IMPACTOS DA GOVERNANÇA ELEITORAL NO EQUADOR, NA

Transcrição

IMPACTOS DA GOVERNANÇA ELEITORAL NO EQUADOR, NA
IMPACTOS DA GOVERNANÇA ELEITORAL NO EQUADOR, NA BOLÍVIA E NA
VENEZUELA
Daniella Cambaúvar1
RESUMO
Este artigo trabalha com o conceito de governança eleitoral, entendido como o
conjunto de instituições e de regras no âmbito das quais o processo eleitoral acontece.
Tem como objetivo principal analisar quais os impactos do modelo de governança
eleitoral adotado pela Bolívia, pelo Equador e pela Venezuela. Parte da premissa de
que o processo eleitoral é um dos aspectos fundamentais para estabilidade
poliárquica, sobretudo em democracias recente. Para tanto, o trabalho deve explorar o
conceito de governança eleitoral, quais são suas dimensões e os modelos comumente
adotados. Descreve também os modelos adotados nesses três países e quais
reformas foram feitas nos últimos anos. Por fim, relaciona a relevância da governança
eleitoral com o tipo de democracia adotada em cada um deles.
PALAVRAS-CHAVE: Governança eleitoral; democracia; Bolívia; Equador; Venezuela.
O processo eleitoral não pode ser entendido enquanto uma mera atividade formal, que
se encerra com um voto nas urnas. Outrossim, deve funcionar como um método de
renovação de lideranças efetivo – um dos pilares dos regimes democráticos.
Entretanto, para que as eleições possam produzir impactos no sistema político, é
preciso que tenha algumas características, tais como periodicidade, credibilidade,
transparência e equidade entre os competidores. É por essa razão que a governança
eleitoral – definida, em síntese, como o conjunto de instituições, normas, atividades no
âmbito das quais as eleições acontecem – tem cada vez mais importância. Isto
porque, independentemente do conceito de democracia usado como parâmetro, um de
seus requisitos é a realização periódica de eleições de qualidade, cujos resultados são
reconhecidos pelos competidores. Isoladamente, eleições eficazes não são capazes
de garantir a qualidade de regimes democráticos, mas sabe-se que a estabilidade
política se torna improvável em um contexto no qual as regras das eleições ou seus
1
Mestre em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC (Universidade Federal do ABC) e
estudante de pós-graduação Latu Sensu em Ciência Política pela FESP-SP (Fundação Escola
de Sociologia e Política de São Paulo). E-mail: [email protected]
1
resultados não são aceitos pelos participantes. Ou, ainda, quando a credibilidade é
ameaçada por denúncias de fraude que não são apuradas conforme a Constituição ou
a legislação eleitoral determinam. Quando a governança eleitoral é ineficiente,
necessariamente traz efeitos ruins. Nesse contexto, conforme afirma Sartori, eleições
competitivas são capazes de produzir democracia e estimular a renovação de
lideranças, visto que “o poder de eleger resulta, como num processo de
retroalimentação, na atenção dos eleitos com relação ao poder de seus eleitores”
(1994, p. 209).
O processo eleitoral é importante também para o controle de políticos,
burocratas e dirigentes públicos, e considerado, portanto, fundamental para o
funcionamento da democracia, pois é nele que se dá a primeira etapa do
accountability.
Usualmente, as atividades da governança eleitoral são realizadas por mais de
uma instituição, dependentes ou não de um dos poderes do Estado, englobando
diferentes níveis de atividades. Faz parte da governança eleitoral desde a elaboração
das regras segundo as quais a competição acontecerá, até o cumprimento dessas
regras, assim como a solução de eventuais litígios. Tema recente nas pesquisas,
tornou-se uma variável negligenciada na literatura. Os trabalhos que estudavam
processos eleitorais se dedicavam ao estudo de sistemas eleitorais, que tem outras
finalidades.
