Gente e Coisas de Antanho - Biblioteca Virtual José de Mesquita

Transcrição

Gente e Coisas de Antanho - Biblioteca Virtual José de Mesquita
Cadernos Cuiabanos - 4
JOSÉ DE MESQUITA
José de Mesquita
Do Instituto Histórico e da Academia
Mato-grossense de Letras
Gente e Coisas
de Antanho
(Crônicas 1924-1934)
José Barnabé de Mesquita
(*10/03/1892 †22/06/1961)
Cuiabá - Mato Grosso
Biblioteca Virtual José de Mesquita
http://www.jmesquita.brtdata.com.br/bvjmesquita.htm
Cuiabá
1978
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GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
ÍNDICE
PREFEITURA MUNICIPAL DE CUIABÁ
SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO E CULTURA
DEPARTAMENTO DE CULTURA E TURISMO
PROGRAMA: “CADERNOS CUIABANOS”
Nº 2
CUIABÁ, ABRIL DE 1978
ADMINISTRAÇÃO: RODRIGUES PALMA
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Apresentação
Desembargador José de Mesquita (Fernando
Mesquita)
José de Mesquita (Antonio de Arruda)
José de Mesquita (Virgílio Corrêa Filho)
Os Primeiros Bacharéis Matogrossenses
Crimes Célebres
Cuiabá de Há Um Século
Beleza Cuiabana
O Relógio da Catedral
No Campanário
A “Missa do Espírito Santo”
A Procissão de São Jorge
Funerais à Antiga
Migalhas Para a História da Cidade
Joseph Barbosa de Sá
Joaquim da Costa Siqueira
Antonio de Pinho e Azevedo
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8
8
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33
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GENTE E COISAS DE ANTANHO
José Carlos Pereira
O Capitão-Mór João José Guimarães e Silva
Joaquim Ferreira Moutinho
Dois Espólios Curiosos
Os Planos de Magessi
Um Caso de “Aposentadoria”
Letras do Período Colonial
O Padre Tavares
Monsenhor Vidigal em Cuiabá
Antes da Capitania
Soído na Intimidade
Neurose e Talento
O Doutor Cintra
Cartas de Beaurepaire Rohan
O Presidente Rodovalho
Antonio João Ribeiro
Um Grande Diamantinense-João Batista das Neves
Macróbios
Época de Crise
Celeiros de Cuiabá
Reações Cuiabanas
Os Dias da Semana na História Matogrossense
Iconografia Matogrossense
Artistas Ignorados
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230
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Da. Maria de Cerqueira Caldas, mãe de
José Barnabé de Mesquita (foto 1902)
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GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Desembargador José de Mesquita
1) Dados Biográficos
Nasceu a 10 de março de 1892, em Cuiabá, Capital do Estado
de Mato Grosso, filho de José Barnabé de Mesquita (Senior) e Maria
Cerqueira de Mesquita.
Bacharel em Ciências e Letras, pelo Liceu Salesiano São
Gonçalo de Cuiabá (1907) e em Ciências Jurídicas e Sociais pela
Faculdade de Direito de São Paulo (1913), tendo sido escolhido
orador da turma.
Exerceu os cargos de Professor de Português da Escola
Normal, Procurador Geral do Estado de Mato Grosso, Diretor da
Secretaria do Governo, Juiz de Direito da Comarca do Registro de
Araguaia, Professor da Faculdade de Direito de Cuiabá (Direito
Constitucional) e Desembargador do Tribunal de Justiça de Mato
Grosso, que presidiu de 1930 a 1940, aposentando-se em 1945.
Após a sua aposentadoria, dedicou-se à advocacia, tendo
exercido, ainda, o cargo de Secretário Geral do Território Federal do
Guaporé, hoje Rondônia e Procurador Municipal da Prefeitura de
Cuiabá.
Fundador da Academia Mato-Grossense de Letras, presidiu-a,
ininterruptamente, desde a sua fundação até o seu falecimento.
José Barnabé de Mesquita em 1912
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Representou o Tribunal de Justiça no Congresso Nacional de
Direito Judiciário e na Conferência Brasileira de Criminologia
(1936); o Instituto Histórico de Mato Grosso e o Estado, no
Congresso Histórico Nacional (1938) e a Academia Mato-Grossense
de Letras, no 1º Congresso das Academias (1936).
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GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Foi condecorado pelo Papa Pio XI, com a Comenda da ordem
de São Silvestre, pelos serviços prestados à Ação Católica (1933) e
foi condecorado pelo Ministro da Guerra com
a Medalha do
Pacificador, pelos serviços à Pátria (1960).
10. O Taumaturgo do Sertão (biografia) – Niterói -1931
11. Atentado contra a Justiça (tese de direito) - Cuiabá - 1932
12. Espelho das Almas (contos) - Premiado pela Academia Brasileira
de Letras - Rio de Janeiro - 1932
13. João Poupino Caldas (ensaio biográfico) - Cuiabá - 1934
14. O Sentido da Literatura Mato-Grossense (conferência) - Cuiabá 1937
15. Pela Boa Causa (conferência) – Niterói – 1937
16. Piedade (romance) - Cuiabá - 1937
17. Relatório da Administração da Justiça – Cuiabá - 1937
18. Manoel Alves Ribeiro (biografia) - Cuiabá – 1938
19. O Sentimento de Brasilidade na História de Mato Grosso (discurso) - Cuiabá – 1939
20. De Lívia a Dona Carmo (mulheres na obra de Machado de Assis)
- (ensaio) - Cuiabá - 1939
21. Professoras Novas para um mundo Novo (discurso paraninfal) Campo Grande - 1940
22. A Chapada Cuiabana (tese geográfica) – Cuiabá - 1940
23. Nos Jardins de São João Bosco (discursos e conferências) Cuiabá - 1941
24. O Exército, fator de brasilidade (discurso) – Rio - 1941
25. A Academia Mato-Grossense de Letras (notícia histórica) Cuiabá - 1941
26. Três Poemas da Saudade (poemas) – Cuiabá - 1943
27. Bibliografia Mato-Grossense - Cuiabá - 1944
28. Escada de Jacó (Sonetos) - Cuiabá - 1945
29. Roteiro da Felicidade (sonetos) - Cuiabá – 1946
30. No Tempo da Cadeirinha (contos) - Cuiabá-1946
31. Os Poemas do Guaporé (poemas) - Cuiabá -1949
32. Imagem de Jaci (romance) - Cuiabá - 1958 (O presente romance
não foi editado até o momento).
Faleceu no dia 22 de junho de 1961, em Cuiabá.
A respeito do seu falecimento, publicou o jornal O “Estado de
Mato Grosso”, de 23 de junho de 1961, a seguinte nota: “De luto a
inteligência mato-grossense pelo falecimento, ontem, do
Desembargador José de Mesquita. O féretro sairá da Academia
Matogrossense de Letras, onde está sendo velado”.
Por outro lado, o Tribunal de Justiça do Estado, pela Portaria
nº 18/61, de 23 de junho de 1961, decretou luto oficial pela perda
daquele que durante 10 anos exercera a Presidência do Egrégio
Tribunal de Justiça.
Em homenagem póstuma àquele que muito fez por sua terra e
sua gente, a Câmara Municipal de Cuiabá, pela Lei nº 600/61, de 8 de
novembro de 1961, aprovou o projeto que dava a denominação de
Rua Desembargador José de Mesquita à antiga Rua do Araés.
2) Dados Bibliográficos
1. Poesias – Cuiabá – 1919
2. Elogio histórico ao Dr. Antonio Corrêa da Costa - Cuiabá 1921
3. O Catolicismo e a Mulher - Cuiabá – 1926
4. Elogio fúnebre do Dr. Caetano Manoel de Faria de Albuquerque Cuiabá - 1926
5. Terra do Berço (poesias) - Cuiabá - 1927
6. A Cavalhada (contos) - Cuiabá - 1928
7. Um Paladino do Nacionalismo (elogio) – Cuiabá - 1929
8. Semeadoras do Futuro (discurso) - Cuiabá – 1930
9. Epopéia Mato-Grossense (poesias) - Cuiabá – 1930
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JOSÉ DE MESQUITA
Além das obras acima mencionadas, colaborou em inúmeras
revistas e jornais, tais como: a) O “Cruzeiro” de Cuiabá; b) O Onze
de Agosto e a Revista da Faculdade de Direito de São Paulo; c)
Revista da Academia Mato-Grossense de Letras; d) Revista do
Instituto Histórico de Mato Grosso; e) Anais Forenses; f) Revista das
Academias de Letras, do Rio de Janeiro; h) Aspectos e Cultura
Política, do Rio de Janeiro; i) Revista do Brasil, de São Paulo; j)
Revista Nova, de São Paulo; k) Ilustração Brasileira, do Rio de
Janeiro; 1) O Malho, do Rio de Janeiro; m) Revista Civilização, de
Campo Grande.
Jornais: O Povo, O Mato Grosso, Correio do Estado, Correio
Mato-Grossense, O Democrata, A Cruz e O Estado de Mato Grosso,
com as famosas crônicas “Domingueiras”.
22). Academia Paraense de Letras (correspondente) - Belém; 23)
Centro de Ciências, Letras e Artes (correspondente) - Campinas; 24)
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (correspondente) - Rio de
Janeiro; 25) Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo
(correspondente) - São Paulo; 26) Casa “Humberto de Campos”
(correspondente) - Carolina; 27) Instituto Genealógico Brasileiro
(correspondente) - São Paulo; 28) Instituto Heráldico Genealógico
(correspondente) - São Paulo; 29) Confraternité Universelle
Balzacienne (correspondente) - Montevidéu; 30) Intercâmbio
Cultural (membro efetivo) - Guiratinga; 31) Instituto de Cultura
Americana (sócio honorário) - Tolosa (La Plata) - Argentina; 32)
International Institute of American Ideals (membro honoráriocorrespondente) - Los Angeles – Estados Unidos da América; 33)
Grand Prix Humanitaire de Belgique (comendador) - Bruxelas; 34) Califórnia - Estados Unidos da América; 35) Centro Cultural
“Humberto de Campos” - Vila Velha - Espírito Santo.
3) Sociedades a Que Pertenceu:
1) Clube Minerva - Cuiabá; 2) Grêmio Olavo Bilac - Cuiabá; 3)
Centro Onze de Agosto - São Paulo; 4) Instituto Histórico de Mato
Grosso - Cuiabá; 5) Centro. Mato-Grossense de Letras - Cuiabá; 6)
Instituto do Ceará (correspondente) - Fortaleza; 7) Sociedade “Rui
Barbosa” (sócio benemérito) Cuiabá; 8) Grêmio “Castro Alves”
(presidente honorário) - Cuiabá; 9) Academia Mineira de Letras
(correspondente) Belo Horizonte; 10) Academia Pedro II
(correspondente) Rio; 11) Academia Mato-Grossense de Letras
(presidente desde a fundação); 12) Centro de Cultura Intelectual
(correspondente) - Campinas; 13) Instituto Rio-Grandense de Letras
(correspondente) - Porto Alegre; 14) Circulo Rio-Grandense de
Difusão Literária (correspondente) - Porto Alegre; 15) Grêmio “Rui
Barbosa” (correspondente) - Vitória; 16) Academia Rio-Grandense
de Letras (correspondente) - Porto Alegre; 17) Circulo Amigos de
Marden (correspondente) - Espírito Santo; 18) Grêmio Literário
“Euclides da Cunha” (correspondente) - Muqui - Espírito Santo; 19)
Academia de Ciências e Letras de São Paulo (membro efettivo) - São
Paulo; 20) Academia Carioca de Letras (correspondente) - Rio de
Janeiro; 21) Federação das Academias de Letras do Brasil;
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Nota da Academia: A presente Bio-Bibliografia foi
organizada pelo Dr. Fernando de Mesquita, filho do extinto, com
dados colhidos no arquivo do Des. José de Mesquita.
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Presidindo a Corte de Apelação em Cuiabá, em 1935
José Barnabé de Mesquita, na década de 20.
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No jubileu de prata da Academia Matogrossense de Letras
(7 de setembro de 1946)
Posse de José Barnabé de Mesquita no Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (26 de janeiro de 1939)
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A “Casa Barão de Melgaço” na década de 50.
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Com José de Mesquita desaparece um dos mais legítimos
representantes das velhas tradições cuiabanas. Amando profundamente a
sua cidade, tendo morado nela a maior parte da sua existência, ele a
simbolizou de maneira característica nas suas qualidades e vivências, e
sobretudo no seu espírito de continuidade. Neste ponto, procurou
harmonizar-se com o passado, esforçando-se para que Cuiabá jamais
perdesse as peculiaridades que a extremam de outras cidades. Luta obscura
contra fatores adversos, que acabariam prevalecendo.
Este conservadorismo, quasi diria este saudosismo, Mesquita o
manteve ao longo dos anos, apesar da onda de vulgarização que, em nome
do progresso, foi proscrevendo os nossos mais caros valores. Tal atitude,
em Mesquita, tornou-se um modo de ser, refletindo-se-lhe nos escrito e nos
atos. Era de ver, por exemplo, o orgulho com que se referia à sua profissão
de advogado - não por ela em si, mas porque o ligava ao progenitor que
também o fôra. Ingressando na magistratura, fez dela a parte mais fecunda
de sua carreira, e suponho que das maiores satisfações que teve foi quando
um dos filhos e um genro o acompanharam neste setor, e ao saber estar o
caçula recém-formado preparando-se para seguir-lhe as pegadas.
Ocorre-me aqui uma das impressões mais antigas que guardo de
José de Mesquita. Foi quando regressei a Cuiabá, em 1937, após o meu
curso de Direito, e ia assistir às sessões do Tribunal, por ele dirigidas.
Naquele tempo, as paixões políticas, exacerbadas pelo processo contra o
Governador Mário Corrêa, tentavam invadir o recinto severo da nossa mais
alta Corte de Justiça.Não era fácil opor-se a essa torrente avassaladora,
eivada de facciosismo. Mesquita arrostava-a, porém,
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GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
de ânimo sereno, dominando com dignidade aquele ambiente agitado.
Felizmente, foram raros tais momentos de vibração e intolerância.
Em épocas normais, pôde José de Mesquita patentear as suas notáveis
aptidões para a liderança. Na galeria dos Presidentes do nosso Tribunal,
talvez nenhum outro o avantajasse em finura e elegância. Foi o que exerceu
por mais tempo esta função, juntamente com o velho Des. João Martins
França; cerca de 11 anos para ambos. Note-se que, nesse interregno, teve
Mesquita por colegas algumas das figuras mais brilhantes que passaram
pelo Tribunal, como Amarílio Novis, Armando de Sousa, Vieira do Amaral,
Albano de Oliveira, Otávio Cunha, Olegário de Barros, Oscarino Ramos,
Palmiro Pimenta e outros.
Tenho a impressão de que fôra o desempenho dessa presidência, ao
lado de outra ainda mais longa, a da Academia Matogrossense de Letras,
cujos destinos dirigiu e consubstanciou, durante quasi 40 anos — creio que
foi o exercício dessas duas presidências que aprimorou em José de
Mesquita os seus dotes inatos de sociabilidade. Ninguém levaria como ele
tão seria as obrigações sociais; datas natalícias de amigos, colegas e
confrades, momentos de alegria e de dor, tudo era motivo para as suas
expansões oportunas e cordiais. Sob este aspecto, era o Herbert Moses
matogrossense. Foi, em suma, um homem educado, ou mais propriamente,
um homem civilizado.
Outro ponto que se distinguia em José de Mesquita era a sua
perdurável fidelidade às coisas do espírito. Jamais o abandonou o gosto das
Letras, que ele cultivou carinhosamente, fazendo incursões a quasi todos os
gêneros literários. Pressagiando o fim próximo, ele mesmo enumerou neste
jornal, todas as suas produções literárias. Foram livros de contos e de
poesias, romances, ensaios, biografias, estudos genealógicos, discursos,
crônicas, etc. Muitos desses trabalhos continuam inéditos e representam ao
todo mais de 50 anos de laboriosa atividade, que só a fase mais aguda de
sua doença veio interromper, há pouco tempo. Exemplo raro este, porque a
regra no homem de letras é o cansaço precoce, o esmorecimento, a perda do
entusiasmo da mocidade.
Não vou, porém, deter-me na análise da obra literária de José de
Mesquita, tarefa para mais vagar, e que deverá ser feita em conjunto pela
Academia Matogrossense. Quero res-
tringir-me, por enquanto, a esses traços que me pareceram característicos do
ilustre morto, que vem sendo justamente pranteado não só em Mato Grosso,
como em outras regiões do país, onde se tornou conhecida a sua marcante
personalidade de homem bom e de escritor apreciado.
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Antônio de Arruda
(Transcrito do Estado de Mato Grosso)
GENTE E COISAS DE ANTANHO
José de Mesquita
A leitura de “Notas Paulistas”, na gazeta que Estevão de Mendonça
e Amarilio de Almeida fundaram, a 3 de março de 1910, em moldes
diferentes dos adotados pela imprensa cuiabana, surpreendeu-nos com
acentuada vocação literária de jovem autor que desconhecíamos.
A sua adolescência desenvolvera-se depois que partimos para terras
distantes, quando a comunicação entre Cuiabá e a Capital Federal arqueavase por extensa via fluvial, através, de Assunção, Buenos Aires e
Montevidéu, que se afigurava engravescer a ausência, tornando-a mais
afastada. O estreante, José de Mesquita, freqüentava, então, a Faculdade de
Direito de São Paulo, à semelhança de outros conterrâneos, que a procuram,
desde o triênio imediato à sua inauguração, como A. Navarro de Abreu,
João Gaudie Ley, José da Costa Leite Falcão, matriculados em 1831,
conforme ele próprio assinalaria em “Os Primeiros Bacharéis
Matogrossenses”.
Nascido em Cuiabá, a 10 de março de 1892, viu-se aos cinco meses,
órfão de pai, advogado homônimo, também dado às letras, que praticava no
jornalismo e na tribuna de conferências. Cursou as humanidades no Liceu
Salesiano de São Gonçalo, dirigido pelo Padre Helvecio Gomes de Oliveira,
mais tarde arcebispo de Mariana, que se comprazia em estimular os seus
alunos aos estudos, principalmente quando lhes percebesse inequívocos
pendores literários.
Bacharel em Ciências e Letras, ao findar 1907, alegrou-se em
conhecer a Paulicéia, onde não lhe faltaram colegas de iguais anelos de arte,
com quem se arrojaria a aventuras intelectuais.
Diplomou-se com a turma de 1913, depois de ter colaborado no
órgão do “Centro Acadêmico Onze de Agosto” e em vários semanários.
A pouco e pouco se afastou das crenças trazidas do lar reconstituído
pelo consórcio da viúva, Da. Maria de Cerqueira Caldas, com o
Comendador Antonio Tomaz de Aquino
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JOSÉ DE MESQUITA
Corrêa, que também perdera a esposa, Da. Maria d’Aleluia Gaudie Ley, de
quem proveiu, com outros irmãos, D. Francisco de Aquino Corrêa,
predestinado a luminosa trajetória, até dignificar o Arcebispado de sua terra
natal. O afastamento que separou os dois mimosos da inteligência,
facilitaria o passageiro antagonismo religioso, que ameaçou desuni-los
definitivamente. Enquanto o acadêmico se aproximava de Renan e de
outros guias dos livres-pensadores, o enteado de sua piedosa mãe
permanecia em Roma, donde tornaria com o diploma de doutor em teologia
e filosofia e ensinamentos que neutralizassem as dúvidas fraternas.
Embebido de leituras de quanto lhe cegasse ao alcance, valeu-se
Mesquita da pena para fixar as suas impressões, acolhidas de bom grado por
Estevão de Mendonça, consoante recordaria à beira do túmulo do amigo
prestante, que também o fôra do seu genitor, ao proferir palavras de
despedidas, em nome do Instituto Histórico e da Academia Matogrossense.
“Foi por suas mãos experientes e dedicadas que, estudante ainda,
comecei a escrever no jornal “O Comércio” e que dei os meus primeiros
passos na árdua profissão da advocacia.”
Coube, em verdade, a essa folha revelar aos conterrâneos o
incipiente escritor, que nos apressamos em conhecer, assim que se nos
deparasse oportunidade.
Nossos rumos divergiam, pela profissão diferente e centros de
aprendizagem, que nos atraíram respectivamente para São Paulo e Rio de
Janeiro.
Não obstante, houve ensejo de nos encontrarmos, logo após o seu
regresso à Capital matogrossense, esperançoso e confiante no futuro.
Imediatamente, começou a amizade, que viçou pela vida afora,
quando lhe acompanhamos, com incontidos aplauso, a carreira ascendente,
desde professor na Escola Normal (1914), e procurador Geral do Estado de
Mato Grosso (1915), a diretor da Secretaria do Governo (1916), a juiz de
Direito da Comarca do Registro do Araguaia (1920) e, por fim, a
desembargador do Tribunal de Apelação, cuja presidência exerceu por mais
de um período.
As relações, que se enraizavam na mútua estima e acentuadas
afinidades morais, intensificaram-se ainda mais, durante o decênio, que o
destino nos reteve em Cuiabá, a partir de 1916.
Com a alegria de viver, irradiava simpatia e entusiasmo,
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GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
de sorte que não lhe foi difícil promover a convocação de parceiros
compreensivos para memoráveis campanhas ideológicas.
O Bicentenário da fundação de Cuiabá, que se avizinhava, ao
despertar animação geral, estimulada pela euforia econômica, embora
passageira, não deixaria de inspirar-lhe a atuação patriótica, mediante
fecundas iniciativas, que tiveram o seu eficaz apoio e cooperação. Aliás, a
cidade, plantada pelos bandeirantes no recesso dos sertões, vibrou de júbilo
coletivo naquela quadra memorável, marcada pela fundação do Instituto
Histórico de Mato Grosso, ao raiar o mês de janeiro, embora adiasse a
inauguração solene para data oportuna.
Nesse dia, a capital matogrossense despertou pelas quatro horas da
madrugada, ao estrugir de foguetes e salvas, e ao som marcial de fanfarras e
clarins, que percorreram as principais ruas, até a Praça da República, onde
se erguia vistoso altar com a histórica e sagrada imagem do Senhor Bom
Jesus de Cuiabá, no átrio da catedral metropolitana.
Realçando a decoração festiva em torno, grandioso arco, encimado
pela bandeira do Estado, ostentava a inscrição: “Salve 8 de abril de 1719 8 de abril de 1919”.
A hora aprazada, o venerando arcebispo D. Carlos Luis d’Amour
começou a missa campal, na presença do Presidente do Estado e seus
secretários, magistrados, congressistas, autoridades graduadas e numerosa
assistência.
Terminada a cerimônia religiosa, ouviu-se o hino a Mato Grosso,
letra de D. Aquino, cantado por alunas da Escola Modelo, e sem demora, a
oração do deputado e major Joaquim Gaudie de Aquino Corrêa, que
discorreu com eloqüência acerca dos acontecimentos regionais.
Mais de duas mil crianças de várias escolas desfilaram em seguida,
diante do Palácio do Governo, onde já se achava o Presidente D. Aquino
Corrêa, que, a noite, compareceu ao Palácio da Instrução, acompanhado de
individualidades, de escol, para inaugurar solenemente o Instituto Histórico,
enquanto na praça próxima se exibiam, para o povo, filmes de assuntos
matogrossenses cedidos pela Comissão de Linhas Telegráficas.
Proferiu, então, formosa alocução, em que indicou a expressiva
divisa que a entidade nascente adotou, ufana: “Pro pátria cognita atque
immortali”.
Quando se resumissem as comemorações apenas aos atos festivos
do dia 8 de abril, já estaria bem assinalada a passa-
gem do bicentenário, que, todavia, ainda continuou a inspirar várias
festanças populares, nos meses seguintes, em que se realizaram congadas,
danças folclóricas, inaugurações de obras públicas. Várias, porém, se
adiaram até a semana de encerramento, honrada, a 30 de novembro, com a
presença do Núncio Apostólico, D. Angelo Scapardini, que assim atendeu
ao convite presidencial, acompanhado do Bispo de Corumbá, D. José
Mauricio, de Cáceres, D. Luis Maria Gallibert e outras autoridades, que se
harmonizaram com o ambiente social.
Durante a sua permanência em Cuiabá, onde recebeu carinhosa
manifestação popular, franqueou-se ao tráfego urbano de automóveis à
Avenida Presidente D. Aquino, assim designada, na ocasião.
A inauguração de melhoramentos na Santa Casa de Misericórdia,
da nova Igreja Matriz de S. Gonçalo, da Praça Luis de Albuquerque, de
novas obras no Campo de Demonstração, constituíram outros tantos
números do programa, que só terminou a 9 de dezembro, com o regresso
dos visitantes de alta hierarquia.
Além de contribuir em mais de uma comissão, Mesquita
pessoalmente levou aos prelos, na tipografia de J. Pereira Leite, seu amigo,
a coletânea “Poesias”, com o subtítulo “Do Amor, Da Natureza, Do
Sonho, Da Arte”.
Equivalia a sintética mensagem, mais expressiva ainda na
declaração, datada de “Cuiabá MCMXIX”, que a precedeu:
“A Mato Grosso, minha querida terra natal, na data festiva do seu
Bicentenário, dedico as primícias de um espírito que se formou na visão do
seu passado tradicional e no sonho do seu futuro luminoso”.
O amor à vida rompia-lhe das estrofes consagradoras do seu culto à
mulher, raramente repassadas de desânimo:
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“O poeta é como o alquimista
da legenda medieval. . . .
E a tortura que o contrista
é, no seu sonho de artista,
nunca encontrar o ideal.”
Mais tarde, com análogas inspirações, publicaria “Terra do Berço’“
(1927), “Da Epopéia Matogrossense” (1930), “Os Poemas de Guaporé”
(1949) além de poesias de encantador lirismo, em “Três Poemas da
Saudade” (1943), “Escada de
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Jacó” (1945), “Roteiro da Felicidade” (1946).
Quando se organizou o Instituto Histórico de Mato Grosso “uma
das mais significativas comemorações do Bicentenário”, no frasear
expressivo de D. Aquino Corrêa, incluiu-se entre os seus membros mais
diligentes desde as providências preparatórias.
A idéia empolhara na “Comissão Promotora da Comemoração do
Bicentenário de Cuiabá”, mas somente se tornou exeqüível depois que o
delegado do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Dr. Eurico de Góes,
oferecendo a colaboração desta veneranda instituição, que representava,
obteve o amparo decisivo do Presidente de Mato Grosso.
A proteção do insigne prelado, que na ocasião governava o Estado,
garantir-lhe-ia o prestígio e prosperidade por longo período.
Certo, não lhe negaria Mesquita a sua cooperação eficaz, onde,
quando, e como se tornasse necessária. Mas desejaria conferir às belas
letras a primazia, acorde com as suas preferências estéticas.
Então, irmanado a João Barbosa de Faria e Lamartine Ferreira
Mendes, promoveu a convocação de futuros confrades, que também
reconhecessem a “imperiosa e inadiável necessidade de um centro
intelectual que congregue e aproxime o escol do pensamento, a aristocracia
das idéias, servindo, assim, permita-se-nos a expressão, de um cadinho que
faça fundir num só ideal superior e coletivo; as múltiplas aspirações da
classe pensante”.
Eram propósitos que expendera pela imprensa, desde 1916
relembrados em sessão de 22 de maio de 1921, quando ficou deliberada a
sua fundação.
O Instituto não lhe bastava, por se destinar especialmente às
pesquisas históricas.
Queria mais, liberdade de ação, em que se expandisse a fantasia
criadora.
De Ramalho Ortigão sentenciou Eça de Queiroz, ao exaltar-lhe a
individualidade vigorosa, que não era apenas autor das “Farpas”, cuja
influência literária, artística e social em Portugal o tornou famoso, mas
também o fenômeno inverso.
As “Farpas”, por sua vez, o modelaram de certo modo, ampliandolhe as idéias e aformoseando-lhe a expressão, por maneira que o escritor se
tornou mais compreensivo e capaz de expor claros pensamentos em
linguagem elegantemente
plástica.
Semelhantemente, poder-se-ia dizer que não foi José de Mesquita
somente o principal criador do Centro, transfigurado na década seguinte, a 7
de setembro de 1932, em Academia Matogrossense de Letras.
Identificou-se intimamente com a instituição, a exemplo de seu guia
literário e modelo. Devotara-se Machado de Assis, na última fase da sua
existência, com solicitude paterna, a fortalecer a nascente Academia
Brasileira de Letras, ao imprimir-lhe o viço e a marca das organizações
imorredouras.
Mais do que o Mestre, glorioso em sua velhice veneranda, Mesquita
começará, em ambiente acanhado, por despertar as tendências agremiativas
de possíveis e estimulá-los à missão radiosa.
E dava o exemplo de irrestrita dedicação ao cenáculo de que era o
obreiro infatigável.
Os companheiros, que o auxiliavam de boa mente, saberiam que,
em caso de falharem, a tarefa respectiva não pereceria, sustentada pelo
operoso Presidente, que a tudo atendia, discretamente, sem pretensões de
empolgar o mando indesejável.
Organizador dos programas lítero-musicais, em que se convertiam
as sessões do sodalício, instava pela colaboração feminina, que não lhe
faltou, aumentando-lhe a influência na sociedade cuiabana. E a tudo
cumpria-lhe atender, fosse quanto à parte intelectual, fosse em relação a
providências de ordem material, antes da aquisição da sede própria, mercê
da boa vontade do governo Estevão Corrêa, que, solicitado por
individualidades de prol, desapropriou, a 14 de janeiro de 1926, a casa em
que residiu e veio a falecer o Barão de Melgaço.
Todavia, não se ultimou na época a doação, de que, decorrido
sombrio quatriênio, trataria o decreto de 23 de novembro de 1930, do
Interventor Federal Coronel Antonino Mena Gonçalves, subscrito pelo
Secretário Geral, então Virgilio Corrêa Filho: “Considerando que fôra a
aquisição feita em atenção a um grande movimento popular, visando a fazer
perdurar na referida casa o mesmo ambiente de intelectualidade que ali
existira em vida do bravo almirante e maior conhecedor das cousas
matogrossenses no seu tempo”, e por outros motivos citados, rezava o
artigo I:
“A Casa de Melgaço, sita à rua do mesmo nome e de pro-
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26
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
priedade do Estado, fica destinada, a partir desta dada, a ser sede efetiva do
Instituto Histórico de Mato Grosso e do Centro Matogrossense de Letras”.
As providências indispensáveis à transmissão de posse, que
exigiram a escritura de 15 de abril, alongaram-se até 24 de junho de 1931,
quando, em sessão solene, presidida por D. Aquino Corrêa, registrou-se a
inauguração da nova sede social. Mesquita exultou.
A sua animação prazenteira comunicava-se facilmente aos confrades, que
lhe apreciavam e louvavam o idealismo, capaz de operar o milagre de
superar os obstáculos opostos pelo meio às organizações análogas.
Analisara-lhe as causas do malogro, que oportunamente iria historiar e por
isso redobrava de esforços para que não se repetisse o triste fadário em que
pereceram as associações fundadas outrora.
Correspondia-se ativamente com os grêmios congêneres, de outras
regiões, com os amigos dispersos pelo Estado, ou além, com todos quantos
revelassem tendências semelhantes. Não admira que, assim orientado e
conhecido, viesse atuar, em certo momento, na própria Capital Federal, de
maneira surpreendente, ao salvar do soçobro auspiciosa idéia, que apoiara,
com fervor.
Em meio de promissoras expectativas, inaugurava-se, em verdade, a
3 de maio de 1936, o “Congresso das Associações Literárias”, promovido
pela Academia Carioca de Letras.
Delegado genuíno da Academia Matogrossense, que se distinguiu
pelo avultado número de inscrições individuais no Estado, 22, apenas
inferior às que se verificaram no Distrito Federal, coube-lhe a VicePresidência da Mesa Diretora, de que era Presidente o Professor Fernando
de Magalhães, representante da Academia Brasileira. Apesar de chefiar a
entidade, que tomara a iniciativa de congregar os escritores de todo o país,
para acordarem providências de interesses da classe, Afonso Costa não
conseguiu triunfasse a idéia fundamental do seu programa. Elaborava com
carinho a tese de título expressivo; “Da Federação das Academias de
Letras, e suas vantagens”, cujas conclusões a comissão examinadora não
endossou.
Ao negar-lhes o seu apóio, o Congresso perderia, com a
impugnação do conceito principal, o próprio objetivo, que lhe inspirou a
convocação. Esvaziava-se de conteúdo ideológico.
Foi nesse lance desconcertante que Afonso Costa, derro-
tado como autor da tese, cuja publicação, todavia, fôra autorizada, recorreu
a Mesquita, com quem freqüentemente se carteava de longa data. Conhecialhe os pensamentos favoráveis à iniciativa e não titubeou em solicitar-lhe o
eficiente concurso. “Veio, então, a indicação que, a meu pedido, José de
Mesquita, da Academia Matogrossense de Letras, apresentou e defendeu,
sendo aprovada naquela sessão”, como relembraria, depois da vitória, o
Presidente da Academia Carioca.
Subscrita, a 12 de maio, por nove representantes de academias
estaduais, comungantes nas mesmas pretensões, celeremente suplantou os
preconceitos que impediram a aceitação da tese afonsina, de propósitos
equivalentes.
“Fica instruída, desde já, assim prescrevia o artigo primeiro, a
Federação das Academias de Letras do Brasil, com sede no Rio de Janeiro,
organizada conforme a regulamentação que se lhe venha dar”.
E assim foi que, mercê da intervenção oportuna de José de
Mesquita, salvou-se do aniquilamento o plano em que Afonso Costa
concentrara, sem êxito, as suas mais exaltadas convicções.
Atuou decidido e confiante, por bem compreender as vantagens de
maior intercâmbio entre os intelectuais, que ele próprio desenvolvia em
mais estreito âmbito. Fossem afamados homens de letras, que aportassem a
Cuiabá, ou estreantes, manifestassem aptidões aproveitáveis, não tardava o
acolhimento estimulador de Mesquita, que se tornou o protetor espontâneo
dos jovens. Para inequivocamente evidenciar o seu apreço pelos que se
esforçavam em comprovar os próprios méritos, criou na “Revista do Centro
Matogrossense de Letras”, cujo primeiro número veio a lume em janeiro de
1922, a “Página dos Novos” , como igualmente as “Páginas Esquecidas”, de
homenagem a autores de antanho.
Destarte diligenciava aproximar as gerações passadas, a que os
poetas serviam de intérpretes, das contemporâneas, e até das futuras, que
surgiam com os seus inquietos partidários. Compreendia-lhes os anseios, a
que propiciava ensejo de divulgação, por meio da “Revista”, coordenadora
das atividades culturais de Mato Grosso.
De sua parte, era o mais assíduo colaborador, cujo nome figurou no
sumário do número inaugural com um soneto, o primeiro da série, que se
definiria mais acentuadamente no terceiro, de junho de 23, em que
proclamou a sua profissão
27
28
GENTE E COISAS DE ANTANHO
de fé literária.
“O meu máximo ideal artístico é a Beleza,
mas a Beleza estrema e perfeita e acabada,
o lavor de arte que completa a natureza,
e torna numa estátua a pedra trabalhada.”
O culto absorvente em que se afervorava não somente lhe inspirou
versos de sabor parnasiano, a que sucedeu, mais tarde, o feitio modernista,
como igualmente a harmonia da prosa castiça.
Crônicas, romances, contos, em que mais de um crítico lobrigaria
influência machadiana, firmaram-lhe o prestígio de escritor diserto. “A
Cavalhada”, “Contos Matogrossenses”, (1928), “Espelho das Almas”,
(premio da Academia Brasileira de Letras, (1932), “Piedade”, (romance 1937), “De Lívia a Dona Carmo”, ensaio em que evocou as “mulheres na
obra de Machado de Assis”, (1939), “No Tempo da Cadeirinha”, (1946), a
variedade do gênero literário servia para comprovar a agilidade mental do
prosador, cuja linguagem esmerada e polida jamais descambou para
intencionais deslises de pensamento ou de expressão.
Apesar de se consagrar ao engrandecimento da Academia, sem
prejuízo da judicatura, que exercia superiormente, como reconheceram os
seus pares, quando o reelegeram, mais de uma vez, para a presidência do
Tribunal de Apelação, ainda dispunha Mesquita de reservas de energia
moral para sadias aplicações. Abjurando irrestritamente a incredulidade,
que o desviara das tradições de família, na fase acadêmica, aproximou-se
cada vez mais da Igreja, de que se tornou estrênuo paladino, como auxiliar
de confiança do Arcebispo Dom Aquino Corrêa. Redator principal do
semanário católico local — A CRUZ —, mereceu do Papa Pio XI a
comenda da Ordem de São Silvestre, pelos serviços prestados à Ação
Católica (1933). E como se não lhe pesassem tamanhas atribuições, ainda se
afeiçoaria progressivamente ao Instituto Histórico, de que fôra um dos
fundadores, e por isso não recusara as responsabilidades de orador oficial.
Cumpriu-lhe, nesse posto, fazer o elogio histórico do Dr. Antonio
Corrêa da Costa, publicista e ex-presidente de Estado, do Arcebispo D.
Carlos Luis d’Amour e Modesto de Melo, do
29
JOSÉ DE MESQUITA
General Caetano de Albuquerque, do professor João Pedro Gardez, do
naturalista Carlos Lindmann, de Emanuel Amarante e Otavio Pitaluga,
militares, do desembargador Luis da Costa Ribeiro, do Bispo D. Antonio
Malan, do General Malan d’Angregne, somente até o número XLIV da
Revista.
A tarefa exigia-lhe pesquisas, a que se entregou cada vez mais
acuradamente, conforme evidenciou magnífica série de ensaio de real valia
histórica. Para firmar os fundamentos da “Genealogia cuiabana”,
considerou diversos ramos — “André Gaudie Ley” — “Nobiliário
matogrossense” — “Corrêa da Costa”, “Prados e Figueiredos”, “Alves
Corrêa e Moreira Serra”, “Mesquita Muniz e Pinhos e Azevedo”, títulos em
que se desdobravam as suas percucientes investigações pelos arquivos
públicos e eclesiásticos, em que tinha fácil acesso, como por igual nos
cartórios.
Em biografias separadas, tratou, de “Um homem e uma época” “Monsenhor Bento Severiano da Luz”, que o Instituto Histórico admitiu na
classe de sócio correspondente, em 1892, de João Poupino Caldas e Manuel
Alves Ribeiro, dous caudilhos de inquieta liderança regional, do
Taumaturgo do Sertão (frei José M. Macerata ), que logrou fama de
santidade, propagada pelo povo.
Além dos temas individuais, também versou, com análoga
perspicácia, outros, de ordem geral, como “Grandeza e Decadência da Serra
Acima”, “As Acrópoles Cuiabanas”, “Os Jesuítas em Mato Grosso”, “A
Chapada Cuiabana - Ensaio de Geografia humana e econômica oferecido ao
IX Congresso Brasileiro de Geografia”, “Gente e cousas de antanho”, série
de encantadoras crônicas, a exemplo de Vieira Fazenda, que se estenderam
por vários números da Revista.
As suas contribuições, indicativas de espírito pesquisador,
recomendaram-no à atenção do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
que o acolheu jubilosamente.
Ao tomar posse da cadeira de correspondente, a 26 de Janeirode
1939, o discurso que proferiu, acerca de “O Sentimento de Brasilidade na
História de Mato Grosso” evidenciou-lhe não somente os anseios do
civismo e conhecimento do passado, como ainda os dotes oratórias,
cultivados nas tribunas que freqüentava, principalmente em Cuiabá, do
pretório à Academia e ao Instituto. Por lhe conhecerem e exaltarem a
eloqüência, freqüentes vezes seria solicitado por associações desejosas de
30
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
ouvir-lhe a palavra conceituosa e apostolar. E tanto louvava a obra salesiana
“Nos jardins de São João Bosco”, em mais de uma ocasião e evocava “Um
Paladino do Nacionalismo”, (J. V. Couto de Magalhães), como trataria de
“O Catolicismo e a Mulher”, ao inaugurar a Liga das Senhoras Católicas,
no Asilo Santa Rita (1925), ou sublimava a missão dos professores em
“Semeadoras do futuro”, ao paraninfar as normalistas de Cuiabá (1929) e
“Professoras Novas para um Mundo Novo”, na solenidade da colação de
grau às Professoras no Liceu Campograndense (1939), ou apontava “O
sentido da literatura Matogrossense” (1937) e “O Exército, fator de
Brasilidade” (1941). Em todas as oportunidades revela-se o homem de
letras, ansioso de perfeição, irmanado ao estudioso do passado nacional,
que sabia interpretar com a clarividência de magistrado judicioso.
E no procedimento, a mesma superioridade com que discretamente
se ocultava, para que apenas se lhe revelassem as qualidades estimuladoras
da convivência humana.
A bondade espontânea, em primeiro lugar, que o levava, por um
lado, a praticar as atividades caritativas da associação de São Vicente de
Paulo, de que era fervoroso adepto, e por outro, a ampliar as suas relações
por vários ramos da sociedade, sem distinguir ricos ou pobres, sábios ou
indoutos, qualquer que lhes fosse a pigmentação da pele.
Eram seres humanos e tanto bastava para lhe merecerem a amizade,
desde que se recomendassem pela correção do proceder. No lar, que por
amor constituiu, imperavam análogos sentimentos, de que participava toda
sua digna família, desde a tia veneranda, cujo centenário, já doente,
festejou, até o caçula, ainda infante.
A paz venturosa que o envolvia começou a perturbar-se com a
enfermidade que o trouxe ao Rio, para ser submetido à intervenção
cirúrgica, recomendada para o caso. Apesar da operação, aliviadora em
curto prazo e do desvelo incansável da sua carinhosa esposa, assistida pelos
filhos e outros membros da família, o mal progrediu, privando-o, por fim,
de ler e escrever, a quem tanto se comprazia no convívio dos livros.
Ao sucumbir, já lhe estaria até esmorecida, com a agravação dos
sofrimentos, a resignação dos primeiros meses, cristãmente suportados.
Afinal, descansou, deixando aos seus a herança de um nome glorioso,
sublimado pela integridade moral, com a saudade de chefe estremecido. Os
pesares não se limitaram ao lar outrora ditoso, enlutado a 23 de junho,
quando lhe sobreveio o desenlace. Envolveram as associações que
fecundara com radioso idealismo, especialmente
a Academia Matogrossense de Letras e o Instituto Histórico de Mato
Grosso, que a sua inteligência peregrina irmanou no mesmo carinho.
Dificilmente encontrarão quem o substitua, com equivalentes
credenciais, de cultura embebida de humanismo, capacidade rara de
trabalho e vontade resoluta de bem servir a coletividade, a que se irradiava
a sua simpatia envolvente.
31
32
Virgilio Corrêa Filho
(Conferência proferida no Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, a 26 de julho de 1961)
GENTE E COISAS DE ANTANHO
OS PRIMEIROS BACHAREIS MATTOGROSSENSES
I
Qual foi o primeiro bacharel mattogrossense? Não é fácil
responder a semelhante questão, ante a deficiência de dados que
possam fazer luz em torno do assumpto. As chronicas locaes nada
logram adiantar ao caso, omissas as fontes oraes e muito mais ainda
as da imprensa, que só veio a surgir entre nós em 1839, no governo
Pimenta Bueno.
Memória não encontrei sinão de um conterrâneo nosso
formado em leis fora do paiz, no período anterior á creação dos
cursos jurídicos no Brasil.
Foi elle o Dr. Prudêncio Giraldes Tavares da Veiga Cabral,
nascido em Cuyabá, a 22 de Abril de 1800 (1) e formado em direito
na Universidade de Coimbra, no anno de 1822, tendo sido
reconhecido Doutor por decreto de 16 de Setembro de 1834.
Ha que se lhe reconhecer, desta maneira, até prova em
contrario, o direito de ser tido, na ordem chronologica, como o
primeiro bacharel mattogrossense.
Explica-se naturalmente a carência de diplomados no primeiro
centennio da nossa vida histórica desde que se attente ás condições
sociaes em que se encontrou durante todo esse período o território de
Matto Grosso.
(1) É a data referida por S. Blake e E. Mendonça, S. Vampré, porem, dá 26
de Abril como a do seu nascimento. Vide Diccionario Bibliog. Brazileiro, vol. VII,
pág. 85; Datas Mattogrossenses, vol. I pág. 30; Memórias para a historia da
Academia de S. Paulo, v. I pág. 156
33
JOSÉ DE MESQUITA
Foi uma verdadeira phase de sedimentação ethnica, todo o
interregno transcorrido da era do descobrimento aos inícios do século
seguinte: — elementos vários, da mais diversa procedência, se
fundem, se caldêam, plasmando, ao cabo de lenta elaboração, as
primeiras estratificações do que se pode considerar historicamente a
nossa primitiva camada social, ao alvorecer do século passado.
Antes disso, o que se distinguia no território da Capitania era
uma confusa amalgama de elementos dispares e instáveis, um
conglomerado de sertanistas aventurosos, em guerra aberta com as
hostilidades da natureza e com os primévos dominadores da terra, e
de cujo agitado viver transparece, não raro, um episodio de lucta ou
uma scena angustiada de miséria, pontilhados de heroísmo, atravez
das pinturescas narrativas barbosianas.
Homens affeitos ao rude trato com os ásperos elementos da
natureza, exhubere e portentosa, cresciam lhes os filhos na mesma
escola, menos fadada a desenvolver espíritos cultos do que á crear
fortes specimens de rijos conquistadores do sertão.
A infixidez do elemento dirigente — capitães-generaes,
ouvidores, juizes de fora, intendentes e provedores da real fazenda e
membros da milícia — não era de molde a permittir maiores surtos
mentaes, num meio acanhado e incipiente, cujas maiores
preoccupações eram, salvante o ouro e o gentio, as questiúnculas do
fisco e as desavenças constantes entre autoridades civis ou
ecclesiasticas.
Em 1799 encontra-se, nos Annaes do Senado da Câmara de
Cuyabá, uma determinação do Governo á mesma corporação no
sentido de enviar á Europa sete estudantes “afim de se instruírem nas
artes e sciencias úteis a esta capitania” e, de accordo com essa
deliberação, estabeleceu-se, nas Câmaras de Cuyabá e Villa
34
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Bella, um imposto para o pagamento de passagem e pensões
alimentares aos estudantes eecolhidos pelo General para seguir os
cursos da Universidade de Coimbra ou da Academia de Marinha.
Leverger, nos seus “Apontamentos Chronologicos”
publicados na Revista Matto Grosso, sob a competente direcção de
Estevão de Mendonça, registra lhes os nomes, na parte referente ao
anno de 1800, alludindo ás reaes Ordens de 21 e 27 de Outubro de
1798, attinentes ao assumpto.
Foram elles João Pedro de Moraes Baptista, Antonio Gomes
de Oliveira, João Leite Pereira, Manoel Felippe de Araújo, Manoel
Rabello da Silva, Joaquim Antonio Rabello e Francisco José da Costa
Rodrigues, todos nomes inexpressivos e apagados, que as chronicas
locaes jamais referiram, ficando-se em duvida si alguns delles,
porventura, se tenha formado ou, a verificar-se tal hypothese, se
tenha regressado a Matto Grosso.
Ao raiar o século XIX já se nos depara certo espírito de
estabilidade e organização nesta então Capitania de Matto Grosso,
espírito que mais se accentua graças ao movimento que precedeu e se
seguiu entre nós a autonomia política proclamada para todo o Brasil
em 1822.
Elementos extranhos, sobretudo de origem portugueza e
paulista, se haviam radicado na terra a que ora os vinculavam laços
de sangue, e elos de interesse, constituindo-se dest’arte os progonos
de outras tantas famílias poderosas pela riqueza e pelo prestigio
social, e o commercio, bem que rotineiro e difficil, entra a
intensificar-se, multiplicando-se, por outro lado, os “engenhos” em
que a industria começa a prosperar sensivelmente.
Aos rebentos desses “varões de boa fazenda”, como soia dizer
o colorido phraseado d’antanho, novas perspectivas se abriam já, em
horizontes mais amplos
e dilatados: — não os poderiam satisfazer ás appirações, os cargos
inferiores da milícia, as funcções subalternas da administração local,
únicas que lhes era possível pretender, e anseiavam, na rápida e geral
transformação por que passava o paiz, pelo tomarem também uma
posição saliente na qual se lhes patenteassem as aptidões do
intellecto. (2)
Figuras de notável relevo mental, como Luiz d’Alincourt,
entre os alienígenas e o P. José da Silva Guimarães, entre a gente da
terra, tinham renovado, numa acção lenta e insensível, o ambiente
social da Província, tornando propicio o momento para as conquistas
liberaes objectivadas no movimento de 1821, que foi entre nós, a
primeira organização do self-made governement, madrugando de
mais de anno a autonomia que se concretizou para o resto do paiz nas
históricas margens do Ypiranga.
Em tal ambiente é bem de ver-se que mais que o pendor
nativo dos jovens patrícios influiria o legitimo orgulho paterno no
sentido de encaminhar para as recém creadas escolas superiores a
vocação dos representantes da geração que abrolhava pródiga de
esperanças.
A lei de 11 de Agosto de 1827 estabelecera no paiz dois
cursos jurídicos com sede em Olinda e S. Paulo, a despeito da
opposição surgida no próprio seio das Câmaras quanto á localização
das mesmas, batendo se forte corrente, á frente da qual se via o
preclaro Vasconcellos, então deputado por Minas, pela escolha do
Rio de Janeiro para sede do segundo dos cursos, tendo mesmo os
ricos commerciantes da Corte, bem como
35
(2) Cuiabá já era então o Centro político da província, que de V. Bella, se
deslocara desde o Governo Magessi isso explica o terem sido cuyabanos na sua
quasi totalidade, os bacharéis mattogrossenses durante toda primeira phase por nos
estudada. Ainda hoje é considerável a vantagem que, no domínio intellectual, leva a
capital sobre todo o resto do Estado, não obstante o grande surto de progresso
material que ao Sul veio trazer a E. F. Noroeste ha 10 annos ali inaugurada.
36
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
os de Minas, offerecido vultuosas quantias no propósito de verem
preferidas essas localidades. (3)
Fixada como sede do segundo curso jurídico a capital
paulista, a favor da qual se inclinaram as autoridades de José
Clemente, Vergueiro, Costa Aguiar e outros, foi para essa Faculdade
Inaugurada solennemente a 1 de Março de 1828, que, graças á maior
proximidade que naturalmente a indicava, se volveram as attenções
dos nossos patrícios ávidos de instrução.
Assim é que, três annos decorridos sobre a installação da
Faculdade de Direito de S.Paulo, isto é, em, 1831, encontramos na
lista dos matriculandos no 1º anno, três mattogrossenses que são, pela
ordem de inscripção: — Antonio Navaro de Abreu, João Gaudie Ley
e José da Costa Leite Falcão.
Como curioso subsidio á historia local ahi vão transcriptos,
ipsis litteris, os respectivos termos de matricula, sob ns: 8, 48 e 53,
por nós fielmente trasladados do Livro de Matriculas da Faculdade de
Direito de S. Paulo, correspondente aos annos de 1828 a 1848,
existente no archivo da mesma Faculdade:
N. 8 — Aos 2 de Março de 1831, perante o Dr. Secretario,
continuando-se a matricula comparecerão:
Antonio Navarro de Abreu, natural de Cuiabá, filho de
Antonio Navarro, idade 19 annos, juntou certidoens de idade e
exames preparatórios, exepto Geometria, o conhecimento e despacho
do Exmo. Director e matriculou-se assignando com o Dr. Secretario.
N. 48 — Aos 16 de Março de 1831 presente o Dr. Secretario
continuando-se a matricula para ell comparecerão:
João Gaudie Ley, natural da cidade de Cuiabá, filho de André
Gaudie Ley, idade 19 annos, juntou os documentos necessários,
menos o exame de Geometria, matriculou-se assignando com o Dr.
Secretario.
Ildefonso Xavier Ferreira
Dr. Falcão de Souza — Antonio Navarro de Abreu
___
(3) Annaes do Parlamento, Sessão de 8 de Agosto de 1826 e 9 do mesmo mez e
anno.
37
Ildefonso Xavier Ferreira Lopes
Dr. Falcão de Souza — João Gaudie Ley.
___
N. 53 — José da Costa Leite Falcão, natural de Cuiabá, filho
de José da Costa Leite, idade 20 annos, juntou os documentos do
costume, menos exame de Geometria, matriculou-se assignando com
o Dr. Secretario.
Ildefonso Xavier Ferreira
Dr. Falcão de Souza — José da Costa Leite Falcão
___
A Antonio Navarro de Abreu, o primeiro matriculando, cabe a
primazia também de haver sido o primeiro bacharel mattogrossense
formado em S. Paulo, figurando-lhe o nome entre os que collaram
grau na turma de 1835, o que vale dizer que fez o seu curso dentro
dos estrictos cinco annos em que foi fixado o curso jurídico desde a
sua primitiva organização.
Já em 31 de Dezembro do subsequente anno o encontramos
eleito deputado geral, com 25 annos apenas, pois, do seu
assentamento de baptismo existente a
38
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
fl. 40 v. do Livro 11 do cartório ecclesiastico, se deprehende ter
Navarro nascido a 6 de Julho de 1811. (4)
Spencer Vampré, no valioso estudo que sob o titulo
“Memórias para a Historia da Academia de S. Paulo” publicou
recentemente, dá, em curiosa relação dos formados pela tradiccional
Escola da Paulicéa, o nome de Navarro, como pertencente a turma de
1835 (5) nenhuma referencia fazendo, entretanto, a João Gaudie Ley,
o que induz acreditar haja este ultimado o seu curso no Recife, visto
serem esses os únicos estabelecimentos officiaes de ensino jurídico
existentes no Brasil a essa época.
Ao fallecer, em 1839, já o filho do Capitão-mór Gaudie
servira como Juiz substituto em Cavalcanti e juiz de direito em
Palma, ambas na então província de Goyaz, tendo desta ultima
comarca sido transferido para a de Poconé, em Matto Grosso, para
onde se dirigia quando foi assassinado.
Exigindo o art. 44 do Código do Processo de 1830, na secção
que regulava a organização judiciária, que os juizes de direito
tivessem um anno, ao mínimo, de pratica forense, prazo este que só
em 1841, pela lei de 3 de Dezembro, foi ampliado para um
quatriennio, é presumível que João Gaudie haja igualmente se
bacharelado em 1835, como o seu collega, amigo e parente Navarro
de Abreu (6).
Quanto ao terceiro matriculando de 1831, Costa Leite, a data
da sua formatura ressalta inequívoca, quer da supradita relação de
Vampré, quer do assento de sua carta de bacharel no Livro 1. de
Registro de títulos, existente no Tribunal da Relação, onde ella figura
a pags. 2, logo após á de Manoel Pereira da Silva Coelho, datadas de
16 de Março de 1838, a de Costa Leite, e de 17 de Março de 1837, a
de Silva Coelho.
É de se presumir qualquer circumstancia haja influído no
curso de Costa Leite de molde a causar-lhe semelhante atrazo, pois
distanciado dos seus companheiros de inscripção, veio a ser preterido
na formatura por outro matriculado depois delle, qual seja o seu
collega Silva Coelho.
Notar-se-á muito naturalmente a circumstancia de não virem
referidos pelos historiadores da Academia os nomes desses bacharéis
mattogrossenses, sendo que somente Almeida Nogueira, nas suas
«Tradições e Reminiscências Acadêmicas», menciona Costa Leite e
Silva Coelho, como pertencentes respectivamente ás turmas de 1836
e 1837.
Enumera esse mesmo autor, em varias épocas successivas, os
seguintes bacharéis da Faculdade de S. Paulo, naturaes da então
província de Matto Grosso: — Antonio Rodrigues do Prado Junior
(vol. I, pág. 141); (7) Agostinho Luiz da Gama, da turma de 1848, e
que foi sogro do dr. Aquilino Amaral (vol. III, pág. 30); José
Alexandrino Dias de Moura, fallecido em 1875, também da turma de
1848; Floriano de Souza Neves Junior, (vol. III, pág. 237); Antonio
Esperidião Gomes da Silva, da turma de 1868, (vol. IV, pág. 178);
Antonio Silvestre de Pinho, da turma de 1876, (vol. IV, pág.
(4) E do seguinte theor o referido registo: “Aos 28 de Julho de 1811 annos nesta
Igreja Matriz do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, baptizei e puz os santos óleos a
Antonio, branco, de vinte dois dias, filho legitimo do Te. Antonio Navarro e de D.
Maria Thereza Caldas: forão Padrinhos o Alferes João Poupino Caldas, Solteiro, e
Dona Anna de Alvim Poupino, viúva, e para constar se fez este assento
O Coadjutor:
Manoel Machado de Siqueira
(7) Deve ser parente, netto talvez, de Francisco Röiz do Prado, intrépido sertanista
e autor da “Historia dos índios cavalleiros ou da nação paraguaya» publicada na
Rev. Inst. I, 25 a 57 e referida por S. Blake, III, pág. 105.
(5) Obra citada, vol. II, pag. 730.
(6) Navarro e Gaudie eram primos co-irmãos, filhos de duas irmans de João
Poupino — Maria Thereza e Marianna, a primeira tendo esposado o 1º Navarro,
fallecido em 1825 e a segunda o Capitão-mór Gaudie.
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40
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
278); Aquilino Leite do Amaral Coutinho, da turma de 1864, (vol.
VI, pago 211); Ayres Augusto de Araújo, da turma de 1836, (vol.
VII, pag. 31), Joaquim Mendes Malheiros, da turma de 1852 (vol. II
pag.131) e Antonio Corrêa do Couto, da turma de 1857 (vol. VII,
pág. 152). Spencer Vampré é também parco em referencias acerca
dos primeiros bacharéis mattogrossenses na sua interessante obra a
que alludimos, mas convem ponderar que, alem de tratar-se de nomes
que, com excepção de Navarro, ficaram circumscriptos aos lindes
provinciaes, as fontes informativas são reduzidíssimas, sabido como
é que o Archivo da Faculdade foi quasi toda destruído por um
incêndio ateado por mão criminosa, em 1880 (8) e dos salvados
apenas uma parte se vai reconstituindo, graças aos esforços dos
funccionarios da Secretaria, entre os quaes nos é grato citar a Dr.
Julio de Barros, a quem devemos solicito auxilio nas pesquizas
emprehendidas.
Interessante e opportuno se nos afigura seguir as linhas com
que aos três matriculandos de 1831 traçou o destina o diagramma da
existência, prestes encerrada de maneira trágica para João Gaudie,
tristemente obumbrada em pleno esplendor para Navarro e apenas
para o ultimo calma e longa, cheia de serviços á sua terra natal.
Desde logo se deparam, atravez dessas três figuras
representativas, os três rumos differentes a que o bacharelismo se
tem, entre nós, atirado, como que, na continuidade do tempo,
acompanhando os traços dos três bacharéis mattogrossenses: — a
política, a magistratura e a advocacia.
Attrahido desde cedo pela sereia do partidarismo, a que o
propelliam, alem dos antecedentes paternos e do prestigio social da
sua família, as suas naturaes qualidades combativas, Antonio Navarro
de Abreu, mal sahido que fôra dos bancos acadêmicos, recebia dos
seus conterrâneos a investidura de representante da província na
legislatura de 1838 a 1840, verdadeiro “premio de formatura” (9)
que, lhe conferiam os amigos da sua família, ligada a Poupino, aos
Gaudie e Albuquerque, gente das mais prestigiosas da época.
Reconstituiu-lhe a curiosa e inestudada personalidade Virgilio
Corrêa Filho no seu valioso estudo “Os Navarros de Abreu”,
focalizando-lhe a figura de notável relevo na geração a que
pertenceu, uma das mais brilhantes e cuja actuação política imprimiu
profundos sulcos na vida do paiz, traçando-lhe a directriz histórica
nos dias agitados da Regência.
Avulta-se a acção impetuosa e ardida de Navarro nos debates
acalorados que se travaram na Câmara na phase memorável que
culminou na maioridade do segundo Imperador.
A novel província estadeava assim, logo ao abrir-se a era das
luctas parlamentares, o prestigio radioso da intelligencia numa figura
altamente representativa e cujo nome se insculpiria sem exagero, não
fôra o mallogro da sua vida, entre os dos notáveis tribunos do antigo
regimen.
Curta mas deslumbradora ellipse, a carreira de Navarro
apagou-se prematuramente: mixto de talento e desequilíbrio, os seus
ímpetos e arrebatamentos estavam a denunciar as taras ancestraes que
lhe desintegravam a normalidade das funcções psychicas.
Como um desses typos semi-geniaes e semi-loucos de que as
galerias psychiatricas se povoam, o fogoso deputa-
(8) A Nog.a Trad. e Reminisc. vol. II nota á pag.23.
(9) V. Corrêa Filho - “Notas á margem” — os Navarros, pág. 38.
II
41
42
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
do, deixando empos de si o rastro rutilante da sua coragem e do seu
talento, offuscou-se, em pleno vigor da vida, morrendo aos 34 annos,
tendo já se lhe obscurecido a razão, mezes antes, nas trevas
impenetráveis da demência.
Não menos desditoso que o seu comprovinciano Navarro, de
quem, sobre collega, era também parente, João Gaudie Ley, tendo
abraçado a remansosa carreira judiciária, teve os seus dias cerce
cortados, aos 28 annos, em dramático successo que teve o seu epílogo
alta noite, em solitária estrada goyana.
Com referencia á sua vida limitar-me-ei a reproduzir pequeno
tópico de outro trabalho meu, que mais desenvolvidamente se lhe
refere:
Depois da sua formatura foi nomeado juiz substituto da
Comarca de Cavalcanti e, preenchido o interstício legal, juiz de
direito da Comarca de Palma, ambas em Goyaz, donde foi em
seguida removido para a de Poconé, nesta então Província.
