a estadia dos estudantes estrangeiros falantes não nativos

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a estadia dos estudantes estrangeiros falantes não nativos
CENTRO UNIVERSITÁRIO ADVENTISTA DE SÃO PAULO
CAMPUS ENGENHEIRO COELHO
CURSO DE TRADUTOR E INTERPRETE
WANDA WOLSFELT ARMANDE
A ESTADIA DOS ESTUDANTES ESTRANGEIROS FALANTES
NÃO NATIVOS DA LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL:
UMA FORMA DE TRADUÇÃO
ENGENHEIRO COELHO
2012
WANDA WOLSFELT ARMANDE
A ESTADIA DOS ESTUDANTES ESTRANGEIROS FALANTES
NÃO NATIVOS DA LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL:
UMA FORMA DE TRADUÇÃO
Trabalho de Conclusão de Curso do Centro
Universitário Adventista de São Paulo Campus Engenheiro Coelho do curso
Tradutor e Intérprete, sob orientação do prof.
Ms. Neumar de Lima.
ENGENHEIRO COELHO
2012
Trabalho de Conclusão de Curso do Centro Universitário Adventista de São Paulo,
do curso de Tradutor e Intérprete apresentado e aprovado em 18 de Novembro de
2012.
_________________________________________________
Orientador: Prof. Ms.Neumar de Lima.
__________________________________________________________
Segunda leitora: Profª. Drª. Ana Maria de Moura Schäffer.
Dedico este trabalho Àquele que é o doador da vida, meu
escudo e minha fortaleza, o Senhor Jesus, aos meus pais e
irmãos que sempre estiveram me apoiando. E a todos os
participantes sujeitos que foram objeto do meu estudo.
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus, meu Pai celestial que sempre está
comigo, minha fortaleza e quem, na sua misericórdia e seu amor
infinito me inspirou para o cumprimento dessa tarefa.
Agradeço aos meus pais e aos meus irmãos que me apoiaram em
meus estudos.
Agradeço ao UNASP a oportunidade dada a mim, me concedendo uma
bolsa de estudos, onde desenvolvi atividades que me ajudaram a
progredir em várias áreas que, sem dúvida, contribuíram para a minha
formação profissional.
Agradeço à professora Áurea Tieko e ao casal Rosalvo e Lourdes
Santana que foram grandes colaboradores para a minha estada no
Brasil e para o cumprimento dos meus estudos no UNASP-EC.
Agradeço aos professores que sempre me estimularam no meu
crescimento intelectual, professora Ana Maria de Moura Schäffer,
Milton Torres; Neumar de Lima; Davi Oliveira, Tania Siqueira; Tânia
Torres, Edley Matos dos Santos. Todos foram instrumentos nas mãos
de Deus para minha formação profissional.
Agradeço em especial ao meu noivo Bartolomeu Rodrigues Lima, por
estar sempre presente desde o nosso primeiro encontro e por me
incentivar
a
ir
sempre
mais
longe
nos
meus
estudos.
RESUMO
Este trabalho de pesquisa consiste em definir a estadia no Brasil do estudante
estrangeiro e sua inclusão na sociedade brasileira como uma forma de tradução ou
interpretação, baseando-se no seu processo de domínio da língua e códigos que lhe
são estrangeiros, na reconstrução dos valores sociais, ideológicos e culturais. Esses
aspectos serão comparados com o processo através do qual os tradutores e
intérpretes negociam o sentido da língua de partida e o transpõe para a língua de
chegada. Assim, o estudo envolveu estudantes estrangeiros do UNASP campus
Engenheiro Coelho que não têm a língua portuguesa como língua materna,
buscando analisar suas dificuldades comunicativas e interculturais, bem como sua
evolução nas representações socioculturais e linguísticas sujeitas à mudança
durante o processo de inclusão na sociedade brasileira. O recolhimento de dados foi
feito através de um questionário no qual os participantes responderam sobre os
déficits culturais e linguísticos experimentados durante o processo de inclusão na
sociedade brasileira. Os resultados apontaram que a estadia dos estudantes
estrangeiros não falantes nativos da língua portuguesa no Brasil é uma forma de
tradução, indicando a pertinência do estudo para estrangeiros interessados na
língua e cultura brasileiras, para professores brasileiros de língua portuguesa para
estrangeiros, no Brasil, como também para os responsáveis por programas de
intercâmbio que poderão se beneficiar das experiências vividas pelos estudantes
estrangeiros que vivem no Brasil.
Palavras chave: Estudantes Estrangeiros; Português como Língua Estrangeira;
Cultura; Tradução; Intérpretação.
ABSTRACT
This paper aims at defining the stay of foreign students in Brazil whose mother
tongue is not Portuguese as well as their inclusion in Brazilian society as a form of
translation and interpretation, basing on their process of mastering the foreign
language and culture through the reconstruction of their social, ideological and
cultural values. These aspects will be linked to the process by which translators and
interpreters negotiate meanings in the source language and transpose them into the
target language. The purpose of this research was to carry out a study with foreign
students at UNASP campus Engenheiro Coelho who do not have Portuguese as
their mother tongue in order to analyze their communication and cultural difficulties,
their development in socio-cultural and linguistic representations subject to changes
during their process of inclusion in Brazilian society. The data collection has been
done through a questionnaire in which the subjects have answered about their
cultural and communication deficits experienced during their stay until their inclusion
in Brazilian society. Our endeavor was to show that the stay of foreign students, nonnative speakers of Portuguese, in Brazil is a form of translation. This research may
also be useful to foreigners interested in Brazilian language and culture; to Brazilian
teachers teaching Portuguese to foreigners in Brazil and also to coordinators of
interchange programs that could benefit from these foreign students’ experiences in
Brazil.
Keywords: Foreign Students, Portuguese as Foreign language; Culture; Translation;
Interpretation.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................... 09
2 METODOLOGIA ................................................................................................... 12
3. O ESTUDANTE ESTRANGEIRO COMO AUTOTRADUTOR.............................
14
3.1 Extrapolando os postulados da teoria interpretativa de Seleskovitch.......
15
3.2 O processo de autotradução do estrangeiro................................................
17
3.2.1 O aspecto psicológico da autotradução do estrangeiro..........................
17
3.2.2 O aspecto linguístico da autotradução do estrangeiro............................
18
3.2.3 O aspecto cultural da autotradução do estrangeiro.................................
20
3.2.4 A reverbalização: linha de chegada do processo de autotradução do
estrangeiro............................................................................................................
22
4 INVESTIGAÇÃO DO PROCESSO DE AUTOTRADUÇÃO DO ESTRANGEIRO
NO BRASIL..............................................................................................................
24
4.1 Imagens pré-concebidas e concebidas antes e após contato com os
brasileiros e estadia no Brasil............................................................................... 24
4.2 Conhecimento prévio da língua portuguesa e conhecimento atual............
27
4.3 Estratégias de aprendizagem da língua portuguesa e principais
dificuldades de comunicação................................................................................ 29
4.4 Aculturação e homogeneização final do estrangeiro no ambiente
brasileiro.................................................................................................................. 33
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................. 36
6 REFERÊNCIAS..................................................................................................... 38
ANEXO..................................................................................................................... 40
9
1 INTRODUÇÃO
Segundo a repórter do JORNAL DA GAZETA, Sabrina Pires (2011), nos
últimos anos o número de estrangeiros que vêm cursar uma faculdade no Brasil tem
crescido. Esse fato pode ser justificado pela globalização, o desenvolvimento de
meios de transporte, a comunicação, bem como pela abertura de programas de
intercâmbios internacionais, tornando o nosso mundo uma aldeia interplanetária. A
situação do estudante estrangeiro é um tema de estudo amplo e variado. Em relação
a sua estadia, encontram-se questões diversas sobre a alteridade e sobre a aquisição
do conhecimento fora de um meio que não lhe é comum. A maioria dos estudantes
estrangeiros não perde o contato com sua terra de origem. Essa situação é possível
graças à abertura dos espaços de comunicação e de viagem que oferecem aos
imigrantes a capacidade de manter contato com sua cultura de origem,
diferentemente do passado, quando emigrar evocava um tipo de morte psíquica e
social imposta. Segundo Murphy-Lejeune (2003, p.12-13), a posição do estudante
estrangeiro difere da de um estrangeiro comum:
Ao longo do tempo, a permanência [dos estudantes] é situada entre
um turismo de curto prazo e uma imigração de longo prazo. A
preeminência do motivo profissional o aproxima do imigrante
temporário em missão, mas sua situação linguística e social é
diferente. Uma das principais diferenças entre os estudantes e outros
[imigrantes] encontra-se na flexibilidade característica da juventude
(tradução nossa). 1
É lógico que cada estudante estrangeiro tem sua história, suas motivações e
razões peculiares. Apesar disso, os estudantes estrangeiros compartilham algumas
variáveis comuns, como a decisão de sair da sua terra natal, a chegada a um novo
ambiente cultural e linguístico, a conquista de relações sociais e as transformações de
identidade exigida pelo esforço de adaptação.