Nas palavras de Mozaffar e Schedler (2002), autores pioneiros dessa temática,
“paradoxalmente, o tema não é foco das atenções quando produz regularmente boas
eleições, mas quando ocasionalmente resulta em eleições ruins”. A premissa é de que
uma governança eleitoral adequada, conduzida por instituições adequadas, pode
garantir a credibilidade das eleições e, por consequência, a estabilidade democrática
(SCHEDLER, 2002; HARTLYN, MCCOY & MUSTILLO, 2008; MARCHETTI, 2008).
A seguir, este texto fará uma análise da estrutura da governança eleitoral na
Bolívia, no Equador e na Venezuela, centrando-se nas transformações pelas quais
suas estruturas passaram e nos impactos que os modelos adotados produzem.
Antes de abordar os quadros boliviano, equatoriano e venezuelano, é
necessário apresentar os critérios empregados usualmente para classificá-la. Em
seguida, separadamente, serão mostrados os casos sul-americanos.
1 DIMENSÕES DA GOVERNANÇA ELEITORAL
Os autores Mozaffar e Schedler definiram governança eleitoral pela primeira
vez na publicação International Political Science Review, em 2002, como “um amplo
2
conjunto de atividades que criam e mantêm o quadro institucional no qual votação e
competição eleitoral acontecem” (2002, p. 7). A partir de então, foram estabelecidos
alguns critérios de classificação da governança eleitoral. Para qualificá-la e tentar
mensurar seus efeitos, é necessário antes descrever como se dão suas atividades,
que ocorrem em três níveis: rule making, rule application e rule adjucation.
O nível de rule making consiste na elaboração das regras da disputa. São
demarcados desde tamanho dos distritos, regras de contagem e de distribuição dos
votos (sistema eleitoral adotado), bem como o acesso à mídia e ao financiamento das
campanhas. Envolve o desenho das instituições responsáveis por definir a estrutura
das eleições. Em sua maior parte, as regras constam na Constituição e na legislação
eleitoral. Na dimensão rule application, acontece a implementação do jogo: registro
dos partidos, candidatos e eleitores, distribuição das urnas, acesso aos centros de
votação. De acordo com Marchetti (2008), esta é a etapa da “administração do jogo
eleitoral”, mais suscetível a erros por conta do grande número de pessoas envolvidas.
Segundo Mozaffar e Schedler, no rule application são três os objetivos principais:
eficiência administrativa, neutralidade política e accountability. Não menos importante,
o rule adjucation corresponde à etapa em que são resolvidas as eventuais disputas
decorrentes do processo eleitoral, tais como denúncias de fraude e pedido de
recontagem dos votos.
Centrando-se nessas atividades, a literatura produziu dois critérios de
classificação, usados concomitantemente. Um deles diz respeito à posição
institucional do organismo eleitoral (OE) em relação aos poderes do Estado, enquanto
o outro segue o vínculo institucional dos membros desses órgãos.
A classificação de acordo com o vínculo institucional diz respeito às
características dos membros dos OEs: se têm vínculos com partidos políticos, com o
Estado ou se não possuem vínculos partidários. Podem ser “de carreira” (membros
são recrutados dentre os servidores vinculados ao Executivo); “partidários” (indicação
pela existência desse vínculo com algum partido); “especializados” (membros
escolhidos por critérios não partidários, isto é, a partir critérios que proíbem qualquer
ligação partidária); ou ainda “combinados” (o OE é composto tanto por membros
indicados por partidos, como por membros não partidários).
Indicando o tipo de ligação formal com o Estado, a posição institucional pode
apontar que um OE é “conexo” se for ligado ao Poder Executivo; “dissociado” caso
essa ligação não exista. Há ainda os tipos “misto”, no caso de existirem dois órgãos e
3
um deles apenas estar vinculado ao Executivo; e “duplamente dissociado”, isto é, há
duas entidades, ambas sem ligação formal com o Executivo2.
