A influência de Federico García Lorca na Poesia de Pablo Neruda
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A influência de Federico García Lorca na Poesia de Pablo Neruda
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS COMISSÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA A influência de Federico García Lorca na Poesia de Pablo Neruda por Roberto Ponciano Gomes de Souza Júnior Curso de Mestrado em Letras Neolatinas (Programa de estudos literários: Literatura Hispânica) RIO DE JANEIRO 2015 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS COMISSÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA A influência de Federico García Lorca na Poesia de Pablo Neruda Roberto Ponciano Gomes de Souza Júnior Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito à obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literaturas Hispânicas). Orientador: Prof. Doutor Miguel Ángel Zamorano Heras. RIO DE JANEIRO 2015 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS COMISSÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA A influência de Federico García Lorca na Poesia de Pablo Neruda Roberto Ponciano Gomes de Souza Júnior Orientador: Professor Doutor Miguel Ángel Zamorano Heras. Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literaturas Hispânicas). Aprovada em ____/____/_____, por Presidente, Prof. Dr. Miguel Ángel Zamorano Heras (UFRJ) Prof.ª Dr.ª Silvia Inés Cárcamo de Arcuri (UFRJ) Prof.ª Dr.ª Helena Días dos Santos Lima (CEFET e UERJ) Prof. Dr. Víctor Manuel Ramos Lemus (UFRJ) (Suplente) Prof.ª Dr.ª Maria do Carmo Cardoso da Costa (UFRJ) (Suplente) Agradecimentos A Pricila Regina Teixeira, minha esposa, pelo tempo roubado ao convívio familiar e aos meus filhos, Ana Carolina de Jesus Souza, Bruna de Jesus Souza e Enzo Teixeira Correia Palma. Ao meu orientador, Miguel Ángel Zamorano pela paciência inesgotável e pelas firme orientação que tornaram possível esta dissertação. A meu pai, Roberto Ponciano, me deste a retidão que necessita a árvore para crescer, e a minha mãe, Sueli de Jesus Pereira e toda a minha família. À professora Helena Días, que plantou a semente que originou este trabalho. À professora Sílvia Cárcamo e, através dela, a todos os professores e professoras do curso de letras da UFRJ. A Fernando Ladera Cubero, descendente de exilados e lutadores socialistas e republicanos espanhóis, que semeou em mim o amor pela Espanha. A João Mcormick, que me auxiliou na revisão última dos textos e na formatação final. Por último aos pobres e oprimidos do mundo, a quem Neruda e Lorca dedicaram sua poesia. RESUMO GOMES DE SOUZA JÚNIOR, Roberto Ponciano. A influência de Federico García Lorca na Poesia de Pablo Neruda. Rio de Janeiro, 2015. Dissertação de Mestrado em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literaturas Hispânicas), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. O objetivo deste trabalho é fazer um estudo comparativo da obra de Pablo Neruda, antes de sua estada na Espanha, confrontando sua poética com as mudanças de posição estética, política e ideológica — causadas principalmente pelo encontro com Federico García Lorca e a Geração de 1927 (a vanguarda poética espanhola de então, que revolucionará a forma e o conteúdo da poesia de Neruda). Ressaltaremos, entretanto, que na verdade há troca mútua de influências e experiências, Neruda receberá os influxos da vanguarda de 1927 na Espanha, mas também trará novidades estéticas e temáticas para esta geração. A finalidade é provar que este encontro leva a uma série de mudanças na obra nerudiana, que assim vai se “contaminar” de Espanha e de Lorca, mas também de todos os problemas de forma e conteúdo que abalam a Espanha; Neruda recebe a influência espanhola e das vanguardas que dinamizaram a Geração de 1927 e a traz para um modo poético chileno, fazendo o encontro de duas pátrias literárias. Assim, o recorte a ser mostrado neste projeto é este salto qualitativo dialético: Parte-se de um Pablo Neruda inicial, místico e mítico, quase niilista, descompromissado politicamente, frente a uma situação-limite da Guerra Civil (que o leva a uma superação de seu pensamento inicial), ampliando seu campo estético literário. Sua poesia estará prenhe do compromisso político e da prática militante, mas carregará todas as influências poéticas anteriores: as vanguardas, o realismo fantástico, o surrealismo. O suporte teórico do texto e a origem dos dados serão textos originais de Neruda e de Federico García Lorca, e textos teóricos de Yurkiévich, de Rovira, de Dámaso Alonso, de Octavio Paz, para compreender as questões estéticas envolvidas aqui. Vamos comparar os textos de Neruda até a fase das duas primeiras Residências na Terra com os textos posteriores a estada de Neruda, como cônsul, em Madrid e Barcelona; principalmente a III Residência na terra e o Canto Geral. Assim a proposta da análise e o objetivo da pesquisa são situar Neruda na literatura latino- americana, como um elo entre a poética latino-americana e os caminhos de vanguarda da Geração de 1927 na Espanha. Entender Neruda como síntese, simbiose de um tempo histórico chamado por Hobsbawm de “o breve século XX”, a mescla de ismos e vanguardas, que revolucionará a poesia chilena ao trazer a influência de todas as invenções modernas experimentadas na Europa. Palavras-chave: Guerra Civil Espanhola; Mudança Modernidade, Mudança temática, Geração de 1927. estética; Vanguarda, ABSTRACT GOMES DE SOUZA JÚNIOR, Roberto Ponciano. A influência de Federico García Lorca na Poesia de Pablo Neruda. Rio de Janeiro, 2015. Dissertação de Mestrado em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literaturas Hispânicas), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. The objective of this work is to make a comparative study of the work of Pablo Neruda before his stay in Spain, faced with changing aesthetic position, political and ideological — mainly caused by the encounter with Federico García Lorca and the Generation of 1927, the vanguard poetic Spanish then, that will revolutionize the form and content of Neruda's poetry. We stress, however, that in fact there is mutual exchange of influences and experiences, Neruda will receive the 1927 forefront of inflows in Spain, but also bring aesthetic and thematic news for this generation. The purpose is to prove that this meeting leads to a lot of changes in nerudiana work, so will change Generation of 1927 and Lorca, but also all the problems of form and content that upset the poets of Spain; Neruda receives the Spanish influence and avant-garde that streamlined the Generation of 1927 and brings a Chilean poetic way, making the meeting of two literary homelands. There is a dialectical qualitative leap: It starts with a Pablo Neruda initial, mystical and mythical, almost nihilistic, uncompromising politically front of a Civil War-limit situation extending his literary aesthetic field, his poetry is pregnant with political commitment and militant practice, but it charges all previous poetic influences: the avant-garde, the fantastic realism, surrealism. The theoretical support of the text and the data source will be original texts of Neruda and Federico García Lorca, and theoretical texts of Yurkiévich of Rovira, of Dámaso Alonso, of Octavio Paz, to understand the aesthetic issues involved here. Let's compare the Neruda texts to the stage of the first two Residence on Earth with the later texts the stay of Neruda as consul in Madrid and Barcelona; especially the Third Residence on Earth and Canto General. Thus the proposal of the analysis and the research objective are located Neruda in Latin American literature, as a link between the Latin American poetry and avant-garde ways of generating 1927 in Spain, understand it as a synthesis, symbiosis of a time history by Hobsbawm called the “short twentieth century”, the mixture of isms and vanguards, which will revolutionize the Latin American poetry to bring the influence of all modern inventions experienced in Europe. Keywords: Spanish Civil War; Aesthetic change; Vanguard, Modernity, thematic change, Generation of 1927, the Spanish Civil War. RESUMEN GOMES DE SOUZA JÚNIOR, Roberto Ponciano. A influência de Federico García Lorca na Poesia de Pablo Neruda. Rio de Janeiro, 2015. Dissertação de Mestrado em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literaturas Hispânicas), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. El objetivo de este trabajo es realizar un estudio comparativo de la obra de Pablo Neruda antes de su estada en España, ante el cambio de posición estética, política e ideológica — causada principalmente por el encuentro con Federico García Lorca y la Generación del 1927, la vanguardia poética española de entonces, que va a revolucionar la forma y el contenido de la poesía de Neruda. Resaltamos, sin embargo, que, de hecho, hay intercambio de influencias y experiencias. Neruda recibirá de la vanguardia de 1927 sus problemáticas e experimentos, pero también traerá cosas nuevas en la forma y en el contenido. Esta reunión lleva a una gran cantidad de cambios en el trabajo nerudiano, por lo que Pablo Neruda se “contamina” de España y Lorca, y también de todos los problemas de forma y contenido que interesaban a la generación del 1927; Neruda recibe la influencia española y vanguardista que de esta Generación, en canje ofrece una forma poética chilena, por lo que hay el encuentro de dos patrias literarias. Así, el dibujo para mostrar en este proyecto es este salto cualitativo dialéctico: Se inicia con un Pablo Neruda, místico y mítico, casi nihilista, sin influencias políticas en su poesía, enfrentando a una guerra civil (lo que lleva a una revisión de sus pensamientos iniciales), extendiendo su campo de la estética literaria. Su poesía está embarazada con el compromiso político y la práctica militante, pero que tiene influencia de todas las influencias poéticas anteriores: la vanguardia, el realismo fantástico, el surrealismo. El soporte teórico del texto y las fuentes de datos serán textos originales de Neruda y Federico García Lorca, y los textos teóricos de Yurkiévich de Rovira, de Dámaso Alonso, de Octavio Paz, para enfrentar a las cuestiones estéticas que trabajamos aquí. Vamos a comparar los textos de Neruda a la etapa de las dos primeras Residencias en la Tierra con los textos posteriores de la estancia de Neruda como cónsul en Madrid y Barcelona; especialmente la III Residencia en la tierra y el Canto General. Así, la propuesta del análisis y el objetivo de la investigación es situar Neruda en la literatura latinoamericana, como un enlace entre la chilena y las formas de vanguardia de la Generación del 1927 en España, lo entienden como una síntesis, la simbiosis de una época histórica, que Hobsbawm llama el “corto siglo XX”, la mezcla de ismos y vanguardias, que va a revolucionar la poesía chilena para llevar la influencia de todas las invenciones modernas experimentadas en Europa. Palabras clave: Guerra Civil Española; Cambio estético; Vanguard, la modernidad, el cambio temático, Generación de 1927. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO........................................................................................................11 2. NERUDA PRÉ-ESPANHA......................................................................................19 2.1 OS PRINCÍPIOS DA POESIA DE PABLO NERUDA...........................................19 2.2 O POETA E SUA PASSAGEM PELO ORIENTE — PARA UMA POESIA IMPURA.......................................................................................................................27 3. A GERAÇÃO DE 1927 E FEDERICO GARCÍA LORCA.......................................66 4. A GERAÇÃO DE 1927 E A GUERRA CIVIL ESPANHOLA.................................71 5. A ANÁLISE DA POESIA DE LORCA....................................................................78 5.1 LORCA E A INFLUÊNCIA POPULAR — EL CANTE JONDO.............................78 5.2 LORCA E O PICTÓRICO — O SURREALISMO..................................................88 6. A CONVIVÊNCIA DE NERUDA COM A GERAÇÃO DE 1927, EM ESPECIAL COM FEDERICO GARCÍA LORCA.........................................................................105 7. SÍNTESE DIALÉTICA: NERUDA PÓS-ESPANHA.............................................119 8. CONCLUSÃO.......................................................................................................140 9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................149 11 1. INTRODUÇÃO O objetivo deste trabalho é fazer um estudo comparativo da obra do poeta chileno Pablo Neruda, desde seus primeiros poemas, até as duas primeiras Residências na Terra, confrontado estas poesias iniciais com as mudanças de posição estética, política e ideológica — causadas principalmente pelo encontro com Federico García Lorca e a Geração de 1927 na Espanha, e o resultado deste salto qualitativo na sua poesia posterior, utilizando principalmente dois livros principais situados posteriores a esta experiência: Canto Geral e Terceira Residência na Terra. A hipótese é que a passagem de Neruda pela Espanha vai modificar de forma indelével sua poesia, que é um mescla de influências, que vão desde Góngora e Quevedo, a Rubén Darío, Joyce, T. S. Eliot, Walt Whitman, Gustavo Adolfo Bécquer, Mallarmé, Baudelaire, assim como a da Geração de 1927 na Espanha: que no seu vanguardismo fez a síntese dialética entre o passado (representado por Góngora) e as influências da poesia francesa e anglo-saxã, que vão renovar o ritmo e os temas desta geração. Ela vai criar uma forma de fazer poesia que vai recuperar o ritmo livre do poema, com rima internas, liberando-se do petraquismo do verso métrico rimado e experimentando formas e temas. Uma síntese do que foi feito por esta Geração se encontra no manifesto Por uma poesia impura, do próprio Neruda, publicada na revista que ele fundou, Caballo Verde. Este manifesto vai se antepor às tentativas de conservação da métrica antiga, representadas principalmente por Ramón José Jimenez e sues “motivos nobres” para a poesia, que seriam a manutenção da forma poética anterior e dos motivos greco-romanos e “ideais elevados”. Neruda vai representar a liberação da forma e do conteúdo, sua poesia se aproximara da poesia-prosa, com muitos poemas descritivos e narrativos, com musicalidade interna e seus temas serão todos os temas populares e do cotidiano (mesmos os políticos), mas também o vinho, o sino, o mar, as cebolas (assim como na poesia de Federico García Lorca, seu literário). Nos possíveis temáticos da nova geração de poetas espanhóis não havia assunto que não interessasse à poesia. Lorca chega a colocar o escatológico em seus poemas, e Neruda também chega a comentar as funções mais baixas do organismo humano: na sexualidade descrita com sensualidade, mas sem subjetividade amorosa, típica da fase das duas primeiras Residencias na Terra. Assim, este trabalho tem como hipótese como estes 12 influxos variados recebidos pela Geração de 1927 na Espanha vão influenciar a poesia nerudiana. Defendemos a ideia de que Neruda é um poeta inovador e renovador das artes na América Latina: sem se juntar a nenhum manifesto surrealista, foi surrealista antes do surrealismo e realista fantástico antes do realismo fantástico. Ao contrário de muitos que creem que sua poesia foi diminuída por seu engajamento político, demonstraremos nas páginas a seguir, que Neruda não restringiu sua poesia a um panfleto político partidário, nem mesmo na fase em que ele participou ativamente da Guerra Civil Espanhola, ou quando se candidatou e foi eleito senador pelo Partido Comunista Chileno e ajudou a eleger Salvador Allende. Nossa hipótese é que as influências anteriores, panteístas, vanguardistas, surrealistas, realistas fantásticas, líricas, pós-românticas, todas permaneceram, mesmo em seus poemas mais politizados como o Canto Geral. A importância deste trabalho, num momento de “crise da poesia”, com as desconstruções da linguagem e do sentido pós-modernas, é entender (através de um poeta que vai catalisar todos os ismos do que Hobsbawm chamou de “o breve século XX”) esta relação de ruptura entre tradição de vanguarda, manutenção e revolução, que se realiza em Neruda sem destituir sua poesia de sentido e narrativa. Neste ponto vamos utilizar os conceitos de vanguarda, modernismo, ruptura de um grande poeta e ensaísta latino-americano, Octavio Paz, no seu ensaio Os filhos do barro, no qual ele entende que o modernismo é uma “tradição de ruptura”, e que a questão primordial neste embate, se liga ao processo de reificação que a poesia faz diante da destruição de sentidos e teorias trazidos pelo desenraizamento, que vai ocorrer na tradição ocidental desde a ideia da “morte de Deus”. Ideia esta entendida como ruptura do presente eternizado cristão simbolizado pelo paraíso, e que foi expresso na poesia por Madame de Staël e na filosofia por Nietzsche. A orfandade de um futuro sem mudança, no paraíso (que também pode ser visto como inferno do imobilismo, por uma quimera de futuro sem futuro), esvaziado pela passagem sem volta de Cronos, que engole a todos os seus filhos, os filhos do barro: nós, reles mortais, órfãos de Deus e da imortalidade: O tema da morte de Deus é um tema romântico. Não é um tema filosófico e sim um tema religioso. Para a Razão, Deus existe ou não existe. No primeiro caso, não pode morrer, e no segundo caso, não pode morrer alguém que nunca existiu? Esse raciocínio é válido na perspectiva do monoteísmo e do tempo necessário e irreversível do ocidente. A antiguidade sabia que os deuses são mortais mas que, manifestações do tempo cíclico, 13 ressuscitam e voltam. Os marinheiros escutam de noite uma voz que percorre o Mediterrâneo dizendo “Pã morreu”, e essa voz anuncia a morte do deus e também anuncia sua ressurreição. A lenda náiade nos conta que Quetzalcoarl abadona Tula, imola-se, e se transforma no planeta duplo (estrela da manhã e estrela da tarde), mas que há de regressar um dia para retomar sua herança. Em contraste Cristo só veio à Terra uma vez. Cada acontecimento da história sagrada dos cristãos é único e não se repetirá. Se alguém disser “Deus morreu”, anuncia um fato irreproduzível. Deus morreu para todo o sempre. Na concepção do tempo como sucessão linear irreversível, a morte de Deus é um acontecimento impensável. A morte de Deus abre as portas da contingência e da sem-razão. A resposta dupla: a ironia, o humor, o paradoxo intelectual; também a angústia, o paradoxo poético, a imagem. As duas atitudes aparecem em todos os românticos: sua predileção pelo grotesco, pelo horrível, pelo estranho, pelo sublime irregular, a estética dos contrastes, a aliança entre riso e pranto, prosa e poesia, incredulidade e fideísmo, as mudanças súbitas, as cambalhotas, tudo enfim, o que faz de cada poeta romântico um Ícaro, um Satanás ou um palhaço não passa de resposta ao absurdo-angústia e ironia. Embora a origem de todas essas atitudes seja religiosa, trata-se de uma religiosidade singular e contraditória, pois consiste na consciência de que a religião está vazia. A religiosidade romântica é irreligião: ironia; a irreligião romântica é religiosa, angústia (PAZ, 2013, 54-55). Dando uma nova perspectiva à crítica de vanguarda da poesia de Neruda, trazemos a ideia de Octavio Paz, de que a contradição vanguardista da poesia vem da criação romântica de Richter da ideia da morte de Deus e da orfandade da humanidade, ligada à ruptura do tempo cíclico das religiões anteriores ao cristianismo. Desta forma, a tensão permanente entre ruptura e a busca de um refúgio através da poesia, com relação ao caos causado pela irreversibilidade do tempo e da maldição do ser para a morte. Assim surgem todas as utopias de um tempo cíclico, que de certa forma são um retorno a uma era mitológica de perfeição, era de ouro, desde o bom selvagem e o passado idílico da humanidade, às utopias marxistas e anarquistas; todas são de certa forma reações à destruição moderna e sua criação do novo a qualquer custo a todo tempo. Contradictio in adjecto da tradição da ruptura. Ruptura que vira ismo, truísmo e obrigatoriedade, o que é novo hoje, amanhã já é o velho que tem de ser destruído. Os retornos à antiguidade oriental e africana, feitos pelas vanguardas, expressam de certa forma esta nostalgia a um tempo que não seja linear e destruidor de todas as escolas e tradições. Na famosa frase de Karl Marx no Manifesto do Partido Comunista, o que identifica a modernidade é que tudo que é sólido se desmancha no ar, o que trazemos de novo, na pesquisa sobre Neruda, é ligar este desejo de utopia a uma criação imagética poética, o que resulta de uma imagem religiosa, a utopia marxista interpretada poeticamente dentro da tradição ocidental da orfandade de Cristo: Universo sem leis, mundo à deriva, visão grotesca do Cosmos. A eternidade 14 está assentada sobre o caos e, ao devorá-lo, se devora. Estamos diante da “natureza caída” dos cristãos, mas a relação entre Deus e o mundo se encontra invertida. não é o mundo caído na mão de Deus que se precipita no nada, é Deus quem cai no poço da morte. Blasfêmia enorme, ironia e angústia. A filosofia havia concebido um movido não por um criador, mas por uma ordem inteligente; para Jean Paul e seus descendentes, a contingência é uma consequência da morte de Deus: o universo é um caos porque não tem criador. O ateísmo de Jean Paul é religioso e se opõe ao ateísmo dos filósofos: a imagem do mundo como um mecanismo é substituída pela imagem de um mundo convulsionado que não para de agonizar mas não chega a morrer. A contingência universal se chama na esfera existencial, orfandade. E o primeiro órfão, o grande órfão não é outro senão Cristo. O “sonho” de Jean Paul escandaliza tanto o filósofo, como o devoto (PAZ, 2013, p. 57). Os vanguardistas, tantos os da reação moderna simbólica latinoamericana e espanhola, aos vanguardistas do século XX, retomam este tema: do caos, da contingência do homem na terra. Neste texto vamos situar Neruda dentro desta tradição e colocar a utopia socialista não só como questão política, mas como solução poética da contradição e deste paradoxo permanente. O resultado atual das pesquisas teóricas sobre a obra de Neruda o situam sempre num patamar de ligação entre a poesia latino-americana/chilena e espanhola/europeia (Carlos Rovira, Saúl Yurkiévich), como um poeta engajado e bibliográfico, que traz para a poesia os temas considerados “não nobres”, do quotidiano: a dura vida dos mineiros explorados nas minas de cobre no Chile, o massacre dos povos originais, dos operários e camponeses, a vida dos pescadores e das mulheres pobres chilenas, mas também o bosque chileno, a natureza exuberante de Macchu Picchu, o gato, a cebola, as uvas, o vinho, o mar, os sinos, a chuva, o sexo muitas vezes rude e sem pretensões líricas e românticas. Nosso texto não é inovador no sentido de que traz uma nova grande descoberta à análise de Neruda, mas se justifica como pesquisa acadêmica porque traz em seu bojo uma nova análise destas relações, a ideia analítica de Octavio Paz de que as vanguardas literárias do século XX, ao construir utopias, tentam reificar o destrutivo do tempo linear, inaugurado pela modernidade, e o abandono da utopia cristã do tempo eterno pós mortem. A ideia do ser para a morte heideggeriana é uma ideia que vai ser debelada nas utopias poéticas, construídas que são, de uma certa forma, como um retorno à perfeição e uma proteção à destruição revolucionária do tempo histórico, Paz mostra, assim como Jakobson, que a utopia socialista quando transformada em crença de perfeição e de funcionamento de um mecanismo perfeito, não suporta a idealização da poesia, Jakobson relata em A geração que esbanjou seus poetas, como uma geração inteira de poetas russos ou morreu na 15 prisão, ou se suicidou, ou foi executada por não conseguir se inserir na ideia destrutiva revolucionária. Assim, nosso trabalho traz a inovação de trazer para a narrativa da história de Neruda este truísmo do poético em sua contradição insolúvel com o revolucionário, como toda a modernidade, a tradição da ruptura, a busca da quimera, da utopia, da revolução; que destrói e retira pela raiz tudo que é velho e representa o passado; do outro lado, a mesma utopia como um espaço de conforto e retiro desta destruição permanente e cotidiana: (…) crítica da crítica e das suas construções, a poesia moderna, desde os pré-românticos, busca se assentar num princípio anterior à modernidade e antagônico a ela. Esse princípio, impermeável à mudança e à sucessão, é o começo do começo de Rousseau, mas também é o Adão de William Blake, o sonho de Jean Paul, a analogia de Novalis, a infância de Wordsworth, imaginação de Coleridge. Seja qual for seu nome, esse princípio é negação da modernidade. A poesia moderna afirma que é a voz de um princípio anterior à história, a revelação de uma palavra original da sociedade — paixão e sensibilidade — e por isto mesmo é a verdadeira linguagem de todas as revelações e revoluções. Esse princípio é social, revolucionário: regresso ao começo de antes da desigualdade: esse princípio é individual e diz respeito a cada homem, a cada mulher: reconquista da inocência original. Dupla oposição à modernidade e ao cristianismo, que é uma dupla confirmação tanto do tempo histórico da modernidade (Revolução) como do tempo do cristianismo (inocência original). Num extremo o tema da instauração de outra sociedade é um tema revolucionário, que insere no futuro o tempo do começo; no outro extremo, o tempo da restauração da inocência original é um tema religioso que insere o futuro cristão num passado anterior à Queda. A história da poesia moderna é a oscilação entre estes dois extremos: a tentação revolucionária e a tentação religiosa (PAZ, 2013, pp. 54-55). Para cumprir nossos objetivos, aqui delineados, utilizaremos a metodologia de fazermos a comparação dos textos de Neruda anteriores a sua passagem na Espanha, com os textos posteriores dele, dentro de uma perspectiva teórica poliforme. Seria impossível metodologicamente darmos conta de uma tarefa tão complexa (a das influências recíprocas entre Neruda e Lorca), com um único teórico. Usaremos Dámaso Alonso para entender a poesia espanhola, do romantismo e da chamada modernidade espanhola (diferente no tempo e na classificação da modernidade europeia), dos caminhos e perspectiva poéticas da Geração de 1927, principalmente de Federico García Lorca; Para Neruda usaremos primeiro Carlos Rovira, para entender o conceito de Neruda como poeta “autobiográfico”, o que não diminuiu em nada sua poesia. As auto-citações da poesia de Neruda, o fato de Pablo Neruda ser personagem de seus próprios poemas, o tornam um poeta ímpar, o Quixote de sua própria passagem pela Mancha. Neruda poeta-personagem acaba assim por personificar a destruição permanência do tempo histórico. Nossa análise se vale de Rovira mas não fica 16 restrita a uma autobiografia ou a uma notação da história de Neruda: se assim fosse, não seria um trabalho acadêmico com uma hipótese a ser confirmada, mas necessita desta linha histórica para demarcar o campo sociológico da atuação poética nerudiana. Yurkiévich será utilizado para entender o labirinto teórico de Neruda na Espanha, suas relações com Lorca e a Geração de 1927, mas também o que ele já traz formado em si e o que Neruda dá a Espanha. O manifesto nerudiano, Por uma poesia impura, é escrito por um chileno, que não é considerado nas análises espanholas da Geração de 1927 como membro desta, mas que é a mais perfeita descrição pormenorizada daquela geração. Entendemos que sim, Neruda, dentro dos possíveis estéticos, será influenciado por esta vanguarda espanhola, mas já traz em si, em gérmen, muitos destes elementos na obra anterior a sua chegada na Espanha, já que Residência na terra será escrita no Oriente, mas Residência na terra II será escrita em parte e finalizada na Espanha. Usaremos Angélica Cortázar, crítica e biógrafa de Neruda para explicar a marca autobiográfica na poesia de Neruda e as influências da militância política, do marxismo, da Guerra Civil, de como todo este conjunto de vivências ira transformar a poesia de Neruda: as transformações e as permanências das influências anteriores, a negação da negação. De como o Neruda militante político, em lugar de restringir, alarga o campo estético-teórico, ao incorporar novas possibilidades, sem eliminar as experimentações e vivências anteriores. Utilizaremos também Hernán Loyola, um dos principais críticos e biógrafos de Neruda, para refutar a ideia de que Neruda seja apenas um poeta autobiográfico, ou que tenha apenas sofrido influência espanhola, ou que tenha reduzido a sua poesia por conta de sua militância. Em primeiro lugar, Loyola vai mostrar como o autobiografismo de Neruda não reduz sua poesia, que contém, muito antes de serem oficializado por manifestos de vanguarda, elementos revolucionários e revolucionantes: como o onírico do surrealismo; o desenraizamento e o desencontro que serão temas recorrentes da literatura do século XX; o banal, o vulgar, os temas “baixos” e impuros, até mesmo os temas escatológicos ou o tédio do trabalho burocrático. Loyola reforça a ideia que Neruda não caiu na armadilha do “realismo socialista”, e mesmo quando sua poesia parece apenas um panfleto militante, como quando narra a batalha de Stalingrado, ele mantém todos os elementos literários intactos, sendo sempre um poema, e nunca apenas um folhetim do Partido Comunista. 17 Por fim, utilizaremos Octavio Paz para encontrar a síntese dialética do trabalho Nerudiano, para mostrar como as buscas de utopias se assinalam dentro da tradição poética do século XX,: da destruição do vanguardismo e da busca de conforto e reconciliação através de utopias filosóficas, políticas e poéticas, sejam estas poesias revolucionárias socialistas ou mero retorno poético ao passado, o que assinala o novo e a importância do que trazemos no nosso trabalho. Este é o liame que utilizaremos para perpassar o trabalho, que tem fontes literárias muito maiores, compulsamos praticamente toda a poesia de Pablo Neruda e de Federico García Lorca, assim como farta pesquisa bibliográfica teórica, não só literária, mas filosófica e histórica, Em que pese não seja um trabalho de biografia literária, não entendemos a literatura como campo à parte do mundo, que é uma ilusão de alguns teóricos, necessitamos resgatar o tempo histórico e os embates teóricos e filosóficos do tempo de Neruda e Lorca, para entendermos suas poesias, por isto a farta consulta de livros que vão de Hobsbawm a Marx, Nietzsche, Lúcáks, Deleuze, Adorno. Se não entendermos a complexa problematização teórica da literatura no século XX, seus embates e debates, não poderemos traduzir as imbricações teóricas da obra de Neruda e Lorca. Por fim, nesta introdução, ressaltamos que não é um trabalho de autobiografia literária de Neruda. Mesmo quando há descrição pormenorizada de fatos históricos, estes são pano de fundo para uma análise teórico-literária da poesia de ambos, de Neruda e de Lorca. Impossível, por exemplo, analisar a teoria de Lorca sem entender o que seja o Cante Jondo e a influência árabe e cigana em Andaluzia. Entender a poesia de Lorca sem a historicizar seria girar em falso e criar tautologias, mas a pretensão não é fazer história literária, ao reconstituir a historicidade do truísmo literário, imediatamente se passa a fazer a análise técnica dele por mecanismo da própria literatura e não por mecanismos históricos e ou sociológicos. A ideia deste trabalho não é narrar em detalhes a vida de Lorca, o objetivo é entender as inovações de forma de sua poesia, de onde elas vem, em que nível são um retorno ao passado e de que forma são revolucionárias suas invenções e influenciam na poesia de vanguarda da Geração de 1927. Assim também em Neruda, o objetivo não é traçar um paralelo histórico dele, não é uma apologia narrativa da vida do militante comunista, a ideia é entender como os traços literários de várias tradições, de Góngora a Rubén Darío, de Walt Whitman a Lorca, vão renovar a poesia de Neruda e através dela, vão influenciar 18 toda a vanguarda latino-americano. O objetivo deste trabalho acadêmico e correlacionar todas estas influências, sintetizá-las, explicá-las e concluir com a novação de que inserimos a contradição poesia x revolução em Neruda, na ideia da construção da própria poesia de vanguarda de todo o século XX, como defende Octavio Paz, que viveu no fio da navalho destas dicotomais e embates dialéticos: tradição x ruptura; conservação x renovação; destruição x retorno ao passado. Consideramos que esta seja a novidade teórica que traduzimos e que justifica a pesquisa acadêmica deste trabalho. 19 2. NERUDA PRÉ-ESPANHA 2.1 OS PRINCÍPIOS DA POESIA DE PABLO NERUDA Pablo Neruda é, antes de sua passagem pela Espanha, na construção inicial de sua poesia, um poeta metafísico, panteísta (com alguma influência de sua mestra na infância, a também prêmio Nobel de literatura, Gabriela Mistral), com inspiração na natureza e na mulher, com muito talento, mas com pouca preocupação com a temática social. Seus poemas são líricos, com ecos de romantismo tardio, vejamos por exemplo, o texto abaixo, de Proêmio, de Cadernos de Temuco: Uma rota de sol e uma luz e um roseiral. Nada mais eu pedia e naquela inquietude pousaram as sedas da minha branda canção (NERUDA, 1998, p. 27). O poema referido reflete as preocupações iniciais do jovem Neruda. Um poeta pobre, que parte para Santiago para estudar literatura (contra a vontade paterna, que o queria engenheiro), que é extremamente tímido e avesso às badalações, que veste roupas negras e escreve versos ora místicos, ora panteístas, ora românticos, extremamente exagerados em seus arroubos líricos. Não há nenhum traço que indique que ele será um poeta militante, engajado política e socialmente, como em sua história pessoal das décadas posteriores, de militância política assumida no Partido Comunista Chileno, do qual chega a ser senador e candidato à Presidência. Também não há as características da influência da modernidade espanhola, da temática variada, popular e social, assumida pela Geração de 1927, ou do desespero existencialista e do desencontro do homem com o mundo do século XX. Ricardo Eliécer Nefatalí Reyes Basoalto, um jovem que para escrever poesia vai cunhar um pseudônimo transformado depois em nome, Pablo Neruda — como o pai de Ricardo não o queria estudando poesia ou escrevendo poemas, o jovem poeta vai tomar de empréstimo o nome de um poeta tcheco. O interessante desta anedota real é que o Neruda original não chegou a ter a metade da fama daquele que lhe tomou de empréstimo o nome. Neruda não tem atividades políticas neste momento, ele não se infiltra em nenhum movimento de protesto organizado, nenhuma marcha de trabalhadores, nenhum ato socialista, nenhuma greve, não toma parte em sindicatos ou partidos políticos, o máximo que faz é escrever poemas 20 em jornais estudantis de cunho anarquista. Está bem distante de ser o poeta subversivo do futuro, é antes um jovem absorto na leitura de Gôngora, Baudelaire, Rubén Darío, Mallarmé, que tenta publicar seus livros e sobreviver através deles. Suas obras vão refletir, nesta época, as leituras apaixonadas de poetas espanhóis como Gôngora e Quevedo, Bécquer, Garcilaso de La Vega e de hispano-americanos como Rubén Darío e Gabriela Mistral. Ainda não havia a influência da leitura de Walt Whitman e dos poetas estadunidenses e anglo-saxões. Ele navega numa dualidade entre o misticismo panteísta e o lirismo-romanticismo tardio. Ratificamos que a obra nerudiana ainda não tem a marca do político-social em seus primeiros livros, que só aparecerão após a sua estada na Espanha, a convivência com a Geração de 1927 e a tragédia da Guerra Civil, que o marcará indelevelmente. Vejamos, por exemplo este poema de 20 poemas de amor e uma canção desesperada: Cuerpo de mujer, blancas colinas, muslos blancos, te pareces al mundo en tu actitud de entrega. Mi cuerpo de labriego salvaje te socava y hace saltar el hijo del fondo de la tierra. Fui solo como un túnel. De mí huían los pájaros y en mí la noche entraba su invasión poderosa. Para sobrevivirme te forjé como un arma, como una flecha en mi arco, como una piedra en mi honda. Pero cae la hora de la venganza, y te amo. Cuerpo de piel, de musgo, de leche ávida y firme. Ah los vasos del pecho! Ah los ojos de ausencia! Ah las rosas del pubis! Ah tu voz lenta y triste! Cuerpo de mujer mía, persistiré en tu gracia. Mi sed, mi ansia sin límite, mi camino indeciso! Oscuros cauces donde la sed eterna sigue, y la fatiga sigue, y el dolor infinito (NERUDA, 2004, pp. 12 e 13, Poema I). Este poema é típico desta primeira fase. Rico em figuras de linguagem como metáforas e hipérboles, o poema está prenhe de um exagerado romantismo tardio, entretanto, das novas correntes literárias, a única influência que vemos são os versos brancos, livres, sem a métrica ritmada pelas rimas dos versos finais, mas marcadas por um ritmo interno, solto. Salvo esta liberdade na forma, o conteúdo nada tem de revolucionário, ainda que sejam poemas extremamente bem construídos para um jovem escritor de pouco mais de vinte anos, em nada prenunciam um poeta que trará para sua poesia o sujo, o horror, a guerra, os temas do cotidiano: a vida do povo, o sofrimento. O jovem estudante chileno em nada prenuncia o viajante do mundo com toda a temática do seu tempo. Umas das 21 poucas características que ela já carrega e será comum a quase todas as suas fases é o seu panteísmo. Mesmo sendo um poeta ateu na sua idade madura, a poesia de Pablo Neruda sempre vai ter a natureza cantada de forma exuberante, num tom quase místico,mítico e panteísta, herdado de sua infância e adolescência acompanhando seu pai pela selva chilena — o pai de Neruda era condutor de locomotivas, e traço da poesia de vanguarda iconoclasta. Neste período da vida do poeta, na década de 20, ele ainda não tem nenhum posicionamento filosófico definido e nenhum engajamento político-social, o máximo que Neruda se permite é uma aproximação a círculos estudantis anarquistas em Santiago. A natureza e as mulheres são seu principal material inspirador; dotado, que era, de uma sensibilidade incomum e sensualidade sempre constante, forte, com uma ousadia acima da moral da época. A poética nerudiana, todavia, amadurecerá, florescendo pouco a pouco. Já no livro Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, vê-se um poeta que, ainda que continue não engajado em lutar por mudanças sociais, em termos de forma, vive uma grande maturidade na parte estética. Não parece o livro de um jovem escritor, ainda principiante nas letras, mas sim a obra de um poeta seguro esteticamente em seus experimentos e ousadias na linguagem e na forma. Com este livro, Neruda alcançará, ainda muito jovem, fama e prestígio literário, mesmo entre os críticos mais exigentes, que vislumbram no jovem poeta um talento inato. Vejamos este outro texto lírico do livro 20 poemas, no qual se vislumbra ainda mais o panteísmo, na comparação da mulher com a natureza: Casi fuera del cielo ancla entre dos montañas la mitad de la luna. Girante, errante noche, la cavadora de ojos. A ver cuántas estrellas trizadas en la charca. Hace una cruz de luto entre mis cejas, huye. Fragua de metales azules, noches de las calladas luchas, mi corazón da vueltas como un volante loco. Niña venida de tan lejos, traída de tan lejos, a veces fulgurece su mirada debajo del cielo. Quejumbre, tempestad, remolino de furia, cruza encima de mi corazón, sin detenerte. Viento de los sepulcros acarrea, destroza, dispersa tu raíz soñolienta. Desarraiga los grandes árboles al otro lado de ella. Pero tú, clara niña, pregunta de humo, espiga. Era la que iba formando el viento con hojas iluminadas. Detrás de las montañas nocturnas, blanco lirio de incendio, ah nada puedo decir! Era hecha de todas las cosas. Ansiedad que partiste mi pecho a cuchillazos, es hora de seguir otro camino, donde ella no sonría. 22 Tempestad que enterró las campanas, turbio revuelo de tormentas para qué tocarla ahora, para qué entristecerla. Ay seguir el camino que se aleja de todo, donde no esté atajando la angustia, la muerte, el invierno, con sus ojos abiertos entre el rocío (NERUDA, 2004, pp. 36-38, Poema 11). Neste poema vemos uma alusão à noite em termos figurativos, cavadora de “ojos”, através do seu reflexo na água. A obscuridade da noite revela na verdade a obscuridade do poeta e sua melancolia em torno de suas primeiras experiências sexuais e amorosas. Este poema tem uma musa real, a irmã de um amigo de Neruda, com quem o poeta teve um caso de amor. Evocando inclusive a morte: “Hace una cruz de luto entre mis cejas”, como desespero causado pela ausência e separação. Como nos poemas românticos, a idealização da figura da amada: “Niña venida de tan lejos, traída de tan lejos”, a distância aqui não alude à distância física, mas a saudade, a ausência do objeto amado. Por isto a recordação do poeta é uma tempestade, um vento que destroça, uma fúria desesperada na impossibilidade de tê-la novamente. Logo uma inversão violenta, numa antítese entre a intensa imagem de seus sentimentos e a delicadeza da musa: “clara niña, pregunta de humo, espiga”. Por fim, os elementos da natureza, era “echa de todas las cosas” ela é tudo: lírios, espigas, “la formadora del viento”. O romantismo tardio de Neruda se vê em estes versos, quando o poeta terá que vencer a ansiedade e a dor e partir — “ansiedad que partiste el pecho a cuchillazos” — até onde, como diria Bécquer, habita o esquecimento, “por el camino que se aleja de todo”. O Neruda do exílio vai se distanciar dos exageros românticos desta fase inicial. Ressaltamos que estes versos mostram um Neruda que não é um poeta pior que o Neruda Pós-Espanha, apenas menos maduro e incompleto em sua temática. Os versos de Vinte poemas estão dentre os melhores de Neruda, ainda que neles cantem traços românticos tardios, gongóricos (Gôngora fora um dos poetas prediletos de Neruda na adolescência), com jogos de palavras e exagero de figuras de linguagem, com um panteísmo esotérico. Neruda não era um católico praticante, seu panteísmo não se traduziu numa religiosidade confessa, como o de Gabriela Mistral, sua evocação da natureza antes, traz a marca do divino sem definir claramente a figura de uma determinada divindade. Se Deus está na poesia da Neruda, em nenhum momento ele expressa isto claramente. Mas o ritmo que o poeta capta na natureza é um ritmo que transcende um mero naturalismo narrativo e explode em cores místicas, como é comum a visão de natureza como organismo dos poetas de vanguarda, em choque com uma visão de uma natureza/mecanismo. 