Quando se dirigia para tomar posse de sua nova Comarca, foi
assassinado por uma patrulha, a tiros de revólver, no lugar
denominado Anicuns. (10)
Si assim a adversidade vincou do seu ferrete implacável os
primeiros bacharéis mattogrossenses, (11) bem diversa foi, no seu
decurso tranquillo e prolongado, a existência do companheiro de
Navarro e João Gaudie — o Dr. Leite, como era geralmente
conhecido.
Tendo 20 annos quando se matriculou na Faculdade — em
1831— e vindo a fallecer a 2 de Fevereiro de 1881, attingiu a
avançada idade de 70 annos, durante os
quaes calma lhe transcorreu a vida, no seio da sua família e sempre
bem quisto na opinião dos seus contemporâneos.
(10) J. Mesquita — O Capitão-mór André Gaudie Ley e a sua descendência in Rev.
I. Hist. de M. Grosso, vol. VII, pág. 54.
(11) Não menos infortunado que os seus anteriores collegas, Manoel Pereira da
Silva Coelho tombou victima de certeiro tiro de bacamarte que em pleno dia lhe
desfechou João de Souza Ozório, em 24 de Setembro de 1874. (Estevão de
Mendonça — Datas Mattogrossenses II, 175.)
43
Casado, em 1841, com uma irman do seu collega Dr. João
Gaudie, de nome Constança Carolina, foi o tronco da numerosa
família Gaudie—Leite hoje ramificada por todo o Estado.
Filiado ao partido conservador, exerceu varias vezes o
mandato de deputado provincial, cuja Assembléa presidiu em mais de
uma legislatura; foi também Chefe de Policia, em diversas
administrações, e tendo iniciado a sua carreira como juiz municipal,
encerrou-a no cargo de Procurador Fiscal da Thesouraria da Fazenda,
no qual se aposentou.
Era, quando morreu, 3º Vice-Presidente da Província e
Membro do Conselho Litterario.
Mais se lhe fez sentir, porem, a acção no exercício do nobre
múnus advocatório, notabilizando-se como um causídico de valor,
que alliava a uma illustração incommum naquelle tempo, fácil dicção
e virtudes de eloqüência que lhe grangearam innumeras victorias no
pretório.
A sua bibliotheca jurídica, vasta e escolhida, grande parte da
qual me foi dado conhecer, era, por seguro, a primeira de sua época
em Cuyabá, constituindo-se índice de sua apreciável cultura na vasta
sciencia dos Caios e Ulpianos.
Noticiando o seu passamento assim se exprimiu, na sua
edição de 6 de Fevereiro de 1881, “A Província de Matto-Grosso” em
depoimento tanto mais expressivo quando se attentar ser essa folha o
órgão do partido que lhe era adverso:
«Já não existe o distincto e illustrado Cuyabano e nosso
amigo, o Sr. Dr. José da Costa Leite Falcão.
44
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Baixou á calma na idade de 70 annos!
O sopro gélido da morte pousou sobre aquella fronte, onde o
talento, o gênio, e a eloqüência havião feito a sua morada.
Ás 7 1/2 horas da noite do dia 2 do corrente, aquelle coração
sempre propenso ao bem, deixou de pulsar pela família que
idolatrava, pela humanidade desvalida, que foi sempre o seu maior
cuidado, pela pátria, por quem se estremecia, e finalmente pelos seus
amigos pelos quaes se desvelava.
Tão puros e tão nobres erão seus sentimentos d’alma, que no
sacrário daquelle seio jamais se aninhou o vil ódio, o rancor e nem a
mesquinha vingança...!
Adepto das leis do Cordeiro Immaculado sabia perdoar a
injuria, retribuindo ao offensor, quando o procurava, com sinceros
affectos.
É rara tanta virtude concentrada num coração humano!
Surprendeo-lhe a morte, quando, como um dos illustres
membros do Conselho Litterario, havia já elaborado um pomposo e
eloqüente discurso, que devia recitar no dia 3 — dia seguinte ao da
sua morte — por occasião da distribuição das cartas aos alumnos—
mestres da Escola Normal, que terminarão no anno p. findo o seu
curso!
Poucos dias antes da sua morte, então já bastante adiantada a
sua enfermidade, com grande esforço balbuciava um ou outro tópico
do seu discurso.
Conhecendo próxima a sua ultima hora, deu a seu genro,
nosso amigo sr. Dr. Augusto Novis uma resposta cheia de uncção e
digna de um verdadeiro christão, quando lhe perguntara:
«— Como vai Doutor?
— Mal e muito mal... accrescentando: sei que morro... Quero
conhecer de perto a Deus e seus attributos !»
III
45
Durante muitos annos foi a tradiccional Escola da Paulicéa a
única preferida pelos nossos jovens patrícios que se destinavam á
carreira do Direito.
Concorriam para essa predilecção, alem da natural facilidade
decorrente da menor distancia, as relações mais estreitas entre as duas
províncias, cujas transacções de ordem commercial sempre foram
mantidas regularmente, constituindo-se S. Paulo ponto de transito ás
tropas que desta Capital se dirigiam á Corte.
Facilitava se assim a remessa dos necessários recursos aos
estudantes por meio dos correspondentes, em geral negociantes que
tinham relações de ordem mercantil com as casas de Cuiabá,
chegando a. formarem-se, na poética cidade do Tietê, vários grupos
de acadêmicos mattogrossenses, “republicas” que se celebrizaram
nos fastos da estudantada de tempos idos.
Ainda hoje são rememoradas as gerações a que pertenceram
Aquilino do Amaral (da turma de 1864), Pereira Leite, (da turma de
1889), Ferreira Mendes, João César de Arruda, e Costa Marques (da
turma de 1891), Luiz Serra (da de 1894), para não alludir a mais
recentes nomes, cuja passagem pelas tradiccionaes arcadas dos
“geraes” é ainda de hontem.
Os bacharéis mattogrossenses, de resto, illustraram quasi
sempre lá fora o nome da província a que pertenciam, chegando
vários delles a se tornar verdadeiros nomes nacionaes, como Manoel
Murtinho (de 1869 e os Pádua Fleury — André, João Augusto e
Augusto o primeiro e o ultimo formados por S. Paulo, em 1853 e
1860, respectivamente, os quaes, na política, na magistratura e na
diplomacia muito se distinguiram.
Confinados a, uma carreira puramente local, nem por isso
menos dignos de apreço sobrelevam os nomes de Joaquim Mendes
Malheiros, da turma de 1852, uma
46
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
intelligencia invulgar, servida de copiosa erudição ainda não
devidamente estudada: Antonio Corrêa do Couto, da turma do 1857,
jornalista, político e poeta desde os verdes annos; Caetano Xavier da
Silva Pereira, formado em 1859, o fundador d”O Liberal”, membro
do Instituto dos Advogados da Corte e figura intellectual de destaque,
que a morte ceifou precocemente; os Metellos — José Caetano e José
Maria, formados ambos em 1876, no Recife, para onde também se
transferiu Costa Ribeiro, que tendo iniciado em S. Paulo o seu curso,
veio a concluil-o em 1882, na Faculdade nortense. (12)
É digna de nota essa quasi exclusiva predilecção manifestada
durante muito tempo pelos nossos comprovincianos pela carreira
jurídica, raros sendo os que se destinavam á medicina, como Luiz
Gaudie Ley, e mais raros ainda á Engenharia, — cursos estes que,
talvez por não offerecerem, na época, propicio campo á actividade na
província, não conseguiam attrahir os nossos estudantes.
Só em época relativamente recente, com os Murtinho,
Joaquim e José, Corrêa da Costa (Antonio) e outros é que vai
desapparecendo o exclusivismo primitivo, atirando-se os nossos
patrícios a outros cursos, podendo se dizer que actualmente vai a
bacharelophilia diminuindo da antiga intensidade, graças á
concorrência estabelecida pela infiltração de elementos extranhos e,
por outro lado, aos novos horizontes que se vão abrindo á
perspectiva, com o povoamento da zona sul e o incremento das
industrias, rumando assim novas vocações para o commercio, a
agronomia, a veterinária e outros cursos que já agora offerecem aos
que os procuram vantajosas probabilidades.
Não deve ser isso, porem, circumstancia de molde a nos fazer
olvidar que foi por meio dos bacharéis que se orientou a incipiente
cultura mattogrossense, num período de indecisões e embaraços, e a
esses ancestraes dignos de admiração e apreço, nunca será de regatear
o nosso commovido preito pelo que, em prol do bom nome de sua
terra, lhes foi dado realizar — obreiros, muitas vezes obscuros, mas
sempre beneméritos, do progresso mental que presentemente fruímos.
Cuyabá, Dezembro 1924
(12) A elle se refere, na “Vida Alegre”, Valentim Magalhães, a cuja brilhante
geração pertenceu, ao lado de Affonso Celso, Theophilo Dias e outros gloriosos
nomes destinados a se gravarem em relevo nos nossos fastos literários ou políticos.
47
48
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Relação dos Bacharéis mattogrossenses formados pela
faculdade de Direito de S. Paulo.
(1835 a 1894)
N.de
ordem
1)
2)
3)
4)
5)
6)
7)
8)
9)
10)
11)
12)
13)
14)
15)
16)
17)
18)
19)
20)
21)
22)
23)
24)
Nome
Antonio Navarro de Abreu
Ayres Augusto de Araújo
Manoel Pereira da Silva Coelho
José da Costa Leite Falcão
Agostinho Luiz da Gama
José Alexandrino Dias de Moura
Joaquim Mendes Malheiros
André Augusto de Pádua Fleury
Antonio Corrêa do Couto
Antonio Rodrigues do Prado
Caetano Xavier da Silva Pereira
Augusto César de P. Fleury
Floriano de Souza Neves Junior
Generoso Alves Ribeiro
Aquilino Leite do A. Coutinho
Antonio Esperidião Gomes da Silva
Manoel José Murtinho
Antonio Silvestre de Pinho
João Carlos Pereira Leite
João César de Arruda
Joaquim A. da Costa Marques
Joaquim P. Ferreira Mendes
Joaquim Olympio Leite
Luiz Serra
49
Anno
formatura
1835
1836
1836
1837
1848
1848
1852
1853
1857
1858
1859
1860
1860
1861
1864
1868
1869
1876
1889
1891
1891
1891
1892
1894
Crimes celebres
I
Generalidades
EUCLIDES DA CUNHA, numa das suas paginas geniaes,
traçando o conspecto anthropologico do sertanejo, frisou haverem os
nossos caboclos provindo, «de um amplexo feroz de victoriosos e
vencidos», tendo, por isso mesmo, encontrado ao surgir no theatro da
vida «uma rude escola de força e de coragem», em que o cruzamento
de raças heterogêneas age como «um estimulante á revivescência dos
attributos primitivos» (1) Dahi, naturalmente, essas freqüentes
explosões da criminalidade rudimentar, de fôrma regressiva, que
pontuam de sangue os annaes da nossa historia, desde a época da
occupação bandeirante, facto que outro grande estudioso da nossa
psychologia collectiva, Oliveira Vianna, attribue ainda ao phenomeno
da «heterochronia entre a marcha territorial da sociedade e a marcha
territorial do poder, essa sorte de discordância entre os dois
perímetros, o social e o político» (2)
50
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Não escaparam á observação dos nossos administradores do
regime imperial, homens no geral experimentados, essas
circumstancias fautrizes dos attentados ávida e á segurança, muito
communs naquelle período. Assim é que Augusto Leverger, no seu
relatório de 1863, com que entregou o Governo da Província a
Albino de Carvalho, salientava que “a estatística criminal do Império
mostra que o numero dos attentados contra a vida, e a propriedade,
perpetrados por pessoas pertencentes á população civilizada, não hé
maior nesta do que em outras Províncias, e particularmente naquellas
onde a vastidão do território e a disseminação dos seus habitantes
muito contribuem a dificultar a prevenção e repressão de taes
crimes. E depois de notar que «não ha entre nós quadrilhas de
salteadores, que ameacem a quem mora ou viaja pelos nossos
extensos sertões », faz ver que «os homicídio e ferimentos são quasi
sempre o resultado de rixas entre indivíduos da ínfima classe, as mais
das vezes no estado de embriaguez.» (3)
João José Pedrosa, notável entre os governadores de Matto
Grosso no regime monarchico, igualmente aponta, em seu relatório
de 1872, alem da «falta de instrucção moral e religiosa» e da
«ociosidade em que vive uma grande parte da população», como
causa geradora de crimes na Província a «deficiência de recursos de
policia numa tão vasta extensão pela maior parte inhabitada e onde a
cada passo se offerecem meios de fuga e fácil homisio.» (4 )
Taes circumstancias, com que ainda hoje lucta a
administração, no seu papel repressivo da delinqüência, não têm,
entretanto, o mesmo relevo que se ha de emprestar aos elementos
psychologicos ou, melhor, raciaes, causadores, na formação do
sertanejo, de uma caracterizada tendência biotypologica para a
violência e para as soluções semi-barbaras nos chamados casos
passionaes. Não ha encarar isoladamente o factor meio, ou o factor
individuo, na gênese do crime. Já o salientou o mestre
Ingenieros, no seu livro admirável, ao dizer que «o delinqüente mais
anormal, mais tarado physica e psychicamente necessita encontrar no
meio condições propicias para delinqüir. De igual maneira, as
condições do meio ainda que sejam péssimas, necessitam actuar
sobre um caracter ou sobre um estado psychologico especial, para
arrastar o indivíduo ao delicto. (5)
Expostos esses princípios, que apropria penalogia consagra,
fácil é concluir que admirável caldo de cultura para as mórbidas
manifestações do crime seria essa nova sociedade, formada de uma
miscigenação extraordinária, desenvolvida á solta, num ambiente em
que o império da lei mal se fazia sentir, dominada pelos imperativos
do instincto e da força. A índole, porém, do nosso sertanejo, de fundo
pacato e dócil, não permittiu, entre nós, a formação do typo do
bandoleiro ou do jagunço nordestino, infestando o interior com o
flagello das suas correrias selvagens. O crime ficou sendo mais a
explosão de estados de psychose individual, de ódios reprimidos,
vinganças políticas ou pessoaes, desabafos de afrontas ou vexames á
dignidade e á honra. Isso, nas classes media e superior, porque, na
plebe, quasi sempre, entra, por maior factor da delinqüência, o alcool,
superexitador dos baixos sentimentos da animalidade, arrebentar em
crises quasi sempre motivadas pela libido ou pela ambição.
Rastreêmos, desde os tempos coloniaes, os casos mais
interessantes e de maior sensação nos fastos da criminalidade no
meio cuyabano.
51
52
II
Período colonial
Chronologicamente, o primeiro crime de que rezam os nossos
annaes é a morte de Thomé Annes, praticada por um escravo, no
Ribeirão. Assim vem relatado
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
o sensacional evento nas Chronicas de Cuyabá, referentes ao anno de
1727: «Sobreveio a isto o matar hum negro por nome José escravo de
João Antunes Maciel a hum homem branco por nome Thomé Annes
e nas Lavras do Ribeirão tirando os Juizes Ordinários devaça
pronunciarão o matador e fizerão-no prender.» (6) Deu logar este
delícto a serias desavenças entre o Governador Rodrigo César, que se
achava em Cuyabá desde o anno anterior, e o Ouvidor Antonio Alves
Lanhas Peixoto, que com elle viera. É este o primeiro conflicto que a
nossa Historia registra entre autoridades administrativas e judiciárias,
empenhadas estas no cumprimento da lei e valendo-se aquellas do
arbítrio para fazer preponderar a sua vontade. Continuemos a
narração dos factos que se seguiram ao homicídio de Thome Annes,
acompanhando-os através da própria linguagem pittoresca e
impressiva dos “Annaes do Senado da Câmara” no original existente
na Bibliotheca do Estado: Queria o General que o Ouvidor fizesse
enforcar o negro, dizendo que para exemplo dos mais, respondia-lhe
o Ouvidor que o fizesse sua Excellencia que em semelhantes casos
tinha despótica autoridade como General; ou que o fizesse o Povo,
que elle o não impedia, e não elle como Ministro que só estava
obrigado a goardar as leys, e que estas lhe não davão tal autoridade;
nem esta Ouvidoria tinha ainda Regimento dado por sua Magestade,
em que tal poder se lhe desse.» (7)
A contenda se prolongou por algum tempo, azedando-se, com
geral excitação de ânimos, acabando o atrabiliario Rodrigo César por
dizer ao magistrado cioso das leis «que ou enforcasse o negro, ou se
desse do cargo de Ouvidor, que elle proveria quem muito lhe
parecesse» ao que retorquiu Lanhas Peixoto que lhe fizesse por
escripto tal determinação, «para nelle ter sua defeza.»
Não trepidou o truculento General em fazê-lo, enviando uma
carta ao Ouvidor, que, assim justificado, dei-
xou — diz o chronista — o cargo, e a Villa, e foi com o Brigadeiro
Antonio de Almeida para a Chapada, por onde andou alguns tempos
em descobrimentos de ouro, e cassando perdizes. Livre assim dos
escrúpulos do juiz, poude o Governador dar largas ao seu intento
caprichoso e nomeou Ouvidor a Antão Leme, «aconselhando-o (a
expressão é muito euphemistica) que enforcasse o negro, o que logo
se executou.»
Esse curioso e typico episodio que envolve o primeiro e
sensacional crime relatado em nossas chronicas, diz bem do
escândalo que teria cercado o caso, por se tratar de um escravo que
praticara o assassínio de um senhor. No original dos Annaes se diz
que o negro matou a seu senhor, mas a chronica barbosina, mais
minudente no referir nomes e circumstancias, traz a versão acima
estampada, pela qual se vê que Thomé Annes foi morto por um
escravo dos Antunes Macieis.
Ordonhes, em nota marginal aos Annaes, contesta a existência
da carta de Rodrigo César ao Ouvidor, pelo facto de não haver sido a
mesma registrada nem lhe constar qualquer referencia na que o
Governador escreveu a Rodrigo Bicudo. Entretanto, como bem
salienta V.Corrêa Filho, em suas annotações ás Chronicas, louvandose na opinião sensata de Toledo Piza, «esse argumento, comquanto
muito razoável, não destroe a affirmação do outro, porque si o
registro da carta era conveniente, não era absolutamente necessário
para provar a sua existência. Reconhecida a firma do General e bem
guardado o documento, ficava Lanhas garantido.» (8)
Como quer que seja, não se poderá dizer que a impunidade ou
mesmo a clemência ou o sentimentalismo hajam coroado o primeiro
crime praticado nas minas de Cuyabá: ao contrario, dura e rija
punição se lhe seguiu, consoante os costumes da época, severíssimos
em se tratando de um caso como esse, de subversão da hierarchia
social.
53
54
GENTE E COISAS DE ANTANHO
***
Oito annos após, novo e sensacional delícto occorreu com o
assassínio de Manoel Rodrigues do Prado, conhecido por Manduassú,
natural de Pindamonhangaba, homem tido e havido por valentão, que
as chronicas assim descrevem: mulato fusco corpulento extremado
em forças e valor.
Exerceu muitos annos as funcções perigosas de capitão do
matto, tornando-se celebre por seu arrojo e destemor. Succumbiu,
entanto, miseravelmente, ás mãos de um miliciano, cujo nome nem
siquer os Annaes registram. As chronicas evidenciam-lhe a coragem,
posta de manifesto em mais de uma opportunidade, principalmente
num recontro com os Payaguás, em que vinha por piloto de uma
canoa, tendo junto de si sua mulher, mulata como elle, que carregava
as armas para que elle fosse atirando sobre os selvagens. No accesso
da refrega, não errava a pontaria e «dando rizadas e acenos aos infiéis
que chegassem», pôs em retirada os índios, e perseguindo-os ainda
«deu sobre elles, matando a muitos.»
Cm toda essa formidável bravura — quasi sempre é essa a
sina dos mata-mouros — findou os dias victimado por um «vil
soldado, que nada valia nem nome tinha.» (9)
JOSÉ DE MESQUITA
Em 1778, rumoroso crime abalou a Capitania, com a morte do
Ouvidor Luiz de Azevedo Sampaio, assassinado a tiro por José
Tavares Barbosa, português, natural do Bispado do Porto. (10)
Não foi esse o único attentado contra representantes da
Justiça, na phase colonial. Em 1784, o Ouvidor que áquelle
succedera, Dr. José Carlos Pereira, foi alvejado, na Missão de
Sant’Anna da Chapada, por um tiro de arcabuz, que
«miraculosamente o não acabou logo alli.»
Attribuiu-se primeiramente a aggressão mysteriosa aos índios
da Missão, que trabalhavam nas obras da egreja, sob direcção do
referido Ouvidor, «por serem desconfiados e vadios, e haverem sido
algumas vezes disto mesmo reprehendidos pelo dito ministro.» (11)
Aberta devassa, em Cuyabá, sobre o lamentável caso, apurouse ter sido mandante do crime o português Pedro Marques Henriques,
taverneiro, que o Ouvidor fizera prender no segredo por indiciado no
homicídio de um escravo de Manoel Nunes Ferreira Borges, morto a
açoutadas.
O executor da tentativa foi Pedro José dos Passos, mameluco,
natural de Ararytaguaba, que foi preso em Nova Coimbra, fugindo,
porém, quando era conduzido para Cuyabá, de maneira a nunca mais
se conseguir captural-o.
***
III
Outros crimes se deram, no período colonial, como o
assassínio e roubo de Miguel de Queiroz e seus dois companheiros,
que fugiam no rumo do Rio Grande do Leste, para não ir em soccorro
de Villa Bella, ameaçada pelos hespanhoes, em 1771. Perseguidos, á
ordem do Mestre de Campo Francisco Lopes de Araújo, foram
mortos e saqueados barbaramente pela escolta, chefiada por um
capitão do matto.
A transição do regime de absoluta sujeição, que caracterizou o
domínio, da Metrópole, para o de inteira liberdade, posterior á
Independência, assignalou-se, entre nós, por uma série de abalos e
convulsões do or-
55
56
O 2º quartel do século XIX
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
ganismo social, culminando no movimento de reacção nativista, mais
conhecido pelo nome de “rusga”, cujo centenário occorreu ha pouco.
Nesse lapso de tempo, os motivos de ordem geral e política
sobrepujaram aos demais na genese dos crimes, operando-se curiosa
catalyse que fazia desapparecerem, sob cor partidária, velhos ódios
pessoaes que acharam válvula fácil de escapamento e explosão.
A formidável trepidação que sacudiu até as bases a estructura
politico-social da novel Província, desde a deposição do ultimo
governador — o cupido e atrabiliario Magessi até a morte de Manoel
Alves Ribeiro, que marca o fim do regime do caudilhismo no 2º
reinado — polarizou em torno das ambições e rivalidades políticas de
predomínio todas as actividades na zona do Norte mattogrossense.
Claro índice dessa situação nol-o offerecem os archivos criminaes
coetaneos, em que, a cada passo, surgem os processos de devassa
para apurar conspirações e tentativas de motim, em Cuyabá, Villa
Bella e Diamantino, os centros de maior movimento naquelle
período.
Avultam os attentados anonymos, crescem de numero e
audácia os pasquins, nos quaes, como no de Matto Grosso, attribuido
a Matheus Vaz Pacheco, chegam a ser predicadas doutrinas
subversivas não só da organização política, mas da própria ordem
social, vanguardizando idéas amorlivristas, com avanço de um século
sobre os evangelizadores russos de hoje. (12)
Nessa athmosphera carregada de ódios e prevenções, deflagra,
violenta e incontível, a tempestade da reacção nativista de 1834, na
qual, sem que os seus orientadores pudessem impedir, a plebe e a
soldadesca amotinadas praticam os mais bárbaros assaltos á vida e á
propriedade dos portugueses e dos que os tentaram proteger, por um
natural sentimento de humanidade. Requintes de perversidade houve,
como o que se praticou
com Domingos José Pereira, a quem, depois de morto, cortaram as
orelhas, com as suissas e parte de cara (13); com o capitão João
Cardoso de Carvalho, cuja orelhas se diziam haver sido comidas pelo
corneta Pamplona (14), e com José Joaquim Vaz Guimarães, a quem
já defunto, furaram os olhos com um bastão, e, por ser rábula, lhe
metteram uma penna na mão. (15)
O furor collectivo, espécie de epilepsia das multidões, explica,
posto não justifique, taes excessos, que culminaram na eliminação de
Poupino, em 1837. O ambiente, entretanto, não se serenou com o
desapparecimento do caudilho cuyabano, substituído que foi o seu
predomínio pelo do não menos perigoso agitador, Manoel Alves
Ribeiro, de origem poconéana.
Isto, porém, pertence mais de perto a um estudo politicosocial da evolução do caudilhismo em Matto Grosso, que, em nos
dando Deus vida e saúde, será feito a seu tempo, como complemento
á vida de Poupino.
57
58
***
Nas décadas de 1830 a 1850, os crimes de origem
propriamente pessoal, dimanados de vinganças ou questões de honra
e paixão, são muito mais raros que nos períodos subseqüentes.
Conseguimos, todavia, rastreando informes pelos archivos, annotar
os seguintes, de maior vulto e causadores de mais profunda sensação.
Na noite de 11 para 12 de Março de 1832, a caburé Maria
Pereira esfaqueou, na rua do Mundéo, a Paschoal Maciel, sendo que
do processo não consta o motivo determinante do crime, a não ser a
referencia feita na policia pela própria victima de «ser ella uma
louca.» A delinqüente foi absolvida unanimemente pelo jury, a 19 de
abril de 1834 — donde se vê que vem de muito tempo a tão
malsinada benignidade do tribunal popular.
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Em 1834 — no anno trágico da “rusga” — um duplo e
bárbaro delicto occorreu no quarteirão do Aguassú, matando Antonio
de Souza Neves a sua própria mulher e sogra, a foice, por ter aquella
o abandonado, passando a residir na companhia desta.
Nota curiosa: os autos do processo trazem, no rosto, pintado,
o instrumento do crime, decalcado no tamanho natural. Homiziado,
não compareceu a julgamento, permanecendo impune o feroz
criminoso.
Dez annos após, em 1844, Inês de Oliveira, tecedeira de
panno, moça de pouco mais de 20 annos, fere mortalmente a José da
Conceição, com faquinha que utilizava para fazer cigarros. Haviam
se separado um anno antes, da ligação irregular que os unira, e elle a
procurara, com empenho, para a sua companhia, surgindo a contenda
por haver Conceição esbordoado um irmão de Ines, de menor edade.
Condemnada a 7 annos de prisão, cumpriu integralmente a pena.
Ainda no decennio de 40, já quasi ao findar a metade do
século, um delícto, aggravado por circumstancias de ferocidade
innominavel, abalou a pacata povoação de Brotas, nas cercanias de
Cuyabá. Mancummunados na lúgubre entrepresa, Antonio João do
Espírito Santo e Maria Lemes estrangulam, a 26 de abril de 1848, a
Inês Policiana de Figueiredo, mulher do primeiro, sendo a victima
encontrada dentro da própria casa, com o pescoço deslocado e toda
arranhada de unhas e dentes. A infeliz tinha em sua companhia duas
crianças, filhas do marido com Maria Lemes, que tornara para criar e
educar. Levada a jury, foi a assassina condemnada a galés perpetuas,
a 2 de novembro de 1850; o seu comparça, bem corno dois outros
indiciados, Manoel Antonio e sua mulher Lourença, fugiram, não
tendo sido possível encontral-os. (16).
IV
59
Uma pouca de estatística
A partir de 1850, o diagramma da criminalidade em Cuyabá
soffre, através de ligeiras oscillações, um lento e progressivo
accrescimo, podendo-se averiguar que as décadas de 60 e 70 foram
das mais sangrentas nos annaes da delinqüência em nosso meio.
Terá influído para isso o formidável abalo traumático
produzido pela guerra e, depois, pela violenta incursão da epidemia
da varíola, que dizimou, em dois meses — setembro e outubro de
1867 — a população cuyabana? O que é certo é que acompanhando a
curva evolutiva da criminalidade nesses decennios, se observa não
tanto a sua proliferação, como o surto mais freqüente de casos
sensacionaes, verdadeiras manifestações de uma diathese social
merecedora de melhor estudo.
Curioso e bem organizado mappa demonstrativo dos crimes
commettidos na Província, em annexo ao minudente relatório de
Miranda Reis, apresentado á Assembléa em 1874, nos facilita a tarefa
neste cotejo estatístico que vem elucidar quando atrás affirmaramos.
O trabalho a que nos referimos, elaborado com muita
precisão, especializado anno por anno e com a discriminação da
natureza dos delictos, traz a assignatura do Secretario da Policia,
Antonio Pereira Catilina da Silva e acompanha o relatório do Chefe
de Policia Dr. José Marcelino de Araújo Ledo Vega.
Como, entretanto, abrange apenas o período 1850 a 1872,
vimo-nos obrigados a densenvolver esforços no sentido de completar
a década de 1870, colligindo, nos papeis do departamento da Policia
existentes no Archivo do Governo, dados que nos permittissem
formar um juízo seguro acerca de todos os períodos supra referidos.
60
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Por ahi se vê que o record da criminalidade foi batido nos
annos de 1873 e 1861, respectivamente, com 83 e 80 detidos, dos
quaes mais de 25% constituídos por homicídios é tentativas desse
gênero.
Os annos em que menor numero de crimes se registrou foram
1867, com 13, 1865 com 16 e 1852 com 17, havendo apenas 3
assassínios no primeiro, 9 no segundo bem como no terceiro. Os
homicídios, de resto, sempre concorreram com mais elevada
proporção para a estatística criminal em nosso meio, podendo-se
notar um total de 257 detidos dessa ordem, alem de 69 tentativas,
num global de 957 crimes praticados nos 22 annos que medeiam
entre 1850 e 1872. Vêm depois as offfensas physicas graves em
numero de 148, os furtos, numa somma de 138, figurando com
parcellas mínimas os delictos contra a honra, de que ha menção
somente de 11 em todo esse longo lapso de tempo. (17)
Outra circumstancia para mencionada é a majoração do
numero dos roubos sobre o dos furtos, no período fatídico de 1873 a
1876, verificando-se a predominância do elemento da violência nos
crimes contra a propriedade, o que dantes se não observava. Assim é
que, em 1873, houve 7 roubos para 5 furtos, devendo para tal facto
concorrer a miséria que sobreveio ás calamidades do decennio
anterior e a existência de grande leva de forasteiros, sobretudo a
soldadesca vinda da campanha, super excitada pelo espetáculo
trágico da guerra.
Assignalam-se commmumente os delictos praticados por
praças do Exercito, quasi sempre contra indefesas mulheres da vida
airada, motivados por ciumadas ou embriaguez alcoólica. O álcool,
de resto, entra como poderosíssima força genetriz da delinqüência
nos meios ruraes e sertanejos, e mesmo na camada media da
sociedade citadina, como ao diante se verá, podendo-se affirmar que,
em cincoenta por cento, seguramente,
das infracções do Código Penal, figura como agente criminogeneo
esse perigoso excitante que Da Costa e Silva tão bem definiu, na sua
dupla acção, nestes dois versos admiráveis:
61
62
— Álcool, para esquecer os tormemos da vida.
E cavar, sabe Deus, um tormento maior!
***
Outra circumstancia que convem accentuar é a influencia
considerável exercida pela ignorância moral e religiosa do caboclo
alliada á sua extrema susceptibilidade em questões que se prendem
aos instinctos inferiores da animalidade. É fácil verificar que a
progressão da criminalidade vai descrescendo á medida que se
aproxima de um nível superior de cultura, o que já fazia Cardoso
Junior, em 1872, frisar em seu relatório, que «durante o anno de
1871, a maior parte dos crimes foram perpetrados fora desta Capital»
(18)
Ha zonas em que com maior freqüência se observam delíctos
aggravados por circumstancias de crueldade e selvageria: são, por
assim dizer, climas de franca expansão da criminalidade. Entre ellas
occupa logar saliente a dos engenhos, quer da Serra-Acima, quer do
Rio-Abaixo, e isso, como é fácil ver, pela intercorrencia simultânea
de dois elementos: a promiscuidade de vida com a escravaria
desabusada e a maior facilidade na obtenção e consumo de bebidas
alcoólicas. Em 23 crimes apontados como os mais notáveis, no
mesmo relatório, apenas três occorreram na Capital, cabendo a
primazia á zona ribeirinha, a jusante da cidade, onde se deram 5
crimes, seguido-se o districto serrano e o do Norte (Guia e Brotas),
com 4 cada um. É também digna de registro a considerável actuação
do elemento afro na gênese do crime e não só como agente activo,
para
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
o que naturalmente concorrem as causas ethnicas apontadas por Nina
Rodrigues (19) mas, principalmente, como objecto passivo do
delícto, nas explosões de vingança dos senhores, quando não aos
próprios parceiros.
Casos typicos encontrei que illustram ao vivo o que fica
asseverado no magistral ensaio de Gilberto Freire; «o negro foi
pathogenico mas a serviço do branco; como parte irresponsável de
um systema articulado por outros.» (20)
Em 1863, no logar denominado Poço, districto de Santo
Antonio do Rio Abaixo, D. Rita Ferreira de Souza, mulher do
hespanhol Antonio Coy Elipe, mata barbaramente, para obrigal-a a
confessar o auctor da sua deshonra, a sua escrava de 12 annos, de
nome Maria, mandando que se lhe atire o cadáver ao terreiro, donde
mãos piedosas o retiram para enterral-o. O processo, que terminou
pela absolvição da criminosa no jury, relata episódios
verdadeiramente dantescos, sobre os quaes mandam o pudor e a
ethica passar por alto.
Nesse particular, de maus tratos a escravos, é symptomatico o
inquérito aberto, em 1878, pelo Chefe de Policia Dr. Melchiades
Augusto de Azevedo Pedra, para averiguar a responsabilidade de
Bartholomeu Gonçalves de Queiroz, senhor do sitio da “Bocaina”,
também na zona rio-abaixense.
Foram apuradas verdadeiras atrocidades, cuja descripção
horripila, das quaes resultou a morte de mais de um infeliz filho de
Cham.
Na fazenda S. José, no rio S. Lourenço, o escravo Jeronymo,
em 1870, foi cruelmente mutilado por seu senhor, o boiadeiro João
Ferreira Junqueira, por simples rivalidades de senzala.
Longe fôramos si nos dispuséssemos a citar casos desse
gênero, de crimes praticados por senhores contra míseros captivos. O
reverso da medalha offerece-nos também specimens curiosos, como o
de Joaquina Africana,
que mata, em 1862, a sua própria senhora D. Rita Andreza de
Magalhães, em Rio Abaixo, e o de Victoriano, escravo de Antonio de
Moraes Delgado, auctor de infando attentado contra uma criança de 7
annos, no “Poço das Formosas” (Rio Abaixo), em 1844. Foi este
condemnado pelo jury a 3.500 açoites e a levar, durante 14 annos,
uma argola de gancho ao pescoço, devendo ainda pagar o dote á
menor Anna, filha de um chiquito, no valor de 40$000.
Avultam igualmente nos fastos da criminalidade local os
delictos praticados por escravos contra seus parceiros, como o de
Pedro, escravo de Felippe Carlos Antunes, do Livramento, que matou
um seu companheiro, quando dormia e o de Honorata, escrava do
Barão de Diamantino que, a 2 de março de 1867, atirou ao poço, por
pirraça a uma outra sua parceira, um filho desta, com 13 dias de
nascido. (21)
63
64
V
A década fatídica
Na impressionadora progressão da delinqüência em nosso
meio, póde se assignalar a década de 1870 como a mais lúgubre
seqüência de factos criminosos, revestidos de circumstancias
verdadeiramente trágicas e macabras. Quantitativamente, como
qualitativamente, esse decennio se releva nos annaes da
criminalidade, numa successão tetérrima de delictos, qual a qual mais
horripilante. O traumatismo produzido no seio da população
cuyabana pelos flagellos da década anterior a guerra e a peste —
deve, como frisamos, ter contribuído para criar um estado de
psychose geral, provocador dessas violentas explosões dos rudes
instinctos animalescos. A capital mattogrossense vivera dias agitados,
na perspectiva da invasão imminente, de que a
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
salvou o heroísmo sereno de Leverger e, depois, presa do cataclismo
formidável que foi a epidemia das bexigas, em 1867, que, em dois
meses, dizimou a quasi totalidade dos seus lares. As scenas
lancinantes, granguinholescas, que então se passaram, devem ter
deixado profundo sulco sobre a mentalidade daquella geração
soffredora, expluindo, depois, como uma rubra floração de sangue,
nos dramáticos eventos do decennio posterior.
A affluencia da soldadesca vinda do theatro da guerra, ainda
sob a impressão da grande carnificina de cinco annos, deve, como já
notamos, ter concorrido para o surto criminal dos annos setentistas
(22). Quasi se pode applicar a Cuyabá do após-guerra aquelle
conceito de Luiz Edmundo sobre o Rio colonial: «As facas e os
punhaes andavam sempre fora das bainhas; as sargetas empoçadas de
sangue.» (23)
A propósito, vale notar, de passagem, a primazia que tiveram
sempre a faca e seus similares — desde a foice e o facão ao
minúsculo cachiri e até o canivete — nos homicídios praticados em
Matto Grosso. A arma de fogo vem em segundo logar, figurando em
parcella menor os casos de estrangulamento e em quasi nulla os
envenenamentos. Dahi poder-se-á inferir o principio psychologico de
que os nossos delinqüentes, em geral, são levados por circumstancias
de momento, figurando entre os criminosos de occasião e não entre
os criminosos natos da classificação lombrosiana, sendo ainda digna
de nota a influencia extraordinária dos excitantes alcoólicos na
gênese dos crimes. Havia, de resto, a preoccupação, nas inquirições
policiaes ou judiciárias, de saber si o accusado estava
«espiritualizado» no momento de commetter o delicto.
Os beberrazes levam a triste primazia no rol dos auctores de
nefarios delictos e, no mais das vezes, os crimes praticados, quer na
baixa quer na media camada social, têm no alambique seu principal
factor.
Não descura a Policia na suspicaz vigilância dos meios onde a
crápula se expande em regabofes, jogatinas illicitas e outras
manifestações da malandrice. Assim é que nas “partes”
semanalmente enviadas ao Presidente aa Província pelo chefe do
departamento da segurança publica se observam, com freqüência, as
“batidas” nos antros do vicio, com prisão de elementos perigosos,
escravos, desordeiros, gente da ralé, que, nos “batuques” e casas
suspeitas, se divertem rumorosamente. (24)
Á frascaria reinante na plebe muitas vezes se incorporam
membros de outras classes, attrahidos pela força regressiva para o
nível inferior desses “deseixedos» cuja vida de “eterna e irremediável
miséria” Pio Baroja pintou admiravelmente no seu livro, que
descreve a tunantaria madrilhenha.
Temos do que fica asseverado uma comprovação typica no
facto occorrido a 3 de julho de 1876, de que falam as chronicas
policiaes: o Chefe de Policia Dr. Santos Ferreira fez, nesse dia, uma
diligencia ao Beco-Sujo, onde se realizava barulhento “batuque” e lá
encontrou, a par de meliantes e negros, vários guardas-nacionaes, de
boa extracção, que se irmanavam com os demais na estúrdia e na
vadiagem.
Esses pontos de reunião do populacho, frequentados por
escravos reincidentes na contravenção de «andar a deshoras» (25),
eram quasi sempre as alfurjas humanas, onde, como num excellente
caldo de cultura, germinava a fauna mórbida e sinistra do crime.
Nota-se ainda, nesse período de que nos occupamos,
circumstancia curiosa e para registrada, o maior numero de crimes
em que figuram, como victimas, mulheres, variando o agente, ora de
um, ora de outro sexo, com predominância, entretanto, do elemento
masculino.
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GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Também não deve ser posto de parte, por expressivo, o facto
observado na estatística da delinqüência cuyabana de serem muito
mais communs os crimes no verão, de dezembro a março, sobretudo
durante a quaresma, o que, de resto, se explica pela exacerbação
natural do organismo sob a influencia athmospherica abrazada
daquella estação, fazendo attribuir ao poviléu supersticioso esse facto
a «estar o diabo solto» em tal período do anno.
São todas estas pequenas annotações que poderão parecer
cousas de lana caprina a espíritos superficiaes e rudimentaristas que
entendem fazer Historia mediante simples arrolar de datas ou
transcripção de documentos, como si, á luz das novas concepções da
Sciencia do Passado, os factos não possuíssem a sua «alma», e suas
leis, que é preciso examinar, confrontar e deduzir dos acontecimentos
apparentemene desconcatenados.
VI
quelles que, por suas circumstancias próprias, podem e devem
constituir objecto de uma narrativa aparte, em que melhor se lhes
frise a curiosa delineação pathologica.
São elles o assassínio de Laureano Xavier, em 1872, em que
se depara o crime attribuido a objectivos políticos, cercado de densos
véus de mysterio; a morte do Dr. Silva Coelho, em 1874, typo do
delicto denominado de impulso por anomalia volitiva, e, finalmente;
os três formidáveis e sensacionalissimos crimes de fundo morbidopassional, que sacudiram a sensibilidade dos nossos pacatos avós,
entre 1875 e 1876, sobretudo pelos laços de sangue entre auctores e
victimas e pela selvageria atroz de que dois delles se revestiram — o
sororicidio da Rua de Baixo, o parricídio do Coxipó e o filicidio do
Beco do Ponce. Postos de parte, para capítulos especiaes, esses cinco
delictos, celebres entre os mais, arrolaremos, por hoje, succintamente,
os outros factos que ensangüentaram os fastos da vida cuyaban,
durante a década fatídica que se seguiu á guerra.
Crimes sobre crimes
***
Pode-se affirmar, sem afoiteza nem exagero, que a longa e
variada successão de crimes que as chronicas policiaes e judiciárias
cuyabanas averbam, no decennio 1870-1880, offerece á observação
todas as figuras da «psychologia clinica» do delicto, de que nos fala o
grande penologo argentino do “Homem Medíocre”. Apontal-as,
frisando-lhes o conspecto, um por um, fôra tarefa assaz longa, mais
para um estudo de criminologia comparada, o que refóge por inteiro á
índole deste modesto ensaio, que se propõe apenas a registrar os
factos de antanho, reavivando-os na memória dos de hoje.
Nessas condições, limitar-nos-emos a ligeiro relato dos crimes
mais importantes e de maior sensação na época, destacando dentre
taes, como característicos, a-
Abre o anno de 1871, logo ao seu nono dia, um crime bárbaro,
praticado, na rua da Fé, por um escravo de João Baptista de Almeida,
de nome Joaquim, contra uma indefesa mulher, Maria da Costa.
Abateu-a d tiros, suicidando-se em seguida: um perfeito antecipador
dos crimes ultra-modernos, nos centros de intensa civilização.
A seguir, no mesmo anno, só referindo os casos occorridos
dentro e nas cercanias da capital, apontaremos o homicídio, a
facadas, de Claro Fogaça de Sant’Anna, em Serra-acima, por
Francisco, escravo de Caetano Leite Pereira (10 de março); o
envenenamento de Balbino Ferreira da Cunha, pela mulher Regina
Alves
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GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Ferreira, propinando-lhe massa phosphorica (10 de Abril;) o
horrível parricídio de Albano José Francisco Pessoa, no logar
denominado «Mão de Pilão» (Rio Abaixo), levado a effeito a faca
contra o infeliz Francisco Pessoa (18 de junho); as mortes de dois
escravos, Caetana e José, no Monte Alegre (Chapada), por um
terceiro de nome Eleutério (20 de julho); o assassínio de Pedro
Paulista, camarada, pelo desertor Manoel Felippe, no Barreiro Preto,
Rio Abaixo, (23 de Agosto); o de Manoel Camillo da Costa, sargento
do 21, pelo seu collega de classe Henrique Frederico de Mesquita (17
de setembro); a morte do soldado Raymundo de Mello, praticada pelo
quilombola André — calhambola, diz o relatório donde extrahimos
estes dados — no Rio Manso do Sul (5 de novembro) e, para fechar
tão macabra seqüência, em que figuram quasi todos os meses, o
homicídio do preto Manoel João, pelo cabo do 21, Antonio Gouvêa
dos Santos, no Burity, S. Antonio do Rio Abaixo, no antepenúltimo
dia desse anno fatídico. (26)
O anno de 1872 encheo quasi todo o rumoroso caso da Ponte
do Rosário, em que tombou, varado por uma carga de bala e chumbo,
o Ten. Cel. Laureano Xavier, do qual nos occuparemos ao diante.
1873 offerece, como 1871, numerosa e impressionante cifra
criminal, iniciada, logo a 3 de janeiro, pelo homicídio do soldado
João Veríssimo Julião, do 20, pelo seu comiliciano do 19 Agostinho
Bispo Confessor, no bairro do Lavapés. A 12 de fevereiro, na própria
cadeia, o sentenciado Candido José Barbosa fere gravemente o seu
companheiro de presídio, João Francisco Padilha, a canivete, por
motivo futilissimo, havendo, ainda nesse mês, mais cinco crimes,
sendo um praticado em defesa própria, na fazenda “Recreio” (S.
Lourenço) por José Lucio Feitosa contra o guató João Vitoriano.
Março assignala-se por um único delido, a tentativa de morte do
argentino Angello Ceballos na qual figura como auctor Reinaldo
Francisco de Montalvão. Em Abril,
alem de três crimes de morte, um na Conceição, outro no logar
Leonor, e mais um terceiro no Coxipó Mirim, — todos na zona
suburbana — occorre, em pleno coração da cidade, á rua 27 de
dezembro, o celebre caso de Pedro «da mão queimada», antonomásia
por que se fazia conhecer o taverneiro Pedro Alves Ferreira dos
Santos. Allegando haver sido roubado em seis contos de reis por sua
ex-amasia Anna Evangelista, mata-a a facadas, ás 11 horas da
manhan de 28 de Abril, ferindo gravemente a Jeronymo Baptista da
Costa, em cuja companhia se achava a victima, e levemente a
Joaquina, prima da mesma, que tentou soccorrel-a. Foi condemnado a
galés perpetuas, e indo a novo julgamento, conseguiu ver minorada a
pena para 19 annos de prisão, sendo perdoado em Novembro de 1891
(27). Em Maio houve três crimes, um em Junho, três em Julho e
quatro em Agosto, sendo nos dias successivos de 2, 3, 4 e 5 do ultimo
mês. Desses, o mais original é o de Carolina de tal, que feriu o seu
companheiro Porfírio Moreira Lima, cabo da companhia de operários
militares do Arsenal de Guerra, servindo-lhe de instrumento do
delicto nada menos que uma serra da officina da própria victima!
Setembro entra para a estatística com três infracções do Código
Penal, com uma apenas Outubro, para quatro em Novembro e duas
no derradeiro mês do anno. (28)
No rol dos detidos contra a honra figura nesse anno
tristemente notável o rapto de três filhas de uma aggregada do sitio
do D. Dulcia de Macedo, na barra do Rio Manso, por escravos do
quilombo situado ás margens desse rio. (29)
O crime de João Osório enche da sua repercussão lamentável
o anno de 1874, como os de 1875 e 1876 se salientam, entre todos os
mais, pelos inauditos e bárbaros delictos a que acima já nos referimos
e que serão descriptos em capitulo a parte. Muitos outros occorreram
nesse biennio tristemente assígnalado pelos três
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GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
detidos mais infandos de que rezam os nossos annaes da
criminalidade: elles, porém, desapparecem e se eclypsam diante
destes últimos, a ponto de nem merecerem mencionados.
Em 1877, o thermometro do crime se mantem alto, como nos
anteriores annos, podendo se destacar, entre muitos outros detidos,
como o mais notável, a morte de Marianna da Gloria Soares, rapariga
de seus 20 annos, cabrita, que o corpo de delicto assim descreve: «cor
escura, estatura baixa, formas regulares», moradora no beco de D.
Francisca Viegas Muniz, no bairro de Pedro II. (Porto). Foi seu
assassino Pedro Nolasco da Costa Roriz, ourives, solteiro, de 45
annos, sendo o ciúme o móvel do crime, praticado friamente, a faca.
Passou-se o facto numa 5ª feira santa, 29 de março, á hora da
procissão, tendo os vizinhos accorrido aos gritos da infeliz que pedia
a seu algoz que não na matasse «pelas cinco chagas de Nosso
Senhor». Fero e deshumano, Roriz, sem attender ás supplicas da
pobre mulher, nem á reverencia de dia tão grande, abateu-a com
cinco facadas e, fugindo, pretendeu depois invocar a seu favor o
álibi, dizendo achar-se, á hora em que se deu o crime, acompanhando
a procissão do fogaréo! Em Setembro desse mesmo anno, na
Lagoinha, é morto o inspector de quarteirão Paulo Ermitão da Gama
por Francisco Mendes de Assis, quando procurava apaziguar uma
briga deste com a própria mulher. Encerra-se a seqüência sinistra do
anno com o covarde assassínio, a facadas, da velha Maria Magdalena,
a 11 de outubro, num ranchinho do Bahú, attribuido o crime á
escrava Inês, de D. Constança Perpetua Monteiro, sem que ficasse,
entretanto, esclarecida a autoria, e a morte, também a faca, da escrava
Catharina, de João Carlos de Pinho, praticada pelo sexagenário
Belisario Ferreira da Silva, em pleno dia, ás 8 1/2 da manhan de 9 de
novembro, num dos pontos mais transitados, á esquina da Rua
Antonio Maria com o Beco da Câmara.
Uma facada apenas, certeira, na sub-clavicular direita, fez
tombar sem vida a inditosa negra, excusando-se o criminoso sob o
pretexto de que foi levado a matal-a «porque ella não queria largar
delle»!
O penúltimo e o derradeiro anno do decennio sangrento ainda
não destoam do rhythmo dos anteriores, destacando-se, por sua nota
de crueza e selvageria, em 1878, o assassínio de Anna, por alcunha
50 litros, na rua do Bahú, ás 5 hs. da tarde de 25 de março, praticado
por Manoel José dos Santos, bahiano e sapateiro. Do processo consta
que vinha a victima com uma amiga para a procissão de Ramos,
quando a accometteu o seu antigo companheiro, dando-lhe duas
facadas — sempre a faca! — no peito, deixando-a morta
instantaneamente e ainda com a lamina cravada no seio! Philomena
Maria Isabel, que vinha com ella, relata, em seu depoimento, que o
motivo do crime foi Anna haver abandonado Manoel, por lhe não
convir mais viver em sua companhia, pois «até a roupa della já tinha
vendido!» (30)
Longe fôramos se pretendêssemos esmiuçar as chronicas
policiaes e judiciárias cuyabanas para arrolar todos os crimes
occorridos na década macabra que vamos historiando. Força é parar,
que mui longe já vai este, restringido embora aos factos de maior
relevo e somente dos que se deram na capital e seus arredores.
Em ulteriores capítulos deste ensaio, focaremos, como ficou
dicto, os casos sensacionaes que exigem melhor e maior
desenvolvimento.
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GENTE E COISAS DE ANTANHO
VII
Um erro judiciário
Na noite de S. José do anno de 1872, a pacata Cuyabá foi
abalada com a noticia de um crime praticado de maneira mysteriosa e
sorprehendente, relembrando, pelas circumstancias que o rodearam, a
morte de Poupino, occorrida trinta e cinco annos atrás. Mão segura e
certeira havia abatido, com um tiro de bacamarte, ás 10 horas da
noite, quando transpunha a soleira da porta de sua casa, á rua 7 de
Setembro, esquina da do Rosário, o tenente coronel Laureano Xavier
da Silva, figura de relevo na sociedade e na política da época,
proprietário da “Bicuda,” grande e famoso sitio ás margens do
Aricásinho, Commandante superior da Guarda Nacional e prestigioso
cabo eleitoral, filiado de pouco ao partido conservador.
Em tomo do caso sensacional teceram-se logo as mais
variadas conjecturas, pendendo desde logo a imaginação popular para
duas hypotheses — a de um crime político, determinado pela recente
attitude da victima, abandonando as fileiras do partido liberal em que
sempre militara, para abraçar a facção opposta e a de uma vindicta
privada, que se ligava a uma velha questão de captura de escravos
fugidos. As providencias tomadas immediatamente pelas autoridades,
das quaes nos dão conta minudentemente os autos do processo, bem
como o relatório do presidente Cardoso Junior, foram as mais
promptas e solicitas, tornando-se, porém, de nenhuma efficacia no
momento. (32)
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JOSÉ DE MESQUITA
Quando occorreu o attentado, o Chefe de Policia, Dr. Ernesto
Julio Bandeira de Mello e o Juiz de Direito da Capital, Dr. Antonio
Gonçalves de Carvalho, tomavam chá em casa do Dr. Caetano Xavier
da Silva Pereira, a alguns passos apenas do local onde se desenrolou
o drama nocturno. Ao ouvirem a formidável detonação, correram
todos em direcção á casa de Laureano, que logo se encheu de amigos
e curiosos. Já a inditosa victima da lúgubre tocaia havia sido
removida para o seu leito, onde o examinaram os médicos Novis e
Malhado, verificando seis ferimentos, sendo dois produzidos pela
bala, dividida por metades, e quatro por perdigotos ou sejam bagos de
chumbo, todos alojados na região abdominal e sacra, causando
profundas lesões orgânicas, com derrames internos e intensa
hemorrhagia externa. O tiro fôra desferido pelas costas, alojando-se
quasi toda a carga no corpo do infeliz alvejado. Emboscado nas
margens do carrego da Prainha, que passa pelo oitão da casa, o
criminoso desferira os seus projectis seguro de collimar a mira
visada, tanto mais quanto a noite clara de luar lhe favorecia os planos
sinistros.
Na residência de Laureano só se achavam, na noite do crime,
alem de sua esposa, D. Teresa Angélica da Silva, o seu filho P. João
Xavier da Silva e vários aggregados e escravos, entre estes o de nome
Constantino, que dormia no corredor junto á porta da rua, á espera do
seu senhor. Este negro relata, no seu curioso depoimento, haver visto
pouco antes, na ponte fronteira, «um individuo de cor parda, alto,
espigado e com paletó amarello,» que veio até perto delle, como para
o conhecer, seguindo até a esquina do Cassiano. Já depois de
recolhido, sentiu o tropel da mesma pessoa, que voltava e pouco após
conheceu a tosse do seu patrão e o rumor dos seus passos que se
aproximavam, ouvindo, quando elle «punha o pé no batente da porta»
a grande detonação de um tiro. (33)
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GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Foi elle quem, achando Laureano estendido no chão, o
recolheu para o interior da casa. Inúteis todos os soccorros, pois,
como dizem os clínicos no corpo de delicto, «o ferido foi
paulatinamente perdendo as forças, e, não obstante os meios
therapeuticos empregados, ás quatro horas da madrugada expirou,
depois dos mais horríveis soffrimentos. (34)
próceres liberaes, estivera na véspera, a negocio ou fazendo
despedidas. (37) Possuía uma fazenda no Morrinho das Três Barras
(Corumbá) e vivia de conduzir cargas pela via fluvial.
Esteve, sob a accusação de participe no crime, preso desde 19
de março de 1872 até fins do anno seguinte, quando, desviadas para
nova pista as attenções das autoridades, se lhe patenteou a innocencia
e lhe deram incontinenti a soltura.
***
***
Attribuida desde logo, através da própria supposição da
victima, vehiculada pelas pessoas da sua família, a causa do crime a
moveis políticos, norteou-se nesse sentido a investigação em toda a
primeira phase do processo. O padre João Xavier não trepida em
accusar o chefe liberal, que, aliás era seu padrinho e compadre do
assassinado, incriminando-o, no seu depoimento. (35) Preso na
mesma noite do crime, o indivíduo Joaquim José Pereira, por alcunha
Joaquim Ourives, sobre quem recahiam as suspeitas de mandatário
do crime, toda a primeira phase do processo gira em torno da
hypothese architectada em detrimento do partido liberal, que se
achava na opposição, e ficaria assim com a pecha ignominiosa de
fazer uma política de sangue e de selvageria. (36)
Joaquim Ourives achava-se na sua prancha, já carregada,
devendo partir para Corumbá no dia seguinte, quando accordou —
ouçamos as suas próprias declarações — «vendo-a cercada por praças
de policia que me davão voz de prisão.»
Joaquim Ourives attrahira desconfianças de ser o auctor de
delicto, dadas as suas relações com o Barão de Aguapehy, em cuja
casa, bem como na de outros
De fs. 87 em diante dos autos-crimes, se desenvolve o
«segundo inquérito pelo assassinato do Ten. Cel. Laureano Xavier da
Silva», completamente modificados os rumos primitivos das
pesquisas penaes em torno do rumoroso caso. Passam a figurar como
co-responsáveis pela morte de Laureano Xavier os moradores do
Carandá (Livramento) Francisco de Souza Canavarros, seu sobrinho
José, por antonomásia Cajuca e o escravo Januário, que passou a ser
a personagem central da conjura que determinou o crime. Afastada a
versão que emprestava caracter partidário ao bárbaro homicídio,
formou-se acerca do mesmo nova urdidura policial e judiciária,
visando agora explical-o como a explosão de uma vindicta particular.
Januário fôra escravo de José Luiz de Oliveira Machado, o
«gato-grande», tocando na herança deste á sua viúva, que o libertara
em testamento, segundo declarações que fez o próprio Januário, o
qual attribuia a Laureano Xavier, como procurador do filho de
Machado, haver peitado a Francisco Pereira de Moraes Jardim para
consumir os papeis de sua alforria. (38)
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GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Como quer que seja, verídica ou não essa assertiva, Januário
vivia no Carandá, como aggregado dos Canavarros, que eram seus
devedores de quantias que elle ia economizando, destinadas a
comprar a sua liberdade. As relações entre o negro e a gente
Canavarros eram de natureza tão intima que Januário vivera
amasiado com uma prima de Cajuca e preso, em dias de janeiro de
1872, recolhido ao engenho Chimbuva, donde deveria ser remettido
para Cuyabá, afim de ser entregue ao seu dono, os Canavarros
promoveram-lhe a soltura, de forma violenta, indo, na noite de Reis,
auxiliados pela escuridão e pelo temporal que havia, com a
coadjuvação do escravo Victor, do mesmo engenho, arrancal-o do
tronco e dar-lhe liberdade.
Todas essas circumstancias formaram o quadro de
probabilidades em torno do qual se delineou a nova perspectiva do
crime: presos, no seu sitio, os indigitados, e o escravo Januário,
segue-se nova devassa, já então presidida pelo Chefe de Policia Ledo
Vega, na qual foram inquiridas, reinquiridas e acareadas innumeras
testemunhas, quasi todas carandistas e moradores do Bebe-Agua e
cercanias do sitio dos Canavarros.
Sobre estes — gente rústica e laboriosa (39) pesava a grande
cumplicidade de serem acoitadores do escravo, seus devedores e,
portanto, interessados em o proteger. Januário depôs, sem
vacillações, affirmando haver acompanhado os dois Canavarros, na
noite de S. José, até a beira do rio, tendo elles voltado, depois de
algum tempo, atravessado novamente, havendo Francisco lhe
declarado a forma porque praticára o delicto, nestas palavras:
«Esperei-o dentro do córrego (sic) abaixo da ponte e quando elle poz
o pé na solleira da porta firmei o ponto} dei-lhe o tiro e elle cahio
berrando como uma cabra.» (40) Apesar de nunca haverem
reconhecido a sua interferência no crime, e, ao contrario, sempre a
negarem, foram os Canavaros arrastados á barra dos pretórios
policiaes e judiciários, e como todos
os indícios tramassem contra elles, (41) pronunciados por despacho
do Juiz Dr. Antonio Gonçalves de Carvalho, datado de 6 de julho de
1874, sendo o primeiro, Francisco de Souza Canavarros,
comprehendido no art. 192 do Código Criminal, como executor, e os
dois últimos como cúmplices — José e o escravo Januário. O libello
offerecido a 8 de agosto seguinte, pelo promotor João Maria de
Souza, arrola 48 testemunhas, sendo 15 de numero, outras tantas de
referencia e 18 simplesmente informantes.
Como advogado dos Canavarros, apresentou o dr. Pedro de
Alcantara Sardemberg a contestação ao libello, allegando o álibi e
averbando de suspeito o depoimento do escravo Januário.
Não chegaram, porém, a entrar em julgamento. Preparado o
processo para o jury, um acontecimento imprevisto e sensacional
veio fazer luz sobre o caso mysterioso e patentear a inculpabilidade
dos indiciados, victimas de um tremendo e doloroso erro de justiça.
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78
***
O cônego Benedicto de Araújo Filgueiras, coadjutor do
Curato da Sé, foi chamado, uma noite do anno de 1880, para ouvir de
confissão a João Valério Rodrigues, açougueiro, morador no Areão, e
que se achava em artigo de morte. Ante a declaração feita pelo
agonizante de haver sido o matador de Laureano Xavier, exigiu-lhe o
sacerdote a confissão testemunhada, para poder salvar os innocentes
que vinham sendo injustamente accusados.
Fel-o o moribundo e os suppostos criminosos foram dados á
liberdade, em virtude de um habeas
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
corpus que annullou todo o processado (42). O erro judiciário que os
trouxera afastados do lar e do seu centro de actividade produzira,
entretanto, todos os maléficos resultados que eram de se esperar, com
a derrocada da família e dos haveres dos inditosos carandásistas.
Inútil, irônica mesmo, se antolha, em casos taes, a reparação judicial:
só uma, a da consciência, que tem as suas sancções no Tribunal mais
alto, pode valer em contingências como esta.
Silva Coelho da prisão, como o de Laureano foragira da vida, pelo
supremo alvará liberatório, que é a morte.
VIII
O crime de anomalia volitiva
(João de Souza Osório)
Contrasta, quasi em toda a linha, com o caso relatado no
capitulo antecedente, o crime do Cel. João de Souza Osório, que faz
objecto desta memória, na parte que ora vamos perlustrar. De passo
que Laureano foi morto mysteriosamente, nas trevas da noite, num
recanto quasi de arrabalde, permanecendo envolto em sombras o caso
negregado, o dr. Manoel Pereira da Silva Coelho cahiu baleado em
pleno dia, ás 10 horas da manhan, numa rua central e de grande
transito, havendo o assassino sido preso em flagrante, e confessado,
sem subterfúgios, o delicto que acabava de praticar. Pontos de
affinidade apenas dois, talvez, ocorreram entre esses factos,
separados pela pequena differença de dois annos e meio: a sorpreza
com que foi commettido um e outro crime e a impunição que, em
ambos os casos, se seguiu ao delicto, evadindo-se o assassino de
79
***
Cerca de dez horas da 5ª feira, 24 de setembro de 1874, o dr.
