os olhos do carrasco - a casa do mago das letras

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os olhos do carrasco - a casa do mago das letras
OS OLHOS DO CARRASCO
Eles não prendem, não acusam, não julgam.
Apenas executam a sentença!
L P BAÇAN
Copyright © 2014 L P Baçan
Todos os direitos reservados
Proibidas a reprodução e a divulgação
sem a expressa autorização do autor.
Londrina-PR-Brasil
2014
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ÍNDICE
1a. Parte – O Carrasco
2a. Parte – Os Olhos da Cidade
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1a. PARTE
O CARRASCO
CAPÍTULO 1
Em Nova Iorque, nos bares e estabelecimentos
comerciais, há sempre um espaço reservado para recados e
ali aparecem os tipos mais diferentes e estranhos deles, tanto
um simples recado de pessoa a pessoa como oferta de
trabalho, precisa-se ou procura-se, compras, vendas, trocas e
transações diversas.
Esses recados permanecem por poucos dias e são logo
retirados e substituídos por outros, numa rotatividade
apropriada para uma cidade com um ritmo tão dinâmico
como o de Nova Iorque.
Em todos esses quadros de recados e avisos, no
entanto, há um recado feito em um cartão plastificado,
escrito com tinta nanquim numa letra bem legível, apesar de
cursiva, que ninguém ousa retirar.
Apareceu nesses quadros dois ou três anos após a
Guerra do Vietnã e lá permaneceu. A amarela-se. Em alguns
locais, ele foi plastificado ou simplesmente posto dentro de
um envelope plástico para conservá-lo. O que é fato é que
ninguém ousou retirá-lo de onde ele foi posto há muitos
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anos. Ele se conserva ali como um refúgio para os
desesperados, os desamparados, aqueles com sede de justiça
e sem ter a quem recorrer; aqueles que foram humilhados,
passados para trás, roubados ou ofendidos de qualquer
forma. Esses procuram pelo responsável pelo anúncio, que
diz o seguinte:
Ele não prende, não acusa, não julga. Ele apenas
executa a sentença. Não o procure. Apenas pergunte por
ele ou deixe seu nome e telefone junto deste aviso. Se
você precisar dele, ele aparecerá!
***
Durante os últimos dias, Morgan Hart, corretor da
bolsa de valores e responsável por um prejuízo de milhões
para seus clientes, vinha recebendo pequenos pacotes com
algo que ele apreciava muito: miniaturas de carros de
corrida.
Morgan estava curioso, pois os pacotes não indicavam
um remetente. Vinham apenas, cada vez com um modelo.
Julgou que algum fã ou alguma fã descobrira seu hobby e o
estava presenteando daquela forma.
De seus antigos clientes ele nada mais sabia. Um ou
dois haviam se suicidado e Morgan não tinha peso nenhum
na consciência por isso. Era um espertalhão. O dinheiro dos
clientes havia sumido nos intrincados mecanismos de
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funcionamento de uma bolsa de valores, só que, em algum
ponto do Caribe, eles acabaram sendo depositados numa
conta em nome dele.
Passada a investigação oficial que lhe cassou a
credencial de corretor por mal orientar seus clientes e por
negligenciar na leitura e análise dos dados informativos que
orientavam as melhores opções de investimento, recolheuse, então, em sua residência, enquanto um advogado hábil
cuidava de livrá-lo das acusações secundárias, preparandose para o passo seguinte que era o de comprar um pequeno
hotel na Riviera Francesa, onde viveria tranquilo pelo resto
de sua vida, com dinheiro suficiente para fazer o que
quisesse.
Não tinha pressa. O dinheiro estava guardado e o hotel
não seria vendido para outro. Esperava apenas o melhor
momento para dar o fora do país. Assim, o recebimento
daquelas miniaturas tornou-se um hábito e uma diversão
para ele. Todas estavam sendo cuidadosamente embaladas
para acompanharem-no em sua viagem.
Naquele sábado, pela manhã, quando o carteiro passou,
Morgan correu até a caixa de correspondência apanhá-la.
Entre tantas coisas, encontrou um pacote maior, mas feito
com o mesmo papel e endereçado com a mesma letra.
Ficou curioso, porque ali poderia haver algo mais que
apenas uma miniatura ou, então, seria uma miniatura
especial, considerando-se o tamanho do pacote.
Levou-o para seu escritório e com uma tesoura cortou
rapidamente os cordões que amarravam firmemente o
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pacote, abrindo-o. Para sua surpresa e deleite, dentro havia
uma magnífica miniatura em escala de uma formidável
Ferrari Testarossa junto com um bilhete.
Curioso, julgou que descobriria, afinal, quem o estava
brindando com tão desejados presentes. Abriu o envelope
com mãos apressadas e trêmulas. Retirou o pequeno pedaço
de papel colorido. Antes de abri-lo, cheirou-o. Cheirava a
perfume de mulher. Sorriu e desdobrou-o.
Morgan:
Seu filho da mãe! Meu pai, John Sanders,
matou-se por sua causa, seu ladrão bastardo! Espero
que tenha gostado do presente. Só espero que ele não
parta seu coração em mil pedaços.
Ficou atônito, olhando o pedaço de papel e a miniatura.
Então percebeu a pequena lâmpada no interior do
brinquedo, piscando. Intrigado, levantou-a para olhar. Havia
um mostrador digital nele ao lado daquela lâmpada.
— Cinco... Quatro... Três... Dois... Um... — foi lendo
ele, imóvel, sem entender o que estava acontecendo.
O C-14 é um explosivo com um poder de destruição
incrível e muito cruel. Não apenas provoca concussão pelo
deslocamento de ar como libera um potencial de energia
elevadíssimo, um calor intenso. Foi muito utilizado no
Vietnã e em ações terroristas porque, mesmo que não
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matasse com o impacto, o calor calcinava suas vítimas. Num
raio razoável ao redor de petardo, tudo ardia e se partia.
A polícia, mais tarde, quando o incêndio foi debelado,
julgou ter encontrado pedaços do corpo de Morgan Hart
espalhados por todos os cantos do cômodo onde ocorrera a
explosão e onde ele se encontrava.
Ninguém entendeu o que tinha acontecido. O fogo
apagou todas as pistas. A hipótese de que ele tentava montar
uma bomba e explodira com ela não foi descartada e sua
morte se resume atualmente numa pasta no fundo de um
arquivo do Primeiro Distrito Policial da Cidade de Nova
Iorque.
***
As coisas nunca foram fáceis no Harlem e vinham se
tornando cada vez mais difíceis. As gangues de rua
impunham uma sinistra lei após o escurecer e quem fosse
pego nas ruas, se não fosse membro da gangue que
dominava aquele território, estava morto.
O tráfico de drogas tornava-se a profissão do momento.
Todos queriam trabalhar nos pontos de venda, não apenas
para garantir o seu suprimento diário como para ostentar
uma espécie de status dentro daquele mundo perigoso.
Como empregado do tráfico, tinha arma, munição e
respeito. Enquanto isso, os cidadãos honestos tinham de
trancar portas e janelas e viver reclusos em suas casas, pois
a qualquer hora do dia ou da noite eles apareciam, os
viciados e vagabundos, desesperados atrás de dinheiro ou de
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algo que pudesse ser transformado em dinheiro para
garantir-lhes a dose do vício.
Monna Silverston fazia um curso de modelo e em seis
meses estaria formada. Alguns empresários já haviam
manifestado interesse por ela, pois tinha um perfil adequado
para as passarelas e para as câmaras.
Seus cabelos eram compridos e ondulados. Seus olhos
eram incrivelmente verdes, fruto de uma excitante mistura
entre pai italiano e mãe negra. Seu grande sonho era sair
dali, mudar-se, ter uma vida diferente, cercada de gente
bonita e sem sobressaltos.
Quando desceu do ônibus e viu Steve e sua gangue,
soube que seria importunada. Eles sempre faziam isso, mas
jamais a haviam tocado antes. Naquela noite, porém, os
Hard Boys, membros de uma das gangues mais temidas do
Harlem, estavam procurando diversão. Steve, naquela noite,
queria algo novo também. E Monna desceu do ônibus como
um presente caído dos céus.
— Monna! — chamou ele.
Ela apressou o passo, tentando evitar qualquer contato
com eles.
Steve fez um sinal de cabeça para os amigos que se
apressaram e correram pela rua para barrar a passagem da
garota. Ela tentou atravessar a rua. Eles a detiveram. O líder
da gangue deixou o carro onde estava, um conversível de
luxo, e caminhou na direção dela. Ela detestava todos eles e
sempre procurara evitá-los.
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O chefe da gangue chegou perto dela, medindo-a dos
pés à cabeça. Ela vestia uma calça comprida colante,
revelando as formas perfeitas de seu corpo. Uma blusa de
algodão, solta sobre os seios sem sutiã, completava o visual
despojado mas extremamente adequado para seu perfil.
— Steve, deixe-me passar! Mande seus ratos de esgoto
saírem da minha frente.
Inesperadamente ele a esbofeteou.
— Quem pensa que é? — indagou ele com o dedo
espetado no nariz dela, fazendo-a recuar até a parede. —
Acha-se muito gostosa? Acha que é melhor do que nós?
Ponha-se no seu lugar. Você não passa de uma negrinha
metida querendo viver no mundo dos brancos. Não percebeu
isso? Aposto como anda dando para todos eles, tentando
conseguir um empreguinho. Isso você pode obter aqui, com
o velho Steve — disse ele, esfregando a pélvis nos quadris
dela.
Enojada, ela reagiu instintivamente. Seu joelho subiu e
entrou por entre as pernas do delinquente, que gemeu e
dobrou os joelhos, quase se agachando diante dela. Ela
ensaiou fugir, mas braços fortes a seguraram. Ela ficou
trêmula, enquanto Steve recuperava o fôlego, olhando-a
furiosamente, as mãos massageando os testículos doloridos
pela joelhada.
— Cadela maldita! — rosnou ele, furioso,
aproximando-se da jovem.
— Deixem-me ir! — pediu ela, mas calou-se quando
ele a esmurrou com força no queixo.
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Monna sentiu um estalo na mandíbula e uma dor
lancinante quando o osso do maxilar se partiu com o golpe.
Os rapazes continuaram segurando-a. Steve tirou uma faca e
cortou a blusa dela, desnudando-lhe os seios.
— Pode ser um bom prato, rapazes — disse ele. —
Levem-na para o carro.
Nas janelas e portas da rua poderia haver alguns olhos
curiosos observando, mas ninguém se revelou, ninguém foi
em socorro dela ou chamou a polícia. O conversível foi
seguido por outros carros até um prédio abandonado, onde a
gangue tinha seu refúgio. Quando Monna foi levada para
dentro, já tinham cortado suas roupas. Ela estava nua. O
corpo jovem e virgem foi tocado, beijado e lambido pelos
membros da gangue, até ser jogado em um colchão velho
diante de Steve.
Ele havia terminado de cheirar cocaína algumas
carreiras naquele momento. Ficou olhando o corpo da
garota, que parecia se mover diante dele numa dança
estranha, excitante e convidativa.
Ele se despiu e violentou-a. Quando terminou,
levantou-se e gritou para os outros:
— É de vocês, rapazes!
Monna estava desmaiada e isso foi sua sorte. Caso
contrário não teria resistido às barbaridades que cometeram
em seu corpo, humilhando-a de todas as maneiras. Desenhos
macabros foram traçados a ponta da faca em sua pele. Seus
mamilos foram extirpados. Jogaram o jogo da velha em sua
face direita. Espetaram um osso de galinha como brinco em
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sua orelha. Sexualmente, não lhe respeitaram nada. Monna
foi um objeto nas mãos da quadrilha.
— Vamos jogá-la no rio! — sugeriu um deles, quando
a festa terminou e eles se desinteressaram.
— Sim, joguem-na no rio! — determinou Steve e um
grupo deles se apressou em atendê-lo.
***
A área do Sexto Distrito Policial da Cidade de Nova
Iorque abrange a pior zona da cidade, localizada entre os
bairros do Bronx e do Harlem, onde a ação das quadrilhas
de droga e das gangues de rua tornou a vida dos policias um
constante tormento.
Muitas vezes, membros importantes daquele mundo de
crime eram apanhados e levados para o Distrito para, no
mesmo dia, serem libertados por invasões que pareciam
autênticas guerras.
Por isso, para o Sexto Distrito eram mandados apenas
os policiais mais truculentos, mais duros, mais espertos ou,
então, os envolvidos em algum problema. O Sexto Distrito
era o cemitério dos tiras.
Rusty Brown descobriu isso quando um tiro de AR-15
quase lhe arrancou o braço e ele teve de passar uma boa
temporada no hospital, correndo o risco de perdê-lo.
Recuperou-se lentamente. Quando o médico o liberou
para o trabalho, Rusty havia recuperado boa parte dos
movimentos do braço, mas ainda era obrigado a fazer
fisioterapia.
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— Vou lhe dizer o que quero que faça, Rusty. Está
vendo aquele armário ali?
— Crimes insolúveis?
— Esse mesmo. O prefeito pediu ao comissário da
polícia um trabalho especial sobre esses crimes. Uma
estação de tevê fez uma reportagem mostrando isso,
fustigando a inoperância da polícia. Em todos os Distritos
isso está sendo feito. Você vai pegar aquilo, passar para o
computador e investigar nossos crimes insolúveis. Se
precisar de ajuda, o computador vai estar interligado com os
outros. Terá toda ajuda que precisar.
Rusty Brown reclinou-se em sua cadeira, retirou o
cigarro da boca e encarou o seu capitão e chefe do distrito.
— Capitão, estou na polícia há quinze anos e sempre
trabalhei nas ruas. Não pode fazer isso comigo... — foi
dizendo ele.
Sem que ele percebesse, o capitão havia apanhado um
furador de papel na mesa. Inesperadamente, jogou-o na
direção do braço direito do policial, o mesmo que quase fora
arrancado pelo tiro.
Os reflexos ainda estavam péssimos. O furador bateu
no peito de Rusty, que olhou atônito para o capitão.
— Imaginemos que você estivesse na rua e de seu
reflexo dependesse a sua vida ou a de seu parceiro. O que
teria acontecido, Rusty?
O policial quis responder, quis protestar e argumentar.
Era um homem acostumado ao perigo, não à rotina e à
burocracia. Doía-lhe, no entanto, reconhecer que ainda não
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estava preparado para voltar totalmente à ativa. Poderia
morrer se falhasse. Poderia provocar a morte de alguém,
inclusive.
— Entendeu o que eu quis dizer, Rusty? Sei que é um
cara durão, meu caro. Talvez o melhor policial que eu tenho
nesta droga de Distrito, mas você tem que reconhecer que
não está preparado ainda para voltar. Sei que anda dando
duro nos exercícios e não esperava outra coisa. Em breve
estará de volta. Até lá, vai ser muito útil se conseguir fazer
alguma coisa com esse maldito arquivo. Sei que tem um
computador em sua casa e que gosta de brincar com isso.
Não tenho ninguém melhor que você. Além disso, com seu
faro, talvez encontre algumas respostas em tudo isso e
possamos tranquilizar o comissário para ele fazer sua média
com o prefeito. Está bem?
— Ok, capitão! Você me convenceu! — falou Rusty,
aceitando a dolorosa realidade.
Era um semi-inválido ainda e precisava fazer alguma
coisa para justificar seu salário. O médico dizia que ele
podia voltar ao trabalho, mas não ao trabalho de verdade.
Estava sendo transformado num simples operador de
computador. Apenas por esse detalhe é que o trabalho que
teria que fazer não seria um tormento. Estaria com o
computador e poderia fazer muita coisa com ele, acelerando
a busca por algumas respostas. Estava convicto de que, caso
encontrasse algumas naquele monte de papel, poderia
negociar com o capitão sua volta às ruas.
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— Como é que vai fazer com tudo isso? — indagou
Sharon Mayfield, uma policial que se encontrava recolhida
ao trabalho burocrático, após levar um tiro na perna.
— Ainda não sei, Sharon. Mas vai ser duro aguentar.
— Fique frio! Eu me senti da mesma forma. A maldita
bala que me feriu não me tirou apenas a mobilidade total da
perna, mas me afastou de algo que eu gostaria de fazer,
Rusty.
— Como se sente agora?
— Estou dando tudo na fisioterapia, mas o médico foi
claro. Vou mancar para o resto da vida e jamais poderei
depender desta perna para nada. Em resumo, acabou-se para
mim o trabalho na rua.
— E você vai deixar que a opinião de um babaca
desanime você e a faça desistir?
Em resposta, ela se levantou e caminhou até ele.
Tomou a mão de Rusty e pressionou-a contra a coxa.
— O que sente aí? — indagou ela.
— Um buraco... Um pino? Parece um parafuso...
— Não consegui ir para a cama com homem nenhum
depois do ferimento, Rusty. Não ficou uma coisa bonita de
se ver. Depois que retirarem esse maldito parafuso, farão
alguns enxertos. Talvez a plástica me faça voltar a ser
bonita, mas lá dentro eu sei que existe algo precário que
poderá se romper num esforço. Terei de viver com isso. Da
mesma forma, você também o fará.
Ele fechou o punho com força, mostrando-o à garota.
— Já tenho setenta por cento de todos os movimentos...
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— Vai chegar a quanto? Setenta e cinco? Oitenta?
Sabe o que vai acontecer depois? Vão lhe dizer que isso é o
máximo, Rusty. Não estou sendo cruel nem pessimista, mas
eu passei por isso, amigo. Não tenha ilusões. Não se engane.
Ele a olhou quase com ódio por tê-la ouvido falar
daquela forma. Depois percebeu que não era ela quem
deveria ser odiada, mas aquele maldito bastardo que atirara
nele. Um maldito traficante de droga viciado que, durante o
tiroteio, apontara aquela maldita arma na direção de Rusty.
Ele conhecia aquele homem que mirava nele. Era Goose,
um pilantra de primeira com uma ficha policial do tamanho
de um jornal de domingo. Conhecia-o. Algumas vezes até
livrara a cara dele em flagrantes de droga. E Goose apontara
um AR-15 para ele e disparara. Um projétil capaz de
perfurar a blindagem de um tanque, partir um trilho ou varar
uma parede atingiu seu braço, que ficou preso apenas por
frangalhos.
Maldito Goose!
— Esqueça tudo agora, Rusty. Comece uma nova
carreira. Vai trabalhar como detetive. Vai se divertir com
esses crimes aí. Vai encontrar coisas muito interessantes...
— Como o quê, por exemplo?
— Se olhar com cuidado, vai achar muitas vítimas do
Carrasco.
Ele riu, olhando-a com incredulidade.
— Não acredita no Carrasco?
— Isso é uma lenda, sabia?
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— Lenda ou não, mas você viu aquele aviso no bar do
Ned? Está lá há mais de quarenta anos. O mesmo acontece
em outros pontos da cidade.
— É loucura! — comentou ele, rindo.
Conhecia aquela história. Era pura fantasia. Ninguém
podia fazer aquele tipo de trabalho impunemente por tanto
tempo sem nunca ter sido descoberto. Depois, jamais ouvira
falar de uma acusação oficial ao Carrasco. Tudo não
passava de mais uma daquelas histórias fantásticas contadas
nos becos, nas noites frias ou nos acampamentos de crianças
ao redor da fogueira.
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CAPÍTULO 2
Naquela tarde, após seu expediente, Rusty desligou o
computador e empurrou as pastas para o lado. Estava
cansado, com os olhos doloridos e, o que era interessante
para ele, com o traseiro também dolorido.
— Está vendo, Rusty. Escapou ileso de seu primeiro
dia como burocrata — falou Sharon.
— Não sabe a que preço.
— Veja pelo lado positivo. Estar aqui dentro tem as
suas vantagens. Uma delas é sair no horário. Você pode ir
para casa agora e descansar. O que me diz?
Ele fez uma cara de quem não compartilhava da
mesma opinião dela.
— Ei, é tão mau assim ir para casa? — indagou
Sharon, fechando sua gaveta e indo até a mesa dele.
Rusty levantou-lhe a cabeça, olhou-a nos olhos, depois
exibiu a mão esquerda. Havia uma marca branca em seu
dedo anular.
— Divórcio?
— Depois que fui baleado, nossa vida piorou. Ela me
deixou, quando saí do hospital. Levou o que lhe interessava
e depois mandou um advogado conversar comigo para
decidirmos sobre a pensão dela. Quase bati nele.
— Não sei o que está havendo com as pessoas, Rusty.
Não existe mais amor nem solidariedade. Meu caso não é
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diferente do seu. Ele me deixou também. Disse que não
conseguia fazer amor com uma aleijada.
O tom de voz dela chocou-o. Era triste, profundamente
triste. Tão triste quanto a dele.
— Sabe o que nós dois deveríamos fazer? — indagou
ele.
— É só dizer...
— Vamos até o Bar do Ned encher a cara? Somos
burocratas, não temos que estar em forma amanhã...
— Tem razão. Estou nessa!
Instantes depois os dois deixavam o Distrito. Bastava
andar apenas uma quadra e estariam no Bar do Ned onde os
tiras da região se encontravam. Ali havia tiras aposentados,
na ativa e recrutas da Academia de Polícia conhecendo o
ambiente.
Quando entraram, Rusty lembrou-se de algo e parou
diante do quadro de avisos. Ali plastificada estava aquela
estranha e antiga nota sem nome e sem endereço. Apenas
aquele pedaço de papel com os dizeres do recado. Sharon
parou ao lado dele, Observou da mesma forma. Depois,
como se pensassem a mesma coisa, os dois se olharam.
— Está pensando o mesmo que eu? — indagou ele.
— Acho que sim — respondeu ela. — Eu iria adorar
saber que aquele bastardo foi ferrado...
— Ah, eu daria tudo para saber que o Goose sofreu
muito antes de morrer... Espere aí, Sharon! Somos tiras!
Não devíamos ter esse tipo de pensamento.
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— Claro que não! Devemos confiar na justiça e
acreditar que ela punirá os culpados por transformarem
nossas vidas em titica de galinha. Vamos encher a cara! —
decidiu ele.
Naquele momento, um homem velho, negro, de
cabelos brancos e ar cansado e sofrido entrou no bar e foi
até o quadro de avisos. Tinha um pedaço de papel na mão e
prendeu-o com um alfinete ao lado do recado. Tinha um
nome e um telefone.
Sem nada dizer, o velho ia saindo.
—Espere! — disse-lhe Rusty, instintivamente.
O velho parou e encarou-o.
— Não estou fazendo nada de errado — disse o velho.
— Eu sei... Mas porque deixou aquele nome e o
telefone ao lado daquele recado?
— Eu procuro por ele.
— Por quem?
— Pelo homem do anúncio.
— O Carrasco?
— Não sei o nome dele.
— Por quê?
— Tenho que ir — falou o velho, virando-se para ir
embora.
— Por favor, espere! Venha tomar um drinque
conosco. Gostaria de saber por que faz isso e se isso
funciona mesmo.
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O velho olhou-o com severidade, como se Rusty
tivesse cometido uma heresia. Sharon acompanhava tudo
com interesse.
— Por favor, senhor! Tome uma bebida conosco e
conte-nos por que faz isso. É só curiosidade nossa. Venha!
— insistiu Sharon, com um sorriso cativante nos lábios.
O velho hesitou por instantes e depois, com um suspiro
de resignação, deu de ombros e os seguiu até uma mesa
vazia. Rusty pediu uísque e cerveja para todos.
— Por que fez isso, afinal? — indagou ele para o
velho, assim que foram servidos.
— Estou colocando esse recado em todos os quadros
de avisos do Harlem e do Bronx. Preciso encontrá-lo. É o
único capaz de fazer justiça.
— O que houve, afinal? — quis saber Rusty.
Em resposta, o velho tirou uma foto de sua carteira e
mostrou-a aos dois. Era a de uma linda garota, uma mulata
jovem, de incríveis olhos verdes.
— Esta é Monna, minha filha. Está no hospital com o
queixo quebrado, o rosto desfigurado e toda retalhada. Foi
retirada do rio, onde uma gangue a jogou, após terem feito
com ela o que não se faz à pior das prostitutas — falou o
velho e seus olhos se encheram de lágrimas.
— Você apresentou uma queixa?
— Contra os Hard Boys? Ficou maluco. Eu estaria
condenado à morte no momento em que a assinasse. Minha
filha queria ser modelo. E seria. Era linda. Agora é um trapo
humano jogado numa cama de hospital. Seu rosto está
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desfigurado... Ela implora para que a matem... Não suporta a
vergonha...
Rusty fez um gesto e, logo em seguida, outra dose de
uísque foi servida ao velho. Com a mão trêmula ele a levou
à boca, engolindo-a de uma só vez. Limpou a boca nas
costas da mão.
— Tenho muitos lugares para ir ainda. Preciso ir agora.
Só posso contar com ele para vingar minha filha.
Rusty olhou-o e pensou em todos os discursos que
poderia fazer sobre justiceiros, sobre tomar a lei em suas
próprias mãos, mas desistiu. Nada que dissesse tiraria
aquelas lágrimas dos olhos do velho nem devolveriam a
beleza ao rosto de sua filha.
— Conhece essa quadrilha? — indagou Sharon.
— Sim, é uma das piores. Chegamos a prender o líder
dela algumas vezes, mas o maldito é liso como uma enguia.
Mal chega preso no Distrito e meia dúzia de advogados
chega atrás dele com toda sorte de dispositivos legais para
soltá-lo. Não conseguimos ainda incriminá-lo. Todos têm
medo. Ninguém testemunha ou apresenta uma queixa
formal.
— Sabe de uma coisa? — falou Sharon. — Eu adoraria
que esse Carrasco aparecesse e desse a esse velho a alegria
de ver sua filha vingada.
— Pensei a mesma coisa...
Ned Duran, o dono do bar e tira aposentado,
aproximou-se da mesa.
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— Pobre velho! Soube o que aconteceu com a filha
dele! — comentou.
— Ned, você está aqui no pedaço a mais tempo do que
eu. O que sabe sobre esse Carrasco?
— É uma lenda urbana, uma história que contam por
aqui... Só isso, Rusty. Não perca seu tempo com ele. A
menos que queira correr atrás de uma sombra.
— Estou trabalhando com as pastas dos casos
insolúveis, Ned. Em muitas delas eu observei que, na capa,
havia um C desenhado com tinta vermelha. Sabe o que é
isso?
— Parte da lenda. Nós costumávamos pôr esse C nas
pastas de crimes insolúveis, quando achávamos que eles
foram cometidos pelo Carrasco. Uma brincadeira, nada
mais! Esqueça! — finalizou Ned, sorrindo e indo
cumprimentar o pessoal de outra mesa.
Sharon e Rusty se olharam intrigados.
— O que achou? — indagou ele.
— Se é apenas uma lenda, uma brincadeira, por que
não tiram aquele papel do quadro de avisos?
— É uma boa pergunta, Sharon. Uma boa pergunta
mesmo — afirmou ele, pensativo.
***
Alguns dias depois, os Hard Boys estavam reunidos
num armazém à margem do Rio Harlem, esperando um
negociante que prometera comprar cinco quilos de droga.
Vigias haviam sido espalhados por todo o prédio, inclusive
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no telhado. Estavam lá uma hora antes do encontro e tudo já
havia sido vasculhado. O local fora considerado seguro.
— O que sabe sobre esse comprador? — indagou Steve
a Jeff, seu braço direito.
— Sei que é quente, Steve. O cara lutou no Vietnã, está
cheio de medalhas e esses negócios de soldado. Está
comprando para presentear uns amigos.
— Você checou o sujeito?
— É limpo, fica frio! Além disso, temos o controle da
distribuição. Quem iria brincar com os Hard Boys? —
indagou Jeff, estendendo o braço numa saudação.
À medida que aumentava o poder e o domínio deles
sobre o território, eles se tornavam mais confiantes e mais
seguros de si. A polícia não os importunava mais. Haviam
comprado os tiras certos no Sexto Distrito, por isso não
tinham maiores preocupações. Nenhuma outra gangue
ousaria tentar penetrar naquele território. Os Hard Boys
tinham armas da pesada e muitos homens. Seus negócios
sempre eram feitos com um máximo de segurança. Mais da
metade dos delinquentes que faziam parte dela estavam ali
naquela noite.
Quando a hora se aproximou, a tensão e a impaciência
cresceram.
— Estão vindo! — anunciou alguém no alto do teto
junto a uma janela de ventilação.
Um Lincoln negro desceu a rua lentamente com os
faróis de luz alta acesos. Quando se aproximou do armazém,
buzinou três vezes, dando o sinal previamente combinado
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entre eles. A enorme porta foi aberta. O carro manobrou e
entrou lentamente, enquanto fechavam de novo o armazém.
— Há quantos deles lá dentro? — indagou Steve.
— Não dá para ver com aqueles vidros escuros.
Repentinamente, o porta-malas do carro se abriu. Um
dos membros da gangue se aproximou. Havia uma maleta lá
dentro.
— Tem uma maleta aqui, Steve! — gritou ele.
— Traga-a aqui. Por que eles não saem?
— Eu não sei — falou Jeff, indo até o carro.
Olhou atentamente, mas não conseguia ver no interior
do carro. Puxou as maçanetas. As portas estavam travadas.
— Steve, acho que eles são apenas cuidadosos —
gritou.
— Certo, vamos ver o que temos aqui — falou o líder,
abrindo a maleta.
Havia maços de notas de cem em um envelope em
cima. Abriu o envelope. Demorou um pouco para
reconhecer aquele rosto na fotografia.
— Que diabo é isso? — indagou ele, apanhando um
dos pacotes de notas.
Havia apenas uma nota de cem no topo do maço.
— Quero ver a cara de quem está lá dentro — falou
ele, apanhando uma escopeta de um dos capangas ao seu
lado.
Foi engatilhando e disparando, enquanto caminhava na
direção do carro. Os outros homens fizeram o mesmo,
arrebentando os vidros do veículo. Quando Steve chegou
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perto e olhou, percebeu que o carro estava vazio. Havia um
estranho e engenhoso sistema de braços hidráulicos e
engrenagens ligados ao volante e ao câmbio, encimados por
uma caixinha de onde se sobressaía uma antena.
— Alguém quer me explicar o que está havendo aqui?
— berrou Steve, segurando Jeff pelo braço.
— Ali atrás! — falou Jeff, de olhos esbugalhados,
tremendo como uma vara verde.
— O que há lá atrás? — quis saber Steve, esticando o
pescoço.
Havia o que parecia ser uma pilha de quatro tijolos
presos com fita adesiva. Sobre ela havia um relógio digital
que marcava o tempo em ordem decrescente. Fios saiam do
relógio e sumiam entre os “tijolos”. Steve viu o cinco, o
quatro, o três, o dois e o um. Depois tudo clareou a sua
frente, como se as portas do inferno se abrissem para
recebê-los.
***
Sharon estacionou seu carro diante da casa, bêbada
demais para tentar pô-lo na garagem. Mancou até a porta de
entrada. Passava das dez. Ao longe podia ver o céu pegando
fogo. Alguém dissera que um barracão explodira na beira do
rio. Entrou e jogou as chaves sobre o primeiro móvel que
encontrou. Deixou o corpo cair no sofá e ficou ali imóvel,
sentindo aquele balanço incômodo que a bebida provocava
na casa.
Naquela noite tinha um consolo especial. Sabia que iria
cair na cama, se conseguisse chegar até ela, e dormir
26
pesadamente, coisa que não vinha conseguindo fazer desde
que passara a morar sozinha. A solidão era terrível. A
ingratidão doía. Quando pensava que conhecia realmente
seu marido e precisava do apoio dele, ele simplesmente a
abandonara, alegando que não conseguiria fazer amor com
uma aleijada.
Assim, Sharon não perdera apenas parte da perna e da
mobilidade naquele tiroteio. Perdera o marido, a vida
sexual, o amor próprio e tudo o mais. Aquela maldita cena
voltava constantemente a sua mente. Naquela tarde, quando
Rusty falara de seu ferimento, ela reviveu com ele a maldita
cena. Gordon Flowers, um cafetão viciado em cocaína,
estava espancando uma de suas mulheres na rua, quando
Sharon e seu parceiro passavam.
— Eu o conheço, Sharon! É um tipo perigoso. Vou
pedir apoio — dissera seu parceiro.
— Eu vou na frente — respondera ela.
Não poderia jamais ficar ali, olhando a maneira cruel
como ele chutava e esmurrava a mulher. Saltou do carro
com o revólver na mão e deu-lhe voz de prisão. Gordon se
voltou para ela rindo como o mais inocente e pacato dos
cidadãos.
— Ei, o que houve, policial? — indagou ele,
caminhando ao encontro dela.
— Parado! — ordenou ela.
Gordon continuou sorrindo e avançando. Ela nada viu
na mão dele. Ele parecia tão inocente, tão ingênuo,
avançando daquela forma como se não a tivesse ouvido. Ela
27
ficou ali, parada, enquanto ele chegava e estendia o braço,
afastando a arma dela. No momento seguinte ele encostava
uma automática na perna dela e apertava o gatilho. Sharon
sentiu o tranco e perdeu o equilíbrio, caindo sentada. Ficou
olhando para sua calça, que pegava fogo no ponto onde o
tiro fora disparado.
Ela olhou pateticamente para ele. Viu Gordon
caminhar até onde estava mulher que ele espancava e enfiar
a arma entre os seios dela, dentro do sutiã. Disse qualquer
coisa. A mulher se afastou. O parceiro dela saiu do carro.
Gordon estava com as mãos levantadas repetindo que não
fizera nada, que alguém havia atirado nela. Sharon
continuou, então, olhando para as labaredas em sua calça,
achando tudo estranho e belo.
Voltou à realidade com o telefone tocando.
— Rusty, seu idiota! Eu disse que conseguiria — falou
ela em voz alta, lembrando-se da preocupação dele ao vê-la
entrar no carro naquele estado.
Nos últimos tempos, Sharon estava se tornando uma
perita em voltar bêbada para casa. Era incrível como se
recordava do último gole, de ter entrado no carro e de ter
chegado em casa. Tudo no meio disso era um branco total,
como se houvesse acontecido uma mágica qualquer e ela
fosse transportada de um lugar para outro misteriosamente.
O telefone continuava tocando. Com muito esforço ela se
levantou e foi até ele. Sentou-se no assoalho e pôs o
aparelho no colo. Levou o fone ao ouvido.
— Rusty, eu disse que conseguiria...
28
— Cadela uniformizada! — disse aquela voz vinda de
dentro de um pesadelo.
Ela demorou algum tempo para entrar em sintonia.
Ouvira aquela ofensa um dia, em algum lugar, mas não
conseguia se lembrar de onde fora.
— Está me ouvindo, cadela? Perdi muito dinheiro por
sua causa. Soube que já saiu do hospital e está trabalhado de
novo. Vou terminar o que comecei. Jamais uma mulher me
passou para trás — afirmou a voz, desligando em seguida.
Sharon ficou pateticamente segurando o telefone no
ouvido, revivendo tudo, sentindo lágrimas escorrerem de
seus olhos. Sem perceber, olhou a perna, esperando ver ali,
de novo, o brilho da chama. Demorou algum tempo para
entender o que se passava, afinal.
— Como? Onde? Esse bastardo... — murmurou ela,
pondo o fone no gancho.
No momento seguinte ele tocou de novo. Ela deu um
salto, jogando-o para o lado como se fosse um animal
peçonhento. O fone caiu longe.
—Sharon! Você está bem? Sou eu, Rusty! Sharon?
Fale comigo, maldição! Você está aí? — ela ouviu a voz
dele gritando no fone.
Arrastou-se até ele.
— Rusty, ele ligou... Ele está dizendo que vai me
matar... Rusty... Socorro!
— O que está havendo, Sharon? — insistiu ele.
— Rusty... Não quero ficar sozinha, por favor! —
exclamou ela e começou a chorar alto.
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30
CAPÍTULO 3
Quando Rusty chegou à casa de Sharon, encontrou a
porta apenas encostada. Sacou sua arma e, com receio,
empurrou, olhando lá dentro. Sharon estava deitada no
assoalho. Tinha vomitado e rolado em seu próprio vômito.
— Maldição, Sharon! O que você fez? — murmurou
ele, guardando a arma e se aproximando.
Ela não estava ferida. Apenas bebera demais, concluiu
ele, imaginando o que poderia fazer naquele momento. Não
podia chamar uma ambulância ou coisa assim. Iria ser ruim
para ela se aquilo fosse divulgado.
Trancou a porta e andou pela casa, examinando os
aposentos. Descobriu o banheiro. Encontrou ingredientes
para o café na cozinha. Deixou a água no fogo e foi até a
sala. Sharon estava mal. E cheirava mal também. Apanhou
uma toalha no banheiro, embrulhou-a e carregou-a até lá.
Hesitou. Não sabia como ela reagiria, mas acabou despindoa. Quando lhe retirou a calça do uniforme, viu o ferimento
na perna. A ferida estava cicatrizada, mas formava um
buraco de uma tonalidade avermelhada, onde havia uma
protuberância, com certeza aquele parafuso de que ela
falara. Não era uma visão agradável, mas não era a pior das
deformidades. Possivelmente o trauma estava na cabeça de
Sharon.
Olhando-a, ele se sentiu tentado a fazer amor com ela.
Com exceção daquele ferimento, que nada tinha de
31
repugnante, a garota tinha um belo corpo, com seios
empinados e rijos, ventre liso e nádegas bem desenhadas.
Puxou-a para debaixo do chuveiro e ligou-o. Ela
resmungou, tentou se debater, mas acalmou-se logo. A água
morna caindo sobre ela era como um calmante. Ele a deixou
ali e vasculhou o armário dela. Encontrou sal de frutas e
leite de magnésia. Lembrou-se, então, de algo que um dia
lhe deram para cortar um porre. Foi até a cozinha, preparou
o café, derramou sal dentro, pôs um sal de frutas e um
pouco de leite de magnésia. Levou até o banheiro e
empurrou tudo aquilo goela abaixo da garota. Ela engoliu
sem sentir, forçada. Instantes depois, abriu os olhos como
que despertando, sentindo engulhos. Começou a vomitar
novamente. Rusty ajudou-a, segurando-lhe os ombros para
baixo sob a ducha. Ela se debateu bastante depois se
tranquilizou ofegante, começando a tomar consciência do
que estava acontecendo. Percebeu que estava nua, mas não
tinha forças para fazer nada. Ficou ali mesmo, enquanto ele
passava xampu em seus cabelos, lavando-os. Já estava
melhor quando ele a ensaboou com uma esponja, lavando-a
inteirinha.
