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FALAR DO QUE SE GOSTA
Para sempre é sempre por um triz
Chico Buarque de Hollanda
Em “In vino veritas”, Soren Kierkegaard sugere que o amor é, de certo modo,
um assunto não pensável. No fundo, o que o dinamarquês estava a pedir era a categoria
do inconsciente psicológico, do inexplicável sobre o qual o amor sustenta as suas mais
determinadas justificações, categoria essa que só haveria de ser intuída alguns anos mais
tarde. De qualquer maneira, “In vino veritas” é uma rescrita (ou uma recordação, para
falarmos de um modo mais kierkegaardiano) de “O banquete” de Platão, texto
fundamental e mítico, no qual o pensador ateniense debate, precisamente, a tensão entre
a vontade que a filosofia tem de sistematizar a diversidade de fenómenos num “mesmo”
universal e um sentimento como o amor, cuja definição parte da evidência do
“diferente”: amar é aceitar ser invadido pela alteridade. Claro que, sendo a Grécia antiga
o momento de descoberta apaixonada das virtudes da filosofia, Platão não poderia ter
chegado ao mesmo grau de dúvida de Kierkegaard, mas como era um dramaturgo
excepcional (numa sociedade de dramaturgos excepcionais), o seu diálogo teórico tem
uma reserva de ambiguidade e ironia assinaláveis que o tornam um prazer de leitura
neste mesmo presente em que escrevemos.
Esse desejo de tudo reconduzir ao “mesmo” (de que nós somos intactos
herdeiros, basta pensar na ambição que a física hodierna acalenta de conseguir um dia
encontrar uma explicação unitária para toda a complexidade do universo) é desde logo
sinalizado na parte inicial do texto platónico, quando Sócrates propõe a Aristodemo:
“Vamos virar às avessas o provérbio e dizer que “aos jantares de um homem de bem
aparecem os bons espontaneamente”, o que constitui provavelmente uma improvisação
a partir de um conhecido provérbio da época no qual se advogava que “as pessoas de
bem vão espontaneamente aos jantares dos homens vis” (esta tradução e consequente
comentário são de autoria de Maria Teresa de Schiappa de Azevedo, que sugere que
aquela liberdade de Sócrates se pode também referir a um outro provérbio). Ou seja,
Sócrates acredita que a filosofia pode refundar as ligações conviviais numa unidade
ética. Daí até ao amor, o caminho não será muito extenso.
Platão assumiu, claro está, a figura do caminho (metáfora que permanece
severamente actual). O que mais envelheceu no seu discurso terá sido o retrato que
desse caminho ele deu: linearidade, univocidade, movimento ascensional, características
que o labirinto da História humana já pulverizou em irrisão. No entanto, temos de
primeiro aludir a esta ambição teórica/didáctica de Platão.
O “banquete” que intitula o texto refere-se à reunião festiva, no fim do século V
a.c., de um conjunto de notáveis atenienses, dispostos a discutirem o sentido do amor. O
registo escrito pretende ser uma sua narrativa depurada e rigorosa, ou seja, um acto de
sistematização que se opõe à ideia feita de que quem conta um conto acrescenta um
ponto.
Até chegar a vez do discurso de Sócrates, cada um dos participantes exibe uma
compreensão incompleta do conceito em debate. Esperamos que Platão nos perdoe, mas
pensamos que a cada uma dessas perspectivas facciosas corresponde uma variedade de
preferência sexual, e que essa é em parte a limitação que corrompe cada discurso.
Por exemplo, Fedro, a quem se deve a escolha do tema do simpósio, teria
certamente o gosto da orgia: a sua evocação de uma sociedade onde toda a gente se
amasse entre si não passa de uma utopia sem rigor.
Já Pausânias defende a perspectiva do homossexual militante (a documentada
diferença de cultura com que essa orientação sexual era vivida na época deveria ser
suficiente para impedir a tese de que a sua vivência prática é inevitavelmente sórdida).
O “mesmo” de Pausânias é, portanto, de inspiração erótica (o que o leva a uma
misoginia que nada tem a ver com homossexualidade), mas, paradoxalmente, baseia a
sua superioridade ética na ideia infantil de constância de carácter (segundo ele, deve
amar-se o espírito porque este, ao contrário do corpo, não muda). Dito de outro modo,
este orador não intuiu a já mencionada ideia de caminho espiritual que qualquer amante,
seja qual tenha sido a modalidade do seu afecto, imediatamente reconhece como
fazendo parte intrínseca de uma experiência amorosa.
Em sua (aparente) oposição, o médico Erixímaco representa o papel do
heterossexual convicto, o que o leva a fazer extravasar o conceito para fora do humano:
a natureza inteira é vista como uma dialéctica amorosa na qual os contrários se
interpenetram continuamente. O problema desta fantasia matemática é que, ao contrário
da mundividência de um Heraclito, Erixímaco defende que o “mesmo” anula o
“diferente” (o casal anula a individualidade dos seres que o compõem). Em termos
teóricos, o homem de ciência está enredado no mesmo tipo de estatismo infértil dos
discursantes que o precederam.
