apenas quando é representado pola denominada
«alta literatura». Algo similar acontece no n.º 172 (Janeiro 2007) da mesma revista. Na
recensom assinada por María Liñeiras do romance de Manuel Rivas Os livros arden mal
(«Agora que temos um espello de corpo enteiro»), a autora começa nom apenas falando do
sistema literário espanhol e da posiçom periférica da Galiza dentro deste, mas citando
Pierre Bourdieu e os conceitos capital económico e capital simbólico. No entanto, a análise
do romance, a pesar de um intento inicial de situar o produtor no campo, acaba por ser um
resumo-interpretaçom-valorizaçom do texto como «unha das mellores novelas galegas».
Na revista Agália, embora a tendência mais geral seja a presença de artigos
referidos à literatura de um corte mais tradicional, encontramos alguns exemplos em que a
aplicaçom das teorias sistémicas som algo mais profundas. Como exemplo podemos
indicar o artigo de Susana M.ª Sánchez Arins (81, 1.º Semestre 2005: 225-244), que realiza
umha análise das funçons de um prémio literário de ámbito local e os elementos
repertoriais promovidos desde os diferentes júris, embora a análise dos dados esteja
fortemente condicionada pola vontade de intervençom. Umha visom mais claramente
sociológica encontramo-la no número 87-88 (2.º Semestre 2006: 81-94) no artigo de
Carlos M. F. da Cunha, que conclui afirmando ser «imperativo que a “literatura” seja
resgatada de uma leitura esteticista para ser vista à luz de uma leitura que a interprete
como cultura, em articulação com o campo do poder, em função da sociedade e do
momento que a produziu», e a aplicaçom das teorias sistémicas, fundamentalmente, no
artigo «Ideia de língua e vento português na Galiza do tardofranquismo: o caso de
“Galaxia” de Roberto López-Iglésias Samartim (n.º 83-84 [2.º Semestre 2005], pp. 9-50).
A HISTÓRIA DA LITERATURA E ALGUMHAS NOVAS TÉCNICAS DE ESTUDO 259
das diferentes literaturas ministradas nas faculdades galegas (das
procuras nos programas de outras universidades disponibilizados na
rede deduze-se que isto nom será um défice específico do nosso
país, mas um mal comum) só podemos concluir que estes também
nom tenhem mudado significativamente.6 Em todos os casos, som
umha exposiçom (cronológica ou nom, aqui há certas variantes) de
períodos assentes pola tradiçom (Idade Média, Renascimento,
Barroco, Iluminismo, Romantismo, etc.), de autores e de obras
canónicos.
Num sentido similar, como mostra da actualidade deste
assunto, manifesta-se Reingard Nethersole num número recente da
revista Neohelicon (2007: 79-81):
However, the very teaching of capitalised Literature as knowledge
of literary texts that signify cultural achievement, «the worth of
the value» of Bildung (education), has been questioned in the by
now notoriously famous canon debate. At stake in the debate is
not so much the accumulation of cultural capital but what kind of
work or text ought to be taught without taking recourse to aesthetic judgement (aesthetic ideology), while nevertheless engaging selection procedures. The transformation of literary studies into cultural studies might have shifted interest in the works [...], but restricted economy of the cultural field remains unchanged.
Do dito infere-se que os avanços teóricos produzidos nos
últimos 30 anos, que tenhem virado do avesso os fundamentos dos
estudos literários, nom som assumidos pola academia, o que nos
coloca perante a necessária reflexom sobre como tirarmos estes
conhecimentos da teoria da literatura ou da cultura e os
6
No caso da Universidade de Santiago de Compostela remetemos para o
formulário
de
pesquisa
dos
programas
das
licenciaturas
em
http://www.usc.es/ServizosXML/Plantillas/Guia_Centros_Tablas/Materias/Xsrm_Guia_Ti
tulacions.xml?Num_Organizacion_Nodo=315&Cod_Guia_Formulario_Interno=65&Num
_Sistema_Idioma=9&Contenttype=text/html. Na Universidade da Corunha, para os
programas
acessíveis
em
http://www.udc.es/filo/html/gal/FGalMaterias.htm,
e
http://www.udc.es/filo/html/gal/FHispMaterias.htm
http://www.udc.es/filo/html/gal/FIngMaterias.htm. Na Universidade de Vigo os programas
docentes
encontram-se
em
http://webs.uvigo.es/centros/fft/web/index.php?option=com_remository&Itemid=38&func
=select&id=57.
260
RAQUEL BELLO VÁZQUEZ
transferirmos para a prática académica nas suas várias dimensons
(pesquisa, crítica e docência). Em último termo, as novas propostas
teóricas e as novas técnicas de pesquisa deveriam levar-nos a
repensar a própria existência do ensino da literatura, tal e como tem
assinalado em várias ocasions o professor Elias Torres (2004a, b, c e
2006), mas dado que este ensino continua a ser prescrito polos
programas obrigatórios, faremos aqui algumhas reflexons sobre
como trasladar os avanços para a elaboraçom de manuais didácticos
e para a elaboraçom de crítica ou recensom.
Quanto aos novos modos de pesquisa, a consciência de que
os fenómenos literários ou culturais nom podem ser explicados
unicamente através dos agentes habitualmente considerados na
História da Literatura (escritores, textos, instituiçons vinculadas
com a circulaçom dos textos como editoras, revistas literárias, etc.)
exige umha nova forma de trabalhar que implica umha importante
acumulaçom de informaçons para a compreensom do
funcionamento do sistema. Ou seja, devemos ter informaçons
suficientes (dados quantitativamente suficientes sobre agentes,
relaçons, representatividade e para estabelecer comparaçons entre
diferentes períodos para detectar lacunas e detectar a mudança)
sobre a sociedade que estudamos que nos permitam entender os
seus modos de comportamento e de relacionamento para assim
detectarmos com maior precisom as relaçons a que devemos dar
maior atençom.
Por todo isto, necessitamos tomar em consideraçom umha
grande quantidade de factores como as trajectórias individuais, as
relaçons entre agentes e grupos, etc, informaçons que na maior
parte dos casos devem ser apreendidas a partir de documentaçom
privada (nem sempre acessível, muitas vezes parcelar e quase
sempre incompleta, cuja interrelaçom fai mais complexa a
investigaçom) e também, para casos mais recentes, da imprensa, o
que, particularmente nos últimos anos, multiplica exponencialmente
a quantidade de documentos disponíveis. Isto obriga-nos, por um
lado, a assumir hábitos pouco incorporados nas Ciências Humanas,
como o trabalho colaborativo, mas também a desenvolver a
aplicaçom nos nossos estudos de ferramentas e técnicas
desenvolvidas noutros ámbitos científicos.
A HISTÓRIA DA LITERATURA E ALGUMHAS NOVAS TÉCNICAS DE ESTUDO 261
Isto quanto à abordagem de assuntos mais ou menos
vinculados com os tópicos tradicionalmente tratados pola Filologia
ou pola História da Literatura (estudo de trajectórias individuais, de
editoras, utilizaçom de corpora literários, etc.), mas se levarmos às
consqüências últimas as implicaçons das novas teorias, cada vez fai
menos sentido abordar este tipo de estudos, e, sobretodo para o
período actual deveremos contemplar o estudo de fenómenos que só
tangencialmente tenhem a ver com a produçom textual.
É aqui, na complexidade da gestom dos dados, em que entra
a utilizaçom da Análise de Redes, com o objectivo de visualizar a
estrutura relacional do campo e a extracçom de padrons de
relacionamento para fazer umha abordagem sistemática sobre ela,
ajudando a colocar novas hipóteses de trabalho, contrastar as
hipóteses iniciais e tomando a partir destas decisons quanto à
orientaçom da pesquisa.
A inovaçom e a dificuldade desta aplicaçom nom está nas
ferramentas (que, obviamente, nom som novas), mas na aplicaçom
ao ámbito dos estudos sobre cultura de ferramentas desenvolvidas
noutros ámbitos e pensadas para a análise de redes sociais. Os
nossos objectivos nom estám vinculados com o desenvolvimento
das ferramentas, nem pretendemos fazer um estudo pormenorizado
dos seus fundamentos matemáticos. O que nos levou à escolha da
Análise de Redes foi a utilidade que encontramos na abordagem
visual e sistemática das redes relaçons que se desprendem a partir
do trabalho de pesquisa. Sem precisar da colaboraçom de pessoal
formado na matemática ou na estatística, conseguimos pensar visual
e relacionalmente o nosso trabalho. Pense-se no dito acima sobre o
volume de dados.
A partir destes conhecimentos a forma de abordar e de
definir o objecto de estudo deve ser necessariamente diferente,
sendo insuficientes as aproximaçons estilísticas que continuam a ser
maioritárias no ámbito dos estudos literários. Mas, como dizíamos
acima, as novas perspectivas sobre as funçons e o funcionamento do
fenómeno literário nom tenhem repercussom apenas na pesquisa
realizada dentro dos departamentos de Filologia, mas também, e de
forma mui importante, em dous ámbitos que entendemos devem ser
dependentes dos resultados da investigaçom: a crítica e a docência.
262
RAQUEL BELLO VÁZQUEZ
A extensom da difusom da imprensa desde, sobretodo, os
finais do século XVIII e inícios do XIX, e a diversificaçom dos seus
públicos e formatos, consolidou-na como um elemento central do
sistema literário em paralelo à consolidaçom da burguesia como
elemento central dos sistemas económico e político. Estes dous
processos nom é por acaso que se produzem em simultáneo, e
deveremos levar mui em conta a importáncia dos dous factores na
consolidaçom da crítica literária como instituiçom necessária para a
orientaçom do público leitor. Frente ao modelo anterior em que a
crítica era fundamentalmente a glosa dos clássicos, cada vez mais a
crítica publicada em jornais e revistas vai ter como funçom a
discriminaçom dos produtos que possuem umha etérea qualidade
frente a aqueles que nom a possuem.7 E sem mudanças de maior, a
crítica atravessou dous séculos e foi exportada para outros
fenómenos culturais como a música, o teatro ou o cinema e mesmo
aos fenómenos mais recentes como os jogos para consolas ou
computador, os dvd's (nom apenas como suporte de filmes, mas
como um produto com entidade específica) e até os sítios web.
Aproveitando as novas possibilidades da comunicaçom em
rede, umha das mudanças fundamentais que se tem produzido nos
últimos anos é a que tem a ver com quem tem legitimidade para
exercer a crítica. Se através de revistas ou jornais (e igualmente
através doutros meios como TV ou rádio) os críticos profissionais
detinham quase em exclusivo o direito discernir que produtos eram
bons ou maus, agora som cada vez mais freqüentes os espaços em
que a crítica é feita de forma aparentemente democrática polos
utentes (independentemente das suas habilitaçons ou trajectórias)
que emitem os seus juízos em forma de recensom e em forma de
7
Veja-se sobre este assunto Joseph Melançon (1991: 672-73), que estuda
precisamente a passagem da glosa para a crítica e as repercussons que esta passagem tem
na conformaçom do cánone: «it is not our intention to retrace such a genesis, but, at this
moment of epistemic transition from the Baroque to Classicism, to indicate a noteworthy
change in the doxic function of the literary canon, which changes from an exegetical tradition to an axiological one [...] I would like to show, at the same time, the birth of the canon
interpretation in French literature and, consequently, of the critical tradition that ceases
with the “querelle du Cid”, which marks the end of a semantic tradition where imitation,
borrowing, and the gloss constituted signification. Something occurred, then, that discredited the euphemistic function of commentary. It resulted in a challenge to the validity of
author's value judgments. Henceforth a commentary could be negative and also remain
canonical. Criticism acquired its firs right to expression».
A HISTÓRIA DA LITERATURA E ALGUMHAS NOVAS TÉCNICAS DE ESTUDO 263
qualificaçom numérica. A última conseqüência deste tipo de crítica
está na confecçom nos sites de perfis específicos nos quais os
utentes se revêm e nos quais procuram as opinions dos seus pares,
com a evidente repercusom destes estruturas reticulares nos
consumos e, portanto, no mercado.8
Mas se repararmos bem, embora mude a instáncia
legitimadora (o que é, sem dúvida umha mudança importante), o
formato da crítica, a sua funçom e até os seus códigos som
exactamente os mesmos que na crítica exercida por especialistas.
De facto, seria revelador um estudo que comparasse de forma
sistemática as opinions publicadas por críticos e por consumidores,
porque, numha aproximaçom superficial ao menos, umhas e outras
nom parecem diferir substancialmente. E a retroalimentaçom
produze-se em ambos os sentidos, pois, tal e como indica Verboord
(2003: 261),9
choices made in the selection and classification of books are
socially constructed. Though many critics would like us to believe
in their abilities to classify authors with nothing more than the
texts at hand, they perform their job in a social context. Not only
do scholars listen carefully to other experts in the literary field,
since the sociocultural changes in the 1960s, they also have to
take public opinion into consideration. Structural social changes
in which the power differences between the elite and non-elite
grew smaller –owing to increased educational and welfare levels–
have reshaped the cultural market into a more competitive,
consumer-based one, and consequently weakened the institutional
bases of cultural authority (DiMaggio, 1991). Without an
8
Veja-se,
por
exemplo,
http://www.iblist.com/
(para
livros),
http://www.filmaffinity.com/ (para filmes, com versons em inglês, espanhol e alemao),
http://www.imdb.com/ (também para filmes) ou http://rateyourmusic.com/ (para música).
Isto, claro, sem entrar na enorme quantidade de blogues ou páginas pessoais que tenhem a
opiniom sobre estes consumos culturais como um dos seus objectos principais.
9
Verboord, no trabalho citado, propom um método para computar e avaliar o
prestígio ou capital simbólico dos produtores num determinado campo literário. Embora
alguns dos critérios usados (ou nom usados) podam ser discutidos, interessa-nos salientar o
facto de que o investigador holandês inclua como elemento de correcçom para o
estabelecimento do coeficiente do que el denomina «Institutional Literary Prestige» (ILP) ,
as presenças dos produtores em instituiçons próprias da literatura popular (como as
enciclopédias ou os prémios específicos), cujo poder de legitimaçom era tradicionalmente
inaceitável para as instituiçons académicas.
264
RAQUEL BELLO VÁZQUEZ
audience paying heed to critics’ opinions, both their expertise and
the value attributed to their selections are robbed of much of their
importance. As a consequence, critics’ preferences as the basis of
selection and classification operations are losing ground to
audiences’ preferences, especially in fields in which producers of
culture have direct contact with consumers of culture. Indeed,
indications of this trend can be found in consumer-oriented outlets
such as newspapers and schools. During the past decades, even
quality newspaper critics paid growing attention to forms of
culture that were traditionally labelled as ‘popular’ or ‘mass’
culture (Heilbrun, 1997; Janssen, 1999). Also, we find clear
examples of perspective shifts in literary education, such as the
curriculum change at American colleges (Lauter, 1991; Bak,
1993) and at Dutch secondary schools.
Como já indicámos, as propostas metodológicas sistémicas e
de campo, demonstram com claridade que a suposta qualidade dos
produtos nom tem um papel decisivo na sua canonizaçom. Bem ao
contrário, primeiro som canonizados e é a sua presença no cánone a
que lhes confere umha certidom de qualidade. É, como sabemos,
um complexo conjunto de factores o que explica o maior ou menor
sucesso dos produtos, tanto no mercado económico como no
mercado simbólico. Umha vez que esta evidência existe, tem
sentido continuar a fazer crítica valorativa dos produtos culturais?
