Baixar o livro todo - versão PDF.

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Baixar o livro todo - versão PDF.
UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO
GRANDE DO SUL
DCS – DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS
LINHA DE PESQUISA: SOCIEDADE, CULTURA E PODER
CAPITAL SOCIAL: TEORIA
E PRÁTICA
ORGANIZADORES:
MARCELLO BAQUERO E DEJALMA CREMONESE
Ijuí, maio de 2006.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ....................................................................................................................................................... 3
A RETÓRICA DO CAPITAL SOCIAL: UMA ANÁLISE DA OBRA DE ROBERT PUTNAM
Leonardo Monteiro Monasterio.................................................................................................................................. 11
GLOBALIZAÇÃO E DEMOCRACIA INERCIAL: O QUE O CAPITAL SOCIAL PODE FAZER NA
CONSTRUÇÃO DE UMA SOCIEDADE PARTICIPATIVA?
Marcello Baquero ....................................................................................................................................................... 28
INSOLIDARISMO E CORDIALIDADE: UMA ANÁLISE DAS MAZELAS POLÍTICAS DO BRASIL
Dejalma Cremonese.................................................................................................................................................... 48
SOCIEDADE CIVIL OU CAPITAL SOCIAL? UM BALANÇO TEÓRICO
Julian Borba e Lillian Lenite da Silva ........................................................................................................................ 71
A DIMENSÃO INTANGÍVEL DO DESENVOLVIMENTO: ALGUMAS REFLEXÕES PRELIMINARES
Valdir Roque Dallabrida ............................................................................................................................................ 88
O CAPITAL SOCIAL COMO CONDIÇÃO DE INICIATIVAS PRODUTIVAS
Silvio Salej H............................................................................................................................................................. 110
CAPITAL SOCIAL, CULTURA E SOCIALIZAÇÃO POLÍTICA: A JUVENTUDE BRASILEIRA
Rosana Katia Nazzari ............................................................................................................................................... 123
EDUCAÇÃO DE JOVENS E CONSTRUÇÃO DE CAPITAL SOCIAL: QUE SABERES SÃO NECESSÁRIOS?
Rute Baquero e Lúcio Jorge Hammes....................................................................................................................... 141
O EMPODERAMENTO E A CONSTITUIÇÃO DE CAPITAL SOCIAL ENTRE A JUVENTUDE
Angelita Fialho Silveira ............................................................................................................................................ 159
POLÍTICAS PÚBLICAS, DIREITOS HUMANOS E CAPITAL SOCIAL
Jussara Reis Prá ....................................................................................................................................................... 176
CAPITAL SOCIAL E ESTRATÉGIAS DE REPRODUÇÃO DAS FAMÍLIAS RURAIS
David Basso .............................................................................................................................................................. 193
APRESENTAÇÃO
Apresentação
O inicio do XXI inicia com o triunfo da democracia de mercado sobre a democracia que
situava o Estado como indutor do desenvolvimento econômico. Na América Latina um dos
principais ganhos desse processo foi a institucionalização da rejeição a quaisquer formas de
autoritarismo, por parte dos cidadãos, embora, paradoxalmente, não tenha se solidificado uma
postura de apoio normativo as instituições democráticas. Se, por um lado, houve mobilizações e
demandas pelo reconhecimento de novos direitos e, em alguns casos, as conquistas foram
significativas (movimento das mulheres), numa avaliação geral, a situação de precariedade das
classes tradicionalmente excluídas pouco se alterou. Constata-se, presentemente, a manutenção
de estruturas políticas e econômicas que privilegiam as classes mais abastadas em detrimento de
políticas de proteção social dos interesses da maioria da população.
Tal situação tem se agravado com as reformas econômicas neoliberais que não têm
proporcionado a constituição de uma cidadania social, pois a base material (moradia, educação e
saúde) continua precária e gerando novas formas de pobreza e exclusão social. A existência de
mais e novos direitos políticos não tem sido suficientes para gerar uma base de apoio à
democracia. Pelo contrário, segundo dados de pesquisa de opinião realizadas na última década
(Latinobarômetro), observa-se um padrão atitudinal e de comportamento na América Latina de
desvalorização da democracia poliárquica e uma crescente desconfiança nas instituições políticas
e nos seus representantes.
O processo de democratização formal está baseado no respeito dos direitos dos cidadãos
em externar suas demandas e reivindicações e se a economia de mercado promove o crescimento
econômico, então como explicar que, no caso dos países da América Latina, o desemprego
cresça linearmente, a pobreza se manifeste em outras modalidades e a exclusão social aumente?
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Como explicar que, a América Latina, a despeito da institucionalização de procedimentos de
fiscalização das autoridades publicas, continue a ser a Região mais desigual do mundo na
dimensão de políticas públicas sociais? Como avaliar o fato de que o mercado tem agido muito
mais em beneficio dos privilegiados e poderosos?
As respostas a estas indagações são complexas. Porém, do ponto de vista das Ciências
Sociais, o modus operandi dos estados neoliberais tem se mostrado frágil na luta contra as
desigualdades e injustiças que o mercado tem gerado. Os representantes eleitos pelo voto
popular, igualmente não têm se mostrado dispostos a enfrentar as forças do mercado. Não, por
acaso, os últimos governos eleitos em países como o Peru, Equador, Bolívia, Argentina e Brasil,
que defendiam uma agenda alternativa orientada para o social, antes das eleições, após
assumirem o poder sucumbiram à força do mercado e de uma democracia meramente formal
que, se necessária, mostrou-se insuficiente na preservação da qualidade de vida das pessoas e na
proteção social da população.
Nessas circunstâncias não se pode afirmar que a democracia na América Latina,
principalmente na sua dimensão social, tenha se consolidado e muito menos que esteja a
caminho de se enraizar de forma duradoura. Pelo contrário, teme-se que as condições que se
estão estabelecendo e que promovem a fragmentação e a desigualdade coloquem um ponto de
interrogação sobre o futuro da democracia nesta Região.
Pensar que somente mais leis e mais instituições e a proliferação de procedimentos sejam
suficientes para fomentar a igualdade social é negar a evidência empírica e histórica as quais
mostram que reduzir o problema da construção democrática à tradicional dicotomia
democracia/não democracia baseado unicamente em procedimentos pode ser fatal para a
solidificação de um sistema minimamente responsivo as demandas da população.
Neste sentido, torna-se imperativo refletir sobre outras dimensões que auxiliem não só na
compreensão dos dilemas contemporâneos da democracia latino-americana, mas, sobretudo,
pensar essa situação em termos propositivos.
É na poblematização dessas questões que este livro se materializa, enfocando a discussão
em torno do conceito de capital social e sua aplicabilidade enquanto instrumento com
possibilidades (ou não) de abrir novos caminhos na resolução dos dilemas da ação coletiva.
Assim, o livro procura avaliar a incorporação ao método democrático, princípios de grupo
baseados na associação com vistas a revitalizar a vida política. Não é o objetivo nem o propósito
defender um posicionamento dogmático sobre a superioridade ou não de determinada
perspectiva teórica (instituições vs valores cívicos). Tal dicotomia nos parece ser deletéria, estéril
e imobilizante para pensar em formas de resolução dos problemas sociais contemporâneos. Em
nossa opinião, urge refletir sobre formas de incidência na realidade buscando, desse modo,
5
contribuir organicamente para a melhoria da democracia. Cabe ressaltar que pensar em formas
alternativas de ingerência política e construção de identidades coletivas, não implica em
considerar a democracia representativa e suas instituições dispensáveis ou desnecessárias. Tal
postura seria ingênua e ultrapassada. Pensamos, entretanto, que é essencial complementar os
mecanismos formais de representação e mediação política com outros instrumentos que, ao
longo do tempo, têm se mostrado eficazes no fomento da ação coletiva, baseados no principio da
construção de capital social.
O conceito de capital social está fundado na importância da cultura política e da
sociedade civil no processo de construção democrática. O surgimento deste conceito pode ser
atribuído, entre outros fatores, às deficiências explicativas já mencionadas do paradigma
instuticionalista e às dificuldades do enraizamento de uma base normativa de apoio à
democracia. Uma das conseqüências dessas dificuldades tem sido o crescente distanciamento e
desengajamento dos cidadãos da política, bem como a crescente desconfiança, por eles
demonstrada nas instituições tradicionais da democracia formal (partidos e congresso).
Nesse contexto, o conceito de capital social tem sido considerado como um elo para
entender com mais profundidade a estagnação da democracia na América Latina, mas,
principalmente na utilidade prática ao proporcionar mecanismos de incidência na realidade
estudada. Tal perspectiva não está imune às críticas que o conceito de CS social tem recebido
desde seu aparecimento e que vão de argumentos ideológicas ao questionamento de sua
operacionalização. No entanto, a sua persistência como categoria analítica em várias áreas
(economia, ciência política, sociologia e psicologia) atestam para a importância que tal termo
tem adquirido, não só no meio acadêmico, mas também como instrumento de vários governos no
mundo que buscam melhorar a qualidade de suas democracias, pois consideram que o
crescimento econômico, se não está acompanhado por valores que enfatizem a importância da
participação dos cidadãos, a solidariedade e a confiança reciproca para resolver problemas
coletivos, está fadado ao fracasso. Não que tais atitudes gerem uma ruptura institucional num
sentido causal, mas, podem contribuir para a manutenção de uma cultura política descrente e
desconfiada colocando a democracia num patamar de permanente instabilidade.
As controvérsias e polêmicas em relação ao conceito de CS estão retratadas nos vários
trabalhos que fazem parte deste livro. No entanto, seus autores convergem para a idéia de que,
apesar das limitações teóricas e metodológicas do conceito de capital social, os resultados
práticos já podem ser avaliados do ponto de vista de sua contribuição para a revitalização de
valores subjetivos da democracia e do fomento do sentimento de pertencimento e participação na
vida política. A título de exemplo, podem ser citadas as experiências de Villa El Salvador no
Peru; as feiras de consumo popular na Venezuela; a promoção de identidades coletivas em povos
6
indígenas no Equador e na Bolívia, bem como as centenas de experiências de cooperação
reciproca que surgem e são documentadas a cada dia.
Existem, também, exemplos, e não são poucos de situações onde o CS não funcionou;
pelo contrário, manteve práticas antigas intactas (clientelismo, personalismo, patrimonialismo)
promovendo CS num sentido negativo. No entanto, enfocar essas experiências para
descaracterizar a utilidade de CS na promoção da ação coletiva é, em nossa opinião aderir a
princípios que paralisam a capacidade criativa para incidir na realidade. De fato, parece que
estamos recém começando a entender de que forma CS pode ser efetivo na construção
democrática. Dessa forma, não consideramos o conceito de CS como a última ou a única
verdade. Posicionamos-nos da mesma forma que Yunus (2001) o faz ao defender a importância
de resolução de problemas pontuais sem abrir mão da natureza programática que a atividade
intelectual exige.
Com esses objetivos em mente, o livro está estruturado em duas partes: a primeira aborda
o conceito de CS a partir de uma discussão conceitual e, a segunda parte analisa situações onde o
CS tem sido aplicado.
Leonardo Monastério inicia a primeira parte do livro com o artigo A retórica do capital
social: uma análise da obra de Robert Putnam. Monastério acredita que Robert Putnam não foi
o criador da expressão “capital social”, nem seu principal teórico. Contudo, seu nome está hoje
ligado de forma definitiva a tal conceito. Monastério procura investigar como isso ocorreu. Para
investigar o assunto, Monastério analisa as estratégias argumentativas utilizadas por Putnam em
suas obras Making Democracy Work: civic traditions in modern Italy (1993) e Bowing Alone:
the collapse and revival of American community (2000). O autor entende que, na primeira obra
de Putnam, seu público-alvo é o acadêmico iniciado em Ciências Sociais e que ele usou recursos
mais próximos da pesquisa científica tradicional. Anos depois, ao tempo da publicação de
Bowling Alone, com seu sucesso consolidado, ele se volta para um público mais amplo do que o
acadêmico: os norte-americanos cultos. Ao longo dos dois livros, Putnam divide-se entre
militante e cientista: procura, ao mesmo tempo, divulgar uma idéia e preservar sua imagem de
pesquisador sério. Para tanto, repetidas vezes afirma buscar o maior número possível de
evidências, com vistas à comprovação de sua transparência metodológica e sua honestidade
acadêmica. Ao mesmo tempo, utilizas estratégias persuasivas que atingem os leitores nãoacadêmicos. Monastério não pretende negar a validade de suas teses. Trata-se apenas de
colaborar para uma melhor compreensão da obra de Putnam através das técnicas de análise
retórica.
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Marcello Baquero, no artigo: Globalização e democracia inercial: o que o capital
social pode fazer na construção de uma sociedade participativa?, examina por que o processo de
globalização tem sido muito mais danoso nos países em desenvolvimento, no Brasil
especificamente, tendo como decorrência desse processo a incidência negativa na constituição de
capital social (capacidade associativa), enquanto que, nos países desenvolvidos, o conceito de
capital social tem sido incorporado como estratégia governamental de promoção de políticas
públicas socialmente orientadas.
Dejalma Cremonese, no artigo Insolidarismo e cordialidade: uma análise das mazelas
políticas do Brasil discorre sobre algumas categorias explicativas dos “males de origens” da
sociedade brasileira, bem como sobre a possibilidade da construção do capital social no país. O
autor analisa o processo da emancipação política do Brasil (Independência) e da Proclamação da
República e seu caráter sui generis. Cremonese entende ser nas décadas de 1930 e 40 do século
passado que aparecem, mais nitidamente, as práticas do populismo, personalismo (messianismo),
clientelismo, patrimonialismo e coronelismo na política brasileira. Essas categorias foram
discutidas com profundidade pelos cientistas sociais da época e servem, ainda hoje, para a
compreensão de tais “vícios”. Frente às mazelas políticas do Brasil, consideradas empecilhos
para o processo de modernização do país, o autor questiona se há espaço para a criação do
capital social em nossa realidade.
Com o artigo Sociedade civil ou capital social? Um balanço teórico, Julian Borba, e
Lillian Lenite da Silva, entendem que o estudo das formas de associativismo civil recebeu, no
Brasil, nas duas últimas décadas, duas formas de tratamento teórico. Uma delas trata-se da teoria
da sociedade civil, inspirada nos trabalhos de Habermas e Cohen e Arato. Mais recentemente,
vem ganhando destaque na literatura a abordagem do capital social, especialmente aquela
inspirada no trabalho de Robert Putnam. Partindo da constatação de que essa “transição teórica”
tem sido feita de forma muito rápida e sem um balanço adequado dos limites e ganhos em termos
analíticos, os autores pretendem comparar as duas abordagens. O artigo sustenta a hipótese de
que a abordagem mais empírica da teoria do capital social pode reter as preocupações normativas
da teoria da sociedade civil com maior possibilidade de operacionalização para fins
investigativas. Além disso, poderá contribuir para a compreensão das relações entre as formas de
associativismo civil e o Estado em contextos onde vigoram arranjos participativos.
Valdir Roque Dallabrida, no artigo A dimensão intangível do desenvolvimento: algumas
reflexões preliminares, entende que o desenvolvimento, além da dimensão tangível (material),
cuja expressão maior centra-se nos aspectos econômicos, possui também uma dimensão
intangível (imaterial), referente à capacidade coletiva para realizar ações de interesse societário.
8
Para Dallabrida, o debate sobre o capital social, como diferencial para a dinamização de
processos qualificados de desenvolvimento territorial, precisa ser enriquecido com a reflexão
sobre o sentido de outros conceitos, tais como os de capital sinergético, densidade institucional e
empoderamento. Na ciência geográfica, a vertente da Geografia Cultural pode contribuir
teoricamente para o aprofundamento da dimensão intangível do desenvolvimento.
A segunda parte do livro relativa a aplicabilidades do capital social é aberta por Silvio
Salej, no artigo O capital social como condição de iniciativas produtivas, o autor apresenta os
resultados exploratórios de uma pesquisa que se enquadra no campo da Sociologia Econômica.
No nível analítico, visa a identificar o ponto de convergência entre uma teorização pré-sistêmica,
como a do capital social, e um modelo de análise sistêmico de ampla utilização no estudo dos
commons. Segundo Salej somos guiados por um insight de mão dupla: por uma parte,
acreditamos que as descobertas da ciência política e da economia neo-institucional, em matéria
de sistemas de participação e ação coletiva, constituem uma contribuição inovadora para o
estudo da co-gestão de recursos de uso comum; por outra, pensamos que a modelização
sistêmica permite identificar melhor as variáveis que compõem o conceito de capital social aqui
adotado. O autor questiona se essa complementaridade será útil para a análise da situaçãoproblema apresenta condições de possibilidade de uma iniciativa produtiva, de tipo
agroindustrial, que pretende se constituir em experiência-piloto para a substituição de lavouras
de coca na Colômbia.
No artigo Capital social, cultura e socialização política: a juventude brasileira, Rosana
Katia Nazzari, investiga a socialização política e o capital social dos jovens brasileiros no início
do século XXI, no contexto do debate sobre a consolidação democrática no país. Com base em
investigações de cunho nacional e internacional, estabeleceram-se referenciais teóricos
relacionados à socialização, cultura política e capital social, necessários para a compreensão da
formação da juventude e o exercício democrático. São enfocados aspectos importantes da
sociedade e do Estado na tentativa de contextualizar os dados obtidos na pesquisa empírica. A
juventude é retratada como uma construção histórico-social, cujo perfil é traçado por meio dos
impactos conjunturais desencadeados pelo processo de globalização e, também, por impactos
estruturais relacionados a uma cultura política híbrida de autoritarismo e democracia.
Rute Baquero e Lúcio Jorge Hammes no artigo Educação de jovens e construção de
capital social: que saberes são necessários? buscam identificar saberes construídos em
experiências educativas não-formais em três organizações – O Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra, a Rede em Busca da Paz e a Pastoral da Juventude Estudantil -, que enfatizam
o grupo como espaço de convivência e ação dos jovens, problematizando-os na sua relação com
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a construção de capital social. O artigo parte da hipótese de que a vivência nos grupos se
constitui em espaço privilegiado da formação individual e coletiva dos jovens com efeitos na
constituição de capital social.
A pesquisadora Angelita Fialho Silveira, no artigo O empoderamento e a constituição
de capital social entre a juventude, propõe-se a avaliar o engajamento político da juventude
enquanto categoria analítica, tendo como referência o contexto latino-americano. A autora
examina os conceitos de capital social e empoderamento com o intuito de buscar elementos
teóricos para enfocar aspectos da realidade sócio-política da população juvenil. Por fim, com
base em pesquisa quantitativa realizada no ano de 2004 em dezenove escolas da cidade de Porto
Alegre, são examinados dados sobre comportamento e atitudes dos jovens em relação a
atividades coletivas, visando identificar a capacidade de participação política da juventude.
No artigo Políticas públicas, direitos humanos e capital social, Jussara Reis Prá, enfoca
as políticas públicas pela ótica dos direitos. Considera que é um trabalho complexo e ao mesmo
tempo necessário e indispensável quando se considera o confronto atual entre discursos
difundidos por diversos tipos de fundamentalismo e os voltados à defesa intransigente dos
direitos humanos. Diante disso, refletir sobre a questão dos direitos é uma forma de repensar
problemas que afetam a ordem social e política, dificultando a tarefa de construir uma cultura
pública democrática em sociedades periféricas. O presente trabalho compartilha da idéia que é
necessário intervir na formulação do discurso jurídico-normativo e em seus desdobramentos.
Assim, examina-se o caso brasileiro com o intuito de estabelecer algumas conexões entre
políticas públicas e direitos humanos; identificar restrições impostas ao processo de extensão
desses direitos e pensar em formas de viabilizar estratégias de ação coletiva. A questão dos
"direitos humanos" é associada ao marco teórico do Capital Social de uma perspectiva que
contempla a possibilidade de promover o desenvolvimento e a manutenção desse capital no
Brasil. O exame de dados empíricos revela que a melhoria de alguns indicadores sociais não tem
sido capaz de promover a igualdade e inclusão da maioria da população do país. O conceito de
capital social revela um potencial inestimável para desencadear práticas de participação e
interpelações democráticas capazes de reverter o quadro de incertezas e de exclusão social que
caracteriza o cenário brasileiro do novo século. Os resultados do estudo sugerem a necessidade
articular e fomentar esse capital depende e que isso depende de nossa capacidade de construir e
efetivar uma cultura pública de direitos humanos na sociedade brasileira.
Por fim, Davi Basso, no artigo Capital social e estratégias de reprodução das famílias
rurais, trata de novos procedimentos teórico-metodológicos para a análise de processos de
desenvolvimento rural locais, considerando que tanto as atividades e rendas agrícolas, quanto
10
não-agrícolas podem ser relevantes para a composição das estratégias de reprodução das famílias
rurais. Basso apresenta os principais elementos da abordagem para tratar das estratégias de
reprodução familiar em função do acesso a um conjunto de ativos de capital e de atores que
operam nas esferas do mercado, do Estado e da sociedade civil, exemplificando, na medida do
possível, com referências do estudo de uma situação de desenvolvimento rural. O autor ainda
analisa o significado do capital social como agente capaz de potencializar processos particulares
de desenvolvimento.
Gostaríamos de agradecer as instituições e pessoas que foram fundamentais na
concretização deste livro. Ao Núcleo de pesquisas Sobre América Latina NUPESAL/UFRGS, e
ao Núcleo Interdisciplinar de Estudos Sobre a Mulher NIEM/UFRGS. Aos bolsistas de iniciação
científica Bianca de Freitas Linhares e Douglas Santos Alves da UFRGS. A Professora Maria
Salete de Souza Amorim da UNIOESTE, a Angelita Fialho Silveira, Rodrigo Gelpi e Lea
Epping. Agradecimento especial a Editora da UNIJUÍ, na pessoa de Gilmar Antônio Bedin
(Reitor e editor-chefe da Editora), a Joel Corso (editor adjunto) e, ao Departamento de Ciências
Sociais da Unijuí, pelo apoio para que essa obra fosse publicada.
A RETÓRICA DO CAPITAL SOCIAL: UMA ANÁLISE DA OBRA DE ROBERT
PUTNAM
Leonardo Monteiro Monasterio1
Professor do Curso de Economia da Universidade Federal de Pelotas - UFPEL
E-mail: [email protected]
Introdução
O conceito de capital social já conquistou o seu lugar no glossário das Ciências Sociais.
Mesmo não tendo sido o criador da expressão, é consensual que foi o sociólogo James Coleman
(1988) o responsável por trazê-la a lume nos debates acadêmicos. Contudo, foram os trabalhos
do cientista político Robert Putnam os que tiveram maior impacto. Seu Making Democracy
Work: civic traditions in modern Italy (1993; a partir de agora MDW) cruzou as fronteiras das
Ciências Sociais, alcançando um público mais amplo do que aqueles atraídos apenas pelo restrito
subtítulo da obra.
Hoje, o nome de Putnam está tão associado ao capital social quanto, por exemplo, o de
Ronald Coase (1937) aos custos de transação. Ao contrário deste, porém, Putnam não foi o
pioneiro, nem o responsável por avanços teóricos de vulto acerca do tema. Qual a origem, então,
de seu sucesso?
Existem múltiplas causas que conduzem ao triunfo de um conceito e à celebração de um
autor. Foge do escopo do trabalho identificá-las na totalidade no caso de Putnam; busca-se
apenas examinar o papel da retórica ao longo de seus escritos. Ou seja, será feita uma análise
retórica que destaque as estratégias persuasivas empregadas pelo autor. Trata-se de um estudo
1
Agradeço a revisão atenta e os comentários de Martin Dietrich Brauch.
12
inserido naquilo que Harris (1997) chamou de “retórica da disseminação”: buscam-se no texto as
concessões que o autor fez para que sua mensagem obtivesse o apoio devido. 2
A próxima seção mostra, através de dados quantitativos, a medida do estrondoso impacto
que MDW causou no meio acadêmico. Além desse livro, analisou-se outra obra de Putnam:
Bowling Alone: the collapse and revival of American community (2000) (doravante BA). Com
isso, será possível perceber as mudanças estratégicas de Putnam ao longo de sua trajetória de
apóstolo do capital social. Devido à extensão das obras, optou-se por estudar apenas o prefácio e
os capítulos 1, 4 e 6 de MDW e os capítulos 1, 10 e 16 de BA. As seções 2 e 3 estão voltadas
para o estudo dessas obras. Há, ainda, uma seção conclusiva.
A Ascensão e Ascensão do Capital Social
Em 1993, aos 52 anos, Putnam já tinha uma carreira consolidada como cientista político
na Universidade de Harvard. Ele obtinha uma elevada freqüência anual de citações pelos seus
trabalhos anteriores: 49 referências em 1992 e 17 no ano seguinte. A publicação de MDW fez
com que esses números ficassem ofuscados. Conforme mostra a Tabela 1, o impacto da obra foi
rápido. Entre os anos de 1993 e 1999, as citações cresceram à taxa média anual de 76,5%.
Segundo o próprio autor, o começo de ano de 1995 é o marco da sua passagem de obscure
academic para uma figura pública. Ele passou a ser presença constante em talk-shows, Camp
David e foi retratado pela revista People (BA, p. 506).
Os dados mais recentes sugerem que o número de citações a MDW continua crescendo.
Para fins de comparação, basta mostrar que, em 2002, o número de referências a MDW superou
as de “O Capital” (130 citações - todas as citações de Karl Marx em 2002 somaram 335
referências únicas).
2
Não há mais necessidade de se fazer uma justificativa do projeto retórico nas ciências econômicas. Desde o texto
seminal de McCloskey (1983), tem havido profícuos debates e estudos de caso que consolidaram esse tipo de
pesquisa. Vale acrescentar que a postura da retórica da disseminação é mais conservadora do que considerar que
"ciência = retórica" (ver Harris, 1997, p. xxx)
13
TABELA 1 - CITAÇÕES ÚNICAS AO TERMO SOCIAL CAPITAL E AOS PRINCIPAIS
LIVROS DE ROBERT PUTNAM – 1993-2003.
“Social Capital”
Making Democracy Work
Bowling Alone
1993
15
10
1994
14
33
1995
28
68
1996
38
129
1997
61
162
1998
112
215
1999
129
227
2000
176
281
11
2001
210
299
81
2002
257
283
100
2003
291
215
118
Fonte: Autor com base em Science Citation Index Expanded, Social Sciences Citation Index (SSCI) e
Arts & Humanities Citation Index (A&HCI). Versão eletrônica, consultada em 6 de Novembro de 2004.
A Tabela 1 realça o impacto de MDW, mesmo quando comparado com trabalhos afins. A
ocorrência da expressão “social capital” nos títulos e resumos de artigos científicos deu-se com
freqüência crescente. A mesma tendência foi observada no tocante à citação do trabalho de
James Coleman Human Capital and Social Capital. Contudo, a despeito desses avanços, um ano
após o seu lançamento, o número de citações de MDW já ultrapassava a própria ocorrência da
expressão “social capital”. Isso indica que MDW atingiu um público acadêmico mais amplo do
que os interessados apenas na questão do capital social.
BA, por sua vez, mostrou seu impacto acadêmico muito mais rapidamente do que MDW.
Conforme mostra a tabela, o livro salta de uma dezena de citações no ano do lançamento para
uma centena dois anos depois. Apesar de ser cedo demais para garantir, dados recentes sugerem
que BA alcançou um patamar de citações mais baixo do que MDW. Este padrão poderia sugerir
que o impacto de BA foi mais limitado. Contudo, levando-se em conta o impacto total de BA, e
14
não apenas no meio acadêmico, muda-se de figura. Uma busca no Google por “Bowling Alone”
gera cerca de 32.000 resultados, enquanto “Making Democracy Work”, 16.500 itens. 3
Making Democracy Work (1993)
No prefácio de MDW, Putnam deixa claro quais são seu tema e seus objetivos: This book
explores some fundamental questions of civic life by studying the regions of Italy. It is written
with two different audiences in mind - those who share my fascination with subtleties of Italian
life, and those who do not, but who care about democratic theory and practice (MDW, p. xiii).4
Ou seja, a experiência italiana é apenas um instrumento, uma ilustração de um debate
muito mais profundo acerca das condições que fazem “a democracia funcionar”.5 Ao explicitar o
seu leitor presumido, ele está indicando que seu argumento almeja um público bem maior do que
os interessados apenas pela Itália. É quase uma conclamação aos leitores interessados pela
ciência política e pela democracia para que sigam em frente.
Seu pathos, isto é, seu esforço para atrair a atenção do leitor, é reforçado pelo convite a
uma viagem exploratória (A Voyage of Inquiry) através da Itália moderna. Ao longo de suas
páginas, cruzam-se os 870 quilômetros que separam o norte do sul do país. To the thoughtful
observer, however, this swift passage is less impressive for the distance spanned than for the
historical contrast between the point of departure and the destination (MDW, p. 4).6
3
A busca foi feita em 5 de Novembro de 2004 e, para evitar falsos resultados, o termo “Putnam” foi incluído. Para
fins de comparação, pesquisa semelhante por “Keynes” e “General Theory” resultou em 30.500 itens.
4
Este livro explora algumas questões fundamentais da vida cívica através do estudo das regiões da Itália. Destina-se
a dois públicos-alvos – aqueles que compartilham minha fascinação com os pormenores da vida italiana, e aqueles
que não são fascinados com a Itália, mas que se interessam por teoria e prática democráticas (tradução livre).
5
Putnam (1993, p. 3) reafirma esse ponto em diversos momentos ao longo do capítulo introdutório de MDW: “This
book aims to contribute to our understanding of the performance of democratic institutions...Our intent is
theoretical, our method is empirical, drawing lessons from a unique experiment in institutional reform conducted in
regions of Italy over the two last decades”. (Este livro visa a contribuir para nosso entendimento a respeito da
performance das instituições democráticas... Nossa intenção é teórica, nosso método é empírico, tirando lições de
um experimento singular de reforma institucional conduzido em regiões da Itália ao longo das duas últimas
décadas.)
“The central question posed in our voyage of inquiry is this: What are the conditions for creating strong, responsive,
effective representative institutions” (MDW, p. 6, grifo no original). (A questão central que é colocada em nossa
viagem exploratória é esta: Quais são as condições para a criação de instituições representativas fortes, eficientes e
efetivas.)
6
Para o observador atento, porém, esta breve viagem impressiona menos pela distância atravessada que pelo
contraste histórico entre os pontos de partida e destino.
15
Em um relato impressionista, em que o tempo não importa (ora estamos na década de
1970, ora no tempo presente), Putnam reforça os contrastes entre as regiões italianas. Para
qualificar o governo regional da Puglia, ao sul, ele reserva os termos “indolente”, “lúgubre”
(dingy), “fantasmagórico” (ghostly). Já em relação à sede do governo da Emilia-Romagna, os
adjetivos são: “moderno” (modern), “diligente” (brisk), “cortês” (courteous).
Neste ponto, já se sabe quais são os interesses dos leitores presumidos de MDW. E qual a
formação intelectual que Putnam espera da audiência? Têm-se algumas pistas. Ele supõe um
leitor culto e, mais importante, já iniciado nas Ciências Sociais. Uma audiência para a qual há
sentido na analogia entre a observação de um conjunto de dados estatísticos e a apreciação de um
quadro do pintor pontilhista Seurat (MDW, p. 12). Um público capaz de identificar uma paródia
de Marx (MDW, p. 8) e que reconheça a autoridade de Karl Deutsch (MDW, p. 12) e Kenneth
Arrow (MDW, p. 170), sem a necessidade de apresentações. Apenas aqueles autores cujas
credenciais intelectuais não vão além da sua área de pesquisa é que são adjetivados. Tem-se,
assim, a thoughful observer (atenta observadora) Elinor Ostrom e o specialist (especialista)
Arturo Israel. Muitas vezes o diálogo é buscado com os adeptos da Teoria Política e Econômica
moderna: jogos em forma extensiva (MDW, p. 7), dilemas de ação coletiva, tragédia dos bens
comuns (MDW, p. 10) são citados sem maiores explicações.
A escolha de expressões tipicamente modernistas7 mostra a preocupação de Putnam em
buscar o diálogo com cientistas sociais que seguem esse tipo de abordagem: Our study of the
Italian regional experiment is intended to contribute empirical to both these themes. Taking
institutions as an independent variable, we explore empirically how institutional change affects
the identities, power, and strategies of political actors. Later, taking institutions as a dependent
variable, we explore how institutional performance is conditioned by history (MDW, p. 8).8
Putnam reforça o caráter empírico do estudo e seu jargão de “variáveis dependentes e
independentes” é bastante aconchegante para aqueles que cursaram Introdução à Econometria.
Com isso, ele se credencia como um cientista sério, de acordo com os critérios modernistas.
Por outro lado, Putnam também mostra que navega bem entre os clássicos da Ciência
Política. Aristóteles, Platão, Hume, Mill, Tocqueville transitam ao longo do primeiro capítulo,
demonstrando o ethos do autor como versado na Teoria Política mais tradicional. Assim,
7
8
Modernistas no sentido adotado por McCloskey (1983).
Nosso estudo da experiência regional italiana pretende contribuir empiricamente para ambos os temas. Tomando as
instituições como uma variável independente, exploramos empiricamente como as mudanças institucionais afetam
as identidades, o poder e as estratégias dos atores políticos. Em seguida, tomando as instituições como uma variável
dependente, exploramos como a performance institucional é condicionada pela história.
16
qualquer que seja o tipo de Ciência Política a que o leitor seja afeito, ele encontrará em Putnam
um interlocutor à altura.
Metodologicamente, Putnam afirma que seu estudo busca recolher o maior número
possível de evidências. Para justificar essa postura, ele se apóia em Karl Deutsch e reforça: “The
prudent social scientist, like a wise investor, must rely on diversification to magnify the
strengths, and to offset the weakness, of any single instrument.”9 (p. 12, grifos meus). Dessa
maneira, ele reitera sua posição como cientista social (e não apenas cientista político) cauteloso e
defende uma metodologia que tem evidente apelo persuasivo: “se tantos dados apontam na
mesma direção, ele devem estar certos!”.
Explaining Institutional Performance é apontado por Putnam como o ponto central do
estudo (MDW, p. 15). Isso é um fato, porque nessa seção ele estabelece o elo causal entre
comunidade cívica e desempenho institucional. Vejamos como o argumento é construído.
Putnam inicia o capítulo afirmando que há muito tempo os sociólogos políticos sustentam que o
desempenho institucional depende da modernidade econômica e que essa correlação é observada
empiricamente. O caso italiano não fica de fora e, de fato, as regiões mais desenvolvidas são
aquelas de melhor performance institucional. Mas o autor argumenta que essa ligação é ilusória
ao mostrar graficamente que a variação da qualidade institucional dentro das regiões norte e sul é
independente do grau de desenvolvimento econômico.
Essa técnica argumentativa foi classificada por Perelman (1969) como procedimento de
dissociação, mais especialmente de “ruptura de ligação”.10 Ela consiste em asseverar que a
conexão existente entre dois elementos não deveria ter sido feita e, portanto, deve ser rompida.
Putnam, tendo excluído da ligação a modernidade econômica, pode estabelecer sua própria
conexão entre desempenho institucional e comunidade cívica.
Em seguida, Putnam passa a construir uma ligação com base no argumento pelo caso
particular. Esse argumento consiste em, a partir de um fato (i. e. premissas limitadas que são
aceitas por todos), fundamentar uma proposição mais geral, uma regra (Salviano Jr., 1993). Seu
fato é a relação causal entre comunidade cívica e desempenho institucional na Itália moderna.
Sua regra é que isto pode ser extrapolado como uma norma para o funcionamento das
democracias.
9
O cientista social prudente, como um sábio investidor, deve apoiar-se na diversificação para aumentar as forças, e
para compensar as fraquezas, de qualquer instrumento singular.
10
Para uma apresentação sistematizada da tipologia das técnicas argumentativas de Perelman, ver Salviano Jr.
(1993, cap. I). Para uma aplicação dessa classificação à obra de Oliver Williamson, ver Fernandez e Pessali (2000).
17
Ele elabora o conceito de comunidade cívica ao longo do capítulo IV mediante
procedimentos retóricos que vale a pena destacar. Sem uma definição sintética, segue a seguinte
estratégia: examinar vários quesitos que uma comunidade cívica deve cumprir (participação
cívica; igualdade política; solidariedade, confiança, tolerância; e práticas associativas) para então
averiguar a aderência entre esse tipo ideal e as regiões do norte da Itália.
Através de análise fatorial, Putnam cria um único indicador de civismo que tenta capturar
os diversos aspectos da comunidade cívica. Apresenta um gráfico que destaca a forte correlação
entre os indicadores de comunidade cívica e o de desempenho institucional. A relação aparece
com “stark clarity”. E mais: “the predictive power of the civic community is greater than the
power of economic development” (p. 98).11 Poder de predição? Rigorosamente, a afirmação só é
apropriada se ele testasse suas previsões em um outro conjunto de dados ou omitisse
observações. É razoável entender essa frase como mais uma forma de satisfazer as expectativas
dos pesquisadores “sérios”.
O próximo passo de Putnam consiste em relacionar as comunidades cívicas com outras
variáveis obtidas em pesquisas de opinião como: intransigência das lideranças, clientelismo,
apoio à igualdade política, entre outras. Com isso, ele faz um retrato da comunidade cívica, no
qual muitas vezes não se sabe se ele está se referindo a um ideal ou ao observado na Itália. Por
exemplo, após dar conta que na região mais cívica apenas 20% dos líderes políticos concordam
que “transigir é perigoso”, ele escreve: “Politicians in civic regions do not deny the reality of
conflicting interests, but they are unafraid of creative compromise”.12 Essa é uma afirmativa
relativa a uma sociedade imaginada, ou à Itália concreta?
No trecho abaixo, Putnam faz um retrato utópico, idílico, da comunidade cívica e o
contrapõe à distopia da sociedade pouco cívica: Citizens in civic community, it is said, deal
fairly with one another and expect fair dealing in return. They expect their government to follow
high standards, and they willingly obey the rules they have imposed on themselves... In a less
civic society, by contrast, life is riskier, citizens are warier, and the laws, made by higher ups, are
made to be broken (MDW, p. 111).13
11
O poder preditivo da comunidade cívica é maior que o poder do desenvolvimento econômico.
12
Políticos em regiões cívicas não negam a realidade dos interesses conflitantes, mas não têm medo de
compromissos criativos.
13
Diz-se que os cidadãos na comunidade cívica lidam com justiça uns com os outros e esperam tratamento justo em
retribuição. Eles esperam que seu governo siga altos padrões, e voluntariamente obedecem às regras que impõem a
eles próprios... Em uma sociedade menos cívica, por outro lado, a vida tem mais riscos, os cidadãos são mais
cuidadosos e as leis elaboradas pelos governantes são feitas para ser violadas.
18
Percebendo que essa caricatura não é uma das práticas vista com bons olhos pela
Academia, faz uma ressalva: This account of the civic community sounds noble, perhaps, but
also unrealistic and even mawkish, echoing some long-forgotten high school civics text.
Remarkably, however, evidence from the Italian regions seems consistent with this vision
(MDW, p. 111).14
Ou seja, são os dados que lhe permitem fazer essa contraposição qualitativa entre as
sociedades com graus distintos de civismo. No fim do capítulo, ele abre mão da modéstia e
dúvida acadêmica para reafirmar peremptoriamente a importância do civismo: The evidence
reviewed in this chapter is unambiguous: Civic context matters for the way institutions work. By
far the most important factor in explaining good government is the degree to which social and
political life in a region approximates the ideal of civic community (MDW, p. 120).15
O título do capítulo VI, Social Capital and Institutional Success, é o primeiro lugar no
qual Putnam utiliza o conceito que está hoje ligado ao seu nome de forma indelével. Ele espera
até a última seção do livro, quando os leitores possivelmente já foram persuadidos, para
introduzir o conceito que o tornou famoso. E, mesmo nesse capítulo final, ele só trata do
conceito a partir da segunda parte. A primeira está dedicada à demonstração de que o dilema da
ação coletiva é uma questão teórica recorrente. Desde o charco de Hume até o dilema do
prisioneiro, há diversas situações nas quais indivíduos racionais deixam de aproveitar os ganhos
potenciais da cooperação. Em seguida, ele argumenta que a solução proposta pelo novo
institucionalismo aos problemas de ação coletiva – qual seja, instituições formais que garantam a
colaboração – é insuficiente, pois não explica o surgimento destas.
O capital social entra em cena com um papel claro: resolver os problemas de ação
coletiva. Sua definição é uma das mais citadas na bibliografia sobre o tema: Social capital here
refers to features of social organization, such as trusts, norms, and networks, that can improve
the efficiency of society by facilitating coordinated actions (MDW, p. 167).16
Segue-se uma citação de Coleman (1990) que também enfatiza o caráter produtivo do
capital social. Em momentos posteriores da obra de Putnam, outros benefícios surgem, mas
14
Essa descrição da comunidade cívica parece nobre, talvez, mas também irreal e mesmo piegas, ecoando alguns
textos cívicos esquecidos do colegial. Notavelmente, entretanto, evidências das regiões italianas parecem ser
consistentes com esta visão.
15
É curioso notar que apenas nesse momento ele explicita que a comunidade cívica é um ideal. Tradução: Não há
ambigüidade na evidência revisada neste capítulo: o contexto cívico importa para o modo como funcionam as
instituições. O mais importante fator para explicar o bom governo é o grau em que a vida social e política em uma
região aproxima-se do ideal da comunidade cívica.
16
A expressão “capital social” aqui se refere às características da organização social, tais como confiança, norma e
redes, que podem melhorar a eficiência da sociedade, facilitando ações coordenadas.
19
nesse instante a ênfase está na obtenção da cooperação espontânea para a produção de bens
coletivos. Putnam apresenta um exemplo de colaboração voluntária para mostrar a relevância e a
universalidade do capital social: as associações rotativas informais de crédito. Elas estão
presentes em diversas partes do planeta e o autor as explicita: Rotating saving credit associations
have been reported from Nigeria to Scotland, from Peru to Vietnam, from Japan to Egypt, from
West Indian immigrants in the eastern United States to Chicanos in the West, from illiterate
Chinese villagers to bank managers and economic forecasters in Mexico city (MDW, p. 167).17
A clássica figura retórica que ele usa chama-se copia. Ela se baseia na repetição, na
referência a uma vasta quantidade de casos como forma de tornar o argumento mais persuasivo.
Além disso, ao dizer de “X até Y” ele faz crer que existem registros de crédito rotativo em todos
os pontos intermediários; como se os indivíduos constituíssem associações cooperativas de
crédito em todos os países que ficam entre o Japão e o Egito.
Bowling Alone (2000)
Tal como em MDW, Bowling Alone tem início com uma impressionista visão panorâmica
do problema. Se na obra de 1993 a viagem exploratória ocorreu através do espaço italiano, agora
ela ocorre ao longo do tempo (BA, p. 15-18). Ele pinta um mosaico da decadência da
participação associativa nos EUA de hoje e o contrasta com um passado não tão distante, a
década de 60, quando o engajamento em questões comunitárias alcançou níveis inéditos.
Naquela época: “Never in our history had the future of civic life looked better18”. Em seguida,
ele apresenta o tema do livro: “What happened next to civic and social life in American
communities is the subject of the book”.19
O conceito de capital social é apresentado logo na página 18, através da analogia com os
outros tipos de capital: Just as a screwdriver (physical capital) or a college education (human
17
A existência de associações rotativas de crédito tem sido constatada da Nigéria à Escócia, do Peru ao Vietnã, do
Japão ao Egito, de imigrantes indianos ocidentais na costa leste dos EUA até Chicanos na costa oeste, de aldeãos
chineses iletrados a gerentes de banco e elaboradores de previsões econômicas na Cidade do México.
18
Nunca em nossa história o futuro da vida cívica tinha parecido tão bom.
19
O que em seguida aconteceu com a vida cívica e social nas comunidades estadunidenses é o assunto do livro.
20
capital) can increase productivity (both individual and collective), so too social contacts affect
the productivity of individuals and groups (BA, p. 19).20
A escolha dos exemplos indica qual o leitor-alvo de Putnam. Em vez de um torno ou uma
complexa máquina, ele opta por um bem de capital próximo do cotidiano. E, em vez de ilustrar o
capital humano com a educação básica, ele escolhe a educação universitária, cujos ganhos
pecuniários são conhecidos de seus leitores: norte-americanos bem-educados.
O histórico do conceito que se segue, além do valor em si, tem forte apelo argumentativo.
Ele mostra que a expressão social capital foi cunhada independentemente ao menos seis vezes
ao longo do século XX. Quando pensadores isolados formulam conceitos e teorias análogas,
alguma pertinência deve haver. Vide os casos de Newton e Leibnitz; Wallace e Darwin; e
Keynes e Kalecki. Ele apresenta os autores acompanhados de sua área de pesquisa e sua
nacionalidade (exceto no caso dos norte-americanos). Tem-se: os Canadian sociologists, a
urbanist Jane Jacobs; o economist Glenn Loury; o French social theorist Pierre Bourdieu; o
German economist Ekkehart Schlicht e o sociologist James Coleman (BA. p. 19). Assim, ele faz
crer que o conceito de capital social é um consenso não só entre os ramos das Ciências Sociais,
como também internacional.
Ainda no primeiro capítulo, Putnam aponta que nem sempre o capital social traz efeitos
positivos para a sociedade como um todo. Ele cita o exemplo extremo da rede de amigos que
auxiliou Timothy McVeigh no atentado terrorista em Oklahoma. Em uma nota de fim de texto
(BA, p. 446) ele admite ter, em MDW, ignorado “the possibility that social capital might have
antisocial effects, but I recognized this possibility explicitly in ‘The Prosperous Community’,
published in the same year”21. É inevitável supor que a omissão do dark side do capital social
tenha sido estratégica, já que no mesmo ano ele já tinha ciência dessa faceta. Mais adiante, a
analogia com os capitais físicos e humanos é usada para minimizar o caráter perverso do capital
social. Ele lembra que McVeigh também usou máquinas e seus conhecimentos para cumprir seus
objetivos de destruição. Essa ilustração anula as diferenças e mostra que todos os “capitais”
podem trazer prejuízos para a sociedade.
Na discussão sobre os tipos de capital social, ele usa com generosidade as metáforas. O
bridging social capital envolve pessoas de diversos grupos sociais, enquanto o bonding mantém
os grupos internamente coesos. A seguir ele cunha uma metáfora cotidiana de conceitos que já
20
Assim como uma chave de fenda (capital físico) ou uma educação de nível superior (capital humano) podem
aumentar a produtividade (individual e coletiva), também os contatos sociais afetam a produtividade de indivíduos e
grupos.
21
[…] a possibilidade de que o capital social tenha efeitos anti-sociais, mas reconheci essa possibilidade
explicitamente na obra “A Comunidade Próspera”, publicada no mesmo ano.
21
são metáforicos (bridging, bonding social capital): Bonding social capital constitutes a kind of
sociological superglue, whereas bridging social capital provides a sociological WD-40. (BA, p.
23).22
É interessante notar o esforço que ele faz para diferenciar seu argumento das
declensionist narratives, isto é, “the postmodernist jargon for tales of decline and fall”23 (BA, p.
24). Ele argumenta que não há uma direção unívoca de variação no capital social norteamericano. No século XX houve ondas de renovação e contra-fluxos de colapso (BA, p. 25).
Mas o verdadeiro antídoto contra “gauzy self-deception”24 que poderia levar a “simple
nostalgia”25 é a transparência dos métodos. O que ele quer dizer com isso? Dados quantitativos:
“One way of curbing nostalgia is to count things”26. Com base em que informações? Nada
menos que “... the best available evidence”27 (BA, p. 26).
Em MDW, Putnam recorria ao argumento de Deutsch para asseverar a regra
metodológica de usar várias fontes de dados. Agora ele usa uma ilustração que exige menos
conhecimentos do leitor: “prudent journalists follow a 'two source' rule: Never report anything
unless at least two independent sources confirm it”28. Na seqüência, ele nos garante a sua
honestidade intelectual: In this book I follow that same maxim. Nearly every major
generalization here rests on more than one body of independent evidence, and where I have
discovered divergent results from credible sources, I note that disparity as well.29
Mesmo longo, vale reproduzir o trecho abaixo: I have a case to make, but like any officer
of the court, I have a professional obligation to present all relevant evidence I have found,
exculpatory as well as incriminating. To avoid cluttering the text with masses of redundant
22
O capital social “ligação” constitui um tipo de supercola sociológica, enquanto o capital social “ponte” provê um
WD-40 sociológico. (WD-40 é um produto químico, desenvolvido em 1953 para a indústria aeroespacial com a
finalidade de prevenir corrosão e ferrugem).
23
O jargão pós-modernista para movimentos de declínio
24
Difuso auto-engano
25
Simples nostalgia
26
Um meio de evitar a nostalgia é contar as coisas.
27
a melhor evidência disponível
28
Jornalistas prudentes seguem a “regra das duas fontes”: nunca noticiam algo que não seja confirmado por pelo
menos duas fontes independentes.
29
Neste livro eu sigo a mesma máxima. Praticamente toda generalização aqui feita repousa sobre mais de um corpo
de evidências independentes, e onde descubro resultados divergentes de fontes dotadas de credibilidades observo
também essa disparidade.
22
evidence, I have typically put confirmatory evidence from multiple studies in the notes, so
skeptical 'show me' readers should examine those notes as well as the text (BA, p. 26).30
A primeira frase demonstra o quanto ele está consciente da sua missão persuasiva.
Alardeia que sua honestidade acadêmica o faz apresentar todas as evidências, quer a favor, quer
contra a sua tese. A frase seguinte também é significativa: aqueles que recorrerem às notas do
fim de texto, ao invés de leitores atentos, são uns céticos, uns incrédulos que não botam fé na
imparcialidade do professor Putnam.31
Se os argumentos pela seriedade científica do estudo não forem suficientes, ele busca
cativar o coração do leitor. Conta uma história verídica em que um parceiro de boliche doou o
fígado para outro apesar de se encontrarem apenas para jogar. O relato fica ainda melhor quando
informa que o doador é branco (33 anos) e o recebedor, afro-americano (64 anos) (BA, p. 28).
Lágrimas vertidas, lê-se a conclamação do livro: In small ways like this- and in larger ways toowe Americans need to reconnect with one another. This is the simple argument of this book.32
A seção seguinte, Trends in Civic engagement and Social Capital, retrata a erosão do
capital social nos EUA a partir do fim da década de 60. O capítulo introdutório da seção III –
intitulado Why?, no qual Putnam apresenta as razões desse fenômeno – contém a metáfora que
será bastante explorada: It is, if I am right, a puzzle of some importance to the future of
American democracy. It is a classic brainteaser, with a corpus delicti, a crime scene, strewn with
clues, and many potential suspects. As in all good detective stories, however, some plausible
miscreants turn out to have impeccable alibis, and some important clues hint at portentous
developments that occurred long before the curtain rose. Moreover, as in Agatha Christie's
Murder on the Orient Express, this crime turns out to have more than one perpetrator, so that we
shall need to sort out ringleaders from accomplices (BA, p. 184).33
30
Tenho que fazer um caso, mas, como qualquer oficial em um tribunal, tenho a obrigação profissional de
apresentar todas as provas relevantes que tiver encontrado, absolutórias ou incriminadoras. Para evitar o
abarrotamento do texto com massas de evidências redundantes, eu normalmente coloquei evidências confirmatórias
(comprobatórias) de diversos estudos nas notas, para que os céticos leitores “mostre-me” possam examinar essas
notas assim como o texto.
31
Os incrédulos que buscarem todas as notas finais do livro terão que fazê-lo 991 vezes (sic).
32
Em pequenas atitudes como essa – e também de maneiras mais amplas – nós, estadunidenses, precisamos
estabelecer vínculos uns com os outros. Este é o argumento simples deste livro.
33
Trata-se, se estou certo, de um quebra-cabeça importante para o futuro da democracia estadunidense. É um
clássico exercício mental, com um corpus delicti, uma cena de crime, pistas e muitos suspeitos. Como em todas as
boas histórias de suspense policial, porém, alguns plausíveis delinqüentes têm, no fim das contas, álibis impecáveis,
e algumas pistas importantes apontam para desenvolvimentos, ocorridos muito antes do abrir das cortinas, que
demonstravam a futura ocorrência de acontecimentos desagradáveis. Além do mais, como no Assassinato no
Expresso Oriente, de Agatha Christie, o crime pode acabar tendo mais de um executor; então, precisamos fazer a
distinção entre autores e cúmplices.
23
A pesquisa científica se transforma em um livro de mistério34. A escolha de Agatha
Christie é perfeita. Putnam segue uma tradição inglesa de romance policial no qual há um
enigma intelectual a ser resolvido em um ambiente a princípio ordeiro e as evidências estão todas
disponíveis ao observador atento. Não há aqui detetives como os norte-americanos Sam Spade
ou Marlowe, imersos na desordem geral, tendo que buscar por conta própria as provas do
crime.35 Finally, I need to make clear at the outset that I have not entirely solved the mystery, so
I invite your help in sifting clues (BA, p. 184).36
A afirmação de que não resolveu completamente o Enigma da Erosão do Capital Social,
em vez de ser uma confissão de incapacidade, torna-se um irresistível convite. Como não aceitar
participar da resolução de um crime em que todos os elementos estão postos? Quem resiste a um
quebra-cabeça?
A partir daí, ele segue usando a primeira pessoa do plural (uma vez que aceitamos o
convite) e o jargão policial. Ele reafirma o mistério, argumentando que nenhum dos usual
suspects se destaca no alinhamento inicial. Ao listar os mais de dez possíveis culpados (que vão
desde a televisão até a ampliação do Welfare State), ele escreve: Most respectable mystery
writers would hesitate to tally up this many plausible suspects, no matter how energetic their
detective, I am not in a position to address all these theories - certainly not in any definitive
form- but we must begin to winnow the list.37
O próximo passo persuasivo de Putnam é mostrar a falta que o capital social faz, ou
melhor dizendo, os benefícios potenciais que adviriam de sua ressurreição. Mas ele não faz um
mero panegírico. A seção So What? Mostra, com generosos recursos às evidências empíricas,
como cada aspecto da vida norte-americana seria melhorado pela ampliação do estoque de
capital social. No capítulo introdutório da seção, Putnam antecipa os resultados e apresenta os
microfundamentos. Are we right? Does social capital have salutary effects on individual,
34
Já em MDW, ele faz o paralelo entre a pesquisa científica e a investigação criminal (p. xiv). Contudo, ele não a
inclui no corpo do texto, deixando-a limitada ao prefácio, e se abstém de utilizar novamente tal metáfora.
35
Ver Fonseca (1994) para um debate sobre as diferenças entre as tradições inglesas e norte-americanas de romance
policial.
36
Finalmente, preciso esclarecer que não resolve completamente o mistério, e por isso convido você a ajudar-me no
descobrimento das pistas.
37
O capítulo XVI resume as pistas e se intitula What Killed Civic Engagement? Summing up. Na sua
“guesstimation”, Putnam distribui da seguinte forma a culpa: 10% pressões de tempo e dinheiro oriundas das
famílias com pais e mães com carreiras profissionais; 10% mudanças na estrutura urbana (movimento pendular dos
trabalhadores e mobilidade populacional), 25% entretenimentos eletrônicos (televisão em especial) e, mais
importante, a mudança de gerações com 50%. O resíduo de Putnam é maior do que meros 5% porque ele admite que
existe uma sobreposição dos efeitos da televisão e da mudança de gerações. Tradução: A maioria dos escritores
respeitáveis de histórias de mistério hesitaria em listar todos dentre os muitos plausíveis suspeitos, não importa quão
enérgico seu detetive. Assim tampouco eu estou em posição de discutir todas essas teorias – certamente não em
qualquer forma definitiva –, mas devemos começar a refinar a lista.
24
communities, or even entire nations? Yes, an impressive and growing body of research suggests
that civic connections help wise. Living without social capital is not easy, whether one is a
villager in southern Italy or a poor person in the American inner city or a well heeled
entrepreneur in a high tech-industrial district (BA, p. 287).38
Para apresentar ao leitor os mecanismos pelos quais o capital social traz tais benefícios,
ele segue o mesmo roteiro de MDW. Mas, desta vez, além de asseverar o papel do capital social
na resolução dos problemas de ação coletiva, ele acrescenta efeitos benéficos sobre a
solidariedade social e sobre a saúde física e mental dos indivíduos39.