1
Dans la durée, le séjour [des étudiants] se situe entre le court-terme touristique et le longterme d’une
migration durable. La prééminence du motif professionnel Le rapproche de l’expatrié, également
voyageur temporaire en mission, mais sa situation linguistique et sociale est différente. L’une des
différences principales entre les étudiants et les autres [immigrants, expatriés] réside dans la flexibilité
que confère la jeunesse.
10
Nosso trabalho tem como foco a comparação das fases de adaptação do
estrangeiro ao seu novo ambiente com os postulados da teoria interpretativa de
Seleskovitch (1978), a fim de poder definir a estadia do estrangeiro no seu novo
espaço como uma forma de tradução, e assim ampliar os conceitos dessa teoria no
sentido de que não se limite apenas aos aspectos linguísticos, mas também aos
psicológicos e culturais, pois conforme Campos (1986, P. 28) “Não se traduz afinal de
uma língua para outra, e sim de uma cultura para outra”. A pergunta de pesquisa que
norteou o estudo é se é possível definir a estadia do estudante estrangeiro até sua
inclusão no seu novo ambiente como uma forma de tradução. Um dos objetivos é
buscar uma resposta a este questionamento.
Considerando-se a transposição dos postulados da teoria interpretativa de
Seleskovitch
(1978),
a
saber,
o
processo
de
percepção-desverbalização-
reverbalização, para as fases de adaptação do estrangeiro, formulou-se a hipótese de
que a estadia do estudante estrangeiro até sua inclusão no seu novo ambiente é
também uma possível forma de tradução. Antes de buscar respostas à pergunta de
pesquisa, definimos a estadia no Brasil do estudante estrangeiro que não tem o
português como língua materna até a sua inclusão na sociedade brasileira como uma
forma de tradução ou interpretação, baseando-nos no processo de domínio da língua
e códigos que lhe são estrangeiros, na reconstrução dos valores sociais, ideológicos e
culturais. Esses aspectos foram comparados com o processo através do qual
tradutores e intérpretes negociam o sentido da língua de partida e o transpõe para a
língua de chegada..
Como objetivos específicos, discutimos o constante processo de tradução com
base num processo tríplice de autotradução de estudantes estrangeiros, caracterizado
pelos seguintes aspectos: o aspecto psicológico, o aspecto linguístico e o aspecto
cultural. Identificamos nos pressupostos teóricos da teoria interpretativa de
Seleskovitch elementos que se assemelham às fases de adaptação do estudante
estrangeiro no contexto brasileiro; com isso, pudemos confirmar as constantes
traduções no processo de adaptação do estudante estrangeiro no Brasil.
A escolha do tema foi, em primeiro lugar, uma tentativa de buscar uma nova
definição da estadia do aluno estrangeiro por meio da ampliação dos horizontes de
certos conceitos de tradução e da investigação da relevância desses conceitos à luz
da experiência de pessoas que estejam desenvolvendo suas competências em língua
11
portuguesa. Além disso, o tema constituiu uma oportunidade para verificar o que
significa conhecer um novo ambiente sociocultural, no qual o estrangeiro tem a
possibilidade de interagir e fazer trocas com brasileiros e outros estrangeiros. Cremos
que tal experiência traz benefícios pessoais e também profissionais, pois uma estadia
no Brasil é sempre enriquecedora para quem quer seja, especialmente para uma
pessoa que quer ser tradutora para a língua portuguesa como é o nosso caso.
Espera-se que a pesquisa sejabenéfica para estrangeiros interessados na
língua e cultura brasileiras, para professores brasileiros de língua portuguesa, como
também para estrangeiros em programas de intercâmbio que poderão se beneficiar
das experiências vividas no Brasil.
A pesquisa foi dividida em cinco partes: o capítulo dois dedicou-se a apresentar
a metodologia empregada na pesquisa e os procedimentos de análise do corpus das
entrevistas; no terceiro capítulo observamos de forma teórica o processo de
autotradução em três aspectos, a saber: o aspecto psicológico, o aspecto linguístico e
o aspecto cultural, a partir do olhar de pesquisadores e teóricos da área; no quarto
capítulo, trouxemos as entrevistas feitas com os estudantes estrangeiros e a análise
que desenvolvemos a partir dos objetivos da pesquisa, para tentar confirmar a nossa
hipótese. Por fim, esboçamos as nossas considerações finais, onde destacamos as
etapas de inserção do estrangeiro no seu novo ambiente assim como sua forma de
evolução na aprendizagem da língua portuguesa, já que é uma realidade vivida por
muitos.
12
2 METODOLOGIA
Desenvolveu-se a pesquisa no Unasp – Campus Engenheiro Coelho e se fez
um estudo com os estudantes estrangeiros que vivem na instituição e que chegaram
ao Brasil sem saber falar o português. Iniciamos a nossa pesquisa em busca de
autores que estudaram sobre a estadia e a posição do estrangeiro. Pesquisamos
também autores que falam de tradução e interpretação, a fim de compilar informações
ou argumentos sólidos que pudessem nos ajudar a definir a estadia do aluno
estrangeiro como uma forma de tradução. Por meio de um questionário estabelecido,
procuramos saber que imagem os estrangeiros não falantes nativos da língua
portuguesa tinham do Brasil e dos brasileiros, qual era seu conhecimento da língua
portuguesa antes de sua chegada e quais suas experiências principais relacionadas
com as dificuldades linguísticas e interculturais que enfrentariam. Procuramos avaliar
também a evolução de suas representações socioculturais e linguísticas sujeitas à
alteridade e à inclusão na sociedade brasileira durante sua estadia.
O Centro universitário Adventista de São Paulo Campus-EC acolhe estudantes
com língua, cultura e perspectivas diferentes. Nosso interesse centrou-se naqueles
que chegaram ao Brasil sem saber falar o português. Trata-se de estudantes cujas
línguas maternas são o francês, o espanhol, o inglês e o árabe. O público do nosso
estudo é constituído de quatorze alunos provindos dos seguintes países: Irlanda do
Norte, Equador, China, Estados Unidos, Romênia, Argentina, Camarões, Albânia,
Haiti, Egito. Destes, 13 são alunos do ensino superior da instituição entre 1 a 4 anos
de estadia no Brasil; um é funcionário do UNASP –EC, já formado e com 12 anos de
permanência no território brasileiro.
As perguntas do questionário foram as seguintes:
1-Que imagem você tinha do Brasil e dos brasileiros?
2-Você sabia falar português antes de sua chegada ao Brasil?
3-Quais foram suas principais dificuldades de comunicação no seu inicio no Brasil?
Pode relatar uma experiência.
4. Houve uma necessidade de você se desligar completamente da sua cultura a fim
de poder se incluir perfeitamente no sistema e na cultura brasileira?
13
5. Durante a sua aprendizagem da língua portuguesa você sempre se referiu a sua
língua mãe, comparando-a com o português?
6. As diferenças linguísticas e culturais que você notou no Brasil facilitaram ou
dificultaram a sua aprendizagem da língua portuguesa brasileira?
7. Depois de quanto tempo você conseguiu comunicar-se facilmente com os
brasileiros? Quais foram as principais mudanças na sua personalidade, e o que
aconteceu em sua mente para você conseguir comunicar-se e incluir-se na sociedade
brasileira?
8. Em comparação com a imagem que você tinha do Brasil e dos brasileiros antes
da sua chegada, qual é a sua nova percepção agora que você está morando no
Brasil?
9. Apesar das diferenças culturais e de sotaques existentes no meio do povo
brasileiro, você consegue comunicar-se com toda facilidade com qualquer brasileiro?
Depois de os questionários serem preenchidos pelos alunos estrangeiros
falantes não nativos da língua portuguesa do Unasp-ec, foi feita a tabulação dos
dados e passou-se ao processo de análise. A análise dos dados coletados ocorreu
de maneira quantitativa e comparativa. Esse procedimento justifica-se pela
necessidade de fazer uso da estatística para quantificar e garantir uma boa
interpretação dos resultados. Queremos lembrar que as respostas não foram editadas
para que se perceba as dificuldades e/ou progresso dos alunos.
Focalizamos, principalmente, o período inicial de estadia e o conhecimento básico da
língua portuguesa quando chegaram ao Brasil pela primeira vez; isto é, qual era a sua
percepção do Brasil e dos brasileiros, se sabiam falar português, pois queríamos
entender como tiveram acesso à outra língua; como se deu o processo de aquisição e
se houve algum tipo especial de dificuldades linguísticas, socioculturais e de
necessidade de desligamento de todo o complexo linguístico e cultural natal, tanto
durante a aprendizagem do português quanto no processo de estabelecimento de
relações interpessoais com os nativos antes de serem capazes de se integrar à
cultura brasileira. Com esses dados em mãos, nosso objetivo foi relacionar, mediante
extrapolação conceitual, os postulados interpretativos de Seleskovitch com as fases
de adaptação do aluno estrangeiro, e definir sua estadia como uma forma de
tradução.·.