Ele a ajudou, finalmente, a se levantar e a enxugou.
Vestiu-lhe um roupão que estava pendurado na porta do
banheiro, depois a ajudou a chegar até a cozinha. Ofereceulhe café quente. Ela bebeu devagar, voltando à realidade.
Estava envergonhada por vê-lo ali, diante dela, molhado e
com ar cansado.
— Eu sinto muito... — começou ela a dizer.
32
— Esqueça... Tudo bem, parceira! Não precisa se
desculpar. Sei que faria o mesmo por mim...
— Como você veio parar aqui?
— Eu telefonei para saber se tinha chegado bem...
Você estava agitada... Falando de alguma coisa que tinha
voltado. Não sei o que era. Eu também estava um pouco
atordoado.
Ela se imobilizou por instantes. Seu corpo ficou rígido
e seus olhos se arregalaram quando ela se lembrou.
— Gordon Flowers! — murmurou ela, num fio de voz.
— Quem?
— Gordon Flowers, o bastardo que fez isso em minha
perna. Ele ligou para mim. Estava preso. Será que o
soltaram? Estava aguardando julgamento. Disse que vai
terminar o que começou... Eu sou a única testemunha...
Ninguém mais viu a arma... A prostituta que estava com ele
sumiu... Se ele me matar...
— Espere um pouco, Sharon! Do que está falando,
afinal? — Ele quer matá-la? — indagou ele. — Quem quer
matá-la e por quê?
— Gordon Flowers! Se eu morrer, ele está livre.
— Espere um pouco! — disse Rusty, indo pegar o
telefone.
Teve de limpá-lo para poder usá-lo. Discou um
número.
— Boutty, sou eu, Rusty. Como vai? Certo, eu apareço
sim... Claro... Tudo bem com Maggie? Ótimo... Sim... Vou
33
sim... Agora me responda uma coisa: conhece uma figura
chamada Gordon Flowers?
Ouviu atentamente enquanto seu amigo lhe dava as
informações a respeito do criminoso. Quando terminou, foi
ter com Sharon. Havia preocupação no rosto dele.
— O que foi? — indagou assustada.
— Gordon Flowers foi solto sob fiança esta tarde. Está
nas ruas de novo, aguardando o julgamento. Se ele telefonou
ameaçando, temos que dar um jeito nisso.
— O que podemos fazer?
— Não sei... Talvez achá-lo... Falar com ele. Assustálo.
— Não, não podemos. Só o ajudaria no julgamento. É
um sujeito esperto. Tudo bem, eu aguento. Posso e sei me
defender. Ele não vai me tratar como a uma de suas
prostitutas.
— Tem certeza de que ficará bem?
— Sim, tenho. Pedirei que grampeiem meu telefone.
Se ele ligar de novo, nós o pegaremos. É a melhor maneira.
— Vejo que está bem de novo, raciocinando melhor.
Eu vou para casa...
— Não quer tomar um banho? Tenho algumas roupas
do meu ex-marido por aí. Vão servir em você. Pelo menos
voltará seco para casa.
Ele se olhou. Não estava apenas molhado. Estava
cheirando a vômito.
— Acho que tem razão.
34
— Vá indo. Vou arrumar uma toalha e as roupas —
disse ela.
Rusty virou-se e ia deixando a cozinha.
— Rusty! — chamou ela.
Ele se voltou para olhá-la.
— O que achou... Do ferimento em minha perna?
Ele pensou por instantes, antes de responder.
— Eu estava ocupado olhando tantas outras coisas
interessantes que nem reparei nele — falou ele, com malícia
no rosto.
Por momentos ficaram se olhando.
— Vou tomar meu banho — falou ele, enquanto ela
esboçava um sorriso novo e feliz.
Quando foi ter com ele, levando a toalha e as roupas,
Rusty havia tirado a camisa. No ombro e parte do braço,
profundas cicatrizes, indicando todo o minucioso trabalho
de reconstrução que fora feito em seu braço. Os olhos dela
ficaram fixos ali. Rusty tentou se virar para esconder o
braço, mas ela avançou, pondo a mão no ombro dele.
Carinhosamente seus dedos deslizaram sobre as cicatrizes,
onde havia uma sensibilidade adicional. Sem dizer nada, ela
foi se encostando nele, até que ele percebesse que ela queria
ser abraçada.
***
No dia seguinte, Rusty estava envolvido com o
computador e as pastas de crimes insolúveis, enquanto
Sharon se reunia com o capitão e outros policiais. Haviam
passado parte da manhã naquela reunião. Rusty estava
35
apreensivo. Quando ela terminou, Sharon saiu furiosa e foi
se sentar a sua mesa. Escondeu o rosto entre as mãos e
chorou convulsivamente, chamando a atenção de todos.
— Venha, vamos tomar um café? — convidou ele,
tomando-a pelos ombros e fazendo-a acompanhá-lo. — O
que houve lá dentro? — quis saber.
— Eu contei o que houve ontem. Não acreditam em
mim...
— Eu sinto muito, mas não pude ajudá-la... Só contei o
que sabia...
— Tudo bem... São uns idiotas! Estão me condenando
à morte, sabia? Nem a escuta em meu telefone concordaram
em pôr. Não dispõem nem de homens nem de aparelhos.
Diabos! Vou ter que me virar sozinha...
— De forma alguma. Vamos estudar juntos uma forma
de mantê-la protegida — disse ele.
Haviam chegado à máquina de café. Ele apanhou dois
copos. Sentaram-se num dos bancos do corredor.
— Você me fez sentir segura ontem, sabia? —
comentou ela.
— Você corria perigo maior comigo, sua tola.
Ela riu, mas, no momento seguinte, empalideceu. Alto
e magro vestindo um casaco vermelho espalhafatoso e um
chapéu de abas retas da mesma cor, com diversos colares de
ouro no pescoço e anéis no dedo, um tipo esquisito acabava
de entrar. Ao ver Sharon, ele diminuiu o passo. Meia dúzia
de capangas o acompanhava. Só podiam ser capangas. Nada
tinham de honesto na expressão e nas atitudes.
36
— Ora, ora, se não é minha amiga uniformizada —
brincou ele com zombaria na voz.
— Não sou sua amiga — protestou Sharon, erguendose furiosa e levando a mão à cintura.
Sua arma ficara na gaveta. Não a usava no trabalho
burocrático.
Gordon se aproximou dela até ficar bem perto.
— Quero lhe agradecer a oportunidade que estou tendo
de me reabilitar... Está certo que está me custando um bom
dinheiro, mas eu não me incomodo. Receberei tudo com
juros — afirmou ele.
Sharon perdeu o controle e, inesperadamente, cuspiu
no rosto dele.
— Puta uniformizada! — murmurou ele, limpando o
rosto.
Sharon avermelhou-se e Rusty a viu como uma pantera
prestes a dar o bote. Antes que ela se complicasse, ele se
interpôs entre os dois, agarrando-a e afastando-a. De
passagem, deixou que seu cotovelo atingisse a boca do
cafetão, que urrou e caiu de joelhos.
— Violência policial! É assim que a polícia sabe agir.
Não aceitam um pedido de desculpas — berrava ele no
corredor, chamando a atenção.
Seus homens o ajudaram a se levantar.
— Vai pagar por isso, tira! — disse ele, em voz baixa,
olhando Rusty com ódio.
37
— O que há, cara? Você não é nada. Só é bom com
mulheres, não é? Por que não me enfrenta? — disse Rusty,
encarando-o.
Sharon adorou a força como ele a defendia, mas viu o
capitão surgir no fundo do corredor. Foi sua vez de abraçar
Rusty e tentar afastá-lo dali.
— Que diabo está acontecendo aqui? — berrou o
capitão com todas as forças de seus pulmões.
Ao vê-lo, Gordon cuspiu sangue na mão, depois
lambuzou o rosto todo.
— Saí sob fiança e mandaram me apresentar aqui. Vim
em paz, como cidadão respeitador da lei e olhe o que me
aconteceu! — reclamou ele, mostrando o rosto sujo de
sangue.
— Mayfield, espere no meu gabinete — ordenou ele a
Sharon.
— Capitão, fui eu que... — ia dizendo Rusty.
— E você também, Brown!
— E eu, como fico? — indagava Gordon, mostrando o
rosto para todos, inclusive para o fotógrafo que havia
registrado a cena.
— Eu disse agora mesmo! — berrou o capitão para os
dois policiais.
Depois se voltou para Gordon Flowers.
— Eu sinto muito, senhor, mas acredite, isso... — foi
dizendo, enquanto caminhava pelo corredor com ele.
— Vamos embora antes que eu vomite de novo —
falou Sharon enojada.
38
***
Após o expediente, os dois estavam no Bar do Ned.
Não se sentiam com vontade de falar. Apenas tomavam a
cerveja, olhando-se e lembrando-se do sermão que o capitão
aplicara nos dois. Não podiam acreditar que aquilo estava
acontecendo. Uma policial era ameaçada por um marginal e
nada acontecia. Ele recebia um esbarrão e todo um arsenal
de direitos humanos era posto em sua defesa.
Rusty aproveitou aquele silêncio para pensar em outra
coisa. Estava catalogando todos aqueles casos no
computador. Uma ficha resumida havia sido criada e
implantada em todos os Distritos. Ele podia cruzar suas
informações com a dos outros distritos ou ter acesso a todos
os crimes insolúveis da cidade. Naquela tarde, havia falado
ao telefone com um amigo do Primeiro Distrito.
Lembrando-se de como Ned, um policial antigo, descartara
a existência do Carrasco, ele jogara verde ao falar com o
amigo.
— Bill, estou achando interessante algo aqui. Há
diversos crimes, cujas pastas apresentam um grande C em
vermelho na capa. Você encontrou algo assim por aí?
— Interessante você comentar isso. Encontrei alguns
casos assim.
— Sabe o que significa?
— Dizem que colocam esse C quando o criminoso
foge para o Canadá.
— Quem lhe disse isso?
39
— Todos aqui. Achei estranho que soubessem que o
criminoso tinha fugido para o Canadá. Eles nem sabiam
quem eram os criminosos!
Aquela conversa aguçou sua curiosidade. Ligou para os
outros distritos e descobriu que em todos eles havia pastas
anotadas com o mesmo C em vermelho. Conseguiu uma
lista desses crimes, falando com cada um dos distritos, só
que não pôde acessá-la no computador, porque o sistema
estava em fase de implantação e nem todos estavam
catalogados ainda. Mais alguns dias e poderia investigar
melhor aquele assunto que havia despertado sua curiosidade
desde o primeiro momento.
Alguém esquecerá um jornal na mesa ao lado.
Tomando a cerveja, Rusty olhou a manchete. Interessado,
inclinou-se e apanhou o jornal, começando a ler. Falava da
explosão da noite anterior e do incêndio que destruíra um
armazém à beira do rio. Mais de uma dezena de cadáveres
havia sido encontrada, todos incinerados ou destruídos pela
explosão. Pelas jaquetas que vestiam, pertenciam todos a
uma gangue do Harlem, os Hard Boys.
— Sharon... Veja isto! — disse ele surpreso.
— Não tenho cabeça para ler jornal, Rusty. Desculpeme!
— Ouça isto! Aquela explosão de ontem, lembra-se?
— Sim, lembro-me vagamente dela.
— Explodiram todo um armazém com uma gangue
dentro.
— E daí? Alguém fez um favor para a cidade.
40
— Sabe que gangue era essa?
— Oh, Rusty! Estou aqui, tentando não pensar em mais
nada para ver se esqueço da bronca do capitão e você...
— Hard Boys! — cortou-a ele.
— Certo! Hard Boys! E daí?
— Lembra-se do velho, aquele que a filha fora
espancada pela gangue?
— Sim... Acha que o velho fez isso? Impossível!
— O velho, não. Foi o Carrasco.
— O Carrasco, Rusty? Para matar tanta gente, será que
não foram a Branca de Neve e os Sete Anões?
— Esqueça! — disse ele, levantando-se e indo até o
quadro de avisos.
O recado que o velho deixara não estava mais lá ao
lado do recado original.
— O que procura, Rusty? — indagou-lhe Ned.
— Um velho deixou um recado aqui...
— Esqueça, Rusty! Esqueça! — repetiu Ned, virando
as costas e se afastando.
41
CAPÍTULO 4
Após um mês naquele trabalho, Rusty já estava
começando a gostar da rotina. Ficava todo o tempo no
computador, onde o sistema de catalogação de crimes
insolúveis havia sido implantado. Ele podia ter acesso agora
a todos os resumos dos crimes acontecidos na cidade. Ao
longo daquele mês, havia conseguido também montar um
arquivo pessoal de todos os crimes insolúveis em cujas
pastas constava uma letra C, não apenas na área do Sexto
Distrito, mas de toda a cidade.
Aquele assunto o intrigava. Sempre que tocava neles,
os policiais mais velhos fugiam do assunto e se negavam a
dar maiores informações. Sharon continuava trabalhando
próxima dele. Saíam frequentemente no final do expediente.
Haviam ido para a cama algumas vezes. Ela parecia bem
melhor agora e já não se sentia tão mal por causa do
ferimento na perna. Gordon Flowers não foi visto mais no
Sexto distrito, mas, algumas vezes, Sharon comentava que o
havia visto de relance na rua, num carro, num posto de
gasolina ou observando-a de algum modo. Às vezes o
telefone tocava, mas ninguém falava. Sharon apenas ouvia a
respiração de alguém do outro lado da linha e, nesses
momentos, tinha certeza de que era Gordon atormentando-a.
O trabalho burocrático não oferecia muitas emoções.
Apenas o trabalho no computador compensava para Rusty,
que começou a fazer suposições com aqueles crimes todos,
42
buscando um padrão comum, uma pista, algo que pudesse
dar algum sentido em tudo aquilo.
Numa tarde, o barulho chamou sua atenção. Alguém
gritava e esbravejava como um possesso.
— Diabos, o que será isso? — indagou ele, olhando
para Sharon igualmente curiosa.
Saíram para o corredor, no momento em que três
policiais tentavam arrastar um negro forte, que se debatia
como um louco. Ao ver Rusty, no entanto, ele parou com os
olhos arregalados, exageradamente arregalados, fixos no
policial.
— Ora, ora! Veja só quem está aí! Pensei que estivesse
aposentado, Rusty! — ironizou ele.
Rusty estava pálido e tremia com a mão a meio
caminho de sua arma, olhando o rosto daquele negro a sua
frente e lembrando-se da cena, quando ele apontara um AR15 e disparara. Os policiais que o arrastavam se
aproveitaram de sua calma, empurrando-o. Ele passou por
Rusty e virou a cabeça, sempre rindo, enquanto era levado
pelo corredor.
Sharon percebeu que Rusty não estava bem. Tocou-lhe
o braço, cuja mão repousava na coronha de sua arma,
apertando firmemente. Ele tremia.
— Rusty, o que houve? — indagou ela.
Goose gargalhou no corredor e aquela gargalhada teve
o mesmo impacto do tiro no corpo do policial, que se
encolheu e abraçou Sharon.
43
— Ei, calma! Está tudo bem! Vamos tomar um café!
— falou ela, empurrando-o na direção da máquina. —
Quem é esse sujeito? — perguntou.
— Esse bastardo é o Goose, o maldito que me disparou
o tiro no ombro.
Sharon já suspeitava daquilo, mas jamais vira Rusty
com aquela expressão no rosto. Era ódio puro, desprezo e
desejo de vingança. Estendeu-lhe uma xícara de café. As
mãos dele ainda tremiam. Ele tomou um gole, cabisbaixo.
— Eu jurei que quando o visse eu o mataria... Não
importava em que situação fosse... Mas não consegui... O
maldito quase acabou com a minha vida, com certeza
destruiu minha carreira, mas não consegui sacar minha arma
e dar um tiro naquela boca sorridente e atrevida...
— Fique frio, parceiro! Eu sei como você se sente.
Senti a mesma coisa naquele dia, quando Gordon apareceu
por aqui. A questão toda é conviver com isso... Não
podemos sair por aí tomando a lei em nossas próprias
mãos... Por mais que tenhamos vontade de fazer isso...
— Mas há alguém que faz isso... Há alguém que pode!
Ela o olhou intrigada sem entender o que ele falava.
— Do que está falando?
— Falo do Carrasco.
— Tolice, Rusty. Esqueça! É só uma lenda.
— Lenda ou não, a neta daquele velho foi vingada. Os
Hard Boys foram pulverizados naquele armazém. Terá sido
apenas coincidência? Sabe com quem está a pasta da
44
investigação daquele acontecimento? Com o Bill, à beira da
aposentadoria, tira da antiga, não é?
— Sim, pelo que sei, é. E o que tem isso?
— Passe pela mesa dele, quando ele não estiver lá. A
pasta fica em um escaninho. Olhe na capa. Desenharam um
enorme C em letra vermelha nele.
— Ora, Rusty, você está ficando impressionado demais
com isso, não?
— Não vou lhe responder nada. Apenas passe por lá e
dê uma olhada. Além disso, estou fazendo um paralelo entre
todos os crimes cujas pastas foram marcadas dessa forma,
com um C em vermelho. Sabe o que há de comum entre
todos os crimes?
— Conseguiu estabelecer isso? — surpreendeu-se ela.
— Sim, consegui. Todas as vítimas eram, de alguma
forma, acusadas de prejudicar alguém. De alguma forma,
elas mereceram a punição. Só que sempre havia tantas
pessoas que desejavam a morte delas que não há como se
chegar a um suspeito único. Lembra-se do que está escrito
naquela nota, no quadro de avisos?
— Ele não prende... Não acusa... Não julga...
— Ele apenas executa a sentença — completou ele.
— E quem determina a sentença?
— Sei lá, mas uma sentença é executada. Aconteceu no
caso da gangue.
Ela ficou pensativa por instantes. Rusty parecia
obcecado por aquela lenda, mas, por outro lado, poderia não
ser apenas uma lenda. Pensou em Gordon Flowers, nos
45
telefonemas, na maneira como ele a seguia e intimidava. Se
aquilo continuasse, ela acabaria perdendo o controle e dando
um tiro nele. Como Rusty poderia ter feito naquele
momento em que se viu cara a cara com Goose.
— Por que não fazemos uma coisa — sugeriu ela. —
Vamos procurar esse tal Carrasco. Ele pode ser a nossa
solução.
— Como assim?
— Se continuar assim, eu acabo matando Gordon
Flowers e você, fazendo o mesmo com Goose. Vamos nos
estrepar! Por que não deixar essa missão com o Carrasco?
Ele a olhou indeciso, tentando perceber até que ponto
ela falava sério.
***
A Corporação Medows havia comprado todo um
quarteirão na River Avenue, próximo do estádio desportivo
dos Ianques, planejando fazer ali um grande
estacionamento, pensando já na próxima temporada de
jogos. Nos intervalos entre as partidas, usaria o local para
promover shows com bandas famosas, lutas de boxe e
outros eventos. O único empecilho eram as centenas de
famílias que ocupavam os prédios velhos e condenados em
sua maioria.
Os tubarões da Medows tiveram que subornar dois ou
três políticos para que conseguissem a condenação dos
prédios, agradar o prefeito para conseguir o despejo e
colaborar com a polícia para que comparecesse e fizesse
cumprir a lei. Naquele dia, uma verdadeira operação de
46
guerra fora montada no local. Guindastes, tratores,
motoniveladoras e caminhões estavam estacionados ao
redor do quarteirão. Especialistas em explosivos estavam
preparados para implodir alguns prédios mais altos. Uma
multidão, no entanto, ocupava os prédios, recusando-se a
sair. Durante a noite, burlando a vigilância, haviam
conseguido retornar em desespero aos antigos lares.
— O que vamos fazer, senhor? — indagou o
engenheiro responsável pela demolição a Charles Medows,
presidente da corporação, que se encontrava no interior de
sua limusine, visivelmente contrariado.
— Por mim explodiria todo esse lixo com a maior
rapidez e não me incomodaria. Só que temos de preservar a
imagem da Corporação. Quero tentar resolver isso — falou
o magnata, apanhando o telefone.
Ligou para o prefeito, com quem conversou
amigavelmente. Desligou pouco depois e esperou. Minutos
mais tarde, as primeiras sirenes começaram a ser ouvidas.
Toda a estrutura policial da cidade havia sido deslocada para
lá com incrível rapidez.
— Vamos tirar esse pessoal daí! — ordenou o próprio
comissário de polícia da cidade, assumindo pessoalmente o
encargo.
De todos os Distritos, policiais foram deslocados para
lá. No Sexto ficaram apenas os policiais incapacitados para
o trabalho de rua e alguns poucos carcereiros.
— Que diabo pode estar acontecendo lá — perguntavase Rusty.
47
— Está parecendo um motim ou uma rebelião. O rádio
ficou maluco, com tantas ordens. Dizem que o próprio
comissário está à frente da operação.
— Espero que ele consiga salvar a cidade desse
cataclismo, seja o que for — comentou ele, retornando ao
seu trabalho.
Quando o próprio comissário se envolvia em alguma
coisa, era só para agradar o prefeito que, por seu turno,
estaria agradando a algum poderoso que financiava sua
campanha.
Continuou realizando as associações que vinha fazendo
entre os crimes insolúveis, buscando novos ângulos. Ouviu
barulho no corredor, mas não se importou. Momentos mais
tarde, um tiroteio intenso foi ouvido, vindo do setor da
carceragem. Ele e Sharon apanharam suas armas e foram
para o corredor. Recuaram imediatamente, quando uma
chuva de balas picotou a porta da sala.
— Bandidos! Estão resgatando algum prisioneiro! É o
diabo! — berrou ele, empurrando Sharon para os fundos da
sala.
Tombaram algumas escrivaninhas no caminho para
protegê-los. Estavam armados apenas com seus revólveres
regulares, calibre trinta e oito, que, mesmo sendo poderosos,
não eram páreo para as escopetas, Uzi e AR-15 que os
bandidos usavam.
Dois disparos de escopeta foram suficientes para
pulverizar a fechadura da porta. Um pontapé a abriu,
deixando-a escancarada. Rusty e Sharon se encolheram atrás
48
da escrivaninha, agoniados. Não tinham defesa contra
aquelas armas. Um homem emoldurou-se no batente da
porta escancarada e disparou uma rajada com um AR-15. As
balas foram perfurando as escrivaninhas tombadas,
passaram raspando pelos dois policiais, deitados no piso,
sumindo parede afora com uma violência incrível. Rusty
tremeu. Conhecia aquele tipo de arma. Conhecia o efeito
que um simples projétil podia fazer num ser humano.
— Ei, Rusty! Você está aí, aleijado? Eu estou indo
embora. Pena que não possamos conversar um pouco. Eu
apareço qualquer hora dessas — gritou Goose, gargalhando
daquela forma zombeteira que fazia Rusty tremer de ódio.
— Olhe uma lembrancinha para você — acrescentou.
No momento seguinte, a sala se transformou num
inferno. Os bandidos dispararam suas armas contra os
móveis, as lâmpadas, as janelas, o computador, contra tudo,
destruindo selvagemente o local. Rusty ficou imóvel, com o
braço sobre o corpo de Sharon, torcendo para que nenhum
deles fosse atingido.
Então, de repente, aquele silêncio pesado, enquanto
passos e risos soavam pelo corredor. A porta da frente
bateu. Rusty se sentiu em outro mundo, levantando a cabeça
e olhando o que sobrara da sala. Sharon sentou-se, apoiando
o corpo na parede. Ofegava e tremia.
— Ainda bem que salvei o arquivo geral a tempo,
incorporando-o aos arquivos dos outros Distritos. Senão
perderia todo o meu trabalho — falou ele, pateticamente,
indo até o computador destroçado pelos tiros.
49
Sharon começou a rir nervosamente.
— O que foi? — quis saber ele.
— Quase fomos mortos neste inferno e você se
preocupa com o arquivo geral do seu computador?
— Só que estamos vivos, não estamos? — retrucou ele.
Um homem com uma mancha grande de sangue no
peito surgiu na porta. Era um dos prisioneiros e fora ferido
na invasão.
— Os carcereiros... Estão todos mortos... —
murmurou, escorregando para o piso em seguida.
Um policial com o braço cheio de sangue surgiu, vindo
da sala de comunicações. Estavam todos atônitos. Rusty
ajudou Sharon a se levantar. Foram até o corredor. Outros
vinham dos fundos do prédio, arrastando-se, todos feridos,
gemendo, alguns gritando.
— Chamem uma ambulância! — gritou alguém.
— Alguém avise o capitão — falou Rusty.
— Eu tentei... Ninguém responde no carro dele —
falou o policial que saíra da sala de comunicações.
— Chamem a polícia, então! — berrou Sharon,
apoiando as costas na parede e deslizando até sentar-se.
Ficou imóvel, olhando os homens sujos de sangue que
desfilavam diante dela. Enquanto isso, numa operação
impecável, os policiais haviam conseguido remover todas as
pessoas que ocupavam os prédios que seriam demolidos. Os
engenheiros e técnicos em explosivos percorreram as
instalações, instalando os dispositivos que acionariam as
implosões. Na semana anterior, haviam trabalho
50
incansavelmente para perfumar as fundações dos prédios e
instalar a dinamite. Um início de tumulto foi prontamente
dominado pela polícia, que agiu energicamente e manteve o
povo afastado do local. Quando tudo estava pronto para as
implosões, Charles Medows desceu de seu carro e foi até o
caminhão de controle.
— Está tudo limpo, senhor. Pode acionar o botão
quando quiser — disse o engenheiro-chefe.
Em todos os prédios que seriam implodidos haviam
sido instalados microfones sensíveis para detectar, até o
último instante, a presença de pessoas na área. Ligados a um
potente amplificador, qualquer som seria reproduzido num
alto-falante instalado no painel de controle das explosões.
— Desligar microfones! — ordenou o engenheiro,
quando Medows se preparou para apertar o botão.
Antes que isso acontecesse, ouviu-se nitidamente um
som no alto-falante.
— Esperem! — gritou o engenheiro.
Todos ficaram atentos ao alto-falante. Eram passos e
vozes que comentavam alguma coisa sobre terem
conseguido enganar a polícia.
— Onde podem estar? — indagou Charles Medows.
— Podem estar em qualquer parte.
O poderoso homem olhou ao redor. Ali estavam ele, o
engenheiro-chefe e mais dois engenheiros auxiliares.
— Ninguém ouviu coisa alguma, entenderam? Agora
desliguem os malditos microfones! — berrou.
51
A ordem foi cumprida. Ele apertou o botão principal.
Como o som de um terremoto, as explosões foram
acontecendo em cadeia. De repente, a multidão lá fora,
horrorizada, apontava para um dos prédios. Assustadas e
querendo sinalizar suas presenças, pessoas surgiram nas
janelas de um dos prédios, acenando trapos. No momento
seguinte, as explosões lançaram corpos pelas janelas e tudo
desmoronou.
— Rápido, quero filmes e tapes que possam ter sido
feitos desta cena! — ordenou Charles ao engenheiro-chefe.
— Avise os homens da segurança imediatamente.
Era um atrapalho, mas uma conversa com as pessoas
certas faria daquele fato apenas um boato, algo que jamais
poderiam ser comprovado.
***
Naquela noite, Sharon e Rusty estavam mais sedentos
do que de costume. Tomaram alguns uísques, depois
continuaram com cerveja. Fumavam nervosamente numa
das mesas ao fundo, querendo esquecer o inferno que
haviam vivido naquela tarde. Ned, o dono do bar, atrás do
balcão, observava-os com preocupação. Conhecia os dois,
principalmente Rusty. Sentia, como todos os demais, a
fatalidade que quase o mutilara e tirara-o do trabalho na rua.
Sabia que ele não aguentaria muito tempo isso,
principalmente acontecendo coisas como a invasão daquela
tarde, quando cruzou novamente com Goose. Só que nada
havia que pudesse ser feito. Dependeria de Rusty sair de
tudo aquilo inteiro.
52
— Como vai ser amanhã, Rusty? — indagou Sharon.
— Estava pensando nisso agora mesmo. Quando penso
que terei de voltar para lá, tremo de medo... Isso está me
matando, Sharon. Ouço a gargalhada dele soando dentro de
minha cabeça, junto com o barulho daquela maldita arma...
— interrompeu-se ele, observando Bill, um policial que
trabalhava no mesmo Distrito, sentando-se à mesa ao lado.
Bill tinha uma garrafa de uísque na mão e um copo. Foi
servindo uma dose atrás da outra e bebendo-as.
— Ei, Bill! — chamou-o Rusty. — O que está
havendo?
Bill ainda tomou mais uns dois goles, antes de respirar
e encarar Rusty.
— Tudo isso fede, Rusty. Fede! — exclamou ele
furioso.
— O quê? Nunca vi você beber assim...
— Foi algo que vi hoje à tarde... Jamais esquecerei...
— Esteve naquela ocorrência lá perto do estádio?
— Sim... Vi pessoas serem jogadas para fora das
janelas, quando as explosões começaram. Todos viram,
Rusty. Todos viram, mas a empresa nega... Se há cadáveres,
ficaram sepultados sob os escombros... Só que ninguém
admite. O comissário de polícia foi o primeiro a desmentir
tudo...
— Vai com calma com esse uísque! — recomendou
Sharon.
Bill pensou por instantes, depois apanhou a garrafa e
foi até o balcão conversar com Ned.
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54
CAPÍTULO 5
Os dois policiais, quando foram apanhar seus carros,
comentavam como Bill ficara abalado com o que acontecera
naquela tarde, no local das implosões. Era um policial dos
antigos e trabalhava nas ruas, embora já contasse com
tempo suficiente para pedir uma função mais segura.
— Só que, nestas alturas, Rusty, as ruas são o lugar
mais seguro — riu Sharon, referindo-se ao ataque efetuado
pelos traficantes para libertar Goose.
— Nem me fale. Isso vai dar muita confusão ainda,
quando sair nos jornais.
— Quer apostar como não sai? Política, meu caro
Rusty. Política! O noticiário das implosões vai ser a
manchete em todos os jornais da cidade por alguns dias. A
invasão do Sexto Distrito nem será citada para não
obscurecer o grande acontecimento.
— Já não tenho mais dúvida quanto a isso — falou ele.
Haviam chegado onde estava o carro de Sharon. Ela se
apoiou na porta. Rusty encostou-se nela, olhando-a nos
olhos, subindo as mãos pelos braços dela, até segurar-lhe o
rosto.
— Quer companhia esta noite? — indagou ele.
— Dê-me um bom motivo para isso — respondeu ela,
cheia de provocação.
55
Em resposta ele a beijou nos cantos dos lábios, depois
nos olhos, enquanto suas mãos desciam até a cintura dela,
resvalando pelos seus seios. Apertou-a contra si, beijando-a.
— O que acha disto? — perguntou ele em seguida.
― Poderia ser melhor, mas... Está bem! Você me
segue — riu ela, empurrando-o e entrando no carro.
— Vá devagar! — ordenou ele.
Seguiram despreocupadamente. No caminho, enquanto
Sharon ia em frente, Rusty parou numa casa de bebidas.
Pretendia comprar vinho e vodca. Ele e Sharon,
ultimamente, apenas conseguiam se animar com um pouco
de bebida. Ele percebia isso, sabia que era um péssimo
sintoma, mas não queria deixar aquilo. Seu braço e sua
carreira estavam mesmo prejudicados. Achava que
aproveitando um pouco mais da vida daquela forma podia
compensar-se. Por enquanto tinha Sharon e, obviamente, um
era a muleta do outro.
Comprou a bebida, voltou ao carro e tomou a direção
da casa dela. Quando chegou, viu o carro estacionado, a
porta da frente aberta, mas não havia nenhuma luz acesa.
Estranhou. A primeira coisa que Sharon fazia, segundo
contara a ele, era trancar a porta e acender a luz, a menos
que estivesse bêbada demais para isso, o que não era o caso
naquela noite.
Ficou no carro, pensando no que fazer, olhando a porta
aberta e não percebendo nenhum movimento lá dentro.
Resolveu entrar. Sacou a arma e a levou debaixo do saco de
papel, onde carregava as garrafas.
56
— Sharon! — chamou, quando chegava à porta. —
Acenda logo essa luz... Posso tropeçar com as garrafas —
disse, avançando.
Não gostava daquele silêncio e daquela escuridão.
Olhou ao redor. As luzes estavam apagadas nas casas
vizinhas. Havia carros estacionados na rua. Tudo parecia
tranquilo como sempre fora naquele bairro residencial.
Entrou. Ligou a luz. Sentada no sofá, com uma navalha em
seu pescoço, Sharon o olhava com os olhos arregalados. Um
homem negro saiu detrás da porta.
— É melhor ficar quietinho, tira! — ordenou e Rusty
logo lhe reconheceu a voz.
Era Gordon Flowers, o cafetão.
— Eu sinto muito, Rusty! — disse Sharon, num fio de
voz.
A lâmina em sua garganta ferira superficialmente a
pele, fazendo-a sangrar.
— Onde está sua arma? — indagou Gordon, após tê-lo
revistado e encontrado o coldre vazio.
— Aqui está — disse ele, levantando-a lentamente,
sempre olhando para Sharon.
Lamentou, naquele momento, que seu braço não
estivesse bom. Naquela distância poderia enfiar uma bala na
testa do homem com a navalha. Antes que Gordon a seu
lado percebesse o que acontecia, enfiaria o revólver em sua
boca e estouraria seus miolos. Só que não podia confiar
naquele braço. Podia errar o tiro. Podia acertar Sharon e
causar sua morte. Entregando a arma a Gordon, no entanto,
57
sabia que, no fim das contas, era isso mesmo o que estava
fazendo.
— O que temos aqui? — comentou o cafetão, retirando
o pacote da mão dele.
Examinou a garrafa de vinho e a de vodca, pensando
por instantes. Olhou alternadamente para Rusty e para
Sharon. Depois abriu a de vodca. Tomou um gole.
Estendeu-a a Rusty, que fez um movimento negativo de
cabeça.
— Acho que não entendeu bem as coisas, branquelo.
Eu dou as ordens aqui. Beba! Beba bastante! — ordenou,
pondo o revólver na garganta de Rusty.
Sem alternativa, ele levou a garrafa aos lábios. Fechou
os olhos para não ver a expressão de pavor de Sharon.
Estavam dominados, ameaçados e ele nada podia fazer. O
sabor forte da bebida amenizou aquele sentimento de
impotência. Bebeu até quase engasgar.
— Bom! Muito bom! — murmurou Gordon, tomando
a garrafa de volta.
Levou-a até Sharon, que tremia de ódio e de pavor.
Estendeu-a para a garota.
— Beba, Sharon! Vai se sentir melhor — falou-lhe
Rusty, olhando ao seu redor, tentando encontrar uma forma
de saírem daquela situação.
A navalha continuava na garganta da policial. Fios de
sangue deslizavam por sua pele. Ela apanhou a garrafa e
começou a beber. Em poucos goles, ela e Rusty já haviam
tomado metade da garrafa. Gordon tomou-a de volta,
58
levantando-a contra a luz. Levou-a para Rusty. Estendeu-a.
Ele bebeu tanto quanto podia, deixando menos de um
quarto. Estava com engulhos, sentindo o álcool fazer efeito
rapidamente. Quase vomitou, mas conseguiu se segurar.
— Sobrou um restinho para você, puta uniformizada
— falou Gordon, levando o restante para ela.
Com mãos trêmulas, Sharon levou a garrafa aos lábios,
bebendo o restante. Estavam os dois, agora, embriagados.
Viam tudo à distância, como num filme. Não parecia estar
acontecendo com eles. A navalha em sua garganta não doía
nem assustava mais. Começou a rir.
— Bem, o que vou fazer com vocês dois?
Principalmente com você, piranha! — comentou Gordon,
segurando a garrafa na mão.
Sharon olhava-o pateticamente, rindo. Ele estendeu a
garrafa, esfregando o bico no pescoço dela. Depois com um
puxão repentino, arrebentou os botões da camisa dela.
Enfiou o bico da garrafa entre os seios dela.
— Ei, cara! Não faça isso! — falou Rusty com a voz
enrolada, tentando dar alguns passos na direção deles.
Tropeçou nos próprios pés e caiu pesadamente no
assoalho. Sharon riu mais alto ainda, divertindo-se com
aquilo. Gordon olhou para o homem que segurava a garota,
depois para a garrafa que tinha na mão.
— Corte a roupa dela — ordenou.
Aturdido, Rusty levantou a cabeça, tentando entender o
que estava acontecendo. Não conseguiu. Ficou ali deitado,
vendo Sharon ser derrubada no tapete. Ela ria, enquanto
59
retalhavam suas roupas. Rusty viu a garrafa, então, mas não
entendeu. Ouviu-a sendo quebrada depois. Ouviu Sharon
gemer. Sentiu que punham algo em sua mão e que alguém
telefonava para algum lugar. Depois tudo se apagou diante
dele.
***
Quando acordou, Rusty ainda se sentia deslocado no
tempo e no espaço. Sentia um gosto estranho na boca. A
cabeça latejava estranhamente. Tentou se mover, mas
percebeu que suas mãos estavam presas com correias nas
laterais da cama.
— Que diabos! — murmurou ele, acordando o policial
que dormia na poltrona no fundo do quarto.
O homem espreguiçou-se, levantou-se e se aproximou
da cama.
— Ei, Rusty, como está? — indagou.
Rusty olhou-o demoradamente, até reconhecê-lo.
— Olá, Ben? O que faz aqui? E o que está havendo?
Por que prenderam minhas mãos?
O policial coçou o alto da cabeça, fazendo uma careta
estranha, que Rusty não entendeu. Havia recriminação nos
olhos dele. Havia aquela expressão que se usava para dizer a
alguém que esse alguém estava numa grande encrenca.
Lembrou-se, então, de Gordon. E de Sharon.
— Ben, pelo amor de Deus! O que aconteceu? E
Sharon? Como está ela? — quis saber, agitando-se na cama.