O foco das reformas no âmbito da governança eleitoral tem visado à autonomia
e à credibilidade. Isso porque, de acordo com Mozaffar e Schedler, “estabelecer
organismos eleitorais independentes, de fato, tornou-se uma norma internacional
prescrita, condição sine qua non para a credibilidade eleitoral” (2002, p. 15).
Após pesquisares a importância da governança eleitoral na América Latina,
Hartlyn, McCoy e Mustillo afirmam que o tipo de organismo que administra o processo
tem um impacto significativo sobre a qualidade das eleições. Argumentam também ser
preferível um “modelo de autonomia profissional, sobretudo em um contexto de
polarização política”:
É frequente que as organizações ocidentais instem os países a
estabelecer comissões eleitorais permanentes, como um modo
de melhorar as eleições. Considera-se que essas comissões
eleitorais consolidadas sejam de particular importância em
situações nas quais o Estado tem pouca capacidade
administrativa e há um alto grau de desconfiança entre os
atores políticos, com poucos ou nenhum mecanismo alternativo
que possa contribuir para garantir eleições honestas e
imparciais. Espera-se que essas comissões e, em alguns
casos, as instituições judiciais associadas a elas, sejam
capazes de realizar complexas atividades administrativas e
regulamentárias, manter relações equilibradas com os partidos
políticos,
projetar
uma
imagem
de
neutralidade,
profissionalismo e eficiência e decidir com justiça e igualdade
as disputas que surjam (2009, p. 21).
Os autores concluíram que organismos eleitorais dissociados e especializados
não são uma condição necessária para a existência de “eleições aceitáveis em
democracias emergentes” (2009, p. 32), e que há casos nos quais é suficiente que
2
A classificação de feita por Mozaffar e Schedler segue as mesmas características de
catalogação para posição institucional. Usa, no entanto, uma nomenclatura distinta. Para se
referir aos OEs dissociados, usa o termo “independente”. Para os conexos, “governamental”.
Como parte do esforço para contribuir com o debate sobre novos critérios de análise da
governança, este trabalho sugere a substituição das palavras originais. A justificativa é que
“independente” pode conduzir a análise por um caminho falacioso: o fato de não estar ligado
formalmente ao Poder Executivo não significa, necessariamente, ter independência. Da mesma
forma, o vínculo com o governo não indica consequentemente falta de autonomia. A
denominação “independente” automaticamente pressupõe que os demais tipos de OEs não
são independentes. Vale ressaltar ainda a existência de estudos comprovando que o êxito do
desempenho do organismo eleitoral depende não dessa característica, mas de um contexto
histórico institucional.
4
essas instituições sejam integradas por representantes de diferentes partidos, ou por
uma mistura entre pessoas independentes e representantes dos partidos.
Estudos realizados depois de 2002, como por exemplo o de Hartlyn, McCoy e
Mustillo (2009), constataram que países que promoveram nos últimos anos reformas
em seu modelo de governança eleitoral buscaram uma estrutura baseada em
organismos eleitorais cuja posição institucional é dissociada e os vínculos são
especializados. Entre os países que passaram por transformações, estão Bolívia,
Equador e Venezuela.
Os três se destacam entre os demais no continente porque tiveram
Constituições promulgadas recentemente, em 2009, em 2008 e em 1999,
respectivamente. Com os novos textos, seus códigos eleitorais foram completamente
reformulados, bem como suas estruturas de governança eleitoral. Sobressaem-se
ainda porque seus governantes, críticos à democracia liberal, buscam um caminho
alternativo entre o modelo liberal e a democracia participativa. Procuram por um
modelo de governança capaz de produzir eleições cujos resultados sejam
incontestáveis. É possível, então, questionar: quais são os impactos produzidos pela
governança eleitoral nesses contextos?