14
3 O ESTUDANTE ESTRANGEIRO COMO AUTOTRADUTOR
Segundo Geir Campos (1986), o verbo “traduzir” vem do verbo latino traducere,
que significa “conduzir ou fazer passar de um lado para o outro”, algo como
“atravessar”. Ele acrescenta ainda que traduzir é nada mais que isto: fazer passar, de
uma língua para outra, um texto escrito na primeira delas. Quando o texto é oral,
falado, diz-se que há “interpretação”, e quem a realiza então é um “intérprete”. Todo
tradutor ou intérprete deve ter um conhecimento perfeito da língua de origem, da
cultura e das representações sociais que lhe são próprias. Por isso Goethe afirma que
quem não conhece línguas estrangeiras não sabe nada da sua própria.
O tradutor ou intérprete é aquele que traduz ou faz interpretação do significado
de uma produção oral ou escrita numa língua A para uma língua B, e que exprime o
texto original da forma mais exata possível na língua de destino. O estrangeiro
igualmente desloca-se de um primeiro espaço para chegar a outro. Nesse sentido, ele
se posiciona num processo de autotradução. Como autotradutor, ele é conhecedor de
dois ou mais idiomas, sendo a primeira língua sua língua nativa, a língua da sua terra
natal, onde cresceu ou passou a maior parte de sua vida; ou seja, a língua que
identifica a cultura à qual pertence. Sabemos que a língua é uma das características
da cultura de um povo; por isso, traduzir ou interpretar para outra língua, ou
expressar-se nela por meio da escrita ou da fala envolve grande conhecimento
linguístico e extralinguístico. Esses aspectos têm que ver com a comunicação verbal e
não verbal, com o senso de humor, gírias, piadas, costumes, atitudes e valores
sociais da sociedade à qual essa língua pertence. Durante sua estadia no Brasil, os
estudantes não falantes da língua portuguesa ocupam a posição de estrangeiro em
necessidade de autotradução.
Segundo
Bhabha
(1998),
toda
pessoa
estrangeira
passa
por
uma
transformação ou rito de passagem, durante o qual ocorrem mudanças a partir das
novas vivências culturais e psicológicas. Deduzimos, portanto, que existe a
possibilidade de transformação do estrangeiro quando este está fora do seu lugar de
origem. O deslocamento físico constitui então uma definição mínima do que significa
ser estrangeiro e do que o distingue do nativo que nunca saiu da sua terra natal.
Segundo Murphy-Lejeune (2003), o estrangeiro pode ser caracterizado como aquele
15
que deixa um primeiro espaço para chegar a um novo espaço. A autora continua
afirmando quê o estrangeiro está entre pelo menos dois espaços geográficos,
linguísticos, sociais, culturais e nacionais. Deduz-se também dessas afirmações de
Murphy-Lejeune (2003, P.22) que o estrangeiro encontra-se na mesma posição
equivalente à de um tradutor ou interprete, pois o tradutor ou intérprete está entre dois
espaços geográficos, linguísticos, sociais, culturais, nacionais.
3.1 Extrapolando os postulados da teoria interpretativa de Seleskovitch
Conforme vimos acima, o estrangeiro passa por um processo de transformação
que pode ser entendido como uma forma de autotradução. Trata-se de
transformações de identidade exigidas pelo esforço de adaptação. Antes de continuar
nossa análise, convém deixar claro que os postulados interpretativos de Seleskovitch,
que descrevemos a seguir, limitam-se apenas ao aspecto linguístico tanto da tradução
quanto da interpretação.
Com o objetivo de definir a estadia dos estudantes
estrangeiros falantes não nativos da língua portuguesa no Brasil como forma de
autotradução, extrapolarmos os postulados de Seleskovitch para outros níveis, além
do linguístico, para o cumprimento do nosso alvo de pesquisa.
Murphy-Lejeune (2003), a partir de suas pesquisas com estudantes europeus,
percebeu que a experiência do estrangeiro pode ser dividida em três fases. Nossa
proposta é cotejar essas fases com os postulados da teoria interpretativa de
Seleskovitch (1978). As definições de cada postulado encontram-se sintetizadas com
base em Pagura (2003). Observe-se a tabela a seguir:
16
Quadro1-ModeloTeórico-Comparativo Murphy-Lejeune/Seleskovitch
Fases da experiência
do estrangeiro
Os postulados da teoria interpretativa
de Seleskovitch
(1978, 1995)=
↔ PERCEPÇÃO: refere-se à apreensão
Fase de lua de mel: o estrangeiro está
do significado de uma mensagem oral ou
consciente da sua nova posição.
escrita por meio de um processo contínuo
de análise.
Inicio da fase de adaptação: o estrangeiro se
desliga da sua língua materna, da sua
cultura e do sistema governamental da sua
terra natal para abrir-se às novas
experiências linguisticas e culturais iniciando
assim o processo de aculturação e de nova
socialização.
↔ DESVERBALIZAÇÃO: corresponde ao
abandono imediato e intencional das
palavras e à retenção da representação
mental/cognitiva da mensagem (conceitos,
ideias, etc).
Homogeneização do estrangeiro no seu ↔
REVERBALIZAÇÃO:
propicia
a
novo ambiente: o estrangeiro fala uma nova produção de um novo enunciado na
língua, tem uma nova forma de pensar.
língua-alvo. Aqui o tradutor tem a
oportunidade de dar nova feição à
mensagem
compreendida
e
desverbalizada, ou seja, revestir o sentido
de nova roupagem e produzir um novo
enunciado na língua-alvo.
17
3.2 O PROCESSO DE AUTOTRADUÇÃO DO ESTRANGEIRO
O processo de autotradução será analisado sob três aspectos, a saber: o
aspecto psicológico, o aspecto linguístico e o aspecto cultural.
3.2.1 O aspecto psicológico da autotradução do estrangeiro
Murphy-Lejeune descreve a primeira fase como uma fase de lua de mel
caracterizada pelo sentimento de euforia ou encantamento que geralmente está
ligado à emoção da viagem, à alegria de conhecer uma nova terra e novas pessoas.
É uma fase geralmente curta. A autora em sua pesquisa Mobilité Internationale et
Adaptation Culturelle afirma que o primeiro elemento do processo de adaptação do
estrangeiro tem que ver com as estratégias que ele aplicará para transformar seu
sentimento de não pertença (non-appartenance) em sentimento de pertença
(appartenance) para que possa se sentir inserido na comunidade primeiramente num
sentido físico e depois social. Murphy-Lejeune (2003, P.23) comenta:
A posição temporária do estrangeiro se caracteriza pela ruptura com a
linearidade cronológica. Sua ida o separa do passado; ele é como um
“ser sem história” no seu novo ambiente. Seu futuro é um ponto de
interrogação constante, o que levanta a questão da duração da
estadia e do retorno eventual. Seu futuro está situado na
indeterminação do tempo de permanência2 (tradução nossa).
Essa primeira fase de lua de mel e de consciência de sua nova posição
descrita por Murphy-Lejeune corresponde, por meio de extrapolação conceitual, ao
primeiro postulado de Seleskovitch – a PERCEPÇÃO. Em outras palavras, o
estrangeiro, ao analisar o novo ambiente, começa a apreender o real significado de
sua estadia no país estrangeiro. Ele se torna consciente da sua posição de
estrangeiro depois de tudo que lhe parecia comumtornar-se estranho, pois deixou
para trás família, amigos, sua cidade, sua cultura, sua língua para chegar a um
2
La position temporaire de l’étranger se caractérise par la rupture avec la linéarité
chronologique... Son départ le coupe du passé, il est comme un « être sans histoire » dans son nouvel
environnement. Et son avenir est um point d’interrogation constant qui pose la question de la durée du
séjour et du retour éventuel. Son avenir se situe dans l’indétermination du temps du séjour.(MurphyLejeune, 2003:23).
18
espaço novo. Da mesma forma que um tradutor ou intérprete se depara com novos
enunciados a cada momento, exigindo dele estrita atenção e provocando-lhe muitas
vezes apreensão, essa fase representa para o estrangeiro momento de certa tensão e
ansiedade. Nesse momento, da mesma forma que o tradutor precisa recorrer a
recursos internos e externos para lidar com a situação, o estrangeiro, na fase da
percepção, deve criar novos contatos humanos para sobreviver no seu novo
ambiente.