Um exemplo, fictício segundo ele, ajuda a persuadir. Ele conta que um casal Bob e
Rosemary Smith, pais de Jonathan40, de seis anos, querem melhorar a qualidade da escola
pública de seu filho. Se eles estiverem em uma comunidade cívica, será mais fácil estabelecer
uma associação de pais e mestres cujo objetivo fundador é apenas educacional. Outros benefícios
surgem: valores cívicos são reforçados e os vínculos entre os pais se desenvolvem. Caso Bob
perca o emprego ou Rosemary queira formar um grupo de pressão para obter maiores recursos
para as crianças da cidade, eles já terão quinze outros pais ou mães para pedir ajuda (BA, p. 28990).
Para um cientista político sério, não pareceria correto basear sua argumentação nesses
relatos pessoais (ou para-pessoais). Putnam se apressa em ressaltar que ele tem boas evidências
empíricas no bolso do paletó: Community connectedness is not just about warm fuzzy tales of
civic triumph. In measurable and well-documented ways, social capital makes an enormous
difference in our live (BA, p. 290).41
A mensagem é clara: “Leitores modernistas, fiquem tranqüilos. Apesar das vulgarizações
e caricaturas, eu conduzi uma pesquisa honesta, isto é, objetiva e empírica”. Mesmo o leitor nãoiniciado se sente confortado, uma vez que nesse momento ele está falando mais como um
cientista do que como um político.
38
Estamos certos? O capital social tem mesmo efeitos salutares sobre os indivíduos, comunidades ou mesmo nações
inteiras? Sim, um significativo e crescente corpo de pesquisas sugere que as conexões cívicas auxiliam. Viver sem
capital social não é fácil, seja no caso de um aldeão do sul da Itália ou de uma pessoa pobre em uma cidade de
interior nos EUA ou de um empresário de alto nível em um distrito industrial de alta tecnologia.
39
“Social capital appears to be a complement, if not a substitute, for Prozac, sleeping pills, antiacids, vitamin C,
and other drugs we buy at the corner pharmacy” (BA, p. 289). O capital social parece ser um complemento, senão
um substituto, para Prozac, calmantes, antiácidos, vitamina C e outros medicamentos que compramos na farmácia
da esquina.
40
41
Os nomes são os mesmos da família de Putnam.
A integração de uma comunidade não se trata apenas de historinhas felizes de triunfo cívico. De formas
mensuráveis e bem-documentadas, o capital social faz uma enorme diferença em nossas vidas.
25
No apêndice intitulado The Story Behind this Book, Putnam relata que, em 1995, ele
objetivava terminar um volume sobre capital social mais breve do que MDW e voltado para um
público mais amplo do que o acadêmico (BA, p. 506). Em seguida, ele diz que os leitores de BA
perceberão que ele fracassou em mais de um objetivo. Sem embargo, é trivial que ele não tenha
cumprido as metas no tocante ao prazo e às dimensões do trabalho. O curioso é que, através do
estratagema “mais de um”, ele deixa em aberto a questão do sucesso em alcançar um público
alvo. Uma vez que isso foi escrito na primeira edição do livro e que ele não poderia avaliar o
impacto efetivo de seu livro, algumas interpretações não-exclusivas são possíveis:
a) Essa afirmativa é um prêmio para o leitor não-acadêmico que enfrentou as mais de cinco
centenas de páginas. Agora ele pode sentir-se quase um membro da Academia.
b) O leitor acadêmico, avesso às popularizações do saber, pode considerar que o fracasso
refere-se apenas às duas primeiras partes da afirmativa.
c) Se o livro fosse um fracasso de vendas, ele poderia dizer que já tinha antecipado sua
incapacidade de alcançar um público mais amplo.
Há outro trecho revelador. Escrevendo sobre quando era um obscure academic, isto é,
pré-1995: Although I had published scores of books and articles in the previous three decades
(many of them, I immodestly believed, of greater scholarly elegance than “Bowling Alone”),
none had attracted the slightest public attention (BA p. 506).42
Ele lembra a todos que é um intelectual de respeito e bastante produtivo e que BA é uma
popularização, não tão elegante quando o conjunto da obra. O que chama atenção no trecho
citado é o fato de ele utilizar o pretérito do verbo “to believe”. Por que não usou o presente? Uma
resposta atraente é que assim ele enfraquece o teor de sua afirmação, como se pudesse, hoje, já
ter mudando de opinião.
Conclusão
Conforme lembra Salviano Jr. (1993), os estudos retóricos têm o defeito de não serem
passíveis de teste. Ao analisar um texto de sucesso, sempre se pode, ex post, encontrar as razões
retóricas do seu sucesso. O critério para avaliar a qualidade das análises retóricas tem que ser,
42
Embora eu tenha publicado diversos livros e artigos nas três últimas décadas (muitos dos quais, eu sem modéstia
acreditava, com maior elegância acadêmica que Bowing Alone), nenhum deles atraiu a mínima atenção do público.
26
igualmente, seu poder de persuasão. O presente trabalho apresentou argumentos que apóiam a
idéia de que boa parte do sucesso de MDW e BA pode ser atribuído às suas qualidades retóricas.
Putnam, em 1993, buscava o público acadêmico e o conceito de capital social ainda não
havia obtido a legitimidade hodierna. Sua ênfase na questão empírica, combinada com as
referências aos clássicos da Ciência Política e às teorias mais recentes fez com que ele obtivesse
livre-trânsito nos meios acadêmicos. A abstenção, até o último momento, do uso do termo
“capital social” mostrou-se um estratagema eficaz. Convencido de que a comunidade cívica
efetivamente traz benefícios econômicos, o leitor fica mais propenso a aceitar um novo conceito.
Em Bowling Alone, a situação muda. “Capital social” tornou-se um termo corrente nas
Ciências Sociais (e Putnam é um dos responsáveis pelo feito). Agora ele pode introduzir a
expressão no primeiro capítulo e até admitir que nem todos os vínculos sociais trazem
benefícios, sem temores de que isso vá enfraquecer seu argumento.
A grande mudança entre MDW e BA é a busca de uma audiência mais ampla, uma
tentativa de cross-over do público acadêmico para os norte-americanos cultos. Ao conquistar as
platéias dos cientistas sociais mundo afora, Putnam obteve as credenciais para escrever para o
público não-especializado. Essa passagem seria bem mais árdua se a fizesse no outro sentido: um
autor que primeiro tem o reconhecimento público terá problemas graves em obter a aceitação de
seus pares na Academia.
Em ambos os livros (mais intensamente em BA), Putnam se divide entre seguir sendo um
scholar respeitado ou um divulgador de uma idéia, um militante. Ele busca preservar sua
imagem de pesquisador, talvez porque saiba que, se for visto como um militante, seus
argumentos em favor da promoção do capital social perderão força não só entre os acadêmicos,
mas também entre o público em geral.
Os trabalhos do projeto da retórica da ciência sempre ressaltam que, ao desvendar o
instrumental de convencimento usado, não se pretende desqualificar os argumentos dos autores,
nem tratá-los como ilusionistas. Da mesma forma, mostrar as estratégias retóricas de Putnam não
implica, necessariamente, em negar a pertinência de suas teses. Aqueles que celebram a chegada
do conceito do capital social têm mais motivos ainda para celebrar o esforço persuasivo de
Putnam.
Referências
27
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SALVIANO J.r. Cleófas. O discurso cepalino: ensaio de análise retórica. Dissertação de
mestrado. IPE-USP: 1993.
GLOBALIZAÇÃO E DEMOCRACIA INERCIAL: O QUE O CAPITAL SOCIAL PODE
FAZER NA CONSTRUÇÃO DE UMA SOCIEDADE PARTICIPATIVA?
Marcello Baquero
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul.
E-mail: [email protected]
Introdução
Apesar da sabedoria convencional sinalizar para a vitória incontestável da democracia
formal no mundo contemporâneo, principalmente a partir das indicações apresentadas por
Samuel Huntington (2000) sobre a terceira onda de democracia, argumentamos, neste artigo, que
a democracia de mercado, que se institucionaliza na América Latina, está longe de ser
considerada consolidada. Em particular, se pensada em termos de uma base material adequada
para garantir uma qualidade de vida mínima para os seus cidadãos.
O aparente consenso sobre as virtudes do mercado na construção de uma cidadania mais
ampla e participativa deixou de existir. Estudos produzidos, nos últimos anos, convergem para a
idéia de que é necessário rever os mecanismos de mercado e reinventar a sociedade, não só no
sentido nacional, mas transnacional (Baquero, 2001; Silva, 2004; Camp, 2001).
Um dos aspectos que tem merecido críticas diz respeito ao processo de globalização, o
qual alterou significativamente a matriz de relações sociais intra e entre países. Duas dimensões
precisam ser consideradas nessa discussão: a primeira, diz respeito ao impacto da globalização
nas estruturas internas de cada país, tornando-as mais ou menos vulneráveis às leis de mercado e,
conseqüentemente, alterando a forma como os governos se posicionam diante das políticas
internacionais dos Estados e, a segunda, refere-se ao declínio do capital social, num momento em
que, paradoxalmente, se exige a valorização da sociedade e do cidadão.
29
Um país que vive esse dilema é o Brasil, o qual, por um lado, apresenta índices
moderados de crescimento econômico e aumento da produtividade industrial, ao mesmo tempo
em que, no campo social, as condições se agravam, as diferenças sociais se aprofundam, o
conflito social cresce e as pessoas se afastam da política.
Para analisar esta questão e, ao mesmo tempo, pensar alternativas propositivas para o
fortalecimento da sociedade e valorização do cidadão no processo de construção democrática,
este trabalho se propõe a examinar por que o processo de globalização tem sido muito mais
danoso para países em desenvolvimento, pontualmente o Brasil, tendo como decorrência desse
processo à incidência negativa na constituição de capital social (capacidade associativa), já
historicamente precário na sociedade brasileira, enquanto que, nos países desenvolvidos, o
conceito de capital social tem sido incorporado como estratégia governamental de promoção de
políticas públicas socialmente orientadas (Jeff, 2003).
Globalização e soberania interna
O conceito de globalização tem sido aplicado indiscriminadamente a diversos campos e
fenômenos. Inicialmente, foi utilizado preponderantemente na área econômica. A despeito de sua
propalada dimensão positiva, no caso da América Latina e, pontualmente o Brasil, os países têm
sido submetidos a flutuações na economia internacional, comprometendo sua capacidade de
investir no social, e, inclusive, sua competitividade internacional. Nesse sentido, o crescimento
experimentado por essas nações, embora superior ao alcançado na década de 80, não tem
conseguido erradicar os problemas sociais endêmicos e comprometedores da construção
democrática.
Quando a democracia coexiste com uma situação de pobreza, é pouco provável o
empoderamento dos cidadãos para participar ativamente da vida política. Nesse sentido, gera-se
um círculo vicioso no qual convivem, sem se aproximar, procedimentos poliárquicos com a
exclusão social.
Tomando como um a priori positivo, os debates sobre a globalização negligenciavam,
na análise, outras dimensões também impactadas por esse processo, entre as quais: a perda da
soberania nacional, o impacto negativo no crescimento da pobreza e o aumento da exclusão
social. Foi somente após a materialização dos efeitos deletérios do processo de globalização que
se passou a examinar suas implicações no campo político, cultural, social e ideológico.
30
Na dimensão política, as mudanças na cultura, decorrentes desse processo, incidem não
só na política internacional, mas no âmbito interno de uma nação em termos da estruturação dos
valores e mecanismos da vida política.
Evidências de pesquisas sobre como a globalização tem incidido na modificação dos
mecanismos convencionais da política nos países em desenvolvimento podem ser sumariadas nas
seguintes tendências: (1) reafirmação da integração cultural via tradição com seus conteúdos
messiânicos (Islamismo); (2) fortalecimento do étnico-territorial religioso; (3) desejo
indiscriminado, das nações dependentes, de alcançar o estilo de vida das sociedades industriais
ocidentais a qualquer custo; (4) fragmentação das sociedades em desenvolvimento; (5) aumento
do individualismo nas relações sociais; (6) perda do senso de pertencimento e (7) erosão das
bases de convivência coletiva.
Essas tendências têm redundado em crise de identidades coletivas, crise de natureza
política e crise no campo da sobrevivência econômica dos setores mais vulneráveis da sociedade.
Fruto desse cenário enfrenta-se, atualmente, a deterioração do contrato social e o surgimento de
instituições para-estatais, que geram instabilidade política-social permanentes. Para tentar
compreender o impacto da globalização em países com níveis diferenciados de desenvolvimento
econômico e político, como o Brasil, é necessário fazer uma retrospectiva na história,
especificamente na origem e evolução do chamado Estado Moderno.
Uma das características do pensamento latino-americano é sua dependência das
estruturas conceituais que, geradas em contextos específicos, não encontram condições análogas
em outros cenários. Este é o caso da conceptualização a respeito da origem e evolução do Estado
na América Latina, onde se verifica que a Ciência Política tem recorrentemente utilizado a
experiência do Estado europeu como matriz explicativa do seu desenvolvimento.
Embora existam esforços acadêmicos no sentido de resgatar as especificidades do
continente latino-americano, continua a prevalecer a idéia que esta região é uma extrapolação
histórica da Europa. Decorrente dessa visão plasmou-se, nos círculos da Ciência Política, o
pressuposto de aceitar como válida a compreensão textual das interpelações européias a respeito
da realidade social latino-americana.
Nesse sentido, parte significativa dos estudos sobre o Estado se orientava no sentido de
interpretar textualmente as idéias externas, baseadas no pressuposto de que o texto é objeto único
e auto-suficiente de explicação da nossa história. Tal prática, na minha opinião, tem produzido
uma mitificação de livros e autores que se consideram e são considerados supra-históricos. A
conseqüência não poderia ser outra senão o desenvolvimento de um conhecimento reativo, que
negligencia as características estruturais e históricas de cenários diferentes. Este é o caso do
31
conceito de globalização, que é visto, apesar de suas deficiências, como algo inevitável e
positivo na geração de políticas de distribuição. Tal argumento é uma apologia da hegemonia do
discurso econômico das nações desenvolvidas. A impossibilidade de aplicar concretamente os
mecanismos gerados por teorias desenvolvidas em outros contextos, se constitui em instrumento
que dificulta o entendimento e a mudança da nossa realidade social, gerando a já conhecida crise
dos paradigmas, revelando nossa falta de ousadia para questionar o conhecimento estabelecido.
No caso da América Latina, a “dependência” de paradigmas externos tem produzido
uma estagnação no conhecimento, bem como uma paralisia da criatividade intelectual no sentido
de propor alternativas para pensar nossa história a partir de construtos autóctones.
Isso não significa negligenciar ou não analisar as condições contextuais de países com
culturas e economias diferentes das nossas, sobre as quais foram elaboradas teorias. Pelo
contrário, essas experiências devem ser utilizadas para identificar as especificidades dos nossos
países; porém, devem ser examinadas como evidência contrafactual. Esta prática, penso eu,
poderia ajudar a identificar as áreas nas quais o cientista político poderia incidir, indo além do
mero diagnóstico e descrição normativa, pois naturalizar acriticamente as teorias internacionais
em nada contribui para vislumbrar estratégias emancipadoras de nossa condição de meros
reprodutores de teorias.
Por exemplo, os estudos europeus sobre o Estado enfatizavam a capacidade de conter
territorialmente os fatores que determinavam sua própria evolução e desenvolvimento. A
expansão da cidadania, fruto do desenvolvimento das classes sociais emergentes, teve influência
decisiva no tipo de instituições políticas democráticas e nas relações entre Estado-sociedade que
se materializaram. Por sua vez, as sociedades latino-americanas não foram capazes de determinar
seus próprios parâmetros territoriais para viabilizar a construção de suas próprias histórias,
gerando, dessa forma, uma vulnerabilidade no que se refere ao impacto da história externa na sua
evolução. Assim, institucionalizou-se a “imitação” como caminho a ser seguido.
Ilustrativa dessa fragilidade foi a aceitação de que a soberania mais adequada para a
América Latina se constituiria em uma representação conceitual da experiência européia, sem
levar em conta que, nessa região, a sociedade e os movimentos sociais não se estruturaram antes
do Estado. Esta diferença é fundamental para entender por que o Estado não é responsivo às
demandas da sociedade. Nesse sentido, o processo de globalização impacta diferentemente os
países onde a sociedade tem mecanismos de defesa da invasão externa do mercado (Europa) e
aqueles que são vulneráveis à força do mercado externo e da simbologia consumista imposta de
fora (América Latina).
32
Igualmente, nos países latino-americanos a vulnerabilidade às leis de mercado precariza
a possibilidade de desenvolver mecanismos que permitam a territorialização de suas próprias
histórias, gerando uma soberania análoga aos países mais desenvolvidos. Se o princípio da
soberania é a capacidade real de um país para produzir e reproduzir sua própria história, a
América Latina está longe de alcançar esse objetivo. A institucionalização das leis de mercado
transnacional tem se mostrado poderosa no que diz respeito à redução das capacidades do Estado
latino-americano para criar e reproduzir identidades e comunidades nacionais com uma base
comum em aspirações e memórias coletivas próprias. Nessas circunstâncias a imitação é
inevitável.
Nesse marco, constata-se que o impacto do processo de globalização, no
desenvolvimento político de países como o Brasil, tem contribuído para a constituição de uma
cultura política fragmentada e com pouco capital social. Na dimensão econômica, os resultados
são desemprego em massa, concentração de renda, políticas públicas socialmente deficientes e
aumento da exclusão social.
Não por acaso, a capacidade para controlar os fatores que determinam sua própria
evolução se reduzem significativamente nos países latino-americanos, cuja história se caracteriza
pela dependência econômica, agravada em relação ao mercado global sobre o qual tem pouca ou
nenhuma influência. Alguns autores se referem a essa situação como a do surgimento de uma
“nova dependência neocolonial” (Casanova, 1998). Tal situação se deve aos efeitos da
mobilidade do capital financeiro e à forma como se reduz à possibilidade, a qualquer país em
desenvolvimento de controlar a economia e o mercado.
Na esfera político-cultural, o impacto da globalização nos nossos países tem tido um
saldo perverso, pois tal processo levou ao colapso do sistema social, gerando rupturas nas
identidades coletivas tradicionais e levando à estruturação de relações sociais cujos parâmetros
estão fora das fronteiras nacionais e locais, culminando no surgimento de um comportamento
político segmentado e individualizado. No caso do Brasil, o resultado tem sido a cristalização de
um Estado com altos índices de soberania doméstica (imune às pressões da sociedade civil e
condicionado por fatores externos), que exclui, dos benefícios do mercado, grande parcela da
população, levando a uma instabilidade política perigosa para o fortalecimento democrático.
Nesse contexto, as relações de confiança macrossistêmica (Estado-sociedade) se deterioram e
filtram essa desconfiança para as microrrelações, comprometendo o processo de construção
democrática.
No caso brasileiro, esse paradoxo está presente no cotidiano das relações sociais em
todos os níveis e cresce o sentimento de fatalismo na sociedade. Há sinalizações de que podemos
33
estar assistindo a uma crise sem precedentes da erosão das relações sociais que poderá redundar
em caminhos para-institucionais na resolução de problemas comprometendo a legitimidade do
próprio regime e gerando, ao mesmo tempo, um contexto de desgoverno.
A (des)legitimação da democracia
Durante o período correspondente ao processo de transição democrática no Brasil
(1980-2000), geraram-se expectativas de que o país conseguiria entrar numa nova era de
prosperidade econômica e social. A experiência com o autoritarismo sinalizava que o resgate da
política partidária e a forma de se fazer política criariam as bases para o estabelecimento de uma
cultura política mais ativa e protagônica, com instituições políticas eficientes e eficazes. Um
elemento estava claro: os brasileiros, mesmo não tendo certeza sobre o futuro, tinha uma
convicção – a rejeição ao modelo autoritário de fazer política. Tal cenário propiciou, conforme
dados de pesquisas de opinião da época, um apoio sólido às instituições responsáveis por colocar
o país na trilha da democracia.
No campo acadêmico, particularmente na Ciência Política, houve uma orientação para
estudos e pesquisas que privilegiavam a dimensão formal ou procedural da democracia. Nesse
sentido, assumem saliência os trabalhos de Dahl (1971); Dye (1974); e Sartori (1980), que
apontavam para a necessidade de institucionalizar o método democrático. Imaginavam, os
autores referidos, que uma conseqüência natural do priviligiamento da dimensão formal da
democracia seria a democratização da sociedade e o surgimento de uma base normativa de apoio
à democracia por parte dos cidadãos.
No entanto, contrariamente a essas expectativas, o que se configurou, em termos de
cultura política, nos últimos anos, foi a ausência de uma revitalização da sociedade no que se
refere ao desenvolvimento de predisposições positivas em relação às instituições políticas e aos
políticos em geral. Em seu lugar, assistimos ao que se poderia denominar de um processo de
deslegitimação da democracia, a qual parece estar erosionando as bases já frágeis da
legitimidade do regime democrático.
Tal situação tem levado parcela significativa de cientistas políticos latino-americanos a
tentar compreender e explicar o (mau) funcionamento dos regimes democráticos, principalmente
quando se incorpora a dimensão social na análise. Nesse sentido, gostaria de abordar o problema
da qualidade da democracia e do desempenho democrático a partir de uma perspectiva diferente
da tradicional, que enfoca unicamente a dimensão institucional.
34
Para alcançar esse objetivo, inicio a discussão tomando como pressuposto uma
democracia ideal, onde existe justiça social, políticas redistributivas e participação plena, via
instituições que são vistas pelos cidadãos como interlocutoras legítimas de suas demandas. Tal
esforço busca estabelecer um ponto de referência comparativa com o funcionamento do atual
sistema democrático no Brasil. Ao mesmo tempo, parece-me que, desta maneira, é possível
identificar caminhos alternativos de tornar a democracia mais orientada para o social.
Esse tipo de análise pode proporcionar uma compreensão mais realista da forma como
as pessoas internalizam normas e crenças em relação à política. A hipótese é de que, no Brasil
contemporâneo, temos uma cultura política híbrida que mistura dimensões formais
procedimentais com aspectos informais, onde as instituições políticas geralmente carecem de
credibilidade. Tal situação ocorre em virtude de uma situação histórica única, na qual estamos
assistindo a um processo de deslegitimação ou desconsolidação democrática. Tal modelo se
viabiliza pelo aumento da violência praticada, tanto por agentes públicos como por agentes
privados, os quais continuam a se beneficiar da impunidade e da parcialidade da lei, apesar do
restabelecimento democrático. A este respeito Mendéz e outros (2004, p. 42) argumentam que “a
maioria das democracias da América Latina estão longe de serem capazes de assegurar liberdade
e justiça para todos, apesar da crescente incorporação de normas legais que sancionam a
discriminação”.
Esse paradoxo encontra sua justificativa no fato de que o processo de redemocratização
no país não tem conseguido eliminar vícios antigos da política. Continuamos a constatar a
existência do clientelismo, do personalismo e, sobretudo, do patrimonialismo, no cotidiano da
política do país. Trata-se de fatores culturais impeditivos à solidificação democrática, tendo em
vista que, para as mudanças efetivamente se estabelecerem, elas devem estimular mudanças
atitudinais. A não alteração nas atitudes e no comportamento dos cidadãos se deve,
freqüentemente, ao fato de que as chamadas reformas ou mudanças são oriundas de contextos
que pouco ou nada têm a ver com as nossas condições históricas, gerando distorções que, via de
regra, se perpetuam, por não termos dispositivos ou mecanismos de fiscalização desses modelos
importados.
Em tal contexto, por exemplo, constata-se que os partidos políticos não conseguem criar
raízes de fidelidade entre os cidadãos. Dados de pesquisa mostram que, na última década, na
média, mais de 60% da população brasileira não vê os partidos como instituições mediadoras
eficientes de seus interesses e demandas perante o Estado. Para agravar a situação, são as
instituições (partidos e governo) que detêm o menor índice de confiança entre os brasileiros na
média 85% de desconfiança nos últimos 16 anos (Latinobarômetro, 2004). Mais de dois terços
35
dos brasileiros, na hora de votar, assim o fazem influenciados pela figura ou pessoa do
candidato, em detrimento do partido. Fortalecer os partidos, nesse cenário é tarefa difícil. De
maneira geral, os candidatos a cargos públicos tentam se eleger negando sua condição de
políticos tradicionais; pelo contrário, criticam a forma ortodoxa de fazer política. No entanto, a
negação da política tradicional nada é mais do que retórica, pois, uma vez eleitos, recorrem ao
tradicional modus operandi. Dessa forma, a frustração da cidadania aumenta a cada eleição,
contribuindo para a deslegitimação da democracia.
A primeira fase de um processo de deslegitimação ocorre quando não há garantia de que
a democracia de procedimentos gere legitimidade do regime. A ausência da credibilidade do
sistema político agrava-se pela ausência da tão propalada eficiência econômica da economia de
mercado, a qual pode gerar aumento de exportações e da produtividade, mas que tem pouca
incidência no resgate dos excluídos (Schmitter, 1991). Segundo Sanchéz Parga (2004, p. 43) “es
en su constituición o en la forma como se constituye que un poder o un régimen de gobierno son
legales o ilegales; pero sólo en su ejercicio se legitiman o se deslegitiman”.
Nessa circunstância, o desenvolvimento econômico, quando ocorre artificialmente, pode
produzir uma melhoria nas condições de vida das pessoas em curto prazo, mas, se não
proporciona simultaneamente emprego e renda, não consegue inverter o padrão de exclusão
social e empobrecimento, pois não produz riqueza interna, capaz de gerar as bases para o não
questionamento de sua legitimidade.
Assim, em países como o Brasil, a questão da legitimidade de um regime político está
muito mais associada e dependente do desempenho da economia do que da dimensão política
propriamente dita. Quando a dimensão material não está resolvida, à economia passa a ser a
síntese da política. Nessas circunstâncias, a discussão sobre procedimentos, embora importante,
acaba constituindo-se numa distração que gera expectativas que se sabe dificilmente serão
satisfeitas. Por exemplo, quando se discute a reforma política (adoção do voto distrital misto;
fidelidade partidária; diminuição do número de partidos políticos e adoção de listas fechadas) as
medidas propostas, do ponto de vista teórico-normativo, são irretocáveis; no entanto, quando se
leva em conta o tipo de cultura política existente no país, a probabilidade dessas medidas serem
eficazes é remota.
Se bem é louvável pensar em mecanismos de fiscalização (accountability) dos gestores
públicos, como tornar esse mecanismo viável em face de dados que mostram que mais de 50%
da população não lembra em quem votou nas últimas eleições? Como fiscalizar se o eleitor
sequer se lembra em quem votou?
36
Outrossim, poder-se-ia perguntar se é válido pedir aos membros de um partido que
abram mão de suas convicções político-ideológicas (construídas pelo partido do qual faziam
parte quando na oposição), em nome da fidelidade partidária? Na perspectiva Weberiana, tanto
Fernando Henrique Cardoso quanto Lula têm apelado para o princípio do que é mais importante:
a ética da responsabilidade ou a ética da convicção. A evidência mostra que, mesmo aceitando a
validade do princípio da responsabilidade, tal comportamento gera uma cidadania perplexa e
nivela a política por baixo, pois os políticos de todos os partidos passam a serem vistos com
desconfiança. Resultado: mais deslegitimação democrática.
Um elemento adicional para avaliar a erosão dos princípios democráticos no Brasil diz
respeito ao argumento que defende a idéia de que, quanto mais dura um regime, maior a
legitimidade de um sistema político, pois gera estabilidade e governabilidade. Cabe perguntar se
o regime colombiano, cuja estabilidade poliárquica dura décadas, pode ser considerado legítimo.
O pressuposto de que pouco importa que se deslegitimem os governos democráticos, desde que o
regime democrático subsista (regras e procedimentos), não encontra amparo na realidade
brasileira e muita menos latino-americana, pois, quando a maioria da população não acredita nas
suas instituições políticas e nos seus governantes, isto afeta a própria legitimidade da
democracia. Tal situação ocorre porque os governos democráticos em países como o Brasil, têmse limitado ou estão sujeitos a aplicar as políticas neoliberais e os programas de ajuste estrutural.
Mais do que governar têm-se limitado a administrar as políticas econômicas do capital financeiro
internacional e da nova ordem global. Assim, o principal fator de deslegitimação da democracia
consiste na implementação de um governo econômico da política, ao subjugar a razão política do
Estado à razão econômica do mercado.
Essa situação tem contribuído decisivamente para um processo de (des) ativação política
dos cidadãos. É o próprio Estado que gera a despolitização da sociedade quando não cumpre o
mínimo necessário para garantir uma qualidade de vida justa. Basta destacar, a esse respeito,
dados da Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar (PNAD), de 2003, que mostram existir,
atualmente, no Brasil, 20 milhões de indigentes (sobrevivem com menos de um dólar por dia) e
40 milhões de pobres (vivem com menos de dois dólares por dia). Acrescente-se a isso um
aumento significativo do senso psicológico de insegurança da população, que não deposita fé nas
instituições responsáveis pela proteção coletiva. Em relação a isso, pode-se afirmar que a
segurança já foi privatizada no Brasil, em virtude da percentagem de guardas particulares
contratados pelas comunidades.
Em suma, contrariamente à idéia de que o Brasil goza de estabilidade política como
nunca antes vivida na sua história, quando se leva em conta os indicadores sociais e de
37
desenvolvimento humano, bem como as condições materiais da população, o quadro não é
promissor. Sem negar o significado e a importância de regras e instituições, critério pelo qual o
Brasil pode ser considerado mais estável que vários países desenvolvidos, isso não tem garantido
a melhoria da qualidade de vida da maioria dos brasileiros. Continua a existir a crescimento da
pobreza e da exclusão social em níveis ética e moralmente inaceitáveis. Em tal situação tem
prevalecido o individualismo e o interesse privado sobre o interesse coletivo. Ao mesmo tempo,
o grau de desconfiança interpessoal e institucional tem declinado perigosamente,
comprometendo a qualidade da democracia no país.
A história tem demonstrado que a democracia prospera quando a possibilidade de
participação para os cidadãos na agenda pública aumenta, não unicamente por meio do sufrágio,
mas fundamentalmente pela ingerência de organizações autônomas à margem das instituições
tradicionais. Isso não implica sugerir a reedição da democracia ateniense, na qual os cidadãos se
envolviam diretamente na política, mas incorporar os grupos informais como legítimos
agregadores do interesse coletivo perante o Estado, sem que isto signifique a substituição das
entidades antigas de mediação política nem a diminuição do significado da democracia formal.
Trata-se sim de tornar as pessoas mais protagônicas na política e não meramente entes passivos
que se limitam a externar suas demandas via pesquisas de opinião pública.
Uma das conseqüências de uma cultura política passiva e fragmentada é a complacência
dos cidadãos num contexto que tem sido denominado de pós-democracia (Crouch, 2004). Em tal
contexto, apesar da existência de procedimentos poliárquicos e, sobretudo das eleições que
podem mudar os governos, o debate eleitoral público se limita a um espetáculo político
comandado pelos meios de comunicação e especialistas em marketing político. A maior parte
das pessoas é passiva e pouco participativa dependendo das sinalizações de persuasão eleitoral.
Os argumentos dos cientistas políticos em prol da democracia formal estão baseados na
idéia de evitar regressões autoritárias, bem como na necessidade de se avançar e consolidar a
democracia na sua dimensão econômica e social, num segundo momento.
Segundo essa linha de pensamento, somente os procedimentos teriam a capacidade de
estruturar uma sociedade disciplinada e governável. Neste sentido, assume saliência o conceito
de governabilidade para justificar a colocação da dimensão substantiva da democracia em
segundo plano. Presentemente, tudo é considerado governabilidade: assegurar maioria
parlamentar aos presidentes; construir consensos e coalizões; fortalecer o sistema eleitoral e de
partidos políticos; assegurar a capacidade financeira do Estado; reordenar as relações do Estado
com os poderes descentralizados; reformar as instituições políticas (Polícia, Judiciário); garantir
os direitos humanos e desenvolver a cidadania. De um conceito de governabilidade que
38
originalmente se limitava a examinar as relações entre Executivo e Legislativo, passou-se a uma
compreensão de forma ampla, mais direcionada para justificar somente a dimensão
procedimental da democracia.
Assim, ao contrário das expectativas geradas pela queda do comunismo de que a
governabilidade global e, por conseqüência a governabilidade dos países estaria assegurada hoje
nos defrontamos com uma situação de crise e de instabilidade. No caso pontual do Brasil, a
governabilidade está longe de estar assegurada, pelo fato de que: (1) a dimensão material básica
não está minimamente resolvida, por persistirem graves problemas de cunho social e econômico
o que deixa o país longe de poder gerar um desenvolvimento sustentável; (2) o processo de
globalização tem produzido uma indiferença dos países mais industrializados em relação às
necessidades dos países em desenvolvimento. Não se têm mostrado dispostos a assumir e, muito
menos compartilhar os custos gerados por uma nova ordem internacional e de mercado que não
se compromete com a redução da pobreza e da exclusão social, com os direitos humanos e muito
menos com a construção de uma democracia substantiva de qualidade; e (3) O Estado é incapaz
de gerar desenvolvimento sustentável, que se traduz na perda de sua credibilidade e de
legitimidade. Essa perda produz uma situação que se aproxima do estado de natureza descrito
por Hobbes (1958), no seu Leviatã, no qual a vida humana, sem um Estado efetivo capaz de
preservar a ordem, é “solitária, pobre, desagradável, brutal e curta” (Binetti e Carrillo, 2004, p.
5); (4) a falta de legitimidade do Estado possibilita as bases para a constituição de um
desgoverno (Parga, 2004) e da institucionalização de ilegalidades amparadas pelo Estado
(medidas provisórias).
Nessas circunstâncias, a democracia brasileira enfrenta um paradoxo. Por um lado,
segundo dados do Latinobarômetro, os cidadãos brasileiros nunca mostraram tanto apego à
democracia na sua dimensão simbólica e emocional; no entanto, não acreditam que as
instituições e representantes materializadas na pós-democracia sejam capazes de enfrentar e,
muito menos, de resolver os problemas sociais e econômicos do país.
Se bem não se pode negar a importância das instituições e da governabilidade para a
construção democrática do Brasil, restringir as saídas desse impasse, única e exclusivamente, à
dimensão formal cria uma situação em que se sai de uma normatividade (crítica aos modelos
formais importados) para cair noutra normatividade (sugerir modelos procedimentais que não
encontram condições análogas às que os inspiraram).
Torna-se imperativo, portanto, avaliar as possibilidades de alternativas na construção
democrática do país, que envolvam ativamente os cidadãos e que se constituam em fontes de
39
fortalecimento da democracia substantiva. Um caminho promissor nessa direção parece estar
sinalizado pelo conceito de capital social.
Capital Social e democracia
Uma das características das novas democracias da terceira onda é a recorrente violação
dos direitos humanos, a concentração excessiva do poder nos executivos e a imagem de
corrupção generalizada transmitida pelo desempenho dos partidos, do judiciário, enfim, do
governo na sua dimensão mais ampla. Tal situação tem produzido a erosão das bases de
legitimidade do regime político, produzindo, ao mesmo tempo, pessoas desconfiadas e céticas
em relação à política. A esse respeito, Boix e Posener (1996) argumentam que não existe maior
ameaça à democracia do que a indiferença e a passividade por parte dos cidadãos. O que está
claro é que a democracia não pode funcionar indefinidamente na base da crise, da informalidade
na solução dos problemas, da polarização política e da substituição do debate público pelos
meios de comunicação. Em algum momento, a democracia exige uma certa normalidade e,
sobretudo, a existência de uma base normativa de apoio. Está evidente, também, que essa base
normativa não surge da imposição de regras e procedimentos, que pouco têm a ver com a
realidade do cotidiano das pessoas.
A experiência do Brasil, nos últimos anos, tem evidenciado que a mera existência de
mais leis e mais regras, se estabelecidas num contexto no qual o Estado não proporciona a infraestrutura para que essas leis funcionem, se esgota na retórica e acaba sendo esvaziadas e
substituídas pela informalidade na solução dos problemas.
Numa pesquisa recente (Folha de São Paulo, 12-08-2004), constatou-se que o Estatuto
do Idoso, o qual garante um tratamento diferenciado às pessoas da terceira idade, não está sendo
seguido. O mais grave foi o resultado que mostrou que cerca de 80% das pessoas da terceira
idade entrevistadas não conheciam esse Estatuto e, daqueles que o conheciam, 70% não sabiam a
quem recorrer em caso de necessidade. Para o caso de violação de direitos humanos, verifica-se
o aumento de instituições na forma de conselhos e grupos de defesa, mas cujo impacto se limita
à divulgação, para um público restrito de sua agenda, sendo que, em muitos casos, é o próprio
Estado que viola esses princípios ao não obedecer aos dispositivos constitucionais de
proporcionar uma qualidade de vida aceitável a todos os cidadãos.
Diagnosticar esses problemas, no entanto, não ajuda a resolvê-los. De maneira geral, a
Ciência Política, no Brasil, tem aderido preponderantemente ao enfoque institucional da política.
40
Nesse sentido, as soluções propostas se orientam na direção de propor mais instituições e mais
leis. Mesmo quando se sugerem formas diretas de ingerência política por parte das pessoas, tal
argumento se assenta no princípio da institucionalização de plebiscitos e referendos patrocinados
pelo Estado. Nesse cenário, é ilusória a idéia de que os cidadãos estão sendo incluídos na gestão
pública. Assim, a participação política é distorcida. Na maioria dos casos, quando há plebiscitos,
as mudanças são previamente desenhadas para que as autoridades públicas consultem a polis
somente quando lhes seja conveniente.
Deste modo, a inclusão cidadã tem que ir além das imposições do Estado e deve
envolver um efetivo empoderamento dos cidadãos para um papel mais protagônico na política.
Na medida em que o empoderamento formal reduz as alternativas a uma manifestação eleitoral
ritualizada a cada quatro anos, a matriz do problema continua: Como gerar legitimidade num
contexto de desigualdade social? Penso que uma resposta viável é a promoção de capital social,
por meio do empoderamento societário dos cidadãos.
O conceito de capital social, que pode ser considerado recente no campo da Ciência
Política, tem gerado debates acirrados e controvérsias sobre seu uso. Disputas essas que vão
desde sua dimensão instrumental até as implicações ideológicas. Existem inumeras publicações
dando conta dessa polêmica (Portes, 1998; Baquero, 2003; 2003A; 2004; Rotberg, 2000); neste
trabalho, entretanto, vou me restringir a examinar a utilidade prática desse conceito, a partir da
contribuição que pode dar para a constituição de uma cultura política mais participativa e
democrática.
A chave subjacente ao capital social consiste em responder a perguntas que
aparentemente são tautológicas (verdade por definição) e que envolvem as dimensões de
confiança, solidariedade e reciprocidade. Por exemplo, a solidez de um sistema democrático
depende ou não do grau de confiança que os cidadãos depositam nas suas instituições e
representantes políticos? É a solidariedade um elemento fundamental para gerar uma cultura
política mais democrática? A reciprocidade ajuda na resolução de problemas de natureza
coletiva? A resposta a essas indagações exige uma outra postura sobre a concepção democrática,
a qual implica uma postura propositiva por parte de quem a defende. Assim, a resposta é
afirmativa, mas, se não se acrescenta uma dimensão instrumental a essas perguntas, se corre o
risco de cair numa outra normatividade. Para sair desse dilema, torna-se imperativo identificar os
mecanismos de empoderamento e constituição de capital social.
Um dos autores, que proporciona instrumentos para o processo de empoderamento é
Paulo Freire (1980, 1982), e seu método de construção de uma consciência crítica. Na
diferenciação que Freire faz entre consciência transitiva ingênua e consciência crítica o que falta,
41
na primeira dimensão, é o caráter protagônico das pessoas. Analisada do ponto de vista da teoria
da cultura política, no Brasil teríamos uma cultura política tipo sujeito (Almond e Verba, 1965),
onde as pessoas têm conhecimento das deficiências institucionais, do caráter predatório das
políticas públicas que não são inclusivas e do uso da corrupção na máquina pública. No entanto,
tal conhecimento não é condutivo a uma mudança de atitudes e, muito menos, de comportamento
político crítico, pois, com o decorrer do tempo e a naturalização dessas práticas no imaginário
coletivo, as pessoas internalizam a idéia de que não adianta participar ou se envolver na política.
Institucionaliza-se, dessa forma, uma resignação (de que nada pode ser feito para alterar a
situação) com hostilidade (rejeição da política formal) e, em alguns casos, o desenvolvimento da
antipolítica (Pires, 2003).
Esse comportamento de massa contribui para a crença de que somente as instituições
impostas de cima para baixo podem resolver os problemas. Assim, os procedimentos agem como
elementos que paralisam a participação política dos cidadãos. Forma-se, em decorrência, um
círculo vicioso, no qual as pessoas acreditam que somente quem está no poder tem condições de
resolver os problemas, por meio da implantação de mais leis e mais procedimentos. O resultado é
o aprofundamento do personalismo na política, em detrimento do reconhecimento de que, para
alterar as coisas na política, é necessário participar, além do mero ato de votar. Paulo Freire
denomina essa situação como a institucionalização do pensamento mágico. Ou seja, transfere-se
toda a responsabilidade pelo futuro do país a um único partido ou pessoa.
Sair dessa situação, portanto, exige, na concepção Freiriana, assumir uma postura de
incidência na realidade com vistas a empoderar os cidadãos para uma maior ingerência na
política. Do ponto de vista da Ciência Política, isso implica no aprofundamento da comunidade
cívica. Nessa direção, o modelo de Putnam, apesar de todas as críticas a ele feitas, é essencial
para compreender o papel do capital social e as características da organização social e da cultura
para melhorar a eficiência da sociedade, por meio da facilitação das ações coordenadas. O
pressuposto fundamental da teoria de capital social é de que, tanto no sentido econômico quanto
político, a cooperação voluntária é imperativa para alcançar objetivos comuns.
Essa cooperação é viabilizada pela confiança interpessoal, pela reciprocidade entre os
cidadãos, pelas redes de envolvimento cívico e pela predisposição das pessoas em se envolver
em atividades coletivas. Não se trata de sociabilidade e sim de predisposições atitudinais por
parte das pessoas, no sentido de estarem estimuladas a se envolver em ações que redundem na
obtenção de um bem coletivo. É um agir coletivo e consciente promovido pelo desejo da
melhoria da qualidade de vida de uma comunidade.
42
Assim, as questões colocadas no início desta secção remetem a uma reflexão de
incidência e não meramente de diagnóstico. A análise de alguns dados em relação ao Brasil
ilustra este ponto. Nas pesquisas de âmbito nacional, de natureza longitudinal e que contêm
indicadores de confiança recíproca e confiança institucional, os resultados mostram o baixo grau
de credibilidade das pessoas e das instituições. Por exemplo, para os anos de 1998, 2000 e 2002,
os dados para o Brasil, produzidos pelo Latinobarômetro, mostram uma média de confiança
interpessoal de 7,2%, e de uma desconfiança institucional, na média, para os mesmos anos, de
83%, a mais alta da América Latina. Dados esses corroborados por pesquisa realizada pelo
ESEB em 2003, cuja média está em torno de 85%.
Tal desconfiança se reflete nos baixos índices de participação política e social dos
brasileiros, constatados nas referidas pesquisas. Em levantamento divulgado pela Rede
Interamericana para a Democracia sobre índices de participação em 2004, foi constatados que a
maior parte da população brasileira não participa nem política nem socialmente (Tabela 1).
Tabela 1
Participação política e social no Brasil nos últimos 12 meses (%)
Participação política
Atividades de cunho político
Organizações comunitárias ou de bairro
(%)
3
11
Organizações - sindicatos
6
Atividades de apoio à educação
10
Atividades artísticas e culturais
5
Atividades de gestão pública
3
Manifestações públicas
7
Participação social em
atividades cívicas (Ongs);
5
Atividades ou organizações religiosas
20
Clubes ou atividades esportivas
7
Atividades filantrópicas ou voluntariado
19
Média de participação política e social
9
Fonte: Rede Interamericana para a Democracia, 2004.
43
A média de participação no Brasil (9%), em plena vigência da democracia
representativa, é a mais baixa no conjunto dos países estudados (Chile 15%; República
Dominicana, 16%; Argentina, 11%; Peru, 13%, México e Costa Rica, 11%). Os dados,
outrossim, sinalizam para a existência de uma cultura política desmobilizada e pouco
participativa. Tal resultado, na minha opinião, se explica tendo em vista que o participar é
decodificado pelos cidadãos como algo que implica ajudar alguém ou os outros (62%). Quando
essa ajuda não ocorre, é inevitável que a desconfiança e falta de interesse na política se
institucionalizem. Quando indagados sobre por que as pessoas não participam nesse tipo de
atividades, as respostas foram as seguintes:
Tabela 2
Por quê acredita que as pessoas não participam nessas atividades? (%)
Falta de interesse/desmotivação/egoísmo
37
Falta de tempo
41
Desconfiança/pouca credibilidade
15
Desinformação/desconhecimento
26
Medo/não se envolver em problemas
4
Não tem dinheiro
6
Fonte: RIPD, 2004.
Os dados das tabelas 1 e 2 sintetizam a ausência daquilo que Putnam denomina de
estoques da capital social. Ou seja, não se constatam predisposições, por parte dos brasileiros, de
participar em atividades políticas ou sociais, confirmando a constituição de uma cultura política
híbrida, caracterizada pela dimensão cognitiva: as pessoas sabem o que acontece na esfera
política, mas não se sentem estimuladas a participar. Tal cenário conduz ao desafio de como
motivar os cidadãos a participar, por meio de estratégias de empoderamento cívico. Algumas
formas de empoderamento apontadas têm sido:
1) Privilegiar a dimensão coletiva e não individual;
2) Estabelecer a reciprocidade mútua na busca de objetivos comuns;
3) Potencializar a formação de associações;
4) Promover o desenvolvimento de valores e normas de natureza coletiva para gerar
um convívio harmônico e cooperativo;
5) Promover a participação cidadã.
44
Existem vários exemplos em que o capital social tem sido induzido pelo desejo de
implantar uma melhor qualidade de vida da comunidade. Os exemplos mais conhecidos são a
construção da Villa El Salvador, no Peru, as feiras de alimentação popular na Venezuela e o uso
do Orçamento Participativo em centenas de municípios da América Latina (Kliksberg, 2000).
Uma das experiências mais notáveis foi à criação do Banco Grameen, em Bangladesch (Yunus,
2000). No caso brasileiro, cabe destacar a experiência de constituição de capital social em
escolas de samba no Rio de Janeiro (Costa, 2003).
No nosso caso, foi realizada uma pesquisa com adolescentes entre 14 e 20 anos em
escolas públicas e privadas na cidade de Porto Alegre. Na primeira fase, entre os meses de abril e
junho, aplicou-se um questionário para avaliar os estoques existentes de capital social (dados
disponíveis no NUPESAL/UFRGS, 2003). Numa segunda fase, no primeiro semestre de 2004,
foram selecionadas quatro turmas (duas em escola pública e duas em escola particular, com 8
sujeitos em cada grupo), quando uma turma foi submetida a discussões estruturadas sobre como
motivar os membros de suas comunidades (bairros) a se envolver nos assuntos comunitários
(associações de defesa do consumidor, associações esportivas, atividades de interesse coletivo,
mutirões, movimentos ecológicos e de defesa do meio ambiente) e a organizar eventos com o
objetivo de se conhecer melhor dentro da comunidade. No outro grupo, as discussões foram
genéricas e não estruturadas sobre a importância de trabalhar em equipe. Após um mês de
trabalho (em função de disponibilidade de tempo, após as aulas), recomendou-se que, se
possível, aplicassem as técnicas de ação coletiva aprendidas nas suas comunidades e os grupos se
reuniriam três meses depois para avaliar os resultados.
Embora os dados neste estágio da pesquisa ainda sejam preliminares, algumas
constatações podem ser feitas. A primeira é de que, nos grupos em que se trabalhou
sistematicamente a idéia de promoção de ações coletivas, tanto na escola privada quanto na
escola pública, os resultados foram semelhantes (aproximadamente 80% dos jovens tentaram e,
em alguns casos com sucesso, promover ações com a participação de parte da comunidade). Já
no caso dos grupos com os quais não se trabalhou de forma sistemática, as estratégias de
construção de capital social, nenhum dos estudantes tentou promover algum tipo de associação
cooperativa entre os moradores de seus bairros.
Obviamente que esses dados não podem ser considerados conclusivos, mas sim
sinalizadores de que, quando as pessoas tomam consciência da importância de trabalhar em
conjunto, a ação coletiva é viável. Nesse sentido, empoderar através de redes de confiança
fomenta o capital social entre as pessoas e pode traduzir-se na obtenção de bens tangíveis. Não é,
45
portanto, um conceito meramente normativo, mas tem uma utilidade prática para o
desenvolvimento da qualidade de vida e da cidadania.
Conclusão
A despeito da existência de fatores que não possibilitam o estabelecimento de uma
democracia social, grande parte da produção acadêmica na América Latina continua a defender a
democracia minimalista como sendo suficiente para garantir a estabilidade política. Em nome
dessa estabilidade que, de fato, beneficia grandes corporações e grupos poderosos nacionais e
internacionais em detrimento da população, se justificam ajustes econômicos que continuam a
promover a exclusão social e o crescimento da pobreza.
É necessário, por isso, pensar em formas alternativas de revitalização da comunidade
política mais ampla, mediante mecanismos de empoderamento eficazes que levem a um
envolvimento conseqüente na política. Para alcançar tal objetivo, faz-se necessário pensar a
democracia em termos sociais, o que implica enfrentar desafios de confronto civilizado, mas
diferenciado com as instituições internacionais, tais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário
Internacional. Se isso não for feito, todos os avanços sociais serão paliativos e estarão longe de
constituir em mecanismos de emancipação democrática. Internamente, é necessário estabelecer
mecanismos de fiscalização societários, ou seja, que partam da base da cidadania e não impostos
pelo regime que está no poder. Tornou-se moda, nos últimos anos, a criação de conselhos de
fiscalização em todas as instâncias, mas que carecem de eficácia por serem, seus integrantes,
designados por quem está no poder, limitando sua autonomia de decisão. Na verdade, agem
como fachadas de legitimidade das ações em que a grande maioria da população fica excluída
das políticas sociais.
Da análise feita até aqui, fica evidenciado que uma sociedade de massas, que preserva
condicionantes histórico-estruturais deletérios para a construção democrática, pode, no máximo,
aspirar a sustentar uma democracia inercial, na qual inexistem instituições sólidas. Isso porque a
maioria dos cidadãos não está qualificada para agir num sentido protagônico na política, pois o
comportamento político se caracteriza por sua dimensão emocional e subjetiva, os partidos
políticos não são vistos como entidades realmente representativas das aspirações da população e
os representantes eleitos não são fiscalizados e, por isso, geralmente não prestam contas dos seus
atos. Nesse tipo de democracia predominam traços clientelísticos, personalistas e
patrimonialistas. Infelizmente, esse parece ser o caso do Brasil e, da América Latina, onde
46
mudam os governantes e os regimes, mas os problemas continuam os mesmos e até se agravam.
É por isso que, diante de uma situação de crise aguda aparece o fantasma de retrocessos
institucionais. Para combater e tentar resolver esse dilema, o conceito de capital social parece ser
uma ferramenta útil na prática da promoção da participação popular.
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INSOLIDARISMO E CORDIALIDADE: UMA ANÁLISE DAS MAZELAS POLÍTICAS
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Dejalma Cremonese
Professor do Departamento de Ciências Sociais da Unijuí RS, doutorando em Ciência Política UFRGS
Email: [email protected]
Introdução
Neste artigo, discorre-se sobre algumas categorias explicativas dos “males de origens”
da sociedade brasileira e a possibilidade da construção do capital social. Para isso, é preciso
retroceder, na história política e social do Brasil, para avaliar o caráter inusitado da emancipação
política do Brasil (independência) e da Proclamação da República. No entanto, é nas décadas de
1930 e 40 do século passado que se dá, no Brasil, a transição da sociedade tradicional e rural
para a sociedade moderna e urbana, e que aparecem, mais nitidamente, as práticas do populismo,
personalismo (messianismo), clientelismo, patrimonialismo e coronelismo na política. Essas
categorias foram discutidas com profundidade pelos cientistas sociais da época e servem, ainda
hoje, para a compreensão de tais práticas. Frente às mazelas políticas do Brasil, consideradas
empecilhos para o processo de modernização do país, pergunta-se: há espaço para a criação do
capital social em nossa realidade?
Para discorrer sobre esses tópicos, o artigo está estruturado em três partes específicas.
Na primeira, explicita-se uma visão geral dos “vícios de origens” do Brasil. Na segunda,
pretende-se tratar, exclusivamente, da questão do insolidarismo e da cordialidade. Na terceira e
última parte, procura-se responder se há condições estruturais para a criação e o
49
desenvolvimento do capital social na sociedade brasileira, possibilitando, assim, a consolidação e
o avanço do processo democrático no país.1
“Os males de origens”
Desde o período colonial, o Brasil tornou-se totalmente dependente da metrópole, tanto
no aspecto econômico quanto no político. A relação de dependência com Portugal não permitiu
formar uma identidade própria, edificar uma nação. A primeira manifestação de nossa
nacionalidade ocorreu, segundo Carvalho (2000), apenas em 1865, na Guerra do Paraguai. A luta
contra o inimigo externo, a formação de uma liderança política (chefe inspirador), o culto ao
símbolo nacional (a Bandeira), a união dos voluntários de todo o Brasil possibilitaram o advento
de um sentimento comum: o orgulho nacional e a criação da primeira idéia de identidade
nacional: “não vejo consciência nacional no Brasil antes da Guerra do Paraguai” (p. 11).
Os principais fatos políticos do Brasil ocorreram para atender interesses individuais, ou
de pequenos grupos hegemônicos. Assim foi na Independência, como nos diz Costa (1981): “as
coisas vão simplesmente acontecendo: no jogo das circunstâncias e das vontades individuais, no
entrechoque de interesses pessoais, de paixões mesquinhas e de sonhos de liberdade, faz-se a
independência do país” (p. 65).
Da mesma forma, a Proclamação da República brasileira apresentou características sui
generis ao ser instituída, pois, o povo, por sua vez, não só não participou, como foi tomado de
surpresa com a proclamação do novo regime. A frase de Aristides Lobo é bastante elucidativa,
neste sentido: “O povo assistiu aquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que
significava. Muitos acreditavam sinceramente estar vendo uma parada militar”.2 A República
frustrou, igualmente, boa parte da intelectualidade da época, como Alberto Torres, Francisco
Campos, Oliveira Vianna, Azevedo Amaral, que empreenderam esforços para o seu bom
desempenho, mas acabaram desiludidos com a mesma.
O processo eleitoral (participação política) da população durante o período imperial e
republicano foi insignificante. De 1822 até 1881 votavam apenas 13% da população livre. Em
1881 privou-se o analfabeto de votar. De 1881 até 1930 - fim da Primeira República -, os
1
Para a fundamentação teórica do artigo, recorreu-se a Carvalho (1996, 1997, 2000); Costa (1981); DaMatta (2000);
Ribeiro (2000); Prado Júnior (1993, 1994) e Leal (1975) para tratar dos “vícios” de origens; sobre insolidarismo e
cordialidade, Oliveira Vianna (1955) e Sérgio Buarque de Holanda (2000), respectivamente; sobre a teorização do
capital social, Putnam (2000) e Evans (1996).
2
Lobo (apud Carone, 1969, p. 289).