23 Neruda traz em toda sua obra a marca de sua infância passada no interior do Chile, quando passeava com seu pai de locomotiva, não só por Temuco, mas por toda a cordilheira andina chilena e encantava-se com a imponência da selva andina. Esta vivência, afastado das grandes cidades, isolado no interior do país, em contato permanente com uma América ainda indomada, vai brotar por toda a vida do poeta em seus escritos, mesmo em sua fase mais militante. Para José Carlos Rovira, um dos mais importantes e respeitados nerudistas, a infância de Neruda em Temuco, o contato estreito com a natureza selvagem chilena vai imprimindo no poeta a impressão fortíssima de uma natureza selvagem e indomada, na qual explodem fenômenos de raríssima beleza, dentro da selva andina. De Rovira, retiramos um pequeno trecho para nossa análise: En el principio fue la soledad de Temuco, la estación de ferrocarril donde trabajaba su padre, la costa cercana de puerto Saavedra, la naturaleza deshabitada, la flor del copihue, el ruido de los trenes o su silencio, el rumor del mar o todos los sonidos de la naturaleza, agolpados a las palabras que se van aprendiendo para llamar a cada cosa por su nombre. (…) La infancia en Temuco es un aprendizaje de soledad y naturaleza; (…) En Confieso que he vivido narró el poeta ampliamente todas las sorpresas de aquella infancia: la naturaleza que le provoca «una especie de embriaguez», los pájaros y su canto, los insectos, o los juegos infantiles. (…) La narración de infancia tiene un bellísimo momento en su primera llegada al mar, en un vapor a lo largo del río Imperial: (…)«Cuando estuve por primera vez frente al océano quedé sobrecogido. Allí entre dos grandes cerros (el Huilque y el Maule) se desarrollaba la furia del gran mar. No sólo eran las inmensas olas nevadas que se levantaban a muchos metros sobre nuestras cabezas, sino un estruendo de corazón colosal la palpitación del universo». Pablo Neruda es un poeta que ha reflexionado ampliamente sobre su poesía y sobre su biografía, hasta el punto de resultar imprescindibles sus textos en prosa para adentrarnos en su mundo poético. (…) De los textos anteriores surge la imagen de un adolescente débil, ensimismado, solitario, en continua sorpresa ante diferentes naturalezas que se sitúan ante sus ojos. La prehistoria poética de Neruda se desarrolla además en clave de soledad, tristeza, amargura, dolor, desesperación, etc., como contraseñas adolescentes de mundo poético que se gesta también en reacción a un referente continuo de la naturaleza (mar, lluvia, insectos, etc.) (Rovira, 1991, p. 57). Algo que é imprescindível notar, desde o nascedouro dos poemas de Neruda, que assim como Dante, Neruda é um poeta autobiográfico. Isto não significa (como não significa na Divina Comédia que Dante tenha de verdade ido ao inferno), que Neruda é o personagem de seus próprios arroubos oníricos e de suas próprias referências pictóricas. Este fato, em muitas críticas, é como uma censura, como se o fato de se autorreferenciar e suas poesias, o tornasse um poeta menor. Não nos alinhamos com estas observações, poesia não é narrativa pessoal restrita; a poesia, assim como o subconsciente, o id, é sempre um ir além um explorar de espaços 24 ignotos e remotos, que não traduzem de forma fiel um tempo histórico, mas sim todas as suas possibilidades subjetivas e humanas. De certa forma, Neruda é um bardo, o profeta cantador cego das travessias de Homero, Tirésias, que canta não o que vê, mas o que sente, assim, o que ele traduz nas poesias não é simples narrativa linear, mas as inquietações, dores, esperanças das várias gerações de poetas e seres humanos do século XX: Entre 1920 y 1923 se genera Crepusculario, cuyas resonancias, desde el título, al modernismo y al decadentismo europeo son evidentes. El tiempo biográfico de Crepusculario (Santiago, ediciones Claridad, 1923) coincide con el final de su estancia en Temuco y su traslado a Santiago para seguir estudios de francés en el Instituto Pedagógico. Se trata de una obra que está plenamente integrada en un mundo adolescente de sensaciones que quieren dar cuenta del propio vivir (…). En 1923, Neruda escribe El hondero entusiasta, que se publicará sin embargo diez años más tarde. El poeta narró las circunstancias de creación de la obra años después: «En 1923, tuve una curiosa experiencia. Había vuelto tarde a mi casa en Temuco. Era más de medianoche. Antes de acostarme, abrí las ventanas de mi cuarto. El cielo me deslumbró. Era una multitud pululante de estrellas. Vivía todo el cielo. La noche estaba recién lavada, y las estrellas antárticas se desplegaban sobre mi cabeza. Me agarró una embriaguez de estrellas, sentí un golpe celeste. Como poseído, corrí a mi mesa, y apenas tuve tiempo de escribir, como si recibiera un dictado. Al día siguiente, leí, lleno de gozo, mi poema nocturno. Es el primero de El hondero entusiasta… Me movía en una nueva forma como nadando en mis verdaderas aguas. Estaba enamorado y a El hondero… siguieron torrentes y ríos de versos amorosos…». En 1925 aparece en la Editorial Nascimento Tentativa de hombre infinito, que es la obra que cierra este conjunto de incitaciones poéticas que conforman la prehistoria nerudiana. En Tentativa aparece claramente diseñado un mundo propio y profundamente original que, en alguna medida, cumple el papel de génesis del lenguaje de las Residencias. La obra es un conjunto de fragmentos mediante los que el poeta nos entrega una parcela de su mundo de la infancia, de su naturaleza, junto a la conciencia de su enfrentamiento con el espacio y el tiempo. La construcción poética inicial, con el desarrollo de los primeros mitos poéticos, se realiza al tiempo que la escritura del amor juvenil, intensificada en el momento esencial de su estancia en Santiago. En 1924, en junio, la editorial Nascimento de Santiago publica los Veinte poemas de amor y una canción desesperada, libro escrito a lo largo de 1923 en su mayor parte, del que habían aparecido ya algunos poemas en la revista Claridad. Los Veinte poemas significan, sobre todo, un ejemplo para entender la fortuna literaria de Neruda, su conexión en 1924 con una sensibilidad adolescente y posromántica, una relación con el lector que el tiempo se habría de encargar de acrecentar.” (Rovira, 1991, p. 57). Nota-se nas palavras deste importante crítico que a construção poética inicial de Pablo Neruda, de Cadernos de Temuco até Vinte poemas de amor, tem uma unidade essencial, baseada na natureza, na busca do eu interior, no fascínio e na exaltação pela mulher. É um poeta em desenvolvimento, em busca insaciável, vivendo a vida com intensidade interior e a registrando em seus poemas. Há uma linha condutora, com o desenvolvimento dos mitos poéticos iniciais realizados no tempo dos seus amores juvenis, intensificada no momento essencial da passagem 25 dele em Santiago, quando começa a tomar contato com uma outra realidade, que não a vivida em sua infância em Temuco. Pablo Neruda crava seus primeiros acordes, em seus poemas iniciais há a falta ainda das notas político-sociais, mas as outras notas não são menos belas ou impressionam menos, pela força e pela vivacidade da poesia. O poeta carrega consigo Temuco e a natureza do Chile, é o que ele mesmo diz em Confieso que he vivido: Bajo los volcanes, junto a los ventisqueros, entre los grandes lagos, el fragante, el silencioso, el enmarañado bosque chileno… Se hunden los pies en el follaje muerto, crepitó una rama quebradiza, los gigantescos raulíes levantan su encrespada estatura, un pájaro de la selva fría cruza, aletea, se detiene entre los sombríos ramajes. Y luego desde su escondite suena como un oboe… Me entra por las narices hasta el alma el aroma salvaje del laurel, el aroma oscuro del boldo… El ciprés de las Guaitecas intercepta mi paso… Es un mundo vertical: una nación de pájaros, una muchedumbre de hojas… Tropiezo en una piedra, escarbo la cavidad descubierta, una inmensa araña de cabellera roja me mira con ojos fijos, inmóvil, grande como un cangrejo… Un cárabo dorado me lanza su emanación mefítica, mientras desaparece como un relámpago su radiante arco iris… Al pasar cruzo un bosque de helechos mucho más alto que mi persona: se me dejan caer en la cara sesenta lágrimas desde sus verdes ojos fríos, y detrás de mí quedan por mucho tiempo temblando sus abanicos… helecho (Neruda, 2005, pp.37). Algo que se nota, mesmo no início de sua poesia, e que é fatal demonstrar para nós, e que neste nosso trabalho usaremos a explicação de Octavio Paz para relatar, é a dialética entre um homem que caminha para um ateísmo cru e materialista e um homem que trabalha a natureza e o bosque como um membro de uma religião pagã. O bosque é mágico, mítico e místico. Paz vai nos explicar que desde a perda da magia, na “morte de Deus” (que antes de ser um mito filosófico fartamente usado na filosofia de Nietzsche, é um mito poético disseminando na poesia ocidental principalmente por Madame de Staël) os poetas, desde o romantismo, vão negar a religião, refugiando-se em processos mágicos, oníricos e místicos em seus poemas. É a contradição própria de um tempo, em que a perda do presente eterno na orfandade de Deus, da tradição da ruptura permanente, necessita de um consolo subjacente, que se dá através de místicas poéticas muitas vezes imperceptíveis para ouvidos e olhos destreinados. O poema e a poesia é um refúgio, por isto o eterno retorno de Neruda à infância, que é um lugar-comum entre os poetas, desde o romantismo. O bom selvagem de Rousseau e o retorno à infância do gênero humano é um retorno orientalista e grego a um tempo de ouro, sem sofrimentos, utópico e perfeito do gênero humano. Esta infância será irremediavelmente perdida para a filosofia (não para a poesia) com o hegelianismo, 26 que transformar a infância da humanidade num barbarismo atávico não desejável, com a Razão se realizado num eterno e ansiado devir. Mesmo o eterno retorno nietzschiano não é um consolo, haja vista que estar condenado a fazer eternamente e sem ter consciência os mesmos atos com os mesmos erros e acertos, recende a um bramanismo ateu, que pouco consola a quem perdeu o eterno presente do paraíso cristão. O bosque chileno é o refúgio na infância de Neruda: Un tronco podrido: qué tesoro!… Hongos negros y azules le han dado orejas, rojas plantas parásitas lo han colmado de rubíes, otras plantas perezosas le han prestado sus barbas y brota, veloz, una culebra desde sus entrañas podridas, como una emanación, como que al tronco muerto se le escapara el alma… Más lejos cada árbol se separó de sus semejantes… Se yerguen sobre la alfombra de la selva secreta, y cada uno de los follajes, lineal, encrespado, ramoso, lanceolado, tiene un estilo diferente, como cortado por una tijera de movimientos infinitos… Una barranca: abajo el agua transparente se desliza sobre el granito y el jaspe… Vuela una mariposa pura como un limón, danzando entre el agua y la luz… A mi lado me saludan con sus cabecitas amarillas las infinitas calceolarias… En la altura, como gotas arteriales de la selva mágica se cimbran los copihues rojos (Lapageria rosea)… El copihue rojo es la flor de la sangre, el copihue blanco es la flor de la nieve… En un temblor de hojas atravesó el silencio la velocidad de un zorro, pero el silencio es la ley de estos follajes… Apenas el grito lejano de un animal confuso… La intersección penetrante de un pájaro escondido… El universo vegetal susurra apenas hasta que una tempestad ponga en acción toda la música terrestre. Quién no conoce el bosque chileno, no conoce este planeta. De aquellas tierras, de aquel barro, de aquel silencio, he salido yo a andar, a cantar por el mundo (Neruda, 2005, pp.37). Em 1924 a editorial Nascimento, de Santiago, publica os Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, no qual se vislumbra uma sensibilidade visceral, pós-romântica, numa relação direta com o leitor que o tempo haveria de aprimorar, com influências que vão de Gabriela Mistral a Gôngora e Quevedo. Ainda não é o Neruda moderno que nascerá no livro Espanha no Coração. Evolução realizada em livros como Memorial de Isla Negra e Residência na Terra III, como o próprio reconhece em Confieso que he vivido: “El mundo ha cambiado y mi poesía ha cambiado. Una gota de sangre caída en estas líneas quedará viviendo sobre ellas, indeleble como el amor”. Ainda não haviam lágrimas, nem dores no caminho de Neruda antes de sua ida à Espanha. O jovem poeta, já famoso e popular (embora muito pobre), começa a dar os primeiros passos na vida cultural em Santiago, aproveita-se de suas amizades iniciais e de seu prestígio de jovem prodígio para conseguir uma colocação como Cônsul e é designado para a Birmânia. Neste país viverá praticamente no ostracismo, recluso na pequena localidade para o qual foi mandado 27 e onde terminará os livros Residência na Terra I e Tentativa del hombre infinito e começará a escrever a Segunda Residência na Terra. Estes livros tem algo de místicos, no sentido poético baudelariano pagão não religioso, e, poderíamos dizer, existencialistas, no sentido mais formal do termo. São dois livros quase niilistas, já que a preocupação do poeta é com sua “vida interior”, com seu “eu interior” apenas e tão somente. Esta é a tríade que caracteriza a fase inicial de Neruda: Lirismo, baseado na figura da mulher; panteísmo, com adoração da natureza e, por último, esta preocupação mística-esotérica, mas sem uma religião definida, que o leva quase ao niilismo, num torvelinho, num turbilhão de emoções que a solidão num país com uma cultura completamente diferente (a qual Neruda não tentou desvendar ou compreender, mas analisou como um estrangeiro exilado) vai levar o poeta. 2.2 O POETA E SUA PASSAGEM PELO ORIENTE — PARA UMA POESIA IMPURA Neruda já tinha lançado quatro livros em 1926: Crepusculário. Santiago, Ediciones Claridad, 1923; Veinte poemas de amor y una canción desesperada. Santiago, Nacimiento, 1924; Tentativa del hombre infinito. Santiago, Nacimiento, 1926; El habitante y su esperanza. Novela. Santiago, Nascimento, 1926. Como o próprio poeta falava, ele se refugiava nos livros com a ferocidade de um tímido, mas conseguiu algum prestígio, fama e certo reconhecimento nos meios literários e culturais, principalmente com os Vinte Poemas, que serão fartamente premiados. Como já citado, o poeta pobre e interiorano vai usar do prestígio e do conhecimento alcançados para começar uma carreira diplomática. Seus amigos intercederam por ele junto ao Ministro das Relações Exteriores do Chile e o poeta será nomeado Cônsul do Chile em Rangoon, uma região extrema da Birmânia, onde passará uma obscura vida de burocrata, reduzido a assinatura de pequenos papéis relativos a exportação de chá do Chile para o Oriente. Ainda que Neruda houvesse abraçado uma carreira que tem relação com a política, isto não o levou a criar uma consciência social, na verdade o diplomata era mais um burocrata responsável por assinar os papéis de importação de chá para a Birmânia do que um representante político chileno. Suas funções consulares à época eram bastante reduzidas, e ele se entregou a uma experimentação, que esteve bem longe de ser mística. Neruda terá experiência com várias mulheres orientais e, nos momentos em que a sua carreira diplomática deixava, viajava e 28 explorava os povoados do Oriente, em busca não de experimentações místicas, mas de contato humano. Estas visitas não tinham caráter esotérico ou religioso, é impressionante a dicotomia que há na poesia desta época, com arroubos místicos e a visão materialista direta do mundo. Neruda não se encanta com o Oriente, só consegue ver miséria, tristeza, abandono, no lugar no qual outros poderiam ver o fervor místico. Pelo contrário, o cônsul vai fazer uma relação de efeito-causa e vai depreender o misticismo dos povos orientais de uma necessidade de filosofia estoica de vida, para sobreviver se submetendo a tanta miséria. Isto não o leva a uma atitude de revolta ou de contestação, mas o fato de ele romper as cortinas místicas e enxergar a realidade material concreta, determinada socialmente e não religiosamente, já é o primeiro passo que possibilitará o nascimento do Neruda engajado e militante do futuro. Veja o que Rovira, José Carlos, fala da poesia Nerudiana desta época: En 1927 comienza la biografía consular del poeta. A través de ella, otra naturaleza, la de oriente, se pone ante sus ojos, para ser la base de una nueva experiencia poética. En 1927, es nombrado cónsul en Batavia (Java); en el 31, en Singapur. Son cuatro años que configuran una nueva construcción en el quehacer literario de Neruda, años de viajes, naturaleza, amores, y años, sobre todo, de definición de un mundo profundamente original que hace entrar al poeta en una dimensión diferente. En abril de 1933, aparece en la editorial Nacimiento de Santiago, con tirada de 100 ejemplares, Residencia en la tierra (1925-1931). Se trata de la primera Residencia en el momento en que ya se están componiendo los poemas de la segunda parte. Tras un regreso a Chile, en mayo de 1934, es nombrado cónsul en Barcelona. En el 35 es cónsul en Madrid y, en septiembre de ese año, Cruz y Raya publica en dos volúmenes Residencia en la tierra (1925-1935) con las dos partes que integran la obra. Un proceso de escritura se ha cumplido. Al final de él, la experiencia española catalizará la poesía de Neruda en el ámbito de la historia, generando la Tercera residencia, pero eso ya entronca con el devenir hacia la conciencia histórica. Aquí, en las dos Residencias, el poeta es testigo de la tierra, en la perspectiva ya citada de autorrepresentación. Aquí es fundamental la conciencia de la materia, descubierta como en una sorpresa, que determina ese mundo de destrucción y descomposición de la realidad que la crítica aisló hace mucho tiempo en esta obra. La etapa consular en Asia concluye con un regreso a Chile, en 1932, donde el poeta vive unos meses de angustia económica y de hastío en un oscuro trabajo burocrático. En agosto de 1933 obtuvo un cargo consular en Buenos Aires, donde establece relación con varios escritores, entre ellos Oliverio Girondo, la chilena María Luisa Bombal, y Raúl González Tuñón. En octubre, conoce a Federico García Lorca y vive con él varios episodios, como una famosa conferencia al alimón en la que cada uno va alternando párrafos, narrada en Confieso que he vivido. En mayo de 1934 es nombrado cónsul en Barcelona, puesto que consigue permutar por el de Madrid con Gabriela Mistral al poco tiempo (Rovira, 1991, p. 34). A poesia de Neruda desta época, Residência na Terra e parte de Segunda Residência na Terra, será ainda mais mística, esotérica, interiorizada, preocupada em definir o poeta como um ser humano em busca de sua essência 29 existencialista, que não está, de maneira nenhuma, relacionada a um papel social coletivo, pelo contrário, prefere caminhar pelos labirintos da busca mística, do onírico, do panteísmo, ainda que mantenha um traço lírico erótico que vai perdurar como linha tênue de costura em toda a poesia de Neruda que fala do amor. Como já observado, há uma dicotomia entre o cônsul que já divisa a miséria no meio do fervor místico e o poeta que se interioriza e constrói um pensamento individualista, como uma forma de proteção àquele Oriente que o assusta, o atemoriza. Pablo Neruda, em nenhum momento vai conseguir se adaptar à vida na Birmânia. Ao contrário do que aconteceu na Espanha, Neruda será apenas um trabalhador, obrigado a fazer uma passagem pelo Oriente, vendo tudo com olhos de turista acidental. Em nenhum momento ele vai conseguir se inserir no contexto daquela realidade tão diferente da que havia em sua terra natal, abrigar-se-á em leituras de poetas vanguardistas, volta a Mallarmé e Baudelaire, mas também lê Joyce, Walt Whitman, T. S. Eliot. ELe está extremamente influenciado por esta vanguarda anglo-saxã europeia e estadunidense. Neruda escreve poemas altamente revolucionários em forma e conteúdo. Vejamos o experimentalismo e os novos temas que Pablo Neruda apresentará, tomando este poema de Residencia en la tierra I: Caballo de los sueños INNECESARIO, viéndome en los espejos con un gusto a semanas, a biógrafos, a papeles, arranco de mi corazón al capitán del infierno, establezco cláusulas indefinidamente tristes. Vago de un punto a otro, absorbo ilusiones, converso con los sastres en sus nidos: ellos, a menudo, con voz fatal y fría cantan y hacen huir los maleficios. Hay un país extenso en el cielo con las supersticiosas alfombras del arco iris y con vegetaciones vesperales: hacia allí me dirijo, no sin cierta fatiga, pisando una tierra removida de sepulcros un tanto frescos, yo sueño entre esas plantas de legumbre confusa. Paso entre documentos disfrutados, entre orígenes, vestido como un ser original y abatido: amo la miel gastada del respeto, el dulce catecismo entre cuyas hojas duermen violetas envejecidas, desvanecidas, y las escobas, conmovedoras de auxilios, en su apariencia hay, sin duda, pesadumbre y certeza. Yo destruyo la rosa que silba y la ansiedad raptora: yo rompo extremos queridos: y aún más, 30 aguardo el tiempo uniforme, sin medidas: un sabor que tengo en el alma me deprime. Qué día ha sobrevenido! Qué espesa luz de leche, compacta, digital, me favorece! He oído relinchar su rojo caballo desnudo, sin herraduras y radiante. Atravieso con él sobre las iglesias, galopo los cuarteles desiertos de soldados y un ejército impuro me persigue. Sus ojos de eucaliptus roban sombra, su cuerpo de campana galopa y golpea. Yo necesito un relámpago de fulgor persistente, un deudo festival que asuma mis herencias (Neruda 1998, p. 85). Algo extremamente interessante e incrível em sua passagem pelo oriente é que Neruda é surrealista, antes do manifesto surrealista, e realista fantástico, antes que exista o truísmo de realismo fantástico. O poema utiliza o material pictórico onírico, parece um quadro de uma pintura de Dalí, e ele pinta sua experiência oriental através de sensações de nojo, medo, recusa, angústia, torpor. Já existe uma grande transformação do poeta anterior lírico e pós-romântico. Também, neste poema se vê algo extremamente forte em Neruda, a utilização autobiográfica de sua poesia. O que facilita nosso trabalho de análise, haja vista que ele expressa sua experiência através das metáforas poéticas, suas aventuras no mundo, como cavaleiro andante de seu próprio romance. Todas as fases expressivas de sua vida estão relatada como sentimento e ideia em sua forma. Neruda, o poeta que pouco leia romances, mas que romanceou sua própria vida, inclusive com dois livros autobiográficos, também fez poesia autobiográfica, expressando em imagem poética sua vivência e fases no mundo. Vejamos como isto se expressa num dos estudiosos mais importantes de Neruda, Hernán Loyola: Dentro de la complejísima y densa estructuración de Residencia en la Tierra, los modos de autorreferencia son particularmente variados en sus formas y ricos en su multiplicidad intencional. En cuanto a variedades formales, es posible registrar una gama que va desde la presencia rotunda del YO hasta las más extrema desubjetivación. Considerando el carácter móvil y viajero de la poesía de Neruda, su determinación fluyente y temporal, no puede resultar extraña la abundancia de autoalusiones en primera persona ni el propósito evidente en éstas de reflejar el movimiento biográfico del poeta, el decurso de su intimidad y de las circunstancias externas que lo perfilan. “Paso entre documentos disfrutados, entre orígenes, /… / Yo destruyo la rosa que silba y la ansiedad raptora: / yo rompo extremos queridos: y aún más, / aguardo el tiempo uniforme,” (“Caballo de los Sueños”). O bien: “Yo lloro en medio de lo invadido, entre lo confuso, / entre el sabor creciente.” (I, “Débil del Alba”). También: “He vencido al ángel del sueño…” (I, “Colección Nocturna”), “O recuerdo el día primero de la sed” (I, “Serenata”), “De pasión sobrante y sueños de ceniza / un pálido palio llevo…” (I, “Diurno Doliente”), “Un esfuerzo que salta, una flecha de trigo / tengo…” (I, ibid.) (LOYOLA, 1964). 31 Surpreendente como a poesia de Neruda é de vanguarda, a dessubjetivação do sujeito é algo ainda em debate e em voga na poesia… do século XXI! Sem se prender a ismos e não participando de nenhuma escola, por instinto e por leitura, Neruda vai caminhando por novas rotas, descobrindo, criando novas formas poéticas. O Ego transformado em ID: o "Yo" não é o Eu do sujeito autobiográfico, o poeta autobiográfico cria a biografia do subjetivo e sinestésica das sensações e experimentações internas. Está à frente de seu tempo, e finca marcos bastante claros e novos para a poesia latino-americana, alarga seu campo de temas e formas. Se é um poema quase narrativo, típico das novas vanguardas, não é um poema narrativo de uma experiência puramente descritiva, mas a descrição da complexidade dos sentidos de um exilado voluntário, assim vê Loyola esta fase de Neruda: Se muestra muy clara, en los ejemplos citados y en muchos otros de la primera Residencia, la intención básica de autodescribirse o autodefinirse a través de un relato introspectivo y pormenorizado en el que predominan, por lo mismo, los verbos transitivos. (amo, oigo, acecho, divido, llevo, hago, visito, llamo, sostengo, recuerdo, tengo, busco, examino, reconozco…). Esto ocurre, sobre todo, en los poemas que integran la primera de las cuatro partes de la primera Residencia. En las restantes zonas del volumen (que parecen reflejar más directamente las vivencias de Neruda a lo largo de sus años asiáticos) cobrarán mayor predominio verbos intransitivos con sentido de movimiento, de actividad, de circunstancias desplazándose, de procesos en desarrollo, de anécdotas: “Paso entre mercaderes mahometanos, entre gentes que adoran la vaca y la cobra” (I, “La Noche del Soldado”); “sueño, de una ausencia a otra” (I, “El Deshabitado”); “Yo trabajo de noche, rodeado de ciudad, / de pescadores…” (I, “Entierro en el Este”); “He llegado otra vez a los dormitorios solitarios” (I, “Tango del Viudo”); “sobrevivo en me dio del mar” (I, “Cantares”) (LOYOLA, 1964). A transitividade, o uso do acusativo em Neruda, dos verbos transitivos com objetos diretos, são em Neruda um recurso para que esta autorreferência biográfica não seja circular, encerrada em si mesmo. Ainda que marcada duramente por sua experiência pessoal, pelos sentimentos de angústia, que a vida caótica no Oriente causava em Neruda; o poeta não se referência apenas em sua subjetividade, mas faz a descrição poética do seu tempo e do seu espaço. Há uma narratividade poética, que faz os poemas algumas vezes quase descambarem para a prosa pura, tornando o leitor cúmplice da experiência personalíssima de Neruda no Oriente. O poeta-narrador de primeira pessoa, através da subjetivação, faz com que o leitor se transfira para o lugar não-geográfico e para o sentido sinestésico da poesia, numa transferência de sentidos e sensações que vence e transpassa o tempo histórico: Y es significativo que los verbos transitivos que, por supuesto, también 32 ocurren en estas mismas zonas de la primera Residencia, tengan igualmente una orientación anecdótica y temporal: “A menudo, de atardecer acaecido, arrimo la luz a la ventana, y me miro, sostenido por maderas miserables, tendido en la humedad…” (I, “El Deshabitado”); “Difícilmente llamo a la realidad, como el perro…” (I, “Establecimientos Nocturnos”); “Cómo amaría (yo) establecer el diálogo del hidalgo y el barquero, pintar la jirafa…” (I, ibid.); “largamente he permanecido mirando mis largas piernas…” (I, “Ritual de mis Piernas”); “y otra vez tiro al suelo los pantalones y las camisas” (I, “Tango del Viudo”); “Daría este viento del mar gigante por tu brusca respiración” (I. ibid). La desolación física y anímica; la angustia del espíritu y del sexo; la incomunicación; la miseria económica del cargo consular; la nostalgia de la familia, de los amigos, de la tierra propia; los recuerdos de antiguos amores; la vigilia del aislamiento, la constante espera de una carta o de un beso que vinieran de su patria lejana; los eventuales contactos eróticos y los imposibles contactos con una atmósfera extranjera cuya naturaleza, cuya historia, cuya tradición, cuya gente lo rechazaban con violencia, cerrándose frente a sus anhelos de comprender y de incorporarse: tal es el múltiple drama que relatan, en su mayor porcentaje, los versos de la primera Residencia. El segundo volumen de esta obra desenvuelve un clima similar, una, parecida presión lírica, una cierta continuidad de estilo, pero reflejando con claridad una diferente circunstancia biográfica, enraízan o en otro decurso anecdótico. (LOYOLA, 1964). O sexo puramente físico, quase escatológico, as mais baixas e vis sensações, o incômodo, a náusea, a peste. Para o senso comum que tem uma visão pouco ampla de Neruda, como um poeta militante, ou um poeta lírico, todas as experimentações e vanguardas foram acessadas por ele, como grande e inclassificável criador, não pode ser puramente enquadrado em nenhuma. Mas efetivamente, os poemas de Residencia en la tierra, estão entre o que melhor se fez na literatura latino-americana naquela época, e à altura dos grandes poetas vanguardistas europeus, tanto pela forma impressionantemente livre, quanto pelo conteúdo, incrivelmente extenso e variado: Al regresar a Chile en 1932 Neruda venía casado, sin dinero y con dudosas probabilidades de trabajo seguro. Durante un tiempo desempeñará cargos oficinescos en el Ministerio de Trabajo, para luego ser trasladado inestablemente a Buenos Aires y de ahí, ya con pie más firme, a Barcelona y a Madrid. En medio de ajetreos y de pagos atrasados nacerá su hija Malva Marina, después de un parto muy difícil que afectará decisivamente el desarrollo físico de la niña. Desacuerdos hogareños, amores repentinos y torturantes, envidias y hostilidades, la muerte de un gran amigo (Rojas Jiménez). Toda esta línea subterránea de acontecimientos (1932-1935) alcanzará un trasunto lírico de gran poderío en el segundo tomo de Residencia en la tierra, que en cierta medida, sobre todo en aquellas partes que se apoyan en la biografía del poeta transcurrida entre el regreso a Chile y la estabilización en Madrid en 1934, presenta un tono de angustia y desconcierto (jamás de desesperación) similar al de la primera Residencia. Una lenta maduración humana, una mejor comprensión de los procesos sociales y culturales, el ingreso de Neruda a un círculo de escritores y de amigos entrañables (en Madrid), una atmósfera simpática y propicia para su trabajo literario, confieren a la segunda Residencia un acento nuevo, más despejado, que resulta ostensible en los últimos poemas del libro. Las autorreferencias en primera persona tienen, en Residencia 2, un predominio (LOYOLA, 1964). 33 Assim, Residencia na terra 2 é um ponto de inflexão na poesia de Neruda, uma busca de formas novas e temas novos, ligados a própria experiência autobiográfica e às leituras da vanguarda europeia. A obra acompanha a mudança de Neruda para a Espanha. Seus poemas são mais límpidos, menos exagerados na figura de linguagem, mais diretos e mais angustiados. Eles traduzem a passagem do jovem chileno para um homem maduro, que agrega à própria vida a experiência do exílio voluntário no Oriente. Pablo Neruda, ao contrário de outros viajantes e escritores, não vai viver um êxtase místico, mesmo ainda não sendo o poeta marxista, vai ver com olhos céticos as manifestações religiosas do Oriente, e vai ligar muitas destas práticas à extrema miséria em que viviam os habitantes da Índia e da Birmânia. Misticismo como complemento necessário desta miséria, o fervor místico para suportar a rudeza e a pobreza da vida. Este poeta cético e niilista prepara o terreno necessário para a passagem a uma poética e a um poeta mais engajado. Neruda é neste sentido, um escritor moderno, no sentido que empregamos, tomando a classificação do crítico latino-americano Octavio Paz, ligada à morte de Deus e à cisão continuada do tempo, num futuro inalcançável. Com a derrubada da promessa de um eterno presente (através da salvação) a modernidade constrói seus cânones num eterno vir-a-ser, num futuro inalcançável, que é o leitmotiv de todo o fazer literário e poético. O eterno revolucionar-se, a fadiga da eterna destruição, contra o inferno disfarçado em paraíso: do eterno presente imutável. Sem a promessa da salvação, a perfeição não é individual, mas social e inerente à espécie. O construir estético é um contínuo destruir de formas antigas e estabelecimento de novos fazeres, a permanência da mudança. Neste sentido, Neruda é ator destas mudanças, vivamente sentidas na literatura e expressas na poesia do século XX: A eternidade cristã era a solução de todas as contradições e agonias, o fim da história e do tempo. Nosso futuro, embora seja depositário da perfeição, não é um lugar de repouso, não é um fim; ao contrário, é um contínuo começo, um permanente ir além. Nosso futuro é um paraíso/inferno; paraíso por ser o lugar preferencial do desejo, inferno por ser o lugar da insatisfação. Por um lado, nossa perfeição é sempre relativa, porque — como dizem, com o olhar no horizonte, os marxistas e outros historicistas empedernidos —, uma vez resolvidos os conflitos atuais, as contradições reaparecerão em níveis cada vez mais elevados; por outro lado, se pensamos que no futuro está o fim da história e a resolução dos antagonismos, acabamos sendo vítimas voluntárias de uma miragem cruel: o futuro é por definição a terra prometida da história, é uma região inacessível, e é nisso que se manifesta de maneira mais imediata e dilacerante a contradição que constitui a modernidade . A crítica da 34 modernidade à realidade cristã e ao cristianismo ao tempo circular da antiguidade são aplicáveis a nosso próprio arquétipo temporal. A superestimação da mudança implica a superestimação do futuro, um tempo que não é (PAZ, 2013, pp. 40-41). Situamos Neruda dentro desta tradição ocidental da ruptura permanente, (espalhada na poesia por Madame de Staël, e na filosofia por Nietzsche) e da busca de reificação poética dos conflitos de humanidade, que vive uma vida não teleológica e sem esperanças de salvação. Filósofos modernos como Alain Badiou defendem que, com a dessubjetivação do eu e com o fim das grandes narrativas filosóficas, quando a filosofia não pretende mais ser uma narração coerente e que explica o mundo (como o foram grandes sistemas filosóficos como o hegeliano e o marxista) só a poesia então é capaz de reorganizar os sentidos humanos. Utilizando-se o mito da morte de Deus, entende-se melhor o leitmotiv da poesia de vanguarda, mesmo a atéia e maldita, mesmo a blasfema e pagã. A busca de um sentido num mundo órfão de sentido: A consciência poética do Ocidente viveu a morte de Deus como um mito. Ou melhor, essa morte foi realmente um mito e não um simples episódio das ideias religiosas de nossa sociedade. O tema da orfandade universal, tal como o encarna a figura de Cristo, o grande órfão e irmão maior de todas as crianças órfãs que são os homens, exprime uma experiência psíquica que lembra a via negativa dos místicos: a “noite escura” em que nos sentimos flutuando a deriva, abandonados num mundo hostil e indiferente, culpados sem culpa e inocentados sem inocência. Contudo, há uma diferença essencial, é uma noite sem desenlace, um cristianismo sem Deus. Ao mesmo tempo, a morte de Deus provoca um despertar da fabricação mítica na imaginação poética e assim se cria uma estranha cosmogonia em que cada Deus é criatura, o Adão de um novo Deus. Regresso do tempo cíclico, transmutação de um tema cristão num mito pagão. Um paganismo incompleto, um paganismo cristão tingido pela angústia pela queda na contingência (PAZ, 2013, p. 58). Dentro desta mitologia poética, se entende melhor a tecitura da poesia de Neruda. Neste sentido, Neruda é tremendamente vanguardista, o poeta sente a náusea, a falta de sentido da modernidade de forma avassaladora nos seus poemas do Oriente. A busca de novas formas acompanha a busca de novos sentidos, a destruição da forma antiga de romantismo tardio é a destruição também da falta de sentido em tudo que ele vê ao seu redor: o horror entendiado do burocrata se choca com a antiga exaltação do poeta, como no poema, em tudo inovador, Desespediente: Desespediente La paloma está llena de papeles caídos, su pecho está manchado por gomas y semanas, por secantes más blancos que un cadáver y tintas asustadas de su color siniestro. 35 Ven conmigo a la sombra de las administraciones, al débil, delicado color pálido de los jefes, a los túneles profundos como calendarios, a la doliente rueda de mil páginas. Examinemos ahora los títulos y condiciones, las actas especiales, los desvelos, las demandas con sus dientes de otoño nauseabundo, la furia de cenicientos destinos y tristes decisiones. Es un relato de huesos heridos, amargas circunstancias e interminables trajes, y medias repentinamente serias. Es la noche profunda, la cabeza sin venas de donde cae el día de repente como de una botella rota por un relámpago. Son los pies y los relojes y los dedos y una locomotora de jabón moribundo, y un agrio cielo de metal mojado, y un amarillo río de sonrisas. Todo llega a la punta de dedos como flores, y uñas como relámpagos, a sillones marchitos, todo llega a la tinta de la muerte y a la boca violeta de los timbres. Lloremos la defunción de la tierra y el fuego, las espadas, las uvas, los sexos con sus duros dominios de raíces, las naves del alcohol navegando entre naves y el perfume que baila de noche, de rodillas, arrastrando un planeta de rosas perforadas. Con un traje de perro y una mancha en la frente caigamos a la profundidad de los papeles, a la ira de las palabras encadenadas, a manifestaciones tenazmente difuntas, a sistemas envueltos en amarillas hojas. Rodad conmigo a las oficinas, al incierto olor de ministerios, y tumbas, y estampillas. Venid conmigo al día blanco que se muere dando gritos de novia asesinada (NERUDA, 2004, pp. 36-37). Um poema extremamente original, para o que Neruda vinha fazendo até então. Talvez o que melhor reflita toda a angústia da solidão e do exílio no Oriente. Um poema seco, duro, angustiado, no qual a “paloma” (ou seja, a poesia), “está llena de papeles caídos,/su pecho está manchado por gomas y semanas,/por secantes más blancos que un cadáver”. A poesia está resseca de álcool e de burocracia. Neste poema aparece tudo que está refletido na vida de Neruda, o álcool e o sexo, da vida desregrada que acompanha a sua vida de burocrata, a angústia, a solidão, o medo. As setecentas folhas amareladas, as manifestações tenazmente defuntas. É um outro tipo de poesia, para um outro tipo de poeta, que começa a tomar como seu os temas do cotidiano, seu e de alhures. Um poema sobre a burocracia, em que, tirante algumas referências sobre os temas antes comuns de sua poesia (como terra, fogo, raízes rosas, mas que são mostrados apenas como 36 antítese), o que salta é o mundo de mata-borrão, papéis, petições, ofícios. O mundo: sem sentido para ele da burocracia e como este mundo contradiz a sua vocação poética, mas que ainda sim vai estar em seus versos. Toda a experiência angustiante, como burocrata no Oriente, o leva a uma mudança de rumos e temas, alargando o campo semântico poético. É a tentativa do homem infinito, o homem órfão de Deus da modernidade se abriga na poesia, através da poesia ele reifica o caos que o capitalismo instaura em sua destruição das formas estáveis e estamentais da vida, a nostalgia do moderno, como nos explica Octavio Paz: A nostalgia moderno de um tempo originário e de um homem reconciliado com a natureza exprime uma atitude nova. Embora postule como os pagãos, a existência de uma idade de ouro anterior à história, não insere esta idade numa visão cíclica do tempo; o regresso à idade feliz não vai ser consequência da revolução dos astros, mas da revolução dos homens. Na verdade, o passado não regressa, os homens, por um ato voluntário e deliberado o inventam e o instalam na história. O passado revolucionário é uma forma que o futuro assume; um disfarce. A fatalidade impessoal do destino cede lugar a um conceito novo, herança direta do cristianismo: a liberdade. O mistério que inquietava Santo Agostinho — como se pode conciliar a liberdade humana e a onipotência divina? — transforma-se desde o século XVIII num problema que preocupa tanto o revolucionário como o evolucionista: em que sentido a história nos determina e até que ponto o homem pode desviar seu curso e alterá-la? O paradoxo da conjugação entre necessidade e liberdade deve se somar a outro: a renovação do pacto original implica um ato de inusitada embora justa violência, a destruição da sociedade baseada na desigualdade entre os homens. Tal destruição é, de certa forma, a destruição da história, já que a desigualdade se identifica com ela; no entanto, é realizada mediante um ato eminentemente histórico: a crítica como revolucionário, o regresso ao começo do tempo anterior à ruptura implica uma ruptura. Não há como negar, por mais surpreendente que esta proposição nos pareça, que só a modernidade pode realizar a operação de volta ao princípio original, porque só a idade moderna pode negar a si mesma (PAZ, 2013, pp. 44-45). Temos, necessariamente o cerne do paradoxo da poesia de vanguarda, moderna. Não que Neruda, nas duas primeiras residências, já tenha chegado à temática da Revolução. Mas a náusea, o caos, a peste, os temas modernos relacionados com a “morte de Deus”, o desenraizamento, o caos do ser para a morte; são temas comuns de todas as vanguardas e aparecem implícitos em sua poesia. A busca de um tempo infinito e que reifique, restaure o desenraizamento (o desarraigo), a busca da terra natal como o retorno à inocência da infância, que é também e sempre época de ouro, infância da humanidade. Se a Revolução ainda não está colocada como ruptura e retorno à idade de ouro, a temática do caos e do desencontro prepara esta temática. Paradoxo dos paradoxos, a Revolução que instaura o novo absoluto é a busca do eterno retorno e da inocência perdida, ao 37 suprimir a desigualdade entre os homens. Assim, constatamos que até a saída revolucionária é um desemboque de uma solução temática/estéticas, a saída das encruzilhadas em que se colocou Neruda nas duas primeiras Residências na Terra. Alguns críticos, como Saúl Yurkiévich vão considerar esta duas obras de Neruda no Oriente, as duas Residência na Terra, como obras de vanguarda. Seu isolamento no Oriente fará com que ele busque no místico e na interiorização das emoções, nas imagens anímicas, o suporte para sua poesia, o que vai diferenciar bastante de sua anterior poesia lírica panteísta. Vejamos o que diz um crítico, Saúl Yurkiévich in A través de la trama: Residencia en la tierra integra, junto con Trilce de César Vallejo y Altazor de Vicente Huidobro, la tríada de libros fundamentales de la primera vanguardia literaria en Hispanoamérica. Posee todos los atributos que caracterizan a la ruptura vanguardista. Surge íntimamente ligado a la noción de crisis generalizada y, promueve un corte radical con el pasado. Participa en la renovación profunda de las concepciones, las conductas y las realizaciones artísticas. Cambio de percepto y cambio de precepto van a la par. Neruda acomete una revolución instrumental porque promueve una revolución mental. Su arte impugna la imagen tradicional del mundo, contraviene sobre todo la altivez teocéntrica y la vanidad antropocéntrica del humanismo idealista; e impugna el mundo de la imagen: la mímesis realista, la visión perspectivista, la representación progresiva y cohesiva, la figuración simétrico-extensiva, la composición concertante, la expresión estilizada, el arte de la totalidad armónica (Yurkiévich, 1984). A ideia de crise, e não é só crise de cânones, de limites da literatura. Crise real de um mundo que vive o caos existencial de uma curta paz entre duas guerras, e a vivência em tudo transformadora da primeira tentativa vencedora de uma Revolução Socialista, a de Revolução de Outubro na União Soviética. Alguns poetas colocar-se-ão inclusive a serviço do comunismo e da Revolução Mundial, como Brecht, Maiakovski; já outros se refugiarão na poesia, diante de um mundo que não conseguem mais compreender ou desvendar. A poesia é uma válvula de escape, mas não chega a ser um consolo, muitas vezes um ópio (Baudelaire) que não acaba com a dor, apenas a mitiga e a torna suportável. Neruda reflete este turbilhão, é turbilhão também sua poesia neste tempo, poesia sem consolo e sem ilusões, sem paraísos ou utopias, poesia da desarmonia, poesia da agonia, do caos. Com estas construções poéticas ele dialoga com todas as experimentações de vanguarda do seu tempo, não está longe de Joyce ou de Rubén Darío. É um catalisador criativo de influências, sigamos com Loyola: Neruda no da cuenta del vertiginoso remodelado impuesto por la era industrial ni del rápido trastocamiento del hábitat urbano producido por la revolución tecnológica. Residencia en la tierra se ocupa de una mudanza íntima, de un cambio de mentalidad que conlleva una crisis raigal de 38 valores. Refleja ese estallido de los marcos familiares, de vida y de referencia que trastorna la estabilidad del orden preindustrial (comarcano, aldeano, rural, artesanal), que trastoca el mundo solariego de las relaciones personalizadas, las solidaridades seculares de la comunidad local sometidas ahora al embate de un proceso que masifica y uniformiza aceleradamente. Neruda no adhiere a la modernolatría futurista, no participa de la vanguardia eufórica (la del primer Huidobro, la de los ultraístas), aquella que alaba las conquistas del mundo moderno, la que asume los imperativos del programa tecnológico: avance permanente, incesante renovación de procedimientos y de productos, constante suplantación de lo objetual, perpetua modificación nocional. Neruda no canta la loa del siglo mecánico, no alaba la era de las comunicaciones, de las circulaciones internacionales, de las babeles electrificadas, no multiplica en sus textos los índices de actualidad: no explícita estrepitosamente su modernidad. Aunque ella aparezca a veces, en la literalidad, se manifieste en la ambientación de ciertos poemas donde tierra baldía equivale a contexto urbano, no vale la pena inventariar en Neruda los signos de contemporaneidad explícita. Su modernidad, como la de Vallejo, está interiorizada. Hay que buscarla en su tumor de conciencia, en su representación de la vida fraccionada, del hombre escindido que sufre un doloroso divorcio entre mente y mundo. Su modernidad se detecta en las relaciones dislocadas por una angustiosa inadaptación a la precariedad, a la insignificancia, a la intrascendencia de una vida alineada, acechada por las incertidumbres fundamentales (origen, condición, destino, sentido) (Yurkiévich, 1984). Ressaltamos a linha revolucionária de Neruda, não só em termos de forma, mas na temática. Não pretende um retorno ultraísta ao passado, nem quer que o homem volte a apascentar cabras e viver no campo, o que vai aparecer na poesia até de alguns revolucionários como Miguel Hernández. A natureza para ele é sempre um panteísmo, uma volta à infância e às origens, mas sempre subjetiva, Neruda é um poeta citadino, conformado com a modernidade, ainda que inquietado e insatisfeito pelo não-lugar que esta modernidade gera. Assim, seus poemas não constroem retornos a mundos idílicos imaginários, nem recai num orientalismo mistificador como acontecerá como outros poetas. O Oriente para Neruda sempre será um incômodo e um acidente, não por outra razão ele se refugia na poesia ocidental para sobreviver na Birmânia e na Índia. Seu retorno às origens é um mergulho onírico no subconsciente e no inconsciente, uma busca de fundar a si mesmo, tentativa do homem infinito, que só pode ser tentativa literária, utopia inalcançável poética: caminante no hay camino, el camino se hace al caminar, com toda inquietação e permanente insatisfação que esta busca incessante causa: Desde el comienzo, Residencia en la tierra dice acerca de la sumergida lentitud, de lo informe, de lo confuso pesando, haciéndose polvo, del rodeo constante, del vasto desorden, de naufragio en el vacío. Dice la astenia, la duración átona, la pura expectativa de una existencia expectante sólo con respecto a su propio existir, sumida por la lasitud en días de débil tejido -acaecer que no se entrama, que no se tensa-, entre materias desvencijadas. Esta existencia está desnuda, fuera del orbe laboral, de toda motivación utilitaria, sin razón suficiente, abierta a su circunstancia solitaria, a un acontecer sin conexión, sin cauce, no encausado, no conduscente: 39 Yo lloro en medio de lo invadido, entre lo confuso, entre