Manoel Pereira da Silva Coelho, juiz de direito avulso e advogado,
seguia, como era seu habito, montado num burrinho escuro, pela rua
10 de Março, quando ao frentear a ultima janella da casa do
commendador Henrique José Vieira (43), recebeu, inesperadamente,
forte carga de 22 bagos de chumbo, que, penetrando nas regiões
thoraxicas, carotidiana e sub-clavicular, lhe produziram a morte quasi
instantânea. Com o estampido formidável, espantou-se o animal, que
tomou a direcção do lado opposto da rua, mantendo-se ainda na sella
o cavalleiro, vindo a cahir na calçada da casa do dr. Silva Carvalho.
Foi tudo, porém, questão de momentos, pois quando o soccorreram e
chegaram junto do ferido os Cônegos Pina e Caldas, já o mesmo
havia expirado, sendo removido, para o interior da casa do comdor.
Henrique, já cadáver. O alarma produzido não impediu que fosse
visto, na ultima janella do sobrado quasi fronteiro, (44) ainda
segurando a arma homicida, o proprietário e morador do mesmo, cel.
João de Souza Osório. Preso em flagrante, pelo próprio Chefe de
Policia, dr. Alfredo José Vieira, (45) aprehendeu-se-lhe o instrumento
do delicto, uma espingarda de caça, de dois canos, dos quaes um se
achava ainda com a carga intacta, e que foi apresentada ao comdor.
Henrique, juiz de Direito supplente em exercício, por Prudêncio de
Mesquita Muniz, caixeiro da casa vizinha, de Martim Guilherme.
(46) O corpo de de-
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GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
licto, feito pelos drs. Joaquim Januário do Santos Ferreira e Carlos
José de Souza Nobre, verificou a morte pela lesão de vasos
importantes, como o coração e as artérias. (47) Removido o
criminoso para o Quartel do 21, ali entregue ao major Luiz José
Ferreira, deu-se inicio ao processo, com o seu interrogatório policial
no mesmo dia, confessando Osório ter sido «elle quem assassinou o
dito Doutor, não se recordando precisamente da hora, porque estava
com a sua cabeça transtornada.» Interpellado sobre as determinantes
daquelle acto, respondeu «simples chalaças mas que entretanto
offendião a honra delle interrogado, um verdadeiro pouco caso,
manifesto desejo de molestal-o que de tempo a esta parte partião do
dito Doutor, farão attento o caracter delle interrogado, (o gripho é
nosso) seu animo exaltado, a facilidade com que se irrita, a
susceptibilidade de que é dotado e o respeito de que tem sido
cercado, que o determinarão a commetter o dito assassinato.» (48)
Nessas palavras, pungentes de sinceridade, escapadas ao homicida
pouco depois de praticar o delicto, se encontra, vivaz e
insophismavel, toda a configuração psychopathologica do crime.
Ellas afinam e se entrozam, numa admirável precisão, com as demais
provas processuaes e fazem emergir na pessoa do assassino de Silva
Coelho o typo inconfundível do delinqüente por anomalia volitiva, da
classificação de Ingenieros, dominado por uma accentuada
cerebrasthenia que, si não era o impulso das phobias delirantes, tinha,
todavia, o aspecto característico de uma das «idéas obsessionaes» que
Teixeira Brandão arrola entre os estados degenerativos. (49) Não se
trata de um caso de demência senil, de um impulso mórbido em que a
edade entrasse como fautriz preponderante, criando uma “psychose
de involução”, como a de Pontes Visgueiro, o matador de Maria da
Conceição, crime cuja etiologia Evaristo de Moraes estudou
admiravelmente, em recente monographia. (50) João de Souza Osório
tinha 55 annos, quando perpetrou o
delicto. Era um homem de boa e sadia compleição, o que se infere
não só de referencias de coetaneos, como do facto, por elle mesmo
relatado, de entregar-se, com freqüência, á caça, na sua chácara, do
Ribeirão. A verdadeira causal do crime foi a sua super-emotividade,
o seu estado psychico profundamente alterado pelos factos de que
rezam os autos. Dias antes, na ponte do Mundéu, o dr. Silva Coelho,
a propósito do inventario da mãe de Osório, em que era advogado de
vários herdeiros, insultara ao mesmo Osório e «indo elle indiciado
sobre o Doutor este que estava montado seguiu para diante.» Depois
disso, na véspera da tragédia, Silva Coelho ainda fôra á casa de João
Osório e «mostrou-se-lhe muito agradável», pelo que parecia tudo
acabado, quando dois miseráveis intrigantes, na rua do Meio, o
instigaram de novo contra a sua futura victima, dizendo que esta
“espalhava alguma coisa offensiva á pessôa delle.» E é elle mesmo
quem nos descreve o seu estado de crise mental anterior ao delicto,
dizendo que desde a morte da sua mãe vinha soffrendo em seu
espírito, aggravado pelos insultos e a imputações calumniosas que lhe
faziam pessoas interessadas na herança e que, por isso «faltava-lhe a
disposição para comer para distrair-se, e custava-lhe a conciliar o
somno, a ponto de não dormir noites inteiras.» (51). Silva Coelho era
o advogado dos co-herdeiros de Osório, no espolio materno. Dotado
de natural brincalhão, como refere a versão oral, certamente teria
irritado o animo do cel. Osório, com certos gracejos, que, na sua
sensibilidade mórbida, lhe pareciam graves offensas. E dessa
hypertrophia da dignidade, por um lado, aggravada pelos mexericos e
diz-que-diz-ques de logares pequenos, veio a fagulha, que ateou a
explosão de chumbo e pólvora, em que pereceu, dramaticamente, o
inditoso causídico cuyabano.
81
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***
A linhagem de João Osório não pôde ser posta de parte ao
perquirir-lhe a psychopathologia, que desfe-
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
chou, inopinadamente, no sangrento episodio da antiga rua Direita.
Vinha-lhe a estirpe, por um costado paterno, dos Poupinos e, pelo
materno, dos Albuquerques e Moraes Navarros, ramos estes em que
não será difficil, sem muito esmiuçar, topar com taras sensíveis e
estigmas degenerativos pronunciados. Não é aqui, porém, asado
ensejo a taes pesquisas, que, alongariam este ensaio muito alem dos
limites que se lhe traçaram (52). Si destacada era a sua família de
origem, não menos o fôra a da sua esposa, D. Hermelinda, que
procedia dos Corrêas da Costa, gente de prol nos velhos como ainda
nos modernos dias.
Concorreu isso tudo, alem da elevada posição que tinha João
Osório na sociedade cuyabana — coronel da Guarda Nacional e
proprietário — para crêar em torno delle um ambiente de
benevolência, até certo ponto explicável pelos seus bons e
irreprocháveis precedentes. (53) Pronunciado, por sentença de 4 de
novembro de 1874, do juiz A. Gonçalves de Carvalho, antes que
fosse a jury, fugiu da prisão, na madrugada de 26 de março de 1875,
conforme consta do officio junto aos autos, dirigido pelo com
mandante de 21, Cel. João Gervasio de Souza Perné, ao juiz de
direito interino, Salvador Pompéo de Barros Sobrinho (54). Evadido,
rumou o Cel. Osório com sua esposa, a dedicada companheira de
infortúnio, para a fazenda do seu cunhado, Celestino Corrêa da Costa,
no districto de S. Antonio do Rio Abaixo. Ali viveu ainda alguns
annos, em completo isolamento do meio social, o que por si só, já lhe
teria sido dura punição ao crime que commettera, menos levado por
um desvio dos sentimentos moraes, do que victimado por inevitáveis
contingências psychicas, majoradas e intensificadas por
circumstancias do meio — intrigas, pasquins infamantes, e outras
florações venenosas, que sóem medrar em certas épocas de corrupção
e de dissolvência social. (55)
***
Quem foi o alvo desse doloroso crime da Rua de Baixo? —
perguntarão, naturalmente, os leitores deste estudo, já que tanto
temos falado do auctor do delicto e nada sobre a victima.
O Dr. Manoel Pereira da Silva Coelho, conhecido pela
antonomásia de Pereira Côco, era filho de outro homonymo, que fôra
casado com D. Feliciana Cherubina de Jesus, netto, pela parte de pai,
de Paulo da Silva Coelho e Ângela Pereira da Silva e, pelo lado
materno, de Manoel Antonio Pires de Miranda e Anna da Silva. (56)
Formou-se pela Faculdade de Direito de S. Paulo, em 1836, sendo
dos primeiros bacharéis mattogrossenses. Pai do senhor Manoel
Kosciusco Pereira da Silva e avô do desembargador aposentado
Manoel Pereira da Silva Coelho, deixou descendentes nesta Capital e
em S. Paulo. Tendo seguido a carreira judiciária, pediu a sua avulsão
para dedicar-se á advocacia, profissão que, indirectamente, veio a
causar-lhe o trágico fim.
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IX
As três Gorgonas
Têm, na intensidade dramática de suas situações e na
monstruosidade prava de suas linhas, qualquer cousa das tragédias
gregas de Euripides e Eschylo, os três
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
formidáveis crimes que, em menos de um anno, sacudiram de
profunda commoção o animo pacifico e dócil da gente cuyabana,
entre 1875 e 1876. Circumstancia mais impressionante, por certo, a
de figurarem em todos esses bárbaros delictos, como auctoras, três
mulheres, que, aberrando assim do conceito que geralmente inspira a
fragilidade e meiguice das descendentes de Eva, apparecem, portanto,
no tablado da delinqüência regional, como três Gorgonas, dessas
criações mythicas em que o gênio inventivo dos antigos fixou todo o
poder de perversidade de que é capaz uma alma femenina, quando
marcada pelos estigmas degenerativos ou impellida pelas grandes
paixões allcinadoras.
E mais ainda cala em nosso espírito o facto de constituir cada
um desses crimes negregados a subversão de um daquelles
sentimentos que mais ennobrecem a humanidade, a alguns dos quaes
não se eximem nem mesmo as próprias feras — o amor materno, o
amor filial e o amor de irman.
Occorre ainda, para mais revelar a completa teratologia dos
casos que vão narrados ao diante, que as victimas — com excepção
de uma — foram também mulheres, imbelles e desarmadas para
qualquer resistência.
Medéa sacrifica Absyrte, seu irmão, de passo que a nossa
Harpia cuyabana cevou a sua fúria de sangue sobre uma irman, que
ainda tornou quasi inconsciente para melhor a seviciar. Édipo faz-se,
pelo imperativo do Destino, o assassino do próprio pae, mas Édipo
era homem, dotado da natural aggressividade do sexo, emquanto, na
tragédia de S. Gonçalo-Velho, é uma filha que desfere o golpe lethal
sobre o auctor dos seus dias.E, finalmente, si Oreste mata a própria
mãe, no drama sophocleano, nós vêmos, na scêna do beco do Ponce,
a dupla e aberrante inversão de uma mãe que trucida selvagenmente a
sua filha, num desvairo que se poderia dizer a hypertrophia da honra,
si não fosse a da própria
atrocidade, por ser a negação do mais puro e instinctivo dos
sentimentos humanos — o carinho maternal.
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***
Obrigados a enquadrar nas rígidas dimensões deste capitulo
os três casos sensacionaes, dar-lhes-emos os pontos capitaes da
narrativa, em palhetadas syntheticas, mesmo porque, de tão chocantes
que são, não vale a pena expol-os a nú, aos olhos dos que perlustram
este ensaio, muitos dos quaes se sentiriam feridos na sua pureza
moral pelas cores sinistras desses entre-actos granguinholescos.
Foi a 8 de setembro de 1875, um dia festivo em que a capital
mattogrossense commemora a tradicional Virgem do outeiro, Nossa
Senhora do Bom Despacho, que Anna Josepha da Costa Guimarães,
mais conhecida pela alcunha caseira de «Bíbi» matou, em sua própria
casa, na Rua de Baixo, ás onze horas, sua irman D. Rita Blandina de
Mellies, casada com o súbdito allemão Frederico Mellies, do qual se
achava, entretanto, separada.
Para lograr o seu intento, embriagou-se e á sua futura victima,
recolhendo-se com ella aos próprios aposentos, onde a submetteu ás
mais rudes torturas, reveladoras de perfeita obliteração do senso
moral, e a que não lhe foi possível oppôr, dado o seu estado de semiinconsciencia, a menor reacção. Praticado o crime, chamou a própria
mãe que se achava residindo com ellas para ver o que tinha a pobre
victima, isto depois de haver almoçado bem, «sem dar a menor
demonstração» do delicto que perpetrara pouco antes, indo após
deitar-se, para sestear, num quarto do interior da casa.
(54). Descoberto o delicto, pelo estado lastimável em
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
que foi encontrada a infeliz D. Rita, deu-se o alarme, acudindo
vizinhos e amigos, sendo feito o exame pericial que averiguou, com
todas as minudencias, a maneira bárbara pela qual fora o crime
planeado e levado á execução.
Profundas e intimas lesões, determinando hemorrhagia e
rupturas de vasos essenciaes, produziram, em menos de duas horas, a
morte da inditosa senhora, quando, já transportada para a Santa Casa,
se lhe tentavam minorar os atrozes padecimentos. A assassina negou,
terminantemente e sempre, a pratica do crime, attribuindo o traspasse
da írman a velhos incommodos e a uma original tentativa de suicídio.
Presa, foi a jury, sendo absolvida ante a negativa do facto
principal, por 8 votos contra 4 (58). O Juiz apenou de officio para a
Relação, que mandou a ré a novo julgamento, no qual se repetiu o
mesmo que antes succedera, com a differença de lograr a accusada
um voto a menos a seu favor (59). Appellou desta vez a Promotoria,
que conseguiu a annullação do processo, nada mais constando dos
autos, o que nos faz crer que não tenha sido sujeita a terceiro
julgamento, como o havia determinado a Relação (60), levando a
presumir haja fugido da Cadeia. Em 1905, já velha, vivia na Usina da
Conceição.
Quanto ao móvel do crime, emerge dos autos haver sido
oriundo duma dessas explosões doentias que o ciúme inspira. Mais
moça, muito mais dotada de prendas naturaes, alem daquelle recato
que, não obstante a sua situação anormal na sociedade, guardava —
D. Rita despertou na irman suspeitas no tocante ás relações que
mantinha com prestigiosa figura, a quem Anna Josepha se havia
irregularmente ligado desde algum tempo. Foi o bastante essa
desconfiança, que um facto, aliás sem prova, veio exacerbar, para,
nessa trágica manhan, produzir a deflagração do horroroso crime,
que, tal-
vez, não encontre similar nos annaes da delinqüência universal, pelo
requinte inédito de selvageria que ostentou.
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***
Seis meses apenas separam o crime da «Bíbi», do de Maria
louceira, occorrido entre Coxipó da Ponte e o arraial de S. GonçaloVelho. Num casebre dessa localidade residiam Maria Josepha de
Jesus, de 18 annos, natural da Barra do Cocaes, em companhia do seu
marido Lucio Vieira de Moraes e seus paes João Baptista de Oliveira
e Theodora Ferreira de Jesus. Na tarde de 19 de Março de 1876,
achando-se Maria sentada á porta, fazendo cigarros, foi chamada por
seu pae, que pouco antes chegara de canoa do Porto Geral e estava
deitado numa rede, armada á sombra de uma pitombeira, ao lado da
casinhola. Seu marido sahira para pescar e a velha dormia, no interior
da casa, achando-se todos os três — ella e os paes — bastante
alcoolizados. (61)
Naquelle estado de embriaguez em que se encontravam, não
tardou surgisse entre pae e filha uma desavença por aquelle
provocada, de forma a produzir um verdadeiro «aloite» em que
Maria, para se livrar da aggressão que lhe fizera o pae, a cacete, e
soccorrendo-se da própria arma que trazia, o feriu no baixo-ventre
com o seu «cachirí» de cortar fumo. Não era a primeira vez que
Baptista a tentava, como se colhe das declarações della, do marido o
de Theodora. Cerca de anno e meio antes, por pouco se não dera o
crime, em reacção a outra aggressão paterna. Ferido, o velho foi, dias
após, transportado para a Santa Casa, visto se lhe aggrava-
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
rem os soffrimentos e lá morreu, 22 dias depois do crime.
Maria não trepidou um momento na confissão de seu delicto,
antes, numa extranha manifestação de inhumanidade, declarou que
ferira a sua victima por não ter «outro meio de livrar-se do furor de
seu pay» e para «defender sua honra ali ultrajada.» (62) e que «sentia
não o ter matado para beber-lhe o sangue.» (63). Submettida a jury,
foi absolvida, por unanimidade, justamente um anno após o delicto
— a 19 de março de 1871. Appellando, entretanto, o Juiz dessa
decisão, foi pelo Tribunal mandada a ré a novo julgamento (64), o
qual se não realizou, nada mais constando do processo (65).
o saber por uma outra mulher, por quem mandara examinar a filha,
que esta achava-se já deshonrada» (66)
E depois de fazer patheticas considerações profligando o
filicidio hediondo, conclue o noticiarista: «Em menos de um anno é
este o terceiro homicídio praticado nesta capital entre pessoas ligadas
pelos mais próximos laços de parentesco...
Eis o que se presencia onde só a ignorância predomina. »
Maria cabeça, que usou para a pratica do horrendo crime a sua
própria faca de escamar peixe, foi presa em flagrante (67) e,
processada, respondeu a jury, sendo condemnada. Não lhe encontrei
o processo, que permittiria melhor elucidação em tomo do caso,
como se deu com os dois outros. Mas consta das actas do Tribunal da
Relação o julgamento da appellação que interpôs da sentença do jury,
sendo a mesma confirmada, convertidos apenas em prisão simples e
quatro annos de trabalho (68).
***
A 10 de junho de 1876 — precisamente três meses depois do
crime de S. Gonçalo-Velho — novo e bárbaro delido se perpetrava
numa casinha do Beco do Ponce, em pleno dia e no centro da cidade,
figurando como comparsas da tragédia Maria Francisca Ferreira, de
appellido Maria cabeça, peixeira, e sua filha de treze annos,
Francelina Maria do Espírito Santo. Afim de bem evidenciar a
impressão causada por esse nefario caso, no espírito da população, já
abalada pelos factos anteriores, damos a palavra a um jornalista da
época,que, em vehemente local, assim averba o evento doloroso:
«Em um beco desta cidade denominado do Ponce foi, em dias
da semana passada assassinada por sua própria mãi, uma infeliz
jovem de treze annos de idade. Segundo se presume, o motivo que
levou essa desgraçada creatura á perpetração de tão hediondo crime
na pessoa do ente que lhe deveria ser mais caro, foi
89
***
A arte copia a vida, mas, como bem o notou um grande
artista, as scenas mais vivas da arte estão longe de competir com as
que a realidade pungente sóe apresentar-nos algumas vezes. Os
grandes crimes de violência que Ferri aponta como inspiradores, por
sua alta freqüência, das tragédias clássicas (69), onde ficariam si os
quiséssemos cotejar com estes três casos de lúgubre torpitude em que
se attenta contra as próprias fontes naturaes da vida, e os sentimentos
mais instinctivos da psichê humana?
Inescusáveis todos elles — pois apropria paricida, que allegou
em sua defesa a ignóbil tentativa do
90
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
pae contra a sua honorabilidade, tinha outros meios de se guardar,
tanto mais estando elle embriagado — ha ainda para se pôr de
manifesto a circumstancia marcante de ter sido a alcoophilia o agente
propulsor dos delictos execrandos, tendo servido em um delles — no
crime da «Bíbi» — não só como excitante para a pratica, mais
também como annullador de toda a resistência da victima.
Que formidável e expressiva lição a tirar de taes
ensinamentos, que vêm demonstrar que não só a ignorância e a
perversidade, postas a serviço de ruins paixões, mas ainda os
impulsos das toxinas alcoólicas, são — como bem accentuou
Aschamffemburg no seu clássico tratado — «das causas mais
conhecidas e mais evidentes do crime.» (70)
fusão mental que reina, haurir, nos mananciaes inesgotáveis do
Passado, os ensinamentos profícuos para o Presente, que hão de
produzir resultados bons ou maus no Porvir distante.
Quaes as lições dos crimes celebres arrolados nesta
monographia singela, que comprehende um século e meio de nossa
vida histórica e que mais não avança no tempo pela comprehensiva
razão de que não se pode «fazer historia» quando ainda vivem
personagens a ella directamente ligados? São ellas muitas e muito
diversas, tal seja o prisma sob o qual observemos os factos. Difficil
fôra, quando não impossível, apanhal-as todas, no flagrante deste
ensaio, feito dia a dia, para as tiragens semanaes do jornal em que foi
publicado, nesta corvéia a que o jornalismo, mesmo em sendo de
província, nos leva. Destacaremos, pois, sem que siqüer se possam
dizer serem as mais importantes, algumas conclusões do estudo que
ora chega ao seu termo.
X
As conclusões
De tudo isso que ahi fica, dessa galeria macabra de crimes,
qual a qual mais horroroso, não ha tirar uma conclusão apenas, mais
sim varias e diversas conclusões. A historia averba puramente os
factos, mas ao historiographo cabe, si não é uma simples machína
registradora, auscultar-lhes os motivos, antecedentes e consequentes.
É o que se diz a philosophia da historia, o lado moral dos
acontecimentos, o seu conspecto psychologico.
Não se pode furtar a tal imperativo escriptor de cousas antigas
que se preze e aos que o leem: hoje, sobretudo, que é mister, mais
ainda que nunca, diante da con-
***
Os crimes praticados em Cuiabá e seus arredores nesse longo
período de 1727 a 1879 — 152 annos, dois a mais de um lapso
sesquisecular — foram, na sua grande maioria ou quasi totalidade,
simples e naturaes descargas do organismo collectivo grandemente
intoxicado pelos venenos sociaes do álcool, da escravidão e,
sobretudo, da libido, nascida e gerada justamente por aquelles dois
factores de degenerencia. Si Durkleim poude dizer que «o crime é
uma necessidade para a saúde collectiva», reequilibrando a harmonia
physiologica da sociedade, pela natural explosão e escapamento de
factores deletérios que se revelam a bem da defesa
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92
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
dos elementos normaes, certo é que, a não serem casos muito raros,
os delictos enumerados nos oito capitulos subseqüentes deste
trabalho, põe de manifesto, no mais das vezes, não as taras de
perversidade congênita, de que a escola italiana foi tirar o seu
«criminoso nato» mas, pura e simplesmente, os impulsos
momentâneos das psychoses passageiras em que actuam, como
factores preponderantes, os tóxicos acima apontados. Ninguém
ignora o papel decisivo que a presença do escravo — negro ou de
qualquer outra espécie — exerceu na gênese do crime, nos diversos
paises onde fermentou esse podrideiro social. As conclusões a que
têm chegado nesse particular todos os estudiosos do problema em
tela, encontram uma synthese feliz no estudo de Clovis Bevilaqua
«Confrontos ethnicos e históricos», em que o grande jurista e
sociólogo frisa que os mestiços ou, melhor, «as duas raças inferiores
contribuem muito mais poderosamente para a criminalidade do que
os aryanos, creio que, principalmente, por defeito de educação e pelo
impulso do alcoolismo». (71)
Ora, innegavel parece e dispensante de qualquer
comprovação, a intensidade demográfica do elemento mestiço em
nossa população, nas suas varias subcolorações e nos seus diversos
matizes, que vão se agrupar todos no mulato (producto de branco e
negro) e no caboclo (fusão de branco e índio). A influição alcoólica
não pode passar também despercebida ao observador mais
superficial, desde que se saiba que a nossa organização social se
esteiou, de começo, nos engenhos de aguardente, como no Nordeste,
e ainda hoje é essa a única industria organizada que existe nos
arredores da capital, sob feição mais moderna, que é a usineira, mas
sempre girando em torno dos produtos e subproductos da canna da
assucar.
Quem quer que venha acompanhando com alguma attenção
estes cavacos históricos ha de convir que mesmo os casos mais
horripilantes nelles referidos, alguns dos
quaes nos deixam a alma medusada, obedeceram ao impulso
instantâneo de uma paixão incoercível — casos de João Osório, do
uxoricida Antonio de Souza Neves, de Maria ‘‘Cabeça’’ e outros —
ou ao império sinistro e irresistível da embriaguez alcoólica —
crimes de Manoel J. dos Santos, da tecedeira Inês e da parricida de S.
Gonçalo Velho, — quando não desses dois factores combinados — o
sororicidio da «Bíbi», o drama passional de Pedro Roriz e alguns
mais, que buscaram no “veneno branco” o estimulante poderoso do
delicto.
A momentaneidade de muitos desses crimes se patentêa até
pelo próprio instrumento empregado: a filicida do Beco da Câmara
usa a faca de escamar peixe, a assassina do próprio pae, a louceira
Maria Josepha, utiliza-se, como a assassina de José da Conceição,
dum “cachiri” de cortar fumo para fazer cigarros. (72)
Crimes praticados a frio, premeditadamente, ou seja por
simples manifestações de perversidades e taras perigosas, bem
poucos registram as nossas chronicas.
Sel-o-ão talvez os dos matadores de Poupino e Laureano,
tocaieiros que levaram para o mysterio do tumulo o nome dos seus
mandantes; o dos ferozes estranguladores de Inês Policiana, em
Brotas; o de D. Rita Ferreira, no Rio Abaixo, que é, sem contestação,
um dos mais bárbaros que aqui se praticaram e quasi sem attenuante
de espécie alguma.
A ambição entra em percentagem mínima na criminogenia
cuyabana: dos casos relatados, que são os mais celebres nos fastos da
delinqüência local, só um delata a sede do dinheiro, que é o de
“Pedro da mão-queimada”, esse mesmo trazendo, de envolta, paixão
de outra natureza, que, talvez, lhe fosse a verdadeira razão ou
principal concausa, pois a mulher que elle matou, si lhe furtara
dinheiro, também lhe fugira ao convívio em que por algum tempo,
estiveram. Quer tudo isto dizer que os criminosos da galeria trágica
que acabamos de exhibir são, na sua mór parte, impulsivos, e bem
poucas
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94
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
vezes lúcidos nos seus impulsos. Accresce ainda que o rol de
culpados que lhes individualiza a procedência, aponta, em
muitíssimos casos, origem adventícia, sobretudo entre os soldados,
vindos de extranhas paragens, e que figuram nos annaes do crime em
grande numero. Não nos esqueçamos que a “Rusga”, formidável
crime collectivo, foi mais producto de espíritos mórbidos, como
Patrício Manso e fr. Nascentes, provindos de outras terras, que não
esta boa gleba cuyabana e que as maiores atrocidades que então se
praticaram devem ser debitadas aos famigerados «periquitos» — e
outros facínoras do mesmo gênero — que, Deus louvado, não
nasceram sob estes pacíficos céus mattogrossenses.
A fama da pacatez, da bondade, do caracter hospitaleiro da
nossa gente, fama quasi proverbial, como a de que gosam os
mineiros, não comportaria, de resto a lúgubre floração de tantos
crimes tenebrosos.
Um ou outro, em reduzida proporção, trahírá estigmas
degenetivos evidentes, e nem ha negal-o, pois ninguém pode
pretender que uma raça, formada de caldeamentos tão dispares, como
a nossa, não possua taras que expluem, as vezes, nessas
manifestações pathologicas do crime. «Bibi» por exemplo. Cuyabana
authentica, de três costados, era uma verdadeira portadora de
estigmas, a ajuizar até, ao que refere a chronica oral, pela sua feição e
pelo buço, que era quasi um bigode masculino.
São excepções, entretanto. E, como taes, confirmam apenas a
regra de que o typo cuyabano — como bem o frisou Couto de
Magalhães, que de perto o conheceu — é formado de homens
«laboriosos, emprehendedores e dignos herdeiros dos paulistas que
lhes descobriram o solo».
Boa e soffredora, a nossa gente se caracteriza pela índole
pacifica e ordeira, que tem sido proclamada por quantos lhe tem
pulseado a psychologia. A diathese criminal que, por vezes, se lhe
manifesta, em explosões
violentas, tem suas causas remotas ou próximas quer nas convulsões
políticas que periodicamente lhe agitam o organismo quer nesse
estado de abandono, com que a criminosa apathia dos poderes
publicas a tem conservado, á mingua de conforto, de instrucção, até
de recursos materiaes, concorrendo todos esses factos combinados
para gerar os surtos de delinqüência que acabamos de apontar. E
muito peior teria sido, não fosse a fé religiosa, que desde o arranco
inicial das bandeiras e monções, através da phase da mineração, até
os dias que correm, vem insuflando ao pobre campônio
mattogrossense esse alento que lhe permitte viver á margem da vida,
num recanto do Brasil que, por vezes, temos a illusão de tão
esquecido — que nem mais pertence á pátria commum. Ainda assim,
com todos esses factores que permittiriam fácil eclorir aos desvios da
moralidade social, punidos pelas leis penaes, é curioso notar que não
temos cangaços, nem banditismo organizado, como occorre no
Nordeste, sendo, ao contrario, de quasi perfeita segurança a vida e o
transito nos mais ermos sertões, em que o perigo se reduz aos ataques
das feras e dos índios.
Honra seja feita, pois, ao tão calumniado «jéca» de nossa terra
— que somente conhece a organização político-social que se chama
Estado, através das duras exigendas do recrutamento e do fisco e
jamais lhe sentiu o lado commodo das vantagens e benefícios que
favorecem os privilegiados moradores da orla littoranea!
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96
1) Os Sertões
2) Pequenos estudos, pág. 157
3) Relatório cit. Pág. 6
4) Idem, ib. pág. 17
5) Criminologia, pág. 64
6) Chronicas de Cuiabá, nos Annaes da Bibl. Nac. vol. XXIII.
7) Annaes do Senado da Câmara de Cuiabá, na Rev. I. H. de M. Grosso, vol. III,
pág. 75.
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
8) Em nota á publicação anterior.
9) Annaes da Bib. Nac. citados.
10) Compendio histórico chronologico, de J. da Costa Siqueira, na Rev. do I. H. e G.
Brasileiro. vol. XIII, pág. 8
11) Idem, ibid. pág. 13.
12) Summario crime publicado na Rev. do I. H. de M. Grosso, vol. XXV, pág. 141.
13) Depoimento de Bernardo José Vieira, no inquérito feito em Goyaz (Rev. do I. H. de M.
G. nº. especial da “Rusga” Pag. 136)
14) Idem, pág. 148
15) Idem, pág. 146
16) Os processos acima referidos existem no Cartório Criminal desta Comarca, onde os
compulsei, graças a obsequio do seu correcto serventuário Esc. Laurindo de Lara Pinto.
17) Relatório de 1874, em annexo.
18) Relatório de 4 de Outubro de 1872, pág. 17.
19) Os africanos no Brasil, pág. 405 e segs.
20) Casa Grande e senzala, pág. 359.
21) Avolumar-se-ia muito o censo dos delictos commettidos nas immediaçôes de Cuyabá, se
levássemos em conta os praticados pelos índios e pelos quilombolas, nos freqüentes assaltos
ás zonas da Serra e do Rio-Abaixo, sobretudo nos annos de 1870 a 1890, mas este assumpto
constituirá, pela sua natureza especial, objecto de outros estudos, que, a seu tempo, se
publicarão.
22) Insufficientes os quartéis para abrigar a tropa, que havia na cidade, parte della teve de
alojar-se em acampamento no Babú, onde acantonou o Batalhão 21.
23) O Rio de Janeiro no tempo dos Vice-Reis, pág. 516.
24) Preciosa fonte para o estudo de costumes e até investigações folk-loricas, offerecem
esses officios da Policia, que tive occasião de consultar no Archivo do Palácio do Governo,
pois descrevem com grande fidelidade e minudencia, os eventos occorridos cada semana, no
que diz respeito á segurança individual e da propriedade.
25) Rara a semana em que não eram presos negros ou negras a pedido dos seus senhores, por
andarem sem bilhete fora de horas.
26) Esses informes os colhemos no excellente relatório do Presidente Cardozo Junior,
apresentado á Assembléa em 1872. Delle constam muitos outros crimes occorridos em
Poconé, Corumbá, Villa-Maria, que deixamos de mencionar, entre elles o bárbaro homicídio
de Floriano de Souza, em Cáceres, cujo cadáver, depois de mutilado, ainda esfolaram e
esquartejaram (Rel. cit. pags. 17 e segs)
27) É este um dos crimes de maior sensação praticados nesse período, sendo lido nos
próprios autos a narrativa do mesmo. Pedro era solteiro, de 23 annos e Jeronymo tinha
apenas 19.
28) Estes dados constam quer de processos existentes em cartório, quer do relatório do chefe
de policia, Ledovega, em annexo ao que apresentou á Assembléa o presidente Miranda Reis,
em 1874.
29) Na menção feita, deixamos vários crimes praticados no sertã e nos districtos de Villa
Maria, Corumbá etc. v. g. a morte de Joaquim José de Azevedo, mulher e filho, pelos
se dirigiam, em Janeiro de 1873, da sua fazenda S. A. do Paraizo para Goyaz.
30) Processo no Cartório do Crime desta Comarca.
31) Em 1878, p. ex., em Cáceres, dois facínoras, um argentino e outro paraguayo,
degolaram 6 pessoas, das quaes 4 mulheres, no logar “Pantanalzinho”, com o fim
de roubar o que possuíam. Digno de registro também é o crime perpetrado, na
mesma Comarca, pelo anspeçada Manoel João Rodrigues, ferindo 6 pessoas, pelo
despeito de ser-lhe recusada a mão de uma moça. O criminoso foi linchado (Rel. de
J. J. Pedrosa, 1879, pag. 24).
32) No relatório de 4 de outubro de 1872, o caso de Laureano occupa quasi quatro
paginas, subordinadas ao rotulo «adittamento ao titulo Segurança individual e de
propriedade.»
No processo, aliás dos mais volumosos que existem no Cartório Criminal, as
deligencias preliminares e da 1ª phase da instrucção (inquérito policial) resultam
numa verdadeira devassa, tal o numero de testemunhas ouvidas, sem se chegar á
descoberta dos moveis do crime e da identidade dos delinqüentes.
33) Depoimento do escravo Constantino, fs. 48 dos autos do summario-crime.
34) Fs. 13v. do processo.
35) Fs. 46v. dos autos.
36) O Partido Conservador, como é sabido, manteve-se no poder dez annos, de
1868 a 1878.
37) Autos de perguntas a fs. 31.
38) Auto de perguntas a fs. 103v.
39) Francisco e Domingos (pae de José) eram diamantinenses e descendiam, pela
linha materna, do importante ramo poconéano dos Alves da Cunha.
40) Auto de perguntas a fs. 277.
41) O Relatório policial, que é uma peça longa e bem lançada, convence da
pretendida responsabilidade dos réus no hediondo crime, tal a argumentação,
logicamente concatenada, baseada em factos e illações que o raciocínio mais
suspicaz não recusaria.
42) O ultimo termo do processo, a fs. 503 dos autos, é datado de 9-12-1874, após
um despacho do juiz S. Carvalho, mandando notificar testemunhas. Não encontrei
o processo do habeas, louvando-me na referencia fidedigna que me fez o major
Paula Corrêa, confirmada pela tradição uniforme em torno do caso.
43) Hoje Escola Kardeciana. É errônea a versão usual de que Silva Coelho
palestrava com o Comor. Henrique, quando foi alvejado, pois o que se colhe do
processo, inclusive depoimento do próprio Comor. é que a victima ia se acercando
da casa quando recebeu o tiro mortal.
44) Actualmente casa de residência e negocio do snr. Mansur Bumlai.
45) Auto a fs. 5 do processo.
46) Consta esta, como outras particularidades, do depoimento minucioso e claro do
comor. Henrique, a fs. 20, no summario criminal.
47) Auto a fs. 6 em que descreve a indumentária de S. Coelho: paletó e collete
preto, camisa de morim com peito de linho e calça de casimira escura.
48) Auto a fs. 8 v.
seus próprios camaradas, quando
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98
GENTE E COISAS DE ANTANHO
49) Rev. Bras. de Criminologia e Medicina Legal 1,23
50) O caso Pontes Visgueiro, Rio, 1934.
51) Interrogatório judicial a fs. 61. A própria esposa do criminoso assim relatou a
uma das testemunhas, Eduardo R. F. de Pinho, o estado do marido no dia do
delicto: «desde o amanhecer do dia de rosto muito vermelho, e olhos vidrados e
muito agitado, receando ella que viesse o indiciado ter algum ataque» (fs. 43)
52) Remetta-se algum espírito curioso de explicar taes assumptos aos estudos de
Genealogia Cuyabana publicados na Rev. do Instituto H. de Matto Grosso, nos
quaes vêm desdobrados esses diversos ramos familiares da nossa gens.
53) O Comor. Henrique allude em seu depoimento ás suas qualidades de bom pae de
família, honrado cidadão e que «mereceu louvores pelo seu comportamento,
quando, por ocasião da guerra, coube-lhe commandar um dos corpos destacados da
guarda nacional»
54) Ha evidente engano do auctor das “Datas Matogrossenses” quando no volume
II pag. 176 desse valioso ephemeridario, diz que João Osório fugiu depois de
levado ao jury e condemnado.»
55) Em interessante trabalho vindo a lume na Folha da Serra, de julho de 1933, D.
Maria de A. Müller allude á «modesta casa de telha, o chão de barro socado,
erigida sobre vasto aterro, accessivel por larga rampa de pedra canga, onde
Osórioviveu seus derradeiros dias, no engenho das Flechas.
56) Justif. de Antº. Peix. Azevedo, 1°. cart. orph. masso 9.
57) Depoimento da escrava Julia, a fs. 17 do processo.
58) Sessão de 25 de abril de 1876.
59) idem de 22 de dezembro do mesmo anno.
60) Accordão de março de 1878.
61) Depoimento de Lucio, a fs. 37.
62) Interrogatório a fs. 17.
63) Declaração da testemunha Luiz Antonio da Fonseca, a fs. 12 v.
64) Decisão de 21 de Agosto de 1877.
65) Maria Josepha falleceu na prisão ou della conseguiu escapar? Não me foi dado
apurar a causa porque não entrou novamente em jury.
66) O Liberal, de 28 de junho de 1876.
67) Parte da Policia, na correspondência official existente no Archivo do Palácio.
68) Sessão de 23 de março de 1877.
69) Os Criminosos na Arte e na Literatura pag. 46.
70) Crime e repressão, pag. 57.
71) Criminologia e Direito, pag. 94
72) Ainda recentemente occorreu um caso semelhante, em que um homenzinho,
fazendo uso de um instrumento dessa natureza, feriu mortalmente um outro, de
compleição robusta, e valente, caso esse que causou funda impressão no espírito
publico.
99
JOSÉ DE MESQUITA
I
Cuyabá de ha um século
(através do recensemento de 1825)
I
Passado e Futuro
Controverteu-se certa vez entre dois philosophos amáveis, gênero
Gourmont ou Anatole, si valia mais o dom de penetrar o futuro ou o de
evocar o passado. Como em assumptos tais sempre succede, estou em que
não chegaram a formar um juízo commum, sahindo cada qual com a
opinião com que entrára na contenda. Certo, porem, que, pondo de parte
philosophos e outros quejandos, considero infinitamente superior viver o
passado que o futuro, ou, em expressão mais simples, reviver é melhor que
anteviver. Começa pelo que diz respeito á certeza (e aqui caberia toda uma
digressão lógica sobre os méritos dessa respeitável Senhora, que poupo por
amor aos meus leitores) do que passou e á absoluta insegurança do que virá.
Isto sem embargo dos hierophantes que enxergam com óculos-de-alcance
no tempo, como os astrônomos no espaço, e dos historiadores —
românticos e anhistoricos — que fazem os idos tão incertos e nebulosos
como o porvir. Mas, ainda assim, o passado offerece terra firme, pelo
menos ilhas para a gente pôr pé, de passo que o futuro... é tudo pura
aeração.
Mas a que vem tamanho intróito, dirá o leitor ou a leitora (esta
naturalmente mais curiosa, si é que esta secção tem leitoras) e porque este
nariz de cera em rodapé que de regra se apresenta tão circumspecto e grave?
É fácil e explico-lhes em poucas palavras. Calhou de vir-me ás
mãos, justamente no mesmo dia, o recenseamento de Cuyabá feito em 1825
e um numero do PHAROL de 1906 em que um
100
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
chistoso collaborador descreve a Cuyabá do futuro, que, naquelle anno
remoto, seria a Cuyabá de 1936. TIMON regressa á sua cidade natal após
trinta annos de ulysséas e apea-se na estação central da sorocabana, donde
vai, com um amigo, deleitar-se com os aspectos sorprehendentes da
formosa urbe. Avenidas, jornaes diários de 32 paginas, bondes electricos,
theatros com capacidade para 4.000 espectadores etc... e acaba dizendo:
«Em 30 annos, que mudança! Cuyabá, a cidade do pó, da canícula como se
transformou em tão curto espaço! Mas, verdade, verdade, Matto.Grosso é
soberanamente rico por natureza. O aspecto que ahi ficou esboçado pela
phantasia, pio leitor, poderá muito bem vir a ser realidade — se antes os
filhos desta terra não se engulirem uns aos outros».
Ora, dois terços nada menos do prazo sonhado por TIMON para a
metamorphose cuyabana são decorridos e do que elle imaginou bem pouco
se vê. Isso é flagrantemente desconfortador. . . Si, ao envez, deito olhos
para traz e leio, neste anno da graça de 1927, o recenseamento de 1825,
creio achar (Deus me perdoe a heresia anti-progressista) maior encanto
naquelle aspecto da velha cidade colonial, e — francamente — maior
affinidade com a actual capital verde. Dahi a vantagem de se metter antes
em contacto com o passado do que arcar com os riscos de previsões que
levam um ágio de 90% de probabilidades de insucesso. «O passado é a
única realidade humana. Tudo o que é, é passado» affirma conceituoso
escriptor.
II
Recenseamentos
allude a publicação official da Diretoria Geral da Estatística,
RECENSEAMENTO DO BRASIL, vol. IV, 1ª parte, em nótula á pag. VIII;
o de 1872, o de 1890 e os recentes de 1900 e 1920. Na Exposição de
Historia do Brasil promovida, em 1881, pela Bibliotheca Nacional do Rio
de Janeiro estiveram vários trabalhos estatísticos sobre Matto.Grosso do
tempo de colônia e de província, constantes do Catalogo Geral sob ns. 3391
a 3397. Sobreleva notar o MAPPA DA POVOAÇAO DA CAPITANIA DE
MATTO-GROSSO NO ANNO DE 1800, exposto pelo Instituto Histórico
(nº 3394), o da POPULAÇÃO DA CAPITANIA DE MATTO-GROSSO
EM 1800 (officio de Caetano Pinto de Miranda Montenegro) que foi
publicado na Rev. Trim. do Instituto, vol. XVIII, 1ª parte (nº 3395) e os
MAPPAS ESTATISTICOS DA PRELASIA DE CUYABA E MATTOGROSSO EM 1809 e 1826, originaes IN FOLIO de que era expositora D.
Antonia R. de Carvalho (nº 3396) (3). O segundo destes é provavelmente o
mesmo de que existe o registro no precioso alfarrábio que me suggeriu a
escripta destas linhas. Não podem também ficar esquecidos os trabalhos de
Ricardo Franco e d’ Alincourt sobre estatística, posto pouco e apenas
accidentemente se occupassem da população de Cuyabá.
O recenseamento de 1825 é indubitavelmente um dos bons
trabalhos no gênero, caprichosamente feito, com aquelle vagar e minúcia
que são os pais da perfeição. Toma 176 paginas do caderno, trazendo nas
quatro ultimas uma graphia diversa, o que faz crer não o ultimasse o mesmo
que o começara. Elegante é a escripta, de traços finos, mas firmes,
perfeitamente legível a despeito do século que lhe pesa em cima. O
methodo é o mesmo das velhas estatísticas — ha, primeiro, a numeração
dita progressiva, referente ás pessoas arroladas; ao lado dessa, outra
numeração geral das casas e uma parcial das casas de cada rua ou bairro. Na
descriminação das ruas o censo é minuciosissimo. A rua do Meio, por
exemplo, entra com dois braços (estranhável seria, é certo, si só tivesse um)
e ha referencias curiosas como a certos pontos apenas caracterizados pela
sua topographia — Atraz do Rosário, Atraz da Misericórdia ou Atraz do
Bom Despacho. O numero total de casas recenseadas attingiu a 700 e o de
moradores a 4287, sendo que a numeração progressiva parou em 4252. A
individuação abrangia a idade, a qualidade, o estado e a communhão. Na
qualidade se notavam as espécies — branco, pardo, índio, preto, crioulo e
caburé. A communhão dizia respeito á religião e vinha sempre em branco a
respectiva columna dada a desnecessidade de especificar credos onde a
O recenseamento de 1825, cujo original em um volume cartonado,
bastante deteriorado pelo tempo, pertence ao archivo ecclesiastico, não foi o
primeiro nem seria o ultimo procedido entre nós.
Estevão de Mendonça, nas suas nunca assaz gabadas “Datas”
refere-se ao censo colonial de 1791, encerrado em 1792 «trabalho esse
realizado com muito cuidado e bastante completo quanto á população» (1).
Fala ainda o erudito compilador de nossas ephemerides no
recenseamento de 1817 e no de 1861, mandado fazer pelo presidente
Alencastro (2).
Alem desses ha memoria do de 1808, feito de ordem de D. Rodrigo
de Souza Coutinho, depois Conde de Linhares, a que
(1) DATAS, II, 206.
(2) Idem, I, 99.
(3) “Annaes da Bibliotheca Nacional”, vol. IX, 334 e 335.
101
102
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
totalidade era catholica. Em cada casa figurava o chefe ou a mulher, quando
viúva, e após estes os filhos, aggregados e escravos. Alguns adittamentos
valem mencionados pela sua originalidade: assim as pessoas arroladas, que
vinham a fallecer antes do encerramento do trabalho, figuravam com toda a
caracterização de vivas, mas, ao lado do nome, a designação — morta. Ha
outras que apparecem como casadas e viúvas, pois que se tornaram taes no
decurso do censo...
Mas a matéria é muita para que a comporte este único folhetim; no
seguinte continuarei a estudar, atravez do censo de 1825, a A CIDADE e
OS SEUS MORADORES.
III
Cidade
A Cuyabá de cem annos atraz era — relevem-me tão dura verdade
— quasi a Cuyabá de hoje. Não vejo uma rua que figure no actual cadastro
municipal que, bem ou mal, com este ou aquelle nome, não existisse
naquella época. Um bairro siquer appareceu de novo — a disposição urbana
se conservou invariavelmente a mesma. Está claro que me refiro á cidade
materialmente considerada como esse amontoado de ruas e casas e chácaras
que formam o vasto taboleiro que se estende do porto geral á Mandioca e
das faldas da Prainha ao Lavapés. Não me venham para ahi dizer, pois, que
Cuyabá hoje tem automóveis, luz electrica, JAZZ-BANDES, melindrosas e
almofadinhas, que tudo não faz ao nosso propósito e é argumento extranho
á discussão. E como vale mais exemplificar e dar logo as provas, eil-as ahi
vão antes que m’as exijam. O Largo da Presidência, pelo qual começa o
censo, era, como hoje ainda é o do Palácio, o coração da cidade. Lá ficavam
a Junta da fazenda Publica e a Presidência — a Delegacia e o Palácio de
agora. A seguir vem a Rua de Cima, como a melhor artéria urbana; o Largo
da Matriz (Praça da Republica actual) onde se viam o Quartel Militar e o
Cárcere Publico; a Rua do Meio, constituída em boa parte de fundos das
casas da de Cima e da de Baixo; a Mandioca; a Rua de Baixo, com o seu
prolongamento a Rua do Oratório (a actual Sete de Setembro, chamada do
Oratório por causa do Oratório dos Passos); o velhíssimo Becco do
Candieiro (a Rua Vinte e Sete de Dezembro de hoje); a Rua formosa
(Joaquim Murtinho); a da Matriz (Antonio Maria); a Bella (Treze de
Junho); a Rua do Porto no Becco; a Rua da Esperança (Antonio João, parte
superior); a Prainha; o Hospital da Misericórdia; o Mundéu; a Rua do
Campo; a Rua da fé; a Boa Morte, com o seu Pateo; a Ladeira da
Misericórdia a Rua do Rosário
e bairro Atraz da egreja do mesmo nome; o Bahú, o Bom Despacho e o
bairro que lhe fica por traz bem como o de traz da Misericórdia.
Não estão ahi todos os bairros da Cuyabá de 1927, e todos com as
suas denominações características e tradicionaes? Noto apenas não
mencionado o Lava-pés, que se comprehenderia na Boa Morte e o Areão,
que deve estar na denominação de Atraz do Rosário.
A rua que maior numero de casas continha era a do Meio, de 92
edificações, depois a de Baixo, com 63, a do Campo, com 54, a da
Esperança com 49, a da Matriz, com 43 e a Formosa, com 39. Ruas pobres
de casas eram a de Cima, com 37, a Bella, que não passava de 28 e a da Fé,
não excedente de 24. O Bahú — todo o bairro — agrupava 60 casas.
Tal a cidade: vejamos-lhe, agora, os habitantes, procurando
reconstituir, atravez do alfarrábio censitário, a vida e o ambiente social da
capital mattogrossense cento e dois annos passados.
IV
Os Moradores
Comecemos, como ordena o protocollo, pelas altas regiões da
administração pública, em cujo ápice vemos, na qualidade de Governador, o
Brigadeiro Jeronymo Joaquim Nunes, residindo na casa n° 4 do Largo da
Presidência, em companhia de sua esposa D. Maria da Silva de
Albuquerque, dos seus filhos o cadete Francisco, a moça Antonia e a
menina Augusta Rosa.
O Brigadeiro Jeronymo Joaquim Nunes foi nomeado VicePresidente da Província na mesma data da nomeação de José Saturnino da
Costa Pereira, para Presidente e só tendo este chegado a Cuyabá em
Setembro é de crer. se que o recenseamento haja sido feito ainda antes
dessa data.
A casa do Governador deveria ser uma espécie de velho solar, pois
que embora já a sua família estivesse reduzida (Jeronymo tinha então 56
anos) recenseou-se com elle um total de 79 pessoas, das quaes, entre
aggregados e escravos, se contavam 74, entre índios, pardos ,e negros.
No Largo da Matriz, casa nº 9, vamos encontrar a primeira
autoridade ecclesiastica, o Governador Pe. Agostinho Luiz Gularte Pereira
que, após a morte do Bispo de Ptolomaida, se achava á testa da Prelazia
A Rua de Cima, o bairro aristocrático desde os tempos coloniaes,
reunia o elemento mais representativo da época pelos haveres, pela posição
ou pela linhagem. Ahi vemos o Brigadeiro Gabriel da Fonseca e Souza
estabelecido na Capellania do
103
104
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Médico (casa n° 4); o Sargento-mór Bento da Silva Rondon, senhor de
propriedades no Rio Acima, com luzida escravaria (casa n° 5); D. Isabel
Nobre Pereira, com cem anos de idade, viúva do celebre Mestre de Campo
Antonio José Pinto de Figueiredo e tronco da numerosa família desse nome,
senhora de vasta casa, tendo arrolado, alem de filhos e aggregados, 49
escravos (casa n° 6); o Capitão Manoel Pereira da Silva Coelho, então
assistindo na freguezia da Chapada; 05 Sargentos-móres Joaquim da Costa
Faria e Sancho João de Queiroz (casas ns. 8 e 11); D. Ignez Ferreira da
Silva, a mesma que se immortalizaria mais tarde no memorável rasgo
contra Patricio Manso (casa n° 13); o Capitão José Leite Pereira Gomes,
morador no seu sitio das Palmeiras (casa n° 14); e o Advogado Vicente José
de Souza, figura proeminente do foro desse tempo (casa n° 17).
No Largo da Matriz, casa no 8, encontramos o Alferes José de
Pinho de Azevedo, viúvo, de 74 anos, tendo em sua companhia filhos e
filhas casadas, com 57 escravos e varias, aggregados.
Seguindo pela Rua do Meio topamos com o Cap. José Joaquim
Ramos e Costa, casado com D. Custodia Maria de Santa Cruz Serra,
também rico-homem, senhor de lavras e escravatura numerosa (casa na 13);
O Sargento-mór José Joaquim Vieira (casa nº 28); o Cap. Antonio Correa
da Costa, o mesmo que, por mais de uma vez, dirigiu a Província, figura
notável de político e grande proprietário rural (casa n° 32); o Sargento-mór
Manoel Pereira de Mesquita (casa n° 52); D. Maria Francisca de Moraes, a
viúva do velho Albuquerque, com suas filhas e 30 escravos (casa nº 55).
Na Mandioca é de notar-se a moradora da casa nº 5, Rosa Maria de
Oliveira, viúva, preta, e senhora de mais de 30 escravos.
Também a Rua de Baixo abrigava, posto em menor numero, a gente
boa do tempo. Nella moravam o ex-secretario João Pedro de Moraes
Baptista (casa nº 3); o Cônego José da Silva Guimarães, nome saliente da
nossa historia politica no Império (casa nº 4); D. Leonor Ludovina de
Moraes, viúva de José Zeferino de Mendonça, donde se origina esse grande
ramo familial (casa n° 5); o Sargento-mór Antonio José de Cerqueira
Caldas, senhor de engenho na Serra-Acima e tronco dos Cerqueira Caldas
(casa nº 9); o Tte. Antonio de Pádua Fleury (casa nº 21) e mais adiante, na
Rua do Oratório, o seu sogro Capitão André Gaudie Ley (casa n° 47);
contigua á daquelle a loja de D. Maria Teresa Caldas, viúva de Navarro de
Abreu, morto em Janeiro de 1825; o Tte. Cel. João Poupino Caldas,
concunhado de Gaudie, o mesmo que se notabilizaria nos acontecimentos
de 1834 (casa n° 36 da Rua do Oratório) e o Vigário Geral interino Ma-
noel Machado de Siqueira, que em sua companhia tinha uma irman de
nome Ignez Perpetua, senhora de muitos bens e escravos (casa nº 50).
A Rua Bella, a antiga Cruz das Almas, com a sua divisão aquém e
alem do córrego, longe de ser o que é hoje, era a moradia do Capitão
Joaquim José da Gama (casa nº 2); do Alferes Antonio José Soares,
portuguez, sacrificado na “Rusga”, em Diamantino (casa n° 13) e do
Capitão Luiz da Costa Ribeiro (casa nº 23), ausente, negociante que era da
carreira do Pará.
Na Rua da Esperança, casa nº 22, encontramos o Vigário Geral e
Provisor P. Antonio Tavares Correa da Silva, com todo um estadão de
aggregados e escravos. Vizinho lhe ficava o Cirurgião-mór Antonio Luiz
Patrício da Silva Manso, já viúvo, morador na casa no 23.
Pelas outras ruas e bairros se distribuía o resto da população, em
geral de classe menos favorecida da fortuna, pois o que ahi vai mencionado
representa a nata social daquellas eras.
Sobreleva notar a grande quantidade de aggregados existente em
quasi todas as casas, o que indicia o espírito acolhedor do cuyabano, que se
não confina nos estreitos limites do parentesco.
Também é circumstancia de nota o numero crescido de sacerdotes e
iniciandos então existente, o que accorda menos com o fervor religioso
daquelas eras que com as vantagens que o padroado offerecia aos que
ingressavam na carreira ecclesiastica.
Tal era a Cuyabá de 1829. E do que, em mui pequenas
exterioridades, se lhe accresceu, não direi, que vós tendes olhos para ver e
sizo para julgar.
Estou, porem, em que, como de começo disse, si algo temos ganho,
bem grande quer me parecer é o que, em cem ano nos, temos perdido.
105
106
Setembro, 1927.
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
II
ser Antão Lemes, fundador da casa dos Lemes, herdam delles, cruzados
embora com typos de raça céltica, como provavelmente Francisco Taques e
Felippe Campos, troncos dos Taques e dos Campos, as grandes qualidades
de energia, audácia e intrepidez, que caracterizam, na Europa medieval e
moderna, o typo dolico-louro» (1)
Desse «núcleo humano de estupenda e soberana eleição» no dizer
de Alfredo Ellis Junior (2) é que procede, em sua maior percentagem, o
mattogrossense do norte, esse typo que irradiando
a sua actividade, vai integrando a Matto-Grosso toda a zona sulina
da faixa inter fluvial do Paraguay ao Paraná.
Si do elemento occupador passarmos ao luzo, que muito concorreu
para o povoamento das minas affluindo em grande massa nos meados do
século XVIII, á Capitania, veremos que ainda aqui houve notável influencia
ethnica na formação de um typo que, si não chegasse á perfeição dos typos
modelares, deveria manter ao menos as linhas estheticas dos peninsulares
da Ibéria.
Dos estudos que vimos fazendo em torno do passado da gens
mattogrossense, averigua-se precisamente a predominância dos minhotos na
ascendência dos portuguezes vindos para as minas de Cuyabá, S. Pedro del
Rey e Matto-Grosso.
De Braga eram André Alves da Cunha (Carvalho de Coura) tronco
ancestral dos Alves, Cunhas, Nunes e Ribeiros; Antonio José de Cerqueira
Caldas (Valença do Minho), de que se originam os Caldas numerosissimos;
João Pereira Leite (Santa Maria do Outeiro), também chefe de enorme
progênie; Francisco da Costa Ribeiro (S. Miguel do Gualtar) e muitos
outros.
O Minho, no extremo norte de Portugal, gleba cheia de evocação e
religiosidade, confinando com a Hespanha e com o mar, é uma das mais
características entre as provindas do velho Reino de D. Duarte. É proverbial
a hygidez e belleza das suas cachopas que Anthero de Figueiredo, o
estupendo payzagista da penna, nos evoca com os seus lenços brancos no
meio do povo «que lá segue, de longada, bailando e cantarolando, sob a luz
crua que bebe a cor fulva das estradas.. .» (3)
De sangue ibérico também nos veio um pouco da relumbrante
Sevilha pelos Buenos de Ribera, cujos descendentes se contam entre os
mattogrossenses de hoje.
Por outro lado, si attendermos ao cruzamento operado, veremos que nas
duas outras raças — a autochtone e a afra importada, — typos se destacam
que, pelos seus índices anthropologicos, figuram como coefficiente
eugenico na formação racial.
Belleza Cuyabana
I
Muito se tem dito e escripto em prosa e verso, das virtudes
tradicionaes da cuyabana de outrora, em que se enquadram sem exagero os
conceitos de Garret, na dedica do seu — Merope — «Domum mansit,
lanam fecit. Governava a sua casa, cozia os filhos, insinuava-os de palavra e
de exemplo: austera consigo, indulgente com os outros, a sua virtude não
dava nos olhos, mas entrava pelo coração.»
Não vai mal em que hoje discorra este folhetim acerca dos dotes
physicos de que se exornaram as nossas patrícias de antanho, muitas das
quaes deixaram, sinão nas memórias da chronica ao menos nas chronicas da
memória, fama e renome de belleza tal que bem se vê terem sido
verdadeiros prototypos de raça e figuras heráldicas dignas de formar na
linha dessas creações excelsas em que se compraz, por vezes, a Providenda
dar-nos como um relance das visões elyseas entre as fealdades e torpitudes
da vida.
Facto é sabido e resabido que a belleza physica se herda e se
transmitte, constituindo-se, dest’arte, em certos grupos ethnicos ou
familiaes uma vera tradição de linhagem formosa ou repellente.
Applicando-se a Matto-Grosso o methodo que na sua nunca assaz gabada
monographia “Evolução do povo brasileiro” empregou Oliveira Vianna,
para pesquisar as origens do nosso eugenismo, veremos que não nos faltam
os chamados elementos de aryanização, desde que consideremos o
processus pelo qual se formou a estructura racial do mattogrossense, o que
vale para o caso, do cuyabano.
Do primeiro núcleo bandeirante se pôde dizer terem sido da melhor
flor da aristocracia rural os povoadores do sertão: raro dos signatários dos
termos de erecção das villas e arraiaes sertanejos deixa de entroncar-se em
um desses títulos genealógicos da Nobiliarchia paulistana — Lemes,
Prados, Arrudas, Macieis, Taques, Campos, Buenos ou Laras, que recheiam
a nossa historia colonial e luzem, como um estellario magnífico, na sombria
noite daquellas eras apagadas.
Desses se pode dizer com o erudito ensaista acima citado «se não
são puros e authenticos dolico-louros, como parecem
107
(1) O. Vianna — “Evolução do povo brasileiro”, 115.
(2) “Raça de Gigantes”, 136.
(3) Figueiredo — “Jornadas em Portugal”.
108
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Entre os indígenas, valem citados os Parecis, «de typo delicado,
aspecto sympathico» de que Roquette Pinto nos enseja o conhecimento, em
miúda descripção pelo systema de Bertillon (retrato falado) (4); os Guanás
e Quinquináos, do districto do Baixo-Paraguay, que a Taunay arrancaram
bellas paginas admirativas em que chega a asseverar ter visto «uma índia
chamada Antonia, filha de pai quinquináo e mãe guaná, que sobre sêr
verdadeiro typo de belleza pela venustade do rosto, delicado da epiderme e
elegância do corpo, tinha summa graciosidade e donaire» (5).
Já Francisco Rodrigues do Prado, na sua “Historia dos índios
cavalleiros” adjectiva de mimosos os pés das Guaicurús, attribuindo esse
predicado ao facto de andarem «sempre embarcados ou a cavallo» (6) e
Moutinho, confirmando-lhe o juízo affirma que «os pés e as mãos das
Guaycurús são de uma delicadeza a invejar por muitas bellezas dos grandes
salões» (7).