50
votantes não passaram de 5,6% da população. Foram cinqüenta anos de governo, imperial e
republicano, sem povo.3
Outro aspecto da vida política brasileira de outrora, mas também ainda presente nos
nossos dias, diz respeito ao populismo e ao personalismo das nossas lideranças.4 O populismo,
segundo DaMatta (2000), está vivo, não apenas no Brasil, assim como em toda a América
Latina. As lideranças políticas carregam consigo, além do personalismo, uma boa dose do
elemento messiânico,5 que tem suas longínquas raízes históricas no sebastianismo português.
Vivemos ainda esperando que algum “herói sagrado”, ou um “salvador da pátria” desça do
Olimpo e resolva os problemas que estamos enfrentando.6 Dependemos sempre de um líder: “Já
que somos incapazes de construir nossa grandeza, quem sabe se um novo Dom Sebastião não o
pode fazer por nós” (Carvalho, 2000, p. 24). Este autor insiste na herança lusitana, que achou
terreno fértil por estas paragens para crescer e proliferar: o exemplo mais evidente foi, e continua
sendo, a promiscuidade entre o público e o privado; assim, corrupção, clientelismo e
patrimonialismo parecem se perpetuar na terra brasilis.7
A análise de Caio Prado Júnior evidencia, da mesma forma, alguns vícios da política
brasileira, como o clientelismo e a dependência da metrópole.8
No período colonial, cerca de 60% da população ainda vivia no litoral, mas, aos
poucos, houve uma migração para o interior (ciclo da mineração); esta, porém, com a decadência
desse modelo econômico, volta-se para o litoral, novamente. A economia no período colonial era
baseada na monocultura junto com o trabalho escravo. A colônia apenas devia fornecer matériaprima à metrópole, deixando a maioria da população brasileira com os parcos excedentes.
Quanto à organização social do Brasil, era constituída de escravos (totalmente excluídos) e
mulatos (com possibilidade de ascender socialmente através da Igreja). Caio Prado Júnior buscou
3 Quanto à participação política dos brasileiros no processo eleitoral, tem-se os seguintes dados: em 1950 – 16%;
1960 – 18%; 1970 – 24%; 1986 – 47%; 1989 - 49%; 1998 – 51% (Carvalho, 2000, p.17).
4 O tema do personalismo também é discutido pelo antropólogo DaMatta (2000, p. 94): “O Brasil, até hoje, combina
clientelismo com liberalismo e personalismo com lealdade ideológica”.
5
Entende-se por messianismo a esperança da salvação coletiva posta nas mãos dos indivíduos vistos como dotados
de dons especiais.
6 Como bem afirma Renato Janine Ribeiro (2000, p. 66): as pessoas carregam a “expectativa messiânica no
surgimento de algum pai da pátria que as livrará do desamparo”. É preciso parar de esperar por um milagre
sobrenatural: “a questão brasileira é a necessidade da laicização” (p. 80). DaMatta, igualmente, trata da esperança
messiânica da sociedade brasileira: “espera-se um salvador da pátria” (p. 104).
7 “O Estado português delegou poderes da metrópole, preferiram manter a vinculação patrimonial a rebelar-se [... ].
O patrimonialismo também não sofreu contestação no momento da independência, graças à natureza do processo de
transição” (Carvalho, In: Cordeiro e Couto, 2000, p. 24).
8
Caio Prado Júnior (1907-1990), na obra Formação do Brasil contemporâneo (1994), tratou do povoamento do
Brasil, do Tratado de Tordesilhas e do Tratado de Madri. No Norte, segundo o autor, prevaleceu a cultura do cacau e
da Companhia de Jesus; em São Paulo, o bandeirantismo. Tratou ainda da aliança entre Espanha e Portugal.
51
explicitar, igualmente, a base material do Brasil, evidenciando os pecados capitais do país:
latifúndio, monocultura, afã fiscal da metrópole, trabalho braçal/desqualificação e escravidão.
Na Evolução política do Brasil (1993), Prado Júnior tratou da colônia e do processo de
ocupação da terra através das capitanias: para ele, “um ensaio de feudalismo que não deu certo”.
No Império, estimulou-se a agricultura e a pecuária, mas acabou prevalecendo o clientelismo
político através da doação de sesmarias. O poder político concentrou-se nas mãos dos
proprietários. A vinda da família real para o Brasil, em 1808, não passou de uma manobra
política (com abertura dos portos) beneficiando os ingleses e franceses. Alguns anos mais tarde
as condições se mostravam favoráveis para a independência do Brasil, o que veio a ocorrer em 7
de setembro de 1822; porém, à revelia do povo.9
José Murilo de Carvalho, no livro A construção da ordem (1996), trata, igualmente,
entre outras questões, do processo de colonização, do Brasil Imperial e da elite política. O autor
apresenta, logo na introdução de sua obra, a diferença entre a evolução das colônias espanhola e
portuguesa na América. Para ele, a diferença básica é que os territórios espanhóis se
fragmentaram politicamente, tornando-se estados independentes, ao passo que os portugueses
concentraram-se. Enquanto os espanhóis passaram por períodos anárquicos (instabilidade e
rebeliões), os portugueses não recorreram a essas formas violentas. O domínio político português
sobre a colônia foi intenso, sendo que os capitães-gerais eram nomeados diretamente pela Coroa
e a ela respondiam (p. 12).
Deste modo, o Brasil herdou, na construção de seu Estado, a burocratização do Estado
moderno, conforme fora descrito por Max Weber: “A ordem legal, a burocracia, a jurisdição
compulsória sobre um território e a monopolização do uso legítimo da força são características
essenciais do Estado moderno” (p. 23). O Estado moderno utilizou quatro mecanismos: a
burocratização, o monopólio da força, a criação de legitimidade e a homogeneização da
população dos súditos (p. 23).
A elite brasileira da época era portadora do conhecimento, enquanto, o analfabetismo
imperava nas classes mais pobres: “quase toda a elite possuía estudos superiores, o que acontecia
com pouca gente fora dela: a elite era uma ilha de letrados num mar de analfabetos” (p. 55).
Imperava entre os letrados, principalmente, a formação jurídica feita em Portugal: Coimbra e,
9
Caio Prado Júnior procurou entender o país sob o enfoque da interpretação marxista, o materialismo histórico
serviu de fundamento teórico para explicar o Brasil. Já Sérgio Buarque de Holanda faz sua análise em Raízes do
Brasil partindo da Economia e da sociedade, de Weber. Celso Furtado, Nestor Duarte e Raymundo Faoro herdam a
vertente do patrimonialismo de Weber. Para Faoro, a formação do Estado Português está na origem do Brasil, que é,
essencialmente, estadocêntrico, centralizado no poder da autoridade, é dela a distribuição do mesmo.
52
depois, em Lisboa. Enquanto Portugal proibiu o Brasil de abrir universidades em seu território, a
Espanha permitiu, desde o início, a criação de universidades em suas colônias (p. 16).
Tal contraste pode ser percebido, entre Espanha e Portugal, no que se refere ao número
de matrículas: “Calculou-se que até o final do período colonial umas 150.000 pessoas se tinham
formado nas universidades da América Espanhola. Só a Universidade do México formou 39.367
estudantes até a independência. Em vivo contraste, apenas 1.242 estudantes brasileiros
matricularam-se em Coimbra entre 1772 e 1872”, quadro esse que será revertido apenas após a
chegada da família real ao Brasil, em 1808 (p. 62). No final do século XVIII, somente 16,85% da
população brasileira entre 6 e 15 anos freqüentava a escola (p. 70). É notável a formação de
bacharéis em Direito desde o início de nossa história. Somente em 1879 houve uma reforma que
o dividiu em Ciências Jurídicas e Ciências Sociais: “A reforma de 1879 dividiu o curso em
Ciências Jurídicas e Ciências Sociais, as primeiras para formar magistrados e advogados, as
segundas diplomatas, administradores e políticos” (p. 76).
É importante mencionar que somente os advogados e médicos receberam o título de
doutores, “que podia referir-se tanto a médico como a doutores em direito” (p. 90). Os cargos
políticos ocupados na esfera estatal pertenciam à elite, principalmente os proprietários rurais.
Essa mesma elite circulava pelo país e por postos no Judiciário, Legislativo e Executivo,
buscando assegurar vantagens pessoais. A burocracia foi a vocação da elite imperial brasileira (p.
129).
Sobre os partidos políticos imperiais, sua composição e ideologia, Carvalho (1996)
apresenta dois partidos, o Conservador e o Liberal. O primeiro defendia os interesses da
burguesia reacionária proveniente dessa mesma classe, dos donos das terras e senhores de
escravos (domínio agrário); enquanto o segundo defendia os interesses da burguesia progressista,
representada pelo comerciantes (domínio urbano) (p. 182). Diz Carvalho que, até 1837, não se
pode falar em partido político no Brasil, existindo apenas a maçonaria.
A questão do coronelismo, outro característica da política brasileira, foi tratada por
Victor Nunes Leal, na obra Coronelismo, enxada e voto, publicado em 1948. Na concepção de
Leal, o coronelismo é visto como um sistema político, uma complexa rede de relações que vai
desde o coronel até o presidente da República, envolvendo compromissos recíprocos. Leal se
expressa da seguinte forma: “o que procurei examinar foi, sobretudo, o sistema. O coronel entrou
na análise por ser parte do sistema, mas o que mais me preocupava era o sistema, a estrutura e a
maneira pelas quais as relações de poder se desenvolviam na Primeira República, a partir do
município” (Leal, apud Carvalho, 1997). O autor tratou da relação entre o poder local e o poder
nacional na qual o coronelismo estava inserido.
53
O coronelismo surge dentro de um contexto histórico específico, inserido na conjuntura
política e econômica do Brasil no período da República Velha (1889-1930). No âmbito político
cria-se o federalismo, que fora implantado em substituição ao centralismo imperial. A partir do
federalismo, criou-se um novo ator político com amplos poderes, o governador de estado. No
âmbito econômico, segundo Leal, vivia-se a decadência econômica dos fazendeiros que também
é comentada por Carvalho: “esta decadência acarretava enfraquecimento do poder político dos
coronéis em face de seus dependentes e rivais. A manutenção desse poder passava, então, a
exigir a presença do Estado, que expandia sua influência na proporção em que diminuía a dos
donos de terra. O coronelismo era fruto de alteração na relação de forças entre os proprietários
rurais e o governo e significava o fortalecimento do poder do Estado antes que o predomínio do
coronel”.10
Fica explícito, a partir das considerações de Leal, que o coronelismo foi um sistema
político nacional baseado na “troca de favores” o governo e os detentores do poder local. As
relações entre o poder local (coronéis) e o governo como um caminho de duas vias, ou seja, um
necessitava do outro para sobreviver: “O governo estadual garantia, para baixo, o poder do
coronel sobre seus dependentes e seus rivais, sobretudo cedendo-lhe o controle dos cargos
públicos, desde o delegado de polícia até a professora primária. O coronel hipoteca seu apoio ao
governo, sobretudo na forma de votos. Para cima, os governadores dão seu apoio ao presidente
da República em troca do reconhecimento deste de seu domínio no estado. O coronelismo é a
fase de processo mais longo de relacionamento entre os fazendeiros e o governo” (Leal apud
Carvalho, 1997).
Leal (1975) seguiu a definição de Basílio de Magalhães para explicar a origem do
conceito de coronelismo no Brasil: “o tratamento de um ‘coronel’ começou desde logo a ser
dado pelos sertanejos a todo e qualquer chefe político, a todo e qualquer potentado... até hoje
recebem popularmente o tratamento de ‘coronéis’ os que têm em mãos o bastão de comando da
política edilícia ou os chefes de partidos de maior influência na comuna, isto é, os mandões dos
corrilhos de campanário” (p. 20-21). Leal acredita que o mandonismo, o filhotismo, o
falseamento do voto e a desorganização dos serviços públicos locais sejam características
próprias do coronelismo. Junto ao coronel está ligado o voto de cabresto e a capangagem (p. 23).
Os trabalhadores rurais, desprovidos de qualquer estrutura que lhes possibilitasse
mudança de vida, eram dependentes do coronel: “completamente analfabeto, ou quase, sem
assistência médica, não lendo jornais, nem revistas, nas quais se limita a ver as figuras, o
10
O artigo de Carvalho (1997) também encontra-se disponível em http://www.scielo.br/scielo. Acesso em 10 de
março de 2005.
54
trabalhador rural, a não ser em casos esporádicos, tem o patrão na conta de benfeitor. E é dele, na
verdade, que recebe os únicos favores que sua obscura existência conhece” (p. 25). A troca de
favores era a essência do compromisso coronelista, que consistia em apoiar os candidatos do
oficialismo nas eleições estaduais e federais: “enquanto que, da parte da situação estadual, vinha
carta branca ao chefe local governista (de preferência o líder da facção local majoritária) em
todos os assuntos relativos ao município, inclusive na nomeação de funcionários estaduais do
lugar” (p. 50).
O insolidarismo da sociedade brasileira
Oliveira Vianna, na obra Instituições políticas brasileiras (1955),11 considerava o
insolidarismo como o traço mais característico dos indivíduos e dos grupos na sociedade
brasileira, razão pela qual defendia o papel coativo e educador do Estado na formação do que ele
chamava de um comportamento culturológico, capaz de sobrepor-se ao espírito insolidarista.12
Contudo, é na segunda parte dessa obra intitulada Morfologia do Estado, que Vianna discutirá o
significado sociológico do anti-urbanismo colonial (gênese do espírito insolidarista).
Para o autor, o espírito insolidarista tem sua origem nos primórdios da “colonização”.13
Dessa maneira, criou-se no Brasil o homo colonialis, tendo como características fortes traços de
individualismo e desconfiança: um amante da solidão, do deserto, rústico e anti-urbano... O
bandeirante paulista é citado como um exemplo clássico: “Os paulistas são de ânimos ferozes,
porque a criação que quase todos eles tem lhes fez um hábito de ferocidade; são de gênio áspero
e desconfiado, pronto a internar-se pelos matos” (p. 145 - 146).
Na questão do trabalho, o homem brasileiro, comparado com outros homens do mundo,
caracterizou-se pelo particularismo e individualismo: “O trabalho agrícola, em nosso país – ao
contrário do que aconteceu no mundo europeu – sempre foi essencialmente particularista e
individualista: centrifugava o homem e o impelia para o isolamento e para o sertão” (p. 151).
Não houve a formação da solidariedade social, hábitos de cooperação e de colaboração, nem
11 Vianna escreveu, ainda, Problemas de direito corporativo (1939), Problemas de direito sindical (1943) e Direito
de trabalho e democracia social (1951).
12 Para Vianna, o Estado é o guardião da sociedade, é também sua força vital: “Um poderoso centro de fixação e
coordenação capaz de lhe dar direção e vontade” (apud Lamounier, 1990, p. 371).
13 Vianna discute longamente as doações das sesmarias em que todos os membros da família ganhavam a terra, até
mesmo os filhos que ainda estavam por nascer: “Famílias há inteiras – dizia o governador Paulo da Gama, da
Capitania do RS – que estão possuindo 15 a 18 léguas de terra. Os pais conseguem 3 léguas e os filhos, cada um
outro tanto. Do mesmo modo se tem dado sesmarias de 3 léguas a irmãos e irmãs, e cada um por cabeça, cedendo
depois todos em benefício de um só” (p. 140).
55
mesmo espírito público: “É claro que os laços de solidariedade social, os hábitos de cooperação e
colaboração destas famílias na obra do bem público local não podiam formar-se. Com mais
razão, não precisavam elas associar-se para a vida pública, para organizarem – como as
‘comunidades agrárias’ da Espanha, por exemplo – os órgãos da administração da ‘região’ do
‘município’, da ‘freguesia’, do ‘distrito’. Em conseqüência: o espírito público não podia
encontrar leira, nem húmus para germinar e florescer como tradições e cultura” (p. 154).
Segundo Vianna, o que houve, na verdade, foi uma solidariedade social negativa: “No
ponto de vista culturalístico, o nosso povo é, por isto, sob o aspecto de solidariedade social,
absolutamente negativo. Os pequenos traços de solidarismo local, que nele encontramos, são
tenuíssimos, sem nenhuma significação geral: práticas de ‘mutirão’. ‘rodeio’ – e quase nada
mais. Isto no que toca com as relações sociais privadas. Politicamente – isto é, no que toca com
as relações dos moradores com os poderes públicos locais – nada se registra também de
assinalável” (p. 153).
Em relação a outros povos latino-americanos, o brasileiro é, essencialmente,
individualista, não necessita da ajuda comunitária e vive de forma isolada: “O brasileiro é
fundamentalmente individualista, mais mesmo, muito mais do que os outros povos latinoamericanos. Estes ainda tiveram, no início, uma certa educação comunitária de trabalho e de
economia. É o que nos deixam ver as formas do coletivismo agrário praticados durante o seu
período colonial e que, ainda hoje, de certo modo, subsistem ali – como se observa nos ejidos do
México ou nos ayllus bolivianos. Nós não. No Brasil, só o indivíduo vale e, o que é pior, vale
sem precisar da sociedade – da comunidade (...). Estude-se a história da nossa formação social e
econômica e ver-se-á como tudo concorre para dispersar o homem, isolar o homem, desenvolver,
no homem, o indivíduo. O homem socializado, o homem solidarista, o homem dependente do
grupo ou colaborando com o grupo não teve aqui clima para surgir, nem temperatura para”
desenvolver-se” (p. 155).
Também na formação social e econômica do brasileiro é o extremado individualismo
familiar que prevalece. Para Vianna, esse individualismo e ausência de espírito público tem raiz
cultural: “É claro de que tudo isto outra cousa não se poderia esperar senão este traço cultural
nosso, caracterizado pela despreocupação do interesse coletivo, pela ausência do espírito
público, de espírito do bem-comum, de sentimento de solidariedade comunal e coletiva e pela
carência de instituições corporativas em prol do interesse do ‘lugar’, da ‘vila’, da ‘cidade’” (p.
155).
Mais adiante, Vianna assinala pontualmente que os brasileiros, contrariamente aos
ingleses, possuem um baixo interesse pela solidariedade e pelo interesse coletivo: “Nós, os
56
brasileiros – povo sem espírito de colaboração e de equipe –, observando esta extrema
solidariedade, esta extrema harmonia, esta extrema compreensão do interesse coletivo e
nacional, este maravilhoso espírito de colaboração e de ação em conjunto – em que cada cidadão
inglês agia como se fora peça de uma máquina única e enorme, funcionando com regularidade,
em pleno regime liberal, de livre e espontânea iniciativa – nós, brasileiros, contemplando tudo
isto, éramos levados a exclamar com orgulho, como se fôramos nós o autor de toda essa
maravilha: Isto, sim, é que é um povo” (p. 205). O que existe no Brasil é apenas uma
solidariedade parental, isto é, desde que se mantenham os interesses fechados entre as famílias
dominantes: “Esta solidariedade inter-familiar e clânica é, assim, peculiar e exclusiva à classe
senhorial” (p. 272). Vianna assinala que a solidariedade só existiu na vida pública (do clã feudal
e do clã parental), não aconteceu na ordem social (religiosa e econômica), sendo apenas de
ordem política: “Esta solidarização, este entendimento, esta associação, este sincretismo, que se
processa entre eles, era puramente político – porque tinha fins exclusivamente eleitorais” (p.
298).
No âmbito do comportamento partidário, percebe-se, igualmente, a carência de
motivações coletivas. Somente no extremo sul - entre os gaúchos - o espírito público aparecerá,
para Vianna, com um maior grau de evidência. Além disso, são muitas as citações em que
Oliveira Vianna queixa-se da inexistência da cooperação do povo do Brasil, da sua pouca
participação da vida pública (que se mantém desde o Império até a República), sem contar com o
processo de imitação dos outros para a elaboração da nossa constituição.
A falta de educação para a cooperação é outro problema elencado por Vianna: “O
grande domínio brasileiro, a ‘fazenda’ ou o ‘engenho’ – ao contrário do grande domínio feudal
europeu – nunca pôde constituir-se, justamente por isto, numa escola de educação do povomassa para a cooperação – no sentido de realizar qualquer interesse coletivo da comunidade
moradora nele: o labor escravo dispensou ou impediu esta articulação entre o senhor do domínio
do povo massa livre nele residente” (p. 357). Segundo o autor, o povo nunca participou, sequer
transitoriamente, da administração do domínio. Essa administração sempre foi feita
ditatorialmente, em estilo antidemocrático, pelo senhor de engenho.
Desse modo, fica evidente a carência de motivações coletivas e de espírito público no
Brasil: “E a razão disto está em que não havia – quando instituímos o regime democrático no
nosso país – nada que houvesse constituído em tradição de interesse coletivo do município, da
província ou da nação” (p. 371). O processo de imitação fora uma constante: “Sempre imitando
os modelos em voga, ou do outro lado do Atlântico, ou do outro lado do continente” (p. 374).
Onde existiu, então, solidariedade? Vianna cita os Estados Unidos e a Inglaterra como exemplo
57
de países onde imperou o espírito de solidariedade: “Na Inglaterra e nos Estados Unidos, por
exemplo – onde o espírito de solidariedade é muito desenvolvido e o gosto da associação é muito
vivo – este interesse público, estas necessidades coletivas, estas aspirações do bem-comum da
Nação são expressas por miríades de órgãos, que representam a tradição da solidariedade social
ou profissional desses povos: sindicatos, ligas, associações, universidades, sociedades,
cooperativas, comitês, corporações, federações, etc” (p. 393).
O homem cordial
Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), em Raízes do Brasil, tratou, igualmente, das
origens da sociedade brasileira, vendo nela a continuidade da herança das nações ibéricas
(Espanha e Portugal), que priorizavam a responsabilidade individual e não coletiva. Tratou,
ainda, da repulsa ao trabalho: o ócio importando mais do que o negócio.
Holanda falou sobre o êxito da solidariedade, que se dá no Brasil somente num plano
sentimental. Tratou também do binômio trabalho e aventura. Mencionou a ausência do orgulho
de raças entre os portugueses e da cooperação entre os agricultores. Sobre a questão do trabalho,
Buarque de Holanda tem em mente a ética protestante, de Max Weber (o Brasil optou pelo ócio
ao invés do negócio), e discute longamente a relação entre o público (Estado) e o privado
(família patriarcal).
O tema central de Raízes do Brasil é a análise do homem cordial, que se opõe ao
ritualismo e à polidez. O homem cordial presta culto sem obrigação e rigor. É a predominância
do sentimento – contradição entre o racional e o afetivo. Para Dias (1998), “a figura do homem
cordial representou este aspecto conciliador das elites, preocupados em atrair simpatias pessoais,
em reforçar alianças de interesse particulares, familiares, oligárquicas. Através da metáfora da
cordialidade referia-se à preocupação das elites dirigentes brasileiras de manter uma aparente
harmonia, assim como à sua capacitação de reagir com violência, quando os conchavos pessoais
não bastavam” (p. 26). Por aqui imperou o compadrio e os laços de relacionamento afetivo e
pessoal: “Corresponde à atitude natural aos grupos humanos que, aceitando de bom grado uma
disciplina da simpatia, da ‘concórdia’, repelem as do raciocínio abstrato ou que não tenham
como fundamento, para empregar a terminologia de Tönnies, as comunidades de sangue” (p. 27).
A “promiscuidade” entre o público e o privado prevaleceu por muito tempo na vida
política brasileira, ou melhor, sempre houve a usurpação do público pelo interesses privados.
Sérgio Buarque de Holanda afirma que a “entidade privada precede, sempre, a entidade pública,
58
[assim] o resultado era predominarem, em toda a vida social, sentimentos próprios à comunidade
doméstica, naturalmente particularista e antipolítica, uma invasão do público pelo privado, do
Estado pela família” (apud Esteves, 1998, p. 60).
Esteves, no artigo “Cordialidade e familismo amoral: os dilemas da modernização”,14
faz uma relação entre as obras Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda e The moral basis
of a backward society de Edward C. Banfield, demonstrando o grau de similaridade entre as
sociedades brasileira e do Sul da Itália. Para Esteves, a cordialidade e o familismo amoral têm
apenas um significado: o atraso. Em Raízes do Brasil, Buarque de Holanda apresenta a
possibilidade da convergência entre o ethos cordial e os postulados de uma ordem
racionalizadora e formalista. Isso significa afirmar que a cultura ibérica deixou marcas profundas
na sociedade brasileira desde a colonização, notadamente por sua extrema valorização da
autonomia da personalidade: “trata-se da cultura da ‘sobranceria’, na qual cada um tenta elevarse diante dos demais, demonstrando independência, prestígio e superioridade” (Esteves, 1998).
Sérgio Buarque de Holanda vê a sociedade brasileira como sendo incapaz de formar
associações: “Numa cultura com tal característica, as condutas seriam sempre orientadas por um
espírito de fidalguia, relacionado à percepção de uma dignidade e mérito próprios e singulares.
Trata-se de uma sociedade hierarquizada, onde a recusa de qualquer valor igualitário obstaculiza
relações horizontais de tipo associativo, ao mesmo tempo em que demanda um ‘princípio
unificador externo’ [...], representados pelos governos” (Esteves, 1998). Mais adiante Holanda
continua a descrever a sociedade brasileira marcada pela fidalguia, incapacidade de um
autogoverno, exaltação da personalidade e extremada obediência. Com efeito, conforme percebe
Sérgio Buarque, numa sociedade marcada tão profundamente pela “exaltação extrema da
personalidade”, o único princípio político capaz de ordenar a vida em sociedade é a obediência.
Buarque trata, igualmente, em Raízes do Brasil, da diferença entre o aventureiro e o
trabalhador. O trabalhador é, segundo o autor, aquele que age em um empreendimento usando
um método racional, com vistas a uma compensação final; já o aventureiro age na conduta
baseada, sobretudo, na adaptação às condições vigentes, de maneira a obter a recompensa
imediata. Para Buarque de Holanda, o “elemento orquestrador” do Brasil foi a aventura. A
plasticidade característica deste ethos, diz Holanda, foi responsável pela adaptação do português
aos trópicos, pela ocupação do território e, principalmente, pela montagem de um sistema de
geração de riqueza baseado no latifúndio e na mão-de-obra escrava. No Brasil, segundo Holanda,
14 Esteves (1998), In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Disponível em <http://www.scielo.br/> Acesso em
junho de 2004.
59
não houve, propriamente, o processo de colonização e, sim, a feitorização; afinal, colonizar
remete à idéia de projeto, e essa não participa do horizonte português.15
Há muito tempo os portugueses já haviam deixado de tratar diretamente com a terra.
Sua atuação era comercial, era a transação do comércio com outros povos sua maior vocação.
Mas o que fazer, então, com o Brasil, esse “gigante” recém-descoberto? Portugal não teve
alternativa senão o processo da agricultura para a acumulação de riquezas. O cenário rural
agrário entra em cena: “Os portugueses construíram um cenário basicamente rural, de
propriedades relativamente autárquicas, governadas de forma imperial por seus respectivos
proprietários”. A característica principal desse cenário é o domínio de famílias patriarcais
tradicionais (proprietários), baseados em laços afetivos e emocionais privados, estendido à
dimensão da vida pública. O Estado apenas seguiu essa lógica particularista e clientelista,
imposta a partir do mundo rural: “O patriarcado rural estabelecera, assim, um tipo de domínio
que transpunha para o mundo público padrões de relacionamento tipicamente privados, baseados
em laços afetivos e relações pessoais e avessos a qualquer tipo de abstração por meio de normas
racionais e impessoais”.
A cordialidade, segundo a descrição de Sérgio Buarque de Holanda, está intimamente
ligada ao mundo rural e às relações patriarcais: “A síntese da herança colonial e do domínio do
patriarcado rural é denominada cordialidade. A cordialidade é um padrão de convívio humano
que tem como modelo as relações privadas características do meio rural e patriarcal; é a
expressão legítima de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante”. Cordialidade,
assim, é o oposto à civilidade. Na cordialidade, o indivíduo é exposto às vicissitudes de uma
socialização na qual suas idiossincrasias são dissolvidas no interior das relações parciais e
familiares de fundo emotivo, transformando-o numa espécie de parcela ou periferia da
sociedade; já a civilidade significa polidez. O homem cordial, ao contrário do que muitas vezes
pensamos, não significa o homem afável e brando, senão que abrange também o ódio,
sentimentos que procedem [...] da esfera do íntimo, do familiar, do privado.16 O Estado é a
grande entidade capaz de propiciar um grande interesse das pessoas que vêem nele uma
possibilidade de conseguir um emprego: “o funcionalismo é a profissão nobre e a vocação de
todos. Tomem-se, ao acaso, vinte ou trinta brasileiros em qualquer lugar onde se reúna a nossa
sociedade mais culta: todos eles ou foram ou são, ou hão de ser, empregados públicos; senão
eles, seus filhos” (p. 66).
15 Diz Buarque de Holanda: “Somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra” (apud Dias, 1998, p. 15).
16
Holanda (apud Faoro, 1998, p. 62).
60
Em Raízes do Brasil, Buarque de Holanda trata ainda da polaridade entre igualdade
versus hierarquia; trabalho versus aventura; racionalização versus afetividade, e civilidade versus
cordialidade. Mas, qual é, afinal, a raiz de tal personalismo? Holanda entende que tais
características advêm da tradição ibérica – excessivamente personalista e avessa à formalização,
à abstração e à eqüidade, terminando por desenhar uma sociedade hierarquizada. Revela ainda
um ethos aventureiro, cuja plasticidade orienta o indivíduo na direção do lucro fácil e, no mais
das vezes, da predação. A simulação do modelo apresenta, enfim, um sistema político assentado
sobre bases patriarcais, que extrai sua legitimidade de relações pessoais – face to face – de mútua
dependência e proteção.
Por fim, Holanda trata da questão da democracia no país. Para o autor, a democracia no
Brasil foi sempre um mal-entendido. Os ensaios de modernização e democratização no Brasil
“partiram sempre de cima para baixo”, baseados na crença intelectualística, dos “pedagogos da
prosperidade”, de que a razão é por si, e em si, suficiente não apenas para ordenar politicamente
a nação, mas, também, para dotar-lhe de novos hábitos, costumes e, sobretudo, de nova feição
social.
Sérgio Buarque anunciava a necessidade de uma ruptura com a cultura ibérica para
colocar o Brasil no caminho do progresso: “Precisamos da ‘nossa revolução’ na qual as bases da
cultura ibérica vão sendo minadas. Trata-se da progressiva e pujante urbanização e do
estabelecimento de novas relações de trabalho no campo, desde a abolição da escravidão, o
declínio da cultura açucareira e o advento das fazendas de café do oeste paulista” (apud Esteves,
1998). Buarque de Holanda entende que a sociedade brasileira perdeu o caráter orgânico e
comunal; assim, o que nela impera é a ordenação impessoal mecânica: “O que distingue os
povos ibéricos daqueles nos quais viria a se afirmar a chamada mentalidade capitalista é a
capacidade, que se diria congênita, de fazer prevalecer qualquer forma de ordenação impessoal e
mecânica sobre as relações de caráter orgânico e comunal, como são as que se fundam no
parentesco, na vizinhança e na amizade” (Esteves, 1998). Sobre as relações horizontais: “Neste
caso, as relações horizontais de solidariedade ou associações existem somente onde há
vinculação de sentimentos mais do que relações de interesse – no recinto doméstico ou entre
amigos. Círculos forçosamente restritos, particularistas e antes inimigos que favorecedores das
associações estabelecidas sobre um plano mais vasto, gremial ou nacional” (apud Esteves, 1998).
As possibilidades do capital social no Brasil
61
Pode o capital social ser criado e incrementado frente às mazelas da sociedade e da
política brasileira?
Inicialmente, é necessário afirmar que o conceito de capital social começou a ser
utilizado recentemente na literatura acadêmica, obtendo rápida repercussão e aceitação entre os
cientistas sociais. Apesar da popularidade da temática, porém, não podemos definir capital social
como um conceito homogêneo, pois o mesmo envolve um conjunto de valores sociais que
promovem, tanto a ação individual, quanto a ação coletiva. Neste sentido, sua definição é
problemática; por isso, o entendimento conceitual do capital social continua a se desenvolver.17
Assim, o capital social aparece na literatura com diferentes significações. As designações mais
usuais são: “energia social”, “espírito comunitário”, “laços sociais”, “virtude cívica”,
“confiança”, “redes associativas”, “relações horizontais”, “vida comunitária”, “normas sociais”,
“redes informais e formais” (bonding, bridging, linking), “reciprocidade”, “bem-comum”, “próatividade”, entre outras.
Um dos primeiros teóricos a utilizar a expressão “capital social” nos círculos
acadêmicos foi Lyda Hanifan em 1916. Porém, nos últimos anos, vários estudiosos têm
contribuído para a popularização do termo, entre eles Jacobs (1961), Bourdieu (1986), Coleman
(1988), Robert Putnam (1993, 1995) e Evans (1996, 1997).
Putnam apresentou o conceito de capital social na importante obra chamada Making
democracy work: civic traditions in modern Italy, em 1993.18 Mais tarde, em 1995, escreveu o
artigo Bowling Alone: the collapse and revival of American community que, em 2000, tornou-se
um livro.19 Na obra Making democracy work, Putnam estudou o desempenho das instituições
políticas na Itália, seguindo um conjunto diversificado de indicadores que não envolviam apenas
as atitudes subjetivas, mas também indicadores objetivos da performance institucional. Ou seja,
o desempenho das instituições públicas encontra-se associado à existência de organizações civis
“horizontais”, que podem trazer maiores benefícios aos cidadãos, juntamente com a estabilidade
e consolidação dos regimes democráticos.
Putnam descobriu que, em certas regiões da Itália, houve maior engajamento cívico, ao
passo que, em outras, houve uma política verticalmente estruturada, uma vida social
17
Conferir Lederman (2001) e Banco Mundial (2003).
18
Putnam investigou a razão pela qual as instituições públicas, assim como o sistema democrático, funciona
diferentemente nas diversas regiões italianas. Putnam estudou as relações entre Norte e Sul. Notou que o trabalho
democrático (e econômico) funciona muito melhor no Norte. O livro é baseado numa grande quantidade de dados
coletados por não menos de 20 anos de pesquisa (Rothstein, 2000, p. 150-151).
19
Ver comentário de José Murilo de Carvalho (1999) sobre o artigo de Putnam "Bowling Alone". O artigo
demonstra o declínio da participação dos norte-americanos em organizações políticas, religiosas, sociais,
profissionais, culturais, esportivas. O comparecimento dos eleitores às urnas, por exemplo, caiu substancialmente.
62
caracterizada pela fragmentação e pelo isolamento e uma cultura dominada pela desconfiança.
Afirma Putnam que é preciso conhecer as diferenças básicas da vida cívica de uma comunidade
para, posteriormente, perceber o êxito e/ou o fracasso das instituições. Putnam entrevistou os
conselheiros regionais italianos. Seu objetivo foi examinar as origens do governo eficaz e as
instituições que obtiveram ou não bom desempenho, na tentativa de explicar a relação entre o
desempenho institucional e a natureza da vida cívica.
O estudo de Putnam está diretamente ligado ao trabalho pioneiro de Aléxis de
Tocqueville (A democracia na América, 1977) em que o autor francês descreveu com detalhes os
hábitos e costumes dos norte-americanos. Tocqueville deu grande importância ao caráter
associativo e participativo dos americanos em formar organizações civis e políticas: “Os
americanos de todas as idades, de todas as condições, de todos os espíritos, estão constantemente
a se unir. Não só possuem associações comerciais e industriais, nas quais tomam parte, como
ainda existem mil outras espécies: religiosas, morais, graves, fúteis, muito gerais e muito
pequenas. Os americanos associam-se para dar festas, fundar seminários, construir hotéis,
edifícios, igrejas, distribuir livros, enviar missionários aos antípodas; assim também criam
hospitais, prisões, escolas” (p. 391-392).
A ação recíproca entre as pessoas é fundamental para a edificação do sentimento
comunitário: “Os sentimentos e as idéias não se renovam, o coração não cresce e o espírito não
se desenvolve a não ser pela ação recíproca dos homens uns sobre os outros” (p. 393). A forma
mais produtiva da igualdade de condições provém da arte de associar-se: “para que os homens
permaneçam civilizados ou assim se tornem, é preciso que entre eles a arte de se associar se
desenvolva e aperfeiçoe na medida em que cresce a igualdade de condições” (p. 394). Putnam,
apoiando-se na teoria de Tocqueville, argumenta que a comunidade cívica se caracteriza por
cidadãos atuantes e imbuídos de espírito público, mediante o estabelecimento de relações
políticas igualitárias e uma estrutura social firmada na confiança e na colaboração (Putnam,
2000, p. 30-31).
Da mesma forma, Putnam, depois de desenvolver suas pesquisas na Itália, chegou à
conclusão de que as pessoas que se unem em associações têm maior consciência política,
confiança social, participação política e “competência cívica subjetiva”, pois, para ele, quanto
maior a participação em associações locais, maior será a cultura cívica; quanto maior a cultura
cívica da região, mais eficaz será o seu governo. O desempenho de um governo regional está, de
algum modo, estritamente relacionado com o caráter cívico da vida social e política da região. O
civismo, conclui Putnam, tem a ver com igualdade e, também, com engajamento (p. 112-113).
63
Segundo o autor, existem regiões mais e menos cívicas, dependendo da maior ou menor
cultura cívica. Configuram-se como regiões menos cívicas, geralmente, aquelas onde os cidadãos
que a habitam pedem ajuda a políticos para obter licenças, empregos e assim por diante. Putnam
cita o Sul da Itália como exemplo de regiões menos cívicas, principalmente a Púglia e a
Basilicata. Nessas sociedades com menor grau de civismo, a política se caracteriza por relações
verticais de autoridade e dependência, tal como corporificadas no sistema clientelista (p. 115).
Da mesma forma, as relações políticas são mais autoritárias e a participação política se restringe
à elite. Regiões menos cívicas, diz Putnam, estão mais sujeitas à corrupção (máfias). Nas regiões
menos cívicas, impera a desconfiança interpessoal e as pessoas e a vida pública individual se
organiza sob forma hierárquica. Parece ser uma conclusão lógica aquela a que Putnam chegou:
quanto menor o capital social e a cultura cívica das pessoas, menor será o desenvolvimento
econômico da região. A recíproca é, igualmente, verdadeira: quanto maior o acúmulo de capital
social e maior a cultura cívica, maior será o desenvolvimento.
Como exemplo de sociedades mais cívicas e mais prósperas da Itália, Putnam cita as da
região Norte, especialmente as da Emília Romagna e da Lombardia, nas quais a população tem
uma grande participação no debate dos problemas comuns e na tentativa de sua resolução. Nas
sociedades mais cívicas, percebe-se, igualmente, maior número de filiação sindical e maior
concentração de redes de solidariedade social (p. 127). Prevalece, nessas sociedades, uma
elevada virtude cívica, pois nelas a honestidade, a confiança e a observância da lei predominam.
Essas populações, diz Putnam, são dotadas de espírito público extraordinariamente desenvolvido,
formando um verdadeiro complexo de comunidades cívicas. O engajamento cívico, a valorização
da solidariedade, a cooperação e a honestidade são marcas fundamentais das comunidades.
Numa comunidade cívica, tem-se coesão social, harmonia política e bom governo.
Putnam acredita que a comunidade cívica forma-se graças à herança histórico-cultural e
diz que a mesma pode apresentar círculos virtuosos ou viciosos. Numa comunidade cívica, “os
estoques de capital social, como confiança, normas e sistemas de participação, tendem a ser
cumulativo e a reforçar-se mutuamente. Os círculos virtuosos redundam em equilíbrios sociais
com elevados níveis de cooperação, confiança, reciprocidade, civismo e bem-estar coletivo”. Por
outro lado, a “inexistência dessas características na comunidade não-cívica também é algo que
tende a auto-reforçar-se. A deserção, a desconfiança, a omissão, a exploração, o isolamento, a
desordem e a estagnação intensificam-se reciprocamente num miasma sufocante de círculos
viciosos” (p. 186-187). É diante de uma sociedade civil vigorosa, diz Putnam citando
Tocqueville, que o governo democrático se fortalece em vez de enfraquecer. Na comunidade
cívica, as associações proliferam, as afiliações se sobrepõem e a participação se alastra (p. 191).
64
No entanto, a visão “culturalista” de Putnam sobre o capital social enfrenta o embate
teórico da corrente “neo-institucionalista”, de Peter Evans, que procura dar uma resposta
alternativa à mesma.
Como vimos, Putnam defende que o desenvolvimento de um estado ou cidade estaria
ligado à sua tradição (herança histórica). Putnam entende o capital social como conseqüência de
um processo cultural de longo prazo, ou seja, acredita na evolução histórica do sistema político e
na existência de pré-requisitos desenvolvimentistas que facilitarim a implementação eficaz de
políticas públicas. O autor cita como exemplo o Norte da Itália como sendo a região mais
desenvolvida por razões de suas origens culturais herdadas da Idade Média.
Peter Evans (1996) procurou apresentar uma alternativa neo-institucionalista à visão
“culturalista” de Putnam. Evans entende que o capital social pode ser desenvolvido sem,
necessariamente, ter uma raiz histórica... O capital social pode ser criado... Evans defende o
surgimento da autonomia institucional inserida no cotidiano da sociedade como sendo a fonte de
utilização ótima de recursos disponíveis à coletividade.20 Evans vê a possibilidade de uma
sinergia entre o público e o privado, capaz de aumentar a capacidade de intervenção do Estado.
Para Evans, sem a intermediação direta do Estado, os países em desenvolvimento não teriam
qualquer possibilidade de industrialização. Evans defende, em outras palavras, a sinergia entre
Estado e sociedade.21 Ou seja, enfatiza o papel decisivo da burocracia estatal na formação de
capital social, no sentido de que a função do Estado passaria da ação reguladora da interação
social para a de indutor e mobilizador do capital social, ligando os cidadãos e mobilizando as
agências públicas a aumentarem a eficiência governamental, a partir de uma sinergia entre o
Estado e a sociedade civil como um conjunto de relações que ultrapassaria a divisão públicoprivado.22
Da mesma forma, Portes e Landolf (1996) vêem algumas limitações nos argumentos de
Putnam na tentativa de explicar o sucesso ou o fracasso de uma comunidade. Para os críticos, a
pobreza ou o não desenvolvimento de algumas regiões ou cidades não está ligado, diretamente, à
falta de capital social ou à inexistência de uma vida cívica, mas, sim, da falta de recursos
econômicos concretos. A crítica de Abu-El-Haj (1999, p. 71) vai, nessa mesma direção. Para ele,
o ponto de vista de Putnam acaba sendo de profundo ceticismo, quando associa as possibilidades
de avanço democrático à existência de ingredientes culturais naturais a certas sociedades.23
20
Para este debate, conferir Abu-El-Haj (1999).
21
Evans (1997).
22
Costa (2003).
23
Conferir Costa (2003).
65
Para concluir, cabe ressaltar a importância e a contribuição do trabalho de Putnam para
a Ciência Política, mas, havemos de reconhecer, também, que o capital social não é
simplesmente um atributo cultural cujas raízes só podem ser fincadas ao longo de gerações a
gerações. É razoável acreditar que ele possa ser criado em um menor tempo – desde que haja
organizações
suficientemente
fortes
para
sinalizar
aos
indivíduos
alternativas
aos
comportamentos políticos convencionais. Caso contrário, não haveria, no Brasil, possibilidade
alguma de superar os vícios (males de origens) políticos presentes na história do país e
alcançarmos a emancipação social, política e econômica – elementos que o país há muito tempo
necessita e almeja.
Considerações finais
Neste artigo, o autor se propôs a discorrer sobre alguns males de origens da política
brasileira seguindo a leitura explicativa de alguns dos principais cientistas sociais do país, entre
eles Oliveira Vianna e Sérgio Buarque de Holanda. O autor também buscou apresentar uma
análise conceitual do capital social e a possibilidade que este pudesse contribuir para o avanço da
democracia no Brasil.
Como vimos, a formação da sociedade brasileira teve a herança e o predomínio do
“personalismo ibérico”, segundo o entendimento de Buarque de Holanda. Para o autor, o
personalismo é entendido como o “valor próprio da pessoa humana” ou a “autonomia de cada
um dos homens em relação aos semelhantes no tempo e no espaço”. Isto é, não considera a
participação do outro para a solução dos problemas. O tema da ausência de uma cultura propícia
à cooperação permeou todo o argumento apresentado na obra Raízes do Brasil: “a falta de uma
capacidade livre e duradoura associação entre os elementos empreendedores do País” (Holanda,
apud Bandeira, 2003, p. 191). Para Holanda, a sociedade brasileira herdou, também o
individualismo da cultura ibérica, onde as máximas “cada um basta por si” e “cada qual é filho
de si mesmo, de seu esforço próprio, de suas virtudes” foram preponderante, além da fragilidade
da cultura associativa dos povos ibéricos. Diz Holanda que, na cultura ibérica, “não é possível
acordo coletivo durável” e “os decretos dos governos nasceram em primeiro lugar da
necessidade de se conterem e de se refrearem as paixões particulares momentâneas, só raras
vezes da pretensão de se associarem permanentemente às forças ativas”.
Da mesma forma, vimos que Oliveira Vianna destacou a ausência da tradição
associativa, o individualismo e a falta de vocação para a ação coletiva ou para a cooperação, bem
66
como a ausência de solidariedade social, como alguns dos traços mais marcantes da sociedade
brasileira desde o período colonial. Vianna não atribuiu o caráter insolidarista do brasileiro como
a “herança ibérica”, como o fez Sérgio Buarque de Holanda, mas considerou-a um traço cultural
adquirido pelos colonizadores, devido às condições com que se defrontaram no Novo Mundo.
Segundo Vianna, apenas em algumas regiões do país, como “nos pampas do sul e nas caatingas
do norte”, houve a possibilidade de solidariedade social e cooperação: “há ali uma verdadeira
cooperação de vizinhos, com um caráter tradicional, que denuncia um costume” (Vianna, 1952,
p. 231).
Frente às mazelas históricas da política brasileira é de se supor que o capital social possa
contribuir para a efetivação de uma cultura política mais sadia e uma estrutura poliáquica
eficiente e eficaz.
24
É evidente que o crescimento da discussão em torno do capital social na
última década, a qual trouxe a participação comunitária para o centro das discussões entre os
cientistas sociais. Os teóricos Tocqueville (1977) e Coleman (1988) já haviam afirmado que,
quanto maior fosse a participação dos indivíduos em associações comunitárias, com a
valorização das normas e regras democráticas, maior seria a contribuição positiva para o
funcionamento e a consolidação da democracia. É evidente, então, que a discussão entre Putnam
e Evans certamente enriquece o debate, que continua inconcluso...
Afinal, se, nos últimos anos, os brasileiros viveram uma desilusão com os rumos da
democracia, inclusive com o descrédito e a desconfiança no desempenho das instituições, nada
melhor que, através do capital social, se possa pensar em estratégias que recuperem a
credibilidade das instituições frente às demandas e exigências da cidadania. Neste sentido, há
uma conclusão geral, aceita no meio acadêmico, de que a consolidação democrática de um país
depende de uma sociedade civil dinâmica e participativa orientada para a valorização das normas
institucionais, baseada nos princípios poliárquicos. E, como nos diz Baquero (2003, p.29), o
capital social, frente à crise por que passam as instituições democráticas, surge como um bem
público capaz de gerar um novo contrato social, baseado na cooperação recíproca, solidária e
coletiva.
Referências
24
A expressão “democracia poliárquica” foi criada por Robert Dahl. Derivada das palavras gregas: poli = muitos +
arquia = governo, “governo de muitos”. A poliarquia significa o mesmo que democracia representativa moderna.
Mais precisamente, a democracia poliárquica é um sistema político dotado das seis instituições democráticas:
funcionários eleitos; eleições livres, justas e freqüentes; liberdade de expressão; fontes de informações
diversificadas; autonomia para as associações e cidadania inclusiva (2001, p. 99-104).
67
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SOCIEDADE CIVIL OU CAPITAL SOCIAL? Um balanço teórico
Julian Borba
Doutor em Ciência Política pela UFRGS, Professor do Programa de Mestrado em Gestão de
Políticas Públicas da UNIVALI. E-mail: [email protected].
Lillian Lenite da Silva
Mestranda em Sociologia Política pela UFPR. E-mail: [email protected].
Introdução
O campo de estudos sobre as formas de organização política não-estatal e nãopartidária, no Brasil, já possui um notável número de trabalhos de cunho teórico e empírico.
Ainda que de forma rápida e esquemática, podemos notar também que esses estudos dividem-se
em três grandes gerações. Nos anos 80, predominaram as pesquisas que tinham no conceito de
“movimentos sociais” (Gohn, 1997) a sua referência fundamental. Nos anos 90, a categoria
analítica que passou a orientar os trabalhos foi o conceito de “sociedade civil”. Já neste início de
século XXI é o conceito de “capital social” que passou a galvanizar a atenção de estudiosos e
analistas das formas de associativismo social e político.
Vagas ou ondas de teorias são fenômenos comuns no campo do pensamento. Esgotadas
as possibilidades analíticas de um “paradigma”, novos olhares e representações surgem para
orientar a explicação dos fenômenos. Todavia, no caso do campo fenomênico em questão
impressiona a rapidez das transições e, acima de tudo, a falta de um balanço mais cuidadoso das
contribuições e limites de cada um dos “paradigmas” em questão, se é que cabe falar de
paradigma no âmbito das ciências sociais.
72
No caso do primeiro grupo de estudos, aquele orientado pela categoria movimentos
sociais, não se pode acusá-lo de falta de auto-reflexão. Os estudiosos dos movimentos sociais
sempre primaram pela realização de balanços de literatura bastante freqüentes, revelando-nos a
variedade de estudos existentes sobre o tema.1 Todavia, a polarização em torno de duas grandes
abordagens (novos movimentos sociais versus mobilização de recursos) e um novo cenário
político (da transição democrática para um regime com instituições representativas) levou os
estudiosos ao encontro de uma nova abordagem, centrada em torno da compreensão
habermasiana de sociedade civil. Desta forma, novas experiências participativas –
particularmente, o Orçamento Participativo – foram interpretadas através da perspectiva que via
na sociedade civil a expressão do mundo da vida que se manifestava em uma “esfera pública”.
Pois bem, não se passou ainda uma década e já estamos, novamente, explorando um novo
conceito, o de capital social, especialmente na versão que nos foi trazida pelos estudos de
Putnam (2002a) na Itália.
Excetuando-se o trabalho de Lavale (1999 e 2004), que realiza um confronto temático
entre as abordagens centradas em torno da teoria dos movimentos sociais e da teoria da
sociedade civil, não dispomos ainda de um balanço teórico da evolução e das transformações do
campo do associativismo social e político no Brasil. Note-se que é de um balanço “teórico” que
estamos falando e não apenas de comentários bem informados da bibliografia existente.
A tarefa, portanto, está para ser feita. Visando contribuir neste sentido, o objetivo deste
artigo é confrontar a teoria da sociedade civil e a teoria do capital social. Em nosso horizonte
coloca-se a tarefa de avaliar os ganhos e perdas implicados na mudança de uma abordagem para
outra no campo dos estudos sobre as formas de organização civil. Afinal, o que se ganha e o que
se perde quando se avaliam os atores sociais organizados (ou não) a partir do enfoque de capital
social? Em que medida a abordagem do capital social nos ajuda a superar os impasses da teoria
da sociedade civil? Quais são os limites desse conceito, levando-se em consideração os estudos
já existentes? Essas são algumas da perguntas que orientam nosso trabalho.
O método adotado é bastante simples. Na primeira parte, apresentamos, em contornos
gerais, a teoria da sociedade civil. Na segunda, o mesmo procedimento é adotado para descrever
a teoria do capital social. Em cada um desses momentos, nossa reflexão já pretende apontar para
o que nos parecem ser as “contribuições” e os “limites” de cada uma das abordagens em questão.
Na terceira parte, portanto, seguem apenas nossas considerações finais.
1
Confira-se, a título de exemplo, as revisões bibliográficas feitas por Ruscheinsky (1998).
73
Sociedade civil
O termo “sociedade civil” possui uma longa e complexa trajetória na história do
pensamento político. Ele perpassa autores gregos (Aristóteles), modernos (Hobbes, Locke,
Rousseau) e vários autores contemporâneos (Keane, Cohen e Arato, Habermas). Para os
propósitos, deste artigo, entretanto, não se faz necessário refazer a “genealogia” do conceito2.
Basta, por ora, apontar para o fato de que podemos localizar nesta tradição duas grandes
tradições que fazem uso do conceito de sociedade civil: a tradição dualista e a tradição triádica.
O que estamos denominando neste texto de tradição “dualista” refere-se a um conjunto
de autores que definem a categoria sociedade civil em contraposição à esfera estatal. Ainda que
possuam diferenças internas, isto aproxima a abordagem liberal e marxiana do conceito, por
exemplo3. Já a abordagem “triádica” interpreta a sociedade civil como fazendo parte de uma
terceira esfera da vida social, contraposta tanto do Estado como do Mercado. Para esta segunda
abordagem, a categoria aponta apenas para aquelas instituições, organizações e atores que se
diferenciam do conjunto da sociedade pela suas formas de organização baseadas na cooperação
voluntária e na solidariedade. É neste campo de estudos que podemos situar autores como Hegel
e Gramsci, por exemplo. Ora, é dentro desta segunda vertente que podemos encontrar os
trabalhos que maior influência exerceram no Brasil. Trata-se dos trabalhos de Cohen e Arato e
de Jürgen Habermas.
O notável trabalho de Cohen e Arato (1992), além de refazer toda a história do conceito
de sociedade civil, possui o mérito de situar esta teoria no quadro do pensamento sociológico de
Jürgen Habermas. Os autores partem da distinção entre sistema e mundo da vida, formulada pelo
autor alemão, para situar em seu interior sua teoria da sociedade civil. Apenas para lembrar,
Habermas (1987) afirma que, enquanto a esfera sistêmica (que compreende o Estado e o
Mercado) é movida pela lógica de uma racionalidade instrumental, no mundo da vida (interações
cotidianas) impera a lógica da racionalidade comunicativa. Para Habermas, os momentos sociais
seriam, neste contexto, a forma pela qual o mundo da vida busca reagir (de forma defensiva) à
colonização do mundo da vida, qual seja, sua invasão pela lógica instrumental do Mercado e do
Estado. Partindo desse quadro teórico, Cohen e Arato definem a sociedade civil como o conjunto
de condições e atores situados nas três dimensões que compõem o mundo da vida, que são a
cultura, a sociedade e a personalidade. Segundo suas palavras, a sociedade civil seria então: “(...)
2
Uma análise histórico-conceitual desse termo pode ser encontrada, entre outras, nos texto de Bobbio (1982) e
Costa (1997).
3
Uma interessante defesa teórica da concepção diádica encontra-se em Reis (1994).
74
reconcebida em torno da noção de movimentos democratizantes auto-limitados, procurando
expandir e proteger espaços para liberdade negativa e liberdade positiva e para recriar formas
igualitárias de solidariedade sem prejudicar a auto-regulação econômica (Cohen e Arato,1992, p.
5).
A partir desta noção, explica Vieira (2001, p. 46), a sociedade civil pode ser entendida
da seguinte forma: “A sociedade civil representa apenas uma dimensão do mundo sociológico de
normas, práticas, papéis, relações, competências ou um ângulo particular de olhar este mundo do
ponto de vista da construção de associações conscientes, vida associativa, auto-organização e
comunicação organizada. (...) Refere-se às estruturas de socialização, associação e formas
organizadas de comunicação do mundo da vida, na medida em que estas estão sendo
institucionalizadas”.
Entre os atores da sociedade civil, estão os movimentos sociais, as organizações nãogovernamentais, as associações de moradores, grupos de base e de mútua-ajuda, associações
filantrópicas, sindicatos, entidades estudantis e todas aquelas formas de associativismo (mesmo
informais e esporádicas) que, de alguma forma, lutam pela resolução de problemas sociais,
ampliação dos direitos políticos e da consciência da cidadania e, ainda, mudanças na esfera dos
valores e do comportamento dos indivíduos. Essas associações reúnem homens e mulheres,
interessados em assumir sua dimensão de cidadão de uma forma ativa, objetivando agir na
sociedade em busca de transformações.