60
— É melhor se acalmar, homem! — recomendou o
policial, segurando-o pelos ombros. — Sharon está bem
agora.
— Mas o que houve com ela?
— Não se lembra?
— Eu apaguei, cara...
— Posso imaginar. Os dois estavam bem altos.
Beberam a garrafa toda...
— Fale, Ben! E Sharon?
— Conseguiram costurá-la por dentro...
— Por dentro? Como assim?
— Eu não sei que loucuras vocês aprontaram, Rusty,
mas quebrar uma garrafa dentro da vagina de uma mulher
não é coisa muito agradável, não? O que houve? Um
acidente?
Rusty ficou aterrorizado, lembrando-se da garrafa
vazia na mão de Gordon, de Sharon sendo despida, de seus
gemidos, do barulho de vidro se partindo. Entendeu, então,
de que forma o maldito se vingara dela e dele ao mesmo
tempo.
— E o cara... Pegaram o cara? — indagou, em
desespero.
— Que cara, Rusty? Pegamos você, bêbado como um
gambá. Com uma navalha na mão. Havia mais alguém lá?
— Sim, havia... — respondeu ele, percebendo a
armadilha que Gordon Flowers havia preparado para eles.
— Maldito! — berrou, debatendo-se na cama.
61
O policial apertou um botão. Momentos depois, uma
enfermeira e um médico entravam no quarto.
— Eu vou pegá-lo! Vou matar aquele filho da mãe! —
gritava Rusty, tentando se soltar.
O médico deu uma ordem rápida para a enfermeira. Ele
e o policial imobilizaram Rusty. A enfermeira aplicou-lhe
uma injeção no braço. Rusty quis continuar gritando, mas
pouco a pouco sua língua foi ficando pesada. Tentou manter
os olhos abertos, mas acabou mergulhando inexoravelmente
numa grande escuridão.
Ao acordar, viu Bill, Ned e outros policiais. Suas mãos
não estavam mais presas. Levantou os pulsos diante dos
olhos. Estavam esfolados e com hematomas.
— O que aconteceu agora? — indagou, sentindo a boca
pastosa. — Por que não estou preso mais?
— Nós cuidamos disso, parceiro — falou Bill. —
Como se sente?
— Como se tivessem passado com um caminhão em
cima de mim. Alguém aí pode me explicar tudo isso?
— No princípio julgamos que tudo tivesse sido um
acidente numa farra dos dois. Depois estranhamos que
tivessem ligado para a emergência. Ouvi a gravação. Não
era sua voz, mas a ligação foi feita da casa de Sharon.
Podem-se ouvir os gemidos dela ao fundo. Ela recuperou a
consciência ainda há pouco. Falou de Gordon Flowers, o
que bate com o que você delirava, enquanto estava sendo
trazido para cá.
62
— Vocês o pegaram? Diga que pegaram aquele
bastardo! — falou Rusty, trêmulo de ódio.
Bill abaixou a cabeça, incapaz de encará-lo. Os outros
policiais no quarto reagiram da mesma forma.
— Diabos, o que está acontecendo aqui? Aquele
homem é um louco, quase matou Sharon e a mim. Por que
não o pegaram ainda?
— Rusty, ele tem um álibi. Há uma dezena de pessoas
que juram que ele estava num bar, bebendo, quando
aconteceu tudo.
— E a voz no telefonema?
— Não era dele, pode ter certeza disso.
— Era do seu cúmplice. Diabos! Eu vou ter que pegar
aquele cara, Bill. Eu vou ter que pegá-lo!
— Esqueça, Rusty. O capitão já esta sabendo da
história e ordenou que você e Sharon não se aproximem de
Gordon. Pense bem! Matá-lo só vai complicar sua vida.
— Não pode deixar como está, Bill. Ele tem que pagar,
não pode ficar assim.
— No momento certo, Rusty, ele pagará — disse Bill,
olhando para Ned, que se aproximou da cama.
Os dois olharam fixamente para Rusty.
— Nós prometemos isso, Rusty! — afirmou Ned,
estranhamente.
Para um policial aposentado, Ned estava assumindo um
improvável compromisso. Como iria cumpri-lo? Só que
havia algo na maneira como ele falara aquilo que
63
tranquilizava Rusty. Dentro dele, teve certeza que Gordon
Flowers pagaria pelo que havia feito.
— Confia em nós? — acrescentou Bill.
— Sim, eu confio!
***
Rusty pôde retornar ao trabalho dois dias depois.
Sharon permaneceria mais tempo. Seus ferimentos haviam
sido graves. Os pedaços de vidro da garrafa haviam
perfurado alguns órgãos internos, que precisavam de
cuidados especiais. Quando fora vê-la, antes de sair do
hospital, ela segurara a mão dele, olhando-o nos olhos, e
dissera:
— Quero estar lá quando acontecer, Rusty. Prometa
isso para mim!
— Do que está falando?
— De Gordon Flowers. Bill e Ned estiveram aqui. Sei
que vão pegá-lo. Quero estar junto. Quero olhar nos olhos
daquele filho da mãe e vê-lo morrer, Rusty. Prometa-me
isso!
Rusty estava convicto de que havia alguma coisa que
Bill e Ned conheciam e não revelavam. Sua primeira
suspeita foi aquele C em vermelho nas patas.
O Sexto Distrito estava em obras de reconstrução,
principalmente a sala de Rusty, que fora destruída pelos
disparos. Um novo computador fora instalado numa sala
menor, próxima da carceragem. Ali ficava isolado e podia
trabalhar mais rápido, sem interrupções.
64
Concentrou-se nos crimes insolúveis onde constava o
C na pasta. O capitão havia cobrado resultados. Rusty
precisava encontrar alguma coisa para acalmá-lo.
Algo interessante, então, aconteceu. Quando foi revisar
as pastas, todas elas tinham um C desenhado em vermelho,
significando que alguém estava tentando confundir seu
trabalho. Isso significava que estava chegando perto de
alguma coisa. Senão, por que alguém se incomodaria com
isso?
Havia feito, antes de ser hospitalizada, uma relação dos
crimes de todos os Distritos da cidade com aquela
característica. Tentou localizar no computador. Havia sido
apagada. Tentou recuperar, mas foi impossível. Alguém não
o queria investigando naquela direção. Ligou, então, para
seus amigos nos outros Distritos, pedindo que dessem uma
olhada nas pastas. Todas, agora, continham uma letra C em
vermelho. Se havia alguém querendo impedir que a
investigação tomasse aquele rumo, esse alguém só poderia
ser um tira. Não apenas um, mas pelo menos um em cada
Distrito. Por quê? Com que interesse? O que significava
aquilo?
Naquela tarde, no Bar do Ned, confidenciou isso ao
proprietário.
— Rusty, já falei para você esquecer aquilo. Há coisas
que merecem ficar sepultadas para sempre. Essa é uma
delas.
— Só que o comissário quer ver algum resultado. O
prefeito está interessado em soluções para esses crimes.
65
— Então esse é o problema... Está certo, siga em
frente, mas tenho certeza que não encontrará pistas.
Havia outros policiais no balcão que haviam
acompanhado com interesse a conversa. Alguns aposentados
já, que se reuniram no canto do balcão, com Ned, quando
Rusty saiu.
O policial não esperava outra resposta de Ned, mas
sentia que ele sabia de algo mais e não queria lhe contar. Era
cedo ainda. Naquele dia não estava com vontade de beber.
Pensou em visitar Sharon, mas doía-lhe vê-la naquela cama,
gemendo de dor ao menor movimento. Apanhou, então, um
papel que trazia no bolso. Era uma relação de nomes que
retirara aleatoriamente de uma daquelas pastas. Ali estavam
todas as vítimas de um corretor da bolsa, que simplesmente
fora explodido em sua casa. Muitos haviam denunciado seu
crime de desvio de dinheiro.
Escolheu um dos nomes. Foi a uma cabine telefônica e
ligou. Pediu para falar com John Sanders.
— Quem está falando? — retrucou do outro lado uma
voz feminina.
— Aqui é Rusty Brown, sou policial do Sexto Distrito.
O nome de John Sanders aparece entre as vítimas do
desfalque dado por Morgan Hart, um corretor da bolsa...
— O que você está investigando?
— Morgan Hart faz parte de uma relação de crimes
considerados insolúveis... Estou tentando solucioná-lo ou
encontrar alguma pista que esclareça as circunstâncias de
sua morte...
66
— Aquele bastardo teve o que merecia! — declarou a
voz e Rusty percebeu o ódio que havia nela.
Um ódio grande e tão forte como havia na voz de
Sharon, pedindo para que Gordon fosse morto na frente
dela.
— Onde está o Sr. Sanders? — insistiu ele.
— Meu pai? Meu pai está morto! — respondeu ela,
num fio de voz — Mas eu preciso falar com alguém. Isto
está me matando... — soluçou a jovem com a voz
embargada.
— Tenho seu endereço aqui. Estou indo. Chego em
quinze minutos no máximo — afirmou ele.
Sentia que havia alguma coisa ali. A voz da garota
dava-lhe essa convicção. Apanhou seu carro e rumou para o
endereço anotado no papel. John Sanders estava morto.
Havia sido uma vítima de Morgan Hart, que também estava
morto e seu processo constava numa pasta com um grande
C vermelho na capa. Era um dos casos de que se lembrava
quando lançara no computador, porque apenas fragmentos
da vítima foram localizados. Uma prótese dentária fora
decisiva na identificação. Quem havia preparado aquela
bomba sabia o que fazia e o que esperava obter com ela.
Ao abrir a porta, deparou-se com uma garota de pouco
mais de vinte anos, franzina, magra, de óculos grossos,
cabelos presos e roupa totalmente fora de moda. Ela o
convidou a entrar. A casa era modesta. Os móveis
demonstravam que a vida era dura para os moradores dali.
67
— Moro com minha mãe. Ela já foi dormir. Depois da
morte de meu pai, nunca mais se recuperou. Sente-se,
policial! Sinto não ter nada para lhe oferecer. A morte de
meu pai foi uma tragédia adicional para nós. Ele se
suicidou, quando soube que todos os seus investimentos
haviam sido perdidos. Perdemos o seguro também.
Tínhamos uma casa. O banco a tomou.
— Em resumo, Morgan Hart não tomou apenas o seu
dinheiro...
— Destruiu nossas vidas... — afirmou ela.
Via-se que lutava bravamente para impedir que
lágrimas rolassem pelo seu rosto.
— Esta é uma visita oficial, policial?
— Não, senhorita. É uma investigação particular. Estou
tentando estabelecer as razões da morte de Morgan. Creio
que já as encontrei. Preciso saber como isso foi feito.
— Quer mesmo saber? Eu fui a responsável pela morte
dele. Não digo isso com orgulho, mas esperava me sentir
melhor sabendo que ele estava morto. Pelo contrário. Sintome pior ainda. Sinto-me mais criminosa que ele, igual ou
pior até. O maldito conseguiu até isso com sua morte,
policial.
Rusty entendeu o drama daquela garota. Toda a sua
vida fora destruída por um homem quando vivo e até depois
de morto. Só que ele queria ir mais fundo. Queria mais
detalhes.
— Como conseguiu isso, senhorita?
68
Ela conseguiu controlar as lágrimas. Enxugou o rosto
com as mãos.
— Uma vez eu vi, num quadro de avisos de um bar,
um curioso recado. Parecia estar lá há muito tempo. Dizia:
ele não prende, não acusa, não julga. Ele apenas executa a
sentença. Algo assim. Eu conhecia algumas historias sobre
isso. Mas jamais pensei que fossem verdadeiras. Quando me
vi no fundo do poço, sabendo que aquele bastardo estava
livre e que iria gozar aquele dinheiro roubado, apelei para
tudo. Recorri à polícia, ao promotor, a advogados. Todos
foram unânimes em me dizer que eu nada poderia fazer,
principalmente porque isso custaria muito dinheiro. Eu não
tinha dinheiro para pôr na cadeia o maldito que havia
matado meu pai.
— Por isso recorreu ao Carrasco?
— Sim. Não acreditava muito. Mas deixei meu nome e
telefone. Até havia esquecido o assunto, quando ele me
ligou...
— Ligou?
— Sim, tarde da noite.
— E o que ele disse? Como agiu?
— Apenas perguntou quem.
— Quem?
— Sim, queria apenas o nome da pessoa que deveria
ser justiçada. Citei o nome de Morgan Hart. Então ele
perguntou-me: qual é sentença para ele? Não hesitei. Morte!
Eu disse isso convicta que Morgan Hart seria morto.
— E daí?
69
— Daí ele não disse mais nada, não perguntou mais
nada e simplesmente desligou. Fiquei assustada. Todas as
manhãs olhava o jornal para ver se aparecia alguma coisa.
Os dias foram se sucedendo. Achei que aquilo fora uma
brincadeira de alguém, um trote, até que, finalmente, aquela
explosão que pude ouvir daqui. No dia seguinte, estava
confirmado: Morgan Hart havia sido pulverizado. Como
uma pulga que se esmaga sob a unha do dedo. Pensei que
aquilo fosse me deixar feliz... Não! Aquilo está me
destruindo. Há alguns dias eu liguei para a polícia. Disse
isso que acabei de contar a você. Sabe o que eles me
disseram?
— Posso imaginar.
— É, acho que pode mesmo, policial. Disseram que eu
estava maluca, que deveria ir dormir, que não havia como
eu provar que havia cometido o crime. E é verdade! É
incrível! Causei a morte daquele homem, mas ninguém pode
provar isso.
— Há algo que eu possa fazer por vocês duas?
— Se souber como consigo um pouco de paz, eu
agradeceria.
Ele pensou por instantes. Depois apanhou um de seus
cartões e anotou um endereço no verso.
— É da Igreja da Sagrada Família, perto daqui. Procure
o Padre Thompson. É um bom homem. Estou certo de que
vai ajudá-la.
Ela o olhou pateticamente.
— Acha mesmo?
70
— Tente, pelo menos — afirmou, sem certeza alguma
naquela situação.
Quando foi para o carro, pensou se se sentiria daquela
mesma forma quando matasse Gordon. E Goose.
71
CAPÍTULO 6
Sharon deixou o hospital. Passava o dia todo na cama.
Não tinha ânimo para nada. Sempre que Rusty ia visitá-la,
encontrava-a com os olhos vermelhos e inchados de tanto
chorar. Uma tarde, viu o revólver dela engatilhado sobre o
criado-mudo. Recolheu-o e levou-o para o Distrito, mas
ninguém podia garantir que ela tivesse uma arma de reserva.
— Isso está me matando, Rusty! — disse ela, certa
noite. — Eu não posso me sentir tranquila nem em minha
própria casa. A qualquer momento ele pode surgir. E você
levou minha arma. O que vai ser de mim?
Aquilo era algo que o preocupava. Gordon Flowers não
deveria estar tranquilo, sabendo que os dois, a qualquer
momento, poderiam se vingar. Cedo ou tarde atacaria de
novo, desta vez para não deixar testemunhas. Rusty
hesitava, no entanto. Pensara em levar outra arma para
Sharon, uma escopeta, por exemplo, mas o medo de que ela
pusesse fim na própria vida era terrível. Percebia que ela
não tomava os remédios corretamente. Notava que ela
bebia. Tudo aquilo era uma combinação perigosa.
— Sharon, que acha de se mudar daqui? — sugeriu ele
uma noite. — Sei de um apartamento barato que está sendo
alugado lá no Bronx. Tem dois quartos. Poderíamos ir
morar juntos. Seria uma despesa a menos para nós dois.
Além disso, você estaria mais segura.
— Não tem medo que eu pule pela janela?
72
— Não tem perigo, é no primeiro andar! — riu ele,
fazendo-a rir também.
Sharon olhou ao seu redor. Sua casa guardava
lembranças desagradáveis. Aquele ambiente a fazia lembrarse do marido e de Gordon. A sugestão de Rusty caiu de
imediato em sua simpatia.
— Sabe que poderia ser algo interessante? —
comentou ela.
— Poderemos ir vê-lo amanhã mesmo. Ligo cedo para
a imobiliária, pedindo a reserva. À tarde, depois do
expediente, passo aqui e vamos até lá. Trato feito?
Sharon concordou e, pela primeira vez nos últimos
dias, ele a via animada e, de certa forma, feliz.
Não haviam tocado mais no assunto de Gordon
Flowers, mas ambos sabiam que só poderia haver uma
solução para ele. Nenhum dos dois sabia como aquilo
aconteceria. Só sabiam que aconteceria. Alguma coisa lhes
dera essa certeza.
No dia seguinte, Rusty acertou com a imobiliária,
depois se concentrou em seu trabalho. Mais uma vez o
capitão tinha pedido algum resultado. Estava concentrado
naquilo, pensando em como todos aqueles casos poderiam
ter a mesma história trágica como aquela contada pela filha
de John Sanders. Longe de lhe parecer fantasiosa, acreditou
nela. Era como imaginou que acontecesse. Um homem
ligava, recebia um nome e executava uma sentença. Tudo
isso feito de um modo que não deixava pistas. Tudo em
nome da justiça.
73
Só que contra a lei. E Rusty indagava-se a respeito
disso. Era um policial e conhecia todo o discurso a respeito
de não fazer justiça com as próprias mãos. Só que, no caso
de Morgan Hart, a justiça fora feita. Não importava por
quem. Da mesma forma, o que acontecera com a quadrilha
dos Hard Boys mostrava a justiça sendo feita.
Era ético? Era correto? Devia estimular? Ou devia
combater esse tipo de coisa. Devia contar ao capitão o que
ouvira da filha de John Sanders? O capitão acreditaria? O
que aconteceria na cidade se aquilo fosse divulgado?
Mudaria alguma coisa?
— Que diabo! — murmurou ele, achando que tudo
aquilo não valia mesmo a pena.
No fundo, gostaria de deixar seu nome e telefone junto
àqueles recados. Quando o Carrasco ligasse, diria dois
nomes, Gordon Flowers e Goose. Depois riria quando
soubesse que eles haviam sido mortos como insetos que
eram.
— Rusty, trabalho fora! — disse o sargento, pondo a
cara na porta. — apresente-se na sala de instrução.
— Eu? Tem certeza? — estranhou ele.
— Absoluta! — confirmou.
Por instantes ficou confuso. Afinal, voltar ao trabalho
nas ruas era o que mais desejava. Se fosse prudente,
conseguiria se sair bem em qualquer situação. Apanhou o
coldre de ombro e vestiu-o. Apanhou a arma e cartuchos
extras, apanhou seu paletó e foi para a sala de instrução.
Instantes depois chegava o capitão.
74
— Daqui a pouco vai haver uma grande festa no
lançamento do Estacionamento da Corporação Medows.
Estamos destacando policiais para reforçar o trabalho de
coordenação de trânsito.
Enquanto ele falava, Rusty observava os outros tiras ali
na sala. Eram todos os à beira da aposentadoria ou em
recuperação como ele. Entendeu logo o motivo da
convocação. Iriam apenas cuidar do trânsito e de manter as
pessoas afastadas.
— ...houve alguns comentários quando da implosão e
estão com medo de uma manifestação popular, por isso o
trabalho de vocês será o de manter as pessoas afastadas do
local da cerimônia de lançamento da obra. O prefeito vai
estar lá. Vai haver descerramento de placa, discursos e essas
coisas...
Rusty não resistiu e levantou a mão.
— O que foi, Brown? — indagou-lhe o capitão,
contrariado.
— Que comentários foram esses? — indagou.
— Dizem que havia gente num dos prédios que
explodiu — antecipou-se Bill.
— Mas nada ficou comprovado. O local foi vasculhado
e nada se constatou. Nenhum filme, nenhuma fotografia...
— Dizem que os homens de Medows recolheram tudo
— cortou-o Bill.
— Dizem que Papai Noel existe e que o coelhinho da
Páscoa mora em East Side com umas coelhinhas da
Playboy. Agora chega. Não estamos aqui para discutir o
75
sexo dos anjos. Vocês têm suas ordens. Irão em quatro
carros. Formem as equipes e não quero vê-los aqui até tudo
terminar lá! — finalizou o capitão, saindo, visivelmente
irritado.
— Vou com você, Bill — falou-lhe Rusty.
— Certo. Você viu como ele ficou? O maldito sabe o
que aconteceu lá. Todos sabem. Três famílias, quatorze
pessoas, morreram lá, Rusty. Só que tudo está sendo
encoberto. Medows os viu, após tê-los captado pelos
microfones de segurança. Mesmo assim, deliberadamente,
acionou o botão. Assassinou friamente quatorze pessoas —
disse Bill, demonstrando toda a sua revolta.
As equipes foram formadas e, logo em seguida, o
comboio partiu. Havia muitos policiais no local. Um cordão
de isolamento cercava a área. Havia populares com cartazes,
manifestando-se contra as mortes na implosão. Panfletos
com fotos de algumas das vítimas circulavam de mão em
mão. Megafones, no entanto, estavam sendo recolhidos pela
polícia.
Apesar disso, dentro da área protegida, os convidados
se sentiam desconfortáveis. Um bufê servia drinques e
salgadinhos. Havia barracas espalhadas, abrigando-os do
sol. Recepcionistas davam as informações necessárias. Um
trator novinho em folha estava posicionado nas
proximidades de um muro. Charles Medows o conduziria
até o muro, derrubando-o. Simbolicamente, aquilo marcaria
o início das obras. Um outdoor, coberto com uma enorme
bandeira americana, seria descerrado, mostrando todo o
76
projeto em perspectiva. Uma banda tocava num coreto
improvisado. Bandeirolas agitavam-se ao vento. Políticos,
jornalistas, gente influente, todos aqueles habituais
frequentadores de colunas sociais começavam a chegar.
Aguardavam a presença de Charles Medows.
Rusty estava orientando o tráfego na esquina. Ali só
era permitida a passagem de carros com motoristas
particulares, já que não havia espaço para estacionamento e
para que o tráfego fluísse continuamente. Limusines
passavam a todo momento. Finalmente, aquela com o
emblema da Corporação Medows aproximou-se. O povo
vaiou. Alguns tomates foram arremessados. Policiais a
cavalo avançaram contra a multidão, contendo os
manifestantes. Rusty ficou olhando aquele imponente carro
passar. À medida que ele descia a rua na direção do local da
cerimônia, um guindaste de demolição, de cuja ponta, presa
por fortes cabos de aço, pendia uma bola de ferro de
algumas toneladas, começou a girar lentamente. O policial
ficou intrigado com aquilo. Um tapume cobria-lhe a visão
de quem operava a máquina. Estranhou, no entanto, que a
perigosa bola de ferro se movesse na direção da rua.
Resolveu, por uma questão de segurança, ir até lá. A
chegada de Charles Medows provocou agitação no local.
Garotas com faixas e bandeiras se aproximaram da limusine,
que era saudada pelos convidados. Ninguém percebia aquela
bola de ferro posicionando-se sobre a rua, no ponto onde
passaria o veículo.
77
— Que diabo! — ia comentando consigo mesmo,
quando, sem ruído algum, a bola de ferro se desprendeu do
guindaste e desceu velozmente, atingindo a parte de trás do
carro onde estava o passageiro, achatando-a.
A confusão foi geral. Rusty ficou atônito a princípio,
depois percebeu que aquilo não fora um acidente. Sacou sua
arma. Enquanto todos corriam na direção do carro, ele
correu para o tapume onde estava a cabine de operação do
guindaste. Quando se aproximou, viu um homem descendo.
— Parado aí? — ordenou, apontando sua arma.
O homem se voltou, encarando-o.
— Joe? — reconheceu-o Rusty com surpresa.
— Está tudo bem, Rusty. Joe já checou o local. Se
havia alguém na cabine, já fugiu e se misturou à multidão
— falou Bill, surgindo atrás dele.
Rusty continuou apontando a arma, sem entender. Não
teria havido tempo para alguém ter descido dali e fugido.
Não teria havido tempo para Joe subir a escada de ferro até
a cabine, examinar e descer. Alguma coisa não estava
correta ali. Joe nem ofegava após o esforço de subir aquela
escada.
— Eles tinham tudo preparado — comentou Bill e ele e
Joe se afastaram, passando por Rusty, que ficou parado, sem
entender o que havia acontecido.
Voltou-se e olhou na direção da limusine. A confusão
era total. Pessoas se agitavam. Uma ambulância havia
parado ao lado do veículo que estava sendo cortado por
homens do corpo de bombeiros.
78
— Removam essa bola de ferro... — gritou alguém.
— Como? — questionou outro.
— Usem o guindaste!
Homens do Corpo de Bombeiros que estavam de
prontidão no local chegaram e subiram a escada até a cabine
de controle. O cabo de aço começou a ser baixado
lentamente. Rusty continuava atônito com tudo aquilo.
Naquela tarde, quando se encontrou com Sharon e a
apanhou com seu carro para irem ver o apartamento novo,
contou-lhe o que vira. Ela ficou tão perturbada quanto ele.
— Você comentou isso no local? — indagou ela.
— Eu? Falar alguma coisa? Não, negativo. Negativo
mesmo. Quero entender direito o que está acontecendo,
Sharon. Há muitas perguntas girando em minha cabeça. Se
eu falasse ali, estaria acusando de alguma forma meus
amigos da polícia. Todos comentavam a hipótese de
acidente como a mais plausível, mas, para mim, Charles
Medows foi deliberada e friamente assassinado na frente de
uma multidão de testemunhas.
— Por policiais?
— Não sei, Sharon. Sinceramente não sei.
Ele não dissera a ela, mas havia notado que um veículo
os seguia. Um veículo que estava parado nas proximidades
da casa dela. Não gostou nada daquilo. Realizara algumas
manobras, saindo de seu caminho, e o veículo se mantivera
atrás dele. Decidiu, então, tomar uma Via Expressa.
— Por que está tomando a Bruckner? — estranhou
Sharon.
79
— É mais rápida — explicou ele, mas,
inadvertidamente, olhou pelo retrovisor.
Sharon percebeu logo que ele mentia. Virou-se e ficou
olhando aquele carro prateado com vidros escuros que vinha
logo atrás. Anoitecia rápido. O outro carro ligou os faróis
com luz alta. Rusty não tinha mais dúvidas.
— Trouxe sua arma? — indagou ela.
— Sim — respondeu ele, sacando-a e entregando-a
para a garota.
— Que diabos eles pretendem? — indagou ela, tensa.
— Como vou saber. Será Gordon Flowers de novo?
— Com certeza. Eu sempre soube que ele terminaria o
que havia começado — respondeu ela, abaixando o vidro e
pondo metade do corpo para fora.
— Sharon! — gritou-lhe Rusty, sem entender o que ela
pretendia fazer.
A garota disparou uma série de três tiros seguidos, que
atingiram o parabrisa do carro que os perseguia, sem causarlhe danos.
— Maldição! À prova de balas! — exclamou ela,
sentando-se de novo.
O carro de trás era muito mais potente e acelerou,
começando a ultrapassar o deles. Por momentos Rusty teve
a impressão que tudo fora um engano e que o veículo os
ultrapassaria e iria embora. Quando os dois carros estavam
lado a lado, o vidro traseiro do outro veículo começou a se
abaixar. Rusty viu com espanto o cano de uma calibre 12. O
80
homem que a empunhava era Gordon Flowers e seu sorriso
cínico e zombeteiro.
— Abaixe-se! — gritou ele, pisando com força no
freio.
Como em câmara lenta, viu-se saindo da mira da
escopeta e, com horror, percebeu que Sharon era o novo
alvo. O disparo arrebentou o parabrisa e transformou o rosto
de Sharon numa máscara irreconhecível de sangue. O carro
prateado continuou acelerando, sumindo de sua vista. O seu
veículo deslizava com as rodas travadas. Um caminhão o
atingiu por trás, fazendo-o rodopiar e atravessar o canteiro
central. Rusty viu-se entrando repentinamente na
contramão. Um furgão, buzinando e piscando os faróis, foi
para cima dele. Novo impacto, jogando-o desta vez na
encosta da rodovia, fazendo-o capotar. Ouviu o som de
freios, de buzinas, de novas batidas. Sentiu um cheiro forte
de gasolina. Sharon estava imóvel e amontoada no banco
como um boneco sem vida. Ele tentou se mexer, mas sua
perna doía terrivelmente.
— Com calma, pessoal! Não o removam assim!
— A coluna...
— Perna, perna presa...
— Ela morreu...
Tudo aquilo passava por ele. Não participava da cena.
Sentia-se afastado dali, sumindo, esquecendo, apagando-se
totalmente.
***
81
Aceitar que os ligamentos de seus joelhos estavam
irremediavelmente perdidos não foi difícil para Rusty.
Aceitar também que seu tornozelo direto perdera toda a
mobilidade, dificultando-o caminhar, foi um pouco mais
difícil, porque o tirava definitivamente das ruas. Até poderia
conviver com o fato de ter perdido a sensibilidade naquele
pé. Só não conseguia aceitar era o fato de saber que Sharon
estava morta e que Gordon Flowers estava vivo e tinha um
bom álibi para a hora do crime. Gritou de dor. Esbravejou.
Esmurrou paredes. Bebeu todo o uísque que tinha em sua
casa, quando retornou do hospital. Quebrou móveis,
inconformado. E nada havia que pudesse fazer. Não
conseguia dirigir um carro mais. Para ficar em pé, precisava
de uma bengala. Sem a bengala, caía. Com ela, não podia
disparar uma arma com precisão. Recebera com profundo
desgosto seu afastamento da polícia: era um inválido agora e
não tinha utilidade alguma. O seguro lhe proporcionava uma
boa soma como indenização. Poderia viver com aquilo. Não
tinha maiores necessidades. Sem perceber, começou
lentamente um processo de autodestruição. Bebia e dormia.
Comia esporadicamente. Até o dia em que Ned foi visitá-lo.
— Você está horrível, Rusty. O que tem feito consigo
mesmo? Sua casa fede! — observou o outro.
— Dane-se, Ned! Ninguém se mete em minha vida.
— O que Sharon pensaria de você?
— Sharon está morta! — declarou Rusty, com lágrimas
nos olhos. — Sharon morreu, Ned! — disse em seguida,
82
compreendendo, talvez pela primeira vez, aquela realidade.
— Ela morreu e não há nada que possamos fazer por ela.
— Não, Rusty, você se engana. Eu sei que há algo que
você precisa fazer por ela.
— Eu? Eu não ando em condições de fazer nada, Ned.
Mal posso aguentar meu próprio corpo.
— O que Sharon lhe pediu, antes de deixar o hospital,
Rusty?
Ele tentou pensar naquilo, mas parecia que acontecera
em outra vida.
— Ela queria... Queria estar presente quando Gordon
morresse...
— E você lhe prometeu isso, não?
— Sim, mas... Só se eu recorrer ao Carrasco...
Ned ficou em silêncio, olhando Rusty nos olhos.
— Tenho uma proposta para lhe fazer, Rusty. Sei que
tem algum dinheiro e que precisará investi-lo com cuidado
para garantir seu futuro. Eu preciso aumentar meu bar. Ele
se tornou pequeno para abrigar meus clientes e amigos. Que
tal uma sociedade? Estou certo que renderá o suficiente para
nós dois vivermos tranquilamente.
— Por que está fazendo isso por mim, Ned? Por que
quer me ajudar? Por que vem me lembrar agora de uma
promessa que fiz a Sharon?
— Uma coisa de cada vez. Você deve algo a Sharon,
por isso tem que dar a volta por cima. Tem que sair deste
túmulo aqui onde está morrendo aos poucos e voltar à vida.
83
O bar lhe dará mais do que dinheiro. Vai se encontrar todos
os dias com amigos, vai se distrair, vai conversar...
— E como vou matar Gordon Flowers? Parece-me que
as duas coisas estão juntas nessa proposta sua, Ned. Foi isso
que eu entendi. Será que estou certo? — questionou Rusty.
— Sim, você está certo, Rusty. Mas uma coisa de cada
vez. Primeiro, vamos voltar à vida. Depois discutiremos os
outros passos.
— Ned, o que sabe sobre o Carrasco? — quis ele saber.
— No devido tempo, Rusty — descartou Ned.
— Mas ele existe, não? Ele pode pegar Gordon
Flowers... E Goose também, não?
— Sim, ele pode...
— E quem é ele, Ned?
— Você mesmo pode ser o Carrasco, Rusty — afirmou
Ned, enigmaticamente, após uma pausa.
***
Nos dias que se seguiram, Rusty se dedicou com muito
afinco aos seus exercícios de fisioterapia. Tinha em casa
todo o necessário e trabalhava até a exaustão,
principalmente no tornozelo imobilizado e no pé sem
sensibilidade. Aos poucos foi sentindo melhoras em suas
reações. Fizera uma sociedade com Ned no bar. Algumas
reformas estavam sendo feitas e demorariam algum tempo.
Rusty confiava que, quando da inauguração das novas
instalações, poderia entrar lá sem precisar da bengala. Não o
animava a perspectiva de ganhar dinheiro, de ver pessoas,
84
de conversar com amigos. Animava-o o que Ned dissera
enigmaticamente sobre o Carrasco.
Não queria vingar-se de Gordon Flowers. Nem de
Goose. Queria fazer justiça, uma justiça que se encontrava
de mãos amarradas, contemplando o cadáver mutilado de
Sharon e o corpo atrofiado de Rusty. Uma justiça que ele
procuraria encontrar a qualquer preço. Homens como
Gordon e Goose eram uma ameaça às pessoas, eram um
câncer que precisava ser extirpado. Nenhum conceito de
legalidade, nenhum sentimento de culpa, nada mais o
afligia. Quando pensava naqueles dois homens, Rusty
pensava neles como homens mortos. Estavam tendo apenas
uma sobrevida, nada mais. Em breve chegaria o momento
de desligar os aparelhos que os prendiam ao mundo.
Conseguiu voltar a dirigir e, no dia da reinauguração
do bar, foi sozinho até lá. Desceu e, sem o auxílio da
bengala, acompanhou Ned até o interior do estabelecimento.
Estava às escuras, com as janelas fechadas e apenas uma luz
acesa nos fundos, jogando uma claridade mínima do
ambiente. Viu, então, sentados às mesas, dezenas de
homens. Não os reconhecia porque não conseguia ver-lhes
os rostos.
— O que é isso, Ned? Uma festa surpresa? — brincou.
— Não, Rusty, uma revelação. Vamos satisfazer sua
curiosidade — falou Ned, levando-o até o balcão, diante do
qual havia uma poltrona, onde Rusty se sentou.
Ned o deixou ali e foi se sentar numa mesa próxima.
Por instantes tudo ficou em silêncio.
85
— Você tem perguntado sobre o Carrasco, Rusty.
Estamos aqui para lhe dar todas as informações.
Aquilo o havia pego de surpresa. Não tinha dúvidas de
que Ned sabia muito mais sobre o Carrasco do que podia
contar, mas o que significava a presença de todos os outros
ali?
— Pergunte, Rusty! — falou uma voz que ele
reconheceu.
— Está bem, eu reconheci essa voz. Bill, você é o
Carrasco?
— Sim, eu sou o Carrasco — respondeu Bill.
— E eu também — falou Ned.
— Eu idem...
— Eu...
Um a um os homens foram afirmando que cada um
deles era o Carrasco, confundindo Rusty.
— Não entendo! O Carrasco não é apenas uma pessoa?
— Somos muitos — disse alguém.
— E por que fazem isso?
— Somos todos policiais cansados de ver as leis
prejudicarem a justiça. Entendemos que as leis são
necessárias, mas a partir do momento em que elas passam a
proteger o bandido, o assassino, em prejuízo do cidadão,
julgamos que é o momento de fazer a justiça prevalecer.
— Vocês matam...
— Fazemos justiça, onde as leis falham.
— Aquelas pastas, com a letra C em vermelho...
86
— Nós, tiras, marcamos os crimes do Carrasco. Não
são nem jamais serão descobertos. Cuidamos disso.
— Charles Medows recebeu uma bola de ferro de
algumas toneladas na cabeça. Foi o Carrasco?
— Sim, centenas de pessoas deixaram recados recado
para o Carrasco naquele dia. Pessoas que viram as vítimas
inocentes explodindo nas janelas daquele prédio. Um júri
popular o condenou à morte. Não é assim que deveria
funcionar? E nós executamos a sentença.
— Por que estou aqui?
— Para ser um dos nossos. De que outra forma vai tirar
das ruas criminosos como Gordon Flowers? Ou Goose?
Rusty sabia que não precisavam gastar argumentos
para convencê-lo.
87
CAPÍTULO 7
Aos poucos Rusty começou a entender que, em torno
do nome do Carrasco, havia um grupo enorme de policiais
antigos ou aposentados de todos os Distritos da cidade,
mantendo viva uma lenda iniciada havia muito tempo.
Todas as pistas possíveis, quando eliminavam um assassino,
eram apagadas pelos policiais da ativa, de forma que aquela
letra C determinava o que devia ser investigado e o que não
devia. Tudo era feito com severos critérios. Nenhuma
execução era realizada, se o grupo não ficasse satisfeito com
o resultado das acusações, apuradas em rigorosas
investigações. Só então tratavam de executar o malfeitor.
Mesmo essas execuções eram feitas de forma que não
houvesse a mínima possibilidade de erro ou de falha. Em
sua maioria, eram utilizados explosivos, que não apenas
matavam a vítima, mas destruíam tudo ao redor,
dificultando as investigações.
Ninguém se preocupava que o prefeito havia
determinado uma nova investigação nos crimes insolúveis.
A morte de Charles Medows tornaria isso ainda mais
acirrado. As investigações seriam intensas, mas um C em
vermelho já estava rabiscado na capa do processo indicando
qual seria o seu destino. Nenhum dos executores chegava a
conhecer a vítima pessoalmente. Era uma norma que todos
seguiam. Sabiam quem era, o que fizera e por quem fora
condenada. Cabia-lhes apenas a execução e, no último
88
momento, no instante definitivo, fazer a vítima entender o
motivo de sua morte.
— Sharon queria estar presente na morte de Gordon
Flowers — comentou com Ned, dias mais tarde, quando
Rusty já fazia parte do grupo.
— Infelizmente não seria possível antes nem será
possível agora — falou Ned.