Da nossa perspectiva, evidentemente, nom. Quando o crítico
académico emite um juízo valorativo nom como cidadao, mas como
membro da academia, está fazendo valer frente ao leitor umha
alegada superioridade de critério, umha também alegada capacidade
de discernir os segredos dos significados e das qualidades dos
produtos avaliados.
Mas, no entanto, entendemos que a crítica académica pode
ter a sua funçom, sobretodo num mercado cultural saturado de
produtos facilmente acessíveis. Esta funçom, do nosso ponto de
vista, deve estar focada para a identificaçom da posiçom e da
funçom que o produto e o seu produtor desenvolvem no sistema,
com especial atençom a que grupos sustentam essa posiçom.
Igualmente, deve indicar quais som os principais elementos
repertoriais promovidos, para ajudar o consumidor na escolha dos
produtos do seu interesse.
A HISTÓRIA DA LITERATURA E ALGUMHAS NOVAS TÉCNICAS DE ESTUDO 265
Finalmente, nom queremos acabar este texto sem dar
algumha atençom ao efeito que estas teorias tenhem no ensino da
História da Literatura, e nas novas funçons que este deverá ter.
Neste sentido parecem-nos do máximo interesse as palavras de
Clément Moisan e Carolyn Perkes (1991: 684-85):
Our task of historians will be to show the correlations between
these domains [of literary and cultural life] and the functioning of
the system that they compose, the ultimate effect of which is the
constitution of a nation's official literary canon. The first domain
encompasses the teaching and the didactics of literature, in which
the school textbook serves as the prototypical instrument. To explore this domain, it is necessary to have information about academic levels and curricula within the educational institutions of a
given nation. It is even more important, however, to analyze the
canonical rules of didactic communication operating within the
textbooks which contribute to the transmission of knowledge of literature.
Com efeito, umha das principais aplicaçons da História da
Literatura é o ensino. Em todos os seus níveis, desde a primária até
o ensino universitário, a Literatura está presente com diferentes
funçons: a promoçom do hábito leitor, o ensino de línguas, etc.
Mas, em todos os casos, funciona, ou ao menos funcionou durante
um longo período de tempo desde a sua institucionalizaçom nos
meados do século XIX, como suporte para a promoçom de um
determinado modelo de ética amparado por cada regime particular.
Entre os seus elementos privilegiados estivo sempre a transmissom
da ideia de naçom tanto nos países europeus em que a literatura
nacional foi construída sobre a diferença lingüística como nas
colónias americanas depois da sua independência.10
Dito isto, continuar a ensinar o cánone literário tem dous
problemas: (1) estarmos a reproduzir nas aulas um conhecimento
ultrapassado polas investigaçons das últimas décadas
(conhecimento este, aliás, ideologicamente comprometido) e (2) nos
10
Para ver umha aproximaçom aos problemas de aplicaçom destes
princípios nacionalistas à literatura americana, veja-se William C. Spengemann
(1993).
266
RAQUEL BELLO VÁZQUEZ
últimos anos, as funçons ocupadas pola literatura terem sido
ocupadas por outro tipo de fenómenos culturais como,
fundamentalmente, o cinema, com o que estaríamos diante do
paradoxo exposto já no seu dia por Norbert Elias de estudarmos o
rei em lugar da funçom do rei.
Conclusons
O que pretendemos com este texto foi evidenciar as
contradiçons entre os avanços produzidos em Teoria Literária e nos
estudos da cultura, e as aplicaçons destes estudos no ámbito das
humanidades e, fundamentalmente, no contexto dos departamentos
de Filologia. A nossa proposta é, portanto, nom ficar pola simples
acomodaçom de novas palavras ou de novas metodologias aos
nossos velhos hábitos de pesquisa, mas levar às últimas
conseqüências umhas inovaçons que, do ponto de vista científico,
som incontestáveis e incontornáveis. As posiçons acomodadas e
centrais dos elementos dominantes no campo académico é claro que
dificultam a introduçom de novos modos de trabalho, porque
ponhem em questom anos de carreira profissional e obrigam a
grandes esforços por apreender novos conhecimentos procedentes
de outras áreas científicas. Mas o que é visto desta perspectiva
como umha dificuldade, é, do nosso ponto de vista, a oportunidade
de reciclar as aptidons e habilidades da Filologia em conhecimentos
úteis e até basilares para umha sociedade que já nom procura a sua
explicaçom na literatura.
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VEREDAS 10 (Santiago de Compostela, 2009) 269-286
Historicidade e
materialidade da literatura
REGINA ZILBERMAN
UFRGS; FAPA; CNPQ
A historicidade inicial de um
texto não deriva das
circunstâncias de sua
produção ou dos diversos
modos como é apropriado,
mas [...] ela se inscreve em
sua própria materialidade.
Roger Chartier
The Aesthetics of Reception, as Hans Robert Jauss proposed, researched the histority of literature, redeeming the History of Literature as a discipline and as a
field of scientific investigation. The consideration of the histority of literature
and the legitimacy of the History of Literature also depends on the consideration
of the materiality of production, circulation and consumption, as Donald
McKenzie, William Charvat and Roger Chartier suggest.
1. Historicidade da literatura
A História da Literatura deve sua condição de disciplina e
área de investigação à estruturação dos estudos superiores na
Europa do começo do século XIX. Antes de fazer parte do currículo
270
REGINA ZILBERMAN
universitário, era representada pelos dicionários que, nos séculos
XVII e XVIII, dedicaram-se ao inventariar nomes de escritores e
obras que pudessem responder por uma tradição nacional.1 No
século XVIII, publicam-se as primeiras histórias nacionais da
literatura, mapeando o percurso da tradição literária da Itália,
Inglaterra e França, respectivamente.2 Obras de teor mais amplo
foram a Geschichte der neueren Poesie und Beredsamkeit (18011819), de Friedrich Bouterwek (1765-1828), e De la Littérature du
Midi de l’Europe (1813), de Simonde de Sismondi (1773-1842);
mas elas também recortam as literaturas conforme suas pátrias de
origem, sendo a matéria abordada desde perspectiva cronológica.
Que a produção de uma história da literatura era tema de
interesse não apenas cultural, mas também político, sugere-o a
iniciativa, à época de Napoleão (1769-1821), de atribuir a Pierre
Louis Ginguené (1748-1816), autor de óperas cômicas e crítico
musical, a produção de uma obra desse tipo para a França. Ele
elabora os volumes que apareceram em 1814, 1817 e 1820, mas
notabilizou-o a escrita da Histoire littéraire d'Italie, em 14 volumes,
publicados entre 1811 e 1835.
Coube, porém, a Georg Gottfried Gervinus (1805- 1871),
autor da Geschichte der poetischen National-Literatur der
Deutschen (1835-1842), estabelecer os parâmetros e as metas que
caracterizam a disciplina em questão, ao definir seus vínculos
indissociáveis com a história e ao rejeitar programaticamente
considerações de ordem estética:
Nada tenho a ver com o julgamento estético das coisas, não sou
um poeta, nem um crítico das Belas Letras. O juízo estético
1
Exemplos desses catálogos são, na Espanha, a Bibliotheca hispana nova sive
hispanorum scriptorum qui ab anno MD. ad MDCLXXXIV floruere notitia, de 1672, de
Nicolás Antonio (1617-1684), e, em Portugal, o Theatrum lusitaniae litterarium, sive
Bibliotheca Scriptorum omnium Lusitanorum, de João Soares de Brito (1611-1664),
composto em 1635, incluindo 876 autores, e a Biblioteca Lusitana (1741-1759), em quatro
volumes, de Diogo Barbosa Machado (1682-1772).
2
Exemplos são os livros de Girolamo Tiraboschi (1731-1794), Storia della Letteratura Italiana (1772-1782), de Thomas Warton (1728–1790), History of English Poetry
from the Close of the Eleventh to the Commencement of the Eightteenth Century (17741781), e de Jean-François de La Harpe (1739-1803), Lycée ou Cours de Littérature Ancienne et Moderne (1799).
HISTORICIDADE E MATERIALIDADE DA LITERATURA
271
mostra-nos a gênese de um poema em si mesmo, seu crescimento
e aperfeiçoamento interno, seu valor absoluto, sua relação com o
gênero a que pertence e algo da natureza e do caráter do poeta. O
esteta procura comparar o menos possível o poema com outros e
estranhos, o historiador considera a comparação seu objetivo
principal. Ele não mostra um poema, mas a produção de todos os
produtos poéticos a partir de uma época, do círculo das idéias,
coisas e destino, ele comprova o que corresponde a isso ou o
contradiz, procura as causas, os modos de ser e seu efeito e avalia
seu valor nesses termos, compara-os com os melhores do gênero
artístico de seu tempo e de sua nação, ou, quando seu horizonte se
dilata, com outras manifestações análogas de outros tempos e
povos. (Gervinus, 2006)
Fundamental também para Gervinus é esclarecer o objetivo
da escrita de uma história da literatura: “Não desejo escrever para
os colaboradores ou para os letrados dessa literatura, não para uma
classe especial de leitores, mas, se for bem sucedido, para a nação.”
O historiador da literatura dirige-se à nação, com quem dialoga: é
para esse interlocutor ideal que a história da literatura oferece um
espelho, em que ele descortina sua própria identidade. Ou, pelo
menos, a identidade que intelectuais hegemônicos podem expressar
e em que os grupos dominantes podem se reconhecer.
Com esse perfil, a história da literatura consolidou-se no
tempo e absorveu as cátedras universitárias, estabelecendo modelos
canônicos e repetindo-os, até exauri-los, situação em que Hans
Robert Jauss (1921-1998) a encontra, nos anos 60 do século XX.
Diagnosticando o esgotamento da história da literatura, advoga sua
reabilitação a partir de novos pressupostos, exibidos primeiramente
na conferência em que abre o semestre de verão na Universidade de
Constança em 1967, depois no ensaio “A história da literatura como
provocação para a ciência da literatura”, de 1970.
As datas sinalizam a década em que o Estruturalismo,
triunfante, patenteava pujança que parecia imbatível. Jauss, porém,
investe contra aquela voz dominante, a partir da convicção de que
importante troca de paradigma se processava, conforme texto de
1969 (Jauss, 1969). Em outro estudo, informa que o novo
272
REGINA ZILBERMAN
paradigma se alicerçava na valorização do leitor, por ele designado
“terceiro estado” (Jauss, 1975), reforçando a tese básica de 1967.
Segundo Jauss, o novo paradigma deveria conter
fundamentação hermenêutica, aliada à dimensão social, não
identificada, porém, com o Marxismo. Não perderia a perspectiva
estética, vital, segundo ele, para os estudos literários e rejeitada por
Gervinus quando da institucionalização da história da literatura;
contudo, cabia incluir a análise histórico-recepcional, representada
pelo leitor.
A história da literatura, na acepção de Jauss, se reabilitaria
do descrédito em que estava jogada, se superasse aporias
consagradas pelo tempo, sendo a mais importante a dificuldade de
vivenciar, sob o ângulo da Estética, os textos do passado,
percebendo simultaneamente sua historicidade. Recusando a
perspectiva representada pelo posicionamento de Gervinus, Jauss
espera que a história da literatura aponte o valor e a atualidade de
uma obra, pois esses fatores justificam sua permanência e leitura
no presente.
Soberana por longo tempo, a história da literatura estava
relegada a segundo plano, atitude de amargas conseqüências:
examinada a obra enquanto entidade independente e autônoma, tal
como propunha o Formalismo, descartavam-se os fatores
agregadores da sociedade e da cultura, legando-se um vazio para a
posteridade. Neutralizado o passado da literatura, não apenas
desapareciam fontes e documentos; também se perdiam as conexões
do leitor com o fluxo histórico de onde procede sua formação e
inserção no tempo. O dano denunciado por Jauss –a saber, as
mortes simultâneas da história e da leitura– parecia mais amplo que
seu ensaio, à primeira vista, sugeria.
Buscando compreender a historicidade de uma obra,
entendida como o esclarecimento de sua atualidade e permanência
enquanto objeto de leitura do público contemporâneo, Jauss define
as coordenadas capazes de efetivar essa finalidade. Essas tarefas
prescrevem as teses que fundamentam a Estética da Recepção,
sendo a primeira a recuperação dos laços de uma dada criação
literária com seu tempo ou época de aparecimento, com o objetivo
HISTORICIDADE E MATERIALIDADE DA LITERATURA
273
de reaver o horizonte dentro do qual emerge dada obra, levando em
conta sobretudo normas vigentes:
A análise da experiência literária do leitor [...] descreve a
recepção e o efeito de uma obra no sistema de relação objetivável
das expectativas que, para cada obra, no momento histórico de seu
aparecimento, nasce da compreensão prévia do gênero, da forma e
da temática de obras anteriormente conhecidas e da oposição entre
linguagem poética e linguagem prática. (Jauss, 1976, p. 169)
Verifica-se, na formulação do pensador da Universidade de
Constança, que ele absorvia conceitos veiculados pelo
Estruturalismo Tcheco, igualmente em voga nos anos 60, quando se
traduziam os estudos de Jan Mukarovski (1891-1975) (Mukarovski,
1977) e Felix Vodicka (1909-1974) (Vodicka, 1978), esse o teórico
que lhe fornece as principais réguas através dos quais mede o
impacto de uma obra em dada circunstância de aparecimento.
Em ensaios em que aplica as próprias teses, Jauss evidencia
o modo como entende o diálogo estabelecido entre uma obra e seu
tempo. Interessa-lhe pensar como as obras-primas, os pontos altos
da literatura (Höhenkammliteratur), conforme os apelida,
funcionam por ocasião de seu surgimento. Nesse sentido, valoriza
as condições de produção; porém, seu ponto de partida não é a
circunstância de nascimento, mas os efeitos que a obra causou. Em
outras palavras, parte de sua condição de leitor contemporâneo, para
quem as obras já aparecem com o status de pontos altos,
valorizadas, clássicas e, pode-se dizer, em alguns casos mitificadas,
situação que o leva à pesquisa retrospectiva, buscando os motivos
que ocasionaram a excepcionalidade do produto que despertou seu
interesse.
Nesse sentido, se Madame Bovary, de Gustave Flaubert
(1821-1880), ou As flores do mal, de Charles Baudelaire (18211867), são monumentos inquestionáveis da literatura francesa e, por
extensão, da Europa ocidental, é preciso entender o que se passava
nos idos de 1857, quando aqueles livros foram publicados. Pesquisa
poemas escritos em tal ano, editados em diferentes meios de
comunicação, para concluir que predominava uma visão ordeira,
doméstica, burguesa, que acreditava na “doçura do lar” (Jauss,
274
REGINA ZILBERMAN
1975). Para um público com esse pendor conformista, as Flores do
mal deveriam escandalizar, como de fato ocorreu. Por outro lado,
foram os poemas de Baudelaire que se impuseram no decorrer das
décadas seguintes, não o bom-mocismo dos versos de seus
contemporâneos Victor Hugo (1802-1885), Alfred Lemoine (18241881), André Lemoyne (1822-1907), entre outros identificados no
ensaio sobre esse tema.