A fase da desverbalização, conforme nosso modelo, corresponde ao inicio da
fase de adaptação do estrangeiro em que ele começa a se desligar de sua língua
materna, de sua cultura e passa a assimilar novos conceitos linguísticos e culturais,
da
mesma forma que
um
tradutor ou
intérprete,
nessa fase,
abandona
intencionalmente as palavras da língua de partida.
No entanto, há uma diferença crucial aqui que coloca uma séria limitação em
nossa comparação. No caso do tradutor, ele já possui recursos para efetuar a
reverbalização, ou seja, expressar novos enunciados na língua alvo. O estrangeiro,
porém, só está dando seus primeiros passos nesse sentido. Nessa fase, ele está
apenas iniciando a sua inserção no novo espaço. À semelhança do tradutor ou
intérprete, nessa fase ele tem consciência cognitiva de novos sentidos linguísticos e
culturais; mas, diferentemente do tradutor, faltam-lhe ainda os recursos necessários
para passar dessa fase para a fase da reverbalização. Diante desse fato, faremos
uma pausa em nossas comparações com os postulados de Seleskovitch para
discutirmos os aspectos da aprendizagem de uma língua estrangeira, não
contemplados no modelo percepção-desverbalização-reverbalização, já que se trata,
estritamente falando, de um modelo de tradução e não de aprendizagem de línguas
propriamente dita.
3.2.2 O aspecto Linguístico da autotradução do estrangeiro
Conforme discorremos acima, o estrangeiro, ao perceber sua realidade e iniciar
seu processo de desverbalização, depara-se com a barreira linguistica, a qual precisa
transpor. Assim, ele se vê obrigado a aprender um novo idioma e assim passar pelo
processo de aquisição de uma segunda língua.
19
Todo estrangeiro tem uma língua nativa, e ao inserir-se no seu novo espaço
passa por uma fase de aquisição da segunda língua, entendida por Piaget (1967), na
sua visão cognitivista-construtivista, como dependente do desenvolvimento da
inteligência humana. Nesse processo cognitivo, o estrangeiro começa a adquirir as
estruturas da língua, passa a perceber como a língua estrangeira é segmentada e
como esses segmentos são usados para representar os significados. Passa a
perceber também diferentes unidades que estruturam a língua, bem como os
princípios utilizados pelos falantes nativos para atingir objetivos e intenções
comunicativos (MCLAUGHLIN, 1987).
Nesse processo descrito acima, a tradução ocupa seu papel fundamental. Paz
(1992, P.152) afirma que enquanto aprendemos a falar, estamos aprendendo a
traduzir. Diante dessa afirmação, podemos deduzir que o estudante estrangeiro se
encontra em constante tradução mental durante a sua estadia, dando cada vez
passos mais ousados no processo de reverbalização.
Explorando o conceito de tradução, Jakobson (1992) afirma que temos três
diferentes maneiras de interpretar o signo verbal que pode ser traduzido em outros
signos da mesma língua, em outra língua, ou em outro sistema de símbolos não
verbais. Esses três tipos de tradução podem ser: a tradução intralingual, que é uma
interpretação de signos verbais por meio de outros signos da mesma língua; a
tradução interlingual, definida como a interpretação de signos verbais por meio de
alguma outra língua, e a tradução intersemiótica, uma tradução de signos verbais por
meio de um sistema de signos não verbais. Deduzimos dessas afirmações que a
tradução é considerada por alguns estudiosos linguísticos como uma estratégia ou
ferramenta que facilita a aprendizagem da língua.
Quando os alunos neófitos aprendem uma língua estrangeira, sempre tentam
achar uma equivalência com a sua língua materna a fim de poder entender ou
expressar-se, ocorrendo, assim, um processo de tradução mental (SCHÄFFER,
2000). Durante esse processo, é provável que o estudante estrangeiro enfrente
dificuldades linguísticas e culturais, dificultando seu processo de reverbalização. Ele
certamente passará por choques linguísticos e falhas na comunicação. Além disso,
ele se sentirá muitas vezes frustrado ao omitir determinadas palavras ou elementos
gramaticais necessários, ao aplicar um elemento gramatical em situações nas quais
20
seu uso é inadequado, ou ao errar usando expressões ou fórmulas não apropriadas
ao contexto social. (CORTÉS, 2002).
O estrangeiro, porém, deve ter em mente, conforme ressalta Richards (2006, P.
9), que a aprendizagem é:
Um processo gradual que demanda o uso criativo da língua e envolve
tentativas e erros. Embora os erros sejam vistos como produto natural
da aprendizagem, o objetivo final é que o aluno esteja apto a usar a
língua de forma precisa e fluente3 (tradução nossa).
Quando o estrangeiro chegar a esse nível, podemos dizer que ele já terá
rompido a barreira entre a percepção e a reverbalização, e estará em condições de
revestir de novas roupagens na língua alvo os novos significados linguísticos,
culturais e sociais que ele vinha lenta, mas seguramente percebendo e
desverbalizando em sua cognição. Assim, passada a fase de crise, à medida que o
tempo passa, o estudante estrangeiro se acostuma ao seu novo ambiente, assiste a
suas aulas de língua portuguesa, recebe influências exteriores instantaneamente e,
de maneira contínua, vive, ouve, aprende, lê, estuda a nova língua, e se torna capaz
de se expressar sem dificuldade, tanto para sua sobrevivência quanto para seu
sucesso acadêmico. Além disso, aceita e abraça as regras e a sintaxe da nova língua.
3.2.3 O aspecto cultural da autotradução do estrangeiro
De acordo com Agra (2007) em seu artigo A integração da língua e da cultura
no processo de Tradução, a cultura envolve um conjunto de ações: maneira de vestirse, escolha de alimentos e modos de comê-los, enfim todos os modos, hábitos,
pensamentos e crenças. A autora continua afirmando que os sentidos que levam ao
significado revelado por uma cultura são construídos socialmente e, para a
compreensão da construção de sentido, seja na interpretação de contextos e cenários
formados por pessoas e costumes da nossa própria cultura, ou de contextos e
cenários de culturas e línguas diversas, torna-se necessário, inicialmente, aclarar o
3
The language learning it is a gradual process than involve creative use of language and trial
and error. Although errors are a normal product of leaning the ultimate goal of learnig is to be able to
use the new language both accurately and fluently. (Richards;2006 p.9)
21
que entendemos por língua e cultura e a relação entre uma e outra. Nessa linha de
pensamento, Witherspoon (1980, P.2) afirma:
Se observarmos a cultura do ponto de vista linguístico, obtemos uma
perspectiva unilateral da cultura; se observarmos a língua do ponto de
vista cultural, obtemos uma visão unilateral da língua4 (tradução
nossa).
Pode- se deduzir dessa afirmação que, no panorama da tradução, os dois
conceitos – língua e cultura – convivem lado a lado, e a exclusão de um do outro
conduz a uma visão unilateral de ambos. Susan Bassnett (1991, P.14) ampla esse
assunto ao dizer:
A língua, então, é o coração dentro do corpo da cultura, e é da
interação entre a duas que resulta a continuação da energia-vital.
Assim, da mesma forma que o cirurgião, operando o coração, não
pode negligenciar o corpo que o envolve, o tradutor que trata o texto
em isolamento da cultura, coloca seu texto em perigo (tradução
nossa).5
Agra (2007) ainda nos faz entender que a linguagem é um código simbólico
através do qual mensagens são transmitidas e interpretadas; por outro lado, a cultura,
mais do que um código, é um cenário de composições e de orientações para o mundo
embalado em símbolos e formas simbólicas. Umberto Eco (1975, P.75) esclarece
também este ponto ao revelar que:
A cultura não é só o primeiro passo para se ser humano, isto é, para
se pode valorizar a humanidade, mas também, enquanto exercício de
intersubjetividade, o primeiro passo para a aprendizagem da
democracia, isto é para dar voz ao outro, mesmo quando ela não
ressoa a nossa. Para se ser universal ou inclusivo, isto é, para não
excluir, cabe –nos exercitar a empatia, que é a capacidade de se pôr
no lugar do outro, constantemente]. (tradução nossa).6
Chega-se, assim, à assertiva de que é com o envolvimento do aluno
estrangeiro com a sua cultura materna e com a do seu novo ambiente que se
4
If we look at culture from a linguistic point of view, we get a one-sided view of culture. If we look at
language from a cultural point of view, we get a one sided view of language. (In: Witherspoon, 1980:2)
5
Language, then, is the heart within the body of culture, and it is the interaction between the two results
in the continuation of life-energy. In the same way that the surgeon, operating on the heart, cannot
neglect the body that surrounds it, so the translator treats the text in isolation from the culture at his
peril.( In: Bassnett 1991:14)
6
The culture is not only alone the first step to be a human being, that is, to be able tovalorize humanity,
but also, as an exercise of intersubjectivity exercise, the first step to learning democracy, that is, to
giving voice to another, even when such culture does not sound like ours. In order to be universal or
inclusive, that is, not to exclude, one must exercise empathy, which is the capacity to put oneself in the
place of another, constantly.