2 GOVERNANÇA ELEITORAL NA BOLÍVIA
Ao promulgar sua nova Constituição, em 2009, a Bolívia promoveu uma
modificação na ordem jurídica do Estado, declarando o país um “Estado Social de
Direito Plurinacional e Comunitário”. Visando a uma aproximação de um modelo
participativo, o novo texto estabeleceu direitos específicos de controle sobre a própria
jurisdição a populações de origem indígena e camponesa para que esses grupos
tivessem mais autonomia, por exemplo, por meio da escolha de autoridades próprias.
Determinou também a equivalência entre a justiça tradicional indígena e a justiça
ordinária do país. Comunidades indígenas passaram a ter suas próprias instituições,
com valor de um tribunal, composto por juízes eleitos pelos próprios membros dessa
comunidade. Tais decisões desses tribunais não podem ser revisadas pela justiça
tradicional.
Ao mesmo tempo em que buscava ampliar os níveis de participação, a Bolívia
procurou fortalecer sua governança eleitoral. Neste sentido, a principal medida foi a
criação do Órgão Eleitoral Plurinacional, um quarto poder dentro do Estado, paralelo
ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário, sem qualquer relação de dependência.
Isto é, possui autonomia funcional e, sob esse poder, estão organizadas as outras
instituições envolvidas na competição político-eleitoral.
5
O órgão máximo do Poder Eleitoral é o Supremo Tribunal Eleitoral (STE). Sob
o STE, estão organizados nove Tribunais Eleitorais Departamentais; depois, os
Juizados Eleitorais, as Mesas de votação e os Notários Eleitorais. A função, atribuição
e jurisdição de cada um desses níveis estão definidas pela Constituição e pela
legislação eleitoral. O STE representa o nível máximo e possui jurisdição nacional.
Este o órgão responsável por organizar, administrar e executar os processos
eleitorais, além de proclamar seus resultados, por organizar e administrar o Registro
Civil e o Padrão Eleitoral – centralizando, portanto, o nível rule application. Deve ser a
instituição responsável por garantir que a eleição aconteça efetivamente.
Para ser membro do STE, é necessário cumprir as “condições gerais de
acesso ao serviço público”, ter pelo menos trinta anos de idade e falar pelo menos dois
idiomas oficiais. É preciso ter cursado o Ensino Superior há pelo menos cinco anos e
não ser militante de nenhuma organização política, seja partido ou sindicato,
federação. Do total de membros, pelo menos três devem ser necessariamente
mulheres. O agente não pode ter sido dirigente ou candidato de nenhum partido nos
cinco anos anteriores e não pode ser parte da função pública, com exceção da
docência universitária. A Assembleia Legislativa, por dois terços de votos dos
membros presentes, escolherá seis dos membros do STE e o chefe do Executivo
escolherá o outro, que será o presidente do STE. Para os tribunais regionais, o
mecanismo de escolha é semelhante àquele usado em nível nacional.
A Bolívia optou, então, por um modelo de governança eleitoral em que a
posição institucional é dissociada e o vínculo institucional é especializado. Isso porque,
embora os membros dos OEs sejam, em parte, escolhidos pelos poderes Legislativo e
Executivo, estão proibidos de ter vínculo partidário formal ou cargos no governo.
Com a vigência do Órgão Eleitoral Plurinacional a partir de 2010, a CNE (Corte
Nacional Eleitoral), até então organismo máximo da governança eleitoral naquele país,
deixou de existir. Havia sido criada em 1956, quando aconteceu a primeira eleição
com sufrágio universal na Bolívia. Foram convocadas eleições naquele ano para
escolher o presidente e a formação do Parlamento. Houve eleições em 1960 e em
1964, quando um golpe de Estado iniciou um período de rupturas no processo
democrático, no qual não houve garantia de periodicidade na realização de eleições,
tampouco de transparência neste processo.
Em 1966, houve eleições, mas com restrição de participação partidária. Foram
as últimas organizadas pela CNE. A partir de então, até 1977, aconteceu uma série de
golpes de Estado. Em 1978, o governo militar convocou eleições presidenciais,
iniciando assim o processo de transição democrática.