Também o grave ê circumspecto João Severiano, se referiu ás
guaycurús e ás chiquitanas «de cor azeitonada, tirando a claro e bem
constituídas de organismo» (8).
Quanto ao homo afer lembremo-nos do que, acerca dos minas e dos
fulas, diz o já referido O. Vianna, na sua obra precitada: — «são typos, ao
contrario, de grande belleza pela proporcionalidade das formas, pela
suavidade dos traços, pela esvelteza da estatura, pela cor mais clara e pelos
cabellos menos encarapinhados do que os das outras nações» (9).
De par com os typos ethnographicos, circumstancias outras
influenciaram para produzir nestes rincões selvagens, onde apenas deveriam
abrotar cardos agressivos e rústicos, essas flores de graça e de idealidade,
que culminaram nas creações românticas da Innocência de Taunay e da
Maria, dos Companheiros do rancho, de A. G. de Carvalho.
A consangüinidade foi uma dessas circumstancias. Elevando a
herança á sua máxima potencia, no dizer de Sanson, a consangüinidade
opera a degenerescência e também, por outro lado, o aperfeiçoamento. Em
typos de eleição; ella apura as qualidades physicas e mentaes — e é
conhecido o quanto ella actuou nas uniões matrimoniaes em Matto-Grosso,
como, em geral, em todo o interland brasileiro, em que a endogamia é a
face mais commum do casamento.
Dahi, se mantêr em certas famílias, o typo quasi uniforme,
inconfundível, que, ás vezes, na linha feminina, cria dynastias de belleza,
nas quaes, da morgadinha á velha avó, se pode acompanhar a evolução do
typo individual nas linhas geraes da raça. E dahi também — infelizmente —
a recíproca, que, abastardando o typo, quando já no acclive da
degenerescência, faz que, em certos grupos familiares, se conserve a
tradição da fealdade, como em outros a da belleza, contraste doloroso, mas
de que se jaz, ao cabo, a harmonia da vida e o equilíbrio dos seres...
Para outro rodapé — o desenvolvimento da these, com documentos
e illustrações, de modo a comprovar, com mais interesse para o leitor, a
exactidão das premissas que ahi ficam á espera de conclusão.
(4) Rondônia, pág. 76.
(5) Campanha de Matto-Grosso, pág. 128.
(6) Rev. do Inst. Hist. e Geog. vol. I.
(7) Noticia, pág. 198.
(8) Viagem ao redor do Brasil, I, pag.364.
(9) Ob. Cit. Pág. 120.
II
Testemunhas do processo querem-se insuspeitas e limpas de
qualquer parcialidade. Por isso ao referirmos depoimentos acerca da belleza
e graça das cuyabanas d’antanho, certo não os iremos; arrolar entre a gente
da terra, e sim os traremos de forasteiros que por aqui andaram, em viagem
de estudo ou de recreio. De passagem se diga que o simples facto de
haverem registrado em suas notas de viagem esses itinerantes — em geral
homens de negócios ou de sciencia, seccos ou indifferentes — a
circunstancia alludida, já é, por si, altamente expressivo e documenta, sem
necessidade de outras provas, a these que vimos desenvolvendo.
Comecemos por Moutinho (Joaquim Ferreira), portuguez, homem
viajado e de haveres, que, entretanto, aqui se prendeu por duas vezes nos
elos matrimoniaes — primeiramente com Gertrudes Ludovina Monteiro de
Mendonça, filha de Luiz Monteiro de Mendonça e netta do Prof. José
Zeferino Monteiro de Mendonça, e, ao depois, com Marianna Rita Gaudie
Ley, filha do 2º André Gaudie e netta do capitão-mór do mesmo nome.
Na sua “Noticia sobre a Província de Matto-Grosso” que, aliás, não
respira muito carinho pela terra das suas esposas, sendo até muitas vez,es
um libello contra os cuyabanos daquelles tempos, elle diz, referindo-se ás
nossas patrícias: «Attentas estas boas qualidades e a belleza que as
distingue, logo que ali chega um extranho deixa-se seduzir pelos seus
attrativos e, o amor em que se prende traduz-se logo em casamento...» (10)
Falou ex-cathedra Moutinho, que por duas vezes se deixou captivar
em Cuyabá. . .
(10) Noticia, pág. 15.
109
110
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Depoimento mais recente e insuspeito — pois de uma mulher têm
mais valor os louvores com relação a outras mulheres — é o de D. Maria do
Carmo de Mello Rego, no seu livrinho pouco conhecido “Lembranças de
Matto-Grosso” onde diz: «Ha mulheres bonitas e muitas mocinhas vivas,
alegres e interessantes» (11).
Nem o frio temperamento saxão de Karl Von Den Steinen se
conservou insensível aos encantos da cuyabana, e lá está no capitulo do seu
Durch Central Brasilien consagrado a Cuiabá mais de uma referencia á
graça dessas creaturas que, já aos 12 e 13 annos de idade — encantam e
enleiam com sua belleza florescente, — e que mesmo «antes da completa
maturidade, tão delicado, tão delicioso aroma de feminilidade exhalam,
como não o possuem os nossos botões de rosa da Europa» (12).
E si uns, discretamente, silenciam, acerca dos dotes physicos das
cuyabanas, a mór parte a elles se refere de tal maneira que longo fôra citar,
constituindo nota dissonante o Bossi que asseverou: «la fortuna no ha sido
muy prodiga con el bello sexo» referindo-se ás mulheres do norte
mattogrossense (13).
De resto, a tradição consagrou entre nós a lembrança dessas
delicadas flores humanas em torno das quaes se bordam lendas, romances
vividos, qual mais phantasioso, qual mais lindo, todos esgarçados, porem,
sobre um fundo de realidade.
Desde os tempos primitivos em que a Eva sertaneja vivia,
consoante os hábitos de antanho, aferrolhoada e reclusa, só lhe sendo dado
sahir, de raro em raro, para ir á egreja e á casa dos parentes, já a indiscreção
dos chronistas lobrigara na ferrenha perseguição ao Ouvidor Vaz Morilhas
— de tamanha repercussão — o rabo de saia compromettedor, farejando,
atravez do clássico — cherchez la femme — alguma novella sentimental
nos incidentes havidos com o ouvidor, nos meados do século XVIII (14).
Em curiosa justificação — elucidativa dos costumes de outrora —
encontrei o depoimento de uma pessoa cujo nome, posto haja decorrido
muito tempo, manda a ethica silenciar, dizendo ter vivido «dez annos
successivos em hum estado pouco menos de clausura», sem siquer a
«liberdade para visitar aos seus parentes e muito menos a outras pessoas,
por lhe ser isso vedado».
Illustra, ao vivo, as usanças coevas o episodio narrado por Florence
como presenciado no engenho do Quilombo, serra-acima, do portuguez
Domingos José de Azevedo. Mostrando ao visitante os commodos da casa,
ergueu do soalho um alçapão e indicou-lhe o lugar onde «guardava a
mulher quando tinha de sahir de casa» (15).
Não obstante taes processos, ou, talvez, devido mesmo a elles, não
são raros os romances, muitas vezes sentimentaes e poeticos, que a belleza
da cuyabana de outras eras suggeriu.
Renome de belleza deixou D. Lucrecia, mulher do licenciado
Joseph Duarte do Rego, a terceira filha de Antonio de Moraes Navarro,
morta fulminada por um raio, já velha, na sua casa (que é o sobradinho
onde funcciona hoje a Colletoria federal), e cuja vida fornece matéria a
curioso estudo, que, rastreando episódios que a cercam, daria uma novella
ao gosto da época.
Não menor fama de formosura a de D. Custodia Maria de Santa
Cruz Serra, filha do Sargento-mór Serra, uma das victimas da “Rusga”, e
que foi mulher do portuguez José Joaquim Ramos e Costa, morador em
outro sobrado, também da Rua de Baixo, que faz face, em diagonal, com o
de D. Lucrecia.
Em eras mais chegadas á nossa, relata a tradição dos que ainda as
conheceram, os nomes de D. Catharina Virginia Nunes Bueno, a Flor de
neve do poeta Antonio Gonçalves de Carvalho, que a tomou por esposa e a
imortalizou em versos lindos e singelos; de D. Anna Josepha Gaudie de
Sampaio Maciel, filha do 2º André Gaudie, cunhada do citado Moutinho e
que foi casada com Manoel Leite do Amaral Coutinho, fallecendo aos 30
annos; de D. Brasília, filha de Amâncio Pulcherio (do 1º casal), que foi
mulher de Antonio Ângelo O. Pinto, verdadeira creação de poeta,
descendente pela linha materna dos Silva Prados; de D. Anna Ramos, mais
conhecida por Sinhá Ramos, que se casou com o seu primo Dr. Veriatho de
Cerqueira Caldas; de D. Bárbara, que veio a morrer Baroneza de
Diamantino, da mesma linhagem dos Gaudie, que teve por primeiro marido
a Herculano Ferreira Penna, filho do homonymo Conselheiro que governou
a Província.
Desta ultima, guardam os contemporâneos, ainda existentes,
memória da fascinante graça, alliada á elegância das prendas de salão, com
que, em solteira e, depois na sua viuvez, após o ephemero período das
primeiras nupcias, deslumbrou a sociedade do seu tempo.
(11) Lembranças, pág. 36.
(12) Von Steinen — ob. Cit. apud Smith — Do Rio de Janeiro a Cuyabá, pag. 341.
(13) Viage pinturesca, pag. 81.
(14) V. Correa Filho — Rolim versus Morilhas, Rev. I. Hist. n. XIV.
111
(15) Esboço de Viagem de Langsdorff, Rev. I. H. B. vol. XXXVIII, l-pag. 468.
112
GENTE E COISAS DE ANTANHO
Criada mimosamente no lar do seu avô, o velho Brigadeiro
Brandão, pois perdera muito pequena a que lhe dera o ser, convolando-lhe o
pai a novo thalamo, — D. Babita, como era mais conhecida, — teve
aprimorada educação, que mais lhe realçava os dotes naturaes.
Preiteavam-lhe homenagem, rendidos aos seus amavios de viuvinha
juveníssima, as mais importantes figuras do tempo.
Na teia de seus olhares urdiu-se muito caso novellesco e
sentimental, desfechado um em acintosa transferência de alto funccionario
civil e outro em ruidoso processo contra um juiz, recalcitrante no culto de
Eros.
São recontos de hontem, muitos de cujos protagonistas vivem
ainda. Não vai mal em que se diga, entanto, inédito episodio
interessantíssimo, que a tradição de família conserva ciosamente. Refiro-me
ao fado de haver-se deixado enfeitiçar á vista do simples retrato da linda
cuyabana, solicitando-lhe a mão, em expressiva carta, um dos nomes
consagrados das nossas letras, militar distinctissimo, engenheiro, político e
fidalgo, em evidencia no segundo reinado, muito ligado, pela sua vida e
pela sua obra, á terra matogrossense... Baldou-se-lhe o intento, porem, ao
que refere a chronica familiar, devido ás informações tendenciosas
habilmente manejadas por quem tinha interesse em fazer da bella viúva
Penna a titular do baronato de Diamantino.
De outros e vários nomes fala a chronica, que fôra assaz longo
referir. De longe em longe reponta, nas nossas memórias oraes, uma figura
heráldica, discretamente nimbada pelo prestigio romântico de belleza —
desse indicio divino que á vil argilla humana evoca a sua nobre
ascendência.
E que este ligeiro cavaco, na sua apparente superficialidade, no seu
frívolo aspecto exterior, recorde, num symbolo flagrante, a visão dessas
cuyabanas que, ás graças do physico souberam juntar as do espírito,
lembrando ás nossas patrícias de hoje que ellas são a progênie dessa raça
illustre, que desabrochou em florações de belleza, para gáudio dos olhos e
alegria dos corações — A thing of beauty, — dizia Ruskin — is a joy for
ever...
Fevereiro, 1928.
113
JOSÉ DE MESQUITA
III
O Relógio da Cathedral
Quem te não terá, porventura, criticado, em um momento de mau
humor ou mesmo por simples vontade de fazer espírito, velho relógio
publico, prestante amigo e dedicado servidor que do alto da torre da egreja,
vens sendo, ha quasi um século, o nosso medidor official do tempo?
Certo, ninguém. Pobre valetudinário que trabalhas ainda a serviço
da cidade, quando já dos teus contemporâneos mal subsiste a memória
apagada, é com dichotes e zombarias, com ápodos e chasqueios que os
cuyabanos de hoje te retribuem o cansado labor de tantos annos, marcador
das horas de festa e das horas de lucto da vida dos nossos maiores!
Lei é, por sem duvida, esta que a psychologia dos dias que passam
tem consagrado e inútil se faz contra ella deblaterar com dessorados
sentimentalismos, acoimados de pieguices por uma geração frívola que faz
do presente a única e verdadeira razão de existir e resolve os mais
intrincados problemas do espírito e do coração entre uma pellicula de
cinema e uns passos de dança moderna.
Não ha mal, entretanto, em que um incorrigível namorado do
Passado, cheio desse profundo e entranhado amor ás causas de outrora,
reserve por hoje esta pagina de evocações ao dedicado e velho funccionario
que, sem estipêndio nem vantagem, vem prestando á causa publica serviço
de tamanho alcance, do qual outro qualquer não poderá jactar-se entre nós.
Velho compassador das horas urbanas, que, ha perto de um
centenar de annos, sem desfallecimentos, contemplas o escoar da vida e o
renovar incessante das gerações que se succedem, no fluxo e refluxo dos
berços que se abrem e das covas que se fecham, bem mereces, relógio
amigo, uma chronica de commovida saudade nesta série de cousas idas,
antes que algum espírito ultra modernizado e super progressista te atire por
ahi ao canto de algum museu de antiqualhas na inglória situação de misero
objecto inútil, fossilizado e desprezível.
Á vida vertiginosa de agora certo não sorri a idéa da tua presença
serena e impassível, testemunhando-lhe os desvarios e os tresloucamentos,
tu que és, relógio de antanho, o depoimento vivo e eloqüente de uma
geração que desapparece, sóbrio, commedido, recto, sem ruidosas e
estonteantes trepidações de nervos.
114
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Que importa houvesses batido, como o coração da cidade, minuto a
minuto, desde ha 86 annos, as horas memoráveis de que falam os annaes
cuyabanos, desde quasi um seculo atraz ?
Bem pouco te valerá nessa critica conjunctura, teres assim pulsado,
dia á dia, na dyastole e systole da tua engrenagem que se me afigura um
órgão vivo, marcando, como um reflector, toda a gramma dos sentimentos
que, em mais de três quartéis de século, abalaram a alma cuyabana ...
Quando te alçaram á torre pyramidal, á primitiva torre que, em 1868, foi
substituída por essa em que hoje te vêmos, turvavam-se ainda os horizontes
aos negrumes mal disipados da lucta nativista, desfechada nos horrores da
Rusga, em 1834 e da morte de Poupino, em 1837.
E, sem que a commoção mais ligeira se trahisse em seu mostrador
— impassível como a physionomia severa dos philosophos que muito
sabem calar por muito haverem ouvido — acompanhaste, relógio evocativo,
toda a evolução desta terra, dos dias agoniados das bexigas e da invasão aos
dias alegres das chegadas, dos Te-Deums e das rumorosas festas populares
com que a vetusta capital sertaneja commemorou, vai por uma década, o
seu bicentenário...
Si falar te fosse dado, como aos teus iguaes que o illustre fidalgo
lisboeta immortalizou no primeiro dos seus “Apologos Dialogaes”, serias o
rhapsodo dos nossos ancestraes, o annalista fiel dos factos cuyabenses, o
amável registrador de nossa Historia de 1842 para cá...
Mas melhor é que assim te conserves, archaico observador, no
silencio vocal a que te condemna a tua própria natureza, pendulando e
soando as horas e meia-horas, ao sol dos verões e aos luaceiros de inverno,
pois si a palavra te fosse dada, talvez muito amargor nos reservarias no
increpar aos cuyabanos de hoje o seu descaso pela tradição, o seu feiticismo
pelas causas frívolas de hoje, a completa transformação moral que se lhe
opera irremediavelmente no caracter...
Por isso Deus assim te conserve, de olhos abertos para ver e de
bôcca fechada para exprobar, para gáudio dos que te censuram a lerdeza, o
atrazo, a impontualidade que te expõe, á falta de amparo, á mercê do vento,
das pedradas dos moleques, se não mesmo, uma ou outra vez, ao
esquecimento do André, hoje teu curador e desvelado enfermeiro...
Em quanto te não jubilam, o que se dará, fatalmente, quando a
acquisição do teu substituto se fizer (ha muitos annos a Municipalidade vem
votando um credito para a compra de um relógio publico...) permitte que
aqui ao encerrar estas linhas te deixe, para vulgarização e conhecimento dos
que te estimam, a certidão de idade, com que não molestarei a quem quer
que
seja, pois dos que te são contemporaneos, já poucos subsistem, e quanto a
ti... certo é que já não deves ter grandes pretensões de parecer moço e
guapo, corno muitos que andam a esconder o que têm de annos, mostrando
assim sêrem, posto veterrimos na idade, crianças na insensatez e no
desatino.
** *
Foi respigando materiaes para estudo em nosso interessante archivo
ecclesiastico, que, casualmente, dei com o officio abaixo, transcripto em
que a Câmara Municipal de Cuyabá, offerecia ao Bispo D. José Antonio
dos Reis o relógio da torre com que ao publico desta cidade munificiára o
negociante José Antonio Soares — o benemérito cidadão, cujo nome bem
poucos conhecem, a quem devem os cuyabanos esse útil e valioso
melhoramento.
O officio que dispensa esclarecimentos e commentarios, é o
seguinte e basta a encerrar este rodapé de reminiscências:
«Exmo. e Revmo. Senhor.
A Câmara Municipal desta Cidade recebeo em sessão de hoje com
o mais especial contentamento a offerta que por intermédio della faz ao
publico o cidadão José Antonio Soares, negociante desta praça, de hum
relógio de torre, e da despeza necessária para a collocação no local em que
a mesma Câmara designar; e não desconhecendo a mesma que o mais
próprio para esse fim he a Igreja em que V. Excia. tão dignamente occupa a
Sede Episcopal e o quanto V. Exc. se interessa pelo bem publico: resolve
rogar-lhe a especial graça de prestar a sua approvação quanto ao local
designado e acceitar o referido relógio, não só para determinar a sua
collocação mas também para ter sob a protecção de V. Exc. a sua futura
conservação.
Permitta V. Exc. que a mesma Câmara approveite esta occasião
para apresentar-lhe o mais vivo testemunho do seu respeito, veneração e
cordial estima, acompanhada da mais reverente consideração que ella
consagra aos distinctos merecimentos que ornão a pessôa de V. Exc.
Deus guarde a V. Exc.
Cuiabá em sessão ordinaria de 31 de Outubro de 1842.
José Delfino de Almeida
José Vicente Corrêa
Francisco Pereira de Moraes Jardim
João Alves Ferreira
Fulgencio Camillo da Silva Rondon Uberaba
Silverio Antunes de Souza
Francisco da Costa Garcia
José Caetano Metello.»
115
116
Setembro, MCMXXVIII.
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
IV
Dois sinos menores tomam a terceira janella, ambos com o escudo
monarchico.
***
Qual a edade dos sinos da Matriz do Bom Jesus? O sino grande tem
gravada numa das faces a era da sua fundição, o nome indicador e o lugar
onde foi feito; — 1871 Nicolaus Consentino, Montevideu. Os outros,
nenhuma referencia. Encontrei no archivo da Archidiocése uma «relação
das pessoas que espontaneamente concorrerão com suas esmolas para
pagamento de hum sino, mandado vir para ser collocado na torre da Matriz
desta Cidade por conta da fabrica da mesma.» Essa lista traz data de 3 de
Janeiro de 1861 e é, portanto, anterior ao sino grande, que já vimos ser de
1871. Deve referir-se, por isso, a um dos menores.
Em 1861, a torre da Cathedral seria ainda a outra em forma de
pyramide, a que se refere Estevão de Mendonça nas Datas, I,132, visto que
só em 1868 se deu inicio á construcção da actual. A arrecadação attingiu a
295$000, em duas listas separadas de 190$ e 105$, cada uma. As três
maiores contribuições correm á conta de três senhoras: D. Maria da
Conceição de Toledo (viúva de Antonio Corrêa), que deu 50$, D. Antonia
Martins de Barros, com uma assignatura de 40$ e D. Maria Thereza
Guimarães e Silva, que concorre com 20$. Assignaram 10$ Albano de
Souza Osório, Antonio Pereira da Silva (seria o Catilina, que, por amor á
cultura clássica, appôs ao seu nome o do celebre conjurado?), o Dr. Antonio
Corrêa do Couto e Antonio José do Couto. O mais são assignaturas
inferiores a 10$. Capêa essas listas um officio de Joaquim Timotheo
Ribeiro ao Bispo D. José, sem data, no qual avisa remetter-lhe pelo
Commandante do vapor Paraná um sino que o P. Mariano de Bagnaia
pedira para receber de Santiago Deluchi e enviar-lhe. Posto não contenha
allusão ao local donde procedêra, deprehende-se provir de Corumbá dito
officio, pois diz o seu signatário «o qual sino veio de Buenos Ayres por
encommenda que o mesmo Sr. Mariano fez ao Sr. Deluchi.» E, acrescenta:
«Este sino pesa 280 lb. e o Sr. Deluchi pede aqui 2$000 a lb., como se vê da
sua carta junta; e V. Excia. pode mandar indemnizal-o, pois o dito Sr.
pretende demorar-se n’este porto ainda uns 30 dias.»
** *
O remodelamento da fachada da Cathedral, em boa hora encetado
pelo Governo, como parte do seu programma de embellezamento da Praça
da Republica, deslocou para S. Gonçalo o velho relógio, que ao que consta,
será brevemente substituído por um outro moderno. Não ha risco, porém,
que os sinos soffram mudança ou alteração: — com a nova Sé (nova por
fora, ao menos)
No campanário
Já de uma feita discreteou esta secção sobre o velho relógio da
Cathedral, tecendo-lhe uma nênia sentida acerca da sua certidão de edade.
Que muito ha, pois, em que venha hoje tomar para thema os sinos da
Matriz, os amigos sinos que das suas janellas vivem a reflectir, no tom
alegre ou triste do bronze, o que vai cá em baixo, na vida variada da cidade?
O trabalho é apenas de subir mais um pouco, deixando o lance da escaleira
que, pela esquerda, levava ao relógio e, guiando pela escadinha em caracol,
ganhar o campanário. Estou em que virás, leitor, quando não pelos sinos,
pela paisagem que é muito de ver e apreciar. E tu também, leitora, — não
fosse a curiosidade feminina — que desta altura poderás ajuizar o que é esta
nossa tão decantada capital verde, melhor do que, certamente, no terra a
terra da praça ou da avenida.
O dia convida-nos com sua athmosphera límpida, após a descarga
formidável do temporal nocturno, a arruar e passear. Em vez de uma corrida
ao Bosque e ao Porto (quando se inventará outro ponto urbano de
excursão?) subamos ao campanário, em visita aos amigos sinos, que bem
nol-a merecem, pois compartilham de nossa vida desinteressadamente,
dobraram aos funeraes dos nossos maiores, repicaram ao nosso baptizado e
ao dos nossos filhos e vão, pela vida a fora, nos acompanhando, nas mais
diversas fortunas, nos alti-baixos da existência.
** *
Das quatro janellas que tem o campanrio — uma, a de Leste, é toda
tomada pelo sino maior, que, magestoso, só se faz ouvir nas solennidades e
nos dias de grande lucto.
Traz na face exterior gravada a seguinte inscripção:
Nícolaus Consentíno
FECIT IN
Montevideo 1871
Aos lados, a caroá imperial e, na outra face, um crucifixo,
encimando as palavras:
Senhor Bom Jesus de Cuyabá
O outro, da janella fronteira, apenas tem as armas do império e a
data — 1873.
117
118
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
tel-os-emos ainda os mesmos, velhos sinos amigos, ali no seu plácido
campanário, tangendo matinas e vésperas, dia por dia, noite por noite, na
sua tarefa discreta e bondadosa. São elles que levam para o alto os nossos
ais rolando em suas vozes — como disse o poeta — e trazem-nos os
appellos mysteriosos do Infinito, nessa linguagem evocativa dos seus
dobres e dos seus repiques.
Valha-nos Deus — no torvelim das misérias quotidianas sôa, do
alto, essa voz do céu, derramando consolo e bençans sobre a terra.
Sinos amigos — não fôra o receio de prolixo, muito ainda teria que
dizer delles, mas desçamos da torre, que o pó das obras é asphixiante, o
martelar atordoador, e demais, si por ali nos ficamos muito tempo, a
confabular com os sinos, não faltará quem por ahi diga, — quantos
malédicos nos ouvem! — que andamos a fazer política .. de campanário.
V
MCMXXIX.
119
A Missa do Espírito Santo
Entre muitas outras usanças que o tempo, em seu lento deflúvio, vai
levando, e que á nossa geração já não foi dado alcançar, figura a “Missa do
Espírito Santo” de que faremos assumpto da nossa chronica neste bello
domingo de Pentecostes. Para logo se vê que não nos referimos á missa
cantada do Divino, que esse ainda se mantem, como parte que é da grande e
popular festividade. A “Missa do Espírito Santo” que constitue objecto de
nossa excogitação por hoje é a que, no antigo regime, se costumava celebrar
por occasião da installação dos trabalhos da Assembléa Provincial, com a
presença do Governo, Deputados e altas autoridades, revestida de grande
pompa e luzimento. Lendo faz dias neste mesmo jornal curiosa transcripção
acerca desse costume ainda mantido na França republicana de Doumergue e
Briand, occorreu-me, na minha impenitente paixão pelo nosso Passado,
rabiscar algumas linhas sobre essa tradição que também mantivemos até
que o sopro renovador de 89 tudo levou de arrastão, abolindo encantadores
aspectos da velha vida brasileira, para fazer de nós, em muitos pontos,
macaqueadores dos estadunidenses.
É que volvendo os olhos e a imaginação para essas eras que já se
alontanam no Passado, andando á revelia por essas alamedas silenciosas dos
Tempos-idos, sinto, profunda, despertar-se, nas raízes intimas do ser, essa
consciência da continuidade da raça que nos assegura também um dia a
lembrança dos que vierem mais tarde lavrar esta mesma terra, respirar o ar
que hoje respiramos e viver sob a bençam luminosa destes mesmos céus
que hoje nos abendiçoam...
** *
Comecemos pelo protocollo, observado rigorosamente naquelles
tempos em que a mais ligeira infracção da pragmática era considerada quasi
um delícto de Estado.
Aproximando-se o dia do início dos trabalhos legislativos, dirigia o
Presidente da Província ao Bispo Diocesano um officio concebido nos
termos seguintes:
«Tendo-se reunido hoje em sessão preparatória os membros da
Assembléa Legislativa Provincial em numero legal para firmar casa, e
designado na forma do artigo 8° do seo regimento, as dez
120
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
horas do dia de amanhã para ter lugar a Missa do Espírito Santo, assim
tenho a honra de participar a V. Excia. Revma. a quem Deos guarde por
muitos annos.»
Recebida a communicação official, determinava o Prelado as
providencias relativas á celebração do acto, que se fazia na véspera da
solenne installação da Assembléa.
Na ampla nave da Cathedral engalanada, a Cuyabá daquelles
tempos, no que ella possuía de mais distincto, floria em ricos trajos, fardas,
rodaques, vestidos de sedas, pompas e fulgores.
Comparecia a primeira autoridade, o representante do Governo
Imperial, acompanhado dos seus auxiliares, Secretario, o Chefe de Policia,
o Commandante das Armas, as autoridades mais elevadas da província.
Quando o missacantante galgava, nos seus ricos paramentos, os
degraos da Capella-mór e aproximava-se do altar todo florido e illuminado,
o coro desferia os seus cantos harmoniosos e as volutas do incenso
evolavam-se lentamente dos thuribulos de prata. E, grave, solenne,
magestosa, a missa começava. Era a missa votiva do Espírito Santo, em
que, através do symbolismo poético da liturgia, se exorava ao Dispensador
das graças fizesse descer os seus dons sobre aquelles que iam fazer as leis,
cooperar para o bem dos seus mandatários.
Após a missa, a Assembléa, encorporada, fazia o solenne
juramento, o compromisso de honra e sagrado, sobre os Santos Evangelhos,
de bem servir á causa publica.
A missa celebrava se a principio antes das 9 horas.
Um officio do presidente Zeferino Pimentel, datado de 28 de
fevereiro de 1844, assim nol-o dá a entender, communicando ao Bispo D.
José «que tendo recebido participação da Assembléa Provincial de se
acharem preenchidas as formalidades da lei para ter logar a abertura da
mesma, designando as 9 horas do dia de amanhan para o solemne juramento
dos seus Membros, depois de celebrada a Missa do Espírito Santo; rogo
por tanto a V. Excia. digne-se dar as suas Ordens ao Parocho respectivo.»
Mais tarde, já em 1872, a missa passou a ser ás 10 horas, e tal se collige dos
officios de participação á autoridade ecclesiastica.
***
Dessas velhas usanças desapparecidas, dessas e de outras muitas
que o tempo, como o Chronos inexorável da fabula, vai devorando, o que
resta hoje em dia? Apenas o vago perfume da tradição, e a lembrança
pallida e remota, na memória dos poucos que, contemporâneos de taes
eventos, ainda os recordam sentidamente, no encanto das palestras
evocativas.
Nada mais...
VI
MCMXXX.
121
A procissão de São Jorge
Num desvão esconso de sacristia da nossa velha Cathedral, vive
uma imagem ha tempo afastada do culto externo e de cuja existência
poucos da actual geração se apercebem siquer — a do glorioso São Jorge,
padroeiro da Milícia, cuja festa se celebrava conjunctamente com a grande
procissão do SS. Sacramento, no dia do Corpo de Deus. Sem que se possa
comparar a outras muitas imagens de nossos templos, verdadeiras obras de
arte religiosa, como, p. ex., o Senhor dos Passos, da Capella homonyma, e o
Bom Jesus, da Cathedral, o Santo guerreiro cuja festa vamos tentar
recompor neste folhetim, tem a particularidade de lhe haver sido feito a
imagem aqui mesmo em Cuyabá, com material da terra e por um
conterrâneo nosso, o professor-regio José da Silva do Nascimento.
Data de 4 de julho de 1819 o recibo que o mesmo santeiro passára
ao alferes Antonio Pires de Barros, procurador da Câmara Municipal, do
serviço que fizera, e que, por seu valor histórico, aqui deixo transcripto:
«Recebi do Sr. alferes Antonio Pires de Barros, cento e vinte seis oitavas
três quartos cento e dez réis de ouro da factura da imagem de S. Jorge; e por
haver recebido as referidas 126/8 3/4 110 rs. passei o presente. Cidade, aos
4 de Julho de 1819. José da Silva do Nascimento.»
Não foi esse, entretanto, o custo da imagem, pois em dezembro do
mesmo 1819 Pires de Barros pedia ao Nobre Senado indemnização de
duzentas e doze oitavas e três quartos cento e dez réis de ouro, accrescido,
assim, o valor da factura da imagem de mais oitenta e seis oitavas,
provenientes de tintas, ferragens e fazendas fornecidas a Nascimento pelo
negociante Salvador Pedroso Duarte. Esses documentos foram publicados
n’ “O Republicano” de 26 de dezembro de 1895 e reeditados, mais tarde,
neste jornal por Estevão de Mendonça, a quem devo a gentileza de muitos e
preciosos informes acerca da festa de S. Jorge.
São Jorge tinha honras de general e a sua procissão, no antigo
regimen, era um verdadeiro acontecimento que abalava a cidade, pela sua
pompa e ruidosidade.
Após a queda da Monarchia, separadas a Egreja e o Estado, S. Jorge
não mais sahiu senão uma única vez — em 1892, após a revolução de 7 de
maio, fazendo-lhe o cortejo e as honras do
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GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
estylo o batalhão patriota commandado pelo coronel Generoso Ponce, ou
melhor, a legião “Floriano Peixoto”.
Tempo é, porém de fazer sahir a procissão — eis que este rodapé já
vae quasi em meio e sem ter entrado no seu assumpto principal.
***
Desde cedo começava o movimento. A guarnição composta de dois
batalhões, o 8° e o 21°, bem como a Policia e os operários militares e os
menores do Arsenal de Guerra, formavam no Largo da Sé, frenteando e
ladeando a Egreja em que se realizava a solenne Missa de Corpus Christi.
Na rua de Cima, deante do edifício da Câmara Municipal, cerca de quarenta
cavallos, dos mais bellos, fortes e educados, seguro cada um por um pagem,
trajado a caracter, aguardava a hora da sahida do Santo.
S. Jorge descia com antecedência do seu nicho na Capella privada,
que ficava onde hoje funcciona a thesouraria da Prefeitura, e aguardava, no
saguão, o momento determinado para se transportar para a egreja. Ali já se
encontrava a officialidade toda, que deveria formar a guarda de honra, e á
qual se destinavam os outros cavallos. Vale notada a circumstancia de se
constituir essa procissão, como também o bando de mascaras, annunciador
das festas do Divino, em uma verdadeira parada de exhibição e selecção dos
melhores cavallos da cidade, entre os quaes se procedia á escolha apurada
daquelle — primus inter pares — a que caberia a honra de conduzir a S.
Jorge nesse anno. Collocada a imagem sobre o animal escolhido, formavase o cortejo, montando nos demais os acompanhadores.
Os cavallos, eram artística e ricamente adornados mas sem sella,
apenas com freios e peitoraes de prata ou dourados.
A indumentária dos pagens merece também ligeira descripção.
Usavam calça branca, jaqueta de alpaca preta, chapéu de abas largas,
viradas na frente, trazendo o pagem de S. Jorge, como distinctivo especial,
uma capa azul e arminho na copa do chapéu.
Ao chegar em face á Cathedral — a missa já se havia iniciado —
postava-se S. Jorge em frente á porta principal, ladeado por quatro officiaes,
emquanto a tropa toda, em pequenos pelotões de cinco soldados, formava
em torno á praça, estendendo se pela actual travessa Martiniano, rua da
Esperança, rua de Baixo, Mandioca e rua de Cima, até defronte da Câmara
— o trajecto que deveria fazer a procissão.
Terminada a Missa Pontifical, sahia o sumptuoso cortejo, indo São
Jorge á frente, seguido do Pallio, em que o Bispo em pessoa levava o SS.
Sacramento, e que sobraçavam as mais altas
autoridades civis e militares. A tropa prestava continência á passagem do
General das Milícias celestes. Era um espettaculo grandioso e
impressionante. O commandante, em geral, era o official mais graduado da
Guarnição, abaixo do Commandante das Armas. Após a continência os
grupos de soldados iam se integrando ao cortejo, que, lenta e
hieraticamente, ao som das Bandas Militares, que desferiam marchas
graves, proseguia o seu itinerário habitual. Ao chegar em face da Cathedral,
S. Jorge, no seu lindo cavallo, permanecia no mesmo logar, emquanto a
procissão ingressava no adito sagrado.
Dava-se a Benção — isto, geralmente, já das onze para meio dia. Á
hora em que a hóstia inmaculada se elevava, no esplendor do ostensório de
ouro, sobre a multidão prostrada diante dos altares da velha Cathedral, lá
fora se troavam as três descargas do estylo, acompanhadas das salvas de
quatro peças de artilharia La Hite, com que, no fronteiro morro da Prainha,
o Exercito saudava ao Deus immortal dos séculos e ao glorioso guerreiro S.
Jorge. Era já o fim da solennidade. Ouvia-se a voz estentória de Pedro
Póvoas, que era o commandante dos aprendizes, aos brados de “sentido”,
“carregar”, “apontar” e “fogo”.
Poucos momentos após, S. Jorge, acompanhado do seu séqüito de
honra, de officiaes e pagens, regressava á sua morada, no Paço Municipal, e
a tropa desfilava pela rua Bella, em rumo aos seus quartéis.
Estava acabada a festa — e, leitor amigo, está acabada, igualmente,
a nossa conversa de hoje.
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124
Janeiro, MCMXXXVIII.
GENTE E COISAS DE ANTANHO
VII
Funeraes á antiga
A leitura de velhíssimo livro de testamentos suggeriu-me a idéa de
reconstruir, com os elementos ali fornecidos, para os meus ledores deste
frívolo século, o que era, cem annos atrás, o serviço fúnebre de um varão
opulento e prestigioso nesta cidade do Senhor Bom Jesus do Cuyabá.
Conhecida como é a profunda religiosidade dos nossos
antepassados, herdada a meias do reinol e do bandeirante, e sabido o
influxo que exerce a idéa ou melhor a presença da morte nos espíritos
sinceramente crentes, é bem de imaginar que o ritual fúnebre daquellas eras
se deveria revestir de grande significação e, no tocante aos potentados, de
verdadeira sumptuosidade. A morte constituía para os nossos maiores um
das mais sérios — senão o mais serio — problema da vida. Já nos seus
testamentos, vasados em linguagem unctuosa e contricta, dizem das suas
disposições com respeito á ordem e cerimônias a serem seguidas nos seus
serviços fúnebres.
Ao lado, mas contrastando com um capitão-mór Gaudie, que
determina deixar o enterro «a eleição do meu testamenteiro recommendolhe comtudo que não quero superfluidades e pompas, porque nada servem
para a alma», outros ha que descem a particularidades que valem
mencionadas como índices da época. Assim Valério José da Rocha, testado
a 2 de Março de 1775, roga aos seus herdeiros que o «seu corpo seja
sepultado na Igreja Matris em huma das sepulturas dos Irmãos do
Sacramento amortalhado em o habito de S. Francisco e se não houver em
habito da Relligiam do Carmo» e em seguimento pedia aos reverendos
padres «acompanharem o meu corpo á sepultura pelo amor de Deos. As
Irmandades do Santíssimo Sacramento e Almas me acompanhem á
sepultura e os mais sufrágios, como sou tão pobre deixo no arbítrio de
minha testamenteira.»
O Tenente. Manoel Leite Pereira, em seu testamento de 1774, se
satisfaz que o seu corpo seja enterrado «em caixão de taboas forrado e
guarnecido como se permitir» e acompanhado por «todas as Irmandades,
sacerdotes e musica que ouver nesta villa a quem se dará a esmola
costumada e a toda a pessoa branca de Authoridade e postos que
acompanharem se lhe dará sera de Libra e a todos os mais de meia Libra e
aos índios pardos e pretos de quarta.»
Indicavam alguns precisamente o lugar em que queriam ser
enterrados: «dentro da Igreja Matriz desta Villa em huma das
125
JOSÉ DE MESQUITA
sepulturas da Fabrica da mesma Igreja que se achar vaga junto a huma das
portas travessas da ditta Igreja» (João Francisco Guimarães, testado a 9 de
Setembro de 1776) ou «em sepultura de menor preço» (Manoel Mendes
Machado, preto forro, testado a 11 de Maio de 1780) ou ainda «na Igreja e
Capella de Nossa Senhora do Rosário desta Villa e quero ser sepultado
como Protetor e Benfeitor das grades para cima» (Manoel da Costa Meira,
testado a 16 de Julho de 1781).
***
Curioso costume da época era fazerem-se acompanhar os enterros
por pessôas conduzindo velas de cera, como hoje se usa nas procissões.
Vinha esta praxe de tempos immemoriaes, devendo ter sido transplantada
de S. Paulo, onde, em 1826, já se lia uma portaria prohibindo o uso das
velas nos enterramentos (1).
Os enterros eram acompanhados pelo Vigário com o clero, seguido
da Cruz, as Irmandades, e sobretodas aquellas a que pertencia o defunto.
Havia sempre que possível ou recommendada pelo morto, missa de corpo
presente, seguida de encommendação do cadáver. Num inventário de 1821
encontro interessante documento consistente na conta das despezas de
funeral de Miguel José Rodrigues, apresentada ao seu testamenteiro
Joaquim da Costa Siqueira. A importância é calculada em oitavas de ouro,
consoante o costume do tempo:
DESPESA DE FUNERAL
Ao Vigário:
Missa de corpo presente 4/8
Do acompanhamento
2/8
Da encommendação
2/8
8/8
Aos R. R. Sacerdotes:
Ao R. Mel. Je. Pinto — de missa e acompanhamento 4/8
Ao R. Manoel Maxado, do mesmo
4/8
Ao R. Jé. Gomes da Silva, do mesmo
4/8
Ao R. Jé. Mel. da Silva, do mesmo
4/8
Ao R. João Heitor, do mesmo
4/8
20/8
Á Fabrica:
Da Cruz
1/8
Ao Sacristão:
De acompanhamento
1/8
Deseseis dobres alem do costume 1/8
TOTAL: 31/8
(1) “Documentos interessantes”, vol. XXII.
126
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Os corpoferarios, nos enterros de pompa, eram os próprios
sacerdotes, ou membros das Irmandades a que pertencia o finado. Luiz,
menor filho do Cap.-mór André Gaudie, † a 14/1/1823, teve 11 sacerdotes a
acompanhar-lhe o enterro! Fazia-se a inhumação, como é sabido, nos
templos, em lugar proporcionado á posição e benemerências do extincto: —
na capella-mor os prelados, no presbitério, os sacerdotes e altas autoridades,
nos consistórios os dignitários das Irmandades, na nave central as demais
pessoas. Os não baptizados e pessoas fallecidas sem sacramentos eram
enterrados fóra da Egreja, no adro principal ou aos lados.
***
Vieira Fazenda relata, no seu curiosíssimo “Antiqualhas e
Memórias do Rio de janeiro” (2) como se fazia, na Côrte, um funeral. É
uma pagina interessante, viva reconstituição dos costumes d’antanho, que
vale apreciada e allude a um trabalho de Pires de Almeida publicado no
“Jornal do Commercio” de 12 de Setembro de 1902. «Si o fallecido
pertencia a várias confrarias — diz o emérito annalista — o préstito tomava
o aspecto de uma verdadeira procissão, despertando a curiosidade dos
viajantes, que por vezes visitaram o Rio de Janeiro».
Também Alcantara Machado refere-se, em valioso trabalho, (3) aos
serviços fúnebres dos nossos antepassados coloniaes, que se encareciam
pelos «mementos entoados durante as cerimônias funebres com canto de
orgam, harpa e mais musicas, harpa e baixom» (3).
***
Os funeraes de suffragio revestiam-se de extraordinário explendor.
As chronicas de Siqueira nos narram, alem de outros, os que se celebraram,
em 1816, por morte de D. Maria I, que começados a 8 de Dezembro,
tiveram o seu encerramento a 14 de Setembro. Dobravam os sinos desde o
amanhecer, na Câmara, na Cathedral e capellas filiaes, repetindo, por três
dias, e de hora em hora os dobres. Havia, em se tratando de altas
dignidades, as cerimônias de quebrar os reaes escudos, nos largos da
Cathedral, Passos e da Praça Real «acompanhando a todos estes actos os
republicanos, almotaceis, letrados, escrivães e mais officiaes de justiça». A
descripção impressionante e suggestiva lembra uma tela medieval, numa
agua-forte de Doré. Salvas de tiro de peça se succediam de quarto em
quarto de hora e os cantochonistas, aos profundos accordes do Libera-me
ou do Dies iræ faziam vibrar
aquellas almas crentes á lembrança dos altos mysterios que a Morte nos
evóca.
***
Era tétrico sim, mas, não ha negar era mais suggestivo e imponente
que esse ritual simplificado com que, em nossos dias prosaicos, se leva á
derradeira morada os que desapparecem na voragem eterna.
Cuyabá, Julho, MCMXXXI.
(2) Separata do vol. 140 da Rev. do I. H. e G. Brasileiro — pag. 417.
(3) “Vida e morte do Bandeirante” — pag. 33.
127
128
GENTE E COISAS DE ANTANHO
VIII
Migalhas para a Historia da cidade
I
A vida passada da cidade bem pouco interesse tem despertado entre
os nossos curiosos de cousas idas, não sendo isto de extranhar, á vista do
que succede em geral com a própria Historia do Estado, que bem poucos
cultores tem tido até agora. Cuiabá, entretanto, bem merecia ter o seu Vieira
Fazenda, o seu Affonso de Freitas que, a exemplo do que fizeram esses dois
abonados historiographos, para o Rio e S. Paulo, lhe escrevesse as gestas bicentenarias. Cidade velha, com um passado cheio de episódios curiosos, de
costumes e usanças bastante typicos, a capital matogrossense daria
ensanchas a bellos ensaios em que o brasileirismo teria muito que lucrar,
dada afeição essencialmente nacional do nosso povo, que se explica aliás
pela sua posição isolada no centro quasi geométrico do continente.
Aqui ficam, á guiza de contribuição para esse estudo, que um dia se
ha de fazer, alguns apontamentos extrahidos cá e lá nas minhas leituras de
alfarrábios, que constituem, a meu ver, uma das bôas maneiras de occupar o
tempo, em que pese a utilitaristas mais ou menos yankezados.
***
Uma das grandes preoccupações dos governos provinciaes foi
sempre o abastecimento de água á cidade. Raro o relatório que não
abordasse esse thema, glosado, nos mais variados tons, pelas folhas da
época.
Até que, no governo de José Maria de Alencastro — uma das
administrações memoráveis que tivemos — se solucionasse o caso, pela
canalização da água do Cuyabá, contractada com João Frick e Carlos
Zanotta, a grande cogitação empolgava, com intercadencias, todos os
governos.
E os mananciaes urbanos, as bicas e os chafarizes eram objecto de
carinhosa, solicitude por parte da administração publica, empenhada em
distribuir por toda a cidade o precioso liquido, de que nos dotou com
liberalidade a natureza.
Desses distribuidores de água espalhados pelas diversas zonas
cidadinas, o mais antigo, ou pelo menos aquelle a que mais velha referencia
descobri, é o chafariz do Rosário, construído, conforme affirma Baurepaire
Rohan, nos seus preciosos Annaes, em
129
JOSÉ DE MESQUITA
1790, no governo do Capitão General João de Albuquerque, tendo para esse
fim sido trazida água do tanque do Ernesto (I).
A sêcca excepcional do anno de 1863, reduziu as fontes da cidade,
a ponto de se tornar calamitosa a situação dos habitantes, exigindo medidas
que no dizer do presidente Albino de Carvalho, vieram collidir com outra
deplorável falta «a de dinheiro nos cofres provinciaes e municipaes, com o
qual se teria vencido esta e muitas outras grandes difficuldades com que
lucta a administração da província» (2). Albino, a quem muito deve
Cuyabá, pois foi o iniciador dos nossos cemitérios, fez construir o açude
mais conhecido por Tanque do Bahú, que tantos serviços ainda presta aos
moradores desse bairro.
Já por esse tempo se fazia mister reconstruir as bicas antigas, tendo
o governo Cardoso Junior, em 1872, contractado com o Comr. Henrique
José Vieira um novo chafariz no Rosário, que se inaugurou a 13 de Junho
desse anno e um no Mundéu, na praça da Conceição, tendo mandado
estudar a possibilidade de um terceiro em frente á chácara de Chico
Alexandre, actual praça de Santa Rita (3).
Os dois primeiros custaram ao governo 24:818$976 incluido o valor
do terreno comprado á Santa Casa de Miseticordia, por 2:000$000 (4).
***
Na vasta praça do antigo Arsenal, que, pelas suas proporções, se
destina a ser um dos mais bellos logradouros urbanos, quando bem
arborizada e ajardinada, defrontam-se o velho casarão onde hoje se aloja o
16° B. C. e a Cadêa Publica. Digamos, de passagem, algo sobre esses dois
edifícios.
O ex-Arsenal teve a sua construcção iniciada a 22 de Abril de 1819,
no governo de Magessi, ao mesmo tempo que se dava começo á chamada
Casa da Pólvora (5), só vindo entretanto a concluir-se muito depois, sendo
inaugurado em 1832.
A Cadêa teve o principio da sua edificação em data muito mais
recente, Julho de 1858, no governo Delamare, o qual dá conta á Assembléa
da escolha do local, em frente ao Arsenal de Guerra, e da designação de
uma Commissão composta do Comr. Henrique J. Vieira, do Cel. Luiz
Moreira Serra e capitão Antonio de Cerqueira Caldas, depois Barão de
Diamantino, para fazer os estudos e dirigir as respectivas obras (6). No
anno seguinte, An(1) Annaes, R. I. H. B. vol.
(2) Relatório de 3 de Maio de 1864.
(3) Relatório de 4 de Outubro de 1872.
(4) Relatório de Miranda Reis, em 3 de Maio de 1873.
(5) Rohan, Annaes, 1819.
(6) Relatórios de 3 de Maio de 1858 e 3 de Maio de 1859.
130
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
tonio Pedro de Alencastro, que substituiu Delamare, dá as obras em bom
andamento, sob a direcção do Cel. Caetano de Albuquerque (7), só vindo,
todavia, a ser inaugurada a nova Cadêa em 1862, no governo Herculano
Penna (8).
***
Por hoje, basta. No próximo folhetim, continuaremos a piedosa
tarefa de armazenar subsídios para a Historia da nossa cidade.
***
Os melhoramentos da Praça da Republica, levados a effeito no
governo Mario Correa, trouxeram como conseqüência a retirada do velho
Cruzeiro da Cathedral, tendo o então Vigário Geral do Arcebispado, P.
Romualdo Letieri, promovido uma solemnidade para commemorar aquelle
acto tocante e significativo.
Que edade tinha esse cruzeiro? Menos de meio século, pois fôra
inaugurado a 7 de Dezembro de 1883, em substituição ao primitivo, cuja
época de collocação não consegui precisar. “O Expectador”, de 13 daquelle
mês e anno, narra as ciscumstancias daquella inauguração, tendo sido a
bençam do cruzeiro dada pelo Bispo D. Carlos e recitando poesias allusivas
ao acto o P. Bento Severiano da Luz e o Te. Cel. João de Souza Neves.
***
A actual praça Moreira Cabral, já antes denominada Campo do
Ourique e praça do Alegre (pela resolução municipal de 3 de Junho de
1871), teve antes o nome, pelo qual muita gente antiga a conhece, de Largo
da Forca. É que ali eram realizadas as execuções dos criminosos, rezando as
chronicas oraes que as duas ultimas foram levadas a efeito no anno de 1848.
De Largo da Fôrca — nome e lembrança sinistra — passou a ser o largo das
touradas e cavalhadas, divertimentos estes predilectos dos cuyabanos que
durante longo tempo fizeram vibrar a nossa população de vivo e
enthusiastico prazer.
As touradas se faziam antes no Ypiranga, donde, em 1876, se
passaram para o Campo do Ourique. As cavalhadas, menos populares que
as corridas de touros, soffreram largo hiato, desde 1854 até 1878, em que se
reiniciaram, sendo nesse anno festeiro do Espírito Santo João Ribeiro do
Nascimento.
***
As Datas de Estevão de Mendonça, precioso repositório de
informes sobre causas da cidade, dão o dia 4 de Junho de 1874 como o da
inauguração da barca-pendulo que faz o serviço de passagem do Cuyabá.
Parece haver equivoco do notável ephemerista no tocante a esse facto, pois
a 25 de fevereiro de 1875 O Liberal publicava ainda um edital da Câmara
Municipal com referencia á desapropriação do terreno da margem direita do
Cuyabá, pertencente aos herdeiros de Veríssimo José da Silva, declarando
achar-se á disposição dos interessados, durante 10 dias o plano da obra e
respectiva planta. Ora, não é admissível, á vista disso, que em 1874 um
anno antes, estivesse o serviço inaugurado.
***
Já houve terremotos em Cuyabá? As chronicas oraes e escriptas que
consegui alcançar referem três abalos sísmicos que aqui
Janeiro, MCMXXXI.
II
O mais antigo turista que deixou memória escripta da sua passagem
por estas plagas foi o capitão-mór João Antonio Cabral Camello, cujas
“Noticias praticas das minas do Cuyaba e Goyazes” se encontram
publicadas no vol. IV de Revista trimestral do Instituto Histórico e
Geographico Brasileiro. Desse curioso documento, bem pouco divulgado
entre nós, extraio o seguinte tópico, bastante expressivo como flagrante
photographico da Cuyabá nascente: «Quando cheguei ao Cuyabá, que foi
em 21 de Novembro de 1727, não havia nelle mais que um único engenho,
10 ou 12 leguas distante da villa, no sitio onde chamam a Chapada... A villa
está situada da mesma parte direita e lançada por um carrego acima entre
morros; tem só 8 ou 9 casas de telha entre as quaes é a melhor a que foi do
general Rodrigues Cesar: as mais são ainda de capim...»
Cuyabá progrediu tanto nos primeiros decennios da sua vida que
permittia ao findar do século XVIII, a Ricardo Franco assim se exprimir no
seu “Extracto da descripção geographica da Província de Matto Grosso
publicado na mesma Revista, vol. VI.
«É Cuyabá um grande povo que consta presentemente, com as suas
dependências 18.000 almas, abundantisimos de carnes: fructas e hortaliças e
peixe e tudo por preço ainda mais com modo do que nos portos de mar. É
terra própria para crear homens robustos...»
Como se vê, em matéria de fartura, já houve épocas melhores,
sendo que, presentemente, a par de certo progresso material que se nota, a
abundancia já não é aquella encomiada pelo valoroso engenheiro e cabo de
guerra lusitano. Si até o peixe — riqueza do pobre, no dizer do povo
já entra, desde algum tempo, a escassear...
(7) Relatorio de 3 de Maio de 1860.
(8) Datas, II, 351.
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132
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
se fizeram sentir: o primeiro, no dia 24 de Setembro de 1747, a que allude
João Severiano, vol.II, pag. 55 da sua preciosa Viagem ao redor do Brasil;
o segundo, em 1831, cuja data não consegui precisar; o terceiro, que foi
sentido até o Livramento, Pary e outras cercanias, no mês de Agosto de
1860, conforme se lê n’ “O Liberal” de 19 desse mês e anno.
***
Para terminar, um curioso officio do Chefe de Policia, Dr.
Theophilo Ribeiro de Rezende ao Bispo D. José, datado de 11 de fevereiro
de 1847, acerca do «toque de recolher», costume este de que muita gente
ainda se recorda, e cuja significação o mesmo documento sufficientemente
elucida:
Teve começo a illuminação da cidade em dezembro de 1839.
Entretanto, o serviço era feito de forma muito primitiva e sem regularidade.
Em 30 de outubro de 1879, no governo Pedrosa, é que foi inaugurada,
effectiva e officialmente, a illuminação publica, lendo-se n’“ A Provincia
de Matto Grosso” de 9 do mês seguinte, uma longa noticia do importante
evento.
***
A passagem do “porto geral”, antes que se organizasse o serviço da
“barca-pendulo” era feita mediante concessão a determinadas pessoas, que
se habilitavam perante o governo a esse fim. Em 1817, era Manoel
Francisco Pires o contractante desse serviço.
***
A Enfermaria Militar foi durante muito tempo dependência da
Santa Casa, e só em 1880 passou a ter existência autônoma, transferindo-se
para o próprio nacional do largo do Arsenal, onde ainda hoje se encontra.
(“A Província”, de 27 de fevereiro de 1880). A enfermaria esteve
primeiramente no quartel, donde, em 1817, foi transferida para o edificio
que foi de Valentim Pereira Guimarães, contíguo ao hospital, como informa
a “Chronica” de Costa Siqueira (1).
***
O velho sobrado da rua de Cima, conhecido por sobrado da
Relação, merece que se lhe conte a historia, agora que, passando a novas
mãos, acaba de soffrer a “capitis diminutio” do seu andar superior,
passando a simples casa térrea. Contou-me certa vez o meu velho amigo
Paula Corrêa haver sido esse prédio construído por sua bisavó D. Rosa
Cardozo de Lima, paulista, filha de José da Costa Lima e mulher de Luiz
Monteiro Salgado (2). Houve, porém, algum equivoco ou infidelidade na
versão familiar colhida por aquelle digno cuyabano. D. Rosa, fallecida a 27
de Janeiro de 1838, com testamento solemne de 10 de Julho do anno
anterior, e inventariada no 1º cartório de orphãos desta capital, somente
possuía duas casas, a da rua de Baixo, em que sempre residiu, contígua ao
sobrado do canto do largo da Sé, e outra na rua do Meio. O sobrado da rua
de Cima devia ser de Albano de Souza Osório, que, no recenseamento de
1829, vêmos residindo na mesma rua. Veio a pertencer, posteriormente, a
Alexandre José Leite, genro de Albano, casado que foi com sua filha
Augusta Olympia. Noticiando, a 10 de agosto de 1877, a mudança da
Relação da casa em que três annos antes se installara (na rua 11 de
«Exmo. e Revmo. Senhor
Tendo nesta data determinado algûas providencias e medidas
tendentes a escravos que vagão pelas ruas das 8 horas da noite em diante
sem bilhete de seus Senhores, para melhor realizal-as julgo necessário que a
essa hora se dê signal não só no sino da Câmara como no grande da Matriz,
que pode ser ouvido em toda a cidade a exemplo do que se pratica em São
Paulo á annos, e começou a praticar-se no Rio de Janeiro no anno de 1842,
onde taes signaes são dados por meio de dobres pelos sinos grandes de S.
Francisco de Paulo e S. Bento; por isso vou rogar a V. Excia. que no caso
de não haver inconveniente e de V. Excia. annuir a esta minha providencia,
se digne dar ordem para que desta data em diante haja o referido signal na
hora indicada.
Deos guarde a V. Excia.
Secretaria da Policia de Matto Grosso, 11 de fevereiro de 1847.
Exmo. e Revmo. Sr. Bispo Diocesano
Theophilo Ribeiro de Rezende
Chefe de Policia.»>
Cuyabá, fevereiro, MCMXXXI.
III
Continuamos hoje a tarefa paciente de respigar, aqui e ali, através
da tradição oral ou dos poeirentos archivos, cousas pertinentes á vida da
nossa mui leal e invicta cidade do Senhor Bom Jesus de Cuyabá — a quem
o mesmo Bom Jesus proteja e assegure, ad multas annos, o seu papel
histórico de directora mental e politica de Matto Grosso.
(1) Rev. Trimensal do I. Histórico, XIII, 112.
(2} Rosa vem referida na “Genealogia Paulistana” de Silva Leme, vol. VIII, 548, titulo VAZ
GUEDES.
133
134
GENTE E COISAS DE ANTANHO
Julho, de propriedade da família Caracciolo), O Literal se refere ao
«sobrado dos herdeiros de Alexandre José Leite.» Existe uma tradição que
attribue ao P. Tavares a edificação do velho sobrado: entretanto, não
achamos elementos que a abonassem, visto como o P. Tavares, fallecido em
1833, e inventariado no anno subsequente, sómente possuía, além do
engenho do “Abrilongo” e da sesmaria do Prata, do S.Lourenço, umas casas
de moradas na rua da Esperança, com fundos no largo da Matriz (3).
Mais de meio século conservou-se o Tribunal da Relação no vetusto
sobrado da rua de Cima: desde agosto de 1877, até junho de 1928, quando,
no governo Mario Corrêa, se transferiu para a sua actual séde, á rua Barão
de Melgaço.
***
Antes da varíola em 1867, houve outros surtos epidêmicos em
Cuyabá? As chronicas accusam, além do primeiro, de 1727, que fez dizer
ao memorialista que «tudo era gemer, chorar e morrer» (4), mais dois no
século XVIII, em 1758 e em 1785. O de 1758 foi precedido de signaes
celestes, que consistiram no apparecimento de um cometa «ao nascente,
sobre a madrugada» e, alguns dias após um «outro que mostrava logo a
boca da noite para o Sul». Essa peste «com toces e curços de sangue» durou
até o anno seguinte.
A outra, de 1785, manifestou-se no fim do anno, como relatam os “
Annaes”, e posto não fosse tão intensa e lethifera, fez muitas victimas (5).
No século passado, assignalam-se três epidemias, em 1805, 1819 e
1844, sendo a segunda de dysinteria (6), culminando na invasão das bexigas
em 1868. Em 1890 apparece a influenza, que continua a fazer victimas nos
annos seguintes.
***
Onde foi a primitiva Casa da Câmara de Cuyabá? Erguida por
ordem de Rodrigo Cesar, em começos de 1727, ficava no «canto chamado
do Sebo com os fundos para o Corrigo». Os “Annaes” dizem que as casas
da Câmara fôram depois demolidas, transformando-se o lugar numa
«prassa» (sic). Induz a crer fosse na actual Praça da Republica ou onde se
acha hoje a Praça 13 de Maio, versão esta mais credível, considerando-se
que o inicio do povôado acompanhou as margens da Prainha, vindo do
Rosário e da Mandioca.
Cuyabá, Julho, MCMXXXII.
(3) Ver o ensaio “O P. Tavares”, n. XXXII desta serie.
(4) Annaes do Senado da Câmara, anno 1727.
(5) Annaes, Com. por Baurepaire Rohan, in Rev. I. H. S. Paulo, vol. XV.
(6) Apont. Chron. do Barão de Melgaço, na Revista Matto Grosso.
135
JOSÉ DE MESQUITA
JOSEPH BARBOSA DE SÁ
A 30 de Maio de 1776 falecia em Cuiabá o licenciado Joseph
Barbosa de Sá, deixando viúva Dona Joana Pires de Campos e dois filhos
— José, de 7 anos e meio e Joaquim, de 3 meses.
Desaparecia com ele o cronista da nossa Historia primitiva, o
narrador fiel e minucioso dos fatos iniciais da nossa vida políticoadministrativa, aquele a quem nós outros, matogrossenses, bem como os
gregos a Heródoto, poderíamos cognominar o pai da nossa Historia.
A sua Relação das povoações de Cuiabá e Mato-Grosso de seus
primeiros thé os presentes tempos, que outra causa não é que o próprio
texto dos Anais do Senado da Câmara de Cuiabá, copiados da crônica de
Barbosa, representa a única fonte segura e autorizada da Historia de
Mato.Grosso.
Bem pouco, entretanto, se sabe do que foi Barbosa de Sá, alem do
que dele diz vagamente um ou outro discreteador de cousas
matogrossenses. Alcança-se quando muito que foi advogado em Cuiabá, e
tinha o titulo de licenciado, devendo ter feito os seus estudos em Coimbra.