Eis a segunda questão que suas teses têm de responder. Para
fazê-lo, o pesquisador afirma ser necessário percorrer a trajetória da
obra no tempo, verificando seu impacto. Não acompanha, porém, a
diacronia, mas a história dos efeitos [Wirkungsgeschichte],
expressão importada do pensamento de Hans Georg Gadamer
(1900-2002) (Gadamer, 1979), para quem interessava compreender
como certos acontecimentos se tornam matéria da história, e outros,
não. Jauss transfere o conceito para os estudos literários, que se
dedicam em primeiro lugar à análise de autores e obras que não se
limitam à época em que despontaram, transcendendo-a por
continuarem a ser lidos, citados, influentes sobre gerações,
permanentemente acolhidos pelo público de diferentes épocas.
A história da literatura coincide com o registro dos efeitos,
que se podem identificar de várias maneiras: por intermédio da
crítica e interpretação de que uma obra foi alvo, como procede no
estudo sobre a poesia de Baudelaire (Jauss, 1984); pelo viés das
releituras e contra-leituras de um tema, como efetua no exame do
mito de Ifigênia nas tragédias de Eurípedes (485? a. C.-406? a. C.),
Racine (1639-1699) e Goethe (1749-1832) (Jauss, 1975); por meio
da verificação das transformações por que passa a escrita dialógica,
que, se nasce em Platão (428/427 a. C.-347 a. C.), toma
configuração particular em Diderot (1713-1784), desembocando no
pensamento dialético de Hegel (1770-1831) e, desse modo,
retornando à matriz platônica (Jauss, 1983).
A contribuição de Jauss reside no modo cuidadoso como
conduz a busca, nos discursos dos grandes nomes da literatura, do
espelho, da distorção, da inserção ou da negação da expressão de
outros mestres notáveis do passado. Esse é seu modo de fazer
ciência da literatura, calcado em uma perspectiva que considera
histórica, por lidar com períodos distintos no tempo, fazendo a
HISTORICIDADE E MATERIALIDADE DA LITERATURA
275
cronologia ir e vir, sem preocupações com a linearidade e com o
ângulo evolucionista e progressivo.
Resulta daí sua concepção de história da literatura, cuja
flexibilidade a diferencia do relato histórico. De certo modo, admite
que os fatos literários se movimentam no tempo, avançando e
recuando, conforme os efeitos que provocam uns sobre os outros.
Jauss discute a tese de que a história da literatura desafia os
limites da história em “História da arte e narrativa histórica”
[Geschichte der Kunst und Historie], inserido à segunda edição de
Literaturgeschichte als Provokation, de 1971, depois de ser
apresentado em um dos colóquios do grupo Poetik und
Hermeneutik. Nesse trabalho, deseja refletir não apenas sobre as
relações entre as duas áreas de conhecimento, mas igualmente sobre
a contribuição da primeira (Geschichte der Kunst: história da arte)
para a segunda (Historie: narrativa histórica ou história). Propõe
como questão norteadora saber se a história da arte constitui um
modo próprio de fazer história ou se permanece na condição de um
segmento da história, cujo princípio de síntese copia. Pergunta ele:
A história da arte, usualmente encarada como uma parente pobre e
dependente da história geral, não pode ter sido outrora o chefe da
família e não pode voltar a ser um dia um paradigma possível do
conhecimento histórico? (Jauss, 1973, p. 178; Jauss, 1982, p. 48)
Jauss atribui ao historicismo do século XIX o fato de a
história da arte ter-se convertido em segmento da história geral. O
caso mais evidente é o da história da literatura, que, aliada à história
política, é colocada no compromisso de comprovar a identidade de
uma nação, à qual fornece igualmente um mito de origem e uma
trajetória, acompanhando o progresso contínuo na direção da
perfeição clássica:
A história das literaturas nacionais, ainda recente, tornou-se a
contrapartida ideal à história política, pretendendo mostrar,
através do contexto de todos os fenômenos literários, como a idéia
de individualidade nacional podia conciliar sua identidade, desde
seus inícios quase míticos até a plena realização do classicismo
nacional. (Jauss, 1973, p. 180; Jauss, 1982, p. 51)
276
REGINA ZILBERMAN
Em decorrência da conversão dos “fatos literários” em
“epifenômeno” dos “fatos históricos”, (Jauss, 1973, p. 182; Jauss,
1982, p. 52), a complexidade da experiência literária é reduzida a
um encadeamento causal entre as obras e entre os autores. A
história da literatura incorpora outros problemas da história
enquanto narrativa, tendo de lidar com séries fechadas préestabelecidas, supondo o “primeiro começo” e o “fim definido”
(Jauss, 1973, p. 184; Jauss, 1982, p. 54), e adotando “imagem
objetiva do passado” (Jauss, 1973, p. 184; Jauss, 1982, p. 54)
Jauss reconhece nesse modo de fazer história a incorporação
da poética do romance histórico, que, transportada para a história da
literatura, anula a atualidade do material com que lida. Reivindica
uma ação na direção contrária, propondo que “a história da arte, por
intermédio de sua maneira de progredir no tempo, e o estudo da
arte, por intermédio de sua contínua mediação da arte do passado e
do presente, podem tornar-se um paradigma para uma história que
faça aparecer ‘o desenvolvimento deste presente’. (Jauss, 1973, p.
193; Jauss, 1982, p. 62)
Jauss implicitamente sugere a inversão de marcha: em vez
de a história da literatura atrelar-se à história, essa inspira-se na
outra, incorporado uma concepção mais flexível no tratamento do
tempo e da cronologia e, principalmente, na narração dos eventos,
valorizados em função de seus efeitos sobre a sociedade
contemporânea. É como se a proposta de Gadamer, de quem Jauss
extraiu o conceito de “consciência da história dos efeitos”
[Wirkungsgeschichtebewusstsein], se voltasse contra seu criador, já
que são os efeitos presentes que constroem o passado, lição da
história da literatura transposta para a narrativa histórica, liberada,
nesse caso, da cronologia, da perspectiva progressiva e da série
fechada.
Ele só precisou efetivar a proposta enunciada em “História
da arte e narrativa histórica”, quando estudou textos literários.
Nesse caso, não podemos acusá-lo de incoerente ou leviano;
entretanto, entregou-se, nos anos 70, ao exame das relações entre
experiência estética e hermenêutica literária, procurando verificar as
conexões entre os processos de recepção, que supõem, de um lado,
o prazer suscitado pela interação com uma obra de arte (Jauss,
HISTORICIDADE E MATERIALIDADE DA LITERATURA
277
1972; Jauss, 1982a), e, de outro, sua compreensão, interpretação e
aplicação, etapas por meio das quais se constrói o entendimento de
uma obra (Jauss, 1989). Igualmente questões relativas às
transformações dos períodos artísticos atraíram sua atenção (Jauss,
1989a; Jauss, 1995), e talvez desse enfoque se possam extrair suas
contribuições para a formatação de um novo modo de se fazer
história.
O investimento de Jauss na historicidade do texto e das
leituras conferiu novo desenho à história da literatura. Ao
alinhamento cronológico de autores e obras, sobrepôs-se uma
concepção mais flexível de passado, cuja visibilidade depende de
seu impacto sobre o presente e, principalmente, da nova disposição
que lhe atribui a atualidade. O significado de romances e poemas
deixa de ser uniforme, pois o diálogo que os textos estabelecem uns
com os outros, com a sociedade e o público alteram-se com o
tempo, transformando-os substancialmente. O passado mostra-se
desdobrável, renovando-se a cada momento em que se dá a leitura
dos produtos literários que gerou.
A presentificação do passado assinala a principal
contribuição de Hans Robert Jauss à história da literatura. Contudo,
ainda que não anule o evento pretérito representado pela obra
original, Jauss o desfibra, porque desaparecem as condições
materiais de produção e recepção, necessárias à compreensão do
impacto determinado pela criação literária quando de seu
aparecimento.
A circunstância de o pensador alemão lidar com textos e
obras, mas não com livros, é sintomática do esvaziamento das
circunstâncias materiais. Por sua vez, quando retorna no tempo e
procura verificar em que contexto emergiu uma obra revolucionária,
como procede ao se dedicar à vida literária no ano de 1857, não
esclarece os motivos que determinaram a permanência de Madame
Bovary ou de As flores do mal, quando o público preferia os dóceis
poemas identificados em sua pesquisa. Jauss privilegia a atualidade
desses textos, resultantes de sua propensão à ruptura, notável a seu
tempo e renovável ao longo de seu percurso histórico, no contato
com outras criações no âmbito do romance e da poesia,
278
REGINA ZILBERMAN
respectivamente; mas não elucida como operaram em seu tempo, o
que guardam de sua época e como se deram as modificações.
Na acepção de Jauss, as obras apresentam historicidade,
porque conservam sua aptidão de dialogar com o presente e
apresentar permanentemente novas questões. A atualidade decorre,
de certo modo, da imutabilidade. A perenidade se instala, de modo
ameaçador, no seio da historicidade, comprometendo os
fundamentos do projeto anti-idealista da Estética da Recepção.
2. Materialidade da literatura
Focado na recuperação da historicidade da criação literária,
Jauss nunca perdeu de vista seu ponto de partida, a saber, o
reconhecimento de que faltava à história da literatura a perspectiva
metodológica capaz de dar conta do valor de uma obra, identificável
no processo de percepção estética. Ele recusa a noção de que a
qualidade resulta da essência inerente ao objeto artístico, propondo
que aquela advém do seu relacionamento com o destinatário – o
leitor, cuja reação testemunha o impacto provocado, impressão que
é tanto maior, quanto mais inovadora e emancipadora for a criação
literária.
Na acepção de Jauss, a história da literatura perde em
narratividade e em substância, deixando de ser instrumento auxiliar
para a expressão e representação da nacionalidade, de que é
igualmente o atestado de existência. Mas ganha em vigor e
importância, pois ocupa o espaço dos Estudos Literários, cuja
legitimidade depende de eles se mostrarem aptos a darem conta das
relações entre o objeto artístico e o sujeito da recepção.
Os Estudos Literários, parcial ou inteiramente absorvidos
pela História da Literatura, não podem mostrar-se indiferentes ao
leitor; esse processo, por sua vez, é despertado e estimulado pela
obra, que, no modo como Jauss a compreende, encampa e resume o
funcionamento do sistema literário. Esse posicionamento não é
inteiramente aceito por historiadores e sociólogos da leitura, que
proclamam a necessidade de ser alargar o espectro das relações
entre o texto e o leitor. Trafegando na contramão da via desenhada
por Jauss, Donald F. McKenzie (1931-1999), em Bibliography and
the sociology of texts, sugere a constituição da Bibliografia,
HISTORICIDADE E MATERIALIDADE DA LITERATURA
279
“disciplina que estuda os textos enquanto formas gravadas, e os
processos de sua transmissão, incluindo sua produção e recepção.”
(McKenzie, 1986, p. 4). Para ele, os textos requerem atenção
enquanto impressos, já que “a forma material dos livros, os
elementos não-verbais das notações tipográficas que eles
apresentam, a própria disposição do espaço” podem ter “função
expressiva na transmissão do sentido”, cujo exame é “uma tarefa
bibliográfica”. (McKenzie, 1986, p. 8)
McKenzie explicita o procedimento metodológico, segundo
o qual “sinais tipográficos e verbais”, “relevantes para decisões
editoriais sobre a maneira na qual se pode reproduzir um texto”,
decorrem de “leituras significativamente informativas”, que podem
ser recuperadas, dirigindo “nosso julgamento do trabalho de um
autor.” (McKenzie, 1986, p. 10) Partidário do estudo da “forma
física do texto”, porque esse gera leituras peculiares, almeja chegar
à história do livro, desde a pesquisa sobre “que os escritores pensam
fazer ao escrever textos, ou impressores e livreiros, ao projetá-los e
publicá-los, ou leitores em interpretá-los”. (McKenzie, 1986, p. 10)
McKenzie não dispensa a investigação que leva em conta a
constituição física do produto que estuda, consciente de que as
escolhas tipográficas, a distribuição da matéria na página em
branco, as alterações de uma edição para outra interferem no
significado do texto e, principalmente, na percepção do destinatário,
determinando formas e conteúdos apreendidos pelo leitor.
Em Do palco à página, Roger Chartier acompanha as
sugestões de McKenzie, ao examinar as transformações por que
passaram obras dramáticas, ao serem impressas. Criadas para serem
ditas pelos autores, as peças continham elementos próprios à
oralidade, que, registrados pela escrita, requereram adaptações não
negligenciáveis. A impressão de comédias, sobretudo, que inclui
improvisações quando da encenação e utiliza virtualidades
aplicáveis à linguagem oral, evidencia a grande distância que se
estabelece entre o texto falado e o escrito. No período que medeia o
Renascimento e o Século das Luzes, essa distância era ainda mais
notória, por várias razões: nem sempre uma peça era escrita e
depois representada; seguidamente, a peça se construía ao longo da
encenação, podendo igualmente alterar-se de uma apresentação a
280
REGINA ZILBERMAN
outra; o responsável pelo texto confundia-se com o produtor e o
ator, de modo que o conceito de autoria era difuso; somava-se a
essas pessoas, quando havia mais de uma, outro indivíduo não
nomeado, mas virtualmente importante: o ouvinte ou espectador
que, testemunha da apresentação pública, memorizava-a e
transferia-a para a edição em livro, mesmo à revelia do autor.
Chartier mostra que poucos criadores escaparam a essa prática,
sendo Molière (1622-1673) uma de suas vítimas mais renomadas.
Na passagem do oral para o escrito, introduz-se novo sujeito
– o editor, que não pertence ao mundo do teatro, mas ao do livro.
Por sua vez, ele se alia a outros indivíduos, vinculados ao universo
profissional da imprensa, onde a divisão do trabalho já imperava.
Assim, colaboraram para a produção do livro o tipógrafo, o
impressor e o livreiro, que conferem materialidade à obra publicada
e difundida. A voz e os gestos, mais voláteis, são substituídos pelo
papel e pela tinta, mais duráveis; ao texto é conferida uma
permanência de que não usufruem os sujeitos responsáveis por sua
enunciação original, a não ser os que o papel registra, como os
nomes do autor e do impressor.
Reivindicar que a história da literatura leve em conta as
condições materiais em que as obras foram produzidas significa
levar a cabo uma investigação dessa natureza. Sob esse aspecto, o
texto não resume a obra, representando parte dela. No âmbito da
oralidade, o texto inclui naturalmente o sujeito da enunciação, sem
o qual a comunicação não se efetiva. Migrando para a página
impressa, aparentemente apagam-se as marcas da origem, o que
sugere a ilusão de que o texto é autônomo, suposição falaciosa,
como se verifica. Além disso, introduzem-se outros fatores que,
doravante, tornam-se parte constitutivas não apenas da obra, mas
sobretudo do texto.
Roger Chartier, em Do palco à página, indica quais
elementos de ordem textual resultam da passagem do texto
dramático, veiculado oralmente, para a impressão: pontuação e
rubricas, por exemplo, são marcas da escrita que inexistem no
âmbito da encenação dramática, mas que se tornam imprescindíveis
no novo contexto de difusão pelo livro. Nascidas enquanto recursos
para compensar a ausência da voz e da figura do ator, tornaram-se
HISTORICIDADE E MATERIALIDADE DA LITERATURA
281
na seqüência regras de composição de obras destinadas ao teatro.
Não perderam, contudo, seus laços com a oralidade, a qual
procuram, de algum modo, mimetizar.