6
A segunda etapa da história da CNE se iniciou em 1985, sete anos depois de
iniciada a abertura, e se estendeu até 1991, quando o órgão passou a desenvolver
suas atividades de forma constante, sem interrupções. Ainda assim, apesar de se
tratar de um período de transição democrática, segundo Salvador Romero Ballivián,
havia falta de autonomia no processo eleitoral porque “os partidos o controlaram
provocando dúvidas sobre a legitimidade dos resultados” (2009, p. 77).
Ao longo do período de redemocratização, a CNE passou por uma mudança
significativa em sua composição, segundo Ballivián, mas as suas funções ainda eram
controladas pelos partidos e não havia autonomia para contestação dos resultados.
A composição da Corte foi alterada mais de uma vez entre 1956 e 2009. No
final, a legislação determinava sete vocais na CNE: quatro deles nomeados (um pelo
Senado, um pela Câmara dos Deputados, outro pela Corte Suprema de Justiça com
eleição por maioria simples e um pelo Executivo), enquanto três eram delegados pelos
partidos que tivessem a maior quantidade de votos nas eleições gerais anteriores. A
única regra é que esses três não podiam ter o mesmo vínculo partidário dos quatro
outros escolhidos.
A partir de 1990, as lideranças políticas bolivianas acordaram a formação de
um organismo autenticamente imparcial e autônomo, exigindo a realização de eleições
incontestáveis que assegurassem legitimidade às autoridades eleitas. O inconveniente
é que, no período entre 2002 e 2006, a Bolívia atravessou uma crise institucional
fazendo com que o país tivesse cinco presidentes em cinco anos (Hugo Banzer, 19972001; Jorge Quiroga, 2001-2002; Gonzalo Sánchez de Lozada, 2002- 2003; Carlos
Mesa, 2003-2005, e Eduardo Rodríguez Veltzé, 2005-2006).
A trajetória da CNE era marcada por interrupções em seu funcionamento e
estava desgastada pela instabilidade política dos anos 2000, comprometendo, assim,
sua credibilidade. Em 2009, com as reformas, o objetivo era chegar a um modelo de
governança eleitoral que outorgasse credibilidade ao processo eleitoral e pudesse,
portanto, oferecer legitimidade aos governantes eleitos. Uma indicação desse caminho
é que, durante o último ano de operação da CNE, também em 2009, foi acrescentada
ao padrão eleitoral a identificação biométrica. A identificação do eleitor passou a ser
feita não apenas pela foto mais documento de identidade, mas também pelas
impressões digitais. Assim, seriam eliminadas
Com a reformulação da governança eleitoral, a principal alteração foi a criação
de um Poder Eleitoral, em tese, dotado de autonomia. Em relação à equidade de
competição entre os candidatos, o Estado procurou, segundo a Constituição, através
dos meios de comunicação, garantir promoção eleitoral igualitária entre todas as
candidaturas. E está proibida a contratação de publicidade na mídia, bem como o uso
7
de recursos e de infraestrutura estatais, assim como a publicidade governamental, em
todos os níveis de governo, para fins de campanha eleitoral. Críticos alegam que tais
medidas são ineficientes, haja vista a dificuldade de fiscalizar essas regras. Entretanto,
o que pode se considerar é que existe uma tentativa institucionalizada de estabelecer
um patamar de igualdade.
3 GOVERNANÇA ELEITORAL NO EQUADOR
A Constituição de 1906, a primeira do século XX e a décima segunda de sua
história,
define o Equador como um Estado que “adota a forma de governo
republicana, representativa e democrática”, distribuído em três Poderes: Legislativo,
Executivo e Judiciário. A Função Eleitoral, instituída em 2008, ainda não existia.