— Aquele calhorda tem que morrer, eu sei, mas devo a
Sharon essa promessa. Pensei que poderia matá-lo lá no
cemitério, junto ao túmulo dela...
Os outros homens se entreolharam.
— Não, Rusty, será muito evidente. A ligação entre ela
e ele seria rápida. Tudo apontaria na sua direção, a única
pessoa que poderia ter interesse na morte dele — explicou
Bill.
— Eu não me importo. De qualquer forma, poderíamos
atrapalhar as investigações de uma porção de maneiras,
entre elas usando o que Gordon sempre usou: álibis falsos.
No momento da morte daquele safado, eu teria vocês, tiras
honestos, tiras aposentados, jurando que eu estava neste bar.
O que me dizem? Devemos isso a Sharon. Aquele bastardo
terá o que merece e Sharon descansará em paz. Eu sei. Por
favor, rapazes! — insistiu ele.
— O que acham? — indagou Ned.
— Nunca foi feito antes, mas Rusty tem razão quanto à
questão do álibi. Se serviu para Gordon Flowers, um
covarde matador de tiras, servirá para nós também —
ponderou Bill.
89
— Eu acho que devemos fazer dessa forma —
acrescentou Joe. — Rusty está certo e nós seremos o álibi
dele.
— Tudo bem então, Rusty. Como quer fazê-lo? —
indagou-lhe Ned.
— Vou pensar em algo. Quero que me deixem
trabalhar também no caso de Goose, aquele bastardo.
— Entenda que nada fará sozinho, Rusty. Terá que
contar sempre com o nosso apoio para não ter problemas —
alertou Ned.
— Não se preocupem, rapazes. Eu cuidarei para que
vocês saibam de tudo. Além disso, de que outra forma eu
poderia fazê-lo?
***
Numa danceteria do Harlem, diversos homens e
garotas ocupavam uma das mesas privilegiadas. Havia
garrafas de uísque e champanhe sobre ela e ninguém parecia
preocupado com as despesas. As mais belas garotas da noite
estavam ali e os homens se divertiam sem maiores
preocupações. Gordon Flowers, apesar de cercado por duas
lindas mulheres, parecia preocupado. Desde que soubera
que Rusty Brown estava vivo, após o acidente que matara
Sharon, vivia preocupado. Sabia que cedo ou tarde aquele
tira viria atrás dele.
Destruíra-o. Fizera tudo que fora possível para acabar
com ele. Rusty deveria saber que, cedo ou tarde, Gordon iria
de novo atrás dele. Assim, estava na hora de liquidar aquele
assunto, antes que Rusty melhorasse ainda mais. Pelo que
90
sabia, o ex-policial vinha se dedicando com afinco aos
exercícios fisioterápicos e, ao mesmo tempo, treinando tiro
ao alvo na Academia de Polícia. Esses eram indícios mais
do que suficientes para preocuparem Gordon Flowers.
— Ei, Gordon, não está se divertindo! — observou um
dos homens do outro lado da mesa.
— Tem razão, Milt. Tem algo me preocupando de
verdade — respondeu.
— E o que é? Vamos resolver isso logo.
Gordon inclinou-se sobre a mesa. O outro fez o
mesmo.
— Aquele negócio do tira, lembra-se? — indagou ao
amigo.
— Claro, o que houve?
— Ele continua se recuperando. Está treinando tiro ao
alvo na academia. Acho que ele está vindo atrás de mim,
Milt.
— Aquele tira? Duvido. Já está por demais machucado
para tentar algo assim.
— Não, não duvide. Eu sinto, sabe? Eu sinto que ele
está preparando algo para mim.
— Então vamos dar um jeito nele hoje mesmo! Agora
mesmo! Assim você pode voltar para cá a festejar a verdade
— propôs Milt.
— Acho que tem razão — decidiu Gordon, fazendo
sinal para dois outros homens.
Os quatros saíram rapidamente e foram para o Lincoln
prateado do cafetão.
91
— O que está havendo, Gordon? — indagou um dos
homens.
— Vamos liquidar um tira — afirmou Gordon.
Os outros gostaram da ideia. Subiram no carro e
rumaram para o bar do Ned. Naquele horário, já devia estar
fechando. Por isso, assim que chegaram, Gordon mandou
estacionar o carro e esperaram. Havia clientes lá dentro
ainda, que iam saindo pouco a pouco. Rusty se despedia
deles com satisfação. Numa coisa Ned estava certo ao lhe
oferecer a sociedade. Conversar com os amigos vinha sendo
uma boa distração para ele, principalmente porque todos o
animavam na nova profissão.
— Rusty, quer fechar as cortinas e trancar a porta?
Vamos para a melhor hora do dia, a conferência do caixa.
— Certo — concordou Rusty, trancando a porta após a
saída do último cliente.
Depois fechou a cortina de uma das janelas. Quando
foi fazer o mesmo na outra, viu aquele carro prateado e
imediatamente algo estalou em sua cabeça. Lembrou-se de
que, no dia da morte de Sharon, fora um carro como aquele
que os perseguira e onde estava Gordon.
Fechou a cortina, deixando uma fresta. Não vira aquele
carro por ali antes. Tinha os vidros escuros, como os de
Gordon, não permitindo que se visse nada em seu interior.
— O que foi? — quis saber Ned, percebendo que
Rusty continuava na janela, tenso.
— Aquele carro! Foi um carro como aquele que nos
seguiu no dia em que Sharon foi morta.
92
— Tem certeza?
— Sim, sem dúvida nenhuma. Mesma cor, mesmo tipo
de vidros...
Ned foi ao telefone e ligou, enquanto Rusty vigiava.
Viu quatros homens descerem do carro.
— Ned, estão vindo — avisou.
Seu sócio contornou o balcão, de onde retornou com
duas escopetas. Passou uma para Rusty. Ambos ficaram à
espera. Rusty reconheceu perfeitamente Gordon Flowers e
suas roupas espalhafatosas, seu jeito malandro de caminhar,
jogando os ombros e os braços para frente e para trás.
— É ele? — indagou Ned, que o acompanhava na
outra janela.
— Sim, sem dúvida.
— Vamos ver o que eles farão. Se os matarmos aqui,
será fácil justificar legítima defesa.
Gordon e os outros, no entanto, perceberam alguma
coisa. Eram os policiais que desciam a rua, após terem sido
chamados por Ned. Correram de volta para o carro e
arrancaram a toda.
— Maldição! — lamentou Rusty. — Estava tão perto
que podia enfiar-lhe o cano da escopeta na boca.
— Não se preocupe, não faltará oportunidade —
acalmou-o Ned.
Explicaram que alguns homens tinham tentado invadir
o bar e os policiais anotaram a queixa. Quando ficaram
sozinhos, Ned encarou o amigo com preocupação.
93
— Vamos ter que nos antecipar, Rusty. Ele tomou a
iniciativa de vir atrás de você. Já sinalizou que quer vê-lo
morto. Você não tem escolha. Temos de caçá-lo.
— Aquele bastardo é teimoso e cuidadoso, Ned. Vai se
retrair por algum tempo, depois voltará a atacar. Foi assim
das outras vezes. Vamos ter tempo de planejar o que fazer
com ele. Não se preocupe.
Alguns dias depois, no começo da noite, Bill chegou ao
bar com uma expressão de satisfação no rosto. Foi até o
canto do balcão, chamando por Ned e por Rusty.
— O que tem de novo, Bill? Parece satisfeito — falou
Ned.
— Tenho uma boa notícia para o Rusty. Acho que
podemos pôr as mãos em Goose e liquidá-lo.
— Sério? De que forma?
— Temos um informante metido na quadrilha dele.
Goose vai ser o mensageiro que apanhará com os
colombianos uma partida de drogas. Como o negócio será
feito em território protegido por outras gangues, apenas ele
e o emissário dos colombianos se encontrarão. Minha ideia
é darmos um jeito de tirar-lhe a droga e deixá-lo mal com o
chefe da quadrilha. Na certa vão liquidá-lo.
— Não, não é o bastante para mim, Bill. Quero que ele
saiba porque está morrendo e quem o está matando. Eu
tenho que puxar o maldito gatilho ou jamais em minha vida
descansarei.
— Esperem um pouco — falou Ned. — Se
conseguirmos tomar-lhe a droga, poderemos montar uma
94
armadilha para ele. Goose fará tudo para recuperá-la. Só
temos que deixar tudo preparado para ele.
Rusty pensou por instantes.
— Sim, Ned tem razão. Quando será a compra da
droga?
— Hoje, às dez, na margem continental do Rio
Hudson, em Union City. Por quê? — quis saber Bill.
— Há uma porção de armazéns vazios na margem da
cá, em Riverdale, não?
— Sim, qual é o seu plano? — quis saber Ned.
— Como acha que poderemos tomar-lhe a droga, Bill?
— Eu cuido disso. Ele vai usar o Túnel Lincoln, tanto
para ir como para voltar. O túnel é considerado território de
ninguém. Nenhuma quadrilha o protege lá.
— Certo, então. Você toma a droga dele ali e leva para
o armazém que vamos escolher. Antes que ele tenha tempo
de pensar, vamos ligar para ele e dizer que tudo foi um
engano e que a droga estará lá no armazém, à espera dele.
Quando aparecer, nós o pegamos.
— Bem pensado, Rusty! — elogiou Ned. — Ele irá
sozinho, com certeza. Não vai querer que mais alguém saiba
que foi apanhado como um pato e roubado.
— Certo, pessoal! Vamos definir então, o armazém, a
maneira como o mataremos e os outros detalhes — sugeriu
Bill. — Vou convocar mais alguns rapazes, principalmente
alguns do Terceiro Distrito que atuam na área do Túnel
Lincoln.
95
Em pouco tempo, com o auxílio dos outros executores,
o plano foi cuidadosamente montado, privilegiando todos os
detalhes, por menores que fossem. Rusty ficou admirado
com a experiência daqueles homens, planejando a operação.
Ao mesmo tempo, sentia a frieza com que se referiam à
futura vítima. Goose, para eles, já havia deixado a categoria
de ser humano havia muito tempo. Era apenas um alvo
agora, uma vítima, um cadáver que caminhava na direção de
seu destino final.
Percebeu que ele também se sentia da mesma forma e
que o invadia não tensão, mas uma ansiedade terrível, uma
vontade de apertar logo o gatilho e ver a surpresa nos olhos
daquele homem que destruíra sua vida.
— Tudo certo, então? Relógios acertados também? Ok!
— disse Bill. — Assim que ele passar pelo túnel, teremos a
placa de seu carro. Quero que se informe com a telefônica,
Mortimer, e descubra o número de seu telefone móvel,
passando-o de imediato para o pessoal no armazém.
Entendido? Assim que roubarmos a droga, avisamos. Vocês
cuidam do resto.
Tudo estava acertado, finalmente. Rapidamente os
homens saíram. Alguns estariam próximos da casa de Goose
para avisar de sua saída. Outros perto do esconderijo normal
da quadrilha. O restante, em duas equipes, no túnel e no
armazém. Rusty estava no último grupo.
***
Goose achava toda aquela precaução uma xaropada
enorme. Se os colombianos fossem no Harlem entregar a
96
droga, não haveria problema nenhum. A quadrilha de Goose
os protegeria. Não havia, no entanto, nada que os
convencesse a atravessar o Rio Hudson para negociar do
lado de cá. De qualquer forma, aquele negócio era um
passeio. Todas as quadrilhas estavam avisadas e ninguém
ousaria tentar nenhum golpe contra ele. Um acordo de
cavalheiros evitava guerras sangrentas, onde todos perdiam.
Numa cidade como aquela, havia clientes para todos eles.
No horário combinado, apanhou seu carro e foi ao
encontro dos colombianos. Deixou o Harlem pela Rua
Franklin Roosevelt, que era uma expressa que o levaria até a
via de acesso ao túnel que passaria sob o Rio Hudson,
deixando-o dentro de Union City.
O negócio foi realizado sem maiores preocupações. Os
dois carros se encontraram na hora e local combinados.
Goose desceu com uma maleta contendo dinheiro e o
colombiano com outra, contendo a droga. No meio do
caminho, fizeram a troca. Enquanto o colombiano conferia
os maços de notas, Goose apanhava um aparelho de teste,
retirava um pouco da droga de um dos sacos plásticos,
testando-a.
— Perfeito! — falou o colombiano, satisfeito.
— Certo, cara! — respondeu Goose, retornando ao seu
carro,
Deixou a droga no banco traseiro e tomou o caminho
de volta, entrando pelo túnel. No meio dele, porém,
repentinamente, deparou-se com um carro atravessado na
pista. Freou, amaldiçoando o aborrecimento. Abaixou o
97
vidro, para falar com os homens que sinalizavam para ele
passar. Avançou lentamente, passando entre o carro e a
parede do túnel. Os homens sinalizaram para o carro de trás
parar. Diante do carro de Goose havia uma pilha de
engradados, atrapalhando a passagem.
— Ei, caras! Tirem essa droga da frente! — gritou ele,
após enfiar a cabeça para fora da janela.
Sentiu o estalido seco do revólver sendo engatilhado e
o frio do metal encostando-se em sua nuca.
— Cale a boca, ordinário! Cadê a droga? — indagoulhe alguém, empurrando o cano do revólver contra a nuca
dele, fazendo-o abaixá-la.
— Está aqui! — falou outro, abrindo a porta e
apanhando a maleta.
— Esperem aí, caras! Estão cometendo um erro —
tentou ele argumentar, mas o homem que segurava a arma
deu-lhe um tapa na cabeça.
— Fique quieto! Deite-se no banco agora! Vamos ou
parto sua cabeça!
— Vão se arrepender disso! — ameaçou, fazendo o
que lhe fora ordenado.
Os homens correram para um carro que os aguardava
logo à frente e, no momento seguinte, desapareciam no
túnel. Goose saiu do carro desesperado, indo chutar os
engradados que atrapalhavam sua passagem. Não conseguia
acreditar que alguém houvesse feito aquilo. Significava
mais do que uma declaração de guerra. Significava que
todos teriam prejuízo e as quadrilhas não gostavam disso. O
98
pior era decidir o que fazer. Não podia retornar até seu chefe
e simplesmente lhe dizer que fora roubado. Precisava pensar
com calma, por isso pegou o carro e tratou de se afastar dali
rapidamente.
O que o incomodava era que não pudera ver os homens
que o roubaram. Podia ter sido qualquer um, de qualquer
quadrilha. Retornava para o Harlem, ainda aturdido, quando
o telefone do carro tocou. Imaginou que fosse seu chefe.
Não sabia ainda o que diria a ele, mas atendeu. Teria de
inventar uma boa história.
— Você é o Goose, não? — indagou uma voz
totalmente desconhecida para ele.
— Sim, e você, quem é? — retrucou ele com rispidez e
nervosismo.
— Cometemos um erro!
— Você? Seu idiota! Eu avisei.
— Desculpe-nos! Ninguém nos avisou que essa droga
era sua. Alguém nos pregou uma peça e queremos consertar
tudo o mais depressa possível.
— É só me devolver a droga e ninguém, vai se
machucar, está bem assim?
— Promete?
— Sim, prometo. Agora tratem de devolvê-la logo,
antes que eu me zangue — falou ele, furioso.
— Há um armazém na Riverdale, 1005. Sabe onde é?
— Sei, mas não é território nosso.
— Vamos deixar a droga lá dentro, com as nossas
desculpas. É só ir lá e pegar — falou a voz, desligando.
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Apesar de contrariado, Goose estava de novo aliviado
e, de certa forma, envaidecido. Alguns idiotas tentaram
roubá-lo, mas quando descobriram o erro cometido,
voltaram atrás. Na certa algum deles o reconhecera no
momento do roubo. Fora audacioso, mas ainda bem que
tudo acabava bem. Detestaria retornar ao esconderijo e
informar que fora passado para trás.
Seguiu na direção do endereço fornecido. Sabia a que
armazém se referiam. Era território de outra quadrilha, mas
contava que seria reconhecido logo e todos o respeitariam.
Quando lá chegou, notou a porta aberta. Avançou com o
carro para dentro do armazém. Viu, no meio dele, a maleta
aberta e alguns saquinhos espalhados ao redor dela.
Examinou ao redor. Estava tudo às escuras. Não pensou em
emboscada ou cilada. Se alguém quisesse matá-lo, já o teria
feito lá no túnel, na hora do roubo.
Desceu do carro sem maiores precauções. Foi até a
maleta e se abaixou, começando a guardar os saquinhos lá
dentro. Quando a fechou de novo e se levantou, viu alguém
surgir lá na frente, com um AR-15 nas mãos. Não o
reconheceu.
— Está tudo aqui, seu idiota! Da próxima vez, pensem
bem no que vão fazer para não cometerem erros. Isso
poderia ter custado a vida de todos vocês — aconselhou-os
Goose, seguro de si.
— Não haverá próxima vez, Goose — disse o homem.
— É bom mesmo — frisou o bandido, fazendo menção
de se virar.
100
Nesse instante, Rusty, no fundo do armazém,
engatilhou o seu fuzil. O barulho fez Goose imobilizar-se.
Lentamente o ex-policial foi levantando o fuzil. Havia
treinado muitas vezes com aquela arma nos últimos dias.
Estava seguro com ela nas mãos.
— Espere um pouco aí, cara! O que pensa que está
fazendo? — indagou Goose.
— Vou lhe dar um pouco de seu próprio remédio —
falou Rusty, que tinha Goose perfeitamente delineado contra
os faróis do carro.
— Ei, homem! Vamos conversar. O que está havendo
aqui?
— Lembra-se de mim, Goose? — indagou Rusty,
avançando alguns passos.
O traficante reconheceu-o, afinal.
— Rusty, seu bastardo! Eu devia tê-lo matado. O que
está fazendo agora? Perdeu o emprego? Está entrando no
ramo do tráfico? Eu posso lhe dar muitas lições sobre isso
— riu Goose, enquanto a mão subia lentamente em busca de
uma automática que trazia no coldre sob o braço.
— Enganou-se, Goose! Estou no ramo de extermínio
de ratos agora, sabia?
Goose não teve tempo de sacar sua arma. Rusty
disparou certeiramente. O braço que segurava a maleta foi
decepado na altura do ombro, caindo no chão. O bandido
recuou alguns passos após o impacto, olhando com estupor
o próprio braço, ainda segurando a maleta. Levantou os
olhos esbugalhados na direção de Rusty. Viu a labareda de
101
fogo saindo do cano do fuzil, depois sentiu apenas o
impacto na testa, jogando-o para trás, sobre o capô do carro.
Pouco sobrava de seu rosto para a identificação. Rusty
saiu imediatamente pelos fundos, onde um carro o esperava.
No momento seguinte, rumavam velozmente para o bar do
Ned, onde um grupo de policiais seria seu álibi para aquela
morte, caso alguma suspeita recaísse sobre ele. Da forma
como Goose morrera, no entanto, tudo ficaria como sendo
uma briga entre traficantes. Principalmente porque a droga
que estava nos sacos plásticos fora trocada por outra de
péssima qualidade.
102
CAPÍTULO 8
Era um sentimento perigoso aquele que Rusty sentia,
enquanto, no bar, conversava com os amigos sobre outros
assuntos. Não conseguia tirar da mente aquela imagem,
vendo o braço de Goose desprender-se do corpo e cair,
ainda agarrado à maleta. Sentia-se bem, muito bem com a
sensação de ter-se vingado e, ainda por cima, ter matado
alguém friamente. Goose não esboçara uma reação mais
forte. Apenas ficara ali e se deixara matar. Era algo mais do
que poder, força, domínio sobre o outro. Sabia que havia
interrompido a vida de um homem. Tirara-lhe tudo,
simplesmente. Goose não mais abriria os olhos pela manhã,
nunca mais olharia uma mulher bonita ou tomaria um gole
de um bom uísque. Goose era carne morta agora. Era um
cadáver e não mais assustaria ninguém. Essa sensação
viciava. Mal se satisfazia com a primeira morte e Rusty já
pensava na segunda. Gordon Flowers tinha de pagar pelo
que fizera, pelo que tirara dele. Tinha de pagar por Sharon e
pela sua carreira de policial, interrompida estupidamente.
Queria vê-lo daquela forma, atônito, inerte, parado, olhando
a chegada da morte, convicto de que nada no mundo poderia
evitá-la.
Naquela noite, no final do expediente, ficaram no bar
apenas os integrantes do grupo de extermínio. Nenhum
deles comentou sobre a morte de Goose. Estavam mais
interessados em planejar o fim de Gordon Flowers.
103
— Certo, pessoal! — disse Ned. — Temos de decidir
agora o que faremos com Gordon Flowers.
— Tenho uma sugestão — falou um policial que Rusty
ficara conhecendo naquela noite. — Antes de qualquer
coisa, temos de isolá-lo.
— Isolá-lo? Como assim? — quis saber Rusty.
— Gordon Flowers está sempre cercado de gente.
Jamais o encontrará sozinho. Tem capangas e amigos que o
protegem a todo momento. O que temos de fazer é tornar
sua vida insuportável, é fazer com que os outros percebam
que estar ao lado dele é péssimo em todos os sentidos —
esclareceu o outro.
— É uma boa ideia! — concordou Ned. — Isso,
inclusive, o impedirá de tentar qualquer outra coisa contra
Rusty. Como se pode fazer isso, Allan?
— Vamos espalhar a notícia para todos os nossos
amigos de todos os Distritos. Onde encontrarem Gordon,
deverão pará-lo e plantar droga em seu carro. Acusá-lo e a
seus amigos. Nada, porém, que caracterize tráfico. O
suficiente para ficar caracterizado que são apenas
consumidores, assim não serão presos. Toda e qualquer
desculpa para atormentá-lo será válida. Entendido?
— É uma boa ideia — concordou Rusty, sentindo não
poder estar presente todas as vezes em que isso acontecesse,
só para ver aquela cara irônica e cínica desmanchar-se.
— E o ato final? — Quis saber Bill.
— Rusty fica encarregado de prepará-lo. O que me
diz?
104
— De acordo. Eu prometi isso a Sharon — afirmou ele,
decidido.
Não havia ainda conseguido imaginar uma forma de
cumprir aquela promessa. Sharon precisava estar presente
no momento em que Gordon fosse morto.
No dia seguinte, os policiais iniciaram a operação que
transformaria a vida de Gordon Flowers num inferno.
Durante todos os dias seguintes, não havia um momento em
que ele pudesse se sentir tranquilo, tantos foram os
aborrecimentos. Quase uma semana depois, Rusty foi, pela
primeira vez depois do sepultamento, ao cemitério onde
Sharon fora enterrada. Levou flores. Depositou-as sobre o
túmulo. Lembrou-se da parceira e mulher, por quem nutria
uma afeição toda especial. Estavam ambos despedaçados,
quando se encontraram. Os pedaços de um haviam ajudado,
ainda que temporariamente, o outro a se reconstruir.
— Como, Sharon? Como faço para cumprir minha
promessa? — indagou ele, olhando o túmulo feito de
mármore, uma preocupação de todos os amigos policiais.
Era como uma caixa de mármore branco. Na parte de
trás havia um suporte onde se achava uma cruz de ferro
pintada de branco. Ao lado, num suporte menor, uma
bandeira dos Estados Unidos, pequena, ladeada por uma
flâmula da Polícia de Nova Iorque. Na frente, uma placa de
bronze continha o nome, data de nascimento e de
falecimento de Sharon Mayfield. Ficou olhando para aquela
placa. Lembrou-se do funeral. Atrás daquela placa havia
105
uma abertura por onde fora introduzido o esquife. O espaço
era suficiente para dois esquifes.
Abaixou-se. Examinou atentamente. Para retirar a
placa, bastava retirar quatro parafusos que a prendiam ao
túmulo, vedado por cimento branco. Uma ideia começou a
se formar em sua cabeça. Quando foi para o bar, naquele
dia, contou-a a Ned.
— É totalmente fora dos nossos padrões, Rusty. Como
terá certeza da morte dele?
— Terei, não se preocupe.
— Não sei! É tão... Macabra. Rusty. Tem certeza que é
isso mesmo que quer fazer?
— Sim, Ned. Não é por mim, é por Sharon, entendeu?
— Certo! Os rapazes virão aqui hoje à noite para uma
avaliação do caso do Gordon. Vamos discutir o assunto.
— Ok, Ned. E... Outra coisa! Quando começarei a
participar dos outros casos?
— No devido tempo, Rusty. Agora precisa livrar-se de
seus fantasmas. Só então estará pronto para nós — falou
Ned, tranquilizando-o.
***
Gordon Flowers simplesmente não acreditava no que
estava acontecendo com ele. Havia uma semana que sua
vida fora transformada em um inferno. Os amigos que o
rodeavam haviam se afastado como se ele fosse um leproso.
Seus capangas estavam todos presos ou simplesmente
haviam sumido, cansados, talvez, de tantos aborrecimentos.
Tinha contatos na polícia. Ligou para saber o que estava
106
havendo e por que o perseguiam. Simplesmente informaram
que desconheciam. Que ele estava tendo apenas uma maré
de azar, aparecendo no lugar errado e na hora errada.
— Diabos, homem! Não posso sair de casa. Eles param
meu carro, quebram as lanternas com seus cassetetes só para
me multar. Se estou acompanhado, plantam tóxico em meus
amigos, acusando-os. Estou ficando sozinho, homem, e não
gosto disso.
— Não sei, Gordon, o que possa ser. Se os tiras estão
fazendo isso e isso me parece algo pessoal é alguma coisa
que você fez a eles. Lembra-se do caso da garota? Podem
estar lhe dando o troco agora.
— Danem-se vocês! — explodiu ele, desligando.
Depois pensou melhor. Na noite em que tentara pegar
Rusty Brown, havia sido surpreendido. Policiais foram
chamados no Sexto Distrito. Havia certa lógica no que lhe
fora dito.
— Maldito! — praguejou ele, começando a pensar
seriamente em Rusty.
Poderia ser ele a origem daquela desordem total em sua
vida. Não se acostumara a viver isolado. Jamais se
acostumaria. Precisava de gente e de mulheres ao seu redor.
Nos últimos dias, ninguém atendia seus telefonemas,
ninguém estava em casa para ele. As prostitutas que
trabalhavam sob suas ordens também haviam sumido,
aproveitando-se do momento de fraqueza dele. Os policiais
que ele subornava queixavam-se de não terem recebido a
107
propina da semana para fecharem os olhos ao trabalho de
suas mulheres. O mundo estava desabando em sua cabeça.
— Filho da mãe! — exclamou ele, cada vez mais
convicto que Rusty era o responsável por tudo aquilo.
Se era assim, daria um jeito de pegá-lo. Ele pagaria
pelo que estava acontecendo. Alguém tinha de pagar. Rusty
não era nenhum super-homem. Gordon sabia onde ele
morava e onde trabalhava. Conhecia seus caminhos e seus
horários. Iria dar o troco. Iria pagar na mesma moeda. Pegou
o telefone e discou.
— Apanhe seu carro e venha até minha casa — disse
ele.
— Diabos, Gordon, mas você não é boa companhia! —
reclamou o outro.
— Mingus, já descobri o urubu que está azarando a
minha vida, só que preciso de sua ajuda para afastá-lo para
sempre.
— Por que eu, Gordon? Justo eu?
— Porque você é o único dos meus amigos que se
parece muito comigo.
— Como assim?
— Pegue seu carro e venha para cá. Vou deixar o meu
carro na garagem, com as chaves no contato e algumas
roupas minhas. Quero que as vista, depois pegue o carro e
saia para dar uma volta pela cidade. E quando estacionar o
seu carro, deixe as chaves.
— Só isso? — indagou o outro, após refletir por
instantes.
108
— Só isso, Mingus, e eu lhe serei eternamente grato
quando tudo isso terminar.
Quando desligou, um sorriso de triunfo estampou-se no
rosto do cafetão. Iria despistar a polícia. Enquanto corriam
atrás do carro com Mingus, ele poderia fazer o que tinha que
fazer. Naquele horário, sabia que Rusty estava em casa. Era
um bom lugar e uma boa hora para livrar-se de todos os seus
problemas.
***
Num dos cômodos de sua casa, Rusty havia montado
uma academia, com aparelhos para exercícios indicados
para suas deficiências e para o físico em geral. Naquele
horário, começava a se exercitar. Depois tomava um banho,
relaxava um pouco e ia para o bar. Ia começar seus
exercícios, quando o telefone tocou.
— Rusty, não sei se é o caso de avisá-lo, mas nosso
pessoal deteve o carro de Gordon para infernizá-lo, só que
Gordon não estava nele. Um amigo usava as roupas daquele
cafetão para nos despistar. Não sabemos onde ele está agora.
— Deve ter dado o fora da cidade por algum tempo
para se livrar do assédio. Vamos ter de encontrá-lo. Já está
chegando a hora de dar-lhe o que merece.
— Certo. Estamos avisando todos os rapazes. Vamos
encontrá-lo em breve!
Ao desligar, Rusty ficou pensando. Gordon fora
pressionado ao extremo. Podia ter sumido da cidade ou estar
preparando alguma. A opção mais plausível era que sumira
da cidade. Só que Rusty julgava conhecê-lo um pouco mais
109
que os outros. Gordon sempre fora de surpresas. Por isso
pensou melhor. Foi até a janela e sondou os arredores.
Havia muitos carros parados na rua tranquila, mas nenhum
suspeito. Ainda assim, para sua segurança, foi apanhar a
arma, deixando-a junto ao aparelho de ginástica.
Começou a se exercitar. Seus sentidos, no entanto, o
mantinham alerta. Quis se concentrar no que fazia, mas não
conseguia. Era o velho instinto policial falando mais alto,
alertando-o, avisando-o de que o perigo o rondava. Havia
muito tempo não tinha aquela sensação, por isso desistiu dos
exercícios e foi vigiar, oculto atrás da cortina da janela.
Os carros continuavam ali, sem nenhuma novidade. De
repente, de um deles desceu um homem. Não vestia as
roupas normalmente vestidas por Gordon Flowers, mas o
jeito de caminhar era o mesmo. O negro olhou para os lados,
atravessou a rua normalmente e se encaminhou para a casa
vizinha de Rusty. Trazia uma caixa sob um dos braços,
semelhante àquelas usadas para embalar flores. Parou diante
da outra casa, disfarçou, depois rumou para a casa seguinte,
a dele.
Rusty pôde ver aqueles olhos traiçoeiros e aquela
expressão cínica e perigosa. Gordon parou diante da porta,
mas não tocou a campainha. Simplesmente tocou a
maçaneta, girando-a. Rusty moveu-se para trás da porta.
Gordon entrou, abrindo a caixa e retirando dela uma
escopeta, que engatilhou no instante seguinte. Quando
avançou um passo, Rusty encostou seu revólver no ouvido
do invasor.
110
— Quieto, bastardo! — ordenou, puxando o gatilho
para trás.
O estalido fez Gordon estremecer. Rusty tomou-lhe a
escopeta no momento seguinte e encarou-o.
— Ei, homem, vamos conversar com calma! — propôs
Gordon, fazendo menção de recuar.
Rusty não lhe deu trégua. A coronha da escopeta bateu
sobre o nariz do negro, quebrando-o e fazendo-o cair contra
a porta, que se fechou.
— Você quebrou meu nariz! — gemeu ele, tentando se
aproximar rastejando do ex-policial para surpreendê-lo.
Rusty estava atento, porém. A coronha bateu de novo
no ombro do cafetão, fazendo-o gemer e rolar no assoalho,
deixando sangue espalhado na madeira.
— É melhor ficar quieto ou vou ter que machucá-lo
muito — disse Rusty, aproximando-se de novo de Gordon,
que, de joelhos, tentava estancar o sangue que escorria de
seu nariz.
— Chame uma ambulância! Chame os tiras! — pedia o
bandido.
— Sim, do jeito que você quer, não? Para que esteja
nas ruas de novo em breve? Não, Gordon! Eu não o
convidei para vir aqui, portanto, já que veio, terá que se
submeter às regras de minha hospitalidade — disse Rusty,
vibrando novamente a coronha da arma contra a testa do
outro, jogando-o para trás, desacordado.
Após se certificar de que ele dormia mesmo, Rusty foi
buscar um rolo de fita adesiva. Prendeu os pulsos do
111
cafetão, depois os tornozelos. Em seguida o amordaçou.
Para tolher todos os seus movimentos, enrolou toda fita
adesiva ao redor do corpo dele, até deixá-lo preso como um
pacote surpresa. Então consultou o relógio. Depois foi
apanhar o telefone.
— Ned, eu peguei o filho da mãe! — informou.
— Onde está?
— Aqui em casa.
— E você?
— Estou bem.
— Ótimo! Fui avisado que o bastardo tinha enganado
todo mundo. Ninguém esperava que ele fosse ao seu
encalço, no entanto. O que pretende fazer com ele agora?
— Vou esperar anoitecer, depois o levarei até o
cemitério. Ninguém, nunca mais, ouvirá falar nele —
sentenciou.
— Vai precisar de ajuda?
— Não, Ned, isto é algo que farei sozinho. Obrigado!
— Ele já está morto?
— Não, morrerá conforme eu planejei.
— Não facilite. Apenas tenha certeza de que ele
morreu mesmo.
— Tomarei todas as precauções, Ned, pode ficar
tranquilo.
***
No começo da noite, pouca gente se encontrava no
vasto cemitério em Hide Park. Os retardatários que haviam
ido visitar algum ente querido já se retiravam. O carro
112
passou despercebido, indo até o local onde estava o túmulo
de Sharon. Rusty desceu com ferramentas e um macacão de
operário. Parecia que ia fazer um conserto ali. Embora não
visse ninguém ao redor, tentou ser o mais natural possível
quando soltou a placa de metal e, depois, os tijolos que
tapavam a entrada.
Ali estava o caixão onde repousava Sharon. Verificou
as redondezas, depois foi até o carro, abriu o porta-malas e
retirou o corpo imobilizado de Gordon, carregando-o até o
túmulo. Depois foi apanhar uma maleta no carro,
retornando. Os olhos do prisioneiro refletiam todo o seu
horror. Não entendia o que se passava. Não sabia o que
Rusty iria fazer com ele, naquele lugar. Só podia resmungar
e debater-se, totalmente subjugado.
— Sabe quem está enterrado aqui? — indagou Rusty.
Gordon moveu a cabeça num sinal negativo.
— A puta uniformizada, como você costumava chamála, lembra-se?
O horror se tornou maior nos olhos dele.
— Ela se sente muito só aí, sabia? Sabe quem fará
companhia a ela?
Gordon percebeu o que estava para acontecer e se
debateu ainda mais. Rusty empurrou-o para dentro do
túmulo, deslizando o corpo dele sobre o caixão de Sharon.
A cabeça do cafetão ficou voltada para a tampa do túmulo.
Rusty, então, acendeu uma lanterna e a pôs sobre o corpo
dele, iluminando o interior da sepultura. Apanhou um
celular, teclou, fazendo soar o toque de outro, que levava no
113
bolso. Pôs o celular junto da cabeça de Gordon, arrancando,
então, a fita adesiva com que o amordaçara.
— Homem, você é louco! Tire-me daqui! Socorro!
Alguém me ajude! — berrou o cafetão.
— Pode berrar, maldito! Ninguém vai ouvi-lo —
afirmou Rusty, começando a espalhar recolocar os tijolos
com cimento na abertura, antes de encaixar a tampa. Fixou
firmemente os parafusos.
Rusty guardou todo o material de volta no porta-malas
do carro. Depois se sentou diante do túmulo de Sharon,
apanhou o celular em seu bolso e ficou ouvindo os gritos
desesperados de Gordon Flowers pela noite adentro. Ao
redor, tudo estava silencioso como um túmulo, transmitindo
uma imensa paz.
Só Gordon Flowers não tinha a mesma impressão.
***
Rusty demorou alguns dias para retornar ao bar. Todo
o tempo continuava ouvindo os gritos do cafetão, enquanto
morria lentamente, aprisionado no túmulo de Sharon. Desta
vez não tivera nenhuma sensação de força nem de poder.
Parecia ter restado apenas um profundo vazio agora, como
se as vidas de Goose e de Gordon fossem a justificativa para
a sua. Comentou isso com Ned.
— Muitos de nós se sentem assim, Rusty. É o que nos
mantém nisso, sabia? Esse vazio só é preenchido pela
próxima vítima, que passa a ser o motivo de nossa
existência. Não fosse isso, muitos de nós já teriam deixado
de viver.
114
— E compensa tudo isso, Ned?
— Eu não sei, Rusty. Você é que deve responder isso a
você mesmo.
Rusty pensou no que conversara com a filha de John
Sanders, tentando imaginar quem se sentiria feliz com tudo
aquilo, mas não encontrou uma resposta. Era um trabalho
sujo realmente. Um trabalho que, em nome da justiça,
legalizava o assassinato.
— Veja bem, Rusty. Esse é o consolo dos humildes,
daqueles que não têm a quem recorrer, daqueles que foram
postos à margem da lei que não lhes deu justiça. É um
trabalho sujo, pode acreditar nisso, mas é um mal
necessário. Lembre-se, nós não prendemos, não acusamos,
não julgamos. Apenas executamos a sentença. Quem decide
é o júri e o júri é o povo. Se a sentença for dada na
legalidade de um tribunal, não deixa de ter o mesmo sentido
se dado no desespero de quem não pôde fazer prevalecer o
espírito da lei. Somos os carrascos, Rusty, e a nós não cabe
discutir a sentença. Este é o nosso princípio. Está vendo
aquela garota lá na porta? Estou aqui há tanto tempo que
posso lhe jurar que sei o que ela vai fazer.
— E o que é?
— Vai deixar seu nome e telefone para o Carrasco.
— Como pode ter certeza?
— Vá lá e se certifique.
Rusty foi até a porta. Quando chegava, a garota se
aproximou do quadro de avisos e, com um alfinete, prendeu
seu nome e telefone ao lado do recado do Carrasco.
115
— Espere! — pediu ele, quando ela se afastava.
Ela parou intimidada na porta do bar. Não tinha mais
de quinze anos. Os cabelos compridos caíam sobre o rosto,
tapando metade dele.
— Não se assuste, por favor! — pediu ele. — Por que
deixou o recado? — perguntou ele.