22
desenvolve sua competência linguístico-cultural. Nesse sentido, se o estrangeiro não
se envolver com a cultura, terá dificuldades em seus relacionamentos e interações
com os nativos e também no desempenho de suas atividades acadêmicas. Vemos,
portanto, que para a construção de sentidos em suas interações com os nativos fazse necessário que o aluno estrangeiro use diferentes modos que o levem a
significações da cultura do outro.
Segundo Agra (2007), quando falamos de cultura em tradução estamos falando
de relações de significação e processos de comunicação que envolvem duas línguas,
cada uma com suas peculiaridades e hábitos diversificados, contemplando variantes
pessoais, grupais ou regionais e, às vezes, nacionais, além de inúmeros
componentes significantes da descrição linguística. Comentando esse aspecto
cultural, Umberto Eco (1975, P 36), em sua teoria da semiótica, trata a cultura como
um todo, como fenômeno de significação e comunicação. Para ele, a humanidade e a
sociedade só existem a partir do momento em que se estabelecem relações de
significação e processos de comunicação.
Tratando de maneira especial o tema da integração da cultura ao processo de
tradução, Agra (2007), num sentido mais lato, caracteriza a cultura como lugar de
conhecimento intersubjetivo que permite concretizar, com eficácia cada vez maior,
uma relação de equivalência interlingual. O autor continua afirmando que a cultura se
manifesta sempre como espaço de interculturalidade e intersubjetividade e também
como espaço de busca do outro, da alteridade perdida ou recalcada. Essas relações e
esses processos não se esgotam na língua, mas estão sempre refletidos na tradução.
A partir desse conceito, pode-se deduzir que o mesmo ocorre no processo de
autotradução linguístico-cultural do aluno estrangeiro.
3.2.4 A reverbalização: linha de chegada do processo de autotradução do
estrangeiro
Conforme já explicado, é na reverbalização que o tradutor ou intérprete tem a
oportunidade de dar uma nova feição à mensagem já compreendida, ou seja, revestir
o sentido desverbalizado de uma nova roupagem e produzir um novo enunciado na
língua-alvo. Para Murphy-Lejeune (2003), a adaptação do estudante estrangeiro –
23
comparado neste trabalho com o processo de desverbalização – envolve um
processo evolutivo múltiplo de ordem territorial, mental, linguística, relacional,
sociocultural e pessoal.
A autora continua afirmando que o estrangeiro é chamado a “movimentar-se”,
ou seja, pôr em prática as estratégias que lhe permitem modificar ou alterar alguns
comportamentos. No entanto, essa adaptação não significa mudança de identidade,
mas simplesmente assimilação do ambiente local em todos os seus aspectos, como
um camaleão que muda sua cor para estar em harmonia com o novo ambiente. O
estrangeiro, depois de algum tempo, não se sente mais frustrado, sente-se em casa,
pois já se acostumou com seu novo ambiente e fala a nova língua com fluência. É
nesse momento que ocorre a alteridade.
Dito de outra forma, é nesse momento que o aluno – muitas vezes após um
processo longo e doloroso de PERCEPÇÃO e DESVERBALIZAÇÃO – alcança a
autotradução ou “se reverbaliza”. É o momento em que o estrangeiro se veste de
nova roupagem, momento em que o outro se identifica consigo mesmo e não se limita
a ser simplesmente “outro”. Assim como o interprete que, sem perder sua língua
materna, transita livremente entre esta e a língua estrangeira, o aluno estrangeiro,
sem se desligar de sua língua e cultura natal, se traduz, ou se interpreta, a cada
momento em que precisa se relacionar com seu novo ambiente – e o faz tão
naturalmente como se estivesse em sua própria terra. Essa é a essência da
autotradução. Essa é a essência da REVERBALIZAÇÃO.
24
4 INVESTIGAÇÃO DO PROCESSO DE AUTOTRADUÇÃO DO ESTRANGEIRO NO
BRASIL
Neste capitulo, os resultados dos dados obtidos a partir das informações
reunidas se mostraram muito interessantes e são apresentados e analisados em
detalhes. Dada a grande complexidade existente referente ao tema proposto, para
melhor entendimento e discussão dos resultados, fez-se necessário, por razões
lógicas e progressivas, uma análise contextual das respectivas tabelas comparativas
sem seguir a mesma sequência colocada na introdução.
4.1 Imagens pré-concebidas e concebidas antes e após contato com os
brasileiros e estadia no Brasil
Para investigarmos esse aspecto, foi feita a seguinte pergunta: “Que imagem
você tinha do Brasil e dos brasileiros? Em comparação com a imagem que você tinha
do Brasil e dos brasileiros antes da sua chegada, qual é a sua nova percepção agora
que você está morando no Brasil?” A tabela abaixo apresenta os resultados:
25
TABELA 1-Imagens do Estrangeiro
Nacionalidade
Língua
materna
Imagem preconcebida do Brasil e
dos brasileiros antes da chegada
ao Brasil
Imagem concebida após contato
com os brasileiros logo que
chegaram ao Brasil
POSITIVA
POSITIVA
NEGATIVA
NEGATIVA
Aluno -1
Argentino
Espanhol
x
x
Aluno-2
Americano
Inglês
x
Aluno-3
Americano
Inglês
x
x
Aluno-4
Haitiano
Francês
x
x
Aluno-5
Camaronês
Francês
x
x
Aluno-6
Boliviano
Espanhol
x
x
Aluno-7
Americano
Inglês
x
x
Aluno-8
Chinês
Mandarim
x
x
Aluno-9
Egípcio
Árabe
x
x
Aluno-10
Albanês
Albanês
x
x
Aluno-11
Equatoriano
Espanhol
x
Aluno-12
Equatoriano
Espanhol
x
Aluno-13
Irlandesa do
norte
Inglês
x
Aluno-14
Romena
romeno
x
x
x
x
x
A imagem que se tem de um país e de seu povo tem influência muito
importante na integração do estrangeiro e na aprendizagem da nova língua, e,
consequentemente, nas dificuldades linguísticas ou culturais do estrangeiro. Foi por
esta razão que uma pergunta foi feita aos estudantes estrangeiros do Unasp-EC
acerca da imagem que eles tinham do Brasil e dos brasileiros antes de sua chegada.
Todos os alunos estrangeiros tinham uma boa imagem do Brasil, o que foi de grande
ajuda para todos. A esta pergunta recebemos como resposta:
Aluno 2: The quality and standard of Unasp-ec, the anterior experiences of my
friends that studied here and the climate and organization of the institute of
language where i´m working now. All were beautiful as I was expected before
arriving at Unasp. [A qualidade e o nivel de Unasp-ec, as experiênças
anteriores dos meus amigos que já estudaram aqui, o clima e a organização do
26
instituo de lingua onde eu atualmente trabalho, tudo era bonito como eu
esperava antes de eu chegar ao Unasp. (t.n)].
Aluno 5: Quando cheguei no Brasil antes de chegar ao Unasp-ec, foi para
vários lugares do Brasil, era exatamente como imaginei pessoas bonitas,
morenos, brancos negros esta mistura racial, povo bonito, pais colorido,
pessoas calorosas e receptivas, as praias lindas eu estava tão feliz .”
Aluno 11 : A imagem que tinha apenas se limitava no futebol, pois era o que
eu via mais nas propagandas brasileiras e ocasionalmente nas novelas e filmes
e achava lindo”.
De acordo com essas respostas, dá para entender que o estado de espírito de
todos era propício à recepção da nova cultura, ou seja, naqueles momentos estavam
em fase de lua-de-mel, num país novo, descobrindo uma nova terra, estando em
contato com uma nova cultura tão desejada e sonhada, assim como um noivo para
com a sua noiva.
Observemos agora essas outras experiências relatadas pelos alunos:
Aluno 7: Quando fiquei sabendo que eu precisava prestar vestibular para ter
acesso a faculdade razão pela qual veio no Brasil , e que iria escrever em
português , naquele momento esteve ciente de que era necessário eu
aprender a língua portuguesa .
Aluno 14: Teve uma situação um pouco chata que eu fui à policia federal, só
que eu me faltava um documento só . E aí eu cheguei lá e fui falar com o
policial. Ele foi muito, muito arrogante comigo, muito grosso... só que ele foi
grosso daquela maneira deles, assim, né? E aí eu me senti um lixo. E eu não
conseguia me expressar, eu queria discutir com ele, eu queria demonstrar
“olha, mas isso que você está fazendo não é... Você não poderia fazer isso. Eu
tenho direito a prorrogar meu visto, por mais que eu tenha perdido alguns dias,
você não sabe os meus motivos” e tal. Eu queria ter falado alguma coisa, só
que na hora eu não conseguia... não saía, sabe? Não conseguia. E eu saí
muito frustrada e falei “ah, se eu falasse português bem, eu teria discutido com
ele”.