el sabor creciente, poniendo el oído en la pura circulación, en el aumento, cediendo sin rumbo el paso a lo que arriba, a lo que surge vestido de cadenas y claveles, yo sueño, sobrellevando mis vestigios morales. («Débil del alba») La desolación existencial (como lo asevera Neruda en sus memorias, en Confieso que he vivido) es agudizada por su estada en un oriente sin prestigio que lo aísla, lo desvincula de su mundo y lengua maternos, lo vara en un medio doblemente extranjero, donde no puede establecer relaciones de solidaridad ni social ni cultural; esta temporada en el infierno lo vuelve un mero coexistente, una especie de prófugo mental. La distancia todo lo deslíe. Si Neruda se aferra a veces a los recuerdos reparadores y restauradores, a la naturaleza natal, a algún amor quimérico que ejercen, fantasmáticamente, en la escena utópica del poema, su poder lustral, regenerador, en lo mejor de Residencia en la tierra se entrega a esa experiencia de apertura del ser al no ser, a una inmanencia anuladora, a la exploración del desamparo, al rescate, por la escritura, de sueños cenicientos y devaneos funestos (Yurkiévich, 1984). Ressaltamos esta encruzilhada na travessia de Neruda, este momento de ruptura, de ultrapassagem. Momento de regurgitar a experiência oriental que o poeta vivencia como caos desesperado, mas que é também catártica: ela faz a “limpeza dos estábulos de Áugias”. Não por outra razão, a busca mítica da infância original, do bosque de Temuco, da casa paterna e da madrasta. A infância mítica é na poesia sempre um retorno à idade de ouro, à inocência perdida rousseauniana da humanidade, uma forma de tentar a estabilidade no meio do naufrágio. O Oriente foi para o navegador Neruda um naufrágio, necessário como foi para Ulisses para se encontrar, se perfazer. A Odisseia não seria de tal profundidade e beleza sem o naufrágio e a busca do eterno regresso, de Ítaca, porto de partida e chegada. Neruda usa o bosque andino como Ítaca, mas o momento não é de retorno, é de naufrágio, tempestade, Cila e Caríbides. A nau de Neruda não passa incólume pelo Oriente, é destroçada, assim como a forma e o conteúdo de sua poesia, que vão se prefazer e se renovar, para só se reconstituírem e se reintegrarem novamente com sua chegada à Espanha: É o poeta vivenciando a experiência do Oriente de forma desencontrada e desesperadora. E encontrando novas formas poéticas, mesmo estando longe do Chile, com sua obra, ele se coloca na vanguarda da renovação de temas e formas da poesia latino-americana, trazendo para a poesia a obscuridade, a dor, o desencontro, o desenraizamento de não estar em lugar nenhum, a desolação das vertiginosas mudanças do século XX, século de Revoluções e Guerras. Veja como Yurkiévich faz a crítica desta fase: 40 A un mundo inconexo, a la realidad desintegrada corresponden la textura floja, la concatenación debilitada, las relaciones inciertas las asociaciones desatinadas. Neruda se mueve en un ámbito de acontecer sin dirección, de manifestación fuera de provecho, fuera de toda funcionalidad utilitaria, al margen del proceso de producción y de reproducción sociales. Se mueve en una cáscara de extensión fría y profunda, sujeto a un movimiento sin tregua y sin nombre. Enfrenta el gran galimatías, el absurdo desorganizador que todo lo opaca, confunde y anonada. En ese tiempo inconduscente, no vectorial, Neruda percibe por sobre todo la merma, el deterioro, la destrucción. De ahí el descendimiento desublimante que opera su poesía, de ahí esa visión de vida estrecha, de actos menores, de grisura doméstica, de funciones inferiores, de materias residuales. Tres temas ponen de manifiesto este descenso: la ciudad como espacio de la degradación y del vaciamiento humanos, la crudeza somática y las materias de desecho (Yurkiévich, 1984). Neruda vivencia esta agonia oriental denunciando a cidade como espaço de solidão acompanhada, de desespero e caos, de esvaziamento de sentidos até se chegar à nudez total do ser humano, relatado como ser apenas sensual e sensitivo: sexo e excreção. Não se pode todavia entender de forma apenas torpe este esvaziamento do ser, é uma denúncia também, a denúncia do ser contra a desvalorização do ente agora apenas mecanismo de valor do Capital. Mesmo que ainda não seja o poeta revolucionário, e seus poemas não sejam denunciantes do capitalismo, a forma e o conteúdo são revolucionários no sentido de mostrar, através dos sentidos mais básicos do ser humano, que este ser biológico, bicho, animal, existe além das estruturas em que está preso, que seu labirinto leva à solidão e à agonia: Marco de la pérdida, de la incompletud, de la desvirtuación, la ciudad puesta en escena por Residencia en la tierra es la del ser gregario en medio de la multitud anónima, es sociedad masiva de hábitos reglamentados, es paisaje manufacturado y hábitat unificador Si contra la concentración aplanadora Neruda apea a la mitopoesis que le permite el reintegro imaginario al espacio restaurador, si a veces recurre a la regresión hacia lo natural, primigenio, maternal, principalmente ahonda en su desoladora experiencia del aislamiento urbano. Registra la aridez, el apocamiento, la separación, la fealdad, la clausura de esa existencia reificada, cosificada por la imposibilidad de pactar psicológica, socialmente con esa cohabitación dirigida a la producción y al consumo masivos, con el orden mercantil y burocrático (Yurkiévich, 1984): Neruda, muito antes de ser o poeta militante engajado, já carrega no sentido de sua poesia um anticapitalismo instintivo: a denúncia do fetichismo e da alienação, do estar sozinho em meio à multidão, da falta de sentido e do ritmo maquinal e acelerado que a transformação que o capitalismo fez de toda atividade humana; atividade de produção e reprodução sócio-metabólica do sistema, que só se revaloriza, só se repactua quando o trabalho gera valor. Ainda que inconscientemente, Neruda recusa todos os retornos reacionários a idílios pré- 41 capitalistas, sua denúncia ainda não é coletiva, é individual e existencialista, da perda de referência e de pertencimento, de sentido comunitário e coletivo. A forma de seus poemas, que para muitos pode ser niilista, carrega elementos críticos, assim como a poesia marginal de Baudelaire (que sem ser socialista e revolucionária é uma negação de fazer parte de uma coletividade amorfa burguesa no nascente capitalismo francês). Vejamos como Neruda expressa estes desespero em sua poesia: «Walking around», «Desespediente» y «La calle destruida» dan cuenta cabal del caballero solo que deambula por el páramo ciudadano: Sucede que me canso de ser hombre. Sucede que entro en las sastrerías y en los cines marchito, impenetrable, como un cisne de fieltro navegando en un agua de origen y ceniza. .............................................................................. Yo paseo con calma, con ojos, con zapatos, con furia, con olvido, paso, cruzo oficinas y tiendas de ortopedia, y patios donde hay ropas colgadas de un alambre calzoncillos, toallas y camisas que lloran lentas lágrimas sucias. («Walking around»)(Neruda citado por LOYOLA, 1964) Influenciado pela poesia underground de Joyce, T. S. Eliot, Mallarmé, Baudelaire, Neruda vai mostrar o lúmpen. Não é o poeta ainda do proletariado triunfante e lutador, mas de sua parcela mais marginalizada, o lumpesinato, desprezada até por Marx. Esta observação é extremamente importante, porque para a literatura “oficial” do movimento comunista, a parte boemia e marginal não deveria ser parte de uma apologia, ao menos nos manuais estéticos do Komintern. Neruda nunca foi um poeta de manual, não só na época do Oriente, mas continuadamente valorizaria e cantaria em seus poemas a prostituta, o contrabandista, o bandoleiro, (em La Barcarola, Joaquín Murietta). Desta forma se afasta do chamado “realismo socialista”. E não só em temática, mas na forma: vanguardista do poema com rimas internas e do poema-prosa; vanguardista também no do uso do surrealismo e do realismo fantástico. Não era um apologista frio da lógica do movimento comunista, ainda que haja, em seu poemário, várias odes inspiradas no movimento comunista internacional, Neruda tem um temário muito maior e variado. A apologia do lumpesinato é outro fato de vanguarda, inclusive em termos de teoria marxista. Se numa leitura ortodoxa estreita do marxismo o lúmpen é tido inclusive como uma classe ligada à reação, os movimentos de excluídos do fim do século XX e do início do século XXI resgatarão a necessidade de se incluir na luta estes excluídos. Serão egressos do lumpensinato que agitarão o mundo nos 42 momentos em que se apregoava o fim da história: o MST no Brasil, formado por trabalhadores rurais despossuídos; os zapatistas, deserdados da terra no México; os povos originários de Bolívia e Equador; os piqueteiros sem trabalho na Argentina: todos estes movimentos de despossuídos fizeram com que os teóricos dos movimentos revolucionários olhassem de outra forma os antes excluídos (até na teoria), os assim chamados lúmpen: Tiendas inhóspitas, oficinas tumbales, peluquerías malolientes, hoteles sórdidos, habitáculos librados al abandono, lugares envilecidos, son todos paradigmas del desamparo, infunden un frío de muerte. Por ahí aparecen los pobladores de esas moradas de la mala vida la fauna infame -tahúres, abogados, notarios- y los hombres del montón, los destinos mediocres. Por momentos, la proximidad entre Residencia en la tierra y The waste land de T. S. Eliot salta a la vista; una misma visión genera ambos textos y su elocución es se mejante: El pequeño empleado, después de mucho, después del tedio semanal, y las novelas leídas de noche en cama ha definitivamente seducido a su vecina, y la lleva a los miserables cinematógrafos donde los héroes son potros o príncipes apasionados, y acaricia sus piernas llenas de dulce vello con sus ardientes y húmedas manos que huelen a cigarrillo. (Caballero solo) (Yurkiévich, 1984). Neruda já está além das influências puramente hispânicas, leitor de Baudelaire e Mallarmé, vai se aproximar em seus escritos de outros poetas, como T. S. Eliot e Walt Whitman, tanto nos termos da modernidade, como na liberdade métrica e rítmica da poesia. As duas Residências na Terra, são fase de intenso experimentalismo nerudiano. Sem participar de manifestos, ou subscrever escolas literárias, as usa em seus poemas, com isto vai inadvertidamente formando parte da vanguarda poética de dois continentes. Do latino-americano, por ser chileno e publicar suas obras em sua terra natal; e da Europeia, já que a Segunda Residência começa a ser produzida no Oriente, mas só é finalizada na Espanha (contando com a fortíssima influência da Geração de 1927). Alguns dos traços típicos de vanguarda são a dissecação sexual dos seres humanos e o escatológico, beirando o niilismo filosófico: Con referencia a la escala humana, Neruda opera un rebajamiento hacia los seres y actividades sin prestigio, practica un rescate poético de lo prosaico, de la experiencia ordinaria, de lo basto y grueso y hasta de lo degradante. En el plano de las manifestaciones corporales, ese descenso se presenta como crudeza somática, como ampliación descarada del decible corporal, como franqueza física y sobre todo sexual. «Ritual de mis piernas» constituye un buen ejemplo de esta expresión no eufemística del cuerpo en su más concreta materialidad; las piernas, compactos cilindros con musculatura masculina, criaturas de hueso con forma dura y mineral «son allí la mejor parte de mi cuerpo: /lo enteramente substancial, sin complicado 43 contenido / de sentidos o tráqueas o intestinos o ganglios». Residencia en la tierra ofrece el vasto repertorio de la carne y el vientre. Lo genital, lo seminal, lo fecal aparecen desnudamente mencionados: Y por oírte orinar, en la oscuridad, en el fondo de la casa, como vertiendo una miel delgada, trémula, argentina, obstinada, cuántas veces entregaría este coro de sombras que poseo (…) (Tango del viudo) (Yurkiévich, 1984). Para entendermos como é revolucionária esta temática em Neruda e como ele se irmana como poetas malditos como Joyce e Baudelaire, temos que entender que estamos no fim da década de 20, muito longe da revolução sexual. Falar de funções fisiológica, de excreção do ser humano, não é, de forma nenhuma, fazer uma poesia usual. Falar do sexo apenas como prazer (até voyeurístico, de visualizar a uma mulher urinando), falar de excrementos e vômitos, é, de todas as maneiras, revolucionário. E é, de certa forma, gritar, sou homem, sou bicho-homem, não sou máquina. Ser bicho, ser excremento, ser sexo é ter a ligação telúrica, biológica, é ressaltar a natureza humana contra o homem-máquina. É vomitar na cara da sociedade de consumo que não somos máquinas, homens é o que somos (Charles Chaplin). Neruda, visionário, bardo, vate. Muito antes dele tomar partido ou ser socialista, ele ressalta sua base terrenal. O poeta grita, se masturba, ri, chora, vomita, urina, defeca. A busca de uma base biológica, no burocrata esvaziado de sentido e exilado do seu lar. Na travessia que é a poesia de Neruda, a aventura oriental é uma das partes mais interessantes: Los residentes en la tierra orinan, defecan, vomitan, se masturban, copulan, eyaculan, ingieren y expulsan, como seres carnales ligados por su cuerpo a las materias terrestres, seres igualados por lo bajo, por lo gruesamente corporal. Lo corporal conecta con el fondo entrañable, con el centro vivificador, con lo medular, con lo genésico; lo corporal posibilita la regresión regeneradora. Lo corporal se cosmifica, la introyección hacia lo visceral puede volverse vía mística; así el éxtasis orgásmico de «Agua sexual» se confunde con estro visionario, es reactor onírico que instala al poeta en la matriz imaginante: Veo el verano extenso, y un estertor saliendo de un granero, bodegas, cigarras, poblaciones, estímulos, habitaciones, niñas durmiendo con las manos en el corazón, soñando con bandidos, con incendios, veo barcos, veo árboles de médula erizados como gatos rabiosos, veo sangre, puñales y medias de mujer, y pelos de hombre, veo camas, corredores donde grita una virgen, veo frazadas y órganos y hoteles (Yuerkiévich, 1984). 44 A palavra é carne, é sexo, é excremento. Esta direção da poesia de Neruda, de violento erotismo impudico e impuro, tem um diálogo bem claro com as ideias psicanalíticas, com o freudianismo que descobriu as relações entre as funções excretoras e os impulsos sexuais. Freud retirou a sujeira das pulsões de debaixo do tapete, mostrando como é impura nossa condição humana. Mais vanguarda na forma e no conteúdo, impossível, Neruda declama contra uma sociedade que vaga sonâmbula de si mesma. Sua poesia se cansa de ser homem e o cheiro das barbearias e dos homens comuns o faz vomitar. É necessário um reencontro, uma reconciliação, mas corajosamente, Neruda não encontra nenhum caminho. E uma poesia do desacerto e do desencontro, e desta forma é uma etnologia de uma sociedade doente de progresso, que se aliena de sua base humana: Por lo bajo, por contacto directo con las funciones elementales, por la visión visceral, la palabra remitida a la carnalescencia (como diría Darío) se reconcilia con su base material, vuelve a habitar el cuerpo que la profiere. Los desechos constituyen el descarte inútil, corresponden a lo que está fuera de función. La visión nerudeana se apodera de los residuos para convertirlos en representantes o manifestantes de la subjetividad atribulada, marginada con respecto al circuito de la servidumbre social, incompatible con la integración oprimente. Las materias residuales revelan la misma carencia de entidad que el sujeto que en ellas se reconoce, equivalente pérdida de identidad, identidad entendida como filiación, pertenencia, clara asignación, designación que individualiza: Estoy solo entre materias desvencijadas, la lluvia cae sobre mí, y se me parece, se me parece con su desvarío, solitaria en el mundo muerto, rechazada al caer, y sin forma obstinada. (Débil del alba) (Yurkiévich, 1984). As tomadas de posição estética são também posicionamentos políticos. A estética de Neruda muda de maneira violenta. O poeta juvenil, de romantismo tardio, faz um rebaixamento intencional e intencional da poesia até à náusea, até o sujo, o escatológico, o feio, o mórbido, a monstruosidade, o tédio, a necessidade mais vil e imediata. Quando se faz uma análise pouco profunda de Pablo Neruda, se faz antíteses absolutas entre fases. Usam-se declarações do próprio poeta para se negar este momento das “Residências”, negá-lo como algo sem importância, se comparado com a poesia da fase seguinte, “engajada”. Devido a seus compromissos com o movimento comunista internacional, e seu engajamento por uma estética realista, há declarações de Neruda de “abandono” da poesia das “Residências”. Como este não é um texto de autobiografia literária, mas de análise 45 das mudanças na poesia do poeta chileno, nossa posição não é a de reduzir a importância da fase inscrita nas residências. É uma fase riquíssima, em que a poesia impura toma assento. Sem esta tomada de posição, em termos de temática, rica e variada, e em termos estéticos, de total liberdade formal, sequer haveria o poeta engajado. Neruda participa também na reforma do verso espanhol e latinoamericano, experimentando todas as novas fórmulas e chegando ao poema-prosa, no reaparecimento da versificação acentual com rimas internas, que contraditoriamente, é, na explicação de Octavio Paz, uma vanguarda que traz de volta uma tradição do verso espanhol, a de ritmo assilábico. O romantismo iniciou uma tímida reforma do verso espanhol, mas foram os modernistas1 que, levando-a ao extremo, a consumaram. A revolução métrica dos modernistas não foi menos radical e decisiva que a de Garcilaso e dos italianismos do século XVI, embora em sentido contrário. Consequências opostas e imprevisíveis de duas influências estrangeiras, a italiana no século XVI e a francesa no século XIX: num caso triunfou a versificação regular silábica, ao passo que no outro a contínua experimentação rítmica desembocou no reaparecimento dos metros tradicionais e, sobretudo, provocou a ressurreição da versificação acentual. É impossível fazer aqui um resumo da evolução métrica em nossa língua, de modo que me limitarei a uma enumeração: o verso primitivo espanhol é irregular do ponto de vista silábico, e o que lhe dá a unidade rítmica são as cláusulas prosódicas marcadas pelo golpe dos acentos: com a aparição do “mister de clerezia” se introduz o princípio da irregularidade silábica, provavelmente de origem francesa, e há um imenso conflito entre isossilabismo (regularidade silábica) e ametria (versificação acentual); no período conhecido como Gaia Ciência — poesia cortesã de tardia influência provençal — já há um predomínio da regularidade silábica nos metros curtos, mas não no verso da arte maior, cuja medida é flutuante; a partir do século XVI triunfa a versificação silábica e o hendecassílabo à italiana substitui o verso de arte maior, os períodos seguintes, até o século XVIII, acentuam o isossilabismo; a partir do romantismo tem início a tendência à irregularidade métrica, que culmina no modernismo e na época contemporânea. Essa brevíssima recapitulação mostra que a revolução modernista foi uma volta às origens. Seu cosmopolitismo desembocou num regresso à verdadeira tradição espanhola: a versificação irregular rítmica (PAZ, 2013, p. 98). Para entender as influências comuns, de Neruda e Lorca, analisaremos como as vanguardas os afeteram. No capítulo sobre Lorca, mostraremos como o arabismo, o período muçulmano vai influenciar a poesia espanhola, como o ritmo interno assimétrico está ligado à poesia árabe e cigana. Para se retomar esta tradição, que se fez vanguarda futurista, Lorca vai mergulhar no Cante Jondo e trazer não só os ritmos, mas até os falares incomuns e “irregulares” dos povos marginalizados da Espanha. Neruda é partícipe desta ruptura na forma, até o limite, 1 O modernismo, como classifica Paz, começa na Espanha com a poesia simbolista e não guarda assim sinonímia com outros modernismos europeus ou com o brasileiro. O movimento que corresponderia a estes “modernismos” Paz chama de vanguarda. 46 até o poema prosa. Seus poemas com rimas internas por vezes reproduzem o som da chuva, do mar ou dos sinos. A poesia expressa também uma mudança de paradigma na cultura ocidental, a perda da ideia de cosmos mecanismo para uma outra ideia de cosmos fluido, como um processo, um organismo, ainda que caótico. O ritmo como símbolo do universo: Já apontei a conexão entre versificação acentual e visão analógica do mundo. Os novos ritmos dos modernistas induziram o reaparecimento do princípio rítmico original do idioma; tal ressurreição métrica, por sua vez, coincidiu com a aparição de uma sensibilidade que, afinal, se revelou como uma volta à outra religião: a analogia. Tout se tient. O ritmo poético nada mais é que uma manifestação do ritmo universal. Tudo se corresponde porque tudo é ritmo. A vista e o ouvido se enlaçam; o olho vê o que o ouvido ouve e vê o que pensa. E mais, pensa sons e visões. A primeira consequência dessas crenças é que o poeta é elevado à dignidade de um ser iniciado: se ele ouve o universo como uma linguagem também ele diz o universo. Nas palavras do poeta ouvimos o mundo, o ritmo universal. Mas o saber do poeta é um saber proibido e seu sacerdócio é um sacrilégio: suas palavras, mesmo quando não negam expressamente o cristianismo, dissolvem-no em crenças mais vastas e antigas. O cristianismo não passa de uma das combinações do ritmo universal. Cada uma destas combinações é rítmica e todos dizem a mesma coisa. A paixão de Cristo, como vários poemas de Darío afirmam inequivocadamente, nada mais é que uma imagem instantânea na rotação das idades e das mitologias. A analogia afirma o tempo cíclico e desemboca no sincretismo. Tal acento não cristão, às vezes anticristão, mas tingido de uma estranha religiosidade, era absolutamente novo na poesia hispânica (PAZ, 2013, 99). Com esta visão sobre analogia e ritmo entendemos melhor a novidade rítmica e estética das poesias de Neruda no Oriente. Sua irreligiosidade cristã, por vezes seu ateísmo, combinado com um paganismo quase panteísta, sua incredulidade é ruptura de paradigma. Pablo Neruda é partícipe em forma e conteúdo da vanguarda, sua temática abrangente, que dá voz e ritmo às sensações mais básicas e, às vezes, aos desejos mais baixos e sórdidos do ser humano. A busca de um ritmo que grite, que denuncie. A poesia com um ponto fora da curva, um momento que não pode ser valorado de acordo com a escala de produção, do valor de troca do capitalismo. Os poetas são malditos e sempre marginais no mundo contemporâneo, não há lugar para a poesia, a não ser que seja uma poesia domesticada e de apologia aos valores da sociedade de consumo. Mas não é esta a poesia que a vanguarda produz, ela produz uma poética com traços irreligiosos, pagãos, de religiões ora orientalistas, ora grega, ora como exortação do misticismo dos povos originários da América Latina (Alturas de Macchu Picchu). Os poetas da vanguarda são uma válvula de escape ao mundo do desencontro e da produção da solidão na multidão da metrópole. Muitos dos traços da poesia que Neruda escreveu no Oriente vão 47 permanecer em toda a poesia posterior. A humanização da poesia e seu interesse no banal, no cotidiano, no comezinho da vida humana; a ideia de que nada está fora do alcance da poesia; então, a guerra, a dor, os conflitos sociais, a luta socialista, nada mais são do que um alargamento de temática desta poesia impura. A fase Oriental e “existencialista” de Neruda é uma fase de limpeza de terreno e salto qualitativo, que prepara a poesia seguinte. Também é importante explicar o que entendemos como “existencialismo”. Não que Neruda em algum momento tenha tomado parte do movimento filosófico existencialista. Mas as ideias ligadas ao desespero, à náusea, à aflição do homem para a morte, depois de decretada a morte de Deus (o ser para a morte, nos termos heideggerianos), vai perpassar toda a poesia desta época. Neruda pessoalmente criticará Sartre quando os PCs entrarem em choque com a ideologia existencialista. A posteriori, quando Sartre se alia ao PCF, Neruda irá elogiá-lo e até reatar a amizade com ele. Para nosso trabalho, isto pouco importa, importa notar, nas letras do que ele escreve nesta fase, as mesmas temáticas que são desenvolvidas em prosa por Camus, Joyce: de desconstrução de sentido e até da gramática. Relembramos que Neruda nesta época é leitor de Joyce, T. S. Eliot, Walt Whitman, portanto aberto a todas as influências e experimentalismos que identificamos nas “Residências”: Las identificaciones son disgregadoras, disolutoras, analogías con lo desvalido, lo ruinoso, lo perecedero. Neruda hace arte pobre o trash-art (arte de residuos, arte de basural) porque en esos desperdicios está la marca del uso y del desuso que los humaniza. Neruda los convierte en íconos de la condición humana. Con sus figuraciones de lo residual anula la frontera entre material noble, específicamente artístico, y material extrartístico. Esas acumulaciones heteróclitas que hacen de tantas calles sucios vaciaderos, se aglomeran, se adensan, cercan: Me rodea una misma cosa, un solo movimiento: ........................................................ las cosas de cuero, de madera, de lana, envejecidas, desteñidas, uniformes, se unen en torno a mí como paredes. (Unidad)(Yurkiévich, 1984). Neruda é, segundo Yurkiévich, um formador de paradigmas da primeira vanguarda latino-americana. Sua poesia dos dejetos, do residual, dos vagabundos, das ruas malcheirosas, é uma tomada de posição. É uma poesia antielitista em sua origem e sua essência. Ele toma partido do sujo, do desvalido, do bêbado, do marginal, da prostituta. Tudo que não era nobre e não merecia lugar no poema clássico, está em Neruda, corajosamente e sem fazer manifestos. Criador de um 48 alargamento admirável da temática, como no adágio humanista, nada que é humano me é indiferente (Terêncio). Para Neruda o cânon não é mais a poesia metrificada e rimada, herdeira do petrarquismo, mas o verso livre; também não são mais os temas nobres: o amor platônico, o lirismo, a herança grega; mas toda uma temática suja e rebaixada, toda a temática humana, em toda a sua singularidade, até o vômito e as fezes interessam ao poeta. Tudo que faz do ser humano um ser humano. Tudo que o diferencia e o singulariza com relação às máquinas. É também o momento que a concepção de universo como aparato, como mecanismo (Galileu/Kleper) começa a ceder lugar a uma concepção de universo como fluxo e organismo. Todos os embates temáticos e filosóficos estão subjacentes na poesia de Neruda: Las materias desvencijadas son intercesoras de lo oscuro, de lo abisal entrañable, ligan con el centro tenebroso, con lo humano medular, remiten a lo profuso y lo confuso primordiales, al caos primigenio, son las mediadoras del mundo de abajo, del mar de fondo, comunican con el infierno íntimo. Cualquier substancia, cualquier objeto puede ser conductor de la visión nerudeana, manifestante sentimental, vector de energía poética, cualquier cosa puede ser implicada por la subjetividad, volverse metonimia del yo que se autoexpresa a través de esas convocatorias de lo dispar, mediante esos heterogéneos inventarios que son las enumeraciones caóticas. Las dos mejores, es decir las dos más diversas, cuyos componentes proceden de contextos más distantes, están en «Un día sobresale». La poesía ya no imita las apariencias sensibles, no acata las asignaciones de lo real legible, libera los signos del yugo referencial, abre el texto al más acá aliterario, a la promiscuidad confusa de lo extra textual. Redispone lo real externo para revelar lo real interno, para que la escritura pueda acoger la pujanza de un exceso no codificable, centrífugo al discurso, que desbarata las disposiciones del entendimiento discursivo, que desbarajusta el arreglo del continuo consciente para reintroducir en el orden simbólico la móvil y simultánea pluralidad de lo real: Zapatos bruscos, bestias, utensilios, olas de gallos duros derramándose, relojes trabajando como estómagos secos, ruedas desenrollándose en rieles abatidos, y water-closets blancos despertando con ojos de madera, como palomas tuertas, y sus gargantas anegadas suenan de pronto como cataratas. (Un día sobresale) (Yurkiévich, 1984). Assim, Neruda recria sua realidade. Bem distante da natureza e do amor idealizados, da perplexidade metafísica diante do mar e da selva chilena, ou da agonia e êxtase da descoberta do amor e do sexo. Agora o sexo é uma função maquinal de um ser humano reduzido a seus apetites. Uma realidade dura e seca, não idealizada, ultrajante e repugnante. Se não há engajamento e denúncia social, a simples pintura da perplexidade do homem diante de um mundo que não consegue entender ou controlar também é denúncia. Não há soluções homéricas românticas, 49 não há caminhos ou saídas, só há degredo solidão e desarraigo. A potência agônica do tema está em consonância com todo o vanguardismo da época. As duas residências são com um acerto de contas necessário à fase poética de maturidade, mas de per si, merecem ser estudados tanto por sua temática, quanto pelas soluções que o poeta emprega. Vejamos o que diz Yurkiévich: Lo real nerudeano es materia extensible y deformable; deja siempre libre la posibilidad de crear nuevos conjuntos. La realidad exterior e interior, interpenetradas, constituyen una misma mezcla incierta, dispar, cambiante. La realidad deja de ser materia dada, no tolera asentamiento mental ni estable ni seguro. La naturaleza humana ya no puede ser aprehendida a través de descripciones realistas, mediante exhaustivas listas de detalles naturalistas, es elusiva, múltiple, plurívoca; es irreductible a paradigmas. Toda realidad deviene campo de fuerzas en pugna. Caduco el sistema simbólico basado en la imitación de apariencias, invalidado el orden mensurable, formulable a partir de un órganon de símbolos normativos, Neruda opta decididamente por el abordaje imaginario, por la constitución hipotética de un corpus regido por su propia coherencia, opta por la instalación intuitiva en pleno plexo, en plena turbamulta de lo real. La información es librada en grueso, abigarrada, enrarecida, sujeta a relaciones aleatorias y perspectivas diversas, excentrada por la variación de marcos de referencia. No hay manera de domesticar el sentido, de sofrenar tanta traslación de sentidos tránsfugas (Yurkiévich, 1984). O revolucionarismo de Neruda vai mais longe. Na era do fascismo e do nazismo, da eugenia e da perfeição, Neruda escolhe o feio, o marginal, o rejeitado. Isto já é tomada de posição antes da tomada de posição. Não o louvor da velocidade e do progresso, mas a desconfiança diante dele. Não o louvor da organização e da obediência, mas do indivíduo e do residual. Mesmo no Neruda comunista, este existencialismo (que ele chegou a renegar em termos teóricos) não deixará de existir em sua poesia. Este existencialismo humanista individual permanece mesmo no poema mais militante e coletivo dele, o Canto Geral (no qual há descrições pormenorizadas de pessoas comuns e sua vida sofrida e ordinária). Para quem vê interrupção, nós nos colocamos numa posição antagônica, vemos continuidade dialética nas narrativas que estabelece de cada um de seus personagens proletários: Por un lado existe esta transmigración simbólica que provoca un éxodo categorial; y por el otro, una situación simbolizante autónoma, ligada a la experiencia material, directa, que extrae materia prima del entorno inmediato para crear símbolos crudos, frescos, símbolos instaurados ex nihilo a partir de la propia aprehensión imaginante. Símbolos no provenientes del acervo simbólico tradicional, que no remiten al almacén cultural, símbolos inaugurales de una nueva simbología. En su exploración de territorios que desbordan el dominio literario, fuera del decible y del legible colonizados, Neruda cultiva el desgobierno retórico y el desvacío metafórico; borra las marcas diferenciales (exterior/interior, subjetivo/objetivo, real/imaginario, temporal/espacial, natural/artificial); ejerce a fondo las libertades textuales (sobre todo de composición, 50 dirección, asociación); desescribe lo escribible basando su acción de zapa en códigos negativos, de modo tal que el poema parece ser nada de norma y todo licencia (Yurkiévich, 1984). Segundo Yurkiévich, Neruda é um precursor da contracultura, da antipoesia, do temário que está longe da bela arte. Apagando as marcas entre o interior e exterior, fazendo antecipadamente um experimento surrealista e realista fantástico (se antecipando assim a estes dois movimentos), destruindo as normas rítmicas e métricas, Pablo Neruda alarga a temática da poesia e a faz companheira de aventura e desventura do ser humano. Um refúgio catártico do caos e da desordem, mas, ao mesmo tempo, uma incendiária mimésis desta mesma desordem. Não há mais nada de pequeno, torpe, vil, mesquinho ou impuro que não seja matéria da poesia. A poesia desce do parnaso e se torna companheira da dura travessia humana no mar das incertezas, do desvario revolucionário do que Hobsbawm chamou o curto século XX, que não se inicia cronologicamente em 1901 e termina em 2000, mas começa com a primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa, que vão mudar toda a configuração, inclusive de pensamento do mundo, e termina em 1991 com o fim da União Soviética. Neruda foi viajante desta aventura revolucionária, mas também testemunha do genocídio e do desastre que foi a Segunda Grande Guerra, com seus 50 milhões de vítimas, e que tem seu início real na Guerra Civil Espanhola (durante a qual Hitler pode treinar livremente sua estratégia de guerra, bombardeando impune e covardemente as cidades republicanas espanholas), e as fez imagem de sua poesia: Esta antipoesía respaldada por una contracultura funciona, por su puesto, sobre la base de un sistema menos, por carencia o contravención de las marcas características de la poesía artística y en relación siempre con la bipolaridad arte/antiarte, que no excluye definitivamente ninguno de los términos de la antinomia. Neruda desarregla la relación de encuadre estable anexando y coaligando fragmentos de realidades disímiles, según una combinatoria autónoma que concita acontecimientos verbales sorpresivos y sorprendentes. El desborde de sentido indómito, la polisemia errante provocada por extrañas constelaciones de imágenes revelan la implicación emotiva de la subjetividad que moviliza fa impulsión figural, subjetividad excéntrica al lenguaje que, para manifestar su alteridad, se libra a la palabra espontánea poniendo en juego una red de relaciones equívocas que aluden a un referente soterrado, innominable y omnipresente. El sujeto lírico de Residencia en la tierra rompe los retenes logométricos, desquicia la temporalidad fáctica para trasladar el poema a la otra escena, escena críptica, donde puedan emerger reminiscencias de la historia oculta. Neruda emprende el descenso onirogenésico; bucea por debajo del orden simbólico tratando de rescatar el trasfondo subliminal, preconsciente. Propulsa su escritura hacia los límites del entendimiento (Yurkiévich, 1984). Surpreendente é ver um Neruda pictórico e surreal mesmo antes de Lorca, e entender que esta temática é recíproca. Não só o onírico, e o surreal, mas a 51 pintura subjetiva da realidade, traduzindo de forma íntima o mundo que desmorona ao redor. Neruda é um pintor poético do caos do início do século XX: os sentimentos e as sensações de cada indivíduo, assim como os sentimentos do inconsciente coletivo e sensações de grupos, escolas, partidos, agrupamentos em luta, inclusive em luta armada pelo poder: Neruda crea visión inédita que proyecta sentido enigmático; pero a la vez opera, por condicionamiento histórico, dentro del marco de su época. Nuestra perspectiva de medio siglo de distancia (la primera Residencia en la tierra aparece en Santiago en 1933) nos permite comprobar cómo aparecen ya en este libro paradigmático los arquetipos de la imaginación moderna, los que van a constituir la iconología característica del arte contemporáneo. Cuántas figuraciones de Residencia en la tierra evocan cuadros de Giorgio de Chirico, de George Grosz, de Salvador Dalí, de Max Ernst. Residencia en la tierra surge a la par de la primera poesía surrealista sin que ésta ejerza influencia directa en la poética nerudeana. Son creaciones sincrónicas que respiran, una y otra, el aire del tiempo. Coincidencias de actitud, de objetivos, similitud de proyecto estético producen resultados semejantes. Por ejemplo, «Oda con un lamento» o «Materia nupcial» provienen de una misma matriz visionaria que El perro andaluz del dúo Buñuel-Dalí, operan instrumentalmente dentro de un mismo encuadre artístico: Debe correr durmiendo por caminos de piel en un país de goma cenicienta y ceniza, luchando con cuchillos, y sábanas, y hormigas, y con ojos que caen en ella como muertos, y con gotas de negra materia resbalando como pescados ciegos o balas de agua gruesa. (Materia nupcial) (Yurkiévich, 1984). Neruda trabalha com a ideia do mal, mas não com uma ideia cristã, a ideia do mal que salta de forma niilista das condições sociais e históricas. Do mal necessário e inevitável, o mal como estrutura, como prega Hannah Arendt. Sem nenhuma forma de solução e engajamento, o poeta toma, pela primeira vez contato com uma realidade que o oprime. Os poemas são da fase de aceitação fatalista da existência do mal e o convívio angustiado com ele. Ao mesmo tempo em que reflete a influência sinestésica do caos ao seu redor. Esta é a fase de maior confusão sentimental na vida do poeta, uma fase promíscua, na qual ele se submerge numa volúpia carnal, se aproveita das delícias da milenar arte do sexo cultuada pelo Oriente. Terá um caso passional com uma nativa, que o abandonará numa cena tragicômica, mas terá uma série de outros casos e, ou relações sexuais sem grande ligação afetiva. Assim, com esta vida altamente erotizada, não é de se estranhar que mesmo na fase mais orientalista de seus textos, não deixe de aparecer a face sensual em seus poemas, mas numa sensualidade sórdida, sem ligações amorosas. Constatamos que há uma clara relação da vida conturbada de Neruda no Oriente, de sua reação psicológica de 52 interiorização para se defender do mundo que considera hostil (ainda que, contraditoriamente participe ativamente deste mundo) e da poesia que escreve nesta época. A experiência orientalista de Neruda o deixa pronto para o próximo passo na sua evolução poética: Sin duda que el encuentro con Federico García Lorca en 1933 y la estada madrileña, a partir de 1934, en estrecho contacto con Rafael Alberti y los otros poetas de la generación del 27, influyen en Neruda. Las editoriales de la revista Caballo Verde para la Poesía demuestran la íntima correspondencia entre Neruda y los surrealistas españoles. La imaginación de Neruda se arrebola arrebatada por la vehemencia española. El cambio de registro, que también tiene que ver con el cese de la temporada infernal, la superación del ensimismamiento angustioso, la recuperación del gozo vital y de la solidaridad humana, es notorio en la parte final de Residencia en la tierra. Residencia en la tierra es una obra generada en una travesía intercontinental, a lo largo de un periplo transcultural y translingüístico. Se gesta en relación con realidades no localizadas, con experiencias de la vida moderna generalizadas, y se sitúa estéticamente con referencia a un estado internacional de la literatura. Porque presupone la noción de una literatura mundial, Residencia en la tierra no puede ser recuperada por vía vernácula; su carencia de referencias autóctonas invalida toda lectura limitada a lo nacional. En Residencia en la tierra todo secunda la visión: la lengua es coadyutora y el ritmo se subordina a la andadura semántica, al flujo imaginante, lo que da una melodía atenuada, no aliterativa, sin efectos orquestales, una especie de salmodia monótona sin brillantez ni fónica ni léxica (Yurkiévich, 1984). Como viemos mostrando, as influências entre Lorca e Neruda são comuns. Neruda vai participar ativamente da fixação dos novos cânones da Geração de 1927, fundando inclusive uma revista literária, embate teórico e de novos estatutos para a poesia. Ele vai assim receber como, se fora um espanhol nato, todos os ismos desta geração, mas ele também tem sua herança poética anterior, e sua vivência latino-americana, e a verterá para esta geração. Espanha será sua segunda pátria, Lorca, seu irmão literário. Eles viverão uma influência recíproca de experimentalismos e inovações. Não é algo que Neruda “sofra” apenas como paciente e estudante passivo que recebe uma “cultura superior”, antes é como partícipe e construtor desta nova vanguarda, como o fez outro hispano-americano, Rubén Darío. Esta troca de influências, leituras e experimentações alargará o campo da Geração de 1927, seu manifesto de uma poesia impura e uma tradução de todos os experimentos desta geração. Assim, Residencia na Terra II vai refletir todas estas inquietações e experimentos: De conversaciones gastadas como usadas maderas, con humildad de sillas, con palabras ocupadas en servir como esclavos de voluntad secundaria, teniendo esa consistencia de la leche, de semanas muertas, de aire encadenado sobre las ciudades. 