No Brasil, um dos pioneiros na utilização do conceito de sociedade civil foi Weffort
(1988). Refletindo sobre a realidade política dos anos 80 (transição democrática) e adotando um
enfoque gramsciano, este autor mostrava que a sociedade civil era o lugar de construção de
resistência e de construção de uma “nova hegemonia”, que se formulava em resposta ao regime
autoritário. Mas, no decorrer dos anos 90, será a visão habermasiana do conceito que ganha
destaque, especialmente através dos trabalhos de Leonardo Avritzer e Sérgio Costa4.
O primeiro destes autores procurou centrar seu trabalho teórico em duas direções. Em
primeiro lugar, ele retomou a crítica habermasiana às teorias do elitismo democrático (Weber,
Schumpeter, Dahl e outros), passando a defender um conceito ampliado de democracia: a
democracia deliberativa (Avritzer, 1994, 1996). A partir deste novo enfoque analítico, Avritzer
levou sua crítica em direção às teorias da transição democrática – a “transitologia” –, como
dizem alguns autores. O principal argumento de Avritzer é de que a discussão sobre a transição
4
No entanto, é interessante observar que, atualmente, pode-se verificar uma retomada das formulações gramscianas
de sociedade civil, cujo objetivo, entre outras coisas, é criticar a ênfase societária da teoria de Cohen e Arato,
revalorizando a dimensão estatal do conceito. Entre os trabalhos que apontam nesta direção, veja-se especialmente
Nogueira (2003).
75
no Brasil – orientada pela teoria da escolha racional – centrava sua abordagem apenas sobre o
desempenho das instituições. Faltava a essa teoria discutir as bases que propiciam o
funcionamento das instituições em seu contexto societário. É neste sentido que o conceito de
sociedade civil – enquanto expressão do mundo da vida - cumpria um papel fundamental, a
saber. A sociedade civil e seus atores seriam a parteira de uma nova cultura política democrática,
que seria responsável não só pela consolidação das instituições democráticas, mas propugnava
também a sua radicalização.
É nessa via que se dirige a segunda direção do seu trabalho. A partir da noção de
democracia deliberativa e sua base política - a sociedade civil -, este autor passou a analisar as
experiências empíricas de ampliação da democracia em arenas ou arranjos participativos
(Avritzer, 2002 e 2003). A principal destas experiências é a do Orçamento Participativo
(Fedozzi, 1997), cujo modelo vinha sendo gestado na cidade de Porto Alegre, durante a gestão
do Partidos dos Trabalhadores (PT)5. Junto com o trabalho de Avritzer, seguiu-se uma verdadeira
onda (ou seria um vendaval?) que via nessas experiências a efetivação institucional de um novo
modelo de democracia: a democracia participativa.
Todavia, a aplicação das teorias de Habermas e Cohen e Arato, para o entendimento das
experiências de participação, logo revelou seu “calcanhar de Aquiles”. Acontece que o modelo
habermasiano de democracia ampliada, no qual a sociedade civil e a esfera pública cumprem um
papel-chave, não prevê a “participação efetiva” dos atores organizados nos processos decisórios.
Habermas (1997) fala de “influência” e não de “poder decisório”. Não cabe à sociedade civil
substituir o Estado muito menos a este “partilhar decisões” com os movimentos sociais. O que
acontece é que a esfera sistêmica do Estado precisa traduzir, na linguagem do direito, os “ecos”
que lhe chegam através da esfera pública, que funciona como caixa de ressonância do mundo da
vida organizado. Esses “ecos” precisam romper as “eclusas” postas pelo Estado entre a esfera
pública e a sociedade, particularmente o complexo jurídico e o parlamento. Em resumo: é a
“mensagem” da sociedade civil que adentra a esfera do Estado, mas não os seus “atores”.
Avritzer (2000) parte então para uma crítica de Habermas e sua noção de democracia
participativa a partir de outros autores, como é o caso de Joshua Cohen (1998) e James Bohman
(1996), por exemplo. Assim, estaria salvo o conceito de sociedade civil? Também não é o caso,
pois, como já se apontava há muito tempo, Cohen e Arato tinham formulado seu conceito de
sociedade civil para expressar a resistência do mundo da vida à invasão colonizadora das esferas
sistêmicas do Estado e do Mercado. Empiricamente, o conceito foi útil para explicar a resistência
5
Atualmente, também vêm ganhando destaque os estudos sobre outro arranjo participativo bastante difundido mas
ainda pouco compreendido: os conselhos gestores (vide TATAGIBA, 2002).
76
da sociedade civil no Leste da Europa (regimes comunistas), os protestos dos novos movimentos
sociais nos Estados de Bem-Estar Social (Europa) e a luta da sociedade civil contra ditaduras
militares na América Latina. Em outros termos, o conceito traduzia muito bem a dimensão
“defensiva” da sociedade civil, mas nunca conseguiu lidar de forma adequada com sua dimensão
“ofensiva”. Traduzindo, a revisão do conceito de democracia deliberativa não leva, por si só, ao
redimensionamento político do conceito de sociedade civil. Portanto, embora a noção de
sociedade civil tenha sido útil para apontar em direção às bases culturais da democracia, não
revelou o mesmo potencial para explicar os processos de interação entre Estado e sociedade
organizada a partir de arranjos participativos.
Já o segundo autor em questão, Sérgio Costa (1994, 2002), apesar de partir do mesmo
enfoque que Avritzer, ou seja, as teorias de Cohen e Arato e Habermas, centrou sua reflexão
sobre o conceito de “esfera pública”, ou seja, aquela instância situada entre o mundo da vida e a
esfera do Estado e que funciona como espaço de discussão entre os atores da sociedade civil na
busca de seus “consensos comunicativos”. Além dos trabalhos de discussão conceitual, o esforço
de Costa também se dirigiu a mostrar em que medida a esfera pública, enquanto realidade
empírica, podia ser pensada como um locus de solidificação da democracia e ampliação das
práticas democráticas. O argumento básico de Costa (1997) é de que a esfera pública, composta
por atores da sociedade civil, contribui para o processo democrático de duas formas
fundamentais: (a) através da ampliação dos problemas tratados publicamente e (b) através da
ampliação das possibilidades comunicativas ancoradas no mundo da vida.
Todavia, ao contrário de seu colega Leonardo Avritzer, os trabalhos de Costa foram
muito mais céticos ao tratar da participação da sociedade civil em arenas decisórias
compartilhadas. Partindo das próprias formulações de Habermas, Costa (2002) chamou a atenção
para o fato de que a introdução dos atores da sociedade civil no espaço do Estado poderia
significar uma inversão de suas intenções políticas. Ou seja, em vez da esfera sistêmica do
Estado ser permeada pela racionalidade comunicativa do mundo da vida, eram os movimentos
sociais e outros atores da sociedade civil que passavam a se adequar à racionalidade instrumental
própria das instâncias burocráticas de governo. O autor sinaliza, então, para uma perda da base
de sustentação dos movimentos sociais no mundo da vida e para uma possível
“institucionalização” ou “burocratização” (para falar em termos weberianos) da sociedade civil.
De forma conclusiva, se pode dizer que os estudos de Avritzer e Costa, que representam
o melhor da utilização do conceito de sociedade civil “a la” Habermas/Cohen e Arato no Brasil,
apontam para a mesma deficiência analítica: a incapacidade para descrever de forma adequada e
necessária os processos efetivos de interação entre governos e sociedade organizada. No caso de
77
Avritzer, isto se dá pela suas dificuldades de superar os dilemas da revisão de seu conceito de
democracia participativa e, no caso de Costa, pelo seu apego às próprias formulações de
Habermas. De qualquer forma, os processos sociais e políticos efetivos que ocorrem no interior
dos arranjos participativos, suas conseqüências para os próprios governos, seus reflexos na
sociedade, sua repercussão no âmbito da oferta de políticas públicas, sua eficácia e eficiência, e
outros temas, não encontraram abrigo adequado no conceito de sociedade civil. E a partir desses
e de outros dilemas é que o conceito de capital social emerge como uma possibilidade na
reflexão sócio-politólogica brasileira. Será mesmo? É o que vamos pensar a seguir.
Capital social
O conceito de capital social, embora não seja tão antigo, já possui uma notável trajetória
no campo das Ciências Sociais, sendo também usado como instrumento de avaliação da
capacidade e qualidade governamental. Entre os teóricos de destaque, podemos citar Putnam
(2002a e 2002b), que explicaremos em maior detalhe por ser o autor que mais tem tido influência
nos trabalhos efetuados no Brasil. Todavia, entre os outros autores que inauguraram essa
perspectiva teórica, não podemos deixar de mencionar Bourdieu, direcionando sua pesquisa para
a questão do poder e suas desigualdades em diferentes campos; Coleman (1994), que trabalha
com o capital social dizendo que esse conceito é importante para o desenvolvimento econômico,
físico e humano e tem condições de alcançar recursos para o bem-estar coletivo e Fukuyama, que
desenvolve o conceito numa perspectiva social, caracterizando-o pela confiança e cooperação
por parte dessa sociedade6. No campo da economia, por sua vez, vale mencionar a utilização
dessa categoria por setores do Banco Mundial, bem como por economistas de renome, como é o
caso de Amartya Sen, por exemplo7.
A importância de se trabalhar com o conceito de capital social está calcada na sua
praticidade em medir, basicamente, o desempenho institucional, sem enfatizar a questão
econômica e o processo de construção democrática de forma separada e excludente. É neste
sentido que o conceito demonstra ter mais utilidade do que o de sociedade civil, como ainda
pretendemos argumentar. Todavia, antes de entrar nessa discussão comparativa, apresentaremos
os detalhes do conceito. Cabe ressaltar que a discussão com base em Putnam não tem uma
dimensão estritamente econômica; pelo contrário, os estudos do autor são considerados dentro de
6
7
Uma apresentação bastante didática desse conceito pode ser encontrada no trabalho de D’Araújo (2003).
Nosso artigo interessa-se apenas pela dimensão política do conceito de capital social. Mas, entre os trabalhos que
desdobram suas conseqüências econômicas, consulte-se, entre outros, Stein (2003) e Alarcón (2002).
78
um contexto sociocultural, ou seja, o compromisso cívico de uma sociedade não é requisito
apenas para o desenvolvimento econômico, mas também para o desempenho institucional e suas
conseqüências sociais.
A análise de Putnam está calcada em três grandes conceitos: “desempenho
institucional”, “comunidade cívica” e “capital social”. Em sua obra Comunidade e Democracia:
a experiência da Itália moderna (2002), o autor referido tem por objetivo contribuir para
compreensão das instituições democráticas a partir da experiência da história política italiana dos
anos 70. Na verdade, o autor questiona o desempenho das instituições formais, a politização de
uma sociedade e seu dever cívico, juntamente com o grau de confiança e socialização dos
indivíduos para o funcionamento da política e do governo, verificando em que medida um fator
influencia o outro.
Falando especificamente da experiência italiana, ele mostra que havia uma diferença
radical entre o Norte e Sul da Itália. Essa diferença se constituía pelos recursos sociais,
econômicos e administrativos. Através de um processo de descentralização, o enfrentamento dos
problemas foi transferido da administração nacional para os governos regionais e locais.
Todavia, Putnam argumenta que o cerne do problema não estava na distribuição dos recursos
nacionais para os locais, mas na quantidade dos recursos e na gerência deles. Essa diferença foi
comprovada por Putnam porque essas regiões revelaram diferenças marcantes no seu
desempenho institucional.
Dessa forma, o autor, além de questionar o desempenho institucional, avalia a qualidade
da democracia a partir da qualidade de seus cidadãos e, agregando essas duas variáveis “desempenho institucional” e “qualidade dos cidadãos” -, chega ao conceito de “comunidade
cívica”. Essas são, para Putnam, as condições necessárias para o êxito da democracia.
Resumidamente, o autor equipara o bom funcionamento das instituições a um requisito
necessário para uma boa prática política democrática. No caso da Itália, foi constatado que o
desempenho institucional do Norte era melhor que do Sul pelo fato de apresentar os critérios que
Putnam elegeu como necessários para esse bom desempenho. Esses critérios foram avaliados
levando-se em conta três dimensões: continuidade administrativa, deliberações sobre as políticas
e implementação das políticas.
O autor não enfatiza simplesmente o funcionamento das instituições, embora dedique
quatro capítulos para isso. Seu outro ponto importante é a influência da comunidade cívica para
as instituições. Para definir “comunidade cívica”, Putnam parte de análises de Tocqueville que a
caracteriza como uma comunidade composta por “(...) cidadãos atuantes e imbuídos de espírito
público, por relações políticas igualitárias, por uma estrutura social firmada na confiança e
79
colaboração” (Putnam, 2002a, p. 31). Como demonstra o autor, certas regiões na Itália são
favorecidas por esse padrão (Norte) enquanto outras (Sul) padecem da falta de um engajamento
cívico, o que dificulta o desenvolvimento das instituições e automaticamente impede o êxito da
democracia. Assim, uma região que possui cidadãos com espírito público e dever cívico
desenvolve melhor desempenho institucional e, conseqüentemente, alcança êxito em sua
democracia. É o que procura expressar o esquema abaixo:
Comunidade Cívica
desempenho institucional
êxito democrático
No entanto, a grande pergunta é: por que algumas regiões são mais cívicas e outras não?
Para explicar isso, Putnam recorre à história e, no caso italiano, percebe que ocorreram dois
regimes diferentes. Enquanto, no Norte predominaram repúblicas comunais, voltadas para
mecanismos e arranjos de envolvimento do cidadão, com compromisso público, no Sul
predominou uma forte monarquia, criando, assim, ao longo do tempo, uma não-preocupação
com questões públicas, ou seja, um sentimento de não-pertencimento cujo dever cívico foi
atrofiado.
Na verdade, uma comunidade cívica nasce quando é desenvolvido nos indivíduos, via
instituições, um reconhecimento do bem público como individual. O que não significa fazer da
máquina do Estado empresa pessoal, ou fazer das instituições meio para defender interesses e
obter vantagens pessoais, mas sim ter o sentimento de que o público é também do outro, numa
atitude de “igualdade política, solidariedade, confiança e tolerância”.
Entretanto, a grande questão ainda persiste: Como criar uma comunidade cívica?
Putnam nos mostra quatro formas bem-sucedidas pela qual o Estado pode criar arranjos que
envolvam a participação dos indivíduos. Essas estruturas são: associações, informações,
participação política e voto preferencial. Portanto, “a comunidade cívica é um determinante mais
forte que o desenvolvimento econômico (...). Quanto mais cívica a região, mais eficaz o seu
governo (...) As regiões onde há muitas associações cívicas, muitos leitores de jornais, muitos
eleitores politizados e menos clientelismo parecem contar com governos mais eficientes”
(Putnam, 2002a, p.112 –113).
Por outro lado, temos uma indagação: Será que as comunidades que não têm uma
tradição cívica e, automaticamente, contam com mau desempenho institucional, preferem viver à
margem da sociedade? Essa questão diz respeito ao tipo de relação social, ao grau de
socialização, confiabilidade e cooperação que esses grupos sociais tiveram.
80
Boas relações sociais criam também formas e laços solidários, tanto por parte do Estado
para com a sociedade, quanto por parte de empresas privadas, a ponto de criarem associações de
crédito rotativo. Segundo os teóricos da escolha racional, a superação dos dilemas da ação
coletiva depende de como o jogo é disputado em regras de reciprocidade e de bons jogadores.
Neste sentido, “o capital social diz respeito à característica da organização social, como
confiança, normas e sistemas, que contribuam para aumentar a eficiência da sociedade,
facilitando as ações coordenadas” (Putnam, 2002a, p. 177). O capital social tem, portanto, uma
função produtiva, como, por exemplo, a associação de crédito, que consiste num grupo que ajuda
outras pessoas na medida em que confia nelas. É uma ação racional de cooperação espontânea.
Esse tipo de atitude fortalece a solidariedade, gera um comprometimento com o outro,
com práticas de socialização, transferindo essa atitude para todas as esferas da vida social. Por
isso, atitudes mais cívicas aparecem facilmente quando uma determinada sociedade possui uma
tradição de capital social, o que aconteceu como norte da Itália. “Quanto mais elevado o nível de
confiança numa comunidade, maior a probabilidade de haver cooperação. E a própria
cooperação gera confiança. A progressiva acumulação de capital social é uma das principais
responsáveis pelos círculos virtuosos da Itália cívica”(Ibdem, p. 180).
No Brasil, o debate sobre capital social ainda é incipiente. A produção nacional tem
circulado em torno de três grandes discussões: um primeiro grupo de analistas vem utilizando o
conceito na análise dos processos de democratização. Os elementos centrais nessa corrente são
as relações de causalidade entre confiança interpessoal x confiança nas instituições x
consolidação democrática. Autores como Marcello Baquero e Lúcio Rennó são alguns dos
expoentes dessa perspectiva analítica. Os trabalhos de Baquero (2001, 2002, 2003, 2004a,
2004b) têm diagnosticado um déficit de legitimidade na democracia brasileira, provocado pela
ausência de confiança interpessoal e nas instituições políticas.
Um segundo eixo analítico nos estudos de capital social no Brasil é constituído por
aqueles relacionados à análise de políticas públicas e/ou desempenho governamental. Autores
como Boschi (1999), Borba (2003) e outros têm testado possíveis correlações entre os estoques
de capital social e o êxito ou o fracasso governamental.
Como terceiro eixo de análise, encontram-se os trabalhos teóricos destinados a testar a
validade dos pressupostos e construtos presentes na teoria do capital social. Entre os teóricos,
destacam-se Rennó (2000, 2001) e Reis (2003). O primeiro analisou duas metodologias para a
mensuração da confiança interpessoal, destacando as imprecisões presentes no modelo
formulado por Putnam. O segundo autor referido parte para uma análise detalhada dos conceitos
de capital social e confiança interpessoal, destacando as insuficiências analíticas presentes na
81
obra de Putnan. Reis destaca que o conceito de capital social abriu uma agenda de pesquisa
promissora, mas “imatura”, tanto em sua operacionalização empírica, quanto na falta de
especificação analítica precisa do significado de suas categorias centrais.
Ainda no campo dos questionamentos ao conceito, aparecem os trabalhos de
Przeworsky, Limongi e Cheibub (2003) e Santos (2004), que buscam refutar a correlação,
identificada na teoria do capital social, entre cultura e democracia. Para esses autores, variáveis
econômicas e institucionais teriam mais importância na consolidação dos processos de
democratização do que os níveis de confiança e adesão dos cidadãos para com o regime
democrático, como quer a teoria do capital social.
Esse breve balanço da literatura sobre capital social no Brasil, longe de esgotar o tema,
pretendeu destacar a relevância que essa discussão vem assumindo nas Ciências Sociais. Várias
pesquisas empíricas vêm sendo executadas sob tal perspectiva teórica, juntamente com tentativas
de refutação do modelo desenvolvido por Putnam. O que mais estranha nessa discussão é que,
justamente aqueles que deveriam e/ou poderiam ser os principais interlocutores de tal
perspectiva, ou seja, os defensores das teorias dos movimentos sociais e da sociedade civil, é que
têm se mantido alheios ao que está sendo produzido na área. Na próxima seção, buscarei realizar
um confronto entre tais perspectivas teóricas.
Um balanço crítico a respeito do conceito de sociedade civil e capital social
Confrontar teorias, de alguma forma, implica o exercício de julgar. Naturalmente, não
se trata de julgamentos de valor, mas, acima de tudo, a partir do critério fundamental que orienta
a validade das teorias: verdade e falsidade. Como falar de correção e adequação em relação aos
conceitos dos quais estamos tratando?
Visando superar este dilema, vamos adotar três perspectivas. A primeira, mais ampla e
global, procura situar essas teorias em seu momento histórico avaliando suas contribuições em
relação aos contextos nos quais foram gestadas. A segunda, de médio alcance, vai procurar
avaliar esses conceitos a partir de critérios inerentes às próprias teorias. No terceiro nível –
situado no plano micro - por sua vez, esses conceitos serão avaliados a partir do seu grau de
operacionalização para fins de pesquisa.
Conforme já demonstramos em nossa introdução, as teorias dos “movimentos sociais”,
“sociedade civil” e “capital social” parecem responder a contextos históricos diferentes, com
desafios teóricos e, também, políticos que são distintos. Esses contextos também afetam as
82
contribuições que buscamos extrair das teorias. O conceito de movimentos sociais, por exemplo,
apesar da sua força nos anos 1980 e 1990 (e de sua validade permanente, é claro), traduzia o
contexto do regime militar no qual os atores organizados se colocavam contra o Estado, ou “de
costas” para ele, como sugeriam certos autores. Seu problema maior, portanto, foi ignorar o
papel do Estado enquanto ator político (Doimo, 1999). Diferente foi a situação do conceito de
sociedade civil. Ele não só ajudava a explicar o contexto da “oposição” ao regime militar mas,
acima de tudo, permitia lançar luzes sobre o processo de transição para a democracia. Sua
principal contribuição foi mostrar que os movimentos sociais contribuíam com a democratização
a partir da promoção de uma cultura política mais democrática que servia de base social para as
instituições formais de representação política.
Todavia, nos anos 90, com a institucionalização da democracia representativa (para não
falar de “consolidação”, o que ainda causa polêmicas), o desafio empírico, político e, exatamente
por isso, teórico, era explicar os processos de “governança participativa” (o termo “concertação
social” também é utilizado), ou seja, a produção de políticas públicas em arenas de decisão
conjunta entre sociedade civil e Estado (arranjos participativos). É justamente o desafio de
explicar esta nova realidade que parece ser a maior falha da perspectiva da sociedade civil.
Vamos esclarecer melhor este ponto.
Não se trata de negar que o conceito de sociedade civil consegue acompanhar o
movimento dos atores organizados em direção ao Estado. Nem de que ele consegue medir os
efeitos que essa nova postura implica para os próprios movimentos em questão. O problema é
que ele não possui instrumentos heurísticos para centrar seu foco na variável “políticas
públicas”, que é central neste processo. Ora, é justamente esta lacuna que o conceito de capital
social consegue preencher. Seu mérito é que seu ponto de partida não é “societário” ou, dito de
outra forma, não se localiza no mundo da vida, na sociedade civil ou na esfera pública e nem
mesmo “estatal”, ou seja, localizado nos aparelhos decisórios do Estado. Pelo contrário, ele é
essencialmente “relacional”, pois o pressuposto fundamental da teoria do capital social de
Putnam é de que a densidade associativa aumenta a eficiência e eficácia das políticas públicas.
Ou (já que estamos falando de uma perspectiva relacional), a eficiência das políticas públicas é
condicionada pela densidade do tecido associativo, pelas relações de confiança e reciprocidade e
pelo grau de cultura cívica (comunidade cívica, no dizer de Putnam).
Todavia, a mudança no contexto social e seus reflexos na preocupação dos analistas não
é critério para avaliar teorias. Trata-se, no máximo, de elementos que contribuem para seu
entendimento. Somos remetidos, assim, para um segundo nível de análise, o teórico
propriamente dito. E é aqui que as questões se decidem.
83
No caso em questão, a grande diferença entre a teoria da sociedade civil e a teoria do
capital social é quanto ao grau de normatividade das mesmas. Em outros termos, a teoria da
sociedade civil é fortemente normativa, ou seja, privilegia o “dever ser”. Já o conceito de capital
social é muito mais descritivo, quer dizer, privilegia “o ser”. Isto não exclui a orientação
empírica do conceito de sociedade civil e nem nega os pressupostos valorativos da categoria
capital social. O que varia, no fundo, é a ênfase maior no aspecto normativo ou descrito, que é
diferente nos dois casos. Naturalmente, estamos conscientes de que a oposição em questão
(idealismo x realismo) atravessa toda a história do pensamento político e social (basta lembrar da
polêmica entre positivistas x teoria crítica, nos anos 60, por exemplo). Mas se o que desejamos é
fazer ciência política e não filosofia política (sem negar, de nenhuma forma, sua validade), o
critério de validação de nossas teorias só pode ser empírico e não normativo. Daí, mais uma vez,
a força do conceito de capital social8.
De qualquer forma, o conceito de capital social não está desprovido de dimensões
valorativas. Ele conserva as preocupações idealistas da abordagem da sociedade civil. Além do
mais, a dimensão ideal dos atores organizados (seu caráter democrático, relações horizontais,
potencial de transformação, etc.) é avaliada com muito mais cuidado. Isso porque, no esquema
formal de Habermas, a sociedade civil já tem garantida uma lógica comunicativa mas o que é
válido, do ponto de vista conceitual, nem sempre é verdadeiro do ponto de vista empírico e, neste
caso, real. Quanto ao conceito de capital social, mais do que sua dimensão quantitativa (tecido
associativo), aparece ainda um elemento qualitativo que pode estar presente ou não: relações de
confiança. Ou seja, não é apenas o “número” de associações que conta mas a cultura cívica
presente nestas e o grau de confiança entre sociedade e instituições. Em síntese, no esquema de
Habermas a dimensão normativa dos atores organizados (sociedade civil) é “apriorística”
enquanto que, no esquema de Putnam, suas dimensões ideais podem ser avaliadas “a posteriori”
a partir de critérios teóricos e procedimentos de mensuração próprios.
Este assunto já nos remete para o terceiro nível de nossa análise: a dimensão micro.
Trata-se agora de, bem perto do plano empírico, avaliar a utilidade dessas teorias para o plano da
pesquisa social. E aqui, mais uma vez, a teoria do capital social oferece critérios muito mais
precisos para medir os impactos da participação comunitária na qualidade das políticas públicas
ofertadas. É claro que os instrumentos elaborados por Putnam não podem ser acriticamente
transpostos para o caso brasileiro. É preciso adequar os indicadores. Mas uma preocupação como
essa nem de longe ronda a teoria da sociedade civil.
8
Isso não significa dizer que o conceito de capital social esteja isento de críticas quanto às suas evidências
empíricas. Veja-se, por exemplo, Santos (2004), Reis (2003) e Przeworski e outros (2003).
84
Esta aparente defesa da teoria do capital social em relação à teoria da sociedade civil
(que nem de longe são completamente opostas) pode até dar a falsa impressão de uma opção
exclusiva por um dos lados em questão. Não se trata disso. Como já dissemos, avaliar implica
adotar critérios. E, neste caso, transparece que toda nossa discussão aponta para a tese de que o
conceito de capital social oferece instrumentos mais precisos e operacionalmente úteis para
explicar o grande desafio empírico, político e teórico do século XXI: a ação do Estado (políticas
públicas) levando em consideração sua interação com a comunidade e suas parcelas organizadas.
Se nossa preocupação é essa, o conceito de capital social tem muito a nos oferecer.
Diante desse quadro, resta ainda uma preocupação. Não teria o conceito de capital social
se rendido cedo demais à institucionalização da sociedade civil? Não estaria ele encobrindo a
burocratização dos movimentos sociais? Se a suspeita de Céli Pinto (2004) a respeito da
cooptação governamental dos atores sociais estiver correta, a lembrança de Sérgio Costa talvez
também esteja: qual é, de fato, o lugar da comunidade na produção de políticas públicas? Não é
este um desafio do Estado? Mas não estaríamos negando assim a validade da “governança
participativa”? O debate permanece aberto mas, por ora, precisamos acompanhar o que está
acontecendo. A pergunta-chave é: existe de fato uma correlação positiva entre capital social e
qualidade das políticas públicas? Precisamos respondê-la. Vamos, então, a Putnam!
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A DIMENSÃO INTANGÍVEL DO DESENVOLVIMENTO: ALGUMAS REFLEXÕES
PRELIMINARES
Valdir Roque Dallabrida
Professor e pesquisador do Departamento de Ciências Sociais da UNIJUÍ, mestre e doutor em
“Desenvolvimento Regional” pela UNISC.
E-mail: [email protected]
Introdução
Muito já se tem escrito nas últimas décadas, destacando a importância do capital social
nos processos de desenvolvimento territorial. Em menor intensidade, outros autores têm feito
este mesmo destaque, no entanto, utilizando outros conceitos, como capital sinergético,
densidade institucional e empoderamento.
Pessoalmente, tenho argumentado que o desenvolvimento, além da dimensão tangível
(material), que tem nos aspectos econômicos sua expressão maior, possui uma dimensão
intangível (imaterial). Assim, dentre os fatores causais do desenvolvimento, a dimensão possível
de ser expressa pelos indicadores econômicos refere-se à dimensão tangível, enquanto a
dimensão intangível refere-se à capacidade coletiva para realizar ações de interesse societário.
Com isso, seria possível afirmar que o desenvolvimento territorial pode ser entendido como um
estágio do processo de mudança estrutural empreendido por uma sociedade organizada
territorialmente, sustentado na potencialização dos capitais e recursos (materiais e imateriais)
existentes no local, com vistas à melhoria da qualidade de vida de sua população (Dallabrida,
2003).
89
Assim, o conceito de desenvolvimento, ora assumido, inclui a sua dimensão intangível,
contemplada no sentido dos conceitos acima expressos. Da mesma forma, quando, ao focar a
temática do desenvolvimento no território, se elegem as variáveis inovação territorial e
organização socioterritorial como fundamentais para a geração de processos qualificados de
desenvolvimento territorial, quando se afirma que não só as interdependências mercantis, mas
também as interdependências não-mercantis são responsáveis pela geração de inovações – estas
fundamentais para o desenvolvimento territorial -, e que a inovação não resulta apenas dos
esforços de pesquisa e desenvolvimento que ocorrem internamente nas empresas, mas que
também resulta de aprendizagens coletivas, está se reafirmando a dimensão intangível do
desenvolvimento1.
Para aprofundar essas reflexões, neste capítulo, inicialmente, revisam-se sinteticamente
quatro conceitos – capital social, capital sinergético, densidade institucional e empoderamento -,
para, na seqüência, introduzir algumas reflexões que ressaltam a dimensão intangível do
desenvolvimento. Destaca-se também uma vertente da Geografia, a Geografia Cultural, como
uma base teórica desta ciência para fundamentar o enfoque em questão.
Revisando conceitos
Pretende-se, revisar, sinteticamente esses quatro conceitos: capital social, capital
sinergético, densidade institucional e empoderamento.
Capital Social
O conceito de capital social popularizou-se, no Brasil e América Latina, após a
publicação do livro de Robert Putnam (Comunidade e democracia) sobre os governos regionais
na Itália, atualmente já com várias edições publicadas.
Flores & Rello (2003, p. 205), referindo-se ao conceito de capital social, destacam que a
revisão da literatura especializada permite elaborar uma síntese das principais definições, de
acordo com suas fontes, focadas na ação coletiva e nos resultados. Assim, (1) segundo Coleman
(1990), o capital social refere-se aos aspectos da estrutura social que facilitam certas ações
1
Temos focado tal temática, principalmente, em três oportunidades: Dallabrida; Siedenberg e Fernández (2004b) e
Dallabrida; Siedenberg e Fernández (2004c).
90
comuns dos atores dentro da estrutura; (2) segundo Bourdieu (1985), refere-se às redes
permanentes e próximas de um grupo que asseguram a seus membros um conjunto de recursos
atuais ou potenciais; (3) segundo Putnam (2000), refere-se aos aspectos das organizações sociais,
tais como as redes, as normas e a confiança, que permitem a ação e a cooperação para benefício
mútuo; (4) segundo Fukuyama (1995), refere-se aos recursos morais, confiança e mecanismos
culturais que reforçam os grupos sociais.
Diferentes documentos do Banco Mundial têm definido capital social referindo-se às
instituições, relações, atitudes e valores que governam a interação de pessoas e facilitam o
desenvolvimento econômico e a democracia. Ainda, segundo os autores neoweberianos, capital
social refere-se aos laços e normas que ligam os indivíduos dentro das organizações. Já para
Durston (2000), o conceito de capital social faz referência às normas, instituições e organizações
que promovem a confiança, a ajuda recíproca e a cooperação. Para ele, o paradigma do capital
social propõe que as relações estáveis de confiança, reciprocidade e cooperação podem
contribuir com três tipos de benefícios: (1) reduzir os custos de transação; (2) produzir bens
públicos; e (3) facilitar a constituição de organizações de gestão de base efetivas, de atores
sociais e de sociedades civis saudáveis.
Coleman (1990), ao definir o capital social como o componente de capital humano que
permite aos membros de uma sociedade dada confiar um no outro e cooperar na formação de
novos grupos e associações, admite que, da mesma forma que outros tipos de capital, o capital
social é produtivo. Um grupo, cujos membros confiem amplamente uns nos outros, estará
habilitado a conseguir muito mais, em comparação a um grupo em que não existe a
confiabilidade nem a cooperação. O capital social aumenta na medida em que é utilizado e
diminui pelo desuso, uma característica de quase todas as formas de capital intangível.
Durston (2003) refere-se à existência de seis diferentes formas de capital social, dentre
as quais estão o capital social individual e o comunitário. O capital social individual, segundo
ele, manifesta-se nas relações sociais dualistas, entre duas pessoas, conformando-se através de
redes egocentradas. Por outro lado, o capital social comunitário, segundo o autor, é o nível do
capital social que chega a ser plenamente coletivo. Este consta das estruturas que conformam a
constitucionalidade da cooperação comunitária e reside não somente nas relações dualistas ou
grupais (capital social individual ou grupal), senão também no sistema sociocultural próprio de
cada comunidade, em suas estruturas normativas, gestionárias e sancionadoras. O capital social
91
comunitário complementa os serviços públicos, robustecendo a participação comunitárioassociativa, além de interferir positivamente no associativismo empresarial2.
Sem maiores aprofundamentos teóricos, vê-se, então, que a presença de uma maior
densidade de capital social, numa determinada sociedade localizada temporal e espacialmente, é
fundamental para o desenvolvimento territorial.3
Capital Sinergético
O termo capital sinergético é fundamental para ampliar o sentido do capital social.
Boisier (1999) afirma que, apesar do modismo atual acerca do conceito de capital social, moda
que tem penetrado até no tabernáculo do Banco Mundial, o conceito de capital sinergético é
muitíssimo mais amplo e ambicioso que a idéia de Coleman, fonte original do conceito.
Admitir o conceito de capital sinergético implica a aceitação da concepção teórica em
que se admite que o desenvolvimento possui uma dimensão intangível, subjetiva e valorativa.
Trata-se de admitir a natureza intangível dos fatores causais do desenvolvimento, que Boisier
(1999) denomina de capitais intangíveis, tais sejam: capital cognitivo, cultural, simbólico, social,
cívico, institucional, psicossocial, humano e midiático.
Capital sinergético deriva da idéia expressa no conceito de sinergia. O uso desse é mais
comum na Biologia ou Anatomia, para referir-se ao esforço simultâneo de vários órgãos ou
músculos na realização de uma função, derivando da expressão grega synergeia. Mas aqui o
sentido de sinergia é outro, ou seja, como definido por Sommer (1996, apud. Boisier, 2003, p.
28): um sistema de interações entre dois ou mais atores ou centros de ação. Ou ainda, como
sinergia cognitiva: “a capacidade coletiva para realizar ações em comum sobre a base de uma
mesma interpretação da realidade e de suas possibilidades de mudança” (Sommer, apud. Boisier,
2003, p. 28).
O conhecimento do conceito de capital sinergético nos meios acadêmicos brasileiros
tem ocorrido principalmente através de artigos de Sérgio Boisier (op. cit). O autor tem definido o
conceito em vários de seus escritos. Dá-se destaque a um deles: (...) a capacidade, real ou latente,
de toda a comunidade, para articular de forma democrática as formas de capital intangível que se
encontram na comunidade, dando-lhes uma direcionalidade consensuada. Isto resulta num
2
3
Adiante esta questão é retomada, relacionando-a com o empoderamento e o clientelismo.
Artigo recente (Ramos e Marino, 2004), contribui na compreensão do papel do capital social, como fator
explicativo das diferenças regionais de desenvolvimento, no Estado do Rio Grande do Sul.
92
desenvolvimento endógeno como uma propriedade emergente de um sistema territorial
altamente sinergizado. Um projeto político de desenvolvimento regional é a fórmula para fazer
operar o capital sinergético, ao dar densidade e direcionalidade à articulação de capitais
intangíveis” (2001, p. 37).
Em síntese, poder-se-ia entender o capital sinergético como a capacidade presente de
forma potencial ou real em toda a sociedade organizada territorialmente, que, pela sua ativação, é
capaz de promover ações conjuntas dirigidas a fins coletivos, como, por exemplo, o
desenvolvimento, através de consensos mínimos definidos democraticamente. Como toda forma
de capital, sua reprodução ou ampliação pode ser feita mediante fluxos de energia ou estímulos
externos.
É indiscutível a importância do entendimento do sentido expresso nesse conceito, na
potencialização de processos de desenvolvimento territorial.
Densidade Institucional
Amin e Thrift (1995), ao ressaltarem a função da intensificação das interdependências
mercantis e não-mercantis que se desenvolvem no território (especialmente estas últimas),
introduzem o conceito de densidade institucional, para referir-se à presença, no território, de
uma significativa quantidade de instituições (entendidas como atores públicos e privados) e
intensas e qualificadas formas de cooperação intra e interinstitucionais, geradas localmente.
Fernández (2004), inclui a densidade institucional regional como um dos componentes
de um triângulo de conceitos formados, além desta, pela inovação coletiva territorial e as
cadeias de valor4, relevantes para formular uma nova estratégia de investigação (e
desenvolvimento) regional, superadora das críticas formuladas à especialização flexível e aos
distritos industriais, a partir da primeira metade da década de 90. Assim, a densidade
institucional de um determinado território implica a existência e o desenvolvimento coordenado
de dois elementos fundamentais: (1) por um lado, uma sólida presença institucional (formal) no
território, representada por empresas, associações empresariais, instituições financeiras,
Organizações Não-Governamentais (ONGs), agências de desenvolvimento, escolas técnicas,
centros de serviços, instituições tecnológicas e universidades, e (2), por outro lado, o
4
Entendida como o conjunto completo de atividades, conceitualmente organizáveis em forma de etapas, que são
requeridas para que um produto ou serviço seja concebido, produzido, entregue, consumido e, finalmente, eliminado
ou reciclado (Fernández, 2004).
93
desenvolvimento de formas de cooperação entre estes atores, a partir da consolidação, entre todo
esse complexo de atores, de uma consciência de pertença mútua a uma dinâmica territorial e ao
desenvolvimento de um padrão de coalizão representativo dos interesses locais (idem).
As ações de cooperação resultantes da presença de uma boa densidade institucional
contribuem para diferentes objetivos, tais como, por exemplo, a capacitação dos atores
empresariais e institucionais, o desenvolvimento ou aquisição de tecnologias, a difusão de novas
formas de produção ou comercialização, o compartilhamento padrões de qualidade mínimos na
produção local, ou o desenvolvimento de ações conjuntas para a comercialização de produtos,
dentro ou fora do âmbito local. Logo, o componente da densidade institucional é definidor para a
presença, a continuidade e expansão de todas as formas de cooperação, transformando-se num
insumo fundamental na explicação das diferentes trajetórias de desenvolvimento territorial. A
cooperação territorial, em todas as suas formas, atua, por sua vez, como fundamento de geração e
solidificação de redes e o desenvolvimento de governança territorial, portanto, do corpo de
aprendizagens e inovações coletivas que ocorrem no território (2004).
Inúmeros estudos de caso, relatados na farta literatura que aborda a questão do
desenvolvimento local-regional-territorial, têm levado muitos autores a reconhecer como
principal obstáculo, para a ação cooperativa, a falta de instituições sólidas e interação entre
atores e instituições, reconhecendo com isso ser a densidade institucional fundamental para a
evolução das aglomerações industriais regionais, bem como ao desenvolvimento territorial.
Veja-se que é possível fazer uma relação crescente de importância no desenvolvimento
territorial, comparando o sentido atribuído, respectivamente, aos conceitos de capital social,
capital sinergético e densidade institucional. No seu conjunto, contemplam de forma adequada às
dimensões imateriais do desenvolvimento.
Empoderamento
Putnam (1993) tem sugerido que a teoria do capital social aprofunda a base conceitual
do chamado empoderamento5. O empoderamento, no contexto de uma estratégia social, é um
processo “consciente e intencionado que tem como objetivo a igualação de oportunidades entre
atores sociais. O critério central é de transformação de setores sociais excluídos em atores, e de
5
O conceito de empoderamento (português), foi introduzido na literatura internacional na obra de Friedman (1996):
Empowerment: uma política de desenvolvimento alternativo, traduzida para o português pela Editora Celta, de
Portugal.
94
nivelamento para cima de atores débeis” (Durston, 2000, p. 33). Trata-se de um processo que
objetiva criar e/ou desenvolver autoridade e habilidades. Sustenta-se no princípio de que o grupo
protagoniza seu próprio empoderamento, sendo a antítese do clientelismo, a essência da
autogestão.
Reforçando esta mesma concepção, Sen (1998) também faz uma relação entre capital
social e empoderamento. Para a autora, empoderamento significa alterar as relações de poder a
favor daqueles que previamente exerciam pouco poder em suas próprias vidas.
Segundo Durston (2000), as condições necessárias para que haja empoderamento pleno
inclui em: (1) a criação de espaços institucionais adequados para que setores excluídos
participem no que-fazer político público; (2) a formalização de direitos legais e atenção com seu
conhecimento e respeito; (3) o fomento a formas de organização em que as pessoas que integram
o setor social excluído possam efetivamente participar e influir nas estratégias adotadas pela
sociedade; (4) a transmissão de capacidades para o exercício da cidadania e da produção,
incluindo os saberes instrumentais essenciais, além de ferramentas para analisar dinâmicas
econômicas e políticas relevantes; (5) a criação de mecanismos e controle sobre recursos e ativos
(materiais, financeiros e de informação), para possibilitar o efetivo aproveitamento de espaços,
direitos, organização e capacidades, em igualdade de condições com outros atores; por fim, (6)
uma vez construída esta base de condições facilitadoras do empoderamento e construção de um
ator social, torna-se relevante uma participação efetiva, com a apropriação de instrumentos e
capacidades propositivas, de negociação e executivas (p. 34).
As sociedades que dispõem de um maior estoque de capital social podem cumprir
melhor e mais rapidamente com estas condições do empoderamento. A formação de redes de
poder, para fortalecer sua posição frente a atores mais poderosos, torna-se uma exigência dos
setores sociais mais excluídos do processo de decisão. Este elemento é fundamental nos
processos de planejamento do desenvolvimento6.
A questão da existência de capital social, ou mesmo capital comunitário, como condição
essencial para o empoderamento, remete ao debate do clientelismo. Infelizmente, em maior ou
menor grau, todos os governos do mundo estão cruzados pelo clientelismo político, pois é um
dos aspectos da democracia parlamentar, junto com o lobby, resultantes dos diferentes interesses
de grupos e atores para controlar espaços estatais. Pelo fato de que uma rede tanto pode servir
para libertar, quanto para oprimir, os grupos de poder mais débeis podem acabar sofrendo perdas
ao invés de conseguir o desejado empoderamento.
6
Em outra oportunidade (Dallabrida e Becker, 2003), tratamos sobre essa questão, referindo-se às redes de poder
socioterritorial, como atores público-privados essenciais para a governança territorial.
95
A ação mais ou menos clientelista do Estado, da mesma forma, contribui para aumentar
ou diminuir o capital social coletivo. Neste sentido parece muito esclarecedor o quadro
elaborado por Durston (2003), reproduzido a seguir, relacionando a tipologia de relações entre o
Estado e o capital social coletivo. De qualquer forma, fica o registro da importância de que as
chamadas condições essenciais para a consecução do empoderamento precisam ser construídas e
que o Estado tem um papel fundamental, podendo tanto contribuir positiva, como negativamente.
Quadro nº 1 - Tipologia de relações entre o Estado e o capital social coletivo
Clientelismo
Reprime com violência o capital social popular.
autoritário: repressivo e/ou
cleptocrático
-
Clientelismo
passivo:
C
Transforma capital social em reciprocidade passiva de
paternalista, produtos ou cria dependência.
tecnocrático, burocrático ou
A partidarista
P
I
Semiclientelismo:
incubador e capacitador
Fomenta organização autônoma, capacita em capacidades de
gestão e propositividade. Protege a organização no campo social,
econômico e político local e regional.
T
Agência
A
Segue desenvolvendo sistema de autogestão de organização
empoderadora e apoiadora
L
territorial de ação e fortalece atores sociais débeis.
Sinergia:
S
já estruturada e funcionando com certa autonomia. Aumenta o nível
côo-
Organizações de base e de segundo nível determinam e
produção Estado-sociedade gerem suas próprias estratégias, celebram contratos com o Estado e
civil
O
C
I
A
L
+
FONTE: DURSTON, 2003, p. 192
outras agências externas, gerenciam recursos financeiros e contratam
pessoas para co-produzir melhorias na qualidade de vida de seus
integrantes. Os funcionários públicos e técnicos contratados prestam
contas a usuários organizados.
96
Após essa sintética abordagem sobre empoderamento, parece ficar uma questão: mesmo
que desejável, é possível construir capital social, ou capital sinergético, ou densidade
institucional? Como decorrência, outra questão: se é possível, como fazê-lo?
Pessoalmente, tenho claro que esses questionamentos não são possíveis de responder
apenas num texto, nem num livro. Aqui, apenas tenho o objetivo de levantar a questão,
colocando-me a disposição para trocar impressões com intelectuais e pesquisadores do tema. No
entanto, compartilho com a posição de Durston (2000; 2003) quando se refere às condições
necessárias para que haja empoderamento, além do papel de destaque dado por ele ao Estado.
Contribuições da perspectiva territorial para a dimensão intangível do desenvolvimento
Das várias questões privilegiadas no debate contemporâneo sobre desenvolvimento7,
uma merece destaque: a que trata do redimensionamento das dimensões hardwave, software e
orgware do desenvolvimento local ou regional (Vázquez-Barquero, 1996).
A dimensão hardware do desenvolvimento refere-se “a todas as infra-estruturas que
servem de base aos processos de mudança estrutural e que são instrumentos indispensáveis para
o funcionamento do sistema produtivo” (p. 105). As ações orientadas a melhorar o hardware do
desenvolvimento propõem-se a dotar o território de infra-estruturas com o valor estratégico que a
competitividade dos mercados exige. Dirigem-se a melhorar as redes de transporte e
comunicações, dotar os locais de condições físicas que facilitem a localização de empresas e
construir instalações relacionadas à educação, cultura, saúde e bem-estar das pessoas residentes
num território/região, como escolas, hospitais, áreas de lazer e outros. Em síntese, trata-se de
ações relacionadas à política regional tradicional, em que se destacam os investimentos estatais.
Um dos elementos
diferenciadores
mais
importantes da nova política de
desenvolvimento local ou regional, segundo Vázquez-Barquero (1996), constitui a dimensão
software: “A formam todas as iniciativas que incidem sobre os aspectos qualitativos do
desenvolvimento e, que têm um caráter imaterial [ou intangível]” (p. 105). Incluem as medidas
que incidem sobre fatores como a qualificação dos recursos humanos, o know-how tecnológico e
inovador, a difusão da tecnologia, a capacidade empreendedora, a informação existente nas
empresas, demais organizações e instituições, e a cultura da população. As iniciativas voltadas a
melhorar o software do desenvolvimento local ou regional, ao promover o surgimento e
7
Em Dallabrida, Siedemberg e Fernández (2004c), sintetizam-se os principais enfoques do desenvolvimento que
contemplam a perspectiva territorial.
97
desenvolvimento das empresas e a criação e difusão das inovações no tecido produtivo e no
território constituem um dos pontos vitais da política de desenvolvimento. Propõem-se a
desenvolver o tecido produtivo local, fazendo com que as empresas industriais e de serviços
sejam competitivas e inovadoras e, em definitivo, melhorem em dinâmica de aprendizagem, o
que permite responder competitivamente aos desafios da globalização, pois a “difusão das
inovações é um dos eixos principais da política de desenvolvimento local” (p. 106).
No entanto, a dimensão orgware do desenvolvimento local ou regional, é elemento
central numa nova política de desenvolvimento localizado. Refere-se às ações relacionadas a
melhorar a organização social para o desenvolvimento8. “Consiste em melhorar a capacidade de
organização que existe na cidade ou região [ou território] e lhe permite dar uma resposta eficaz
aos problemas e desafios que tem a superar” (p. 107).
A abordagem feita por Vázquez-Barquero sobre as políticas de desenvolvimento local
ou regional, a partir do desencadeamento de ações nas dimensões harware, software e orgware,
mereceu destaque em duas oportunidades por Fernández (2003; 2004), em que reforça o papel da
dimensão orgware, por referir-se à capacidade auto-organizativa territorial, ou seja, a
capacidade de organização econômica, social e institucional do território. A maior atenção à
dimensão orgware do desenvolvimento constitui uma das condições indispensáveis para que
municípios, regiões ou territórios, desenvolvam processos inovativos, com reflexos positivos no
seu desenvolvimento.
O autor tem ressaltado ainda duas linhas estratégicas no marco do orgware territorial
(Fernández, 2003), ambas relacionadas ao que Storper (1995) tem denominado traded e
untraded interdependencies. Na dimensão das traded interdependencies, estão presentes as
relações de mercado, ainda que contemple também um complexo de práticas de cooperação entre
os agentes econômicos do território. Os atores aqui são as empresas. Já as untraded
interdependencies (interdependências não-mercantis), sobre elas tem se depositado a
possibilidade de construção de um padrão de desenvolvimento que abranja, além da dimensão
econômica, a social, a política, a ambiental e a cultural. Neste campo de inter relações tem-se
montado um verdadeiro paradigma organizativo-funcional, estruturando-se sobre redes de atores
sociais, institucionais e econômicos de um determinado âmbito territorial, envolvendo sua força
de trabalho, os organismos técnicos encarregados da geração de conhecimentos específicos e
aplicados (institutos técnicos) e o governo local ou regional.
8
Sobre a questão da organização social para o desenvolvimento, merece atenção abordagem feita em Dallabrida e
Büttenbender (2003) e Dallabrida, Becker e Rambo (2003).
98
Esse complexo de atores edifica um processo de regulação coletiva, ou um modo
específico de governança territorial9, conformado pelas redes empresariais, que correspondem
ao conjunto de interações empresariais indispensáveis para organizar a produção, adquirir
insumos, comercializar produtos, ou concretizar a introdução de inovações incrementais, e pelo
desenvolvimento do orgware territorial (Fernández, 2003), ou densidade institucional. Este é um
componente fundamental para qualificar os processos de organização socioterritorial, dinamizar
o sistema produtivo e, assim, qualificar o processo de desenvolvimento. Esse circuito de
interações, ao mesmo tempo em que é resultado, tem como produto principal a geração de um
maior capital social e, como efeito mais relevante, a emergência e desenvolvimento de processos
sistemáticos e incrementais de aprendizagens coletivas geradas no nível territorial (Camagni,
1991).
Assim, é possível concluir que, dentre os esforços empreendidos ao longo da década de
90 para buscar respostas às interrogações que persistem sobre a viabilidade do desenvolvimento
localizado, as que estiveram centradas na capacidade auto-organizativa das regiões, merecem
maior destaque. Isso porque os aspectos relacionados ao orgware regional e local contribuem
para a edificação de uma sólida governança territorial, formada pela ampliação e qualificação de
redes sinérgicas entre os atores, as pequenas e médias empresas, a força de trabalho e o
complexo de instituições públicas e semi-públicas com base na sociedade civil, que operam no
nível intraterritorial (Fernández, 2003).
A contribuição da geografia cultural na compreensão da dimensão intangível do
desenvolvimento
Inicialmente, para falar da contribuição da Geogafia Cultural para a compreensão da
dimensão intangível do desenvolvimento10, parece indispensável expressar um conceito de
cultura: “Cultura é um conjunto de idéias, hábitos e crenças que dá forma às ações das pessoas e
à sua produção de artefatos materiais, incluindo a paisagem e o ambiente construído. A cultura é
socialmente definida e socialmente determinada. Idéias culturais são expressas nas vidas de
grupos sociais que articulam, expressam e contestam esses conjuntos de idéias e valores, que são
eles próprios específicos no tempo e no espaço. Como a última frase deixa claro, idéias e valores
9
Para o aprofundamento dessa temática, sugerem-se duas obras: Dallabrida e Becker (2003) e Dallabrida (2003).
10
Essa parte do texto contempla, em boa parte, uma síntese da obra de um dos principais expoentes da Geografia
Cultural, Paul Claval (2001).
99
culturais são ligados a relações de poder. Determinados grupos na sociedade tentam impor sua
definição de cultura e outros grupos contestam” (McDowel, 1996, p. 161 – Grifo do autor)11.
É fundamental lembrar que essa definição é contemporânea. Até meados das décadas de
60 e 70, era realçada a dimensão material da cultura, entendendo-a como o conjunto de artefatos
e utensílios e todas as associações de plantas e animais que os diferentes grupos sociais
aprendem a mobilizar para modificar o meio.
A abordagem cultural se impõe à Geografia há mais de trinta anos. Isto não significa
dizer que os fatos da cultura não tenham sido considerados desde o nascimento da geografia
humana, no final do século XIX, com autores clássicos como Friedrich Ratzel, Paul Vidal de la
Blache e Jean Brunhes, só para citar alguns. Os fatos culturais eram, no entanto, tratados em sua
tradução material, por meio de artefatos criados pelos homens, dos gêneros de vida que os
colocavam em ação e das transformações que introduziam nas paisagens. Portanto, as
abordagens iniciais da Geografia Cultural eram limitadas. Mostravam a diversidade das
paisagens cultivadas, dos campos, dos sistemas agrícolas, dos tipos de habitat rural, dos traçados
da cidade, da arquitetura e das construções, mas eram incapazes de “esclarecer a dinâmica dos
comportamentos humanos” (Claval, 2001, p. 36).
Desde as décadas de 50 e 60, alguns geógrafos tentam modernizar os estudos
consagrados aos fatos culturais. Compartilham a vontade explicativa da nova geografia, no
entanto a consideram simplificadora. Para eles, a lógica do comportamento humano não é
universal, posição que os aproxima de teses de Max Weber, de que as escolhas humanas são
previsíveis, mas a perspectiva na qual elas se inscrevem não é universal. As escolhas humanas
são, ou precisam ser, até certo ponto, racionais. No entanto, não no sentido de acreditarem no
utilitarismo universal dos economistas (Claval, 2001).
A rapidez com que a uniformização técnica do mundo progride, graças à racionalização
dos processos de fabricação e à universalização das mudanças, condena os estudos centrados
sobre os artefatos e as paisagens, ou seja, os aspectos materiais da cultura. Recentemente tais
estudos voltam-se para a geografia histórica ou escolhem trabalhar em países ditos não
desenvolvidos, onde as formas tradicionais de atividade ocupam lugar importante. Assim, o
estudo dos aspectos culturais das distribuições humanas, a partir do início da década de 70, se
embasa numa mudança de atitude, pela constatação de que (...) as realidades que refletem a
organização social do mundo, a vida dos grupos humanos e suas atividades jamais são puramente
11
Para uma reflexão inicial, ressalta-se que grande parte dos elementos teóricos que compõem o conceito de cultura
expresso, e assumido pessoalmente, contempla muitos dos elementos teóricos contidos nos conceitos de capital
social, capital sinergético e densidade institucional.
100
materiais. São a expressão de processos cognitivos, de atividades mentais, de trocas de
informação e de idéias. As relações dos homens com o meio ambiente e com o espaço têm uma
dimensão psicológica e sociopsicológica. Nascem das sensações que as pessoas experimentam e
das percepções a elas ligadas. Exprimem-se por meio de práticas e habilidades que não são
completamente verbalizadas, mas que resultam de uma atividade mental; estruturam-se pelas
preferências, conhecimentos e crenças que são o objeto de discursos e de uma reflexão
sistemática (p. 39).
A relação dos grupos sociais com o meio ambiente, ou espaço onde estão envolvidos e
com o território no qual estão inseridos, segundo Claval, respondem a finalidades variadas: (1)
proteger-se do meio ambiente e dele extrair a energia, o alimento e as matérias-primas das quais
necessitam (dimensão de utilidade); (2) afirmar seu ser social por meio das redes de que
participam (dimensão da sociabilidade); (3) construir sua identidade por meio do sentido dado às
coletividades às quais estão ligados e aos lugares que eles habitam (dimensão psicossocial); (4)
interrogar-se sobre o significado da presença humana no mundo e no cosmos, a natureza, a
sociedade e as paisagens por meio das quais essas entidades se exprimem.