O pesquisador reivindica, pois, o estudo da materialidade do
texto, condição que não pode ser ignorada pelo pesquisador e que é
entendida “como a relação visível, na página impressa ou através da
performance teatral, entre dispositivos formais e categorias
discursivas.” (Chartier, 2002, p. 97) Dessa definição resultam as
seguintes implicações:
-
reconhece-se o estatuto material do texto; mas, ao
mesmo tempo, afirma-se sua volatilidade, já que
sua forma se altera, sob condições diferentes de
transmissão;
-
por mais paradoxal que pareça, o texto caracterizase por sua permanente mutabilidade; em
conseqüência, carece de identidade fixa e
determinada;
-
a materialidade não se limita ao componente físico
do produto, como a voz ou o papel; mas tais
suportes não podem ser ignorados;
-
aspectos circunstanciais compõem a materialidade,
que, portanto, responde ao momento em que o texto
é produzido, trazendo consigo as marcas de seu
aparecimento.
Aceita a premissa relativa à materialidade do texto, ficam de
fora pressupostos que já nortearam os estudos literários, como as
noções de universalidade, identidade e inalterabilidade da obra
literária. Tais premissas, por sua vez, resultam em encargos para a
constituição de uma história da literatura, a quem competirá
investigar não apenas a obra, o autor e as coordenadas estéticas,
mas também os fatores de ordem material que, para além da criação
pessoal de um indivíduo, intervieram na produção do texto,
instalando-se no objeto que se tornou público e contou com dada
circulação.
282
REGINA ZILBERMAN
Por sua vez, a metodologia, nos termos em que está
proposta, parece deixar de fora o ângulo econômico, que, conforme
o pensamento marxista, constitui o fator material por excelência
(Harnecker, 1971). Esse, porém, se diferencia da infra-estrutura,
ainda que decorra das transformações provocadas no campo
literário pelo capitalismo e pela revolução industrial, decorrendo
sua especificidade de um conjunto de elementos a serem levados
em consideração, desde o preço do papel, matéria-prima
imprescindível para a impressão das obras literárias, até a
remuneração dos escritores. William Charvat (1905-1966) destaca a
relevância de serem pesquisados “fatos e números de vendas de
livros e rendimentos de autores”, na medida em que podem
contribuir para a compreensão dos “modos conforme os quais
escritores e seus escritos funcionam na cultura.” O autor
complementa:
O mundo das publicações é importante para a história da literatura
somente na medida em que se pode mostrar, ao final, uma
influência formadora na literatura. Creio que é e sempre foi
precisamente isto, mas os historiadores da literatura parecem
reconhecer este fato apenas superficialmente. (Charvat, 1993, p,
7)
No Brasil do século XIX, o fato de o livro impresso ser mais
barato que o papel importado prejudicou sensivelmente a expansão
da literatura nacional, conforme adverte F. Conceição (?-?), em “Os
livros e a tarifa das alfândegas”. Alertando para o fato de que as
“classes menos favorecidas” tinham dificuldade para adquirir os
“livros necessários aos seus estudos” (Conceição, 1879, p. 607611), relaciona os prejuízos decorrentes da política econômica
adotada pelo Estado no âmbito do campo literário: os escritores não
podiam profissionalizar-se, porque, publicadas poucas obras, caras
e de circulação trabalhosa, haja vista a concorrência com o livro
estrangeiro, árduo se tornava "exercer uma profissão exclusiva,
porque dela só resultaria a miséria para os indivíduos que a
seguissem e para as suas famílias"; por conseqüência, as "letras e
das artes gráficas do país" não progrediam.
HISTORICIDADE E MATERIALIDADE DA LITERATURA
283
Ao final, Conceição aponta a questão fundamental: "a nossa
literatura não tem caráter nacional", justificando o diagnóstico: "não
temos diante dos olhos senão modelos estrangeiros, escritos em
língua que não é nossa, o que faz com que (quem não concordará?)
pareça que os brasileiros têm perdido o sabor do idioma com que
foram acalentados nos seios de suas mães."
Mencionando questões de ordem material, que afetam as
condições de produção e circulação da literatura, F. Conceição
parece colocar o dedo na ferida: a literatura produzida no Brasil do
século XIX, que buscava, desde a independência política do país,
proclamada em 1822 e consolidada em 1825, exprimir de modo
autônomo a nacionalidade, matéria que dominou a emergente
historiografia no período, não atingiria esse objetivo enquanto não
fossem corrigidos os fatores econômicos que a prejudicavam. De
nada adiantavam anúncios de que, enfim, estava afiançada a
brasilidade de nossa poesia, como faz Joaquim Norberto (18201891) saudando os versos de Gonçalves de Magalhães (1811-1882)
(Zilberman, 1998), se os leitores, conforme denuncia F. Conceição,
consomem “modelos estrangeiros”, sobretudo os portugueses, que
tanto perturbaram críticos como José Veríssimo (1857-1916) até as
primeiras décadas do século XX (Verissimo, 1906).
A reflexão sobre a materialidade da literatura não pode
prescindir de considerações de natureza econômica, que afetam
mesmo a consciência com que o escritor se pensa. Em um meio em
que a literatura apresenta-se de modo débil, a prática da escrita
raramente leva à formulação, de modo claro e auto-suficiente, da
noção de autoria, compartilhada por produtores e consumidores de
literatura.
Michel Foucault observa que a “função autor”, como a
denomina, é “característica de modo de existência, de circulação e
de funcionamento de alguns discursos no interior da sociedade”
(Foucault, 1992, p. 46), decorrendo, pois, de um processo que
transcende a aspiração individual e supõe o reconhecimento
público. No Brasil do século XIX, as circunstâncias que
favoreceriam a consolidação da “função autor” eram precárias,
dadas as condições materiais, com conseqüências no âmbito da
produção não apenas de obras, mas também de idéias, entre as quais
284
REGINA ZILBERMAN
as que diziam respeito à própria história da literatura. (Lajolo, 1996;
2001; 2002)
A história da literatura brasileira, em suas décadas de
formação, durante o Romantismo, e depois, sob a égide de José
Veríssimo e Silvio Romero (1851-1914), no começo do século XX,
identificou o problema, ao questionar a nacionalidade e autonomia
da produção elaborada no país, mas não enfrentou suas causas. Não
porque as ignorasse: o artigo de F. Conceição data de 1879, tendo
sido publicado na Revista Brasileira, periódico que, na mesma
ocasião, imprime a primeira edição de Memórias póstumas de Brás
Cubas, de Machado de Assis (1839-1908). No mesmo período,
intelectuais como Franklin Távora (1842-1888), Raul Pompéia
(1863-1895), Pardal Mallet (1864-1894) e Olavo Bilac (18651918), entre outros, reivindicavam o reconhecimento de sua
atividade profissional, que dependia, de um lado, da garantia de
remuneração adequada, de outro, da existência de entidades que
assegurassem seus direitos enquanto criadores de literatura.
A identificação das condições materiais, que incluem
tópicos de ordem tecnológica, como indica Donald McKenzie,
práticas sociais de criação e leitura, segundo Roger Chartier, e
fatores econômicos, conforme sugere William Charvat, possibilita o
conhecimento do modo como o campo literário se organiza em um
dado momento da história, para além do recorte sincrônico,
apontado por Hans Robert Jauss, caracterizado pelas normas que
ditavam comportamentos e padrões estéticos. Tal identificação
faculta igualmente o reconhecimento da historicidade da literatura,
não apenas porque, como quer Jauss, as grandes obras continuam
atuais, ao provocarem o rompimento das disposições familiares.
Mas porque o objeto estético, independentemente de sua qualidade
e impacto no tempo, está atravessado pelas questões de sua época,
com as quais dialoga e diante das quais se posiciona.
O diálogo, por sua vez, não se dá tão-somente por
intermédio das palavras. Gravadas sobre papel, dependentes das
tintas, do maquinários, dos trabalhadores, da legislação vigente, da
imagem que os escritores têm de si mesmo, de seus companheiros
de ofício e de seus leitores, as palavras falam de condições que as
ultrapassam, mas que não são transcendentes, senão que temporais,
HISTORICIDADE E MATERIALIDADE DA LITERATURA
285
transitórias e adstringentes. Nada escapa à história, que se imprime
no texto, fazendo-o seu testemunho. É a leitura da história dos
livros, com seus textos, que oferece à história da literatura sua
matéria.
REFERÊNCIAS:
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286
REGINA ZILBERMAN
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ZILBERMAN, Regina; MOREIRA, Maria Eunice. O berço do cânone. Porto Alegre:
Mercado Aberto, 1998.
VEREDAS 10 (Santiago de Compostela, 2008) 287-294
Pensar para além das
etiquetas*
VANDA ANASTÁCIO
Universidade de Lisboa
This text tries to discuss the use of several concepts traditionally used to describe
Literature and Culture of the turn of the Eighteenth Century to the Nineteenth,
suc as Pre-Romanticism, Enlightenment, Neoclassicism) as well as their
application to the challenges luso-brazilian Enlightenment can offer to
established theory.
Quando
utilizamos
conceitos
como
Iluminismo,
Romantismo, etc., apercebemo-nos, sobretudos se os empregarmos
em contexto escolar, da sua operacionalidade: não há dúvida de que
as designações de «iluminado» e de «romântico» são
suficientemente claras para o investigador dos nossos dias. São
reconhecíveis, e por isso mesmo permitem a delimitação
aproximada de um área de estudo, assinalando um recorte
periodológico aproximado no tempo longo da História.
*
Uma primeira versão deste texto foi apresentada sob a forma de conferência em
2005 na Universidade de Santiago de Compostela com o título: «Desafios da investigação
sobre a cultura portuguesa do sec. XVIII». Uma segunda versão, próxima do presente,
texto, foi depois apresentada ao Colóquio Entre Iluminados e Românticos que teve lugar
no Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro em 2006, sendo a terceira
elaboração sobre o mesmo tema que publicamente apresentamos.
288
VANDA ANASTÁCIO
É tendo em conta o que acabamos de afirmar, que
partiremos para a exposição que se segue, na qual procuraremos
pensar sobre aquilo a que poderíamos chamar o reverso desta
medalha, ou seja, o efeito de distorção que estas e outras
«etiquetas» que usamos como auxiliares teóricos da pesquisa
histórica também têm sobre o olhar do pesquisador que procura
apreender uma época.
Exemplo do que acabamos de afirmar é a visão
tradicionalmente aceite do século XVIII europeu, sintetizada na
designação de Século das Luzes e materializada pictoricamente na
alegoria que figura no frontispício da edição de 1781 da
Enciclopédia coordenada por Diderot e d’Alembert1 (a 1.ª edição é
de 1751): representação do momento em que a Razão, descobrindo
a Verdade, ilumina os vários ramos do conhecimento.
Esta imagem, gravada por Benoît-Louis Prévost em 1772 a
partir de um desenho de Charles Nicolas Cochin exposto no salão
de Paris em 1765, foi retomada frequentemente pela posteridade
como a representação adequada de uma nova atitude mental capaz
de definir a época, a qual se resumiria, na expressão forjada por
Ernest Cassirer, a um «sistema de valores radicado na
racionalidade»2. A leitura atenta do comentário que a mesma
imagem suscitou ao próprio Diderot, dá-nos a dimensão do efeito
redutor desta interpretação. Diderot escreve, com efeito:
228. DESSIN DESTINÉ À SERVIR DE FRONTISPICE AU
LIVRE DE «L’ENCYCLOPÉDIE» C’est un morceau très
ingénieusement composé. On voit en haut la Vérité entre la
Raison et l’Imagination; la Raison qui cherche à lui arracher son
voile; l’Imagination qui se prepare à l’embellir. Au dessous de ce
groupe, une foule de philosophes spéculatifs; plus bas la troupe
des artistes. Les philosophes ont les yeux attachés sur la Vérité; la
Métaphysique orgueilleuse cherche moins à la voir qu’à la
1
Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers par
une société de gens de lettres, Paris, 1751.
2
Ernst Cassirer, La philosophie dês lumières, Paris, Fayard, 1986.
PENSAR PARA ALÉM DAS ETIQUETAS
289
deviner. La Théologie lui tourne le dos, et attend la lumière d’en
haut.»3
Como este excerto ilustra, Diderot vê na alegoria
representada não tanto o triunfo da Razão mas, sobretudo, um jogo
de forças dinâmico entre os diferentes elementos representados.
A complexidade e a diversidade das ideias em conflito no
período que aqui nos ocupa, tem sido sublinhada por autores como
Peter Gay,4 Roland Mortier,5 Jean Marie Goulemot,6 ou Michel
Delon7. Graças aos seus trabalhos, apercebemo-nos de que a
etiqueta Iluminismo dificilmente dá conta da multiplicidade dos
modos como estas ideias foram recebidas nas áreas culturais
europeias e extra-europeias, nas quais circularam, nem das
inflexões que cada cultura lhes imprimiu. Como recorda Michel
Delon, no prefácio ao Dictionnaire europén des Lumières, a palavra
parece ter, hoje, pelo menos quatro acepções: refere-se a um
movimento de pensamento que pode ser situado historicamente; à
época na qual este movimento se afirmou, apesar de nunca ter
chegado a ser maioritário do ponto de vista quantitativo; à
problemática que os historiadores do presente herdaram desse
movimento e, por fim, a um sistema de valores que são ainda hoje
tema de discussão na sociedade contemporânea (como a crença no
progresso e na educação, a preocupação com a felicidade e o bem
estar dos povos, a separação dos poderes da Igreja dos do Estado, a
ideia de que a organização social não deve basear-se no nascimento
3
Denis Diderot, Essais sur la peinture. Salons de 1759, 1761, 1763, Oeuvres
completes, tome X, Paris, J. Asserat, 1966, p. 448. Em tradução livre para português: «É
uma peça composta de modo muito engenhoso. Vemos, em cima, a Verdade entre a Razão
e a Imaginação: a Razão que procura arrancar-lhe o seu véu, a Imaginação que se prepara
para a embelezar. Por baixo deste grupo, uma multidão de filósofos especulativos; mais
abaixo o grupo dos artistas; os filósofos têm os olhos pregados na Verdade: a Metafísica
orgulhosa procura menos vê-la do que adivinhá-la; a Teologia vira-lhe as costas e espera a
sua luz vinda do alto.»
4
Peter Gay, The Enlightenment. An interpretation: the science of Freedom, New
York, W.W. Norton & Company,1969.
5
Roland Mortier, Clartés et Ombres du siècle des Lumières. Études sur le XVIIIe
siècle,, Genève, Droz, 1969.
6
Jean Marie Goulemot, La littérature des Lumières, Paris, Bordas, 1989.
7
Michel Delon, [org.] Dictionnaire européen des Lumières, Paris, PUF, 1997
290
VANDA ANASTÁCIO
ou em títulos hereditários, o direito dos cidadãos à participação nas
decisões políticas por meio do voto, etc.).8
As questões que acabamos de sintetizar ganham uma
pertinência particular quando nos debruçamos sobre a área cultural
luso-brasileira, que possui, para a mesma época, a sua própria
constelação de balizas históricas, carregadas de um forte valor
simbólico, acumulado por várias gerações de historiadores. O
estudo das grandes temáticas em jogo na época cruza-se, por
exemplo, com as interpretações do papel atribuído ao terramoto de
1755, da actuação reformadora do Marquês de Pombal posterior a
essa catástrofe, das consequências da mudança da família real e da
corte para o território brasileiro, etc. O entrelaçamento do conceito
de Iluminismo com estas balizas particulares fica bem patente na
afirmação seguinte, feita por Ivan Teixeira em livro recente:
«Embora tenha raízes no reinado de D. João V, a Ilustração
portuguesa confunde-se com o governo pombalino, marcado pelo
despotismo esclarecido».9
Será assim? Depois de Pombal ser afastado em 1777,
deixaria de fazer sentido falar em Iluminismo? O panorama
ideológico na área luso-brasileira sofre assim tão grandes mudanças
entre iluminados e românticos?