Deduzimos que os alunos estudantes estrangeiros saíam da sua fase de lua de
mel, ou seja, a fase do turismo estava acabando; e devido a suas necessidades
acadêmicas e à regularização da sua estadia em terra estrangeira, todos ficaram
cientes da grande necessidade de aprendizagem da língua portuguesa a fim de
27
alcançarem os seus objetivos acadêmicos e poderem se integrar facilmente à
sociedade brasileira na qual iriam passar entre 4 a 5 anos, ou mais, como estrangeiro.
Situações como a enfrentada pelos Alunos 7 e 14 podem nos ajudar a
compreender a razão da imagem negativa concebida por quase 40% dos alunos logo
após contato com os nativos. Em outras palavras, as frustrações e os desafios
enfrentados, bem como as óbvias dificuldades linguísticas certamente exerceram
impacto psicológico negativo no início da estadia de muitos dos estrangeiros no
Brasil.
Com base no uso comparativo que fizemos com a teoria de Seleskovitch, este
momento pode ser considerado como o momento de PERCEPÇÃO, ou seja, o aluno
estrangeiro está consciente da sua nova posição – muitas vezes dolorosa –, e é a
partir desse exato momento que todos iniciam sua fase de DESVERBALIZAÇÃO, ou
seja, iniciam sua fase de adaptação: o estrangeiro se vê na obrigação de se desligar
da sua língua materna, da sua cultura e do sistema governamental da sua terra natal
para abrir-se a novas experiências linguísticas e culturais, iniciando assim o processo
de aculturação e da nova socialização. No entanto, conforme ressaltamos na seção
teórica do nosso trabalho (ver 3.2.1), o estrangeiro só está dando seus primeiros
passos no processo da desverbalização e começando a se inserir em seu novo
espaço. À semelhança do tradutor ou intérprete, nessa fase ele tem consciência
cognitiva de novos sentidos linguísticos e culturais.
O depoimento do Aluno 14 revela esse fato. Diferentemente do tradutor, porém,
faltavam-lhe ainda os recursos necessários para passar dessa fase para a fase da
revervalização. Em outras palavras, o estrangeiro não se viu em condição de se
traduzir, ou reverbalizar-se numa situação angustiante para ele, como faria se
estivesse em sua terra natal. A seção seguinte explora alguns aspectos para uma
melhor compreensão dessa fase.
4.2 Conhecimento prévio da língua portuguesa e conhecimento atual
A seguinte pergunta foi feita aos estrangeiros: Você sabia falar português antes
de sua chegada ao Brasil? Apesar das diferenças culturais e de sotaques existentes
28
no meio do povo brasileiro, você consegue comunicar-se com toda facilidade com
qualquer brasileiro?
TABELA 2- Conhecimentos Prévios e Atuais da Língua Portuguesa
CONHECIMENTO DA LINGUA
PORTUGUESA NA CHEGADA
Nacionalidade
CONHECIMENTO ATUAL DA
LINGUA PORTUGUESA E
NIVEL DE RELACIONAMENTO
COM NATIVOS
Língua
Materna
Nenhum
conhecimento
Básico
Intermediário
Avançado
Aluno -1
Argentino
Espanhol
x
x
Aluno-2
Americano
Inglês
x
x
Aluno-3
Americano
Inglês
x
x
Aluno-4
Haitiano
Francês
x
x
Aluno-5
Camaronês
Francês
x
x
Aluno-6
Boliviano
Espanhol
Aluno-7
Americano
Inglês
x
x
Aluno-8
Chinês
Mandarim
x
x
Aluno-9
Egípcio
Árabe
x
x
Aluno-10
Albanês
Albanês
x
x
Aluno-11
Equatoriano
Espanhol
Aluno-12
Equatoriano
Espanhol
x
x
Aluno-13
Irlandesa do
norte
Inglês
x
x
Aluno-14
Romena
romeno
x
x
x
x
x
x
Dentre os 14 alunos estrangeiros entrevistados, apenas 2 tinham um
conhecimento básico da língua portuguesa quando chegarem ao Brasil pela primeira
vez. O restante não tinha nenhum conhecimento da língua. De acordo com as
respostas recebidas desses alunos acima, apresentadas na tabela 2, atualmente 10
estão com um nível avançado em língua portuguesa, 4 com um nível intermediário, e
29
todos relacionando-se sem muita dificuldade com os nativos. Nossa curiosidade era
saber como esses alunos conseguiram alcançar esse progresso, que representa, de
fato,
sua
autotradução
ou
seu
processo
de
DESVERBALIZAÇÃO-
REVERBALIZAÇÃO. A seção seguinte investiga esse aspecto.
4.3 Estratégias de aprendizagem da língua portuguesa e principais dificuldades
de comunicação
Como vimos na parte teórica, sem a aprendizagem da língua portuguesa o
processo de desverbalização ficaria entravado, impedido a autotradução do
estrangeiro, ou seja, sua reverbalização. Daí a necessidade de investigarmos o
processo e o progresso da aprendizagem da língua pelo estrangeiro. Para esse fim,
as seguintes perguntas foram feitas: Durante a sua aprendizagem da língua
portuguesa, você sempre se referiu a sua língua mãe, comparando-a com o
português? Quais foram as principais mudanças na sua personalidade e que
aconteceram na sua mente para você conseguir comunicar-se e incluir-se na
sociedade brasileira? Houve uma necessidade de você se desligar completamente da
sua cultura a fim de poder se incluir perfeitamente no sistema e na cultura brasileira?
Quais foram suas principais dificuldades de comunicação no seu início no Brasil?
Pode relatar uma experiência? As diferenças linguísticas e culturais que você notou
facilitaram ou dificultaram a sua aprendizagem da língua portuguesa brasileira?
30
Tabela 3
Tabela 4
Referiu-se à cultura e língua materna
para aprender o português?
Sim
Não
Houve a necessidade de desligar-se
da cultura e língua materna?
(desverbalização)
Sim
Aluno -1
x
Aluno-2
x
Aluno-3
x
Aluno-4
x
Aluno-5
x
Aluno-6
x
Aluno-7
x
Aluno-8
x
Aluno-9
x
Aluno-10
x
Aluno-11
x
Aluno-12
x
Aluno-13
x
Aluno-14
x
Aluno -1
x
Aluno-2
x
Aluno-3
x
Aluno-4
x
Aluno-5
x
Aluno-6
x
Aluno-7
x
Aluno-8
x
Aluno-9
x
Aluno-10
x
Aluno-11
x
Aluno-12
x
Aluno-13
x
Aluno-14
x
Não
Os dados acima parecem confirmar dois pontos. Em primeiro lugar, a interface
com a língua materna. Esse fato revela a veracidade do que Schäffer (2000) observou
ao mencionar que os alunos neófitos, ao aprenderem uma língua estrangeira, sempre
tentam achar uma equivalência com a sua língua materna por meio de um processo
de
tradução
mental.
Em
segundo
lugar, fica
confirmado o
processo
de
desverbalização, já que todos expressaram a necessidade de desligar-se da cultura e
língua materna. Vejamos alguns excertos das respostas que corroboram nossa
conclusão:
31
Aluno 1: Então com certeza a minha língua materna ajudou muito. Pra leitura e
mesmo pra falar, mesmo quando eu não conhecia a palavra, eu tentava com o
português e conseguia ainda acertar às vezes, tentando falar em português; às
vezes meus amigos brasileiros ficavam espantados “nossa, mas como é que
ele tem esse vocabulário tão refinado sendo que ele está aqui há só três
meses”, por exemplo, isso já me aconteceu algumas vezes.
Aluno 13: Fiquei com medo no início. Depois, quando perdi o medo,
improvisava usando o conhecimento da minha língua materna por causa das
palavras parecidas. Mas isso no início eu não fazia, pois estava bloqueada.
Aluno 6: Devido à imagem que tinha do Brasil e da sua semelhança com a
cultura ocidental eu agia naturalmente com tudo mundo como se fosse na
minha terra.
Seguem outras respostas às perguntas mencionadas acima das tabelas 3 e 4,
seguidas de alguns comentários. Esses depoimentos nos ajudam a ver a operação
dos postulados de Seleskovitch, bem como o processo de rompimento das barreiras
linguísticas e culturais que favoreceu o processo de desverbalização-reverbalização
do estrangeiro, ou seja, sua autotradução:
Aluno 4 Quando foi comprar um cartão telefônico pra ligar pra minha mãe
dizendo que cheguei bem. Eu não conseguia falar, a mulher não conseguia me
entender, eu não conseguia entender qual era o preço do cartão. No começo
foi difícil, mas aos pouquinhos eu fui pegando o ritmo e aí eu consegui me
comunicar bem, porque eu já tinha uma base mais ou menos. Então eu
comecei a comunicar e mesmo se eu não conseguia falar muito bem, as
pessoas não conseguiam me entender muito bem, eu conseguia já entendêlas.