— Porque ninguém quer me defender — respondeu
ela, num fio de voz aterrorizado e indefeso.
Percebeu que ela estava tendo muita coragem para
fazer aquilo.
— Defendê-la do quê? — insistiu ele.
Ela hesitou. Depois, com uma decisão que refletia todo
o seu estado de espírito e a vontade de se ver merecedora de
justiça, ela segurou os cabelos e afastou-os do rosto. Havia
uma cicatriz monstruosa em sua face, resultado de uma
queimadura. Um olho limpíssimo e lindíssimo olhava
revoltado para Rusty, enquanto o outro era apenas uma
órbita vazia. Ela soltou o cabelo sobre a máscara macabra
que era aquela parte do rosto, depois se virou e se afastou
rapidamente.
Rusty ficou parado, ofegante, inesperadamente
atingido por aquela dura realidade. Aquele vazio interior
começou a ser preenchido pelo ódio, um ódio inesperado,
mas violento, contra alguém que ele nem conhecia.
Alguém havia feito àquilo à garota. Alguém que talvez
tivesse feito o mesmo a outras ou o faria de novo. Resoluto,
foi até o quadro de avisos, arrancou o recado que a garota
deixara e foi até o balcão, onde Ned o observava.
116
— Ele é meu! Eu o quero! — afirmou Rusty, decidido.
— Você o terá! — respondeu o outro, olhando-o com
uma espécie de orgulho entristecido no rosto calejado.
117
2a. PARTE
OS OLHOS DA CIDADE
CAPÍTULO 1
Aquela era mais uma daquelas malditas noites de
sábado, no Sexto Distrito Policial da Cidade de Nova
Iorque, o pior, o mais perigoso, o mais temido e o mais
assustador de todos eles, abrangendo a área que divide os
bairros do Harlem e do Bronx, uma terra de ninguém onde
as quadrilhas e gangues de rua acertavam suas desavenças.
Quando isso, acontecia, costumava-se dizer que chovia
chumbo e sangue nas ruas. Os cadáveres eram recolhidos
aos montes e os legistas tinham de fazer horas extras para
preencher relatórios, já que a causa da morte era evidente
nos buracos que aqueles corpos apresentavam. Ninguém
tinha sossego nas noites de sábado, principalmente o
Inspetor Joe Bradford, um veterano de muitas noites de
sábado. Quando chegava o entardecer e os carros
começavam a circular pelas ruas do bairro, ele sentia
comichões em suas cicatrizes.
— Matt, cadê aquele AR-15 que você me prometeu?
— indagou ele, mal humorado, ao sargento encarregado das
armas.
118
— Está no seu armário, Joe. Eu o pus lá com dez
carregadores e três caixas de munição. Acha que será
suficiente para esta noite de sábado?
— Se tudo der certo, espero tirar das ruas pelo menos
uma centena de filhos da mãe hoje.
— Não sei ainda por que você faz isso, Joe, comentou
Matt, intrigado. — Está a um passo da aposentadoria e a fica
bancando o herói, como se torcesse para levar uma bala
desses bastardos.
— Pelo contrário. Quero sempre atirar primeiro do que
eles e mandar para o inferno o máximo possível. O bandido
que você mata hoje é o que não vai baleá-lo amanhã.
— Essa é mesmo uma boa filosofia, Inspetor!
Excelente para mandarmos divulgar nos jornais. A imprensa
adoraria saber como pensamos e como agimos — falou o
Capitão Dale.
— Eu gostaria de ter um desses jornalistas comigo
numa dessas noites de sábado, capitão. Adoraria saber o que
eles escreveriam depois de passar uma noite toda ouvindo
balas assobiando ao seu redor.
— Seu desejo é uma ordem, Joe. Sabe que sempre fiz
tudo para agradá-lo.
— Espere um pouco! Do que está falando? —
estranhou Joe.
— Não estamos falando de nada. Apenas que você me
deu uma excelente ideia, sabia? Bem dentro do que deseja o
Comissário de Polícia, de quem o prefeito exigiu uma
119
campanha para tornar o nome da Polícia mais simpático à
população.
— Até aí eu estou acompanhando, capitão. O que vem
depois disso?
— Espere e verá, Inspetor. Tem certeza que não deseja
mesmo recolher-se ao serviço burocrático até chegar o dia
de sua aposentadoria?
— Capitão, nada me tira da cabeça a sensação de que
está me preparando uma — falou Joe, com convicção.
O Capitão Dale sorriu enigmaticamente e afastou-se
assobiando.
O Inspetor Joe Bradford ficou pensativo, demonstrando
a preocupação nas rugas que vincavam sua testa. O Capitão
não gostava dele, isso era fato e todos sabiam disso. Estava
sempre preparando alguma coisa para infernizar a vida de
Joe. Algo lhe dizia que, antes da aposentadoria, o Capitão
ainda lhe aprontaria uma boa.
— Isso o deixou preocupado, Joe? — perguntou Matt.
— Esse sacana é bem capaz de me aprontar uma última
e, com certeza, a melhor delas.
— E você, o que vai fazer?
— O que posso fazer? Dar-lhe o troco, oras!
— Como?
— Pensarei em algo. Vou ao arsenal. Quer alguma
coisa?
— Se vamos sair juntos, pegue uma Doze especial,
com uma caixa de munição. Você sempre apronta alguma e
eu tenho de lhe dar cobertura.
120
Algum tempo depois, os dois saíam para patrulhar.
Anoitecera. Tudo parecia tranquilo, mas os dois policiais
sabiam que tudo não passava da calmaria que precede a
tempestade. A qualquer momento, tudo aquilo explodiria
como uma panela de pipoca. Era o momento de maior
tensão para os homens que patrulhavam as ruas dos dois
bairros no seu ponto mais delicado e perigoso. Poucos
gostavam daquilo. Poucos como Joe e Matt viviam daquela
tensão, da adrenalina pura sendo armazenada em seus
corpos para, de repente, invadir suas veias, enquanto o
inferno se abria diante deles e as palavras eram os sussurros
do demônio, convidando-os para a eternidade.
Joe parou o carro num sinaleiro. Acelerou forte
algumas vezes, testando o motor.
— Como está a máquina? — quis saber Matt.
— Tinindo — respondeu Joe, de olho o veículo que
parara ao lado deles.
As janelas eram de vidro espelhado e estavam
fechadas, apesar do calor. Apenas uma delas tinha uma
estreita fresta aberta, por onde escapava fumaça. Só que o
cheiro que o vento trazia na direção deles não era de cigarro.
— O que acha que temos ali? — indagou Matt,
percebendo a mesma coisa.
— Acho que temos um coelho — respondeu Joe,
levantando o fuzil AR-15 que estava ao lado do banco e
pondo-o no colo.
Olhou pelo retrovisor. Atrás deles havia outro carro,
enquanto um terceiro veio devagar, entrando pela direita.
121
Estavam fechados entre três carros. A Armadilha do Coelho
era uma das brincadeiras mais cruéis que as gangues faziam
com os policiais menos experientes. Punham um carro
suspeito ao lado de um carro policial que haviam seguido
desde sua saída do Distrito. O coelho deveria chamar a
atenção dos policiais, depois sair a toda, provocando a
perseguição. Quando isso acontecia, os carros que vinham
atrás passavam a perseguir o carro dos policiais.
Matt olhou disfarçadamente para o carro que vinha
avançando lentamente pela direita, depois para o sinaleiro
que se mantinha no vermelho anda. A espingarda calibre
doze estava em seu colo, carregada com meia dúzia de
cartuchos, municiados com seis esferas de chumbo cada um.
— Como vai sair dessa? — perguntou Matt.
O sinal estava prestes a abrir. Joe tinha de pensar
rápido. Mesmo que não saíssem em perseguição ao coelho,
ainda tinha os carros a sua direita e atrás deles que,
certamente, aprontariam alguma coisa.
— Vamos mudar a brincadeira. Vamos brincar de tiro
ao pato — disse Joe, engatilhando o seu fuzil.
— Vamos estragar mais duas portas? — quis saber
Matt, fazendo o mesmo com sua escopeta.
— É só lata e tinta — respondeu Joe, no instante em
que o sinal abriu.
Ele engatou uma ré em seu carro e acelerou forte.
Disparou o fuzil contra a porta de seu carro. O poderoso
projétil varou a porta e atravessou o carro ao lado. O
motorista caiu sobre o volante, disparando a buzina. Matt
122
fizera o mesmo com sua escopeta, abrindo um rombo na
porta do seu carro e na do outro, parado ao lado. O
motorista foi jogado contra o passageiro no outro banco. Joe
soltou a embreagem do carro e recuou, batendo com força
no carro atrás deles. Imediatamente os dois saltaram. Do
carro abalroado surgiram dois hispânicos com
metralhadoras Uzi em suas mãos. Joe simplesmente fez
sumir a cabeça de um deles com um disparo de fuzil,
enquanto Matt atingia o outro em pleno peito, jogando-o
alguns metros para trás.
— Malditos tiras! — gritou o passageiro do carro que
Matt acertara, com uma automática na mão.
Começou a disparar, arrebentando os vidros do carro
dos policiais.
— Proteja-se Matt! — gritou Joe, virando-se na
direção do atirador.
Matt agiu instintivamente. Após tanto tempo
trabalhando com Joe, sabia como o parceiro agia. Abaixouse. Joe tinha seu fuzil apontado na direção do pistoleiro. No
momento em que Matt saiu da linha de tiro, apertou o
gatilho. O rapaz jamais soube o que o atingiu. Seu peito
tingiu-se de vermelho na hora e ele voou até a calçada. A
bala que atravessou seu corpo foi cravar-se na parede de
uma loja, abrindo um buraco também. As poucas pessoas
que ainda estavam na rua sumiram. Todos sabiam que, a
partir daquele horário, as ruas na terra de ninguém entre o
Harlem e o Bronx não eram seguras. O cheiro de pólvora foi
123
levado rapidamente pelo vento que soprava. Ainda em
alerta, Joe entrou no carro e apanhou o rádio.
— Mandem uma ambulância! Melhor dizendo:
mandem uma porção de ambulâncias para a esquina da
Mayflower com a Rose Street. Há uma porção de presuntos
por aqui.
— O que houve, Joe? Atropelou uma procissão de
velhinhas? — indagou Vick, a operadora do rádio.
— Não, Vick. Só resolvemos brincar de tiro ao pato.
— Certo, estão a caminho. A noite promete ser
movimentada, não?
— Com certeza. Câmbio!
Escondidos atrás das janelas dos prédios, cidadãos
comuns aplaudiam a ação policial.
***
O grande armazém abandonado, às margens do Rio
Harlem, parecia preparado para uma guerra. Os italianos
haviam chegado ao local antes do anoitecer. Equipes de
homens fortemente armados vasculharam todos os cantos e
foram distribuídos estrategicamente, mantendo severa
vigilância. O telhado havia sido ocupado. Duas potentes
lanchas patrulhavam os fundos, ancoradas no rio. Carros
haviam sido espalhados em cada esquina, todos com quatro
homens cada um, armados com fuzis, metralhadoras e
pistolas automáticas.
Andy Luciano, o filho do patriarca de todas as famílias,
Cauzio Luciano, comandava pessoalmente a operação, toda
ela montada pelo seu pai. Às oito da noite, tudo estava
124
preparado para o aguardado encontro. De um lado,
representando as gangues hispânicas do Bronx, estava
Johnny "Arriba" Perez; do outro, falando pelas gangues de
negros do Harlem, estava Angus "Baby Face" Colúmbia. A
ordem de chegada fora sorteada pelo próprio Dom Cauzio
Luciano. Inicialmente, às oito da noite, deveria chegar
Johnny Perez, acompanhado apenas de um motorista e de
um assessor, advogado ou consultor. Dez minutos depois,
Angus Colúmbia deveria chegar com o mesmo
acompanhamento. Andy Luciano seria o mediador na mesa
de três lugares que fora posta no centro do armazém, sob um
refletor.
Johnny chegou pontualmente. A limusine estacionou
no local indicado pelos homens da segurança. O chefe de
gangue desceu vestindo um extravagante terno de seda azul
claro, com um lenço da mesma cor amarrado no alto da
cabeça. Cordões de ouro com pingentes esquisitos cobriam
seu peito. Usava muitos anéis nos dedos das mãos.
— Olá, Andy! — cumprimentou.
— Johnny, é bom ver você! — disse Andy, apontando
a mesa.
Caminharam até lá. Johnny olhava atentamente ao
redor, observado todo o esquema de segurança montado.
— Quando me disseram que se podia confiar em vocês,
não esperava tamanha eficiência — comentou Johnny.
— Para nós é um prazer participar de um encontro tão
importante.
— Agradeço a ajuda de vocês — falou Johnny.
125
O líder das gangues hispânicas tomou seu lugar na
mesa, sobre a qual havia um grande mapa representando a
região do Harlem e do Bronx. Os dois conversaram
amenidades, enquanto aguardavam a chegada do terceiro
participante da reunião, que também chegou na hora certa.
Ninguém se atrasaria para algo tão importante.
Angus Colúmbia desceu do carro com um sobretudo
verde, combinando com o terno e o chapéu da mesma cor.
No pescoço tinha um lenço negro, símbolo das gangues
negras. Andy foi recebê-lo e acompanhá-lo até à mesa, onde
Johnny esperava-os. Quando o outro se aproximou, Johnny
levantou-se. Olharam-se com um ódio que já durava muito
tempo, tempo demais até. Um ódio que custara vidas e
dinheiro para os dois lados e que, por sugestão dos italianos,
precisava acabar para que todos pudessem lucrar.
Brigar e matar-se já faziam parte das vidas daquelas
gangues. Os italianos julgavam que isso poderia ser evitado
com um acordo entre os dois líderes. Para eles, a paz entre
as gangues representaria um grande negócio, principalmente
a partir do momento em que passaram a controlar toda a
entrada de droga vinda do Canadá e da América do Sul.
Fatalmente as gangues passariam a ter apenas um
fornecedor. Isso já evitaria muitas guerras, principalmente
entre os colombianos e jamaicanos, principais fornecedores,
que passariam a entregar todo o seu produto à família
Cauzio, que se encarregaria de toda a distribuição. O lucro
seria sempre imediato e a mercadoria teria um alto giro.
126
— Bem, cavalheiros, o fato de estarem os dois aqui
significa que entenderam nossos argumentos, mostrando-se
dispostos a negociar não? — falou Andy.
— Você nos prometeu grandes lucros. — disse Johnny.
— Estamos esperando, pode falar — acrescentou
Angus.
— Como sabem, fechamos um acordo com os
colombianos e jamaicanos. Toda a droga vendida e
consumida nesta cidade passará por nossas mãos.
— Em que isso nos beneficia? — indagou Johnny.
— Simples. Não terão de regatear preços entre os
colombianos e os jamaicanos.
— Mas teremos que pagar o preço que vocês
determinarem — observou Angus.
— Haverá um acordo entre nós. A droga chegará a
vocês por um preço justo, que não convém discutir aqui e
agora. Quem pagará o preço, no fim das contas, são os
viciados mesmo. Desde que lhes forneçamos a droga, eles
darão um jeito de conseguir o dinheiro. Percebem?
— Certo, vejo que o acordo foi bom para vocês. Agora
nos mostre como ele será bom para nós — pediu Johnny.
— Simples, rapazes. Vocês param com as guerras entre
gangues e põem todo mundo no trabalho de distribuição e
venda, respeitando os territórios de cada um. Você, Angus,
vai manter seu pessoal nos limites do Harlem e Johnny
limitará o dele ao Bronx. Cada um terá sua área de venda e
o que terá de fazer será apenas estimular o consumo e
coordenar as vendas. Nós estaremos na retaguarda para
127
providenciar toda a mercadoria que vocês possam precisar.
Estão entendendo?
Os dois líderes de gangue pensaram por instantes. O
que Andy dizia tinha alguma lógica, mas já fora tentado
antes. Não havia como impedir que as gangues rivais se
enfrentassem. Angus comentou isso. Johnny concordou com
ele. Andy sorriu matreiramente, lembrando-se que seu pai
pensara naquilo também.
— Bem, rapazes, seus homens gostam de guerrear. É
próprio deles, não?
— Sim, não há como segurá-los — comentou Angus.
— Sim, gostam de sair nos sábados à noite, chutando
traseiros negros. Sem ofensas, é claro — corrigiu em
seguida Johnny, diante do olhar ofendido de Angus.
— Isso terá de acabar — frisou Andy.
— Como? — quis saber Angus.
— Temos de fazê-los canalizar toda essa vontade de
brigar numa outra direção.
— Como assim? — insistiu Angus.
— Arrumando um inimigo comum. Se os dois lados
tiverem um inimigo comum para combater, vão se unir ao
invés de se enfrentarem.
Johnny e Angus trocaram um olhar de visível
entendimento. A ideia de Andy tinha sentido. A questão
agora era descobrir quem seria esse inimigo comum. Os
dois olharam ao mesmo tempo na direção de Andy.
— Quem seria esse inimigo? — indagou Angus.
128
— Só temos um inimigo comum — mencionou
Johnny. — A Polícia.
— Exato! — confirmou Andy.
— Todo o Sexto Distrito — lembrou Johnny.
— Principalmente aquele bastardo do Inspetor Joe
Bradford.
— Esse é o pior de todos.
— Gostaria de pôr minhas mãos nele.
— E eu de arrancar-lhe o coração com as próprias
mãos.
Diante deles, Andy olhava-os com satisfação. Havia
conseguido seu objetivo conforme seu pai havia previsto. Os
dois líderes de gangues já mostravam que havia um
elemento capaz de uni-los.
— Perceberam, rapazes? — observou ele.
Os dois se voltaram para ele. Pensaram por instantes,
depois começaram a rir.
— Sim, percebemos — comentou Angus.
— Você tem toda razão, carcamano — acrescentou
Johnny. — Só que Joe Bradford é um só e logo será morto.
— Mas a ideia não é matá-lo. E fazê-lo provocar a ira
de suas gangues contra ele, infernizar-lhe a vida ao máximo,
mas não matá-lo. Joe será mais útil vivo do que morto.
Perceberam?
Desta vez os dois não demonstraram estar muito certos
do que Andy pretendia.
— Joe Bradford será importante enquanto canalizar
toda a raiva e a agressividade das gangues, perceberam?
129
Enquanto seus homens odiarem Joe e mantiverem a ideia
fixa de vê-lo morto, não desejarão brigar entre si.
— É... Tem lógica — comentou Angus.
— Só que, mesmo assim, ele não vai resistir ao desejo
de tantas pessoas desejando vê-lo morto. Cedo ou tarde,
alguém vai pegá-lo — mencionou Angus.
— Não se nós nos anteciparmos, avisando-o de todas
as possíveis emboscadas que forem preparadas contra ele.
Compreenderam?
Os dois líderes criminosos olharam-se por instantes,
depois começaram a balançar suas cabeças num sinal de
aprovação.
— Muito esperto! — comentou Angus.
— Pode funcionar — concordou Johnny.
— Vamos trabalhar como anjos da guarda daquele
bastardo. Isso vai ser muito interessante. Ao invés de matálo, vamos mantê-lo vivo.
— Até o momento em que encontrarmos outro para
substituí-lo, não?
— Exato, rapazes! Vocês pegaram bem o espírito da
coisa — elogiou Andy.
— E quando começaremos esse plano? — questionou
Johnny.
— Antes de qualquer coisa, precisamos estabelecer
uma trégua, fixar uma data para que ela seja iniciada e
tratarmos de fazer tudo que for necessário para que ela seja
respeitada. E nisso teremos de ser rigorosos — frisou bem o
gângster.
130
— Nisso ele tem razão. Se deixarmos que a trégua seja
quebrada, em pouco tempo voltaríamos ao estágio atual —
ponderou Angus.
— Exato. Não permitam que isso aconteça sob pena de
termos grandes prejuízos.
— Entendo — afirmou Johnny.
— Temos um acordo então, cavalheiros? — indagou
Andy, pondo sua mão aberta sobre a mesa, com a palma
para baixo.
Angus e Johnny mediram-se por instantes. Depois,
com decisão, Angus pôs sua mão sobre a de Andy e Johnny,
a dele sobre a de Angus.
— Bebamos a isso, sócios — falou Andy, fazendo um
sinal para um de seus homens.
Um furgão se abriu. Um grupo de garçons desceu com
bandejas e travessas, levando-as para a mesa. Os homens
presentes no armazém sorriam satisfeitos.
131
CAPÍTULO 2
Joe e Matt haviam encerrado aquela ocorrência e
circulado pelas ruas do bairro, percorrendo um caminho
aleatório, decidido no momento. Passava um pouco das oito.
— Quero comer um bolinho — falou Matt. — Vamos
parar na confeitaria.
— E eu parecido de um café imediatamente. Acho que
ando com algum problema de saúde. Sempre que enfrento
uma situação como essa que passamos, fico com vontade de
provar alguma coisa doce.
— Doce? Não será diabetes?
— E eu sei lá? Como é isso?
— Não sei, mas tem alguma coisa a ver com açúcar.
— Dane-se! Pelo menos até agora não me incomodou.
Pararam o carro próximo da porta da confeitaria. Joe
deixou o rádio ligado. Do balcão poderiam ouvir algum
chamado. Fizeram os pedidos e aguardaram até que fossem
servidos em bandejas individuais descartáveis. Retornaram
ao carro. Deixaram as bandejas sobre o capô, enquanto
comiam.
— Vamos falar sério agora, Joe. Quando vai se decidir
a pedir a maldita aposentadoria?
— Diabos, Matt! Não sei por que todo mundo se julga
no direito de me questionar quanto a isso. Sei que terei de
sair logo ou serei aposentado compulsoriamente, mas ainda
me sinto bem. Sinto-me útil, com vigor, alerta e com
132
experiência suficiente para livrar-me dos perigos. Por que
diabos acham que eu me sairia melhor atrás de uma
escrivaninha, anotando queixas de velhinhos roubados?
— Ei, calma! Sou eu, seu parceiro Matt, lembra-se?
Não quis provocá-lo, só lhe fiz uma pergunta.
— Ok, esqueça! Acho que ainda estou tenso por causa
daqueles malditos que tentaram nos caçar. Já vai passar.
Deixe-me comer meu bolinho sossegado.
Matt deixou-o quieto. Nos últimos dias, Joe andava
meio tenso mesmo e o melhor a fazer nesses momentos era
deixá-lo em paz. Imaginava que não devia estar sendo fácil
para ele, acostumado à ação e ao trabalho nas ruas, enfrentar
a expectativa da aposentadoria. Era um patrulheiro, um
vigilante com distintivo, um caçador de recompensas no
velho estilo do Oeste. Possivelmente teria sido um delegado
federal ou um xerife na reencarnação passada. Nada o fazia
se sentir tão bem do que estar que no meio da tensão e do
perigo. Agora se aproximava o momento em que o único
perigo que ele conheceria seria o de atravessar uma rua ou
deparar-se com uma gangue de viciados, ao sair do banco
com seu pagamento. Lamentava isso. Lamentava pelo
amigo, a quem devia a vida pelo menos meia dúzia de
vezes. Joe já se arriscara inúmeras vezes para salvar Matt e
o que talvez no fundo também incomodasse Matt era saber
que jamais encontraria alguém tão firme e tão dedicado
quanto Joe. Com ele sentia-se protegido, indestrutível. Já
haviam enfrentado tiroteios memoráveis e era um alívio ter
133
Joe do lado, com um AR-15 nas mãos ou uma escopeta de
grosso calibre, distribuindo certeiros balaços.
Patrulhar as ruas iria tornar-se mais perigoso após a
saída de Joe. Preocupava-se com isso, da mesma forma
como se preocupava com o futuro do amigo. O que Joe
sabia fazer, afinal? O que iria ser quando o aposentassem?
Muitos já o haviam convidado para trabalhar como
detetive particular, instrutor de equipes de segurança,
preparação de agentes de empresas que prestavam serviços
no Oriente Médio, tudo dentro do ramo que ele dominava
tão bem. A questão era que o trabalho fácil e sem risco
jamais agradaria Joe, acostumado a muita adrenalina do
sangue, dia após dia com as mãos cheirando pólvora. Esse
era o perfume preferido do inspetor.
— Joe, soube que o Rusty está vendendo o bar. Ouviu
falar alguma coisa também?
— Está vendendo. Ofereceu-me — respondeu Joe,
num tom de voz que causou estranheza em Matt.
Olhou-o, intrigado.
— Ele o ofereceu a você?
— Sim, até me fez uma proposta irrecusável.
— Que tipo de proposta?
— Uma parte de entrada e o restante parcelado em até
um ano.
— Rusty está mesmo com vontade de vender.
O rosto de Joe tornou-se triste e sombrio.
— Não, Matt! Ned está morrendo.
— Morrendo? Como assim? — surpreendeu-se Matt.
134
— Lembra-se dos ferimentos que ele sofreu naquele
acidente que acabou com a carreira dele na Polícia?
— Claro que me lembro. Ele acabou sócio do Ned no
bar...
— Alguma coisa aconteceu durante o processo de
cicatrização e em decorrência dos esforços que despendeu
numa fisioterapia sem acompanhamento. Bem, não entendo
muito dessas coisas de medicina. Sei apenas que um câncer
instalou-se nos ossos. Agora já se espalhou pelo corpo todo.
Rusty quer voltar para casa, para o Missouri, onde vai
esperar a morte — falou Joe e sua voz traía uma emoção
que poucas vezes Matt vira nele.
Ficou em silêncio. Todos conheciam o Rusty. Possuía
um bar na mesma quadra do Sexto Distrito. Para lá iam os
policias de folga, os que saíam dos expedientes, os de outros
distritos e até os estudantes da Academia de Polícia de Nova
Iorque, ansiosos para conhecerem o ambiente onde viviam
os veteranos. Tudo no bar lembrava o trabalho policial ao
qual Rusty dedicara seus melhores anos de vida, até ter de
afastar-se por causa de um atentado que resultou em um
acidente terrível. Ter se tornado sócio de Ned o havia
ajudado a se manter lúcido e em pé, após toda o sua
tragédia. Estava em contato diário com os amigos, ouvia as
histórias, repartia sua experiência com os novatos e fazia
parecer que ainda continuava na Força Policial. Ned morrera
recentemente e isso havia abalado Rusty, o que se agravou
quando recebeu o terrível diagnóstico de sua doença.
135
Rusty e Joe eram muito amigos. Joe havia recebido a
proposta de Rusty com o mesmo interesse com que este,
anos antes, a havia recebido de Ned. Para Joe, era a única
coisa que parecia atraí-lo para após a aposentadoria.
Continuaria mantendo contado com todos os seus amigos.
— O que você respondeu a ele? — questionou Matt.
— Sobre o quê?
— Sobe a compra do bar.
— Rusty me disse-me que Bar do Joe seria um bom
nome. Bem, eu não sei.
Naquele momento, um carro estacionou ao lado deles.
Um garoto com os cabelos cortados bem curtos no estilo
militar pôs a cabeça para fora da janela.
— Ei, Joe, está acontecendo alguma coisa lá para os
lados do rio — disse ela.
— Como o quê, Moicano?
— Não sei dizer, mas havia muitos carros e muita
gente armada por lá.
— Algum confronto?
— Não, algo mais parecido com uma festa.
— Foram lá verificar?
— Sozinhos? Nem toda a força do Sexto Distrito seria
capaz de dar conta disso. Era negócio grande. Grande
mesmo.
— Por que não pediu minha ajuda?
— Pensa que sou louco? — retrucou o outro, rindo,
dado ré e saindo.
136
Bob "Moicano" Jones era um policial do Sexto Distrito
também e patrulhava as ruas sozinho, disfarçado de punk.
— O que acha que pode ser? — indagou Matt.
— Não sei, mas adoraria dar uma olhada.
— Isso normalmente acaba rápido, não?
— Talvez encontremos alguma coisa ainda. O que me
diz? — indagou, olhando para o parceiro.
Era aquilo que tornava Joe um policial especial. Nada o
intimidava. Aquela sua maldita curiosidade o levava a
qualquer lugar, não importavam os riscos. Joe fizera
pergunta apenas por formalidade. Matt já o conhecia bem.
Ele fazia a pergunta e já tratava de pôr-se em movimento.
Matt tratou de entrar logo no carro. Seu parceiro já dava
partida no carro, engatando a ré e recuando a toda, fazendo
as bandejas que haviam ficado sobre o capô voarem longe.
Saiu cantando os pneus.
***
Todo o andar de cobertura do Edifício Nevada, na
Quinta Avenida, em frente ao Central Park, era ocupado por
apenas um velho, servido por uma equipe de seis fiéis e
antigos criados, todos conhecedores de seus hábitos e
manias. Cauzio Luciano chegava aos setenta anos com
grande vitalidade e uma lucidez de mente impressionante
para sua idade. Desde a mais tenra idade vinha preparando
seu filho, Andy Luciano, para assumir o controle definitivo
da família. Após a unificação dos territórios, numa
sangrenta guerra travada nos anos oitenta, a família
assumira o controle de toda a cidade de Nova Iorque. Já não
137
se dedicavam mais a coisas tão simples como as máquinas
caça-níqueis, as prostitutas de rua ou as loterias
clandestinas. Administravam grandes conglomerados,
ocultos atrás de inocentes fachadas, envolvendo corrupção e
apostas no esporte, altas finanças, bolsa de valores e tráfico
de armas para bandidos do mundo inteiro. Haviam relutado
em entrar para os negócios das drogas, mas perceberam que
era preciso uma força poderosa controlando aquele mercado
ou as guerras constantes acabariam transformando num
inferno a vida de todos. A cada confronto entre gangues
medíocres, todas as atenções se voltavam para a Máfia,
como se ela fosse a responsável por tudo. Dom Cauzio
queria fugir daquela publicidade desagradável que jamais
fora interessante para os negócios. Deixava para o filho um
patrimônio consolidado e o domínio completo de toda a
cidade.
— Bom trabalho, filho! — disse-lhe o velho, assim que
Andy lhe passou o relatório de tudo que acontecera na
reunião.
— Pelo menos neste início, tudo aconteceu conforme
havia previsto, meu pai. Continuo curioso, no entanto, para
saber o que tem em mente com tudo isso.
— Em trinta dias faço setenta anos, Andy, e vou
cumprir a minha promessa. Vou retirar-me dos negócios.
Vou para a minha casa em Miami, levando meus criados e
amigos e o suficiente para viver e morrer em paz. Você
assumirá o controle de tudo. Será o novo Dom Luciano, Rei
de Nova Iorque, como dizem os jornais. Acho que já lhe
138
ensinei tudo que sabia e que você poderia aprender. Agora é
com você.
— Entendi, pai, mas não vi aonde quis chegar com essa
trégua entre os hispânicos e os negros. Não nos seria mais
interessante se eles se matassem e nós passássemos a
controlar a distribuição da droga também? Temos estrutura
para isso.
— Não sejamos tão gananciosos, meu filho. Há o
bastante para todos em Nova Iorque.
— Até o momento em que cada uma dessas partes, ou
as duas, descobrir que poderia ganhar mais sem nossa ajuda.
— Eles conhecem nosso poder. Não ousariam — falou
o patriarca, com segurança. — Agora me deixe! Preciso
descansar.
Andy acatou de imediato a decisão do pai, despediu-se
e foi para o elevador. Desceu até a garagem, onde o
esperava uma limusine com alguns capangas.
— E então, Andy? — indagou um deles.
— O velho ficou satisfeito com tudo. É um grande
plano. Só não concordo em repartir, quando podemos ter
tudo — comentou ele enquanto entrava no carro.
Três homens entraram com ele. Eram seus homens de
confiança e que teriam um papel importante na família,
quando Andy assumisse o comando.
— Algum lugar em especial, Sr. Luciano? — indagou
o motorista.
139
— Dê uma volta, Nino, enquanto conversamos. Depois
vamos ao Rose Club, mas não quero chegar lá antes das
onze.
Enquanto o motorista cumpria a ordem recebida, Andy
apontou a porta do barzinho da limusine. Um dos homens
imediatamente apanhou um copo. Pôs um pouco de gelo
dentro, depois serviu uísque na quantidade que o chefe
apreciava. Andy tomou um gole, saboreando a bebida,
enquanto pensava. A droga recebida poderia ter triplicado o
seu valor, caso vendida ao consumidor final. Era isso o que
despertava sua cobiça. Como dominavam toda a cidade,
queria transformar isso não apenas de fachada, mas na
realidade. Nem que, para isso, precisasse rachar algumas
cabeças teimosas.
— Uma coisa tenho de reconhecer no plano de meu
pai. É muito engenhoso em um detalhe importante —
comentou.
— A que se refere, Andy? — indagou um dos homens.
— Vai pôr juntos os dois homens mais importantes
desta parte da cidade. Nada melhor para matar ratos que pôlos juntos, todos no mesmo lugar. Se conseguirmos fazer
isso com os hispânicos e os negros, o resto da cidade será
nosso. Os colombianos e os jamaicanos estão satisfeitos
com o acordo e, depois do que fizermos, os outros grupos
não ousarão tentar nada contra nós.
— Começo a entender seu ponto de vista, Andy. A
cidade para a Máfia, como era no início, não?
140
— Sim, antes dessa ralé chegar e tomar conta de tudo.
Deixamos que eles ocupassem um espaço na cidade e agora
eles querem tudo. É sempre assim. Você dá a mão, logo eles
querem o braço e, quando você menos espera, eles o
devoraram inteiro. Só que vamos mudar isso, rapazes, e
vocês tratem de começar a pensar. Se vão ser meus
conselheiros na família, é bom que comecem a pensar como
tal — ordenou o rapaz, tomando mais um gole do uísque
gelado.
***
Johnny Perez estava de volta ao seu covil onde contara
aos chefes das gangues sob seu controle o acordo que havia
sido feito com os negros e com os italianos. Houve
protestos, mas o líder soube convencer os mais intolerantes,
acenando com a possibilidade de um lucro muito bom.
— Só que vamos estar para sempre nas mãos dos
carcamanos. Quando precisarmos da droga, teremos de
pagar-lhes o preço que pedirem — lembrou alguém.
— Isso é o de menos — afirmou ele. — O preço final
quem vai pagar é o viciado. Se cinco ou dez dólares por uma
dose, não importa. Em nosso lucro ninguém tocará. Como
os negros estarão negociando pelo mesmo preço, não
teremos concorrência. Todos trabalharão em paz e todos
lucrarão.
A lógica da situação era inegável. O que ninguém
conseguia imaginar, no entanto, era a trégua entre as
gangues, coisa absolutamente impossível. A menos que o
Inspetor Joe Bradford fosse transformado no terror das
141
gangues, no pior inimigo de todas elas, na ameaça número
um.
— Acha que conseguiremos direcionar nosso pessoal
para odiar a polícia muito mais do que as gangues rivais?
— Teremos que fazer isso, rapazes, se quisermos
lucrar. E haverá tanto lucro, tanto dinheiro, que nem durante
toda a vida vocês conseguirão gastá-lo. Haverá carros,
casas, apartamentos, mulheres, viagens, tudo que sempre
desejaram. Poderão tomar banho em notas de mil —
exagerou ele, incentivando-os.
Para aqueles homens acostumados a sonhar grande,
aqueles argumentos eram muito convincentes.
— Para quando será essa trégua, Johnny? — indagou
um deles.
— Devemos começar a partir de agora, mas o prazo
fatal é o próximo sábado. A partir daquela data, nenhum
confronto deverá acontecer entre as gangues hispânicas e
negras, sob nenhum pretexto e em hipótese alguma. Toda e
qualquer transgressão deverá e será severamente punida e eu
pessoalmente me encarregarei disso, se o chefe da gangue
envolvida não tomar as providências. Espero que isso tenha
ficado bem claro para todos vocês. Agora vão e espalhem a
notícia — ordenou ele.
A perspectiva do ganho fácil e do aumento dos lucros
deixara todos muito animados. Era com isso que Johnny
contava e estava dando certo. Enquanto isso, do outro lado
da ilha, no Bronx, Angus Colúmbia acabara de fazer uma
reunião semelhante com seus chefes de gangues. Quando
142
eles saíram, Mayrah, uma estonteante mulata de longos
cabelos e incríveis olhos verdes foi levar-lhe uma taça de
champanhe. Ele estava pensativo. Via o lucro fácil, mas via,
também, a chance de aumentar seus domínios.
— Por que está tão pensativo? — indagou ela em pé
atrás da cadeira dele.
Angus continuou pensativo, enquanto ela massageava
suavemente os ombros dele, tirando-lhe toda a tensão das
duas reuniões de que ele participara naquela noite.
— O Harlem e o Bronx são tão pequenos. Não
concorda, Mayrah?
— Se você o diz, querido, eles são menores ainda. Por
que diz isso?
— Porque, para mim, para minha grandiosidade, os
dois deveriam ser um só. Por que tenho de me contentar
apenas com o Harlem, quando posso ter os dois?
— Não sem provocar derramamento de muito sangue.
Muito sangue mesmo.
— Desde que não seja o nosso sangue. Talvez não
apenas dominar esses dois bairros, mas toda a cidade.
Afinal, nossos irmãos estão por toda parte.
— São ideias perigosas, meu negro. Muito perigosas.
Ele sorriu. O risco era calculado e o resultado poderia
ser muito compensador. Achou que deveria pensar melhor
naquela possibilidade.
Por seu turno, Johnny também pensava a mesma coisa.
Aqueles homens eram rivais, mas, ao mesmo tempo, muito
semelhantes um ao outro.
143
144
CAPÍTULO 3
Um carro dos Lobos Vermelhos, conduzindo duas
garotas, foi abordado por uma caminhonete com membros
dos Águias Negras do Harlem, a poucas quadras do Sexto
Distrito num sinaleiro. Tudo estava tranquilo, até que uma
das garotas resolveu jogar uma lata de cerveja na
caminhonete. Imediatamente alguns ocupantes desse veículo
saltaram e começaram a chutar e esmurrar a lataria do carro.
As garotas entraram em pânico. Os vidros do carro foram
fechados e seu motorista tentou arrancar, mas o condutor da
caminhonete lhe cortou a frente, empurrando-o na direção
da calçada. Os outros continuaram chutando e amassando a
lataria do carro.