Se nos cingirmos ao campo da literatura, depararemos com
outros factores de distorção. A persistência de um critério de
avaliação das obras baseado nas noções de originalidade e
nacionalidade entre os historiadores literários do século XX, por
exemplo, parece explicar a postura tradicional dos estudiosos de
ambos os lados do Atlântico, para reivindicar para cada uma das
literaturas nacionais (portuguesa e brasileira), determinados autores
do período anterior à separação política. Fazem-no de acordo com o
seu lugar de nascimento, apesar de estes terem tido uma formação
literária e académica semelhante (todos frequentaram a
8
«Les Lumières désignent à la fois un mouvement de pensée historiquement
situé, l’époque où celui-ci s’est affirmé mais où il n’a pás toujours été majoritaire d’un
point de vue quantitatif, la problématique que nous en avons héritée, enfin un système de
valeurs qui reste ou qui redevient aujourd’hui l’enjeu de débats.» afirma Michel Delon,
«Avant-propos» Op. cit, p. VII.
9
Ivan Teixeira, Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica, São Paulo, FAPESP
– EDUSP, 1999, p. 25
PENSAR PARA ALÉM DAS ETIQUETAS
291
Universidade de Coimbra), apesar de muitos deles não terem
chegado a viver a Independência do Brasil, e de tanto os que
nasceram em território americano, como os seus pares nascidos na
área europeia terem frequentado os mesmos círculos, participado
das mesmas redes clientelares e glorificado os mesmos mecenas.
Tendo em conta o que acabamos de afirmar, gostaríamos de
prosseguir esta curta intervenção, sublinhando alguns dos principais
desafios que o estudo da literatura luso-brasileira deste período
coloca hoje ao pesquisador.
O primeiro desafio parece-nos ser, precisamente, o de
analisar cuidadosamente os juízos de valor pronunciados sobre a
literatura produzida neste período, à luz da informação a que hoje
podemos ter acesso. O que equivale a ter presente que estes juízos
de valor resultaram como não poderia deixar de ser, de olhares
historicamente condicionados. Em cada momento, os historiadores
aplicaram ao segmento temporal da viragem do século XVIII para o
XIX os valores (e as etiquetas) do seu momento histórico.
Aplicaram, por exemplo, o conceito de «originalidade» a uma
poética regida pelo princípio da imitação, ou avaliaram a literatura
de circunstância produzida então à luz de princípios republicanos,
ou democráticos, ou marxistas, etc. Torna-se necessário, pois,
questionar, através do regresso às fontes, a informação reunida
pelos pesquisadores anteriores interrogando não só o seu discurso
mas, também, o uso e a avaliação (provavelmente marcada por
interpretações variadas) que fizeram de conceitos como barroco,
neoclassicismo, iluminismo, pré-romantismo, etc.
Tendo em conta que lidamos com uma Sociedade de Antigo
Regime, e de Monarquia Absoluta, parece-nos que o segundo
desafio a enfrentar consiste em tentar aceder à realidade que o
discurso oficial esconde. O exame atento dos textos impressos nesta
época permite concluir que o que transmitem é apenas a face visível
(aprovada e expurgada, pelo poder, de elementos potencialmente
desfavoráveis) de uma realidade social e cultural mais complexa.
No campo literário, podemos falar de uma realidade dúplice, no
sentido em que nela coexistem uma face visível da actuação das
instâncias envolvidas na produção, comercialização e consumo de
textos, e uma outra que lhe está subjacente, e que aquela oculta.
292
VANDA ANASTÁCIO
Por exemplo, se é verdade que grande parte do material
impresso passava pelo crivo da censura, não é menos verdade que
existiam eficazes circuitos paralelos de produção e de distribuição
de textos proibidos por ela. Se é verdade que grande parte das ideias
filosóficas em efervescência na Europa, sobretudo na França, eram
consideradas «sediciosas» em Portugal, não é menos verdade que
sobreviveram numerosos testemunhos da sua difusão no espaço
luso-brasileiro. Do mesmo modo, apesar de haver restrições de
carácter social à actuação de determinados grupos (como as
mulheres, ou os indivíduos que não pertenciam à alta nobreza ou ao
clero), o facto é que um número significativo de elementos
pertencentes a esses mesmos grupos desafiaram continuadamente as
limitações sociais impostas, quer enquanto produtores e
consumidores de textos, quer através da promoção social de outros
produtores e das reputações destes. Do mesmo modo, a
documentação conservada permite perceber que nem o clero nem a
nobreza constituem, nesta época, grupos homogéneos, nem
ideologicamente, nem ao nível das suas formas de actuação.
Estes dois desafios conduzem-nos a um terceiro, que nos
parece consistir na tomada de consciência da distância mental,
chamemos-lhe assim, que separa as sociedades portuguesa e
brasileira de hoje, das de finais do século XVIII. Vivendo hoje em
regimes nos quais o poder político e o poder religioso se encontram
formalmente separados, e abordando a época em que as ideias que
presidiram a essa separação tiveram origem, o pesquisador tende,
com frequência, a esquecer o peso que têm, de facto, na sociedade
da época, não só o sistema de valores do Catolicismo e a hierarquia
da Igreja mas, até, o discurso da espiritualidade. Assim, as
alterações de práticas sociais e culturais são geralmente apoiadas
em modelos de comportamento, escolhidos a partir de um
determinado elenco de obras de espiritualidade que se torna fulcral
conhecer. Trata-se, até certo ponto, também, de um problema de
linguagem: o discurso usado na época recorre a um vocabulário que
é, em muitos casos, comum ao dos nossos dias, mas que já não tem
hoje o mesmo significado. Mesmo os conceitos não especificamente
associados à espiritualidade, como tirania, despotismo, fanatismo,
ou progresso, liberdade, igualdade e até fraternidade, têm, então e
hoje, conotações divergentes.
PENSAR PARA ALÉM DAS ETIQUETAS
293
Por fim, parece-nos que o desafio mais urgente, talvez seja o
de interpretar os dados da história luso-brasileira à luz do contexto
europeu e americano da época. A comparação com o que se passava
então em outras áreas culturais permite, segundo cremos, relativizar
conclusões apressadas acerca do tão falado «atraso da sociedade
portuguesa», da «persistência do barroco» ou da existência ou não
de «Iluminismo» na cultura luso-brasileira da viragem do século.
Neste âmbito, parece-nos que vale a pena ter presente, por exemplo,
que a censura é uma instância praticamente omnipresente nas
sociedades da época (ainda que tenha sido exercida em moldes
diversos e com diferente rigor de país para país), ou ainda recordar
o número significativo de soberanos e chefes de Estado afastados
do exercício do poder, ao tempo, sob pretexto de loucura (e se
assim é, porque não pensar no reexame do caso de D. Maria I?),
etc.10
Essencialmente, parece produtivo colocar numa perspectiva
mais ampla pontos comuns tão variados como as novas formas de
sociabilidade desenvolvidas ao longo do período, ou a atenção
concedida a certos temas que perduraram no discurso ideológico até
bem entrado o século XIX: referimo-nos à discussão acerca do
valor moral do teatro; à discussão sobre a educação das mulheres; à
discussão sobre o luxo, ou sobre a saúde, a felicidade e o bem estar
dos povos. A existência de pontos comuns, por outro lado, não deve
deixar esquecer que o forte apelo a valores como a Igualdade, a
Liberdade ou a Fraternidade, convive, até bem entrado o século
XIX, com outros valores tendentes a validar a segregação social, o
voto censitário, o repúdio às manifestações da sexualidade, etc. Á
laia de conclusão, insistiremos nos dois pontos essenciais a partir
dos quais procurámos desenvolver esta reflexão:
A ideia de que as «etiquetas» que o historiador constrói e
utiliza para apreender o passado não funcionam apenas como
auxiliares para a compreensão deste, mas condicionam, também, o
olhar lançado sobre os factos, e introduzem distorções na apreensão
destes.
10
Para uma panorâmica das deposições de monarcas no século XVIII a nível
europeu veja-se: Ulrich Im Hof, Les lumières en Europe, Paris, Editions du Seuil, 1993.
294
VANDA ANASTÁCIO
E a ideia de que esse efeito de distorção é agravado pelo
facto de o pesquisador lidar com dados que lhe chegam já
manipulados, interpretados ou filtrados, pelos olhares daqueles que
o precederam.
Lisboa, 2006
REFERÊNCIAS:
ANASTÁCIO, Vanda, «Apresentação», Obras de Francisco Joaquim Bingre, Vol II.,
Porto, Lello Editores, 2000, pp. V-XLII.
CASSIRER, Ernst, La philosophie dês lumières, Paris, Fayard, 1986.
D’ALEMBERT, Jean e DIDEROT, Denis, Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des
Sciences, des Arts et des Métiers par une société de gens de lettres, Paris, 1751.
DELON, Michel, [org.] Dictionnaire européen des Lumières, Paris, PUF, 1997.
DIDEROT, Denis, Essais sur la peinture. Salons de 1759, 1761, 1763, Oeuvres completes,
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GAY, Peter, The Enlightenment. An interpretation: the science of Freedom, New York,
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MORTIER, Roland, Clartés et Ombres du siècle des Lumières. Études sur le XVIIIe
siècle,, Genève, Droz, 1969.
TEIXEIRA, Ivan Teixeira, Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica, São Paulo,
FAPESP – EDUSP, 1999.
VEREDAS 10 (Santiago de Compostela, 2008) 295-308
Sob o signo do gótico: O romance
feminino no Brasil, século XIX
ZAHIDÉ LUPINACCI MUZART
UFSC
O belo sexo abandonou as fitas cor-de-rosa pelas idéias
negras!
I’ve been working from some years in an unconcluded project, despite some results have already been published: the resurgence of Brazilian female writers
from the 19th century. After finding of texts, the work begins with comparisons
with canonic literature and analysis of genre and characteristics.
In this article, my primary purpose was to study the reasons of the choice of the
gothic style, which always attracted the attention of English and French female
writers (18th and 19th centuries), by the Brazilian writers.
Trabalho há alguns anos em um projeto que se já tem resultados publicados, ainda assim não é um projeto concluído: o resgate
das escritoras brasileiras do século XIX.1 Depois do encontro com
os textos, inicia-se o trabalho de análise e comparação com outros
livros mais canônicos.
1
O projeto de resgate das escritoras do século XIX foi um projeto em equipe,
tendo contado com a participação de muitas pesquisadoras de várias instituições
brasileiras. Foram publicados dois volumes: Escritoras brasileiras do século XIX, vol 1. e
2. O terceiro está no prelo.
296
ZAHIDÉ LUPINACCI MUZART
Um longo caminho trilhou o romance desde sua criação na
Inglaterra pela mão de mulheres até sua chegada ao Brasil. Comparando com as inúmeras inglesas que publicaram romances desde o
século XVII (Charlotte Lennox, Francis Sheridan, Fanny Burney,
Ann Radcliffe, Mary Woolstonecraft) que formaram, como o afirma
Sandra Guardini Vasconcelos “um verdadeiro cânone feminino”,2
as brasileiras começam a escrever romances apenas no século XIX,
tendo, no XVIII, deixado somente alguns poemas. Quando afirmo
que deixaram somente alguns poemas o que quero dizer é que unicamente uma ínfima parte do que escreveram foi publicada e desta,
apenas uma ainda mais ínfima parte foi encontrada pelos pesquisadores e republicada.
Efetivamente, não se pode dizer que as brasileiras tardassem
tanto a incorporar a escrita em seus hábitos (secretos ou públicos).
Mas começaram pela poesia em que seguiam o cânone de sua época
e em seus poemas extravasavam as dores de amores infelizes, mortes e o tédio de vidas sem objetivos.
Leitora e personagem, assim é retratada a mulher no século
XIX, no Brasil. Entretanto, também existiram muitas escritoras, e,
se algumas o foram de um livro só, houve outras que se dedicaram
ao ofício das letras como ideal de vida. Dentre essas, deve ser citada
a escritora Nísia Floresta nascida no Rio Grande do Norte, em 1810,
considerada nossa primeira feminista. Nísia teve uma vida muito
produtiva, dedicou-se ao ensino e às letras e publicou muitos livros
em defesa dos direitos das mulheres e também de ficção. Ainda
dessas escritoras que tiveram uma vida dedicada às letras, podem
ser citadas: Júlia Maria da Costa (1844-1911) que viveu na cidade
catarinense de São Francisco do Sul, publicou dois livros em 1867 e
1868, colaborou com muitos periódicos do Paraná e de Santa Catarina e escreveu quase diariamente. Maria Firmina dos Reis (18251917), autora do romance abolicionista Ursula e de outros textos,
Maria Angélica Ribeiro (1829-1880), Inês Sabino (1853-1911),
Carmen Dolores, e Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) todas autoras de vários livros e inúmeras contribuições na imprensa.
2
Sandra Guardini Vasconcelos, 2002: 115.
SOB O SIGNO DO GÓTICO: O ROMANCE FEMININO...
297
Nos últimos anos, sob o influxo da linha de pesquisa Literatura e Mulher, tem-se efetuado o resgate de livros de mulheres que
a historiografia oficial havia ignorado. O resgate de nossas primeiras escritoras deveria mudar a historiografia oficial que só levou em
conta o corpus de textos canônicos e, mais importante, deveria mudar nossa própria maneira de encarar nossa própria história. É claro
que uma concepção muito estreita da literatura nos levaria a deixar
de lado tais práticas escriturais. Pois, com tais concepções, os livros
de mulheres do século XIX estariam, na sua maioria, enterrados.
Perguntar-se das razões do resgate de certos textos configura uma
atitude preconceituosa, pois, é preciso lê-los e analisá-los levandose em conta todas as razões segregacionistas de isolamento e silêncio.
A resistência foi a tônica dessas pioneiras e houve escritoras
brasileiras com um número considerável de livros publicados, embora ausentes das Histórias da Literatura. Um bom exemplo é o da
já citada Júlia Lopes de Almeida que, até os anos 60, somente foi
contemplada por Lúcia Miguel-Pereira em Prosa de ficção: de 1870
a 1920.3 Atualmente, a escritora está sendo reavaliada pelos estudos
acadêmicos e conta-se já um número considerável de dissertações e
teses que estudam sua obra e atuação.4 Todo esse movimento de
3
Lúcia Miguel Pereira, 1957: 255-71.
No Banco de Teses da Capes, encontro as seguintes teses de doutorado:
Norma de Abreu Telles. Encantações-Escritoras e Imaginação literária (01/12/1987);
Barbara Heller. Em busca de novos papéis: imagens da mulher leitora no Brasil (18901920) (01/09/1997); Nadilza Martins de Barros Moreira. A condição feminina em Júlia
Lopes de Almeida e Kate Chopin (01/06/1998); Andréia Angel de Moraes Domingues.
Temas da ficção pré-modernista: remexendo gavetas (01/12/1998); Leonora De Luca.