Assumindo essa perspectiva, a geografia humana ganha em profundidade. Seu propósito
deixa de ser partir do espaço e da paisagem para estudar suas especificidades regionalmente.
Trata-se de compreender como a vida dos indivíduos e grupos se organiza no espaço, nele se
exprime e nele se reflete. O problema fundamental da Geografia deixa de ser por que os lugares
diferem Acrescentam-se outras perguntas: por que os indivíduos e os grupos não vivem os
lugares do mesmo modo, não percebem da mesma maneira, não recortam o real segundo as
mesmas perspectivas e em função dos mesmos critérios, não descobrem nele as mesmas
vantagens e os mesmos riscos, não associam a ele os mesmos sonhos e as mesmas aspirações,
não investem nele os mesmos sentimentos e a mesma afetividade?
Esse novo enfoque da visão geográfica a enriquece, na medida que supera a perspectiva
unicamente material. Em vez de focar-se na tipologia das paisagens, no inventário das
combinações produtivas, que permite explorar o ambiente, trabalha-se, com a dialética das
relações sociais no espaço. O território, como paisagem, espaço apropriado, passa ser, ao mesmo
tempo, suporte e matriz das culturas, das diferentes formas de organização econômica destinadas
a suprir suas necessidades de sobrevivência ou interesse de acumulação.
A geografia humana supera sua finalidade tradicional de descrever a diversidade da
terra, inventariar os tipos de paisagem e explicar as formas de organização do espaço que nela se
desenvolveram. Passa a interrogar os homens sobre a experiência que têm daquilo que os
101
envolve, sobre o sentido que dão à sua vida e sobre a maneira pela qual modelam os ambientes e
desenham as paisagens para neles afirmar sua personalidade, suas convicções e suas esperanças.
Sobre as perspectivas da nova geografia cultural, Claval insiste em quatro pontos: (1) o
pesquisador jamais pode se libertar do lugar, do momento e da cultura em que vive; (2) as
relações homem/meio ambiente são renovadas, focando-se na maneira pela qual o homem e os
grupos sociais se inscrevem na natureza (o homem é parte dela) e modelam seu meio ambiente
(as paisagens), abrindo novas perspectivas sobre o papel das técnicas; (3) na abordagem regional,
o recorte adequado não é o do pesquisador, mas o das pessoas que vivem no lugar pesquisado, o
que requer que se leve em conta o papel do corpo e dos sentidos na experiência humana, o
recorte da realidade física e social das pessoas, a riqueza da imaginação, a experiência do espaço
e que se explore a maneira pela qual se constituem as identidades e os territórios; (4) a tendência
da Geografia Cultural é multiplicar os pontos de vista, no entanto, uma análise mais profunda
oferece uma perspectiva de síntese, a partir dos elementos ordenadores constituídos pelas
regularidades estatísticas e pelos tipos ideais, de um lado, e do papel integrador da comunicação,
de outro.
Quanto às novas preocupações epistemológicas no desenvolvimento da abordagem
cultural, a Geografia Cultural, dentro da ciência geográfica, constitui a única perspectiva que
permite reconstruir a disciplina de acordo com as orientações fenomenológicas e críticas das
ciências humanas contemporâneas e das humanidades. Isso porque, como as outras ciências
sociais, “a geografia não dispõe de um ponto de vista universal e objetivo para fundamentar suas
asserções” (Claval, 2001, p. 47).
Assim, o autor apresenta a fundamentação cultural como nova ferramenta da geografia
humana, sustentado numa série de argumentos: (1) não é possível construir um conhecimento
das realidades sociais isento das determinações materiais, históricas e geográficas das pessoas
que o produzem, pois todos trabalham no âmago de uma cultura; (2) todas as ciências sociais
devem adotar uma abordagem cultural, pois as sociedades são sempre realidades fragmentadas e
diversificadas, além de que não existe descrição objetiva da cena social, por isso os significados
dos quadros estratificados que dela se produzem respondem a diversas lógicas; (3) o termo
cultura se presta a interpretações equivocadas, por exemplo, quando generalizamos seu uso (a
cultura africana, chinesa...), pois não existe uma cultura unificada e esta é feita de elementos
retransmitidos e reinterpretados permanentemente, o que implica podermos falar em diversidades
culturais, ou individualidade cultural, devido à influência exercida pelo meio ambiente onde se
vive, trabalha ou viaja, ou devido à origem da fonte de informação; (4) a abordagem
contemporânea da Geografia Cultural conscientiza os geógrafos de que suas atividades fazem
102
parte da esfera cultural e que é impossível construir uma abordagem científica livre de
determinação cultural (Claval, 2001, p. 48-52).
Relações entre espaço, cultura e desenvolvimento
Poderia fazer-se uma pergunta: qual a construção cultural interveniente na narrativa do
processo de desenvolvimento? Esta pergunta faz sentido na medida em que se entende que as
relações homem-meio são inerentes ao processo de produção e reprodução do espaço, ou o
processo de desenvolvimento de um determinado território12. Caberia o desafio de descrever e
compreender o processo de consolidação e ordenamento de prioridades na configuração espacial
realizada.
Para investigar as relações entre espaço, cultura e desenvolvimento, é necessário que o
projeto contemple os aspectos material e simbólico da produção do espaço. Todos os processos
materiais que envolvem a produção espacial são significativos e, por conseguinte, as estruturas
de controle, poder, apropriação e representação são histórica e geograficamente diferenciadas e
necessitam ser entendidas (Pires do Rio, 2001): “Aceitar que a produção do espaço reflita a
dinâmica cultural requer a elaboração de uma postura explicativa que focalize as condições de
existência humana como fenômeno culturalmente abrangido. Nesse sentido, a análise da cultura
do desenvolvimento abre caminhos para uma explicação ampla das intervenções a partir da
investigação do discurso contido nas políticas públicas, planos e programas de investimento
estruturantes. Esse aspecto assume importância particular, quando observado sincrônica e
diacronicamente” (p. 128).
Quanto à noção de discurso, uma simples definição poderia entendê-lo como “uma
maneira de pensar ou escrever a respeito de um assunto” (McDowel, 1996, p. 177). Desse modo,
todas as declarações funcionam, dentro de um determinado discurso, definindo ou limitando o
modo como pensamos a respeito das coisas ou dos fenômenos. Quando seqüências de colocações
são ligadas uma às outras, elas passam a ser o que Foucault denominou de formação discursiva
que, quando estabelecida com sucesso, pode ser definida como um regime de verdade (1996). No
entanto, os autores da Geografia Cultural alertam para a necessidade de investigar os múltiplos
discursos, pois a percepção da realidade é múltipla e situacional. Assim, é fundamental
contemplar a visão dos que produzem o discurso dominante e os outros, principalmente os
destituídos de poder. O exame crítico dos discursos é fundamental, pois cada ator, ou intérprete,
12
Esta parte do texto sintetiza, principalmente, contribuições de Pires do Rio (2001).
103
não é uma pessoa neutra, mas está enredada nas estruturas de poder, temporal e espacialmente
identificáveis.
Uma investigação que certamente mereceria ser feita refere-se à descrição e análise do
poder do discurso desenvolvimentista dos atores públicos e privados, para compreender a função
ideológica que tais discursos assumem no processo de estruturação e reestruturação do espaço,
ou seja, no processo de planejamento e gestão de trajetórias de desenvolvimento territorial13.
Algumas questões podem servir de base para direcionar uma pesquisa14: (1) quais os atores
institucionais responsáveis pela construção do discurso desenvolvimentista?; (2) em que os
diversos atores diferem na elaboração e divulgação do discurso?; (3) para quem tais discursos
são direcionados?; (4) quais os propósitos e efeitos dos discursos?; (5) onde, como e quais
escalas de ações se processam e se articulam?; (6) quais os mecanismos de negociação para a
implementação das ações?; (7) quais os desdobramentos dos discursos no processo de
planejamento e gestão da trajetória de desenvolvimento, no território analisado?
São questões que podem servir de balizadoras para projetos de investigação que tenham
como interesse analisar a dimensão intangível do processo de desenvolvimento15. O fio condutor
deste tipo de investigação, e de outros com objetivos afins, nos remete às relações entre espaço,
cultura e desenvolvimento. Uma investigação centrada na análise do discurso que inspira o
planejamento e a gestão de trajetórias de desenvolvimento territorial, na medida que as políticas
públicas setoriais e de regulação são portadoras de normas de localização, produção e consumo,
é de fundamental importância, pois, como resultante desse processo, criam-se mediações
funcionais que qualificam ou desqualificam territórios e, em alguns casos, redesenham seus
limites.
Portanto, é possível identificar uma relação direta entre espaço, cultura e
desenvolvimento, pela constatação de que os comportamentos culturais são criadores de relações
econômicas. Essas relações econômicas só se efetivam no espaço-território-lugar e, na medida
que se expressam em investimentos (novas empresas ou empreendimentos), representam a
dimensão material do desenvolvimento. Efetiva-se, assim, a relação dialética entre a dimensão
material e imaterial, ou intangível, do desenvolvimento. Entendendo-se que o sentido dos
conceitos acima referidos – capital social, capital sinergético, densidade institucional e
empoderamento – e sua relação com o desenvolvimento territorial, permitem melhor entender
13
Sobre esta temática, ver abordagem em Dallabrida (2004).
14
A partir de contribuições de Pires do Rio (2001).
15
Está em desenvolvimento na região Fronteira Noroeste/RS/Brasil, uma pesquisa, em que um dos alunos bolsistas,
por mim orientado, está se propondo a investigar questões correlatas, no acompanhamento do processo de
investigação sobre as expectativas da população e lideranças regionais em relação ao futuro da referida região.
104
esta relação dialética (material x imaterial), percebe-se que, na ciência geográfica, a vertente da
Geografia Cultural, é a que melhor tangencia este debate.
Para não concluir
O debate sobre a temática da dimensão intangível do desenvolvimento não tem uma
presença significativa na literatura contemporânea. A abordagem aqui contemplada apenas
introduz uma reflexão teórica que se pretende aprofundar oportunamente. Por isso, muito antes
da pretensão de concluir algo, pretende-se finalizar este capítulo levantando questões ou
apresentando algumas compreensões preliminares.
Espera-se que tenha ficado evidente que o desenvolvimento, além da dimensão tangível
(material), que tem nos aspectos econômicos sua expressão maior, possui uma dimensão
intangível (imaterial). Talvez, muitos dos teóricos contemporâneos que tratam de temas como a
importância do capital social para o desenvolvimento não tenham claro que estão sim tratando da
dimensão intangível do desenvolvimento. Da mesma forma, espera-se que, de uma primeira fase
de endeusamento do conceito de capital social, resulte uma segunda fase em que se reconheça
suas limitações e uma terceira, em que se avance, centrando a atenção na importância do sentido
expresso em outros conceitos correlatos, tais como os de capital sinergético e densidade
institucional.
Um outro elemento fundamental é a questão do empoderamento. O simples fato da
existência de um estoque significativo de capital social (ou capital sinergético, ou densidade
institucional) não garante que todos os segmentos da sociedade sejam contemplados em suas
demandas quando se trata de definir o futuro. É necessária a preocupação com a construção das
condições essenciais para o empoderamento dos atores e grupos mais excluídos.
Além disso, considera-se necessário aprofundar uma questão: a ação do Estado, com sua
prática de governar, tem contribuído para a geração ou aumento do estoque de capital social
numa região ou território?16 Outra questão: até que ponto algumas áreas do conhecimento, como,
por exemplo, a economia, têm considerado e valorizado nas suas reflexões a dimensão intangível
do desenvolvimento?
Pessoalmente, como geógrafo, ao fazer-se referência à contribuição que a ciência
geográfica pode dar ao debate sobre a dimensão intangível do processo de desenvolvimento,
16
Veja-se as reflexões constantes no Quadro 1.
105
principalmente o enfoque da Geografia Cultural, tive a pretensão de lembrar, primeiro aos
membros que militam no campo teórico desta, mas também aos demais membros da academia,
que a Geografia tem base teórica, sim, para compartilhar, no debate acadêmico do tema em
questão.
Assumindo de forma coerente os aportes teóricos que reforçam a dimensão intangível
do desenvolvimento, tem-se explicitado o seguinte conceito: o desenvolvimento territorial pode
ser entendido como um estágio do processo de mudança estrutural empreendido por uma
sociedade organizada territorialmente, sustentado na potencialização dos capitais e recursos
(materiais e imateriais) existentes no local, com vistas à melhoria da qualidade de vida de sua
população (Dallabrida, 2003)17.
Quando se ressalta a dimensão orgware numa política de desenvolvimento localizado,
referindo-se às ações destinadas à melhora da capacidade de organização que existe na cidade,
região ou território, está se destacando a dimensão intangível do desenvolvimento. Reforça-se
com isso a importância da capacidade auto-organizativa territorial, ou seja, a capacidade de
organização econômica, social e institucional do território. Admitir que o desenvolvimento deva
considerar sua dimensão imaterial, ou intangível, é admitir como fundamental o papel das inter
relações que ocorrem entre os atores sociais, institucionais e empresariais. Estas inter relações,
que ocorrem num processo de concertação social regional (Dallabrida, 2003), são fundamentais
para qualificar os processos de organização socioterritorial e gerar inovações coletivas,
indispensáveis para a organização da produção dos sistemas produtivos locais, tendo como
conseqüência principal a qualificação do processo de desenvolvimento territorial.
Entende-se que a reflexão sobre a dimensão intangível do desenvolvimento deva
merecer maior destaque por parte daqueles que buscam identificar as causas do
desenvolvimento. Abordagens recentes já têm consagrado a importância desta dimensão, tais
como, por exemplo, as que se referem ao papel do capital social, do capital sinergético, ou da
densidade institucional, na geração e gestão de trajetórias qualificadas de desenvolvimento
territorial. No entanto, ainda há muito a ser acrescentado. Principalmente, há muito a ser feito
para que esse enfoque de desenvolvimento passe a ser hegemônico, não só entre planejadores e
administradores, mas, também, entre a intelectualidade acadêmica.
Referências
17
Por uma opção teórica, prefere-se o uso do conceito desenvolvimento territorial, em vez de outros usos possíveis:
desenvolvimento regional ou desenvolvimento local. Em Dallabrida (2004a), este conceito é aprofundado.
106
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O CAPITAL SOCIAL COMO CONDIÇÃO DE INICIATIVAS PRODUTIVAS
Silvio Salej H.
Graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidad Javeriana (Santa Fé de Bogotá –
Colômbia), mestre em Sociologia Política pela UFSC e doutorando do Programa de PósGraduação em Sociologia Política da UFSC.
E-mail:[email protected]
Introdução
O artigo apresenta os resultados exploratórios de uma pesquisa que se enquadra no
campo da sociologia econômica.1 No nível analítico, visa a identificar o ponto de convergência
entre uma teorização pré-sistêmica, como a do capital social, e um modelo de análise sistêmico
de ampla utilização no estudo dos commons. Somos guiados por um insight de mão dupla: por
uma parte, acreditamos que as descobertas da ciência política e da economia neo-institucional,
em matéria de sistemas de participação e ação coletiva, constituem uma contribuição inovadora
para o estudo da co-gestão de recursos de uso comum; por outra, pensamos que a modelização
sistêmica permite identificar melhor as variáveis que compõem o conceito de capital social aqui
adotado. Esta complementaridade será útil para a análise da situação-problema aqui apresentada
e que podemos resumir, de forma preliminar, da seguinte forma: quais são as condições de
possibilidade de uma iniciativa produtiva, de tipo agroindustrial, que pretende se constituir em
experiência-piloto para a substituição de lavouras de coca?
Situação-problema
1
Pesquisa exploratória de um estudo de caso na Colômbia.
111
No começo do século XXI, a Colômbia pode ser considerada o país da América Latina
com a maior crise institucional de sua história republicana. Essa crise tem, pelo menos, dois
indicadores muito claros: a mais prolongada confrontação político-militar do continente e um
dos mais elevados coeficientes de concentração da renda no hemisfério ocidental. Sua debilidade
institucional e a retro-alimentação de múltiplas formas de violência têm tornado difícil a inserção
do país na ordem global. Aliás, esses problemas não teriam relevância geopolítica se não
favorecessem a liderança do país na produção mundial de narcóticos.
Frente a este contexto de crise, alguns setores da sociedade civil colombiana têm
passado do diagnóstico da problemática nacional à ação propositiva pela geração de alternativas
de paz que visem à construção da esfera pública e ao desenvolvimento sustentável. Estas
iniciativas vêm do interior da Colômbia, das regiões mais afastadas dos centros urbanos, onde a
população sofre com maior rigor os efeitos da pobreza e da violência. Nossa pesquisa se localiza
no tempo e no espaço de uma região da Colômbia considerada chave na evolução da
confrontação político-militar.
Contexto regional
De forma específica, estamos trabalhando no interior do universo regional e
institucional do Programa de Desarrollo y Paz del Magdalena Medio (PDPMM)2. No contexto
da formulação de políticas públicas na Colômbia, o PDPMM é uma experiência inovadora de cogestão que implica a esfera pública estatal e a esfera pública civil. Nasceu em 1996, a partir da
mesa de discussão sobre a situação dos direitos humanos na região, entre o sindicato dos
operários do petróleo (Unión Sindical Obrera- USO) e a empresa estatal do petróleo
(ECOPETROL) com a mediação da Igreja Católica – diocese do município de Barrancabermeja
(Cid, 2003).
A proposta de intervenção foi concebida como um processo em três momentos:
diagnóstico participativo, aprendizado inovação/planejamento e execução. Em termos gerais, o
diagnóstico concluiu que a região do Magdalena Medio abarca 30.000 km2 e conta com uma
população estimada de 700.000 habitantes, cuja atividade econômica não ultrapassa o modelo
extrativo ao custo de uma acelerada deterioração do meio ambiente e sem poder de controle
sobre os excedentes regionais, a ponto da renda per capita regional só atingir US$ 500 (De
2
O Magdalena é o rio da integração nacional desde o século XVI, cruza o país do Sul ao Norte entre dois braços da
Cordilheira dos Andes.
112
Roux, 1996b). No nível da dimensão política, as instituições públicas se caracterizam por sua
fraqueza em meio a uma cultura patrimonialista (De Roux, 1996 a).
A partir de 1996, a economia ilegal da coca – plantio e transformação em pasta básica é
a atividade produtiva oferecida como a melhor alternativa às formas tradicionais de subsistência:
pesca artesanal e agricultura familiar. A destruição das bacias hidrográficas tem provocado uma
diminuição drástica do volume de capturas de peixe, de 70 mil toneladas nos anos 70 para 13 mil
nos dias de hoje. A pequena agricultura entrou numa crise profunda a partir da abertura da
economia colombiana ao livre comércio mundial, somada à falta de crédito, de infra-estrutura e à
precariedade tecnológica. A coca é a soma de todos os problemas regionais em razão de que é a
fonte de financiamento de todos os grupos armados que operam na região (guerrilhas de direita e
esquerda, máfias etc).
Construindo alternativas
As organizações, comprometidas com a iniciativa do PDPMM, sempre estiveram
convencidas da necessidade de agir em meio ao confronto armado. Não era desejável esperar o
triunfo de uma organização armada, ao preço da destruição das outras, para construir alternativas
de vida a partir da população civil. Decorrente desta convicção, entre 1997 e 2003 o Programa
tem ministrado dois créditos LIL (Learning and Innovation Loan) concedidos pelo Banco
Mundial, cada um de US$ 5 milhões. Há contrapartidas do Governo da Colômbia, cada uma de
US $ 1,3 milhão, para um total de US $ 12,6 milhões na etapa de aprendizado e inovação.
Durante esse período, o esforço tem se concentrado na construção e fortalecimento das
organizações regionais de tal forma que estejam dotadas de uma perspectiva de futuro e sejam
capazes de conduzir suas próprias iniciativas econômicas e políticas. Hoje, a etapa de execução
conta com recursos da União Européia até 2008 para financiar iniciativas de impacto regional
que contribuam à diminuição da pobreza e da violência. Esta co-intervenção da União Européia é
conhecida como Laboratorio de Paz del Magdalena Medio.
Delimitação do objeto de pesquisa
O terceiro momento do PDPMM, o Laboratorio de Paz, tem recebido 302 iniciativas
vindas das organizações regionais. Em 2004, essas propostas foram agrupadas em onze linhas de
ação: economia camponesa, economia de pequenos povoados, planejamento participativo,
113
espaços humanitários, educação, cidadela educativa, direitos sociais e civis, processos de
paz, comunicação e cultura, proteção dos recursos naturais e direito à terra (Cid, 2003). Em
virtude de seu impacto potencial e de critérios analíticos, que iremos explicitar nossa pesquisa se
concentra na linha de economia camponesa. De forma específica, nos propomos a estudar uma
iniciativa com poder demonstrativo regional: O Projeto de Palma Africana para Pequenos
Produtores Rurais.
Perfil do projeto - objeto3
Localizado na municipalidade de San Pablo, ao sul do Departamento de Bolívar e cuja
população é de aproximadamente 15 mil habitantes, o projeto tem por objetivo a criação de
alternativas produtivas rentáveis que ajudem à substituição das lavouras de coca. Para isso, o
projeto pretende transformar pescadores artesanais, pequenos camponeses e comerciantes em
empresários associativos. Para tal desafio, foi criada uma associação de caráter jurídico
denominada Asociación de Palmeros de San Pablo (APALSA). O número de beneficiários é de
50 famílias que vão plantar 500 hectares de palma africana. O fruto desta planta é utilizado na
extração de óleos com amplos usos industriais (óleo de cozinha, margarinas, sabonetes,
cosméticos, combustíveis etc.).
O horizonte temporal do projeto é de 10 anos e conta com uma linha de crédito no
montante de US$ 700.000,00. Uma avaliação preliminar (CID, 2003) aponta que, no percurso da
primeira etapa, o projeto deverá gerar, para cada dez hectares, dois empregos diretos e meio (2.5)
indireto. Assim, em San Pablo as áreas plantadas gerariam cem (100) empregos diretos e vinte e
cinco (25) indiretos. Sem o Projeto, a renda mensal familiar varia entre US$ 50,00 e US$ 120,00.
Com o Projeto, estima-se que a renda aumente até US$ 360,00.
Dificuldades iniciais
A avaliação preliminar identificou três tipos de dificuldades. Uma, em relação à infraestrutura de transporte, em razão da precariedade das vias e da falta de uma ponte para cruzar o
rio Magdalena até o município vizinho de Puerto Wilches onde está a fábrica de extração do
óleo. Outra, em relação à cultura para a produção da palma africana. Isto é, ainda é precária a
3
Muitos dados foram extraídos da avaliação externa do segundo crédito LIL, realizada pelo Centro de
Investigaciones para el Desarrollo (CID) da Universidade Nacional da Colômbia.
114
instrução técnica e o treinamento dos beneficiários para o controle do processo produtivo. De
forma semelhante, aparece uma baixa coesão social entre os beneficiários, a qual se traduz em
desconfianças e lutas pelo controle da associação – fato que gera um risco de intervenção das
organizações armadas que operam na região. Uma terceira, em relação à falta de uma estratégia
clara de proteção do meio ambiente.
Construção de uma perspectiva analítica
Frente à problemática regional enfrentada pelo PDPMM (violência política, pobreza
entendida aqui como a incapacidade para gerar uma renda digna, degradação ambiental) e após
as dificuldades apresentadas antes, explicitamos aquela que, em nosso juízo, é a perspectiva mais
apta para analisar o caso do Projeto de Palma Africana em San Pablo (Colômbia). A
complexidade do problema, e o fato de nos ocuparmos de um projeto que visa a transformá-lo,
demanda uma aproximação que seja, ao mesmo tempo, explicativa e de monitoramento. Da
mesma forma, é necessária uma perspectiva que compreenda as dimensões da sociabilidade e de
meio ambiente. Neste sentido, pensamos que perspectivas baseadas exclusivamente em modelos
econômicos são insuficientes, porque, centradas na modernização tecnológica ou na abstração da
escolha racional, não levam em conta que os recursos naturais são um fator limitativo do
crescimento econômico e que as formas de organização social não têm uma função produtiva em
termos monetários.
Ainda que o projeto de palma africana não levante uma problemática, em sentido estrito,
sobre recursos de uso comum (Holling, Berkes, Folke, 1998), está situado no horizonte da
viabilidade ambiental. Por tal motivo, julgamos pertinente explicitar a utilidade analítica que há
na convergência entre um modelo de análise dos commons (Oakerson, 1992) e a perspectiva neoinstitucional do capital social. Esse modelo ampliado nos ajudará a identificar melhor os fatores
da organização social na relação com a produção econômica (ver adiante Gráfico 2). Dessa
forma, transitamos nessa fronteira entre o social e o econômico, que também é conhecida hoje
como capital social (Woolcok, 2000).
A nossa idéia de capital social
O que aqui chamaremos de capital social visa a incorporar duas perspectivas teóricas
que consideramos mais aptas para compreender a relação sinérgica e multi-escalar entre
115
instituições estatais e não-estatais. Em primeiro lugar, Bourdieu (1980) nos permite entender
as redes de relações sociais, de onde os indivíduos extraem recursos e vantagens, como um
multiplicador das outras formas de capital (cultural, monetário e simbólico). Seu ponto de vista
chama a atenção sobre o conflito, que gera a distribuição assimétrica do capital no campo social.
Desta forma, toma distância de posições como a de James Coleman (1994), cuja idéia utilitarista
de capital social oculta os problemas da assimetria social. Em segundo lugar, Peter Evans (1996),
com seu conceito de sinergia, nos ajuda a matizar a perspectiva culturalista de Putnam (1996).
Vale lembrar que, para este último, os povos são prósperos ou pobres em razão da inércia de suas
tradições. Nos primeiros, haveria altos níveis de virtudes cívicas, cooperação entre os cidadãos e
destes com seus governantes, enquanto os segundos estariam encharcados pelo vício do
clientelismo e da falta de participação cívica. Evans (1996), pelo contrário, estuda como se
constrói o capital social a partir das formas de organização comunitária e com a intervenção de
agentes estatais (officials) que implementam soft technologies (ver Gráfico 1). Em síntese, ao
assumir a dinâmica do conflito e da sinergia, sublinhamos tanto a ação coletiva (Flora, 1998)
como as condições para ação, (Offe e Fuchs, 2001), que estão presentes no empreendimento que
vamos estudar.
Gráfico 1 – A indução do capital social (Evans, 1996)
Capital social 2
Novas formas de interação
induzidas pelas novas regras de
decisão coletiva.
Capital social 1
Lógicas de ação presentes nas
comunidades locais
Soft Technologies
O PDPMM, associado a instituições do
Estado central, implementa uma
metodologia de intervenção de escala
regional.
Fonte : Salej, 2003
Convergência entre os commons e o capital social
A perspectiva neo-institucional de
Evans (1996) permite
compreender que é possível
construir novas formas de capital
social a partir da sinergia entre
instituições públicas e
comunidades locais. O capital
social 2 resulta da interação entre
as soft technologies e o capital
social 1, corresponde às novas
formas associativas que fazem a
ponte entre o público e o privado,
entre a escala local, regional e
nacional.
116
De forma breve, explicitamos o ponto de encontro que há entre o programa de
pesquisa sócio-ambiental dos commons e o programa de pesquisa neo-institucional sobre capital
social4. Assim, o problema fundamental do primeiro consiste em compreender a complexidade
das relações entre sistemas ecológicos e sistemas sociais, visando um manejo adaptativo dos
recursos de uso comum e a construção de instituições resilientes5. Em tal sentido, torna-se
imperioso estudar os múltiplos vínculos entre diversas escalas de instituições (Berkers, 2002).
Para tal propósito, exige-se passar de uma perspectiva top-down a uma bottom up nas
relações entre instituições de alto nível e as instituições locais. Trata-se de reverter os efeitos
perversos causados pelas primeiras nas segundas (centralização, devastação do conhecimento
ancestral, colonização, estatismo, desenvolvimentismo predatório, mercantilização, etc.) e de
buscar interações construtivas (legitimação estatal das instituições locais, legislação facilitadora,
construção de capacidades, construção de novas instituições, etc.) (Berkes, 2002). É justamente
na complexidade do cruzamento de diversas escalas institucionais, “both horizontally (across
space) and vertically (across levels of organization)” (p. 293), que a teoria do capital social
mostra sua utilidade.
De forma análoga à tragédia dos commons que, do ponto de vista institucional é a
catástrofe ocasionada pelo livre acesso aos recursos naturais de uso comum, a crise dos bens
públicos constitui a situação-problema dos pesquisadores sobre capital social. Assim, esses
enfrentam, no campo da vida política, o desafio de explicar e compreender a eficiência ou o
fracasso das instituições públicas na hora de garantir o bem comum (direitos e serviços públicos
básicos). Por extensão ao campo da vida econômica - o que nos ocupa de forma específica-,
tentam desvendar as condições sociais que tornam possíveis os empreendimentos econômicos
associativos6.
A pesquisa sobre o capital social tem feito importantes descobertas sobre a forma como
os elementos da sociabilidade contribuem para resolver os dilemas da ação coletiva antes
mencionados, isto é, aquelas situações nas quais o agir centrado no auto-interesse conduz à ruína
de todos (Putnam, 1996). Entre os elementos de uma estrutura social que impede o colapso da
vida em comum, e que por isso merece ser chamada de capital social, Coleman (1994) identifica
4
Em seu célebre artigo The tragedy of the commons (1968), Garret Hardin fez a controvertida afirmação de que
indivíduos que fazem uso comum de um recurso natural não são capazes de organizar-se para agir de forma coletiva.
Duas condições estão dadas nessa situação: a) não exclusão, ninguém é impedido da extração de um recurso natural
e b) substração, o que cada um obtém deve ser subtraído do total que estava disponível para todos.
5
O conceito de resiliência, amplamente usado na pesquisa sócio-ambiental, designa a habilidade - tanto de
ecossistemas como de sistemas sociais - para absorver perturbações e para construir capacidade de auto-organização
(Berkes,2002).
6
Por exemplo, as associações de crédito rotativo de caráter informal, onde cada um dos membros faz um pequeno
aporte em dinheiro, na espera de seu turno para pegar o montante do fundo, não seriam possíveis sem a existência
de: a) regras de controle social que dissuadam os oportunistas e b) regras de reciprocidade que estimulem a
confiança entre os membros. (Coleman,1994).
117
os seguintes: normas e sanções efetivas de tipo formal, obrigações e expectativas de tipo
informal ancoradas na confiança, informações potenciais, relações de autoridade e organizações
sociais.
Em resumo: pensamos, por uma parte, que a perspectiva do capital social, em termos de
sinergia (Evans, 1996), vai na mesma direção que a análise sobre as cross-scale institucional
linkages, própria dos estudos ambientais (Berkes, 2002). As duas visam a identificar os desenhos
institucionais, tanto no nível de comunidades locais como no nível maior das burocracias
públicas, que melhor contribuem para a superação de situações-problema que se colocam na
forma de dilemas de ação coletiva, seja a predação de recursos naturais, mais conhecida como
tragédia dos commons, seja o colapso do fornecimento de bens públicos. Por outra parte,
avaliamos que a análise sistêmica dos commons ajuda a situar melhor as relações complexas
entre as diversas variáveis da análise sócio-econômica. Isto é, as micro-variáveis do capital
social podem ser incorporadas nas macrovariáveis de um modelo de análise pensado para uma
problemática ambiental de cunho sistêmico (Oakerson, 1992 - ver Gráfico 2).
118
Gráfico 2 – Grade de análise sistêmica adaptada para um projeto sócio-econômico
Recursos e tecnologia
c
Atributos biofísicos dos recursos
naturais, mobilização de investimento
local – coletivo ou individual,
investimento externo, conversão
tecnológica, saber técnico tradicional,
infra-estrutura física, informação.
a
Lógicas de interação
Capital Social 1
e
b
Maximização individual, incentivos para
a cooperação, lógica do dom,
representações
sociais,
virtudes
reconhecidas pelo grupo, regras de
reciprocidade, controle social, confiança,
intimidação de grupos armados, redes
sociais.
d
Regras de decisão coletiva
Capital Social 2
(APALSA)
Processos para legitimação de
alternativas e resolução de conflitos,
regras formais de decisão, código de
direitos e deveres.
Fonte: Oakerson,1992; Flora, 1998; Offe e Fuchs,2001.
Resultados (atuais)
Diminuição da pesca
artesanal, crise da
agricultura familiar, cultura
da coca, violência e
degradação ambiental.
119
Ao analisar o gráfico anterior, e seguindo as interpretações de Ron Oakerson (1992),
vemos como um complexo de relações gera os resultados atuais descritos na problemática
inicial. As linhas c e d sinalizam relações de causalidade fortes em razão dos efeitos diretos da
tecnologia e das lógicas de interação individual. As linhas a e b designam relações de
causalidade fracas em razão da amplitude das motivações dos agentes sociais. A linha e, como
todas as linhas de pontos, designa a interdependência entre variáveis, neste caso, entre as
características intrínsecas dos recursos naturais e tecnológicos e as regras de decisão coletiva.
Note-se que sobre o fundo do modelo sistêmico anterior colocamos em relevo duas
macrovariáveis que constituem a idéia de capital social sobre a qual estamos trabalhando: as
lógicas de interação e as regras de decisão coletiva que fazem possível um empreendimento
econômico associativo.
Resultados preliminares
Se interpretarmos a situação-problema sob a morfologia conceitual dos Gráficos 1 e 2,
podemos levantar algumas questões-chave para uma etapa explicativa do estudo de caso que nos
ocupa :
De que forma o capital social 1 (lógicas de interação), próprio de pescadores,
comerciantes e pequenos agricultores, condiciona a implantação de um modelo agro-industrial
como a palma africana?
Qual é o desenho do capital social 2, correspondente à nova associação de produtores
de palma africana (APALSA), mais apto para a resolução dos conflitos entre os associados e
para a legitimação das alternativas de produção?
Como a associação constrói sua capacidade para apropriar-se de novas tecnologias,
especialmente as que são sustentáveis, e para mobilizar novos recursos financeiros ?
Em que medida a intervenção do PDPMM, no caso do projeto APALSA, tem
constituído uma rede de co-gestão eficaz entre as instituições locais, regionais e nacionais?
Além dos questionamentos anteriores, é possível afirmar que, na curta história
institucional do Programa de Desarrollo y Paz del Magdalena Medio, há indícios fortes de como
podem ser mobilizados, em diferentes escalas institucionais, os fatores que aqui designamos
como capital social (lógicas de interação e regras de decisão coletiva). Desde 1996, a situação
de conflito laboral entre o Sindicato dos Trabalhadores do Petróleo (USO) e a empresa estatal de
petróleos (ECOPETROL) deu origem a um longo e complexo processo de sinergia entre atores
120
sociais e institucionais de diversa escala. Desde organizações camponesas locais até
instâncias do governo central, passando por organizações civis de alcance regional, o conflito de
interesses tem revelado seu potencial de cooperação. Uma cooperação que mobiliza o capital
social 1, presente na vida local e cotidiana dos povoadores do Magdalena Medio, e constrói
novas formas de capital social 2, isto é, inovações organizativas e institucionais em meio a uma
situação de violência política e precariedade da esfera pública. (ver Gráfico 3).
Gráfico 3 - Sinergia onde se origina o PDPMM
SOCIEDADE
REGIONAL
Unión Sindical Obrera
(USO)
Igreja Católica (Diocese
de Barrancabermeja)
Organizações camponesas
ESTADOCENTRAL
Departamento Nacional
de Planeación (DNP)
Empresa
Colombiana de
PDPMM
ORGANISMOS
MULTILATERAIS
Programa de Naciones Unidas
para el Desarrollo
(PNUD)Banco Mundial
Fonte: elaboração própria.
121
Por último, salientamos o valor heurístico da convergência teórica entre a
perspectiva sistêmica dos commons (recursos de uso comum) e o campo de pesquisa do capital
social. Pensamos que, por caminhos diferentes, tentam responder a desafios compartilhados no
mundo presente: como entender que por trás de cada catástrofe ecológica há uma catástrofe nas
formas de vida institucional de uma população dada? Como entender que por trás de cada guerra
há também formas brutais de ecocídio? As possíveis respostas a estes interrogantes supõem
sinergias teóricas e práticas que estão por ser descobertas.
Referências
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Ostrom, et al. (Eds.) The drama of the commons. Washington : National Academy Press, p. 293321, 2002.
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Sociales, n. 31, p. 2-3. 1980.
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de Colombia. Evaluación externa del segundo crédito de aprendizaje e innovación (LIL II) del
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COLEMAN, James. Foundations of social theory.
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England: Belknap Harvard, 1994.
DE ROUX, Francisco. Documento central de diagnostico, conclusiones y recomendaciones.
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HOLLING. C.S., BERKES,, F. & FOLKE, C. “Science, sustainability and resource
management”. In: F. Berkes & C. Folke. Linking social and ecological systems. Cambridge:
Cambridge University Press, p. 342-361, 1998.
122
OAKERSON, R.J. “Analysing the commons. A framework”. In: D.A Bromley et al., Making
the commons work. Theory, practice and policy. San Francisco: ICS Press, pp. 41-59, 1992.
OFFE, C; FUCHS, S. Schwund des Sozialkapitals? Der Fall Deutschland. In: Putnam, Robert.
Gessellschaft und Gemeinsinn. Gütersloh: Verlag Bertelsmann Stiftung, 2001.
PUTNAM, Robert. Comunidade e democracia. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1996.
SALEJ, Silvio. O capital social está na moda: análise para sua reconstrução teórica. Dissertação
de mestrado. Pós-graduação em Sociologia Política. UFSC, março de 2003.
WOOLCOK, Michael. The Place of Social Capital in Understanding Social and Economic
Outcomes. Development Research Group The World Bank, www.worldbank.org. Acesso em
janeiro de 2000.
CAPITAL SOCIAL, CULTURA E SOCIALIZAÇÃO POLÍTICA: A JUVENTUDE
BRASILEIRA∗
Rosana Katia Nazzari
Doutora em Ciência Política pela UFRGS, professora do Colegiado de Ciências Econômicas da
UNIOESTE, pesquisadora e líder do Grupo de Pesquisa sobre Comportamento Político - GPCP e
Coordenadora do Núcleo de Pesquisas Avançadas em Administração, Ciências Contábeis e
Ciências Econômicas – NUPEACE.
E-mail: [email protected]
Introdução
Os países da América Latina foram afetados pelos impactos do processo de
globalização. No entanto, apesar dos avanços no campo político, observa-se um crescente
sentimento de descontentamento e frustração de parcelas significativas de suas populações com
as novas democracias, sugerindo, assim, uma série de indagações teóricas sobre o futuro dos
latino-americanos, bem como sobre as possibilidades de estabelecimento de regimes
democráticos socialmente reiterados na região.
Diante disso, a proposta a nortear a elaboração do estudo é a de investigar até que ponto
agências socializadoras, como família, escola e meios de comunicação, têm contribuído para a
geração de capital social entre a juventude1. Para tal, servem de referência, de um lado, os
impactos provocados pelo atual contexto de globalização em sociedades periféricas e, de outro, o
processo de socialização política a que estão submetidos os jovens brasileiros.
∗
Versão resumida da tese de doutorado da autora, defendida no dia 20 de agosto de 2003, apresentada no IV
Congresso Europeo Ceisal de Latinoamericanistas “Desafios Sociales en América Latina en el siglo XXI”, em
Bratislava, 4 a 7 de julio de 2004. No simposio: SOC- 9 - Políticas de la Juventud: enfoque contrastivo Europa América Latina.
1
No decorrer do estudo, os termos “jovens” e “adolescentes” serão utilizados como sinônimos.
124
O problema central deste estudo consiste em verificar se as agências de socialização
política contribuem para promover nos jovens índices favoráveis de capital social. As principais
variáveis do capital social são a confiança, a cooperação e a participação política dos cidadãos,
que colaboram para incrementar políticas públicas a fim de que estas se tornem eficazes para o
desenvolvimento das comunidades.
Em comum, os estudos sobre o tema pressupõem a integração das esferas política,
econômica e social. Advogam que as relações sociais influenciam e são influenciadas por
mercados e estados. E apontam para a necessidade de fortalecer relações sociais entre atores,
tornando-as estáveis e confiáveis, via aumento da eficácia política individual; empoderamento
dos cidadãos; e cooperação sistêmica, ampliada para as classes historicamente excluídas.
Entende-se que o capital social é o processo e o instrumento de empoderamento do
cidadão e que pode mudar as relações pessoais e intercâmbios sociais para que gerem mais redes
de cooperação e solidariedade. Assim, a elevação dos índices de capital social pode ter efeitos
positivos pelo seu impacto na democracia e no desenvolvimento socioeconômico. “[...] O capital
social sustenta que a participação em associações voluntárias gera normas de cooperação e
confiança entre os seus membros e que essas normas são aquelas exigidas para a participação
política” (Baquero, 2001a, p. 36). Desta maneira, o capital social pode ser incrementado pelo
processo de socialização, potencializando comportamentos participativos e cidadãos.
Os pontos principais dos debates em torno do conceito de capital social apontam para
três variáveis principais: a confiança, a cooperação e a participação. A confiança alimenta a
previsibilidade das relações sociais e, por sua vez, gera a cooperação entre as pessoas. Já a
cooperação alimenta a confiança e a reciprocidade entre os membros das associações e
incrementa a participação em associações voluntárias.
As principais dimensões dessas variáveis envolvem os planos individual, social e
institucional. No plano individual, desencadeiam sentimentos de confiança, reciprocidade,
identidade cívica e previsibilidade. No plano social, fortalecem a cooperação sistêmica, coesão
social, atitudes virtuosas e padrões valorativos e éticos no espaço público e, no plano
institucional, levam ao engajamento em associações voluntárias e na vida cívica, participação
política e horizontalidade nas relações sociais e institucionais.
O problema da cooperação social ocupa um lugar central na Ciência Política
contemporânea. Porém, podem existir falhas na produção de benefícios coletivos que poderiam
melhorar o bem-estar de toda a sociedade. Existem, para explicar essas questões, diferentes
formulações, tais como a tragédia dos comuns, a lógica da ação coletiva, o problema dos bens
públicos e o dilema do prisioneiro, entre outras. Na falta de coordenação e compromisso mútuo,
125
são produzidos incentivos para comportamentos não-cooperativos, o que torna inviável o
bem coletivo.
A existência de lacunas na Ciência Política, no que compete aos temas do capital social
e da socialização política da juventude, justifica a realização de estudos que visem buscar
alternativas para o problema da cooperação social e para a estruturação de uma cultura política
democrática. Daí a importância de investigar fenômenos que causam a obstrução da ação
coletiva, entre eles: a ausência de transparência na política, o faccionismo, o legado histórico de
clientelismo e patrimonialismo. Fenômenos que, por sua recorrência, geram o isolamento dos
jovens da vida pública comprometendo a sua participação política e a construção da democracia
no Brasil.
Assim, o objetivo geral deste estudo é o de examinar as implicações inerentes ao
processo de socialização política para a geração de capital social entre a juventude brasileira no
início do século XXI. Os objetivos específicos são:
a) identificar os efeitos da globalização sobre a juventude brasileira;
b) verificar se o processo de socialização política estaria promovendo índices de capital
social entre os jovens, de modo a incentivar o seu engajamento cívico e em redes de relações
sociais;
c) medir os índices de capital social (níveis de confiança, cooperação e participação) dos
jovens;
d) dimensionar a influência do capital social na cultura política.
A partir dos objetivos propostos, o estudo aqui apresentado busca entender as
implicações da socialização política sobre o capital social da juventude no Brasil. E, para
operacionalizar a presente pesquisa, a reflexão crítica foi pautada por duas estratégias principais:
a primeira de natureza teórica e a segunda de natureza estatística. No âmbito teórico, partiu-se de
uma análise histórico-estrutural sobre cultura política passando pelo exame de questões
conjunturais ligadas aos problemas da globalização, da democracia e da socialização política,
com ênfase no conceito de capital social. No âmbito empírico, foi empregado o método
estatístico de natureza inferencial por meio de uma amostra estratificada de jovens estudantes
brasileiros das escolas públicas e privadas de duas cidades do Estado do Paraná: Curitiba e
Cascavel, através da aplicação de um questionário (51 questões entre fechadas e abertas). Foram
coletadas 2119 entrevistas para medir os índices de capital social. Pela consulta a dados de
pesquisas realizadas em nível nacional e internacional, buscou-se a comparação entre os
resultados obtidos no estudo empírico.
126
Tendo como pano de fundo o cenário e os efeitos da globalização sobre os
comportamentos dos jovens, o estudo pauta-se na perspectiva de que a socialização política pode
estar mudando os padrões de participação política e de organização democrática, construindo um
novo tipo de comunidade cívica, capaz de auxiliar na elaboração de um projeto de
desenvolvimento econômico, humano e igualitário.
Socialização Política e Capital Social da Juventude
Atualmente, constata-se que as agências socializadoras foram transformadas pelo
impacto das novas tecnologias. A nova estrutura familiar e a maior preocupação dos pais com o
mercado de trabalho reduzem o tempo de convivência familiar dos pais com os filhos. A escola,
por sua vez, também prioriza a preparação dos jovens para o mercado de trabalho, baseada na
necessidade de geração de capital humano. Ambas as agências preocupam-se em habilitar os
jovens para o mercado, mais competitivo e excludente, reforçando antes valores individuais e
consumistas que incentivando a formação do capital social.
Neste sentido, não geram alternativas para a inclusão da maioria dos jovens em novos
espaços democráticos, que poderiam criar alternativas de cooperação e confiança mútuas para
solução dos problemas das comunidades. Com base neste cenário, faz-se uma análise do
processo de socialização política, a fim de coletar elementos para identificar os índices de capital
social dos jovens no Brasil. Para tanto, a revisão dos estudos de socialização política assinala
para importância das primeiras experiências formativas das crianças e jovens. Essas experiências
têm influência decisiva na vida adulta, favorecendo o aprendizado participativo e cooperativo.
Pode-se assinalar alguns resultados principais sobre a socialização política e capital
social: 1) Destaca-se que os problemas econômicos são os que mais afligem os jovens, tendo em
vista as dificuldades de inserção no mercado de trabalho e a contínua crise econômica do País; 2)
No geral, a percentagem de jovens que discute os problemas da escola vem se ampliando, sendo
que as meninas apresentam atitudes de eficácia política mais democráticas. Já nas escolas
públicas, os alunos apresentam índices maiores de eficácia política ao discutirem mais os
problemas da escola; 3) Apesar da maioria (85,5%) dos entrevistados assinalar que os alunos
deveriam participar mais das decisões tomadas na sua escola, pois não utilizam os canais
representativos dos estudantes para as suas demandas; 4) Como em pesquisas anteriores
(Nazzari, 2003 e Schmidt, 2000), a maioria dos estudantes ora entrevistados sabe da importância
da participação (76,9%). No entanto, 12,7% participam às vezes e apenas 5,1% participam
sempre das atividades do grêmio estudantil. Em outras palavras, na escola os adolescentes
127
manifestam um padrão de baixa eficácia política subjetiva; 5) Quanto à televisão, os dados da
pesquisa de amostra por domicílios do IBGE (2000) destacam que esse veículo está presente em
87,7% dos lares brasileiros. Esta também aparece como segunda principal fonte de lazer dos
jovens na pesquisa do UNICEF (2002). Neste estudo comprova-se este dado, pois 87,0% dos
entrevistados da amostra assinalam como fonte de informação principal a televisão; 6) A rede da
Internet pode colaborar, em médio prazo, para incentivar níveis mais amplos de capital social
entre os jovens e futuros cidadãos. Ademais, sua utilização pode ser fonte de informação e
aprendizado na escola.
Este item buscou contribuir para a compreensão da realidade juvenil contemporânea
brasileira, das práticas e da relação que os jovens estabelecem com as agências socializadoras, e
tentou suprir lacunas de estudos sobre a socialização política e o capital social, tema a ser tratado
a seguir, contemplando as variáveis de confiança, cooperação e participação política dos jovens.
Capital Social: confiança
O pressuposto essencial é de que o capital social é gerado por redes de confiança que,
segundo Baquero (2001a, p. 36), “[...] proporcionam o elemento de previsibilidade, que está
ausente, tendo em vista o baixo estoque de racionalidade formal nos sistema políticos”. Neste
item, analisou-se um dos indicadores de capital social: a confiança, bem como a influência desta
na socialização política dos jovens brasileiros.
Misztal (1998, p. 11) enfatiza que a confiança é uma condição necessária para se manter
a ordem social. Assim, “[...] a confiança pode ser definida como mecanismo de solução para o
problema da cooperação”; além disso, cria condições para o desenvolvimento da solidariedade,
tolerância e legitimação do poder. A confiança nos outros é importante para sustentar a ordem
coletiva, pois pode produzir um sentimento de eficácia política na participação democrática.
O argumento central é de que as regras de confiança entre a comunidade e o governo
são essenciais para a efetiva responsabilidade das instituições. Observa-se, também, que as
teorias aliadas ao capital social revitalizam a idéia de sociedade civil como base na coesão social,
pois o critério de confiança moderno tem uma racionalidade diferente dependendo das crenças
morais de cada sociedade, que tem suas próprias bases de valores e crenças culturais.
Analisa-se a confiança interpessoal que envolve os relacionamentos cotidianos e a
confiança nas pessoas, envolvendo as relações com os membros da família, amigos, professores,
128
2
vizinhos , entre outros grupos de referência para os indivíduos. Por isso, é mais difusa que a
confiança institucional. Por sua vez, a confiança institucional é relacionada à credibilidade das
instituições políticas, econômicas e sociais3. Ambas fazem parte da confiança social, que, para
Durkheim, gera cooperação e alimenta mais confiança.
A principal força que desencadeia o crescimento dos índices de capital social em uma
comunidade pode ser verificada nas relações de confiança social. No entanto, os estudos
apontam a redução dos níveis de confiança em todo o mundo.
Em nível mundial observa-se que em relação à juventude os “[...] sentimentos de
confiança são semelhantes ao da população geral como revelam as recentes sondagens sobre os
frágeis percentuais de respostas a respeito das fontes de confiança” (Pagé e Chastenay, 2003, p.
7). Nesta direção, em contexto local, os dados sobre os jovens brasileiros não destoam dos
baixos percentuais de confiança verificados em outros países como se observa na Figura 1.
Figura 1 - Nível de confiança social (%)
Confio Sempre
Confio às vezes
Não confio
NS/NR
70
61,8
60
56,4
60,5
56,3
55,4
54,4
54,1
51,0
49,4
50
54,1
43,4
42,0
40 34,1
36,5
33,2
30
31,8
38,8
33,5
36,0
31,3
36,6
32,3
32,0
25,1
25,2
20,4
20
8,0
10
1,5
2,2
8,3
5,0
8,0
4,1
8,7
5,7
8,4
4,0
8,4
4,4
8,6
4,3
10,0
8,5
21,8
17,6
8,4
12,1
7,9
12,1
8,7 9,0
8,7
Pe
ss
oa
s
Co
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ga
s
Se
na
do
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co
la
Pr
of
es
so
re
s
0
2
Neste ponto destaca-se o estudo de Ronald La Due Lake (2001) sobre as implicações das redes e estruturas sociais
dos vizinhos no contexto cívico e na participação política.
3
A correlação entre a confiança generalizada e a confiança nas instituições foi verificada no estudo de Rothstein
(2002) sobre a Suíça. O autor observa que as instituições democráticas podem conduzir a uma confiança social
interpessoal e vice-versa. Na comparação dos surveys analisados, o autor destaca a elevação dos índices de capital
social naquele País.
129
Confio Sempre
Confio às vezes
Não confio
NS/NR
70
61,8
60
56,4
60,5
56,3
55,4
54,4
54,1
51,0
49,4
50
54,1
43,4
42,0
40 34,1
36,5
33,2
30
31,8
38,8
36,0
33,5
31,3
36,6
32,3
32,0
25,1
25,2
20,4
20
8,0
10
1,5
2,2
8,3
5,0
8,0
4,1
8,7
5,7
8,4
4,0
8,4
4,4
8,6
4,3
10,0
8,5
21,8
17,6
8,4
12,1
7,9
12,1
8,7 9,0
8,7
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0
F
onte: dados de pesquisa da autora (2003). N = 2119
Os índices de confiança nas instituições em geral são baixos nos três cruzamentos de
variáveis analisadas: gênero, tipo de escola e capital ou interior. Em média, 55% dos jovens não
confiam nos representantes dos legislativos municipais, e o nível de desconfiança aumenta nas
esferas dos legislativos estaduais e federais.
A confiança social e a interpessoal são um pouco maiores entre as meninas e em escolas
privadas. Já a confiança institucional é um pouco maior entre os meninos, também nas escolas
privadas. Mesmo assim, os estoques de capital social ainda são baixos, somente amenizados em
relação à confiança nas pessoas mais próximas, índice este que se eleva entre os jovens do
interior. Tendo em vista esta problemática, espera-se que as agências socializadoras incentivem
os jovens a vincular o bem público com a participação política e a cooperação.
Capital Social: Participação Política
Segundo Putnam (1996) e Coleman (1988) entre outros, são os níveis de participação e
de organização de uma sociedade que denotam os estoques de capital social nela existentes. Para
Pagé e Chastenay (2003), fatores sócio-demográficos, tais como a história, as normas públicas e
a diversidade, marcam etapas cruciais entre os índices de capital social dos jovens canadenses.
Para complementar a pesquisa sobre as dimensões de confiança e cooperação, os estudiosos
apontaram uma terceira dimensão, que é composta de quatro fatores: a participação atual, a
participação futura, a confiança nos personagens políticos e a participação efetiva.
130
Principalmente, as participações dos jovens em atividades estudantis indicam uma
implicação na vida política e comunitária do estudante. Assim, a participação dos jovens em
associações e outras formas de interação social é criadora de capital social, porque tem efeitos na
socialização política, “[...] ampliando a aquisição de normas e valores de cooperativos, bem
como de confiança necessária para o funcionamento adequado da democracia. As associações
funcionam como escolas para se aprender democracia” (Stolle e Hooghe, 2002, p. 3).
Nesta direção, os índices de capital social dos jovens brasileiros sofrem o impacto dos
graves problemas sócio-econômicos que afligem o país, diante da influência das mudanças
científico-tecnológicas atuais. Estas mudanças levaram ao conflito de como se adaptar à nova
realidade, tendo ainda uma cultura política com nuances arcaicas de autoritarismo e clientelismo
político. Neste sentido, as questões levantadas a seguir procuram verificar se as alterações das
transformações nas estruturas sociais e no comportamento dos jovens vêm redefinindo os
espaços democráticos e a ampliação da cidadania entre eles.
Sabe-se que, para ampliar o grau de participação dos jovens em entidades associativas,
esses devem acreditar na eficácia de sua participação. Os dados deste estudo sugerem que, para
boa parte dos entrevistados (75,8%), existe um reconhecimento de que a participação em
atividades associativas poderia colaborar para mudar muita coisa no país, o que pode indicar a
existência de uma perspectiva de participação futura dos jovens. Neste item, as meninas e a
escola pública apresentaram índices mais elevados de estoque de capital social que os meninos e
a escola privada.
Observa-se que a abordagem centrada na sociedade mostra com freqüência que a
interação social é pré-requisito para a criação de confiança generalizada e reciprocidade
(Putnam, 2000). A lógica da abordagem na sociedade implica que as associações desempenhem
uma função na socialização, porque a interação em associações voluntárias e as experiências de
cooperação socializam os membros para a democracia e ampliam as redes de parcerias.
A intenção de investir mais na participação futura, que inclui uma vasta gama de
atividades de participação política e civil, é um pouco maior entre as meninas do que nos
meninos da amostra. No entanto observar-se-á, posteriormente, que a participação política ocupa
um lugar pequeno no elenco de atividades comunitárias, pois esta exige um envolvimento na
vida política, como a adesão a um partido, participar das eleições, contatar os políticos para saber
sua opinião sobre os temas de interesse. E os jovens demonstram a intenção de investir apenas
ocasionalmente nas atividades de significados civis e políticos.