53 (Sabor) La prosodia no adquiere relieve autónomo, está casi por completo despojada de metronómica. En Residencia en la tierra no hay ahínco formal inmediatamente perceptible. Los principios constitutivos del verso se reducen a su mínima manifestación: cortes versales y estróficos, versos y estrofas de medida fluctuante. Esta poesía en verso verdaderamente libre se aproxima a la prosa cadenciosa, orienta la dinámica versal hacia su polo opuesto, opera en la zona fronteriza entre prosa y verso e incursiona, como en la segunda parte de la primera Residencia, en el dominio de la prosa propiamente dicha (Yurkiévich, 1984). Como defendemos desde o início do nosso trabalho, Neruda é um dos construtores da vanguarda tanto na América Latina, quanto posteriormente na Espanha. Sim, na Espanha, já que, ao se mudar para a Península Ibérica, conviverá com toda uma Geração de poetas que estão propondo novos experimentos em temas, formas e linguagens. Assim como a Geração de 1927 vai se libertar do petrarquismo e das formas rimadas metricamente formadas; Pablo Neruda, mesmo antes de chegar à Espanha, seguirá o caminho do experimentalismo linguístico e poético, esculpindo versos livres, assonantes, com rimas internas baseadas no ritmo da conversação: o poema-prosa, próprio da vanguarda, incorporando todos os fatos linguísticos do linguajar popular e toda a temática do mundo em transformação: Neruda asume su función vanguardista de liberador de lo concebible y de lo formulable. Y para decir .la fealdad y el sin sentido de la existencia incompleta, oprimida por un mundo indeseable, para registrar en bruto lo sólito, lo pedestre, lo crudamente psicosomático, para mostrar el embate desarticulador, para dar cuenta de su pugna mental, para abrirse a las potencias desfigurantes necesita desmantelar el sistema literario precedente, desarmar los dispositivos placenteros, la estilizada elegancia, los rebuscamientos verbales y los arreglos eufónicos del modernismo., Neruda pone en práctica un arte radical, por lo tanto un arte de negación, agresivo y sombrío. Residencia en la tierra participa en la primera fase eruptiva del rechazo; representa un mundo neurálgico, da curso a las descargas de la subjetividad rebelde, egotista y neurópata, que extrema su negación para preservarse de la falsa conciliación, de la integración falaz; expresa la impronta de lo oscuro reprimido, inscribe los afloramientos desconcertantes de la tiniebla interior; es arte de la incertidumbre regido por una conciencia de la desazón, dice la angustia imperiosa que no acepta ser mediatizada por la transfiguración estética. Luego, en la fase tética, la del ordenamiento, asimilada ya la ofensiva demoledora, nos ocupamos de incorporar este antiarte, agente de la cultura adversaria, al museo de la historia monumental. Creo que Residencia en la tierra resiste todavía a la recuperación (o sea a la legibilidad) institucional, creo que mantiene activa su poderosa, su tentadora carga de oscuridad (Yurkiévich, 1984). Assim, vemos que no final da Segunda Residência na Terra e, principalmente na Terceira Residência, Neruda vai completar seu amadurecimento e sua mudança estética. Neruda é um poeta autobiográfico, suas mudanças estéticas deixam marcas tanto literárias, das leituras e influências que são captadas em sua poesia, quanto dos acontecimentos da sua vida. No caso da segunda residência, a 54 liberdade completa de formas, com os versos sem rima silábica, e com ritmo interno, comum às vanguardas literárias, e que também será encontrado em Federico García Lorca (neste por influência do Cante Jondo e da poesia árabe). Na Espanha, com o advento da Guerra Civil, a temática de Neruda chegará ao social e ao ideológico, influenciado pela ideologia marxista, ele participará na Guerra Civil ajudando solidariamente os republicanos. A poesia de Neruda vai se despedir do niilismo e tomar lado na batalha de ideias, sem nunca, todavia, poder ser classificada no termo “realismo socialista” (que era a camisa de força usada pelo movimento comunista para todos os escritores comunistas). A variedade de influências e temas em Neruda é tão forte, violenta, que sua poesia mantém uma integralidade vital que vai se encher de realidade, sem a tornar "realista". Em Neruda conviverão o pictórico, o onírico, a manutenção de um certo panteísmo (uma grande contradição num poeta ateu), junto aos novos temas políticos. A conjunção de influências, sem que ele jamais tenha mergulhado de cabeça em nenhuma escola, o torna um poeta de difícil classificação e análise. Vamos usar Angélica Cortázar para explicar Neruda deste período de transição e a participação, a partir de sua estada na Espanha, nos rumos da Geração de 1927, e citaremos na íntegra, por total necessidade, o manifesto de Neruda escrito para a sua revista Caballo verde: UNA POESÍA IMPURA: aproximación A LA POÉTICA DE PABLO NERUDA De la poética de Pablo Neruda (1904-1973) es importante resaltar que este poeta incursiono en diferentes tendencias, por lo tanto, es difícil encasillarlo en un movimiento específico; de igual forma, abrió el camino a una nueva sensibilidad poética, a través de recursos que ya habían utilizado otros grandes vanguardistas como Huidobro, como desechar el uso racional del lenguaje, la sintaxis lógico, forma declamatoria, rima, métrica y privilegiar el ejercicio de la imaginación, a las imágenes insólitas y visionarias, disposición tipográfica y efectos visuales. La diferencia con Huidobro radica en que Neruda no aspiró a ser líder de un movimiento ni a liberar el arte de todo sentimentalismo e impureza; todo lo contrario, promulgaba una poesía impura, apegada a la realidad material, a los hombres con todas sus pasiones y patetismos, que responda a impulsos naturales y a la caótica diversidad del mundo: Así sea la poesía que buscamos, gastada como por un ácido por los deberes de la mano, penetrada por el sudor y el humo, oliente a orina y azucena, salpicada por las diversas profesiones que se ejercen dentro y fuera de la ley. Una poesía impura como un traje, como un cuerpo, con manchas de nutrición, y actitudes vergonzosas, con arrugas, observaciones, sueños, vigilia, profecías, declaraciones de amor y de odio, bestias, sacudías, idilios, creencias políticas, negaciones, dudas, afirmaciones, impuestos (Verani, 1990:243) Es evidente cómo en el poema vanguardista Tentativa del hombre infinito (1926) no se descuida la esencia del hombre, sus contradicciones y, sobre todo la melancolía y el gastado sentimentalismo, estadios a quien el mismo 55 Neruda denomina “perfectos frutos impuros de maravillosa calidad olvidada” y que evocan, sin lugar a dudas, algunos versos de veinte poemas de amor y una canción desesperada. Tentativa del hombre infinito está en consonancia con su manifiesto “Sobre una poesía sin pureza”, puesto que se incorpora la totalidad de la vida, teniendo en cuenta incluso las manchas, las actitudes vergonzosas, las arrugas en la defensa de una poesía que se acerca a las fuerzas naturales, a los sentidos y que repudian el. rótulo de “artística” (Cortázar, 2013). Tentativa do homem infinito está no meio do caminho entre o jovem poeta de Parral e dos bosques de Temuco, e o Neruda experimentalista na angústia da busca existencial. Nele se antevê a aflição do poeta diante do tempo e da existência, resistindo através da arte ao seu próprio apagamento. Ainda há fortemente o panteísmo natural e resistem os exageros românticos, é uma fase de início de transição, impura, heterodoxa. Aliás, Neruda será um poeta “impuro” até o fim de seus dias, mesclando Marx com Mallarmé, Walt Whitman com Rubén Darío, estando na vanguarda não por se definir por uma escola, mas por fazer não deliberadamente inflexões em seus poemas sobre muitas delas. Bebendo de fontes diversas sem se incluir em nenhuma, como mesmo se definiu, sua poesia acabará por ser um calidoscópio de várias influências e escolas de séculos variados: Góngora, Mallarmé, Bécquer, Baudelaire, Walt Whitman, Victor Hugo, Gabriela Mistral (amiga e contemporânea), Federico García Lorca, e mais a sinestesia do bosque chileno e do mar e a angústia do viajante sem pátria: La sagrada ley del madrigal y los decretos del tacto, olfato, gusto, vista, oído, el deseo de justicia, el deseo sexual, el ruido del océano, sin excluir deliberadamente nada, sin aceptar deliberadamente nada, la entrada en la profundidad de las cosas en un acto de arrebatado amor, y el producto poesía manchado de palomas digitales, con huellas de dientes y hielo, roído tal vez levemente por el sudor y el uso (Verani, 1990:243) Para lograr estos efectos, Neruda acude a procedimientos surrealistas; Verani afirma que Tentativa del hombre infinito y el Relato del habitante y su esperanza son los primeros en incorporar dicho procedimiento a la literatura hispanoamericana en forma paralela al movimiento francés, sin ser tributarios de Breton. Un dato relevante es que un año después de la publicación de dichos libros apareció el primer manifiesto surrealista. Por lo tanto, el fenómeno que se percibe en este poema se percibe es una realidad caótica ligada a lo caótico: imágenes inconexas, eliminación de puntuación, flujo verbal que se desintegra en una estética impura que hace patente la condición humana y como las ansias de infinitud se desintegran, en ese viaje sonámbulo a través de la noche y que avizora un día inalcanzable, pues al final sólo queda la muerte…, una muerte con tono inconcluso y suspensivo (Cortázar, 2013). Um surrealismo pré movimento surrealista, baseado no onírico e no pictórico, que indelevelmente vai unir sua poesia, em termos temáticos, à poesia de Lorca. Um Neruda tão aberto a tudo que é fomentador de movimentos e participa deles, dirigindo a revista Caballo Verde na Espanha, sem que, por não ser espanhol, 56 ser citado como um dos expoentes desta Geração. Aliás, esta questão é algo que ressaltamos no nosso trabalho, Neruda vai participar ativamente do movimento da Geração de 1927 (mesmo tendo chegado após seu lançamento). Neruda reunirá poetas, dirigirá e editará uma revista, apoiando esta vanguarda. Na nossa visão, por não ser espanhol, Neruda é esquecido em dez entre dez trabalhos acadêmicos que versam sobre a Geração de 1927. Esta é uma questão que levantamos, por sua importância e temática comum, Neruda não deveria ser estudado como um dos membros ativos desta geração, ainda que seu nascimento se dê no Chile e tenha chegado após seu lançamento? Impossível descolar a poesia de Neruda, desta época na Espanha, da poesia dos outros poetas da Geração de 1927. Neruda foi influenciado por esta, mas também os influenciou, como vemos aqui em seu surrealismo pré-surrealista. Neruda não só lia os poetas da Geração de 1927, era também lido e aclamado por eles: Pero es en ese intento por traspasar lo conocido que se evidencia como se apoya en el cosmos para encontrar una posibilidad de infinito, la noche hace parte del poeta, de su estado de ánimo y he aquí un recurso interesante: el poema se inicia aludiendo a unas hogueras pálidas y a humos difuntos, que no son precisamente la salvación o la luz, sino que presagian la oscuridad total; y a toda una simbólica que vincula con la tristeza del poeta: “el crepúsculo rodaba apagando flores/ tendido sobre el pasto hecho de tréboles negro”. Es así como nos enfrentamos a un viaje por la noche, que se podría parecer al “Altazor” de Vicente Huidobro, porque se configura una realidad paralela en la cual el poeta sube y aja en una eclosión de sentidos, en la cual el lenguaje cada vez se complejiza, pero a su vez adquiere la belleza y profundidad propias del estado inconmensurable al que se ha llegado, luego de un trasgar por zonas ocultas, en la cuales ciudad, universo y el hombre están en sintonía; de ahí que se experimenta un dolor cósmico: el dolor de las estrellas crucificadas y se pida a la noche que se acoja un corazón desventurado (Cortázar, 2013). Vemos no Neruda de 1926, um ano antes do manifesto da Geração de 1927, várias características pictóricas e oníricas que depois Lorca reuniria como característica em seus poemas. A noite, o sonho, a angústia, o negro da morte, o lado inconsciente, mítico e sempre angustiado da poesia. O poeta chileno já trilha um caminho de renovação, mas ao se renovar, prenuncia um caminho para a poesia latino-americana, e com sua forte influência na Espanha (somente Rubén Darío vai influenciar tanto a Geração de 1927 quanto Neruda) também vai dar sua contribuição às vanguardas da poesia espanhola: Así como la mujer al estar invadida por un enigma, al igual que la noche, lo pone cara a cara frente a un embarcadero de dudas que todo lo invade, la noche-mujer se quiere poseer, pero es infinita, inalcanzable; por eso el deseo deviene en fatalidad, en crepúsculos, en vivir sonámbulo en busca del alba que es tan lejana, en ser un náufrago que vive solo en una pieza sin 57 ventanas una yegua que solo galopa perdidamente a la siga del alba muy triste. En conclusión, se puede decir que Neruda supo plasmar de la mejor forma una realidad irreductible y contradictoria en la cual el sentimiento de angustia y desolación se expresa a través de imágenes incongruentes y fantasmagóricas que muestran la condición del poeta: un ser que vive en un navío que no se detiene como la noche en que el viaja, única e interminable y en la cual la posibilidad de una luz (consumación del deseo) es imposible, porque, incluso, cuando se de cantar, sobrepasar los límites de la mortalidad se queda atemorizado al borde del precipicio, o porque hay una barrera frente al otro: “El aire estaba frío en tu corazón como una campana”. De igual forma, en Neruda, el amor es un tema recurrente y no es la excepción en Residencia en la Tierra; pero ahora con una tonalidad distinta a la expresada en Veinte poemas de amor y Tentativa del hombre infinito, libros en los que subyace la nostalgia y un lirismo exacerbado de profundas magnitudes, casi etéreo y evasivo. En Residencia en la Tierra surge una reflexión poética fuertemente enraizada al ser y lo hacen sentir vivo en un mundo cargado de belleza y placer y en el cual lo aparentemente banal, es por medio de imágenes recurrentes, que dan un sentido vitalista, a pesar de hacer alusiones a la muerte(Cortázar, 2013). Angélica Cortázar nos faz coro, ao mostrar como entre Tentativa del hombre infinito e a Residência na terra, há uma ruptura. O amor, tema recorrente na poesia de Neruda permanece, mas há uma mudança na forma de o cantar. Não é mais o amor idílico, ainda que angustiado, idealizado. É o amor cotidiano, muitas vezes reduzido a apenas as sensações sexuais, e a sua posição na tentativa de suportar a carga dura de um mundo desconexo. É um poeta menos otimista, que através dos prazeres da carne e do corpo, carrega a carga vital para suportar a presença da morte, que mostra sua presença na poesia: Es así, como el poeta, albergando un espacio trascendente, paraísos idílicos. Por ejemplo en “Caballo de los sueños” dice: Hay un país extenso en el cielo Con las supersticiosas alfombras del arco iris Y con vegetaciones vesperales: Hacia allí me dirijo, no sin cierta fatiga, Pisando una tierra removida de sepulcros un tanto frescos, Yo seño entre esas plantas de legumbres confusas (Neruda, 1971) (Cortázar, 2013). Antíteses violentas no poema Nerudiano, o poeta cético e niilista, fala de um paraíso que muito se aproxima do cristão, mas de forma onírica, não como uma promessa de eternidade, como forma de fuga do caótico, do confuso, da angústia, da solidão, do tédio, da promessa da morte. Não é uma promessa, é uma evasão, assim como toda sua geração de poetas, céticos e anticlericais, Neruda vai expressar suas incertezas e buscas como se fosse uma pintura, no pictórico vai recompor como catarse o desencontro do cotidiano, como se fosse possível parar o tempo. También es poseedor de una fuerza pasional que lo impulsa en ese trasegar 58 por el mundo; en “Sonata y destrucciones”: “He oído relinchar su rojo caballo desnudo, sin herraduras y radiante” y “Yo necesito un relámpago de fulgor persistente” (Neruda,1971). Es de allí de donde deviene el espacio cuerpo de mujer-tierra fecunda, que activa de igual forma ese paraíso anhelado; esto se puede ver en “Alianza”: Con tu cuerpo de numero tímido, extendido de pronto Hasta las cantidades que definen la tierra Detrás de la pelea de los días blancos de espacio Y fríos de muertes lentas y transitar tus besos Haciendo golondrinas frescas en mi sueño (Neruda, 1971) (Cortázar, 2013). Neruda tem uma linha biográfica em sua poesia, e permanência. Nesta poesia de transição, de novas marcas, reaparece sempre a sensualidade do encontro sexual, da amada e a evocação mística da natureza. É quase como uma linha que une toda sua criação, do adolescente de Temuco, ao diplomata chileno na França no fim da sua vida. Pegadas que dão pista aos nerudistas de que o poema tem o cheiro de Neruda, as digitais de Neruda, o beijo extasiado de Neruda. A permanência todo o tempo deste êxtase panteístico metafísico, mesmo em seus poemas mais céticos e a busca do reencontro com a mulher amada: Por otro lado, el tiempo se presenta como un proceso pasivo, una inercia, un letargo: “aguardo el tiempo uniforme, sin medida” (“Caballo de los sueños”) y los días, el nacimiento a una nueva agonía; en “Débil del alba”: “El día de los desventurados, el día pálido se asoma/ son un desgarrador olor frio con sus fuerzas en gris/ sin cascabeles, goteando el alba por todas partes/ es un náufrago en el vacío, con un alrededor de llanto” (Neruda,1971). De igual forma, la necesidad de amor se convierte en una reminiscencia fantasmal, en la que prevalece un transcurrir extenso y desolado: “Mientras tanto crece a la sombra/ del largo transcurso en olvido/ la flor de la soledad húmeda, extensa/ como la tierra en un largo invierno” (Fantasma). En “Lamento lento” es evidente como el nombre de la amada invade los espacios, lo que genera toda una seria de imágenes insólitas que perpetúan un estado emotivo (la tristeza del corazón) que se va tornando en noche, en agua, en frio de otoño: “La gota de tu nombre lento/ en silencio circula y caer/ y rompe y desarrolla su agua u hace fragmentar el tiempo en mitades inaccesibles” (Neruda, 1971). Nuevamente, está la situación comprueba como la mujer, poseedora de una extrañeza u una belleza indescriptible, es capaz de fragmentar el tiempo, generar confusión, desvarió (Cortázar, 2013). O mal do século XXI. A náusea, o ser se desintegrando diante da morte. O tempo passivo, e a tentativa do homem infinito. A amada sempre cantada como aquela que é mais do que a mulher, a que vem retirar o poeta da letargia e da angústia. A poesia como catarse e refúgio diante da morte, escapar para o sonho e para o pictórico, para a beleza, mesmo que dura da arte. O Neruda que vai para o exílio voluntário na Birmânia vai experimentando na vida, no poema, no ritmo, na temática e assim vai construindo novas formas de expressão e se inserindo no 59 espaço de poetas vanguardistas do seu tempo. Este poeta na sua jornada pelo Oriente e a caminho da Espanha é um sorvedor de influências multifacéticas, e um recriador antropofágico delas, numa poesia que nada fica a dever aos melhores poetas europeus: Pero al avanzar progresivamente en los poemas, se hace evidente como para la prosa poética las historias son más complejas y adoptan un vuelvo total, porque se pasa a una realidad más objetiva, aunque la angustia y la tristeza sigan prevaleciendo. El humor negro y la imaginación van constituyendo otros espacios concretos que dejan entrever una faceta menos etérea y cada vez más terrena. En “Caballero solo”, lo banal invade una existencia solitaria rodeaba por un gran bosque de placer: “Los jóvenes homosexuales […] y las jóvenes señoras preñadas hace treinta horas […] rodean mi residencia solitaria”. El ritual de observar las piernas, es risible, pero más allá de esto, hay una carga de emotividad que constata el estado al que se puede llegar luego e experimentar la ausencia en un tiempo que pasa inexorable y sin un atisbo de esperanza como una mujer al lado, respirando, durmiendo desnuda(Cortázar, 2013). Residencia na terra é a busca permanente do ente por sua essência perdida, o ser humano em potência, que não consegue se realizar num mundo caótico. Assim a importância do corpo, limite material e dado biológico primeiro, as sensações mais básicas e triviais, as necessidades mas elementares, alimento, excreção, satisfação sexual, são uma forma básica de recomeçar a busca, de tentar de alguma reintegralizar o ser humano com sua essência perdida (teoria de alienação de Marx e Hegel, mesmo que Neruda neste momento não tenha contato com ela). Neste ponto de temática é um texto eminentemente revolucionário, inovador e intenta resolver os anseios criados pelas transformações sociais revolucionárias criadas pelo capitalismo, que destrói os antigos laços comunitários, camponeses, fraternais, e coloca no lugar deles relações modernas de valorização econômica, inclusive para as obras de arte. Como diz Marx, 1998 “A burguesia, lá onde chegou à dominação, destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. Rasgou sem misericórdia todos os variegados laços feudais que prendiam o homem aos seus superiores naturais e não deixou outro laço entre homem e homem que não o do interesse nu, o do insensível ‘pagamento a pronto’. (…) Transformou o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência em trabalhadores assalariados pagos por ela”. Mesmo ainda não sendo marxista, Neruda tem na sua poesia uma crítica explícita ao processo de alienação capitalista, Angélica Cortázar relata assim a forma que Neruda traduz isto em sua poesia: Todo ellos ocasiona una profunda reflexión e torno a la importancia del cuerpo por albergar la vida misma, el efecto de lo accesorio, los ropajes, y en sí el abatimiento que trae consigo las cadenas que impiden sacar a flote la esencia que subyace dentro y del afuera, instancias que Neruda 60 reivindica en al descubierto lo voluble de la condición humana. En Residencia en la Tierra es reiterativo el rasgo vanguardista, en la medida en que las ambigüedades, sobre todo, en el ámbito de los sentido vinculan a imágenes insólitas que perpetran la angustia, el letargo y la soledad; estados propios de poeta que atado a la tierra se cansa de ser hombre y anhela un mundo distinto. En este sentido, se ve como al iniciar los poemas, un hálito de ambigüedad invade los espacios, predeterminado el sonido como sentido capaz de generar efectos sorprendentes que hacen evidentes las polaridades de la condición humana: “del sonido salen números, rayos humedecidos, relámpagos sucios”; pues este sentido tiene la particularidad de crecer, es por medio de este como el alma rueda, se desvanece; pero a la vez es sinónimo de devastación “silencioso galopando den caballos” (“Un día sobresale”); “las tumbas llenas de huesos sin sonido/ la muerte como un sonido puro “(“solo la muerte”). Entonces, para simbolizar la muerte se acude al contraste de los sentidos: “una muerte golpea, grita sin boca pero sus pasos suenan”; esta en el sinsabor de la noche y en el canto de color de violetas húmedas. Aquí, color, sonido y humedad se funden en una imagen que sintetiza sabiamente la idea de muerte, que luego es personificada con matices recurrentes: la mirada de la muerte es verde, la muerte va vestida de escoba y lame el suelo buscando difuntos (Cortázar, 2013). O poeta dos arroubos juvenis é substituído pelo poeta que está cansado de ser homem. A experiência oriental não o leva a um mergulho misticista orientalista, ao contrário, o leva a compreender sua mortalidade e a angústia do ser para a morte heideggeriano. E nos seus poemas há vários tipos de morte, não só a física, mas a pequena morte que levamos a cada dia, quando vivemos de forma caótica sem absolutamente nenhum sentido, o que nos deixa cansados de ser homem. Esta mescla de pictórico, onírico, morte, sensualidade, panteísmo, catarse no sexo e no amor, caracteriza uma poesia extremamente variada na temática. A forma é descompromissada com os cânones da poética tradicional, versos sem métrica marcada e sem rima silábica, muitas vezes próximos da prosa poética. Neruda se reconstrói como poeta vanguardista, experimentalista e renovador. Um viajante do tempo, que vai anotando tudo a seu redor e recompondo a experiência em poesia, para tentar integralizar seu sentido: En “Walking Around” el cansancio de ser hombre, estar marchito, se hace palpable en una cotidianidad que explota pues el olor de las peluquerías hace llorar a gritos, así como la ropa: calzoncillos, toallas y camisas que lloran lentas lagrimas sucias. Todo este sentimiento, producto del letargo de vivir anclado en la tierra, hace en esta en una escapatoria, entendiendo que la vida está invadida por la suciedad de las ocupaciones, frías y monótonas, en las que predominada materiales que carecen de vitalidad (papeles, secantes, tintas). Por eso se habla en “Despidiente” de un agrio cielo de metal mojado, de la boca violeta de los timbres, el incierto olor de ministerios y tumbas y estampillas, palabras que remiten a la muerte, la cual invade todos los espacios y adopta dimensiones surrealistas, en las cuales los sentimientos son los encargados de generar sensaciones que hacen percatar de una atmósfera legumbre propia de este estado. Por ejemplo, en la calla 61 destruida se hace palpable un sabor mortal: “lenguaje de polvo podrida se adelanta”. En “Barcarola”: “suena el corazón como un caracol agrio”. Pero el placer también es un estado recurrente en Residencia de la Tierra, porque el hombre, habido de experiencias busca alternativas que lo hagan sentir vivo en medio de la muerte. Es así como en “Estatuto del vino” se hace evidente como este licor genera una serie de efectos capaces de articular sentidos: “Me gusta el canto tono de los hombres del vino/ y el olor de zapatos y de uvas y de vómitos verdes” y llevar a un estado de evasión e infinitud que se ansia, solo perdiéndose en la oscuridad (túneles) se puede llegar azul de la tierra…(Cortázar, 2013) O poemário das Residências é de uma tremenda profundidade filosófica. Nos faz lembrar o ser em potência de Aristóteles. Entre Platão e Aristóteles, há uma diferença na busca do sentido do homem no mundo. Enquanto Platão opta pelo Sophos, pelo filósofo que contempla a existência sem se abalar com a aparência, Aristóteles coloca o acento na ação, no ser em potência. Dialético, escolhe o Phronemus, e a deliberação, que não é um simples escolher, mas um optar ativamente por um caminho, tirando a filosofia e a ética da paralisia contemplativa, colocar como missão do ente ser ativamente no mundo. Neruda é um poeta da ação, diante da tirania do tempo e da angústia da morte, sua poesia opta por agir. Seja através do amor erótico e sexual consumado, seja pelas opções das pequenas ações cotidianas e da busca do encontro. Não é o poeta militante engajado, mas não é o poeta da inação frente a corrosão do tempo. E o poeta da vivência, do diário, que busca na junção das pequenas ações dar sentido à vida. É o poeta que opta pela travessia, assim como Ulisses, e traça o sentido da vida no caminho que percorre, como no ditado, caminhante, o caminho se faz ao caminhar, o itinerário autobiográfico composto em seus poemas é o que dá sentido a sua existência: Residir en la tierra es aletargante y hostil, sin embargo, subyacen tonalidades, a veces fiugaces, que hacen soportable el suplicio y se cuelan por los resquicios de una vida al borde del abismo. Vida que Neruda plasma en una poesía, en la cual el desequilibrio, las ambigüedades de las imágenes insólitas y el juego de oposiciones ponen de manifiesto al hombre en su desnudez. Finalmente, vale la penas, abordar la visión política de Neruda en su poética pues, a pesar de escribir bajo diferentes estilos y tonalidades, fue intimista, romántico y vanguardista; ante todo, se comprometió con las circunstancias sociales y políticas, no solo de su país, sino también de la Latinoamérica, tanto así que varios de sus obras como Canto general (1950) y Las uvas y el viento (1954) llegaron a constituirse en verdaderos símbolos de la identidad de nuestros pueblos, en los que prima la lucha contra la injusticia social y el anhelo de progreso e igualdad. Por ejemplo en esta última afirma que habrá un día en el cual todos nos reuniremos en la altura, porque bajo la tierra nada nos espera y solo sobre esta (cima) llegara la unidad. Sin lugar a dudas, una metáfora bastante recurrente de la victoria, en la cual los pueblos oprimidos llegan a ser libres (Cortázar, 2013). Este ainda não é o capítulo da análise do Neruda marxista do pós-guerra. 62 Assim, não nos deteremos muito em explicar este caminho, mas temos de prenunciá-lo para seguirmos no nosso caminho. Pablo Neruda multifacetado já deita os alicerces do poeta engajado que será após a Guerra Civil. Ao destroçar o idílio e os arroubos românticos juvenis, ao chegar ao niilismo e ao desespero diante da morte, ele necessita reconstruir o sentido da sua busca. Limpando os destroços e abrindo caminho, Neruda, sem abrir mão de todas as influências recebidas, como raízes da imensa árvore, busca unidade em sua poesia através das ideias socialistas de povo, proletariado, revolução, unidade, partido, emancipação, socialismo, comunismo. Não que sua poesia fique adstrita a este temário, ou presa da tosca classificação de “realismo socialista” dos manuais soviéticos. Mas, efetivamente, ele será um homem de partido e do Partido Comunista. Escolherá um lado e lutará ativamente por ele, e isto marcará a sua poesia. Ao lado de todas as temáticas novas, ele construirá a temática do engajamento e do poeta militante: Sin lugar a dudas, los estragos de la guerra y la opresión surten efecto en el poeta quien-sensible ante el mundo- se hermana y compadece de aquellos que sufren. Este es el caso de Miguel Hernández, aquel poeta que incorporándose al regimiento republicano al comenzar la guerra- y que muere precisamente en prisión-, produce una poesía que se nutre de lo social y de la experiencia colectiva. De el habla Neruda en su poema “El pastos perdido”, en el que lo hace ver como un poeta de pueblo, cuya voz sus verdugos ahora tienen que por porque hicieron derramar sangre, la sangre de los pueblos de España que no olvidan y claman por liberta, porque precisamente con su muerte se “apaga las lámparas de España” Otros poemas referidos son el turco Nazim Hikmet, afiliado al partido comunista, quien al igual que Hernández, sufrió exilio y prisión. De él se afirma que sus versos son tejidos con sangre por enfrentarse desde la clandestinidad a la opresión, y que juntos compartieron la lucha por el pueblo; y el francés Paul Eluard, amigo que amo entrañablemente, el cual se sentía fuertemente ligado al pueblo de Francia, a sus razones y a sus luchas. Fue miembro del partido comunista y uno de los poetas más importantes de la Resistencia. A el Neruda le dedica unos versos en los cuales, al igual que Hernadez y Hikmen, exalta su condición de poeta comprometido y revindica el poder de unos versos capaces de, incluso, hacer florecer la paz. Es así como se nos plantea una estrecha relación entre poesía y política por ser la primera, la portadora de la voz del pueblo, la que habla de aquello que no se quiere revelar muestra en toda su desnudez la situación del hombre de cada aun mundo adverso y paradójico del que solo recibe golpes; con ello constituye un entramado simbólico ligado a la liberación, a la revolución y al compromiso que permite ir de las esferas de lo mediático a la dimensión de lo perenne: “eres eterno, eres España, eres tu pueblo, ya no pueden matarte. Ya has levantado tu pecho de granero, tu cabeza llena de rayos rojos, ya no te detuvieron” (“El pastor perdido”), “Por eso cuando ríe […] es más blanca su risa, en el ríe la luna, la estrella, el vino, la tierra que no muere, todo el arroz saluda con su risa, todo su pueblo canta por su boca” (“Aquí viene Nazim Hikmet”) (Cortázar, 2013). Assim, é na sua estada na Espanha e na sua convivência, tanto com a Geração de 1927 e com Federico García Lorca, quando com os horrores da Guerra 63 Civil, que temos de buscar os possíveis temáticos que explicam a transformação da poesia de Neruda em poesia militante e engajada. Uma simbiose cujos alicerces são todavia cavados ainda na passagem de Neruda pelo Oriente. Pablo Neruda nunca foi um ocidental extasiado num mergulho místico pelo budismo ou pelas outras religiões orientais. Ele via, no misticismo do Oriente, um reflexo da pobreza material extrema, no estoicismo dos povos explorados. Em lugar de uma exortação, o poeta reagiu com a angústia, com a dor de quem sente em si a dor dos outros, lembrando o aforismo de Che Guevara: “o verdadeiro revolucionário é aquele que sente no seu próprio rosto o soco dado no semblante do próximo”. Esta vivência transmuta e prepara Neruda para a fase seguinte: revolucionária e engajada. Para entender esta fase posterior vamos analisar a poesia de Federico García Lorca, o principal poeta da Geração de 1927, buscar os influxos comuns entre ele e Neruda. Vamos também analisar a influência de Lorca na Geração de 1927, e em Pablo Neruda da Guerra Civil Espanhola. Assim podermos responder as indagações a que se propõe esta dissertação. 64 3. A GERAÇÃO DE 1927 E FEDERICO GARCÍA LORCA Afinal, o que foi a Geração de 1927 na Espanha, qual seu significado? Optamos por definir a Geração de 1927 como um conjunto de escritores, pintores e até cineastas (Buñuel, por exemplo) que nasceram em anos próximos, tiveram formação intelectual com influências semelhantes e tiveram por base guias canônicos comuns. Lorca é desta geração o escritor mais influente. Ao mesmo tempo que Lorca é o mais espanhol por sua temática e seu destino, é o mais local, o que mais absorve a temática regional, de sua terra natal: Andaluzia, incluindo o idioma dos ciganos em seu Cante Jondo. Andaluzia é um dos locais de maior influência árabe na Espanha, assim, na poética de Lorca, também há, de forma indireta, reflexos do arabismo andaluz, da cultura árabe que durante séculos dominou a Península Ibérica, e que refletirá na poesia de Lorca não só no léxico, mas no ritmo e na temática. O significado da Geração de 1927 na Espanha transcende a questão meramente estética, é uma geração de intelectuais que busca entender o lugar da nação, após a perda da hegemonia da antiga metrópole e império colonial. É chamada de Geração de 1927, por terem nascido em anos próximos, terem recebido formação intelectual com influência semelhante, e terem por base literária ícones comuns: o espanhol Gôngora e o latino-americano Rubén Darío. Como eram todos jovens, renovaram a linguagem literária, com o uso do coloquial e do popular, ao mesmo tempo que iam buscar palavras perdidas ou não descobertas da Espanha. Criaram cânones libertários e renovadores não só na poesia, mas também no teatro, com o próprio Lorca; no cinema, com Luiz Buñuel; e nas artes plásticas com Salvador Dalí. A geração constituiu-se como tal após o manifesto da comemoração do nascimento de Luis de Góngora y Argote, que foi considerado o poeta por excelência, pela limpidez de seu verso, focado no equilíbrio sem os exageros românticos. Esta geração criou relações pessoais e políticas, tinham consciência de serem um grupo, criando e escrevendo em revistas literárias comuns — Caballo Verde, Revista Sevillana Grécia, etc — e em atitudes estéticas e políticas coletivas, assim, a temática popular e espanholista era comum a obra de quase todos. Temáticas da Geração de 1927: esta geração, ao mesmo tempo que fazia a apologia do equilíbrio e da simplicidade, acabou enovelada em contradições do 65 seu próprio tempo, em que a dialética marxista causava grande impacto na estética literária (ainda que o grupo não tivesse nenhum escritor que seguisse uma estética de influência marxista), é que a confrontação de classes sociais e as revoltas populares, que inspiraram inclusive a República, acabavam por se impor no tom de crítica social de muitas obras, e no inconformismo dos costumes, tanto na atitude antiburguesa pessoal e de vida, quanto no experimentalismo estético. Assim, eram temas da Geração de 1927, sempre em contradição: 1) o equilíbrio na forma e a contradição no conteúdo; de um lado o equilíbrio buscado na poesia de Góngora, um verso límpido, fluido, sem os exageros românticos; de outro lado as contradições que assolam a própria Espanha, em suas lutas para sair da influência feudal e se modernizar, com a pressão da classe trabalhadora, que elegeu um governo socialista; 2) o intelectual e o sentimental; De um lado a busca de um equilíbrio e da eliminação das influências românticas, vistas como decadentes e burguesas; de outro lado, o retorno do lírico, na transcrição dos cantos populares. 3) Pureza de sentimentos e revolução temática, chegando ao surrealismo (inclusive política); De um lado a busca de sentimentos estáveis e sem arroubos, de outro os sentimentos revolucionários, inclusive os trágicos (presença recorrente da morte). Se no início a Geração de 1927 busca o equilíbrio na poesia, com o crescimento da influência surrealista (com seu subjetivismo, onírico, louvor do id), todos os temas, inclusive os escatológicos e mórbidos, entrarão na poesia da Geração de 1927; 4) Cânon culto e influência estética e linguística popular; Uma das maiores contradições da Geração de 1927, que se inaugura como corrente fazendo a apologia do Góngora e do cultismo; logo em seguida, até pelos compromissos políticos, esta geração vai se contaminar dos temas e da estética popular, o que era completamente estranho ao cânon culto original, o manifesto “Para uma poesia impura”, que é de Pablo Neruda, e que, em geral, os estudos sobre a Geração de 1927 não o ligam a esta geração, pelo fato de Neruda ser chileno, é uma boa síntese do pensamento desta geração. Lorca vai coletar as variantes ditas incultas da fala popular e até do dialeto cigano; 5) Universalismo e internacionalismo versus o espanholismo (ultraísmo), ou seja a busca de uma glória e de uma identidade perdida que na verdade ninguém sabia onde buscar, apologia de Mancha e Andaluzia, como mitos originais de 66 fundação da Espanha ideal, apologia do local e do particular universalizados. Devido à debilidade da classe dominante, da burguesia espanhola, a nova identidade era buscada na vida e na linguagem das classes populares e marginalizadas; 6) Tradição e respeito aos clássicos e renovação e experimentalismo nos modelos literários; A Geração de 1927 vai chegar ao experimentalismo extremo com a mescla entre a pintura de Dalí, o cinema de Buñuel e a pintura de Lorca, o pictorismo e o surrealismo expressos na poesia, o surrealismo será o avant-garde dos experimentalismos desta geração. Vê-se que o movimento se processa em contradição hegeliana, na negação da negação, sempre em tensão dialética entre o passado e o futuro, a ruptura e a tradição, a busca de um novo caminho e o reconhecimento do ser espanhol. Isto, em lugar de levar a uma estagnação, levou a uma grande riqueza de formas, já que todos os cânones não eram fixos, havia um experimentalismo em busca do que seria esta nova identidade. Na verdade, o movimento refletia o momento da própria Espanha, um signo de uma contradição de um sentimento nostálgico de um passado perdido, e as rupturas revolucionárias que acabarão por gestar a República. O tragicismo dos poemas de Lorca, acabariam profeticamente por prenunciar o genocídio ao qual sucumbirá a jovem República e a própria tragédia pessoal do jovem escritor. A Geração de 1927 receberá a influência passadista de Góngora e do cultismo, ou seja, de limpeza e elegância nos versos, de jogos de palavras sem arrebatamentos românticos; contraditoriamente, receberá também a influência de Gustavo Adolfo Bécquer, e sua poesia pós romântica, que ainda que tenha lirismo, tem comedimento em seu sentimentalismo e influência da poesia francesa pós romântica; por último, Rubén Darío e as inovações vanguardistas, o poeta latinoamericano que mais influenciou Espanha, mas que dialogava com toda a vanguarda europeia. A Geração de 1927 também sofreu a influência de Antônio Machado e da assim chamada Geração de 1898, geração esta que também vivia a contradição entre o ultraísmo e a busca de um novo cânone espanhol. Os poetas da Geração de 1898 vivem as mesmas questões históricas da Espanha no início do século XX, e enfrentam problemas estéticos de renovação e de temática semelhantes. Além de Antônio Machado, influenciarão a Geração de 1927 Ortega e Gasset, Ramón Gomes de la Sierra, Juan Ramón Jimenez. Assim, a elegância e a limpeza nos versos, 67 musicais e sem exageros ou desesperos românticos é síntese de todas estas influências. A Geração de 1927, a partir destas influências vai cada vez mais fazendo uma poesia mesclada, “impura”, para além dos cânones que a inspiraram, se distanciando das vanguardas e dos experimentalismos e se aproximando do engajamento e do compromisso Político (Lorca, Miguel Hernández). Também surge o surrealismo, aproximando a poesia da pintura, mas também do subconsciente, do onírico, do pictórico. Há o casamento da geração literária com o cinema e a pintura através das relações estéticas e da amizade (as vezes agressiva e contraditória) entre Lorca, Dalí e Buñuel, que moraram juntos na residência dos estudantes em Madrid, em 1920. Há rumores e evidências inclusive de um caso de amor entre Lorca e Dalí, a homossexualidade de Lorca tão discutida, teria expressão trágica na sua poesia (Ode a Walt Whitman). O surrealismo será o experimento mais vanguardista da Geração de 1927, incorporando à estética espanhola o onírico, o subconsciente, o sonho, a agonia, o diálogo com Thanatos e Eros. O grupo se reuniu como Geração no natalício dos 300 anos de falecimento de Luis de Gôngora, a partir daí começou a influenciar toda a literatura e a arte espanhola. Em Málaga, resultado deste encontro e manifesto, a revista Litoral, dirigida por Emílio Prados e Manuel de Altolaguirre, publicou um número especial em homenagem a poesia deste grupo de poetas. Por conta desta revista, Ignácio Sánchez Mejía, famoso toureiro espanhol, os convida a ir a Sevilha ler seus poemas numa tertúlia literária aberta ao público. Compareceram neste evento: Federico García Lorca, Rafael Albertí, Jorge Guillén, Dámaso Alonso e Gerardo Diego. A partir daí o grupo se torna conhecido e influente em toda Espanha e lança várias revistas, seus livros obtém relativo sucesso e a Geração de 1927 passa a ditar o novo cânone literário, através das revistas literárias e de suas obras, passam a ser a estética a ser seguida a partir daí. Importante ressaltar que esta geração não se fixou somente na poesia, foi uma geração que trabalhou em todas as áreas das artes. Além do trabalho de poesia, houve ensaístas como Dámaso Alonso (também prolífico poeta), Pedro Salinas, dramaturgos como García Lorca y Alejandro Casona; Buñuel, que era cineasta e artistas plásticos, influenciados por estes poetas com os quais conviveram na residência de Madrid: Almada Negreiros, Manuel Ángeles Ortiz, John Armstrong, Maurice Asselin, Rafael Barradas, Juan Bonafé, Francisco Bores, Norah 68 Borges, Pancho Cossío, Salvador Dalí, Robert y Sonia Delaunay, Francesc Domingo, Apelles Fenosa, Pedro Flores, Luis Garay, Federico García Lorca, Gabriel García Maroto, Ramón Gaya, Ismael González de la Serna, Juan Gris (muere en 1927), Marcel Gromaire, José Gutiérrez Solana, Wladislaw Jahl, Cristóbal Hall, Manolo Hugué, Maruja Mallo, Joan Miró, José Moreno Villa, Jesús Olasagasti, Santiago Ontañón, Benjamín Palencia, Joaquín Peinado, Santiago Pelegrín, Pablo Picasso, Gregorio Prieto, Pere Pruna, Olga Sacharoff, Alberto Sánchez, Ángeles Santos, Pablo Sebastián, Josep de Togores, José María Ucelay, Adriano del Valle, Daniel Vázquez Díaz, Esteban Vicente y Hernando Viñes. Os artistas plásticos que foram influenciados ou tiveram relação com esta geração se moveram entre o cubismo, o neoclassicismo, a figuração líricas, os realismos de novo tipo e o surrealismo, estes “ismos”, nas palavras de Eugenio Carmona, são como «um repertorio de que podem extrair soluções específicas para problemas concretos». Com nomes relacionais a Geração de 1927 como os de Dalí, Miró e Picasso, mostram a extensão e a influência desta geração. 69 4. A GERAÇÃO DE 1927 E A GUERRA CIVIL ESPANHOLA A geração foi extremamente marcada pela Guerra Civil Espanhola, que estala em 1936, através de um golpe de cunho fascista, conservador-monarquista e de direita, contra a República democraticamente eleita. De um lado, os Republicanos, socialistas, anarquistas e comunistas, que haviam sido eleitos democraticamente, lutam para manter o Governo legítimo. Do outro lado, monarquistas, falangistas (um movimento de cunho fascista) e golpistas conservadores de todos os matizes se organizam para dar um golpe militar. Os dois lados se enfrentam numa guerra civil de 3 anos, que dividirá a Espanha em duas, e será a antessala da Segunda Grande Guerra Mundial. Hitler pode treinar livremente sua tática de Blitzkrieg (Guerra Relâmpago), bombardeando cidades indefesas: Guernica, obra-prima de Picasso, é retrato trágico e genial deste período, a tragédia traduzida na pintura (o que também é revolucionário em estética e como temática: o horror e a dor expressos como estética plástica, a arte como arma de luta social). Pela primeira vez na história há o uso de bombardeios aéreos e a Luftwaffe alemã pode impunemente atacar posições não só militares, mas também civis dos republicanos. Soldados fascistas italianos e nazistas alemães entram regularmente na Espanha e lutam ao lado de Franco. Do outro lado os republicanos recebem o apoio das brigadas internacionalistas, voluntários socialistas e comunistas do mundo inteiro que se entregam de corpo e alma em defesa da jovem república assassinada, é que é uma das mais belas páginas de solidariedade da história da humanidade. A maior parte da Geração de 1927 posicionou-se ao lado da República, não que todos fossem militantes políticos, mas a própria estética deste período levava a que muitos poetas deste período fossem identificados com a nova Espanha, por exemplo, Lorca e seu teatro mambembe. Lorca é assassinado, Miguel Hernández baleado em combate, morre na prisão; Antônio Machado (da Geração de 98) morre a caminho do exílio, num campo de concentração francês. Salinas, Cernuda e Emílio Prados, exilados, morrerão fora da sua terra natal; Rafael Albertí volta no fim de sua vida. Apenas Aleixandre, Dámaso Alonso e Gerardo Diego permanecerão na Espanha. Federico García Lorca foi a vítima mais famosa da Ditadura Fascista que seria instalada por Franco. Lorca fora identificado com a República, por conta de seus inúmeros amigos socialistas e de seu grupo teatral popular, “La Barraca”, que 70 interpretava peças para o povo de forma mambembe, durante a República. Ainda que não fosse um militante político, havia em seus livros um claro compromisso estético com ideais de emancipação. Quando estalou a Guerra Civil, fugiu de Madrid por achar que ficaria mais seguro em sua terra natal, Andaluzia. Ledo engano, à sua finca foram dois estranhos que o vigiavam, por conta desta incursão, ele fugiu da sua finca e se escondeu na casa de um amigo falangista. Depois de dois dias escondido, foi delatado e capturado por um grupo de milícia fascista, levado a um terreno baldio (acredita-se atrás do cemitério da cidade), foi sentenciado a morte sem julgamento, por ser “rojo y maricas” e executado, com um grupo de militantes socialistas. Foi a morte mais famosa da crueldade fascista dos golpistas franquistas. Até hoje não foi encontrado o corpo do mais famoso e mais talentoso dos poetas da Geração de 1927. O crime foi narrado poeticamente de forma dolorosa e magistral por Antonio Machado e Pablo Neruda: El crimen fue en Granada — Antonio Machado (Machado, Antonio, 1936) A Federico García Lorca I EL CRIMEN Se le vio, caminando entre fusiles por una calle larga, salir al campo frío, aún con estrellas, de la madrugada. Mataron a Federico cuando la luz asomaba. El pelotón de verdugos no osó mirarle a la cara. Todos cerraron los ojos; rezaron: ¡ni Dios te salva! Muerto cayó Federico —sangre en la frente y plomo en las entrañas—. … Que fue en Granada el crimen sabed —¡pobre Granada!—, ¡en su Granada!… II EL POETA Y LA MUERTE Se le vio caminar solo con Ella, sin miedo a su guadaña. —Ya el sol en torre y torre; los martillos en yunque, yunque y yunque de las fraguas—. Hablaba Federico, requebrando a la Muerte. Ella escuchaba. «Porque ayer en mi verso, compañera, sonaba el eco de tus secas palmas, y diste el hielo a mi cantar, y el filo a mi tragedia de tu hoz de plata, te cantaré la carne que no tienes, los ojos que te faltan, tus cabellos que el viento sacudía, 71 los rojos labios donde te besaban… Hoy como ayer, gitana, muerte mía, qué bien contigo a solas, por estos aires de Granada, ¡mi Granada!» III Se les vio caminar… Labrad, amigos, de piedra y sueño, en el Alhambra, un túmulo al poeta, sobre una fuente donde llore el agua, y eternamente diga: el crimen fue en Granada, ¡en su Granada! (MACHADO, 1936). Antonio Machado, no poema que nos apresenta, descreve em três partes, El crimen, El poeta y la muerte, e a terceira parte sem título, as últimas horas e a morte de Federico García Lorca. Na primeira parte, ele descreve os momentos prévios e o momento da morte do poeta, fora do povoado, num lugar sem luz. A maneira fria, calculada, sem testemunhas para que o crime contra a humanidade e arte ficasse com sua vergonha para sempre oculta. O poema mostra a crueldade e a frieza da execução: com um tiro na cabeça, se apagou a luz mais brilhante de toda uma geração de escritores. Machado faz com que na segunda parte os sinos toquem, como anunciando e denunciando a morte de Lorca. Por último, na terceira parte, a denúncia é um pedido que não se esqueçam nem de sua morte, do crime, nem da sua poesia, que foi a forma de Lorca, um obsessivo pela morte, a ludibriar e se eternizar. Neruda, por sua vez, narrou assim, tragicamente a perda de seu irmão de letras, em sua Terceira Residência, livro de combate, dedicado quase na integralidade à jovem república assassinada, e que citaremos, de forma integral neste trabalho, por ser de extrema necessidade sua leitura, para entendermos os sentimentos que a morte de Federico García Lorca causou em Pablo Neruda: Oda a Federico García Lorca — Pablo Neruda SI pudiera llorar de miedo en una casa sola, si pudiera sacarme los ojos y comérmelos, lo haría por tu voz de naranjo enlutado y por tu poesía que sale dando gritos. Porque por ti pintan de azul los hospitales y crecen las escuelas y los barrios marítimos, y se pueblan de plumas los ángeles heridos, y se cubren de escamas los pescados nupciales, y van volando al cielo los erizos: por ti las sastrerías con sus negras membranas se llenan de cucharas y de sangre y tragan cintas rotas, y se matan a besos, y se visten de blanco. 