"Amazonas do Pensamento": A gênese de uma intelectualidade feminina no Brasil.
(01/11/2004); Rosane Saint-Denis Salomoni. A escritora/os críticos/a escritura : o lugar
de Júlia Lopes de Almeida na ficção brasileira (01/04/2005).
E as seguintes dissertações de mestrado: Leonora de Luca. Júlia Lopes de Almeida (18621934) e o feminismo no Brasil na virada do século. (1995); Leonora de Luca. "A
Mensageira": Uma revista de mulheres escritoras na modernização brasileira.
(01/10/1999); Érica Schlude Ribeiro. O Olhar Visionário E O Olhar Conservador: A
Crítica Social Nos Romances De Júlia Lopes De Almeida (01/11/1999); Elaine Cuencas
Santos. "Mulheres e Literatura na Revista: A Mensageira". (01/08/2000); Luciana Faria
Le-Roy. A representação da mulher na literatura para crianças: um estudo de obras de
Júlia Lopes, Ana Maria Machado, Lygia Bojunga Nunes e Marina Colasanti
(01/12/2003); Marly Jean de Araújo Pereira Vieira. Do privado ao público -Júlia Lopes e
a educação da mulher (01/06/2003); Giovana Xavier da Conceição Côrtes. Coisa de pele:
relações de gênero, literatura e mestiçagem feminina (Rio de Janeiro, 1880-1910).
4
298
ZAHIDÉ LUPINACCI MUZART
resgate, de renascimento de mulheres escritoras, no Brasil, é conseqüência dos estudos na linha de pesquisa “Mulher e literatura”, herdeira direta dos estudos feministas que se desenvolveram sobretudo
nos Estados Unidos muito mais do que em qualquer outro país e à
tendência de uma crítica feminista interessada no estabelecimento
de uma tradição literária escrita por mulheres: uma literatura própria.
Em importante artigo, Lúcia Miguel-Pereira,5 em 1954, se
espanta com a ausência das mulheres na Literatura Brasileira. Passando “a limpo” alguns historiadores, constata que Sílvio Romero,
“de seu natural antes derramado e prolixo”, em sua História da literatura brasileira inclui somente sete escritoras e por “nenhuma demonstra qualquer apreço.” Em Sacramento Blake, cuja obra “não
teve o menor critério seletivo, 6 abrigando ao contrário toda a gente
que houvesse publicado fosse o que fosse, ou até que possuísse apenas escritos inéditos, encontra apenas cinqüenta e seis escritoras e
conclui:
Convenhamos que é pouco, muito pouco mesmo, em quatro séculos, pois o dicionário é de 1899. Ainda descontada a centúria inicial, quando se compunha predominantemente de índias a população feminina do Brasil, a proporção de cinqüenta e seis mesquinhas escritoras, de cuja maioria quando muito os nomes chegaram
até nós, para trezentos anos, ou seja dezoito ou dezenove por século, é quase ridícula – e sintomática.
Para o estudo do romance feminino no Brasil oitocentista,
não é possível contemplar somente a classificação estética, pois, se
assim o fizermos, a maioria das escritoras brasileiras do século
XIX, escritoras de um livro só (publicado) será desqualificada e de(01/08/2005); Paloma Pinheiro Sanches. “A Mensageira” de vozes que ecoam até o
presente: lugares de fala de/para mulheres, em fins do séc. XIX (01/08/2005); Mirella de
Abreu Fontes. Julia Lopes de Almeida: uma personalidade ambígua na virada do século
XIX para o XX. (01/06/2006).
5
Pereira, 1954: 17-25.
6
O dicionarista baiano Sacramento Blake (1883-1902) apesar de incorreções e
equívocos, muito natural em trabalho de tamanha envergadura, é ainda um lugar imprescindível para a pesquisa. Este dicionário em sete volumes é obra indispensável em bibliotecas universitárias e, brevemente estará na internet em projeto do NUPILL.
SOB O SIGNO DO GÓTICO: O ROMANCE FEMININO...
299
saparecerá para sempre. E, seguindo ainda a classificação por originalidade e valor estético, escolheremos critérios seletivos e elitistas.
Pois, a literatura no Brasil do século XIX, no dizer lúcido de Antonio Candido é galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto
de segunda ordem no jardim das Musas... (...) Comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, não outra, que
nos exprime. Se não for amada, não revelará a sua mensagem; e se
não a amarmos, ninguém o fará por nós. Se não lermos as obras
que a compõem, ninguém as tomará do esquecimento, descaso ou
incompreensão. Da mesma forma, transpondo tais palavras para o
nosso tema, podemos dizer que se não lermos as obras das escritoras do século XIX, se não as resgatarmos, ninguém o fará por nós,
ninguém as libertará do esquecimento.
Neste artigo, meu principal objetivo foi o de fazer um estudo
do romance escrito por mulheres, no Brasil. Estudarei somente os
romances que intitulei “de aprendizagem” e que são romances que
se tornam ensaios por parte dessas escritoras de um livro só. Por
aprendizagem, não quero falar de bildungsroman não é nesse sentido, no sentido da educação formal e familiar. Mas é sim no sentido
da aprendizagem do ofício de escritora. Vou comentar a escolha do
estilo gótico,7 que sempre atraiu as inglesas e minha pesquisa agora
conclui que atraiu sobremaneira as escritoras brasileiras do século
XIX.
Na leitura das várias narrativas, surpreendi-me com masmorras, castelos, donzelas ameaçadas, a loucura dominando os finais dos romances, os assassinatos sangrentos, tudo desembocando
num estilo de romance europeu, qualificado como “menor”. Por que
7
−
−
−
−
−
Menciono principalmente as seguintes escritoras:
Ana Luísa de Azevedo Castro. D. Narcisa de Villar: legenda do tempo colonial. (1.a
ed. 1859). 2. ed. Florianópolis: Editora Mulheres, 1997.
Maria Firmina dos Reis. Úrsula (1.a ed. 1859). 3. ed. Rio de Janeiro: Presença, 1988.
Forianópolis: Editora Mulheres/ PUCMinas, 2004. Posfácio de Eduardo de Assis Duarte.
Emília Freitas. A Rainha do Ignoto. (1.a ed. 1899). 3. ed. Florianópolis: Mulheres,
2003.
Luísa Leonardo Marques. Gazhel, romance original. Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro,
16 mar. a 2 abr. 1881.
Francisca Senhorinha da Motta Diniz. A judia Rachel, scenas orientais. Rio de
Janeiro:Tipographia Reis, 1886.
300
ZAHIDÉ LUPINACCI MUZART
esse gênero teria sido acolhido pelas mulheres? Diga-se, a bem da
verdade, que também autores adotaram o gótico em alguns livros.
José de Alencar, por exemplo, em O Guarani, apresenta elementos
do gótico, mas seria em caráter periférico, pontuando uma tensão
entre os ideais progressistas de Alencar e a realidade de um Brasil
em busca de sua identidade nacional.8
A origem do gótico é sempre remetida à arquitetura, a construções e ambientações, mas é gênero surgido no Romantismo que
repercute em várias manifestações artísticas. O romance gótico se
revolta contra o racionalismo excessivo ou o iluminismo dominante
e, voltando-se para a Idade Média, povoa os romances de fantasmas, de ruínas, de catedrais, masmorras e perigos assim como sentimentos inconfessáveis, paixões proibidas, além de dar ao sentimento do medo um lugar principal na trama. Hoje há um retorno do
gótico em muita narrativa, por exemplo, o best-seller de Dan
Brown, O código Da Vinci. O livro apresenta inúmeras ligações
com o estilo gótico: o monge assassino, os corredores do Museu, as
fugas, as criptas etc.
O romance gótico está intimamente ligado ao nome. Um
termo tão sutil e entremeado de ligações e de ressonâncias, o romance gótico é antes de tudo o mais inglês dos estilos... Pode-se
perguntar por quais razões este estilo frutificaria em um país tropical e como se transformaria adaptando-se à paisagem local, selvagem. Tal como seu ancestral, também aqui, o gótico não é um romance urbano . O romance inglês tem por moldura as velhas abadias e as mansões de outrora. Aqui, abóbadas, escadarias se transformam nas lianas e cipós emaranhados das florestas virgens de outrora. O tenebroso de uma abadia se transforma no tenebroso da floresta associado a tempestades e escuridões ou ao tenebroso do oceano
selvagem em D. Narcisa. Ou ao tenebroso dos castigos infringidos
aos escravos em Ursula, ou aos mistérios em A rainha do ignoto ou
ao enredo de A judia Rachel... Pode-se observar que, desde o
nascimento, o romance gótico divide seu sucesso com uma mulher,
Ann Radcliffe, e até hoje o livro de outra mulher, Mary Shelley, é
um grande sucesso tanto na literatura escrita, sucedendo-se as
edições, como no cinema e nos quadrinhos dando origem a
8
A dissertação de mestrado de Daniel Serravale de Sá (2006) estuda o tema.
SOB O SIGNO DO GÓTICO: O ROMANCE FEMININO...
301
inúmeras outras narrativas. Então vamos sintetizar com a definição
sempre importante de Otto Maria Carpeaux:
O romance gótico, que floresceu desde o século XVIII, é o romance dos espectros em castelos arruinados, de mocinhas presas
em cárceres subterrâneos por criminosos, de monges debochados,
uma caricatura do mundo feudal, com fortes tendências anticlericais, como convém ao Século das Luzes, e tudo isso colocado
num país pitorescamente exótico, as mais das vezes na Itália, não
importa, pois para o gosto oficial da época, que continua o Classicismo, tudo aquilo que não é Antiguidade greco-romana ou Fran9
ça, é exótico.
O que chama a atenção quando se procura por romances góticos ingleses, é a quantidade extraordinária de mulheres que adotaram esse estilo, que publicaram narrativas góticas.10 Em um levantamento de romances góticos, dos 290 recenseados, 170 eram de
mulheres e pergunto-me quantos haveria ainda publicados com
pseudônimo masculino mas de autoria feminina? Em 1799, uma
personagem do livro A noite inglesa, surpreende-se de constatar que
“o belo sexo abandonou as fitas cor-de-rosa pelas idéias negras.” 11
Segundo Maurice Lévy, estudioso do romance gótico, na Inglaterra,
apesar do número, as mulheres não tiveram acolhida fácil e, segundo ele, para verificar basta consultar os periódicos da época, os sarcasmos dirigidos a tais “ vestais”...12
O romance de Charlotte Brontë, Jane Eyre, por exemplo,
leitura de tantas gerações, embora esteja dentro do Bildungsroman,
também apresenta elementos do gótico como o colégio interno que
se parece a uma prisão, a mansão isolada no interior da Inglaterra,
para onde ela vai ser preceptora da menina francesa criada por Rochester, e sobretudo o sótão no qual estava aprisionada uma mulher
louca, a esposa oculta do protagonista. Neste romance, vemos aparecer várias convenções temáticas e estilísticas: a loucura, o fogo, a
mansão, o sótão, o medo. Estranhamente, as mulheres se interessa9
10
11
12
V. Otto Maria Carpeaux, 1978: 160.
Só do romance, em geral, segundo Dale Spender (1986).
Apud Maurice Lévy, 1995: 444.
Lévy, id. Ibid.
302
ZAHIDÉ LUPINACCI MUZART
ram pelo estilo gótico desde o século XVIII e na linha das pioneiras
como Ann Radcliffe, seguiram por um caminho de ficção mais sóbria com mocinhas indefesas, seguindo os passos da literatura romântica de mulheres e escolhendo somente as peripécias. As heroínas continuam puras, castas e belas, sans reproche.
Quais as brasileiras que se encaixariam nessa procura do gótico? Bastaria investigar, entre outros, os textos Ursula de Maria
Firmina dos Reis (1852), D. Narcisa de Villar (1859) de Ana Luíza
de Azevedo Castro, A rainha do Ignoto (1899) de Emília Freitas ou
A judia Rachel, de Francisca Senhorinha da Motta Diniz (1886) ou
Os mistérios do Prata da argentina Juana Paula Manso, publicado
no periódico O Jornal das Senhoras (fundado em 1852).
D. Narcisa de Villar foi publicado por Paula Brito, no Rio
de Janeiro, em 1859. A autora, como tantas outras mulheres do século XIX, escondeu-se sob o pseudônimo Indígena do Ipiranga, ao
assinar tanto os capítulos do jornal, quanto o livro que os enfeixa no
ano seguinte.
O romance traz uma história romântica de amores proibidos
e uma forte ligação com antigos mitos. A heroína, D. Narcisa de
Vilar, jovem portuguesa de família nobre e rica vem ao Brasil,
depois da morte dos pais, para viver com os três irmãos, que já
moram aqui, sendo o mais velho, governador da Colônia de Ponta
Grossa. Os irmãos são maus e tiranos e a jovem fica em grande
solidão, só mitigada pelos cuidados de uma índia e de seu filho
Leonardo. Quando D. Narcisa chega à puberdade, seus irmãos
arranjam-lhe um casamento de conveniência com um rico, e bem
mais velho, coronel português. Nesse momento, o amor se revela
entre a heroína e Leonardo que é, segundo os cânones românticos,
dotado de grande beleza e firmes qualidades morais. Na noite do
casamento, Leonardo rapta Narcisa. Na fuga, em frágil canoa pelo
mar, enfrentam furiosa tempestade e se refugiam numa gruta da ilha
do Mel. Lá são encontrados e assassinados por seus perseguidores.
No final, a revelação surpreendente: Leonardo é filho de um irmão
de Narcisa.
Vemos entrelaçado ao enredo a sombra da leitura que ela
possivelmente fez de O guarani, de José de Alencar, publicado em
SOB O SIGNO DO GÓTICO: O ROMANCE FEMININO...
303
1857. Mas o mais importante, neste romance é a voz feminina da
narradora que a tudo domina. Entre os temas mais importantes, sobressaem a crítica à falta de liberdade da mulher, e seu casamento
como negócio. É um romance sobre a opressão da mulher pela família e pela sociedade e sobre a escravidão dos índios pelos colonizadores. Aliados, portanto, aparecem os temas de denúncia do machismo e do racismo. A escritora escolhe os oprimidos como sua
principal temática: a mulher e o índio. O romance apresenta vários
elementos do gótico como a fuga desesperada em frágil canoa, o
sentimento do medo dominante na donzela, a coragem do herói, a
identidade verdadeira do herói que só é revelada no final.
Em 1859, no mesmo ano em que foi publicado D. Narcisa, é
publicado o romance Úrsula, da maranhense Maria Firmina dos
Reis, primeiro romance abolicionista e um dos primeiros escritos
por mulher brasileira.
A questão da Abolição vai ser quase um leit-motiv da pena
feminina, mas somente com Úrsula, teremos uma visão diferente do
problema. O tom da narração das histórias de vidas das personagens
lembra velhas narrativas de tempos medievais, cavaleiros e damas
em perigo, promessas, conflitos entre amor, honra e dever. Ao lado
do amor entre os jovens protagonistas, Úrsula e Tancredo, a trama
traz, como personagens importantes, dois escravos que vão dar a
nota diferente ao romance, pois, pela primeira vez o escravo negro
tem voz e, pela memória, vai trazendo para o leitor uma África outra, um país de liberdade.
O enredo é igualmente romântico, ligando-se ao veio que
buscou inspiração num passado inexistente, medieval à moda
européia. Os temas são os do amor e morte, incesto, castigo e
loucura e permeado por elementos, perceptivelmente da estética
gótica.