De repente, como se um vulcão explodisse
inesperadamente, o motorista do carro levantou uma
espingarda de canos serrados e apertou os dois gatilhos ao
mesmo tempo. A poderosa descarga arrebentou o vidro
lateral e atingiu em cheio o rosto de um dos negros que
chutavam o carro. Dando ré, o motorista do carro ainda
tentou se afastar do local, mas quem dirigia a caminhonete
saltou em seguida com um fuzil AR-15 nas mãos. A
primeira rajada arrebentou o motor do carro. As portas
foram abertas com violência e dois garotos desceram, um de
cada lado, com espingardas de canos serrados, disparandoas na direção do bando que tentava abrigar-se atrás da
caminhonete.
145
— Vão me pagar por este carro — dizia o rapaz,
enquanto remuniciava sua espingarda.
O negro com o AR-15 disparou a segunda rajada,
atingindo-o no peito e jogando-o para trás. O outro garoto
levantou sua escopeta e disparou, atingindo o negro, que
jogou os braços e o AR-15 para o alto, enquanto era
empurrado para trás. As garotas desceram do carro e tinham
nas mãos pistolas automáticas, que seguravam com ambas
as mãos, enquanto disparavam contra a caminhonete,
furando pneus, arrebentando vidros, fazendo rombos na
lataria. Nas casas e prédios ao redor, as pessoas deitavam-se
no chão, buscando proteção contra aquele inferno de
chumbo. Um dos negros conseguiu apanhar o fuzil e
disparar nova rajada contra o carro, perfurando a lataria,
sem atingir ninguém.
— Cachorros! — falou uma das garotas, apanhando
uma garrafa no carro.
Era um coquetel molotov. Ela acendeu o pavio e o
arremessou na direção da caminhonete. A garrafa caiu sobre
a cabine, estourando e jogando gasolina em chamas sobre os
negros que se escondiam atrás do veículo.
— Malditos chicanos! — berrou um deles, tentando
apagar-se, batendo com as mãos nas roupas em chamas.
O rapaz do carro aproximou-se com sua espingarda
engatilhada e apontou-a para os membros da outra gangue,
disparando os dois caos sem piedade. A carga especialmente
preparada abriu-se num leque mortal, atingindo todos os
corpos em chamas, derrubando-os. Alguns ainda ficaram se
146
contorcendo no asfalto. As garotas aproximaram-se e foram
imobilizando-os com certeiros disparos de automática na
cabeça. Os corpos ficaram imóveis, ardendo macabramente
no meio da rua. O garoto hispânico soltou o grito de guerra
de sua gangue, no momento em que o carro dirigido por Joe
dobrava a esquina e freava violentamente, derrapando de
lado.
— Que diabo é isso? — indagou Matt, surpreso,
olhando aquelas luzes estranhas que ardiam na rua.
A resposta veio em seguida com uma série de disparos
feitos pelas garotas, atingindo a lataria do carro. Matt
agradeceu a blindagem preparada pelo Departamento de
Engenharia Policial, mas estremeceu quando viu o rapaz
abaixar-se e apanhar o AR-15.
— Joe, ele tem um igual ao seu — gritou Matt,
saltando do carro e indo ocultar-se do outro lado.
— Diabos, esse brinquedinho só fica bem quando eu o
disparo contra os outros, não quando os outros disparam
contra mim — comentou Joe, erguendo sua arma e
disparando-a antes que o outro o fizesse.
Sua rajada foi certeira. Três tiros acertaram em
sequência o corpo do rapaz, jogando-o contra a lataria da
caminhonete. Quando escorregou para o asfalto, deixou uma
trilha de sangue.
— Filho de uma cadela! Maldito! — gritou uma das
garotas, mirando sua automática na direção de Joe.
O policial hesitou por instantes. Sempre se sentia assim
quando a questão era disparar contra uma mulher.
147
Felizmente para ele Matt não tinha esse problema. Disparou
sua Doze contra a garota, jogando-a para trás sobre o corpo
em chamas de um negro. A outra garota começou a correr.
— Pegue-a, Joe! Pegue-a ou ela não nos dará paz
enquanto viver.
Joe apontou o fuzil na direção da garota que corria pela
rua. Sabia muito bem do que Matt estava falando. As
garotas dos membros das gangues eram piores do que
cobras. Se alguém matava seu homem, elas juravam
vingança. Holden, um patrulheiro de rua, duvidara disso.
Matara um membro da gangue Lírios Negros. A garota do
morto, um dia, simplesmente entrou no carro de Holden,
quando ele saía do estacionamento da Polícia. Preso ao
corpo, ela levava um pacote de dinamite. A explosão
transformou Holden em partículas. Nem seu distintivo foi
encontrado inteiro.
— Atire, demônios! — insistiu Matt, no momento em
que Joe apertava o gatilho.
Lá na frente, a garota pareceu ter sido puxada por uma
força invisível. Se corpo arrastou-se no asfalto, ficando
imóvel, numa posição grotesca e retorcida. O disparo
secionara sua espinha e abrira um rombo em sua barriga,
jogando para fora tudo que estava lá dentro. Matt respirou
aliviado
enquanto
remuniciava
sua
espingarda,
engatilhando-a em seguida. Avançou na direção dos corpos
que se espalhavam pela rua. Joe seguiu-o, após trocar o
pente de sua arma.
— Pensei que não fosse atirar — comentou Matt.
148
— Você sabe como me sinto a respeito de matar
mulheres.
— Pois então não pense nelas como mulheres. Pense
nelas como guerreiros, que é o que elas são, na verdade.
O som de sirenes aproximando-se indicava que outros
carros respondiam ao chamado. Mas só apareciam agora que
o tiroteio cessara.
— O que temos aqui? — indagou alguém, com um
megafone.
— Uma besta de megafone! — respondeu alguém.
— Quem disse isso? — insistiu o policial com o
megafone, enquanto todos os outros riam.
As ambulâncias chegaram em seguida. Joe e Matt
foram examinar os estragos no carro deles. O Capitão
chegou também e, assim que tomou conhecimento do que
acontecera, foi ao encontro dos dois.
— Muito bem, rambos do meu distrito: que diabo
aconteceu aqui?
— Uma rusga entre quadrilhas, capitão — explicou
Matt, percebendo que Joe afastara-se para não demonstrar
sua irritação para com o capitão.
— Quando chegamos, estavam todos mortos —
acrescentou Joe.
— E quem disparou essas balas contra a viatura?
Algum defunto por acaso?
— Acho que foi alguém nos seus últimos instantes de
vida, capitão. Alguém atirou em nós e revidamos, atirando
de volta — explicou Matt, tentando consertar.
149
— Espero que esteja falando a verdade, Matt. Seria
uma pena ter de puni-los por excesso de força.
Joe não resistiu. Saiu de trás de seu carro e caminhou
até ficar cara a cara com o capitão, olhando-o nos olhos.
— Quando foi a última vez que fez uma patrulha nesta
região, capitão? Uma patrulha de verdade? — indagou,
irritado.
— Cuidado com esse tom de voz, inspetor. Não estou
gostando dele.
— E eu muito menos de suas insinuações. Já não basta
bancar o alvo dia e noite nestas ruas? Temos de aguentar
isso?
Matt procurou ser diplomático, abraçando o capitão e
levando-o dali, antes que Joe perdesse a calma.
***
Um grupo de policiais que acabava de sair do turno da
noite entrou no bar com ar cansado e a tensão refletida em
seus rostos. Quando chegaram ao balcão, Rusty já servira a
bebida preferida de cada um deles.
— Rusty, se minha mulher soubesse de meus gostos
como você sabe, eu seria um homem feliz — comentou um
deles.
— Como foi a noite, rapazes? — indagou o ex-policial
e dono do bar.
— O mesmo inferno de sempre — falou Boyle, tirando
o quepe e esfregando uma das mãos nos ralos cabelos. — A
coisa esteve feia lá pelos lados da Mayflower.
— Algum dos nossos?
150
— Não, para azar dos malditos bastardos. Tentaram
brincar de caça ao coelho adivinhe com quem...
— Joe Bradford?
— Ele mesmo. O bastardo é mais liso que uma cobra
d'água. Ele e Matt despacharam uma porção deles para o
inferno. Depois ainda foram encarar um tiroteio aqui perto.
Fizeram o diabo!
— É... Joe vai fazer falta quando sair — comentou
Rusty, mas ninguém mais o ouvia, ocupados com suas
bebidas.
Rusty foi até o fim do balcão, onde um velho e grisalho
ex-policial bebia sozinho uma cerveja em lata.
— Como eu estava lhe dizendo, Rusty, parece que
alguma coisa grande aconteceu lá para os lados do rio esta
noite. Italianos, chicanos e negros encontrando-se sem tiros
nem mortes — comentou Allan White.
— Tem alguma ideia?
— Nenhuma.
— E o resto dos rapazes?
— Não falei com nenhum deles. Esperei encontrá-los
aqui.
— Ficarei atento. Alguém deverá saber o que houve.
Rusty retornou ao balcão, onde os policiais terminavam
suas bebidas. Repetiu-lhes a dose.
— O que houve lá para os lados do rio, pessoal? —
indagou ele.
— Nada que saibamos. Parece que houve uma reunião.
O Moicano passou por lá, mas muito de longe. Joe e Matt
151
foram ver de que se tratava, mas quando chegaram lá, estava
tudo calmo e vazio.
— Ninguém tem ao menos uma ideia do que esteja
acontecendo?
— Não sabemos ao certo, Rusty, mas estávamos
justamente comentando isso. À medida que a noite
avançava, ao invés de aumentarem as confusões, como
sempre acontece, foram diminuindo. Dava para sentir nos
ossos que alguma coisa estava acontecendo.
— Estranho, não? — comentou Rusty com ar
pensativo.
Quando a madrugada chegou e avançou pela noite,
todos os policiais tinham a mesma história para contar.
Alguma coisa estava acontecendo e eles desconheciam. Era
como se uma trégua tivesse sido decretada entre as gangues.
Essa ideia não saía da cabeça de Rusty, à medida que outros
policiais deixavam seus turnos e comentavam a mesma
coisa.
Passava um pouco das duas da manhã, quando Joe e
Matt chegaram. Normalmente eles chegavam quando o bar
estava fechando, aos primeiros clarões da manhã.
— Que diabos estão fazendo aqui tão cedo? — indagou
ele. — Deram para beber em serviço agora?
— Rusty, está a coisa mais estranha lá fora. Tudo está
em paz, nenhum tiroteio depois da meia-noite, todo mundo
se respeitando como se estivéssemos num colégio de freiras
— comentou Matt.
152
— Acham que isso tem alguma coisa a ver com a
reunião lá na beira do rio?
— Não sei, mas está tudo muito esquisito —
acrescentou Joe, sem estranhar que Rusty já tivesse
conhecimento do assunto.
Além de aquele ser um bar frequentado por policiais, o
próprio Rusty tinha um rádio ligado direto com a Polícia,
acompanhando as ocorrências, quando tinha tempo.
— O que acham que pode estar acontecendo? —
insistiu Rusty.
— Não sei, talvez eles tenham resolvido fazer as pazes
— respondeu Joe, apanhando a cerveja que lhe fora servida
e bebendo no gargalo.
— E aqueles patifes conseguirão ficar sem atirar uns
nos outros? — continuou Rusty.
— Se não puderem atirar uns nos outros, vão ter que
encontrar novos alvos — lembrou Matt.
Rusty e Joe olharam na direção dele com ares
preocupados. Se os bandidos não fossem atirar uns nos
outros, quem seriam, então, seus prováveis alvos? Os três
haviam chegado àquela conclusão ao mesmo tempo.
— Acha que estão tramando alguma coisa em
conjunto? — indagou Matt preocupado realmente.
Enquanto as quadrilhas se matavam naqueles
confrontos malucos de sábado à noite, poupavam balas aos
policiais. Sem isso, teriam de encontrar mesmo outra
diversão.
153
— Acho bom tentarmos descobrir mais a respeito desse
encontro de hoje, Matt. Poderemos estar incluídos nisso sem
saber — lembrou Joe.
— Eu muito mais do que você. Ainda pode aposentarse e dar o fora a qualquer momento que desejar. Eu tenho de
ficar mais cinco anos ainda. Não sei se aguentarei, sendo
alvo constante e sem você para me defender — falou Matt,
num tom assustado e patético que emocionou Joe.
— É, talvez eu o convide para ser meu sócio —
comentou Joe. — Se eu e Rusty fizermos negócios — ia
falando Joe, mas interrompeu quando viu um velho entrar
no bar e ir até o quadro de aviso.
Espetou um pedaço de papel com um alfinete ali,
depois se retirou discretamente. Joe foi até lá, olhar o que
ele deixara. Era um nome e um número de telefone ao lado
de um anúncio do Carrasco, aquele que fazia justiça, quando
a justiça falhava. Aquela era uma das mais famosas lendas
da cidade, mas Joe não acreditava nela. Para ele tudo aquilo
não passava de um embuste, uma forma de enganar os
incautos, prometendo-lhes algo que jamais teriam. Para ele,
eram como os pastores na televisão, prometendo o reino dos
céus como se Deus lhes tivesse dado a exclusividade na
venda dos ingressos ou dos lotes.
Quando retornou ao balcão, Rusty o olhava com
interesse. Joe podia sentir em seus ossos que ele sabia
alguma coisa sobre aquela história toda, mas jamais a
contaria.
154
— Mais um recado para o Carrasco — comentou Joe.
— Sabe que em toda parte nesta cidade existe isso. Alguém
verá e ligará para lá, passando um trote e...
— Há trinta anos que ouço falar no Carrasco, Joe, e até
agora não ouvi ninguém reclamar ou dizer que tenha sido
enganado por causa disso. Se há algo que é respeitado nesta
cidade, pode ter certeza que é ele.
— Mas é uma lenda, Rusty.
— E de onde surgem as lendas, Joe? O que as mantém
vivas? — indagou Rusty desafiador.
— Vamos deixar esse assunto de lado. Estou
considerando seriamente sua proposta e, se tudo der certo,
acho que vou comprar seu bar — falou Joe.
— Vai ser o melhor negócio de sua vida, Joe. Depois
disso, só precisará arrumar uma mulher que o tolere.
— Tive três e todas as três me deixaram.
— Porque você era um tira e tiras são péssimos
maridos. Quando tiver o bar, será um empresário. Verá
como sua vida mudara. Terá mais tempo para dedicar-se a
ela, para fazer-lhe carinho e...
— Pode parar por aí mesmo! Não adoce tanto a minha
boca. O Matt aqui acha que estou tendo problemas com o
açúcar — riu Joe, puxando Matt para uma das mesas.
155
CAPÍTULO 4
Aquela estranha noite afetara mais os nervos de Joe do
que qualquer outra. Haviam participado de apenas dois
tiroteios, quando o normal eram cinco ou até mais. Seus
longos anos de experiência diziam-lhe que havia alguma
coisa no ar, alguma coisa ligada àquele encontro no
armazém, envolvendo italianos, hispânicos e negros.
Somando-se a isso, havia o capitão. A cada momento, Joe
sentia-se mais irritado e aborrecido com seu superior. Era
como se, deliberadamente, estivesse forçando-o a tomar
logo a decisão pela aposentadoria.
— Eu pensei que você fosse explodir com o capitão lá
na rua, Joe — comentou Matt.
— Estive a ponto de dar-lhe um murro na boca. Pode
imaginar isso? Ele está preparando alguma para mim, Matt.
Eu sinto isso. Está me empurrando para a aposentadoria.
Sinto que terei de fazer isso, antes de perder a calma e tudo
a que tenho direito,
— Fique frio! Não vá entrar no jogo dele. É esperto
como uma cobra e tem ligações com o gabinete do prefeito.
Brinque com ele e acabará queimado, com certeza. Acho
que vou para casa, Joe. Ainda bem que esta foi uma noite
calma.
— Calma demais, Matt, e isso não me agrada de forma
nenhuma. Sinto alguma coisa no ar. Sente o mesmo?
156
— Aqui dentro, em meus ossos, em cada uma de
minhas cicatrizes — afirmou Matt. — Estou indo. A gente
se vê amanhã.
Matt foi embora. Joe terminou sua cerveja, acendeu um
cigarro e ficou fumando ali, sozinho, olhando os policiais
que bebiam, conversavam, entravam e saiam. Pouco a pouco
o movimento foi diminuindo. Naquele dia, todos estavam
indo embora cedo. Rusty possivelmente esperava isso. Joe
aproveitou para pensar naquela proposta. Seria uma boa
ideia comprar o bar? Se não o comprasse, o que iria fazer
em seguida? O trabalho policial sempre fora sua vida.
Enquanto pensava, viu Rusty deixar o balcão e ir até o
quatro de avisos. Retirou algo dali, depois voltou ao seu
posto, atrás no balcão. Apanhou o telefone e ligou. Falou
por algum tempo, sem gesticular, sem demonstrar emoção.
Anotou algumas coisas num papel. Após desligar, releu as
anotações, dobrou o papel e guardou-o no bolso da camisa.
Restavam poucos policiais no bar agora. Rusty foi
passando de mesa em mesa, até chegar à de Joe.
— Joe, se não se importa, gostaria de aproveitar a noite
para fechar mais cedo. Parece que todo mundo resolveu
descansar hoje.
— Certo, Joe! Eu já estava mesmo de saída. Estou
pensando seriamente em sua proposta. Talvez eu compre
mesmo seu bar. Agora, pela nossa amizade, por tudo que
enfrentamos juntos, conhecendo-me como você me
conhece, acha que me darei bem atrás desse balcão? —
perguntou, encarando o amigo com seriedade.
157
Rusty debruçou-se sobre ele e seus rostos ficaram
próximos.
— Joe, se você fizer tudo o que eu faço neste bar, vai
se arrepender de não tê-lo comprado antes. Vai se sentir
mais em casa do que em qualquer outro lugar. E com uma
vantagem adicional: aqui você é o dono. Não haverá
nenhum capitão pegando no seu pé, entendeu?
— Acho que sim, Rusty Acho que sim — concordou
Joe.
Estava cansado. Despediu-se do amigo e levantou-se.
Caminhava na direção da porta, quando se lembrou de que
Rusty fora até o quadro de avisos. Passou por ali. Nada
parecia mudado, exceto pelo fato de que o nome e o
telefone, anotados num pequeno pedaço de papel e posto ali
pelo velho, não mais se encontravam junto ao anúncio do
Carrasco. Não podia imaginar o que Rusty faria com aquilo,
mas não se incomodou com isso. Não lhe dizia respeito
mesmo.
Foi para casa, no bairro de Queens, um lugar tranquilo
que nada tinha a ver com o inferno que rodeava o Sexto
Distrito. Morava sozinho ali. Mulher nenhuma resistira
muito tempo em sua companhia. Além de ser tira, Joe tinha
um péssimo gênio e muito pouca paciência com mulheres.
Achava que elas sempre perguntavam mais do que
precisavam saber. Quando entrou e acendeu a luz, a
realidade prosaica abateu-se sobre ele. As roupas espalhadas
pela sala diziam que já era hora de reuni-las e levá-las à
lavanderia. Na cozinha, louça suja na pia e na mesa. A
158
geladeira estava vazia, lembrando-o de que precisava ir ao
mercado e comprar alguma coisa decente para pôr no
estômago de vez em quando. Foi até o quarto e jogou-se na
cama, pensativo. Não podia mais continuar vivendo
sozinho. Tinha de arrumar alguém para cuidar da casa. Mas
onde? Quem iria querê-lo? Estas eram perguntas que ele
detestava fazer-se. Normalmente não encontrava respostas
para elas.
***
Amanhecia no Bronx. Havia muito tempo que o bairro
não conhecia uma noite tão tranquila de sábado. Aquele
estranho silêncio que pairou sobre as ruas, sem a presença
de carros com escapamentos abertos, disparos de armas de
fogo, garrafas arrebentadas nas vitrines e gritos de guerra
das gangues, ao invés de tranquilizar os moradores, deixouos ainda mais apreensivos, como se uma tempestade
pairasse sobre eles.
Alheios a isso, os membros da gangue Selvagens da
Noite havia passado toda a noite num comportado bilhar,
conversando, bebendo e consumindo drogas, sendo
controlados a custo pelo seu líder, que estivera na reunião
com Johnny Perez. Quando todos começaram a deixar o
bilhar para ir para casa, ele ainda recomendou a todos o
máximo de cuidado para evitar qualquer rusga com
membros de outras gangues, principalmente do Harlem.
— Ei, Mody! — chamou ele.
A linda e jovem morena, de pouco mais de dezoito
anos, sorriu envaidecida com o chamado, destacando-se das
159
outras e indo ao encontro do chefe. As outras fizeram
caretas e reclamaram entre si, mas nada mudaria a decisão
de Morales. Mody fora a escolhida para passar o domingo
com ele. Não apenas caía nas graças do chefe como sairia da
casa dele com preciosos presentes e uma boa mesada.
Morales poderia descartá-la logo no dia seguinte ou fazê-la
sua companhia habitual, o que significaria uma súbita
elevação na posição da garota dentro da gangue.
— Quer ir comigo? — indagou ele, quando ela chegou
e enroscou-se toda nele.
— Como não? — respondeu ela, beijando-o no
pescoço e acariciando seu rosto.
— É carinhosa, Mody?
— Verá que sim.
— Então vamos — decidiu ele.
O reluzente e novo carro do chefe da gangue estava a
sua espera do lado de fora do bilhar. Alguém abriu a porta
para ele entrar. Mody deu a volta e alguém fez o mesmo
para ela. A garota apreciou aquelas gentilezas, sentindo-se
importante. Enquanto Morales ligava o carro, ela se
encostou nele e enfiou a mão por dentro de sua camisa,
alisando-lhe o peito, brincando com os pêlos, beliscando
seus mamilos. Lambeu-lhe a orelha, fazendo-o rir e arrepiar.
— Acho que vou gostar de você, Mody! Tem fogo.
Gana. Adoro mulheres assim, sabia?
— Hum! Hum! — resmungou ela, com o lóbulo da
orelha dele preso entre seus dentes.
160
Apesar de liderar uma gangue no Bronx, Morales
morava num apartamento da Quinta Avenida, para onde se
dirigiu, após sair do bilhar. Ao lado dele, Mody fazia de
tudo para agradá-lo e cair em suas graças. Isso poderia
significar para ela sua independência financeira. O carro
entrou pela garagem. Apesar de os primeiros raios de sol
surgindo, a garagem ainda estava às escuras, principalmente
porque as luzes estavam apagadas.
— Demônios! Que diabo está havendo aqui? Vou ter
de chutar alguns traseiros para que isso não aconteça de
novo. Estamos no escuro — reclamou ele.
Manobrou seu carro até a vaga da garagem. Quando
desligou, Mody debruçou-se sobre ele, beijando-o
ardentemente, esfregando seu corpo jovem e tenro contra o
dele, provocando-o. Morales esqueceu-se logo da escuridão
e tratou de aproveitar o que a garota oferecia-lhe. Abriu-lhe
a blusa com um puxão que arrebentou botões. Livrou-se do
sutiã dela e alisou seios firmes, com bicos pontudos e
salientes.
— Que linda você é! — murmurou ele, com a voz
rouca.
Naquele momento, uma potente lanterna foi acesa e a
luz iluminou todo o interior do carro.
— Maldição, homem! — gritou ele. — Desligue logo
essa porcaria! — ordenou ele, abrindo a janela do carro
como um possesso.
Antes que compreendesse o que estava acontecendo,
alguém encostou uma espingarda de cano serrado em sua
161
testa e apertou o gatilho. Sangue, cabelos e miolos de
Morales Bill foram arremessados contra os seios frescos e
intocados de Hellen "Mody" Garcya.
***
No prédio condenado e abandonado, na parte velha do
Harlem, a festa chegara ao fim. Homens e mulheres
espalhavam-se pelo apartamento, muitos ainda nus, alguns
delirando ainda pelo consumo exagerado de drogas e álcool.
Na suíte, sobre a cama, Morgan "Tripé" estava estendido
com três garotas amontoadas sobre seu corpo. Entre suas
pernas descansava o impressionante membro que lhe
garantia o apelido. Estavam todos exaustos. A festa fora
completa e Morgan deu-a como forma de manter seus
homens longe dos problemas que fatalmente haveria
naquela noite, caso ficassem nas ruas. Estava apoiando
Angus Colúmbia em seu plano de dedicar a energia das
gangues para fazer dinheiro. Naquela noite não havia
poupado gastos, fazendo ver a seus comandados como
poderia ser a vida se todos se empenhassem em manter a
trégua e em trabalhar corretamente.
Todos haviam sido convencidos, seduzidos pelas
promessas de riqueza e boa-vida. Os primeiros raios de sol
entravam pelas janelas, iluminando os corpos exaustos. A
porta dos fundos abriu-se silenciosamente. A faxineira
entrou, com os cabelos caindo sobre o rosto e uma aparência
geral masculinizada. Atravessou a cozinha e a sala e foi
direto à suíte. Uma das garotas acordou. A mulher fez-lhe
um sinal para que fizesse silêncio e saísse do quarto. A
162
garota obedeceu. A faxineira acordou as outras e repetiulhes o gesto, sempre pedindo silêncio e dando a entender
que Morgan não queria ser acordado. As jovens deixaram o
aposento silenciosamente. A faxineira fechou a porta e
olhou o impressionante negro estendido na cama.
Aproximou-se dele. Morgan resmungou alguma coisa e
abriu os olhos. Virou-se para o lado e apanhou uma garrafa
de uísque, tomando um gole. Só então percebeu a presença
da faxineira.
— Quem diabo é você? — indagou ele.
— Vim fazer a limpeza — respondeu a outra pessoa,
com uma voz masculina grave e ameaçadora.
Tomado de surpresa, Morgan quis reagir, mas uma
pistola automática com silenciador foi enfiada em sua boca,
provocando-lhe ânsia de vômito. Uma foto foi posta diante
de seus olhos. Era de uma linda e jovem garota loura, de
olhos incrivelmente azuis e um rosto delicado de anjo.
— A garota tinha apenas dezesseis anos e você a
estuprou de todas as formas possíveis, depois a entregou a
seus capangas. Ela está louca hoje, internada num sanatório
de onde jamais sairá.
— Espere, homem! Vamos negociar — ia propondo
Morgan, mas sua boca encheu-se de fumaça quando o
gatilho foi apertado.
Miolos e sangue ficaram grudados no travesseiro,
enquanto ele se imobilizava, com os olhos arregalados. Seu
matador limpou o cano da arma no lençol da cama, depois a
guardou sob o vestido, tirando dali uma navalha. Sem
163
demora alguma, cortou o descomunal membro de Morgan
"Tripé" e enfiou-o dentro da boca aberta do gângster. Saiu
sem ser visto, da mesma maneira como havia entrado.
***
A notícia de que havia sido decretada uma trégua entre
as gangues com a intermediação dos italianos espalhou-se
rapidamente pela cidade, sensibilizando as gangues dos
outros bairros. Todos acabaram procurando os italianos e
negociando a mesma coisa. Assim, a trégua estendeu-se por
toda a cidade e os Distritos Policiais tiveram dias atípicos,
atendendo brigas domésticas e roubos avulsos. Nada
envolvendo gangues acontecia e isso incomodava os
policiais.
Andy Luciano, no entanto, jamais se sentira tão
importante. Todo o tempo seu pai tivera razão. As gangues
de toda a cidade estavam comendo em suas mãos. O
controle da droga devolvia à Máfia uma importante fatia dos
lucros no setor, ao mesmo tempo em que resgatava sua
importância histórica no contexto da marginalidade de Nova
Iorque. Era justamente esse ponto que o tornava o homem
mais poderoso da cidade naquele momento. Seu pai o havia
preparado corretamente. Andy era ambicioso, mas sabia
avaliar suas posições. Nova Iorque era sua. As gangues
estavam sob seu controle. Com elas, poderia estender seus
domínios para Nova Jérsei e para os territórios do Estado
ainda não dominados por nenhuma das famílias.
164
Estava discutindo isso com seus conselheiros, uma
semana após a reunião que decretara a trégua que, a partir
daquele sábado, não mais poderia ser violada.
— Isso não muda meus planos. Só estou reavaliando
minha estratégia. As gangues serão nossas aliadas. Com elas
estenderemos nosso poder sobre os territórios vazios,
fornecendo a droga para as gangues do interior do Estado.
Vamos dominar todos os territórios vazios existentes ao
nosso redor e negociar aqueles que já estiverem ocupados.
— E o que seu pai diz de tudo isso? — questionou um
deles.
— Em três semanas ele se retira e eu assumo. Acha que
preciso prestar contas de meus atos a ele? Não terei carta
banca, Lino. Eu serei Dom Luciano, percebeu?
— Poderíamos fazer algo para marcar esse dia, não? Se
você quer o apoio das quadrilhas, por que não promove uma
grande festa, convidando os líderes e seus principais
assessores. Comemoraremos o aniversário de seu pai e sua
posse como novo Padrinho.
— Gostei da ideia, Lino. Providencie. Não poupe
gastos. Será um importante investimento para nós. Agora
vamos tratar da segunda fase do nosso plano. Falei com
Perez e com Angus. Os membros das gangues estão
inquietos. Aproveitamos a semana de trégua para espalhar
por toda parte que Joe Bradford é o responsável pela morte
de Morales Bill e de Morgan "Tripé". Algumas ações
começam a ser preparadas contra o policial. Vamos ver
como isso funciona na prática. Se der certo, usaremos tiras
165
de todos os Distritos para canalizar a agressividade dos
delinquentes, mantendo-os sob controle.
— Quando começam a usar Bradford como alvo?
— A partir de hoje. Só espero que não o matem na
primeira tentativa — falou Andy, rindo a valer.
Os outros riram juntos. A alegria do futuro chefão era a
alegria de todos.
***
— Telefone para você, Joe — avisou Matt, passandolhe o fone.
Aquela estava sendo uma noite de tédio no Sexto
Distrito. Nada acontecia. Os bairros estavam em paz. Em
algumas ruas, os moradores haviam posto cadeiras nas
calçadas para conversar e apreciar a noite. No Sexto
Distrito, Joe sentia em suas cicatrizes alguma coisa pairando
no ar e não gostava nada daquilo.
Atendeu, identificando-se:
— Joe — disse uma voz feminina aveludada e doce. —
Se for passar pela Mayflower esta noite, olhe no telhado do
Mac's, na esquina da Daisy Street. Alguém poderá estar a
sua espera lá.
— Quem é você?
Um riso cristalino e cinematográfico ouviu-se do outro
lado.
— Somos os olhos da cidade, Joe, para sua proteção —
afirmou a voz, desligando.
— Que diabos! — murmurou ele.
— O que houve, Joe? — indagou Matt.
166
— Acho que já demoramos demais para iniciar nossa
ronda, Matt. Vamos começar pela Mayflower hoje — disse
ele, apanhando o fuzil AR-15 que havia acabado de
lubrificar e montar.
Matt entendeu logo que o telefonema tinha alguma
coisa a ver com tudo aquilo. Apanhou sua escopeta e
seguiu-o. Ao invés de rumar para o estacionamento, Joe
chamou o elevador.
— Aonde vamos? — quis saber o parceiro.
— Ao arsenal.
— Munição?
— Não, uma luneta com visor noturno.
— Vai fazer alguma emboscada?
— Não, vou livrar-me de uma.
— Tem algo a ver com aquele telefonema?
— Sim. Alguém me ligou informando-me que alguém
nos espera no alto do Mac's, na Mayflower.
— Por que nós?
— Porque desconfio, meu parceiro, que há muita gente
que não gosta de nós nesta cidade, só isso.
— É! Acho que você tem razão — concordou Matt,
seguindo-o.
167
CAPÍTULO 5
Joe e Matt já estavam no carro, preparando-se para
sair, quando o capitão aproximou-se, acompanhado de um
desconhecido, fazendo sinais para que Joe esperasse por
eles.
— Que diabos ele vai inventar agora para me
atormentar? — resmungou Joe, aborrecido.
— Não fique nervoso, parceiro! Mantenha a calma! —
recomendou Matt, temendo que Joe explodisse com o
capitão a qualquer momento.
— Joe e Matt, este é Buck Mortimer, jornalista do
Sunday, que vai acompanhá-los nas rondas desta noite —
informou o capitão, debruçado na janela do motorista.
Joe e Matt entreolharam-se sem nada entender. Joe
encarou seu superior em seguida.
— Capitão, ele é um civil — observou surpreso.
— Buck Mortimer já cobriu algumas guerras pelo
mundo afora e tem experiência de combate. Irá com vocês
como parte de um programa desenvolvido diretamente pelo
prefeito e pelo comissário de Polícia, visando estreitar as
relações entre nós e a imprensa. Buck foi altamente
recomendado e, apesar de saber dos riscos que corre, quero
que coloquem a vida dele acima de qualquer outra coisa,
entenderam?
Joe ia dizer alguma coisa, mas Matt pôs a mão no
braço dele e apertou, dando a entender que era para ele se
168
calar. O inspetor engoliu seco, enquanto Buck Mortimer
olhava-os com expectativa, esperando uma decisão.
O inspetor virou-se, então, estendendo o braço e
destravando a porta traseira do carro.
— Entre, Buck! Seja bem-vindo ao inferno! — falou
Joe, esperando que ele entrasse.
O jornalista mal havia se acomodado e Joe acelerou o
carro, saindo em velocidade, demonstrando todo o seu
descontentamento. Se a política do capitão com tudo aquilo
era forçar Joe a pedir a aposentadoria, estava conseguindo.
Antes que acabasse fazendo uma besteira com a cara do
capitão, precisava pedir seu afastamento.
Um clima pesado instalou-se no interior do carro. Buck
Mortimer era um jornalista experiente, sabia que correria
riscos estando naquele carro, principalmente num sábado à
noite, mas reconhecia que não havia melhor ponto de
observação do que aquele. Alguma coisa estava
acontecendo na cidade. Uma coisa estranha que estava
tirando as gangues das ruas e transformando-as em local
seguro e tranquilo para os moradores. Nova Iorque, no
entanto, jamais fora daquele jeito. Podia sentir no ar que
alguma coisa estava para acontecer. Era a mesma sensação
que precedia as batalhas, nas guerras que havia coberto pelo
mundo todo.
Joe não ligou para a presença dele no carro. Pelo
contrário, deixou bem claro que ela não apenas o aborrecia,
mas incomodava também. Matt, por outro lado, concluiu
169
que Buck nada tinha a ver com tudo aquilo e que poderiam
colaborar um com o outro em seus respectivos trabalhos.
— Bem, Buck, não sei se nas coberturas que fez
chegou a circular de carro na zona de batalha.
— Sempre de tanque ou blindado, jamais de carro.
— Então vamos começar do princípio. Meu nome é
Matt e o nosso motorista, que, diga-se de passagem, está de
péssimo humor, é o Inspetor Joe Bradford, uma lenda viva
na Polícia de Nova Iorque.
— Já ouvi falar dele — afirmou Buck.
— Ótimo! Deve saber, então, que Joe está em vias de
se aposentar e isso está dando nos nervos dele. Por isso não
o estranhe. Continuando... Estamos numa viatura policial
sem identificação, utilizada em patrulhas. Em caso de
tiroteio, o melhor local para você ficar é deitado no fundo
do carro. As laterais e o teto são reforçados com blindagem
que seguram a maioria dos projéteis.
— Exceto do AR-15 — acrescentou Joe.
— Obrigado por lembrar-me, Joe. Como ele disse,
Buck, exceto do AR-15.
— Nesse caso, como faço para me proteger?
— Se alguém estiver atirando em você com um AR15? — indagou Joe.
— Sim.
— Reze, reze muito para que o atirador tenha má
pontaria.
— Joe está brincando — corrigiu Matt. — Nesses
casos, saia do carro e fique do lado oposto ao do atirador.
170
Terá duas blindagens para protegê-lo. Elas não deterão as
balas, mas amenizarão os estragos, pode ter certeza —
esclareceu Matt.
— E se alguém atirar um coquetel molotov no carro,
trate de sair e correr para longe também — acrescentou Joe.
— Vocês correm esses riscos todos os dias? —
surpreendeu-se o jornalista.
— Principalmente aos sábados — informou Matt.
— E o que acham que está havendo na cidade? O que
significa essa trégua dada pelas gangues?
— Significa muita encrenca a caminho, pode ter
certeza — adiantou Matt, percebendo que Joe dirigia o carro
por uma rua paralela à Rua Mayflower.
Depois, à altura da esquina com a Daisy Strett ele
parou. Desceu do carro, levando seu AR-15.
— O que está havendo? — indagou Buck.
— Rotina, apenas rotina — respondeu Matt,
apanhando a escopeta. — Fique no carro. Há perigo do lado
de fora.
Buck olhava para os lados, sem entender onde estava o
perigo. Joe havia instalado o visor noturno e a luneta em seu
fuzil e agora examinava o telhado do prédio onde ficava a
Loja Mac's.
— Algum sinal? — indagou Matt.
— Se está lá, está imóvel, ou mais para o canto. Vamos
ter de fazê-lo sair, parceiro, e isso pode ser perigoso.
— Como quer fazer?
171
— Vou atravessar a rua a pé e entrar naquele beco em
frente ao Mac's. Você pega o carro e retorna até o começo
da Mayflower. Avança devagar. Quando o bastardo lá em
cima puser o nariz para fora, eu o acerto.
— Se houver um lá, não?
— Não acho que foi um trote, Matt. Não mesmo.
— Ok, parceiro! Vou voltar a fazer o que me pede. E o
jornalista?
— Deixe-o quieto. Só o mande ficar de cabeça
abaixada. Vamos fazer-lhe uma surpresa.
— Deixe comigo.
Enquanto Matt retornava ao carro e fazia o retorno para
ir tomar a Mayflower em seu começo, Joe enfiou o fuzil sob
o paletó e caminhou bem junto à parede, atravessou a rua e
entrou no beco. Dali, no escuro, podia observar todo o
telhado da loja diante dele. Não via sinal de alguém lá. Pelo
visor de infravermelho podia observar tudo sem problema.