72 Cuando vuelas vestido de durazno, cuando ríes con risa de arroz huracanado, cuando para cantar sacudes las arterias y los dientes, la garganta y los dedos, me moriría por lo dulce que eres, me moriría por los lagos rojos en donde en medio del otoño vives con un corcel caído y un dios ensangrentado, me moriría por los cementerios que como cenicientos ríos pasan con agua y tumbas, de noche, entre campanas ahogadas: ríos espesos como dormitorios de soldados enfermos, que de súbito crecen hacia la muerte en ríos con números de mármol y coronas podridas, y aceites funerales: me moriría por verte de noche mirar pasar las cruces anegadas, de pie llorando, porque ante el río de la muerte lloras abandonadamente, heridamente, lloras llorando, con los ojos llenos de lágrimas, de lágrimas, de lágrimas. Si pudiera de noche, perdidamente solo, acumular olvido y sombra y humo sobre ferrocarriles y vapores, con un embudo negro, mordiendo las cenizas, lo haría por el árbol en que creces, por los nidos de aguas doradas que reúnes, y por la enredadera que te cubre los huesos comunicándote el secreto de la noche. Ciudades con olor a cebolla mojada esperan que tú pases cantando roncamente, y silenciosos barcos de esperma te persiguen, y golondrinas verdes hacen nido en tu pelo, y además caracoles y semanas, mástiles enrollados y cerezas definitivamente circulan cuando asoman tu pálida cabeza de quince ojos y tu boca de sangre sumergida. Si pudiera llenar de hollín las alcaldías y, sollozando, derribar relojes, sería para ver cuándo a tu casa llega el verano con los labios rotos, llegan muchas personas de traje agonizante, llegan regiones de triste esplendor, llegan arados muertos y amapolas, llegan enterradores y jinetes, llegan planetas y mapas con sangre, llegan buzos cubiertos de ceniza, llegan enmascarados arrastrando doncellas atravesadas por grandes cuchillos, llegan raíces, venas, hospitales, manantiales, hormigas, llega la noche con la cama en donde 73 muere entre las arañas un húsar solitario, llega una rosa de odio y alfileres, llega una embarcación amarillenta, llega un día de viento con un niño, llego yo con Oliverio, Norah Vicente Aleixandre, Delia, Maruca, Malva Marina, María Luisa y Larco, la Rubia, Rafael Ugarte, Cotapos, Rafael Alberti, Carlos, Bebé, Manolo Altolaguirre, Molinari, Rosales, Concha Méndez, y otros que se me olvidan. Ven a que te corone, joven de la salud y de la mariposa, joven puro como un negro relámpago perpetuamente libre, y conversando entre nosotros, ahora, cuando no queda nadie entre las rocas, hablemos sencillamente como eres tú y soy yo: para qué sirven los versos si no es para el rocío? Para qué sirven los versos si no es para esa noche en que un puñal amargo nos averigua, para ese día, para ese crepúsculo, para ese rincón roto donde el golpeado corazón del hombre se dispone a morir? Sobre todo de noche, de noche hay muchas estrellas, todas dentro de un río como una cinta junto a las ventanas de las casas llenas de pobres gentes. Alguien se les ha muerto, tal vez han perdido sus colocaciones en las oficinas, en los hospitales, en los ascensores, en las minas, sufren los seres tercamente heridos y hay propósito y llanto en todas partes: mientras las estrellas corren dentro de un río interminable hay mucho llanto en las ventanas, los umbrales están gastados por el llanto, las alcobas están mojadas por el llanto que llega en forma de ola a morder las alfombras. Federico, tú ves el mundo, las calles, el vinagre, las despedidas en las estaciones cuando el humo levanta sus ruedas decisivas hacia donde no hay nada sino algunas separaciones, piedras, vías férreas. Hay tantas gentes haciendo preguntas por todas partes. Hay el ciego sangriento, y el iracundo, y el desanimado, y el miserable, el árbol de las uñas, el bandolero con la envidia a cuestas. Así es la vida, Federico, aquí tienes 74 las cosas que te puede ofrecer mi amistad de melancólico varón varonil. Ya sabes por ti mismo muchas cosas. Y otras irás sabiendo lentamente (NERUDA, 2004, pp. 94). 2 Neste poema Neruda usa do panteísmo, da animação da natureza que chora a morte do amigo, mas que também o fará voltar numa improvável ressurreição vestido de durazno (pêssego), os elementos ligados à terra de Lorca, que era um poeta telúrico das ressecas terras de Andaluzia, Nos elementos da poesia de Neruda e de Lorca, o poeta chileno tira a força para chorar a morte de seu irmão Federico. O mar é noturno, negro sombrio, mas também para dizer que nos elementos da poesia de Federico viceja sua imortalidade. As estrelas correm em um rio interminável é há muito pranto nas janelas, é como se toda Espanha e todo o mundo literário sofresse a grande perda. O cego iracundo, o bandoleiro, são símbolos do fascismo, que cegamente retirou a vida do mais importante membro da Geração de 1927. Neruda convoca todos os amigos poetas para o pranto, mas tem também a ternura lírica, Lorca morto, jovem, mantivera sua pureza, frescor e eterna infância, é um relâmpago negro perpetuamente livre. Para alguém que não é religioso, Neruda prenuncia a imortalidade a Lorca, se literária ou literal, no poema: cabe a polissemia do leitor decidir-se por qual imortalidade. Mas é uma homenagem em forma de luto e pranto, pois, por causa de Lorca se pintam de azul os hospitais e crescem as escolas e os bairros marítimos. O pranto e o luto de Neruda é tão intenso, que como Édipo, ele queria arrancar os olhos e ir além, comê-los, para espiar a dor da perda do poeta irmão. E a partir deste poema que a poesia de Neruda fará a inflexão política e se manchará de vermelho, a cor do sangue, a cor do movimento socialista e comunista. Dois poemas que expressam a dor profunda que a perda do maior poeta da Geração de 1927 causou, fatidicamente, o primeiro escrito pelo principal poeta da Geração de 1989, Antônio Machado (que morrerá também fugindo da Guerra Civil, num campo de concentração francês, à beira do exílio); o outro do seu irmão em letras, Neruda. Estes poemas mostram o marco que foi para toda aquela Geração a perda de Lorca, e também o marco para nosso trabalho, já que este acontecimento trágico será determinante para as mudanças poéticas de Neruda. 2 Preferimos citar integralmente os dois poemas, o de Neruda e o de Antônio Machado e só após o texto integral fazer a análise, para não haver quebra no ritmo de ambos que são fundamentais no entendimento do desfecho deste trabalho. 75 5. A ANÁLISE DA POESIA DE LORCA 5.1 LORCA E A INFLUÊNCIA POPULAR — EL CANTE JONDO Para se entender as influências que Neruda sofrerá de Lorca é fundamental entender como Federico García Lorca absorverá em sua poesia a influência da cultura popular, do Cante Jondo, e através deste, da influência árabe e cigana na Espanha. Lorca é o mais multifacético dos poetas da Geração de 1927, que sofre um sentimento de perda de referência, derivado do fim do Império Espanhol. Os poetas não sabiam qual era o papel da Espanha e dos seus intelectuais no século XX. Por conta desta decadência espanhola, há uma busca de um retorno poético, a busca de um novo “espanholismo”. Lorca será assim, contraditoriamente, o mais espanhol, o mais universal e o mais local de todos os poetas espanhóis. Ele conseguirá isto, porque se recebe influência do passado espanhol, esta será estética, na busca inicial de um gongorismo que acabará por soar pouco em seus versos. Sua busca do passado, o remeterá ao futuro, aceitará os ritmos, a musicalidade dos marginais apátridas na Espanha, os mouros e os ciganos. Com isto sua poesia será a mais inovadora, ao mesmo tempo que sorverá séculos de tradição multicultural negada na Espanha tradicional católica e imperial. Lorca será o poeta dos marginais. Na busca de um novo espanholismo pela Geração de 1927, ele será internacional e multicultural, sem sequer necessitar sair da temática andaluz. O Cante Jondo é uma marca indelével e permanente na sua poesia, tanto na forma, no ritmo interno e na musicalidade, quanto na temática “Bodas de Sangre”, “Romance de la Luna”. Lorca não só foi influenciado pelo Cante Jondo, foi um estudioso do ritmo e da poesia cigana, tendo escrito trabalhos teóricos e feito conferências sobre o tema. Numa Espanha convulsionada, isto por si só era uma opção de classe, os ciganos, povo nômade por excelência e marginalizado, tanto na idade média, quanto no nascente capitalismo espanhol, o lumpesinato perseguido e apátrida. A Espanha vivia uma transição difícil, antigo império colonial, seu poderio e sua riqueza também foram sua desgraça. O ouro espanhol financiou a revolução industrial na Inglaterra. O fácil acesso da Espanha ao ouro e a prata das Américas, sem investimento nas manufaturas e na futura industrialização, acabou por tornar a 76 indústria espanhola incipiente e a Espanha completamente dependente dos países industrializados dominantes, principalmente depois da derrota da “armada invencível”. Mesmo numa situação de dependência, indústria desestruturada, estrutura feudal no campo e na sociedade. Os ciganos eram duplamente marginalizados e estigmatizados: na sociedade feudal, perseguidos pela religião oficial por paganismo; no capitalismo, incompatíveis por seu nomadismo com a revolução burguesa. Neste capítulo, vamos trabalhar com a transcrição de uma conferência proferida por Lorca em um jornal chamado, El Noticiero Granadino, em dias posteriores a uma conferência proferida em Sevilha, em 1922. Segundo Lorca, o Cante Jondo é um conjunto de canções cujo tipo genuíno e perfeito é a “siguiriya gitana”, vejamos a definição de Lorca: Se da el nombre de cante jondo a un grupo de canciones andaluzas, cuyo tipo genuino y perfecto es la siriguiya gitana, de las que derivan otras canciones aún conservadas por el pueblo, como los polos, martinetes, carceleras y soleares. La coplas llamadas malagueña, granadinas, rondeñas, peteneras, etc., no pueden considerarse más que como consecuencia de las antes citadas, y tanto por su arquitectura como por su ritmo, difieren de las otras. Estas son llamadas flamencas. El gran maestro Manuel de Falla, auténtica gloria de España y alma de este concurso, cree que la caña y la playera, hoy desaparecidas, casi por completo, tienen en su primitivo estilo la misma composición que la siguiriya y sus gemelas, y cree que dichas canciones fueron, en tiempo no lejano, simples variantes de la citada canción. Textos relativamente recientes, le hacen suponer que la caña y la playera ocuparon en el primer tercio del siglo pasado, el lugar que hoy asignamos a la siguiriya gitana. Estébanez Calderón, en sus lindísimas “Escenas andaluzas”, hace notar que la caña es el tronco primitivo de todos los cantares, que conservan su filiación árabe y morisca (…)(LORCA, FALLA, 2005) Assim, o Cante Jondo é, desde seus primórdios, uma mescla de culturas, Andaluzia foi um dos principais polos de dominação e da cultura árabe, assim, o ritmo, a musicalidade e a poesia, herdada pelos ciganos, se deu com uma mescla em relação a cultura mourisca que lá havia antes. Lorca mostra que a caña é o tronco primitivo destes cantares, e tem origem árabe, ele observa com agudeza que caña se diferencia pouco de gamis, que segundo Lorca daria o similar árabe para canto. Lorca, todavia, diz que o Cante Jondo é uma mescla de música indiana, segundo ele, os grupos originais de ciganos que habitavam em Andaluzia teriam vindo da Índia e de lá trazido sua música, na Espanha se mesclou, o cante jondo, aos ritmos árabes, enquanto o Flamenco, seu parente próximo, recebeu uma mescla maior da cultura europeia. É importante ressaltar que la Sirigaya, não é só uma transplantação 77 cultural, mas esta mistura de ritmos, harmonias e estéticas musicais e poéticas, com influência dos vários povos que habitavam a Andaluzia, tanto que o Cante Jondo não se desenvolve em outras regiões da Espanha. Para García Lorca, o Cante Jondo tem influência até da igreja católica, em seu canto litúrgico, gregoriano lamentoso, na invasão da península pelos árabes islâmicos, houve tolerância religiosa e os cristãos puderam conservar sua crença, cultos, culturas, festas e tradições. Assim, na invasão islâmica, ao canto católico, juntou-se a música dos árabes sarracenos, criando uma nova forma de cultura popular. Por fim, a chegada dos ciganos à Espanha foi o último elemento que faltava para a estrutura final que se conhecia então como Cante Jondo. Ratificamos, que a prova de que ele não é um canto genuinamente, ou puramente cigano, é que ele não existe em nenhum outro lugar que não seja Andaluzia, que ele é resultado desta mescla cultural única, dos povos que habitavam esta região. Vejamos o que ele diz: Las diferencias esenciales del cante jondo con el flamenco, consiste en que el origen del primero hay que buscarlo en los primitivos sistemas musicales de la India, es decir, en las primeras manifestaciones del canto, mientras que el segundo, consecuencia del primero, puede decirse que toma su forma definitiva en el siglo XVIII. El primero, es un canto teñido por el color misterioso de las primeras edades, el segundo, es un canto relativamente moderno, cuyo interés emocional desaparece ante aquél. Color espiritual y color local, he aquí la honda diferencia. Es decir, el Cante Jondo, acercándose a los primitivos sistemas musicales de la India, es tan sólo un balbucio, es una emisión más alta o más baja de la voz, se una maravillosa ondulación bucal, que rompe las celdas sonoras de nuestra escala atemperada, que no cabe en el pentagrama rígido y frío de nuestra música actual, y abre en mil pétalos las flores herméticos de los semitonos. El cante Flamenco no procede por ondulación sino por saltos; como en nuestra música tiene un ritmo seguro y nació cuando ya hacía siglos que Guido d´Arezzo había dado nombre a las notas. El Cante Flamenco se acerca al trino del pájaro, al canto del gallo y a las músicas naturales del bosque y la fuente. Es, pues, un rarísimo ejemplar de canto primitivo, el más viejo de toda Europa, que lleva en sus notas de desnuda e escalofriante emoción de las primeras razas orientales. El maestro Falla, que ha estudiado profundamente la cuestión y del cual yo me documento, afirma que la siriguiriya gitana es la canción tipo del grupo Cante Jondo y declara con rotundidad que es el único canto que en nuestro continente ha conservado toda su pureza, tanto por su composición, como por su estilo, las cualidades que lleva en sí el cante primitivo de los pueblos orientales (LORCA, FALLA, 2005). Assim, o Cante Jondo é uma mescla de cantos andaluzes, carregados de orientalismo que tem origem na civilização bizantina. Segundo a versão de Lorca, os ciganos chegaram à Espanha por volta de 1400, fugindo da Índia, em meio ao conflito de Mouros com Cristãos, expulsos, segundo a versão meio mítica e lendária, 78 pelos cem mil guerreiros do Grande Tamerlan. Conceituando, em poucas linhas o que seja o Cante Jondo, é importante entender a influência que ele vai ter na poesia lorquiana. Se vemos nas próprias notas de Lorca, há questões conceituais estéticas importantes, como a “pureza” e o “primitivismo” do Canto, há em todos os escritores da Geração de 1927, a busca de um “espanholismo perdido”, com a timidez da classe burguesa espanhola, e a decadência de sua aristocracia, a opção pelos pobres e marginalizados é uma das formas de procurar uma nova identidade nas camadas populares. Também há questões técnicas. O Cante Jondo dialoga com a temática lorquiana, já que o desespero, a dor, a morte, são temas afeitos à Lorca, vejamos na poesia do Cante Jondo: Ay de mí, perdí el camino; en esta triste montaña ay de mí, perdí el camino; déxame meté l´rebañu por Dios en la to cabaña. Entre la espesa flubina, ¡ay de mí, perdí el camino! déxame pasar la noche en la cabaña contigo. Perdí el camino entre la niebla del monte, ¡ay de mí, perdí el camino! (LORCA, FALLA, 2005). Lorca alimenta-se de boa parte desta temática e estética. A repetição de palavras para marcar o ritmo, dor, solidão, desespero, lamento. O Cante Jondo dialoga com a temática da poesia de Lorca. Federico, o poeta da lua, da noite, da solidão, do desespero, da agonia, do subconsciente, do onírico, que acabará por levá-lo até o surrealismo. Lorca é um sorvedouro de influências e temáticas, um calidoscópio que leva para a estética canônica acadêmica todo o influxo da cultura popular, por exemplo: Romance de la Luna Luna — A Conchita García Lorca La luna vino a la fragua con su polisón de nardos. El niño la mira, mira. El niño la está mirando. En el aire conmovido mueve la luna sus brazos y enseña lúbrica y pura, sus senos de duro estaño. Huye luna, luna, luna. Si vinieran los gitanos, harián con tu corazón collares y anillos blancos. Niño, déjame que baile. 79 Cuando vengan los gitanos, te encontrarán sobre el yunque con los ojillos cerrados. Huye luna, luna, luna, que ya siento tus caballos. Niño, déjame, no pises mi blancor almidonado. El jinete se acercaba tocando el tambor del llano. Dentro de la fragua el niño tiene los ojos cerrados. Por el olívar venían, bronce y sueño, los gitanos. Las cabezas levantadas y los ojos entornados. ¡Cómo canta la zumaya, ay cómo canta el árbol! Por el cielo va la luna. con un niño en la mano. Dentro de la fragua lloran, dando gritos los gitanos, El aire la vela, vela. El aire la está velando (LORCA, 1999, 350). O Romance de la luna luna, um dos poemas mais famosos de Lorca tem transplantado para a poesia acadêmica vários elementos populares do Cante Jondo. Primeiro o uso de versos com ritmo musical sem rima. Boa parte da estrutura rítmica de toda a poética de Lorca, se dá na repetição de palavras ou estruturas, assim como a canção popular feita na rua, as coplas. Estruturas muito comuns na canção popular medieval e que chegaram até o Brasil através dos cordéis e dos repentistas. Também a temática. O mundo de Lorca é caótico, não é o mundo romântico que busca uma redenção e tem heróis com valores decadentes cavalheirescos. Há uma fotografia da realidade, crua, sem que seja suavizada, todo martírio, dor, mas também a musicalidade, a festa, a sexualidade (Bodas de Sangre). Neste poema, parece que há uma fotografia de uma cena, como se Lorca fosse um pintor ou um cineasta e captasse o momento, incluído seu movimento. O poeta não influencia moralmente no texto, não faz nenhum tipo de evocação, parece que ele apenas pinta a estrutura que vê, como um pintor numa tela. Isto não signifique que ele seja neutro, a própria escolha da temática e da estética, já é uma posição, humanista e antiburguesa por excelência, além de inovadora popular, renovando a estrutura temática e estética da Espanha. Luna, gitanos, morte (vela, “ojos” cerrados), os temas de Lorca se repetem neste poema e se fixam como uma 80 nova estrutura e marca poética. Vejamos outro poema extremamente famoso de Lorca: La luna y la muerte La luna tiene dientes de marfil ¡Qué vieja y qué triste asoma! Están los cauces secos, los campos sin verdores y los árboles mustios sin nidos y sin hojas. Donde Muerte, arrugada, pasea por sauzales con su absurdo de ilusiones remotas. Va vendiendo colores de cera y de tormenta como una hada de cuento mala e enredadora La luna le ha comprado pintura de la Muerte. En esta noche turbía ¡está la luna loca! Yo mientras tanto pongo en mi pecho sombrío una feria música con las tiendas de sombra (LORCA, 1999, pp. 280). Lorca expressa neste poema os temas mais variados do Oriente. A morte, a lua (identificada com a morte, a escuridão), o sacrifício. Nota-se também o elemento pictórico, “pintura de la muerte”, o mundo como representação, a poesia como pintura a agonia de viver à sombra da morte, a noite, que evoca o sonho e o subconsciente: elementos, estes últimos que fariam a passagem para a poesia surrealista, que não é tema deste texto. Como o tema desta dissertação é a influência do Cante Jondo, e as influências que sofrem o Cante Jondo. Vamos agora mostrar como esta opção pela confluência popular Andaluz, importante centro de difusão da cultura árabe na Península Ibérica, fez com que Lorca fosse o poeta espanhol que mais vai influenciar a poesia árabe, inclusive a contemporânea. Segundo Maritza Requena, a obra lorquiana realiza um resgate do romano ou do latino, do outro lado do árabe, no ritmo, nas palavras e na temática. Lorca é um retrato da diversidade cultural que conforma la identidade espanhola, o principal poeta desta confluência da Geração de 1927, e cuja influência vai transcender esta geração e as fronteiras espanholas. Córdoba, Granada e Andaluzia foram as grandes cidades de dominação árabe, assim, a cultura andaluz reflete estes séculos de dominação e influência, como inclusive já vimos, ao explicar o 81 Cante Jondo. Segundo Maritza Requena, os mesmos temas do sacrifício, do amor sem fim e vivo aparecem expressos com o mesmo fim nos poetas árabes antecessores de Lorca na cultura árabe andaluz. Em Lorca se fundem, o erudito (Góngora), o popular e o folclórico; O galego e o árabe andaluz; o antigo e o tradicional e o novo e vanguardista, o espanhol e o universal, o mais universal dos espanhóis, por ser o mais espanhol dos universais. Em Lorca pulsa o espanholismo trágico de Cervantes em Quixote, é o trágico da aridez da terra que foi um império, mas não fez a passagem deste império para um país que tivesse hegemonia na modernidade, o bucólico, o trágico e o cômico de Quixote. La tauromaquia espanhola como o próprio Lorca denominou, como busca de uma força que estaria na terra espanhola, a resseca Mancha e a Andaluzia, esta busca de uma identidade e uma essência perdida, que o fazem símbolo de uma época trágica para os espanhóis. Era que culmina no seu sacrifício, em sua tragédia pessoal, como se ele fora o sacrifício humano, o cordeiro, desta busca incessante um novo ente espanhol. Por conta destas contradições vivas que foi a poesia lorquiana, de suas opções temáticas e estéticas, ele foi o poeta predileto dos jovens poetas árabes. Além das questões estéticas, há questões políticas que explicam esta confluência (Lorca influenciado pelo arabismo, Lorca influencia os árabes). As opções que Lorca fez, sua identidade socialista (mesmo que não militante com o PSOE) e sua execução por razões político-estéticas. E porque dizemos político estético, porque Lorca não pode ser considerado um militante socialista como Miguel Hernández. Todavia, todas as suas opções, seu laicismo rebelde, sua opção pela língua, temática e estética popular, cigana, com extrema influência árabe, seu teatro mambembe e popular, dedicado às massas pobres espanholas; tudo o identifica como um escritor libertário militante. Sua influência moura por suas opções populares podem-se ver em poemas que louvam as cidades espanholas Mouriscas: Sevilla Sevilla es una torre llena de arqueros finos. Sevilla para herir. Córdoba para morir. Una ciudad que acecha largos ritmos, y los enrosca como laberintos. 82 Como tallos de parra encendidos. ¡Sevilla para herir! Bajo el arco del cielo, sobre su llano limpio, dispara la constante saeta de su río. ¡Córdoba para morir! Y loca de horizonte, mezcla en su vino lo amargo de Don Juan y lo perfecto de Dioniso. Sevilla para herir. ¡Siempre Sevilla para herir! (LORCA, 1999, pp. 378). O elogio às cidades mouras, a estética de repetição popular, como se fora uma canção ou uma procissão, o poema limpo, claro, sem exageros, transborda todavia da referência popular e faz um retrato de uma das mais importantes cidades de influência mourisca. Aqui uma observação é necessária, este poema de Lorca aqui transcrito está bem longe dos poemas prosa, mesmo que neles haja a liberação da antiga métrica italiana, e haja uma mudança para versos livres assimétricos, os poemas são musicais com ritmo marcado internamente mesmo que não rimados. Lorca vai retomar na sua ruptura, na verdade, a tradição anterior da poesia espanhola, com origens mouriscas, do ritmo musicado interno, muitas vezes dado pela repetição de palavras, como em Verde que te quiero verde, assim, a influência mourisca e cigana faz de Lorca o poeta espanhol, local e internacionalista por excelência. Vejamos um poema que se enquadra perfeitamente na referência estética temática que aqui elucidamos: Canción del Jinete Muerto En la luna negra de los bandoleros, cantan las espuelas. Caballito negro. ¿Dónde llevas tu jinete muerto? …Las duras espuelas del bandido inmóvil que perdió las riendas. Caballito frío. ¡Qué perfume de flor de cuchillo! En la luna negra, 83 sangraba el costado de Sierra Morena. Caballito negro. ¿Dónde llevas tu jinete muerto? La noche espolea sus negros ijares clavándose estrellas. Caballito frío. ¡Qué perfume de flor de cuchillo! En la luna negra, ¡un grito! y el cuerno largo de la hoguera. Caballito negro. ¿Dónde llevas tu jinete muerto? (Lorca, 1999, pp. 290). Já o título do poema é revolucionário, Canção do ginete morto, a morte não era um tabu para Lorca, antes, um tema recorrente, a noite, a escuridão (até o cavalo é negro), a beleza lúgubre (flor de cuchillo), enfim, a estética e a temática lorquiana estão prenhes de toda uma temática milenar, do embate dos povos que habitavam e habitam a região granadina. A temática árabe dialoga facilmente com a estética proposta por Lorca. O recebimento dos influxos árabes no ritmo e na métrica lorquiana, assim como sua temática, em que aparecem os povos marginalizados e as cidades de colonização árabe, reforçam os traços que o fariam ser amado e cantando por poetas islâmicos. A temática da lua, da noite, da morte, uma temática que aliás, dialogará com um movimento ao qual, sem aderir em manifestos, Lorca foi prenunciador na Espanha e um de seus incentivadores, o surrealismo, no qual o sonho, o onírico, o medo, a morte, o id, o subconsciente, todo o lado oculto do ser humano transborda. Sigamos na temática do lúgubre, da morte em Lorca: Murió al amanecer Noche de cuatro lunas y un solo árbol, con una sola sombra y un solo pájaro. Busco en mi carne las huellas de tus labios. El manantial besa al viento sin tocarlo. Llevo el no que me diste, en la palma de mi mano, como un limón de cera casi blanco. 84 Noche de cuatro lunas y un solo árbol, En la punta de una aguja, Está mi amor ¡girando! (LORCA, 1999, 316) A obsessão pela morte, que era pessoal, mas que era também influência literária islâmica e cigana. Parecia uma previsão da tragédia de seu término precoce, ele era o poeta que morreu ao amanhecer. Numa noite surrealista de quatro luas e um campo desnudo de uma só árvore. Assim foi também a sua morte, a poesia imitou a vida e o tragicismo de sua poesia foi também a tragédia de uma geração abortada por um golpe fascista e uma guerra violenta que dividiu Espanha em duas. Assim, sua tragédia pessoal, sendo o grande mártir de uma Guerra Civil que sequer chegou a lutar, o torna de uma atração irresistível para poetas de povos que também lutavam suas próprias lutas e até guerras de libertação nacional. Assim, Lorca retém em si a influência árabe de forma indireta em sua temática do Cante Jondo, dos povos marginalizados, entre eles os ciganos e os mouros e das cidades mouriscas; de outro lado, o amálgama de sua poesia atrai irresistivelmente estética e politicamente a poetas de povos que tem como pano de fundo projetos de libertação popular e nacional. Isto explica porque o sacrifício pessoal de Lorca, sua perda, a tragédia de sua morte precoce que será a gota de sangue que manchará a poesia de Neruda, ajuda a explicar o engajamento posterior de Neruda, assim como o seu multiculturalismo na poesia e na formação de Federico García Lorca. Os influxos populares no mais complexo poeta da Geração de 1927. Desde o espanholismo, ao surrealismo. Lorca é uma contradição em movimento, um poeta dialético por excelência, que consegue unir o erudito e o popular, o sagrado e o profano. Ultrapassando todos os cânones, é o mais vanguardista de todos os poetas de sua geração, flertando com o surrealismo, e elaborando poemas que são verdadeiros retratos não estáticos da realidade. Através do Cante Jondo explicamos indiretamente a influência não só cigana, mas árabe na poesia de Lorca. Demonstramos como a busca de um modelo popular e direto de poesia, provindo do Cante Jondo, já era em si uma mescla, confessada inclusive pelo próprio Lorca, na conferência que aqui trabalhamos, em que ele explica que o Cante Jondo reúne a influência do canto religioso católico, os cantos e os ritmos árabes, e o canto modular de voz indiano cigano. Toda a temática, de morte, tragédia, noite, escuridão, já era comum aos poetas árabes 85 anteriores à Lorca, e por conta de ele ter percebido esta influência, será o poeta espanhol mais reproduzido e comentado pelos poetas árabes posteriores. Lorca só pode ser universal por seu particularismo. Foi o mais universal dos poetas espanhóis do século XX, por ser o mais territorial e andaluz dos poetas espanhóis, uma contradição dialética permanente. Sua busca de um novo espanholismo entre os pobres e os deserdados, construiu um halo irresistível de atração com sua obra, e seu destino trágico, no início da Guerra Civil espanhola (executado por ser “rojo y maricas”), o transformou em um mártir literário, capaz de inspirar a todos os poetas que lutam por libertação, como inspirou, por exemplo, ao chileno prêmio nobel Pablo Neruda. Lorca segue cantando e alegremente tocando sua viola em todos aqueles em que nele se espelham e espalham ao vento o irresistível Cante Jondo do poeta granadino. 5.2 LORCA E O PICTÓRICO — O SURREALISMO Uma das outras linhas de influência mútua e o uso de ambos os poetas, Lorca e Neruda, do pictórico, do onírico e do surreal em seus poemas. Alguns poemas de Neruda são verdadeiras marinhas. O mar, os sinos, os caracóis, as cebolas, as uvas, os elementos naturais pincelados como uma natureza morta, é uma característica que aparece também nos poemas de Federico García Lorca que é uma das maiores influências inclusive na pintura posterior de Salvador Dalí. A convivência entre Dalí e Lorca vai preparar o salto que o pintor dará do cubismo para o surrealismo. Já vimos em capítulo anterior, que prenunciando o movimento surrealista de Breton, Neruda em suas residências colocava elementos do onírico e do realismo fantástico ou do surrealismo em sua poesia. A convivência comum na Espanha, a nosso ver, só aguçou a utilização destes elementos por Neruda, é uma dos possíveis estéticos comuns a Geração de 1927, de extremo experimentalismo. Assim, a troca de experiências, inclusive literárias, serviram para que depois na poesia de Neruda estas características, a do pictórico, do onírico, do realismo fantástico, permaneçam. Aliás, o realismo fantástico, uma versão latino-americana aprimorada do surrealismo, chegou mesmo a ser uma corrente de romances na América do Sul, que dentre outros gênios teve Cortázar, Borges, Gabriel García Marques. Defendemos que Neruda em seus versos já namorava este fazer. Este capítulo serve para demonstrar como a experiência comum entre Dalí e Lorca serviu para consolidar e preparar o surrealismo em ambos e o pictórico na poesia de Lorca. 86 Lorca e Dalí influenciaram-se reciprocamente. Ambos se conheceram na residência dos estudantes em 1922. Dalí, mais novo, tinha 19 anos, Lorca, mais velho e socialmente mais desenvolto tinha 23, uma forte atração recíproca os aproximou. O poeta era brilhante socialmente e logo ficou fascinado pelo pintor tímido que usava roupas de dândi inglês, ambos se tornaram companheiros inseparáveis entre 1923 e 1928. Relação expressa no poema Ode a Salvador Dalí e no quadro, O mel é mais doce que o sangue. Quando ambos se conheceram, Lorca já era um poeta conhecido, que vinha da interpretação fracassada da sua peça Malefício da Mariposa, mas que não afetará seu prestígio poético. Dalí ainda é um poeta iniciante, praticamente desconhecido, saindo da fase impressionista e entrando no cubismo. Faziam parte de um grupo social mais amplo de amigos, inclusive de boemia, que incluía ainda Pepín Bello e Buñuel. Lorca e Dalí vão estreitar amizade e passar alguns verões juntos entre 1923-1925. Neste período Lorca escreva a peça Mariana Piñeda e o Romancero Gitano, que só farão aumentar seu prestígio. Dalí, por sua vez, pintará Natureza morta e Convite ao sono, obra esta que já conta com os valores surrealistas que o farão famoso. Em 1926, Dalí adere de vez ao surrealismo, mas esta passagem, se dá em convívio pessoal com Lorca, e ambos se influenciaram mutuamente na temática, assumiram compromisso com o experimentalismo e ir mais além dos limites da arte formal. Além da amizade e da relação erótico amorosa entre ambos, os une na vida e na arte, a temática da morte. Tanto um quanto outro tinham fixação por ela, Lorca, a cantará continuamente em seus versos, e chegará a simular seu próprio funeral desfilando num féretro em Andaluzia, fazendo mesmo da obsessão da morte um culto. Dalí ficou famoso por sua obsessão e medo da morte, ao pintar era uma forma catártica de desafiá-la, por isto também a obsessão com o tempo, cronos, que inevitavelmente vai corroendo a natureza e a nossa vida. Vejamos um poema sobre a morte, de Lorca, que exemplifica bem o que dissemos: Muerto de amor ¿Qué es aquello que reluce por los altos corredores? Cierra la puerta, hijo mío, acaban de dar las once. En mis ojos, sin querer, relumbran cuatro faroles. Será que la gente aquélla estará fregando el cobre. Ajo de agónica plata 87 la luna menguante, pone cabelleras amarillas a las amarillas torres. La noche llama temblando al cristal de los balcones, perseguida por los mil perros que no la conocen, y un olor de vino y ámbar viene de los corredores (LORCA, 1999, 384). A lua, a noite, a morte, a agonia. Lorca fala da própria morte, uma obsessão, um poeta no limiar permanente entre a vida e a morte, como um vate de seu próprio sacrifício, cordeiro branco da poesia, manchado de sangue ainda muito jovem. Dialoga com sua mãe sobre seu desejo permanente de morrer, sobre seu próprio velório. A forma é curta, contrasta com o lúgubre do conteúdo, ágil, viva, brilhante, como se a morte ganhasse música e fosse uma celebração. Parece dizer que ao vivermos permanentemente neste limiar imprevisível entre nossa existência curta e finita e a eterna “noche” comandada pela lua, devíamos celebrar a vida como se celebra a morte. O medo e a recorrência temática à morte, também é uma forma catártica de ao celebrá-la como inevitável, afastarmos nosso horror, continuemos no poema: Brisas de caña mojada y rumor de viejas voces, resonaban por el arco roto de la media noche. Bueyes y rosas dormían. Solo por los corredores las cuatro luces clamaban con el fulgor de San Jorge. Tristes mujeres del valle bajaban su sangre de hombre, tranquila de flor cortada y amarga de muslo joven. Viejas mujeres del río lloraban al pie del monte, un minuto intransitable de cabelleras y nombres. Fachadas de cal, ponían cuadrada y blanca la noche. Serafines y gitanos tocaban acordeones (LORCA, 1999, 384). Brisas de caña mojada, y rumor de viejas voces, esta parte do poema remete ao simbolismo e seus recursos sonoros sinestésicos e ritmo baseado não na rima das vogais, mas nos sons consonantais. O poema sibila, baila, como se festejasse a morte. O tema é lúgubre, o ritmo alegre, com acordeões, lavadeiras, carpideiras, ciganos e serafins. O poeta pagão, que mistura o sacro celestial (serafins) com o maldito e excomungado (ciganos). A morte aqui se lamenta e 88 celebra, chora, canta e dança, é um festim profano, dionísico. Lorca, que era músico, pianista, não precisa da métrica marcada e do ritmo final. Conhecedor profundo da musicalidade, usa a sonoridade interna das palavras para dar uma musicalidade extrema ao poema, como se celebrasse sua própria morte, pedindo que seu mundo poético chore em sua homenagem, numa mistura que é onírica, surreal e inovadora: Madre, cuando yo me muera, que se enteren los señores. Pon telegramas azules que vayan del Sur al Norte. Siete gritos, siete sangres, siete adormideras dobles, quebraron opacas lunas en los oscuros salones. Lleno de manos cortadas y coronitas de flores, el mar de los juramentos resonaba, no sé dónde. Y el cielo daba portazos al brusco rumor del bosque, mientras clamaban las luces en los altos corredores (Lorca, 1999, 384). O que se nota no poema, além da recorrência da morte, da lua, da noite, da tormenta, é a naturalidade com relação à morte. Nos poemas de Lorca a morte vibra, e só falta cantar e dançar. O tragicismo da morte, contrasta com seu colorido, ainda que um colorido de tormentas. Vemos claramente que os temas que aparecerão na poesia de Dalí já se encontram plasmados na poesia de Lorca, quase como quadros não pintados. Em 1926 Dalí adere definitivamente ao surrealismo. O contato entre eles, mesmo quando distantes, através de cartas, é constante e continuado. Dalí está em Figueiras e Lorca em sua amada Granada. Em 1927, Lorca e Dalí voltam a se encontrar em Figueiras e Cadaques, na casa dos pais de Dalí; logo após, Mariana Piñeda é encenada e o cenário é desenhado por Salvador Dalí. Cabeça de Dalí sobreposta a de Lorca faz parte do cenário, como se ambas fossem uma única, este é um tema recorrente que aparece até na pintura de Dalí e que também é desenhado por Lorca (que faz vários desenhos, alguns ilustram seus livros de poesia). Estas cabeças sobrepostas são interpretadas como amizade e influência recíproca, mas também são vistas por muito biógrafos como retratos do envolvimento amoroso de ambos, é fato que tanto Dalí é fascinado pela poesia e pela figura de Lorca, da qual confessou em sua biografia sentir uma certa inveja pelo brilho social; quanto Lorca é fascinado pela arte e também pela figura, incluindo o 89 corpo do jovem Dalí. Em sua biografia, Dalí relata que teria resistido a várias investidas de Lorca. Entre 1928 e 1929 acontecerá a ruptura entre ambos. Dalí vai se relacionar com Buñuel, e vai ser incentivado por este a desprezar Lorca. Buñuel tem um irmão homossexual, o homossexualismo numa Espanha conservadora e ultracatólica pode se transformar num drama social. Buñuel despreza e hostiliza Lorca por sua homossexualidade e encoraja Dalí a fazer o mesmo. Em 1928, Dalí vai fazer uma crítica atacando o Romancero Gitano de Lorca, por seu ‘populismo’ artístico; por sua vez, Lorca vai se aproximar, em sua viagem a Nova Iorque do artista plástico Aladrén. Dalí critica Lorca por esta aproximação por considerar Aladrén um artista “sofrível”, todavia, alguns biógrafos consideram que razões também sentimentais teriam levado à crítica tão feroz de Dalí. Em 1929, Dalí e Buñuel filmam o Cão andaluz, filme que levará ao afastamento entre Lorca e Dalí. Ainda que Buñuel não admita, o nome de Cão andaluz é uma referência feroz e direta à Lorca, que estaria sendo hostilizado e ridicularizado por Buñuel por ser o poeta ser gay. Cão era o apelido que os estudantes madrilenhos pejorativamente davam, na residência dos estudantes, aos vindos do sul. Lorca e Dalí só se veriam após 1929, em 1935, um ano antes da morte do poeta. Depois de tão prolongada e intensa convivência, é óbvio que este afastamento atesta uma ruptura da proximidade e da intimidade entre ambos. Quando se reveem em 1935, Lorca conhece Gala, mulher de Dalí, a peça Yerma é encenada, com ruidoso sucesso. Gala fica impressionada com Lorca e o convida para ir a Paris estar com eles, mas Lorca recusa. Depois, este episódio será lembrando com remorsos por Dalí, que não se conforma por não ter insistido para que Lorca fosse com eles para Paris, e sente culpa pela morte de Lorca, a quem considera um de seus mortos queridos, Dalí considera que se tivesse insistido talvez o poeta tivesse ido a Paris e isto teria evitado sua morte. É lógico que esta conjectura de Dalí é apoiada mas no sentimento de estima e até de amor que sentia por Lorca, que por qualquer fato objetivo, Dalí não tem absolutamente nada que ver com a morte de Federico. Mas Dalí dizia que “Lorca for fuzilado por engano. O caos espanhol me transtornou e os monstros da Guerra Civil invadiram minha tela”. Aqui, duas observações nossas, a primeira, não concordamos que Lorca tenha morrido por engando, ele foi uma vítima intencional trágica de uma ditadura de cunho fascista que o odiava duplamente: por seus pendores socialistas e por ser gay. O 90 segundo, já prenunciamos, a de que mesmo no auge da Guerra Civil espanhola a pintora de Lorca continuou sendo mais surrealista que engajada, a guerra civil entrou mais como monstro, terror e morte do que como guerra, realidade social, Dalí tomava o lado das vítimas, não o lado de uma das facções em disputa, como outros artistas tomaram. Para entender melhor a relação entre o pictórico e o poético, vamos fazer uma comparação das figuras estéticas inscritas tanto no poema, Ode a Salvador Dalí, quanto no quadro, O mel é mais doce que o sangue, que foram feitas, ambas as obras, no auge da relação íntima de amizade e ou amorosa dentre ambos, que confluiu para uma relação de parceria estética. Vejamos o poema: ODA A SALVADOR DALÍ Una rosa en el alto jardín que tú deseas. Una rueda en la pura sintaxis del acero. Desnuda la montaña de niebla impresionista. Los grises oteando sus balaustradas últimas. Los pintores modernos en sus blancos estudios, cortan la flor aséptica de la raíz cuadrada. En las aguas del Sena un iceberg de mármol enfría las ventanas y disipa las yedras. El hombre pisa fuerte las calles enlosadas. Los cristales esquivan la magia del reflejo. El Gobierno ha cerrado las tiendas de perfume. La máquina eterniza sus compases binarios. Una ausencia de bosques, biombos y entrecejos yerra por los tejados de las casas antiguas. El aire pulimenta su prisma sobre el mar y el horizonte sube como un gran acueducto (LORCA, 1999, 618). O poema já começa contraditório. Primeiro, porque ao contrário da maioria das poesias de Lorca, estes versos não são versos livres, em versos alexandrinos, clássicos, ainda que não rimados, Lorca faz a apologia da ruptura. Como assinala Octavio Paz, a vanguarda criou a “tradição da ruptura”. Escrevendo sobre movimentos de poesia e pintura e suas relações, Lorca usa na forma a tradição para falar de vanguarda, o que já é a demonstração de per si de seu incrível talento. Cioso do controle que tem das formas, ele usa uma ode clássica sem rimas para fazer apologia de um momento de ruptura, é uma contradição o próprio poema, como será todo o tempo a vanguarda na incessante necessidade de superar-se a si mesma, na busca cotidiana de um futuro que no dia seguinte já é passado: Marineros que ignoran el vino y la penumbra, decapitan sirenas en los mares de plomo. La Noche, negra estatua de la prudencia, tiene 91 el espejo redondo de la luna en su mano. Un deseo de formas y límites nos gana. Viene el hombre que mira con el metro amarillo. Venus es una blanca naturaleza muerta y los coleccionistas de mariposas huyen. Cadaqués, en el fiel del agua y la colina, eleva escalinatas y oculta caracolas. Las flautas de madera pacifican el aire. Un viejo dios silvestre da frutas a los niños. Sus pescadores duermen, sin ensueño, en la arena. En alta mar les sirve de brújula una rosa. El horizonte virgen de pañuelos heridos, junta los grandes vidrios del pez y de la luna. Una dura corona de blancos bergantines ciñe frentes amargas y cabellos de arena. Las sirenas convencen, pero no sugestionan, y salen si mostramos un vaso de agua dulce (LORCA, 1999, 618). Para os que conhecem a relação entre ambos esta é a parte autobiográfica no poema. Cadaqués, a convivência recíproca, a pintura O sangue é mais doce que o mel, os marinheiros como a autorreferência ao tempo passado entre ambos na residência. No poema, o recurso estilístico muito comum à poesia de Lorca, que é a repetição de frases para marcar o rimo e retomar cada verso, ¡Oh, Salvador Dalí, de voz aceitunada!, mostra intimidade e carinho íntimo, não é uma elogio só ao pintor, é elogio ao homem adolescente que viveu uma relação íntima intensa que os biógrafos de ambos não sabem precisar(o que inclusive está relatada na pintura O grande masturbador, referência explícita a Federico García Lorca e aos momentos em que ambos estiveram a sós e juntos). Só conhecendo a biografia de ambos para entender a sutil referência à intimidade que Lorca faz, de forma discreta faz Lorca. O poema é referência a experimentos teóricos, mas refere-se também ao caso de amor (platônico ou mais do que isto) entre ambos, que vai marcar a arte e a poesia de ambos: ¡Oh, Salvador Dalí, de voz aceitunada! No elogio tu imperfecto pincel adolescente ni tu color que ronda la color de tu tiempo, pero alabo tus ansias de eterno limitado. Alma higiénica, vives sobre mármoles nuevos. Huyes la oscura selva de formas increíbles. Tu fantasía llega donde llegan tus manos, y gozas el soneto del mar en tu ventana. El mundo tiene sordas penumbras y desorden, en los primeros términos que el humano frecuenta. Pero ya las estrellas ocultando paisajes, señalan el esquema perfecto de sus órbitas. 