No entanto, cabe destacar que o percentual de jovens brasileiros que votaram nas
últimas eleições esté se elevando. Informações do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) indicam
que, na “[...] eleição de 2000, 43% dos adolescentes com 16 e 17 anos no Brasil tinham o título
131
eleitoral. Entre os adolescentes entrevistados na pesquisa A Voz do Adolescente, o resultado
chegou a 38,6% dos entrevistados” (UNICEF, 2002, p. 122).
Na referida pesquisa, entre os adolescentes em idade eleitoral, 41,3% assinalaram que
não participam das eleições porque acham que ainda não têm idade, 21,9% não participam
porque não gostam de política e apenas 3,4% participam votando e fazendo campanha para os
candidatos de sua preferência. Destaca-se também que os dados sobre o envolvimento dos jovens
em associações comunitárias, grêmios escolares, discussões sobre problemas do bairro,
organização de festas e gincanas “[...] revelam que 65% dos adolescentes entrevistados nunca
participaram desse tipo de atividade” (UNICEF, 2002, p. 124). Entre as atividades associativas
assinaladas pelos jovens, apenas 13% referiram os grêmios escolares e a organização de
gincanas. Estes dados indicam a precária participação dos jovens na vida cívica. A participação
poderia possibilitar o desenvolvimento de confiança e propiciar que as experiências de âmbito
restrito levem à participação em grupos mais organizados para a valorização do coletivo, “[...]
que podem estimular predisposições positivas em relação à eficácia política de cada cidadão”
(Baquero, 2001b, p. 40).
Nota-se que o componente de eficácia política influencia na dimensão de participação
dos jovens brasileiros. Percebe-se que atitudes de pouca participação vêm acompanhadas de um
reconhecimento latente de participação futura. Ao mesmo tempo os entrevistados reconhecem a
necessidade de participar para mudar as coisas e os índices apontam para a intenção mediana de
ampliar sua participação futura nas atividades associativas, caso sejam convidados.
A maioria ainda não se sente segura para participar de alguma atividade, pois 61,4%
responderam que depende; 30,6% que participariam; enquanto 5,5% disseram que não
participariam e 2,5% Não souberam responder ou não responderam a questão. Há, contudo, uma
clara distinção entre a percepção subjetiva dos estudantes entrevistados de participarem das
atividades associativas e a sua disposição de realmente participar nelas. A questão aberta de
cunho qualitativo pode reforçar essa análise.
Neste item, observou-se uma eficácia política na variável de predisposição para a
participação futura em atividades associativas dos jovens brasileiros. Os jovens das escolas
públicas e as meninas apresentaram um índice maior de eficácia política do que os das escolas
privadas e os meninos. Os jovens têm uma percepção média de que sua participação teria alguma
influência nas questões da comunidade, porém acredita-se que não vêm sendo socializados para
a participação presente e efetiva nas associações e grupos de suas comunidades. Colabora para
este comportamento o hibridismo da cultura política brasileira, mesclada de democracia e
autoritarismo, segundo Schmidt (2000). As associações exercem forte efeito sobre a socialização
política. “[...] As conseqüências da participação em associações mostram que a organização dos
132
membros amplia a democracia e atrai a participação dos não membros” (Stolle e Hooghe,
2002, p. 4).
Neste estudo, os jovens estudantes das escolas públicas apresentaram índices de
estoques de capital social 13,6% maiores que os da escola privada quanto à possibilidade de
participação futura. A participação em associações indica uma implicação na vida comunitária
do jovem, é fator importante para o estreitamento dos laços sociais, bem como é indispensável
para ampliar as perspectivas em relação ao futuro, ponto de investigação do próximo item.
Participação nas Atividades Associativas
Observa-se que, de forma geral, os jovens brasileiros são pouco envolvidos com
organizações políticas ou movimentos sociais. Contudo, sabe-se que a freqüência de participação
nas atividades associativas incentiva os membros a adquirir maiores níveis de confiança e
tolerância, demonstrando que a experiência em participação social tem efeitos nas atitudes
cívicas.
Neste sentido, verifica-se a relação entre os estoques de capital social e a freqüência de
participação dos jovens nas atividades associativas, como destaca a figura 4.
Figura 4 - Freqüência de participação nas atividades associativas (%)
90.0
Participa sempre
Participa às vezes
Não participa
NS/NR
77.7
80.0
71.8
70.0
65.6
57.7
57.0
60.0
51.7
50.0
46.6
40.0
30.0
34.7
36.3
33.9 34.5
35.2
26.7
26.3
23.1
22.5
20.2
20.0
10.0
26.0
19.0
15.4
5.0
7.8
9.1
5.8
11.5
8.3
3.9
10.1
9.4
11.3
6.2
10.4
5.9
1.6
9.3
3.5
0.0
Festas dançantes
Passeios
Assoc.
Desportivas
Assoc. Religiosas
Assoc.
Tradicionalistas
Fonte: Dados da pesquisa da autora (2003), N = 2119.
Assoc. Estudantis
Assoc. Sindicais
Assoc.
Comunitárias
ONGS
133
A figura 4 destaca a freqüência da participação dos jovens nas atividades
associativas. A alternativa passeios foi a atividade assinalada pela maioria dos entrevistados
34,7%; as festas dançantes aparecem em segundo lugar 26,3%. Do total de entrevistados que
participam sempre, 22,5% escolheram as associações desportivas, 20,2% as atividades
associativas religiosas, 6,2% as atividades ligadas às associações de estudantes, 5,9% atividades
ligadas às associações comunitárias, 3,9% as associações tradicionalistas, 3,5% participação nas
ONGs e 1,6% as atividades ligadas às associações sindicais.
No indicador sobre freqüência de participação em atividades associativas, as meninas
apresentaram índices um pouco mais elevados de estoque de capital social do que os meninos.
Os passeios têm a preferência dos entrevistados, independente do tipo de escola. Em escolas
públicas e privadas, do interior ou da capital, a freqüência de participação dos jovens em
atividades associativas apresenta índices semelhantes, embora a participação em associações
estudantis seja maior entre os estudantes das escolas públicas. Já os jovens do interior preferem
participar de festas dançantes, associações tradicionalistas e comunitárias.
Se as meninas participam mais de atividades sócio-políticas ligadas às questões do
cotidiano, do bairro e da escola, em espaços delimitados que influenciam diretamente em suas
vidas, os meninos participam do espaço público mais amplo, em manifestações e comícios. A
participação em atividades associativas é maior nas escolas públicas e no interior, portanto estes
apresentaram estoques maiores de capital social na variável participação política.
A contradição todavia está no fato de os jovens acharem importante participar, sem que
isso se concretize na sua prática. Assim, os dados apontam ainda para a existência de um déficit
no processo de socialização política dos jovens brasileiros. Os jovens, em geral, mostram certa
homogeneidade de avaliações sobre as variáveis do conceito de capital social e se mostram
indiferentes tanto sobre os temas públicos como aos da vida privada.
Perspectivas em relação ao futuro
As perspectivas que os jovens têm em relação ao futuro vão indicar seu envolvimento
nas questões coletivas ou não, desde que incentivados pelas agências socializadoras. Nesta
direção, nos estudos do UNICEF (2002, p. 85-7), os adolescentes demonstraram “[...] forte
esperança quanto ao seu futuro: 59% acreditam que sua vida será melhor em relação à de seus
pais e 4% acham que será pior”.
Em relação à pergunta sobre o que falta para que as suas vidas melhorem, a maioria não
respondeu 21%, 15% assinalaram a falta de bens materiais, 10% emprego, 8% estudo e 12% não
134
responderam. Os adolescentes também foram perguntados se tinham um sonho a ser
realizado: “[...] 78,5% responderam que sim, 18,9% disseram que não e 2,6% não responderam”.
A capacidade de sonhar transcende a classe social e o gênero (UNICEF, 2002, p. 87). O tipo de
sonho mais indicado foi ter uma profissão, seguido de dinheiro e bens materiais. “A freqüência
de sonhos ligados à coletividade, ao bem-estar da população foi de 5%, igual ao sucesso nos
esportes. O principal mecanismo para atingir seus sonhos foi o estudo, seguido de recursos
financeiros e outros” (UNICEF, 2002, p. 87).
Observa-se que o apoio governamental é essencial para resgatar a confiança dos jovens
no futuro e a efetiva participação em associações.
Na presente pesquisa, o índice de otimismo se apresenta mais elevado, ou seja, é 34%
maior em relação à pesquisa de Schmidt (2000). Este fator pode ser explicado pela conjuntura
em relação às eleições de 2002, que mostrou ser motivadora de uma perspectiva de mudança
para toda a sociedade brasileira. Esses dados mostram-se também em relação à incerteza (28,8%
e 33,4% respectivamente), e pessimismo (3,2% e 24,9%), bem como, NS/NR (12,5% e 20,1%).
Acredita-se que conjuntura política apontou para índices de confiança maiores em relação aos
candidatos do pleito de 2002.
Neste sentido, a perspectiva sobre a situação econômica das pessoas nos próximos anos
pode colaborar para delinear um quadro positivo ou negativo dos estoques de capital social no
país. Isso relaciona as perspectivas dos jovens sobre a situação econômica, a fim de identificar a
confiança no governo e na sociedade. Neste sentido, para a maioria (30,8%) a situação
econômica das pessoas vai piorar nos próximos cinco anos, para 21,8% vai melhorar, para 19,7%
vai ficar igual e 27,7% não sabem ou não responderam. No entanto, contraditoriamente, na
questão sobre as oportunidades para os jovens no Brasil, 34,9% acreditam que vão melhorar,
24,6% que vão ficar iguais e 19,3% que vão piorar, enquanto 21,2% não sabem e/ou não
responderam.
Os adolescentes manifestam visões claras dos problemas brasileiros, “[...] apontando a
má distribuição da riqueza como principal responsável pelo problema do país” (Souza, 2002,
p.53). Em geral, nos estudos das décadas de 80 e 90, os jovens associavam a política à corrupção
e mostravam-se pessimistas em relação ao futuro, principalmente em relação às questões
econômicas. No entanto, neste estudo, observou-se uma ampliação nos índices de otimismo em
relação ao futuro e à crença em oportunidades para os jovens no Brasil. Acredita-se que isso se
dava à perspectiva de otimismo e confiança despertada pelas eleições presidenciais de 2002.
Observa-se a consciência dos jovens em relação aos problemas sociais tais como desemprego,
violência e drogas que afligem as novas gerações, impedidas de ascender socialmente por conta
135
das políticas ligadas à globalização e ao receituário neoliberal que priorizou resolver
questões como estabilidade econômica, antes que solucionar os problemas da exclusão social.
Por um lado, quanto às expectativas em relação ao Brasil, o número de adolescentes que
acredita que o país está se tornando um lugar melhor para se viver (27,6%) está muito próximo
da porcentagem que acha que está se tornando-se pior (27,1%). “O número de pessoas que
acredita que o país vai ficar igual também não é tão diferente (25,8%)” (UNICEF, 2002, p.88).
Por outro lado, destacam-se algumas alterações em relação aos índices de otimismo nos
níveis de confiança social e de que as oportunidades para os jovens tendem a melhorar no país.
Para 34,9% dos jovens as oportunidades para os jovens vão melhorar, 24,6%, acha que vão ficar
iguais, 19,3% que vão ficar piores e 21,2% NS/NR. Porém, na questão sobre a escolha
profissional, apesar de 47% não se definirem, a maioria escolheu as mais variadas profissões,
com pequena margem de preferência para as engenharias e medicina.
Este índice sobe para 75% entre os jovens do Exame Nacional do Ensino Médio ENEM (2001). As expectativas profissionais e de inserção social e os valores do jovem
participante da pesquisa permitiu verificar que a preocupação dos jovens em relação ao futuro
está aliada ao capital humano. A maioria (57,6%) tinha como principal decisão prestar vestibular
e continuar seus estudos. Para 18%, a decisão era prestar vestibular e continuar trabalhando.
O futuro em geral é a principal preocupação dos jovens (33,8%), 27,1% deseja
conseguir entrar na universidade, 14,7%, conseguir trabalho e 8,6% terminar os estudos. As
“expectativas com a profissão e com as chances de cursar o ensino superior são fortes. Pouco
mais de 60% dos jovens planejam para seu futuro de médio prazo, 4 ou 5 anos, vir a ter um
diploma universitário e conquistar um bom emprego”. Apenas 11% dos jovens planeja abrir um
empreendimento próprio e ganhar dinheiro (ENEM, 2001, p. 43).
“Os estímulos para a escolha profissional são vários como a família, o mercado de
trabalho e a própria identidade profissional [...]”. (ENEM, 2001, p. 44). No entanto, foi possível
verificar algum grau de associação entre algumas profissões e tipos de escola. As áreas de
humanas, biológicas e saúde parecem ser as preferidas entre os que freqüentam as escolas
privadas durante o ensino médio. Destaca-se também a baixa escolha do magistério de 1º e 2º
graus entre os que freqüentam a escola pública. A identidade com a profissão foi a opção de
59,6% dos entrevistados, 36,5% apontaram a influência dos pais, 22,1%, a facilidade para obter
emprego, 20,8% citaram o próprio trabalho, 20,2% a escola e 19,8%, o estímulo financeiro
(ENEM, 2001).
Cabe destacar que os jovens vêm sofrendo os efeitos dramáticos e devastadores de
transformações e exclusões profundas deste período de transição atual, chamado pelos
136
pensadores de “pós-modernidade à brasileira”. As populações juvenis “[...] como categoria
social e como categoria de subjetividade, são caracterizadas, antes de tudo, por sua fragmentação
e pelo seu caráter difuso e de difícil contorno”. Assim, no Brasil, “[...] à crise de valores, dos
símbolos” e das agências socializadoras clássicas - “[...] entre as quais a escola e a família - se
conjugam as mutações tecnológicas e econômicas profundas, comparáveis, em sua envergadura e
extensão, à Revolução Industrial” (Souza, 2002 p. 57).
Segundo Souza (2002) os efeitos negativos dessa conjuntura sobre os jovens,
caracterizada pelo individualismo e consumismo, gravidez indesejada, AIDS e drogas, e
principalmente na violência e exclusão, não podem deixar de nos permitir observar também os
aspectos positivos na procura de saber quem são, como pensam e como reagem os jovens
brasileiros.
Nesta direção observa-se que, apesar dos obstáculos, impasses e conflitos a que estão
submetidos, muitos jovens criam alternativas e estratégias originais de sobrevivência psíquica,
emocional, intelectual, sócio-econômica, cultural e política entre outras. Alguns conseguem
mesmo transcender os limites impostos pelas mudanças e pela crise atual, desenvolvendo
mecanismo de confiança nas pessoas, cooperação sistêmica e participação nas questões coletivas,
ampliando o capital social de suas comunidades.
Conclusão
Os jovens são pressionados para o bom desempenho na carreira e para a obtenção do
sucesso. Seu tempo livre está mais voltado para a sua inserção no mercado de trabalho, o que os
leva a posturas individualistas e distantes das relações de solidariedade requeridas para se ter
capital social.
A situação da juventude brasileira, pautada por obstáculos, impasses e conflitos que
dificultam o desenvolvimento de redes de confiança, cooperação e reciprocidade entre os jovens,
coloca as Ciências Sociais e, em especial, a Ciência Política, diante do desafio de criar
alternativas e estratégias originais que permitam transcender os limites impostos pela crise atual,
de forma a permitir o empoderamento dos jovens, estimular a geração de capital social e
promover a participação política e a socialização para a democracia.
Os resultados desta investigação evidenciaram que pesquisas relacionadas ao conceito
de capital social e socialização política são incipientes no Brasil. Também foi observada a
deteriorização de algumas redes sociais, contraditoriamente à aparente revitalização da vida
política e comunitária em nível nacional. E nesta direção percebe-se a existência de baixos
137
índices de confiança, cooperação e participação na vida comunitária, variáveis que
evidenciam níveis baixos de estoque de capital social.
Observou-se que a socialização política, até o presente momento, não vem incentivando,
nos jovens, sentimentos e comportamentos relacionados à importância da freqüência de
participação em atividades associativas e políticas, e isto não propicia a estocagem de capital
social na comunidade, visto que a participação dos jovens é baixa e esporádica. Os assuntos de
política não despertam o interesse dos jovens brasileiros. A televisão é sua principal fonte de
informação e exerce maior influência sobre as atitudes políticas. Os jovens da capital se
informam mais, lêem mais jornais e têm maior acesso à Internet.
No geral, as meninas apresentam índices um pouco maiores de capital social que os
meninos em relação à participação em atividades sócio-políticas. São índices baixos, apesar de
acreditarem ser importante a participação. A participação em atividades associativas é maior nas
escolas públicas e no interior. Observa-se, assim, falhas no processo de socialização dos jovens
na escola e em outras instituições promotoras de relações sociais porque a maioria não soube
identificar o porquê de ser importante a participação política dos jovens, pois estes não
vislumbram formas de como efetivamente participar e nem mesmo sentem-se motivados a
participarem de atividades com outras pessoas.
A família começa a apresentar bons resultados na socialização dos jovens para o capital
social. O que não se registrou nas demais agências socializadoras (escola, mídia, igreja, grupos
comunitários e associações), que não apresentaram índices satisfatórios de contribuição, no
sentido de incentivar mecanismo que desencadeiem no comportamento juvenil o envolvimento
em associações voluntárias, ampliando nestes a incorporação de crenças e valores de confiança e
solidariedade, de modo a permitir o incremento de capital social.
As variáveis principais do capital social confiança, cooperação e participação grupal não
estão sendo favorecidas pelo processo de socialização política vigente o que, por sua vez, estaria
predispondo os jovens a desenvolverem atitudes de apatia e indiferença ou de envolvimento e
participação em atividades associativas. Contribuem para os efeitos perversos os elementos
estruturais e conjunturais do processo de globalização e os efeitos estruturais indicados por uma
cultura política híbrida e de desconfiança entre os jovens que incide sobre a socialização destes
de forma a não permitir a ampliação dos índices de capital social. Assim, como não estão
contribuindo suficientemente para revitalizar ou recriar espaços democráticos para estimular
novas formas de cooperação, organização e de participação política, bem como para ampliar a
esfera de participação na sociedade civil.
O capital social filia-se à lógica esposada pelos setores sociais subalternos em defesa da
afirmação da identidade cultural de cada povo, elevando a auto-estima por meio de transmissão
138
de valores relacionados a confiança, cooperação, identidade comum e respeito pelas
instituições. Segundo (Prá, 2001), esta promoção deve ser feita em conjunto entre a sociedade e
o Estado para promover o desenvolvimento humano e sustentável, eqüitativo e democrático.
Referências
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EDUCAÇÃO DE JOVENS E CONSTRUÇÃO DE CAPITAL SOCIAL: QUE SABERES
SÃO NECESSÁRIOS?
Rute Baquero
Doutora em Educação, professora do PPG em Educação da UNISINOS, na Linha de Pesquisa
“Educação e Processos de Exclusão Social”.
E-mail: [email protected].
Lúcio Jorge Hammes
Doutorando do PPG em Educação da UNISINOS, desenvolvendo pesquisa sobre a educação dos
jovens na Linha de Pesquisa “Educação e Processos de Exclusão Social”.
E-mail: [email protected]
Introdução
No Brasil, há um conjunto de práticas sociais que envolvem experiências de educação
não-formal com a juventude que se coloca como desafios à pesquisa no campo de educação.
Nessas práticas se incluem ações em organizações, nas quais os jovens constroem aprendizados
dentro de uma pluralidade de redes e grupos em que participam.
Libâneo (2002) agrupa as práticas educativas em duas grandes categorias: a educação
formal e a educação não formal. O autor, ao fazer a distinção entre essas duas modalidades, traz
o significado de formal como “tudo o que implica uma forma, isto é, algo inteligível, estruturado,
o modo como algo se configura”. Neste sentido, a educação formal é aquela “estruturada,
organizada, planejada intencionalmente, sistemática” (p. 88). A educação não-formal, por sua
vez, é constituída por “aquelas atividades com caráter de intencionalidade, porém com baixo
grau de estruturação e sistematização, implicando certamente relações pedagógicas, mas não
formalizadas” (p. 89).
Conhecer e refletir a respeito das experiências educativas não-formais que têm no grupo
o centro do processo formativo com jovens é fundamental, uma vez que a ação dessas
organizações pode constituir uma resposta para a dificuldade que cientistas sociais (Baquero,
142
2001, dentre outros) têm hoje apontado – a de desenvolver a capacidade associativa e
identidades coletivas fortes e duradouras (p. 55).
Nessa perspectiva, o presente artigo tem por objetivo identificar saberes construídos em
experiências educativas não-formais, em três organizações que enfatizam o grupo como espaço
de convivência e ação dos jovens, problematizando-os na sua relação com a construção de
capital social. O estudo parte da hipótese de que os grupos juvenis, organizados em sistemas
horizontais de participação, propiciam aprendizados que favorecem o desenvolvimento de
capacidades individuais e relações de confiança e de entre-ajuda, com efeitos para além do
grupo, constituindo-se em mediações importantes para a construção de capital social junto à
juventude e à comunidade. A hipótese é de que os grupos juvenis se constituem em outros
espaços de educação, onde se realizam aprendizados de formação e modos de socialização, além
dos ambientes oficiais e formais, conhecidos e reconhecidos como importantes para o
desenvolvimento da juventude. Assenta-se na possibilidade de que os aprendizados de, e no
convívio, praticados pelos jovens nos grupos podem se constituir em saberes importantes para a
construção de capital social. A intenção é investigar a importância do grupo para a formação
individual e coletiva dos jovens e os efeitos dessa formação na construção de capital social. O
estudo faz parte de um projeto de investigação sobre os saberes construídos em grupos juvenis,
em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em Educação da UNISINOS.
Marília Spósito (2002), fazendo uma análise da produção de conhecimento sobre
juventude na área da educação, conclui que, “apesar do volume significativo de teses e
dissertações, pode-se afirmar que ainda há um desconhecimento sobre a condição juvenil na
sociedade brasileira” (p. 22). Ela identifica o esgotamento das análises sobre a escola que
privilegiam apenas a experiência pedagógica e os mecanismos presentes na distribuição do
conhecimento escolar, sem levar em conta as dimensões e práticas sociais em que estão
mergulhados os sujeitos da aprendizagem: “investigações mais recentes recorrem as novas
abordagens, incluindo aquelas que dizem respeito às formas associativas e de expressão cultural
dos segmentos juvenis, na medida em que se acentua a crise da escola e sua capacidade de
intervenção socializadora sobre a população em idade escolar” (p. 21).
Analisando as pesquisas sobre juventude e os temas emergentes, Spósito e Corti (2002)
reconhecem haver um redimensionamento do foco das investigações, produzindo maior
amplitude no tratamento do sujeito. Neste sentido, os estudos tendem a adotar uma perspectiva
mais próxima do jovem do que da instituição. Nas palavras dessas autoras, “não se trata apenas
do aluno, mas de desvelar o jovem, contribuindo, assim, para que o conhecimento avance no
sentido de produzir informações sobre as várias faces que envolvem sua condição” (p. 205).
143
Conforme a socióloga Helena Wendel Abramo, no artigo “Considerações sobre a
temática social da juventude no Brasil” (1997), na maioria das pesquisas há a dificuldade de
considerar os jovens efetivamente como sujeitos. Ainda são vistos como problemas (para si
próprios e para a sociedade), não sendo consideradas “nunca, ou quase nunca, questões
enunciadas por eles, mesmo porque regra geral, não há espaço comum de enunciação entre
grupos juvenis e atores políticos” (1997, p. 28). Em face disso, a autora sugere olhar os jovens
livres da postura de desqualificação, como sujeitos capazes de ações propositivas e interlocutores
para decifrar conjuntamente, mesmo que conflituosamente, o significado das tendências sociais
do nosso tempo e das saídas e soluções para eles. É nessa direção que se orienta o presente
estudo, que busca desenvolver uma escuta a respeito da experiência educativa de jovens,
participantes de grupos.
O texto está estruturado de modo a focalizar, inicialmente, questões relacionadas à
categoria capital social e a educação dos jovens. A seguir, especifica-se a pesquisa realizada,
mediante a discrição das organizações às quais os grupos juvenis estudados estão vinculados e de
apresentação de dados referentes à contribuição do grupo na formação dos jovens, discutindo
seus efeitos na relação com o capital social. Finalmente, à guisa de conclusão, procede-se a uma
discussão do projeto educacional presente no processo formativo dos jovens no grupo.
Capital social
A categoria capital social é conhecida no meio acadêmico desde 1916, com os estudos
de Hanifan sobre as escolas comunitárias rurais dos EUA, e se popularizou a partir dos anos de
1980, com os estudos de Pierre Bourdieu (1998), James Coleman (2000), Robert Putnam (1996),
Francis Fukuyama (1995), dentre outros.
Hanifan (1916) desenvolve pesquisa sobre os centros comunitários de escolas rurais,
onde identifica uma relação direta entre o nível de vida da população e a sociabilidade nas
relações de vizinhança (Jianoti, 2004).
A partir da década de 1980, os cientistas sociais Pierre Bourdieu, James Coleman e
Robert Putnam retomam o termo e dão novo sentido, difundem seu uso para diversos âmbitos de
pesquisa e práticas sociais. Aparecem elementos-chave, como confiança, coesão social, redes,
normas e instituições, em vários contextos e disciplinas, em que o conceito tem sido usado,
implícito ou explicitamente. Percebe-se, assim, que a categoria capital social é uma categoria
viva, multiplicando sua compreensão nos diversos ambientes em que é usada.
144
A Pierre Bourdieu deve-se a origem do interesse recente pela categoria capital
social, que se impôs como o “único meio de designar o fundamento de efeitos sociais que,
mesmo sendo claramente compreendido no nível dos agentes singulares – em que se situa
inevitavelmente a pesquisa estatística –, não são redutíveis ao conjunto das propriedades
individuais possuídas por um agente determinado” (1998). O autor define capital social como:
“conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de
relações mais ou menos institucionalizados de interconhecimento e de inter-reconhecimento ou,
em outros termos, à vinculação a um grupo, como conjunto de agentes que não somente são
dotados de propriedades comuns (passíveis de serem percebidas pelo observador, pelos outros ou
por eles mesmos), mas também são unidos por ligações permanentes e úteis” (p. 67).
A existência dessa rede de relações não é um dado natural, como também não é um
dado social, constituído de uma vez por todas e para sempre por um ato social, mas produto do
trabalho de instauração e de manutenção, necessário para produzir e reproduzir relações duráveis
e úteis para proporcionar lucros materiais e simbólicos. São ativos que propiciam vantagens aos
indivíduos, famílias ou grupos relacionados.
Coleman desenvolveu seu interesse por capital social, examinando seu papel na
educação. A partir de estudos empíricos, orientou-se no sentido de comparar desempenhos e
resultados de escolas públicas e católicas, entre 1980 e 1982, analisando o capital social como
um modo de melhor compreender a relação entre alcance educacional e desigualdade social,
entendendo capital social, Loury, como o conjunto de recursos intrínsecos nas relações
familiares e na organização social comunitária, úteis para o desenvolvimento cognitivo ou social
de uma criança ou jovem. O autor assinala que, como as outras formas de capital, o capital social
é produtivo, possibilitando o alcance de certos fins que não seriam possíveis na sua ausência.
Assim, o capital social é definido por sua função: “It is not a single entity, but a variety of
different entities having two characteristics in common: They all consist of some aspect of a
social structure, and they facilitate certain actions of individuals who are within the structure”.
(Coleman, 2000, p. 302)1.
No entanto, ao contrário de outras formas de capital, o capital social nunca é
propriedade particular (nem mesmo das pessoas que dele se beneficiam), porque, como atributo
da estrutura social, pertence à estrutura de relações e, como ativo das pessoas que participam de
uma organização, pode ter impactos diversos, tanto positivos como negativos, pois uma dada
forma de capital social que é útil em facilitar certas ações pode ser inútil ou mesmo prejudicial
para outras. Coleman especifica três formas de capital social: a primeira, lida com o nível de
1
“Não é uma entidade singular, mas uma variedade de diferentes entidades, com duas características em comum:
consistem em alguns aspectos da estrutura social e facilitam certas ações dos atores que estão nessa estrutura”
(Traduzindo nossa)
145
confiança e a real extensão das obrigações existentes em um ambiente social (o capital social
é elevado onde as pessoas confiam umas nas outras e onde essa confiança é exercida pela
aceitação mútua de obrigações); a segunda forma diz respeito aos canais de trocas de
informações e idéias; e a terceira, diz respeito às normas e sanções que encorajam os indivíduos
a trabalharem pelo bem comum, abandonando interesses próprios e imediatos. Essas três formas
de capital social se relacionam entre si e, se houver depreciação, todos perdem (Coleman, 2000,
p. 304).
Robert D. Putnam é responsável pela incorporação dessa categoria no discurso político
dominante. Preocupa-se em buscar formas de regenerar a saúde política da sociedade, dando
primazia para o papel das normas, com valores coletivos. Ele define capital social como
“características da organização social, como confiança, normas e sistemas, que contribuam para
aumentar a eficiência da sociedade, facilitando as ações coordenadas” (1996, p. 177). Segundo o
autor, o capital social facilita a cooperação espontânea, e “tal como sucede com o capital
convencional, os que dispõem de capital social tendem a acumular mais” (p. 179). Nesse
conceito, há dois pressupostos implícitos: redes (“redes de engajamento cívico”) e normas, com
conseqüências importantes para a comunidade. Para Putnam, a confiança, alcançada quando há
um conhecimento mútuo entre os membros de uma comunidade, “lubrifica” a vida social; além
disso, “os sistemas de participação cívica são uma forma essencial de capital social: quanto mais
desenvolvidos forem esses sistemas numa comunidade, maior será a probabilidade de que seus
cidadãos sejam capazes de cooperar em benefício mútuo” (Putnam, 1996, p. 182).
A partir da década de 1990, a categoria capital social é tema presente nas universidades,
especialmente nas áreas ligadas às ciências econômicas, sociais e políticas educacionais, bem
como em organismos internacionais, como a UNESCO, OIT, FAO e CEPAL. Passa-se a
“defender a necessidade da participação da sociedade civil na formulação e na implementação de
políticas públicas e ações governamentais” (Riedl e Vogt, 2003, p. 151), corroborando com a
teoria de Putnam de que “capital social, corporificado em sistemas horizontais de participação
cívica, favorece o desempenho de governo e da economia, e não o oposto: sociedade forte,
economia forte; sociedade forte, Estado forte” (p. 186).
Na ampliação das pesquisas, Francis Fukuyama define o capital social como “normas y
valores compartidos que promueven la cooperación social” (2003, p. 37), afirmando que a
cultura desempenha um papel importante em toda sociedade, pela qual grupos de indivíduos se
comunicam e cooperam em uma grande variedade de atividades.
Capital social e educação dos jovens
146
Especificamente, no campo da educação de jovens, que experiências têm sido
desenvolvidas com o capital social? Com que populações? Como têm sido avaliadas essas
experiências? Quais suas contribuições para a ação social?
Schaefer-Mcdaniel (2004), no artigo “Conceptualizing social capital among young
people: Toward a new theory”, refere que a pesquisa sobre capital social se encontra ainda nos
estágios iniciais e que a grande maioria dos estudos têm focalizado populações adultas. No
entanto cabe destacar, na produção recente, um conjunto de trabalhos desenvolvidos como o objetivo de explorar esta temática junto a jovens (Abramovay, 2002; León, 2004; Longo, 2003;
Elizalde, 2003; Rodríguez, 2003; Leon e Honores, 2003; Schmidt, 2001, 2004; Baquero, 2004,
dentre outros).
Dados da UNESCO revelam consenso quanto à necessidade e importância da
participação cidadã da juventude. Em agosto de 2001, a organização promoveu, em Portugal, um
seminário sobre a temática “Automizar a juventude para agir”, destacando a importância da
“transferência de poder para os jovens como indivíduos, organizações de juventude,
comunidades, nações e intervenientes a nível internacional de modo a poderem ter a
oportunidade de tomar decisões que afetam as suas vidas e o seu bem-estar” (UNESCO, 2001).
Rodríguez (2003, p. 4), em seu trabalho “Juventud rural: Construyendo la ciudadanía de
los territorios rurales”, apresentado no Instituto Interamericano de Cooperación para la
Agricultura (IICA), constata fenômenos de exclusão e desigualdade social presentes entre as
faixas etárias, resultando na marginalização dos jovens (sobretudo das faixas menores) e dos
idosos. Segundo esta pesquisadora, a participação e o empoderamento permitem criar
consciência no público e no coletivo e, fundamentalmente, habilitam para a criação de relações
de confiança que constroem e fortalecem as instituições: “Las generaciones jóvenes constituyen
grupos claves en la construcción de capacidades para la gestión del desarrollo, tanto por sus
características particulares, como por la posibilidad de tener un efecto hacia atrás y hacia
adelante en la multiplicación de una visión diferente, de manera intergeneracional. Esto los
convierte en sujetos de política de formación de capital social para el desarrollo” (p. 23).
Com a participação cidadã direta da juventude e a organização de novas formas de fazer
política entre os jovens, rompendo com o esquema clientelista, desenvolvem-se também
capacidades de gestão cidadã, pela experiência acumulada de participação. Estas experiências
são “caldo de cultivo de nuevas actitudes proclives al reconocimiento y respeto entre
generaciones, por-que abren posibilidades para la toma de perspectiva y el acceso a espacios de
comunicación” (p. 24).
147
Cientes de que a participação cidadã é importante para o desenvolvimento humano,
organizações governamentais e não-governamentais propõem projetos e programas, visando
ampliar o capital social entre a juventude. O paradigma do capital social contribui para analisar
ações e propor alternativas para o desenvolvimento de atitudes (confiança, por exemplo) e
instituições (grupos e redes, por exemplo) voltadas ao bem-estar da coletividade. Nesta
perspectiva, Leon e Honores (2003, p. 83) defendem a tese de que a perspectiva de capital social
como empreendimento entre os jovens permite redefinir e/ou ampliar a visão sobre o último –
desde uma ênfase individualista a outra, mais coletiva –, ao reconhecer e valorizar a importância
de ações coletivas e solidárias para melhorar as condições de vida também coletivas,
especialmente dos mais carentes. O capital social teria as funções de facilitar a constituição de
organizações produtivas e de gestão coletiva e de gerar um entorno social propício para
desenvolver ações inovadoras (apoio financeiro, acesso à capacitação, facilidade para adquirir
novas tecnologias, entre outras).
A partir da avaliação do impacto subjetivo da participação dos jovens chilenos em
programas sociais, orientados ao empreendimento e à aquisição de capital social, no período de
2000 a 2002, ao encargo do Instituto Nacional da Juventud (INJUV), os autores constatam que:
a) É através do reconhecimento da comunidade, como espaço ativo de fortalecimento da
identidade, que se definem estratégias de crescimento coletivo, desenhando programas de
capacitação de sujeitos e grupos sociais.
b) As habilidades de empreender estão associadas às trajetórias vitais dos jovens,
portanto, não transferíveis através de experiência pontuais de capacitação ou trabalho grupal,
mas são desenvolvidas em processos sistemáticos de participação.
c) Há um impacto positivo nos jovens que participam deste tipo de programas juvenis,
com destaque para a participação nas atividades e na convivência entre os participantes e
encarregados, pois os que avaliam mais positivamente tais programas são os que apresentam
maior nível de capital social percebido no plano individual e coletivo.
d) Os jovens avaliam positivamente o funcionamento interno dos programas, de modo
particular, os diretamente vinculados à participação, tanto em programas produtivos como
culturais ou social-comunitários, ainda que a maioria dos programas não vincule a noção de
capital social com o conceito de capacidade empreendedora juvenil.
A caracterização dos empreendimentos juvenis corresponde a uma aproximação dos
comportamentos de iniciativas produtivas no segmento juvenil, que se associa geralmente a
atitudes e condutas que dão lugar a um perfil pessoal, ligado a aspectos nucleares como o manejo
do risco, a criatividade, a capacidade de inovação, a autoconfiança e a um determinado tipo de
148
ação, denominada “ação empreendedora”. Desta maneira, o enfoque empreendedor juvenil se
instalou no âmbito produtivo, que “obedece a la génesis del concepto y que lo liga al mundo de
los negocios, aunque se ha intentado extrapolar a otras esferas como la social, cultural,
ambiental, etc.” (Leon e Honores, 2003, p. 183). Sugerem ainda, os autores, que este cenário,
possível e desejável, leve ao terreno das políticas e programas de empregabilidade,
estabelecendo conexão entre capital social e desenvolvimento da capacidade empreendedora
juvenil.
León (2004) descreve o “Proyecto Tutorial de Capital Social y Liderazgo Juvenil”,
desenvolvido na Universidade Metropolitana de Venezuela, como uma das iniciativas de maior
relevância que, em âmbito social e de políticas de desenvolvimento, está impulsionando a
universidade, reafirmando seu compromisso de contribuir com idéias e propostas para o avanço
do país. Parte da premissa de que é possível a mudança cultural através do processo educativo,
mediante o ensino de valores e atitudes na academia e através da prática desses valores via
voluntariado social, como componente institucional, para exercitar os valores de capital social e
transmiti-los mediante alianças com instituições de ensino médio e organizações nãogovernamentais. A questão do voluntariado, na forma como referida por Leon (2004) –
voluntariado institucional – merece uma reflexão. Como propõe Schaefer-Mcdaniel (2004, p.
164), é importante prestar atenção ao tipo de participação envolvida na ação voluntária
institucional. Segundo o autor, essa ação deixa de ser voluntária e torna-se coercitiva.
A pesquisa “Lo que queda a los jóvenes. Capital social, trabajo y juventud en varones
pobres del Gran Buenos Aires (Argentina)” procura investigar se as relações de solidariedade e
redes vinculadas ao âmbito da vida desses jovens (família, grupos de pares, companheiros de
trabalho de longa data, ou membros da minoria oprimida, por exemplo) constituem uma fonte de
socialização significativa enquanto espaço de geração de vínculos que permite obter e prover
recursos de capital social. Segundo Longo, capital social compreende ativos (sociais,
psicológicos, culturais, cognitivos, institucionais e outros relacionados) que melhoram o
comportamento cooperativo de benefício mútuo que, “generado por personas que se encuentran
en escenarios de vulnerabilidad y pobreza, implica un aumento de las posibilidades que tienen de
salida a esa situación” (2003, p. 34). A autora sugere estimular o capital social dos setores mais
vulneráveis, sabendo que o mesmo é um atributo coletivo complexo e um requisito ou resultante
de políticas públicas efetivas mais amplas: “El desarrollo del mismo no puede re-emplazar al
Estado, sino todo lo contrario: debe ser estimulado y complementar las políticas provenientes de
este último” (p. 40).
Em um estudo sobre elementos etnográficos e conceptuais sobre práticas, sentidos e
redes de jovens mulheres de setores populares da zona sul de Buenos Aires, Elizalde (2003)
149
identifica ações potenciais de empoderamento de gênero e juvenil. A autora pergunta sobre
os modos com que as jovens respondem às imagens sociais construídas em torno de sua condição
de gênero e idade, que as situam em maior precariedade que seus pares varões para o acesso às
oportunidades sociais, o uso prazeroso de sua sexualidade e a participação comunitária. Ressalta
a importância de explorar a problemática de gênero como dimensão participante de distintas
estratégias de inclusão/exclusão social, fundamentalmente porque “permite indagar situaciones,
muchas de ellas tácitas o poco evidentes, de precarización pero también de empoderamiento y
uso estratégico del capital social, a través de las cuales se traspasan las opciones de construcción
de una ciudadanía plena por parte de las jóvenes” (Elizalde, 2003, p. 46).
Abramovay (2002), no artigo “Desenvolvimento rural territorial e capital social” afirma
que “o principal obstáculo à acumulação de capital social no meio rural brasileiro é a existência
de um ambiente educacional incompatível com a noção de desenvolvimento” (p. 12),
conservando a tradição escravista, de maneira que “quem trabalha não conhece e quem conhece
não trabalha”. Segundo este autor, com exceção de algumas atividades das pastorais da Igreja e
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), há poucas organizações juvenis que
possibilitam a visibilização dos jovens, estimulando-os a assumir iniciativas econômicas que os
motivem a organizar suas vidas em suas regiões de origem. E conclui: “É urgente que os jovens
possam transformar-se em protagonistas organizados e ativos destas lutas e que sejam
denunciadas e combatidas as ações governamentais que fazem dos territórios interioranos, não
locais de vida, mas simples base física para a produção de ‘commodities” (2002, p. 15).
O desenvolvimento de capital social entre a juventude é também tema do Saguaro
Seminar on Civic Engagement in America, com o título “Youth and social capital”. Parte da
constatação de que a frase “a juventude da América” evoca poder e imagens contraditórias,
trazendo para a temática os “tiros de Columbine”, gangues, viciados em vídeo games,
preguiçosos, andarilhos; mas, também, jogadores de futebol, ativistas ambientais, artistas de hiphop, escoteiros e trabalhadores de empresas familiares: “Adult society all too frequently
overlooks young people, except when they get into trouble. Young people want what everyone
else wants: affiliation, community, solidarity, respect, success, and opportunity. Whether those
needs are provided by gangs – or conversely by schools, houses of worship, and sports leagues –
is up to us as a society. And the choice we make has short - and long-term ramifications. The
nature of the social capital available to young people influences how well they learn, the odds
that they will attend college, whether they commit crimes, and the likelihood that they will do
drugs or commit suicide. In a nation that prides itself on constant reinvention, young people
represent the promise of a stronger America, and their well-being is a leading indicator of the
150
long-term health of our communities. As our young people go, so goes our nation” (Saguaro
Seminar on Civic Engagement in America, 2001, p. 1) 2.
A análise dessas investigações evidenciam a importância do investimento na juventude
com vistas à construção de capital social nos diferentes setores da sociedade. É mister, no
entanto, explorar também as possibilidades de construção de capital social entre a juventude em
espaços educativos não-formais, tendo o grupo como referência no processo de formação. É
nesse sentido que se direciona esta pesquisa, ao examinar a contribuição do grupo na educação
dos jovens e sua relação com o capital social.
Desenvolvimento da pesquisa
A pesquisa foi desenvolvida em três organizações que realizam trabalho com a
juventude, através da metodologia de grupo, visando ao protagonismo juvenil: Pastoral da
Juventude Estudantil (PJE), a Rede Em Busca da Paz (EBP) e o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST). Essas organizações propõem a vivência em grupo como experiência
básica para a formação da juventude.
A PJE, no seu Marco Referencial, afirma: “Um grupo da PJE é formado por jovens
estudantes cristãos que, possuindo objetivos comuns, se encontram e partilham sua vida e sua
ação na transformação do meio estudantil. A vida que surge de grupos que se articulam,
procurando uma caminhada conjunta em nível de paróquia, diocese, regional ou em nível mais
amplo, é que faz surgir a organização onde o estudante é o protagonista” (1994, p. 77).
O MST conclama para a unidade e a luta em conjunto e sugere uma organização da
juventude para atuar de forma organizada. Um dos intelectuais deste movimento, Ademar Bogo
(1999) destaca: “naturalmente que todas as atividades a serem desenvolvidas pela juventude
devem ser coletivas; para isto devemos estabelecer formas orgânicas para que os jovens tenham
condições de atuar organizadamente e também terem suas referências organizativas constituídas
(...). Ela, a juventude, de fato pode ser a força determinante dentro do MST, assumindo as tarefas
de liderança que já são distribuídas dentro das instâncias” (p. 90).
2
“Os adultos muito freqüentemente negligenciam os jovens, exceto quando eles estão em problemas. Os jovens
desejam o que qualquer um de nós deseja: Ter um sentimento de pertença, fazer parte de uma comunidade,
solidariedade, respeito, sucesso e oportunidade. Se essas necessidades são satisfeitas por gangues - ou ao contrário,
pelas escolas, igrejas, ligas desportivas – depende de nós enquanto sociedade. E a escolha que fazemos e tem efeitos
a pequeno e longo prazos. A natureza do capital social disponível aos jovens influencia a qualidade de sua
aprendizagem, suas chances de freqüentar a universidade, se cometerão crimes ou se envolverão com drogas e
cometerão suicídio. Numa nação que se orgulha de se reinventar constantemente, os jovens representam a promessa
de uma América mais forte e seu bem-estar é o indicador principal da saúde de nossas comunidades. Nossa nação
vai na direção que forem os jovens” (Seminário de Saguaro sobre Engajamento Cívico na América, 2001, p.1)
(Tradução nossa).
151
E o EBP, na Carta de Princípios da Rede Em Busca da Paz, aprovada pela 1ª
Assembléia Geral, no dia 17 de outubro de 1999, refere: “Acreditamos firmemente que o
pequeno grupo de base é um lugar para a convivência afetiva, uma escola e oficina da paz onde
se educa para a não violência e onde são organizadas e experienciadas ações em prol da paz no
mundo. Para isto, temos enfatizado os principais pilares de sustentação de um grupo: união,
formação, ação, espiritualidade e mística, avaliação e revisão de vida, metodologia e
planejamento, coordenação e assessoria. Evidenciamos e favorecemos o protagonismo juvenil,
tendo a assessoria adulta como referência de vida e educadora da paz (Carta de Princípios da
Rede em busca da Paz, 1999).
O estudo foi realizado através de entrevistas semi-estruturadas junto aos jovens
participantes dos grupos juvenis dessas organizações. Para fins de análise dos dados, procedeu-se
a uma análise de conteúdo dos depoimentos colhidos através das entrevistas.
O grupo na formação dos jovens
A importância do grupo como locus de experiência de educação não-formal nos leva a
questionar: Que saberes são construídos na convivência em grupo? De que natureza são esses
saberes? Que efeitos produzem no indivíduo? Quais as suas conseqüências para a coletividade?
Com vistas a descrever a contribuição do grupo na formação dos jovens, vinculados às
organizações sociais referidas, focalizamos, inicialmente, os saberes construídos pelos jovens na
experiência de grupo, desenvolvendo uma reflexão acerca desta experiência educativa nãoformal. Num segundo momento, problematizamos os saberes aí construídos na sua relação com a
construção de capital social.
Saberes construídos nos grupos juvenis
Embora a análise dos depoimentos dos jovens indique que os mesmos realizam
aprendizados comuns na convivência em grupo –relacionados à confiança no outro, ao respeito
mútuo, à cooperação espontânea-, é possível identificar a construção de saberes específicos em
cada grupo.
Os jovens do grupo vinculado ao MST acentuam saberes referentes à convivência em
sociedade e à participação consciente na ação social. Conforme a fala dos jovens:
152
É uma formação para o interesse de todos.
A convivência com os outros é importante.
Aprendi muito, especialmente com relação à organização do grupo (....) Não dá para
ficar de lado. É importante que todos assumem juntos e ir à luta juntos. Um só não
consegue. É preciso a união de todos.
Já os jovens participantes do grupo ligado à PJE apontam, com maior freqüência,
saberes relacionados à convivência com os pares e com a proposta de construção de uma visão
utópica. Segundo os entrevistados, a vivência com os pares ensinou-os a partilhar e a conviver
com as pessoas:
No grupo a gente aprende a ser muito humano, a cativar pessoas, a ser cativado, a
gente se abre para o outro. A gente aprende a partilhar.
O grupo me ensina a conviver com as pessoas.
Ao mesmo tempo, os jovens vinculados à PJE indicam a possibilidade de, no grupo,
aprender a “gestar o sonho no coletivo”:
Acredito que o grupo, além de gestar o novo, suscitar o novo, é o espaço de descobrir
que o novo pode se fazer no coletivo. Que o sonho somado é possível (...). A
experiência do sonho coletivo se expressa em espaços diferentes hoje em que atuamos,
mas somos ainda um grupo.
Os jovens do grupo vinculado ao EBP, por sua vez, destacam aprendizados da
solidariedade, da vivência em sociedade e do trabalho em equipe. Conforme os jovens:
A gente aprende a partilhar e trabalhar em equipe, ajudando-nos no mútuo
compromisso com os mais necessitados. Temos muito forte a união.
Nós queremos muito que a sociedade mude. Por isso, fizemos campanhas para que as
coisas melhorem. Ajudamos as crianças para que tenham um futuro melhor. Achamos
que as sociedade tem que mudar. Aliás, acho que todos devem pensar que esta
situação não pode mais continuar.
Participando do grupo eu aprendo que a união não só faz a força, como te faz andar
para frente. Eu sinto uma união muito grande no grupo. A união de todos foi uma das
primeiras coisas que senti quando comecei a participar do grupo. Criam-se relações e
aprendemos a respeitar os outros que pensam diferente de você. A partir da relação no
grupo, aprendemos a nos relacionar com as pessoas que também não participam. Criase uma rede que vai se abrindo.
O grupo é não é só um espaço de convivência, mas também um espaço para aprender
técnicas e modos de convivência. Uma análise preliminar dos dados indica a realização de
aprendizagens diferenciadas entre os grupos. Por parte do grupo vinculado ao MST, há uma
preponderância na realização de aprendizados vinculados a metas ligadas às comunidades e
orientadas para a coletividade. O grupo vinculado à PJE parece enfatizar o desenvolvimento de
aprendizagens direcionadas ao alcance de objetivos no âmbito interno do grupo e, unidos,
“buscar um outro mundo possível”, enquanto os jovens do grupo vinculado ao EBP revelam, nos
153
seus depoimentos, aprendizados ligados ao grupo à comunidade circundante e à criação de
redes de relações entre eles.
O grupo e a formação de capital social
Questionados a respeito da força das associações e dos efeitos que produzem, os jovens
participantes dos grupos vinculados às três organizações referiram como muito importante o
papel das associações, justificando que contribuem para o aumento da coesão entre seus
participantes e destacando a dificuldade do alcance de objetivos, individualmente.
Os jovens da PJE referem que as associações são importantes porque preparam para
uma participação mais eficaz na sociedade:
É muito importante porque é o povo construindo a sociedade, juntos. Não é uma
pessoa levando as coisas. É um povo com um objetivo e construindo juntos.
Porque são [as associações] uma desculpa para que as pessoas possam conversar e,
conversando podem sonhar e, sonhando juntos, podem realizar. E assim vão se
animando e, em forma de rede, podem fazer muito mais.
Acho que é muito importante como espaço de participação para conseguir coisas
práticas, como infra-estrutura e outras.
Os jovens do MST relacionam a participação em associações à possibilidade de
construção de valores partilhados por uma comunidade:
Favorece uma formação comunitária. Na convivência se produz um modo de pensar.
Embora cada um tenha sua idéia, o debate pode levar ao consenso e aí tem muito mais força.
Os jovens do EBP, por sua vez, valorizam positivamente as associações porque,
segundo eles, propiciam o empoderamento e o amadurecimento pessoal em direção à dimensão
social.
A participação ajuda no amadurecimento pessoal, contribui para que a comunidade
avance.
Porque no momento em que você se dispõe a participar de um grupo que busca o
benefício da comunidade (faz trabalho comunitário) é porque você já saiu um pouco
de você mesmo. Acho que é um benefício para toda a comunidade. Não só para você
ou para o seu grupinho.
Cada um tem um papel importante.
154
Perguntados se há um ganho com a participação social, todos os jovens respondem,
afirmativamente. Eles referem ser reconhecidos, pela sociedade, por causa da sua participação
nos grupos.
O trabalho associativo desenvolvido nos grupos tem efeitos não só em nível individual,
como também, em nível de coletividade. Os ganhos, segundo os jovens, são tanto pessoais,
quanto coletivos:
A gente se torna cidadão. Eu acho que há um ganho individual, no caso, formação
pessoal e para a comunidade.
Com a participação também se consegue bens para a comunidade e para cada um.
Os ganhos pessoais dizem respeito à possibilidade de conseguir seus direitos, como
afirmam alguns jovens. Tem a ver também com o ganho simbólico de reconhecimento pela
sociedade, acima referido, devido à sua participação no grupo: “Somos melhor aceitos por
participar e temos um espaço para influenciar”.
Os ganhos coletivos apontados se relacionam com a possibilidade de inserção e
participação coletiva: reivindicar, fazer política e gestar políticas públicas para além do Estado.
Perguntados a respeito das conquistas realizadas através da organização juvenil, os
jovens referem: a própria união da comunidade, a semana do estudante, a conquista da terra, a
escola para a comunidade, o “sopão”, a distribuição de remédios para os carentes, entre outras.
Há conquistas diferentes em cada grupo. Os jovens do grupo vinculado ao MST destacam que “a
terra foi a grande conquista”, mas também há outras: “o resfriador de leite, após a formação do
grupo e sua organização”. Os jovens da PJE referem que, “com a organização do grupo
conseguimos a escola que atendesse os pobres” e a organização da “semana dos estudantes” e,
os jovens do EBP, informam como conquistas “a realização de oficinas de música, brinquedos e
costura e campanhas nas escolas contra os brinquedos de guerra”.
Dessa forma, resultados preliminares desta investigação revelam a importância dos
saberes em convivência que se fazem nos grupos juvenis e a possibilidade da utilização desse
capital na construção de capital social.
À guisa de conclusão
Espaços não-formais de educação, vinculados a diferentes organizações, se constituem,
cada vez mais, em loci privilegiado de formação da juventude.
155
Pesquisadores da área da juventude e educação vêm constatando, e os resultados
desta pesquisa corroboram, que a convivência em grupos de iguais (pares), oportunizada por tais
grupos, contribui para a socialização dos jovens. A participação em grupos, na sociedade
moderna, aparece como algo quase intrínseco aos jovens. Eles tendem a se agrupar para partilhar
expectativas e vivências e, com o grupo, organizam sua vida e moldam sua identidade.
No estudo aqui relatado, identifica-se que, na experiência de grupo, o jovem adquire
capacidades que contribuem para o desenvolvimento pessoal e comunitário, fundamentais para a
construção de capital social. Confiança, respeito, cooperação espontânea, ações coordenadas,
formação de redes, elementos importantes para determinar capital social, foram destacados como
aprendizados oportunizados pela vivência no grupo, pelos jovens entrevistados.
O estudo, ao analisar a contribuição do grupo na formação do jovem, identifica que a
experiência no grupo desenvolve o espírito de equipe e forma para o interesse social, indicando a
existência de um processo educativo diferenciado, ali desenvolvido.
Neste sentido, cabe questionar: Que educação é essa, realizada nestes grupos juvenis,
capaz de construir condições de produção de capital social?
Uma análise preliminar do processo educativo produzido nesses grupos revela a
existência de uma prática dialógica que se desenvolve numa estrutura horizontalizada de relações
entre seus participantes. Uma educação que se realiza num processo de ação-reflexão que
considera os jovens como sujeitos de seu processo de formação e favorece o protagonismo
juvenil. Uma prática educativa concebida, conforme Freire (1979), como uma prática social.
Investir no potencial da juventude para a afirmação de princípios societários é uma
exigência, sem precedentes, da sociedade brasileira. Para renovar seu capital humano e social, a
prática da participação e do trabalho em equipe em associações constitui-se em espaço
privilegiado, conforme resultados desta pesquisa.
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Angelita Fialho Silveira
Mestre em Ciência Política pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul e pesquisadora da CAPES, NUPESAL e NIEM - UFRGS.
E-mail: [email protected]
“O que temos de fazer, na verdade, é propor ao povo, através de certas contradições básicas, sua situação
existencial, concreta, presente, como problema que, por sua vez, o desafia e, assim, lhe exige resposta, não só no
nível intelectual, mas no nível da ação”.
Paulo Freire, 1970, p.101.
Introdução
Há nos últimos anos, na área da Ciência Política, um número crescente de pesquisas
sobre atitudes e comportamentos com o objetivo de avaliar o engajamento político da juventude.