O seu inventário, que consegui encontrar, já quasi consumido, bem pouco
esclarece acerca da vida anterior de Barbosa. Dele, entretanto, se infere,
alem da data do seu falecimento e do nome da sua esposa e filhos — que
nada era sabido — ser o mesmo parente do sargento da Companhia de
fuzileiros Auxiliares João Pereira Passo d’Arcos, que, nomeado tutor dos
seus filhos órfãos, se excusou, com fundamento no Decreto de 22 de Março
de 1773, que isentava os oficiais e soldados de servirem os cargos da
República e foi dispensado por Despacho de 4 de Novembro de 1775.
Seria este Passo d’Arcos, militar, irmão daquele frei José da
Conceição Passo d’Arcos que, religioso leigo e esmoler da Terra Santa,
auxiliou a construção da torre primitiva da Catedral, conforme depoimento
do próprio Barbosa de Sá, em 1771?
Dispensado o primeiro tutor nomeado, mandou o juiz que o
Escrivão informasse de outro parente próximo do morto que nl-o fosse
privilegiado. Informou então o Escrivão José de Melo
136
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Vaz Concelos (sic) não ter a viúva parente algum próximo que pudesse
servir o ofício de tutor dos orfãos seus filhos «mas sim Manoel de Freytas
Caldas que he vizynho da dita viúva inventariante e pessôa capaz de bem
poder exercer a dita tutoria e este sem privilegio algum que o
impossibilite.»
A curiosa descrição de bens de Barbosa de Sá oferece margem a
ajuizar-se de certa maneira da vida do licenciado Barbosa e do ambiente da
Cuiabá colonial dos fins do século XVIII.
Nota interessante e para registrada: as estantes (3) e 123 livros,
entre grandes e pequenos, do espólio de Barbosa de Sã foram arrematados
em praça, a 1 de Dezembro de 1776, ao preço de 48 oitavas e meia e 80 réis
de ouro, pelo Tenente Joaquim da Costa Siqueira, — o continuador de
Barbosa de Sá na elaboração das crônicas de Cuiabá.
O inventário do licenciado não foi concluído. O último termo de
conclusão traz data de 12 de Março de 1806, indo os autos às mãos do Dr.
Gaspar Pereira da Silva Navarro, com $600 «que pagou o Escrivam.» Nada
mais se lê depois desse termo e os autos aí ficaram conclusos à posteridade
ou às traças, que muitas vezes, são uma e a mesma coisa.
E os descendentes de Barbosa de Sá?
José — o mais velho — que deve ter nascido em 1769, pois ao
tempo da morte do pai tinha 7 anos e meio — casou-se com Ana Maria
Barbosa, e morou no Rio-Acima, onde consegui, atravez de um
«requerimento de paga» rastrear-lhe a descendência.
O primeiro filho de Barbosa de Sã morreu em 1815, com cerca de
45 anos, deixando viúva e 4 filhos: Antonio, Ana, Joaquim e Francisco.
Quando ao outro, Joaquim, o encontramos em 1823, como
testemunha numa justificação, figurando com 47 anos, não se nos
deparando, daí por diante, nenhum vestígio seu. A pista, em todo o caso, aí
fica. Que outro, mais afortunado, levante a caça, dizendo-nos da existência
de descendentes do primeiro cronista cuiabano, que, por certo, ainda hoje,
os ha de haver algures...
De Barbosa existe também outra obra, bem pouco conhecida e nada
referida, que são os Dados Geográficos, Cronológicos, Políticos e Naturais,
escritos por Joseph Barbosa de Sá, nesta Vila Real do Senhor Bom Jesus de
Cuiabá, em 1769. Desse trabalho esteve exposta uma copia moderna in
folio, de 413 fls., na Exposição de História do Brasil organizada, em 18811882, pela Biblioteca Nacional. O interessante trabalho contem uma relação
de animais e plantas do Brasil. Pertencia a referida copia ao Instituto
Histórico, figurando no catálogo da Exposição sob o nº 11295. (Anais da B.
N., vol. IX, 2ª parte.)
II
O segundo cronista cuiabano, toda a gente o sabe, foi Joaquim da
Costa Siqueira, o continuador de Barbosa de Sá no registrar os fatos e
ocorrências mais notáveis da vila do Bom Jesus, tendo prosseguido o
trabalho do ponto em que o interrompeu o licenciado (1775) até o ano de
1816.
O seu “Compêndio Histórico Cronológico das Noticias de Cuiabá,
Repartição da Capitania de Mato Grosso” constitui preciosa fonte onde se
vão abeberar os curiosos do nosso Passado e não ha aí estudioso de historia
matogrossese a que seja de todo extranho o nome do insigne analista (1).
Quem foi, porem, Costa Siqueira, qual a sua naturalidade, qual sua
vida, a época exata de seu falecimento e outros pormenores da sua
personalidade, como homem privado, eis o que geralmente se ignora e é o
que nos propômos esclarecer neste ligeiro ensaio.
Há em torno do seu nome, posto se lhe avulte o papel em linhas
proeminentes em nossa História, uma verdadeira atmosfera de silêncio e
obscuridade.
Citam-lhe quando muito a obra, assas encomiada, mas do homem,
do autor do Compendio Histórico Cronológico nada mais se sabe senão que
foi vereador desde 1786 e que, no conceito do juiz Ordonhes, era ele «o
mais capaz desta vila de desempenhar semelhante incumbência (prosseguir
o trabalho de Barbosa de Sá) pelas suas luzes, critério e conhecida
probidade.»
É Virgilio Corrêa Filho, no “Mato Grosso” quem mais à larga se
refere ao vereador Siqueira, não chegando, ainda assim, a ocupar uma
página da sua preciosa monografia com a curiosa individualidade do
cronista. (2)
Nas “Datas Matogrossenses” de Estevão de Mendonça, nem
referência encontrei ao memorialista cuiabano, cujo nome siquer consta do
índice dos dois volumes dessa valiosa obra.
Encontramo-nos dest’arte num vácuo no que diz respeito, à pessôa
do cronista, acerca de quem a própria tradição oral, por mim auscultada,
silenciou por inteiro.
137
138
JOAQUIM DA COSTA SIQUEIRA
(O SEGUNDO CRONISTA CUIABANO)
(1) O “Compêndio” foi publicado no vol. XIII da Rev. do Inst. Hist. e Geog. Brasileiro,
correspondente ao ano de 1872.
(2) “Mato-Grosso”, pág. 107, 1ª ed.
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Eis senão quando, nas minhas constantes pesquisas históricas, em
que consumi quasi todo o ano de 1925, se me deparam duas valiosas fontes
informativas que me permitiram reconstruir a personalidade, os
antecedentes familiares e a própria vida de Costa Siqueira, proporcionando
assim aos que se interessam pelo nosso Passado um forte jorro de luz a
aclarar uma das menos conhecidas figuras da historia matogrossense.
Uma fonte foi o próprio inventário de Costa Siqueira, procedido em
1821, na Provedoria Geral dos Ausentes, e que descobri no 1º Cartório
Orfanológico desta cidade, outra foi a nunca assaz gabada “Genealogia
Paulistana” de Silva Leme, que me facultou o conhecimento da família e
ascendência do nosso cronista. Comecemos-lhe, pois, pelos antecedentes
genealógicos.
II
De nobre linhagem, pois descendia, pela progênie materna, da
família Maciel que «teve origem em S. Paulo, em João Maciel — de
conhecida nobreza» (3), Joaquim da Costa de Siqueira (4) teve por pais
Inácio da Costa de Siqueira, natural de S. Paulo e Maria Josefa Veloso, que
antes fôra casada com Gonçalo José de Sá.
O seu nascimento deve ter ocorrido em 1740 ou 1741, em S. Paulo,
onde, em 1739, se consorciaram os seus pais, conforme relata Silva Leme
(5) que a ele se refere, no título Macieis, nos seguintes termos:
«6 — 1 — Joaquim da Costa de Siqueira casado em 1764 em S.
Paulo com Beatriz Leoniza do Amaral Gurgel, filha de Bento do Amaral da
Silva e de Catarina Eufrasia, Foi capitão de cavalaria auxiliar nas minas de
Cuiabá, e nas mesmas juiz das medições e demarcações das sesmarias.
Tirou brazão de armas em 1795: um escudo partido em pala; na 1ª as armas
dos Siqueiras que são em campo azul cinco vieiras de ouro postas em
santor, na 2ª as dos Vieiras em campo vermelho seis vieiras de ouro em
duas palas. Elmo de. prata aberta»
Foram se us avós paternos João da Costa de Siqueira e Izabel da
Costa e maternos Manoel Veloso, português de Braga, e Inácia Vieira,
falecida em 1745 em S. Paulo, descendente esta em 3º grau de Ana Maciel,
portuguesa, — a primeira filha do vianês João Maciel, e casada que foi com
Dom Jorge de Barros Fajardo, fidalgo da Galiza.
Sua mãe faleceu em 1750, não constando a existência de irmãos de
Costa Siqueira, do primeiro ou do segundo casal de Maria Josefa Veloso.
Era Costa Siqueira, alem de nobre estirpe, ligado ainda por afinidade às
mais importantes famílias paulistas, sendo primo afim do sargento-mór
Pedro Taques de Almeida, Paes Leme, o primeiro genealogista de S. Paulo,
pois era este casado com Maria Eufrasia de Castro Lomba, filha de Catarina
Veloso, tia materna de Siqueira. Uma outra tia de Siqueira, Escolástica
Veloso, falecida em 1753, foi casada em primeiras nupcias com Bento
Gomes de Oliveira, que foi morto pelos Parecis (6) de regresso de Cuiabá a
S. Paulo e outra de nome Ângela Vieira, morta em 178O, foi mulher, de
Luiz Rodrigues Vilares, capitão-mór das minas de Mato-Grosso, que teve
parte na posse de Camapuam, e de quem descende o Barão de Itapetininga,
sogro do Conde de Prates, de S. Paulo.
Era, como se vê, das mais distintas a linhagem do capitão Siqueira,
que deixando, entretanto, a sua terra e a própria família, deveria vir fixar-se
de vez em Mato-Grosso, na vila de Cuiabá, onde viveu a maior parte da sua
vida e a que devotou o melhor das suas energias.
III
Por que, filho de importante família paulistana, casado ainda muito
moço, aos 23 anos aproximadamente, com distinta patrícia sua, viria Costa
Siqueira de vez internar-se nestes sertões e neles se conservar o resto da
vida?
Que drama oculto ou que dolorosa fatalidade o impediria a para
sempre cortar esses laços afetivos que nos prendem ao lugar do nascimento,
à terra dos pais e dos amigos da infância?
E ante estas interrogações, certo, já se delinêa em espíritos atreitos
às imaginativas arrojadas, a sombra de um romance vivido, em que Costa
Siqueira tenha sido o heróe e D. Beatriz Leoniza, a protagonista.
Nada, entanto, induz a crer ou, pelo menos, afirmar a existência de
semelhante novela. Antes mais verosimil parece que o moço paulista tenha
vindo, a exemplo de inúmeros outros, para aventurar-se nestas minas de
Cuiabá e aqui haja, pelas suas qualidades de intelecto, se avantajado na
carreira, a ponto de custar-lhe sacrificá-la, regressando a São Paulo.
Vimos que Siqueira ocupou importantes cargos da República, como
se costumava dizer, e quer na milícia, quer no foro, quer na vereança,
sempre se destacou entre os seus contemporâneos.
(3) “Genealogia Paulistana”, VIII, 150.
(4) Nos documentos coevos aparece o seu nome como J. da C. Siqueira, mas a sua família
usava o DE a que se emprestava grande significado, sendo o distintivo de fidalguia.
(5) Geneal. citada, vol. VIII, 173.
139
(6) Leme escreve PAREZIZ. (Gen. VIII, 168).
140
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Tudo autoriza a crêr que a sua mulher, moça, de família também
importante, lhe custasse deixar o convivio dos seus e expõr-se com o
filhinho em tenra idade à má fama destas paragens havidas por pestilenciais
e turbulentas. Aí o motivo plausível da separação que os anos foram
convertendo em hábito e quasi normalisando. Daí, quem sabe, bem pode ser
que tudo sejam conjeturas e a historia desse capítulo da vida do cronista
seja outra, que ainda um dia venha a esclarecer-se.
Do seu casamento teve Siqueira um filho, que herdou o nome
paterno de Joaquim, e que foi, no primeiro quartel do século passado, ao
tempo em que faleceu o cronista, vigário da vila de S. João d’El-Rey, em
Minas. Esse filho que se chamou Joaquim Mariano da Costa do Amaral
Gurgel, talvez fosse o fio de Ariadne que pudesse conduzir-nos no labirinto
do vida sentimental de Siqueira: mas, ele mesmo, há quanto tempo não terá
desaparecido, selados nos lábios os segredos que poderia contar-nos?
IV
Em Cuiabá, Siqueira se afez à vida primitiva das minas e levou a
sua existência bastante longa partilhada entre as ocupações do serviço
público e os seus negócios.
Em 1814, numa justificação existente no 1º Cartório orfanológico,
encontramos-lhe a qualificação como testemunha, — homem branco,
casado, de 75 anos, morador destas minas onde vive do trabalho de seus
escravos. Era já, pois, rico e possuía escravaria que lhe assegurava renda
cômoda.
Do seu inventário procedido em 1821 — Costa Siqueira faleceu a 4
de Dezembro desse ano, às 9 hrs da noite — consta, pela descrição de bens,
a existência de nove escravos machos (sic) e, alem dos moveis, prata,
cobres e ferramentas, propriedades de raiz, que eram uma sesmaria no
Cidral, de uma légua de testada e três de fundo, de matos e campos,
confinando com a do capitão Gregório Maciel de Fontes e a de João
Alexandre de Brito e outra na Caxoeira, confrontando com a do Cidral,
também com a mesma área (7). Possuía ainda Siqueira a casa de morada na
rua de Baixo, com 4 janelas, 2 portas e portão na rua do Meio, com 2 salas,
alcovas e mais despejos, que foi avaliada por 480$ no inventario.
Siqueira tinha em sua companhia, a titulo de “caseiro e fámulo”, um
criado de nome Francisco, que lhe usava os apelativos — Francisco da
Costa Siqueira — o qual foi suspeitado de sonegar bens da herança, tendo
sido intimado, a requerimento do
Tesoureiro Geral do Juízo Antonio Corrêa da Costa, para vir à presença do
Provedor D. Antonio José da Veiga, para declarar se tinha consigo
sonegado do espolio. Seria este Francisco filho natural de Siqueira? A
pergunta não deixa de ter sua razão, visto que numa justificação procedida
em 1827, a pedido de Mateus Barbosa Mendonça, contra a herança de
Siqueira, cujos bens ficaram em arrecadação visto ter morrido ab-intestato e
ter parentes ausentes, dei de encontrar varias bilhetes e cartas do mesmo
Siqueira a uma Maria Francisca da Silva, com quem parece entretinha
relações de intimidade.
O caso da sonegação, entretanto, teve curioso desfecho. Francisco
veio a juízo e declarou que, de fato, existiam lavrados em seu poder, mas
que pertenciam à sua irmã Ana Maria da Conceição «a quem o falescido as
entregára antes do seu falescimento á mesma porque as tinha empenhado.»
Não seria tudo isso um truc visando prejudicar os herdeiros de Siqueira?
Que o fosse. Estes jamais reclamaram ou procuraram receber a
herança do cronista.
As sesmarias do Cidral e da Cachoeira foram arrematadas por
Gregoria Maciel de Fontes, por 264$ uma e por 200$ outra, em 1825 e a
casa, avaliada em 240$000, foi arrematada por 245$100 pelo Cap. Joaquim
Vieira e sargento Francisco Manoel Vieira «para se demolir em beneficio
publico» (8).
V
Quando Costa Siqueira faleceu em Cuiabá, vivia ainda em S. Paulo,
na rua das flores, a sua esposa D. Beatriz. É o que se infere do termo de
abertura do inventario que reza:
«Inventario que mandou proceder o cap. Manoel Antonio Pires,
Provedor Geral das fazendas dos Defuntos e Ausentes Capellas e Resíduos
na forma das Ordens do Juízo dos bens que ficarão por falecimento do
capitão Joaquim da Costa Siqueira casado com Dona Beatriz Leoniza do
Amaral Gurgel moradora na cidade de S. Paulo na rua das Flores, de cujo
matrimonio tiverão o Reverendo Vigário da Vila de S. João d’ EI Rey de
nome Joaquim Mariano da Costa do Amaral Gurgel».
O inventário abriu-se a 6 de Dezembro — dois dias após a morte do
de cujus — sendo nomeados Avaliadores do Conselho dos bens moveis
Manoel Antonio Fernandes e João Alves Ferreira e para os imóveis José
Manoel de Araújo e o mesmo João Alves Ferreira. A descrição de bens, que
ocupa varias páginas dos
(7) Deve ser no Rio-Abaixo
(8) Confinava ao N. com casas de Josefa Henrique de Carvalho e ao S. com a do Cap.
Joaquim Mendes Machado.
141
142
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
autos é minuciosa, como soíam proceder os escrivães nos inventários de
antanho. Há referências curiosas que ilustram ao vivo a época da morte do
cronista — verbi gratia a que se faz a «hum viramundo de ferro», a «uma
corrente com 82 fuzis de ferro» e a «huma pega de ferro» — cousas que
hoje soarão como anacronismos aos ouvidos da geração atual e que,
naquela era — -um século atraz — desempenhavam relevante papel no
traquejo da escravatura. Viramundo era um instrumento de flagelação, a que
Candido de Figueiredo, na 3ª edição do seu diccionário se refere como
«aparelho automático com que se fustigavam os escravos»; a pega
destinava-se a segurar os pés dos negros fugitivos; e, diante dessas
explicações pressente-se logo qual o regime em que viviam os escravos de
Siqueira, que não seria, por certo, dos mais humanos... Mas era o do tempo.
Tosco o mobiliário do cronista, releva notar no mesmo os «mochos
de sola picada», a «cômoda de Gonçalo Alves», as «caixas cobertas de
sola», tudo velho, tudo desengonçado. Entre os utensílios chama a atenção
um «tinteiro de casquinha) — onde teria ido parar tal preciosidade, digna de
uma página evocativa de Arinos ou Alberto Rangel? — e as bacias com sua
trempe, as cassambas, e uma balança de Libra... Das três estantes e dos
livros, que vimos ter Siqueira arrematado no espólio de Barbosa de Sá, só
aparecem no seu inventário uma estante e dezeseis livros da Escritura
sagrada, avaliados em 2$400... E é só. Provavelmente ainda em vida os teria
vendido, si é que os não haja consumido o tempo em seu desgasto que até
vidas vai carcomendo, quanto mais outras cousas. Sic transit gloria.... e
assim acabou, provavelmente, a rica biblioteca do licenciado, que Siqueira
não poude ou não soube conservar.
III
ANTONIO DE PINHO E AZEVEDO
(Abril, 1927).
I
Nos fastos coloniais de Mato-Grosso, aparece referido, posto que
muito incidentemente, o nome de Antonio de Pinho e Azevedo, a quem,
todavia, se não tem feito a justiça de reconhecer o relevante papel que
desempenhou no período inicial do povoamento e colonização do norte
matogrossense. Os nossos atuais historiógrafos de maior vulto ou se
limitam a mencionar-lhe quasi de passagem a ação, no seu cometimento
principal, que foi a abertura da estrada de terra (1), quando não lhe relegam
de todo o nome a injusto esquecimento (2). Pinho e Azevedo foi, entretanto,
figura das maiores e mais capazes, cuja atuação, naqueles dias remotos,
ainda hoje aparece, marcada por uma extraordinária operosidade, coragem e
dedicação, merecendo que se lhe foque a figura em um ensaio que sirva, a
um tempo, de justa reparação a tão doloroso olvido e de espelho às gerações
hodiernas, tão necessitadas de exemplos que tais.
Português de nascimento, natural de Arouca (Lamego), veio para o
Brasil muito moço, tendo vindo para as Minas do Cuiabá logo após o seu
descobrimento, no ano de 1725 (3), na primeira decada, portanto, da
fundação do arraial bandeirante.
Cerca de quarenta anos se conservou o bravo sertanista em Cuiabá,
onde veio a falecer em 1763, sendo nesse mesmo ano inventariado (4), e
dados à partilha os seus bens.
Foi-lhe esposa e companheira durante longos anos a fluminense
Dorotéa dos Prazeres, natural do Cabo Frio, de quem houve os oito filhos
descritos no ról de herdeiros constante do processo de inventário supra
mencionado: Romualdo, batizado a 9 de maio de 1740, Mafalda Teodora,
batizada a 27 de setembro de 1741, Joaquim, a cujo batizamento não
encontrei referência, Eloy, batizado a 22 de fevereiro de 1743, Ana Maria,
Maria Tereza, Efigênia e José (5).
(1) V. Corrêa Filho, “Notas à Margem” pág. 18 e “Raias de Mato-Grosso”, vol. III, pág. 14.
(2) As “Datas Matogrossenses” por ex. nem siquer lhes mencionam o nome no índice dos
seus dois volumes.
(3) Consta de um dos seus requerimentos de mercê: «morador e povoador das Minas do
Cuiabá, desde o ano de 1725.»
(4) 1° Cartório Orfanológico, masso n. 6
(5) Constam os assentamentos dos primeiros filhos de Pinho e Azevedo do
velhíssimo livro de Registro por mim encontrado e a que já me referi no estudo desta serie.
“As madres da raça”.
143
144
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Por este último, nascido em 1755, é que deveria frondejar li
linhagem dos Pinhos e Azevedos, pois o caçula do sargento-mór, casado
com Ana Viegas — filha de Carlos João Viegas e Mariana de Campos —
foi tronco de numerosa prole, espalhada por todo o Estado e várias outras
localidades.
José de Pinho e Azevedo, viúvo de Ana, convolou, aos 75 anos, a
novas nupcias com Rita de Campos Maciel, de 36 anos, filha de Antonio
Luiz Coelho e Ana Antonia de Jesus (6).
***
Quais os serviços prestados por Pinho e Azevedo, de natureza a
grangear-lhe notoriedade invulgar e creditá-lo como um dos maiorissimos
vultos da historia colonial matogrossense?
Louvamo-nos, para satisfazer a essa pergunta, na informação oficial
prestada a 22 de março de 1759 pelo governador Rolim de Moura, numa
petição de Pinho e Azevedo, documento este a que, por insuspeito, damos
preferência sobre qualquer outro.
O primeiro Capitão-general de Mato-Grosso não foi testemunha
presencial dos serviços de Pinho e Azevedo, os quais remontam ao período
anterior à chegada do Delegado do Rei D. José I, mas é bem de ver que
Rolim dispunha, na ocasião, dos arquivos do governo e de informes
seguros, colhidos através do testemunho de pessoas da época e muitos até
companheiros de Pinho em suas entreprezas.
Não se mostrou favorável, antes fez grandes restrições aos pedidos
de mercês implorados pelo bravo sertanista, e essa atitude mais valia
empresta ao depoimento do representante da Coroa portuguêsa no tocante
às credenciais do velho reinól. «A quatro espécies diz o Governador se
reduzem os serviços que o Capm. Antonio de Pinho e Azevedo alega a V.
Mag. e a saber: a abertura do cam.º do Cuiabá p.ª Goyaz; o Descoberto de
ouro do Paraguay; as armadas contra o Gentio Payagoá, e as deligs. p.ª
conservar a V.ª do Cuiabá» (7). Ai estão, na singeleza dessa síntese, os
títulos com que à posteridade se recomenda o inclito varão, de tão larga
projeção no cenário de nossa Historia colonial.
Desses serviços, um somente bastaria a imortalizar-lhe a memória,
qual o da abertura da estrada de Cuiabá a Vila Boa de Goiaz, em 1736, feito
que constitui, por sem dúvida, um marco em nossa evolução histórica, e de
que prestes se comemorará o segundo centenário.
Na sua linguagem chan e expressiva assim se lhe refere a crônica
barbosina, que constitui os próprios Anais do Cuiabá: «Neste mesmo ano
sahio desta villa Antonio de Pinho e Azevedo com bastante gente a abrir o
caminho para Goyaz, fomentado do Ouvidor Geral o Doutor João
Gonçalves Pereira com promessas de muitos acrecentamentos.» (8).
Veremos, ao diante, quais foram esses «acrecentamentos», pois
qual aconteceu a Antonio Pires de Campos, em Goiaz, fiado nas promessas
dos emisários d’El Rei, a mesma sorte estava reservada ao desbravador dos
sertões lestinos, podendo-se dizer a seu respeito, o que acerca do primeiro
disse o insigne comentador dos “Documentos interessantes para a Historia e
Costumes de S. Paulo”: «A ingratidão foi a paga dos seus grandes serviços
ao Governo colonial» (9). Donde se vê que tais processos não são
extranhaveis, nem sabem à causa nova ou inédita..
II
No seu requerimento ao Rei de Portugal, diz Pinho e Azevedo que,
em 1730, «aprestando-se huma Armada para hir desenfestar o Rio
Paraguay, se offereceu o Suppt. espontaneamente para hir acompanhar a dª
Armada, com huma canoa de guerra aprestada á sua custa de gente e
munições necessárias, o que também fez a mais duas canoas, assistindo-lhes
sem dispêndio algum da R. Faz.ª com toda pólvora e balla precisa, em cuja
expedição se mostrou entre todos os mais com grande valor e animo
intrépido, satisfazendo muy obediente ás ordens que lhe herão encarregadas
em cuja delig.ª gastarão 50 dias».
No ano seguinte, nova expedição se organizou, para a qual Pinho
concorreu com uma «canoa guarnecida de seis soldados brancos, fardados e
mais petrexos precisos e duas canoas mais com dez escravos para a
condução de mantimentos e equipagens, a que tudo satisfez da sua própria
Faz.ª», durando três meses essa expedição.
Em 1734, novamente se fizeram duas expedições contra o gentio,
ambas com o concurso de Pinho, sendo a primeira das mais perigosas, pois
«alem das grandes tormentas que com risco de vida experimentarão na
jornada do d.º Rio, muitas doenças perceguirão» e fizeram o inimigo
«retirar com a perda de muita gente e de grande numero de canoas».
Contra essas alegações do bravo cabo de guerra, corroboradas por
certidões e documentos vários, e reafirmadas no requerimento que dirigiu
ao Capitão-General, diz Rolim de Moura
(6) Justif. no Cartório Eclesiástico.
(7) Copia doc. existente no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
(8) Anais do Senado da Câmara do Cuiabá.
(9) Publicação referida, XXII, 212, em nota 1.
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GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
que «nem só o suppte. foi voluntariamte. á sua custa a essas expedições
mtos. outros fizerão o mesmo» não tendo havido «oposição nem rezist. da
parte do inimigo». É o próprio governador, entretanto, que confessa, na
mesma informação, que «os serviços mais sólidos que o Capm. Antonio de
Pinho fem são os Armadas que fez contra o gentio Payagoa, e não só pellas
certidões q. apresenta mas ainda pella voz com. hé reputado por um dos
mais capazes q’ se acharão naquelas ocazioens. E também hé certo q’ a
ellas foy á sua custa».
Quanto à descoberta das lavras do Paraguai, nas cabeceiras do
mesmo rio, relata Pinho e Azevedo que «achando-se os moradores das
Minas muy gravados com empenhos causados da falta de faisqueira e
desejando como sempre o Suppte. a conservação da terra e o augm.º dos
moradores com algumas conveniências se resolveu a entrar pelo sertão com
escravos seus e camaradas que preparou e fardou a sua custa, em cuja
delig.ª se ocupou desde 7bro de 35 até janeiro do anno seguinte» nada
havendo dessa vez conseguido «por causa das mtas. agoas» mas, indo pela
3ª vez «a surcar aquelles mattos» descobriu minas de ouro «em um Ribr.º
junto das cabeceiras do Rio Paraguay». Verificada, porém, a existência de
diamantes no mesmo local, foi mandado despejar o dito descoberto, sem
que o descobridor lucro nenhum auferisse, mesmo nas duas datas que, pelo
Regimento, lhe haviam sido adjudicadas.
No que diz respeito ao empenho desenvolvido por Pinho e Azevedo
pela «conservação da terra e o aumento dos moradores», ele se evidencia do
seguinte tópico do requerimento, comprovado pela certidão passada pelos
oficiais da Câmara, comquanto Rolim procure diminuir a valia de tal
documento, acoimando-o de parcial, pelo «excesso com que os camaristas
nella favorecerão ao suppte.»: — «e o mesmo comprovão os officiaes da
Câmara das Minas do Cuiabá na certidão que lhe passarão a fs. 5 na qual
justamte. louvão e engrandecem o industrioso meyo com q’ o supp. veyo a
divertir os moradores das das. Minas q’ inventavão desertar dellas pella
pouca conveniência q’ nellas experimentavão, tanto por falta de ouro como
de mantimentos pois assistiu com elles a todos à qm. a falta delles,obrigava
a se retirarem comprando também varias moradas de casas q’ seus donos
pretendião arruinar pellas não deixarem, a mayor pte. das quaes deu
gratuitamte. a mtos. Pª nellas habitarem; e em outras deixou morar a mtas.
pessoas sem aluguel reedificando mtas. á sua custa, só a fim de q’ não
despovoassem as das. Minas, em cujas casas ainda hoje vivem. E no mesmo
tempo em que vivia desanimado o d.º Povo fez um grandioso Engenho com
duas casas de sobrado, com cuja obra por ser a prim.ª e única na-
quellas Minas e de grde. utilidade moveu os habitantes a não darem
execução aos seus intentos, que herão desertarem da dª povoação; e ainda
mais o segurou com hum serviço q’ na mesma Vª do Cuiabá fez pª se
minerar com agoa, assistindo também com 16 escravos seus em companhia
de outras pessoas ao serviço q’ fez pª se tirar ouro em distancia de uma
légua das das. Minas; e no serviço grde da Motuca entrou com cinco
escravos, aos quaes esteve sustentando e assistindo com toda a ferramt.ª
necess.ª com q’ fez huma grde. despesa no decurso de quatro annos tudo
afim de animar os moradores daquellas Minas a não desertarem dellas».
Contra tais alegações, opõe Rolim de Moura varias restricções,
reconhecendo, todavia, a sua coadjuvação no serviço da Motuca, iniciado
pelo Dezdor. João Glz Pr.ª e pello Brigadr.º Ant.° de Almd.ª Lara, afim de
que as esperanças que delle havia demorassem os homens q’ esta vão
abalados a retirar-se pª Goyaz, pella grde. fama com q’ principiavão
aquellas Minas» E, procurando retirar aos serviços de Pinho e Azevedo o
mérito que realmente possuíam, acentua o representante da Coroa
portuguesa que «os Descobertos novos e a esperança de enriquecerem são
os que obrigão os homenes pr. estas ptes. a mudarerm de terra, e não a falta
de mantimtos., q’ he couza que nunca se lhe põem por diante, toda a vez
que esperão, fazer conveniencia, por q’ qdo. faltão as plantas suprem os
mattos e os Rios, como se está vendo todos os dias».
A própria aquisição de casas, feita pelo cabo de guerra é metida à
bulha na informação do governador, que chega a dizer que «na verdade me
segurarão q’ huma das moradas lhe custara dois panos de Toucynho».
Em nada desmerece o serviço de Pinho e Azevedo tal circunstância,
quando verdadeira: dela se infere, ao invés, a extrema desvalorização a que
chegara a propriedade nas minas cuiabanas, a pique por mais de uma vez,
de serem abandonadas e o empenho do comprador em manter o arraial
decadente. Não seria aliás, a primeira nem a última vez essa em que o Poder
publico se deixava levar por mal veladas paixões, buscando razões de lana
caprina para se esquivar ao reconhecimento de serviços prestados à
coletividade por pessoas que lhe não andassem nas graças, quando a outras,
mais afortunadas, se lhes criam benemerências fantásticas, justificadoras de
pingues vantagens.
III
147
Onde, porém, mais avulta o papel histórico de Antonio de Pinho e
Azevedo é na abertura do “caminho de terra”, ou seja da estrada de Leste,
que veio ligar Cuiabá à Vila-Boa de Goiaz e, por esta, a S. Paulo e Rio de
Janeiro.
148
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Foi essa, no expressivo dizer de V. Corrêa filho, a nossa «primeira
estrada», cuja abertura visou principalmente libertar os viajantes «das
amofinações que padeciam na alongada via fluvial» (10).
Tal finalidade transparece claramente dos próprios termos do
requerimento já bastas vezes mencionado, no qual o grande sertanista do
século XVIII assim expõe à Coroa, no seu fraseado chão mas significativo,
os serviços com que julgava haver feito jus às mercês pretendidas: « . .
vendo o Sennado da Cammara desta V.ª e mais pessoas da Governança dela
que se difficultava a conservação destas Minas pelas hostilidades q’o d.º
Gentio fazia aos navegantes dellas e p.ª ellas recorrerão ao Gov. e Cappm.
Genl. q’ então o hera da Cappnia. de S. Paulo o Illmo. e Exmo. Ant.º da S.ª
Caldr.ª Pimentel para q’ lhes facultasse e protegesse o abrirem cam.º por
terra destas Minnas p.ª as Minnas de Goiaz, o q’ o d.º Exmo. Genal. lhes
difficultou dizendo lhes que tinha consultado os milhores e mais antigos
sertanistas, e q’ todos lhe difficultavão o poder se abrir o d.º Cam.º pela
distancia que havia entre huma e outras Minnas».
É, como se vê, o germe da maldita burocracia, nas consultas
protelatórias, nos embaraços oficiais, que celebrizaram a administração
colonial e até hoje ainda fazem parte integrante dos processos
administrativos, fazendo, com razão, dizer a Arthur Neiva que «o Brasil
prospera, enquanto os governos dormem».
Não se deram por vencidos os cuiabanos daquelas eras, prossegue o
relato fiel de Pinho e Azevedo, e resolveram apelar para a iniciativa
particular para a solução do premente problema viatório.
«E sem embg.º da rezolução sobred.ª vendo os moradores q’ as
hostilidades do gentio continuavão; e q’ pellos instrumtos. com q’ as fazião
herão incitados e aconcelhados plos. Índios das Aldeyas de Castella, e q’
poderão confederados huns e outros de todo impedir a navegação do R.º se
resolverão a abri-se o Cam.º de terra, p.ª o q’ se fez junta na Cammara da
mesma V.ª convocando aos assistentes della o Dr. João Glz Per.ª Ouvr. e
Corregr. q’ então hera desta Commarca: e todos uniformte. concordarão em
que se abrice».
Confiado a Antonio de Pinho o encargo de proceder a abertura da
estrada do sertão, «por conhecerem nelle capacid. zello e resolução p.ª a
refferida empreza», ficou estabelecido que o mesmo receberia 1.275 oitavas
de ouro, que lhe seriam pagas somente três meses após o seu recolhimento
às Minas de Cuiabá, com-
pleta a deligência e caso volvesse sem abrir o caminho «se lhe não daria
cousa alguma.» Estipulou-se até o número de auxiliares que o deveriam
acompanhar na expedição, «doze camaradas brancos, bastardos, mulatos ou
creoullos capazes de pegar em armas» e foram eles, segundo enumera o
próprio Azevedo, os seguintes, cujo nome bem merece fique figurando nas
páginas da História matogrossense: Clemente e Raymundo Tavares, Ignácio
Tavares de Monsarate, Joaquim de Arruda, Paschoal Moreira, João Freyre,
João de Jesus, Salvador Pinto, Simão Roiz, Bernardo da Silva, Francisco e
Vicente Corrêa.»
Os dois últimos eram pilotos da navegação dos rios e cada um dos
doze recebeu 200 oitavas de ouro, levando Azevedo ainda dez escravos e
seis índios, a todos os quais assistiu o chefe da expedição «de todo o
precizo p.ª a viagem á sua custa.»
Partiram a 20 de junho de 1736, do sítio de S. Gonçalo, onde o
Ouvidor «passou mostra a toda tropa e achando conforme o ajuste q’ tinhão
feito a despediu no mesmo dia.»
A viagem redonda levou um ano, dois meses e nove dias, pois
somente a 29 de agosto do seguinte ano a comitiva regressou às Minas do
Cuiabá, tendo levado a bom termo a diligência empenhada.
Em Goiaz, onde se refizeram «de mantimentos e de todo o mais
precizo p.ª a viage», encontrou Azevedo «ordem de S. Mag. p.ª q’ o Illmo. e
Exmo Conde de Sarzedas Govr..e Cappm. Genl. que então hera da Cappnia.
mandasse abrir o d.º Cam.º á custa da Real Faz.ª»
O serviço, entretanto, estava feito. Pinho e Azevedo implorou,
como compensação, alegando o seu estado de pobreza o posto de Capitãomór das Minas, e os ofícios de Escrivão da Ouvidoria, Escrivão da
Comarca, de orfãos e Tabelião, para os seus 4 filhos, com o hábito de Cristo
e a tença de 50$ rs. Invocava Azevedo vários precedentes de merces
concedidas Garcia Rodrigues Paes, Cristovão Pereira de Abreu e
Bartolomeu Bueno de Siqueira, e, em termos pungentes, assim descrevia a
sua triste situação, ao fim de longa existência toda devotada ao bem
público: «E como no preze. tempo se acha o Suppte. de todo atenoado,
tanto com os mtos. annos e os achaques q’ padece, a pobreza em q’ vive,
com 8 filhos, 4 machos e 4 femeyas, sem ter modo algum com q’ possa
amparallos» e «sem escravo algum, por se lhe terem arrematado os que
possuía e somente possue 3 q’ estão pinhorados.»
Na segunda petição, alegando haverem diminuído muito os
rendimentos dos ofícios, dois dos quais já se achavam providos, requeria
mais a S. M. que dotasse as suas 4 filhas, o que po-
(10) V. Corrêa Filho — “Caminhos para Cuiabá”, no “Jornal do Comercio” de 10 de Junho
de 1928.
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GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
deria fazer sem dispêndio da Real fazenda «fazendo-lhes honras com q’
possam procurar-lhes pessoas condignas de lograrem estas.»
Informou, como vimos, o Governador Rolim de Moura, de maneira
pouco favorável o impetratório de Azevedo, concluindo por dizer que
«ainda que o suppte. não deixa de ser excessivo no mto. que pede. comtudo
sempre de alguma remuneração se faz digno, com qual juntamte. será huma
grde. piedade e esmolla pois é certo que a necesside. e mizeria em q’ se vê
hé gde. e também não deixa de merecer attenção ser elle hum morador tam
antigo e estabelecido com mulher e filhos ha tantos annos
em huma Cappnia. que pella sua situação se faz de gde. importância
a sua conservação e augum.º» (11)
Pinho e Azevedo não logrou ver compensados os seus árduos
trabalhos. Pobre, achacado quasi à mingua de recursos, sucumbiu em
Cuiabá, quatro anos após, em 1763, deixando à posteridade mais um
exemplo, entre muitos, da maneira pela qual. Poder público sói aquinhoar
os que trabalham pelo bem da coletividade.
IV
JOSE CARLOS PEREIRA
(MCMXXXIV, Março)
(11) Informação datada de Vila Bela, 22 de março de 1759, em resposta ao oficio de
Provisão de 27 de fevereiro de 1757.
(UM FERVOROSO E DEVOTO MINISTRO)
Com dois designativos epitetou a Crônica do Senado da Câmara de
Cuiabá o dr. José Carlos Pereira, terceiro juiz de fora destas Minas, depois
Ouvidor Geral e Corregedor da Comarca, por morte do doutor Luiz de
Azevedo Sampaio. Fervoroso e devoto ele bem o foi pois naquelas eras em
que a devoção e o fervor religioso não constituíam exceção nas autoridades
e figuras de nota, conseguiu, ainda assim, destacar-se pelo seu espírito de
véra piedade e dedicação às obras espirituais.
Nome que sósinho enche, com os seus feitos memoráveis, mais de
uma página dos anais cuiabanos, o doutor José Carlos Pereira faz jus a um
estudo minucioso em que se lhe ponham de manifesto as qualidades
exornantes do espírito de eleição.
Aparece, pela primeira vez, mencionado no vetérrimo documento
que compendia a nossa História primitiva, a 8 de janeiro de 1776 com a
menção da sua chegada «á esta Vila pelo caminho de terra». Já aí se lhe
aponta a naturalidade — filho da Cachoeira (Baía) — e se afirma estar de
há muito esperado, tendo feito «entrada muito aplausível». Três anos
durante, serviu o cargo de Juiz de Fóra que, como é sabido, se opunha, na
justiça colonial, aos juizes ordinários, eleitos pelo povo, tendo sobre estes a
presunção de maior imparcialidade, dada a sua qualidade de alienígena (1).
Findando 1778 ocorre, na Capital, gravíssimo evento que determina
imprevista modificação na situação do Juiz de Fóra: o Ouvidor Geral é
prostrado morto por um tiro que lhe desfecha José Tavares Barbosa, que a
crônica dá coma «natural da Comarca do Porto, do Reino de Portugal».
Cabia, em face das Ordenações, ao Juiz de Fóra a substituiçião do Ouvidor,
até que no posto outrem fosse provido.
A 2 de dezembro, José Carlos entra no exercício da vara de Ouvidor
Geral e Corregedor da Comarca, sucedendo-lhe na de Juiz de Fóra o
vereador mais velho, que era o Capitão Benedito do Amaral Coutinho.
Descerram-se-lhe com a Quvidoria mais amplos horizontes e o ano
que se segue, 1779, inicia a sua benéfica atividade a prol da Religião e
progresso destas paragens.
Ensejara-lhe certa diligência do ofício o conhecimento da Missão
de Santa Ana da Chapada, em novembro de 1778, ainda
(1) Memória sobre a origem dos juizes de fora — J. Anastácio de Figueiredo.
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GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
no seu papel de Juiz de Fora. E ao visitar o pitoresco povoado planaltino
que deve a sua existência a Rolim e aos Jesuítas, o dr. Pereira se
escandalizou ante o aspecto de abandono e decadência que oferecia a igreja
local.
Assim se exprime o cronista, na sua linguagem chan e sugestiva:
«Teve ele então ocasião de ver a palhossa na verdade indecentissima em
que se selebravão o Santo Sacrifício do Altar e mais Divinos Oficies, e o
mais he, que servia de Matriz, por ser adita Missam Freguezia separada
com muitos aplicados de fora, alem dos Índios dele. Ahi se lhe foi
introduzindo hum fervoroso dezejo de erigir uma Igreja, que houvesse de
servir de Matris onde com a decência que deve ter aquele Santuário e Casa
de Deoz, se houvessem de celebrar os Divinos officios...»
Não se lhe tirou da mente tão salutar propósito, que se não
arrefeceu jamais diante dos maiores óbices. A diligência terminada, eil-o de
volta a Cuiabá, onde começou a arquitetar os seus planos.
«Propunhão-se-lhe muitos impossíveis», dizem os Anais, mas a sua
tenacidade tudo superou e venceu. Faltava o ouro, escasseavam os artífices,
a mingua de víveres na localidade complicava mais a situação de quem
deveria prover também subsistência dos obreiros. Tudo conspirava para o
inêxito da tentada construção. Tudo, menos o fervor piedoso do magistrado.
Tais elementos adversos, no dizer do memorialista, «afligião aquelle nobre
coração, mais não o mudavão do fervor da devoção, de que estava cheyo».
Eil-o de retorno à serra, já levando consigo os artistas necessários,
com eles penetrando a mata, onde encontrou todas as madeiras que se
faziam mister para a obra.
Mal à imprópria estação das chuvas sucedera a do frio, já o serviço
era atacado «com tanta actividade, fervor e excesso» que começado em
Maio, em Julho se dava por pronta «uma famosa Igreja, coberta de telha,
rebocada e cayada, com capella mor, sachristia e casa para o Parocho».
A festa de S, Inácio, a 31 desse mês, já era comemorada com a
bençam solene do novo templo, construído em 2 meses, — fato admirável e
bastante para testificar a diligência do piedoso Ouvidor. Fizera o doutor
Pereira vir do Rio a imagem da Santa e a 1de Agosto, dia da Dedicação,
dedicou-se a nova igreja a Sant’Ana do Sacramento, assistindo à cerimônia
o seu construtor «banhado de Lagrimas que distilava aquelle abrazado
coração pellos olhos».
Objetivára o seu piedoso anhelo e fôra para dar-se por satisfeito.
Tal, todavia, não se deu. Volveu-se-lhe para novo intento o espírito cheio de
fervor e de amor ao trabalho. Em 1781,
já fora do exercício de Juiz de Fóra em que lhe fora dado sucessor na pessoa
do doutor Antonio Rodrigues Gayoso, o encontramos às voltas com
segundo empreendimento, de tão grande vulto como o primeiro: a ereção da
igreja de S. Gonçalo, no porto da vila de Cuiabá, em substituição à
primitiva, no Coxipó, de que resta memória sob o nome de S. Gonçalo
Velho, já então inteiramente destruída.
Não se ultimara de todo a obra da Chapada, posto já nessa igreja se
celebrasse o culto divino. Faltava a decoração, para a qual não havia
artífices na terra. Chega, nesse ínterim a Cuiabá, João Marcos Ferreira,
pintor e dourador, vindo das minas de Goiaz e o solícito ministro lhe
aproveita o serviço no templo serrano, cujo adro, pitoresco e original, que
ainda hoje se pode ver, foi todo feito de «seixos roliços conduzidos em
bestas desde o rio Coxipó, que dista da Missão seis Legoas...»
Findava-se o período da estadia em Cuiabá, do piedoso Juiz.
Ele, porem, atempava a ocasião de partir, afim de deixar concluída
a igreja de S. Gonçalo. Por todo o ano de 1782 as obras se ativaram de
modo tal que, a 15 de Novembro, poude, com grande solenidade, ser
inaugurado o novo templo.
Como quem só por isso esperava, três dias depois, a 18, se ia de
Cuiabá para a Corte «onde se destinava a solicitar o seu despacho» o
benemérito cachoeirense. (2)
A menção da sua partida vale transcrita aqui da crônica que lhe
registrou todos os passos, pois, no seu estilo elegante e de delicioso sabor
clássico é o melhor depoimento a favor do caráter e integridade do doutor
José Carlos Pereira: «... feitas as cortezes despedidas, embarcou em duas
canoas suas, em que se conduzia, e o seu trem, e partiu no dia dezoito de
Novembro acompanhado até o embarque de todos os grandes e pequenos da
terra, e de muitos bons até a distancia de dez Legoas pelo Rio com canoas e
se foi embora deixando nos muito saudozos e com razam, porque foi
Ministro muito activo, muito despachador, e muito zeloso da Real Fazenda,
de bom animo, amigo do seu Amigo, e nada de fazer mal, muito serviçal, e
muito mais agradecido».
Que melhor elogio se pode fazer a um homem do que o que se
condensa nesse passo dos Anais com respeito ao doutor Pereira que, em
quasi seis anos da atividade, viveu conosco e, daqui saindo, aqui ficou, pela
memória das suas obras e feitos?
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(2) Costa Siqueira diz que de Lisboa Pereira voltou nomeado Intendente e Provedor da Real
fazenda em Goiaz.
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
***
Esse notável varão aparece, porem como um meteoro das nossas
crônicas. Sabe-se dele apenas o que fez quando entre nós esteve. Quem foi
ele? Que destino tomou após a sua saída de Goiaz, para onde fôra
despachado?
É o que, com grande gáudio, acabo de descobrir na leitura de
vetusto documento, no qual dei com curiosa pista, permitindo rastear-lhe a
existência posteriormente à sua retirada de Cuiabá.
Encontrei nos Anais da Biblioteca Nacional, XXXVI, 15, um
requerimento do Dr. José Carlos Pereira pedindo licença para empregar o
legado ce 12 mil cruzados que o dr. Francisco Martins Sampaio deixou para
o Hospital da Vila da Cachoeira, em bens de raiz (anos de 1795 a 1797).
O doutor José Carlos Pereira foi nada menos que o pai do Visconde
de Macahé — grande do Império, gentil-homem da Imperial Câmara, do
Conselho de S. M. e Conselheiro do Estado, magistrado e político de grande
evidência no antigo regime (3).
Quem no-lo assegura é João Vito Vieira de Carvalho, no seu
“Alguns apontamentos da viagem feita por terra desta Corte á cidade de
Cuiabá” - manuscrito oferecido pelo autor ao Visconde de Sapucahy e
publicado na Revista do Instituto Histórico. (4)
Referindo-se à Chapada, por onde transitára, diz o aludido
Carvalho: — «Freguesia com boa capela de Santa Ana, edificada pelo pai
do Visconde de Macahé, quando magistrado nessa província» (5).
Ilustra e confirma o asserto não só a homonímia — Macahé era
José Carlos Pereira de Almeida Torres — como ainda a circunstancia de
haver nascido o notável estadista do Império na Bahia, 1799, sendo assim
de presumir houvesse afinal regressado à terra de origem o piedoso Ouvidor
Pereira.
Aberta a picada, fácil será por ela entrar qualquer mateiro em mais
miúda pesquisa, destinada à verificação do que aí fica dito e complemento
da biografia desse digno tronco de linhagem fidalga — fidalgo que foi
também nos seus gestos e cometimentos.
Fev.º MCMXXVIII.
V
É corrente e moente entre os que se dão, em nosso meio, aos
estudos passadistas e pouco práticos de História, atribuir-se ao Cônego José
da Silva Guimarães a autoria da curiosa Memória sobre os usos, costumes e
linguagem dos Apiacás; e descobrimento de novas minas na província de
Mato-Grosso, vinda à publicidade no tomo VI da Revista Trimensal de
Historia e Geografia ou Jornal do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Ensaio de real merecimento, ainda hoje referido nos trabalhos
mais recentes de etno e antropografia (1) a Memória sobre os Apiacás foi,
efetivamente, oferecida ao Instituto Histórico, cujo sócio era, pelo Cônego
Guimarães, conforme se vê da nota preambular inserta à testa da mesma
pela redação da Revista que a publicou (2).
Quem escreveu, porem, a Historia dos Apiacás não foi o Padre
Guimarães e sim o seu irmão mais velho o Capitão-mór João José
Guimarães e Silva, filho, como ele, do português João José Guimarães e da
cuiabana Ana Maria da Silva, neta esta de Antonio Morais Navarro, cuja
interessante figura deixei esboçada no estudo que lhe aditei ao testamento
(3)
Não vai nisto tenção de menorizar no conceito dos estudiosos a
individualidade do emérito sacerdote que, na administração e na política,
subiu às mais altas posições a que na sua época, podia atingir. Há, apenas, o
imperativo da consciência que, em se nos deparando um erro, onde quer
que seja, nos impõe o dever de retificá-lo, na convicta certeza de que a
ninguém aproveitam glórias a outrem usurpadas, pois, mais tarde ou mais
cedo, a verdade aparece, distinguindo o alquime do ouro de lei.
De resto, é de justiça logo se assinale que o Cônego Guimarães
jamais se inculcou a fatura da memória, que, como vimos, foi ofertada ao
Instituto, sem que se lhe declarasse o autor.
(3) Acerca do Visconde de Macahé - ver Vasconcelos, Arquivo Nobiliárquico Brasileiro,
pag. 263; S. Blake, Dicc. Bibliog. Bras, vol. IV, pag. 378; Rio Branco, Efemérides
Brasileiras, 25 de Abril, data da sua morte (1850).
(4) Vol. 35, I, pág. 435.
(5) Há engano de Carvalho, Pereira foi magistrado na Capitania de Mato-Grosso.
(1) Ver Diccion. Hist. Geog. do Brasil, 1922, 1° vol. Parte geral, pág. 253.
(2) Rev. do Inst. Hist. vol. VI, pág. 305.
(3) Rev. do I. H. de M. Grosso, n. XIV, pags. 56 e segs. João José foi batizado a 23 de Dez.
de 1781. Foi promovido no posto de Capitão-mór, vago pela morte de Antonio Luiz da
Rocha, a 2l de Fev. de 1813, conforme relata Siqueira em seu Compendio Histórico
Cronológico.
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O CAPITÃO-MÓR
JOÃO JOSÉ GUIMARÃES E SILVA
(O AUTOR DA HISTORIA DOS APIACÁS)
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Não há, pois, deslise de probidade da parte do ínclito varão que
mereceu do nosso Centro de Letras a honra de um patronato, recebendo, da
palavra quente e vibrante de Alcindo de Camargo, brilhante elogio
acadêmico, e, ainda há pouco, teve, em sessão do Instituto Histórico
Brasileiro, glorificada a memória no substancioso discurso de recepção de
D. Aquino Corrêa, ressoando-lhe o nome venerando naquela nobre
sociedade, 82 anos após o necrológio que, em 1844, lhe fizera Porto Alegre
— o orador do Instituto.
Verdade é que lhe escapou dizer, referir incidentemente embora, o
nome do autor da Memória, que ele adotara e adatara às circunstâncias da
ocasião ou, para usarmos termo de agora, em cousas de antanho, atualizara.
Nem a mais mínima alusão ao Capitão-mór, que, a esse tempo, já não
existia.
Será um delito de omissão, em todo caso, que alguém levará à conta
de inadvertência ou esquecimento do prelado, posto outros malévolos lhe
possam imputar intencionalidade no caso. Prefiro, à mingua de provas, a
primeira hipótese. É sempre mais humano, no bom sentido desta palavra,
hoje tão corrompido.
Onde, porem, afirmar ter sido outrem que não o Cônego o
memorialista dos Apiacás? — estás, naturalmente, perguntando, a ti
mesmo, leitor, que até aqui me acompanhaste. A resposta é fácil e ressalta
aos olhos ante a simples leitura da carta dirigida, a 17 de dezembro de 1819,
por João José ao Governador Magessi, que ipsís-litteris se transcreve:
Este ofício, cujo conhecimento me propiciou o meu prezadíssimo
amigo e bi-confrade Dr. Barbosa de Faria, projeta viva luz sobre o assunto
em exame, pois da sua leitura clara e inequivocamente se infere que a
Memória, a que o Cônego Guimarães apenas acrescentou e modificou
alguma cousa para apresentar ao Instituto, foi elaborada, mais de um
vintênio antes, à ordem do último Capitão-General de Mato-Grosso,
Magessi, depois Barão de Vila. Bela.
Concorre, em o mesmo sentido, a circunstância de realmente terem
vindo à cidade de Cuiabá, no governo de João Carlos (depois marquês de
Acaratí), sete apiacás trazidos pelo intrépido sertanista Antonio Peixoto de
Azevedo, e, já na administração de Magessi, em caráter de visita ao mesmo,
quatorze índios, tendo à frente o cacique Severiano.
Esse fato vem narrado na própria Memória, seguido destas palavras
que, em cotejo com a carta acima transcrita, mais evidencia ser da pena do
Capitão-mór e não do Sacerdote, o interessante ensaio sobre os aborígenes
que povôam as margens do Arinos:
«Por freqüentes conversações que com elles tive, por meio do
interprete, eu pude haver as noticias dos seus usos e costumes, e do
vastíssimo sertão que elles trilham; e tudo escrevi, para que com o auxilio
de taes noticias, e como (sic) o socorro destes selvagens, se possa alcançar
um dia a civilização desta nação, e de muitas outras, donde sahirão ainda
grandes colônias proveitosas, não só para salvação de tantas almas, que
estão fora do grêmio da Egreja; como para augmento da população da
extensíssima, mas despovoada província de Mato-Grosso, e para os novos
descobertos, que se podem esperar naquelle rico terreno, até agora
desconhecido».
Tirante o enxerto final, com a alteração para província do que
devera dizer-se capitania, enxerto que corre à conta do Cônego, está se
vendo que só ao autor da Historia dos Appiacás se pode imputar a
elaboração do valioso factum acerca dos índios do sertão nortino. Nem é
crível que a ambos ocorresse escrever uma crônica versante o mesmo
assunto e que o Cônego Guimarães sonegasse o seu trabalho tanto tempo
para vir a aparecer somente em 1844, no mesmo ano em que faleceu, no
Rio de Janeiro.
Tudo induz a crer, portanto, na hipótese de haver sido escrita a
Memória por João José Guimarães e Silva, que, por desvaidoso e por não
ser desses que, no dizer de D. Francisco Manoel de Melo «andam de
«Illmo. e Exmo. Snr.
Levo á Prezença de Vossa Excellencia a Historia dos Appiacás, que
escrevi pelas noticias adquiridas dos que proximamente estiverão nesta
cidade, e em que declarei tudo, que elles dicerão das Minas do Itamiami, e
Juruenna.
Cumpri o que V. Excia. Determinou-me por bem do Real Serviço; e
dezejando, que se realizem as esperanças, que temos fundadas na Amizade
desta Nação, rogo a V. Excia. que perdoando os erros, que encontrar na
mesma Historia, tão bem me faça a mercê de perdoar a relação de alguns
factos, que tocão a V. Excia. e que não ommitti por ter obrigação de
escrever com Verdade, e lizura, o que fez o objecto deste meu pequeno
trabalho.
Deos Guarde a V. Excia. muitos annos.
Cuiabá, 17 de Dezembro de 1819.
Illmo. e Exmo. Snr. Francisco de Paula Magessi Tavares de
Carvalho.
(a) João José Guimes. e Silva.
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GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
amores com o seu merecimento» jamais poz de manifesto o seu trabalho,
senão quando, por desencargo do ofício, o enviou a quem lh’o cometera. A
quem inculpar do engano que durante quasi um século, emprestou ao
Cônego as láureas que de direito assistem ao irmão Capitão-mór? Dou que
a Porto Alegre, o emérito orador do Instituto, que, ao compor o elogio
fúnebre do Cônego, que se lê à pág. 558 do mesmo vol. VI da Rev. Trim.,
adjudicou ao mesmo o título de «autor da interessante memória sobre índios
Appiacás».
Navegaram-lhe nas águas os que, posteriormente, à obra se
houveram de reportar: — Sacramento Blake (4), Estevão de Mendonça (5),
Virgilio Corrêa (6), Alcindo de Camargo (7), etc., todos em natural
equívoco, oriundo da boa fé com que acolheram assertiva abonada assim
em pessoa de tamanha responsabilidade. No seu discurso do Instituto
Histórico escapou, entretanto, D. Aquino de incidir no mesmo engano,
quando em se referindo ao Cônego Guimarães, como um dos heróes do
clero matogrossense, assim se exprimiu: «... o Cônego José da Silva
Guimarães, escritor e político, a quem o Instituto deve a memória sobre os
índios Appiacás...» (8)
Realmente, si outro mérito faltasse ao notável clérigo, este se lhe
não poderia negar: foi o divulgador da Memória que, em outras mãos, quiçá
se houvesse extraviado, como tanta outra cousa se tem perdido.
Tal serviço lhe deve não só o Instituto, mas a própria cultura
brasileira.
VI
Março — MCMXXVIII
(4) Dicc. Biblig. Bras. V, 192.
(5) Datas, I. 267.
(6) Matto-Grosso, 110.
(7) in Rev. do Centro M. de Letras, V, 22.
(8) in Rev. do I. H. de Mato Grosso, XVI, 21.
JOAQUIM FERREIRA MOUTINHO
Na série dos que escreveram acerca de Mato-Grosso, ocupa
destacado lugar o português Joaquim Ferreira Moutinho, autor do alentado
volume “Noticia sobre a Província de Mato-Grosso seguida d’um roteiro da
viagem da sua Capital a S. Paulo”, edicionado em 1869, por Henrique
Schroeder, da capital paulista. Essa obra, a que se tem feito rasgados gabos
e acerbas censuras, é, não há negar, um precioso repositório de
informações, qual mais curiosa, referentes à situação da província na
segunda metade do século passado, de 1850 a 1868, que foi o período em
que entre nós viveu o autor da “Noticia”.
Sem a cultura de João Severiano, ou o estilo de Taunay, pode-se,
entretanto, dizer que Moutinho lhes leva vantagem no longo convívio de
quasi duas décadas em nosso meio, ao qual se integrou por dois enlaces,
servindo-lhe dess’arte o conhecimento da terra e da gente cuiabana como o
melhor garante dos informes trazidos a lume no seu livro.
Essa circunstância, porém, com reforçar-lhe a autoridade
testemunhante, eiva-lhe as assertivas de certa paixão e parcialidade, a que
dificilmente se refoge quando afetos ou interesses se intermetem entre o
observador e os acontecimentos.
É justamente o que ocorre com a obra de Moutinho — valiosa sob
certos respeitos, mas cujas informações não são receptíveis in totum, sem
que primeiro as joeiremos à luz de um exame sereno e escoimado de
partido. Estudando a brilhante personalidade de Couto de Magalhães, já tive
ocasião de patentear a injustiça com que aquele grande servidor de MatoGrosso foi tratado no livro de Moutinho, o que si, por um lado, se explica
pelas paixões efervescentes da época por outro vem demonstrar que é velho
hábito este de atassalhar reputações movido tão só pelo impulso de
animosidades pessoais ou partidárias, quando não pelo prazer sádico de
atacar e derruir (l).
O próprio Moutinho disso foi vítima e no prefácio do “Itinerário”
diz ter tido em Cuiabá momentos amargos, pisando «agros espinhos que
semeavam em nosso caminho a calumnia, a maledicência e o ódio injusto
de pouco indivíduos» (2).
(1) “Um paladino do nacionalismo”, de J. de Mesquita, pág, 28.
(2) “Itinerário” pág. 8.
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GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Isso não impede que a posteridade lhe conheça e honre a memória
pelo precioso trabalho que nós herdou, enquanto se confundem no
anonimato da plebe os seus agressores. Lição de todos os tempos, mas que
não aproveita aos aretinos baratos e sem compostura que ainda hoje
enxameam sob a capa de jornalistas, profanando o nobre papel da imprensa!