O grande Aristófanes vem trazer, no belíssimo e célebre mito que decide narrar,
a perspectiva do bissexual. Ora, a ideia de que cada ser humano foi, no passado, um
duplo ser (masculino, feminino ou andrógino) e no futuro pode vir a ser reduzido a meio
ser (condenado a andar ao pé-coxinho), volta a colocar o amor fora do âmbito
especificamente humano (ou então dá-lhe uma tonalidade experimental). Por outro lado,
esse mito torna-o convicto de que o “mesmo”, na verdade, nunca se realiza no presente
e só pode funcionar enquanto nostalgia ou enquanto quimera. Não é por acaso que ele
confessa que hoje em dia poucos conseguem encontrar o seu amor ideal (exactamente o
que nós dizemos hoje em dia).
Por fim, Ágaton, subtilmente posto a discursar depois do comediógrafo, assume
o papel do efeminado, confundindo a essência do amor com uma poética delico-doce.
Apesar do seu esforço especificamente filosófico (encontrar a natureza do conceito a
despeito das suas modalidades), o que ele consegue é nada mais que um elogio.
Sócrates faz-lhe, de imediato, esse reparo (que ecoa a desconfiança de Platão perante
aquilo que ele supunha ser um poeta).
A função de Sócrates no diálogo é muito clara. Ele vem centrar o discurso no
âmbito e na dimensão do humano. O simples facto de defender que a teoria que está a
transmitir não é da sua autoria, mas sim de uma tal Diotima de Mantineia, desfaz de
imediato a arrogância cultural da argumentação de Pausânias: Diotima é uma mulher e,
ainda por cima, estrangeira. A clarificação conceptual que ele de súbito impõe, resulta
da evocação do elemento “tempo”, até então ausente dos discursos. Sócrates defende
que o que caracteriza o amor não é um conjunto de epítetos, não é uma das suas
modalidades, nem uma maior ou menor convencionalidade ética, mas o seu
funcionamento enquanto carência virada para o futuro. Confundindo-se com o desejo de
uma perpetuidade para-divina (seja pela geração de filhos, seja pela elaboração de obras
intelectuais), o amor define-se pela vontade de que o seu “mesmo” seja de ordem
“temporal”. De maneira bastante desajeitada, Sócrates alude ao papel da relação
duradoura (não necessariamente a relação sentimental, phília é aqui entendida no
sentido mais amplo possível) enquanto estratégia de superação do sentimento de
precariedade. É o tempo, ao mesmo tempo devir e memória (diferente e mesmo), que
confere a unidade ao amor (criando aquela sensação de “eterna continuidade da vida” de
que mais tarde falará Kierkegaard).
De resto, não vale a pena perder demasiado sono com a célebre fusão platónica
entre os conceitos de belo, bom e verdadeiro. As palavras têm um grau de amplitude
suficiente para as podermos tresler na contemporaneidade com vigor renovado: belo não
significa agradável, bom não se confunde com a moral convencional, verdadeiro não
traveste necessariamente o que deve permanecer na esfera do subjectivo. A fusão
permanece actual de acordo com a generosidade do hermeneuta. E, ainda por cima, o
que Platão afirma acerca da beleza só ser cognoscível por intermédio do amor é uma
pura verdade de romancista: nós não amamos obrigatoriamente aquilo que os sentidos
ou a razão qualificam como sendo belo, mas encontramos beleza em tudo aquilo que
aprendemos a amar.
Já não haverá, porventura, igual grandeza semântica na hierarquia que o texto
estabelece entre as obras do espírito e as obras do corpo (se bem que ainda hoje alguns
intelectuais defendam que a importância do seu trabalho os impede de gerar filhos).
Será esta a dimensão mais canónica do legado de Platão, mas é também, claro, aquela
que a história do pensamento mais duramente criticou. Acima de tudo, defendê-la como
património ideológico universal numa época em que a cultura do corpo está vibrante e
as virtudes do intelecto são essencialmente valorizadas como factores de diferenciação
social, é uma anedota que o próprio filósofo se divertiria a contar, caso pudesse fazer
turismo no mundo contemporâneo.