Tampouco havia um organismo responsável pela governança eleitoral. Constava
apenas nos Artigos 30 e 31 que “haverá eleições diretas e indiretas, nos termos da
Constituição e das leis”, e que “para ser eleitor é preciso ser cidadão em exercício e
reunir as demais condições que, nos respectivos casos, as leis determinam”. Aquele
texto estava se referindo à Lei de Eleições, elaborada pela primeira vez em 18303, e
reformada diversas vezes nos anos seguintes.
A governança eleitoral no Equador tinha inicialmente dois fatores: a existência
de um processo eleitoral e algumas regras acerca de sua realização. Sua estrutura se
tornou mais robusta ao longo do século XX, à medida que se reformou a Lei de
Eleições e foram elaboradas novas Constituições. A ausência de uma instituição
responsável pela aplicação das regras e resolução de litígios se manteve até 1946,
3
Em 1830, a votação era feita de maneira indireta e estava restrita a um
sistema de eleitores composto por “cidadãos equatorianos”: homens com mais
de 25 anos detentores de renda anual superior a 200 pesos. O voto foi se
universalizando ao longo das reformas na legislação eleitoral dos séculos XIX e
XX. Em 1869, o quesito renda desapareceu. Os requisitos variavam de uma
reforma para outra: ora era necessário ser católico, ora ser casado. Em 1906, o
voto é universalizado para equatorianos com mais de 21 anos. A
obrigatoriedade
8
quando foram criados o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), de jurisdição nacional, e os
tribunais eleitorais regionais.
O TSE, vigente desde sua criação até 2008, era composto por um ministro da
Corte Suprema de Justiça, designado pela própria Corte; um membro do Tribunal de
Garantias Constitucionais eleito pelo próprio Tribunal; dois cidadãos escolhidos pelo
Congresso e três representantes das tendências políticas, nomeados, na forma
estabelecida pela lei: um pelos partidos políticos de direita, um pelos de centro e um
pelos de esquerda. Para fazer parte do Tribunal, era necessário ser cidadão
equatoriano e ter pelo menos 25 anos. As funções não eram remuneradas, e o
mandato tinha duração de dois anos. Essa era uma tarefa obrigatória; uma vez
escolhido, o cidadão não podia se recusar a exercê-la. Suas atribuições eram
regulamentar e fiscalizar eleições, além de dar as instruções para sua realização,
resolver as queixas apresentadas e impor as sanções legais e efetuar a contagem das
atas. É possível considerar, portanto, que o extinto TSE centralizava os três níveis da
governança eleitoral: rule making – na medida em que ditava parte das regras de
realização das eleições – rule application e rule adjucation.
Apesar de o país ter tido outras Constituições ao longo dos anos seguintes –
foram feitas, ao todo, sete durante o século XIX – a governança eleitoral passou por
poucas transformações. A estrutura do TSE não foi alterada. As modificações
afetaram mais o sistema eleitoral equatoriano e, com isso, foi ampliado o direito de
participação. O voto passou a ser obrigatório, “como dever e direito” para homens e
mulheres (até então era obrigatório apenas para homens que soubessem ler) e
secreto, e as eleições se tornaram periódicas – esses aspectos nem sequer haviam
sido mencionados nos textos anteriores ao de 1967. O recurso do plebiscito apareceu
pela primeira vez naquele ano. Outra mudança foi a especificação das regras dos
processos eleitorais. Naquele período, apesar da universalização do sufrágio, a
participação dos partidos políticos na disputa era restrita, pois o TSE precisava
aprovar a existência legal de um partido para que pudesse apresentar seus
candidatos. Para ser legalizado, segundo consta no Artigo 38, era preciso ter “um
programa de ação política em consonância com o sistema democrático”.
A prática do rule making, com a Constituição de 1967, foi deixando de
pertencer ao TSE. Em 1968, a Lei de Eleições deixou a última instância da resolução
de possíveis conflitos para o TSE, porém, ainda reservava ao Congresso Nacional a
tarefa de recontar os votos, se necessário. Nesse período, houve interrupção na
realização das eleições: em 1972, um golpe militar interrompeu a ordem democrática,
e o TSE voltou a funcionar apenas em 1979.