92 La corriente del tiempo se remansa y ordena en las formas numéricas de un siglo y otro siglo. Y la Muerte vencida se refugia temblando en el círculo estrecho del minuto presente. Al coger tu paleta, con un tiro en un ala, pides la luz que anima la copa del olivo. Ancha luz de Minerva, constructora de andamios, donde no cabe el sueño ni su flora inexacta. Pides la luz antigua que se queda en la frente, sin bajar a la boca ni al corazón del bosque. Luz que temen las vides entrañables de Baco y la fuerza sin orden que lleva el agua curva. Haces bien en poner banderines de aviso, en el límite oscuro que relumbra de noche. Como pintor no quieres que te ablande la forma el algodón cambiante de una nube imprevista. El pez en la pecera y el pájaro en la jaula. No quieres inventarlos en el mar o en el viento. Estilizas o copias después de haber mirado, con honestas pupilas sus cuerpecillos ágiles. Amas una materia definida y exacta donde el hongo no pueda poner su campamento. Amas la arquitectura que construye en lo ausente y admites la bandera como una simple broma. Dice el compás de acero su corto verso elástico. Desconocidas islas desmiente ya la esfera. Dice la línea recta su vertical esfuerzo y los sabios cristales cantan sus geometrías (LORCA, 1999, 618). Geometria, movimento, estrela como ironia, escárnio, broma, forma perfeitas de pássaros desfeitos em sonho. Morte e mitologia greco-romano. O experimentalismo extremo de quem capta a imagem como símbolo e não como imagem, quem irá além de todas as formas e conteúdos. Manifesto surreal em poesia, em ode, experimentalismo difuso de todos os dados das sensações, pintura que é poema, poesia que é tela, quadro que capta o movimento de forma poética. Lorca escreve quase uma manifesto performático do que viria a fazer Dalí, em pouco tempo, de uma pintura que se contaminou de poesia, de uma poesia que pretendeu ser pictórica e onírica. A influência recíproca de ambos, de dois titãs, acabou por fazer explodir a poesia nas telas, e o surreal, o sonho, a morte, a noite, a lua, na poesia. Nesta ode-manifesto, Lorca vai descrevendo o começo da caminhada de seu amigo/amante Salvador Dalí: Pero también la rosa del jardín donde vives. ¡Siempre la rosa, siempre, norte y sur de nosotros! Tranquila y concentrada como una estatua ciega, ignorante de esfuerzos soterrados que causa. 93 Rosa pura que limpia de artificios y croquis y nos abre las alas tenues de la sonrisa (Mariposa clavada que medita su vuelo). Rosa del equilibrio sin dolores buscados. ¡Siempre la rosa! (LORCA, 1999, 618) A rosa comunica na poesia e na pintura de ambos, o frugal, o cotidiano, que nada está além da poesia e da pintura. O que se transvalora na arte não mais apenas no que é excelso ou sublime, mas a beleza subterrânea de todos os atos e coisas. Uma rosa, que é geometria, simplicidade, dado cubista passo rumo ao surreal. Mas que também é signo, elemento subjacente, íntimo, onírico, lírico e amoroso. A explosão de sentidos que a descoberta do subconsciente, do id, representou para a renovação da arte. A rosa é rosa e não é rosa, assim como a vida é sonho, mas o sonho não é a vida real, mas a revela e a revalora. Lorca continua traçando a multiplicidade da arte de ambos: ¡Oh, Salvador Dalí de voz aceitunada! Digo lo que me dicen tu persona y tus cuadros. No alabo tu imperfecto pincel adolescente, pero canto la firme dirección de tus flechas. Canto tu bello esfuerzo de luces catalanas, tu amor a lo que tiene explicación posible. Canto tu corazón astronómico y tierno, de baraja francesa y sin ninguna herida. Canto el ansia de estatua que persigues sin tregua, el miedo a la emoción que te aguarda en la calle. Canto la sirenita de la mar que te canta montada en bicicleta de corales y conchas. Pero ante todo canto un común pensamiento que nos une en las horas oscuras y doradas. No es el Arte la luz que nos ciega los ojos. Es primero el amor, la amistad o la esgrima. Es primero que el cuadro que paciente dibujas el seno de Teresa, la de cutis insomne, el apretado bucle de Matilde la ingrata, nuestra amistad pintada como un juego de oca. Huellas dactilográficas de sangre sobre el oro, rayen el corazón de Cataluña eterna. Estrellas como puños sin halcón te relumbren, mientras que tu pintura y tu vida florecen. No mires la clepsidra con alas membranosas, ni la dura guadaña de las alegorías. Viste y desnuda siempre tu pincel en el aire frente a la mar poblada de barcos y marinos (LORCA, 1999, 618). Por fim, Lorca novamente atesta a experiência íntima de amizade e de amor entre os dois. A mescla de influências e elementos, desordenados no estilo e 94 no caos que foi a tumultuada relação dos dois artistas, cuja homossexualidade sempre foi um estigma e um dado biográfico difícil de ser desvendado, até pela repressão de uma Espanha católica inquisitorial, patriarcal e machista. No poema impressiona a ausência de sentimentalismo, mesmo a relação de ambos é exposta de forma discreta, quase imperceptível, e a fluidez da forma “desnuda a montanha de névoa impressionante”. A poesia escrita como arte plástica, pictórica, e o verso como pinceladas. O poema, em versos, o que é no quadro, o manifesto antiartístico de Dalí, a “santa objetividade”, do jovem Dalí, anterior ao surrealismo. A arte despida de sentimentos (que mostramos anteriormente está nos ideais da Geração de 1927 desde o manifesto gongórico), razão-luz-geometria (que efetivamente, na fase surrealista seriam superados pelo inconsciente-noite-disformismo). Fase ainda de formação, mas que já se captam os elementos posteriores de ambos, do que viria a ser o Dalí surrealista. Para entendermos a influência recíproca, além do poema de Lorca, analisaremos uma pintura de Dalí. O quadro, O mel é mais doce que o sangue já inclui componentes que apontam para o surrealismo, analisemos o quadro, que exibiremos abaixo: A crítica não apreciou a tela, que tem uma história baseada na amiga esquizofrênica de Dalí chamada Lídia. Dalí em Lorca estavam em Cadaqués, local idílico litorâneo, em companhia de Lídia e do artista Eugênio d´Ors. O filho de Lídia levou Eugênio, que tinha fobia a alto-mar, a uma pescaria em mar aberto. Eugênio voltou mareado e assustado. Lídia brigou com o filho, que revoltou-se, dizendo que a mãe defende alguém que não era do seu sangue, então, ela disse a frase que denominou o quadro: “o mel é mais doce que o sangue”. A presença de Lídia, que por vezes ficava completamente fora da realidade, já que era esquizofrênica, serviu de pano de fundo para exercitar o surrealismo, tanto em Dalí, quanto em Lorca, uma arte para além da objetividade. O quadro, que não agradou a crítica, é um Dalí pré-surrealista, mas já margeando esta temática, com influência cubista, é dividido numa diagonal com um plano de fundo montanhoso, agulhas fincadas produzem a impressão de espelhos, um corpo feminino escultório remete à metafísica. A figuração do quadro nos faz lembrar Miró. Aliás, Miró considera esta obra a primeira obra surrealista de Dalí. 95 Alguns críticos preferem catalogar esta obra como a fase “Lorca”, de Dalí. Aparecem superpostas as cabeças de Lorca e Dalí (o que era muito comum nos desenhos de ambos deste período), sugerindo a ligação, confluência intelectual e relação erótica entre ambos. A cabeça de Lorca aparece como um busto caído na área, sugerindo decepamento e morte (temática recorrente de ambos). Lorca é comparado nas pinturas de Dalí a São Sebastião, o que tem um componente erótico sádico homossexual, o corpo nu e flechado do santo, como referência a auto-imolação martírica (o que no caso de Lorca resultaria profético). A morte explode no carro, com cadáveres de burro em putrefação, esqueleto de burro, as cabeças decepadas, a angústia, o agon da morte para quem vive, que além de ser um tema recorrente, é um tema surrealista, já que dialoga com as pulsões freudianas, libido, Eros x Thanatos. Dalí e Lorca tinham paixão pela temática da morte, assim como pavor de morrer, esta obsessão/fobia, chegaria ao ponto de Lorca representar seu funeral pelas ruas de Granada, uma forma de catarse artística da morte, amor/obsessão pelo objeto de fobia. Dalí seria no quadro Pólux, o imortal dos Dióscuros, mas jorram fios de sangue da cabeça de ambos. Lorca em seu poema fará a apologia da obra de Dalí, e se referencia neste quadro, na mulher morta (e a obsessão edipiana de ambos pelo corpo feminino sem chegar à posse sexual). A mulher morta representa o conflito erótico sexual, da mulher interditada que não deve ser possuída. A relação de Lorca com Gala, que será sua mulher da vida inteira, e a quem Dalí se submete, sem que haja posse sexual entreammbos. A relação sexual entre eles era sui gêneris, Dali a visualizava e depois ia se masturbar, sem nunca chegar ao coito com Gala. A partir desta obra, Dalí volta-se para a pesquisa do inconsciente e mergulha no surrealismo. Logo após esta obra surge o grande masturbador (1929), é uma fase fálica e escatológica, que está relacionada à tensão que surgiu da relação de ambos sobre a posse sexual. Se não sabemos ao certo até onde chegou a ligação erótica, os quadros poderiam ser uma catarse da relação sexual não concretizada, e os quadros refletiriam também a fixação onanista não só de Lorca, mas também de Dali (que na relação amorosa com Gala não chegava à posse sexual, mas à visão do corpo da esposa, sucedia à masturbação). Esta fase escatológica/onanista foi criticada pelos próprios surrealistas, que temiam uma crítica negativa ao movimento, Gala, que na época era esposa de Paul Eluard, teve 96 como missão, pedir a Dalí que suavizasse sua obsessão escatológica (que sugere o caráter sexual passivo anal). Todos estes conflitos eróticos de Dalí e Lorca são aqui relatados não como dados biográficos, mas porque são refletidos em suas obras, e tem função tanto na junção dos dois, quanto na separação contenciosa que se deu. Após Dalí filmar O Cão Andaluz com Buñuel (que instigou a Dalí a rejeitar Lorca por conta das investidas homossexuais deste), ridicularizando as características homossexuais de Lorca, houve um rompimento na amizade, com reflexos traumáticos para Lorca. Além da rejeição, Dalí ridicularizava o antigo parceiro de arte e convívio afetivo/erótico. Nas memórias de Dalí, ele relata que Lorca o procurava sexualmente e este sempre o rejeitava. Não sabemos até que ponto o relato unilateral é fidedigno, só podemos ir até onde a documentação nos deixa chegar. A partir de 1930, já em Paris, para se juntar aos surrealistas Renê Margrite, Paul Eluard, e Gala (que nesta época era esposa de Eluard), Dalí vai se incorporar ao grupo, mergulhando na pesquisa do subconsciente, do sono e do sonho, dos estados oníricos da alma. Como já relatamos. Gala tem, como já relatamos, a missão de frear a obsessão escatológica de Dalí nos quadros. Dalí se apaixona por Gala e faz tudo para seduzi-la. A relação é como o movimento, surrealista. Gala, linda, acaba abandonando Eluard (que continua amigo e vai conviver com ambos) por um jovem Dalí que é, segundo ele mesmo relata, virgem em relação a sexo com mulheres. O contraditório da relação, é que a ligação edipiana é bem nítida. Gala e Dalí não são um casal em que não há o ato sexual, pelo menos não o de posse, como relatado na sua arte e em sua biografia, Dalí se excita com Gala, mas só chega ao êxtase através da masturbação. É Gala quem conduz o casal, administrando a arte e a carreira de Dalí. A vida imitou a arte neste caso. A figura feminina reincidente nos quadros de Dalí, seriam a interiorização em si do feminino, do desejo de ser como a mulher. Em Paris e com Gala, Dalí faz a passagem completa para o surrealismo, que não é o objeto deste estudo e termina sua fase de influência lorqueana, que, todavia, estará em sua obra o resto da vida (noite, sono, morte). Como resposta à obra O cão andaluz, Lorca realizou, na sua fase Novaiorquina, com Emilio Armero, o roteiro para o filme Viagem à lua. Um roteiro para um filme completamente incomum, que só foi redescoberto na década de 80, nos Estados Unidos, junto aos pertences do mexicano Emilio Armero. O roteiro do filme 97 ganhou sua primeira edição crítica, na Espanha, só em 1994. Foi filmado, pouco depois, em duas diferentes versões: a de Javier Martín Domínguez, de 1997, e a de Frederic Amat, de 1998. Neste trabalho faremos a crítica somente do roteiro, sem entrar na polissemia das versões filmadas: Segue o roteiro na íntegra e com análise somente a posteriori: Viaje a la Luna 1. Cama blanca sobre una pared gris. Sobre los paños surge un baile de números 13 y 22. Desde dos empiezan a surgir hasta que cubren la cama como hormigas diminutas. 2. Una mano invisible arranca los paños. 3. Pies grandes corren rápidamente con exagerados calcetines de rombos blancos y negros. 4. Cabeza asustada que mira fija un punto y se disuelve sobre una cabeza de alambre con un fondo de agua. 5. Letras que digan Socorro Socorro Socorro con doble exposición sobre un sexo de mujer con movimientos de arriba abajo. 6. Pasillo largo recorrido por la máquina con ventana de final. 7. Vista de Broadway de noche con movimientos de tic-tac. Se disuelve en el anterior. 8. Seis piernas oscilan con gran rapidez. 9. Las piernas se disuelven sobre un grupo de manos que tiemblan. 10. Las manos que tiemblan sobre una doble exposición de un niño que llora. 11. Y el niño que llora sobre una doble exposición de una mujer que la da una paliza. 12. Esta paliza se disuelve sobre el pasillo largo otra vez, que la máquina recorre con rapidez. 13. Al final un gran plano de un ojo sobre una doble exposición de peces, y se disuelve sobre el siguiente. 14. Caída rápida por una montaña rusa en color azul con doble exposición de letras de Socorro Socorro. 15. Cada letrero de Socorro Socorro se disuelve en la huella de un pie. 16. Y cada huella de pie en un gusano de seda sobre una hoja en fondo blanco. 17. De los gusanos de seda sale una gran cabeza muerta y de la cabeza muerta un cielo con luna. 18. La luna se corta y aparece un dibujo de una cabeza que vomita y abre y cierra los ojos y se disuelve sobre 19. dos niños que avanzan cantando con los ojos cerrados. 20. Cabezas de los niños que cantan llenas de manchas de tinta. 21. Un plano blanco sobre el cual se arrojan gotas de tinta. (Todos estos cuadros rápidos y bien ritmados.) Aquí un letrero que diga No es por aquí. 22. Puerta 23. Sale un hombre con una bata blanca. Por el lado opuesto viene un muchacho desnudo en traje de baño de grandes cuadros blancos y negros. 24. Gran plano del traje sobre una doble exposición de un pez. 25. El hombre de la bata le ofrece un traje de arlequín pero el muchacho rehúsa. Entonces el hombre de la bata lo coge por el cuello, el otro grita, pero el hombre de la bata le tapa la boca con el traje de arlequín. 26. Gran plano de manos y traje de arlequín apretando con fuerza. 27. Se disuelve sobre una doble exposición de serpientes de mar del aquárium y éstas en los cangrejos del mismo aquárium y éstos en otros peces con ritmo. 28. Pez vivo sostenido en la mano en un gran plano hasta que muera y avance la boquita abierta hasta cubrir el objetivo. 29. Dentro de la boquita aparece un gran plano en el cual saltan, en agonía, 98 dos peces. Éstos se convierten en un caleidoscopio en el que cien peces saltan o laten en agonía. 30. Letrero: Viaje a la Luna. Habitación. Dos mujeres vestidas de negro lloran sentadas con las cabezas echadas en una mesa donde hay una lámpara. Dirigen las manos al cielo. Planos de los bustos y las manos. Tienen las cabelleras echadas sobre las caras y las manos contrahechas con espirales de alambre. 31. Siguen las mujeres bajando los brazos y subiéndolos al cielo. 32. Una rana cae sobre la mesa. 33. Doble exposición de la rana vista enorme sobre un fondo de orquídeas agitadas con furia. Se van las orquídeas y aparece una cabeza enorme dibujada de mujer que vomita que cambia de negativo a positivo y de positivo a negativo rápidamente. 34. Una puerta se cierra violentamente y otra puerta y otra y otra sobre una doble exposición de las mujeres que suben y bajan los brazos. Al cerrarse cada puerta saldrá un letrero que diga: Elena Helena elhena eLHeNa. 35. Las mujeres se dirigen rápidamente a la puerta. 36. La cámara baja con gran ritmo acelerado las escaleras y con doble exposición las sube. 37. Triple exposición de subir y bajar escaleras. 38. Doble exposición de barrotes que pasan sobre un dibujo: Muerte de Santa Rodegunda. 39. Una mujer enlutada se cae por la escalera. 40. Gran plano de ella. 41. Otra vista de ella muy realista. Lleva pañuelo en la cabeza a la manera española. Exposición de las narices echando sangre. 42. Cabeza boca abajo de ella con doble exposición sobre un dibujo de venas y granos gordos de sal para el relieve. 43. La cámara desde abajo enfoca y sube la escalera. En lo alto aparece un desnudo de muchacho. Tiene la cabeza como los muñecos anatómicos con los músculos y las venas y los tendones. Luego sobre el desnudo lleva dibujado el sistema de la circulación de la sangre y arrastra un traje de arlequín. 44. Aparece de medio cuerpo. Y mira de un lado a otro. Se disuelve sobre una calle nocturna. 45. Ya en la calle nocturna hay tres tipos con gabanes que dan muestras de frío. Llevan los cuellos subidos. Uno mira la luna hacia arriba levantando la cabeza y aparece la luna en la pantalla, otro mira la luna y aparece una cabeza de pájaro en gran plano a la cual se estruja el cuello hasta que muera ante el objetivo, el tercero mira la luna y aparece en la pantalla una luna dibujada sobre fondo blanco que se disuelve sobre un sexo y el sexo en la boca que grita. 46. Huyen los tres por la calle. 47. Aparece en la calle el hombre de las venas y queda en cruz. Avanza en saltos de pantalla. 48. Se disuelve sobre un cruce en triple exposición de trenes rápidos. 49. Los trenes se disuelven sobre una doble exposición de teclados de pianos y manos tocando. 50. Se disuelve sobre un bar donde hay varios muchachos vestidos de esmoquin. El camarero les echa vino pero no pueden llevarlo a su boca. Los vasos se hacen pesadísimos y luchan en una angustia de sueño. Entra una muchacha casi desnuda y un arlequín y bailan en ralentí. Todos prueban a beber pero no pueden. El camarero llena sin cesar los vasos que ya están llenos. 51. Aparece el hombre de las venas gesticulante y haciendo señas desesperadas y movimientos que expresan vida y ritmo acelerado. Todos los hombres se quedan adormilados. 52. Una cabeza mira estúpidamente. Se acerca a la pantalla y se disuelve en una rana. El hombre de las venas estruja la rana con los dedos. 99 53. Sale una esponja y una cabeza vendada. 54. Se disuelve sobre una calle. La muchacha vestida de blanco huye con el arlequín. 55. Aparece una cabeza que vomita. Y en seguida toda la gente del bar que vomita. 56. Se disuelve sobre un ascensor donde un negrito vomita. La muchacha y el arlequín suben en el ascensor. 57. Suben en el ascensor y se abrazan. 58. Plano de un beso sensual. 59. El muchacho muerde a la muchacha en el cuello y tira violentamente de sus cabellos. 60. Aparece una guitarra. Y una mano rápida corta las cuerdas con unas tijeras. 61. La muchacha se defiende del muchacho, y éste con gran furia le da otro beso profundo y pone los dedos pulgares sobre los ojos como para hundir los dedos en ellos. 62. Grita la muchacha y el muchacho de espaldas se quita la americana y una peluca y aparece el hombre de las venas. 63. Entonces ella se disuelve en un busto de yeso blanco y el hombre de las venas la besa apasionadamente. 64. Se ve el busto de yeso con huellas de labios y huellas de manos. 65. Vuelven a salir las palabras Elena elena elena elena. 66. Estas palabras se disuelven sobre grifos que echan agua de manera violenta. 67. Y estos grifos sobre el hombre de las venas muerto sobre periódicos abandonados y arenques. 68. Aparece una cama y unas manos que cubren un muerto. 69. Viene un muchacho con una bata blanca y guantes de goma y una muchacha vestida de negro. Pintan un bigote con tinta a una cabeza terrible de muerto. Y se besan con grandes risas. 70. De ellos surge un cementerio y se les ve besarse sobre una tumba. 71. Plano de un beso cursi de cine con otros personajes. 72. Y al final con prisa la luna y árboles con viento (LORCA, 1929). Lorca, neste argumento, mistura todo o pictorismo herdado de sua relação com Dalí, ao onírico, a sua nova influência surreal. Explodem no argumento: peixes, serpentes, vermes, luas, um arlequim, ou, um homem vestido de arlequim em uma fantasia que já não lhe cabe (inadequação à idade adulta), mãos, cabeças (corpo mutilado), vômitos, câimbra, escadas, corredores vazios e escuros, um mundo em ruínas, violento. O texto tem um substrato mítico na representação da morte, na tragédia da passagem da infância para a idade adulta, e a relutância em assumir estes papéis impostos socialmente; representado por cadeias, pelos corredores negros (subconsciente, id x ego). Pode se relacionar este roteiro escatológico, com o Lorca do poema do Lago Éden (infância feliz), no qual Adão fecunda peixes e Eva come formigas, no roteiro de Viagem à lua, de um Lorca pictórico e surrealista, passa uma multidão que vomita, é o nojo, a náusea na vida. Lorca recebe a influência do círculo Nova Iorquino, das mensagens modernas da grande metrópole e dos intelectuais avant-garde, e a fase em que se vê mais nitidamente seus problemas de identidade com relação à 100 homossexualidade: Ode a Walt Whitman, considerado um ícone gay. O arlequim que não cabe na fantasia, o adulto na roupa de adulto representaria o agon da vida, a inadequação sexual, a angústia, e logo o vômito, a escatologia. O argumento, segundo seus biógrafos, tem influência do cinema de Keaton e Chaplin, que Lorca assiste nesta época, e das telas e da convivência com Salvador Dalí. É um roteiro polissêmico que só foi filmado na década de 90, e que expressa toda contradição e angústia da poesia Lorquiana. Dalí e Lorca foram representantes de uma Espanha que estava em luta consigo mesmo, em luta mortal, com milhões de vítimas. Ambos tinham obsessão pela morte, Lorca, chegou a ser seu cultor, namorava com a morte, em seus poemas, como que cantando a sua beleza. Será que adivinhava seu fim trágico e precoce? Seu fim trágico lhe dá um ar mítico, de profeta sacrificado por seu próprio povo, por espalhar as verdades que antecedam seu tempo. O mais genial escritor do século XX na Espanha, que não era um militante político, foi julgado e condenado pela excelência e o alcance de suas obras, estas sim, um ariete poderoso contra uma Espanha conservadora, ultracatólica e feudal. Este capítulo fez a relação entre o poético e o pitagórico, a correlação entre a poesia de Federico García Lorca e os quadros de Salvador Dalí. Mostrou-se como, de forma efetiva, não só a poética, mas a convivência de Dalí com Lorca o ajudou a aperfeiçoar sua arte, mas que a mistura estética e temática, a inter-relação de temas e cânones, acabaram por enriquecer de um lado as telas de Dalí, de outro a poesia de Lorca. A fase “Lorca” de Dalí preparou seu salto para o surrealismo, na verdade, muitos dos temas que ficaram permanentemente presentes nos quadros do pintor surrealista já estavam pintados nos poemas de Lorca: a morte, a agonia, a solidão, o desespero, a noite, o onírico, o subconsciente. De outro lado, Lorca tentou transpor para sua poesia a objetividade da pintura, vários dos poemas narram cenários, sem que haja a intervenção do poeta, sem impressões subjetivas, como se ele fora apenas o espectador de um cenário. A relação contraditória, e por vezes antagônica com Buñuel, a ruptura entre Lorca e Dalí, também acabou virando proposta estética e temática. O filme Cão andaluz é um marco não só para Buñuel, mas para Dalí, que a partir deste ponto é considerado um dos integrantes do movimento surrealista, e também para Lorca, que em seu exílio voluntário em Nova Iorque, reage ao filme modificando sua estética nos poemas e até realizando um roteiro. Contraditoriamente, a ruptura 101 pessoal não levou a uma ruptura artística e temática, Lorca incorporará os temas surrealistas a sua poesia, ainda que estes já estivessem de forma inata, em gérmen nela. Lorca, em que pese seu grande talento formal, é um poeta intuitivo, e escreve sobre temas que a poesia da própria Geração de 1927 não ousava tocar. Uma geração que começa querendo uma poesia limpa, sem arroubos, e que depois vai se aproximando do coloquial e dos temas populares e políticos (Lorca também fez este caminho). Mas Federico vai além, insere no movimento os temas da pulsão, da libido, do subconsciente, da angústia, da morte, da agonia, da loucura. Nenhum outro poeta desta geração teve temática tão ampla ou mergulhou tão profundamente neste temas. Assim, concluímos que a relação entre ambos artistas acabou por diluir as fronteiras da poesia e das artes plásticas, o manifesto antiartístico de ambos, acabou resultando numa arte por excelência, de extremo apuramento, numa estética de contracultura, do bizarro, do feio, do vômito, da escuridão, do medo, do escatológico, da homossexualidade e da repressão sexual, da pulsão, da morte, do id e do ego. Feliz encontro artístico que nos legou obras, em que vemos o pictórico de Dalí nos poemas de Federico García Lorca, e a poética de Lorca nos quadros de Salvador Dalí. 102 6. A CONVIVÊNCIA DE NERUDA COM A GERAÇÃO DE 1927, EM ESPECIAL COM FEDERICO GARCÍA LORCA A estada de Pablo Neruda na Espanha, e sua relação com a Geração de 1927, mudou completamente sua obra e sua vida. Todavia, os primeiros contatos entre Neruda e o principal poeta da Geração de 1927, Federico García Lorca, ocorreram durante um tempo consideravelmente longo em Buenos Aires, entre 1933 e 1934. O primeiro encontro foi na casa de um amigo em comum, chamado Roja Paz, no final de 1933. Por coincidência, Lorca havia chegado a Buenos Aires em Outubro de 1933, e ficaria na Argentina até a fevereiro do ano seguinte; já Neruda havia chegado, como cônsul a Buenos Aires. em Julho e ficaria na Argentina até maio. Ambos já eram poetas consagrados, com vários livros lançados. Lorca, além de poeta, era um escritor teatral com várias peças produzidas e um grupo teatral chamado “La Barraca”, criado por ele, na Espanha. Antes da chegada de Neruda na Argentina, ele havia desempenhado a função de cônsul na Birmânia até 1927, no Ceilão, até 1928, em Java até 1930, e em Cingapura até 1931. Quando chegou à Argentina, já haviam sido publicadas várias de suas obras como: Crepusculário (1923), Veinte Poemas de Amor (1924), Tentativa del Hombre Infinito (1926), El Habitante y su Esperanza (1926), Anillos (1926), El Hondero Entusiasta (1933) e sua Primera Residencia en la Tierra 19251931 (1933). Já Lorca, que estava em Buenos Aires para acompanhar a montagem de sua peça teatral pela companhia de “Lola Membrives”, havia publicado os seguintes livros: Libro de Poemas (1921), Primeras Canciones (1922), Poema del Cante Jondo (1931),Primer Romancero Gitano (1928) e já havia estreado as peças teatrais, Mariana Pineda (1927), La Zapatera Prodigiosa (1929) e Bodas de Sangre. Além dos compromissos já elencados, Lorca dirigiu pessoalmente a montagem da peça La Dama Boba, de Lope de Vega. Ambos receberam uma homenagem num memorável jantar do Pen Club de Buenos Aires, no final de 1933, na ocasião foi feito um discurso em conjunto, em memória a Rubén Darío, que foi chamado de tourear ao Alimón (que é quando dois toureiros toureiam juntos com só uma capa). Segundo Vitor Raviola Molina, Neruda recordará a propósito: Aquel discurso fue dedicado a Rubén Darío, porque tanto García Lorca como yo, sin que se nos pudiera sospechar de modernistas, celebrábamos a Rubén Darío como uno de los grandes creadores del lenguaje poético en el idioma español. (p. 158 de sus memorias Confieso que he Vivido, 1997). 103 Este breve “Discurso al Alimón sobre Rubén Darío se reprodujo en el diario madrileño “El Solo con fecha 30 de diciembre de 1934. Curiosamente, no ha sido recogido en la recopilación de las obras completas de F. García Lorca (por lo menos en la edición más oficial: Madrid, Aguilar, 1954), salvo la mención fragmentaria que hace el poeta Jorge Guillén en el emotivo “prólogo. Sí aparece en las Obras Completas de Pablo Neruda (Buenos Aires, Losada, 1967, tomo I, pp. 10321035) y nuevamente en su obra de publicación póstuma Confieso que he Vivido (B. Aires, Planeta, 1997, pp. 158-161) (Molina, 1998). Para entender melhor esta amizade e as relações literárias ambivalentes entre os dois, vejamos na íntegra a bela homenagem de ambos a Rubén Darío, que representa exatamente o mesmo anseio de vanguarda que os irmanava. Rubén Darío vai influenciar as vanguardas tanto da América Latina quando europeias, sua mescla moderna de ruptura e retomada de tradição (o dualismo modernista já apresentado neste trabalho com a citação de Octavio Paz), esta tensão dialética entre renovação e busca do eterno, a elegância comedida dos poemas de Rubén Darío. O Discurso ao Alimán, com sua forma ousada, vanguardista, mas, ao mesmo tempo, uma referência à tradição brutal e atávica das touradas, mostra esta tensão dialética entre novo e retomada do eterno: Neruda: Señoras… Lorca: y señores: Existe en la fiesta de los toros una suerte llamada “toreo al alimón” en que dos toreros hurtan su cuerpo al toro cogidos de la misma capa. Neruda: Federico y yo, amarrados por un alambre eléctrico, vamos a parear y a responder esta recepción muy decisiva. Lorca: Es costumbre en estas reuniones que los poetas muestren su palabra viva, plata o madera, y saluden con su voz propia a sus compañeros y amigos. Neruda: Pero nosotros vamos a establecer entre vosotros un muerto, un comensal viudo, oscuro en las tinieblas de una muerte más grande que otras muertes, viudo de la vida, de quien fuera en su hora marido deslumbrante. Nos vamos a esconder bajo su sombra ardiendo, vamos a repetir su nombre hasta que su poder salte del olvido. Lorca: Nosotros vamos, después de enviar nuestro abrazo con ternura de pingüino al delicado poeta Amado Villar, vamos a lanzar un gran hombre sobre el mantel, en la seguridad de que se han de romper las copas, han de saltar los tenedores, buscando el ojo que ellos ansían y un golpe de mar ha de manchar los manteles. Nosotros vamos a nombrar al poeta de América y de España: Rubén… Neruda: Darío. Porque, señoras… Lorca: y señores… Neruda: Dónde está, en Buenos Aires, la plaza de Rubén, Darío? Lorca: Dónde está la estatua de Rubén Darío? Neruda: El amaba los parques. Dónde está el parque Rubén Darío? Lorca: Dónde está la tienda de rosas de Rubén Darío? Neruda: Dónde esta el manzano y las manzanas de Rubén Darío? Lorca: Dónde está la mano cortada de Rubén Darío? Neruda: Dónde está el acento la resina, el cisne de Rubén Darío? Lorca: Rubén Darío duerme en su “Nicaragua natal” bajo su espantoso león de marmolina, como esos leones que los ricos ponen en los portales de sus casas. Neruda: Un león de botica, a él, fundador de leones, un león sin estrellas a 104 quien dedicaba estrellas. Lorca: Dio el rumor de la selva con un adjetivo, y como fray Luis de Granada, jefe de idioma, hizo signos estelares con el limón, y la pata de ciervo, y los moluscos llenos de terror e infinito: nos puso al mar con fragatas y sombras en las niñas de nuestros ojos y construyó un enorme paseo de Gin sobre la tarde más gris que ha tenido el cielo, y saludó de tú a tú el ábrego oscuro, todo pecho, como un poeta romántico, y puso la mano sobre el capitel corintio con una duda irónica y triste, de todas las épocas. Neruda: Merece su nombre rojo recordarlo en sus direcciones esenciales con sus terribles dolores del corazón, su incertidumbre incandescente, su descenso a los hospitales del infierno, su subida a los castillos de la fama, sus atributos de poeta grande, desde entonces y para siempre e imprescindible. Lorca: Como poeta español enseñó en España a los viejos maestros y a los niños, con un sentido de universalidad y de generosidad que hace falta en los poetas actuales. Enseñó a Valle Inclán y a Juan Ramón Jiménez, y a los hermanos Machado, y su voz fue agua y salitre, en el surco del venerable idioma. Desde Rodrigo Caro a los Argensolas o don Juan Arguijo no había tenido el español fiestas de palabras, choques de consonantes, luces y forma como en Rubén Darío. Desde el paisaje de Velázquez y la hoguera de Goya y desde la melancolía de Quevedo al culto color manzana de las payesas mallorquinas, Daríó paseó la tierra de España como su propia tierra. Neruda: Lo trajo a Chile una marea, el mar caliente del Norte, y lo dejó allí el mar, abandonado en costa dura y dentada, y el océano lo golpeaba con espumas y campanas, y el viento negro de Valparaíso lo llenaba de sal sonora. Hagamos esta noche su estatua con el aire, atravesada por el humo y la voz y por las circunstancias, y por la vida, como ésta su poética magnífica, atravesada por sueños y sonidos. Lorca: Pero sobre esta estatua de aire yo quiero poner su sangre como un ramo de coral, agitado por la marea, sus nervios idénticos a la fotografía de un grupo de rayos, su cabeza de minotauro, donde la nieve gongorina es pintada por un vuelo de colibrís, sus ojos vagos y ausentes de millonario de lágrimas, y también sus defectos. Las estanterías comidas ya por los jaramagos, donde suenan vacíos de flauta, las botellas de coñac de su dramática embriaguez, y su mal gusto encantador, y sus ripios descarados que llenan de humanidad la muchedumbre de sus versos. Fuera de normas, formas y escuelas queda en pie la fecunda substancia de su gran poesía. Neruda: Federico García Lorca, español, y yo, chileno, declinamos la responsabilidad de esta noche de camaradas, hacia esa gran sombra que cantó más altamente que nosotros, y saludó con voz inusitada a la tierra argentina que pisamos. Lorca: Pablo Neruda, chileno, y yo, español, coincidimos en el idioma y en el gran poeta, nicaragüense, argentino, chileno y español, Rubén Darío. Neruda y Lorca: Por cuyo homenaje y gloria levantamos nuestro vaso (NERUDA, 2005, p. 153). Nesta homenagem a Rubén Darío assinalamos que há traços de pensamento estético comum, ambos são vanguardistas e fazem experimentos de forma e tema. Darío influencia toda a vanguarda espanhola e latino-americana, é um ponto de encontro de vários poetas. Escolher Rubén Darío não é só uma homenagem, é também um marco referencial do que os dois poetas estavam experimentando. Segundo o mesmo Molina, este discurso não foi a única obra literária conjunta de ambos os poetas, nas obras completas de Neruda há a 105 informação de que ambos prepararam, em edição privada e limitada, um caderno mecanografado e encadernado como um exemplar único feito em honra de Dona Sara Tornú de Roja Paz (esposa do anfitrião do primeiro encontro de ambos, Roja Paz), com o título de Paloma o Mano de Vidrio. era composto de sete poemas de Neruda e oito desenhos de Federico García Lorca. Seis dos poemas, com variações, foram recolhidos na Terceira Residência na Terra, menos o poema “Severidad”, que continua inédito em toda a obra publicada de Neruda. Já os desenhos de Lorca continuam inéditos e não foram dados a público em nenhuma das versões de suas obras completas ou escolhidas. Lorca, antes de chegar a Buenos Aires, além das obras lançadas, e de ser um poeta reconhecido e famoso, era um homem viajado. Ele estudou Direito na Universidade de Granada (1914-1919) e residiu na famosa Residência dos Estudantes na Universidade de Madrid (1919-1928), onde gozou da amizade e da influência recíproca de Salvador Dalí e da companhia nem sempre amistosa de Buñuel. Lorca também morou nos Estados Unidos e estudou na Columbia University (1929-1930), visitou Cuba e fez conferências nestes dois países. Na Espanha, era famoso seu projeto de teatro mambembe, conhecido como La Barraca. A atração intelectual entre ambos e a amizade foi recíproca desde o início. Neruda agora será transferido em maio de 1934 para a Espanha, com um cargo de vice-cônsul em Barcelona, a partir do dia 5 de maio. Em dezembro do mesmo ano, Neruda apresenta um recital da sua poesia na Universidade de Madrid. O encarregado de fazer sua apresentação para os poetas espanhóis é Federico García Lorca. O texto da conferência, entretanto, não se encontra nas obras de nenhum dos dois poetas. Através de gestões do próprio Neruda e com a ajuda de Lorca, Neruda consegue se transferir para Madrid em fevereiro de 1935, trocando de posto com outra poetisa, Gabriela Mistral, que não chega a ocupar o posto de Neruda na Catalunha, já que, no meio da viagem dela, acaba sendo nomeada como consulesa em Lisboa. A troca de cargos permitiu a Neruda ter acesso à fina-flor da poesia, teatro e artes plásticas da Espanha de então. Sua residência de Los Arguelles, na qual aconteciam encontros, tertúlias, jantares, era frequentada por Lorca, Albertí, Miguel Hernández, Antônio Machado, dentre outros. Segundo Molina: “En Madrid, Neruda desarrolla numerosas actividades intelectuales, entre las cuales cabe mencionar su dirección de la revista “Caballo Verde para la Poesía en la que colaboran muchos poetas españoles del momento incluyendo obviamente a García Lorca; allí se publicó, por ejemplo, el poema “Nocturno del Hueco en octubre de 1935. Sólo cinco números de la 106 revista alcanzaron a salir a la luz pública. Neruda recordará: El sexto número de “Caballo Verde se quedó en la calle Viriato sin compaginar ni coser. Estaba dedicado a Julio Herrera y Reissig (…) y los textos que en su homenaje escribieron los poetas españoles, se pasmaron ahí con su belleza, sin gestación ni destino. La revista debía aparecer el 19 de julio de 1936, pero aquel día se llenó de pólvora la calle. Un general desconocido, llamado Francisco Franco, se había rebelado contra la República en su guarnición de África. (op. cit., 1997, p. 169) (MOLINA, 1998). A insurreição, comandada por Franco, contra um Governo legitimamente eleito, a Guerra Civil que se seguiu, não encerrou as atividades da revista Caballo Verde apenas, selou o destino de muitos dos artistas espanhóis que tomaram partido pela jovem República assassinada. Era a velha Espanha inquisitorial e tradicionalista que se levantava contra o novo, e isto não terá reflexos somente políticos: toda esta Geração fantástica sofrerá o aborto da tentativa da construção de um socialismo democrático, com resultados de esvaziamento artístico da fina-flor da cultura espanhola, em sua maior parte exilada e fazendo arte fora da Península Ibérica. Neruda terá sua poesia “manchada de sangue”, também tomará partido e transmutará sua estética: Del mismo año es la edición especial de los Tres Cantos Materiales nerudianos (Madrid, Plutarco, abril de 1935, 16 páginas sin numerar) que aparece como “Homenaje a Pablo Neruda de los poetas españoles. El texto del homenaje está firmado por casi todos los poetas españoles integrantes de la generación literaria de 1927(Aleixandre, Cernuda, Bergamín, etc.) incluyendo, por supuesto, a Federico García Lorca. No debe sorprender mucho este “homenaje de los poetas españoles. Biógrafos de Neruda y el propio poeta en sus Memorias de publicación póstuma (1997, p. 166) recuerdan que el cónsul-poeta residió entonces en el barrio de Arguelles, en la que fue la famosa “Casa de las Flores, lugar en que desarrolló una permanente y animada tertulia literaria con asistencia de muchos literatos y artistas españoles jóvenes, sin contar numerosos viajeros y el matrimonio del Embajador Morla LynchBebé Vicuña. En la “Oda a Federico García Lorca que se menciona más adelante, Neruda dejó un importante registro de los concurrentes a dicha tertulia, entre los que destacan Delia del Carril, Acario Cotapos, María Luisa Bombal y casi todos los poetas españoles del 27. Además, en sus Memorias explicita: Con Federico y Alberti, que vivía cerca de mi casa en un ático sobre una arboleda, la arboleda perdida, con el escultor Alberto, panadero de Toledo que por entonces ya era maestro de la escultura abstracta, con Altolaguirre y Bergamín; con el gran poeta Luis Cernuda, con Vicente Aleixandre, poeta de dimensión ilimitada, con el arquitecto Luis Lacasa, con todos ellos en un solo grupo, o en varios, nos veíamos diariamente en casas y cafés. (op. cit., 1997, p. 166) (MOLINA, 1998). A Guerra Civil vai interromper esta convivência artística fértil e pacífica. Em julho de 1936 começa a Guerra Civil com a sublevação de Franco em Marrocos, a maioria dos poetas e escritores da Geração de 1927 toma parte a favor da República, poucos são os que advogam a causa conservadora, do lado realista e fascista. Logo no início da Guerra, Lorca vai para Andaluzia, considerando que em 107 sua terra natal estaria seguro. É preso na casa de um amigo falangista, fuzilado por ser “rojo y maricas” e enterrado numa vala comum, com dezenas de partidários da República. Até hoje é ignorado o local de seu túmulo, seu corpo nunca foi encontrado. Neruda é destituído do seu cargo de cônsul e viaja para Paris para ajudar a organizar, com outros intelectuais, um grupo de resistência e solidariedade à República Espanhola. Neruda recordará, que a guerra da Espaça começou para ele com a desaparição de seu poeta irmão Lorca e o desaparecimento de vários outros amigos intelectuais. Esta tragédia o fez organizar, junto com o poeta peruano César Vallejo, o “Grupo Hispano-americano de Ajuda a Espanha", assim como uma conferência em Paris em homenagem a Federico, desaparecido; além de ter composto o poema El Crimen fue en Granada. É o momento exato de viragem estética e de temática em Neruda, causada pela Guerra Civil Espanhola. Neruda se envolverá em várias outras iniciativas, como o prólogo que fará para a segunda edição do Poema do Cante Jondo, de Lorca, que se publicará em Madrid, no meio da Guerra Civil, em 1937; o que demonstrará o carinho, a admiração e o respeito que Neruda tinha por Lorca. Também participará do lançamento da revista, Los Poetas del Mundo Defienden al Pueblo Español, dirigida e imprensa em parceria com Nancy Cunard, com um único número editado no meio da Guerra Civil em Paris. Logo depois, ainda durante a Guerra Civil, Neruda é nomeado como Cônsul chileno para emigração espanhola, cargo no qual teve um papel admirável e salvou milhares de republicanos espanhóis da morte, mais de 2 mil deles só no cargueiro Winnipeg. Foi Neruda que organizou a viagem do cargueiro, resgatando um grande grupo de combatentes espanhóis que estavam exilados na França. No total, acredita-se que cerca de 500 mil espanhóis tenham cruzado a fronteira, boa parte deles acabou por ter como destino o Chile, Neruda era o encarregado dos vistos e das viagens dos republicanos derrotados. Em setembro de 1939, 2365 republicanos espanhóis chegam a Valparaíso no Chile, num dos capítulos mais importantes do exílio dos republicanos. A história deles começa em condições extremamente difíceis. A solidariedade do governo “socialista” francês com os republicanos espanhóis era pouca, ou quase nenhuma. A maioria dos refugiados foram confinados em campos de concentração, cercados por arames farpados, num inverno (o de 1939) particularmente frio: segundo entrevista concedida à BBC de Londres, pelo professor chileno Jaime 108 Ferrer Mir, autor do livro Winnipeg, o navio da esperança. Combatente na França pelos republicanos, Neruda sabia das péssimas condições em que viviam na fronteira os refugiados republicanos. O poeta fora cônsul em Barcelona e Madrid, tinha estado num breve tempo no Chile para participar da campanha de Pedro Aguirre Cerda, recém-eleito presidente. Neruda então pediu a nomeação como Cônsul chileno de emigração espanhola em Paris, para trazer espanhóis para o Chile. O Chile acabava de perder 30 mil pessoas num terrível terremoto No Chile também foram tempos difíceis e, após o terrível terremoto, que matou mais de 30.000 pessoas, o país precisava de trabalhadores. Cifras não oficiais, falam de cerca de 40 mil emigrados espanhóis no Chile, fugindo da Guerra Civil. Em Paris., Neruda entrou em contato com o Serviço Espanhol de Evacuação para os Refugiados (SERE), que começou a enviar cartas para as pessoas que fugiam da guerra e estivessem interessadas em viver no Chile. Para a emigração, Neruda contratou o cargueiro Winnipeg, barco de cargas francês, utilizado na primeira guerra mundial e que nunca tinha transportado pessoas. O navio foi reformado e foram instalados beliches para mais de duas mil pessoas. Em 4 de agosto de 1939, o Winnipeg, com sua preciosa carga humana saiu de Valparaíso, com 2365 refugiados da guerra, entre combatentes e suas família. Demorou mais de um mês para os combatentes espanhóis chegarem à nova pátria, que graças a Neruda e Aguirre Cerda, os receberia de braços abertos. No dia 3 de setembro de 1939, um dia depois de chegar a Valparaíso, os republicanos espanhóis desembarcaram, sendo recepcionados com uma chuva de rosas, por uma multidão de mais de 70 mil pessoas. A grande maioria permaneceu no Chile, constituindo família, as quais vivem até hoje na nova pátria, poucos voltaram à Espanha. Em 2009, a Fundação Casa de Pablo Neruda organizou uma homenagem à viagem e ao Cônsul poeta Pablo Neruda, com cerca de 200 passageiros ainda vivos da viagem do Winnipeg, em frente ao Palácio La Moneda. Alguns dos sobreviventes relataram, que todo ano vão ao túmulo de Pablo Neruda, em Isla Negra, homenageá-lo, jogando terra espanhola no túmulo do poeta. Neruda, como os exilados, é um poeta com duas pátrias, e leva sempre Espanha no Coração. Não por outra razão, ele comentou sobre a viagem do Winnipeg: “A crítica