De qualquer maneira, Platão trabalhou a dramaturgia de “O banquete” com o
mesmo tipo de humor distanciado que podemos encontrar, em pleno século XX, nas
obras dos cineastas de texto, como Jean-Marie Straub e Danielle Huillet ou Manoel de
Oliveira. Não haverá uma profunda subtileza de observador da vida no facto de Ágaton,
o homem efeminado, ser o amante daquele Pausânias cujo discurso celebra a virilidade
sem mácula? Ou na circunstância da prédica de Erixímaco poder ser entendida como
mera tentativa de cura dos soluços que atacam Aristófanes (tal ironia polissémica
poderia perfeitamente ser explorada numa encenação teatral)? Mais extraordinária ainda
é a entrega do mito lírico do homem duplo à fala de Aristófanes, personificação
ateniense do sarcasmo, ao mesmo tempo que o tinge de tonalidades de euforia maldita,
quando o associa a um outro mito bem conhecido, aquele em que Hefesto apanha
Afrodite, sua mulher, e Ares, em flagrante delito sexual. E depois do discurso
categórico de Sócrates, surge um seu apaixonado ruidoso, Alcibíades, que faz uma cena
digna de telenovela, pondo parcialmente em causa a seriedade da própria teoria central
que o livro pretende estabelecer. Maria Gabriela Llansol dizia que o começo de um livro
é precioso. Ora, o fim de um livro não será menos inocente.
Não queremos com isto defender que Platão tinha dúvidas sobre a sua ideologia.
De modo algum. Mas sabemos o quanto o valor de um livro se estabelece no trânsito
algo caótico entre consciente e inconsciente, e por isso pressentimos que o embate da
filosofia com o teatro que perturba “O banquete” é que dá a esse texto a sua profunda e
milenar beleza.
Notável enquanto arte da variação, o banquete de Kierkegaard empurra o tema
da durabilidade para fora de si mesmo. O casamento, a resposta burguesa e religiosa à
concepção de amor de Diotima de Mantineia, tem de ser abordado num texto outro, na
medida em que ele representa um projecto ético da existência que transcende o estádio
em que se comprazem os estetas. Não há nenhum Sócrates em “In vino veritas”. Do
jovem que não quer amar ao sedutor que não se quer comprometer, nenhum dos
discursantes consegue produzir um discurso peremptório. O que não constitui,
necessariamente, um passo em frente.
Ora, o texto platónico é, acima de tudo, uma apologia de Sócrates. Este terá sido,
naturalmente, um produto da sua sociedade e do seu período histórico. No entanto,
segundo todos os relatos que nos chegaram, foi um homem excepcional nos termos da
própria cultura que o gerou. O simpósio dá dele uma imagem muito concreta. Por um
lado, descreve-o em termos de uma inequívoca fealdade exterior. Fealdade do corpo,
sim, mas, acima de tudo, negligência das convenções sociais: Sócrates era rude, andava
mal arranjado, alheava-se das regras mais básicas da convivialidade. Ao mesmo tempo,
era um indivíduo que deslumbrava por causa da beleza e da força da sua vida interior.
Diz-se em “O banquete” que Sócrates se servia das palavras para obter aquilo
que a música traz: a necessidade dos deuses. Esta contemplação do divino dentro de um
homem não é mais do que a capacidade assinalável que o cérebro tem de intuir o
infinito (e outras ideias com este relacionáveis). Repare-se: a boca também conhece o
anseio, o sexo também conhece o amor, os músculos também conhecem a depressão.
Mas, a não ser o cérebro, nenhum órgão tem o poder de contemplar a ausência de limite
que caracteriza algumas ideias. Não sabemos ao certo o que isso significa (a nós parecenos que a cultura é uma mutação hiperbólica), mas compreendemos o seu poder de
sedução e o prestígio que o espírito granjeou a despeito do maior imediatismo da
atracção física.
Simultaneamente, a intelectualidade do mestre da maiêutica distinguia-se pela
resistência à vida exterior. Sócrates nunca ficava embriagado (por mais que ingerisse
álcool), resistia como ninguém às honrarias mundanas, às ameaças sociais, às agruras da
guerra, à própria promessa de prazer dos jovens que por ele se apaixonavam. Haverá
com certeza uma dimensão de lenda nesta hagiografia, mas a verdade é que a
intransigência moral deste indivíduo terá criado, naqueles que o observaram, a ilusão de
que a vida espiritual seria de algum modo independente da vida material (o que, em
consequência, faria dela a dimensão mais relevante da existência, a verdadeira
existência).
Mais do que uma teoria sobre o amor, “O banquete” é um texto que mostra
como o amor por um homem extraordinário comprometeu a evolução de todo o
pensamento teórico da humanidade. Algo de semelhante se terá passado em torno de
Cristo, de novo uma mente sublime e um corpo a ela totalmente submetido. Sócrates
não foi um grande amado apenas na sua época (a cicuta terá sido apenas a expressão
mais plena dessa embriaguez). Ainda hoje continuamos disponíveis para preterir o
corpo do bailarino, a sagacidade do negociante, a estratégia do político ou o
brilhantismo do académico a favor do mito de uma beleza espiritual inconsútil.
Sócrates era tão sábio que afirmava nada saber a não ser de amor. Queria com
isso dizer que a carência de que todos somos feitos nunca pode, afinal, ser satisfeita.
Talvez fosse sobretudo um homem com expectativas elevadas em relação ao poder da
conversação. Se o âmbar do seu discípulo o prendeu na imagem tendenciosa dos livros,
teremos nós de o libertar, conversando com ele de igual para igual.