Segundo Norma Telles, “A heroína não esta presa num castelo mas junto à cama da mãe paralítica. Suas aventuras não são por
corredores escuros, labirintos e alçapões e sim pela floresta. A heroína escapa do vilão não pela morte mas pela loucura para fugir da
opressão.”13
13
Norma Telles, 1987: 164.
304
ZAHIDÉ LUPINACCI MUZART
No romance de Maria Firmina, os elementos góticos estão
presentes na perseguição do tio, no assassinato do herói, à porta da
igreja, logo depois do casamento, no rapto da heroína e na
conseqüente loucura desta. Ainda, como elementos góticos, a
obsessão do vilão, agora monge, perseguido até a morte pelo
remorso.
Comparando-se primeiras narrativas de mulheres do século
XIX, registro um uso acentuado, quase uma preferência, desse estilo. No romance da catarinense Ana Luísa de Azevedo Castro, publicado no mesmo ano de Úrsula, encontram-se vários elementos
do gótico, tais como a perseguição da heroína, o assassinato do par
amoroso, a loucura dos assassinos com a decorrente conversão e
reclusão em convento, no castigo dos vilões, os irmãos, um deles
também monge... Um tema que une o gênero gótico é o “estranho”,
encarnado em vagabundos , monstros , monges e assim por diante.
Reencontramos o gótico no romance A Rainha do Ignoto,
uma curiosa narrativa. Ressurge a Rainha, a dominadora, perante a
qual todos se curvam, aquela que tem o poder. Isso, num mundo tão
masculino, quando o escrever e publicar, para uma mulher, eram
tarefas inglórias, vai nos surpreender muito. Nesse romance, não
vamos encontrar o tom lamentoso de algumas escritoras do século
XIX. A Rainha domina a tudo e a todos. O romance é subtitulado
romance psicológico mas, na verdade, esse título lhe é dado com
outro sentido. Emília Freitas queria diferençar seu romance do romance realista, então na ordem do dia.14
O romance, como o afirma a autora, é fundamentado em
doutrinas espíritas que, nesse final de século, influenciavam sobremaneira os escritores, sobretudo os simbolistas. Porém, não julguemos que a autora desenvolva a doutrina espírita. Mas, sim que, baseando-se nela, estabelece elos com o fantástico, com o maravilhoso, indo muito longe buscar sua inspiração. Parece-me que a fonte
principal desse romance está nas lendas arthurianas, por exemplo,
tal como a Ilha de Avalon desaparece na bruma, aos olhos dos homens comuns, assim também, a Ilha do Ignoto, é invisível a todos.
Porém, o maior interesse do livro está na criação de uma utópica
14
O romance foi publicado em 1899.
SOB O SIGNO DO GÓTICO: O ROMANCE FEMININO...
305
comunidade de mulheres, uma comunidade perfeita, a das chamadas. paladinas que só fazem o bem e só buscam ajudar aos perseguidos. Ao final do romance, a utopia termina, a comunidade se
dissolve e a ilha desaparece. O gótico está presente no romance
desde a primeira cena em que temos a aparição da Rainha do
Ignoto.
A Judia Rachel de autoria de D. Francisca Senhorinha da
Motta Diniz e sua filha A. A. Diniz foi publicado no Rio de Janeiro
em 1886. Um dos romances de escritoras nascidas no século XIX, o
título do romance A Judia Rachel é encimado por outro Scenas Orientaes. Este título anterior é necessário para que se entenda o propósito deste livro tão folhetinesco. Toda a ação passa-se no oriente
(Egito). Ligando-se por tais características – como raptos, perigos, o
medo, o reconhecimento dos pais da heroína ao final –, ao gótico. O
início do Prólogo é completamente diferente do Prólogo de D. Narcisa de Villar. Em A judia Rachel, o gótico se insinua desde as primeiras palavras. Já em D. Narcisa, temos nitidamente a diferença
entre o texto das memórias da narradora e a narrativa do passado
gótico:
Em uma noite tempestuosa, em que os elementos revoltados
pareciam querer desencadear-se, no alpendre de uma catedral de Roma, estavam ocultos dois homens empunhando cada qual uma carabina.
De momento a momento os relâmpagos deixavam ver vultos
que fugiam á medonha borrasca que desabava sobre a cidade dos papas.
Os dois homens premeditavam um crime horrível.
Ao clarão de um relâmpago viram um vulto que correndo dirigiu-se para o adro da igreja.
É no início que os dois homens, possíveis assassino de um
bispo, encontram uma cesta e dentro, um bebê, a filha da judia
Rachel... O romance relata a vida em haréns de poderosos vizires.
306
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A menina, roubada dos pais quando bebê, só os reencontra ao final
da narrativa. A heroína passa por mil e uma aventuras e perigos,
salvando-se ao final e, à diferença dos romances comentados acima,
este tem happy end... As peripécias são descabeladas, beirando o
nonsense, com a heroína sofrendo muitos revezes até reencontrar a
filha.
O marquês de Sade ao falar sobre o gênero gótico, ao pensar
a respeito da literatura gótica no prefácio de sua antologia de 1800
intituladas 0s crimes do amor, escreveu: "o gênero é o produto
inevitável dos abalos revolucionários que ressoaram por toda a
Europa. Para aqueles que travaram contato com os inúmeros males
causados ao homem pela crueldade, o romance estava se tornando
ao mesmo tempo mais difícil de ser escrito e monótono de ser lido;
não restava ninguém que não houvesse experimentado mais
infortúnios em quatro ou cinco anos do que poderia ser descrito em
um século pelo mais talentoso dos romancistas da literatura. Para
reverter esta situação, era necessário visitar o inferno em busca de
ajuda para a criação de títulos que pudessem despertar interesse e
encontrar, no reino dos pesadelos, o que um dia foi um
conhecimento comum, fruto da mera observação da história do
homem nesta era do ferro”.15
A partir deste texto, pareceu-me muito pertinente associar a
escravidão no Brasil – a intensa colaboração de Emília Freitas como
abolicionista, o fato de Maria Firmina ser negra, o fato de Francisca
Senhorinha ser abolicionista –, o horror da escravatura com o estilo
gótico, seguindo a sugestão do Divino Marquês de associar a
criação do gótico com o abalo do Terror que, aqui entre nós,
atenderia pelo nome de escravidão. Logo, a opção muito original
das escritoras pelo gótico. Os males da escravidão que inspiraram
tanto Maria Firmina dos Reis como Ana Luiza de Azevedo Castro,
Francisca Senhorinha ou Emilia Freitas levam-nas a preferir o
gótico em suas narrativas, salientando-se, nos romances a luta dos
oprimidos. Num, a dos escravos indígenas, no outro, a dos escravos
negros e, no terceiro, a das mulheres presas em haréns.
15
Gavin Baddeley, 2005: 21.
SOB O SIGNO DO GÓTICO: O ROMANCE FEMININO...
307
No Brasil, o romance gótico praticamente não foi
desenvolvido visto que a escola romântica brasileira estava muito
mais preocupada em edificar uma identidade nacional homogênea,
não havendo abertura para um estilo considerado "menor". Mas a
estética gótica foi surgindo espontaneamente quase como uma
alegoria de um Brasil onde a cor ainda não tinha espaço... A Rainha
do Ignoto (1899) faz uma escolha absolutamente diferente do estilo
dominante, ou seja, envereda pelo gótico no que ele tem de trágico
e sombrio. E esta raridade, este estranhamento é que confere ao
romance o seu interesse.
Refletindo sobre a preferência pela ambientação gótica,
minhas hipóteses estão centradas na idéia que há mais de uma
resposta.
As mulheres tinham problemas para abordar assuntos considerados escabrosos e para manterem-se ladies, optaram por um estilo no qual pudessem dar largas à imaginação, permanecendo ao
mesmo tempo fora, não implicando suas próprias biografias, suas
próprias vidas. O passado medieval, os enredos rocambolescos tudo
as distanciaria da temática escolhida. Era difícil ser escritora. Lembro o livro Mulherzinhas de Louise May Alcott no qual a personagem central, Jô ( Josephine) queria ser escritora e sua preferência
era pelo gótico, escrevendo narrativas cheias de vilões, assassinos,
donzelas indefesas, castelos, criptas, cemitérios...Sua aprendizagem
faz-se pelo gótico e somente ao final do romance é que ela consegue libertar-se do gênero e escrever um romance cujo tempo é o seu
presente, sua época e suas próprias experiências. Assim também,
em D. Narcisa, o melhor texto do romance é o Prólogo quando a
autora escreve com simplicidade sobre sua própria experiência, suas
vivências. Mas para a narrativa, escolhe tempos recuados da colonização, fazendo uma critica feroz à ação de Portugal.
Assim, as escritoras sempre tiveram consciência das
próprias dificuldades. E lhes foi muito mais fácil dar largas à
imaginação, criando enredos delirantemente fantásticos a
estabelecer um diálogo com o seu tempo. Não ficaram afastadas do
mundo mas mantiveram-se ligadas ao que se fazia no mundo
literário, sobretudo romances populares europeus. Segundo
levantamento de Sandra Guardini Vasconcellos, o número de
308
ZAHIDÉ LUPINACCI MUZART
romances ingleses que circularam no Rio de Janeiro foi muito
grande. A adoção do novo gênero pelas mulheres foi entusiasta e
elas passaram de leitoras a fornecedoras de folhetins e de romances
em que o didatismo, o sentimentalismo, a doutrinação, o
ensinamento moral, a fantasia gótica - tudo foi incorporado por este
gênero sem fronteiras.16
REFERÊNCIAS
BADDELEY, Gavin. Goth Chic: um guia para a cultura dark. Rio de Janeiro: Rocco,
2005.
BLAKE, Sacramento.Diccionário bibliographico brasileiro. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1883-1902.
CARPEAUX, Otto Maria. “Prosa e ficção do Romantismo”. O Romantismo. J. Guinsburg
(org.). São Paulo: Perspectiva, 1978.
LÉVY, Maurice. Le roman “ gothique” anglais 1764-1824. Paris: Albin Michel,1995.
MUZART, Zahidé Lupinacci. Escritoras brasileiras do século XIX. Florianópolis: Editora
Mulheres/ Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 1999, vol. 1
------------- Escritoras brasileiras do século XIX. Florianópolis: Editora Mulheres/ Santa
Cruz do Sul: EDUNISC, 2004, vol. 2.
PEREIRA, Lúcia Miguel. Prosa de ficção: de 1870 a 1920. 2. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1957.
-------------- “As mulheres na Literatura Brasileira”. Anhembi, São Paulo, a. 5, n. 49, v. 17,
dez. 1954.
SÁ, Daniel Serravale de. Gótico tropical: o sublime e o demoníaco em O Guarani. Dissertação de Mestrado. Unicamp, 2006.
SPENDER, Dale. Mothers of the Novel. London: Pandora, 1986.
TELLES, Norma. Encantações, escritoras e imaginação literária no Brasil. Século XIX.
São Paulo: Pontifícia Universidade Católica, 1987. Mimeo.
VASCONCELOS, Sandra Guardini. Dez lições sobre o romance inglês no século XVIII.
São Paulo: Boitempo, 2002.
------------ Formação do Romance Brasileiro: 1808-1860 (Vertentes Inglesas). In:
http://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/Sandra/sandra.htm. Acesso: 10/08/07.
16
Sandra Guardini Vasconcellos. Formação do Romance Brasileiro: 1808-1860.
OS/AS AUTORES/AS:
Anna Klobucka, é professora no Departamento de Português da
Universidade de Massachusetts Dartmouth (EUA), onde ensina
principalmente literatura portuguesa e literaturas africanas em língua portuguesa. É autora de Mariana Alcoforado: Formação de um
Mito Cultural (IN-CM, 2006; ed. original Bucknell University
Press, 2000) e coordenadora do manual Ponto de Encontro: Portuguese as a World Language (Prentice Hall, 2007). Co-organizou
também os volumes After the Revolution: Twenty Years of Portuguese Literature 1974-1994 (Bucknell UP, 1997) e Embodying Pessoa: Corporeality, Gender, Sexuality (University of Toronto Press,
2007) e é autora de vários artigos em revistas portuguesas, brasileiras e anglo-americanas. Tem em preparação um manuscrito intitulado O formato mulher: A emergência da autoria feminina na poesia portuguesa.
Arturo Casas, professor titular de Teoria da literatura na Universidade de Santiago de Compostela, é autor de publicaçons sobre semiótica, metodologia da história literária, teoria da crítica, estética e
modalidades ensaísticas e poéticas contemporâneas. Editou vários
livros da autoria de Rafael Dieste, a quem dedicou também duas
monografias. Entre os seus últimos livros figuram La descripción
literaria (1999), Bibliografía sistemática de Teoría literaria (2001)
e Antoloxía consultada da poesía galega 1976-2000 (2003). Foi
coordenador do volume Elementos de Crítica literaria (2004). Como integrante do Equipo Glifo publicou Diccionario de termos literarios (2 vols., 1998-2003) e a base de dados DITERLI (2006), acessível on line em http://www.cirp.es/bdo2.
Benjamin Abdala Junior é professor titular da FFLCH da Universidade de São Paulo. Pesquisador 1 A do CNPq, foi adjunto de representante e representante interino da área de Letras e Lingüística
da CAPES; atualmente, é representante dessa área e membro do
Conselho Técnico-Científico dessa agência do MEC. Ex-presidente
da Associação Brasileira de Literatura Comparada, foi por duas
gestões representante dessa área do conhecimento no CNPq. Mem-
310
bro do Conselho Editorial de várias revistas científicas, foi diretor
ou coordenador de séries ou coleções editoriais, entre elas, a
Princípios e Fundamentos (Editora Ática), Literatura Comentada
(Editora Abril), Ponto Futuro e Livre Pensar (Editora SENAC-SP).
Suas pesquisas, desde o Mestrado, na Universidade de São Paulo,
situam-se no campo da Literatura Comparada, atuando no âmbito
das literaturas de língua portuguesa. Foi um dos introdutores dos
estudos das Literaturas Africanas no país. Publicou cerca de quarenta títulos de livros (livros de autoria individual, organização de coletâneas críticas e antologias), entre eles A escrita neo-realista
(1981); História social da literatura portuguesa (1984); Tempos da
Literatura Brasileira (1985); Literatura, história e política (1989);
Fronteiras múltiplas, identidades plurais: um ensaio sobre mestiçagem e hibridismo cultural (2002); De vôos e ilhas: literatura e
comunitarismos (2003); Literaturas de língua portuguesa: marcos e
marcas - Portugal (2007). Entre as coletâneas que organizou ou coorganizou, podem ser mencionadas Ecos do Brasil: Eça de Queirós,
leituras brasileiras e portuguesas (2000); Personae: grandes personagens da literatura brasileira (2001); Incertas relações: Brasil e
Portugal no século XX (2003); Margens da cultura: mestiçagem,
hibridismo & outras misturas (2004); Portos flutuantes: trânsitos
ibero-afro-americanos (2004) e Moderno de nascença: figurações
críticas do Brasil (2006).