***
Moutinho chegou a Cuiabá em 1850, tendo vindo de sua pátria em
1846, como consta do «titulo de residência de extrangeiros» que juntou à
justificação procedida no foro eclesiástico para provar o seu estado livre,
por ocasião das sus primeiras núpcias (3). Nesse interessante documento se
lê que «Joaqm. Ferrª. Moutinho, natural de Porto idade de 14 as. estado de
solt. profissão de nenhua vindo para se arranjar declarou residir na rua de
Violas n. 32 andar loja e ter chegado no dia 17 do mez de Agosto do anno
de 1846 vindo do Porto para esta Corte na Galera Tentadora.»
No Rio permaneceu Moutinho de 1846 a 1850, quando se
transportou para Mato-Grosso, onde, em setembro de 1852, requeria ao Juiz
de Genere e Casamentos, o Vigário Geral e Provisor P. Domingos de Souza
Canavarros, a prova de sua qualidade de solteiro afim de receber por esposa
a cuiabana Gertrues Ludovina Monteiro, filha de Luiz Manoel Monteiro e
Maria do Carmo Monteiro, descendente pela linha paterna dos Monteiros de
Mendonça e pela materna dos Morais Navarros. Na justificação que então
produziu, alem da prova testemunhal constante das ditas autorizadas de
João Gualberto de Matos e do dr. Francisco Antonio de Azeredo, juntou
documentos autênticos, como seja a sua certidão de batismo, que, pela fé
que merece, se transcreve como a melhor fonte biográfica do objeto deste
ensaio:
«Certifico: em como revendo um dos livros dos assentos dos
Baptizados desta freguezia; nele a folhas duzentas e setenta e nove vem o
assento do thêor segte.:
Joaquim — filho legitimo de José Ferreira Moutinho, e de Dona
Ritta Albina Martins Costa, moradores na rua d’Alegria: nasceu aos vinte e
cinco de Julho, e foi baptizado aos vinte e sete do mesmo mez, de mil
oitocentos e trinta e trez; neto paterno de Bento Ferreira Moutinho, natural
de Campanhãa, e Catharina Maria de Jesus natural desta cidade; e materno
de João Martins Guimaraens, natural da Villa de Guimaraens, e de Maria
Martins Costa, natural desta Ci-
dade: foi Padrinho Antonio Gomes Sigurado, morador na Rua da Alegria, e
Madrinha Dona Anna Ferreira Sigurado mora na Rua da Alegria; e para
constar fiz este assento. Era ut supra. O Coadjuctor Domingos José de
Oliveira. E não se continha mais no dito assento a que me reporto que aqui
bem fielmente copiei. Porto, e Sto. Ildefonso 19 de fevereiro de 1850. Eu o
Parocho Coadjuctor José Roiz dos Santos Almeida Cardoso, a subscrevi e
assignei. José Roiz dos Santos Almeida Cardoso.»
Perdendo a primeira mulher, Moutinho convolou a novo tálamo,
elegendo para esposa Mariana Rita, filha do 2º André Gaudie Ley e D. Rita
de Campos Maciel, neta paterna do Capitão-mór Gaudie e materna de
Francisco Bueno de Sampaio.
O segundo lar constituído por Moutinho teve mais longa duração,
pois, tendo-se casado a 10 de maio de 1863, levou em sua companhia a
esposa, quando, em 1868, se retirou para a Corte e depois para Portugal,
onde ainda viveram muito tempo deixando prole numerosa.
Moutinho e sua esposa saíram dê Cuiabá no dia 25 de maio de
1867, e tendo permanecido algum tempo em S. Paulo e no Rio, chegaram a
Portugal a 23 de agosto de 1868. Na Genealogia Cuiabana — O Capitãomór André Gaudie Ley e sua descendência — publicada nesta Revista, vols.
V a VIII, vem referido o casal Mariana Rita Moutinho, de forma resumida,
devido à escassez de dados de que dispunha no momento, e que só mais
tarde obtive, graças à obsequiosidade de distinta parente, neta desse casal
— D. Judith Corrêa de Lacerda. Graças a essas informações pude verificar
que D. Mariana nasceu a 8 de junho de 1842, e não a 15 de outubro — que
deve ser o dia do batismo — tendo falecido a 12 de setembro de 1924, em
Coimbra. Moutinho, nascido na cidade do Porto, a 25 de julho de 1833,
veio a falecer em Belas (arredores de Lisboa) a 27 de junho de 1914.
Antes de partir para a Europa, perderam quatro filhos, em criança;
mais três lhes nasceram em Portugal, que foram:
1) Fernando
2) Albertina
3) Alípio.
1º
Fernando Moutinho, nasceu no Porto a 11 de dezembro de 1869 e
faleceu em Lisboa a 4 de abril de 1821. Foi um talento musical, pianista de
valor, deixando várias composições. Residiu, algum tempo no Rio. Casou
com D. Maria Victoria da Motta Santos, que reside atualmente em Lisboa e
de quem houve os seguintes filhos:
(3) “Archivo eclesiastico, masso n.7 de justificações, 1852.
161
162
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
2-1 Salvador Moutinho, nasceu no Porto a 25 de dezembro de 1893.
É casado com D. Adélia Santos. Não tem filhos. Reside em Paris.
2-2 Fernando Moutinho Junior, nasceu no Porto a 4 de maio de
1895. É solteiro, mas tem uma filha natural perfilhada, Maria Fernanda
Moutinho, que nasceu a 10 de setembro de 1920. Reside em Lisboa.
2-3 Hilda Moutinho, nasceu no Porto a 31 de dezembro de 1896. É
casada com Ruy Cisneiros Machado da Cruz, residem em Lisboa e tem os
seguintes filhos:
Alípio Moutinho, nasceu no Porto a 7 de outubro de 1875. Casou-se
a 12 de agosto 1905 com D. Raquel Xavier e reside no Porto. Filho:
2-1 Júlio Xavier Moutinho, nasceu no Porto a 28 de maio de 1906.
É solteiro e reside no Porto.
3-1 Maria Ignez, nasceu em Lisboa a 25 de janeiro de 1922.
3-2 Antonio Bartolomeu, nasceu em Lisboa a 9 de dezembro de
1924.
3-3 Mario, nasceu em Lisboa a 9 de janeiro de 1927.
3-4 Maria de Lourdes, nasceu em Lisboa a 27 de outubro de 1923.
3-5 Maria do Rosário, nasceu em Lisboa a 13 de outubro de 1933.
2º
D. Albertina Moutinho, nasceu no Porto a 20 de setembro de 1873 e
faleceu no Porto a 2 de agosto de 1925. Casou a 6 de dezembro de 1888
com Francisco Manoel Pereira Caldas, 1º Visconde e 1º Conde de Silves,
que faleceu em Lisboa a 13 de maio de 1915. São seus filhos:
2-1 Raul Moutinho Pereira Caldas, o atual Conde de Silves, nasceu
na cidade de Silves a 21 de janeiro de 1891. É solteiro e reside em Lisboa.
2-2 Judith Moutinho Pereira Caldas, nasceu na cidade de Silves a
22 de fevereiro de 1892. Casou a 3 de fevereiro de 1915 com Francisco de
Abreu Castelo Branco Correia de Lacerda. Residem em Lisboa. Seus filhos:
3-1 Manuel, nasceu em Lisboa a 10 de fevereiro de 1916.
3-2 Fernando, nasceu em Lisboa a 27 de outubro de 1917 e faleceu
em Fornos de Algôdres (Beira Alta) a 24 de setembro de 1933. É o
Fernandinho, cuja biografia traçada pelo Pe. Tomás de Aquino. sob o título
— De olhos no céu — constitui um dos mais belos florões da progênie dos
Gaudie Ley, pelas virtudes excelsas que exornaram a alma desse jovem
seminarista, cedo ceifado pela morte, para ir ornar os Jardins do Paraíso.
163
***
No Porto, lugar do seu, nascimento, Moutinho era uma das figuras
de maior projeção social, não só devido aos haveres, que logrou amealhar
no Brasil, como, e ainda mais, pelo seu espírito de atividade e seu coração
filantrópico. De uma das suas iniciativas temos provas através do “Relatório
presentado à Comissão Iniciadora de uma escola para Surdos e Mudos”,
Comissão da qual fez parte na qualidade de Tesoureiro (4).
Esse folheto que muito honra os seus sentimentos humanitários e
capacidade de trabalho — demonstra, por outro lado, que Moutinho ao
retirar-se de Cuiabá, onde chegou a regular abastança, levou em mira
aplicar, na sua terra natal, os seus haveres em prol dos pobres e malfelizes.
Nobre e generoso, não lhe esquecera, por certo, a sua condição de
desvalido da fortuna, ao chegar, adolescente, à terra brasileira, sem
profissão, «vindo para se arranjar», conforme o dizer expressivo do seu
passaporte. E, dotado de boa alma, conquanto impetuosa, ele, que muito
sofrêra e na escola dura do labor aprendera a ser bom e tolerante, julgou
com serenidade, que «a todo o bom christão cabe portanto uma parcella de
responsabilidade, consentindo que elle (o egoísmo) estenda suas raizes
malignas pelo vasto campo onde o Christianismo hasteou o sagrado pendão
da liberdade e do amor do próximo» (5).
Esse, talvez, o aspeto mais simpático do grande amigo da terra
cuiabana.
(Cuiabá, Nov.º MCMXXXII e Julho MCMXLVI).
(4) Porto, Imprensa Portuguesa, 1875.
(5) “Relatório” cit. pág. I.
164
GENTE E COISAS DE ANTANHO
Dois Espólios Curiosos
Dos Capitães-Generais e Governadores da Capitania de MatoGrosso, em numero de nove, dois morreram no exercido do seu cargo em
Villa Bela: — João d’Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres e Manoel de
Abreu Menezes.
Acerca do primeiro, nada ou pouco se pode adiantar no tocante à
sua enfermidade e morte, alem do que nos “Anais do Senado da Câmara” se
lê. Quanto ao Governador Manoel Carlos, que faleceu em 1805, descobrilhe, perlustrando os nossos arquivos poeirentos e abandonados, o inventario
em traslado, no Iº cartório de órfãos, subordinado ao masso e titulo
Resíduos, n. 387. Precioso documento, já assaz deteriorado pelo tempo,
permite reconstruir alguma cousa em torno dos fatos que precederam e se
seguiram ao falecimento do Governador.
Manoel Carlos veio para Mato Grosso, como se sabe, em 1804,
trazendo em sua companhia o seu primo e amigo Dr. Sebastião Pita de
Castro, que veio de Ouvidor Geral e Corregedor da Capitania, e que faleceu
pouco depois do Capitão-General. Os Anais, na memória do ano de 1804,
assim relatam, as pags. 116 e 117, a viagem do Governador de Cuiabá para
a Capital, no decurso da qual lhe veio sério incomodo de saúde, de mau
prognostico para a vida do ilustre itinerante: «No dia 27 de Junho partiu S.
Exc. para ir tomar posse do seu Governo a Capital, levando em sua Comp.ª
todos os que haviam vindo nella, deixando-nos somente as saudades de um
Superior tão ornado de virtudes e cheio de bondades (quão velha é a
linguagem bajulatória, que a muitos se afigura cousa nova!) os quaes nos
annuncião immensas prosperidades. Em treze de Julho chegou a esta Villa a
infausta, e magoante noticia de que S. Exc. quasi ao chegar a Jacobina fôra
repentinamente atacado de uma Himorragia de sangue (sic) pela boca tão
copiosa, que consternou a todos da comitiva, que
165
JOSÉ DE MESQUITA
julgaram ver findos os dias do nosso Excelentíssimo General. Nesta vila do
Cuiabá a consternação chegou a todos e alguns dos mais conhecedores do
bem que perdiam fizeram voto, ao Céo e a Alta proteção do Senhor Bom
Jesus em que eles recorrem, fazendo-lhes o voto de um solene sacrifício, si
o mesmo Senhor conservasse a vida deste Paternal, sábio e Benemérito
General. Alguns dias depois da noticia do perigoso estado e moléstia de S.
Exc. chegou outra mais grata de que o dito Snr. quasi restabelecido
continuaria a sua jornada para a Capital.
Tudo leva a crer que essa «hemorragia de sangue» como
pitorescamente a batizou o cronista, outra cousa não fosse que uma
hemoptise, quiçá de origem tuberculosa, que acometeu o representante da
Metrópole. Manoel Carlos era, pois, um doente, que a palustre veio
encontrar predisposto ao surto febril a que sucumbiu.
Melhorando prosseguiu viagem, tendo chegado a Vila Bela a 28 de
Julho de 1804. Pouco mais de um ano deveria, porem, durar o seu governo,
pois que a 8 de Novembro de 1805 pereceu, dizem as crônicas, vitima de
ataque palustre.
Pouco lhe sobreviveu Pita, que tendo feito parte da Junta
Governativa Provisória, morreu em Maio do ano seguinte. Também deste
existe, na relação dos Resíduos e sob nº 388, traslado do inventario ou, mais
propriamente, rogatória para a arrecadação de bens deixados em Cuiabá.
De Manoel Carlos foi Testamenteiro o Cap. Manoel Antonio Pinto,
que requereu ao Ouvidor Pita de Castro a expedição de carta rogatória para
Cuiabá afim de se fazer a arrecadação dos bens ali existentes e pertencentes
ao acervo. Esses bens se encontravam em poder do Tenente Coronel
Gabriel da Fonseca e Souza e do Sr. José Antonio Pinto de Figueiredo e
figuram na curiosa relação 40 garrafas de vinho, avaliadas a 36$000, mais 5
garrafas avaliadas a 4$500, 29 de azeite a 26$100, 12 garrafas brancas
pequenas, a 7$200, 3 lavradas maiores, a 2$250, 3 terrinas brancas de pó de
pedra e as tampas, a 7$200, uma outra pequena, a 2$100, 40 pratos
sopeiras, a 12$000, etc. Em muares era sortido o espolio do General — uma
mula sapiroca de 10 ou 12 anos, apreçada em 12$000, um macho castanho
velho muito magro, em 12$000, uma mula pequena russa bastante velha e
magra, em 6$000, um macho castanho muito velho e aleijado de uma perna,
sem valor e um outro macho russo muito velho e muito magro a que se não
poude também dar preço algum.
Manoel Carlos veio pelo caminho terrestre, passando por Goiaz,
dai, naturalmente, o existirem esses muares remanescentes da expedição
que ficaram em Cuiabá estropiados e inválidos.
166
GENTE E COISAS DE ANTANHO
No espolio do Ouvidor foram descritos objetos preciosos, jóias e
tafularias, que delatam o moço preocupado em estarrecer os povos da
Capitania com o seu luxo e faustuosa ostentação.
Trazia Pita fios de perolas e brincos de crisólitas, um anel de retrato
da Rainha, lenços finos, 2 hábitos, um da ordem de S. Tiago, com pingos de
água e outro da de Cristo. Pormenores que parecem insignificantes,
indiciam, entanto, a psicologia do primo do Governador traindo-se na sua
personalidade o «peralta, escandalosamente efeminado..» de que Julio
Dantas nos dá estupenda descriminação nas paginas evocativas do seu livro
“0 amor em Portugal no século XVIII”. Nem ha extranhar ali a existência
daqueles fios de perolas e brincos — cuja utilização logo nos esclarece o
rememorador dos costumes lisboetas dos fins do século XVIII e começos
do XIX: «O elegante de D. Maria I, andrógino e maricas, põe trancinhas no
cabelo “á Nazaré”, espartilha-se, fura as orelhas como uma mulher, usa
brincos, mosqueia-se de sinais, pinta a cara de cor de rosa..»
Ai está caracterizado o «francelho-mór» das criticas de Filinto
Elisio de que, por certo, o Ouvidor Pita nos forneceria curioso specimen. E
é bem de imaginar-se a figura, desse “peralta” ajanotado nos passos de Vila
Bela — que Taunay nos descreve e onde se reproduziram, num ambiente
meio rústico, as cenas do passos de Queluz, na Corte, que, por sua vez, as
copiava da esplendida Versalhes dos Bourbons...
Bem que distantes, à evocação, esta vida reprospectiva, no-los faz
ver esses tempos de antanho, através dos velhos alfarrábios desses dois
inventários curiosíssimos...
E mais se acentua o extranho contraste dos costumes entre aquela e
a era que corre: lá eram os homens que se efeminavam, pondo cabeleiras e
usando jóias em profusão, ao passo que hoje são as mulheres que se
masculinizam, tosando as melenas e envergando o colarinho das
sufragistas...
Entre os dois extremos — qual o mais tolerável?
(Abri1, 1927)
JOSÉ DE MESQUITA
II
Os planos de Magessi
O perfil do ultimo governador e capitão General de Mato-Grosso,
Francisco de Paula Magessi Tavares de Carvalho, deposto pelo motim de
20 de Agosto de 1820, ficou nitidamente esboçado no estudo que sob o
titulo”De Magessi a Pimenta Bueno” escreveu o erudito pesquisador de
cousas mato-grossenses Virgilio Corrêa Filho (1)
Algo, porém, vim a rastear ainda acerca dessa curiosa figura
colonial que deu, azo a que se-lhe focalizasse mais uma vez neste ensaio a
personalidade já hastas vezes estudada pelos cultores do nosso Passado.
Assim é que, muito antes de vir para Mato-Grosso, ou mesmo de
sonhar ser o substituto na capitania do governador João Carlos, já as suas
vistas e atenções se voltavam para estas plagas, existindo no arquivo do
primeiro cartório cível curioso documento datado de 1809 que delata o seu
propósito de vir Cuiabá cerca de dez anos antes do período em que lhe
coube administrar a Capitania.
Refiro-me à procuração apresentada em juízo pelo Capitão Antonio
José de Araújo Ramos e na qual Magessi o constituía seu representante
legal para tomar posse do cargo de Tesoureiro-mor da Bula da Santa
Cruzada.
Traz o dito documento data de 16 de Abril do 1809, feito que foi no
Rio de Janeiro e de próprio punho do outorgante, privilegio de que, como é
sabido, só gozavam os nobres, poderosos ou titulados e as altas autoridades,
pois aos demais só mui recentemente se ampliou essa faculdade de dar
procuração de sua própria letra e firma. Assim reza o curioso documento:
“Francisco de Paula Magessi Tavares de Carvalho, Cavalleiro da Ordem de
S. Bento de Aviz Coronel de Primeiro Regimento de Cavalaria dos
Exércitos por sua Alteza Real o Príncipe Regente Nosso Senhor a quem
Deus guarde:
(1) Nota á margem, pags. 55 e segs.
167
168
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
— Por esta bastante Procuração por mim feita e assinada, faço
nomeio e constituo por meu bastante procurador ao Sr. Antonio Joseph de
Araújo Ramos para que em meu nome como se presente em pessoa na Villa
do Cuiabá tomar conta e empossar-se no emprego de Tesoureiro-mór da
Bulla da Santa Cruzada da mesma Villa Bella de Mato-Grosso.”
Magessi cá não veio exercer o cargo em o qual se empossou por
procuração e só mas tarde em 1817, nomeado para substituir Oeynhausen,
chegou a Cuiabá, assumindo o governo a 6 janeiro de 1819. No seu governo
foi o que todos sabem um verdadeiro desastre. Não tendo sabido conduzirse nem mesmo no seu viver privado, deixou fama de sovina, violento e algo
escandaloso, deixando-se dominar pelo capricho da esposa.
Versinhos populares da época delatam o estado de revolta da plebe
ante o procedimento do general.
Alguns conservados na tradição oral, chegaram ao meu
conhecimento, VERBI GRATIA o que atribuem aos soldados da Legião,
mal pagos e sobre acumulados de trabalho:
serviço a Luiz José Pinto de Figueiredo na qualidade de seu preposto e
“atendendo à perícia e capacidade exercitadas por muitos anos em negócios
dessa natureza.”
Este Luis, a quem Magessi deu carta branca na gestão dos seus
negócios da fazenda, era filho do Mestre de Campo Antonio José Pinto de
Figueiredo, falecido a 7 de Maio de 1795 e tanta confiança tinha nele o
astuto governador que, conforme se vê das cartas que instruem uma
notificação datada de 1821, existente no 1º cartório civil, lhe deu poderes
“para aplicar todos os meios que julgasse convenientes para aquele fim
usando para isso de uma intendência sem reserva.”
Eis que, porem, se desencadeia o temporal político desfechado no
levante de Agosto, que apeou do poder, da noite para o dia, o ultimo
Capitão General de Mato-Grosso. Magesssi teve de fazer as malas e, a 12
de Setembro, ante a intimação da Junta, descia o Cuiabá em viagem de
retirada. Não se descuidou ainda assim, nas aperturas em que se viu, da sua
fazenda e — reza a notificação aludida, da qual extrai estas notas —
“interrompendo a sua derrota no porto de Matheus Barbosa de Mendonça
fez vir para aquele lugar ao Embargante (Figueiredo) para o efeito de justar
contas com ele e determinou-lhe varias cousas relativas ao interesse e boa
ordem da Fazenda.”
Não chegaram a um acordo o ex-Governador e o seu encarregado e
procurador geral. Surgiu dali uma demanda em juízo, da qual se nos indica
ter sido o prólogo essa curiosa notificação de 1821, em que Magessi era
representado por Joaquim Fernandes Coelho, por substabelecimento do
primitivo procurador o Sargento-mór, André Gaudie Ley (alvará de
procuração de 16 de Agosto de 1821) e Figueiredo tinha por seu advogado
Nunes do Valle.
O fim do litígio, não se sabe.
Os autos respectivos devem ter desaparecido, como, infelizmente,
grande parte dos arquivos dos nossos cartórios, de data anterior a 1834,
quando o jacobinismo fez incinerar tudo o que de longe vislumbrasse ter
relação com a Metrópole.
Salvou-se, não sei como, a notificação de 1821 — que por si só
revela episódio inédito da vida do Governador e põe às claras os seus
planos de aumentar os haveres em rendosa indústria, que lhe não foi
possível, pelo adverso das circunstancias, levar ao termo desejado.
“Ai ! Jesus!
Que vou a morrer!
Tanto serviço,
tão pouco comer!”
E esta quadrinha perversa em que a mordacidade anônima expunha
ao ridículo uma cena intima da vida de somitico e atrabiliário governador:
Minha gente venha ver...
O que ver aqui terão:
PAI CHICO cortando sebo.
MAE RITA fazendo sabão.
Está-se a ver nesse versinho tosco a ambiência que eles refletem,
naquele meio da Cuiabá colonial do começo do século XIX, onde já havia
uma sociedade, com foros de fidalguia, ricos mercadores, gente que se dava
por fina e de boa linhagem, escandalizada ante a sencerimonica do
governador que se permitia ajudar o fabrico do sabão por economia
doméstica.
O seu espírito ávido de lucros e ganancioso ao extremo, que se
extereotipou em mais de um lance da sua vida, o atirou a uma aventura que
lhe acenara a perspectiva de fáceis haveres, si a não baldasse de todo a sua
retirada imprevista, que malogrou por completo a iniciativa já a bom
caminho do sucesso imaginado. Pretendeu Magessi formar um
estabelecimento de gado vacum e cavalar no lugar da Bahia, rio abaixo,
tendo incumbido desse
169
Maio, 1927
170
GENTE E COISAS DE ANTANHO
III
Um caso de «aposentadoria»
Não se trata — vá logo de entrada este esclarecimento — da
comum e moderna acepção que tem as aposentadorias, do conceito que em
se empregando este termo, logo lhe dá o funcionário, isto é do otium cum
dignitate, e que accrescentarei et cum pecunia que o Estado concede
áqueles que, bem ou mal, por largo trato de tempo, lhe prestaram seus
serviços.
Por aposentadoria aqui ha de entender-se “o direito que alguém tem
de tomar a outrem a pousada para si”, qual define o douto Moraes em seu
Dicionário, louvado certamente nos bons autores da matéria.
Bem discutível direito esse, mas, não ha negar, parte integrante que
foi da legislação portuguesa e nossa, sendo lícito a qualquer autoridade
desde que se lhe fizesse mister, desapossar temporariamente o legítimo
proprietário, do prédio que lhe pertencia, para no mesmo se alojar ou algum
dos seus seguidores. São muito conhecidos os abusos que, sob color de
legalidade, se praticaram a quando da chegada ao Rio da Corte de D. João
VI. Referem-n’os circumspectos historiadores, entre outros Rocha Pombo
na sua Historia do Brazil, dizendo mesmo que o Conde dos Arcos, o ultimo
Vice-Rei, “teve de recorrer a irritantes violências, forçando muitos
proprietários a desocupar seus prédios e cedel-os aos hospedes” (1).
E em nota, acrescenta:
“Não foi pequeno o vexame, e em geral bem má impressão
produziram taes abusos, sendo o Vice-Rei vivamente censurado.
Bastava um papel pregado á porta com o timbre oficial e declarando
— Para o serviço real ou — De ordem do Governo — para que a família
fosse obrigada, no mesmo dia, a desocupar o prédio. (2)
Era como se vê, uma requisição, para usar da linguagem de
(1) Rocha Pombo — Historia do Brazil, vol. VII pág. 144
(2) Idem, nota n. 2
171
JOSÉ DE MESQUITA
nossos tempos, de rito celebre, sumaríssima, quasi uma questão de fato,
antes que de direito.
Não te espantes, leitor, que ainda hoje o Estado, com quando muito
haja progredido a nação do Direito, tem prerrogativas taes que senão
compadecem com o bom senso jurídico, e depois é preciso encarar a época
e a ambiência em que tais fatos ocorriam.
Não rezam as nossas crônicas locaes, posto minudentes, de muitos
abusos desse gênero, o que é facilmente explicável: os Governadores e
Capitães Generaes tinham sempre, antes de partir para estes sertões, o
cuidado de prevenir, por intermédio de amigos ou procuradores, a sua
instalação. O truculento D. Rodrigo César de Menezes que, como
Governador de S. Paulo, a cuja Capitania pertenciam os descobertos de
Cuiabá e Mato Grosso, por aqui passou,vai por dois séculos, à guisa de um
verdadeiro ciclone apoderou-se do melhor que em material de habitações
encontrou no arraial. Nada admira, porem, tal proceder do sencerimonioso
extorcionario que depois de pilhar e repilhar os pobres moradores de
Cuiabá, arrancou á subserviência dos vereadores de 1728 aquela celebre
declaração com que tão tristemente se iniciou entre nós à hipocrisia dos
processos políticos, na qual se dizia que Rodrigo César se entendêra no bom
regimen e conservação da Vila com tanta exação, desinteresse e limpeza de
mãos com tanta afabilidade e agassalho aos seus moradores, que pode
servir de exemplo ainda aos mais signalados heroes...
Mirabile dictu! Mas, deixemos em paz os nomes dos signatários
desse documento, e voltemos ao nosso assunto. Topei agora, no folhear de
alfarrábios a que com prazer me dou, curiosos subsídios para a verificação
de um caso de “aposentadoria”: trata-se de um requerimento do Juiz de
Fora e presidente da Câmara de Cuiabá feito pelo Alferes Antonio Ferreira
dos Santos, no caracter de herdeiro de Antonio José de Oliveira, pedindo se
lhe certificasse o conteúdo das cartas dirigidas à mesma Câmara pelo
Exmo. Sr. Caetano Pinto de Miranda Monte Negro, nas quais solicitava
providencias para a sua hospedagem. As cartas são de 1799. A primeira
delas assim se exprime: “Tenho determinado de passar a essa Vila no
próximo Mez de Junho, a dependência do Real Serviço; faço as Vossas
Mercês esta participação afim de me mandarem aprontar o meu alojamento,
que a não haver algum embaraço, podem ser as mesmas casas em que já
estive do Sargento-Mór Antonio da Silva de Albuquerque, e igualmente
mandarão Vossas Merces aprontar os cômodos e habitações necessárias
para o Secretário deste Governo, e para um dos Ajudantes das minhas
Ordens que me hão de acompanhar. Deus guarde a Vossas Mercês. Vila
Bela trinta de Abril de mil setecentos e noventa e nove”. Depreende-se
dessa missiva oficial que vinha o Governa172
GENTE E COISAS DE ANTANHO
dor, em publico serviço, da Capital a esta cidade, e solicitava acomodações
para a sua pessoa e a dos seus auxiliares, manifestando a sua preferência
pela casa, já sua conhecida, do Sargento-mór Albuquerque. Logo a 11 de
Maio seguinte, em outra carta, assim dizia o Capitão-General:
“No correio do primeiro deste mez avisei a Vossas Mercês que no
próximo Mez de Junho, fazia tenção de passar a essa Vila; com as noticias
que recebi agora de Goiaz, está incerta a minha viagem e dependente das
que todos os dias espero por via do Pará. Deus queira que elas sejão mais
agradáveis e que ponhão termo ao desassocego desta Capitania, para eu ter
o gosto de ver a Vossas Mercês e a todos os moradores desse distrito, como
muieo desejo”. As noticias a que alude Caetano Pinto deviam ser referentes
á situação da política luso-hespanhola, bastante estremecida e causando
constantes apreensões.
A 27 de Novembro de 1799 é que o Governador anuncia
definitivamente a sua partida nesta ultima carta: “Só agora se pode verificar
a minha’ ida a Villa, e movido das ordens de huma Soberana, que ama
como filhos os seus vassalos, será esta viagem tanto mais agradável para
mim, quanto ella ha de ser a mais interessante para Vossas Mercês e para
todo esse Povo. Athe dez ou doze do Mez que entra, faço conta de sahir
daqui. Vossas Mercês mandarão aprontar os Caminhos e Quartéis para a
minha aposentadoria, para hum Ajudante das minhas Ordens, para o
Secretario do Governo e para o official maior da Secretaria.”
Veio efetivamente Caetano Pinto a Cuiabá, pela segunda vez pois
já, ao vir pelo caminho terrestre, aqui estivera de 17 de Setembro a 15 de
outubro de 1796, com rumo à Capital, que era em Vila Bela.
E para a sua aposentadoria foi, como era seu desejo, desocupada a
casa do Sargento-mór Albuquerque, que houve mister mudar-se para o
sobrado de Antonio José de Oliveira. É o que diz o mesmo documento: —
“e outro sim se consta que o Procurador da mesma Câmara alugasse as
casas de sobrado do dº falecido Antonio José de Oliveira para o SargentoMór, Ant° da Sª de Albuquerque, em razão de se lhe haver tomado as suas
para aposentadoria do Snr. General...
É esse um caso típico de aposentadoria, mas, ainda assim, com que
diplomática finura agiu o Governo desde a sua primeira carta á Câmara, e
esta, por sua vez, promovendo novo alojamento para o dono do prédio
preferido pelo representante da Metrópole! E ha ainda quem fale, entre
horrizado e receioso, dos “ominosos tempos coloniais...” Falta, talvez, de os
conhecer; desejo, quiçá, de mostrar superioridade... Ignorância ou
esnobismo.
JOSÉ DE MESQUITA
IV
Letras do período colonial
Falando da situação do Brasil-colonial, assim se exprime Ronald de
Carvalho, na sua “Pequena Historia da Literatura Brasileira”: «Composta de
elementos tão diversos, na educação e na cultura, na inteligência e no trato,
que era licito esperar, quando ao seu grau intelectual, de semelhante
sociedade? De um lado índios boçaes e africanos escravizados e broncos; de
outro, audaciosos Capitães móres, indivíduos sem rei nem lei, bandidos
vulgares e nobres matreiros, alguns, até, de origem duvidosa!» Essas
referencias podem se aplicar, com certa justeza, á sociedade cuiabana dos
primórdios da nossa historia da época do povoamento — século XVII e
começos de XIX — donde, razoavelmente, se concluirá ter sido nula, ou
pelo menos insignificante, a vida mental daquelas eras. De parte um ou
outro letrado vindo da Metrópole, como o Ouvidor Oudonhes, de sempre
lembrada recordação, os cronistas Barbosa de Sá e Costa Siqueira o que é
que se nos depara neste longo período de cerca de cem anos, que medeia
entre o descobrimento e o abrolhar das primeiras vocações literárias em
Mato Grosso? A poesia se resume em ditirambos aos poderosos,
composições impregnadas do gosto arcádico, cheias de mitologia como as
que então faziam o deleite da corte lisboeta, Toledo Piza, em nota que se
segue à publicação das “Chronicas do Cuyabá” no vol. IV da Revista do
Instituto Histórico de São Paulo, nos dá curiosas amostras desse gênero
louvaminheiro, nas produções recitadas por ocasião das festas que, em
1890, se fizeram em honra do dr. Diogo de Toledo Lara Ordonhes.
Ahi vai uma, à guiza de exemplo:
(1928)
173
174
GENTE E COISAS DE ANTANHO
SONETO
Vós, Senhor, cujo nome esclarecido
já gravastes em laminas brilhantes
tanto mais vossas glorias são constantes
tanto mais vos fazeis ennobrecido.
JOSÉ DE MESQUITA
Vivendo, vicit omnia fata superstes
Immunis fati, longo regnaturus aevo;
Venenosam Galis, qui contudit Hidram,
Armorum hice coruscans auro dives, et armis.
Omnibus amabilis, omnia omnibus vivat,
O elemento se rompa, e divididos
lá do centro se arranquem diamantes;
diademas se fabriquem rutilantes
que porteis nessa fronte arrependidos.
Regalis quem Purpura tegit REX JOANNES,
Excelso in solio, humeris quit sustinet Regnum,
Immortalis, fáma, longe tempora vitae vivat.
Vossos annos as Musas applaudindo
Com Apolío que as rege em egualdade
hoje estão no Parnaso e Sacro Pindo.
Dominus, et sceptra qui manu gerit
Excelsus, qui fulgenti dat jura trono:
Com seu canto eternisam vossa idade
as Musas brandos lances referindo,
Apolío só acções de heroicidade.
Esse trabalho, como os outros, é anônimo, e figura como tendo sido
«recitado por um sugeito de respeito e merecimento, trajado de rica farça de
dama”.
A par desse gênero, em que era sobremodo fértil o estro colonial,
abundando em saudações festivas e comemorações fúnebres, epicédios e
louvores, nota-se, rara embora a veia epigramática, anônima também,
revelando-se em mordentes versetos, com que eram alvejadas muitas vezes
altas figuras da administração, a exemplo do que se deu com Magessi, o
infeliz Capitão general a que se refere a quadrinha já esta citada na crônica
II.
Como era vulgar o conhecimento das línguas clássicas entre a gente
erudita da época, surgem, por vezes, poesias escritas em latim, de que
também se entremeam, elegantemente, as crônicas de Barbosa de Sá, os
sermões e as próprias cartas do tempo. A titulo de curiosidade apenas, aqui
se transcreve uma interessante composição oferecida ao Governador João
Carlos de Oeynhausen, em Maio de 1816, em regozijo pelo «prospero dia
do nascimento del Rey». Firma-a D. Pedro Paniagua de Loayva, estando
acompanhada de uma carta autografa, em castelhano, datada de 11 daquele
mês e ano, procedente do “citio de san José.” A poesia, em latim (excusez
du peu... latim bem fraco) reveste a forma acróstica, muito em voga nesse
tempo: Eil-a:
175
Patriae Parens, frontem cujus Diadema coronat,
Ovans, qui porrigt victricis pignora dextrae,
Rex Brasiliae, virtute super aethera notus,
Tutamen Portugaliae potens, columenque Regni,
Uivat tot quot aetheris sunt sidera dies,
Gloriaque sedeat, sed gloria nullo peritura die.
Auguste ó Prínceps! Regni honos, et Hispaniae laus,
Laudes dicemus, Diesque tuos tollemus in astra
Das nossas letras coloniais é bem pouco o que se apura de
aproveitável. Não que não houvesse letrados, isto é, homens de cultura e
boa erudição. Em geral, o eram os altos funccionarios do Fisco, do Clero,
da Justiça que a Metrópole nos enviava, Mas o influxo do meio lhes
derivava a atividade para outras preocupações. E quem, de resto, numa terra
dadivosa e rica, cheia de atrativos materiais, num século dominado pela
febre do ouro, como foi aquele do descobrimento, teria a alta virtude
idealista de cuidar de cousas que não trouxessem lucro imediato e palpável?
E, com raras excepções, assim foi por todo o Brasil, na era primitiva, a
modo que não se afasta muito da realidade o conceito em que Paulo Prado,
no seu Retrato do Brasil, miniaturiza o ambiente inicial da intelectualidade
pátria: «indigência intelectual e artística completa, em atrazo secular,
reflexo apagado da decadência da mãe pátria.»
(1930)
176
GENTE E COISAS DE ANTANHO
V
O Padre Tavares
Curiosa figura do clero secular dos fins do nosso século I, e
começos do II (XVIII e XIX, na cronologia vulgar), o Padre Antonio
Tavares Corrêa da Silva bem pode ser focalizado, à luz de uma rigorosa
analyse histórica, como o tipo do sacerdote daquelas eras afastadas, em que
o regalismo, de mãos dadas com os costumes fáceis da época, favorecera a
formação daquele meio de que Fonseca Lima nos dá um quadro eloqüente e
verdadeiro no seu prefácio das Memórias do Marques de Santa Cruz,
Arcebispo da Baía, dizendo: «ia-se apagando a lâmpada da fé a falta de
levitas que a zelassem.» (1) Fatos como nol-o contam as nossas crônicas
coloniais, de lutas abertas e acérrimas entre os vigários das minas, são
indices eloqüentes do espírito da época, em que as paixões ambientes
contagiaram a todos indistintamente, com a violenta expansão das
pandemias moraes. Não vai nol-o reconhecer tais circunstancias imbuído do
rigoroso senso da verdade, que deve presidir aos ensaios históricos,
desdouro nem diminuição para o clero brasileiro, cuja obra estupenda de
cultura e de sacrifico em pró do nosso progresso, antes como que assim se
destaca, mais viva, tal num grupo estatuário mais resaem os altos relevos
diante do fundo de que emergem. Força é proclamar que si o clero secular e
regular se viu «envolvido em lutas sociais em que, por vezes, lhe perigou o
espírito eclesiastico» (2) não menos exato é que dessas crises históricas
aflorou sempre mais gloriosa e vencedora a Igreja de Cristo, a que as falhas
naturais da contingência humana de alguns dos seus ministros, como
servem, no plano superior do providencialismo, a mais realçar a sua divina
essência e a sua origem sobrenatural.
Urge, para fazer a crítica de uma instituição ou de uma casta,
encaixilha-la na moldura do tempo, sem o que se incorre no grande erro de
visão que Taine o insuspeitissimo Taine, censurou
(1) Ob. Cit. pag. XII, apud Vilhena de Moraes, O Gabinete Caixias e a anistia aos bispos.
(2) D. Duarte Leopoldo — O clero e a independência, pag. 13.
177
JOSÉ DE MESQUITA
nos apaixonados historiadores da Revolução francesa e do regime absoluto
dos Bourbons. Quem se propõe a estudar a Historia conscienciosamente ha
que se colocar no meio e na época que pretende analisar, ver
retrospectivamente, compor a paisagem mental e social ela éra que vai ser
estudada. Fóra disso é fazer obra sem consistência, parcial, daltonizada por
paixões ou preconceitos. Ao historiador se impõe como requisito
imprescindível, a visão panorâmica do tempo e dos elementos cósmicos e
sociais em que se agitaram e viveram os seus biografados, sob pena de fazer
historia apressada ou romance de pura ficção, com o rotulo de historia. E a
observação do meio e do tempo nos leva a esse espírito superior, de
indulgência, que deve caraterizar os verdadeiros críticos, habituados a lêr
no passado, com aquele senso das realidades que faz absolver os erros de
uma geração pela que se lhe segue, sob o fundamento do celebre verso:
«Crimen fue del tiempo, no de Espana...»
***
O que era a Cuiabá em que, ha mais de um século, exerceu a sua
atividade o Cônego Tavares, vemo-lo através das pitorescas descrições
coevas dos cronistas Barbosa e Siqueira e dos itinerantes, como Florence,
da Comissão Langsdorf. O arrail do Bom Jesus, surgido das lavras do Sutil,
convertera-se por sua vez na Vila Real e depois na cidade, que, num golpe
de habilidade política ou, melhor, obedecendo à. fatalidade econômica com
que se desdobram certos fatos históricos, se apoderara da hegemonia
político administrativa, dela apeando a remota e decadente Villa-Bela. O
lento trabalho de um século fizera crescer, no valle que a Prainha divide,
uma civilização que não se poderia apodar de improvisada, pois obedecera,
no seu evolver, o ritmo ascensional do progresso das sociedades. Ao lado
dos mineradores primitivos se formaram, substituindo-os dentro em pouco,
as classes dos comerciantes abastados e dos senhore rurais, de que é o tipo
mais representativo o «senhor de engenho» da Serra-acima e da Beira-rio.
A sua situação de centro da Capitania e depois da Província
determinara, por outro lado, a organização do aparelhamento burocrático,
criando e desenvolvendo a classe dos funcionários do Fisco e da
Administração, a qual também pertenciam o eclesiasticos, dado o regime
vigorante nas relações entre os poderes espiritual e temporal. Felício dos
Santos (Joaquim) nos traça, em largas pinceladas do seu estilo conciso, o
painel de Vila Rica á época de Independência: «A baixo destes
funccionarios (o governador e o bispo) apparecia a grande multidão dos
mais empregados subalternos, seculares e ecclesiasticos, os quaes todo
vivião á custa da fazenda,
178
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
isto é erão sustentados pelo trabalho dos pobres mineiros, sempre victimas
das rapinas, extorsões e violências da maior parte delles, ou de seus agentes
ávidos, insaciáveis, deshumanos, inexoráveis, disseminados por todas as
partes da Capitania».(3) Esse o estado de quasi todas as Capitanias,
podendo-se, mutatis mutandis, generalizar o conceito escrito pelo grande
memorialista da comarca do Serro Frio a todo o resto da América
portuguesa.
O P. Tavares, cuiabano de nascimento, foi um specimen
representativo do clero colonial, com todas as suas virtudes e defeitos,
esbatidos uns e outros pelo seu feitio individual. Filho do Capitão Bento da
Silva Tavares e dona Ana Maria de Jesus, aquele português e esta cuiabana,
tinha ele ainda quatro irmãs, que foram suas herdeiras. As de nome Teresa
Angélica da Silva (que lhe serviu de inventariante) e Maria Joaquina Seabra
conservaram-se solteiras, casando-se as outras duas com o cap. Manoel
Antonio Pires de Miranda e o capitão José da Costa Leite e Almeida (4).
Seguindo o costume da época, o primogênito do casal Tavares e único filho
varão abraçou a carreira eclesiastica, na qual deveria ascender às mais
elevadas posições, chegando ate a governar, como Vigário Geral, o bispado,
nas vacâncias determinadas pelas ausências temporais do prelado fr. José
Maria de Macerata. Ao depois pela destituição de fr. José do encargo da
Prelazia, em 1831. coube lhe a substituição, primeiro na qualidade de
Vigário Geral, e, em seguida a 23 de abril de 1832, como Vigário Capitular,
com jurisdição inteira sobre a séde vacante, por nomeação do arcebispo D.
Romualdo Antonio de Seixas (5).
Tendo assumido o governo, exerceu durante mais de ano a alta
administração da Igreja matogrossense até 2 de Junho do ano seguinte
(1933) em que o novo bispo D. José Antonio dos Reis tomou, por
procuração dada ao padre José da Silva Guimarães, posse do sólio
diocesano. Já velho e alquebrado pela enfermidade que lhe vinha corroendo
o organismo, o P. Tavares pouco sobreviveu. A 27 de novembro desse ano
dava entrada D. José na sua séde episcopal: dois dias após a 29, o P.
Tavares morria, repentinamente, de um ataque apopletico.
***
Abriu-se-lhe, em 1834, o inventário, cujos autos, já quasi
centenários, existem ainda no cartório 1º oficio orfanológico. Deles cons(3) Memórias do Districto Diamantino XXXVII, ,353.
(4) É a primeira mulher, mãe do dr. Leite Falcão pois Costa Leite, veio após casar-se com D.
Inez, filha de Bento de Toledo Piza, depois esposa de Leverger.
(5) O Thaumaturgo do Sertão, de J. Mesquita.
ta haver falecido o padre Tavares ab intestado, servindo-lhe de
inventariante sua irmã D. Teresa, tendo funcionado no processo o juiz de
órfãos e ausentes Antonio de Pádua Fleury. Expressivo como documento da
época, o arrolamento dos bens do espolio, em que figuram «25 escravos de
ambos os sexos, 17 animaes cavallares, prata e utensílios..» As
propriedades de raiz estão representadas na herança por «um engenho de
fabricar assucar, aguardente e farinha, no Abrilongo com sesmaria de meya
légua, casas de vivenda de telha e sobrado, rodantes e roda grande
conduzida com água» avaliado por 4:800$000 e mais uma outra sesmaria,
«no lugar do Rio do Prata em Sam Lourenço». Da sua cultura mental bem
pouco vêm indiciar-nos os livros da biblioteca, em numero resumido, que a
inventariante diz serem «velhos e damnificados pelos bixos» (fs. 32), entre
os quaes se acham vários volumes de sermões, o catecismo de Montpellier,
uma historia eclesiástica, um diccionario da Bíblia um jogo de breviário, o
«Enfermo assistido», o «Diretor fúnebre» e um dicionário italiano.
Concorreram-lhe á sucessão, alem das irmãs. Mariana Joaquina
Josefa de Jesus, mulher de Joaquim Mateus Murta, natural de S. José da
Caxoeira (Bahia) e Teresa Maria da Transfiguração, casada com Luiz
Rodrigues de Sampaio, ambas expostas, que surgem, em 1835, exibindo a
seu favor carta de legitimação que as habilitava ao inventário.
Sampaio, aliás, era sócio do padre Tavares no sitio do Abrilongo,
como provou com escritura junta ao inventário, tendo recebido do Vigário,
por doação, três escravos. Desse documento consta a procedência da
sesmaria, na Serra Acima, como havida «por troca com a Missão de Sant’
Ana do Sacramento, precedendo as necessárias faculdades do Governo
desta Província».
***
O padre Tavares, em 1830, se ausentou para o Abrilongo, ficando
como vigário da Chapada, donde não tardou, entretanto, a regressar a séde
da diocese.
Em Cuiabá, tinha a sua casa de morada á rua da Esperança n° 22,
com fundos no Largo da Matriz (casa n° 3), como se lê no recenseamento
de 1825, cujo precioso códice existe no Instituto Histórico.
Figuram habitando na casa, alem dele, nada menos de 27 pessôas,
das quaes cinco familiares — suas irmãs e parentes — tres agregados e
dezenove escravos.
Os dados estatísticos dão ao Provisor e Vigário Geral sessenta anos
de idade, e 58 e 56, respectivamente, as suas irmãs D.
179
180
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Teresa e Maria Joaquina. Os agregados são Constantino Pereira, de 10
annos, branco, solteiro, Benedita, parda, casada e José de Aguiar, preto,
solteiro, de 67 anos.
***
Do prestigio social do Cônego Tavares dão testemunho os elevados
cargos que exerceu no alto clero, do seu tempo: — Coadjutor da Catedral,
Vigário Geral, Promotor do Juízo eclesiástico, Vigário Capitular e professor
de Gramática latina. Foi uma das figuras representativas do seu tempo. Nele
o estudioso das cousas passadas vai encontrar, bem estereotipado, o
paradigma do clero secular que nos legou o regime colonial e que foi,
durante muitos anos, até o governo de D. Carlos, o clero de Mato-Grosso.
1931
VI
Monsenhor Vidigal em Cuiabá
Entre as figuras de maior vulto que transitaram por Mato-Grosso,
no período colonial, vale notado o padre doutor Francisco Corrêa Vidigal,
que depois, da Independência, teve conhecida e inconfundível atuação nos
negócios públicos, cabendo-lhe, como nosso primeiro Ministro
Plenipotenciário e Enviado Extraordinário junto á Santa Sé conseguir do
Papa Leão XII, o reconhecimento do Brasil como nação autônoma. O
celebre Monsenhor Vidigal, cuja personalidade mereceu a Candido Mendes
os mais rasgados encômios (1) nomeado com minúcias biográficas, na
Memória da fundação da Igreja de São Sebastião primeira Matriz que teve
a cidade do Rio do Janeiro (2) foi, inegavelmente, no clero do 1° reinado,
nome dos mais prestigiosos e cheios de serviços á grei brasileira.
Nascido em 1761, no Rio de Janeiro — não como erroneamente
afirma Candido Mendes, na província homônima, o que claramente se vê da
portaria a que adiante aludiremos — era bacharel em cânones e titular da
Ordem de Cristo e da do Cruzeiro, havendo servido como Provisor do
Bispado antes, de, em 1824 criar-se a Legação de Roma, na qual se
conservou até ser pela Regência exonerado em 1831.
Foi Deputado e Senador pela província do Rio de Janeiro, tomando
assento na Câmara temporária e, pela morte do Bispo D. José Caetano da
Silva Coutinho, em 1833 (3) governou o Bispado, como Vigário Capitular,
eleito pelo Cabido, até o seu falecimento, a 27 de Janeiro de 1838.
***
Nenhum dos biógrafos de Monsenhor Vidigal refere a sua
passagem pela então Capitania de Mato-Grosso, na qual lhe coube
desempenhar as funções de Promotor do juízo eclesiástico da vila de
Cuiabá.
Acidentalmente, no constante manuseio dos nossos alfarrábios, me
caiu sob os olhos a Provisão de 11 de Dezembro de 1793 do
181
182
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Bispo D. José Joaquim Justiano Mascarenhas Castel Branco, registrada em
antiqüíssimo Livro de Provisoens que abrange o período de 1787 a 1808, a
fs. 47. Essa Provisão foi apresentada ao “Cumpra-se” do Vigário Geral
Agostinho Luiz Gularte Pereira em dias de Dezembro de 1794 (1)
mandando o Vigário que corresse de 1° de Janeiro do anno seguinte.
Mais adiante a fs. 82 do mesma Livro se lê estoutra Provisão para
pregar a Evangelho em todo Bispado: “Registro de hua Provisão de S.
Excia Revma. para pregar o Evangelho em todo o Bispado o R. Doutor
Francisco Corrêa Vidiga.
Dom José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castel Branco per
mercê de Deos e da Santa Sé Apostólica Bispo do Rio de Janeiro do
Conselho de Sua Magestade Fidelíssima. Aos que a prezente Nossa
Provisão virem Saude, e Benção. Fazemos saber que atendendo Nos ao que
por sua petição retro Nos enviou a dizer o Padre Francisco Corrêa Vidigal
Presbitero secular Baxarel Formado nos Sagrados Canones: havemos por
bem de lhe conceder licença, como pela prezente Nossa Provisão lhe
concedemos por tempo de dois anos, se antes não mandarmos o contrario
para pregar a Ley Evangélica neste nosso Bispado, e nos sermoens e
panegericos que fizer, pregará sempre a doutrina sólida na forma das
Nossas Pastoraes, e findo o dito tempo de dous anos ficará esta de nenhum
vigor, e querendo a reformar no-la apresentará, e esta será apresentada ao
Reverendo Vigário da Vara respectivo, para a fazer cumprir e declarar o dia
em que ha de principiar na forma da Nossa Ordenação de quatro de
Fevereiro de mil setecentos setenta e nove. Dada nesta cidade do Rio de
Janeiro sob a Nosso Signal e selo da nossa chancelaria ao primeiro de
Março de mil setecentos noventa e seis anos e eu o Padre Manoel dos
Santos e Souza a sobscrevi
— José Bispo do Rio de Janeiro — Santos — Chancelaria — Selo
— Desta — Registro — Registradas a folhas 75 no livro 7 das Provizoens.
Rio a primeiro de Março de 1796 — Coimbra”. E em seguida, o despacho:
tação porem, das provisões aludidas induz a crer que ele aqui estivesse e,
mesmo por pouco tempo, exercesse as suas funções. Teve assim a nossa
terra a honra de ser o tablado em que ensaiou os seus primeiros passos o
ator, a quem, na história diplomática e política do Brasil, estaria reservado
um papel dos mais relevantes e decisivos.
Cuiabá, 1931 MCMXXXI
(1) C. Mendes — Direito ecclesiastico , II,700
(2) Revista do Instituto Histórico e Geographico Brasileiro II,177.
(3) A 28 de Janeiro, como se vê no «Jornal do Commercio” de 29 ou 27, como ensina a
«Memória» precitada e todos os que nella se louvaram, Teixeira de Mello inclusive.
(4) O dia já está inintelligivel.
«Cumpra-se e registre-se e comessará a correr da data deste.
Cuyabá ao primeiro de Julho de 1796 —Gularte».
Outra ainda, a fs. 82 v., dava poderes ao P. Vidigal para confessar
em toda Bispado, mandada cumprir a 29 de Julho do mesmo ano, a contar
de 1° de Junho subseqüente.
***
Nos documentos coevos, que aliás são bem poucos — duas
justificações anteriores a 1800 — não encontrei elemento que permitisse
afirmar a presença em Cuiabá do padre Vidigal. A apresen-
183
184
GENTE E COISAS DE ANTANHO
VII
Antes da Capitania
I
Os mais abstrusos projetos tem proliferado recentemente, graças à
confusão reinante, no sentido de modificar a divisão territorial do Brasil,
implicando alguns deles ou quasi todos o desaparecimento da autonomia
ou, pelo menos, da integridade de Mato-Grosso. Dir-se-ia mesmo que, no
cérebro de tais salvadores do país, o pobre e desamparado Estado central é
o responsável pelo atrazo em que jaz uma parte da sua vastíssima área e que
para obrigá-lo a tomar o ritmo do desenvolvimento natural, mister se faz
anular-lhe a independência administrativa e econômica. Não e aqui ocasião
azada a discutir-se a matéria e apurar responsabilidades vale, entretanto,
frisar a maneira de entender dos experimentados estadistas de outros
tempos, que, em pleno regime colonial, houveram por bem outorgar a
Mato-Grosso trinta anos após o descobrimento, as prerogativas de
Capitania, assignalando, nas celebres instruções ao primeiro governador, a
sua importância como «chave e propugnáculo do sertão do Brasil».
Tais considerações, de atualidade, despertam o propósito de
examinar, em ligeiro escurso, as condições de Mato-Grosso no período
ante-capitanial, que medeia entre 1718 e 1748, assunto este que, ao que
parece, não mereceu ainda estudo especial por parte dos desbravadores do
nosso Passado. É o que faremos no presente ensaio.
***
Descobertas as minas do Cuyabá, a que jurisdicção ficaram
pertencendo? Á da Capitania de S. Paulo e Minas do Ouro, constituída pela
Carta Régia de 7 de novembro de 1709, e que compreendia «todos os
territórios descobertos e povoados por Paulistas, territórios que se
desdobraram por quasi dois terço actual território nacional» (1). A sede da
capitania era a histórica vila do Carmo, hoje cidade de Mariana, que se pode
dizer assim ser a nossa primeira capital, até que, com a separação das
Capitanias
185
JOSÉ DE MESQUITA
de S. Paulo e Minas, passando esta a formar circunscripção independente,
por alvará de 1 de dezembro de 1720, mudou-se a sede do Governo para a
gloriosa Piratininga. O primeiro administrador Matogrossense foi D. Pedro
de Almeida Portugal, conde de Assumar, Capitão-General de S. Paulo e das
Minas, sob cuja jurisdicção se conservaram os territórios recém descobertos
durante mais de dois anos, ou seja do termo da fundação do primeiro núcleo
estável de população a 8 de abril de 1719, até 6 de setembro de 1721, data
em que se empossou o primeiro Governador da Capitania de S. Paulo D.
Rodrigo César de Menes.
Passou Mato-Grosso, conseguintemente à alçada da Capitania de S.
Paulo, tendo por sede do Governo a daquela Capitania que foi assim a nossa
segunda Capital.
No período de administração da Capitania de S. Paulo, foi MattoGrosso governado por quatro Capitães-Generais que, foram, alem do já
mencionado D. Rodrigo César, Antonio Caldeira da Silva Pimentel, o conde
de Sarzedas e D. Luis de Mascarenhas.
A essa lista devem accrescer-se ainda os Governadores José
Rodrigues de Oliveira, que exerceu administração interina e Gomes Freire
de Andrade, Capitão-General do Rio de Janeiro, que, em dois períodos
distinctos dirigiu a Capitania de S. Paulo.
***
D. Pedro de Almeida Portugal, tristemente celebre pela sua
actuação no motin de Vila Rica, governou a Capitania de S. Paulo e Minas
de 1717 a 1711, sendo o único capitão General das Capitanias reunidas que
administrou Mato-Grosso, sobrevindo logo o desmembramento, que
determinou ficar pertencendo exclusivamente a S. Paulo o território
matogrossense.
A 6 de setembro de 1721, tomava posse Rodrigo César, cujo
período administrativo decorre até 1727.
Sucedeu-lhe Caldeira Pimentel, 2º Capitão-General de S. Paulo, que
governou de 1727 a 1732, e teve por substituto o conde de Sarzedas.
Este ocupou por um lustro o Governo e vindo a falecer, em 1737,
em Goiás, assumiu interinamente a administração José Rodrigues de
Oliveira, a 29 de agosto 1737, permanecendo no poder ate lº de dezembro
desse ano.
Nessa data passou administrar a Capitania de S. Paulo o Conde de
Bobadela, Capitão Geral do Rio de Janeiro, em caracter interino,
transferindo-se a sede provisória da administração para aquela cidade, que
foi, dest’arte, embora temporariamente, a terceira Capital matogrossense.
Gomes Freire superintendeu a Capitania de S. Paulo durante
186
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
dois anos, passando o governo, em 1739, a D. Luiz de Mascarenhas, 4º
Capitão-General de S. Paulo, cuja fase de governo, se prolongou quasi uma
década, de 1739 a 1748.
Neste ano, pela Resolução de 9 de Maio, o governo da metrópole
criava as Capitanias independentes de Cuiabá e Goiás (l); desmembrando-as
de S. Paulo, por entender ser desnecessário que haja mais em S. Paulo
Governador com patente de General» e mandava a D. Luiz de Mascarenhas
que «se recolha para o reino na primeira frota», incumbindo a Gomes
Freire, Governador da Capitania do Rio de Janeiro que asumisse «a
administração interina dos ditos dois Governos».
Passava assim Mato-Grosso á administração interina da Capitania
do Rio de Janeiro, em que se conservou até o dia em que assumiu o governo
o 1° Governador e Capitão-Geral D. Antonio Rolim de Moura Tavares,
depois Conde de Azambuja.
Transferia-se assim mais uma vez a sede do governo para o Rio de
Janeiro, até então simples capital da Capitania do mesmo nome, pois, como
é sabido, conservou-se na Baía até 1763, a sede do Governo Geral.
A 17 de Janeiro de 1751, tomava posse em Cuiabá, o 1º Governador
da Capitania de Cuiabá e Mato-Grosso e encerrava-se a primeira fase da
nossa vida política, ou, seja, aquela em que o eixo da administração se
encontrava fora do território matogrossense, na Villa do Carmo, em S.
Paulo ou no Rio de Janeiro.
II
Duas grandes preocupações dominam o espírito dos
administradores no período colonial: — o ouro e o índio. De par com essas,
outras, secundárias, ou a elas ligadas, tal como a da abertura de estradas, em
que menos se visava a facilidade de comunicação, do que evitar os ataques
dos selvagens.
Assim e que a “estrada do sertão”, ligando Cuiabá a Goiás teve em
mira sobretudo constituir-se o remédio contra os ataques ferozes dos
paiaguás, guaicurús, caiapós, parrudos, que «desde os pantanaes do
Paraguai ate os saltos do Pardo, balisaram de cadáveres cada palmo de
terreno” — como bem pondera o douto Capistrano de Abreu (3).
Essa estrada foi aberta pelo português Antonio de Pinho e Azevedo
— um dos grandes nomes da nossa Historia colonial o qual, no amo de
1736, conforme reza a cronica barbosina, saiu «com bastante gente a abrir o
caminho para Goiaz, fomentado do Ouvidor geral o Doutor João Gonçalves
Perreira com promessas de muitos acrecentamentos».
Não precisa o cronista o mês em que partiu para leste a expedição
devassadora, podendo-se, no entanto, presumir fosse entre abril e setembro,
que é o período da «secca», o único propicio a tais entradas pelo sertão.
Cerca de um ano após voltaram; em setembro de 1737 «com
cavalarias, e gados, que forão os primeiros que nestas Minas entrarão, vindo
logo muita gente daquelas para estas de morada com a fama do MatoGrosso que já corria». (4)
Ha neste ponto manifesto engano do grande Mestre Capistrano de
Abreu em atribuir como faz a Antonio Pires de Campos a abertura da
estrada de Mato-Grosso a Goiaz, quando este valoroso sertanista, que teve
notável atuação no descobrimento das minas cuiabanas teve do governo a
incumbência de «dezisfestar» de índios o caminho que de povoado (como
era costuma designar-se a vila de. S. Paulo) ia ter as Minas de Goiaz. Ha
mesmo nesse sentido um Regimento de D. Luiz de Mascarenhas, datado da
praça de Santos a 15 de julho de 1748, sobre a maneira de agir que o
mesmo Coronel Pires de Campos deveria observar «no estabelecimento dos
Bororós» á frente dos quaes combateu o intrépido bandeirante os Caiapós
do planalto. (5)
Rodrigo César, já em 1721, por um Bando de 23 de novembro,
cogitava da abertura do «caminho para as minas do Cuiabá em direitura
pelo Certão» por «ficar mais fácil a todos o hirem, e virem com com
cavalos e cargas com mais comodidade do que até experimentão pelos rios
..» (6)
As minas de Goiaz foram descobertas em 1725, na célebre e
denodada entrepresa de que foram heroes Bartolomeu Bueno da Silva, João
Leite da Silva, Ortiz e Domingos Rodrigues do Prado, seus genros e
companheiros na aventurosa jornada de que Washington Luis nos dá
curiosa e pinturesca descrição. (7).
12 anos após já era praticado o caminho do sertão ligando as duas
futuras Capitanias de Mato-Grosso e Goiás.
***
De par com a questão das estradas, constituía preocupação do
Governo a gerrra contra o famigerado gentio paiaguá, dominador dos rios
trilhado pelas «monções» que vinham de povoado. Innumeros bândos,
ordens portarias dos governadores de S. Paulo a ela se referem, podendo-se
citar como documento expressivo Bando de 20 de setembro de l732, de
Antonio Luiz de Távora, conde Sarzedas, no qual se allude ao tremendo
assalto de 1730 em que pereceram o Ouvidor Lanhas Peixoto e uma centena
de pessoas que acompanhavam.