pode apagar todas as minhas poesias, se quiser, mas, este poema, eles não poderão apagar jamais”. Voltando a Lorca, Neruda o descreveu assim em sua conferência em 109 1937: Era popular como una guitarra, alegre, melancólico, profundo y claro como un niño, como el pueblo. Si se hubiera buscado difícilmente, paso a paso por todos los rincones a quién sacrificar, como se sacrifica un símbolo, no se hubiera hallado lo popular español, en velocidad y profundidad, en nadie ni en nada como en este ser escogido. Lo han escogido bien quienes al fusilarlo han querido disparar al corazón de su raza. Han escogido para doblegar y martirizar a España, agotarla en su perfume más rápido, quebrarla en su respiración más vehemente, cortar su risa más indestructible, y recuerda los éxitos argentinos al señalar: He visto en Buenos Aires, hace tres años, el apogeo más grande que un poeta de nuestra raza haya recibido, las grandes multitudes oían con emoción y llanto sus tragedias de inaudita opulencia verbal. En ella se renovaba cobrando nuevo fulgor fosfórico el eterno drama español, el amor y la muerte bailando una danza furiosa, el amor y la muerte enmascarados y desnudos. Más adelante lo describe como un relámpago físico, una energía en continua rapidez, una alegría, un resplandor, una ternura completamente sobrehumana. Su persona era mágica y morena, y traía la felicidad… Por último, hará una comparación con otro poeta andaluz contemporáneo, Rafael Alberti, hablará de su preocupación social y recordará la anécdota premonitoria ocurrida en una aldea de Extremadura cuando García Lorca sale al alba a mirar el sol y observa con pavor cómo seis o siete cerdos negros despedazan y devoran un cordero extraviado de su rebaño, concluyendo: Cuando me lo contó al regresar a Madrid su voz temblaba todavía porque la tragedia de la muerte obsesionaba hasta el delirio su sensibilidad de niño. Ahora su muerte, su terrible muerte que nada nos hará olvidar, me trae el recuerdo de aquel amanecer sangriento. Por otro lado, en el apartado “Cómo era Federico de sus Memorias de publicación póstuma subraya el banquete que en honor de ambos realizaron casi cien escritores argentinos en el PEN CLUB de B. Aires, recuerda el discurso conjunto sobre Rubén Darío y la anécdota erótica en casa del millonario argentino Natalia Botana en que la complicidad de García Lorca resulta con una cojera. Desliza la siguiente impresión del poeta granadino: (Federico) estaba feliz. Esa era su costumbre. La felicidad era su piel (MOLINA, 1998). Seguramente, das obras em homenagem a Lorca morto, uma das mais candentes e fortes foi a poesia Oda a Federico, que faz Segunda Residencia e já a comentamos aqui anteriormente. Segundo comentários do próprio Neruda, este texto foi feito sobre o impacto da morte de Lorca e do resultado da guerra na Espanha, quando o mundo ocidental assistiu de forma negligente e com isto foi cúmplice do crime cometido contra a jovem República. No livro Confieso que he vivido, Neruda diz que o monarca de ouro e azul passa em revista as tropas junto ao embaixador dos Estados Unidos e da Inglaterra, que em nada criaram dificuldades para a invasão de Franco (com seus 40 mil soldados vindos de Marrocos, transportados pela marinha italiana, passando pelo estreito de Gibraltar sob a complacência inglesa). Neruda os culpa por um milhão de espanhóis mortos, e isto o faz se aproximar da União Soviética, o único país que enviou ajuda militar à República. Esta ajuda sofreu todo tipo de dificuldades para 110 passar pela França e por fim, teve de cessar, sob a pressão internacional, que exigia “neutralidade”. Foi durante a Guerra Civil espanhola que a força aérea alemã, a Luftwaffe, pode bombardear livremente a populações civis espanholas e Hitler treinar sua tática de guerra relâmpago, ou Blitzkrieg. A primeira cidade a sofrer a devastação nazista foi Guernica, imortalizada no genial quadro de Picasso, através do horror das vítimas inocentes da guerra. Neruda relata ainda em Confieso que ha vivido, que na noite de 19 de julho de 1936 teria um encontro com Federico García Lorca no Grande Circo Price de Madrid, a guerra já havia estalado. Ele nos conta que Lorca faltou ao encontro, porque estava indo para Granada, caminho de sua própria morte, como se cumprira as profecias de seus poemas lúgubres. Nesta parte do livro que ele diz que a Guerra Civil começa com a desaparição de Federico e muda para sempre sua poesia. E faz uma apologia sensível e fraterna do irmão-poeta desaparecido: “Qué poeta! Nunca he visto reunidos como en el la gracia y el genio, el corazón alado y la cascada cristalina. Federico García Lorca era el duende derrochador, la alegría centrífuga que recogía en su seno e irradiaba como un planeta la felicidad de vivir. Ingenuo e comediante, cósmico e provinciano, músico singular,espléndido mimo, espantadizo y supersticioso, radiante e gentil, era una especie de resumen de las edades de España, del florecimiento popular, un producto arábigo-andaluz que iluminaba y perfumaba como un jazminero toda la escena de aquella España, ay de mí!, desaparecida. A mi me seducía el gran poder metafórico de García Lorca y me interesaba todo cuanto escribía. Por su parte, él me pedía a veces que le leyera mis últimos poemas y, a media lectura me interrumpía a voces: 'no sigas, no sigas, que me influencias!' En el teatro y en el silencio, en la multitud en y en el decoro, era un multiplicador de la hermosura. Nunca vi un tipo con tanta magia en las manos, nunca tuve un hermano más alegre. Reía, cantaba, musicaba, saltaba, inventaba, chisporroteaba. Pobrecillo, tenía todos los dones del mundo, y así como fue un trabajador de oro, un abejón comenar de gran poesía, era un manirroto de su ingenio (NERUDA, 2005, p. 167). Fica claro da leitura do texto a profunda devoção que sentia Neruda por García Lorca, a relação fraterna e íntima, a devoção e admiração mútua que reciprocamente sentiam, e qual profundamente a morte de Lorca o abalou. Em uma parte de sua biografia, ele mostra como, durante uma viagem do grupo do poeta 111 andaluz, “La Barraca”, Lorca pressentira sua própria morte. Ele havia contado a Neruda que, durante uma das viagens do grupo, quando eles se encontravam em Castilla, Lorca não conseguira dormir e saíra vagando pela noite. Na entrada de um pequeno sítio feudal, Federico avistou a um pequeno cordeiro branco, no meio da névoa da madrugada, como uma aparição divina. Não passou muito tempo e quatro porcos selvagens surgiram e, famintos, atacaram e fizeram em pedaços o pobre cordeiro, que seria símbolo da poesia e da pureza. Teria realmente acontecido isto? Neruda questiona se não era uma visão da própria morte, Lorca o cordeiro poético despedaçado pelos porcos do fascismo que se abateu sobre a Espanha. Tendo sendo ou não verídica a visão, a lembrança é poética, dolorosa e forte. Como diz Neruda, de todos os poetas Espanhóis Federico era o mais amado, o mais querido e o mais semelhante a ele mesmo. Ele não compreende que, com toda aquela alegria, houvesse monstros sobre a terra desejosos de sua execução. Nas palavras do próprio Neruda: La incidencia de aquel crimen fue para mi la más dolorosa de una larga lucha. Siempre fue España un campo de gladiadores, una tierra con mucha sangre. La plaza de toros, con su sacrificio y su elegancia cruel, repite, engalanadora de farándulas, el antiguo combate mortal sobre la sombra y la luz. La inquisición encarcela a fray Luis de León, Quevedo padece en su Calabozo, Colón camina con grillos en los pies. Y el gran espetáculo fue el osario en El Escorial, como ahora el Monumento a los Caídos, con una cruz sobre un millón de muertos y sobre incontables e oscuras prisiones (NERUDA, 2005, p. 170). Lendo estes trechos de Confieso que he vivido, não é difícil entender o quão profunda foi a experiência da guerra para Neruda, Toda a influência estética que ele recebera dos poetas espanhóis, agora se cruza com sua simpatia pela República Espanhola, o que o leva a uma passagem para o marxismo e para o comunismo (principalmente pelo fato de a União Soviética ter sido o único país a defender Espanha). Para Neruda, havia mais que uma relação intelectual, havia uma relação sentimental, a URSS passa a ser a pátria de todos que combatiam o fascismo. Nem o pacto de não-agressão entre URSS e Alemanha Nazista diminuiria esta simpatia. Na verdade, a campanha da Segunda Guerra Mundial, quando a União Soviética foi a principal adversária de Hitler nos campos de batalha, estreitaria esta relação que se tornará ideológica. Neruda entrará para o Partido Comunista Chileno e depois será candidato a senador e presidente pelo PCC. Segundo Molina, na conclusão de ser artigo, é clara la relação e a troca de experiências poéticas entre ambos. Não há, segundo Molina, traços de influência 112 de Neruda em Lorca, porque Federico morrerá logo após o início da relação de amizade entre os dois, em 1936, quando quase toda a produção lírica de García Lorca estava realizada, e as preocupações de Lorca naquele momento estavam nas atividades teatrais. Mas há evidentes traços de influência de Lorca e da Geração de 1927 na poesia de Neruda. Segundo Molina, depois da experiência espanhola, a poesia de Neruda é mais madura, mais inovadora, mais surpreendente que a criação anterior de Neruda. Segundo ele, seria difícil registrar a ampla gama de recursos poéticos e procedimentos estilísticos do poeta granadino, que depois aparecerão também em Neruda: Entre esos procedimientos menciono: impertinencias predicativas, desplazamientos calificativos, ruptura de sistema, imágenes, visiones, metáforas, el rico y atrevido uso del adjetivo, antítesis, plurimembraciones, prosopopeyas, paralelismos, correlaciones y paradojas. A ello habría que agregar la luminosidad, calidez, imaginación, vitalidad, cromatismo y musicalidad propias de los artistas andaluces, como Luis de Góngora, piedra de tope para García Lorca y demás miembros de su generación literaria de 1927 (MOLINA, 1995). Góngora era influência poética de Neruda mesmo antes de conhecer Lorca. O gongorismo de Neruda, no início de sua poesia parece anacrônico, depois da influência da Geração de 1927, se torna de vanguarda. Neruda retoma o gongorismo contra os românticos, a poesia de Neruda então passa a partilhar do que há de mais “avant-garde”. Os jogos de palavras e os exageros superlativos serão vistos, por exemplo, em Alturas de Macchu Picchu, do seu Canto Geral. Vejamos, estas comparações, sugeridas por Molina, entre Lorca e Neruda, tomemos primeiro, poemas de Lorca no seu livro de Poemas: Canción Otoñal Noviembre de 1918 (Granada) Hoy siento en el corazón un vago temblor de estrellas, pero mi sienda si pierde en el alma de la niebla La luz me troncha las alas y el dolor de mi tristeza va mojando los recuerdos en la fuente de la idea. Todas las rosas son blancas, tan blancas como mi pena, y no son las rosas blancas que ha nevado sobre ellas. Antes tuvieron el iris. También sobre el alma nieva. La nieve blanca del alma tiene copos de besos y escenas que se hundieron en la sombra 113 o en la luz del que las piensa. La nieve cae de las rosas, pero la del alma queda, y la garra de los años hace un sudario con ellas. ¿Se deshelará la nieve curando la muerte nos lleva? ¿O después habrá otra nieve y otras rosas más perfectas? ¿Será la paz con nosotros como Cristo nos enseña? ¿O nunca será posible la solución del problema? ¿Y se el amor nos engaña? ¿Quién la vida nos alienta si el crepúsculo nos hunde en la verdadera ciencia del Bien que quizá no exista, y del mal que late cerca? ¿Sí la esperanza se apaga y la Babel se comienza, qué antorcha iluminará los caminos en la Tierra? ¿Si el azul es un ensueño, que será de la inocencia? ¿Qué será del corazón si el amor no tiene flechas? ¿Si la muerte es la muerte, que será de los poetas y de las cosas dormidas que ya nadie las recuerda? ¡Oh sol de las esperanzas! ¡Agua clara! ¡Luna nueva! ¡Corazón de los niños! !Almas rudas de las piedras! Hoy siento en el corazón un vago temblor de estrellas y todas las rosas son tan blancas como mis penas (LORCA,1995, p. 20). Comparemos com este poema de Neruda de seu livro, Jardim de Inverno, tanto na temática quanto na construção da forma do poema, do ritmo interno, feito pela repetição de palavras, uma certa nostalgia, mais que agonia da morte. Uma canção suave com um vago temblor de estrellas, uma canção de inverno, com tons outonais, vagamente tristes, vejamos a forma poética num poema de Neruda muito parecido: Jardín de invierno Llega el invierno. Espléndido dictado me dan las lentas hojas vestidas de silencio amarillo. Soy un libro de nieve, 114 una espaciosa mano, una pradera, un círculo que espera, pertenezco a la tierra y a su invierno. Creció el rumor del mundo en el follaje, ardió después el trigo constelado por flores rojas como quemaduras, luego llegó el otoño a establecer la escritura del vino; todo pasó, fue cielo pasajero la copa del estío, y se apagó la nube navegante. Yo esperé del balcón, tan enlutado como ayer con las yedras de mi infancia, que la tierra extendiera sus alas en mi amor deshabitado. Yo supe que la rosa caería y el hueso del durazno transitorio volvería a dormir e germinar:. y me embriagué con la copa del aire hasta que todo el mar se hizo nocturno. La tierra vive ahora tranquilizando su interrogatorio, extendida a la piel de su silencio. Yo vuelvo a ser ahora el taciturno que llegó de lejos envuelto en lluvia fría e en campanas: debo a la muerte pura de la tierra la voluntad de mis germinaciones (NERUDA, 2005, p. 50). É incrível em ambos os poetas, primeiro la forte melancolia e a presença da morte, o poema de Neruda finaliza dizendo que seus poemas germinam da morte pura da terra, e deixa implícito (assim como em Lorca), uma esperança de continuidade, de infinito, de renascimento. Recordemos que a morte era um tema recorrente na poesia de Lorca, as imagens poéticas de frio, sombra, passagem inexorável do tempo, germinação e morte das flores, frio, estio, inverno, neve, mostram uma tendência panteísta na poesia de ambos, mesmo sem a presença de uma religiosidade que a ampare. Além disto, a angústia do fim, de um exílio é aquele que eternamente vem de longe, trazendo a chuva. Lorca é o que vive exilado mesmo quando está na Andaluzia, porque é mensageiro de uma Espanha que nunca chegou a ser. Cantor dos oprimidos e infelizes, ele mesmo um oprimido e infeliz, perseguido inclusive por sua homossexualidade. O ritmo interno dos poemas, que nos faz lembrar neve ou chuva é outra característica que Lorca vai buscar na poesia árabe, no Cante Jondo e Neruda a incorpora em definitivo na sua poesia, de forte musicalidade interna, quase nunca rimada. A morte, o sentido da vida em dois poetas que não tem religião, a busca de dar sentido a sua caminhada no mundo, é 115 outro elo que liga os dois poemas. Este é apenas um dos paralelismos dos vários que se podem encontrar entre o Neruda pós Espanha e os poemas da Geração de 1927 (da qual usamos Lorca para provar as ligações de Neruda com esta geração). Pablo Neruda foi partícipe desta geração, mesmo não tendo nascido na Espanha, ele vai levar alhures, além-mar, para o Chile toda a temática e a poética revolucionário da Espanha do início do século XX, da Geração que foi desfeita pela catástrofe da Guerra. 116 7. SÍNTESE DIALÉTICA: NERUDA PÓS-ESPANHA Uma análise apressada e puramente sectária da poesia de Neruda pós Espanha pode seguir por caminhos de incompreensão de sua estética e de sua temática. De um lado, para uma apologia do engajamento, com apagamento de toda a arte poética anterior, como sendo de menor qualidade, ou de menos importância, já que seriam traços de um poeta menor e sem compromisso político. Quem assim age, reduz a poesia a discurso utilitarista e a um biografismo estéril, e não consegue enxergar nem as marcas de continuidade na poesia de Neruda, nem a importância de cada passo de construção da sua poesia. De outro lado, uma outra forma de sectarismo, a de enxergar nesta fase de poesia engajada do bardo uma poesia menor, uma poesia reduzida, ortodoxa e dogmática, a serviço da luta social e por isto, menos livre em forma e conteúdo. Esta análise é a outra face da mesma moeda da crítica anterior, defendemos que Neruda alargou a temática de sua poesia, sem abrir mão de nenhuma das características anteriores. Na fase militante de sua poesia, encontramos o lirismo, o panteísmo, o pictórico, o onírico, a variedade de temas humanos. Ao lado do mineiro comunista chileno, estão as uvas, o mar, a cebola. O poeta militante negou-se a reduzir sua poesia de forma sectária, e fiel ao seu Manifesto por uma poesia impura, a alargou para todo e qualquer campo de conhecimento e atividade humana, como no famoso adágio humanista, nada do que é humano me é estranho. Neruda ao fim e ao cabo, se definiu melhor no manifesto que publicou na revista Caballo Verde, e ao qual foi fiel por toda a vida: Es muy conveniente, en ciertas horas del día o de la noche, observar profundamente los objetos en descanso: las ruedas que han recorrido largas, polvorientas distancias, soportando grandes cargas vegetales o minerales, los sacos de las carbonerías, los barriles, las cestas, los mangos y asas de los instrumentos del carpintero. De ellos se desprende el contacto con el hombre y de la tierra como una lección para el torturado poeta lírico. Las superficies usadas, el gasto que las manos han infligido a las cosas, la atmósfera a menudo trágica y siempre patética de estos objetos, infunde una especie de atracción no despreciable hacia la realidad del mundo. La confusa impureza de los seres humanos se percibe en ellos, la agrupación, uso y desuso de los materiales, las huellas del pie y de los dedos, la constancia de una atmósfera humana inundando las cosas desde lo interno y lo externo. Así sea la poesía que buscamos, gastada como por un ácido por los deberes de la mano, penetrada por el sudor y el humo, oliente a orina y a azucena salpicada por las diversas profesiones que se ejercen dentro y fuera de la ley. Una poesía impura como traje, como un cuerpo, con manchas de nutrición, y actitudes vergonzosas, con arrugas, observaciones, sueños, vigilia, profecías, declaraciones de amor y de odio, bestias, sacudidas, idilios, creencias políticas, negaciones, dudas, afirmaciones, impuestos. La sagrada ley del madrigal y los decretos del tacto, olfato, gusto, vista, oído, el deseo de justicia, el deseo sexual, el ruido del océano, sin excluir deliberadamente nada, sin aceptar deliberadamente nada, la 117 entrada en la profundidad de las cosas en un acto de arrebatado amor, y el producto poesía manchado de palomas digitales, con huellas de dientes y hielo, roído tal vez levemente por el sudor y el uso. Hasta alcanzar esa dulce superficie del instrumento tocado sin descanso, esa suavidad durísima de la madera manejada, del orgulloso hierro. La flor, el trigo, el agua tienen también esa consistencia especial, ese recurso de un magnífico acto. Y no olvidemos nunca la melancolía, el gastado sentimentalismo, perfectos frutos impuros de maravillosa calidad olvidada, dejados atrás por el frenético libresco: la luz de la luna, el cisne en el anochecer, “corazón mío” son sin duda lo poético elemental e imprescindible. Quien huye del mal gusto cae en el hielo (NERUDA, 1974) A primeira coisa a ser notada neste manifesto é o plural, o nós, e não é um plural majestático. Neruda está no ápice de um debate com Ramón José Jimenez, que simbolizaria a “poesia velha”, a que não tem inspiração vanguardista e que defende os motivos nobres e a forma casta, petrarquista. Neste debate, Neruda que poucas vezes é catalogado como um poeta da Geração de 1927, faz um manifesto de toda esta Geração. As preocupações temáticas e estéticas desta geração estão sintetizados de forma sucinta em Para uma poesia impura, uma poesia que se abre para o cotidiano, para a fealdade, para o banal e vulgar, para o sexo sem amor e castidade, para a velhice e a morte, para a guerra, para a exploração e luta de classes. É um calidoscópio do experimentalismo desta geração, na transversal do tempo entre o passado e o futuro, buscando em formas antigas populares a renovação estilística da literatura espanhola. Olhando este manifesto conseguimos enxergar uma continuidade no Neruda pós-Espanha face aos Nerudas anteriores, um alargamento. Isto não significa que Espanha e a Guerra Civil, assim como sua estada como Cônsul em Madrid e Barcelona não tenham modificado sua poesia, o que defendemos é que houve um salto, uma síntese dialética que alargou seu campo de entendimento da poesia, sem que ele houvesse abandonado características e influências anteriores. O Neruda pós-Espanha não é um poeta “melhor”, é um poeta mais completo, mais variado, com uma maior visão social e melhor compreensão do mundo. Não conseguimos enxergar como uma visão mais aprofundada do mundo e dos problemas humanos possa rebaixar uma poesia ou reduzi-la. Na poesia sem pureza de Pablo cabe seu passado nos bosques em Temuco, sua dura passagem pelo Oriente, a amizade e as tertúlias em comum com os poetas da Geração de 1927 e o horror da Guerra Civil. Para se entender esta fase político engajada por Guerra Civil espanhola é necessário entender os móveis político-ideológicos, os fatores que o levarão a se 118 tornar um poeta militante, socialista e membro do Partido Comunista Chileno e do movimento comunista internacional. Usaremos o conceito gramsciano de bloco histórico (conjunto de fatores econômicos, políticos, ideológicos que acontecem agrupados em um determinado tempo histórico) para entender o conjunto de acontecimentos que levarão não só Neruda, mas um grande número de intelectuais, tanto na Europa, quanto na América, a se situarem no campo marxista entre as décadas de 1930 e 1950: Gabriel García Marques, Nancy Cunard, César Vallejo, Oscar Niemeyer, Jorge Amado, Dias Gomes, Pagu, Di Cavalcanti, Portinari, André Breton, Frida Khalo, Diego Rivera, Paul Róbson, Carlos Drummond de Andrade, Tarsila do Amaral, Cesar Vallejo, dentre outros. A Guerra Civil Espanhola quando, em que pesem todas as críticas à União Soviética, a República somente recebeu ajuda e apoio dos soviéticos, que solidarizou-se enviando ajuda militar, inclusive com assessores para treinar o exército republicano e as incríveis brigadas internacionais, que reuniram voluntários do mundo inteiro para lutar até a morte ao lado da República assassinada, levou a uma onda de simpatia pelo movimento comunista internacional. Esta onda de simpatia teve um lapso com o pacto de não agressão entre Alemanha e URSS entre 1939 e 1941, mas a onda pró movimento comunista foi retomada com a invasão da União Soviética, e a resistência russa, principalmente em Moscou, Leningrado e Stalingrado. Os comunistas não organizavam somente a resistência na Rússia, os principais movimentos guerrilheiro de resistência na Europa eram organizados pelos comunistas, os chamados partisanos. A conhecidíssima resistência na França ocupada (e não o governo francês no estrangeiro) era encabeçada pelos comunistas e pelo Partido Comunista Francês, na clandestinidade. Também os movimentos intelectuais de resistência ao nazifascismo eram quase todos encabeçados por intelectuais comunistas. Num bloco histórico como este, não seria de se estranhar que Neruda tomasse partido pelos comunistas, embora ele só se filie formalmente ao Partido Comunista do Chile em 1945. A simpatia e o trabalho junto com os intelectuais comunistas começa em Neruda ainda em 1936, na Espanha que resistia ao fascismo dos falangistas e de Franco: Aunque el carnet militante lo recibí muchos más tarde en Chile, cuando ingresé oficialmente al partido, creo haberme definido ante mí mismo como comunista durante la guerra de España. Muchas cosas contribuyeron a mi profunda convicción. Mi contradictorio compañero, el poeta nietzscheano León Felipe, era un 119 hombre encantador. Entre sus atractivos el mejor era un anárquico sentido de indisciplina y de burlona rebeldía. En plena guerra civil se adaptó fácilmente a llamativa propaganda de la FAI (Federación Anarquista Ibérica). Concurría frecuentemente a los frentes anarquistas, dónde exponía sus pensamientos y leía sus poemas iconoclastas. Estos reflejaban una ideología vagamente ácrata, anticlerical, con invocaciones y blasfemias. Sus palabras cautivaban a los grupos anárquicos que se multiplicaban pintorescamente en Madrid mientras la población acudía al frente de batalla, cada vez más cercano. Los anarquista habían pintado tranvías y autobuses, la mitad roja y la mitad amarilla. Con sus largas melenas y barbas, collares y pulseras de balas, protagonizaban el carnaval agónico de España. Vi a varios de ellos, calzando zapatos emblemáticos, la mitad de cuero rojo y la otra de coro negro, cuya confección debía haber costado muchísimo trabajo a los zapateros. Y no se crea que era una farándula inofensiva. Cada uno llevaba cuchillos, pistolones descomunales, rifles y carabinas. Por lo general se situaban a las puertas principales de los edificios, en grupos que fumaban e escupían, haciendo ostentación de su armamento. Su principal preocupación era cobrar las rentas a los aterrorizados inquilinos. O bien hacerlos renunciar voluntariamente a sus alhajas, anillos y relojes. Volvía León Filipe de una de sus conferencias anarquistas, ya entraba de noche, cuando nos encontramos en el café de la esquina de mi casa. El poeta llevaba una capa española que iba muy bien con usa barba nazarena. Al salir rozó, con los elegantes pliegos de su atuendo romántico, a uno de sus quisquillosos correligionarios. No sé si la apostura de antiguo hidalgo de León Filipe molestó a aquel “Héroe” de la retaguardia, pero lo cierto es que fuimos detenidos a los pocos pasos por un grupo de anarquistas, encabezados por el ofendido del café. Querían examinar nuestros papeles y, tras darles un vistazo, se llevaron al poeta leonés entre dos hombres armados. Mientras lo conducían hacia el fusilamiento próximo a mi casa, cuyos estampidos nocturnos muchas veces no me dejaban dormir, vi pasar dos milicianos armados que volvían del frente. Les expliqué quién era León Filipe, cuál era el agravio en que había incurrido y gracias a ellos pude obtener la liberación de mi amigo. Esta atmósfera de turbación ideológica y de destrucción gratuita me dio mucho que pensar. Supe las hazañas de un anarquista austríaco, viejo y miope, de largas melenas rubias, que se había especializado en dar “paseos”. Había formado una brigada que bautizó “Amanecer” porque actuaba a la salida del sol. — No ha sentido usted alguna vez dolor de cabeza? — le preguntaba a la víctima. — Sí, claro, alguna vez. — Pues yo le voy a dar un buen analgésico — le decía el anarquista austríaco, encañonándole la frente con su revólver y disparando un balazo. Mientras estas bandas pululaban por la noche ciega de Madrid, los comunistas rema la única fuerza organizada que creaba un ejército para enfrentarlo a los italianos, a los alemanes, a los moros y a los falangistas. Y eran, al mismo tiempo, la fuerza moral que mantenía la resistencia y la lucha anti-fascista. Sencillamente, había que elegir un camino. Eso fue lo que yo hice aquellos días y nunca he tenido que arrepentirme de una decisión tomada entre las tinieblas y las esperanzas de aquella época trágica (NERUDA, 2005, pp. 155). Assim, Neruda toma partido e faz opção pelos comunistas ainda na Guerra Civil Espanhola, embora só vá se declarar formalmente ligado ao partido em 1945. Era algo comum na época os artistas tomarem posição a favor dos 120 comunistas, já que estes eram os mais fervorosos propagandistas contra a guerra e o nazifascismo. Para os artistas, o nazifascismo significava guerra, morte, exílio: o Puntsch de Hitler na Áustria em 1934, a Guerra da Etiópia em 1935, a reocupação da Renânia e a Guerra Civil Espanhola em 1936. Os móveis desta decisão estão narrados acima, da citação retirada do livro “Confieso que he vivido”, em que ele narra como sua casa ficava no meio do caminho da frente de batalha e como ele foi testemunha dos trágicos acontecimentos, tomando partido a favor dos republicanos e militando por eles. Temos que retomar neste capítulo, a cadeia de acontecimentos, alguns já relatados no capítulo anterior, que abre a fase do Neruda engajado, militante socialista, com uma poesia manchada de sangue, do sangue dos seus companheiros mortos em batalha, ou simplesmente fuzilados pelos fascistas. A narrativa poética do desaparecimento de Federico García Lorca tem a confissão de próprio punho de uma virada intelectual e poética. O marco de mudança causado pelo trauma da perda e da guerra. O sacrifício de Lorca é um símbolo, cruel, absurdo, mas exatamente por isto um marco. O maior poeta daquela geração morto por ser “rojo y maricas”. Lorca não foi assassinado sequer por sua militância política, mas por suas obras e pensamentos. A velha Espanha tentando matar a primavera vermelha ao destruir as flores. O cordeiro branco sacrificado lembra a mitologia cristã, com os sacrifícios de Jesus e João Baptista, ou o assassinato de Sócrates por suas ideias. É uma vítima inocente que pagou por crimes que não cometeu para que simplesmente a Espanha nascente revolucionária e popular fosse sufocada. Como poeta autobiográfico, é fácil seguir as pegadas de mudança de Neruda, porque ele as deixas visíveis nas próprias obras, não só em Confieso que viví ou para Nascer Nasci, mas também nos seus poemas, como España en el Corazón, esta marcado o itinerário poético. Mesmo a morte de Lorca, acontecimento trágico, é pintado em prosa poética: Federico tuvo un preconocimiento de su muerte. Una vez que volvía de una gira teatral me llamó para contarme un suceso muy extraño. Con los artistas de “La Barraca” había llegado a un lejanísimo pueblo de Castilla y acamparon en los aledaños. Fatigado por las preocupaciones del viaje, Federico no dormía. Al amanecer se levantó y salió a vagar solo por los alrededores. Hacía frío, ese frío de cuchillo que Castilla tiene reservado al viajero, al intruso. La niebla se desprendía en masas blancas y todo lo convertía a una dimensión fantasmagórica. (…) un corderito pequeñito llegó a ramonear las yerbas entre las ruinas y su aparición era como un pequeño ángel de niebla que humanizaba de pronto la soledad del paraje. El poeta se sintió acompañado. De pronto una piara de cerdos entró también al recinto. Eran cuatro o cinco 121 bestias oscuras, cerdos negros semisalvajes con hambre cerril y pezuñas de piedra. Federico presenció entonces una escena de espanto. Los cerdos se echaron sobre el cordero y junto al horror del poeta lo despedazaron y lo devoraron. Este escena de y soledad hizo con que Federico ordenara a su teatro ambulante continuar inmediatamente el camino. Transido de horror todavía, tres meses antes de la guerra civil, Federico me contaba esta historia terrible. Yo vi después, con mayor y mayor claridad, que aquel suceso fue la representación anticipada de su muerte, la premonición de su increíble tragedia. Federico García Lorca no fue fusilado, fue asesinado. Naturalmente nadie podía pensar que lo matarían alguna vez. De todos los poetas de España era el más amado, el más querido, y el más semejante a un niño por su maravillosa alegría. Quién pudiera creer que hubiera sobre su tierra, y sobre su tiempo, monstruos capaces de un crimen tan inexplicable. La incidencia de aquel crimen fue para mi la más dolorosa de una larga lucha. Siempre fue España un campo de gladiadores, una tierra con mucha sangre. La plaza de toros, con su sacrificio y su elegancia cruel, repite, engalanando de farándula, el antiguo combate mortal entre la sombra y la luz (NERUDA, 2005, p. 168-170). A simbologia deste trecho é autoelucidativa. No caso, há até simbologia cristã, com Federico García Lorca sendo sacrificado e pagando com seu sangue como um cordeiro (como Jesus, cordeiro de Deus), pelos ímpios. Os porcos, que na bíblia são possuídos por demônios, demonstram, nesta constituição parabólica da conversação entre ambos os poetas, porcos negros (cor do fascismo), a opinião depreciativa que Neruda tinha dos golpistas. Lorca era sem dúvida nenhuma um poeta que tinha amigos dos dois lados da contenda, não era um militante socialista (embora fosse um simpatizante) e não havia tomado lado na guerra. Pensou que estaria seguro indo para sua terra natal e cometeu um terrível erro. Foi morto pelo que significava a sua poesia e seu teatro, uma denúncia permanente de uma Espanha Feudal e conservadora, o que é uma demonstração irrefutável de que a arte pode ter um engajamento, para além até do que pretendem seus autores. A reação de Neruda ao crime contra Lorca foi a de pegar os mesmos motivos que ensejaram a poesia de Lorca, ser a voz do oprimido e continuá-la, dando nova roupagem. O Neruda pós-Espanha é resultado, síntese dialética deste conjunto de influxos. O Neruda pós-Espanha, militante socialista e poeta engajado, começa na Espanha, durante o conflito, com a Terceira Residência na Terra e seu poema Espanha no Coração: España en el Corazón Explico algunas cosas Preguntaréis: Y dónde están las lilas? 122 Y la metafísica cubierta de amapolas? Y la lluvia que a menudo golpeaba sus palabras llenándolas de agujeros y pájaros? Os voy a contar todo lo que me pasa. Yo vivía en un barrio de Madrid, con campanas, con relojes, con árboles. Desde allí se veía el rostro seco de Castilla como un océano de cuero. Mi casa era llamada la casa de las flores, porque por todas partes estallaban geranios: era una bella casa con perros y chiquillos. Raúl, te acuerdas? Te acuerdas, Rafael? Federico, te acuerdas debajo de la tierra, te acuerdas de mi casa con balcones en donde la luz de junio ahogaba flores en tu boca? Hermano, hermano! Todo eran grandes voces, sal de mercaderías, . aglomeraciones de pan palpitante, mercados de mi barrio de Argüelles con su estatua como un tintero pálido entre las merluzas: el aceite llegaba a las cucharas, un profundo latido de pies y manos llenaba las calles, metros, litros, esencia aguda de la vida, pescados hacinados, contextura de techos con sol frío en el cual la flecha se fatiga, delirante marfil fino de las patatas, tomates repetidos hasta el mar. . Y una mañana todo estaba ardiendo, y una mañana las hogueras salían de la tierra devorando seres, y desde entonces fuego, pólvora desde entonces, y desde entonces sangre. Bandidos con aviones y con moros, bandidos con sortijas y duquesas, bandidos con frailes negros bendiciendo venían por el cielo a matar niños, y por las calles la sangre de los niños corría simplemente, como sangre de niños. Chacales que el chacal rechazarla, piedras que el cardo seco mordería escupiendo, víboras que las víboras odiaran! Frente a vosotros he visto la sangre de España levantarse 123 para ahogaros en una sola ola de orgullo y de cuchillos! Generales traidores: mirad mi casa muerta, mirad España rota: pero de cada casa muerta sale metal ardiendo en vez de flores, pero de cada hueco de España sale España, pero de cada niño muerto sale un fusil con ojos, pero de cada crimen nacen balas que os hallar n un día el sitio del corazón. Preguntaréis por qué su poesía no nos habla del sueño, de las hojas, de los grandes volcanes de su país natal? Venid a ver la sangre por las calles, venid a ver la sangre por las calles, venid a ver la sangre por las calles! (NERUDA, 2004, P. 76). O Neruda de Espanha no Coração já possui todas as características poéticas do Nerudas pós-Espanha. O niilista existencialista cedeu lugar ao militante engajado, que nos convida a ver o sangue nas ruas e faz da poesia crítica social. No poema nota-se que no início, Neruda é o poeta da feira, da alegria, dos peixes, dos amigos, do cheiro e dos sons da rua. O mesmo Neruda de sempre, que vem mesclar sangue a seus poemas, que clama por Federico debaixo da terra. Seus amigos estão debaixo da terra ou exilados, a guerra partiu sua poesia. A influência do amigo Lorca também se vê no ritmo e na musicalidade usados no fim do poema (venid a ver la sangre en la calle) através da repetição de versos, recurso usado muitas vezes por Lorca, inclusive no famosíssimo, Verde que te quiero verde. España en el corazón alude a outro recurso que é redundante em Neruda, a autobiografia, sua experiência grita no poema, como um antigo cantador da era homérica, Neruda como Hesíodo, canta e denuncia seu tempo, para que nunca seja esquecido o sangue dos espanhóis derramado pelo golpe fascista. O processo de transformação já está completo, a síntese de todos os elementos está completa. Neruda já tem todos os componentes que estarão doravante em suas criações. De tal importância é España en el Corazón, que assim o poeta testemunha como se deu seu livro: MI LIBRO SOBRE ESPAÑA Pasó el tiempo. La guerra comenzaba a perderse. Los poetas acompañaron al pueblo español en su lucha. Federico ya había sido asesinado en Granada. Miguel Hernández, de pastor de cabras se había transformado en verbo militante. Con uniforme de soldado recitaba sus versos en primera línea de fuego. Manuel Altolaguirre seguía con sus imprentas. Instaló una en pleno frente del Este, cerca de Gerona, en un viejo monasterio. Allí se imprimió de manera singular mi libro España en el corazón. Creo que pocos libros, en la historia extraña de tantos libros, han tenido tan curiosa 124 gestación y destino. Los soldados del frente aprendieron a parar los tipos de imprenta. Pero entonces faltó el papel. Encontraron un viejo molino, y allí decidieron fabricarlo. Extraña mezcla la que se elaboró, entre las bombas que caían, en medio de la batalla. De todo le echaban al molino, desde una bandera del enemigo hasta la túnica ensangrentada de un soldado moro. A pesar de los insólitos materiales, y de la total inexperiencia de los fabricantes, el papel quedó muy hermoso. Los pocos ejemplares que de ese libro se conservan, asombran por la tipografía y por los pliegos de misteriosa manufactura. Años después vi un ejemplar de esta edición en Washington, en la biblioteca del Congreso, colocado en una vitrina como uno de los libros más raros de nuestro tiempo. Apenas impreso y encuadernado mi libro, se precipitó la derrota de la República. Cientos de miles de hombres fugitivos repletaron las carreteras que salían de España. Era el éxodo de los españoles, el acontecimiento más doloroso en la historia de España. Con esas filas que marchaban al destierro iban los sobrevivientes del ejército del Este, entre ellos Manuel Altolaguirre y los soldados que hicieron el papel e imprimieron España en el corazón. Mi libro era el orgullo de esos hombres que habían trabajado mi poesía en un desafío a la muerte. Supe que muchos habían preferido acarrear sacos con los ejemplares impresos antes que sus propios alimentos y ropas. Con los sacos al hombro emprendieron la larga marcha hacia Francia. La inmensa columna que caminaba rumbo al destierro fue bombardeada cientos de veces. Cayeron muchos soldados y se desparramaron los libros en la carretera. Otros continuaron la inacabable huida. Más allá de la frontera trataron brutalmente a los españoles que llegaban al exilio. En una hoguera fueron inmolados los últimos ejemplares de aquel libro ardiente que nació y murió en plena batalla (NERUDA, 2005, 170-171). O viajante exilado e sem pátria no Oriente adota uma pátria na Espanha, como os espanhóis exilados no Winnipeg, que tiveram uma nova pátria no Chile graças a Neruda. O poeta também tem duas pátrias, a de nascimento e a de adoção poética e militante, a Espanha Republicana. A Espanha de um sonho jovem de constituição do socialismo com democracia, e de renovação artística e de suas estruturas. O poeta do caos e da incerteza, da fragilidade diante do tempo, se torna passageiro do tempo histórico e toma parte como soldado literário no conflito, é adotado pelos brigadistas e republicano como um deles, um soldado socialista do internacionalismo, cujos poemas viraram canções de guerra e de resistência. Neruda já é o camarada Pablo Neruda, que vai se dedicar, durante toda a Guerra Civil, a ajudar os republicanos e, após a guerra, cuidará de salvar muitos deles os exilando em segurança no Chile. Sem fazer deste trabalho um estudo de biografismo literário, não temos como não relatar que neste caso, neste momento, arte e vida se confundem em um só caudal, como no relato sobre seu trabalho na emigração de republicanos derrotados e acuados em campos de concentração na França: Pero la vida me sacó de inmediato de allí. Las noticias aterradoras de la emigración española llegaban a Chile. Más de 125 quinientos mil hombres y mujeres, combatientes y civiles, habían cruzado la frontera francesa. En Francia, el gobierno de Léon Blum, presionado por las fuerzas reaccionarias, los acumuló en campos de concentración, los repartió en fortalezas y prisiones, los mantuvo amontonados en las regiones africanas, junto al Sahara. El gobierno de Chile había cambiado. Los mismos avatares del pueblo español habían robustecido las fuerzas populares chilenas y ahora teníamos un gobierno progresista. Ese gobierno del Frente Popular de Chile decidió enviarme a Francia, a cumplir la más noble misión que he ejercido en mi vida: la de sacar españoles de sus prisiones y enviarlos a mi patria. Así podría mi poesía desparramarse como una luz radiante, venida desde América, entre esos montones de hombres cargados como nadie de sufrimiento y heroísmo. Así mi poesía llegaría a confundirse con la ayuda material de América que, al recibir a los españoles, pagaba una deuda inmemorial. Casi inválido, recién operado, enyesado en una pierna -tal eran mis condiciones físicas en aquel momento salí de mi retiro y me presenté al presidente de la república. Don Pedro Aguirre Cerda me recibió con afecto. -Sí, tráigame millares de españoles. Tenemos trabajo para todos. Tráigame pescadores; tráigame vascos, castellanos, extremeños. Y a los pocos días, aún enyesado, salí para Francia a buscar españoles para Chile. Tenía un cargo concreto. Era cónsul encargado de la inmigración española; así decía el nombramiento. Me presenté luciendo mis títulos a la embajada de Chile en París. Gobierno y situación política no eran los mismos en mi patria, pero la embajada en París no había cambiado. La posibilidad de enviar españoles a Chile enfurecía a los engomados diplomáticos. Me instalaron en un despacho cerca de la cocina, me hostilizaron en todas las formas hasta negarme el papel de escribir. Ya comenzaba a llegar a las puertas del edificio de la embajada la ola de los indeseables: combatientes heridos, juristas y escritores, profesionales que habían perdido sus clínicas, obreros de todas las especialidades. Como se abrían paso contra viento y marea hasta mi despacho, y como mi oficina estaba en el cuarto piso, idearon algo diabólico: suspendieron el funcionamiento del ascensor. Muchos de los españoles eran heridos de guerra y sobrevivientes del campo africano de concentración, y me desgarraba el corazón verlos subir penosamente hasta mi cuarto piso, mientras los feroces funcionarios se solazaban con mis dificultades (NERUDA, 2005, 191-192). Nesta citação, há uma explicação a mais para a opção marxista e comunista de Neruda, o nenhum apoio dado pelas “democracias ocidentais” à tragédia do povo espanhol. Estados Unidos, França e Inglaterra, preocupados com o avanço dos socialistas e comunistas na Espanha, simplesmente declararam neutralidade e não deram nenhum apoio à jovem república assassinada. Franco pode cruzar tranquilamente, embarcado em barcos de guerra italianos, o estreito de Gibraltar, sem que a marinha inglesa criasse qualquer dificuldade. Hitler pode bombardear livremente as cidades republicanas espanhola e o mundo ocidental sequer fingiu indignação com o feito. Esta série de atitudes empurraram mais e mais o poeta Neruda para sua opção comunista. Para compreendermos de forma integral a mudança de Neruda, vamos 126 utilizar os poemas do Canto General, sua obra mais militante. Na análise desta obra poderemos entender como o poeta autobiográfico (e é impossível não reconstituir neste caso a história de Neruda, dado o entendimento de seus próprios críticos de que ele transfere para a sua poesia os acontecimentos históricos de seu tempo) faz uma viragem e uma opção militante de artista engajado, como na classificação gramsciana de “intelectual orgânico”: A relação entre os intelectuais e o mundo da produção não é imediata, como é o caso nos grupos sociais fundamentais, mas é “mediatizada”, em diversos graus, por todo o contexto social, pelo conjunto das superestruturas, do qual os intelectuais são precisamente os “funcionários”. Poder-se-ia medir a “organicidade” dos diversos estratos intelectuais, sua mais ou menos estreita conexão com um grupo social fundamental, fixando uma gradação das funções e das superestruturas de baixo para cima (da base estrutural para cima). Por enquanto, pode-se fixar dois grandes “planos” superestruturais: o que pode ser chamado de “sociedade civil” (isto é; o conjunto de organismos chamados comumente de “privados”) e o da “sociedade política ou Estado”, que correspondem à função de “hegemonia” que o grupo dominante exerce em toda a. sociedade e àquela de domínio direto” ou de comando, que se expressa no Estado e no governo “jurídico”. Estas funções são precisamente organizativas e conectivas Os intelectuais são os “comissários” do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político, isto é: 1) do consenso “espontâneo” dado pelas grandes massas da população à orientação impressa pelo grupo fundamental dominante à vida social, consenso que nasce “historicamente” do prestígio (e, portanto, da confiança) que o grupo dominante obtém, por causa de sua posição e de sua .função no mundo da produção; 2) do aparato de coerção estatal que assegura “legalmente” a disciplina dos grupos que não “consentem”, nem ativa nem passivamente, mas que é constituído para toda a sociedade, na previsão dos momentos de crise no comando e na direção, nos quais fracassa o consenso espontâneo (…) (Gramsci, 1982, pp. 9). Para continuarmos nossa dissertação é fundamental sim fixar o conceito de intelectual orgânico, que no marxismo foi estabelecido por Gramsci. Marx já notara que o capitalismo fizera a separação entre trabalho manual e trabalho intelectual, separação aparente, já que já nas teses sobre Feuerbach Marx estabelece que todo trabalho manual é ao fim também pré-idealizado e racionalizado e, assim, de certa forma, intelectual também. O intelectual orgânico é aquele então engajado nas mudanças sociais de sua época, o que tenta influenciar com sua arte o destino social dos povos, o que tomar partido e não acredita em neutralidade política, nem que a arte seja um espaço técnico à parte e privativo. Assim como toda atividade intelectual é práxis social, acabando assim com dicotomias absolutas entre o pensar e o fazer, é a crítica ao materialismo vulgar “contemplativo” de Feuerbach: A principal insuficiência de todo o materialismo até aos nossos dias — o de Feuerbach incluído — é que as coisas [der Gegenstand], a realidade, o mundo sensível são tomados apenas sobre a forma do objecto [des Objekts] ou da contemplação [Anschauung]; mas não como atividade sensível 127 humana, práxis, não subjectivamente. Por isso aconteceu que o lado activo foi desenvolvido, em oposição ao materialismo, pelo idealismo — mas apenas abstractamente, pois que o idealismo naturalmente não conhece a actividade sensível, real, como tal. Feuerbach quer objectos [Objekte] sensíveis realmente distintos dos objectos do pensamento; mas não toma a própria actividade humana como atividade objectiva [gegenständliche Tätigkeit]. Ele considera, por isso, na Essência do Cristianismo, apenas a atitude teórica como a genuinamente humana, ao passo que a práxis é tomada e fixada apenas na sua forma de manifestação sórdida e judaica. Não compreende, por isso, o significado da actividade “revolucionária”, de crítica prática (MARX, ENGELS, 2007, pp. 27). Não há como prosseguir na análise sem saber o terreno em que estamos pisando, partindo destas duas premissas, da ideia de intelectual orgânico elaborada por Gramsci, e da ideia de práxis elaborada por Marx e Engels, união indissolúvel de teoria e prática, podemos entender a autoconcepção de Neruda de sua nova forma de fazer poesia, catalisada em Canto Geral, uma espécie de livro de travessia, Ilíada épica de luta latino-americana, de um poeta que como Homero, andava errante pelo mundo, longe de sua casa de Isla Negra, sua Ítaca. O poeta engajado orgânico tinha que pertencer a uma organização, o sujeito coletivo, o “moderno príncipe”, segundo a concepção marxista-gramsciana: O problema mais interessante é o que diz respeito, se considerado deste ponto de vista, ao partido politico moderno, às suas origens reais, aos seus desenvolvimentos, às suas formas. O que é que o partido politico se torna em relação ao problema dos intelectuais? É necessário fazer algumas distinções: 1) para alguns grupos sociais, o partido politico não é senão o modo próprio de elaborar sua categoria de intelectuais orgânicos (que se formam assim, e não podem deixar de se formar, dadas as características gerais e as condições de formação, de vida e de desenvolvimento do grupo social dada) diretamente no campo politico e filosófico, e já não mais no campo da técnica produtiva? 