Aluno 5 : A gente não pode comparar a dificuldade por exemplo de alguém
que vem com uma língua não latina pra aprender o português, por exemplo,
para um alemão ou um chinês, pior ainda. Então com certeza o francês ajudou
muito. Pra leitura ajudou enormemente (...) e mesmo pra falar, mesmo quando
eu não sabia as palavras, tentava com o francês e tu conseguia ainda acertar
algumas palavras ex: Danser (francês)/Dançar , isso as vezes não dava certo
por causa das palavras semelhante de falso cognatos ex (rencontrer (Francês)
= encontrar ≠ reencontrar , então decidi não me limitar
apenas no
conhecimento da língua materna; eu precisava aprender o português com seu
vocabulário e sua sintaxe e gramática .
Vemos aqui o estrangeiro expressando seu desejo de adquirir recursos para
levar avante seu processo de autotradução e inserção na cultura brasileira.
32
Aluno 8: Eu acho que existem diferenças culturais muito grande eu chinesa
quando veio pra cá fiquei chocada com o que acontece. Pois eu me sentia
discriminada por minhas colegas do quarto por causa da minha reação com
elas em relação a seus comentários falando sempre de gente, de namorados
de maneira aberta, pois em minha cultura agente é mais reservada, mas mais
tarde entendi que é assim que é aqui mesmo. Percebi qual é o hábito delas e
passei a respeitar. Elas têm seus hábitos e nós temos o nosso hábito, então
temos que respeitar hoje estou mais tranquila psicologicamente.
Vemos aqui bem claramente a fase da percepção e a solidificação do processo
de desverbalização [distanciamento de sua cultura natal e assimilação da alteridade],
e efetivação da reverbalização – a autotradução do aluno.
Aluno 11: Toda vez a semelhança com o português é bem mais perceptível
na expressão oral do que na escrita, demorou um pouco para eu poder
identificar essa semelhança na escrita. Quando me expressava eu tentava
fazer transferência do espanhol para o português improvisando palavras, dava
certo às vezes, quando as pessoais falavam comigo eu entendia, mas
aconteceu um caso quando uma amiga me contou que estava embaraçada eu
fiquei tão surpreso por achar ela estar grávida que significa embarazada em
espanhol e por tanto hoje entendo que ela queria me dizer que estava
atravancada ou confusa. Tem palavras parecidas com o espanhol oralmente,
isso no início eu aplicava, mas, mais tarde fiquei bloqueado e precisava
aprender o significado das palavras na língua portuguesa mesma.
Fica bem claro aqui a importância da percepção como primeiro passo para
qualquer progresso no processo de autotradução.
Em suma, a análise dessas afirmações mostrou que as dificuldades vividas por
estes estudantes devem tê-los deixado numa situação de ambiguidade e confusão, ou
seja, estavam em situação de choque cultural, e que se relaciona com o período de
procura de relacionamento interpessoal. Devido à diferença cultural e apesar das
semelhanças linguísticas ou culturais existentes entre o português e outras línguas de
fontes latinas para a maioria desses estudantes entrevistados, percebeu-se que é só
com o tempo que estes podem adquirir a libertação psicológica, cultural e linguística
(a desverbalização) que faz com que eles não se refiram mais a sua cultura e língua
materna; ou seja, se desliguem da sua cultura e língua materna, aceitem a cultura
brasileira e o português e sua sintaxe do jeito que é, sem ter que toda vez se referir a
seu ambiente materno. Em outras palavras, o estrangeiro consegue se libertar das
amarras de sua cultura e língua prévias – sem que elas, evidentemente, deixem de
fazer parte de sua identidade – e “se reverbaliza” satisfatoriamente. Murphy-lejeune
33
(2003, p.86) corrobora esse ponto ao afirmar que “é somente depois de uma longa
estadia no país que o viajante pode desenvolver a automatização que faz com ele não
precise mais transitar pela sua língua nativa.”7 (tradução nossa).
De acordo com os resultados apresentados nas tabelas 3 e 4 e com base nos
depoimentos apresentados, pode-se deduzir que os estrangeiros tinham dificuldade
para compreender os nativos e de se fazer entender por eles. Contudo, para a maioria
dos estrangeiros – procedentes de países cujas línguas são o espanhol, o francês, o
inglês,, o árabe e o albanês,
-, as dificuldades de comunicação não foram tão
significativas, devido à transparência das palavras latinas. No entanto, percebeu-se
que eles enfrentaram também problemas de ordem cultural e semântica em relação
ao léxico e à sintaxe da língua portuguesa. A constatação dessas diferenças levou-os
a afirmar que não podiam se limitar à língua materna, mas precisavam se desligar
intencionalmente de tudo o que envolvia seu ambiente materno. Em outras palavras,
precisavam “se desverbalizar”; ou seja, não ficar presos à língua e cultura maternas a
fim de poderem se expressar, se comunicar e se inserir da melhor forma possível na
sociedade brasileira. Isso, de fato, é o que deve caracterizar a fase de
DESVERBALIZAÇÃO do estudante estrangeiro não falante de língua portuguesa no
Brasil.
4.4 Aculturação e homogeneização final do estrangeiro no ambiente brasileiro
Nesta última seção, vamos explorar um pouco mais o processo de aculturação
final
do
estrangeiro
no
ambiente
brasileiro,
aplicando
os
conceitos
de
homogeneização de Murphy-Lejeune (2003), explicado na seção 3.1, em comparação
com o conceito de desverbalização de Seleskovitch. Para esse fim, a seguinte
pergunta foi feita: “Depois de quanto tempo você conseguiu falar e se comunicar
facilmente com os brasileiros?” Observemos a tabela abaixo e os depoimentos que
seguem:
+
7
Ce n’est qu’en restant longtemps que le voyageur peut s’attendre à acquérir l’automatisme qui fait
qu’on ne passe plus par la langue natale (Murphy-Lejeune, 2003, P.86).
34
Tabela 6-Tempo de Aprendizagem
Nacionalidade
Língua Materna
4 – 5 meses
6-12 meses
Aluno -1
Argentino
Espanhol
x
Aluno-2
Americano
Inglês
x
Aluno-3
Americano
Inglês
x
Aluno-4
Haitiano
Francês
x
Aluno-5
Camaronês
Francês
x
Aluno-6
Boliviano
Espanhol
x
Aluno-7
Americano
Inglês
x
Aluno-8
Chinês
Mandarim
x
Aluno-9
Egípcio
Árabe
x
Aluno-10
Albanês
Albanês
x
Aluno-11
Equatoriano
Espanhol
x
Aluno-12
Equatoriano
Espanhol
x
Aluno-13
Irlandesa do
norte
Inglês
x
Aluno-14
Romena
romeno
x
x
Aluno 3: A hora que eu cheguei aqui foi meio duro, eu estava totalmente
travado, não conseguia fazer frases completas, começava de um jeito e
terminava de outro, não achava as palavras... eu fiquei muito inseguro. Mas
com o tempo foi passando. Foi fluindo melhor.
Aluno 7: Sim, eu tive dificuldade para entender as pessoas, eu às vezes
ouvia “Ela está ai”, “tá ai”. Então, “o que significava isso?”, me perguntava,
pois eu não estava entendendo e hoje eu sei que significa a mesma coisa.
Aluno 8:Uma vez fui para São Paulo e perguntei onde pega o trem e as
pessoas não me entendiam, eu acho que principalmente era por causa do
meu sotaque, porque quando a gente chega a gente sabe falar mas a gente
não sabe entoar como eles e daí tem muita dificuldade. Já estou aqui faz 3
anos e não encontro muito mais estes problemas, só de vez em quando eu
tento falar rápido mas não tenho mais muitas dificuldades como antes.
Aluno 13: Na minha terra a gente não cozinha o feijão todos os dias, eu não
me imaginava comer o feijão todos os dias e achava ruim se a minha mãe
cozinhava isso apenas 2 vezes na semana, mas desde que cheguei no Brasil
35
nunca parei de comer o feijão e isto todos os dias e hoje eu me acostumei e
não acho ruim.
Aluno 14: Demorei mais ou menos 5 meses para me comunicar. Com 3 meses
eu já entendia boa parte do que as pessoas diziam, mas eu tinha um certo
“receio” de começar a falar e ninguém me entender. Mas com o passar do
tempo fui me soltando, pois as próprias atividades do dia a dia me “forçavam” a
falar em português, e graças a tais atividades comecei a me comunicar melhor.