Nesse bando se publicava guerra, de modo que se desse «hum tal
Castigo áquelles bárbaros, que lhe sirva de terror, assim á.elles como a
todos os mais, que habitão por aquelle cer-
187
188
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
tons» e se concitava a «todas pessoas desta capitania, que quizerem a
serviço S. Mag. hindo a ditta guerra se alistem nesta cidades nas villas em
que forem moradores», prometendo que “os cativos seram repartidos pelas
pessoas, que nella entrarem. p.ª que com este interesse entrem mais
gostozos, e se empregue na ditta guerra o que lhe assistirá por parte da
fazenda Real, com toda a pólvora, balla, munições, armas e mais petrechos,
que forem necessários p.ª a dita expedição». (8)
No vol. XIII da importante coletânea dos Documentos interessantes
para a Historia e costumes de S. Paulo se encontram, sob anexo F., curiosos
informes acerca das guerras paiaguinas, que formam, por assim dizer, o
mais sério problema de administração naqueles recuados tempos.
III
Durante um período relativamente largo de quasi dois anos Cuiabá
auferiu as prerrogativas de Capital provisória da Capitania de São Paulo,
hospedando o Governador Rodrigo César.
De 16 de novembro de 1726 a 5 de junho de 1728, que tanto durou
a sua estada no arraial e vila do Bom Jesus, Rodrigo César exerceu o
governo das minas, e até fevereiro de 1728 como Governador e Capitão
General, pois somente nesse mês lhe chegou a noticia de sua substituição
por Antonio Caldeira da Silva Pimentel, já empossado desde 15 de agosto
anterior.
A Vila Real, a que foi elevado o arraial logo a 1º de janeiro
seguinte, á chegada de Governador, foi assim o centro administrativo da
imensa Capitania que se estendia por quasi todo Sul e Centro do Brasil,
pelas terras que o braço intrépido dos bandeirantes paulistas havia integrado
aos domínios da Coroa portuguesa. Da correspondência interna de Rodrigo
César se vê, entretanto, que a sua preocupação quasi exclusiva durante esse
tempo era a fiscalização dos quintos reais e outros tributos em que punha o
maior e mais decidido empenho. (9)
Sob o guante de ferro do violento Governador que, no expressivo
dizer de Washington Luiz «jamais teve um clarão que o iluminasse,
mostrando-lhe que um Capitão-General podia ser alguma cousa mais que
um arrecadador de quintos» — a pobre vila sertaneja, chegou ao ultimo
grau de miséria e de torturas, que se pode imaginar. As paginas das crônicas
relatam cenas dolorosas, como documentos vivos da resistência dos
cuiabanos de antanho. Um povo que, no seu berço, encontrou as mais rudes
e trágicas provações e a todas resistiu, levando-as heroicamente de vencida
e, durante dois séculos, tem se mantido com suas próprias forças, a-
bandonado pode-se dizer da administração central, não é possível que
sucumba ou se desencoraje, na luta pelo seu desenvolvimento.
Confiados, esperemos no futuro desta predestinada terra que
Rondon viu através «de dois séculos de luta de toda natureza» e «resistindo
a ação de todas as ambições, cada vez mais digna de si mesma». Resistiu.
Resistirá.
189
190
Abril 1933
(1) Revista do I. H. e G. de S. Paulo, XXIV, 14.
(2) A Resolução assim se exprime, não se referindo senão em sua parte final «aos confins do
Governo de MATO-GROSSO e Cuiabá».
(3) Caminhos antigos e povoamento do Brasil, pág. 71.
(4) Chronicas do Cuiabá, anos 1737.
(5) Documentos Interessantes para a Historia e Costumes de S. Paulo, XXII, 210.
(6) Idem, XII, 14.
(7) Contribuição para a Historia da Capitania de S. Paulo, na Rev. I. H. S. Paulo, VIII, 96.
(8) O vol. XX dos Docs. interessantes, pags. 243 a 306 traz a correspondência de R. César
em Cuiabá.
GENTE E COISAS DE ANTANHO
Soído na Intimidade
Á boa amiga
D. Isabel Soído
Entre os muitos ádvenas que, por circunstancias da carreira, vieram
ter a Cuiabá e aqui deitaram raizes, merece lembrado em relevo, o nome do
oficial da armada nacional Antonio Cláudio Soído. Os seus traços
biográficos, bem como a sua fé de oficio militar, se acham sintetizado, com
fidelidade nas nossas efemérides, traçadas pela dedicação de Estevão de
Mendonça. (1)
Não constitui, por tanto, o objeto deste folhetim dizer da vida
publica do ilustre espiritossantense que certou os olhos á luz da vida em
Cuiabá, no dia 12 de maio de 1889. É raro, quasi impossível, que um
homem esteja todo nas linhas mestras da sua vida, na estrutura da sua
carreira ou profissão; para se conhecer bem o indivíduo, ao contrário, mister
se faz lhe perscrutemos o âmago, analisando os dados psíquicos através do
que se diz «o homem na intimidade». Essa tendência que, na critica
literária, encontrou os seus coreus em Taine, Sainte-Beuve e outros, hoje se
generalizou a todo e qualquer estudo biográfico, originando-se dela essa
curiosa série francesa de “vidas dos homens ilustres”, postas em volumes
que já vão por muito mais de centena, verdadeiros fotos morais e
psicológicos dos biografados. Mestre no gênero, André Maurois nos deu em
Ariel o espelho fiel da alma desse enigmático Shelley, por través da
urdidura atraente de um romance, excusando se com dizer no preâmbulo,
que fazia «obra de romancista, antes que de historiador ou de critico». A
investigação dentro dos domínios do espírito, pelo exame do temperamento
e das tendências pessoais, esclarece muitas vezes melhor a biografia de um
homem, do que to-
191
JOSÉ DE MESQUITA
dos os elementos cronológicos extraídos dos arquivos. Tanto é verdade que
o homem é uma resultante do seu “eu” interior, que lhe determina a
finalidade individual ou social, e — superior ás próprias influencias do
meio, tão apregoadas por certa escola — a função que desempenhamos na
vida é um reflexo dessa operação que se processa na câmara-escura da
consciência.
***
Soído, á luz do que podemos chamar radiologia d’alma, foi um
simples, um afetivo e um bom. O seu arquivo íntimo nol-o afirma. Tive-o
em mãos, antes de rabiscar este ensaio e foi justamente a sua leitura que me
inclinou a desenhar-lhe, em ligeiro sfumato, o perfil moral.
São cartas — poucas, não chegando ao todo a trinta, — bilhetes,
fragmentos de escritos em prosa e verso. E também alguns desenhos,ou
melhor esboços, a bico de pena. (2) Em toda a sua correspondência, que se
me ensejou ler, nota-se uma dose elevada de humorismo, que parece ter
sido uma das características da sua psiquê.
Um de seus bilhetes vai datado do ‘‘Palácio dos Protectores da
Preguiça”:a outro, lhe a põe, como pós-escrito, o seguinte: “ontem passei o
dia em companhia de uma Snra. D. Dor de cabeça que só me deixou pelas 4
hs. da tarde. Que importuna mulher, e data-o do “Intermúndio, 6 de junho
de 1868”, assinando “o fantasma azul”. Agradecendo umas flores, diz em
outro recado mandar á ofertante um suspiro (flor) grande, “parece-se assim
com um ronco”, e pergunta “que cor deve ter o símbolo do ronco? Creio
que uma cor de chocolate ou semelhante. Um!... vá de roncar (aquele um!
não é numeral, é um um! que quer dizer basta disso”. Enviando á mesma
pessoa uma “Semana Ilustrada” explica havê-la ilustrado com algumas
notas. “donde se segue uma semana duplamente ilustrada...”. E continúa:
“Propagador da ilustração eu não me canso em ilustrar e é também por isso
que gosto dos sapatos lutrosos &, o que significa — lustrar dos pés á
cabeça” E termina essa cartinha, assignadas “Eu”, dizendo que aquelas
graças “talves ou com certeza insulsas” lhe saiam como “o canto de um
gaturamo de uma eça. Por efeito do dia estou triste: tomara que o ar limpe
ou se lustre.” Outro bilhetinho traz varias vezes no cabeçalho a expressão:
Bom dia e, á seguir, a explicação:”Estão os bons dias acima escritos
seguindo as curvaturas que dão ao corpo os cumprimenteiros.”, comenta,
nesse mesmo bilhete a interrupção das chuvas, “porque cá, o meu povo
fiado nela deixou-me falecer uma roça de Não me deixes. Só ficou um pé
que é de D.Mariquinhas”
192
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Numa carta do Melgaço, datada de 10 de outubro de 1865, envia ao
seu amigo José Vasco da Gama dois caixões com “açucenas do Melgaço
que se chamarão melgacinas”, “para o jardim da Sra. D. Maria” (3). Em
note bem no final dessa carta, diz Soído “Estou ficando velho a olhos vistos.
Veja se na sua botica encontra anti-velhicina, porque desejo uns globos”.
Outro bilhetinho, a lápis, conta, do mesmo local, a chegada do
“Jaurú” e termina: “Tudo jaz em paz. Nada ele traz capaz de assaz entreter
um rapaz. Dito e feito — zàz.”
Presa de ligeiro incomodo de saúde, explica, em cartinha de 23 de
Outubro de 1864, aos amigos Gama: “Aconselhou-me o medico Razão que
não saisse ao sol e, mais adiante, falando das saudades que deveriam ter
tido pela sua ausência, declara haver pensado em iludir o medico assistente,
mudando-se para a casa da família amiga...
Ora começa a sua cartinha em estilo jocoso — A todos quantos a
presente virem saúde e Bom dia — ora, galanteador e amável, termina
agradecendo, madrigalesco, umas flores “flores dão flores” ou, então, diz
que, ao recebê-las, estava lendo Lalande, no trecho em que o astrônomo
chamava a atenção para as estrelas e diz: “A Sra. chamou-me para as flores.
As estrelas são as flores do céu; ha, portanto, analogia entre umas e outras.”
Falando de um otogeonário que havia conhecido trinta anos atrás,
tem esta saída de Sterne; “hoje já deve ter morrido. Deve, porque cada um
tem obrigação de não ser egoísta e ir deixando lugar aos outros.” Fôra longe
si me pusesse a transcrever, um por um, os passos espirituosos e finos das
cartas e bilhetes de Soído. De resto, como exemplificação, o que aí fica
satisfaz. Ilustra o asserto, quanto basta.
Para referido é também o seu talento descritivo, posto de manifesto
com mais viveza numa carta de Melgaço, ao seu caro Gama, a 21 de
setembro de 1865, da qual cito o trecho que se segue: “Eu estou no Jaurú,
atracado à barranca, de fronte da igrejinha, debaixo de um pé de taruman,
que presentemente chove flores. Pela manhan os jacús de ventre cor de ouro
veem cantar nos ramos desta arvore, por cima do navio. É bonito. E o dia
hoje amanheceu bonito; mas vai esquentando e são quasi 9 horas da
manhan.” É uma bucólica, em duas ou três leves palhetadas.
***
Para concluir, direi do Soído poeta que também o foi, e mimoso.
Além de versos humorísticos — a sua feição característica — também se
revelou como lírico delicado e ainda no astro patriótico e cívico. Bem
reduzida é a bagagem poética de Soído, que consta do seu arquivo ou antes
dos papeis avulsos que me permitiram tracejar-lhe este ligeiro retrato.
Indica-lhe o autor das “Datas” os trabalhos em verso que vieram a luz do
publico: duas traduções, de Byron e Hugo e três poemetos originaes. Não
conheço nenhum desses trabalhos, que, ao que parece, tiveram mui restrita
divulgação. Mas os poucos originais existentes entre os seus autógrafos
autorizam-me a indicar-lhe a veia poética, servida por felizes qualidades
técnicas de metrificação e de ritmo. O seu estro, como alias, com relação
aos seus trabalhos em prosa já o verificamos, oferece dois aspectos
peculiares: o humorístico e o madrigalesco. A vis cômica se casa á mais
suave inspiração lírica, ás vezes na mesma producção. Assim, nestes versos.
***
Não é só, porem, sob esse feitio que Soído interessa e prende, como
documento humano. A sua cultura clássica transparece nas citações e
referendas que pontilham aqui e ali os seus escritos. Numa carta fala da
Farsália, de Lucano, e diz “e por ai fará idéia da antiguidade da existência
de sentimentos nos homens, que até hoje durão e hão de durar.” Erudito,
sem pedantismo, não perde ocasião de incutir, sob forma delicada,
ensinamentos úteis nas cartas e recados que envia, com freqüência, à D.
Mariquinhas — que é como chamava a filha do velho Gama. Ao oferecerlhe umas tâmaras, um pedaço de mármore ou qualquer outro mimo, discorre
singelamente sobre a procedência do presente.
A chuva:
Em versos
Direi
O que
Com a chuva
Dizer
Eu não sei
A ave com a chuva encolhe as azas
E o velho tirita e pede brazas.
Estou, qual ave, encolhido.
E num coração metido.
Para oferecer á D. Mariquinhas uma quarta de carvão, so-
193
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GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
corre-se delicadamente destas quadrinhas que transformam o prosaico
presente num mimo de artista:
No gênero puramente humorístico são ainda notáveis os versinhos
“Melindres” e as oitavas, em metro camonianos, “Byzron e a cachaça” que
assim terminam:
Quando, senhora, vos envio, ou dou-vos
Tão escuro presente,
Que idéia tive eu, que pensamento
Me atravessou a mente?
Tantos dotes, e a força da cachaça.
A todos destruía juntamente!
Porque a beleza já tirava a graça,
Nulificava a do metal luzente,
Empanava-lhe o gênio e a ilustre raça,
E tornava o inglês um descontente.
Tanto pode, ó cachaça, a força tua!...
Mas em Byron também andava a lua...
De vegetal combusto oferecer-vos
Pulvurulenta quarta...
Mas deixae-me falar, e, após, senhora,
Ride até ficar farta.
A musa cívica não deixou também de inspirar-lhe versos dignos de
menção, e destes citarei o apelo “Ás armas!” por ocasião da deflagração da
guerra com o Lopes:
D’agua do mar enjoativa, amarga,
Estrai o sol a chuva tão querida;
Em seu laboratório a terra muda
O vil adubo em condição de vida;
Brasileiros! ás armas, ás armas,
Já o grito de guerra soou! ...
Contra nós de inimigos traidores
O canhão homicida troou!
A arte humana, sombra da divina.
Também transforma escorias num tesouro.
E vós, que a possuis em alta escala.
Podeis mudar esse carvão em ouro.
Cuiabá, 17 de Junho de 1865.
A sua arte lírica sabia, de modo incomparável, tirar dos motivos
mais frívolos e corriqueiros elevadas emoções poéticas. Os seus versos
possuem, indubitavelmente, os attibutos da véra poesia, que Bilac
condensou naquele pensamento: “a força e a graça na simplicidade” — toda
uma arte Poética em sete palavras... Expressivas no gênero, as seguintes
quintilhas de rematado sabor clássico desde o seu titulo: Por ocasião de
receber umas folhas seccas, em presente:
Folhas de rosada flor.
Qu’importa que sem verdor
A morte symbollseis.
Se mesmo assim me dizeis
Que ela se lembra de mim.
Secas como estaes servis,
Pois a lembrança exprimis,
E mais cheia de saudade
Do que verdes a beldade
Realçando de uma flor
Nosso forte tomado já foi
A despeito da fúria dos bravos.
Brasileiros, a morte é mais bela
Do que ver vencedores escravos.
Que dirá todo o mundo sabendo
Que fugimos do nosso agressor?
Saiba o mundo si formos batidos,
Que mostramos coragem, valor.
***
Até pelos domínios do teatro, pouco palmilhados, incursionou o
talento de Cláudio Soído. Encontrei-lhe entre os alfarrábios, uma cena de
comédia. Verdade que ainda aqui a influência da sua doce Musa cuiabana, a
D. Mariquinhas, transparece. É o chiste do seu espírito, sempre bemhumorado, explorando uma cena trivial e quotidiana da sua vida;
CENA IV
— Ora, bom dia, como estão? (oiço arrastado de chinelos, é a D.
Ana):
25 de Outubro 1864
195
— Boa, Vmce. como está.
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GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
— Ora, viva!... então onde vae? ... (É a D. Mariquinhas.)
— Bom dia, Sr. Inspetor... (com voz rouca, dubia, ou duvidosa no
som. É o senr. José Juca.)
— Ilustríssimo etc, etc, etc. (é o Snr. Gama.)
(O drama não continua aqui.)
***
De par com cartas, versos e outros fragmentos, ha, no arquivo de
Soído, notas curiosas de estudos, principalmente geográficos, o que leva a
presumir fossem feitos para ministrar ensinamentos a outra pessoa, quiçá á
sua meiga Musa... Ha mesmo uma interessante redução cartográfica da
América do Sul, «feita de cabeça e por isso muito errado», como ele mesmo
o declara á margem. Garatujas várias, alguns desenhos, completam a
interessante coleção soídina que me proporcionou horas de enlevo espiritual
e derivativo amável nestes dias pesados e escuros...
A sua pessoa reflora, exsurge, revive através dessas folhas volantes,
a que o tempo emprestou, com seus tons de velho marfim, o prestigio suave
da ancianidade. Fácil é evocar-lhe o espírito alegre, delicado, amorável, que
ai perpassa nessas páginas características e definidoras das suas tendências
intimas. Galanteador, mas respeitoso, bem imaginamos o que teria sido o
seu discreto idílio com a filha do «amigo snr. Gama», naquelas eras
distantes em que o amor vestia casaca e tecia madrigais delicados. Hoje, usa
trajos quasi de cupido, charlestonêa e vive a se exibir nos cinemas e nos
convescotes, de tal maneira que, si ao nosso caro Soído lhe fosse dado revir
ao mundo, não só lhe fôra difícil (senão talvêz impossível, achar outra D.
Mariquinhas, mas ainda a sua impressão seria aquela com que Machado de
Assis pinta o espanto de Alcebíades diante da indumentária moderna. Era
capaz de, como o formoso ateniense, morrer de estarrecimento, pela
segunda vêz, do que Deus o livre e também a nós, leitor amigo, que ainda
não desejamos fazê-lo, por ora, nem pela primeira...
Cuiabá, Outubro, MCMXXXII.
(1) Datas Matogrossenses, I, 252.
(2) Parte desse arquivo se acha na Biblioteca Publica, seção de Manuscrito paterno Instituto
Histórico, ambas por oferta de Estevão de Mendonça.
(3) D. Maria Justina da Gama, filha de José Vasco da Gama, que foi muito tempo professora
e a nossa geração já alcançou em avançada idade.
197
II
Neurose e Talento
Luis Serra
A leitura que acabo de fazer, de um livro interessantíssimo, em que
Luis Lamego estuda casos de nosografia na historia e na literatura (1), me
dispôs a coordenar e enformar umas notas avulsas que, de ha tempos, venho
coligindo acerca de uma figura curiosa e ainda não devidamente estudada
— a do dr. Luis Serra.
D. Luis, como era mais conhecido pelos da sua geração, foi bem um
tipo do neurosado de talento, possuindo, em doses iguaes, a inteligência
lúcida dos privilegiados e o desequilíbrio perturbador dos psicopatas. O seu
espírito oferecia assim essa duplicidade lunar, que faz surpreza dos
observadores, com a face luminosa, límpida e serena, contrasteando a outra
envolta na penumbra impenetrável da semi-demência...
Portador de taras evidentes, na sua linhagem materna pode-se
apontar, como índice bem expressivo, o caso de Antonio Navarro de Abreu
(o 2°), espírito brilhante e organização impetuosa de tribuno, que depois, de
uma excursão triunfal pelo Parlamento, com larga projeção nos debates da
Maioridade, em 1840, veio a se obumbrar tristemente nos muros sombrios
de um manicômio (2).
Agravou, talvez, os males de herança com uma vida um tanto
irregular, que se não poderia dizer boêmia, pois justamente lhe faltou esse
pendor comunicativo, que faz o discípulo de Rodolfo, na lenda mürgeriana,
sendo, ao invés, Luis Serra, um esquisitão, um solitário, quasi mesmo um
casmurro, na interpretação do nosso Machado de Assis.
198
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Desgostos íntimos, inadatação ambiente, desiquilibrio entre o ideal
e a realidade — seja o que for,deve ter contribuído para fazer do talentoso
cuiabano, que deixou na Paulicéa uma fama lisonjeira e a um nome ainda
ate ha pouco lembrado, um triste especimen de doente mental, cem
acentuada psicose heterotóxica si não determinada, agravada pelo
alcoolismo maléfico e destrutor.
E desta maneira, um formoso espírito, destinado a brilhante,
carreira, cheio de esperanças, se eclipsou, lúgubremente, em plena e
meridional ascenção, vindo a ter o inesperado epílogo de uma grade de
célula, na Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá, donde, ha 30 anos, se
evolou para o Mistério indevassável.
Feitos os seus estudos primários, seguiu para S. Paulo, onde no ano
de 1894, colou grau de bacharel em direito, constando-lhe o nome entre os
formados nesse ano, na relação que vem publicada no excelente livro de
Spencer Vampré «Memórias da Academia de S. Paulo. (5)
Da sua passagem pela tradicional Faculdade ouvi referenda a mais
de um contemporâneo seu, quando por lá andei entre 1909 e 1913, mas
quero deixar apenas consignado aqui o testemunho de um condiscípulo de
Serra, o meu prezado amigo e confrade Antonio Tolentino de Almeida; que
me forneceu alguns apreciáveis subsídios a cerca do malogrado cuiabano.
Destacou-se Luis Serra, com relevo acentuado, entre os seus
temporaneos de Escola, na velha e tradicional Faculdade paulista. Teve
marcada projeção na imprensa acadêmica. Colaborou em diários da Capital
piratiningana, chegando mesmo a ser um dos redatores do conceituado
órgão. “O Estado de S. Paulo” então dirigido por Julio de Mesquita.
Foi como estudante, redator das atas do Senado Paulista, cargo este
creado naquela época e por ele conquistado em brilhante concurso. Privou
com varias figuras do escol inteletual da Paulicéa, tendo sido seu grande
amigo o dr. Ezequiel Ramos nome muito conhecido nos meios intelectuais
e políticos daquele tempo.
Formado, regressou à terra natal, onde chegou em Outubro de 1894.
Um dos jornais da época assim noticia o seu regresso:
«Dr. Luiz Serra — Acha-se nesta capital o nosso talentoso
conterrâneo Dr. Luiz Serra, recentemente formado pela faculdade de direito
de S. Paulo.
Visitamo-lo, desejando que da carreira que pretende encetar lhe
venha a maior soma de felicidade.» (6)
Onde ficaram os votos do jornalista? Em pura e simples expressão
de cordialidade, que os acontecimentos desmentiram.
A carreira reservava a Luis Serra agras decepções. Em chegando, já
não encontrou o seu lar florido das alegrias de outrora e sim ensombrado de
luto e de tristeza. Morrerá-lhe o pae, deixando a família pobre e sem outro
amparo que não fosse a bondosa acolhida da avó materna, a boa «mãe
grande», D. Constança, viúva do dr. Leite Falcão. A irmã mais velha,
casada com um primo talentoso mas desregrado, Pedro Gaudie Ley, viria a
ter uma vida de cruciante martírio. D. Luis via tudo isso e, naturalmente, o
seu intimo sensível de neuropata hereditário se resentira de tais golpes.
Entrou, resolutamente a trabalhar. Escreveu para os jornaes, mantendo a
mesma fama já grangeada a quando estudante.
***
O livro n.18 de assentos de batismo da paróquia da Sede de Cuiabá
traz, a fs. o seguinte registro: «Aos dois dias do mês de Fevereiro de mil
oitocentos e setenta, na Matriz do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, o cura João
Leocádio da Rocha batizou solenemente Luiz de cinco meses e meio de
idade, filho legitimo de Antonio Moreira Serra e Georgina Leite Serra.
Foram seus padrinhos José da Costa Leite e D. Constancia Gaudie Leite. E
para constar lavrou-se este assento, assignado do meu punho. O vigário
Cura João Leocádio da Rocha.» (3)
Pelo lado paterno descendia, em 2º grau, do Sargento-mór, Antonio
Joaquim Moreira Serra, português, uma das vitimas da “Rusga”, em 1834 e
pelo materno do Capitão-mór André Gaudie Ley, figura primacial da
sociedade cuiabana do primeiro quartel do século XIX.
Teve o seu pai, Antonio Moreira Serra mais três filhas, sendo duas
do mesmo casamento e a terceira, de segundas núpcias — Constança que se
consorciou com Pedro Gaudie Ley (4), Zulmira casada com Januário
Mendes e Inês, que desposou Manoel Deschamps Cavalcanti.
Sendo o único filho homem é natural que em Luis Serra se
concentrassem os carinhos e esperanças da família, tanto mais justificados
pelo seu todo mimoso e pela sua viva inteligência, já no cedo revelada.
Um grupo fotográfico tirado em 1884, na cidade de Montevidéu,
em que aparece Luis Serra ao lado do pai, da madrasta, e da irmã mais
velha, nos evidencia ter sido o jovem Serra portador de um físico insinuante
e de feições expressivas com allure de verdadeiro príncipe, donde, talvez, o
designativo familiar de D. Luis com que veio a ser conhecido geralmente.
199
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GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Chegou a ser diretor d’ “O Matto Grosso”, o decano da nossa
imprensa, e, da “Gazeta Oficial”.
Secretário do presidente Murtinho, o grande organizador de Mato
Grosso, no inicio do regime republicano, Luis Serra ocupou também os
cargos do Promotor da Justiça da capital e inteiramente o de Procurador
Geral do Estado (7), entre 1901 e 1902. Já então se manifestara, em clara
diagnose, terrível mal que o deveria abater. Em Corumbá teve o primeiro
grave insulto, que o deixou hemiplégico. Continuou, entretanto,
trabalhando. Esteve, já doente, no sitio da Quitanda (Rosário-Oeste) em
busca de repouso e melhoras. Sem resultado apreciável, tentou ainda uma
viagem ao sul, internando-se algum tempo na casa da saúde do Dr. João A.
Josetti, em Porto Alegre, donde seguiu para S. Paulo, voltando, afinal para
Cuiabá, sem melhor êxito em suas tentativas. O mal era profundo,
constitucional. A maquina do cérebro entrara a funcionar irregularmente.
Tomara-se de manias, a qual mais extravagante. Ora a mania depressiva,
que o fazia ficar isolado, silencioso, repelindo todo e qualquer contacto
humano; ora a mania das grandezas, que o punha em agitação a clamar os
seus grandes e desconhecidos merecimentos; ora finalmente, a erotomania,
a psicose do amor platônico que o trouxe apaixonado até a morte por
distinta conterrânea, possuidora de raros dotes, com quem todavia, se
impossibilitará o enlace, a principio também por ela desejado.
E crise sobre crise, foram os seus parentes compelidos a internal-o
no Hospital da Santa Casa de Misericórdia, onde teve entrada, como consta
dos respectivos assentamentos, a 22 de Junho
de 1902, vindo ali a falecer a 19 de Janeiro de 1904, aos 33 anos de
idade.
É este o teor do assentamento do óbito, que, de maneira tão lúgubre,
encerrou, precocemente, aquela vida iniciada sob as mais belas esperanças;
«Aos dezenove dias do mês de Janeiro de mil novecentos e quatro, neste
primeiro distrito de Paz, município de Cuiabá, Capital do Estado de MatoGrosso, foi exibido, o atestado médico passado pelo Dr. Augusto Novis, de
que faleceu ontem no Hospital da Santa Casa de Misericórdia, vitima de
congestão cerebral, o Dr. Luis Serra, natural deste Estado, solteiro, com
trinta e três anos de idade. Do que para constar, faço este termo».
***
Posto fuja algum tanto á natureza desta secção, seria curioso
percutir, num ensaio de nosografia, o caracter do morbo que feriu e vitimou
o talentoso cuiabano, em plena florescência da vida.
Pelas descrições de pessoas que com ele conviveram e observação
que me foi dado fazer, tenho por quasi certo que Luis
Serra foi um doente de paralisia geral, a tremenda enfermidade que Bayle
denominára arachnitis, a demência paralítica, de Krafft—Ebing, cujas teias
envolvem lentamente — verdadeira aranha — não só as faculdades
psíquicas e motoras das suas vitimas, como todo o seu organismo.
De etiologia complicada, de incerta cura, até bem pouco tempo,
hoje graças ao processo de nosoterapia encontrou na inoculação palúdica
procurada o seu remédio salvador.
Luís Serra tinha toda a sintomatologia que caracteriza os casos de
paralisia geral progressiva: perversão do senso moral, com a
preponderância do egoísmo sobre o altruísmo (8); crises a assicas
epiletiformes; aquele mixto de psiquia e carnalismo, que Neve-Manta
aponta em Paulo Barreto, como em Wilde (9) perturbações no aparelho
motor, e catatonia, seguida na ultima as de ataxia; demência manifestada de
forma evidente, culminando na caquexia final.
Vi-o, já nesse doloroso estado — e é esta uma recordação pungente
da minha adolescência — magro, feio, acabado, semblante idiotizado, físico
reduzido a uma triste múmia, dentro da macabra moldura de uma grade de
célula.
Parece vê-lo ainda. Não falava, dava gritos entrecortados. Todo
aquele brilho da inteligência que antes lhe irradiava do olhar e da palavra,
era ali uma dolorosa expressão de resmungo, de mal articulados guinchos,
quasi animalescos.
A formidável peri-ence falominingite havia feito de um jovem
cheio de beleza e de talento, a quem a mocidade sorrira com as suas mais
fagueiras graças, um triste mulambo, uma tapera humana, entregue ao
malassombro das visões aterrorizantes da loucura... Triste e amarga lição,
aos que ainda se deixam arrastar pela fugace embriaguez das ambições e
das vaidades.
Abril, MCMXXXIV.
201
202
(1) L Lamego — Os nevrosados na historia e na Literatura, ed. Alba, Rio.
(2) Antonio Navarro era filho de D. Maria Tereza Caldas, irman de D. Maria de Alvim
Poupino, bisavô de Luis Serra, ambas irmans do celebre João Poupino Caldas.
(3) Luis Serra nascera a 19 de Agosto do ano anterior, segundo informação fidedigna de sua
irman D. Zulmira Serra Mendes.
(4) A este se refere o folhetim n. VII desta serie «Artistas ignorados».
(5) Op cit. fl. 775.
(6) O Clarim de 11 de outubro de 1894.
(7) O compromisso de Promotor é datado de 16 de Abril de 1901 e o de P. Geral de 18 de
Janeiro de 1902 (Livro de compromissos fs. 10 v. e 21).
(8) Prof. Henrique Roxo manual de Psychiatria 2ª ed. Pag. 472.
(9) A Arte e a neurose de João do Rio pag. 43 da 2ª. ed.
GENTE E COISAS DE ANTANHO
III
O Doutor Cintra
Entre tantos nomes que andam por aí esquecidos, apenas uma que
outra vez evocados, em referências acidentais, vale lembrado, nesta secção
que se destina a reviver o que se foi, o do bacharel José Ricardo Pinheiro de
Ulhoa Cintra, o doutor Cintra, como se fez conhecido entre nós. Veio-me à
lembrança o seu nome, ha pouco tempo, em recebendo do meu dileto amigo
e operoso confrade Ari Martins, a interessante memória de sua autoria
Poetas do Rio Grande do Sul, apresentada ao III Congresso Sulriograndense de Historia e Geografia, comemorativo do bi-centenário de
Porto Alegre. Porque Cintra era gaúcho, e a omissão do seu nome na
minudente e valiosa monografia com que Ari Martins opulenta o seu já
vasto acervo litero-bibliográfico só se explica pela circunstância de haver
ele se ausentado da sua terra ainda muito jovem — aos 19 anos e não mais
regressado ao rincão natal. Foi seu berço a histórica cidade de Caçapava,
onde viu a luz no dia 8 de agosto de 1837, filho legitimo de José Pinheiro
de Ulhôa Cintra e D. Ricarda Elisêo de Ulhôa Cintra. Da justificação de
estado livre que fez, para contrair matrimonio em Cuiabá, consta ser
“natural da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul”, filho dos sobre
ditos, e que se retirou dali para S. Paulo, a fim de continuar os seus estudos,
em 1856. (1) Formou-se pela tradicional Faculdade de Direito de São Paulo,
na turma de 1863, como se vê pela relação dos bacharéis dessa Escola
constante das Memórias para a Historia da Academia de São Paulo de
Spencer Vampré. (2). Almeida Nogueira, no seu interessante Tradições e
reminiscências, alude a um Delfino Pinheiro de Ulhôa Cintra, que entrou
para a Academia em 1854, e que deve ser irmão do nosso biografado
“político de notável descortino, e espírito chistoso, que não poupava a si
próprio, em remoques cintilan203
JOSÉ DE MESQUITA
tes,” no dizer de Vampré. (3) Diplomado, seguiu, no ano imediato, para a
Corte — é ainda a justificação de 1873 que nos vai orientando — donde,
três anos após, em 1867, veio para Mato-Grosso, feito oficial de gabinete do
presidente Couto de Magalhães. Segundo o depoimento de Estevão de
Mendonça, exerceu, ainda, em Cuiabá, os cargos de membro da junta
militar, promotor público e procurador fiscal da Tesouraria da Fazenda.
Casou-se com Raquel Ramos, filha do tenente da armada nacional
Antonio Joaquim Ferreira Ramos, natural de Pernambuco, e d. Antonia de
Cerqueira Caldas, esta irmã do Barão de Diamantino, em cuja casa foi
criada, e efetuou-se o seu enlace (4). O mesmo ano de 1873, que lhe
descerrou o tálamo, risonho, nos seus primeiros dias, estava destinado a
abrir-lhe, nos derradeiros momentos, o tumulo, na distante Diamantino,
para onde seguira pouco antes, a serviço duma companhia de mineração.
Contraiu ali violenta enfermidade e, baldo de recursos, sucumbia, a 24 de
dezembro — vésperas alegres de Natal, para ele tão sinistras — tendo
apenas 36 anos de idade.
***
Uma figura interessante e digna de estudo, em função do meio em
que viveu, este Dr. Cintra. Político, sofreu violenta, campanha, devido à sua
lealdade para com o amigo que o acolhera e a quem devia a sua vinda para
a nossa terra — o grande Couto de Magalhães. Filiado ao partido liberal,
fez parte da redação d’ “O Popular”, jornal fundado em 1868, por Manoel
Teixeira Coêlho. Nessa folha produzia uma veemente defesa de Couto de
Magalhães, quando daqui se retirou, a 28 de dezembro de 1868, em
companhia do chefe liberal Barão de Aguapeí. A Situação, órgão
conservador, noticiou, em sua edição de 3 de janeiro seguinte, sob o titulo
Partida, o seu embarque para a Corte, nos seguintes termos: “No dia 28 do
mês de Dezembro próximo passado, partiu para a Corte do Rio de Janeiro o
sr. Barão de Aguapehy chefe do partido liberal, levando em sua companhia
o bacharel José Ricardo Pinheiro de Ulhôa Cintra, que diz ser conservador
no Rio e liberal exaltado em Mato-Grosso. Deus que lhe dê juízo”.
E logo na tiragem de 10 do mesmo mês, em longo editorial,
respondendo a um artigo de Cintra, n’ “O Popular” a folha conservadora
atribuía a sua atitude ao desejo que tinha de ser deputado geral, como
candidato apresentado ao Barão pelo sr. Couto de Magalhães. A
candidatura não vingou, tendo havido a queda dos liberais, em 1866, e
Cintra, por ser leal aos seus chefes, se viu destituído das funções que
exercia, passando a viver da sua profissão de advogado. A sua situação,
incompatibilizado com os
204
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
diretores da politica e mandões do momento, se tomou precária. A prova
disso temos em que o Liberal, em 1873, lhe arrolava o nome entre os
devedores da Fazenda, como coletado que ficou devendo o imposto pessoal
relativo aos exercícios 1869-70, pela quantia de 6$000! (5)
Poeta delicado, de rara inspiração, as suas produções andam por ai
esparsas pelos periódicos da época e bem poucas lograram fazer-se
conhecidas e tiveram a divulgação que mereciam. Estevão de Mendonça
refere o fato lamentável de haverem se extraviado os dois volumes de
poesias manuscritas que Cintra deixou e que a sua viúva entregou ao
jornalista Ramiro de Carvalho. A sua musa tanto tangia a lira delicada do
subjetivismo amoroso, como a harpa vibrante das altas inspirações cívicas.
Era um emotivo e um bom. Queria muito a Mato Grosso, mas jamais se
esqueceu dos seus amados pagos, aos quais assim se referia:
pedras a todo sol que tomba. Da sua obra poética — nada, quasi nada, se
conservou. Do seu enlace, nenhum rebento para perpetuar-lhe a estirpe. Os
filhos do seu espírito — perderam-se, diluindo-se através de pseudônimos
irreconhecíveis. Sua esposa deixou descendência, havida, porém, de outro
leito. E, assim, no ocaso merencório, o nome de Cintra se apaga, naquele
tristonho fundo de vale, por onde soluça a sua endeixa eterna o velho
Ribeirão de Ouro, prefadado para receber-lhe o último alento. Sombrio,
melancólico destino de poeta — a que os fados deram como quinhão
amargo e glorioso, essa mesma sorte do grande cantor de Natercia.
Eu, porém, nasci nos plainos
aonde e ema ligeira
em triumphante carreira
vence o rápido bagual,
aonde os campos se curvão
sob a frigida geada.
e amarelece a esplanada
na dura quadra hibernal.
.... ..... ...... ..... ..... .....
Na terra que o minuano
com o seu sopro algente beija
e aonde a uva loureja
à luz fecunda do sol,
.... ..... ...... ..... ..... .....
Na terra, aonde o campeiro
rodeio parando ao gado
passa a galope o banhado
e a lomba sobe a cantar.
conde no frio inverno,
em roda do fogareiro,
corro o riate o dia inteiro
e o pinhão vê-se estalar.
“o gênio sem ventura e o amor sem brilho”.
(Fev.º MCMXLI)
(1) Em justificação foi requerida a 30 de dezembro de 1872, havendo um evidente equivoco
da parte de nosso douto efemerista Estevão de Mendonça ao dar seu casamento como
realizado em 1871, quando só se deu em 1873 (Datas II, 358). Foram testemunhas na
justificação os Drs. Jose Marcelino de Araújo Ledovega e Antonio Gonçalves de Carvalho e
David Mayer.
(2) Ob cit. II vol. 770
(3) Ob cit. I. 162.
(4) Ver “Nobiliário Matogrossense” de J. Mesquita, titulo «Diamantino» cap. VI. §3º Raquel
nasceu a 10-6-1857, tendo-se casado com 13 anos.
(5) O Liberal de 17-7-73.
***
Sombrio, melancólico destino o do poeta... Cintra foi
incompreendido. O meio ingrato e mau não concebia a delicadeza dos seus
sentimentos de gratidão. Hostilizado, viu-se ferido pelos próprios amigos da
véspera, os eternos abissínios, que lançam
205
206
GENTE E COISAS DE ANTANHO
IV
Cartas de Beaurepaire Rohan
A Affonso de Escragnolle Taunay
Mestre Amigo
Bem modesta e resumida é a secção de manuscritos do nosso ainda
incipiente Arquivo Publico. Ainda assim, já possue algo de interessante e
apreciável, e entre outras preciosidades, fui lhe encontrar, dias atrás, uma
coleção de cartas autografas de Henrique de Beaurepaire Rohan a Augusto
Leverger.
Ao tempo em que tal correspondência se entretinha, nem um nem
outro daqueles grandes vultos do Império, possuía ainda o titulo heráldico
com que deveriam brilhar nas paginas do nobiliário nacional, um como
Visconde do mesmo nome e outro como Barão de Melgaço, ambos com
grandeza (1). Pena é que se não possa cotejar a correspondência que a
Beaurepaire dirigia Leveger, ficando assim o exame limitado a uma das
faces apenas da epistolografia daqueles dois grandes amigos da terra
matogrossense. São quinze as missivas de Rohan, alem de dois fragmentos,
sem data, que deveriam fazer parte de alguma carta extraviada. Ofertou-as á
Biblioteca Publica o seu primeiro Diretor, o incansável levergeriano
Estevão de Mendonça. A mais antiga delas datada de 6 dezembro de 1855,
foi escrita na capital do Paraná a mais recente, do Rio, traz data de 13 de
Janeiro de 1870, medeando assim todo um período de quinze anos nessa
amável correspondência. Ignoro se ela prosseguiu ainda até a morte de
Leverger, ocorrida dez anos apos a ultima letra de Rohan e também si não
teria iniciado anteriormente á primeira daquelas cartas, como tudo leva a
crer, pois Beaurepaire se retirou de Cuiabá quasi dez anos antes — vale
dizer em 1846 (2). O que é certo, e isso nos basta, é que através quin207
JOSÉ DE MESQUITA
ze cartas transluz ao vivo a cordial afeição que ligava um ao outro os dois
egrégios servidores da Pátria, aos quais mais de um ponto de afinidade
aproximava e prendia. De feito, franceses ambos, um de origem, outro de
filiação, militares os dois, um de mar e outro de terra, mais do que essas
circunstancias os identificam os mesmos pendores mentais pelos estudos
históricos e geográficos, e o culto devotado ao Brasil e à monarquia, na
pessoa do seu augusto imperante. Pertenciam um e outro ao Instituto
Histórico, a benemérita sociedade, hoje vesperando seu centenário glorioso,
mas aquele tempo novel ainda, posto já prestigiosa a credora da estima e
respeito dos coevos.
Varias das cartas de Rohan discorrem sobre a remessa da ‘‘Revista
trimensal” ao confrade de Mato-Grosso.
Assim, em 21 de junho de 1860, cientificava ao Barão haver
enviado por Celestino (3) parte das revistas, e outras pelo Doutor Couto (4),
e 2 de Setembro do mesmo ano, por Peixoto (5) remete novas Revistas e o
1° volume da 2ª parte do Jaboatão. Em 1861, pelo alferes Claudino e em
1862, por intermédio do enteado, Francisco Manoel das Chagas, alude
Rohan a novas remessas da revista ao amigo distante, a quem não cessa,
sempre, por outro lado, de trazer a corrente do que se dava com respeito as
associações de estudos então existentes no Rio. A 21 de junho de 1860,
referindo-se ‘‘Velosiana’’, diz achar-se a mesma toscanejando sempre —
“someile depuis longtemps” — o que ele atribue á ausência de Freire
Alemão “qui en etait l’ame”, e que se achava ausente, numa comissão
técnica. Quanto á Sociedade de Estatística — diz, com chiste, na mesma
carta — quasi desapareceu já da estatística das sociedades, conforme lho
informara o Burlamaqui.
De par com tais notícias, Rohan sugere a Leverger a publicação dos
seus trabalhos sobre Mato-Grosso: “farieis um serviço real comunicando ao
Instituto vossas pesquizas (Votres recherches) sobre Mato-Grosso” (6);
lembra-lhe a remessa a Burlamaqui de objetos para o museu — metais,
pedras, etc. (7); fala dos seus trabalhos em preparo, como a carta do Rio
Paraguai, litografada, aonde lhe trocam Piúva por Paiva (8); a lista dos
animais e vegetais de Mato Grosso, que promete enviar ao amigo, após as
necessárias correções de Bompland e Riedel (9); a “Breve discussão
cronológica sobre a descoberta do Brasil” e a “Synopsis genealógica,
cronológica e histórica dos reis de Portugal e Imperadores do Brasil” (10) e
o seu trabalho léxico que veio a condensar-se no Dicionário de vocábulos
brasileiros”, de que dá a Leverger curiosa explicação (11).
O plano do dicionário consistia, a seu ver, em dar apenas a
significação do termo, e a etimologia, quando conhecida. E exem-
208
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
plificava: cururú — nome túpico do sapo. Em Cuiabá designam com esse
nome uma espécie de batuque, que tem analogia com o Revira do Pará e o
Samba de Pernambuco.
Caixa — em Mato-Grosso, o mesmo que Sangradouro.
Mas ao diante, fala em outro vocabulário de nomes “barbares,
grívois et burles ques” do Brasil e pede a Melgaço alguns subsídios sobre
palavras e expressões de Mato-Grosso (12).
O seu interesse pela grande Província central não se limita ás
pesquisas e ensaios, de que deixou farta messe, que não vem aqui a pelo
mencionar. Vai muito alem. Quando o governo vai ter ás mãos de
Herculano Ferreira Pena, ele se dá pressa em informar a Leverger,
alviçareiro, que “Ferreira Pena est un barve homme, et tres exercé en
administration” (13). Com satisfação comunica a Leverger a comissão com
que fora este distinguido pelo governo de fazer correções á carta de MatoGrosso (14), e, logo depois do início da guerra, manifesta a apreensão
causada entre os amigos pelo boato de que Leverger havia caído prisioneiro
dos paraguaios, no rio Apa. E diz: “Escrevei-me. Fazei que o mais depressa
possível eu possa provar que tive razão de não querer ser crédulo” — “que
j’ai raison de ne pas vouloir être crédule.” (15). Pergunta por amigos
comuns, manda lembranças a outros: aqui é o velho Lousada, que não
escreve desde a sua volta a Cuiabá, mas adiante é o caro Murtinho, a quem
Rohan muito se afeiçoára e lhe envia “bien de choses.” (16).
O seu absoluto desinteresse pela política aparece evidente em mais
de um passo da correspondência. “Quanto á politica, a dizer vos verdade,
não a compreendo” — je ne la comprends paz (17). Em 1861 comunica ao
companheiro a sua resolução de construir uma casinha em Sete Pontes, seu
sitio, onde vai residir, visto que “na cidade as despesas são muitas para que
as possa suportar”. (18). Dois anos depois, já estabelecido em Sete Pontes
declara em carta escrita do Rio, “j’ignore l’etat des affaires politiques”.
O homem, na intimidade, aflora desses depoimentos fragantes, que
são as suas cartas ao amigo Leverger. Ora é o receio que manisfesta pela
sua saúde — “Je souffre de la poitrine, et je crains bie pour ma santé” —
ao voltar do Norte, em 1863(19); ora é a sua satisfação pelo accesso a
Brigadeiro e pela comenda da Rosa que lhe fora outorgada “d’autant plus
que l’une et l autre sont parties directement de l Empereur”, (20); ora é o
pesar manifestado pela morte da jovem esposa do seu enteado, que elles
amavam como filha querida e cuja perda os deixou inconsoláveis (21); e
finalmente, e o seu coração de pae amoroso a exalar-se em ternuras para
com a filha única, Elisa, que “fait mon honheur por son caractère doux”, e
cuja atividade diz ser quasi aborvida pela musica e pe-
lo desenho (22). Os nobres sentimentos de Beaurepaire, postos á luz nos
belos ensaios biográficos de Taunay e Homem de Melo, aqui se corroboram
ante a leitura dessas cartas que, conquanto pouco mais de dúzia, bastam a
lhe indiciar aspectos curiosos do espírito de escól.
Noticiando a queda de Sebastopol, em 1855, fala o descendente da
gloriosa terra de S. Luís: “Os francezes se conduziram de uma forma
honrosa. É um dos mais belos feitos de armas de que ha exemplo.” (23)
A sua modéstia o faz dizer, quando incentivado por Abreu Lima a
imprimir a “Synopsis genealogia”, não se preocupar de dispender 400$ —
quanto pedira o editor — “rien que pour le plaiser de me faire publier”.
(24)
Nomeado para a comissão de Fernando Noronha, diz ser-lhe
penosa, por não poder separar-se da família, e declara esperar convencer o
Imperador, — de quem partira a idéia — de o dispensar do encargo. (25)
O seu desprendimento, a sua capacidade de trabalho, o seu nobre
patriotismo — qualidades que o plebeísmo ignaro de hoje não pode
compreender — transluzem em cada pagina ou linha dessa correspondência
privada. E é, por outro lado, um índice expressivo da época, a ligação de
elementos de uma verdadeira aristocracia mental que constituía o grupo de
que Rohan se fazia um
209
210
1 - Beaurepaire Rohan foi agraciado com o titulo de visconde por decreto de 13 de Junho de
1888, quando já não existia Leverger, o qual, por sua vez, foi investido no baronato de
Melgaço por decreto de 10 de novembro de 1865.
2 - Esteve em Mato-Grosso de 1844 a 1846, tendo sido incumbido da exploração do Baixo
Paraguai por aviso de 14 do novembro de 1843, cujo relatório ofereceu ao governo a 6 de
Junho de 1845.
3 - Celestino Correa da Costa, irmão de Cesário, genro de Leverger.
4 - O Dr. Antonio Correa do Costa, que em 1857 concluíra o seu curso na Faculdade de
direito de S. Paulo.
5 - Deve ser Antonio Peixoto de Azevedo, que veio a morrer coronel no combate de Curuzú,
em 1897..
6 - Carta de 21 de Junho 1860.
7 - Carta de 2 Setembro de 1860.
8 - Carta de 21 de Junho de 1860.
9 - Carta de 20 de Setembro de 1862.
10 - Carta de 17 de Outubro de 1873.
11 - Carta de 25 de Julho de 1865.
12 - Carta de 13 de dezembro de 1866.
13 - Carta de ?0 de Outubro de 1864.
14 - Carta de 29 de Fevereiro de 1864.
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
centro radiador — Leverger, os Taunay, Varnhagen, Burlamaqui,
Bompland, etc., formando dessarte uma “familia intelectual” de estudiosos
e amigos do Brasil. Que nobre, fecundo e invejável exemplo para estas eras
de cabotinos, chegadiços et concomitante caterva, arvorados, por infortúnio
em mentores da opinião publica, quando nem para si a souberam ter jamais!
(26).
V
Cuiabá, Outubro, MCMXXXII.
O Presidente Rodovalho
15 - Carta de 31 de dezembro de 1864.
16 – Carta de 8 setembro de 1869.
17- Carta de 21 de junho de 1860.
18 – Carta de 21 de julho de 1860
19 - Carta de 3 de setembro desse ano.
20 - Carta de 22 de agosto de 1864.
21- Carta de 8 de setembro de 1869.
22 - Carta de13 de janeiro de 1870. É a ultima da serie e traiz, no verso, rascunhada, a
resposta de Leverger.
23 - Carta de 4 de dezembro de 1855.
24 - Carta de 17 de outubro de 1863.
25 - Carta de 20 de setembro de l862.
26 - A quem se interesse conhecer mais de perto a individualidade de eleição que foi B.
Rohan, aconselhamos a leitura da biografia feita por Taunay e Homem de Mello, na Rev. I.
H. G. B., LVIII, (1°), 55, LXII, (I) 199, o seu elogio fúnebre, por H. Raffard na mesma Rev.
LVII, (1º), 467 e em S. Blake. Dicionário, III, 213.
Acaba de falecer, no Rio de Janeiro, o último dos presidentes da
Província de Mato Grosso ainda sobrevivente — o dr. Álvaro Rodovalho
Marcondes dos Reis.
Com o nosso habitual indeferintismo pelo Passado, a sua morte não
mereceu mais que a divulgação do telegrama e um ou outro comentário de
pessoas que o conheceram e privaram nesta cidade. Enrarece cada vez mais
o carinho pelo que não é de imediato proveito e segura vantagem. Na onda
invadente de egoísmo que é hoje carateristica da vida social, a quem pode
importar o desaparecer de um homem que, ha cerca de 40 anos, dirigiu esta
terra durante alguns meses? Mais vale cuidar em que ha de dirigi-la dentro
em pouco. E mais prático e diz melhor com o interesse, que já a D.
Francisco, o alumiado fidalgo das Epanaphoras, se afigurava «bordão de
todas as obras». Nem se ha de atribuir tal atitude aos apedeutas da nossa
Historia, aos filisteus da nossa cultura. O mal vai contagiando a todos
infelizmente. Falemos nos por hoje nesta secção destinada a manter esse
«fogo sagrado» que as ultimas vestais vão alentando, — do presidente
Rodovalho.
***
Nomeado por C. I. de 2 de Outubro de 1886, ocupa o engenheiro
Rodovalho o 30° lugar na série dos 33 governantes de Mato-Grosso no
passado regime.
Curto o período da sua gestão, reduzido a pouco mais de três meses,
pois tendo recebido o governo a 9 de Dezembro de 1886, da mão vicepresidente Ramiro, lho reentregou a 28 de Março seguinte. Os nossos
presidentes de província, em geral, pouco se
211
212
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
mantinham no poder, sendo para notado um período de seis anos como de
Melgaço, de 1851 a 1857, só explicável pelo grande prestigio de Leverger
na fase indicada. O próprio Melgaço, na segunda presidência, em 1886,
bateu o record da efemeridade administrativa, ficando no poder somente 2
meses e 16 dias, único que ultrapassou na brevidade a presidência
Rodovalho.
Pertencendo ao partido conservador foi Rodovalho muito
combatido pelos liberais, que tinham a seu serviço A Província e A Tribuna.
Chegou-se a atribuir-lhe responsabilidade pelo surto epidêmico do cholera
na Província. A 30 de Dezembro — Rodovalho aportou a Cuiabá a 8 desse
mês, prestava juramento e tomando posse do cargo a 9 — A Tribuna
registrava os primeiros «boatos desagradáveis» acerca do aparecimento em
varias localidades do terrível morbo, que já dizia estar em Poconé, para
onde seguira, de ordem do governo um medico da guarnição da capital, o
Dr. Franco Lobo. Já essa edição vinha pejada de alarmantes noticias,
trazendo, na 4ª pagina, em letras garrafaes, a propaganda de um remédio
Contra o cholera. Entrou 1887 para os cuiabanos uma atmosfera de terror e
ansiedade. Famílias abandonavam, à pressa, a cidade, rumando para o
interior, presas de um pânico inominável.
A Tribuna de 6 de Janeiro, na secção campo livre, positiva a
acusação contra o presidente nestes termos: «Mas quem é o único culpável
e culpado mesmo nesta cena de horror que nos figura? É o que nos consta
S. Excia. e só Excia. por quanto segundo cartas da cidade de Corumbá, o
primeiro caso de cholera—morbus deu-se em Corumbá, no dia 4 de
Dezembro, dia exatamente em que ahi chegou o paquete que o conduzia a
seu bordo, duas horas depois o vapor Cysne que S. Excia. já sabia tinha
sahido de um dos portos do Prata, onde S. Excia. não quiz parar, já infetado
desse terrivel mal...»
Pagavam os liberais de 1887, na mesma moeda, aos conservadores,
a imputação feita, 20 anos atráz, a Couto de Magalhães de ser o responsável
pela invasão da varíola em Cuiabá. Compensações da justiça divina á eterna
e clamorosa injustiça política ...
Rodovalho muito lhe ha de haver magoado a acerba crítica dos
jornais á sua administração e até á sua pessoa. A Tribuna de 7 de Janeiro
dizia que ele deveria estar mal satisfeito «com o povéco que o cerca, isto é:
com alguns poucos saquaremas que ainda existem aqui». Em Fevereiro, a
17, sob o titulo Actualidade fatal a mesma folha reputava, no seu editorial,
mais danosa a administração Rodovalho que «o próprio flagelo epidêmico
que nos ameaça».
A leitura desse artigo, sempre de grande atualidade, pois os
processos políticos pouco variaram entre nós, sugere, entretanto
considerações acerca da apregoada intolerância dos presidentes na
Monarquia. Graves acusações são libeladas contra o Governador — entre
outras a caso do juiz Moraes, por ele privado do exercício, apezar de
reintegrado pelo governo imperial. Rodovalho tudo suportou serenamente,
até a rude increpação de não haver segurança, no seu governo, para a honra
da família. E quando em começos de Março, começaram a circular versões
sobre a sua retirada para a Corte, A Tribuna embandeirou em arco, e na
editorial Boato agradável, transmitiu os seus leitores a alviçareira nova.
Como si não bastasse, registrou-lhe a partida na numero de 31, em
candente nota sob a titulo Felizmente, que assim se encerrava:
«Cangratulamo-nos com os nossos conterrâneos por estes despejos
(Radovalho e o do seu Chefe de Policia, bacharel Azevedo) livrando-nos a
Divina Providencia do peior flagelo de que pode ser torturado um povo,
quando tem um infortunio de ser gavernado por indivíduos incapazes de tão
espinhosa e alta missão. Hosanas á provincia.»
Quando circulou a trêfega folha liberal, o presidente ia, 3 dias
passados, par água abaixo, tenda saído a 28 desta cidade. Da sua
administação pouca se pode dizer, pertubada, como foi, em seu exíguo
periodo, por fatores de natureza a entorpecer-lhe toda a ação.
Fica-lhe o governo bem apagado entre a de Galdino Pimentel e o de
Melo Rego, mas quando outro merecimento se não lhe descubra, sirva-lhe
de titulo de benemerência a tolerância de que deu provas diante dos ataques
desabridos de uma oposição a que naquele tempo, fácil lhe fora por açaimo.
Do homem particular, vive ainda a memória entre as que dele se
aproximaram e lhe conheceram a fidalguia do tratado e a linha impecável
de cavalheirismo.
Gostava de trajar a seu uniforme branco, não descurando sequer
trazer o florete, de rara elegância.
Até isso lhe valeu motejos dos adversários, que não viam naquela
arma a símbolo discreto das maneiras de antanho, polidas e finas. Força é
convir que temos progredido em matéria de costumes políticos e que do
florete de Rodovalho ás eras da Rebenqueida, celebrada pelo grande Ruy,
ha toda uma evolução que só vale e enobrece a memória desses velhos
servidores do pais e quiçá lhes quita as faltas, filhas de erronias do tempo,
em que muita vez se lhes abastardou o governo ou mareou a nome.
MCMXXIX
213
214
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Antonio João Ribeiro é maiorissima figura de nossa Historia
Militar, pois levou sobre os heroes de Coimbra, Ricardo Franco e
Portocarrero, de Corumbá, da Laguna, do Sará, e tantas outras páginas de
raro relevo dramático, a incontetavel vantagem, para muitos loucura, de
haver-se sacrificado, sem possibilidade alguma de resistência, ante o
inimigo, tombando com a praça cuja guarda e defesa lhe foram confiadas.
Onde e quando nasceu o heroe de Dourados, o vulto sem par de
nosso Passado, único na grandeza desmarcada do sacrifício, que imolou,
sem um gesto de hesitação, a própria vida na ara do dever e do patriotismo.
Parecerá ociosa a pergunta e não o é, todavia, pois neste, como em
muitos outros pontos de Historia matogrossense, surgem dúvidas que põe
certa confusão nos espíritos dos que com tais assuntos se preocupam. E, em
Conologia, como em topologia histórica, não são de desprezar-se os mais
pequenos pormenores indiciativos da verdade, posto, ás vezes, não na
consigamos atingir em toda a sua clareza. Haja vista — entre parênteses —
o caso da filha de Ricardo Franco que me valeu amável replica do meu
amigo Estevão de Mendonça, veterano dos estudos históricos no nosso
meio, a quem não regateio ocasião de preitear o meu apreço, mas de quem
ouso divergir ainda, opondo ao documento OFICIAL que me apresentou, a
verba testamentária por mim transcrita em sufrágio do Manoela e contra o
Maria por ele defendida... Isto para mos-
trar o quanto, em tais casos vale esmerilhar cousas que a sabichões de
inapreensível cultura, parecem de somenos e questões de lana caprina.
O mesmo se dá com Antonio João, cujo berço e natalício se
envolvem em contradição.
Quando ao lugar do nascimento, parecer fora de duvida caber a
Poconé, a lendária S. Pedro del Rey, a gloria de ter visto nascer o Leônidas
mattogrossense.
Testemunhos inumeráveis o afirmam, posto de tal concurso, quasi
unânime, discrepe, talvez por uma inadvertência. Antonio Fernandes de
Souza, no seu livro “A Invasão paraguaya em Mato-Grosso”, obra em que
dá como cuiabano o ilustre comandante da colônia de Dourados. (1)
No que diz respeito á data de nascimento de Antonio João, porem,
impera verdadeira obscuridade e incerteza, que se custa a tomar pé na
torrente das asserções contraditórias. Senão, vede. A fé de oficio do bravo
militar — documento que deveria merecer toda a fé por oficial — lhe dá,
como dia aniversário, 24 de Novembro de 1825 (2).
Concordes em dia e mês com a data indicada na fé de oficio,
discrepam, entretanto, no tocante ao ano, que dão como sendo 1820, V.
Correa Filho (3) e Glycerio Povoas (4), que acerca do estóico defensor de
Dourados escreveram.
Até aqui os autores. Ha mais ainda. Fonte, a meu ver,
autorizadissima são as informações de família e, neste gênero, existe uma
justificação, feita em 1878, pela mãe de Antônio João, D. Rita de Campos
Maciel, na qual assevera a mesma haver nascido o seu filho — o finado
Tenente Antonio João Ribeiro — a 12 de Janeiro de 1822, tendo-se
batizado a 22 de Março daquele ano, sendo padrinho o celebrante P. João
Heitor de Siqueira, Vigário de Poconé, e D. Ana de Campos Maciel.
Nesse intrincado cipoal de conjeturas para onde volver, com
segurança, a idea, de modo a precisar a data aniversaria do herói?
Infelizmente, os livros de registro de batizamentos de Poconé são
falhos é truncados e não fornecem dado algum que esclareça o caso.
Em palestra com o meu amigo Tomé Ribeiro de Siqueira, filho
único de Antonio João, indicou-me como exata a efeméride de 24 de
Novembro de 1820, justificando essa assertiva quanto ao dia e meses com a
circunstancia, referida na tradição familiar, de haver-lhe sido conferido o
nome de Antonio em cumprimento a
215
216
VI
Antonio João Ribeiro
O natal do heróe
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
um voto materno e o de João pela incidência, no citado dia, da festa de S.
João da Cruz, o grande místico e fundador da Ordem dos Carmelitas
descalços.