Começou a pensar que tudo poderia não passar de um trote
apenas, mas, subitamente, viu o que parecia ser fumaça de
um cigarro ou um baseado, subindo atrás da mureta, no alto
do prédio de três andares. Aquela fumaça indicava a
presença de alguém lá. Destravou o fuzil, engatilhou-o e
esperou, atento a qualquer movimento. Matt já devia estar
no começo da rua. A qualquer momento alguém teria de
surgir lá em cima.
— Bastardo filho da mãe! — murmurou ele, quando
uma cabeça surgiu atrás da mureta.
172
Um homem, usando um gorro de esquiador apontou no
alto do prédio, olhando a rua. Depois se abaixou para, em
seguida, tomar posição de tiro com um fuzil especial de
longo alcance e possivelmente com projéteis de
hipervelocidade. Matt estava em perigo, por isso tratou de
agir rápido. Mirou cuidadosamente e disparou. Viu o gorro
voar para cima, levando junto muito do conteúdo da cabeça
do atirador. O som do disparo ficou vibrando na rua,
ecoando estranhamente, alertando as pessoas que
começavam a acreditar que estavam livres do inferno
costumeiro. Matt ligou a sirene do carro e avançou a toda,
ao ouvir o tiro.
— Você o pegou? — indagou Matt, saltado do carro
com sua escopeta engatilhada e pronta para disparar.
Joe havia corrido esconder-se atrás do carro,
examinando o telhado com o visor da arma.
— Sim, arranquei a cabeça do bastardo.
— Algum sinal de mais alguém?
— Não, havia apenas um. Vou subir lá para verificar.
Chame a técnica e o rabecão.
Joe atravessou a rua e entrou no beco atrás do prédio,
alcançando a escada de incêndio. Ouviu passos atrás dele e
voltou-se, pronto para disparar.
— Sou eu — gritou Buck.
— Deus do céu, homem! Não faça mais isso.
— Vou subir com você.
— Não, não pode. É assunto policial, área não liberada
à imprensa até que a Polícia Técnica examine.
173
— Seu comissário disse ao meu editor que vocês
dariam todo o apoio necessário ao meu trabalho.
Joe pensou por instantes. Sabia o que aquilo
significava. Se não fizesse o que ele pedia, o jornalista iria
se queixar com o editor, que se queixaria com o comissário,
que se queixaria com o capitão, que chamaria Joe e lhe daria
o maior sermão do mundo. Não teria paciência para isso.
— Está bem, mas fique atrás de mim — ordenou Joe,
enroscando a correia do fuzil no ombro e começando a subir
pela escada.
Tudo estava em silêncio ao redor. Todo o bairro
parecia haver parado após aquele disparo, como se a trégua
fosse coisa certa e já perpetuada. Joe não estava gostando
nada disso.
— Caramba! Olhe a cabeça dele lá no outro lado —
apontou o jornalista, assim que chegaram ao telhado.
Joe examinou o local. Havia um maço de cigarros e
fósforos no piso, junto à mureta, bem como um fuzil
especial para atiradores de emboscada, com mira telescópica
e visor noturno. Quem estivesse na mira dele no momento
do disparo dificilmente escaparia. A caixa de projéteis junto
ao rifle mostrava o tipo de bala empregada, capaz de
percorrer mil metros em menos de um segundo.
— Rapaz! O sujeito estava mesmo preparado —
observou Buck, inclinando-se para examinar o rifle.
— Conhece esse tipo de arma? — indagou Joe.
— Sim, é infalível.
174
De lá de cima Joe ficou olhando as viaturas que
chegavam e tentando imaginar por que alguém se daria ao
trabalho de montar uma emboscada como aquelas. E quem
fora a misteriosa mulher que ligara alertando-o? Tudo isso
apenas confirmava para ele que alguma coisa estranha,
muito estranha, acontecia na cidade.
***
Allan White entrou e foi direto ao seu lugar, no fim do
balcão. Assim que ele sentou-se, Rusty já lhe servia sua
bebida preferida.
— Alguma coisa nova? — indagou Allan.
— Não, tudo tranquilo. Fez um ótimo trabalho com o
Morales — elogiou Rusty.
— E você lidou direitinho com o Morgan.
Allan sorriu, levantando seu copo, num brinde. Rusty
tentou sorrir também, mas o espasmo de dor foi maior e ele
fez uma careta, esforçando-se para manter-se em pé. Tirou
um envelope do bolso e mastigou rapidamente um dos
comprimidos.
— Eu sinto muito, Rusty — murmurou Allan,
percebendo a dor e o sofrimento do amigo.
Rusty estava morrendo um pouco a cada dia. O câncer
espalhara-se por todo o seu corpo. A amputação de um
braço, que algum tempo antes teria salvado sua vida, fora
recusada por ele. Queria morrer inteiro. Agora só podia
combater a dor com doses maciças de analgésico, mas isso
estava apressando também a sua morte.
175
— Quanto tempo ainda, Rusty? — indagou Allan,
fazendo um esforço enorme para conseguir articular a
pergunta.
— Um mês, dois no máximo.
— E o bar?
— Joe está se decidindo ainda. Mas terá de aposentarse primeiro. Do modo como o capitão o pressiona, acho que
ele não resistirá muito.
— Acha que poderemos contar com ele?
— Estou certo que sim.
— Conheço-o há muito tempo. Seria ótimo poder
contar com ele. É um homem decidido e de coragem, com
um senso de justiça muito grande.
— Eu me encarregarei de prepará-lo para o assunto,
Allan.
— Claro que sim, Rusty. E falando nele, olhe quem
está chegando.
Joe estava entrando, acompanhado de Matt e de Buck.
Enquanto os dois passavam direto, Joe parou diante do
quadro de avisos. Um nome e um telefonema estavam
anotados num pedaço de papel que uma mulher pregava ao
lado do recado do Carrasco.
— Por que faz isso? — indagou ele, curioso.
— Porque espero justiça.
— Já esteve na Polícia?
— Meia dúzia de vezes.
— O que aconteceu com você?
176
— Minha filha está noiva e vai se casar daqui a três
semanas. Ela é virgem. O chefe da gangue da nossa rua
soube disso e ameaçou-a. Se ela não dormir com ele antes
do casamento, ele matará minha filha e seu noivo.
— E o que lhe disseram na Polícia?
— Que nada poderiam fazer, enquanto não houvesse
um crime — soluçou a mulher, com os olhos cheios de
lágrimas.
— E o que acha que esse Carrasco vai poder fazer por
vocês?
— Justiça — afirmou ela, virando-se e saindo.
— Como pode ter certeza disso? — ainda indagou ele,
mas ela já havia saído, deixando-o sem resposta.
Intrigado, foi até a mesa, onde estavam Buck e Matt.
— O que fazia lá? — indagou Matt.
— Buck, você que é jornalista e deve conhecer o
submundo, o que sabe sobre uma lenda urbana chamada de
Carrasco?
— Tanto quanto você, que é policial. Se existe ou não,
não sei. É algo que se mantém ao longo do tempo. Por que
pergunta isso?
— Curiosidade apenas.
Joe já se sentia mais à vontade com Buck.
Conversaram animadamente. Buck queria saber de tudo
sobre a dura vida de um policial num distrito tão perigoso
como o Sexto.
— Joe, telefone! — avisou-o Rusty.
177
Estranhando que alguém ligasse para ele, Joe foi até o
balcão atender.
— Alô, Joe! Fico contente que tenha acreditado em
mim — disse aquela voz de mulher inesquecível, fazendo-o
arrepiar-se dos pés à cabeça.
— Quem é você?
— Não seja rude, Joe. Devia agradecer-me primeiro
por ter salvado sua vida. E para provar que não fiquei
zangada com a sua grosseria, vou dar-lhe uma nova dica.
— Quem é você? Como soube da emboscada?
— Se você for até a janela e olhar disfarçadamente
para a direita, vai ver um carro verde, grande, parado, com
os faróis apagados, mas o motor funcionando. Adivinhe
quem eles estão esperando.
— Quem é você? Como sabe dessas coisas? — insistiu
ele, intrigado com aquela voz e aquela inesperada ajuda.
— Sou os olhos da cidade, Joe, atentos para protegê-lo
do perigo — disse a voz.
— Isso não quer dizer nada. Por que está fazendo isso?
— perguntou, mas ouviu apenas o sinal de desligado soando
em seu ouvido. — Maldita seja! — praguejou ele, batendo o
telefone.
— Ei, Joe, calma, ou terá de substituir quando comprar
o bar — comentou Rusty.
O inspetor retornou à mesa, onde Matt, pela expressão
dele, percebeu que alguma coisa estava errada.
— O que é, Joe?
178
— Alguém lá fora a nossa espera — informou. — E o
diabo é que estou apenas com o meu trinta e oito.
— Rusty deve ter alguma arma de verdade com ele —
lembrou Matt.
Joe foi até o balcão.
— Rusty, você tem alguma arma pesada por aí?
— Além da quarenta e cinco?
— Sim.
— Tenho um rifle Vanguard, de nove milímetros.
— Tem visor noturno?
— Não, mas tenho um holofote lá fora que ilumina
qualquer ponto da rua. Por quê?
— Tem alguém lá fora querendo brincar de tiro prático
com a minha silhueta, assim que eu aparecer na porta.
Rusty olhou na direção de Allan, que percebeu que
havia algo errado e tratou de se aproximar.
— O que está havendo? — quis saber.
— Alguém com uma surpresa para o Joe lá fora.
— Verdade? Por que não devolvemos a surpresa? —
propôs ele, com um sorriso matreiro nos lábios.
Matt e Buck haviam se aproximado. Outros policiais
também. Joe Explicou-lhes o que estava havendo. Todos
estavam dispostos a ajudar.
— Tem certeza que é mesmo uma emboscada, Joe? —
indagou Allan.
— Sim, tenho — afirmou, se mencionar como chegara
àquela conclusão.
179
Sabia que poderia confiar naquela voz. Já provara uma
vez que não mentia.
180
CAPÍTULO 6
Andy Luciano ria alucinadamente, enquanto Valery,
sua namorada, passeava nua pelo quarto, demonstrando
como havia falado com Joe Bradford. Havia determinado
aos líderes das gangues que toda e qualquer iniciativa de
ataque a Joe deveria ser informada a ele, para que pudesse
avisá-lo. Tudo estava funcionando às mil maravilhas.
Naquela noite, ele já se livrara de uma emboscada na
Mayflower e, dentro em pouco, estaria livre de outra, na
porta do Bar do Rusty, a menos de uma quadra do Sexto
Distrito. Desejou nunca estar na pele de alguém como Joe
Bradford, cuja vida iria se transformar num inferno nos
próximos dias, sempre com alguém o caçando, sempre na
mira de algum louco.
— Como me saí, querido? — indagou a garota,
atirando-se na cama, sobre ele.
Andy abraçou-a e beijou-a, acariciando seu corpo
jovem e tentador.
— Uma atriz. Uma verdadeira atriz — elogiou ele,
contendo o riso.
— Vamos sair e fazer alguma coisa? — pediu ela.
— Claro que sim. Hoje estou muito feliz. Vá tomar um
banho e vestir-se. Eu a alcanço num minuto. Só vou discutir
um assunto com meus conselheiros — informou ele,
saltando da cama.
181
Ela caminhou na direção do banheiro da suíte. Antes de
entrar, voltou-se para ele, que vestia um roupão sobre o
corpo nu.
— Se eu demorar um pouquinho, você vem esfregar
minhas costas? — perguntou ela, com voz melosa.
— Claro que sim, querida, não apenas suas costas,
como seu corpo todinho — prometeu ele.
— Vou esperar, viu?
Ele jogou um beijo para ela, depois abriu a porta da
suíte e caminhou pelo corredor. Na sala do amplo e
moderno apartamento, num dos prédios mais valorizados da
Quinta Avenida, seus conselheiros conversavam.
— Vamos sair, Andy?
— Sim, gostaria de comer alguma coisa e depois
dançar um pouco. Escolham bons lugares, depois liguem
pedindo que nos esperem — ordenou ele. — Além disso,
estive pensando em algo...
— O que tem em mente, Andy? — indagou Lino.
— Que tal oferecermos um prêmio pela cabeça de Joe
Bradford. Vai dar motivação aos rapazes das gangues e
infernizar a vida daquele tira.
— Se fizer isso, cedo ou tarde alguém vai acertá-lo.
— Não importa. Há muitos tiras no Sexto Distrito.
Poderemos usar outro depois. Só para ver as coisas
esquentarem um pouco.
— Se quer assim, eu cuido disso — prometeu Lino.
— Não seja miserável com o prêmio, Lino. Essas
gangues estão nos dando um lucro fantástico.
182
— Sem dúvida, Andy. Subimos o preço em vinte por
cento e, mesmo assim, as compras continuam aumentando.
Todo mundo tem droga na porta de sua casa. Até por
telefone estão fazendo pedidos — informou Nuno Ascante,
o conselheiro e contador. — Até compras com o cartão de
crédito foram feitas. Estão facilitando de todas as formas e o
Departamento de Narcóticos anda tonto, sem saber o que
fazer.
— Conseguimos montar uma grande operação,
rapazes. Quero que estudem a melhor forma de aplicarmos
isso. Nuno, analise aquela proposta do Banco do Caribe,
acho excelente a ideia que deram. Agora, rapazes, vamos
aproveitar a noite. É madrugada de sábado, é hora dos lobos
uivarem.
***
Quatro rapazes fumavam nervosamente no interior do
carro. Todos portavam armas de grosso calibre e mantinham
seus olhos fixos na entrada do Bar do Rusty. Assim que Joe
Bradford pusesse o nariz para fora, receberia mais balas do
que seu corpo poderia comportar.
— Caramba! Que demora! — protestou um deles.
— E se entrássemos lá e acabássemos com todos eles?
— Seria ótimo! Quanto menos porcos no distrito,
melhor para nós. Se não podemos atirar nos chicanos,
vamos usar os tiras como alvo.
— Calma, pessoal! Joe Bradford está sendo caçado
porque deve algo a nós. Matou Morgan "Tripé" e pagará por
isso — falou o motorista do carro, o mais calmo dos quatro.
183
— Vou lá dar uma olhada — insistiu um deles.
— Deixe-o ir, Job. Com esse cabelo curto e essa cara
de honesto ele parece até um tira da academia.
— Sim. Dou uma olhada e já digo o que poderemos
fazer. E se esse bastardo resolveu dormir na mesa do bar?
Ficaremos aqui até o dia amanhecer.
— Ok, Ned, vá lá, então — decidiu Job. — Só não vá
inventar nenhuma gracinha, entendeu?
— Deixe comigo, Job — falou o rapaz, tirando o
casaco comprido que usava e enfiando a camisa para dentro
da calça, antes de descer.
Quando caminhou para o bar, tinha a aparência
inofensiva de um calouro da Academia de Polícia, igual a
muitos outros que passavam pelo bar todos os dias. Assim
que entrou, fechando a porta atrás de si, ouviu meia dúzia de
estalidos e os canos de diversas armas serem encostados em
sua cabeça e nuca.
— Nenhum movimento, filho de uma cadela, ou
arrebento sua cabeça e colo-a na parede — rugiu Joe. —
Quem é você?
— Sou Ned Jenkins, calouro da Academia de Polícia
— respondeu o rapaz assustado e pego de surpresa.
— Jedah Hawk, conhece este bastardo aqui? —
indagou Joe, chamando pelo chefe dos instrutores da
Academia.
O Sargento aproximou-se e encarou o delinquente.
— Não é, nunca foi e jamais será um calouro da nossa
gloriosa Academia — afirmou ele.
184
Matt já o havia revistado, tomando-lhe uma pistola
quarenta e cinco.
— Nada mau para um calouro — comentou.
Inesperadamente, porém, o rapaz debateu-se e correu
para a porta. Os policiais foram no seu encalço. Ele gritou
para seus amigos no carro. Um deles abriu a janela e pôs
para fora o cano de uma escopeta. Antes que fizesse alguma
coisa, um dos policiais surgiu ao lado do carro, segurando o
cano da arma e enfiando um revólver no nariz do pistoleiro.
— Armadilha! — gritou ele, apertando o botão do
vidro elétrico, que começou a subir.
O motorista do carro engatou a marcha e acelerou. O
policial disparou no homem que segurava a escopeta e
saltou para o lado, no instante em que o a rapaz ao lado do
motorista virava-se e disparava sua arma, estilhaçando o
vidro. Outros policiais estavam ocultos atrás do carro.
Haviam saído pelos fundos do bar e contornado o veículo
verde, escondendo-se atrás dele sem que os seus ocupantes
percebessem.
Agora, ao verem o carro partindo, concentraram o fogo
de suas armas nos pneus. Joe e Matt saíram do bar e
atiraram também, seguidos pelos outros policiais. O rapaz
que corria ao encontro do carro foi atropelado pelos seus
próprios amigos. Joe apontou o rifle cuidadosamente na
direção do motorista e apertou o gatilho. O parabrisa
estourou em cacos, enquanto o corpo do motorista era
prensado contra o assento, com um rombo enorme no peito.
A bala atravessou-lhe o corpo e foi atingir o passageiro no
185
banco traseiro. Desgovernado, o carro derrapou e parou. O
motorista caiu sobre a buzina, disparando-a. O homem a seu
lado saltou com um AR-15 pronto para abrir fogo.
— Protejam-se! — gritou alguém.
Joe ignorou o perigo. Seu oponente estava aturdido e
nervoso. De qualquer modo, não poderia esperar até que ele
desse uma rajada, por isso mirou cuidadosamente, enquanto
o outro engatilhava o fuzil e levava-o ao ombro, preparando
a mira. Joe apertou o gatilho, mirando no meio da cabeça do
marginal, que foi jogado para trás e caiu imóvel no asfalto,
com a cara deformada e irreconhecível. Um silêncio mortal
pairou na rua. Policiais de plantão no Sexto Distrito saíram à
rua, com armas pesadas.
— O que houve aí? — gritaram.
— Alguém quis entregar uma encomenda e deu-se mal
— respondeu Rusty, olhando Joe com admiração.
Já ouvira muitas histórias sobre aquele homem, mas
jamais o vira em ação. Joe era frio o bastante para entrar
para o seleto grupo a que Rusty e Allan pertenciam. Um
grupo tão seleto e tão secreto que nem mesmo seus amigos
mais íntimos tinha conhecimento de suas atividades. Um
grupo que era uma lenda na cidade e fazia tudo para manter
a lenda sempre viva e respeitada.
***
Joe acordou sentindo o corpo dolorido e a cabeça
doendo. Na madrugada, seus amigos haviam-no
acompanhado até sua casa, preocupados com novos
atentados. Começava a ficar claro que alguém queria sua
186
cabeça. Virou-se e ficou olhando para o telefone, que
continuava tocando. Atendeu, finalmente.
— Fico feliz que esteja vivo, Joe — sussurrou aquela
vez de veludo ao telefone.
— Como ficou sabendo da emboscada? — indagou ele,
acordando de todo e esquecendo-se das dores no corpo.
— Não vou lhe dizer, Joe. Não seja teimoso. Eu, os
olhos da cidade, só quero protegê-lo, seja mais agradecido.
— Quem é você? Como, diabos, soube de tudo?
— Ouça bem, Joe, porque não vou repetir. Neste
momento, há um bando de motociclistas indo na direção de
sua casa. Levam coquetéis molotov, muitas armas e
munição. Se não quiser ver sua casa incendiada, trate de
fazer alguma coisa urgente. Deveria ter atendido antes o
telefone — frisou a voz, desligando em seguida.
— Diabos! — praguejou ele, pensando no que fazer.
Estavam querendo mesmo sua cabeça e não restava a
menor dúvida quanto a isso. Pensou em como proteger sua
casa e também a de seus vizinhos. Aquele era um bairro
simples e quieto. Não merecia ser infernizado por toda
aquela violência. A melhor coisa a fazer era fazer com que
os motociclistas o seguissem para outro lugar. A melhor
direção seria a do Lago Meadow, com sua área de recreação
em reformas e, consequentemente, vazia naquela hora e
naquele dia. Foi até um armário e apanhou um Winchester e
a munição, além de uma automática Colt quarenta e cinco.
Era tudo que tinha para uma batalha como aquelas.
187
Apanhou o telefone e discou para a casa de Matt. Esperava
poder contar com a ajuda dele, mas ele não atendia.
— Demônios! — exclamou, desistindo.
Não podia esperar muito tempo. Não sabia onde
estavam os motociclistas nem podia esperar por eles dentro
da casa, por isso levou suas armas e a munição para o carro,
ligou o motor e ficou do lado e fora, olhando os dois lados
da rua. Pôde ouvir ao longe o ruído das motos aproximandose. Esperou até que elas surgissem, antes de entrar no carro.
Arriscou-se até ter certeza de que o reconheceriam e sairiam
em sua perseguição. Quando isso aconteceu, acelerou seu
carro e arrancou, cantado os pneus. Os motociclistas viramno e aceleraram suas motos, saindo em sua perseguição.
Felizmente era domingo e, naquele horário, as ruas do bairro
estavam tranquilas, sem movimento algum. As motos eram
possantes e podiam manobrar com mais facilidade nas
esquinas estreitas. Joe percebeu que elas se aproximavam
perigosamente.
Estranhos ruídos na lataria denunciavam que eles
disparavam contra o carro, usando armas com silenciadores.
Joe alcançou a Via Expressa Island e, com isso, pode
aumentar a velocidade. As motos fizeram o mesmo. De
repente, um carro-patrulha surgiu com a sirene ligada,
perseguindo o carro de Joe, sem perceber que o perigo vinha
em seu encalço.
— Idiotas! Olhem para trás! — gritou Joe, pondo o
braço para fora e fazendo sinais para o carro-patrulha.
188
Seus ocupantes não entenderam, continuando na
perseguição. Um dos motoqueiros avançou e emparelhou
sua moto com o carro policial. O carona estava com uma
garrafa de gasolina na mão. Disparou sua arma contra o
estopim, acendendo-o. Os policiais nada entenderam. A
garrafa foi jogada no interior do carro, que se iluminou todo,
enquanto labaredas saíam pela janela. Pelo retrovisor,
horrorizado, Joe viu o carro-patrulha derrapar, depois
capotar em alta velocidade, transformado numa bola de
fogo.
— Bastardos! Filhos da mãe! — gritou ele, tomando a
passagem que o levaria ao estacionamento do lago, vazio
àquela hora.
Havia barreiras pelo caminho e ele foi arrebentando
todas elas, procurando por um local seguro onde pudesse
defender-se. Sua chance agora era que outras viaturas
policiais estivessem na perseguição também e chegassem
em seu auxílio, antes que os motociclistas o pegassem.
Avançou em alta velocidade, percebendo algumas máquinas
paradas e agrupadas próximas do lago. Entrou com seu
carro por entre elas, parando-o e saltando, levando as armas
e a munição. Subiu num trator, preparou a Winchester e
esperou. Naquele momento de extrema tensão, algo
inesperado veio-lhe à mente. Era uma cena de um velho
filme de faroeste, quando diversos índios perseguiam o
herói e a heroína, que se refugiaram atrás de algumas
rochas. Os índios avançavam em bloco, gritando e
brandindo suas lanças e arcos. O herói, então, numa ação
189
inesperada, mirou no cavalo do homem que vinha à frente
do bloco. Quando o atingiu, o cavalo rolou na poeira e os
índios que vinham atrás caíram juntos, quando suas
montarias tropeçaram no inesperado obstáculo. Talvez desse
certo com ele também. Assim pensou, assim fez. Quando as
motos surgiram, entrando no estacionamento do lago, ele
mirou no primeiro deles, à frente do bloco. Seu Winchester
tinha uma mira especial, infalível. Quando apertou o gatilho,
o piloto da moto abriu os braços e caiu para trás. Sua moto
derrapou e ficou saltando espetacularmente. A cada salto,
outras se juntavam a ela, numa confusão de poeira, ronco e
gritos de dor. Três ou quatro deles conseguiram livrar-se da
confusão, mas estavam desorientados. Joe foi abatendo um a
um como numa sequência de tiro ao pato em um parque de
diversões.
Restaram os homens caídos, arrastando-se nos
pedregulhos, alguns tentando erguer suas pesadas motos e
dar-lhes partida. O som de sirenes desesperou-os. Tentaram
correr na direção da estrada. Joe atirou junto aos pés deles.
— Não fujam! — gritou ele. — Quem tentar sair levará
chumbo.
Havia muita gasolina espalhada no local. Garrafas
quebradas haviam ensopado os homens que as levavam
dentro de suas jaquetas. Apesar do aviso de Joe, alguns
ainda tentaram arriscar suas chances. Uma das motos pegou,
mas o motor rateou, fazendo estourar o escapamento,
lançando uma bola de fogo. Imediatamente o local
transformou-se num inferno. Os motociclistas corriam para
190
todos os lados com os corpos transformados em tochas
vivas.
— Deus do céu! — exclamou Joe, surpreso ante aquele
inesperado desfecho.
Os carros que chegavam a toda, com as sirenes abertas,
trataram de desviar-se daquela cena dantesca. Joe saltou do
trator com as armas acima da cabeça. Estava em outro
distrito e torcia para que, entre aqueles policiais, houvesse
um que o reconhecesse.
— Maldição, Joe! — gritou um deles. — Não basta
você fazer bagunça no seu distrito? Agora vem trazer um
pouco para nós? Que diabo aconteceu aqui? É o seu jeito de
fazer o churrasco de domingo?
— Diabos, Sargento Sppud, por que demoraram tanto?
Pensei que não fosse dar conta de todos esses malditos
bastardos — respondeu Joe, aliviado.
— É sério que está com a cabeça a prêmio? — indagou
o sargento.
— Por que diz isso?
— Um de meus informantes me contou essa novidade.
O que andou aprontando por lá?
— É o que eu gostaria de saber também. De repente,
todo mundo resolveu fazer tiro ao alvo em mim. O que seu
informante disse, afinal?
— Que alguém disse a ele que você foi decretado
inimigo número um das gangues e que alguém estava
pagando cinquenta mil pela sua cabeça.
191
— Cinquenta mil? Puxa, é o salário de um ano. Isso vai
deixar muita gente tentada.
— E você potencialmente morto. Quanto tempo acha
que poderá resistir numa cidade como esta? Logo virão
caçadores de todos os bairros e de todas as ruas. Se eu fosse
você, inventava logo um jeito de escapar disso. Por que não
se aposenta logo e se muda para Miami Beach?
— Você está parecendo meu capitão, Sppud. Aliás, se
não o conhecesse bem, diria até que encontraram uma forma
de me forçar a pedir a aposentadoria — disse ele. — Até a
vista, sargento. A gente se vê por aí!
— Ei, espera aí. Preciso tomar suas declarações.
— Esqueça, sargento! Foi uma guerra de gangues, não
percebe? Alguma disputa por causa de território, de droga,
de armas ou qualquer coisa assim. É só copiar dos outros
relatórios — falou Joe, afastando-se.
— Pensando bem, será mais fácil pôr isso no relatório
do que tentar entender o que houve aqui — comentou o
policial, tirando o chapéu e coçado a cabeça.
192
CAPÍTULO 7
Joe sentia-se mal naquela reunião, onde todos falavam
dele e manifestavam uma preocupação exagerada com sua
saúde. Tudo porque o boato do prêmio pela sua cabeça
havia se espalhado por toda a cidade. Gente nova e estranha
estava aparecendo no bairro. Bob "Moicano" Jones, que
trabalhava infiltrado nas gangues, comentava que estava
vindo gente até de Nova Jérsei atrás do prêmio. Joe havia
tido uma amostra do que aquilo representava. Nos últimos
dias havia passado seu tempo entre atender telefonemas
daquela misteriosa voz e enfrentar ou fugir de emboscadas.
Estava ficado cansado de tudo aquilo.
— O que estou tentando dizer é que não podemos
esconder Joe para sempre, nem passar todo o nosso tempo
protegendo-o. Temos outros assuntos para tratar. A região é
pesada, não temos homens suficientes. É tudo muito
problemático — frisava o capitão.
— Isso não significa que devamos deixá-lo a sua sorte
— protestou Matt. — Joe deu muito de si a este Distrito.
Com exceção do capitão, creio que todos nós por aqui
devemos nossas vidas a ele pelo menos uma vez. Temos de
apoiá-lo agora.
— A questão não é essa, pessoal — interrompeu-os
Joe. — Na realidade, não preciso de proteção. Os olhos da
cidade são a minha proteção — lembrou ele.
193
— Isso aí também me cheira muito mal. Tudo cheira
mal nessa história toda — lembrou o capitão. — Ainda não
entendi quem é o seu anjo da guarda e por que o protege,
Joe.
— Sinto muito, capitão, mas não posso ajudá-lo nisso.
Sei tanto quanto você ou qualquer outro.
— Só que não estamos avançando para lugar nenhum
— protestou Albert Finey, dos Assuntos Internos, chamado
a participar da reunião. — O que temos aqui é que Joe foi
escolhido como alvo por algum motivo. Isso concentrou
toda a atenção das gangues nele. Enquanto isso, não se tem
notícia de nenhum tiroteio ou enfrentamento entre eles. É
como se Joe fosse o inimigo comum que os mantivesse
distraídos, impedindo-os de lutar entre si.
— Graças aos céus, uma voz inteligente em tudo isso
— elogiou Joe.
— Ei, isso tem lógica mesmo. E começou depois
daquela reunião entre os líderes das gangues hispânicas e
negras com os italianos. Lembra-se disso, Joe?
— Sim, como não.
— Além disso, nunca a droga foi tão livre e tão fácil
nesta cidade. O Departamento de Narcóticos está
simplesmente perdido. A teoria mais plausível é que os
italianos centralizaram a distribuição e conseguiram a trégua
entre as gangues, concentrando as energias e o trabalho
delas na distribuição e venda do produto. E lamento
informar que estão vendendo de tudo, da velha marijuana ao
194
que há de mais moderno, o êxtase, passando pelo crack e
todas as outras porcarias.
— E eu entrei nessa como o bobo da corte? Por que
eu? — quis saber Joe.
— Tinha que ser alguém. Por que não você, Joe? Quem
é o nome mais respeitado na região? Que tira provoca medo
nas gangues? Quem as trata com energia em excesso? —
ponderou "Moicano" Jones.
Um policial entra na sala apressadamente.
— Estão assaltando a loja de bebidas da Mayflower.
Quincy e Fred Barnnes estão lá e pedem ajuda.
— Diabos! De novo! — comentou Joe, levantando-se e
rumando para a porta.
Matt seguiu-o sem pestanejar. Antes que o capitão
pudesse dizer alguma coisa, os dois já haviam passado por
suas mesas e apanhado suas armas.
— E ele ainda pergunta por que as gangues não gostam
dele — opinou Albert.
Enquanto o alerta era transmitido aos demais carros em
patrulha, Joe e Matt já se aproximavam do local. Buck,
quando os vira saindo apressados, correra para o carro
também. Sabia que onde aqueles dois estavam ali também
estaria a ação.
— Você cuida da frente, Matt. Eu vou passar pelo beco
e tentar entrar pelos fundos da loja. Quanto a você, Buck...
— Já sei, o melhor lugar é o lado oposto dos atiradores.
Joe parou o carro um pouco antes de chegar ao cenário
do assalto. Matt tomou o volante, enquanto ele corria rente
195
às paredes na direção do beco que levava aos fundos da loja
de bebidas. Quando Matt estacionou o carro ao lado da outra
viatura, chamaram Joe pelo rádio.
— Joe vai tentar entrar pelos fundos — informou Matt.
— Uma mulher telefonou. Mandou dizer que eram os
olhos da cidade para o Joe, que era para ele não entrar na
loja de bebidas, pois tudo não passava de uma armadilha.
— Diabos! — praguejou Matt, sem saber o que fazer
naquele momento.
Joe estava indo direto para uma cilada e não havia
como avisá-lo.
— Quantos homens estão lá dentro, Quincy? —
indagou ele.
— Dois — respondeu o outro policial.
— Onde estão? Não consigo vê-los.
— Estão escondidos, mas estão lá, pode ter certeza.
— Temos de fazer alguma coisa, é uma cilada.
Antes que Matt pudesse fazer alguma coisa, Buck
correu na direção do beco.
— Vou avisar o Joe! — gritou, enquanto corria.
— Maldição! Só me faltava esta agora — disse Matt.
Outros carros começavam a chegar. Não havia
movimentação alguma dentro da loja. Respirou fundo e
correu, imitando Buck. Encontraram-se nos fundos da loja.
A porta estava aberta, mas não havia sinal de Joe.
— Joe, caia fora daí. Os olhos da cidade ligaram. É
uma armadilha! — gritou Matt.
196
Em resposta, uma rajada de metralhadora saiu pela
porta e picotou a parede do lado oposto. Os policiais lá fora,
alertados pelos tiros, começaram a disparar. O inferno
instalou-se dentro da loja de bebidas.
— Buck, corra até a frente do beco e avise que há um
policial lá dentro — pediu Matt.
Buck atendeu-se, mas quando surgiu correndo do beco,
algumas armas voltaram-se na sua direção. Ele foi baleado
diversas vezes, sendo jogado para trás.
— Oh, não! — exclamou Matt, colado à parede,
ouvindo vidros partindo-se lá dentro e balas ricocheteando
nas paredes.
Não viu nenhum sinal de Joe e desesperou-se, sem
saber o que fazer. Lá fora alguém ordenou aos policiais que
cessassem fogo. Matt aproveitou para sair do beco.
— Seus idiotas! Seus malditos idiotas! Balearam um
civil — gritou ele, inclinando-se sobre Buck, que, apesar
dos inúmeros ferimentos, estava vivo ainda.
— E o Joe, Matt? Onde está ele?
Os paramédicos chegaram para retirar Buck dali. O
capitão acompanhava-os.
— Que diabo aconteceu aqui, Matt? — indagou
furioso, ao ver Buck ferido.
— Esses idiotas atiraram nele.
— E o Joe?
— Lá dentro.
— Ouvi pelo rádio que era uma armadilha.
197
— Vou tentar localizá-lo — falou Matt, retornando à
porta dos fundos.
Outros policiais seguiram-no. Quando chegavam,
viram o corpo coberto de sangue do policial deslizar para
fora da loja. Fora ferido diversas vezes. Antes que
entendessem o que ele fazia, Joe acendeu o isqueiro e jogouo para dentro da loja. Houve um instante de expectativa,
depois toda ela explodiu, quando o álcool esparramado
incendiou-se. Lá na frente, com as roupas em chamas, os
dois pistoleiros saltaram pela janela estilhaçada, disparando
suas armas. Em resposta, mais de vinte armas foram
apontadas contra eles. Seus corpos foram jogados de volta
ao inferno dentro da loja pelos impactos de tantas balas. Nos
fundos, Matt amparava o parceiro, que respirava com
dificuldade.
— Acertaram-me, Matt. Meus próprios amigos. Eu
tinha os bandidos em minha mira. E meus amigos me
acertaram — repetiu ele, tossindo.
Um fio de sangue escorreu pelo canto de sua boca.
Seus olhos se voltaram para o céu. Joe achou que era a
última vez que o via.
***
Alguns dias depois, num iate ancorado ao largo da ilha,
com uma maravilhosa vista dos arranha-céus de Nova
Iorque, Andy encontrava-se com seus amigos e sócios para
uma avaliação dos resultados do trabalho conjunto.
Nenhuma das partes tinha reclamações. Nunca haviam
ganhado tanto dinheiro e gozado tanto a vida como nos
198
últimos dias. A droga fluía generosamente nas veias da
cidade e o Departamento de Narcóticos estava impotente.
Eram tantos os pontos de venda, todos controlados pelas
gangues e em locais de difícil e perigoso acesso, que nada
podia fazer.
Garotas bonitas passeavam por entre eles na coberta do
iate, servindo drinques. Andy deu a cada um dos novos
parceiros um presente. Eram caríssimos e luxuosos Rolex de
ouro.
— Você está nos deixando muito mimados —
comentou Johnny.
— Ora, rapazes! Gosto disso. É minha maneira de
dizer que reconheço o bom trabalho que estão fazendo. E
quanto ao Joe, sabem se ele escapou?
— Está no hospital entre a vida e a morte. Perdeu um
rim, o fígado foi afetado, o pulmão também. Se sobreviver,
será um farrapo de homem apenas — informou Angus.
— E os membros das gangues, como estão reagindo
agora que não têm um inimigo comum?
— Não parecem muito preocupados — disse Johnny.
— Parece que descobriram que têm um amigo em comum.
— Como assim? — quis saber Andy.
— Dinheiro é o amigo comum. Perceberam que podem
ter tudo que sempre desejaram e que não precisam mais
brigar entre si, disputando migalhas.
— Ótimo, estão ficando inteligentes. Agora, amigos,
gostaria de convidá-los para a festa de aniversário de meu
199
pai. Será daqui a uma semana, neste mesmo iate. Quero que
os chefes das principais gangues estejam presentes.
— É quando assumirá o controle da família? —
indagou Angus.
— Sim. A partir desse dia, serei o novo Chefão.
— Como naquele filme?
— Exatamente como naquele filme.
— Será um homem muito poderoso — comentou
Johnny.
— E só me manterei assim com a ajuda de vocês.
Soube que há muitos territórios livres no Estado, onde
gangues autônomas controlam o tráfico. Quero, com a ajuda
de vocês, controlar tudo isso.
— Não precisamos de tanto — comentou Johnny. —
Acho que há mais dinheiro que podemos gastar só aqui, no
que fazemos agora.
— Deixe-me contar-lhe um fato. Meu pai está velho.
Deve ter mais uns cinco ou dez anos de vida, mas não tem
nem vigor nem saúde para gozá-los, apesar de ter dinheiro.
Quero que aconteça diferente comigo. Quero juntar todo o
dinheiro que puder e depois me aposentar ainda jovem, com
saúde, disposição e tesão para usufruir tudo que tiver
juntado. Acho que vocês deveriam pensar da mesma forma.
Nada é suficiente em nosso negócio, rapazes. Nossa
sociedade mostrou-se muito lucrativa. Não temos de
comprar tiras, políticos, juízes ou autoridades como antes.
Quando repartimos o nosso lucro, não teremos de separar a
parte dos corruptos que antes nos sugavam. Certamente eles
200
vão protestar e reagir contra nós, só que estaremos fortes e
unidos, tão fortes e unidos que eles terão medo de nós, de
nossa força e de nosso poder. Por isso devemos todos pensar
da mesma forma, entenderam? Perceberam a dimensão do
que somos agora? A cidade é nossa, está em nossas mãos.