Quando comparamos a tabela 6 e esses depoimentos com as tabelas e
depoimentos anteriores, percebe-se que o aluno estrangeiro que chegou ao Brasil
sem saber falar português, depois de certo tempo, ou seja, 4, 5, 6 ou 12 meses,
conseguiu se comunicar com os nativos e se acostumou a seu novo ambiente. Esses
dados revelam um processo bem sucedido de homogeneização ou reverbalização do
estrangeiro no Brasil.
Com a efetivação da fase de desverbalização, percebe-se que o aluno
estrangeiro passa a ter uma nova forma de pensar, e começa a produzir novos
enunciados na língua-alvo. E à medida que o tempo passa, melhora sua forma de
expressão escrita e oral graças às suas atividades acadêmicas que lhe obrigam a
exercitar-se em língua portuguesa. Além disso, passa a respeitar as regras, hábitos e
costumes brasileiros. Esse fato fica comprovado pelo depoimento do aluno 13 ao
afirmar que se conformou a comer feijão todos os dias; e também pelo depoimento do
aluno 8 quando afirma estar mais tranquilo psicologicamente por aceitar e respeitar
hábitos dos nativos que o incomodavam antes, mas que hoje não o importunam mais.
É gratificante ver a experiência desses estrangeiros que, sem perder sua língua
materna e seus laços com sua cultura de origem, conseguem transitar livremente na
língua estrangeira. Reiterando o que já foi expresso na seção teórica deste trabalho, o
estrangeiro passa a se traduzir, ou a se interpretar, a cada momento em que precisa
se relacionar com seu novo ambiente – e o faz tão naturalmente como se estivesse
em sua própria terra. Essa é a essência da autotradução e consequentemente da
REVERBALIZAÇÃO.
36
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho de pesquisa teve como foco principal analisar a estadia dos
estudantes estrangeiros no Brasil desde sua chegada até sua adaptação, ou
aculturação no ambiente brasileiro. Foram consideradas suas experiências vividas,
suas dificuldades comunicativas e culturais, bem como seu progresso linguístico no
que diz respeito à aprendizagem da nova língua.
14 estudantes estrangeiros de nacionalidade e língua materna diferentes
responderam ao questionário que lhes foi entregue. A maioria das respostas
confirmou que a maior parte dos alunos estrangeiros tinha uma motivação de
integração devido a uma imagem preconcebida positiva que tinha do Brasil,
caracterizado como país caloroso, animado e receptivo, o que exerceu grande
influência na integração desses alunos e facilitou sua adaptação e aprendizagem da
segunda língua. A imagem negativa concebida por quase 40% dos alunos logo após
contato com os nativos pode ser explicada explicada pelas frustrações que tiveram
devido a suas dificuldades linguisticas e choque cultural enfrentado. Dentre os 14
entrevistados, apenas dois alunos tinham um conhecimento básico antes de vir para o
Brasil. Aprender a língua portuguesa era indispensável para todos e de importância
capital, visto que esses alunos precisavam se integrar no meio acadêmico, social e
cultural brasileiro.
O trabalho apontou algumas dificuldades comunicativas enquanto os alunos
aprendiam a língua portuguesa. Observou-se que a língua materna foi um recurso útil
no processo de aprendizagem e assimilação da nova língua. No entanto, percebeu-se
que a busca constante por equivalentes na língua materna muitas vezes dificultou a
aprendizagem, exigindo do aluno a necessidade de se desligar o máximo possível do
complexo linguístico e sociocultural materno a fim de poder compreender e falar
português com a maior eficiência possível, ou ainda de entender melhor a cultura
brasileira, e se integrar a ela. Essas etapas correspondem respectivamente aos
postulados da percepção e desverbalização apresentados por Seleskovitch.
No processo de aprendizagem da língua portuguesa e desenvolvimento de
competências linguísticas e socioculturais – essenciais para uma boa reverbalizaçãodesverbalização –, o novo ambiente teve grande influência além das aulas de
37
português recebidas em sala de aula. De fato, a familiarização com o novo ambiente,
o fato de ter que ouvir, ler, escrever, falar a língua portuguesa e vivenciar a cultura
brasileira, tudo isso contribuiu para o processo de homogeneização, aculturação ou
reverbalização do estrangeiro.
O trabalho evidenciou também que entender e expressar-se em português não
é algo que ocorre da noite para o dia. Na verdade, dentre os entrevistados, mesmo os
falantes de línguas neolatinas, como o espanhol e o francês, afirmaram que foi depois
de 4 – 6 meses que conseguiram entender melhor, apesar de ainda terem muita
dificuldade de expressão tanto oral quanto escrita. Já os de língua inglesa ou outros
idiomas não latinos afirmaram que foi depois de 6 a 12 meses de estadia que
conseguiram entender melhor. Esse grupo afirmou também que tiveram dificuldades
na comunicação oral e escrita devido à dificuldade de compreender diferentes
sotaques, e à dificuldade de se fazer compreender pelos nativos.
Como o foco deste trabalho foi a autotradução do aluno estrangeiro, a pesquisa
revelou que houve transformações no decorrer do processo. Hábitos culturais
brasileiros que lhes eram desconhecidos e os deixaram em situação de choque
cultural nas suas relações interpessoais com os nativos, mais tarde não foram mais
percebidos como anormais. Ao longo da sua permanência, o aluno acabou por
entender melhor a cultura e se adaptar a ela, apesar de não fazer parte dela,
expressando-se e relacionando-se melhor com os brasileiros.
Essas considerações nos levam à conclusão de que todos os estudantes
estrangeiros falantes não nativos de língua portuguesa, após a fase de adaptação à
nova cultura, estão em processo permanente de socialização e aculturação. Nesse
contexto, quanto mais sua permanência se prolonga, mais acentuada se torna sua
homogeneização com o ambiente brasileiro, e maior a sua identificação com a cultura
brasileira e o modo de ser do brasileiro. Ele acaba parecendo brasileiro, pois
conseguiu “reverbalizar-se”, “autotraduzir” e “interpretar-se” no novo ambiente. Nesse
sentido, a estadia deles no Brasil pode ser definida como uma forma de autotradução.
38
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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processo deTradução. 2007 Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/agra-klondyintegracao-da-lingua.pdf - Acesso em: 27de Setembro 2012
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39
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Journal of American Linguistics, vol. 46, n. 1.1980.
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ANEXO
QUESTIONÁRIO DE PESQUISA
Nome:............................................................................................................................
Nacionalidade:..............................................................................................................
Curso:............................................................................................................................
1-Que imagem você tinha do Brasil e dos Brasileiros?
..........................................................................................................................................
..........................................................................................................................................
..........................................................................................................................................
..........................................................................................................................................
..................................................................
2-Você sabia falar português antes de sua chegada ao Brasil?
..........................................................................................................................................
..........................................................................................................................................
..........................................................................................................................................
..........................................................................................................................................
........................................................................................
3-Quais foram suas principais dificuldades de comunicação no seu inicio no Brasil?
Pode relatar uma experiência.
..........................................................................................................................................
..........................................................................................................................................
..........................................................................................................................................
..........................................................................................................................................
........................................................................................
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4. Durante a sua aprendizagem da língua portuguesa você sempre se referiu a sua
língua mãe, comparando-a com o português?
..........................................................................................................................................
..........................................................................................................................................
..........................................................................................................................................
..........................................................................................................................................
.........................................................................................
5. Houve uma necessidade de você se desligar completamente da sua cultura a fim
de poder se incluir perfeitamente no sistema e na cultura brasileira?
..........................................................................................................................................
..........................................................................................................................................
..........................................................................................................................................
..........................................................................................................................................
.........................................................................................
6. As diferenças linguísticas e culturais que você notou facilitaram ou dificultaram a
sua aprendizagem da língua portuguesa brasileira?
..........................................................................................................................................
..........................................................................................................................................
..........................................................................................................................................
..........................................................................................................................................
........................................................................................
7. Depois de quanto tempo você conseguiu comunicar-se facilmente com os
brasileiros? Quais foram as principais mudanças na sua personalidade e que
aconteceram na sua mente para você conseguir comunicar-se e incluir-se na
sociedade brasileira?
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..........................................................................................................................................
..........................................................................................................................................
..........................................................................................................................................
..........................................................................................................................................
.........................................................................................
8. Em comparação com a imagem que você tinha do Brasil e dos brasileiros antes da
sua chegada, qual é a sua nova percepção agora que você está morando no Brasil?
..........................................................................................................................................
..........................................................................................................................................
..........................................................................................................................................
..........................................................................................................................................
........................................................................................
9. Apesar das diferenças culturais e de sotaques existentes no meio do povo
brasileiro, você consegue comunicar-se com toda facilidade com qualquer brasileiro?
..........................................................................................................................................
..........................................................................................................................................
..........................................................................................................................................
..........................................................................................................................................
.........................................................................................
Obs: Esta pesquisa tem por objetivo melhorar a recepção e a estadia dos estudantes
internacionais no UNASP. EC