Algumas delas centradas na premissa de que o civismo entre os jovens gera confiança
institucional, interpessoal e valores de apoio à democracia; aspectos estes primordiais para a
estabilidade e legitimidade do sistema democrático.1
A concepção subjacente a estes estudos orienta-se pela matriz conceitual da Cultura
Política, privilegiando a realidade dos indivíduos por meio da análise da formação de opinião,
atitudes e comportamentos2. Nesse marco, emprega-se a noção de Capital Social na Ciência
Política para defender que sociedades nas quais os cidadãos trabalham cooperativamente para o
bem comum e confiam uns nos outros apresentam melhor desempenho político e econômico. E
1
Para uma leitura detalhada sobre participação e socialização política, ver os trabalhos de João Pedro Schmidt
(2000) e Kátia Rosana Nazzari (2003).
2
Tal postura encontra-se nos estudos de Almond e Verba, 1965.
160
por conseqüência, propiciando o surgimento de uma cultura cívica e participativa
(Putnam,1996).
Desta perspectiva, a defesa da necessidade de fomentar a participação da cidadania se
associa ao conceito de empoderamento. Este termo tem sido utilizado em vários países e áreas do
conhecimento, mas, no que se refere a essa discussão, a sua aplicabilidade tem-se concentrado
em como desencadear maior envolvimento dos indivíduos em ações cooperativas, solidárias e
políticas, capacitando-os para articularem em prol de interesses coletivos. O enfoque adotado
nessa discussão centra-se nos estudos do educador Paulo Freire, que preconiza o
desenvolvimento de estratégias que possibilitam às pessoas sentirem-se na condição de sujeitos
de programas, projetos e políticas públicas.
Estratégias dessa natureza são tidas como fator primordial para a estabilidade e a
legitimidade do sistema democrático, em particular, quando se considera o contexto dos países
latino-americanos. Nessa direção, o relatório do PNUD (2004) sobre a América Latina, atribui
que o apoio dos cidadãos à democracia é componente chave para a sua sustentabilidade3. O
relatório sustenta, também, que se os objetivos em termos de democracia eleitoral e de liberdades
básicas foram obtidos na região, o mesmo não se verifica em relação à democracia social, cidadã
e participante.
Ao lado disso, um cenário pautado por altos índices de pobreza e de exclusão social
vem comprometendo o apoio e a crença em relação ao sistema democrático e às instituições
políticas, gerando uma crescente insatisfação com a administração da coisa pública. Isto se
reflete na população juvenil, desencadeando sentimentos de apatia e desconfiança em relação à
vida política (Sandoval, 2000). Tal realidade, na avaliação de Fernandez (2000) está relacionada
à construção de imagens negativas em relação ao desempenho de seus representantes que não
correspondem às expectativas da juventude, relegando-a a um papel marginalizado na sociedade.
Diante do exposto, estudiosos/as da ciência política têm se deparado com o desafio de
encontrar mecanismos para reverter este quadro de atitudes hostis da juventude em relação às
instituições políticas e aos governantes, assim como, para alterar o cenário de desinteresse e de
pouca participação política. Nesse sentido, a proposta deste artigo é discutir de que forma o
capital social, enquanto “ingrediente indispensável para um Estado mais próximo do povo e para
um estilo da política marcado pela divisão de poder e pela presença popular na arena das
decisões públicas” (Schmidt, 2004, p.152), pode promover valores positivos de apoio à
democracia e estratégias de empoderamento entre os jovens, de forma a que se envolvam com as
3
O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento realizou uma pesquisa, em maio de 2002, com o objetivo
de conhecer e analisar os níveis de apoio à democracia entre os latino-americanos. Foram entrevistadas 18.463
pessoas de uma população de 400 milhões de habitantes.
161
questões políticas tornando-se cidadãos mais participativos e engajados. Com isto estima-se
contribuir com estudos que têm avaliado os comportamentos e atitudes dos jovens em relação à
política, visando enfatizar a importância da participação juvenil na estruturação de uma cultura
política democrática e cidadã na América Latina.
A fim de desenvolver este estudo, inicialmente é feita uma discussão sobre a juventude
enquanto categoria analítica tendo como referência o contexto latino-americano. Na seqüência
são examinados os conceitos de capital social e empoderamento com o intuito de buscar
elementos teóricos para enfocar aspectos da realidade sócio-política da população juvenil. Por
fim, com base em pesquisa quantitativa realizada no ano de 2004 em dezenove escolas da cidade
de Porto Alegre, são examinados dados sobre comportamento e atitudes dos jovens em relação a
atividades coletivas, visando identificar a capacidade de participação política da juventude.
Juventude e Contexto
A figura do adolescente, do jovem e do adulto é uma construção da sociedade moderna.
É apenas com o surgimento da família burguesa que estas fases da vida passam a ser
diferenciadas segundo critérios sociológicos (Ariés, 1978). Mesmo assim, ainda hoje é difícil
definir a juventude como categoria, haja vista os diferentes critérios, sejam físicos, psicológicos
ou sociais, que utilizam instituições e estatutos para classificar o que é ser jovem4.
A categoria juventude torna-se um objeto sistemático de investigações como um estrato
social estável somente a partir dos anos de 1920. Contudo, inicialmente o jovem é tido como
alguém que resiste à ação socializadora e apresenta desvio de condutas; posteriormente, no
período que corresponde ao pós-guerra (1939-1945) é visto como agente de mobilização e de
mudança social (Schmidt, 2000).
Derivam daí pelo menos três linhas de análise: a geracional, a classista e das culturas
juvenis. Na primeira, apoiada na teoria geracional, a juventude faz parte de um conjunto social
que partilha determinada fase de vida. Na versão classista, o jovem é contextualizado a partir das
relações de classe. E na perspectiva de culturas juvenis, a juventude se expressa por um sistema
de valores internalizados mediante cenários e situações distintas (Prá, 2004).
De acordo com esta linha de análise das culturas juvenis, Prá (2004, p.97) afirma que
4
Por exemplo, no Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) situa a adolescência na faixa dos 12 e 18
anos; já a Comissão nacional de População e Desenvolvimento (CNDP) estipula como jovem quem tem entre 15 e
24 anos. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), os adolescentes compreendem a faixa etária dos 10 aos 17
anos e os jovens dos 18 aos 24 anos, “não obstante, estenda-se até os 30 anos em alguns países europeus” (Prá,
2004, p.88).
162
ao se enfocar a juventude como um objeto da Ciência Política, é necessário ver o jovem
dentro de realidades distintas e não como universos homogêneos, pois “há muitas maneiras de
ser jovem e de viver a juventude e estas também se expressam em termos de classe social,
raça/etnia, idade e gênero”. Nesta mesma direção, Sposito (2002), afirma que é elementar referirse ao jovem sempre dentro de um espectro contínuo de mudanças, com base em diferentes
possibilidades, expectativas e contextos, situando-o entre a transição do fim da infância e o início
da vida adulta.
Os aspectos e dimensões de gênero, política, étnica e religião possibilitam a
reconstrução constante deste objeto de análise (Granada, 2003). Neste artigo a juventude é
retratada como uma categoria social e histórica exposta a determinados processos
socioeconômicos, políticos ou culturais que interferem no seu dia-a-dia.
Nesse plano, os rumos do atual processo de globalização em países como o Brasil e em
outros da América Latina, têm gerado profundas mudanças de valores, crenças, formas de
relacionamentos e manifestações diferenciadas de sociabilidade que incidem diretamente no
cotidiano da juventude. Fruto da reconfiguração mundial e da imposição de novos cenários a
povos, tribos, nações e sociedades que causam prejuízos cada vez maiores às populações dos
países em desenvolvimento (Ianni, 1988).
A nova onda global reestrutura a produção de bens e o consumo e com as novas
tecnologias passam a exigir maiores qualificações no mundo do conhecimento; coloca em xeque
o papel do Estado e promove o surgimento de novas formas associativas, que extrapolam a
noção democracia representativa (Martins,1994). Assim, os efeitos da globalização
desencadeiam novas exigências na vida dos indivíduos e afetam, sobretudo a população juvenil5.
Os padrões de consumo entre os jovens são redefinidos. Há um crescimento vertiginoso
em relação às oportunidades e facilidades com o advento das novas tecnologias, mas ao mesmo
tempo tem-se constituído um aumento assustador em relação às desigualdades de acessos e
possibilidades. Outrossim, a promessa de inclusão social, pregada pelos defensores da
globalização, que viam no desenvolvimento tecnológico uma oportunidade de modernização e de
inclusão para os diferentes povos, não ocorreu na prática, pelo contrário, gerou e gera cada vez
mais uma polarização socioeconômica entre as sociedades (Krauskopf, 2000).
Por esse angulo, Inglehart (1997) explicita diferenças manifestadas por jovens
decorrentes do nível de desenvolvimento atingido por cada país. Como exemplo, contrapõe a
realidade dos jovens que vivem em nações desenvolvidas aos dos países em desenvolvimento,
imputando aos primeiros comportamentos pautados por valores materialistas e, aos segundos,
5
Segundo dados da CEPAL - Comissão Econômica para a América Latina (2001), as taxas de desemprego entre os
jovens aumentaram de 8% em 1990 para 22% em 1999 e 36% em 2001.
163
6
por valores pós-materialistas . A perspectiva materialista leva à valorização de governos de
liderança forte que priorizam o crescimento econômico motivado para o ganho individual e não
social. Já na perspectiva pós-materialista a política é percebida como capacidade de autoexpressão e participação com ênfase na qualidade de vida e no bem-estar social.
Por conseguinte, uma nação orientada por valores materialistas tende a não reconhecer
as demandas da juventude, logo, sugere uma conjuntura marcada pela exclusão socioeconômica.
Portanto, como sugere Keil (2001 e 2004) a inclusão só é possível mediante a obtenção de um
emprego assalariado, pois a idéia de cidadania, atualmente vincula-se à noção de consumo. Em
suma, paises que não oferecem condições de inclusão social há a ruptura dos laços sociais e a
estruturação de uma sociedade marcada pela diminuição e perda da solidariedade.
A autora acrescenta que a exclusão está fundamentada em dois conceitos, no de
desqualificação social e no de desincerção social. O primeiro como resultado da precarização
profissional, fragiliza laços sociais (sentimentos de fracasso profissional, apatia) e pode gerar
rupturas sociais, demandando a necessidade de recorrer à assistência social. O segundo, como
conseqüência do primeiro, é afetado pelas relações de produção e de psicologização do mundo,
predispondo os jovens a sentimentos de culpa, vergonha e isolamento (Keil, 2001).
Sem aprofundar a discussão sobre o esse assunto é importante reter do exposto que,
uma das decorrências do processo de globalização para os paises em desenvolvimento reside na
configuração de um tipo de sociedade cada vez mais marcada por conflitos de natureza social e
política, que leva a juventude a produzir uma cultura individualista o que reduz a capacidade
cooperativa e participativa.
Os conflitos sociais ficam expostos quando se analisam indicadores estatísticos que
refletem aspectos da realidade vivida pela juventude brasileira. Entre esses indicadores
destacam-se os relativos à violência entre os jovens. Neste sentido, verifica-se que o maior
número de vitimas de homicídios no Brasil este entre os 15 e os 25 anos de idade. De acordo
com Azevedo (2003) tais ocorrências revelam falhas no diálogo entre a juventude e os
mecanismos institucionais do Estado, aliás, um problema que vem desde a família e passa pelas
demais instituições. Entretanto, o autor sugere que em alguns casos o comportamento violento
pode ser interpretado como uma forma de protesto de populações excluídas socialmente que
recorrem ao uso deste expediente para fazer valer seus direitos. Nesse sentido, interpreta tal
postura como um meio e não um fim.
6
Para este autor, os valores materialistas estariam relacionados às necessidades mais básicas: educação, moradia,
trabalho e segurança, enquanto que, os valores pós-materialistas estariam vinculados a processos culturais e políticos
mais próximos da cultura e da liberdade, portanto, há uma diferente percepção em relação à questão da
sobrevivência.
164
Os conflitos de ordem política estão relacionados ao sentimento de apatia. Para
Baquero (1999), algumas das principais características a contribuir para esta situação são:
desconfiança da população nas instituições e nos políticos; influência dos meios de comunicação
como formadores de opinião, atuando nem sempre de forma ética; institucionalização de uma
política informal em detrimento das instituições políticas; ceticismo das pessoas em relação ao
governo e à capacidade dos governantes; institucionalização de uma cultura política
individualista; e a crise econômica que acentua a exclusão social.
Nesta direção, Keil (2004) argumenta que o comportamento do jovem está relacionado
ao contexto em que se encontra. Também, argumenta que o jovem dos anos de 1960 e 1970, por
viver em um contexto marcado por fortes sentimentos libertários e desenvolvimentistas,
apresentava um comportamento reformador e via na participação uma proposta de mudança
estrutural do sistema. O jovem dos anos de 1990, inserido num contexto onde o capitalismo
avançou em todas as esferas, inclusive a social, apresenta um comportamento consumista e sem
grandes ideologias e percebe a participação política de forma desinteressada, manifestando-se
propenso a realizar atividades voluntárias e desvinculadas de partidos políticos.
A respeito disso, Souza (2002, p. 3) afirma que "os jovens estão gestando novos modos
de organização da vida cotidiana de negação institucional e novas formas sociais contrainstitucionais de enfrentamento contra a ordem". Para a autora, novos contextos têm sugerido
ações alternativas entre a juventude que conduzem a novas formas e espaços de participação.
Argumenta ademais que este novo cenário pode promover a renovação da sociedade e a inclusão
de novos sujeitos na esfera política. Ao lado disso, Pippa Norris (2003), afirma que a desilusão
com as instituições políticas da democracia representativa tem levado os jovens a se envolverem
em novos movimentos, os quais são aceitos como uma alternativa informal de mobilização
política. A autora cita como exemplo as atividades voluntárias, Ong’s, cooperativas, e as ações
diretas, como boicotes, redes na internet, passeatas e protestos.
Contudo, é necessário reforçar que as ações ou novas formas de sociabilidade e de
participação política, presentes na juventude, devem ser canalizadas de forma positiva para o
bem comum da sociedade. Neste sentido, um aporte teórico que pode ajudar a compreender de
que forma se pode potencializar a juventude nos processos de participação política é o conceito
de capital social e empoderamento.
Capital social e Empoderamento
Conforme discutido anteriormente, estudos sobre Capital Social na área da ciência
política, expressam, como principal argumento, que as sociedades apresentam um melhor
165
funcionamento e rendimento quando os cidadãos confiam uns nos outros e trabalham
cooperativamente em prol do bem comum. Ao mesmo tempo, tais estudos destacam que
indicadores de opinião pública como participação, envolvimento das pessoas nas organizações
sociais e a confiança entre os membros de uma comunidade, demonstram o potencial e a
capacidade de atuação dos cidadãos na esfera pública (Putnam, 1996).
Em relação ao alcance teórico do conceito de capital social, não há um consenso sobre
suas implicações técnicas e operativas, mas é possível concebê-lo em termos de relações e
mobilizações sociais que visam obter resultados. Contudo, pode ser entendido como um estoque
ou acumulação de confiança, expectativas e reciprocidades, fluxos de informação e relações de
intercâmbios; seja a partir de relações primárias mais próximas (família), ou de menores
proximidades afetivas e emocionais (redes e associações); seja a partir de regras formais e
institucionais internalizadas ou como recurso dos grupos excluídos para enfrentar condições de
pobreza e precariedade (Novacowsky, 2003).
A presença dessa percepção é constante a agenda de analistas que partilham pesquisas
sobre como superar valores individuais da sociedade, visando transformá-los numa dimensão
cooperativa. Portanto, refere-se às habilidades dos atores em garantir benefícios coletivos por
meio de redes sociais ou outras estruturas e corresponder a normas informais que ajudam a
promover a cooperação entre dois ou mais indivíduos (Nazzari, 2003).
O capital social pode ser agrupado em três níveis: no nível individual, atuando no
mercado e nas instituições sociais; no nível de pertencimento e de identificação dos indivíduos
nas redes sociais, facilitando bens e recursos; e no nível comunitário coletivo, promovendo uma
regulação da vida social. Entre algumas fontes de capital social pode-se apontar, de um modo
geral, as atividades voluntárias e a confiança interpessoal e institucional (Nazzari, 2003).
Enfim, convergências teóricas denotam a idéia de algo que produz benefícios
econômicos, melhorias no bem-estar da população e incrementação da coesão entre os cidadãos
e os governos7. Aliás, a apropriação desse conceito pela ciência política se deve, em grande
parte, às ineficiências e limitações das abordagens tradicionais em explicar os processos de
estagnação das democracias representativas (Baquero, 2000), assim como, às necessidades de
enfrentar os problemas do crescimento da pobreza e da exclusão social (Kliksberg, 1999).
A relevância deste aporte teórico para explicar o distanciamento e a apatia dos jovens
em relação à vida política, pauta-se pela idéia de que, quando os cidadãos participam ativamente
de redes associativas, quanto maior o seu envolvimento em questões políticas, maior a confiança
7
Esse conceito envolve tanto a análise macrossistêmica (questões dos Estados em relação aos cidadãos; conjunturas
e seus impactos na sociedade, na economia e na democracia) e a análise microssistêmica (questões de identidade e
confiança nas estruturas sociais, cultura e socialização política, crenças e valores internalizados de confiança e
cooperação).
166
depositada no poder público. Não obstante, pesquisadores e estudiosos que defendem este
argumento deparam-se com a seguinte problemática: como desencadear entre os cidadãos um
maior interesse e envolvimento pela a política? Nessa dimensão, assume relevo nas investigações
sobre capital social e juventude o uso do conceito de empoderamento.
O termo empoderamento refere-se a um processo que visa fortalecer a autoconfiança de
grupos populacionais desfavorecidos, com o propósito de capacitar indivíduos para a articulação
de interesses individuais e comunitários na busca do bem comum. Assim, busca dotar os
indivíduos de autonomia e de capacidade de intervenção na realidade de modo a lhes permitir
uma vida autodeterminada e auto-responsável nos processos de participação, discussão e decisão.
O surgimento deste conceito coincide com a eclosão dos movimentos sociais (estudantis, de
negros, das mulheres etc.) do final da década de 1960 e, principalmente, na década de 1970
(Friedmann,1992).
Relacionar a noção de empoderamento à proposta de construção de capital social na
juventude, sugere a necessidade de realizar práticas de intervenção na realidade como forma de
reverter o sentimento de apatia e o comportamento de repúdio em relação à vida política.
Portanto, requer a promoção de processos de socialização política, objetivando possibilitar aos
jovens noções sobre direitos, cidadania e engajamento cívico em atividades coletivas e
solidárias. A respeito disso, Putnam (1996) afirma que a participação das pessoas em atividades
associativas tem peso significativo no desenvolvimento de normas de reciprocidade e, da
confiança interpessoal e institucional. Conseqüentemente, empoderar os jovens não significa
apenas trazê-los para a esfera da participação ou possibilitar o seu acesso a discussões, mas
questionar como as estruturas de poder se configuram no seu cotidiano.
A idéia de empoderar ganha destaque neste estudo mediante o interesse de proporcionar
às pessoas a reflexão e ação de suas práticas cotidianas como proposta de intervenção na
realidade, por meio de um processo intencional e conscientizador no âmbito da educacional. Na
proposta de Paulo Freire (1970) os processos de ensino e aprendizagem são o espaço
desencadeador de estratégias de empoderamento dos indivíduos. Um dos recursos utilizados por
Freire na educação para desencadear esses processos é a formação de temas geradores8.. Recurso
que se apóia em metodologias participativas que compreendem o debate e o diálogo.
O diálogo é para o autor o encontro dos homens mediatizados pelo mundo, pois é na
práxis da ação e da reflexão do cotidiano que se desvela o poder. Neste sentido, a dialogicidade é
o “encontro dos homens para a pronúncia do mundo, é uma condição para a sua real
humanização” (Idem, 1970, p. 160). No entanto, Freire adverte que isto só pode ser concretizado
8
É o processo pelo qual o professor cria condições para promover o processo de conhecimento a partir de uma
relação entre sujeitos (cultura, cotidiano e os condicionamentos macrossociais) e a educação. Cf. Paludo (2001)
167
se houver um conhecimento construído e discutido localmente entre os envolvidos. Sob este
ponto de vista, o empoderamento visa transformar os atores sociais excluídos em sujeitos ativos.
A concretização do processo de empoderamento na visão de Prá (2001), pode dar-se
mediante a reflexão de situações cotidianas, por meio de experiências pessoais, pela reconstrução
de histórias de vida, e pela adoção de técnicas interativas e cooperativas. Para Sem (Apud Iorio,
2002), o empoderamento pode ser promovido por ONG’s, movimentos sociais, governos e por
agências multilaterais, ressaltando, porém, que para algumas agências multilaterais, como por
exemplo, o Banco Mundial, a noção de empoderamento fica restrita apenas ao aspecto
instrumental, ou seja, não propõe mudanças estruturais nas relações de poder, pois, não questiona
a forma como o poder é distribuído na sociedade.
Com base nestas reflexões, o ato de empoderar pode ser visto como fator determinante
no desenvolvimento de Capital Social, no que se refere à constituição de projetos coletivos no
conjunto de uma comunidade ou instituição e no despertar do senso de responsabilidade, de
solidariedade e de cooperação. Pinto (2003, p.247) advoga a respeito que o empoderamento é
“um processo de reconhecimento, criação e utilização de recursos e de instrumentos pelos
indivíduos, grupos e comunidades, em si mesmos e no meio envolvente, que se traduz num
acréscimo de poder - psicológico, sócio-cultural, político e econômico - que permite a estes
sujeitos aumentar a eficácia do exercício da sua cidadania”.
Das colocações feitas até aqui, interessa reter duas questões. A primeira, refere-se ao
fato de que para alcançar uma democracia com índices positivos de apoio é necessário
desenvolver mecanismos de participação que sejam capazes de contemplar as distintas realidades
culturais da juventude. A segunda, está relacionada a pertinência de que os conceitos de capital
social e empoderamento sejam articulados e canalizados em esforços teóricos que incidam sobre
a realidade da população juvenil.
Isto posto, passa-se examinar dados provenientes de pesquisa sobre juventude e capital
social de Porto Alegre9. Dessa forma, tendo como marco conceitual as noções de capital social e
de empoderamento, procura-se trazer ao debate aspectos associativos e cooperativos da realidade
juvenil, privilegiando opiniões, atitudes e comportamentos que refletem a cultura política deste
segmento populacional.
A participação da Juventude e atividades coletivas e cooperativas
9
Utilizam-se dados de pesquisas realizadas, no ano de 2004, pelo Núcleo de Pesquisa sobre América Latina
(NUPESAL) e pelo Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre a Mulher (NIEM) da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.
168
Um dos temas presente nos estudos sobre juventude e a análise de atitudes e
comportamentos pela ótica da cultura política. Com este propósito, Ayda Connia de Souza
(1983), examinou a realidade política de adolescentes de Porto Alegre, registrando a existência
de uma cultura política prismática e de instituições democráticas legais e formais, mas não reais.
Ao lado disso, identificou atitudes orientadas por crenças e valores democráticos, porém,
detectou comportamentos de caráter autoritário, incompatíveis com a idéia de democracia. Daí
considerar que, a “discrepância entre o formal e o real se explicaria, em parte, pelo divórcio entre
as estruturas e o funcionamento real da sociedade e, por outra parte, pela incongruência entre as
atitudes e o comportamento político” (Souza, 1983, p. 32).
Por sua vez, João Pedro Schmidt (2000, p. 19) assinala a existência de uma cultura
política entre os jovens brasileiros de caráter híbrido e dualista, em que se identifica ao mesmo
tempo a valorização de elementos de caráter tradicional e elementos que aspiram mudanças. Por
esse ângulo Prá (2004, p.95) esclarece que “a baixa a participação, o ceticismo ou o desinteresse
político deixam de ser considerados fenômenos recorrentes entre populações juvenis, se não que
afeitos a amplos setores da sociedade, daí serem vistos como resultado do desencanto
generalizado diante das incertezas econômicas que caracterizam a realidade brasileira”, ao que se
acrescenta a da América Latina.
Na mesma direção, pesquisas envolvendo a população latino-americana têm revelado
uma cultura política ambígua e contraditória pautada por uma relação dicotômica entre
comportamentos autoritários e atitudes democráticas. Ao mesmo tempo, em que é verificado um
descompasso em termos de consolidação democrática e a falta da institucionalização de uma
base normativa de crenças e valores de apoio à democracia (Baquero, 2004).
Dado o exposto e tendo em vista o propósito deste trabalho, mostra-se oportuno enfocar
o envolvimento da juventude em atividades coletivas e cooperativas. Para tal fim, procurou-se
buscar elementos para examinar o empoderamento entre os jovens, ou seja, se o seu
comportamento demonstra a articulação em prol do bem comum.
Para tal procurou-se aferir se os jovens acreditam que a participação em atividades
associativas influencia na melhoria da situação do país. (gráfico1). De acordo com os dados
apresentados observa-se que 79% dos jovens consideram importante a participação em
atividades associativas, o que permite afirmar haver entre os jovens uma predisposição positiva
para este tipo de envolvimento.
169
Gráfico 1 – Predisposição dos jovens para a participação
11%
10%
Sim
Não
Depende
79%
Fonte: Pesquisa Capital Social e Juventude - NUPESAL e NIEM, 2004. (N=446)
Vale notar, seguindo a avaliação de Valdivieso (2003), que o potencial associativo deve
ser visto como elemento de construção cívica e como fator de ampliação dos valores
democráticos. Sendo assim, aparece como um componente básico na geração de Capital Social e
na constituição de normas e valores de natureza cooperativa. Como sugere o autor, as
associações têm se sobressaído positivamente nos processos de desenvolvimento, em relação ao
Estado, às instituições e ao mercado10.
Apesar disso, quando os jovens foram questionados se participariam de atividades
associativas caso fossem convidados, 35% deles respondeu que sim e 59% que participariam
dependendo do tipo de atividade proposta, como pode ser visto no gráfico 2.
Gráfico 2 – Participação em atividades associativas
6%
35%
59%
Participaria
Depende
Não Participa
Fonte: Pesquisa Capital Social e Juventude - NUPESAL e NIEM, 2004. (N=446)
10
O autor refere-se à perspectiva sinérgica de capital social.
170
Num primeiro momento, os dados sugerem uma predisposição positiva para as
atividades associativas, contudo, mais da metade dos entrevistados responderam que apenas
participariam dependendo do tipo de atividade que fosse realizada. Neste sentido, eles
ressaltaram que só se engajariam em atividades que lhes trouxessem algum retorno pessoal ou
implicações positivas diretas em suas vidas. Isto evidencia a presença de uma cultura política que
enfatiza um modelo econômico baseado na acumulação (tecnocrata, neoliberal, individualista e
meritocrática) e não em um tipo de atitude que expresse uma cultura voltada à transformação e à
participação coletiva (Brunner, 1987).
Disso se pode inferir que comportamentos dessa natureza comprometem o processo de
construção de Capital Social entre os indivíduos, denotando a presença de uma "cultura de
desmobilização e do disciplinamento das massas; das táticas adaptativas e das estratégias de
mobilidade individual; do temor ou do mero conformismo; do distanciamento a respeito da
política e o esfriamento das ideologias" (Idem, p. 11). Logo, de uma cultura política
desmobilizada, caracterizada pelo individualismo e pelo imobilismo, o que compromete a noção
de cooperação entre os indivíduos. Nazzari (2003), esclarece esse ponto referindo-se à
cooperação como um componente básico para a constituição de reciprocidade e o engajamento
em associações.
Note-se que o conceito de co-operação é originário da teoria de Piaget, servindo para
representar as trocas sociais entre indivíduos, cujo objetivo é compartilhar de comum acordo
para alcançar uma meta (Laborde, 1996). As interações presentes no cotidiano das pessoas
podem gerar sentimentos de coletividade e de reciprocidade. Putnam (1996) assinala esse
aspecto ao analisar o comportamento cívico em comunidades no Norte da Itália, explicitando que
estas, dado o desenvolvimento de atividades cooperativas e associativas apresentam maiores
níveis de Capital Social. Isso equivale dizer que quanto maiores os índices de cooperação entre
os indivíduos, maiores serão as chances de se ter uma sociedade com altos índices de Capital
Social.
Diante dessas constatações, interessou perguntar aos jovens o que deveria ser feito para
que cooperassem entre si. De acordo com a distribuição dos dados do gráfico 3, verifica-se que
para 36% deve haver mais sensibilização para estimular a cooperação entre eles (solidariedade)
e; enquanto para 14% devem ser mais incentivadas ações dessa natureza (estruturas, mecanismos
e locais de ações). O fato de mencionarem estes fatores como os principais responsáveis para
resgatar ou criar um espírito de coletividade entre eles, sugere a necessidade de concretizar
metodologias que capacitem e estimulem a construção de hábitos cooperativos e de atividades
em grupos. Aliás, hábitos e atividades que podem ser alcançadas por meio de práticas de
empoderamento e pela construção de organizações e associações. Interessante notar o índice
171
elevado dos que "não responderam" ou "não souberam responder" (31%) Isto marca um
processo de baixa expectativa e esperanças nas atividades que são fundadas na dimensão da
cooperação, sugerindo a noção de que os jovens pouco refletem sobre este tipo de atividade.
Gráfico 3 - O que falta para a Cooperação
Senso de
coletividade
Incentivo e estímulo
31%
36%
Orientação
transformadora
9%
10%
14%
Ironia/fatalismo/pes
simismo
NS/NR
Fonte: Pesquisa Capital Social e Juventude - NUPESAL e NIEM, 2004. (N=446)
Ainda em relação aos dados do gráfico 3, chama atenção o fato de que a orientação
transformadora (conscientização e ideologia) foi um dos fatores menos citados pelos
respondentes da pesquisa (10%). Tal fato pode significar que os jovens sentem falta de um
sistema de idéias que oriente suas ações, ou seja, sentem a falta de uma ideologia.
Conseqüentemente, se vê reforçada a idéia de que a juventude pode estar carecendo um
direcionamento em termos de significados e valores que incentive a sua participação em
atividades cooperativas.
Desse modo, os dados permitem afirmar que não há presença de uma cultura de
empoderamento entre os jovens, pois, falta uma prática de cooperação e envolvimento em
atividades associativas. Assim, por mais que se encontre uma predisposição entre os jovens para
o engajamento em atividades coletivas, verifica-se que faltam maneiras de se vislumbrar e
realizar tais práticas.
Considerações finais
O conjunto de dados examinados evidenciou a existência de um baixo estoque de
capital social entre os jovens porto-alegrenses, caracterizando uma cultura política de pouca
cooperação e solidariedade. Portanto, há que se considerar que os processos de socialização
política entre os jovens podem estar falhando, o que compromete a construção democrática do
172
país. Neste sentido, a realização de estudos que envolvam o conceito de capital social e
juventude tem auxiliado na análise de realidades dessa natureza; no entanto, é por meio do
conceito de empoderamento que se pode almejar a cristalização de ações protagônicas e
conscientes entre os jovens.
A presença desse tipo de cultura pode ser compreendida em função de um
comportamento de pouca confiança e de repúdio às instituições políticas. Assim, surge nesse
contexto a necessidade, por um lado, de rever os mecanismos de participação política e por outro
lado, de revitalizar o espírito democrático por meio de valores fundamentados na confiança, na
reciprocidade, na cooperação e na solidariedade. Desse modo, a aplicação do conceito de capital
social, no caso dos países em desenvolvimento, deve incorporar, na sua dimensão prática, a
noção de empoderamento, visualizando-o como mecanismo estratégico de participação e
formação de sujeitos atuantes.
Por fim, cabe ressaltar que ao se vislumbrar uma sociedade democrática, objetivando
uma maior incidência dos jovens na vida política e de cidadãos mais participativos e engajados,
o aspecto do empoderamento localiza os processos de ensino e aprendizagem entre os principais
pilares na formação e na capacitação dos indivíduos. Nesta perspectiva, Maria Vitória Benevides
(1996) destaca que, para se ter uma educação voltada para democracia é pertinente buscar a
formação intelectual e a informação como proposta moral para formar racional e
emocionalmente o indivíduo dentro dos valores democráticos.
Em suma, o esforço aqui empreendido buscou estabelecer uma conexão entre o conceito
de capital social e o de empoderamento, visando reconhecer a realidade da juventude e enfocar
seus valores e carências. Com isso, procurou-se encontrar subsídios para identificar estratégias
para reverter o quadro de apatia em relação às atividades associativas e a participação na vida
política, objetivando a promoção de valores de apoio à democracia e um maior engajamento da
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POLÍTICAS PÚBLICAS, DIREITOS HUMANOS E CAPITAL SOCIAL
Jussara Reis Prá
Doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP); Professora do
Departamento de Ciência Política e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
E-mail: [email protected]
A privação fundamental dos direitos humanos se manifesta primeiro e, sobretudo na privação de
um lugar no mundo que torne significativas as opiniões e efetivas as ações.
Assim, a essência dos direitos humanos é o direito a ter direitos.
(Adaptado de Hannah Arendt, 1974).
Enfocar as políticas públicas pela ótica dos direitos é tanto um trabalho complexo
quanto necessário. Na verdade indispensável quando se considera o confronto atual entre os
discursos difundidos por diversos tipos de fundamentalismo (econômico, religioso, científico ou
cultural) e aqueles acordes com a defesa intransigente dos direitos humanos. Os primeiros
assumindo posições dogmáticas sem considerar os avanços nacionais e internacionais na
proteção dos direitos humanos; os segundos, sustentando a necessidade de buscar espaços de
interlocução para se contrapor a esses dogmas e, assim, assegurar o já obtido ou por conquistar.
Esses paradoxos retratam o atual cenário sócio-político da América Latina, região das
mais desiguais do mundo apesar de não ser a mais pobre. Enfim, um continente a congregar
estados nacionais formalmente democráticos, com governos legitimados pelas urnas, mas sem
capacidade de “garantir um mínimo de bem-estar, segurança, justiça social e igualdade para as
suas populações” (Bareiro, 2002, p. 27). Por essa ótica, é possível entender as contradições a
permear tentativas de implantar projetos e programas de defesa, proteção e promoção de direitos
na região. De um lado, a falta de vontade política para afiançá-los se traduz na escassez de
recursos materiais ou operacionais e em outros tantos problemas de gestão administrativa. De
177
outro, a dificuldade de aprofundar canais de participação da cidadania, além de expor a
fragilidade social, revela a vulnerabilidade de estados nacionais, reduzidos em seus campos de
atuação por reformas e ajustes estruturais orientados pela lógica da globalização neoliberal.
Mesmo assim, se está falando de sociedades com grande potencial de articulação e participação
de seus diferentes grupos sociais.
Diante desse quadro, refletir sobre a questão dos direitos é uma forma de repensar
problemas e tensões que afetam a ordem social e política, dificultando a tarefa de construir uma
cultura pública democrática em sociedades periféricas. Por esse ângulo, é possível criticar o
discurso jurídico-normativo, mas permanecer indiferente a ele, ou assumir uma postura que
propicie alternativas para intervir na sua formulação e em seus desdobramentos (Bareiro, 2002).
Assumindo essa última posição examina-se o caso brasileiro com o intuito de estabelecer
algumas conexões entre políticas públicas e direitos humanos; identificar restrições impostas ao
processo de extensão desses direitos e pensar em formas de viabilizar estratégias de ação
coletiva. Em vista disso, busca-se associar a questão dos "direitos humanos" ao marco teórico do
Capital Social de uma perspectiva que contemple a possibilidade de promover o
desenvolvimento e a manutenção desse capital no Brasil.
Isso implica enunciar algumas características inerentes às atitudes e aos
comportamentos essenciais para gerar e manter esse capital, entre estas: a confiança nas pessoas
e nas instituições, a participação social e política, assim como, a capacidade associativa, de
cooperação, de informação e de reciprocidade (Putnam, 1993; Baquero, 2003). No oposto desse
processo estariam materializadas a pobreza, a desigualdade, a desinformação e a exclusão social,
denotando a baixa intensidade do capital social disponível em uma sociedade. Outra dessas
características diz respeito ao objetivo do capital social, qual seja o de “transformar bens
intangíveis (confiança recíproca) em bens tangíveis (políticas públicas)” (Baquero, 2003, p. 160).
Pensar em maneiras de viabilizar tal transformação é uma atribuição da Ciência Política na
atualidade.
Dado o exposto e tendo como foco a conexão dos direitos humanos e das políticas
públicas, mostra-se adequado o uso da perspectiva sinérgica de capital social, posto incorporar
distintos níveis de análise, permitindo incluir do sujeito social (enfoque de redes) ao ente político
(enfoque institucional).1 Nesse plano, o termo sinergia pode ser sintetizado como “um processo
de empoderamento de atores individuais capacitados para empreender ações coletivas sob a
bandeira de objetivos comuns” (Idem). Em linhas gerais, esses são os parâmetros utilizados para
1
O enfoque de redes visa identificar sob que condições é possível manter aspectos positivos do capital social nas
comunidades. Também lhe interessa dimensionar como esse capital ajuda “comunidades (pobres) a ter acesso a
instituições formais por meio de redes de cooperação entre elas”. Na noção institucional, o capital social é uma
decorrência “da qualidade das instituições formais”. Assim, a probabilidade de construí-lo e sedimentá-lo é
proporcional à eficiência e transparência desses órgãos (Baquero, 2003, p. 163),
178
situar o presente trabalho. A partir deles, busca-se refletir acerca de alguns paradoxos que
suscita o debate sobre direitos humanos e políticas públicas, referenciando-o no contexto
brasileiro.
Cultura pública e direitos humanos no Brasil
Políticas públicas de direitos humanos só recentemente encontram espaço na agenda
social e política do Brasil. Compreensível numa sociedade que aboliu tardiamente a escravatura
(1888); tornou o sufrágio universal quase um século depois da proclamação da república (1988);
concedeu o direito de voto às mulheres (1934), mas dificultou o seu pleno usufruto e até hoje não
lhes possibilitou acesso igualitário a esferas de poder. Enfim, um país que não superou por
completo práticas paternalistas, patrimonialistas, corporativas e clientelistas. Em síntese, práticas
que potencializam, pela ordem: o uso de medidas arbitrárias e autoritárias; o peso do poder
aquisitivo; o favorecimento de pessoas ou determinados grupos e a troca de favores.
Ademais, até meados do século passado os direitos civis e políticos, também nomeados
direitos de primeira geração, eram pouco mais que afirmações retóricas, sobretudo para
mulheres, afro-descendentes ou para segmentos mais pobres da população, entre eles
trabalhadores e trabalhadoras brasileiros. Neste ponto, necessário se faz situar o contexto de luta
contra a ditadura militar, instaurada em 1964, como marco do debate sobre os direitos humanos,
que se amplifica no país a partir da década de 1970 – um momento ímpar da sociedade como
protagonista na defesa de direitos.
As reivindicações por cidadania dos novos movimentos sociais e as denúncias contras
os arbítrios ditatoriais, articuladas por entidades como a Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação Brasileira de Imprensa
(ABI), permitem identificar um conteúdo mais humanista na cultura política brasileira. Um
momento de crescente organização da sociedade, bem documentado pela literatura dedicada ao
estudo dos novos movimentos sociais. Nela ficaria registrado o surgimento de várias associações
voluntárias, de redes e de centros de ajuda voltados a necessidades específicas da época,
prestando serviços sociais e constituindo foros para manifestação de idéias e de solidariedade.
Assim, embora as ações da cidadania possam ser reconhecidas em boa parte da história
brasileira, elas certamente ampliaram sua atuação durante a ditadura militar. Como esclarece
Marcos Rolim, “a luta pelos Direitos Humanos no Brasil seria de todo incompreensível sem que
se considerasse que sua expressão pública só adquiriu o estatuto da relevância diante da
resistência à ditadura militar”. Daí ressaltar a importância dos “movimentos formados a partir
179
dos anos setenta, desde a luta contra a tortura e as prisões arbitrárias, até a luta pela anistia”,
para publicizar o termo "Direitos Humanos".
A legitimidade dessas ações demarca mudanças posteriores na postura do poder público
frente aos direitos democráticos e uma nova fase das demandas por direitos humanos no país.
Sua referência temporal, a “abertura democrática” dos anos oitenta (Souza, 2003). Nesse plano,
“a Constituição de 1988, impulsionada pela continuidade da resistência democrática e pelos
novos movimentos sociais, pôde oferecer à sociedade um arcabouço legal mínimo capaz de
sustentar a promoção dos direitos humanos no Brasil com propostas positivas e ampliadas”
(Almeida e Netto, 2001, p. 44).
A nova Carta Constitucional inovou no campo dos direitos civis, políticos e sociais2.
Entre suas inovações no plano civil, tem-se: o direito à habeas data, para garantir acesso a
informações pessoais registradas em bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter
público e a possibilidade de retificá-las se consideradas incorretas ou de interpretação dúbia; o
mandado de injunção, para buscar auxílio na Justiça e exigir o cumprimento de dispositivos
constitucionais não regulamentados; a definição do crime de racismo como inafiançável e
imprescritível, e a tortura como crime não-anistiável e inafiançável. A essas medidas somou-se a
criação de dispositivos de proteção individual, entre eles o Código de Defesa do Consumidor
(Lei 8078, de 11/09/1990).
No âmbito dos direitos políticos, reiterado o princípio da soberania popular via sufrágio
universal e voto direto e secreto, com valor igual para todos e, mediante plebiscito, referendo e
iniciativa popular (CF, Cap. IV, art. 14), a novidade é a extensão do voto a analfabetos/as e
menores de 16 anos de idade. Já no campo dos direitos sociais,3 a constituição traz, entre outros
avanços, a concessão da licença maternidade por 120 dias (sem prejuízo de salário); a licençapaternidade, nos termos fixados em lei, e a proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante
incentivos específicos (Cap. II, art. 7).
Não obstante, no que confere ao aspecto social, tanto o governo de transição (1985-89)
como os seus sucessores, tiveram pouco êxito em seu esforço redistributivo. Para Robson Souza
(2003), isso serve para realçar problemas como o da falta de uma estrutura partidária consolidada
e de canais institucionalizados de participação. Sem esquecer o fato de que a “Globalização da
Economia Mundial, capitaneada pelo poderio dos chamados mercados transnacionais, ofusca,
2
Não custa lembrar que, de acordo com a terminologia apropriada de Marshall (1967), os direitos civis, ao lado dos
direitos políticos, compreendem a primeira geração de direitos humanos adiante, à qual se somam os direitos sócioeconômicos, identificados como de segunda geração. Ultrapassando esses limites, hoje se chega a pelo menos
quatro gerações de direitos, adiante detalhadas.
3
A Constituição Federal define (Cap. II, Art. 6º) que são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados.
180
sob a égide da doutrina neoliberal, concepções voltadas para a esfera social, em detrimento
de necessidades econômicas e financeiras por eles exigidas” (Clementino, 1999).
Tudo isso acabou minimizando o poder do Estado na definição de políticas sociais e fez
prevalecer os tradicionais mecanismos paternalistas, patrimonialistas, corporativos e de clientela.
Portanto, não é de estranhar que, no Brasil, “a despeito da implantação de um estado de direito,
os direitos humanos ainda são violados e as políticas públicas voltadas para o controle social
permanecem precárias” (Pandolfi,1999, p. 45). Como verbaliza Dulce Pandolfi, se na
Constituição de 1988, a cidadania fica formalmente assegurada a todos (brasileiras e brasileiros),
na prática está reservada à elite dessa sociedade, denotando o “déficit de cidadania” aqui
existente, “isto é, uma situação de desequilíbrio entre os princípios de justiça e solidariedade”
Destarte, as ações pelos direitos humanos ampliam-se sobremaneira na década de 1990.
Em grande parte, embasadas por textos originados a partir da série de conferências promovidas
pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pela assinatura de acordos e tratados, dos quais o
Brasil é signatário. Ao lado disso, multiplicam-se os “fóruns públicos nos quais questões como
direitos humanos, raça e gênero, cultura, meio ambiente e qualidade de vida, moradia, saúde e
proteção à infância e à adolescência se apresentaram como questões a serem levadas em conta na
gestão partilhada e negociada da coisa pública” (Telles, 1999, p. 157).
No plano interno, o país teve de se adequar a novas exigências internacionais e a um
elenco de leis e medidas para cumprir o compromisso de defender e promover os direitos
humanos. Caso em que se incluem instituições como os Juizados Especiais de Pequenas Causas
no âmbito cível e criminal. Sua função, simplificar, baratear e imputar pena jurisdicional a
infrações consideradas de baixo teor ofensivo, de que são exemplos ocorrências de
responsabilidade civil (danos a patrimônio) ou acidentes de trânsito com danos de pequena
proporção, em geral com prejuízos materiais.
Nesse contexto, programas e projetos assumidos pelo Estado em resposta a fóruns
externos e às diligências da sociedade organizada tentam equacionar a dívida social acumulada
historicamente. Como resultado, mesmo diante de uma dinâmica de conflitos e tensões, há uma
gradual generalização de direitos no país. Portanto, o papel da sociedade mostra-se decisivo em
ações que resultam em políticas públicas para o reconhecimento, defesa, proteção e promoção
dos direitos humanos.
Todavia, no Brasil os direitos políticos e civis foram relegados historicamente a um
segundo plano. Ainda hoje, muitos dos direitos civis, referência inicial em análises sobre
cidadania pautadas no estudo de Marshall (1967), são inacessíveis à maioria da população
brasileira. Independente das restrições à aplicabilidade dessa avaliação ao contexto brasileiro,
procede reconhecer que, considerados os direitos civis como base da cidadania, é lógico
181
ponderar que a sua precariedade dificulta “a conquista e a preservação dos direitos políticos e
sociais, acarretando, conseqüentemente, dificuldades para a consolidação [construção] de uma
sociedade democrática” (Pandolfi, 1999, p. 48).
José Murilo de Carvalho (2001) enfoca esse ponto ao verbalizar que aqui o processo
histórico de obtenção de direitos seguiu uma ordem inversa à de outros países. E isso, diz ele,
além de acentuar as enormes desigualdades sociais do país, gera sérios problemas de natureza
política, vindo a afetar, inclusive, a eficácia da ordem democrática. Visando essas considerações,
o Quadro 1 expõe alguns dos entraves políticos que se interpõem à construção de uma cultura
pública capaz de garantir a promoção e a proteção dos direitos humanos no Brasil.
Quadro 1 - Cultura Pública versus Direitos Humanos
Valorização excessiva do Poder
Políticas de negociação direta com o governo sem intermédio da
Executivo
representação. O poder conferido ao Executivo reforça laços
patrimonialistas herdados da cultura portuguesa e o caráter
paternalista do Estado como provedor de empregos e favores.
Identificação com a figura do
Impaciência com a demora das respostas aos problemas sociais,
Salvador da Pátria ou Messias
gerando a busca por líderes carismáticos ou messiânicos. Getúlio
Político
Vargas, Jânio Quadros e Fernando Collor de Mello encarnaram
figuras desse tipo que chegaram ao poder com promessas de soluções
rápidas.
Desvalorização
do
papel
legislativo
Eleições legislativas atraem menor atenção que as majoritárias
(Executivo); parlamentares e partidos desfrutam de pouco
prestígio junto à população.
Visão corporativa dos interesses
Benefícios sociais não revertem à maioria, antes resultam da
coletivos
negociação entre governo e categorias profissionais com a cooptação
dos segundos pelo primeiro.
Desmobilização Social
Ausência de ampla organização autônoma da sociedade, não raro
faz prevalecer interesses e práticas clientelistas.
Fonte: Quadro elaborado a partir de Carvalho (2001, grifos meus).
Seguindo a linha de raciocínio assinalada no Quadro 1 é de referir, utilizando expressão
de Carvalho, que as “mazelas” a envolver Estado e sociedade no Brasil tanto servem para
demarcar um cenário caracterizado por posturas e comportamentos autoritários, como de
elementos para medir as enormes desigualdades sociais do país. Outrossim, é possível
argumentar, acompanhando Hélio Bicudo (2002, p. 24), se estar tratando de problemas que são
“de ontem, de hoje e de amanhã”. Nesse sentido, a inversão na ordem dos direitos ou a sua
182
divisibilidade, expressa na priorização de uns em detrimento de outros, e as discrepâncias
entre o garantido legalmente e o observado no cotidiano da maioria da população, permitem
concluir que não basta proclamar direitos. A urgência, portanto, é a de criar condições políticas e
sociais para que cidadãos e cidadãs possam conhecer seus direitos e usufruí-los plenamente.
Daí a pertinência de relacionar políticas públicas e direitos humanos, acionando a
perspectiva do capital social para pensar em alternativas que levem à construção de uma cultura
pública democrática.
Nesse marco, a presença marcante de relações patrimonialistas e de
clientela, a desconfiança nas instituições, a baixa participação social e política tem sido algumas
dimensões acionadas, para demonstrar que a existência de pouco capital social em uma
sociedade dificulta o êxito na implementação de políticas públicas.
Destarte, “a existência de capital social na sociedade não significa, necessariamente,
sua utilização, ou o êxito de políticas públicas nele baseadas. As mesmas políticas podem
funcionar num lugar e não funcionar em outro, dependendo da forma de como esse capital é
mobilizado ou construído. Assim o capital social pode ser entendido como um recurso potencial”
(Lima, 2001, p.47). Afinal, quando se trata de medir, mobilizar ou construir esse capital é preciso
ter presente “a relevância do engajamento cívico - a participação dos cidadãos nas várias
instâncias organizacionais da sociedade civil - no funcionamento de instituições democráticas e
na criação de uma sinergia Estado-Sociedade” (Idem).
Tendo em conta estas considerações, examinam-se brevemente resultados de estudos
que analisam empiricamente a participação da cidadania na vida pública, enfocando a questão
dos direitos (Pandolfi,1999), da confiança pessoal (Carvalho, 2001) e do engajamento cívico
(Baquero, 2003). Dulce Pandolfi (1999, p. 50) avalia a percepção sobre direitos e deveres de
moradores da região metropolitana do Rio de Janeiro (CPDOC-FGV/Iser, 1996), chamando a
atenção para a precariedade do conhecimento das pessoas em relação aos direitos civis e,
também, aos políticos e sociais. Segundo a autora, os dados revelam um percentual elevado de
pessoas (56,7%) a não mencionar nenhum tipo de direito (não sabe ou sem resposta), menos
expressivo (25,8%) para quem alude a algum tipo de direito social, pouco relevante (11,7%) nas
citações de algum direito civil e nada significativo (1,6%) quando se trata dos direitos políticos;
porcentagem maior (4,2%) obteve a resposta outros direitos. Já no que confere aos deveres,
assinala que poucas das pessoas investigadas os identificaram com a participação política, a
defesa da democracia ou a luta por direitos.
Com base nesses e em outros dados de pesquisas, que expõem os direitos como um
bem escasso na sociedade brasileira, Pandolfi (1999, p. 54) chega à seguinte constatação: “Ora,
se o processo de afirmação da cidadania contribuiu para firmar no imaginário da população a
primazia dos direitos sociais, provocar um certo descaso pelos direitos civis e políticos, e
183
acentuar a percepção dos direitos de um modo geral como favores ou privilégios, esse
processo contribuiu também para que as instituições oficialmente encarregadas de garantir esses
direitos não sejam reconhecidas como instrumentos eficazes ou capazes de efetivá-los”.
A partir da mesma pesquisa utilizada por Pandolfi e de investigações de âmbito
nacional (VP/Veja, 1996), José Murilo de Carvalho (1999, p. 41) avalia a importância do motivo
edênico no imaginário social brasileiro, ou seja, as razões que levam à exaltação (ufanismo) de
fatores como a beleza ou a natureza (praias, paisagem, geografia) de um país em detrimento da
valorização de seu povo e de suas instituições. Para tanto examina perguntas relativas à imagem
da população sobre si mesma, os motivos de orgulho ou vergonha de ser brasileiro e a confiança
nos concidadãos e em lideranças do país. Nas palavras do autor, o brasileiro se considera, pela
ordem, um povo sofrido (74,1%), trabalhador (69,4%), alegre (63,3%) e conformado (61,4%)
que pouco confia nas pessoas (36,7%) e deposita muito pouca confiança em seus representantes
políticos. Carvalho considera esse achado desalentador, visto que excluído o Presidente da
República as demais lideranças políticas não são dignas de confiança. Em melhor situação, diz,
estão parentes e líderes religiosos, seguidos de amigos e vizinhos. Daí evocar a expressão de
Roberto Da Matta de que os “brasileiros só confiam na casa, no mundo das relações primárias” e
a idéia de paroquialismo, de Gabriel Almond e Sidney Verba, para inferir que “Quem não se vê
como um ser civil e cívico não pode se ver como agente, individual e coletivo, de mudanças
sociais e políticas de que se possa orgulhar” (Carvallho, 1999, p. 42).
Por outro ângulo, Marcello Baquero (2003, p. 171) refere-se ao engajamento cívico,
examinando indicadores de capital social como interesse por assuntos políticos e pela política,
envolvimento em associações cívicas e o grau de confiança nas pessoas e nas instituições. De
uma perspectiva longitudinal avalia o período de 1968 a 2000 com dados de pesquisas relativos à
Porto Alegre (Nupesal/UFRGS), constatando o desinteresse das pessoas pela política e a pouca
capacidade associativa da população investigada. Ao lado disso, registra o aumento da
desconfiança nas pessoas e nas instituições políticas, situando a acentuação do fenômeno,
particulamente, a partir do ano de 1994. Nas palavras do autor, “não é surpreendente que, ao
longo do período (examinado), a ausência de capital social, pelo menos a derivada da ausência
de capacidade associativa, possa estar influenciando nas avaliações que os cidadãos fazem da
política e dos políticos em geral” (Idem, p. 175, grifo meu).
Em que pesem esses déficits, a comprometer a capacidade de cooperação, organização,
ação coletiva e de interlocução com o Estado, vale lembrar: a importância dos movimentos
sociais, de acordos e tratados internacionais ratificados pelo Brasil em razão de conferências
mundiais e da percepção sobre a necessidade de efetivar a democracia no país, para situar a
questão dos direitos humanos como objeto de políticas públicas. Neste caso, pode ser incluída a
184
criação de órgãos de defesa dos direitos humanos de que é exemplo a implantação da
Secretaria Nacional de Direitos Humanos, que deu origem ao I Programa Nacional de Direitos
Humanos (1996) e serviu de estímulo para o funcionamento de órgãos congêneres (secretarias,
departamentos, coordenadorias ou superintendências) no âmbito de estados e municípios
brasileiros.
Em suma, a institucionalização de instâncias da administração voltadas à execução de
políticas públicas de direitos humanos pode ser vista como um dos resultados da intervenção
crescente de movimentos sociais e de suas demandas pelo respeito e promoção desses direitos. A
esses movimentos também deve ser creditado o empenho de fazer chegar ao Estado uma visão
ampliada de direitos humanos. Isso permitiu modificar as percepções acerca das políticas
públicas, que puderam ser entendidas como: a) linhas de ação coletiva que concretizam direitos
declarados e garantidos em lei (Pereira, 1994); e b) resultado de um “conjunto de processos
mediante os quais as demandas sociais se transformam em opções políticas e em tema de decisão
das autoridades públicas” (Guzmán, Lerda e Salazar, 1994, p.1).
Mesmo assim, “a despeito de termos no Brasil de hoje um regime com um desenho
institucional marcadamente democrático, com as regras do jogo e as instituições poliárquicas
bem definidas” (Pandolfi, 1999, p. 57), a evidência empírica, fundamentada em dados de
opinião, sinaliza na direção da precariedade dos direitos humanos e da ausência de uma “cultura
política participativa”. Isso implica em considerar que se está diante de uma realidade pautada
pela desconfiança, por um déficit de participação (social e política), pela falta de capacidade
associativa e de cooperação, enfim, distante de uma condição adequada para gerar o capital
social necessário e construir uma cultura pública democrática.
Direitos humanos, direitos fundamentais de cidadãos e cidadãs
Depois de formulada a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e mediante
várias conferências, pactos e protocolos internacionais4, a noção de direitos se amplia em direção
à universalidade, à multiplicidade e à diversificação para, então, vir a congregar quatro
“gerações” de direitos. Desde então, os “direitos humanos” podem ser entendidos como
sinônimo de todos os direitos fundamentais dos cidadãos e cidadãs, cuja titularidade tanto pode
ser individual quanto coletiva. Ademais podem ser civis, políticos, sociais, econômicos, culturais
ou, ainda, difusos e das futuras gerações. Igualmente, são de todos os povos e indivíduos e,
4
Os textos principais, que compõem a Carta Internacional dos Direitos do Homem, são: a Declaração Universal dos
Direitos do Homem (1948), o Pacto Internacional Relativo aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966
(assinado por 118 Estados), o Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos, também de 1966 (assinado
por 115 Estados), os Protocolos Facultativos de 1966 e 1989 e a Declaração de Viena (1993).