Se hoje decidirmos que ela deve arder até suas fundações,
temos meios de incendiá-la e fazê-la queimar.
Johnny e Angus entreolharam-se. Começavam a
compreender o papel deles em tudo aquilo e o poder que
detinham nas mãos. A aliança com os italianos fora uma das
melhores decisões de suas vidas.
— Andy, estamos surpresos e gratos a você pelo que
está acontecendo. Esperamos corresponder à altura de suas
expectativas — disse Johnny.
— Fiquem comigo e não se arrependerão, amigos —
afirmou Andy. — E não se esqueçam de avisar seus
liderados. Os presentes de aniversário para o meu pai devem
ser significativos. O valor nem é tão importante. A questão é
fazê-lo sentir-se valorizado com o presente.
— Não se preocupe, Andy, não vamos decepcionar seu
pai. Já descobrimos tudo que agrada a ele. Ele ficará
encantado com nossos presentes — garantiu Angus.
— Agora chega de negócios, rapazes. Vamos
aproveitar essas belas garotas a nossa disposição — decidiu
o gângster, aplaudido por seus sócios.
***
Quando abriu os olhos, a sensação que experimentou
foi a de que todas as ressacas de sua vida estavam presentes
201
ao mesmo tempo. O corpo doía e a boca estava seca e com
um gosto horrível. Respirar era difícil e dolorido. Um tubo
entrava por sua boca, machucando sua garganta. Seus
braços estavam presos com esparadrapo às laterais da cama
e agulhas estavam espetadas em cada um deles, ligadas a
mangueiras que vinham de tubos pendurados em suportes
dos dois lados da cama. Uma mulher examinava tudo
aquilo. Apesar do uniforme e do gorro que prendia seus
cabelos, podia perceber que era bonita e madura, com um
corpo roliço e apetitoso. Ele resmungou alguma coisa,
tentando chamar a atenção dela. Ao vê-lo com os olhos
abertos, ela sorriu.
— Ora, vejam! Até que enfim resolveu acordar, seu
preguiçoso — disse ela, num tom meio infantil que o fez rir
também.
Gostou de ser tratado daquela forma.
— Como se sente? — indagou ela.
Ele moveu a cabeça num sinal afirmativo.
— Isso é bom. Muito bom mesmo — afirmou ela. —
Vou chamar o médico. Acho que poderemos desligar alguns
dos tubos ligados em você — informou ela, saindo.
Joe tentou pedir a ela que ficasse. Ainda estava
assustado. Pouco se lembrava do que havia acontecido.
Sabia que estivera na loja de bebidas, que vira os dois
homens e enquadrara-os na mira de seu fuzil. Alguém gritou
lá fora, nos fundos da loja. Uma rajada de metralhadora foi
disparada, depois tudo se transformou num inferno. A partir
202
daí, tudo era nebuloso e indeterminado. Não conseguia
lembrar-se do que havia acontecido.
Com satisfação, viu a enfermeira retornar em
companhia de um médico, que se inclinou e, com uma
pequena lanterna, examinou-lhe os olhos. Outros médicos
chegaram também. Retiraram o lençol que cobria o corpo do
policial. Olhando, Joe pode perceber que havia algumas
novas cicatrizes em sua pele. Algumas realmente grandes.
Cuidadosamente retiraram o tubo de sua garganta. Um
gosto amargo veio-lhe à boca e ele teve ânsia de vômito,
mas nada havia para ser vomitado, a não ser aquele gosto
amargo.
— Como se sente? — indagou-lhe o médico que
retirara o tubo.
— Com a maior das ressacas — respondeu ele e sua
voz estava estranha, áspera, grave e dolorida.
— Seja bem vindo de volta, Joe Bradford. Você
escapou de uma boa. Tiramos quase meio quilo de chumbo
de seu corpo, sabia? — brincou o médico.
— Quando vou poder sair daqui? — indagou Joe e
todos se olharam surpresos, depois começaram a rir.
— Por que tanta pressa? Vai precisar de algum tempo
antes de poder voltar para casa.
— E o meu trabalho? — indagou ele, preocupado.
— Não sei, Joe. Acho que não poderá mais voltar ao
seu trabalho, não depois e tudo que passou. Pelo que sei, já
tem tempo para aposentar-se. Acho que é o melhor que tem
a fazer, sabia? Já não terá a mesma mobilidade nem as
203
mesmas condições físicas de antes. Terá que aceitar que é
um novo homem, Joe. Com limitações, mas ainda vivo.
Sabendo cuidar-se, viverá até os cem anos.
Joe olhou-o com desespero. Aquele médico não sabia o
que estava dizendo. O trabalho na Polícia era a vida para
ele. Se não pudesse voltar para lá, se tivesse que viver como
um inválido, melhor seria que aquelas balas não tivessem
sido retiradas de seu corpo. Simplesmente não estava
preparado para aquilo, da mesma forma como nunca
estivera preparado para sua aposentadoria. Enganava-se e
vinha enganando todo mundo, afirmando que se aposentaria
logo, que compraria o bar do Rusty e que tudo seria
maravilhoso em sua vida. Compreendia, naquele momento,
a dura realidade e isso era dolorido demais. Tão dolorido
que ele não pôde conter as lágrimas que começaram a rolar
de seus olhos.
— Tudo bem, pessoal, isso é um bom sinal — falou o
médico. — Vamos deixá-lo sozinho. Tem muito em que
pensar agora.
Um a um os médicos que o haviam visitado foram
saindo, até que restasse apenas a enfermeira. Ela ficou ao
lado da cama, olhando com piedade para a expressão
perplexa e dolorida nos olhos do paciente. De repente, sem
que o próprio Joe entendesse, ela começou a chorar também.
Segurou a mão dele, apertando-a com as suas. Depois se
inclinou lentamente e depositou a cabeça no peito dele.
204
CAPÍTULO 8
Joe Bradford já havia sido ferido muitas vezes. Em
todas elas, sempre se esforçara ao máximo para apressar sua
cura, pois não via a hora de voltar à ativa. Agora era
diferente. Joe era considerado um inválido e essa era a pior
parte. Se não quisera aposentar-se íntegro, teria de fazê-lo
agora, obrigatoriamente, além de estar condenado a um
resto de vida cheio de cuidados com a saúde. Aquele tiroteio
não apenas o invalidara para o trabalho policial. Aquelas
balas o haviam matado por dentro.
Matt foi visitá-lo um dia, mas ficou pouco tempo. Para
ele também era difícil ver o velho parceiro preso a uma
cama de hospital.
— Buck, apesar dos ferimentos, vai sobreviver —
informara Matt.
Joe não sabia dizer se aquilo era um alívio ou não para
ele. Buck sabia dos riscos que corria. Mesmo tentando
salvar a vida de Joe, o ex-policial não conseguia sentir nada
pelo jornalista. Já era difícil demais lidar com os seus
sentimentos em relação a ele mesmo. A única coisa que
dava certo alento a ele era quando Debrah, a enfermeira,
vinha atendê-lo. Havia, da parte dela, um cuidado muito
grande para com ele. Um cuidado que começava ir além dos
deveres rotineiros do trabalho. Debrah, não raras vezes,
quando completava seu turno, passava pelo quarto dele e
ficavam conversando.
205
— Por que faz isso, Debrah? — indagou ele, um dia.
Aquela era uma pergunta que ele desejava fazer havia
muito tempo, desde aquele dia, quando acordara e soubera
que jamais voltaria à Polícia. Quando ele chorou, ela chorou
com ele.
— Ficar aqui, conversando com você?
— Sim. Todo mundo fica apressado para ir para casa
quando termina o trabalho. Só você não.
Os olhos dela revelaram uma tristeza muito grande,
mas foi apenas por pouco tempo. Debrah era uma mulher
muito forte e sabia disfarçar suas dores e sofrimentos muito
bem.
— Moro sozinha, Joe. Se voltar para casa agora, vou
ficar vendo tevê até o sono chegar. Esquentarei alguma
comida congelada. Não tenho motivo algum para cozinhar.
— Por quê? — interrompeu-a ele.
Ela silenciou e ficou olhando para ele, sem entender a
pergunta. Aquela perplexidade no rosto dela já era uma
resposta. Joe concluiu que era o mesmo que o fazia ficar no
Bar do Rusty até a hora de fechar. Ir para casa para quê?
— Sou sozinha, Joe.
— E por que é sozinha? É uma mulher jovem e ainda
muito bonita e atraente. Não entendo.
— Essa é uma longa história, Joe. Não tenho acertado
em meus relacionamentos. Enfermeiras têm um sério
problema quanto a isso.
— Como os tiras, eu suponho. Ninguém quer morar
com um tira.
206
— A menos que ele seja um tira aposentado — sugeriu
ela.
Ele conseguiu sorrir. Após alguns dias de imobilidade
e reflexão, Joe já podia conviver com a ideia. Pouco a pouco
se conscientizava de que jamais voltaria a fazer tudo o que
fazia antes. Isso não seria de todo ruim. Poderia comprar o
Bar do Rusty. Conviveria com o pessoal, estaria no meio
deles sem os riscos de antes.
— Você já reage melhor à ideia da aposentadoria —
observou ela. — Quando se falava nisso antes, sua
expressão era da mais pura e violenta revolta. Agora você se
mantém sereno, apesar de haver certa tristeza em seus olhos.
— Acho que posso aceitar a ideia, Debrah, já que não
tenho mesmo escolha.
— E o que fará quando sair daqui?
— Não sei ao certo. Tenho um amigo que está
morrendo de câncer. Ele tem um bar e quer vendê-lo para
mim. Talvez eu o compre.
— Um bar? Que interessante!
— Um bar só de tiras. Abre às oito da noite e fecha
quando o último freguês vai embora.
— Vai ser ótimo! Quando eu fizer o turno da noite, sei
para onde ir e tomar um drinque, antes de ir para casa
dormir — comentou ela.
— Sim. E talvez possamos ir juntos para casa. Para a
mesma casa — disse ele, sem pensar.
Ela o olhou com seriedade e com uma tensão nova no
rosto. Sondou-o demoradamente, enquanto Joe descobria-se
207
surpreso consigo mesmo. Havia muito tempo não fazia uma
proposta a uma mulher. Aquela saíra tão espontaneamente
que o surpreendera mesmo.
— Fala sério, Joe?
— Acho que nunca falei tão sério em minha vida,
Debrah.
— Podemos ter uma vantagem. Fazendo o turno da
noite, teremos todo o tempo restante para nos conhecermos
melhor — falou ela, com ar sonhador e um sorriso de
ternura e malícia nos lábios.
Joe sorriu também. Era tudo muito estranho, como se
estivesse dividido em duas partes. Uma era aquela calma e
tranquila, que gostaria de descobrir com Debrah, na ternura
de um amor de outono, criando um relacionamento maduro
e sem sobressaltos, aceitando sua atual condição. A outra
era o velho guerreiro lambendo suas feridas e preparando
planos de guerra e vingança. As duas conviviam
estranhamente dentro dele.
***
Para Matt, fazer a ronda noturna com um novo parceiro
era estranho, muito estranho. Não tinha aquela mesma
segurança que sentia com Joe. Além disso, seu parceiro não
conhecia aquele trajeto, não sabia onde estavam os pontos
perigosos, os becos de onde os desocupados atiravam
garrafas na viatura, quando não, coquetéis molotov. Tinha
de treinar seu novo parceiro. Tinha de prepará-lo. Talvez
aquela pretensa calma que reinava nas ruas fosse o melhor
momento para fazer isso. O problema era que, segundo Bob
208
"Moicano" Jones, alguém decidira que, para quebrar a
monotonia, as gangues deveriam escolher um novo alvo. E
ele, Matt, fora o alvo escolhido. Até então, haviam rodado
quase todo o trajeto da ronda inicial, sem incidentes. Iriam
percorrer a Mayflower até o final, depois retornariam direto
para o Distrito. Alguma coisa o deixava tenso. Eram suas
velhas cicatrizes coçando.
— Pare um pouco, Vincent! — pediu ele ao seu amigo.
Apanhou o fuzil AR-15 que Joe costumava usar e que
ficava no carro agora. Com o visor noturno ele
esquadrinhou todo o trajeto a sua frente, olhando becos e
telhados. Nada à vista, só que aquela sensação não passava.
— O que houve, Matt? — indagou seu novo parceiro.
— Não se, Vince. Alguma coisa aqui, nas minhas
cicatrizes.
— Quando as minhas coçam, indicam chuva.
— O céu está limpo, parceiro. Não acho que seja esse o
motivo.
— Vamos lá, Matt. Não me diga que está com algum
pressentimento?
— Não sei, mas não gosto particularmente desta rua.
Não foi por nada que Joe e eu decidimos deixá-la para o
final da ronda. Vá em frente, devagar.
Vince pôs o carro em movimento. A rua estava vazia
naquela hora da madrugada. As vitrines iluminavam
generosamente as calçadas. Os postes de iluminação
conservavam ainda todas as lâmpadas intactas, depois que
209
foram respostas, após a trégua das gangues. Tudo parecia
um caminho tranquilo.
— Cuidado! — avisou Matt, quando se aproximavam
de uma esquina.
De um lado surgiu um caminhão de entrega de leite.
Do outro, um furgão de entrega de jornais. Inesperadamente,
os dois chocaram-se de frente, de forma inexplicável.
— Diabos! — exclamou Vincent, parando o carro e
fazendo menção de descer.
— Não! — gritou Matt, segurando-o pelo braço.
— Pode haver alguém ferido naqueles veículos.
— Eles simplesmente cortaram nossa passagem,
Vincent. Manobre o carro. Dê uma ré — ordenou Matt.
Seu parceiro ficou estático, sem entender o que estava
acontecendo.
— Faça o que eu disse! — berrou Matt, sentindo falta
de Joe.
Naquele momento, ele saberia exatamente o que fazer,
pensou Matt, virando o corpo para olhar para trás. Na outra
esquina, duas carretas atravessaram a rua, parando uma com
a frente encostada na outra, barrando a passagem.
— Matt, o que está havendo? — indagou Vincent, sem
entender.
— Acho que é o inferno, Vincent — falou ele.
Matt estendeu o braço e engatou a ré.
— Recue devagar até o meio da quadra — ordenou.
Vincent obedeceu-o. Com o visor infravermelho, Matt
olhou os telhados acima das luzes da rua. Pôde ver muita
210
gente lá em cima, todos armados. A caça ao pato iria
começar.
— Vincent, acha que pode passar entre o caminhão de
leite e o prédio?
— Se for preciso, posso tentar.
— Então tente, Vince. Tente como nunca tentou nada
em sua vida. Tente como se o diabo estivesse em nossos
calcanhares, porque é isso que está acontecendo.
A Rua Mayflower dividia os dois bairros, o Harlem e o
Bronx. De um lado, nos telhados, membros das gangues
negras. Do outro, os hispânicos. Ao invés de atirarem uns
nos outros, tinham um alvo comum para alegrar sua noite de
sábado. Quando Vincent acelerou o carro, o inferno abateuse sobre eles. Os projéteis vinham de todos os lugares, dos
telhados e dos becos, dos caminhões nas duas esquinas, de
portas e janelas inesperadamente tomadas por membros das
gangues. Os dois policiais experimentaram a sensação de
estarem numa panela de pipoca, só que ao invés de suaves e
deliciosos flocos brancos, eram pesados e mortais
fragmentos de chumbo. Os tiros de escopeta arrebentaram
os vidros. Os de AR-15 foram demolindo o veículo. Os de
fuzis especiais de caça foram transformando os corpos de
Matt e de Vincent numa sanguinolenta massa de carne e
ossos despedaçados.
Sirenes soaram ao longe, avisando que o socorro inútil
e tardio estava a caminho. Os tiros cessaram
repentinamente. Um silêncio de morte reinou naquele ponto
da rua. Do alto de um telhado uma garrafa de coquetel
211
molotov desceu certeiramente sobre a lataria do carro. Do
tanque perfurado, o combustível escorria. O fogo provocou
a explosão que estremeceu os prédios e assustou toda a rua.
O carro despedaçado e em chamas era um trágico marco
daquela violência feita de ressentimentos e crueldade
gratuitos.
***
Naquela manhã de domingo, Joe sentia-se bem. Apesar
de ser o dia de folga de Debrah, ela fora até o hospital. Joe
recebera autorização para tomar sol. Ela o empurrou na
cadeira de rodas até o jardim onde outros pacientes
caminhavam. Numa das alamedas, ela parou a cadeira o
ajudou-o a levantar-se. Com passos vacilantes no início, ele
a acompanhou. Estava um belo dia e Joe já se sentia melhor,
bem melhor. A companhia de Debrah ali, junto dele,
tocando seu corpo, despertava-lhe sensações que julgara
adormecidas dentro dele, fazendo-o sentir-se vivo
realmente. Já devia muito àquela mulher. Pouco sabia sobre
ela, sobre sua vida, seus desenganos e sofrimentos. Isso,
àquela altura da vida dele, pouco importava. Contava apenas
o fato de serem dois solitários que, de repente, descobriam
que um tinha algo a oferecer ao outro.
Para surpresa dele, Rusty e Allan surgiram no fim da
alameda.
— Ei, aqueles dois são meus amigos — apontou ele,
satisfeito por receber aquelas duas visitas.
— Quer que eu o deixe a sós com eles?
— Não, eu quero que você fique comigo.
212
Os dois amigos pararam diante dele. Joe ficou
penalizado com o estado de Rusty. A doença parecia ter
evoluído muito naqueles dias em que não o vira. Estava
pálido, mais magro e caminhava com dificuldade, apoiandose no braço de Allan.
— E então, meu amigo, como está? — perguntou
Rusty e Joe não conseguiu responder.
Abraçou os dois e começou a chorar. Debrah olhou-os
com ternura. Allan fez um sinal para que ela os deixasse a
sós com eles. Por instantes ela hesitou, depois voltou até
onde estava a cadeira. Levou-a até um banco à sombra e
sentou-se para esperar.
Joe não se lembrava de mais da última vez que chorara
daquela forma. Não sabia se era pena de Rusty ou se era o
fato de receber a visita ou, ainda, a alegria íntima de saber
que ainda estava vivo. A presença de Rusty lembrava-lhe a
morte inexorável que puxava seu amigo para o túmulo.
— Que bom ver que você está bem, Joe — disse Allan.
— Acho que pode suportar o que temos a lhe dizer.
— De que se trata? — surpreendeu-se ele.
— Matt... Eles o pegaram ontem, na Mayflower —
falou Rusty, com pesar.
— Morto?
— Sim. Felizmente não sofreu, Joe. Prepararam-lhe
uma cilada.
— Malditos! — murmurou o ex-policial, apertando os
olhos com força e sentindo-se entontecido.
213
Tudo que o ligava à Polícia parecia ter sido destruído.
A morte de Matt era a coisa mais dolorosa para ele agora.
Respirou fundo e tentou imaginar-se como das outras vezes
em que fora ferido e que se recuperara rápido para ir atrás
de quem o havia atingido. Queria pensar da mesma forma
agora. Queria agir da mesma forma agora, mas o guerreiro
estava inválido, estava inutilizado e essa impotência era o
pior sentimento de sua vida. A revolta interior e o desejo de
vingança esbarravam em sua condição física, em suas
limitações atuais, às quais ainda não se acostumara, mas
com as quais teria de conviver para o resto de sua vida.
Chorou amargamente por isso. Chorou por ter sido reduzido
àquela inútil sombra do guerreiro de antes.
— Deus! — murmurou ele. — Eu daria tudo para fazêlos pagar por isso, Rusty. Se houvesse uma forma de
promover a justiça contra esses assassinos, eu a procuraria,
nem que tivesse que vender minha alma ao diabo.
Rusty encarou-o com seriedade, olhando-o bem no
fundo dos olhos. Lá no banco, olhando-os, Debrah percebia
que alguma coisa acontecera para emocionar Joe daquela
forma. Pensou em intervir, mas preferiu deixá-los resolver
aquilo entre eles.
— Joe, ouça bem o que vou dizer para você — falou
Rusty.
— Aqueles bastardos! — reclamava Joe.
— Joe! Joe! — insistiu Allan, segurando-o pelos
ombros, tirando-o daquele transe feito de ódio e impotência.
214
Joe Bradford pareceu voltar à realidade, encarando os
amigos com os olhos ainda cheios de lágrimas.
— Está bem! Está bem! Já estou calmo — murmurou
ele, limpando os olhos.
— Joe, e se eu lhe disser que, mesmo em seu estado,
mesmo com todas as suas limitações, você pode conseguir a
justiça que busca e vingar-se daqueles bastardos?
O ex-policial encarou-os como se não entendesse o
sentido daquilo que lhe era dito.
— Joe, você pode vingar-se deles e fazer justiça —
repetiu Rusty.
— Como? — surpreendeu-se Joe.
— Lembra-se do Carrasco?
— Meu Deus! Aquilo é uma lenda, eu não recorreria
àquilo por nada em minha vida.
— Nem para vingar a morte de Matt? — questionou
Allan.
— Nem sabendo que o Carrasco sou eu, é o Allan e
uma porção de outros tiras e veteranos de guerra, espalhados
pela cidade, cansados de tanta impunidade?
Joe entendia cada vez menos do que seus amigos
falavam. Olhava-os com incredulidade, tentando captar o
sentido exato do que eles diziam.
— Joe! Allan, Ritter, Mozart, Ferrer, MacFade, eu e
uma porção de outros formamos o que se chama na cidade
de Carrasco, percebe? Somos muitos. Quando alguém nos
procura, verificamos o que é e juntos traçamos planos para
que a justiça seja feita. Temos pessoas nos Distritos, que nos
215
dão proteção, despistando as investigações, quando alguma
ameaça chegar perto de nós, o que é muito difícil. Somos
cuidadosos. Cada ação é planejada cuidadosamente e
somente é executada quando temos certeza de que não
haverá falhas. Ainda assim, sempre há uma equipe de
retaguarda para garantir a manutenção da lenda.
Joe olhava surpreso para seu amigo. Já ouvira falar de
algo assim, como um Esquadrão da Morte ou um Grupo de
Vigilantes, mas jamais vira nada de concreto ou soubera de
uma pista que indicasse a existência real daquela lenda.
— Rusty está morrendo, Joe. Seu bar é uma das bases
mais importantes de nosso grupo. Precisamos que você
assuma o posto que Rusty está deixando. Precisamos que o
Bar do Joe continue sendo a base do Carrasco. O que me
diz?
Joe estava atônito e surpreso demais para responder.
Dentro dele, porém, o guerreiro inválido percebia a nova e
única chance de voltar a empunhar sua arma.
216
CAPÍTULO 9
Rusty Banner morreu três dias após aquela visita feita a
Joe no hospital. Allan assumiu temporariamente os
trabalhos no bar, enquanto esperavam pela total recuperação
de Joe, já que, em seu testamento, Rusty deixava o
estabelecimento para ele. Debrah acompanhou Joe até o
cemitério. Incontáveis amigos de Rusty estavam lá,
prestando-lhe sua última homenagem. Joe percebeu muitos
desconhecidos, bem como ex-policiais de outros distritos.
Todos faziam parte daquela confraria de justiceiros da qual,
em breve, ele seria parte importante.
No meio da semana, Joe recebeu alta, mas não foi para
sua casa por insistência de Debrah, que o levou para a sua.
Ali, pelo menos, ele estava a salvo. No caminho de ida, ela
tomou todas as precauções para não ser seguida. Temia por
ele e imaginava que alguém pudesse querer terminar o
trabalho que começara. Não sabia que, para as gangues, Joe
Bradford era carta fora do baralho.
No sábado pela manhã, Allan passou por lá e levou-o
para o bar, pouco antes de anoitecer. Muita gente estava lá,
todos pertencentes ao grupo.
— Nós o trouxemos aqui, Joe, porque sua chance de
fazer justiça chegou. Nesta noite, Cauzio Luciano
comemora sua aposentadoria e seu filho, Andy Luciano,
está assumindo o comando de todas as famílias de Nova
Iorque. Na festa estarão os líderes de todas as gangues do
217
Bronx e do Harlem, inclusive Johnny Perez e Angus
Colúmbia. A festa acontecerá no Lucille, iate de Andy, que
circulará por toda a baía. Minamos todo o iate. Quando ele
deixar o píer, todos lá dentro estarão condenados.
Oferecemos a você a chance de apertar o detonador — disse
Allan.
Joe encarou a todos com incredulidade. Aquilo era
totalmente diferente de tudo que já fizera como policial.
Muita gente inocente morreria, como os tripulantes, as
garotas convidadas, algum inocente útil ou outro idiota
capaz de aceitar um convite de um mafioso.
— Não! — protestou ele. — Não pode ser assim. Eu
preciso olhar nos olhos de cada um, antes de matá-lo.
— Joe, compreenda! Não trabalhamos assim — disse
Allan.
— Mas é como eu quero fazer. Esses homens são meu
problema, é pessoal agora. Desde o velho Luciano, que deve
ter tramado tudo isso, até os idiotas do Johnny e do Angus.
Quero pegá-los um a um, frente a frente, para que saibam
quem os matou.
— Entenda, Joe, jamais teremos uma chance como
esta. Haverá uma porção deles naquele iate. Todos os ratos
numa só ratoeira. Basta jogá-la na água e afogar todos eles
— ponderou Ritter, um policial aposentado.
— Entendo seu ponto de vista, Ritter, mas quero que
entenda o meu também. Não me importa saber o que
acontecerá depois, não é problema meu. A questão é que
esses quatro homens, Cauzio Luciano e seu filho, Johnny
218
Perez e Angus Colúmbia tiraram-me tudo que me era mais
importante. Minha carreira, minha saúde e meu parceiro.
Pagarão por isso o preço que eu estipular.
Houve alguns protestos. Antes que houvesse discussão,
Allan tomou a palavra.
— Muito bem, pessoal. Temos duas propostas. Uma de
Allan, pedindo para cuidar pessoalmente desse caso e outra
de Ritter, para que prossigamos com o plano original. Como
Joe está entrando agora, peço para ele o privilégio de decidir
a sua primeira missão. Sugiro que o apoiemos de todas as
formas e que ele faça a sua justiça. De acordo?
Após ligeira hesitação, todos acabaram levantando o
braço e apoiando a proposta de Allan.
— Isso nos leva a uma regra aqui, Joe. Será sua
primeira e última missão de caráter pessoal. Depois de
terminá-la, terá de encarar as demais missões como um
problema do grupo, entendido?
— Sim, entendi e aceito a proposta — afirmou ele.
***
A calma que havia reinado na cidade por algum tempo
começou pouco a pouco a ser perturbada. Com as gangues
dedicando-se inteiramente ao tráfico e ganhando muito
dinheiro, pequenos marginais começaram a organizar
gangues para assaltar postos de gasolina, lojas de bebida e
supermercados. Outros, mais ousados, escolheram os
bancos. Novos cafetões invadiram as ruas, brigando pelo
controle das mulheres, submetendo as prostitutas a seus
desmandos. Em toda parte, onde houvesse uma
219
possibilidade de dinheiro fácil, surgiam delinquentes
prontos para ocupar o espaço vazio.
Logo os tiroteios começaram a acontecer. As novas
gangues, constituídas de renegados das outras gangues,
perceberam que o tráfico era o melhor negócio de todos e
começaram acontecer escaramuças entre eles. A população
voltou ao medo antigo. A Polícia começou a ter mais
trabalho ainda do que antes.
Alheios a isso, fascinados pelo dinheiro fácil, as
gangues hispânicas e negras contabilizavam os lucros e
gastavam o dinheiro, perdendo a noção de realidade. Após
transferir todo o poder para o filho, Dom Cauzio Luciano
mudou-se para uma mansão em Miami, numa das ilhas
artificiais, onde desfrutava de segurança, conforto e
tranquilidade. Estava ali havia seis semanas, seguindo um
ritual diário todo próprio. Pela manhã, acordava e nadava
um pouco na piscina particular. Depois do desjejum,
caminhava pelo imenso parque ao redor da casa, com vista
para o mar. Após o almoço, dormia. No meio das tarde ia
pescar no cais em frente da casa. Guarda-costas
acompanhavam-no todo o tempo, exceto quando pescava.
Dom Luciano dizia que eles faziam muito barulho e
espantavam os peixes.
Às vezes ele pegava alguma coisa, mas o importante
para ele era ouvir o barulho da água, ver as lanchas que
passavam diante da casa e acenar para as pessoas, como
fazia, naquela tarde, enquanto pescava. Subitamente, um
puxão na linha. Com um sorriso ele esperou, até que a ponta
220
da vara vergasse. Quando isso aconteceu, sorrindo, ele
puxou com força e começou a recolher a linha. Percebeu
que havia muitas bolhas na água.
— Que diabo é isso? — indagou ele, vendo um
homem-rã surgir, agarrado à ponta da linha.
— Dom Luciano? — indagou Joe, levantando a
máscara.
— Sim, e você, quem é?
— Joe Bradford, tira do Sexto Distrito de Nova Iorque.
Ex-tira, aliás, graças a você e ao seu filho.
O velho fez menção de levantar-se. Joe não lhe deu
tempo. Ergueu o arpão e disparou. A seta atravessou o corpo
do velho. Joe puxou-o para dentro da água, recolocou a
máscara e mergulhou, nadando para longe dali.
***
Para Andy Luciano, a morte do pai foi um choque. Por
mais que tentasse entendê-la, não conseguia chegar a
nenhum nome que estivesse por trás daquilo, principalmente
porque seu pai já havia se aposentado. Julgou que só poderia
ser uma vingança de caráter pessoal, envolvendo tudo que
podia para tentar chegar a uma resposta. Naquele dia, após o
sepultamento do pai, ele retornou a seu apartamento. Estava
muito abalado e pusera seus homens nas ruas para tentar
encontrar alguma resposta, enquanto tomava um
comprimido e tentava dormir um pouco.
Valery, sua namorada, caminhou pelo apartamento,
estranhando que os criados não estivessem lá. O telefone
tocou. Ela foi atender.
221
— É do apartamento de Andy Luciano? — indagou
uma voz que ela julgou reconhecer.
— Sim, aqui é Valery. Andy está dormindo agora, não
poderá atender.
— Eu só queria transmitir a ele meus pêsames — disse
o homem, do outro lado, desligando.
Estava num furgão, perto do prédio onde Andy
morava, vestindo roupas da companhia de manutenção de
elevadores e usando uma barba postiça. Junto dele estavam
Allan e mais dois homens, todos empenhados em ajudá-lo.
— É ela! — comentou Joe. — Ela é os olhos da
cidade!
— Do que está falando, afinal? — estranhou Allan.
— Nada, esqueça — descartou ele, após pensar por
instantes.
Seria complicado demais explicar aquilo.
— Ele está lá. Os homens saíram todos e conseguimos
convencer os criados que Andy dera ordem para que
tirassem folga. É com você agora, Joe — falou Ritter.
Joe desceu do furgão, levando uma caixa de
ferramentas. Quando entrou fez um sinal para o porteiro e
foi direto para o elevador social. Pendurou uma placa de
interdição na porta e subiu em seguida até a cobertura.
Travou o elevador, assim que ele parou. A porta abriu-se
para um hall, antes da porta do apartamento. Foi até lá e
testou a fechadura. A porta abriu-se, sem que ele precisasse
arrombá-la. Sacou uma pistola com silenciador e caminhou,
222
atravessando a ampla sala de piso espelhado e obras de arte
espalhadas desordenadamente por toda parte.
— Quem é você? — indagou Valery, assustada,
surpreendendo-o na sala.
Joe olhou para ela e sorriu. Retirou a barba postiça. Ela
o olhava sem reconhecê-lo.
— Você é os olhos da cidade. Eu sou os olhos do
Carrasco! — informou ele.
Por instantes ela ficou perplexa. Depois, ficou ainda
mais assustada. Ia gritar, mas Joe não lhe deu tempo.
Levantou a arma e apertou o gatilho uma vez. A bela atingiu
a testa de Valery, jogando-a contra uma estátua de mármore,
que tombou contra a parede, arrebentando ruidosamente um
espelho de puro cristal. O barulho ficou ecoando no amplo
apartamento. Joe escondeu-se atrás de um sofá. Andy
Luciano chegou em seguida, vestindo apenas cuecas e
meias.
— Demônios, Valery! Estou tentando dormir um
pouco — gritou ele, assim que entrou na sala.
Viu, então, a garota caída, com um buraco na testa e a
parede suja com sangue e miolos. A estátua tombada
refletia-se estranhamente nos cacos do espelho. Os olhos do
gângster encheram-se de pavor e ele olhou ao seu redor. Joe
surgiu a sua frente, encarando-o.
— Quem é você? — indagou Andy.
— Lembra-se de Joe Bradford?
— Não sei quem é você — disse-lhe Andy, num fio de
voz, percebendo a pistola na mão dele.
223
— Matt, meu parceiro, manda-lhe lembranças e espera
vê-lo no inferno — disse, levantado a arma.
— Não! Eu tenho muito dinheiro Posso fazê-lo um
homem rico — quis argumentar Andy, mas nada daquilo
interessava a Joe.
Apontou e apertou o gatilho. A cabeça de Andy
moveu-se violentamente para trás, quando o projétil
atravessou-a, levando cabelos, sangue e miolos para decorar
surrealisticamente a parede atrás dele. Seu corpo caiu
pesadamente para trás. Joe deu a volta e retornou ao
elevador. Recolocou a barba. Quando chegou ao térreo,
alguns homens de Andy Luciano estavam ali, à espera de
um elevador.
— Podem usar este, rapazes. Acabei de consertá-lo —
disse Joe, retirando o aviso, pondo-o na caixa de
ferramentas e saindo tranquilamente.
***
Uma semana depois, o caos voltara ao seio das
gangues. Com a máfia em reestruturação, as gangues
perderam seu fornecedor de drogas e os colombianos e
jamaicanos aproveitaram-se disso para fortalecerem-se, já
que eram os únicos fornecedores. As gangues voltavam
pouco a pouco a disputar pontos de venda. A concorrência
acirrada provocava uma migração dos consumidores de um
para outro lado. Johnny Perez, num rasgo de inteligência,
concluiu que ele e Angus Colúmbia precisavam conversar.
Enquanto os italianos não retornassem com a organização
anterior, estava nas mãos dos dois impedir que aquilo
224
degenerasse numa guerra entre as gangues rivais, com
prejuízos para ambas as partes.
Conseguiu um encontro com Angus. Os dois iriam se
encontrar no cais e, acompanhados apenas de um assessor
cada um, iriam dar uma volta pela baía, enquanto aparavam
as arestas surgidas. Lino Ventura, conselheiro de Dom
Luciano, providenciara a proteção e o barco.
Repentinamente, houve nova trégua, então, que duraria até
que os dois líderes conversassem. Isso se refletiu nas ruas.
Os informantes captaram. Joe ficou sabendo. Seus amigos
também. O que deveria ser secreto tornara-se conhecido
demais.
— Eu digo que devemos continuar com a trégua e,
caso os italianos não possam voltar a nos fornecer de
imediato, que compremos toda a droga dos colombianos e
jamaicanos — ponderou Angus.
A poderosa lancha rasgava as ondas, passando ao largo
da Estátua da Liberdade, rumo a mar aberto. No interior da
luxuosa cabine, os dois homens, acompanhados de seus
assessores, tentavam chegar a um acordo. Lá fora, nos
comandos, não havia ninguém. A tripulação inocente fora
dominada e atirada ao mar com coletes salva-vidas. Joe e
mais dois amigos assumiram o controle. Vestindo um
uniforme, Joe foi sozinho até a cabine e bateu. Um dos
assessores atendeu.
— O senhor Ventura mandou este vídeo com algumas
instruções de Andy antes de morrer. Achou que seus sócios
deveriam ver isso.
225
O capanga levou o DVD para dentro. Joe vestiu um
colete salva-vidas e atirou-se no mar com seus amigos.
Logo atrás vinha uma lancha para recolhê-lo. Enquanto isso,
na cabine, ligavam o televisor e começavam a assistir ao
vídeo. Primeiro surgiram imagens feitas por emissoras de
televisão. Retratavam a loja de bebidas queimando e Joe
sendo posto na maca, com o corpo coberto de sangue.
Depois, eram cenas de um carro em chamas todo destruído,
ardendo no centro da Rua Mayflower.
— Que porra é essa? — indagou Angus.
— Não tenho a menor ideia — respondeu Johnny.
Surgiu na tela o rosto de Joe Bradford.
— Acho que vocês, seus bastardos filhos de uma
cadela, lembram-se de mim, não? Joe Bradford! Meu
parceiro Matt e eu mandamos lembranças. Esperamos que o
inferno seja o castigo que merecem, filhos de uma puta!
Os dois homens ficaram olhando um para o outro. Os
capangas saíram da cabine. Voltaram em seguida,
aterrorizados.
— Não há ninguém no comando. Estamos sozinhos
aqui — falou um deles, assustado e trêmulo.
— Acho que nos pegaram, Angus — falou Johnny,
pateticamente, antes de ver um clarão surgir diante de seus
olhos e lançá-lo na escuridão total que acolheu os pedaços
de seu corpo, quando ele foi atirado ao ar, juntamente com
os outros. O barco desmanchou-se numa bola de fogo.
***
226
Era começo de dia. O último policial cansado havia
deixado o bar. Joe foi até o quadro de avisos e retirou um
recado ao lado do anúncio do Carrasco. Caminhou até o
balcão. Apanhou o telefone e discou. Uma voz cansada e
triste atendeu-o, após algum tempo.
— Você procurou por mim? — indagou.
— Sim, graças a Deus. Você é minha última esperança
de justiça — falou o velho, do outro lado da linha.
Joe ouviu atentamente, enquanto anotava tudo numa
folha de papel. Quando desligou, dobrou a folha e guardou-a
num escaninho secreto do balcão. Debrah surgiu na porta,
com um ar cansado, mas feliz.
— Ei, me dá uma carona? — pediu ela.
— Para onde quiser ir, minha querida — disse ele,
abrindo os braços para recebê-la.
FIM
227

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