Fernando Cabo Aseguinolaza (1961) é Professor Titular de Teoria
da Literatura e Literatura Comparada na Universidade de Santiago
de Compostela. É membro da Equipa Glifo, que visa a criação do
Diccionario de termos literarios (2001, 2003) do Centro Ramón
Piñeiro em Santiago de Compostela. É responsável pelas edições de
El guitón Onofre (1988), El Buscón (1993), and Execración contra
los judíos (1996). É também o autor dos livros El concepto de
género y la picaresca (USC, 1992), Infancia y modernidad literaria
(Biblioteca Nueva, 2001) e, junto com María do Cebreiro Rábade
Villar, do Manual de teoría de la literatura (Castalia, 2006) assim
como de numerosos artigos sobre teoria da lírica e teoria da história
literária. Actualmente, é responsável por um projecto de
311
investigação que pretende elaborar uma história comparada das
literaturas da península ibérica.
José Luís Jobim é Professor Titular de Teoria da Literatura na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, lecionando a mesma disciplina na Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do Cnpq,
entre suas mais recentes obras publicadas figuram: A poética do
fundamento (1986) e Formas da Teoria -sentidos, conceitos, políticas e campos de força nos estudos literários. (2ª ed. 2003). Entre os
livros que organizou recentemente, destacam-se: A biblioteca de
Machado de Assis (2001); Literatura e informática (2005); Identidade e literatura (2006); Lugares dos discursos literários e culturais; o local, o regional, o nacional, o internacional, o planetário
(2006). Foi presidente da Associação Brasileira de Literatura Comparada e secretário da Associação Nacional de Pós-Graduação em
Letras e Lingüística.
Leonor Simas-Almeida, Doutorada em Literatura Comparada pela
Brown University, é Senior Lecturer no Departamento de Estudos
Portugueses e Brasileiros da mesma universidade, onde lecciona
Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas de Língua Portuguesa.
Entre os seus mais recentes ensaios contam-se estudos sobre sobre
José Saramago, Vergílio Ferreira, Lídia Jorge, Germano Almeida e
Eça de Queirós.
Margarida Calafate Ribeiro é investigadora no Centro de Estudos
Sociais, da Universidade de Coimbra. É docente nos programas de
doutoramento do Centro de Estudos Sociais/ Faculdade de Economia, “Pós-Colonialismos e Cidadania Global” e “Democracia no
Século XXI” e co-editora da publicação electrónica dos programas
de doutoramento do CES, Cabo dos Trabalhos. Responsável da cátedra Eduardo Lourenço, na Universidade de Bolonha; Visiting Researcher Associate do King’s College, Universidade de Londres.
Das suas publicações, destacam-se os livros: África no Feminino:
as mulheres portuguesas e a Guerra Colonial (Afrontamento,
2007); Uma História de Regressos: Império, Guerra Colonial e
Pós-Colonialismo (Afrontamento, 2004); Lendo Angola (org. com
312
Laura Cavalcante Padilha) (Afrontamento, 2008); Moçambique: das
palavras escritas (org. com Maria Paula Meneses) (Afrontamento,
2008); Fantasmas e Fantasias Imperiais no Imaginário Português
Contemporâneo (org. com Ana Paula Ferreira) (Campo das Letras,
2003).
Maria de Fátima Marinho (Porto, 1954) é Professora Catedrática
e Presidente do Conselho Científico da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Da sua actividade como investigadora, salientam-se as seguintes obras: Herberto Helder, a Obra e o Homem, Lisboa, Arcádia, 1982; O Surrealismo em Portugal, Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, Col. Temas Portugueses, 1987; A Poesia
Portuguesa nos meados do Século XX - Rupturas e Continuidade,
Lisboa, Caminho, Col. Estudos de Literatura Portuguesa, 1989; O
Romance Histórico em Portugal, Porto, Campo das Letras, 1999; Um
Poço sem Fundo – Novas Reflexões sobre Literatura e História, Porto, Campo das Letras, 2005; «Teolinda Gersão: uma Escrita Cintilante», in Teolinda Gersão – Retratos Provisórios, Lisboa, Roma Editora, 2006, pp.119-180; O Sonho de Aljubarrota, Aljubarrota, Fundação
Batalha de Aljubarrota, 2007; Prefácio e edição de Raul Brandão, ElRei Junot, Lisboa, Relógio D’Água, 2007; Prefácio e edição de Raul
Brandão, Vida e Morte de Gomes Freire, Lisboa, Relógio D’Água,
2007; History and Myth – The Presence of National Myths in Portuguese Literature, Munique, Martin Meidenbauer Verlagsbuchhandlung, 2008.
Maria Eunice Moreira possui graduação em Letras pela Faculdade
de Filosofia Ciências e Letras de Cachoeira do Sul (1974), graduação em Letras pela Universidade da Região da Campanha (1976),
graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria (1968). Cursou Especialização em Teoria Literária na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(1977); Mestrado em Lingüística e Letras (Teoria Literária) pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1979) e
doutorado em Lingüística e Letras (Teoria Literária) pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1989). Tem também
Especialização em Língua e Literatura Espanhola pelo Instituto de
313
Cooperación Iberoamericana (1983). Realizou estágio pós-doutoral
na Fundação Biblioteca Nacional de Lisboa (2001), com bolsa da
CAPES. Coordenou o GT História da Literatura da ANPOLL no
período 2004-2008. É editora da revista Letras de Hoje, do Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, desde 2007, e editora da revista binacional Navegações - Revista de Cultura e Literaturas de Língua Portuguesa, juntamente com Vania Pinheiro Chaves, da Universidade
de Lisboa, desde 2007. É membro do Conselho Superior da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS) e do Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa
(CLEPUL) das Universidades de Lisboa. É professor titular da Faculdade de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Tem experiência na área de Letras, subáreas de Teoria
Literária, Literatura Brasileira e História da Literatura.
Onésimo T. Almeida é professor catedrático de estudos Portugueses e Brasileiros na Universidade de Brown, Providence, Rhode Island, EUA. Entre os seus ensaios mais recentes encontram-se estudos sobre Vergílio Ferreira, Fernando Pessoa, Literaturas da Macaronésia, Lusofonia, Natália Correia, D. João de Castro, Francisco
Sanches, Marx e Darwin. O seu livro mais recente é de ficção:
Aventuras de um nabogador & outras estórias em sanduíche (Bertrand, 2007).
Paulo Motta Oliveira concluiu o doutorado em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas em 1995, realizou
dois pós-doutorados junto à Universidade de Lisboa, de 2004 a 2005 e
em 2008, e defendeu a livre-docência em Literatura Portuguesa na
Universidade de São Paulo em 2006, com a tese O romance de Camilo: uma introdução. Foi professor convidado da Université Lyon 2 em
2006. Foi Presidente da Associação Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa no biênio 2005-2007. Atualmente é Bolsista do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e
Professor Associado da Universidade de São Paulo. Coordena o GEO
(Grupo de Estudos Oitocentistas). Pesquisa, principalmente, a literatu-
314
ra portuguesa do século XIX e do início do XX, bem como as relações entre esta e outras literaturas do período
Pedro Serra (1969) é Professor Titular da Universidade de Salamanaca, Departamento de Filologia Moderna. Traduziu para o português
a obra seminal Orientalismo, de Edward Saïd. As matérias de investigação que tem privilegiado centram-se na poesia e no romance portugueses contemporâneos. As publicações mais recentes são Síntomas
de la modernidad en Eça de Queirós (2003), Conversas Civis. Estudos sobre Francisco Manuel de Melo (2003), Romance & Filologia
(2004), Um Nome Para Isto. Leituras da Poesia de Ruy Belo (2004) e
Um Intelectual na Fobolândia: Estudos Sobre o Ensaísmo de Fidelino
de Figueiredo (2005). Co-organizador, com Osvaldo M. Silvestre, de
Século de Ouro. Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século
XX (2002) e co-autor, com Ana María García Martín, da edição crítica
de O Hissope. Poema Herói-Cómico, de António Dinis da Cruz e Silva. Co-director de Ciberkiosk, co-editor de Inimigo Rumor. Revista de
Poesia (Rio de Janeiro, Lisboa, Coimbra) e de Estudios Portugueses.
Revista de Filología Portuguesa (Salamanca). Professor visitante na
University of California-Santa Barbara, durante o fall term de 2001, e
na Cátedra Iberoamericana/Unicamp, no segundo semestre de 2006. é
também membro do Seminario Discurso Legitimación Memoria
(Universidade de Salamanca) e do Centro de Literatura Portuguesa
(Universidade de Coimbra). E-mail: [email protected].
Raquel Bello Vázquez (r [email protected]) é membro do Grupo
Galabra de estudos nos sistemas culturais galego, luso, brasileiro e
africanos de língua portuguesa. Licenciada em Filologias Galega
(1998) e Portuguesa (2001) pola Universidade de Santiago de Compostela (USC) e Doutora em Filologia pola mesma Universidade
(2005), realizou o seu pós-doutoramento no Instituto de Ciências
Sociais de Lisboa (2005-2006) e é desde 2007 docente e investigadora na Faculdade de Filologia da USC através do programa Isidro
Parga Pondal.
Os seus interesses investigadores estám focados particularmente
para o estudo dos processos culturais, com especial atençom para as
elaboraçons teórico-metodológicas e para as suas aplicaçons ao per-
315
íodo da Ilustraçom na Galiza e em Portugal, assuntos sobre o quais
tem publicado dous livros e vários capítulos e artigos em livros e
revistas internacionais.
Regina Zilberman, nascida em Porto Alegre, licenciou-se em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutorou-se
em Romanística pela Universidade de Heidelberg, na Alemanha.
Foi professora titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, onde lecionou Teoria da Literatura e Literatura Brasileira, coordenou o Programa de Pós-Graduação em Letras, entre
1985 e 2004 e dirigiu a Faculdade de Letras, entre 2002 e 2004. Entre 1987 e 1991, e entre 2005 e 2006, dirigiu o Instituto Estadual do
Livro, da Secretaria de Cultura, do Governo do Estado do Rio
Grande do Sul. Foi Honorary Research Fellow no Spanish & Latin
American Department, da Universidade de Londres, no ano escolar
de 1980-1981. Realizou o pós-doutoramento no Center for Portuguese & Brazilian Studies, da Brown University, USA. É pesquisadora 1A do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq). Foi assessora-científica e coordenadora da
área de Letras e Artes da da FAPERGS, entre 1988 e 1993. Coordenou a área de Letras e Lingüística entre 1991-2 e 1993-95, da
Fundação CAPES, fazendo parte de seu Conselho TécnicoCientífico. Pertenceu ao Conselho Estadual de Ciência e Tecnologia, do Estado do Rio Grande do Sul, entre 1995 e 1999. Participou,
entre 1999 e 2001, e entre 2004 e 2007, do Comitê Assessor para a
área de Letras e Lingüística, do CNPq. Recebeu, em 2000, na Universidade Federal de Santa Maria, o título de Doutor Honoris Causa. Presidiu a Associação Internacional de Lusitanistas, com sede
em Coimbra, Portugal, entre 2002 e 2008. Atualmente, é professora
colaboradora convidada do Programa de Pós-Graduação em Letras,
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e docente do programa de pós-graduação, na Faculdade Porto-Alegrense de Educação, Ciências e Letras.
São publicações suas: A invenção, o mito e a mentira (1973), São
Bernardo e os processos da comunicação (1975); Do mito ao romance: tipologia da ficção brasileira contemporânea (1977); A literatura no Rio Grande do Sul (1980); A literatura infantil na escola
316
(1981); Literatura infantil: autoritarismo e emancipação (1982);
Literatura infantil brasileira: história & histórias (1984); Literatura gaúcha: temas e figuras da ficção e poesia do Rio Grande do Sul
(1985); Um Brasil para crianças (1986); Alvaro Moreyra (1986);
Leitura: perspectivas interdisciplinares (1988); A leitura e o ensino
da literatura (1988); Estética da Recepção e História da Literatura
(1989); A leitura rarefeita (1991); Roteiro de uma literatura singular (1992); A terra em que nasceste: Imagens do Brasil na literatura (1994); A formação da leitura no Brasil (1996); O berço do
cânone (1998); Pequeno dicionário da literatura do Rio Grande do
Sul (1999); Fim do livro, fim da leitura? (2001); O preço da leitura
(2001); O tempo e o vento: história, invenção e metamorfose
(2004); O viajante transcultural: leituras da obra de Moacyr Scliar
(2004); As pedras e o arco: fontes primárias, teoria e história da literatura (2004); Retratos do Brasil (2004); Como e por que ler a
literatura infantil brasileira (2005); Crítica do tempo presente: estudo, difusão e ensino de literaturas de língua portuguesa (2005);
Centenário de Mario Quintana (2007); Corpo de baile; romance,
viagem e erotismo no sertão. (2007); Clarice Lispector: novos
aportes críticos (2007); ); Literatura e pedagogia: ponto & contraponto (2008).
Vanda Anastácio é Professora Associada da Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa. Tem colaborado com diversos Centros
de Investigação das Universidades de Lisboa (Centro de Estudos
Clássicos), de Coimbra (Centro de Estudos Camonianos) e do Porto
(Centro de História da Espiritualidade) e integra a equipa que prepara a edição crítica da correspondência e da obra da Marquesa de
Alorna com o apoio da Fundação das Casas de Fronteira e de Alorna e da FCT. Realizou edições críticas de autores portugueses dos
séculos XVI a XVIII. Entre as obras publicadas contam-se Visões
de Glória (Uma introdução à Poesia de Pêro de Andrade Caminha), 2 vols., (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian - JNICT,
1998), a edição e estudo de uma obra do Cavaleiro de Oliveira (Viagem à Ilha do Amor, Porto, Caixotim, 2001), as Obras de Francisco Joaquim Bingre, em 6 volumes (Porto, Lello Editores, 20002005) uma edição do Teatro Completo de Camões (Porto, Edições
317
Caixotim, 2005). É responsável pela edição da correspondência trocada entre a Marquesa de Alorna e a Condessa do Vimiero durante
o período de encerramento daquela no mosteiro de Chelas (Cartas
de Lília e Tirse (1771-1777), Lisboa, Fundação das Casas de Fronteira e Alorna - Edições Colibri, 2007. Coordenou também o volume temático colectivo intitulado Correspondências (usos da carta
no século XVIII) (Lisboa, Fundação das Casas de Fronteira e Alorna
- Edições Colibri, 2005). Prepara neste momento a edição crítica da
Obra Poética da Marquesa de Alorna.
Zahidé Lupinacci Muzart ([email protected]) é doutora em
letras, com pós-doutorado na Ecole des Hautes Etudes en Sciences
Sociales, em Paris. Professora titular (aposentada) da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC). Continua atuando no curso de
Pós-Graduaçâo em Literatura dessa Universidade. É pesquisadora
do CNPq e trabalha na linha de pesquisa Literatura e Mulher.
Coordenou durante treze anos a revista de literatura Travessia
(UFSC). Publicou diversos artigos em revistas especializadas e é
responsável peta edição de várias publicações como os diários de
viajantes estrangeiras no século XIX: Baronesa de Langsdorff,
Mme Van Langendonck, Flora Tristan. Coordenou trabalho de
resgate com pesquisadoras de várias universidades brasileiras o que
resultou nos livros Escritoras brasileiras do século XIX, volumes I
e II. Dentre suas publicações destacam-se os livros Cruz e Sousa.
Poesia Completa, Cartas de Cruz e Sousa, No centenário de Broquéis e Missal, Júlia da Costa. Poesia, Mariana Coelho. A evolução do feminismo, Tempo e Andanças de Harry Laus.

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