185
independente de cor, raça, sexo, religião ou nacionalidade, devem ser protegidos, respeitados
e promovidos. No Quadro 2 estão sintetizados os conteúdos de cada uma dessas fases de direitos.
Quadro 2 – Direitos Humanos da primeira a quarta geração
Primeira Geração
Direitos
à
liberdade
(civil e política)
liberdade de imprensa e informação; liberdade de associação de ir e vir, de
Primeiros a constar em
instrumento
Direito à vida, propriedade, nacionalidade, asilo político, religião, livre expressão,
normativo
participação política direta ou indireta; o princípio da soberania popular e as
regras básicas da democracia (formar partidos, votar e ser votado/a), segurança
pública, julgamento justo, igualdade perante a lei, habeas-corpus; não-escravidão,
constitucional
tortura ou prisão arbitrária; privacidade do lar e respeito da imagem; garantia de
direitos iguais entre homens e mulheres no casamento.
Segunda Geração
Direitos
à
igualdade
(econômico-sociais
e
culturais)
Direito à seguridade social, educação pública, gratuita e universal; trabalho e
segurança no trabalho, seguro-desemprego, salário justo e satisfatório, formação
de sindicatos, descanso remunerado, lazer, proteção especial à maternidade e
Direitos de crédito do
indivíduo em relação à
infância; acesso aos benefícios do progresso científico e artístico, proteção aos
direitos autorais e às patentes científicas; proteção do Estado; não-discriminação
salarial; participação na vida cultural da comunidade.
coletividade
Terceira Geração
Direito à solidariedade
Direito
a
uma
nova
ordem internacional
Direito a uma ordem social e internacional onde os princípios de liberdade da
Declaração Universal dos Direitos do Homem possam ser realizados plenamente,
entre eles: direito à paz, ao desenvolvimento sustentado, ao meio ambiente
saudável e ao usufruto dos bens definidos como patrimônio comum da
Direitos
meta-
individuais
humanidade. Titulares: grupos humanos como a família, o povo, a nação, a
coletividade regional ou étnica e a própria humanidade.
Direitos Difusos
Quarta Geração
Direitos das Gerações
Compromisso das atuais gerações de melhorar o mundo para as futuras gerações.
Futuras
Obrigações decorrentes da manipulação genética ou do controle de dados
Categoria nova, ainda em
gestação.
informatizados em redes planetárias trazem à tona questões relativas à evolução
biogenética e tecnológica. Titulares: futuras gerações.
Fonte: Elaborado com base na exposição de Souza (2003, p. 25-27).
O percurso percorrido até a conquista de várias gerações de direitos humanos teve
momento de destaque na Conferência de Viena (1993). O documento daí resultante tratou de
186
assegurar a defesa das três primeiras gerações de direitos humanos: os direitos à liberdade, à
igualdade e à solidariedade, por meio de mecanismos a serem instituídos, consoante ao decidido
nas Assembléias Gerais da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas. Contudo, se a
inclusão dos direitos de “segunda geração”, ao lado dos civis e políticos, foi obtida após muita
oposição, os de “terceira geração” são até o momento móvel de objeções não resolvidas (Bicudo,
2002).
Para alimentar esse impasse, forças fundamentalistas de distintos signos vêm
desempenhando um papel decisivo. E isso se faz sentir, em particular, no que tange aos direitos
denominados “meta-individuais”, cuja especificidade é situar os indivíduos como parte da
humanidade. Igualmente são alvo de tensão os direitos “difusos”, que tratam de pessoas
indeterminadas. Na mesma situação, estão os “multiculturais”, vistos como garantia à
pluralidade de identidades socioculturais e “republicanas”, relacionados que estão à coletividade
e à noção de cidadania ativa.
Não obstante a universalidade de direitos, cuja matriz remonta a revoluções como a
Americana (1776) e a Francesa (1789) e se sedimenta na Declaração Universal de 1948 e na
Carta de Viena (1993), a raiz elitista, liberal e individualista direciona a demanda por direitos
humanos à defesa de liberdades individuais (expressão, propriedade e religião). Assim, o caráter
universal ou inalienável dos direitos humanos não impede seu exercício, preferencial, por
parcelas da população pequenas e bem posicionadas socialmente.
Os direitos humanos formam um conjunto de garantias (positivas, exigíveis,
judiciáveis) do ponto de vista econômico, social, cultural, político e jurídico, que efetivam
progressivamente a dignidade humana. Esses direitos são universais, indivisíveis e
interdependentes e, neste sentido, exigem ações articuladas e consistentes, estruturais e
sustentáveis para a sua consolidação. Portanto, a conquista procedimental de direitos não é o
bastante. É preciso buscar as bases sociais para construir políticas públicas que garantam os
direitos proclamados legalmente. Daí competir ao Poder Público e às entidades de defesa e
promoção dos direitos humanos estimularem o debate sobre o tema e gerar projetos e programas
para garantir a concretização dos direitos de segunda (econômico-sociais), terceira (difusos) e
quarta gerações (crianças e juventude), dado serem fundamentais para assegurar a dignidade de
todos os seres humanos (Souza, 2003).
No caso brasileiro, como sugere Souza (2003), a lacuna entre os direitos proclamados
formalmente e a realidade vivida pela maioria da população, quando se trata de políticas
públicas, é oportuno centrar a atenção em aspectos relativos à pobreza, às desigualdades e à
exclusão social. Conforme Hélio Bicudo (2002, p. 21), embora seja indiscutível a essencialidade
dos direitos civis e políticos, como reconhecido na Declaração de Viena com o aval de todos os
187
países, a mesma declaração igualmente estabelece a “interdependência” de todos os direitos
humanos, os “civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. E o faz com sabedoria, pois
sabemos e todo o mundo sabe que, sem o mínimo de condições materiais, os direitos em geral,
mesmo os civis e políticos, não passam de uma ficção”.
Afirmações dessa natureza podem ser dimensionadas quando se examinam indicadores
estatísticos divulgados por agências nacionais e internacionais, elencando: desigualdades
econômicas e sociais; problemas relativos à infância, adolescência e juventude; situações de
violência e pobreza ou discriminações de raça/etnia e de gênero, como exposto a seguir:
O Brasil situa-se entre as 10 maiores economias do mundo; no entanto, ocupa o
65º lugar, entre 175 países, no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano – IDH (2003).
O IDH desagregado por cor situa a população branca no 46º lugar e a negra no
107º, também em 2003 (www.ibase.org.br).
O ingresso de crianças no ensino fundamental chega aos 98%, mas só 15%
atingem o ensino médio (PNUD, 2002).
A mortalidade de jovens entre 15 e 29 anos no Brasil é apontada pela Organização
Mundial da Saúde (OMS) como uma das mais altas do mundo.
A mortalidade de menores de cinco anos idade é de 45,7 (por mil) entre crianças
brancas e de 76,1 entre negras (Idem).
A OMS (2002) informa que o Brasil gasta apenas 1,9% do PIB para tratar vítimas
de violência.
De acordo com dados do IBGE, no contingente de aproximadamente 182 milhões
de brasileiras e brasileiros cadastrados pelo Censo de 2000, 33,5% são considerados pobres. O
mesmo instituto registra que a pobreza no Brasil tem a cor negra e o sexo feminino.
Outros indicadores podem ainda ser acionados para denotar a pobreza, as desigualdades
e a exclusão social existentes no país. O desemprego, a flexibilização dos direitos trabalhistas
para pessoas ocupadas e as diferenças salariais discriminam mulheres e pessoas negras de ambos
os sexos. Dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) de 2002, relativos às principais
regiões metropolitanas do país, registram a desigualdade de oportunidades a afetar a população
negra no mercado de trabalho e o segmento feminino, cuja tendência é ostentar altas taxas de
desemprego, baixos salários e pequena participação em cargos de direção e planejamento. Tudo
isso serve para alijar cada vez mais as brasileiras e os brasileiros da possibilidade de inclusão
social.
188
Diante dessa realidade, não se pode deixar de referir a violência contra as mulheres
como um dos exemplos contundentes de violação dos direitos humanos e do déficit de políticas
públicas para tratar da questão. É sabido que a cada 15 segundos uma brasileira enfrenta algum
tipo de violência, seja física (agressão/estupro), psicológica (agressão verbal) ou institucional
(omissão de atendimento), para citar apenas esses. Um olhar mais crítico sobre o problema revela
que as políticas públicas nessa área são quase sempre fragmentadas, deixando lacunas
importantes a demandas específicas e urgentes para quem vivencia situações de violência.
As reivindicações das brasileiras por direitos humanos renderam muitos frutos a partir
da década de 1980, entre eles a criação de Conselhos dos Direitos da Mulher (estaduais,
municipais e nacional); de Delegacias de Polícia para a Mulher e de Casas Abrigo para vítimas
de violência doméstica. Tais iniciativas passam, então, a constituir espaços de denúncia e dão
visibilidade política à violência de gênero, em particular, à praticada no âmbito doméstico e no
das relações conjugais. Paralelo a isso, o Governo brasileiro comprometia-se formalmente com a
defesa dos direitos da mulher ratificando vários tratados e convenções internacionais. Decorre
daí o reconhecimento da violência doméstica como objeto de políticas públicas. Na prática,
porém, o problema não é tratado como tal na maioria dos estados e municípios. Nesse caso se
incluem as delegacias e casas abrigo para mulheres cujo número é insuficiente para suprir a
demanda por esse tipo de atendimento no território nacional; em 2001, registrava-se 307
Delegacias Especializadas e 50 Casas Abrigos, a maioria localizada na região sudeste do país
(Prá e Negrão, 2004). Ademais, ainda se carece de legislações mais eficazes e de preparo
profissional em diversas áreas (saúde, segurança, educação) para prevenir ou punir situações de
violência contra a mulher, o que exige respostas mais ágeis e eficientes em termos de políticas
públicas.
Considerado o exposto, não é demais afirmar que a permanência de tantas
desigualdades sociais no Brasil é, a um só tempo, causa e conseqüência da não-efetivação dos
direitos humanos nessa sociedade. Nesse sentido, como advoga o Coordenador do Movimento
Nacional dos Direitos Humanos, Romeu Klich, (www.mndh.org.br), desenvolver políticas
públicas em direitos humanos implica reconhecer dois aspectos “indissociáveis e
complementares”, quais sejam: o de que os direitos humanos devem fundamentar toda política
pública, posto competir ao Estado garantir o acesso aos direitos; e o de que os direitos humanos
exigem políticas públicas específicas. Em suma, na avaliação de Klich (citado por Souza, 2003,
p. 54) se deve almejar a possibilidade de ter “direitos humanos em todas as políticas públicas e
direitos humanos como política pública”.
Comentários finais
189
O que se buscou no presente trabalho foi, tão-somente, problematizar a questão dos
direitos humanos e a sua conexão com o tema das políticas públicas, incorporando elementos
como o do capital social que, no geral, não são levados em conta em análises dessa natureza. Em
vista disso, procurou-se ressaltar que as políticas públicas de direitos humanos têm sua gênese
em projetos sociais voltados a reduzir as desigualdades e a exclusão social. No entanto,
ressaltou-se que quando se evoca o caso brasileiro a evidência empírica é contundente ao
demonstrar tanto o déficit de participação social e política como o fato de que a melhoria de
alguns indicadores sociais não tem sido capaz de promover a igualdade e inclusão da maioria da
população do país. Dados empíricos também serviram para pontuar que boa parte da sociedade
não conhece seus direitos e compreende as políticas públicas como benefícios do Estado, quer
dizer, orienta-se ora pela cultura dos favores, ora pela dos benefícios (Souza, 2003).
Culturas, sem dúvida, tributárias da vigência histórica de um Estado de orientação
corporativa, paternalista, clientelista e patrimonialista, como se fez questão de frizar no decorrer
da exposição. Portanto, considera-se que o desafio a ser enfrentado por agentes governamentais,
parlamentares, acadêmicos/as, movimentos sociais, organizações não-governamentais e
“entidades de direitos humanos é o de trabalhar na construção de uma cultura de direitos”
(Souza, 2003, p. 59). Para tal, como advoga Souza, é preciso “desconstruir a concepção de
Estado privatizado e afirmar a participação popular como elemento de constituição da cidadania
e de políticas públicas que efetivem os direitos humanos”.
O êxito na obtenção desse tipo de cultura, contudo, implica, entre outros desafios, no
desenvolvimento de debates extensos e consistentes, na construção de alianças, na articulação da
sociedade, na interlocução entre agentes sociais e políticos, na afirmação da agenda pública dos
direitos humanos, mas, também, na ruptura com os limites conceituados. Diante disso, é de
indagar, como o faz Souza (2003, p. 57), se no momento de elaborar projetos sociais não seria
preciso averiguar melhor “quais os pressupostos necessários para implementar políticas públicas
de incremento à cidadania? Ou, então, perguntar: o que os governos devem observar para que os
projetos sociais sejam mais efetivos?” A resposta a essas questões certamente pode ser buscada
acionando-se a perspectiva sinérgica do capital social.
O conceito de capital social revela um potencial inestimável por permitir, pela
conjugação teoria e práxis, desencadear práticas de participação e interpelações democráticas
capazes de reverter o quadro de incertezas e de exclusão social que caracteriza o cenário
brasileiro do novo século. A teoria do capital social além de permitir a análise das características
do comportamento social pode ser operacionalizada na implementação de políticas públicas.
Embora alvo de críticas recorrentes quanto a sua aplicabilidade, o caráter explicativo do conceito
190
representa importante instrumento a ser “utilizado ou mobilizado na busca de políticas
sociais transparentes e na construção efetiva de relações de confiança entre Estado e Sociedade”
(Lima, 2001, p. 61).
Nesse contexto, poucos termos têm hoje tanta relevância quanto o dos direitos humanos
e, por decorrência, o da cidadania. Como atesta Dulce Pandolfi (1999, p. 58), “mesmo que não
consigamos atingir altas taxas de participação política e social, é preciso acabar com o descrédito
da população em relação às instituições capazes de assegurar as diversas dimensões da sua
cidadania. É necessário que cada pessoa deseje e consiga transformar-se em um cidadão”. Afinal,
é exatamente nesse âmbito, qual seja: da ação política, da crença, do desejo, da reciprocidade e
da confiança pessoal e institucional que o uso do capital social se mostra fecundo. Portanto,
repousa em nossa capacidade de gerar, fomentar e articular esse capital a possibilidade de
construir uma cultura pública democrática, enfim, de construir uma cultura pública de direitos
humanos no Brasil.
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CAPITAL SOCIAL E ESTRATÉGIAS DE REPRODUÇÃO DAS FAMÍLIAS
RURAIS
David Basso
Doutor em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro – UFRJ. Professor do Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul
– UNIJUÍ.
E-mail: [email protected]
Introdução
Este trabalho trata de novos procedimentos teórico-metodológicos para a análise
de processos de desenvolvimento rural local, considerando que tanto as atividades e rendas
agrícolas quanto não-agrícolas podem ser relevantes para a composição das estratégias de
reprodução das famílias rurais. A avaliação das condições de reprodução, por sua vez, deve
levar em consideração não só critérios meramente econômicos, tendo em vista que as
famílias rurais podem valorizar outros critérios para avaliar as suas condições de vida,
relacionados principalmente às suas práticas sociais e culturais. Por fim, a avaliação da
viabilidade das famílias não pode considerar apenas uma racionalidade que prevê a
remuneração do conjunto dos fatores de produção quando, para muitas dessas famílias, a
racionalidade se restringe às condições de reprodução dos seus membros.
194
A ampliação das lentes para observar as condições de desenvolvimento rural local
está centrada na abordagem1 proposta por Bebbington (1999), para quem, além de
incorporar atividades e rendas agrícolas e não-agrícolas, a análise das estratégias de
reprodução das famílias rurais deve considerar, de um lado, as condições de acesso que
elas conseguem ter e sustentar a um conjunto de ativos de capital e, de outro, as relações
que elas conseguem manter com outros atores das esferas do mercado, do Estado e da
sociedade civil.
O trabalho apresenta, na seção seguinte, os principais elementos da abordagem
para tratar das estratégias de reprodução em função do acesso a um conjunto de ativos de
capital e de atores que operam nas esferas do mercado, do Estado e da sociedade civil,
exemplificados, na medida do possível, com referências do estudo de uma situação de
desenvolvimento rural. Por fim, faz-se uma análise do significado do capital social para
potencializar processos particulares de desenvolvimento.
Estratégias de reprodução com base no acesso a ativos de capital e a atores
Para avaliar a capacidade de reprodução ou as condições de vida no meio rural,
Bebbington (1999) fundamenta sua análise no acesso que as pessoas ou famílias têm a um
conjunto de ativos de capital, bem como a outros atores que se situam nas esferas do
mercado, do Estado e da sociedade civil.
Sustentando que se deve ter uma concepção ampla de recursos que as pessoas ou
famílias precisam acessar no processo de composição de suas estratégias de reprodução,
Bebbington (1999, p. 4) observa que as condições de reprodução no meio rural, que se
baseavam especialmente na agricultura e em recursos naturais,
passam a depender
crescentemente de uma variedade de ativos, fontes de renda, mercados de produtos e de
trabalho. Por isso, o autor passa a considerar as condições de reprodução das famílias
rurais em função do seu acesso a um conjunto de ativos de capital (produzido, humano,
natural, social e cultural) a outros atores políticos, econômicos e sociais.
1
Esta abordagem foi utilizada pelo autor na tese de doutorado realizada no CPDA/UFRRJ que tem como
título “Desenvolvimento Local e Estratégias de Reprodução das Famílias Rurais: abordagens sobre o
desenvolvimento rural na região Noroeste do Rio Grande do Sul”, sob a orientação do professor Nelson
Giordano Delgado.
195
O mais importante, segundo o autor (p. 5), nem sempre é a posse em si dos
diferentes tipos de ativos de capital e sim a forma como eles são combinados e utilizados
para capacitar as pessoas nas suas ações em busca da sobrevivência e, na medida do
possível, da melhoria das condições de vida. Os ativos de capital, portanto, não podem ser
vistos meramente como meios com os quais as pessoas ganham a vida (ação instrumental),
visto que eles também dão sentido ao mundo das pessoas e das famílias, influenciando as
decisões na composição de suas estratégias de sobrevivência (ação hermenêutica). Por
outro lado, tais ativos também capacitam e são fontes de poder por meio das quais as
pessoas e famílias conseguem reagir e, se necessário, insurgir-se contra as condições que
impedem a melhoria das condições de vida (ação emancipatória).
O processo de capacitação, segundo Bebbington (p. 32), deve ser entendido no
mesmo sentido do conceito de capability de Sen (2000), representando a melhoria da
capacidade de um grupo social ou de um indivíduo para agir, transformar a sua condição
de vida, enfrentar as situações que geram pobreza e desigualdade. Capacitar pessoas ou
grupos sociais significa empoderá-los, atribuir-lhes poder para que sejam capazes de
participar ativamente nas discussões e nas ações que se relacionem com a composição das
suas estratégias de reprodução. A capacitação, então, deve qualificar as pessoas para que se
tornem agentes de mudança, capazes de questionar, desafiar, propor, buscar novas
maneiras de fazer as coisas, mudando, enfim, as próprias regras que orientam o processo de
desenvolvimento.
O marco conceitual deste tipo de abordagem está centrado nos ativos que as
famílias rurais dispõem e nas estratégias de reprodução entendidas como as formas sob as
quais as pessoas ou famílias podem combinar tais ativos de maneira sinérgica,
transformando-os em níveis e formas de vida (Bebbington et al., 2002, p. 4). Assim, as
pessoas e famílias rurais tendem a compor aquelas estratégias de vida ou de reprodução
que: - sejam mais consistentes com o rol de ativos que controlam num determinado
momento, - reflitam não só suas aspirações mais imediatas, mas também aquelas de médio
e de longo prazo, - pareçam ser as mais viáveis em função das oportunidades e restrições
impostas pelas circunstâncias econômicas do contexto em que convivem (p. 4).
A idéia básica que orienta a análise das estratégias de reprodução das famílias
rurais fundamenta-se nas condições de acesso que elas têm a um conjunto de ativos de
capital que, por sua vez, acaba por delimitar o acesso das famílias ao mercado, ao Estado e
196
a organizações civis, fator indispensável para a concretização das suas estratégias de
reprodução.
Vistos de forma independente, todos os ativos de capital parecem ser importantes
e cruciais para a composição e a realização de estratégias de reprodução. A literatura e a
experiência, entretanto, dizem que os tipos de ativos e os tipos de atores mais importantes
para uma determinada estratégia de reprodução podem não ser os mesmos para as
estratégias de outras famílias.
Uma avaliação da importância dos diferentes capitais para as famílias rurais deve
começar, portanto, pela análise das distintas estratégias de reprodução observadas num
dado território. Para algumas famílias, o meio rural é visto principalmente como um lugar
para morar ou para viver bem e suas estratégias de reprodução, neste caso, se fundamentam
especialmente em rendas não-agrícolas. Para outras famílias, no entanto, o meio rural é
visto como um espaço de produção e acumulação e as estratégias de reprodução, por
conseqüência, são estabelecidas em torno de famílias cujas fontes de renda são
essencialmente agrícolas, famílias cujas fontes de renda dependem tanto de atividades
agrícolas como da migração parcial e, por fim, famílias cujas fontes de renda dependem
particularmente da migração.
Com base no estudo realizado na microrregião de Três Passos2, pode-se dizer que
o meio rural é visto por algumas famílias como um espaço de vida, ou seja, “um lugar para
se viver”. Enquadram-se neste caso as famílias de aposentados rurais, alguns aposentados
urbanos que decidem adquirir um lote rural para “mexer com a terra”, mais como terapia
do que como negócio, bem como outras famílias urbanas que adquirem sítios no interior
para passar os finais de semana. Nestas situações, a base de ativos restringe-se ao capital
natural, independente da quantidade e qualidade, já que a estratégia de reprodução não
depende da sua exploração e sim de rendas não-agrícolas. O envolvimento produtivo dos
recursos naturais, quando existe, restringe-se à produção de subsistência e à venda de
eventuais excedentes.
Para outras famílias, no entanto, o meio rural é visto como um espaço de produção
e de acumulação, com destaque para: famílias que montam suas estratégias com base
essencialmente em atividades agropecuárias; famílias cuja estratégia de reprodução implica
manter uma parte dos seus componentes dedicados à exploração agropecuária e outra parte
envolvida com outras atividades agrícolas fora da unidade de produção familiar ou, então,
2
Este estudo forneceu a base empírica para a realização da tese referida na nota anterior.
197
com atividades não-agrícolas, no meio rural ou no meio urbano; famílias, por fim, que se
mantêm na agricultura no curto prazo, mas cuja estratégia de reprodução de médio e longo
prazo está voltada para a migração, começando com os filhos mais velhos que se
encarregam de “preparar o terreno” para a migração do restante da família, incluindo os
pais e filhos mais novos. A diferença entre as duas últimas situações é que, no primeiro
caso, o casal e pelo menos um dos filhos, geralmente um filho homem, pretendem
permanecer no meio rural com dedicação à agricultura, enquanto, no segundo caso, a
tendência é de a família inteira abandonar não só das atividades agropecuárias, mas do
próprio meio rural.
Com isso se pode construir uma tipologia simples de estratégias de reprodução das
famílias rurais da microrregião, considerando: famílias cujas estratégias de reprodução se
fundamentam essencialmente em atividades agrícolas; famílias cujas estratégias de
reprodução envolvem tanto atividades agrícolas como a migração parcial e famílias cujas
estratégias de reprodução são pautadas essencialmente na migração.
Para as famílias cujas estratégias de reprodução estão centradas na produção
agropecuária, o acesso a ativos de capital deve ser avaliado em função de duas situações
bem distintas: uma envolvendo famílias mais bem dotadas e que apresentam uma situação
econômico-financeira mais confortável e outra envolvendo famílias mais pobres, que
vivem em condições bastante precárias.
No caso das famílias mais abastadas, o acesso a ativos de capital natural em
quantidade adequada e de boa qualidade pode potencializar o acesso a outros ativos de
capital, o que lhes permite melhorar ainda mais sua condição sócio-econômica e financeira.
Dentre estes se destacam os ativos de capital construído, na forma de meios de produção e
de crédito, os quais permitem desenvolver sistemas agrícolas (culturas e criações) que, por
sua vez, garantem níveis de renda agrícola suficientes para dar conta das estratégias de
reprodução dos membros da família, oportunizando melhorias de qualidade de vida,
formação adequada (mais capital humano), acumulação em terra (mais capital natural) ou
meios de produção e infra-estrutura (mais capital construído). A facilidade de acesso a
informações e de envolvimento com grupos articulados (associações, organizações, redes)
facilita-lhes também o acesso a mercados (de produtos, de insumos e financeiros), ao
Estado (linhas de crédito, programas especiais) e a organizações civis de alcance supraregional.
198
Para este tipo de famílias, cujas estratégias de reprodução envolvem
fundamentalmente atividades e rendas agrícolas, o meio rural e a agricultura permanecem
como centro da análise e os acessos mais significativos são aqueles que se relacionam aos
ativos de capital natural (especialmente terra em boas condições para uso agrícola e de
irrigação) e ativos de capital construído (máquinas, equipamentos, insumos, crédito). O
acesso a mercados de produtos e a assistência técnica também são importantes.
Como o aumento da produtividade e os ganhos de renda acontecem
principalmente em função do aumento da relação capital-trabalho, muitas dessas famílias
podem incluir em suas estratégias uma proposta de formação para seus filhos, tanto na
perspectiva de preparar a sucessão na atividade agrícola, quanto, e particularmente, de
prepará-los para ganhar a vida fora da agricultura, envolvidos com outras funções
(professores, engenheiros, médicos, odontólogos, advogados, entre outras). Neste caso, o
investimento em capital humano não decorre da insuficiência de renda gerada pela
agricultura, mas da subutilização da mão-de-obra que resulta da ampliação do grau de
mecanização e do uso de insumos de origem industrial. A opção de permanência dos filhos
na unidade de produção, quando acontece, normalmente está associada à incorporação de
novas atividades, envolvendo, além da produção de grãos, a produção de suínos, a
produção de leite, a prestação de serviços de colheita para terceiros, dentre outras.
Para as famílias mais pobres, que montam suas estratégias de reprodução a partir
de atividades e rendas agropecuárias, a situação é bastante diferente. De maneira geral, as
famílias pobres na microrregião estudada não possuem uma boa dotação de ativos de
capital natural, tanto por problemas de solo (solos rasos, com presença de pedras), como de
relevo (declividades acentuadas) e de insuficiência no abastecimento de água. Esta
acumulação insuficiente de ativos de capital natural repercute também de forma negativa
no acesso a outros ativos de capital.
A qualidade do capital natural das famílias mais pobres limita-lhes o acesso a
alguns itens consagrados de capital construído de uso individual, como máquinas e
equipamentos de tração motorizada. Este tipo de ativo de capital construído, portanto, não
tem nenhuma importância para essas famílias, mas, em compensação, suas estratégias de
reprodução podem depender muito de ativos relacionados à infra-estrutura (estradas, meios
de transporte para o translado de produtos, mas também de pessoas que precisam de
assistência à saúde disponível na maioria das vezes nos espaços urbanos, eletricidade,
dentre outros), serviços nem sempre realizados pelo Poder Público local, seja pelas
199
próprias dificuldades topográficas, seja pelo reduzido poder de barganha das famílias que
vivem nessas condições (baixa capacidade de produção e baixos níveis de organização).
Como observa o secretário de agricultura de um município da microrregião, “os maiores
problemas no município estão nas regiões mais acidentadas e de solos com elevado grau de
pedregosidade, onde normalmente se localizam agricultores muito pobres. É também
nestas localidades que existe o menor grau de organização e de participação social dos
agricultores”.
Como as áreas são de tamanho reduzido e não-aptas à mecanização, as atividades
devem responder com uma boa margem de contribuição por unidade de área e são
desenvolvidas basicamente com o uso da força de trabalho. Esses sistemas intensivos em
trabalho forçam a permanência dos membros da família na unidade de produção,
dificultando a escolha de outras estratégias de reprodução baseadas, por exemplo, na
migração parcial. Da mesma forma, os membros da família enfrentam dificuldades para
acessar recursos que poderiam melhorar o seu capital humano, pois eles são
imprescindíveis e têm dificuldades para se afastar, ainda que temporariamente, das
atividades envolvidas nos seus sistemas produtivos. O capital humano tende a ser afetado
negativamente também em função de problemas relacionados à saúde, ocasionados não só
pela duração da jornada de trabalho, mas principalmente pelas difíceis condições de
execução do trabalho impostas pelas condições agroecológicas do capital natural.
Manter estratégias voltadas à exploração do meio natural, com base em culturas
anuais ou sistemas de criação intensivos, certamente implicará um maior desgaste dos
recursos naturais por processos erosivos e de esgotamento da fertilidade dos solos,
dificultando ainda mais as condições de reprodução dessas famílias rurais.
Estratégias de reprodução com potencialidade de melhorar as condições de vida de
famílias que vivenciam este tipo de situação deveriam privilegiar a retomada e o
fortalecimento de alguns valores coletivos que potencializem sentimentos de cooperação,
solidariedade, auto-ajuda (ativos de capital cultural e capital social), buscando outras
formas de ganhar a vida, se possível mantendo-se no meio rural e nas próprias explorações,
mas não necessariamente condicionando a reprodução às atividades e rendas agrícolas.
Estas estratégias envolveriam necessariamente novas qualificações (capital humano) para
poder dar conta de outras formas de geração de rendas agrícolas (reflorestamento,
fruticultura, bovinocultura de corte, etc.) ou não-agrícolas no meio rural (trabalho agrícola
em outros estabelecimentos, serviços ligados à construção de casas, galpões, estábulos,
200
chiqueiros, cercas, etc. para as famílias que se viabilizam a partir de atividades
agropecuárias) e no meio urbano (migração parcial ou total).
Para as famílias cujas estratégias de reprodução envolvem tanto atividades
agrícolas quanto a migração parcial, o acesso aos diferentes ativos de capital tem a ver
tanto com o fortalecimento das rendas agrícolas, quanto de rendas não-agrícolas. Como a
estratégia implica que parte dos membros da família permaneça envolvida com atividades
agropecuárias, a acumulação de capital natural, quando ocorre, dá-se por aquisições de
pequenas áreas rurais com financiamento direto entre as partes ou, então, por compra via
Banco da Terra3 em nome de um filho. O tipo de ativo de capital construído mais adequado
vai depender da escolha das atividades agropecuárias que serão priorizadas pelas diferentes
famílias, mas normalmente envolve pelo menos uma cultura ou criação mais intensiva que
melhor se adapta aos seus ativos de capital natural, dentre as quais são mais expressivas na
microrregião a pecuária leiteira, a suinocultura, a fumicultura e, em algumas localidades, a
fruticultura, cada uma delas demandando um conjunto específico de ativos físicos e
financeiros.
Com a migração de parte dos seus membros, que busca outras fontes de renda fora
da unidade de produção, muitas dessas famílias recorrem a um maior grau de mecanização,
para dar conta, especialmente, do preparo do solo, plantio e tratamentos culturais, tanto de
culturas comerciais como de culturas que servirão de alimentação para os animais. O que
tem facilitado o acesso à mecanização para esse tipo de famílias, que possui normalmente
áreas aptas à mecanização relativamente pequenas, é a presença de um mercado de
máquinas e equipamentos usados. Para muitas dessas famílias, a aquisição do primeiro
trator aconteceu recentemente e ele foi adquirido já com 20 ou até 30 anos de uso, depois
de ter passado por uma reforma ou revisão. Uma política visando a consolidar e estimular a
intensificação deste tipo de família, portanto, deveria contemplar o financiamento de
maquinaria e equipamentos usados.
Um elemento-chave para que essas famílias consigam sustentar esta estratégia de
reprodução, envolvendo culturas e criações, está relacionado às suas condições de acesso
aos mercados. Cada uma das atividades agropecuárias, especialmente aquelas mais
intensivas, possui a sua estrutura e a sua estratégia de mercado que ora tendem a incluir,
ora a excluir agricultores.
3
Só no município de Três Passos, segundo dados da Secretaria Municipal de Agricultura, 46 famílias haviam
sido contempladas com recursos do Banco da Terra, envolvendo um montante de recursos de R$ 892.000,00.
201
A densidade da vida associativa das famílias pode lhes facilitar não só o acesso
aos mercados como também às agências públicas. A relação que os técnicos da Emater e
das secretarias municipais de agricultura mantêm com os agricultores não é de
simplesmente apontar os viáveis e os não viáveis, os que podem e os que não podem
permanecer como fornecedores de produtos agrícolas. A relação privilegia ações no
sentido de projetar melhorias nos sistemas atuais a partir das condições econômicofinanceiras das famílias. O produtor modelo já não é mais apenas sinônimo de quem possui
as melhores instalações, obtém os maiores rendimentos físicos por área ou por animal e
passa a incluir aqueles que conseguem melhorar o seu desempenho técnico e econômico a
partir da introdução de pequenas e progressivas melhorias no seu sistema produtivo.
As preocupações com a acumulação de ativos de capital humano envolvem tanto a
qualificação dos membros da família que tenderão a permanecer na exploração agrícola,
quanto a formação e qualificação dos membros que tendem a buscar outras fontes de renda
por meio da migração. No primeiro caso, a qualificação privilegiada dá-se por meio de
treinamentos específicos (cursos, reuniões, seminários, dias de campo, visitas a
propriedades, etc.), voltados tanto à qualificação profissional para melhorar o desempenho
em relação às atividades que desenvolve, quanto à melhoria das condições de saúde,
higiene e bem-estar da família. A qualificação para facilitar o processo de migração
envolve tanto a participação em cursos profissionalizantes, quanto a seqüência dos estudos
formais (nível médio e, se possível, superior).
Esta também é a preocupação das famílias cujas estratégias de reprodução são
pautadas essencialmente na migração, cujo esforço famíliar está voltado principalmente
para a acumulação de ativos de capital humano, no sentido de se preparar para assumir
novas funções, desenvolver novas atividades de modo a garantir a sobrevivência e
melhores condições de vida a partir de outras fontes de renda. As rendas agrícolas atuais
têm sentido na medida em que colaboram para a realização daquela estratégia de médio e
longo prazo. O esforço redobrado dos pais que permanecem envolvidos com a produção
agropecuária é encarado como um investimento necessário na preparação dos filhos para
enfrentarem novos mercados de trabalho, abrindo passagem para a migração do restante da
unidade familiar. Em alguns casos, a estratégia pode até envolver a permanência dos pais
na unidade de produção, desde que associada a outras fontes de renda, como é o caso da
aposentadoria e até mesmo a ajuda financeira que pode vir dos filhos quando a migração
for exitosa.
202
O capital social potencializando ações de desenvolvimento rural
O quadro de análise utilizado para avaliar as diferentes estratégias de reprodução
das famílias rurais fundamenta-se na noção de acesso a um conjunto de ativos de capital e
de atores sociais que interagem nas esferas do mercado, do Estado e da sociedade civil. O
capital social, nesta perspectiva, é um desses ativos cujo acesso pode influir para facilitar e
manter o acesso a outros ativos e atores. O acesso a ativos de capital social, por sua vez,
decorre das relações que as pessoas ou famílias mantêm com outras pessoas, famílias e
organizações (Bebbington et al., 2002, p. 4) e tais ativos são representados, na expressão de
Narayan & Pritchett (1997, p. 2-3), pela quantidade e qualidade de vida associativa e pelas
normas sociais correspondentes. A forma de manifestação do capital social, segundo estes
autores, dá-se pela participação em grupos ou associações voluntárias, pela característica
destes grupos e associações, pela existência e pelo papel de normas sociais e cívicas, bem
como pelas atitudes dos indivíduos para com os outros, evidenciando principalmente o
grau de confiança das pessoas nos grupos sociais locais, tais como a família e associações
comunitárias. O capital social, portanto, compreende o conjunto de normas, práticas e
relacionamentos que estimulam a cooperação social e a solidariedade entre os membros de
um determinado grupo e entre esse grupo e outros grupos ou organizações locais e
externas.
A análise dos impactos do acesso a ativos de capital social na composição das
estratégias de reprodução das famílias rurais na microrregião de Três Passos privilegiou
contribuições que auxiliam no entendimento dos processos de construção de capital social,
seja por iniciativa das próprias populações seja pela colaboração de outros agentes sociais.
Fox (1996), por exemplo, considera que fatores tais como as condições
agroecológicas, os tipos de recursos, os padrões de migração, a história políticoeconômico, as questões étnicas e religiosas, etc. podem influir para que haja mais ou
menos sinergia nas relações Estado-sociedade, para que haja maior ou menor acesso a
recursos, maior ou menor estoque de capital social. Ao desenvolver-se estratégias para
construir capital social como estímulo ao desenvolvimento rural, deve-se prestar atenção
nas restrições, nas oportunidades e nas potencialidades que derivam das várias dimensões
do contexto local-regional.
203
Se, como sugere Franco (2001, p. 67), o processo de produção, acumulação e
reprodução de capital social está associado à capacidade que tem o ser humano de
colaborar ou de cooperar com outros seres humanos, o capital social não pode ser tratado
como uma simples soma das virtudes humanas dos indivíduos, mas como algo que só
tende a florescer plenamente em comunidades ou sociedades que promovam mutuamente o
reconhecimento, a confiança, a reciprocidade, a ajuda, a solidariedade e a cooperação.
Esses atributos, no entanto, não fazem parte do cotidiano das pessoas e das
comunidades. Ao contrário, questões políticas e conflitos de interesses estão normalmente
presentes nas relações que se estabelecem entre pessoas, organizações e instituições
estatais e privadas. Ao se assumir que nem todos os atores sociais presentes ou atuantes
numa comunidade defendem maior participação política da população e de relações de
sinergia, o estudo do desenvolvimento local sob a ótica do capital social, portanto, deve
passar pela questão das alianças políticas, como sugere Fox (1996), envolvendo segmentos
da burocracia estatal e das organizações privadas que efetivamente estão dispostos a
contribuir na construção e consolidação de normas e regras para serem partilhadas, bem
como de laços de confiança, solidariedade e colaboração entre os atores.
Ainda que normalmente seja mais difícil construir capital social e estabelecer
relações de sinergia em contextos sociais, econômicos e políticos nos quais predominem
fortes desigualdades sociais e a democracia funcione precariamente, é possível detectar
grupos que interagem entre si e com representantes do Estado, de suas organizações
representativas e até mesmo do mercado, em função de circunstâncias e problemas
comuns.
É esse quadro de referência, circunscrito especialmente na idéia de que é possível
construir relações e de que é fundamental que as pessoas, grupos e comunidades se
capacitem para essa construção, que vai se constituir em pano de fundo para a análise dos
ativos de capital social observados na microrregião de Três Passos/RS, tendo por suposto
que os processos de construção de capital social e de relações de sinergia entre os
diferentes atores dependem do contexto social e político de cada região ou sociedade.
A medição de como se dá a apropriação e a acumulação de capital social e os seus
efeitos sobre a vida das pessoas e das famílias é algo mais complexo do que a medição da
propriedade e acumulação de ativos de capital natural, capital produzido e de capital
humano. Esta dificuldade é ampliada pela carência de estudos empíricos desta natureza e a
conseqüente inconsistência de muitos dos procedimentos empregados para fazer a
204
observação numa realidade concreta, sem falar no viés dos investigadores que até então
têm-se utilizado de outras abordagens para dar conta de realidades locais.
A preocupação, no trabalho de campo, foi tentar levantar um conjunto de
informações, mais qualitativas do que quantitativas, que pudessem explicar em que sentido
a maior ou menor intensidade de vida associativa pode explicar trajetórias diferenciadas de
famílias, presentes numa mesma região. Na seqüência, portanto, apresentam-se algumas
constatações observadas empiricamente na área de estudo buscando inferir se a
importância do capital social como variável explicativa para as estratégias de reprodução
das pessoas e famílias rurais naquela microrregião.
Uma das constatações, surgidas a partir de contatos com famílias rurais e
representantes de entidades representativas da população rural, é de que as famílias que
apresentam uma história de participação e envolvimento comunitário são as que
normalmente apresentam as melhores trajetórias de reprodução, enquanto que as famílias
que apresentam maiores dificuldades para garantirem sua reprodução social são aquelas
que não só não participam, como também são descrentes em relação às demais famílias e
instituições em geral.
Entre as pessoas de famílias mais pobres, existe uma percepção de que as suas
condições de vida dependem do próprio esforço, podendo contar no máximo com a
colaboração de membros da própria família, como se pode conferir em depoimentos como
estes: “Cada um tem que se virar por si, ninguém se ajuda a não ser entre membros da
própria família” (agricultor pobre, com área de cinco hectares, relevo acidentado e
pedregoso, da localidade de Barra do Caçador/Tiradentes do Sul). “Em vez da ajuda e da
solidariedade, o que prevalece hoje entre os moradores é a inveja” (agricultor pobre, com
área de 8 ha, com declividade e presença de pedras, da região de Linha Árvore Seca/Três
Passos). Essa é a sensação que eles têm do tipo de relacionamento existente entre as
próprias famílias do meio rural e que se consagra numa visão pessimista quanto às
possibilidades de poder contar com a ajuda de seus vizinhos, em sua maioria com as
mesmas dificuldades para garantir a sobrevivência.
Essas mesmas pessoas também manifestam um sentimento de descrença nas
instituições e organizações, como se pode ver em depoimentos como estes: “O sindicato só
tem interesse na anuidade sindical; para ter acesso a qualquer financiamento do Pronaf
precisa de um projeto que é feito pelo sindicato, mas só para quem é associado e está em
dia com a anuidade; se a gente não se associar ou não conseguir pagar a anuidade não
205
consegue obter qualquer tipo de financiamento” (agricultor pobre, área de 8 ha em Baixo
Herval Novo/Três Passos). “Participo cada vez menos de eventos que acontecem na
comunidade, como bailes, festas, reuniões, etc., não sou sócio de nenhuma cooperativa e só
sou sócio do sindicato por ter sido forçado a me associar para ter acesso a certas linhas de
financiamento; se não fosse isso, certamente o número de sócios do sindicato seria muito
menor; a prefeitura só presta serviço para parentes ou amigos” (agricultor pobre, área de
13,5 ha, dos quais só oito aproveitáveis produtivamente e, assim mesmo, só com tração
animal, da Cabeceira do Lara/Esperança do Sul). “Conforme o tempo passa é menor a
solidariedade entre as pessoas; cada um tem que se virar por si, contando no máximo com a
ajuda de membros da própria família; os mais pobres têm dificuldades para entrar nos
grupos Prorenda, por exemplo, e os que conseguem entrar num grupo reclamam porque
precisam participar em muitas reuniões” (agricultor pobre com área de 7 ha na Linha
Árvore Seca/Três Passos).
Ainda no campo das constatações, percebe-se nesses depoimentos que a
capacidade de cooperação e colaboração dessas pessoas ou famílias, entre si e com outras
pessoas e organizações, é muito baixa e, por conseqüência, é baixo o nível de confiança,
reciprocidade, ajuda mútua, solidariedade e cooperação. Pessoas, famílias e até mesmo
comunidades com auto-estima debilitada sentem-se impotentes para reagir coletivamente e
de forma organizada, a partir de iniciativas próprias, para reverter a situação com a qual se
defrontam, sendo mais comum cada qual pensar nos seus problemas e buscar soluções na
base do “cada um tem que se virar por si”. Em função disso, têm uma fraca participação
em clubes e associações locais que tendem a fortalecer os laços sociais no interior da
comunidade (clube de mães, escola, igreja, salão comunitário, etc.).
Também é frágil o engajamento em organizações que poderiam potencializar a
ligação das famílias com o Estado, o mercado e outras associações civis, como é o caso das
cooperativas e dos sindicatos, nas quais a participação, quando existe, não é voluntária e
sim vista como uma imposição ou uma obrigação. De outro lado, muitas dessas famílias
têm uma percepção de que elas é que estão sendo isoladas, tanto pelos demais membros da
comunidade, como pelas organizações que ou estão mais preocupadas com a sua própria
reprodução econômica (caso das anuidades do sindicato), ou segmentam sua ação para
privilegiar certos grupos sociais e não outros (caso das cooperativas que segregam por tipo
de produções e das prefeituras que atendem mais as demandas de parentes, amigos ou os
que estão em melhores condições de vida).
206
Já entre as famílias que conseguem manter um nível de reprodução um pouco
mais elevado, há um maior grau de confiança nas organizações, muito embora também
entre esse público se manifeste uma tendência ao individualismo e personalismo no interior
das comunidades. Muitas das pessoas entrevistadas explicam a situação familiar como
resultado dos atributos da família, com destaque para a capacidade e a predisposição ao
trabalho, e isso pode ser conferido em afirmações como estas: “Para sobrar alguma coisa, a
gente tem que dar duro na propriedade, pois ela não anda sozinha... o que explica o sucesso
ou o fracasso não é a raça ou religião e sim o trabalho... para tocar o negócio só podemos
contar com o esforço e conhecimento próprios” (agricultor remediado, 18 ha, Linha Árvore
Seca/Três Passos).
Ainda que esse público tenha menos restrições à participação e até reconheça que
é importante manter boas relações com vizinhos e participar mais ativamente, tanto nas
organizações da comunidade como nas instituições de representação política e econômica,
prevalece a crença de que o êxito ou fracasso depende essencialmente do esforço e
dedicação dos membros da família e, para alguns, do esforço e dedicação individual do
agricultor. Esse tipo de percepção faz com que muitos dos que estão em condições sócioeconômicas mais favoráveis expliquem as crescentes dificuldades de reprodução como
resultado da falta de interesse e de vontade de trabalhar dos membros das famílias mais
pobres.
Na fala de um dirigente sindical da microrregião, os que mais participam são
aqueles que estão em situação econômico-financeira intermediária, já que os mais ricos não
participam porque não precisam ou não dependem das instituições; e os mais pobres,
porque não vislumbram muitas chances de melhorar de vida pela participação mais ativa
no movimento social em geral e no movimento sindical em particular. O próprio sindicato,
na opinião desse dirigente, não consegue oferecer alternativas para os mais pobres, que
normalmente estão localizados em regiões que apresentam condições desfavoráveis de solo
e de relevo, sendo comum ouvir-se de dirigentes sindicais a preocupação com o desânimo e
a baixa auto-estima dos agricultores, particularmente daqueles que estão em situação mais
desfavorável.
Em síntese, as observações empíricas permitem constatar que boa parte das
famílias que apresentam melhores condições de vida tem uma participação mais intensa
nas organizações e associações da comunidade (sociais, culturais, religiosas e desportivas),
não apenas como membros, mas em muitos casos como dirigentes. Também participam de
207
entidades ou associações ligadas a atividades produtivas (associações de produtores de
leite, de suínos, de hortifrutigranjeiros, etc.), além de manterem presença destacada no
sindicato e em cooperativas agrícolas (grãos, leite) e de crédito. Outros ainda participam
ativamente em comissões municipais, como conselhos de agropecuária, conselhos de
desenvolvimento, comissões de bacias hidrográficas e associações locais de gestão do uso
da água de poços artesianos.
A constatação de que existe uma associação entre a maior ou menor participação e
envolvimento associativo das famílias com a composição de estratégias que garantem
melhores ou piores condições de vida, no entanto, é insuficiente para explicar a existência
e, em particular, a possibilidade de construção de capital social, sendo necessário ir além
das opiniões manifestadas para perceber se as condições de vida da população local podem
ser explicadas pela quantidade e qualidade de sua vida associativa e pelas normas sociais
que derivam deste seu envolvimento social.
Uma das situações observadas na microrregião de Três Passos, que pode
confirmar a existência de uma relação de causalidade entre uma vida comunitária mais
intensa, o acesso a ativos de capital e a atores sociais estratégicos e as melhores condições
de vida das pessoas e famílias envolvidas é a que se refere ao surgimento de pequenas
cooperativas locais de produtores de leite como resultado do envolvimento de famílias,
inicialmente na formação de grupos de agricultores para barganhar preço melhor para seus
produtos e, num segundo momento, para tornar a produção de leite dos pequenos
agricultores menos dependente dos grupos econômicos tradicionais que controlavam a
aquisição desta matéria-prima naquela região, que resultou na constituição da Central
Celeiro de Cooperativas Ltda – CCCL -, uma central de seis pequenas cooperativas de
produtores dos municípios de Três Passos, Esperança do Sul, Bom Progresso e Tenente
Portela. Muitos representantes de entidades que atuam na microrregião reconhecem que
essas cooperativas surgiram como resultado do esforço dos agricultores.
Pode-se dizer que este é um caso típico de construção de capital social por
algumas relações evidentes que ele gerou. Muitas famílias de agricultores se defrontavam
com problemas de relacionamento com o mercado em função da política das empresas
compradoras de leite que atuavam na região (Elegê e Parmalat). Para pressionar o aumento
da escala de produção dos produtores, a política das empresas foi premiar com preços mais
elevados aqueles que entregavam maiores quantidades de produto e, ao mesmo tempo,
ameaçar os produtores de pequena escala a não mais receber a sua produção diária.
208
Muitos dos que produziam menos de trinta litros diários e outros que buscavam
formas de melhorar os preços para o leite decidiram buscar soluções de forma organizada e
coletiva e daí surgiram os grupos de famílias para a venda de leite em comum. Com este
procedimento os produtores de pequena escala conseguiram não apenas continuar tendo
acesso ao mercado, como também obter um preço melhor para o seu produto. As empresas
então decidiram suspender o recebimento da produção de vários produtores no nome de
apenas um deles, inviabilizando por conseqüência a existência dos grupos. Além de manter
a exigência de aumento do volume de produção por produtor e remunerar com preços
diferenciados os produtores de maior escala, as empresas também passaram a exigir
investimentos para melhorar a conservação do produto nas propriedades, exigência que
tornaria inviável a permanência de muitas famílias na atividade.
O estoque de capital social acumulado com a experiência de associativismo
vivenciada nos grupos de venda em comum torna-se, então, o ponto de partida para
algumas dessas famílias buscarem o enfrentamento às novas imposições do mercado.
Articulados entre si buscaram o apoio de outros parceiros para construir soluções, com
destaque para os sindicatos de trabalhadores rurais e os técnicos dos escritórios municipais
da Emater da região. Com este engajamento, o movimento conseguiu atrair mais famílias
rurais e, aos poucos, agregar novos parceiros estatais no âmbito municipal e estadual. O
resultado foi a constituição de pequenas cooperativas, por meio das quais as famílias
passaram a ter um novo tipo de relacionamento não apenas com o mercado, mas também
com segmentos da administração pública municipal e estadual e das entidades sindicais.
Do exercício da solidariedade e da cooperação, do fortalecimento das relações de confiança
e de ajuda mútua, a experiência resultou no aumento de capital social, a ponto de
oportunizar a mudança da própria inserção social de um conjunto de famílias no processo
de desenvolvimento local.
A reação dos agricultores gerou e estreitou laços de solidariedade não apenas entre
as famílias que se sentiam ameaçadas de exclusão, conseguindo envolver ainda um
conjunto de atores locais, com destaque para o movimento sindical dos trabalhadores rurais
e o Poder Público local e estadual. Ao transformar laços sociais em ativos de capital, este
tipo de ação oportunizou uma mudança concreta no tipo de relacionamento entre famílias e
mercado e, neste sentido, ela se transformou em fonte de poder.
Este é o sentido da ação emancipatória destacado por Bebbington (1999), ou seja,
os laços de solidariedade e de cooperação transformam-se em ativos de capital social que
209
se tornam estímulos para a ação transformadora, independentemente se seus resultados
serão bem-sucedidos ou não. Estes laços de solidariedade e de cooperação, portanto,
somente se constituem como capital social se forem transformados em ativos ou trunfos
para a ação emancipatória ou
transformadora das famílias, grupos ou comunidades,
legítimos proprietários ou detentores destes ativos ou trunfos.
A questão central, portanto, não se refere apenas ao fato de que, a partir de uma
atividade ou movimento, foi possível estabelecer laços de solidariedade e de cooperação,
mas sim que esses laços de solidariedade e cooperação foram transformados em capital
social, na medida em que permitiram uma ação coletiva dos produtores e suas
representações que alterou a relação com o mercado, com o Poder Público e com
organizações da sociedade civil.
Conclusões
A abordagem que privilegia a análise das estratégias de reprodução das famílias
rurais, a partir do acesso e combinação de diferentes ativos de capital, contribui para
alargar o horizonte dos estudos empíricos sobre desenvolvimento rural local, pois inclui
como público-alvo não apenas as famílias plenamente integradas aos mercados agrícolas
tradicionais, mas também as famílias que montam suas estratégias de reprodução com base
em atividades agropecuárias e atividades não-agrícolas, famílias cujas estratégias não têm
nenhuma relação com atividades agrícolas propriamente ditas e até mesmo famílias que
montam suas estratégias rurais para deixarem de ser rurais pela via da migração total.
Mesmo sendo uma microrregião com forte predominância da agricultura, cujos
sistemas de produção são conduzidos, em quase sua totalidade, por unidades familiares, os
dados levantados na microrregião de Três Passos/RS indicam que poucas das famílias
locais vivem exclusivamente de rendas obtidas com atividades agropecuárias. Isso indica
que a análise da realidade local deve incluir não apenas o leque de atividades que as
famílias ou seus membros estão incorporando em suas estratégias de reprodução, mas
também os vários recursos de que elas lançam mão para garantir a realização dessas suas
estratégias de reprodução em busca da manutenção e melhoria das suas condições de vida.
A abordagem proposta por Bebbington, neste sentido, é mais abrangente,
permitindo avaliar as distintas estratégias das famílias rurais da região, em função do
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acesso que elas conseguem ter a um conjunto diferenciado de ativos de capital que
ultrapassam os meros recursos naturais, materiais e humanos. Mesmo para estratégias de
reprodução centradas na exploração agropecuária, os tipos de ativos desempenham
diferentes papéis e, em alguns casos, notadamente quando as famílias precisam exercer o
seu poder de pressão para conseguir algo em seu favor, o acesso a ativos de capital social e
capital cultural podem ser mais importantes do que o mero acesso à terra e outros meios de
produção.
Mais importante ainda do que destacar tipos de ativos que são mais ou menos
significativos para as famílias é perceber que alguns deles contribuem mais para o
desenvolvimento de ações tipicamente instrumentais e é normalmente neles que se pensa
quando se analisa a situação das famílias a partir, fundamentalmente, das suas atividades
produtivas numa perspectiva meramente econômica, enquanto outros tipos de ativos
também contribuem para dar significado à vida das pessoas, além de constituírem-se em
fontes de poder e de emancipação. Além de normalmente serem acessados por grupos de
famílias nas comunidades onde elas convivem e não de forma individual, esses ativos têm
a ver com processos de formação e capacitação das pessoas (capital humano) e constituição
de redes sociais e valores coletivos (capital social e cultural), fortalecendo a capacidade de
luta e resistência social e de mudança das relações que elas sustentam com atores das
esferas do mercado, do Estado e da sociedade civil.
Referências
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viability, rural livelihoods and poverty in the Andes. London: IIED-DFID, Policies that
work for sustainable agriculture and regenerating rural economies, January, 1999, 54 p.
BEBBINGTON, A.; ROJAS, R.; HINOSOJA, L. (Coords) El programa de cofinanciamiento de Holanda y sus contribuiciones al desarrollo rural en las zonas altas de
Peru y Bolivia. Informe de pesquisa. Boulder Colorado, September 2002, 206 p.
FOX, J. “How does civil society thicken? The political construction of social capital in
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211
NARAYAN and PRITCHETT.
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capital in rural Tanzania”. World Bank, Policy Research Working Paper 1796, July 1997.
40 p.
SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.