A respeito do ano ocorre a preferência pela versão que aponta 1820,
atendendo-se á idade com que faleceu A. João — 44 anos — a 29 de
Dezembro de 1864.
Isto — disse-me — lhe referira a própria D. Rita — sua avó, com
quem conviveu até o falecimento dela, ocorrido a 30 de abril de 1883, na
chácara do mundeusinho, (Boa Vista) onde parava, nas suas curtas e ligeiras
vindas a Cuiabá, o valoroso poconeano.
Era-lhe costume vir passar no doce convívio na família, a
tradicional festa de S. João, tendo, pela ultima vez, em 1863, estado na
capital, não mais regressando, no ano seguinte, conforme em carta
explicara, por se não poder afastar do posto que o colocava nas “barbas do
inimigo”.
Não era Antonio João filho único, pois D. Rita teve do seu esposo
Manoel Ribeiro de Brito, mais uma filha, Ana (provavelmente a madrinha
de A. João), que se casou em primeiras núpcias com Antonio Ribeiro do
Prado, tendo um filho, Jacob, e, em segundas, com Francisco Rondon de
Arruda, com uma de cujas filhas, Franklina, veio a consorciar-se o filho de
Antonio João.
Em obras várias que aludem ao lance épico de Dourados, como a
bela e patriótica memória “A guerra do Paraguay no teatro de MatoGrosso,” de Gensérico de Vasconcelos, ha referencia a Antonio João,
dando-lhe por berço Poconé, mas sem precisar-lhe a época do nascimento
(5).
Recentemente, em formosa pagina evocativa, repassada de civismo,
que escreveu na “Revista Militar Brasileira” o General Malan, focaliza-se a
figura empolgante do bravo guerreiro que traçou, num rasgo digno de
outras eras, síntese estupenda do heroísmo de nossa gente, naquela phrase
serena e imorta que lhe deveria servir de epitáfio, si não se houvesse
perdido, como o de Ricardo Franco o jazigo do espolio material do grande
poconeano... (6).
Nesse valioso trabalho, que aliás não é o único a delatar o carinho e
interesse do General Malan pelas cousas matogrossenses, não ha também
referencia á data do nascimento do herói.
Fica, assim, pairando a dúvida entre essas duas datas — 22 de
Janeiro de 1822 e 24 de Novembro de 1820 — ambas, a meu ver, fiadas em
apreciáveis fontes informativas, pois si milita favor de uma tradição oral de
família e o conceito de autores abonados, em prol da outra ha a justificação
de 1878, em que fala a progenitora do herói.
Como quer que seja, não ha dúvida que a indicação da fé de oficio
claudicou, dando 1825 como o ano natalício de A. João, o que só se explica
por engano de copia ou propositada diminuição de idade feita em vista de
conveniências pessoas.
217
218
***
Tempo é de ter mão no assunto, que, por interessante, não se ha de
tornar pesado e exaustivo. Ahi ficam dados para melhores investigações. A
outrem o encontrar a verdade, em cuja pista andamos,
— pois que só deste esforço já nos fica sobejo contentamento.
(Abril — MCMXXVII)
(l) Ob. cic pag. 119.
(2) Rev. do Inst. Hist. de M. Grosso, vol. X-X, pág. 147
(3) Mato-Grosso, pag. 132.
(4) Vultos matogrossenses, n. A CRUZ de 13 de Julho de 1910.
(5) Ob. cit pág. 121.
(6) Ver. Militar Brasileira — XXVI, pág. 147 e segs.
GENTE E COISAS DE ANTANHO
Um Grande Diamantinense
João Batista das Neves
Em um dos seus interessantes ensaios domingueiros do «Jornal do
Comercio» do Rio, tomou V. Corrêa Filho para tema a figura sugestiva do
diamantinense João Batista das Neves, o herói que a 22 de novembro de
1910, tombou, vitimado pela maruja amotinada, a bordo do «Minas
Gerais», cujo comando soube defender ao preço de sua vida.
Vulto de extraordinário merecimento, verdadeiro self-made-man o
inclito marinheiro que das faixas obscuras de um berço humilde e bastardo,
galgou a eminência dos mais altos postos da Armada Nacional, deve
enquadrar-se, sem favor, na galeria plutarquiana dos varões ilustres de sua
terra.
Hoje mais do que nunca, nesta quadra em que a noção da hierarquia
e da disciplina como que sofre um lastimável colapso e os valores andam,
com mui raras excepções, subvertidos e negados pelos inconoclastas a
serviço do culto inconsciente de ideologias mais ou menos suspeitas,
impõe-se o sereno exame e a veneração respeitosa dessas entidades que,
como numes tutelares, não hesitaram em dar, com a existência mesma, o
exemplo do acatamento ao dever e do mais acendrado patriotismo.
***
Os traços biográficos de Batista das Neves não se acham
suficientemente esclarecidos. Estevão de Mendonça o faz cuiabano, o que
não é exato (1). V. Corrêa Filho no artigo referido, di-o simplesmente
«originário de Mato-Grosso», sem precisar o lugar em
219
JOSÉ DE MESQUITA
que veio á luz da vida (1), conquanto em outro trabalho lhe indique como
lugar do nascimento Diamantino (3). Batista das Neves nasceu, de-feito, na
velha e tradicional vila de Nossa Senhora da Conceição do Alto Paraguai
Diamantino, onde foi batizado a 26 de setembro de 1856. Sua mãe
Ludumila Maria Conceição, era filha de Gabriel José das Neves, conhecido
pela: automásia de «capagato», negociante da carreira do Pará. Seu pai José
Maria de Barros, pertencia a importante linhagem, descendendo pelo
costado paterno, dos Pedrosos de Barros e pelo materno, dos Soares Muniz,
ambos de nobre origem paulistana (4). Batista, porém, não era filho de
justas núpcias, sendo o seu berço rodeado do mistério de um romance de
amor qual a inexperiência de Ludumila cedeu aos amavios do jovem que,
na ausência do pae, a requestava. Redimiu a falta com uma constante e
desvelada dedicação ao pequeno João que, por sua vez, durante existência
inteira conservou um culto de carinho quasi religioso para àquela que lhe
dera o ser.
E quando, mais tarde, a fortuna lhe sorriu, na ascensão da carreira
que abraçara, o obscuro diamantinense de outrora tratou de levar para a sua
companhia a boa creatura para quem o seu coração afetivo tinha os mais
suaves palpites, as pulsações mais enternecidas. E até quando em 1906,
desapareceu, já setuagenária, D. Ludumila, era para ela que, perto ou longe,
o filho bem-querido reservava a mimosa flor de sua afetividade.
Ilustra ao vivo o seu grande sentimento de amor filial, esta carta,
inédita, escrita de bordo do navio-escola “Benjamim Constant” a 2 de
outubro de 1904, às portas da velha cidade de Alexandria:
«Minha Mãe.
Saúde e contentamento.
Estou próximo de Alexandria, onde espero entrar amanhã pela
manhã. Desde que deixamos o Pireo, temos tido bom tempo e vento
favoráveis, de modo que esta noite espero avistar o pharol do porto; tem
sido uma excelente viagem.
Para Vmce. fazer uma idea do modo porque fomos recebidos na
Grécia, envio a copia do relatório que mando para o Quartel General. Alem
do que está no relatório, derão-se outros fatos ainda melhores para mim e
que eu não escrevi para não se supor que tenho mais vaidade do que de fato
possuo.
Os jornais muito se ocuparam comnosco e naturalmente o, meu
nome era citado por ser o Comte. Um dos jornaes publicou o meu retrato,
que apezar de ter o meu nome por baixo
220
GENTE E COISAS DE ANTANHO
ninguém conhece; porem a intenção foi a melhor possível e eu fiquei muito
grato. O nosso Consul simpathisou commigo, que á despedida pediu-me
licença para me beijar. Vmce. pode julgar o quanto tudo isso me enche de
satisfação. Hoje é domingo e estou escrevendo esta ao som da musica.
Hoje tenho-me lembrado muito do Campo Grande e como eu penso
em pedir um mez de licença, poderemos então completar a casa e caiar; mas
é preciso que eu encontre prompto o quarto de Vmce.
Depois de uma vida agitada, comquanto muito boa, que tenho tido,
sinto necessidade desse repouso da roça, e Vmce. com certeza não ficará
descontente de passar um mez no Campo Grande.
Acho conveniente Vmce. mandar pagar ao Néco, na razão de vinte
mil reis por visita e Deus permita que não tenhamos mais moléstia em casa.
Independente disso levarei um presente para ele.
Adeus, minha Mãe, recomendações a todos, dê-me a sua benção e
peça sempre a N.Senhora por seu filho João.
Aceite muitas saudades e dê um beijo no bugre».
Nessas linhas de uma sincera efusão de alma, em que bem se vê,
mais que o espírito, o coração do grande filho de Diamantino, transparecem
ao vivo, como numa fotografia fidelíssima, as qualidades mestras do bravo
almirante. A afetuosidade, a crença religiosa, a inclinação pela vida simples
de campo — resíduo hereditário dos seus antepassados mineradores e
roceiros — e até um pouco de orgulho natural sem fatuidade — tudo ali
está, nesse curioso documento em que, longe de atitudes forçadas ou
posturas artificiais, um filho abre o seu coração, como uma caçoula de
perfumes, diante da ara sagrada, que é o imenso, o incomparável amor de
mãe. Si Batista das Neves não fosse grande pelo seu sereno heroísmo de
mártir do dever, o seu amor de filho, esse culto constante e puro por aquela
que, a custa de sacrifícios, lhe deu a vida, o criou e educou, bastava a
impor-lhe o nome respeitável á admiração e ao respeito dos
contemporâneos.
Cuiabá, Janeiro MCMXXXIII.
(1) Datas II, 192.
(2) Jornal do Comercio, de 10 de Julho de 1932.
(3) “Mato-Grosso”, 142.
(4) Geneal. Paul. de Silva Leme, vls. II e III.
221
JOSÉ DE MESQUITA
I
MACROBIOS
A morte de uma centenária, recentemente ocorrida em
Corumbá, e á qual se referiram jornais daquela cidade, despertou-me
a idéa de coordenar e desenvolver umas notas extraídas ha tempos
dos arquivos acerca dos casos de longevidade em nosso meio.
Comquanto não possamos concorrer com certos Estados,
como o de Minas, que parece gozar o primado neste particular —
devido não só à excelência do seu clima como ao modo patriarcal da
vida — ainda assim não se pode dizer que sejam muito raros os casos
de macróbia em nossos anais.
Começamos pelos assentamentos de óbitos de um século
atrás, registrando apenas os de 85 anos para cima:
José Congo, preto, de 90 anos, falecido a 8 de Março de 1820.
Maria José, preta, solteira, de 93 anos, f. a 9 de Março de 1820.
Gertrudes Chaves, preta, solteira, de 100 anos, f. a 12 de Abril de
1820.
Matheus Mendes, preto, casado, de 98 anos f. a 15 de Junho de 1820.
Eusébio de Campos, caboré, viúvo, de 100 anos, f. a 7 de Agosto de
1820.
Anna de Campos, criola, viúva, de 88 anos, f. a 10 de Junho de 1821.
Anna Dias, preta, solteira, de 88 anos, f. a 27 de Janeiro de 1822.
Maria das Neves, branca, solteira, de 90 anos, em 10 de Agosto de
1822.
222
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Benta de Almeida, caboré, viúva, de 88 anos, f. a 6 de fevereiro de
1823.
Luiza Pereira, preta, solteira, de 86 anos, f. a 10 de Março de 1823.
Antonio Pereira da Matta, branco, solteiro, de 90 anos, f. a 6 de
Dezembro de 1823.
Rosa Henriques, preta, solteira, de 86 anos, f. a 4 de Janeiro de 1824.
Justa Francisca de Burgos, parda, solteira, de 96 anos, f. a 1 de
Janeiro de 1824.
Maria da Silva de Jesus, preta, viúva de 89 anos. f. a 20 de Agosto de
1824.
Francisco Fernandes da Cruz, preto, viúvo, de 90 anos, f. a 28 de
Maio de 1825.
João Bahia, preto fôrro, solteiro, de 93 anos, f. a 28 de Janeiro de
1826.
Susana Pereira, preta fôrra, solteira, de 99 anos, f. a 17 de Maio de
1826.
Isabel de Lara, bastarda, solteira, de 100 anos, f. a 21 de Maio de
1826.
Rita Leite, parda, solteira, de 100 anos. f. a 4 de Junho de 1826.
Victória Paes Cardoso, branca, viúva. de 100 anos, f. a 14 de Junho
de 1826.
Páscoa da Silva, parda, de 100 anos, f. a 5 de Agosto de 1826.
São, num período de pouco mais de um lustro, 21 macróbios,
dos quais 6 centenários, sendo para notada a circunstância de serem
50% constituídos de negros, que, como é sabido, possuem maior
resistência e facilidade de adaptação ao nosso clima. Seguem-se os
mestiços, em numero de 7, sendo apenas 3 os de raça branca.
No recenseamento de 1829, vamos encontrar, em Cuiabá, 25
pessôas de mais de oitenta e menos de noventa anos, três de mais de
noventa e uma de 100 anos. As nonagenárias são Bárbara Gomes,
preta, viúva, com 93 anos, Ângela Bueno de Siqueira, criola, viúva,
de 97 anos, e Francisca Gomes, de 99 anos, preta, solteira. Com 100
anos figura D. Izabel Nobre Pereira, branca, viúva do mestre de
campo Antonio José Pinto de Figueiredo. Dos otogenarios, se
arrolam 13 pretos, 7 mestiços e 5 brancos, sendo 14 mulheres e 11
homens, o que, desde que se note serem também do sexo frágil as 4
de mais de 90 anos, vem demonstrar não ser tão frágil o mesmo sexo.
A percentagem de macróbios na Cuiabá do 2º quartel do
século passado é bem expressiva, pois sobre 4287 pessoas arroladas
no censo urbano, a cifra de velhos de mais de 80 atinge a pouco
menos de 10 %.
A resistência dos representantes da raça de Cam é ainda
comprovada pelos seguintes índices expressivos colhidos em várias
épocas em nossos registros eclesiásticos:
Theresa de Jesus, africana, com 150 anos mais ou menos, f. a 24 de
Outubro de 1879, de gangrena senil.
Luiza, africana liberta, de 100 anos, f. a 28 de Outubro do mesmo
ano.
José Alves Pereira, africano. de 88 anos, f. a 16 de Setembro desse
ano.
Jacintho de Sampaio, natural da África, 80 anos, morto de velhice, a
10 de Abril de 1887.
Merecem assinalamento os macróbios que desapareceram na
época das bexigas em 1867: Josefa de Campos Maciel, viúva, de 100
anos, f. a 20 de agosto de 1867, Escolástica Maria de Jesus, f. em
Brotas, centenária, na mesma data da anterior, Anna Maria da Silva,
viúva, também com um século de existência, morta naquela
localidade a 29 de Outubro de 1869 e João Paes de Brito Lemes, f. a
5 de Setembro de 1867, viúvo, com 90 anos.
Logo após a terminação da guerra, faleceram em Cuiabá, João
Corrêa, de 100 anos, viúvo, natural desta Província, († 3-11-1871) e
Francisca Justina Xavier de Campos, de 96 anos, viúva de Domingos
da Costa Monteiro, falecida a 18 daquele mês e ano.
Ao contrário dos negros, é escassa a resistência da raça
autoctone, sendo um caso notável o de Thereza Pires, que faleceu na
Chapada, a 24 de Novembro de 1836, «provavelmente na idade de
cento e dez anos», a qual, consoante o assento feito pelo Vigário, P.
Souza Caldas, devia ser «descendente dos primeiros índios desta
aldeia».
Mesmo em Vila Bela, cuja fama de insalubridade é notável,
encontramos na estatística de 1856, seis pessoas de mais de 80 anos,
e uma de 106 — o que não deixa de impressionar em logar cuja
decadência se explica, sobretudo, pelas suas péssimas condições
sanitárias.
223
224
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
***
Melhor atestado se não póde exibir da benignidade de nosso
clima e costumes, permitindo, sem recursos outros, pois a própria
higiene pública ainda agora é rudimentar em nosso meio. — se
alcancem esses significativos índices de longevidade.
Dirão os pessimistas sêr isso um castigo da Providência, mas,
com sêr a vida essa rude e penosa provação que faz do homem um
santo ou um criminoso. (conforme as diretrizes morais do seu
psiquismo,) repitamos, com o grande Bilac, maior quanto mais se lhe
projeta no passado a sombra impressiva de poeta e pensador:
«Mas a vida é um favor! De crepe, ou de ouro e prata. Da
injuria ou do perdão, do opróbrio ou da coroa. Todas as horas, para o
martírio, são gratas!
Todas, para a esperança e para a fé, são boas!»
II
Setembro, MCMXXXIII.
225
EPOCA DE CRISE
O momento de aperturas que atravessamos, cuja gravidade
excusa dissimular através de estudados otimismos, traz á memória
dos constantes esfolheadores do Passado outras quadras semelhantes,
bem que menos perigosas, por lhe faltarem agravantes de
circunstâncias típicas desta hora agitada do mundo.
Cuiabá parece, mais que qualquer outro trato do nosso
território, fadada a sofrer periodicamente dessas crises agudas de
escassez de recursos e falta de numerário, que se traduzem na mais
pronunciada depressão financeira e no mais desolador desânimo
moral da sua martirizada população.
Nem bem lhe alvoravam as primeiras esperanças, entre o
fulgor do seu ouro lendário, já imortalizado nas Páginas de Paulo
Setúbal, e já, sob o guante de ferro do truculento D. Rodrigo César,
ermavam-se as minas e sucumbiam, diante de calamidades qual a
qual mais rude, os impávidos desbravadores do sertão, os heróicos
flibusteiros das bandeiras e monções. O ano justamente da sua ereção
em vila — 1727 — foi que se caracterizou por maiores angústias
desfechadas sobre os seus moradores, estortegados entre as tenazes
impiedosas do Fisco, a inclemência do tempo e as duras provações
das enfermidades. No singelo relato da crônica barbosina «erão tudo
mizerias, queixas e lamentoz, a terra falta de mantimentos por
falharem as rossas, que brotavão os milhos espigas sem gram algum,
as doenças actuaes, os que escapavam delas, não escapavam da fome,
assim que tudo era gemer, cho226
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
rar e morrer.» (1) Dois anos após, em 1729, tal era a carência de
fazendas, que se venderam camisas de lençoes que se desfaziam, a 12
oitavas de ouro e «sal nem para Batizar se achava, e tudo mais a este
respeito.» (2) Vinha de anos atrás essa situação, agravada pelas
exigências do ganancioso capitão-general de S.Paulo, pois já em
1823 tal era a penúria nas Minas que «não faltava quem désse um
negro por quatro alqueires de milho.» (3)
Superadas essas primeiras e tremendas provações, novas e
sucessivas se alternaram durante o regime colonial, que se encerrou
no governo de Magessi, o qual chegando a Cuiabá encontrara os
cofres exaustos a tal ponto que «esquadrinhando-os com avidez, não
encontrou com que pagar os 10 soldados que o acompanharam.» (4)
Um curioso documento por mim topado nas investigações dos
nossos arquivos, ilustra ao vivo a miséria ambiente e põe a nu a
escassez de recursos monetários com que se debatia Cuiabá no 1º
quartel do século XIX. Trata-se de uma petição do Coronel Gabriel
da Fonseca e Souza, oferecendo «peças de ouro, prata e pessas
preciosas para a segurança da quantia de oitocentas e trinta oitavas»,
do Cofre de Órfãos, que desejava tomar, a razão dos juros da lei.
O Coronel Gabriel da Fonseca e Souza, paulista de
nascimento, era uma das figuras prestigiosas da êpoca, senhor do
engenho de Santo Antonio, no bairro do Ribeirão do Coxipó-Guassú
(Guia), tendo se reformado em Brigadeiro e possuía a comenda de
Cristo, quando morreu, em 6 de Março de 1834, Solteirão, deixou,
entretanto, vasta prole natural, que reconheceu em testamento. Pois
este homem teve que fazer hipoteca de todos os seus bens, alem do
penhor das jóias e objetos de preço, para obter, por empréstimo, a
quantia existente no Cofre de Órfãos. Curioso o processo, no qual
confessando o suplicante ter «percizão de oitto sentas e trinta oittavas
de oiro», pede ao Juiz de Fóra e Órfãos, que era Antonio Joaquim
Moreira Serra, o levantamento dessa importância. Despachou este,
dizendo que «não obstante ser permittido por Lei que se possa dar
dinr.º dos orphãos a juros», comtudo, como pelo Illmmo. e Exmo.
Snr. General me foi recommen-
dado não dispuzesse de qualquer porção sem o consentimento«,
mandava que o requerente se dirigisse áquela autoridade.
Em novo pedido, já então endereçado ao Governador, Gabriel
da Fonseca fez as mesmas ponderações já aduzidas na anterior,
despachando Magessi desta fórma: «Visto que o Suppte. mette no
Coffre pinhores de oiro e prata, que equivalem a quantia que
pretende, e obriga os seus bens o Juiz Prezidente da Câmara pode
defferir-lhe na forma que requer, por não haver inconveniente algum
dita pertenção. Quartel General da cidade de Cuiabá 3 de Julho de
1819». Fez-se avaliação dos penhores, servindo de peritos Manoel
Antonio Fernandes e João Álvares Ferreira , alcançando a
importância em dinheiro de 1:084$200 «execiva a que pede juros»,
no dizer do juiz, que, por isso, deferiu, a 7 do mesmo mês a pretenção
de interessado.
Não constitue caso virgem esse do levantamento, sob penhor,
efetuado por Gabriel da Fonseca.
Em 1802, o Mestre de Campo e Comandante José Paes Falcão
das Neves, senhor de Cocaes, com serviço de mineração e grande
numero de escravos, procedia a uma justificação no Juízo de Órfãos
para tomar por empréstimo do Cofre de Órfãos 1:064$000, dando
como garantia a hipoteca de uma sesmaria de terras que possuía alem
do Cuiabá.
E José Paes era, como Gabriel da Fonseca, um dos magnatas
da época, genro do Mestre de Campo Figueiredo, a quem sucedeu nas
funções gozando de vasto e sólido prestigio social e político na
Cuiabá do inicio do século transacto.
Passada a tormenta dos dias agitados das lutas nativistas,
entrou uma fase de calmaria, a refletir-se nas condições financeiras
da Província, que só vieram a sofrer novos abalos com os dias
lúgubres da invasão em 1864, e a epidemia devastadora das bexigas.
Vale, entretanto, um registro a falta extraordinária de moedas
divisionárias, que se observou no ano de 1857, de fórma tão sensível
que foi necessário facultar a emissão de bilhetes impressos, com
valores determinados e resgatáveis, nos termos do seguinte aviso
publicado no nº 24 do «Noticiador cuiabano»:
« Pascoal Ordano e Estevão Delfó Anuncião ao respeitável
publico, que em razão da excassêz que ha de moedas de cobre para
troco, obtiveram permissão do
(l) Crônicas de Cuiabá, ano 1727.
(2) Idem, ano 1729.
(3) Idem, ano 1723.
(4) V. Corrêa Filho — Notas á margem, 64.
227
228
GENTE E COISAS DE ANTANHO
Illmo. Sr. Dr. Chefe de Policia para emittirem bilhetes impressos nos
valores seguintes: — 30 de 100 rs. — 30 de 200 rs. — 30 de 300 rs.
— 30 de 400 rs. — 30 de 500 rs. Na rua Commercio, casa n.º 57. em
que se acha estabelecida a padaria estrangeira resgatão a qualquer
hora e com toda promptidão os ditos bilhetes.» (5)
Quem disser que Mato-Grosso-provincia já teve poder
emissor, não será levado a sério. Ali está a prova.
Bons tempos esses em que se resolvia a crise com a impressão
de 150 cédulas de dinheiro! Hoje, o que escasseia, não são mais os
miúdos — e, sinão, que o digam os pobres funcionários que
entraram, heroicamente, no sexto mês de atrazo do seu minguado
ganho.
Cuiabá. MCMXXXIII.
(5) Noticiador cuiabano, do dia 11 de Outubro de 1857.
JOSÉ DE MESQUITA
III
CELEIROS DE CUIABÁ
Fabio, d’«Estado de Matto-Grosso», nome atrás do qual se
esconde um estudioso do nosso Passado, afirmou, faz poucos dias, na
sua secção «Pingos de cera», que o Livramento, com a Chapada e a
Guia, formava o triângulo de abastecimento de Cuiabá. Ensejou-me
tal assertiva ocasião de coordenar umas nótulas, que, ha tempos,
havia rascunhado, acerca dos celeiros de Cuiabá nos dias de antanho,
e opor ligeira contestação ao preopinante. Devo, de Começo, fazer
ver que si houve, da sua parte, acerto no traçar a figura geométrica
com esses três lados, esqueceu-lhe, naturalmente por um cochilo,
outra face da mesma, que, em vez de ser um triedro é sim, um
tetraedro (prefiro em vez da geometria plana, a geometria no espaço,
mais expressiva para o caso), pois não ha como omitir no
arrolamento dos abastecedores da Capital o velho município vizinho
de Santo Antonio do Rio Abaixo.
Teremos, assim, reduzindo a um gráfico a idéa enunciada por
Fabio, com o necessário aditamento.
Guia
***
Livramento - Cuyabá - Chapada
***
S. A. Rio Abaixo
Cuiabá, centro convergente, entre as quatros faces lateraes,
recebendo dos quadrantes norte, sul, leste e oeste, o seu
aprovisionamento. Assim foi, desde muito, e ainda agora — tirando o
que nos vem rio-acima, importa-
229
230
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
tado nas lanchas da linha Corumbá — Cuiabá — assim continua a
ser, com a diferença que muitos outros núcleos têm surgido,
gravitando, entretando. em torno desses principaes, v. g. Aldeia,
satélite de Guia.
E vamos demonstrar, com dados históricos colhidos aqui e ali,
em relatórios e “documentos de outra natureza, que não nos
afastamos da verdade ao tracejar esse diagrama.
***
Dos quatros setores, o mais antigo ou pelo menos aquele de
que se encontram mais remotas referência nas crÔnicas, é o de
Livramento, que teve o seu berço nas afamadas lavras do Cocaes,
onde, pouco mais de 10 anos sobre a fundação de Cuiabá, os
sorocabanos Antonio Ayres e Damião Rodrigues já mantinham
serviço de mineração. (1)
Logo após, deparamos alusões á Chapada, que Millet de Saint
Adolphe dá como a mais antiga de todas as freguezias da província
de Mato-Grosso.» (2)
De certo, de oficial, o que existe sobre a Chapada é a
fundação, em 1750, da aldeã ou missão de índios dirigida pelos
Jesuítas, da qual se originou a povoação de Sant’Ana a que Luiz
Pinto pôs o nome de logar de Guimarães. (3)
Quanto a S. Antonio, não é menos respeitável por sua
ancianidade. Diz Leverger, no seu tempo o maior conhecedor das
nossas cousas, que, conquanto sómente fosse ereta em freguezia em
1835, já existia, como capela ou ermida, antes de 1750 (4).
A Guia, essa deve ser realmente, das quatro irmans, a
«caçula». Sómente em 1850 foi erigida em paróquia, apesar de já
datar de muito tempo a sua povoação. É, entretanto, a mais recente, o
que, aliás se, explica, pelo fato de ser o norte o flanco menos
explorado de Mato-Grosso, ainda nos tempos hodiernos.
O Rio Abaixo foi o caminho das monções; a serra, a «estrada
de terra» e o Oeste, onde fica Livramento, a zona de ligação entre
Cuiabá e Vila Bela — esta a len-
daria capital do século XVIII, da éra colonial e aquela a invicta
capital que assumiu a hegemonia politica ao alvorecer da nossa
independência.
***
O mais antigo documento existente em nossos arquivos,
autêntico palimpsesto da História cuiabana, é o livro de
assentamentos de batismos, a que me referi em outro ensaio desta
série (5), e que abrange os anos de 1736 a 1744.
Vêm nele mencionados o arraial de Cocaes e respectiva
Capela de São José (em datas de 1739 e seguintes); a Capela de
Nossa Senhora da Piedade da Chapada, onde morava José Raposo
Tavares (termo de 3 de Maio de 1742), as capelas de N.ª S.ª da
Conceição e de S. Antonio do Rio Abaixo (14 de Maio de 1738 e 2
de Setembro de 1742).
Ha também referencia a uma capela de Santana do Coxipó
Guaçú, que é o Coxipó da Guia, o que faz crer que, no mesmo ou em
outro logar desse rio, já existia, naqueles tempos, um povoado, germe
do futuro distrito guiense.
Ainda no século da fundação. em 1796, já se encontravam
índices elo quentes da opulência dos celeiros que, em roda da vila do
Bom Jesus, lhe asseguravam a subsistência. Refiro-me á curiosa
estatística publicada nos «Documentos interessantes para a História e
Costumes de S. Paulo,» que dá para Livramento (Cocaes) «3
engenhos grandes e 8 pequenos, de açucar rapadura e melado, 3
engenhos de aguardente, com uma produção de 240 canadas. e um
total de 134 escravos».
O Rio abaixo, figura com 4 fabricas grandes e 7 pequenas, de
industria sacarina para 2 engenhos de aguardente, produzindo 180
canadas, empregando 166 braços no serviço.
A Serra entra sómente com 2 fabricas pequenas de açucar,
compensadas, porém, pela maior cifra de engenhos de aguardente —
20 — e monjolos de farinha — 6 dando 4.030 canadas da «branca» e
16.400 alqueires de farinha. O record da produção!
Também avulta-se-lhe a mais de sete centenas o numero dos
negros, empregados nos trabalhos agrícolas e fabris —738 escravos.
(l) V. Corrêa Filho — Mato Grosso, pag. 250.
(2) Dicionário Geográfico, Histórico e Descritivo do Império do Brasil. trad. de Lopes de
Moura, 1271.
(3) Chronicas de Cuiabá, de Barbosa de Sá, ano referido. Ver o n.º XXXVI desta série, onde
se faz o histórico da Chapada.
(4) Apontamento para o Dicionário Chronologico da Província de Mato Grosso, na Ver. do I.
H. e G. B. XLVII, 475.
231
(5) Madres da Raça, n.º II. O folhetim tem o n.º XLI.
232
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Por último, o Rio Acima ou Porto Geral para cima, como diz
o quadro em que respigamos estes dados, contribue com 11 fabricas
de açúcar, das quaes 8 pequenas, e 5 engenhos, sendo a safra de 240
canadas de pinga e 1.100 alqueires de farinha, dispondo de 163
escravos. (6)
***
Muito haveria que repontar, aqui ou acolá, nas preciosas
informações de Ricardo Franco, Alincourt e outros que por aqui
andaram, observando as cousas de nossa terra e deixaram por escrito
as suas impressões. O que ali fica, porém, parece quanto basta para
dar uma idéa do que fôram os celeiros cuiabanos, até hoje
inexauridos. Urge, — que tempo e espaço escasseiam — pôr termo a
isto: para não cansar o leitor e, mesmo o autor, que com franqueza,
não póde cuidar sómente de cousas de antanho, tendo, como tem,
tantas outras de atualidade para tratar — e não menos interessantes.
Junho, MCMXXXIV.
(6) Doc. int. vol. XLIV.
IV
REAÇÕES CUIABANAS (1)
O cuiabano sempre foi de um largo espírito de hospitalidade,
que pede meças ao tradicional acolhimento da gente montanhesa, e,
alem disso, de uma extrema tolerância. Quando, porém, ferido no seu
pundonor, na sua ombridade, na pessoa de um de seus filhos diletos,
levanta-se como um leão e reduz o agressor, pela força ou pelo
ridículo, às mais grotescas proporções. Casos vários dos ocorrem de
momento, ilustrativos do que fica assertoado. Enuncia-los, sem
preocupação outra que a de fazer História, numa ligeira sinopse, sem
grandes minúcias, apenas guardada a maior fidelidade, eis a que se
propõe este folhetim, restabelecendo velha secção que, de ha muito,
por motivos vários, entre os quais sobreleva o da falta de tempo,
havia desertado destas colunas.
***
Em 1821 — comecemos no período colonial — a gente
cuiabana, representada por delegados de todas as classes sociais,
clero, nobreza, comércio, militança e povo, apeiava do poder, num
verdadeiro golpe de autonomismo, que precedeu de mais de ano ao
Grito do Ipiranga, o cúpido e duro Magessi, de quem, com o seu
espírito justiceiro, diz V. Corrêa Filho «mandava com entono de
quem fosse o próprio rei», afigurando-se-lhe fosse a Capitania
«enorme caserna cuja atividade deveria regrar-se pelo mesmo
regime» (2)
(1) O ultimo ensaio desta série saiu na tiragem de 16-2-1941.
(2) Notas à margem, pag. 69.
233
234
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Era a primeira significativa reação do espírito cuiabano contra
a prepotência, arrogante e gananciosa, trazendo embora a sagração da
Coroa de Portugal, que tinha nela o seu representante mais graduado.
***
Em 1892, 1899 e 1906, as revoluções que, lá fora repercutiam
tão desfavoravelmente à nossa fama de povo ordeiro e laborioso,
foram, não ha negar, reações contra manifestações de mandonismo,
pouco recomendáveis. Mas isso é História, que já vem sendo
estudada, e remeto quem por ela se interesse, à série Espírito
Matogrossense, que venho publicando na excelente revista Cultura
Política, órgão oficial do D. I. P. (números IX, XIII e XLX).
***
Reações típicas do sentimento cuiabano contra elementos
estranhos que o feriram, nos seus melindres, na pessoa de filhos de
lugar, temo-las nos casos do P. Bandeira — Botafogo, em 1883; João
Cunha — Carlos Soares, em 1907; e Carlos Barbosa Gonçalves, mais
recente e bem lembrado.
Ocaso do Padre José Felix Bandeira passou-se, como ele
próprio relata, no queixa-crime datado de 31 de Dezembro de 1883:
«a 28 de Dezembro, às 10 horas, ia mansa e pacificamente da sua
casa para a secretaria do Palácio, ao passar pela porta do Quartel
General foi agredido por Antonio Joaquim de Souza Botafogo,
Inspetor da Tesouraria de Fazenda, armado de revolver e chicote de
emboscada, espancando-o atrozmente com esse instrumento
aviltante». Fez-se o corpo de delito, em que tomaram parte os Drs.
Augusto Novis e Dormevil Malhado, verificadas «ofensas físicas
com instrumento contundente na parte lateral direita do dorso e três
vergões oblíquos».
Bandeira correu para o Quartel e o Inspetor seguiu-lhe no
encalço, dizendo: — o chicote é para ti e o revolver é para aquele que
te deu o escrito!» e retirou-se, sem que fosse detido pelos oficiais
presentes, (depoimento da vitima). O Presidente da Província,
entretanto, mandou prender os oficiais que não prenderam o agressor.
O Juiz, Dr. Rodrigues de Morais, instaurou o processo, em que foram
ouvidos João Guarim e José Honorato Xavier Matoso.
Era presidente da província o Barão de Batovi. A agressão se
deu em virtude de um artigo publicado no Espectador, que Botafogo
julgou ofensivo à sua honra.
A Câmara municipal reunida, oficiou ao PresIdente pedindo
as penas da lei para «o fato tão criminoso quão arrojado em
desagravo á sociedade ofendida», salientando haver ocorrido em
frente mesmo ao Paço. Assinam a veemente representação. Batista
Sobrinho, Antonio Gomes de Campos Widal, Jerônimo da Silva,
Manoel de Assunção Couto, Julio Frederico Müller, João Manoel de
Andrade e Silva, Gabriel Nunes Nogueira e João Batista de Arruda e
Sá — todos Vereadores. Botafogo já havia seguido no vapor Coxipó,
a 4 de janeiro de 1844, para fóra da Província, quando, a 12 desse
mês, foi pronunciado, tendo o seu advogado Paula Corrêa, pedido
precatória ao Juiz da l.ª Vara Criminal da Côrte, para notificação da
pronúncia. A agitação popular em torno do caso foi grande, mas, a 14
de Abril desse ano, o P. Bandeira, num gesto generoso, desistia do
prosseguimento da queixa, sendo a 18, tomada por termo e julgada a
sua desistência.
***
O incidente João Cunha — Carlos Soares é já do período
republicano. Este, comandante da Escola de aprendizes marinheiros,
fez deter o primeiro, comerciante e pessôa de largas simpatias e
prestigio social, pertencente a importante família patrícia. O povo
alvoroçou-se, ante o insólito procedimento do oficial que se
descomedia, em ato de violência inexcusavel. A onda da indignação
pública cresceu, em maré-montante de revolta, a ponto que o autor do
abuso, ante a intervenção de terceiros, resolveu ceder, e tornando-se
insustentável no cargo, daqui se retirou, dentro em pouco.
***
Carlos Barbosa Gonçalves, alto funcionário de um dos
Ministérios, assacou, levianamente, conceitos pejorativos à sociedade
local, o que determinou imediata represália popular, concretizada no
«enterro» do malévolo atassalhador da reputação alheia, o qual, como
diz o povo em seu expressivo linguajar, «anoiteceu e não
amanheceu...». O vapor, subindo, o colheu em caminho, tendo ao que
consta, viajado do porto de canoa, ao encontro da embarcação
salvadora.
***
Episódios outros, mais recentes, poderiam ser citados, mas o
que ai fica basta, em abono da tese, de começo expendida.
Janeiro, MCMXLIII.
235
236
GENTE E COISAS DE ANTANHO
V
OS DIAS DA SEMANA NA
HISTORIA MATOGROSSENSE
Davam os antigos suma importância aos dias da semana, dos
quais uns eram considerados felizes, outros nefastos, para certas
entreprezas. Ainda hoje, conquanto a superstição vá cedendo terreno
às crenças bem entendidas e razoáveis, ha muita gente culta e
ilustrada que não viaja sexta-feira, não faz pagamento ás segundas e
escolhe, de preferência, para casamento, os sábados ou quartas-feiras.
Ha em tudo isso, talvez, um fundo inexplicável de verdade, podendose atribuir que a sabedoria instintiva do povo estabelece, através de
observações seculares, certas leis que, à luz fria do raciocínio, se não
compreendem mas, justificáveis ante os domínios do impenetrável
que, antes dos freudistas alojarem no célebre e multifalado porão do
«sub consciente», já a filosofia clássica reconhecia e proclamava
como o reino misterioso da intuição e dos pressentimentos.
Não deixa, pois, de ser interessante a averiguação de certas
particularidades referentes aos dias da semana em que ocorreram
fatos dos mais relevantes da Historia matogrossensse e eis por que
cuido não ser de todo inútil a publicação de algumas achegas que
nesse particular hei anotado, no meu caderninho de cousas inéditas e
curiosas. Ai vai, e quando mais não seja, sempre é matéria para um
folhetim, á falta de melhor, em tempo como este, tão falho de outros
temas que ocupem a atenção, em meio da geral pasmaceira reinante.
237
JOSÉ DE MESQUITA
Comecemos ab-ovo, vale dizer do embrião da nossa vida
política, que é a data do termo de fundação do arraial de S. Gonçalo
Velho, a 8 de Abril de 1719 — marco inicial da nossa História. Bem
poucos saberão que foi um sábado, e mais de aleluia, véspera ridente
de Páscoa, esse dia em que vinte e dois «homens bons» da rija
tempera bandeirante, plantaram à margem do Cuiabá, o germe que
deveria, em pouco, frutificar nas ricas minas ao Norte matogrossense.
Não era, entretanto, o sábado o dia preferido pelos
colonizadores primevos para as fundações, tanto assim que de seis
outros termos de ereção de vilas e povoados, nenhum se efetuou
naquele dia, Vila Bela da Santíssima Trindade foi erigida num
Domingo da Paixão, 19 de Março de 1752; em domingo, igualmente,
fundou-se, a 21 de Janeiro de 1871, São Pedro del Rey, hoje cidade
de Poconé; a primitiva Albuquerque, berço da formosa Corumbá,
teve sua origem a 21 de Setembro de 1778, numa segunda-feira; em
uma terça-feira, 6 de Outubro de 1778, foi fundada Vila Maria do
Paraguai ancestral da cidade de S. Luiz de Cáceres; Nova Coimbra e
Príncipe da Beira, as duas histórias fortalezas coloniais, tiveram a sua
primeira pedra erigida numa 4.ª e numa 5.ª feira, 13 de Setembro de
1775 e 20 de Junho de 1776.
A. segunda-feira parece ter um signo revolucionário em
nossos fastos, pelo menos é o que se induz da coincidência de ter sido
nesse dia deposto o último governador geral, Magessi, a 20 de
Agosto de 1821, bem assim de haverem sido 2.as feiras os dias do
assédio á Assembléia Legislativa, a 10 de Abril de 1899, o trágico 4
de Novembro de 1901, da tristemente célebre Bahia do Garcês é o dia
2 de Julho de 1906, em que as forças da Coligação, tomaram a
Capital, com a fuga do presidente Paes de Barros. Parece que
somente as revoluções de 1892 e 1916 não têm sua historia ligada a
uma 2.ª feira, pois ambas tiveram o seu começo num sábado,
respectivamente 7 da Maio e 1.º de Julho.
É de notar que foi também numa segunda-feira que Cuiabá
recebeu, ao despertar de uma festa em que o nome do Imperador fôra
ovacionado, a notícia da proclamação da Republica — a grande
revolução incruenta de 1889.
Mantêm as 3.as feiras uma tradição lúgubre, assinaladas pelas
páginas rubras do assassínio de João Poupino Caldas, em 1837, do
misterioso homicídio de Laureano Xavier, a 19 de Março de 1872 e,
mais recentemente, da
238
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
morte de Nicanor Dorilêo, em 6 de Março de 1917, todos três chefes
políticos, desaparecidos em circunstâncias trágicas e cercadas de
mistérios.
A quarta-feira deveria gosar de especiaes prerogativas em
nossos fastos, de vez que foi nesse dia que se erigiu, a 1.° de Janeiro
de 1727, a Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, em que se
transformou,com honras oficiais, o núcleo de mineradores fundado
oito anos antes por Moreira Cabral.
Entretanto, si registra a chegada das alviçareiras novas da
Independência e do fim da guerra (22 de Janeiro de 1822 e 23 de
Março de 1870), também foi o dia em que chegou a Cuiabá o ávido e
impopular Magessi (6 de Janeiro de 1819) e em que morreu, debaixo
da consternação de todo o povo, o nunca esquecido D. José A. dos
Reis.
Afigura-se que a 5.ª feira é propicia ás armas cuiabanas, pois
foi numa data dessas que se deu a heróica retomada de Corumbá do
poder dos paraguaios e a epopéa inimitável de Dourados, em que
Antonio João sagrou para sempre o valor de uma raça privilegiada.
Si bem que consagradas ao Padroeiro da cidade, registram,
todavia, as 6.as feiras algumas efemérides bem tristes, bastando
acentuar que foi nesse dia que chegou a Cuiabá o rapace e ominoso
Rodrigo César, cuja passagem pelo Governo se assinalou pela
extrema decadência das minas e em outra 6.ª feira que se desfechou o
drama sanguinolento das paixões exaltadas do nativismo, conhecido
pelo nome de «Rusga» ou «matança dos bicudos».
***
Encaradas sob o ponto de vista do folk-lore e das tradições
populares, aliado ao espírito de profunda religiosidade do nosso
povo, ou dias da semana oferecem campo também a curiosas
observações.
As 2.as são os dias das almas, tidos, como as 6.as —
principalmente da quaresma — por mal assombradas, sendo que
nesses dias costumavam sair as «encomendações» acompanhadas de
rabecão, com triste psalmeio de rezas e cantigas macabras.
Consagradas ao S. Benedicto das Escuras (que alguns querem
que seja das Curas), as 3.as são dias de grande devoção, bem assim as
6.as, dia do Bom Jesus, enchendo-se as egrejas para as Missas desses
milagrosos Oragos.
Ha uma crença desseminada entre os nossos paisanos, que
empresta virtudes especiaes ao dia de sábado, dizendo-se que os
devotos da Virgem do Carmo que morrem nesse dia não ficam no
purgatório, pois que todo sábado Nossa Senhora desce a buscar os
seus piedosos fieis e os leva consigo para o céu. Ainda ha pouco
ouvi, no sertão, contar que um «sitiante», devoto mas carregado de
muitas culpas, morrera ás primeiras horas de um domingo, fato que
foi comentado, na simplicidade da crença daquela boa gente rústica,
como sendo prova do que ficou afirmado.
Para terminar, os caipiras costumam dizer de qualquer serviço
tosco ou mal acabado, que é obra de 2.ª feira, quer dizer de dia de
ócio, quando não de ressaca... Já diziam mesmo os nossos avós —
não ha sábado sem sol, domingo sem missa ou segunda sem preguiça.
Será preciso esclarecer — leitores amigos e bondosas leitoras
— que este rodapé foi escrito numa segunda-feira?
239
240
Cuiabá, MCMXXXIII.
GENTE E COISAS DE ANTANHO
VI
ICONOGRAFIA MATOGROSSENSE
Para nos persuadir com segurança como têm sido tratados
com verdadeiro descaso assuntos dos mais importantes referentes ao
estudo da História matogrossense, basta atentemos para o pouco ou
nenhum interesse despertado até hoje pela iconografia em nosso
meio.
As coletâneas de imagens ou retratos, de que se tem a mais
remota noticia na «Illustrium imagines» de Mazzochi, datada de
1517, são, incontestavelmente, uma das mais curiosas fomas de
repositórios de cousas do Passado, que os povos cultos sóem
organizar em seus museus e arquivos.
Em Mato-Grosso, salvo uma ou outra tentativa falha e
truncada, que nos conste, o que se tem feito é, ao contrário, permitir o
extravio e arruinamento de coleções iniciadas e de grande valor
histórico.
Assim, para citar apenas a mais antiga e conhecida, vale
apontada, como índice flagrante, aquela existente no Senado da
Câmara de Vila Bela, a que se referem João Severiano (1) e Taunay
(2), que constava, no dizer deste ultimo, dos «retratos em tamanho
natural do rei D. João VI e dos cinco primeiros governadores».
Taes retratos, si é que não acabaram, no estrago que devorou
o arquivo colonial preciosíssimo, tão lastimado pelo eminente
Castelnau — quel ne fut pas mon chagrin de voir que les rats et les
termites avaient en(l) Viagem ao redor do Brasil, III, 122.
(2) A cidade de M. Grosso. 1.ª edição pág. 85.
241
JOSÉ DE MESQUITA
tiêrement détruit tous les papiers!...» (3), foram desviados para fora
de Mato-Grosso, salvando-se apenas uma ou outra cópia, que mãos
caridosas preservaram de completo perdimento.
De Rolim de Moura reproduz o próprio Severiano a efígie em
sua obra nunca assaz encomiada, e deve-se atribuir já tirada do
original primitivo.
O conde de Azambuja, entretanto, dada a sua atuação
posterior na alta administração, como vice-rei que foi do Brasil,
deixou a sua figura em mais de um retratário, podendo-se citar a do
Instituto Arqueológico e Geográfico de Alagoas, de que Luiz
Edmundo nos dá uma admirável cópia no seu «O Rio de Janeiro no
tempo dos Vice-reis». (4)
Do segundo governador, João Pedro da Câmara, bem como do
quinto, João de Alburquerque, não conheço referencias aos retratos,
que si existem, estão a demandar a curiosa investigação dos
amadores.
Sabe-se, através da narrativa feita por Estevão de Mendonça,
a maneira pela qual se conseguiu divulgar o retrato de Luis de
Albuquerque, o quarto da preciosa galeria, cujas reproduções, feitas
por Jorge Mousnier e Luiz Leduc são hoje bastante conhecidas. (5)
Dos cincos primeiros Capitães-generaes da galeria
setecentista ha ainda a referir o terceiro, Luiz Pinto, depois visconde
de Balsemão, de quem, todavia, não será difícil obter outra cópia, em
se sabendo que na coleção de retratos do celebre abade de Sever,
Diogo Barbosa Machado, existe catalogado sob n.º 1168, preciosa
estampa, em cinco estados, no tomo III, que compreende os «varoens
portuguezes insignes na campanha e gabinete».(6) Posto tirado em
data muito posterior à sua passagem pelo governo de Mato Grosso, já
como Conselheiro e Ministro de Estado dos Negócios do Reino —
em 1801— á falta do primitivo, de difícil rastreio, poderia ser
reproduzido para a galeria dos nossos administradores dos tempos
coloniais.
De Caetano Pinto dá-nos noticia o já citado ensaio
taunaisiano, sendo de prever que o de Oeynhausen também exista em
alguma das antigas Capitanias por ele dirigidas, como Ceará e São
Paulo.
(3) Expedição, III, 67.
(4) Ob. cit. Pág. 24.
(5) Datas matogrossenses, I, 312.
(6) Anaes da Bib. Nac. vol. XX, pg. 63.
242
GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
Acerca do sétimo governador, o inditoso Manoel Carlos, de
efêmera passagem pelo poder, falecido em Vila Bela, nada consegui
pesquisar em relação ao seu retrato, si é que, porventura haja sido
colocado na galeria da antiga capital.
Quanto a Magessi, V. Corrêa Filho fez-lhe reproduzir a
estampa, em ponto grande, que existe no Palácio Alencastro,
ilustrando com ela o seu valioso ensaio «De Magessi a Pimenta
Bueno». (7)
Si, em referencia aos Governadores do período colonial,
nenhum cuidado houve ainda em organizar, com esses elementos
esparsos, a galeria de retratos, mais se agrava esse descaso em
relação aos presidentes da província, sendo mais fácil, pelo menor
tempo decorrido e maior notoriedade de muitos deles, a organização
da coletânea aludida.
De vários já existem, mesmo em Cuiabá, as fotografias, a que
faltaria somente a reprodução devidamente padronizada — como
Floriano, Melgaço e Couto de Magalhães, existente o primeiro no
Instituto por oferta do cel. Hermenegildo Figueiredo e os outros na
Academia de Letras, cujos patronos são de duas das suas cadeiras.
Essas mesmas sociedades possuem já, nos seus arquivos,
comquanto ainda em inicio, uma apreciável coleção de retratos, quer
em molduras, ampliações ou mesmo trabalhos a óleo, valiosos, quer
em reprodução fotográfica, podendo-se citar, como mais notáveis, o
do Barão de poconé, doado pelo dr. Josephi Nunes Ribeiro, o de
Pedro II, presente do dr. Fenelon Müller, os de Leonardo Soares de
Souza, um dos fundadores de Vila-Maria e seu genro João Pereira
Leite, senhor de Jacobina, ofertas do snr. Hildebrando Esteves,
descendente desses egrégios varões, um que se atribue ser João
Poupino Caldas, doado pelos descendentes do ilustre cuiabano e um
outro do dr. Ayres Augusto de Araújo, o 2.° bacharel matogrossense,
oferta do seu digno filho cel. Pedro Augusto de Araújo.
Em ponto pequeno, oferecidos por vários sócios do Instituto,
existem na preciosa coleção, entre outros, Batista das Neves, Pinheiro
Guedes. Cláudio Soído, Ramiro, P. Ferro, dr. Carvalho (A. G.),
Ulhôa Cintra, Amâncio Pulquério (mais de uma cópia), Joaquim
Gaudie, Barão de Diamantino e outros.
A galeria dos presidentes do Estado, existente no Palácio de
Cuiabá, e de que, no governo D. Aquino, se fez um quadro
interessante, é, apesar de incompleta e faltar-lhe a necessária
uniformidade, uma coleção apreciável tendo havido, nos Governos
Pedro Celestino, Estevão Correa e Mario Corrêa, louvável trabalho,
no sentido de melhorar e integrar a mesma coleção.
Muito ha ainda que fazer no que diz respeito á iconografia
matogrossense — sabida a importância que a este ramo se empresta
hoje nos estudos históricos.
Que estas notas escritas sem outra preocupação que a de
registrar o que ocorre neste importante assunto, sirvam de estimular
esforços nesse sentido — e o seu autor se dará por bem pago e
satisfeito com ter avivado a solução de aspecto dos mais curiosos do
estudo e conservação do nosso Passado.
Janeiro, MCMXXXIV.
(7) Notas á Margem. Pág. 56.
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GENTE E COISAS DE ANTANHO
VII
ARTISTAS IGNORADOS
A nossa História belartistica é quasi nula — atestam-no os
poucos que perlustraram com olhos de ver o passado matogrossense e
as cousas que lhe dizem de perto.
Nem poderia ser de outra forma, dadas as condições especiais
em que se formou a nossa psiquê de povo e as componentes raciaes
de que derivamos. Bandeirantes e mineradores, preadores de índios e
caçadores de ouro, milicianos e aventureiros, certo, pouco se lhes
daria, aos primitivos ocupadores do sertão matogrossense, de
cogitações de arte e de estesia.
Nem por isso se dirá, porém, que não tivemos artistas, pois
não só aquele se chamará assim que tiver subidos talentos e variado
gosto senão e igualmente o que revelar, posto em forma primitiva, a
penetração e o natural pendor pela Arte e pela Beleza. Artistas
primitivos, obscuros muitas vezes anônimos, esses «Alexandrinos»
que deixaram nos retábulos de nossas egrejas coloniais, nos frescos e
molduras do Palácio de Vila Bela ou nas expressões rítmicas da alma
popular, as obras do seu engenho de «santeiros» e trovadores, em
relevos, pinturas e cantigas — quem jamais lhes dirá a historia, o
nome ou lhes conhecerá o destino fluindo, humilde e apagado, como
veio d’agua, que os compêndios e mapas não assinalam e só de
algum raro viajor conhecido? A arte primitiva que de vezes a tenho
lobrigado nos trabalhos de talha dos nossos altares, nos miúdos
lavores dos santeiros e encarnadores dos ourives e artífices cujo
nome as crônicas silenciam e só a tradição oral registra, já deturpado
e irreconhecível!...
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JOSÉ DE MESQUITA
Mencina V. Corrêa Filho o P. José Manoel de Siqueira e José
da Silva Nascimento entre os que, nas épocas colonais, cultivaram a
pintura em Mato Grosso, dizendo de períodos posteriores que a
pintura continuou a sustentar-se á maneira das plantas epiphytas». (1)
Realmente, foi o que se deu. O cuiabano, em geral, revela
gosto pelo desenho, faltando-lhe, porém, especialização que torne
essa inclinação em vocação artística. E, de outras feitas, desseivamlhe o engenho circunstancias adversas e sinão a hostilidade do
ambiente, a carência de recursos e o desamparo da parte dos poderes
públicos. O nosso meio pobre e geralmente inculto não é o mais
propício ao desabrochar de talentos artísticos, e menos ainda de
Mecenas que os acolham e estimulem. E si, por vezes, encontram os
nossos malogrados artistas algum braço paternal que os sustenha, não
faltam ali descaminhos de toda a sorte em que se lhes transvie a
incipiente vocação.
Tal foi o caso de Pedro Gaudie Lei, de que farei objeto desta
crônica, focando, na sua pouco estudada individualidade, um índice
curioso do malogro de uma vocação artística, de um desses obscuros
cuja figura, no dizer de Fialho. «escandalisou o olho glacido dos que
saboream o seu rhum depois do jantar, espapaçadas na vida, entre um
charuto e um conhecido».
A geração do gôrado artista é uma geração que, si não acabou,
vai desaparecendo.
Os que, entretanto, o encontraram ainda, neste palco de
comedia que se chama vida, devem lembrar-se da lúcida esperança
que foi o moço cuiabano, inteligente, arrojado, vibratil, todo nervos e
talento, fazendo prognosticar-lhe um belo destino de artista, destino
que, — ó irrisória previsão humana! deveria desfechar-se
sinistramente nas trevas da dipsomania e da demência, tendo como
epílogo lúgubre uma célula da Santa Casa onde se lhe cerrariam na
noite impenetrável os olhos antes abertos para as belezas e os
sortilegos encantamentos da vida... Nascido em Abril de 1850, teve
Pedro Gaudie por pais o abastado Tenente Coronel André Gaudie
Ley, filho do Capitão-mór Gaudie, e D. Rita de Campos Maciel,
também de ilustre progênie, sendo Pedro o sétimo filho do casal, cuja
prole numerosa ascendeu a treze descendentes. (2) O seu
(1) «Mato-Grosso», 118.
(2) O Capitão-mór A. Gaudie Ley e sua descendência, na Rev. do instituto H. M. Grosso. 2.ª
parte, cap. VI.
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GENTE E COISAS DE ANTANHO
JOSÉ DE MESQUITA
assentamento dá-lhe 8 meses no dia em que recebeu as águas lustraes
do batismo — 28 de Dezembro de 1850 — levando por padrinhos ao
Comen. Luiz Moreira Serra e sua mulher D. Luiza Olímpia Gaudie
Serra, tia do neófito. Revelou desde cedo, como relatam pessoas da
família, viva inclinação pelo desenho, especializando-se no gênero de
retratos, em que deixou trabalhos apreciáveis a crayon. Um desses
tive oportunidade de ver em casa do Coronel João Baptista de
Oliveira Sobrinho, a quem devo valiosas informações acerca do
malogrado artista cuiabano: é um retrato do Barão de Aguapei, em
ponto grande, trabalho indiciador do gosto artístico do jovem Gaudie
e que lhe valeu por parte daquele titular e chefe liberal decidido
auxilio, consubstanciado na pensão que lhe votou a Assembléa
Provincial para a continuação e aperfeiçoamento de seus estudos na
Europa.
Essa subvenção, que vem mencionada na tabela n.º 13 anexa
á proposta de orçamento para 1883 (3) era de 600$000 anuais,
quantia que, em taes eras, se afiguraria principesca, atendendo-se que
a outros pensionistas se concedia por ano 360$000 (Antonio
Francisco de Azeredo e Luiz de Souza Ponce) é até 240$000 (João
Amâncio da Fonseca e Francisco Antonio de Arruda Pinto).
Com esse adminiculo fez-se rumo do velho mundo o cultor da
arte do lápis.
É ele quem nol-o diz, no processo matrimonial constante de
um justificação procedida em 1890, para a prova do seu estado livre
— «... tendo saído deste Estado em 1881, foi directamente para o Rio
de Janeiro, de onde seguiu para o Reino da Itália e ali se demorou até
o ano de 1885, época em que para aqui regressou definitivamente».
(4)
Atestam o seu estado de solteiro na justificação como o tendo
conhecido em Roma, as testemunhas Carlos Addor, suisso e
Guiseppe Orlando, italiano, que ambos declaram ter convivido e
entretido relações em Roma com o justificante.
Da sua vida estudantil pouco se colhe mais do que narra a
tradição familiar: deu-se o moço á bonachira, á folgança e a boêmia,
sendo quasi nenhum o seu aproveitamento. Ao cabo de 4 anos volvia
aos penates. (5) onde
dentro em pouco, se lhe oferecia a perspectiva de uma regeneração de
vida pelo casamento com a sua prima Constança Serra. Posto entre
ambos medeasse notável diferença de idade, tendo ela 22 anos menos
que o esposo, o enlace se fez e nem por isso valeu a suster os
desvarios do infortunado pintor no aclive do vicio em que se lançara.
Três filhos lhe vieram dessa união, dois mortos em tenra idade, —
Carlos e Lavinia — e outro, Antonio, que, sobrevivendo aos pais,
veio a sucumbir ha cerca de dois meses, assassinado estupidamente,
no seu sitio das «Palmeiras». A vida de Pedro Gaudie foi um rosário
de amarguras sem conto, que os temporaneos certo não terão
olvidado.
Episódios trágicos a ensombraram, por vezes, como o que
levou á barra do tribunal popular. Tudo isso pouco faz ao nosso
propósito e não ha mister esmiuçar-lhe a biografia.
Certo é que no lançante do vicio a que se atirara foram-se-lhe
embotando as aptidões artísticas e a própria noção do dever. Premido
pela necessidade de emprego que não conseguiu em sua terra,
emigrou para Corumbá onde esteve com família algum tempo e
depois para Miranda, encontrando ali o amparo de parentes e amigos.
Nesta ultima cidade se encontrava Pedro Gaudie quando, a 29 de
Março de 1901, lhe morreu a esposa, em Cuiabá, precedida no
túmulo por um filho e logo seguida por outro. Voltou ele á sua cidade
natal, na mais dolorosa decadência física e moral que imaginar-se
possa, arrastando-se cerca de três anos, até que, ralado de desgostos e
minado por tenaz morbo, veio a sucumbir, já então vitima de cruel
psicose, a 4 de Agosto de 1905, num compartimento da Santa Casa.
Tal o desfecho lancinante de uma vida que se fadara de começo ás
glorias de uma carreira brilhante. O atavismo, talvez, o tarou,
marcando-o para a infelicidade; quiçá a incompreensão ou a
hostilidade ambiente precipitou o desfecho do seu drama psíquico.
De seus trabalhos pouquíssima cousa se salvou: alem do
retrato já referido do Aguapei, conheço um do Bispo D. Carlos,
existente no Seminário, que foi o primeiro que ele desenhou ao voltar
da Europa, tendo ficado exposto na casa comercial de Francisco das
Neves, conforme depoimento do nosso historiógrafo Estevão de
Mendonça. De referencia de terceiros sei ter ele feito ainda outros
retratos: do Dr. Arnaldo Novis e um de sua sogra — este
deploravelmente inutilizado por mãos inconscientes.
(3) Relatório do Pte. J. M. de Alencastro, 1882.
(4) Ver na «Tribuna» n.° 28 de 13-5-85 a noticia da sua chegada da Europa.
(5) Archivo eclesiástico. Justificações, masso n.º 19.
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GENTE E COISAS DE ANTANHO
Não se lhe circunscrevia o gosto artístico apenas á pintura,
pois era também exímio pianista e foi professor de Musica, bem
como de Desenho. Dele, entanto, nada se aproveitou, como também
de Francisco Catharino que, igualmente, consta ter deixado bons
trabalhos perdidos em mão extranhas e profanas...
Este, de resto, tem sido o destino triste dos artistas humildes e
ignorados.
Cuiabá, MCMXXVII.
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