2) o partido politico, para todos os grupos, é precisamente o mecanismo que representa na sociedade civil a mesma função desempenhada pelo Estado, de um modo mais vasto e mais sintético, na sociedade política, ou seja, proporciona a fusão entre os intelectuais orgânicos de um dado grupo — o grupo dominante — e os intelectuais tradicionais; e esta função é desempenhada pelo partido precisamente em dependência de sua função fundamental, que é a de elaborar os próprios componentes, elementos de um grupo social nascido e desenvolvido como “econômico”, até transformá-los em intelectuais políticos qualificados, dirigentes, organizadores de todas as atividades e funções inerentes ao desenvolvimento orgânico de uma sociedade integral, civil e política. Aliás, pode-se dizer que, no seu âmbito, o partido politico desempenha sua função muito mais completa e organicamente do que, num âmbito mais vasto, o Estado desempenha a sua: um intelectual que passa a fazer parte do partido politico de um determinado grupo social confunde-se com os intelectuais orgânicos do próprio grupo, Liga-se estreitamente ao grupo, o que não ocorre através de participação na vida estatal senão medíocre — 9 No campo da técnica produtiva, formam-se os estratos que correspondem, pode-se dizer, aos “praças graduados” no exército, isto é, os operários qualificados e especializados na cidade e, de modo mais complexo, os parceiros e colonos no campo, pois o parceiro e o colono correspondem geralmente ao tipo artesão, que é o operário qualificado de uma economia medieval. 14 mente ou mesmo nunca. Aliás, ocorre que muitos intelectuais pensem ser o Estado: crença esta que, dado o imenso 128 número de componentes da categoria, tem por vetos notáveis consequências e leva a desagradáveis complicações para o grupo fundamental econômico que é realmente o Estado. Que todos os membros de um partido político devam. set considerados como intelectuais, eis uma afirmação que se pode prestar à ironia e à caricatura; contudo, se pensarmos bem, veremos que nada é . mais exato. Dever-se-á fazer uma distinção de graus; um partido poderá ter uma maior ou menor composição do grau mais alto ou do mais, baixo, mas não é isto que importa: importa, sim, a função, que é diretiva e organizativa, isto é, educativa, intelectual. Um comerciante não passa a fazer parte de um partido politico para poder comerciar, nem um industrial para produzir mais e com custos reduzidos, nem um camponês para aprender novos métodos de cultivar a terra, ainda que alguns aspectos destas exigências do comerciante, do industrial, do camponês possam ser satisfeitos no partido políticos Para estas finalidades, dentro de certos limites, existe o sindicato profissional, no qual a atividade econômico-corporativa do comerciante, do industrial, do camponês, encontra seu quadro mais adequado. No partido politico, os elementos de um grupo social-econômico superam este momento de seu desenvolvimento histórico e se tomam agentes de atividades gerais, de caráter nacional e internacional. Esta função do partido político apareceria com muito maior clareza mediante uma análise histórica concreta do modo pelo qual se desenvolveram as categorias orgânicas e as categorias tradicionais dos intelectuais, tanto no terreno das várias histórias nacionais quanto no do desenvolvimento dos vários grupos sociais mais importantes no quadro das diversas nações; notadamente daqueles grupos cuja atividade econômica foi sobretudo instrumental.(GRAMSCI, 1982, pp. 14). Mesmo que Neruda não tenha se autodenominado gramsciano, não há classificação ou explicação melhor para sua atividade neste momento. Poeta orgânico, de uma classe e de um partido, menestrel de uma causa a qual se dedicou e dedicou sua poesia até a morte. Mas nos cabe defender Neruda dos reducionismos críticos, Pablo Neruda não reduziu sua poesia ao “realismo socialista”. Realista fantástico antes de que nascera o movimento realista fantástico, surrealista antes do manifesto surrealista, panteísta, inovador, vanguardista de forma e conteúdo. O poeta vai manter todas estas características até o fim da sua vida, aliadas ao seu engajamento. Assim, sua adesão ao comunismo não torna sua poesia unilateral ou utilitarista, pelo contrário, ao encontro do sujo, do vulgar, do erótico, da impureza, do cotidiano, a lírica nerudiana vai manter todos os elementos anteriores: o sexo, o mar, os sinos, a uva, o vinho, as cebolas, tudo que é humano interessa a sua poesia impura, menos o patrulhamento ideológico. Canto Geral é a simbiose disto. Ele escreveu o livro entre 1945 e 1949, sobre a influência indelével da Segunda Grande Guerra mundial e da Guerra Civil Espanhola. Já não é mais um poeta jovem buscando um estilo, é um poeta maduro, Senador pelo Partido Comunista Chileno, de Recabarén. É um intelectual definido esteticamente e um militante político engajado. As condições em que finalizou o livro são extremas: Em fevereiro de 1948 a Suprema Corte Chilena, a pedido do 129 presidente Gabriel González Videla aprova sua cassação e ele tem sua prisão ordenada. A polícia o caça, está escondido em um apartamento em Vicuña Mackena com sua mulher Délia del Carril, a passos da Alameda principal de Santiago. Neruda não tem nenhuma comodidade, deixou a barba crescer para se disfarçar, ficará na clandestinidade total durante 13 meses. Neste tempo será escondido por camaradas do Partido Comunista Chileno, em dezenas de casas, entre Santiago e Valparaíso. Camaradas pobres: operários, pescadores, agricultores, contrabandistas. Ele consegue escapar em 1949, com a identidade com o nome de Antonio Ruiz Legarreta, com a profissão poética de ornitólogo, atravessa os Andes rumo ao sul, à Argentina, aventura que recordará no discurso do prêmio nobel. É o poeta que vivenciou sua própria poesia, sua Ilíada, o Canto Geral, narrará esta travessia épica. É um livro no qual personagem e autor, poeta e poesia se confundem. E é uma história de traição política, já que González Videla ganha a eleição e inicia seu governo em 1947 com o apoio dos comunistas, prometendo mudanças. O chefe da sua campanha por parte do Partido Comunista Chilena é o poeta Pablo Neruda, que foi eleito senador. Em outubro do mesmo ano há uma greve histórica dos mineiros de Chuquicamata, liderados pelo Partido Comunista Chileno. Os trabalhadores de todo o país entram em greve apoiando os mineiros. As lideranças comunistas são presas e mandados para o presídio de Pisagua. Neruda publica no diário Nacional de Caracas, Venezuela, um artigo intitulado Carta íntima para millones de obreros, no qual denúncia a política repressiva de Videla. Em 6 de dezembro de 1948, Neruda lê um discurso acusatório contra González Videla na tribuna do Senado. Logo em seguida, ele terá sua prisão decretada e terá que se esconder e viver fugitivo. O PC Chileno cuida da segurança de Neruda e de sua fuga, Victor Pey será encarregado pessoalmente da tarefa, a perseguição que sofreu o tornará um ícone nacional de resistência, já que, mesmo eleita pelas urnas, teve seu mandato cassado e sua prisão decretada. González Videla governa o Chile de forma ditatorial, colocando líderes sindicais na prisão e relegando o Partido Comunista à ilegalidade. É claro que um livro escrito nestas condições (de pósguerra, Guerra Fria, perseguição a intelectuais e trabalhadores) é, além de um livro de poesia, um documento histórico. Começaremos a análise do Canto Geral, que tem a dupla função de mostrar como Neruda receberá as influências espanholas vanguardistas de sua residência na Espanha durante a República e a Guerra Civil, e também de corolário 130 final da poesia nerudiana, com o poema Alturas de Macchu Picchu: II Del aire al aire, como una red vacía, iba yo entre las calles y la atmósfera, llegando y despidiendo, en el advenimiento del otoño la moneda extendida de las hojas, y entre la primavera y las espigas, lo que el más grande amor, como dentro de un guante que cae, nos entrega como una larga luna. (Días de fulgor vivo en la intemperie de los cuerpos: aceros convertidos al silencio del ácido: noches desdichadas hasta la última harina: estambres agredidos de la patria nupcial.) Alguien que me esperó entre los violines encontró un mundo como una torre enterrada hundiendo su espiral más abajo de todas las hojas de color de ronco azufre: más abajo, en el oro de la geología, como una espada envuelta en meteoros, hundí la mano turbulenta y dulce en lo más genital de lo terrestre. Puse la frente entre las olas profundas, descendí como gota entre la paz sulfúrica, y, como un ciego, regresé al jazmín de la gastada primavera humana (NERUDA, 2003, pp. 40-53). O mais interessante de Alturas de Macchu Picchu é que Neruda se refunda sem abandonar nenhum de seus elementos. Primeiro, e é bom relembrar Lorca, que fez o mesmo em Espanha, com os ciganos, ele vai escolher um povo oprimido e relegado na história, os derrotados, não os vitoriosos, os incas, os povos originários, para cantar sua saga. Assim, o poema é uma recriação do mito da origem, mas desta vez uma origem mítica que o liga aos povos originários e à resistência anticolonialista, ao mesmo tempo, os elementos fundantes da sua poesia estão todos ali, a natureza mítica, mística, com uma força panteística, a busca de uma infinitude que não pereça, desta vez realizada através da vida coletivo. O que não perece é a vida, a vida de Neruda, por certo perecerá, mas a vida de todos não perecerá, quando ele se faz um, se faz “povo”, através da luta, ele realiza de forma ideológica sua tentativa do homem infinito. E lá está a água, o bosque, as árvores, o mar, todos os signos que teimam em retornar sempre em sua poesia. Fundamental neste trabalho frisar isto, o militante poeta engajado, senador do Partido Comunista não restringe sua poesia, a luta politica, a busca de uma outra visão de povo e de nação, miscigenada, dos derrotados, dos humilhados, dos explorados são novos elementos de sua poesia, amalgamado aos demais, como na visão de pátria de 131 Neruda ficará a amálgama daqueles que não tem pátria, dos deserdados, do camponês explorado, do mineiro e sua vida infernal embaixo da terra, do operário sindicalizado e filiado ao Partido Comunista que luta por emancipação. A poesia continua impura e variada: (…)Juan Cortapiedras, hijo de Wiracocha, Juan Comefrío, hijo de estrella verde, Juan Piesdescalzos, nieto de la turquesa, sube a nacer conmigo, hermano. XII Sube a nacer conmigo, hermano. Dame la mano desde la profunda zona de tu dolor diseminado. No volverás del fondo de las rocas. No volverás del tiempo subterráneo. No volverá tu voz endurecida. No volverán tus ojos taladrados. Mírame desde el fondo de la tierra, labrador, tejedor, pastor callado: domador de guanacos tutelares: albañil del andamio desafiado: aguador de las lágrimas andinas: joyero de los dedos machacados: agricultor temblando en la semilla: alfarero en tu greda derramado: traed a la copa de esta nueva vida vuestros viejos dolores enterrados. Mostradme vuestra sangre y vuestro surco, decidme: aquí fui castigado, porque la joya no brilló o la tierra no entregó a tiempo la piedra o el grano: señaladme la piedra en que caísteis y la madera en que os crucificaron, encendedme los viejos pedernales, las viejas lámparas, los látigos pegados a través de los siglos en las llagas y las hachas de brillo ensangrentado. Yo vengo a hablar por vuestra boca muerta (NERUDA, 2003, pp. 40-53). Neruda, intelectual orgânico e poeta do povo, agora dá voz aos que não tem voz, rosto aos que não tem rosto. Por sua poesia falarão o mineiro, o operário, a mulher pobre, a camponesa, os sem-terra, os povos originários. Poesia que vira também narração de seu tempo, tempo de genocídios, tempo de ditaduras, pobreza extrema na América Latina, massacres, violações. Neruda não tem medo de todas as impurezas, tudo que é humano lhe interessa, ele alarga a fronteira temática da poesia a “sujando” de povo: A través de la tierra juntad todos los silenciosos labios derramados y desde el fondo habladme toda esta larga noche como si yo estuviera con vosotros anclado, contadme todo, cadena a cadena, 132 eslabón a eslabón, y paso a paso, afilad los cuchillos que guardasteis, ponedlos en mi pecho y en mi mano, como un río de rayos amarillos, como un río de tigres enterrados, y dejadme llorar, horas, días, años, edades ciegas, siglos estelares. Dadme el silencio, el agua, la esperanza. Dadme la lucha, el hierro, los volcanes. Apegadme los cuerpos como imanes. Acudid a mis venas y a mi boca. Hablad por mis palabras y mi sangre (NERUDA, 2003, pp. 40-53). É uma refundação, da poesia e do homem Pablo Neruda. Convoca, chama os trabalhadores pelos seus nomes de João, de homem comum. E os chama para a luta, é uma apologia do homem comum, mas não do homem pacífico. Pede que cada um afiem suas facas e a ponham na mão do poeta, aí poesia e dialética marxista se confundem, já que para Marx, “a arma da crítica tem de virar crítica das armas”. O poeta, intelectual orgânico, coloca sua poesia a serviço dos pobres e deserdados. Assim, ele mescla suas influências estilísticas com suas influências políticas e clama por Ayllú, a pátria grande, por isto canta todos os libertadores e convoca todos os latino-americanos: AMÉRICA, no invoco tu nombre en vano. Cuando sujeto al corazón la espada, cuando aguanto en el alma la gotera, cuando por las ventanas un nuevo día tuyo me penetra, soy y estoy en la luz que me produce, vivo en la sombra que me determina, duermo y despierto en tu esencial aurora: dulce como las uvas, y terrible, conductor del azúcar y el castigo, empapado en esperma de tu especie, amamantado en sangre de tu herencia. (Neruda, 2003, pp. 40-53) Mesmo num poema político por excelência, a poética nerudiana vem empapada de suas influências juvenis, elas permanecem, retornam. O erótico e o sexual, na evocação do esperma como sua semente e origem, sangue, uvas, luz, a sinestesia dos jogos de palavras e símbolos do qual não abre mão para falar de forma mais direta, e que namora com o surrealismo em suas construções oníricas e com o realismo fantástico. Insistimos em traçar esta linha de permanência, de um poeta que mantém todos os seus fantasmas, seus Gôngoras, Quevedos, Bécquers, Whitman, Albertís, Lorcas, mesclados com o bosque chileno e com a fragrância do 133 Oriente e dos Andes. Um poeta em fuga, escapando para o exílio, mas retratando pictoricamente tudo que vê, todas as características humanas, todo o drama e todos os sentimentos no caminho a sua volta: VI PAZ para los crepúsculos que vienen, paz para el puente, paz para el vino, paz para las letras que me buscan y que en mi sangre suben enredando el viejo canto con tierra y amores, paz para la ciudad en la mañana cuando despierta el pan, paz para el río Mississippi, río de las raíces: paz para la camisa de mi hermano, paz en el libro como un sello de aire, paz para el gran koljós de Kíev, paz para las cenizas de estos muertos y de estos otros muertos, paz para el hierro negro de Brooklyn, paz para el cartero de casa en casa como el día, paz para el coreógrafo que grita con un embudo a las enredaderas, paz para mi mano derecha, que sólo quiere escribir Rosario: paz para el boliviano secreto como una piedra de estaño, paz para que tú te cases, paz para todos los aserraderos de Bío Bío, paz para el corazón desgarrado de España guerrillera: paz para el pequeño Museo de Wyoming en donde lo más dulce es una almohada con un corazón bordado, paz para el panadero y sus amores y paz para la harina: paz para todo el trigo que debe nacer, para todo el amor que buscará follaje, paz para todos los que viven: paz para todas las tierras y las aguas (NERUDA, 2002, pp. 306). Exilado da sua pátria, o poeta não pede vingança, pede paz. Embora clame pela libertação dos povos, do fim das tiranias e dos tiranos, a poesia segue clara, pedindo a paz, a divisão do pão. Sua pátria é sempre o retorno às origens, a volta ao bosque, ele parte, sabendo que seu destino é voltar e morrer mil vezes em sua pátria. Homem ligado à terra araucana, ao bosque chileno, a poesia dele canta as origens e a identidade, é a inauguração de uma nova pátria imaginária, mais solidária, fraterna, igual e livre: Yo aquí me despido, vuelvo a mi casa, en mis sueños, vuelvo a la Patagonia en donde el viento golpea los establos y salpica hielo el Océano. 134 Soy nada más que un poeta: os amo a todos, ando errante por el mundo que amo: en mi patria encarcelan mineros y los soldados mandan a los jueces. Pero yo amo hasta las raíces de mi pequeño país frío. Si tuviera que morir mil veces allí quiero morir: si tuviera que nacer mil veces allí quiero nacer, cerca de la araucaria salvaje, del vendaval del viento sur, de las campanas recién compradas. Que nadie piense en mí. Pensemos en toda la tierra, golpeando con amor en la mesa. No quiero que vuelva la sangre a empapar el pan, los frijoles, la música: quiero que venga conmigo el minero, la niña, el abogado, el marinero, el fabricante de muñecas, que entremos al cine y salgamos a beber el vino más rojo. Yo no vengo a resolver nada. Yo vine aquí para cantar y para que cantes conmigo (NERUDA, 2002, pp. 306). Um poeta que conclama os trabalhadores a lutar, mas para lutar para sua emancipação para que os trabalhadores finalmente tenham paz. No meio da Guerra Fria, ele deseja a paz para o operário do Kolkoz de Kiev e para o negro do Brooklyn, para os trabalhadores de todo o mundo, sejam soviéticos ou estadunidenses. Paz para o Chile e para sua Espanha derrotada na Guerra Civil que ele nunca esqueceu. Ele toma o partido dos humilhados e decide dar voz aos que não tem voz. E sua poesia, além de documento histórico não perde o estilo, a cadência musicada interna, a versatilidade, a beleza pictórica. O Neruda que denuncia que em sua pátria se prendem os mineiros e os soldados mandam na justiça, fala disto sem perder as qualidades literárias e poéticas, sem rebaixar seu estilo para se fazer entender, e ainda assim se torna um ícone de resistência e de luta dos trabalhadores. Assim, Neruda, traduz as lutas e aspirações de seu tempo, dormindo na cama dura de seus companheiros, dedica seu livro ao Partido em que se fez povo, massa, homem coletivo: A mi partido Me has dado la fraternidad hacia el que no conozco. Me has agregado la fuerza de todos los que viven. Me has vuelto a dar la patria como en un nacimiento. Me has dado la libertad que no tiene el solitario. Me enseñaste a encender la bondad, como el fuego. 135 Me diste la rectitud que necesita el árbol. Me enseñaste a ver la unidad y la diferencia de los hombres. Me mostraste cómo el dolor de un ser ha muerto en la victoria de todos. Me enseñaste a dormir en las camas duras de mis hermanos. Me hiciste construir sobre la realidad como sobre una roca. Me hiciste adversario del malvado y muro del frenético. Me has hecho ver la claridad del mundo y la posibilidad de la alegría. Me has hecho indestructible porque contigo no termino en mí mismo (NERUDA, 2002, pp. 441). Assim, o Canto Geral marca de forma definitiva a passagem para a poesia madura de Pablo Neruda. Todavia, ao acabar este capítulo, fazemos questão de frisar, que Neruda não abriu mão de nenhuma de suas características anteriores, o militante comunista e marxista, em sua poesia, continuou heterodoxo. Há mais Gôngora, Quevedo, T. S. Eliot, Baudelaire, Mallarmé, Bécquer, Alberti, Miguel Ángel, Lorca, Whitman, Joyce na poesia de Neruda do que Marx, Engels, Lênin e Gramsci. Afora as citações a Stálin, que tantos dissabores custaram a Neruda, depois da Primavera de Praga. Seus livros traçam a historiografia da classe trabalhadora de seu tempo, seus sofrimentos, lutas, aspirações, muito mais do que um manual do que um simples folhetim de apologia ao Partido Comunista. Por isto, em que pese toda a crítica contrária ao poeta, sua sobrevivência, superveniência, importância e permanência, a ponto de ser o poeta latino-americano mais citado em Espanha (mais que Rubén Darío!) e pelos poetas muçulmanos, que veem nele um companheiro de luta pela emancipação. Este vate autobiográfico, com sua poesia impura e manchada de sangue é um pintor e um menestrel latino-americano do nosso breve século XX. 136 8. CONCLUSÃO Neste projeto pretenderemos expor, de forma cronológica, as várias fases do poeta Pablo Neruda, com a linha de análise, de que há um salto qualitativo dialético de sua poesia inicial até sua passagem à Espanha. Para isto usamos vários críticos, e inserimos uma novação na análise de Neruda, que é utilizar os conceitos de Octavio Paz, de seu livro, Os filhos do barro, para analisar as soluções estéticas e temáticas pretendidas por Neruda. O que fazermos de novo, é mostrar que a adesão socialista, marxista e comunista de Neruda, não é só um dado biográfico, mas é uma elegante solução poética para o problema da agonia do “desarraigo” (com a tradução não literal de desenraizamento em português) causada pela modernidade destruidora. Neruda assim, insere-se numa tradição de poetas modernos e vanguardistas, que se inicia desde o mito da Morte de Deus, iniciada na era romântica, e que vai ter suas versões na náusea sartriana, na peste de Camus, no homem destroçado pelos mecanismos do Estado em Kafka, nos poetas marginais franceses. Como partimos da afirmação de que a obra de um escritor é influenciada por sua vida, por suas experiências, sonhos, desejos, alegrias, frustrações, tramas, realizações, fizemos a correlação entre as diversas experiências tidas por Neruda na vida e como elas se refletiram na sua obra. Mas não só isto, pois senão cairíamos num biografismo estreito. Não é apenas um dado biográfico, é um tema e um estilo poético no qual Neruda dialoga permanentemente com toda uma vanguarda, e sua saída para uma utopia marxista também é uma saída estética para derrotar a inevitabilidade e a inexorabilidade do tempo cronológico. Mostramos as influências poéticas, as escolas, os movimentos de vanguarda da época que vão influenciar a forma e a estética de Neruda. Neruda anterior a Espanha já é um poeta em transformação. Do jovem nascido no interior do Chile, estudante tímido que escrevia poesia pós-romântica ao funcionário consular que vive um exilo voluntário e é tragado no turbilhão da vida do Oriente, já há uma grande transformação estética. Influenciado pela leitura dos poetas de vanguarda, de Mallarmé e Baudelaire, a T. S. Eliot, Whitman, Joyce, Rubén Darío, ele vai desenvolver uma poesia cuja temática e estética é impressionantemente inovadora. Não tocado por orientalismos místicos, Neruda tratará o Oriente como um ambiente hostil, e reagirá a ele refugiando-se na poesia, uma poesia que não tratará dos altos temas, mas que se ocupará de absolutamente 137 tudo: o tédio e o horror da vida burocrática, a pobreza e o fanatismo místico, o sexo sem nenhuma sublimação subjetiva, meramente corpóreo e por vezes escatológico, a natureza sufocante e aterradora. Na forma, com o assilabismo, com os versos livres de ritmo interno, chegando ao poema prosa, ele será também um prenunciador de vanguardas tanto para a Espanha quando para a América Latina, com poemas que tem traços de realismo fantástico e surrealismo, mesmo antes que surjam estes movimentos. Neruda, como Lorca, é um poeta acima de escolas, sorveu de todas elas, não pode ser classificado rigorosamente em nenhuma. Se a poesia foi fuga introjetada, esta fuga não é buscada numa transcendência, as pequenas vivências do cotidiano, até com o escatológico, do fumar um cachimbo ao gozo sexual, tudo é uma forma em cada dia de se dizer, estou vivo, existo, frente ao caos. A poesia é catarse deste tempo desconexo, de experiências desconexas. Pictórico e onírico, Neruda vivencia um realismo fantástico e por vezes quase fantasmagórico em sua poesia, a busca de uma reintegralização do ser, de uma essência perdida e que paradoxalmente ele não encontra em lugar nenhum. É uma poesia de vanguarda, experimental, que desconstrói a realidade, e desconstrói também a métrica, a rima, muitas vezes chegando à prosa poética. A fase oriental preparar o terreno, faz a projeção do novo edifício da nova poesia. Nossa tese central, todavia, é a de que há uma experiência é central na vida do Poeta. Esta experiência é sua estada na Espanha. A segunda residência é escrita uma parte no Oriente, outra na Espanha. A Ode a Federico García Lorca, poema que inaugura a fase em que uma gota de sangue caiu na poesia de Neruda e a manchou de vermelho, é poema ainda da Segunda Residência. Neruda se estabelece na Espanha e é Ligado a ela não só pelas amizades; da qual García Lorca fora preponderante, já que Neruda o considerava irmão de coração; mas pela arte. Neruda participará, como se espanhol fora, nos destinos literários da Geração de 1927, chegando mesmo, ele que era chileno, a dirigir uma das mais importantes publicações modernistas da Espanha, junto com Rafael Alberti, a revista Caballo Verde, na qual ele escreve um manifesto, Para uma poesia impura, que consideremos síntese da Geração de 1927. Aliás, também defendemos neste trabalho de que Neruda devia ser considerado partícipe desta Geração Espanhola, e só não o é, por ter nascido no Chile, seu manifesto, por exemplo, é traço distintivo entre os poetas que agora utilizavam-se de todos os temas do cotidiano e das manifestações populares da jovem República, contra a poesia do “tema nobre”, 138 representada por Ramón José Jimenez. Ele é partícipe dos experimentalismos da Geração de 1927, e a partir daí começa a beber dos influxos que serão constantes na sua poesia dita engajada, como solução teleológica final para o agon da sua época, o breve século XX, século de duas grandes guerras e de 70 milhões de mortos só nestas duas guerras. Século da Revolução Socialista Russa, da Guerra Civil Espanhola, do Holocausto, da experiência Socialista Democrática de Allende e do Golpe Militar de Pinochet, que assassinará o presidente amigo íntimo de Neruda. Assim, a solução socialista revolucionário, do homem novo, é também um retorno, na tensão permanente dos modernismos e da vanguarda da tradição das rupturas, a utopia socialista como solução anticíclica do tempo, ainda que na realidade, boa parte da vanguarda literária russa não tenha resistido e tenha sido devorada pela própria revolução bolchevique, vejamos as contradições entre poesia e utopia do breve século XX, para entendermos melhor a nossa tese de que a utopia socialista também é uma solução poética para Neruda: A condenação da poesia pelo espírito moderno evoca imediatamente outras condenações. Com a mesma ferocidade com ue a igreja castigou os místicos, iluminados e quietistas, o Estado Revolucionário perseguiu os poetas. Se a poesia é a religião secreta da era moderna, a política é sua religião pública. Uma religião sangrenta e mascarada. O processo da poesia foi um processo religioso e a revolução condenou a poesia como uma heresia. O equívoco é amplo: se na poesia se manifesta uma visão religiosa pessoal do mundo e do homem, na política revolucionária reaparece uma dupla aspiração religiosa: mudar a natureza humana e instaurar uma igreja universal baseada também num dogma também universal. Num caso analogia e ironia; no outro, transposição da dogmática e da escatologia à esfera da história e da sociedade (PAZ, 2013, p.113). Assim, a passagem de Neruda para as fileiras revolucionárias também é uma passagem para uma solução estética. Vista ou não como ilusão, é uma forma de escape ao tempo cíclico e um retorno à bondade da era de ouro e a igualdade pré-capitalista. Nossa tarefa aqui não é de fazer análise marxista se Revolução e o socialismo são possíveis ou não, mas de analisar a Revolução como imagem estética, imagem que ao mesmo tempo que é destruidora e revolucionária, também é um retorno imagético à era de ouro da abundância, bondade, solidariedade e igualdade. Neruda viverá todas estas contradições e sobreviverá política e poeticamente até as denúncias contra o stalinismo desferidas em 1956, por uma razão bem concreto, sua poesia não era só panfleto, estava prenhe de imagem e forma poética e seus temas eram largos e amplos para que valha à pena ainda hoje ler todos os seus poemas. Em Macchu Picchu, ao lado da apologia a Stálin, há toda 139 uma série de vozes que só tomam forma pelas mãos de Neruda, que mais parece um escultor primitivista, pintando a camponeses operário, o mineiro, o militante comunista assassinado. Militante de duas causas perdidas, a República Espanhola e a experiência Socialista Chilena, seus poemas ganham valor de documento trágico. Ao nos filiarmos a ideia de Octavio Paz de que a Revolução é um retorno típico da modernidade, uma forma de escapar ao devoramento do tempo cíclico, abrimos a rota para estabelecer as ligações da poesia de Neruda com todas as grandes poesias inovadoras, desde Baudelaire a Lorca. Neruda é um poeta no qual há permanências, o lirismo do amor, seja sensual, seja idealizado, é uma constante em toda sua obra. Outra constante permanente é a exaltação quase mítica e mística da natureza, um certo panteísmo sem divindade, que também é autobiográfico e um eterno retorno à sua infância em Temuco, na verdade, dois retornos ambivalentes, o retorno permanente ao bosque, a infância fundadora do eu (id) da identidade, e também o retorno revolucionário, fundador de uma pátria mística coletiva que vença o tempo e se torne eterna porque a imortalidade não é individual, mas é coletiva, como dizia don Pablo, “Me has hecho ver la claridad del mundo y la posibilidad de la alegría. Me has hecho indestructible porque contigo no termino en mí mismo”. Assim a tentativa do homem infinito se dá em soluções coletivas, povo, Partido Comunista, proletariado. Neruda foi, no modo de dizer da vanguarda modernista brasileira, antropofágico3, sorvendo o melhor da experiência estética da poesia latinoamericana (José Martí, Gabriela Mistral, Rubén Darío) com a poesia mais revolucionária (tanto na forma, quanto no conteúdo) da Europa e dos Estados Unidos (Baudelaire, Mallarmé, Joyce, T. S. Eliot, Walt Whitman; assim como dos espanhóis da Geração de 1927, principalmente Federico García Lorca). Esta mescla o fará predecessor de vanguardas na América Latina e na Europa, partícipe direto da Geração de 1927, irmão de letras e de ideias de Federico. Dentre estes escritores revolucionários espanhóis, o mais significativo e influente era, exatamente, o melhor amigo de Neruda, seu irmão de coração: Federico García Lorca. Desta amizade, na vida real e literária, surgirá uma influência 3 O manifesto antropofágico é uma das manifestações da vanguarda de 1922, feito por Oswald de Andrade e que defendia que devíamos consumir todas as boas influências estrangeiras, como faziam os caraíbas com os bravos derrotados em guerra, e condicioná-las a uma estética própria local. 140 mútua. De Lorca, Neruda tomará a poética popular e de cunho social (ainda que a obra de García Lorca não tivesse cunho socialista), mas também tomará o verso livre e branco, a musicalidade, o elogio às heróis anônimos do povo. Lorca, como mostramos nesta obra, terá a influência do ritmo interno da poesia muçulmana, o fúnebre e a musicalidade da poesia do Cante Jondo cigano. Este louvor ao que é apátrida, do que é marginalizado, será uma temática comum. Neruda escreverá uma obra dedicada a um bandoleiro, La Barcarola, Joaquín Murietta, um marginalizado na história do Chile. Os ciganos de Lorca, serão os mineiros e os operários para Neruda. Em lugar dos apátridas de Andaluzia, os apátridas exilados de sua própria terra, o proletariado. Como diz Karl Marx no Manifesto do Partido Comunista, o proletariado não tem pátria e é internacional. Este internacionalista, colocando o homem sofrido e marginalizado acima de sua origem e crença, será então comum a ambos. Também será comum em ambos o experimentalismo nos versos, Neruda chegará, como Federico García Lorca a um poema sem rigidez em sua construção silábica e marcado pelo ritmo interno do poema (outra influência árabe, no caso de Lorca), muitas vezes namorando com o poema prosa. Também será terreno fértil comum a ambos o onírico, o pictórico. Se Lorca desenhava a terra de Andaluzia, seus personagens e suas características em seus poemas, Neruda vai pincelar o bosque chileno, o mar, os caracóis, os portos e todas as características marinhas. Uma poesia pictórica e com elementos oníricos em ambos. Em Neruda a influência da matéria do sonho é anterior à Espanha, em sua experiência oriental, a passagem e o convívio com a Geração de 1927 só aguçará esta característica. Como uma permanente refundação, a tentativa do homem infinito, a ideia de vencer o isolamento, a solidão, o caos, a angústia com a morte. Nesta busca, a ideia engajada da política, do Partido Comunista como escola de humanidade, da luta socialista e internacionalista, é uma forma de reificar e reintegralizar as experiências e buscar um porto na sua jornada de viajante sem destino. Este viajante, levará sua influência, de seus poemas, viagens e liderança para a Geração de 1927, e como exilado de duas pátrias, expulso pela Guerra Civil, mesmo não sendo espanhol, levará de volta a guitarra de Andaluzia de Lorca para o Chile, e ela continuará a tocar depois da morte de Lorca, já que seus versos influenciarão toda a sua geração. Neruda, chileno de nascimento, é espanhol, todavia, em grande parte de sua poética. Lorca não influenciará somente a Neruda; 141 a Geração de 1927 da Espanha, com certeza ecoará no florescimento da nova poesia latino-americana, não por coincidência, que acontecerá quase concomitantemente a esta época, já que Neruda é parte desta renovação na América Latina, é um marco na poesia Latino-americana. Contraditoriamente, ao ser marco na poesia chilena e latino-americana, Neruda mescla a influência de duas pátrias e dois continentes, de tal maneira, que é impossível saber de onde e como surgiu cada parte que compõe sua temática e forma. Explicitamos que o grande marco na vida do poeta, a estada na Espanha, a Geração de 1927, a poesia e a amizade de Lorca, a Guerra Civil, são catalisadores de uma mudança que desembocará num Neruda Múltiplo. O Neruda dos Vinte poemas não é um Neruda menor ou pior do que o Neruda de A Uva e o Vento, é somente um poeta mais completo, um poeta que agregou à face lírica uma outra face, social e política. Não há como deixar de se emocionar com a beleza estética na forma e no conteúdo dos versos dos Vinte Poemas, ainda que neles não fique caracterizada nenhuma militância social. Mas a face lírica, panteísta, interiorizada de Neruda não sumirá, somente trabalhará em conjunto, em textos como os do Canto Geral, já que o tempo inteiro Neruda cantará a natureza com riqueza de adjetivos e com uma profundidade metafísica, mas destes traços, já presentes no Neruda jovem, agregam-se o experimentalismo, a liberdade na forma e no conteúdo: o cotidiano, a crítica social, a guerra, a luta política, a revolução; ao lado do amor, das uvas, da cebola, do vinho. O lirismo juvenil não desvanece, mas junto a ele, surge o cantor do sexo muitas vezes sem máscaras e sem idealização, o crítico social, o humanista em busca de um sentido para a existência, o exilado de duas pátrias, testemunha visual de duas guerras e tomando lado em cada um conflito. Ao contrário da crítica mais feroz a Neruda, não acreditamos que a adesão socialista de Neruda tenha transformado sua poesia num pastiche, num folhetim. Neruda não ficou unilateral, continuou múltiplo, e se foi censurado por sua adesão e engajamento, do outro lado foi censurado por poetas cubanos e comunistas de várias partes do mundo, por não ter restrito sua estética ao “realismo socialista”. Insistimos que a forma panteísta que é uma característica nerudiana que o liga a tradição de vanguarda desde o romantismo, já que as formas míticas que não são da religião oficial católica e ou oriundas da reforma protestante, também sempre foram uma forma de ruptura e não adesão. O leitmotiv, o moto perpétuo de 142 todas as vanguardas desde os românticos, a “tradição da ruptura”, uma dicotomia, Ouroboros, a serpente, o dragão que devora a si mesmo pela cauda. Assim, a utopia em Neruda, assim como em Brecht, em Maiakovski, são formas poéticas de fuga do caos do tempo devorador, soluções finalistas teleológicas, como as do sistema hegeliano, traduzido em Marx, como Revolução Comunista: As origens da nova religião política, uma religião que ignora a si mesma remontam ao século XVII. David Hume foi o primeiro a observar isto, ele afirmou que a filosofia de seus contemporâneos, especialmente a crítica ao cristianismo, já continha os germes de uma outra religião: atribuir uma ordem ao universo e descobrir uma vontade e uma finalidade era incorrer de novo na ilusão religiosa. Mas Hume não testemunhou, embora tenha previsto, a queda da filosofia na política e sua encarnação, no sentido religioso da palavra, nas revoluções. A epifania do universalismo filosófico logo adotou a forma dogmática e sangrenta do jacobinismo e seu culto à deusa Razão. Não é uma mera coincidência que o dogmatismo e o sectarismo tenham acompanhado os movimentos revolucionários dos séculos XIX e XX; Tao pouco que, uma vez no poder estes movimentos se transformassem em inquisições que realizavam periodicamente cerimônias dos sacrifícios astecas e dos autos de fé (PAZ, 2013, 114). Neruda viverá como militante todas estas contradições, pois será contemporâneo das revisões do stalinismo. Entretanto, como nunca foi um poeta oficial, e tem sua biografia ligada a dois movimentos tragicamente derrotados, a República Espanhola e o Governo de Allende no Chile, não chega a vivenciar profundamente a contradição inquisitorial da censura e expulsão dos escritores na União Soviética. Poeta latino-americano, é mais ligado a uma tradição de sofrer exílio, perseguição, ameaça de prisão, censura, já que a América Latina é laboratório capitalista de ditaduras e tortura durante a guerra fria, assim poesia revolucionária na América Latina é sinônimo de ruptura e luta do lado dos explorados e perseguidos. A revolução para Neruda é a pátria dos que não têm pátria: O tema crítico do tempo original se transforma no tema revolucionário da sociedade futura. Desde o final do século XVIII, e sobretudo desde a Revolução Francesa, a filosofia política revolucionária confisca um por um os conceitos, valores e imagens que tradicionalmente pertenciam às religiões. Esse processo de apropriação se torna mais agudo no século XX, o século das revoluções políticas, assim como os séculos XVI e XVII foram das guerras de religião. Vivemos há duzentos anos, primeiros os europeus, e depois todos os homens, à espera de um acontecimento que possui para nós a gravidade e a fascinação terrível que a segunda vinda de Cristo tinha para os primeiros cristãos: a Revolução. Esse acontecimento visto com esperança por uns e com choro por outros, tem um duplo significado, como foi dito: é a instauração de uma sociedade nova e é restauração da sociedade original, antes da propriedade privada, do Estado, da escrita, da ideia de Deus, da escravidão e da opressão das mulheres. Expressão da razão crítica, a Revolução se situa no tempo histórico: é a troca do presente iníquo pelo futuro justo e livre. Essa troca é uma volta: a volta ao tempo do início, à inocência original. Assim, a 143 Revolução é uma ideia e uma imagem, um conceito que participa das propriedades do mito e um mito que se funda na autorrazão. (PAZ, 2013, 176-177). Neruda, poeta personagem de seus próprios poemas, é o Quixote revolucionário de seus versos. Seus moinhos são reais, talvez a utopia seja ilusória, o caminho que se faz ao caminhar. O fundamental é mostrar que a ideia revolucionária, esta é também imagem poética, inserida na tradição ocidental como paradoxo, futuro e eterno retorno, busca do tempo perdido e da libertação da humanidade. E todas estas soluções teóricas, sendo reais ou não, fundadas no mundo real ou não, estarão nos poemas de Neruda. Para a análise literária o que importa não é a coisa em si, mas seu signo, como ele é traduzido e transformado em arte, sua techné, e nisto don Pablo é perito, escultor de sonhos, pintor de mundos, da analogia e do ritmo do mar e dos sinos, sua poesia da ampla voz a todas as contradições literárias e sociais de sua época. Por isto defendemos que Neruda é múltiplo, viajante do tempo e do espaço, poeta autobiográfico, e como sua biografia se confunde com a do “breve século XX”, de uma história deveras interessante, uma epopeia, que reúne em seus versos, a visão ocidental de um oriente desbravado pelo capitalismo, as tragédias da Guerra Civil Espanhola, da jovem República assassinada e da Segunda Guerra Mundial; as tragédias das ditaduras militares da América Latina, a esperança da Revolução Socialista pelo voto da Frente Ampla e de Salvador Allende, e como epílogo trágico de sua vida e obra, narrada em sua biografia, o assassinato da experiência e inclusive do presidente, seu amigo íntimo. O conjunto de sua poesia é como uma Odisseia latino-americana que conta em versos boa parte da história do século XX. Assim, concluímos que Neruda amadurece com a Espanha e com os influxos de Lorca e da Geração de 1927, mas também influenciando toda esta geração, já que foi um precursor e um organizador destes mesmos escritores. Neruda trazia em sua poesia, muitas das temáticas comuns da geração de poetas espanhóis, o vanguardismo e o experimentalismo, a convivência com os poetas da Geração de 1927 e o exercício comum da poesia, o moldou para que fosse um poeta de duas pátrias e de dois continentes, bebendo das temáticas e das correntes de ambas as pátrias. Foi por conta desta polissemia, desta variedade de influências e portanto de significados e temáticas, que Pablo Neruda se tornou o poeta latino-americano 144 mais influente do século XX, trazendo sempre, em sua natureza chilena, Espanha no coração. 145 9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Theodor; 2012, Notas de literatura I, Editora 34, São Paulo, tradução de Jorge M. B. de Almeida, título original Notas sur Literatur, pp. 176. 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