9
Em 1979, uma nova Constituição, elaborada como preparação para o retorno à
democracia, em um movimento que ficaria conhecido como “Plano de Reestruturação
Jurídica do Estado”, tornou o voto obrigatório para equatorianos com mais de 18 anos,
homens e mulheres, permanecendo facultativo para analfabetos. Em 1994, foi
permitida a participação de candidatos independentes, isto é, sem filiação partidária,
colocando fim à obrigatoriedade da aprovação do TSE para a legalização da legenda.
Com a Constituição de 2008, a governança eleitoral foi reformulada. Novas
instituições foram criadas e o TSE, bem como os tribunais eleitorais regionais, deixou
de existir. O método de seleção dos novos membros também mudou. Com isso, a
representação partidária dentro do organismo eleitoral deixou de existir. Essa era uma
característica mantida desde 1946 e que suscitava controvérsias, principalmente nos
últimos anos (PACHANO, S. 2008). Os argumentos contrários questionavam a
capacidade de uma instituição de fiscalizar e julgar a conduta de partidos sendo
composta por representantes de algumas dessas organizações políticas.
Em 2008, da mesma maneira como aconteceu na Venezuela, foi criado um
poder, paralelo ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário, para representar a função
eleitoral. Dois passaram a ser os órgãos máximos da governança eleitoral no Equador
– o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) e o Tribunal Contencioso Eleitoral (TCE).
O CNE é constituído por cinco vocais eleitos por meio de concurso realizado
pelo Conselho de Participação Cidadã e de Controle Social para exercer um mandato
de seis anos. Metade do grupo dos vocais é renovada a cada três anos. Entre eles, é
eleito um presidente e um vice. O CNE possui autonomia financeira e administrativa.
Sua tarefa é organizar as eleições e fiscalizar o cumprimento da legislação eleitoral.
Possui autonomia para punir partidos e candidatos que infrinjam as normas. O CNE
conta com 24 delegações provinciais – uma em cada província – e se define como
“uma instituição eleitoral posicionada como referente nos âmbitos nacional e
internacional, que inova continuamente seus processos com a finalidade de consolidar
a democracia representativa, direta e comunitária”.
Já o Tribunal Contencioso Eleitoral funciona como uma justiça eleitoral, sendo
um órgão encarregado de administrar possíveis conflitos. Entre suas tarefas está
controlar os gastos eleitorais. É formado por cinco membros principais com mandato
de seis anos de duração. São renovados parcialmente a cada três: dois membros na
primeira ocasião, três na segunda, e assim sucessivamente. Há cinco suplentes,
eleitos com os principais. Presidente e vice são escolhidos entre os membros
principais e têm mandato de três anos.
10
Para ser membro do TCE, é preciso ter cidadania equatoriana e ter título
(legalmente reconhecido no país) de terceiro nível em Direito. É necessário ainda ter
exercido a profissão por no mínimo dez anos.
Sobre o vínculo institucional, a Constituição de 2008 menciona a seleção dos
membros por concurso, mas não proíbe expressamente que os membros tenham
vínculo com partidos ou outras organizações políticas. No caso dos membros do TCE,
também não há essa proibição, mas eles precisam ser, de fato, especializados. Na
Bolívia e na Venezuela, a nomenclatura “especializado” é utilizada para se referir ao
vínculo institucional dos membros dos OEs por eles estarem proibidos de ter filiação.
No Equador, para prestar concurso, é preciso ter formação em direito e ter exercido a
profissão por pelo menos dez anos (como docente, advogado ou juiz). Eles podem até
concorrer a outros cargos eletivos, mas, para isso, precisam renunciar ao cargo no
TCE seis meses antes da data da votação.
Diante de um histórico de inúmeras reformas na legislação eleitoral e
alterações constitucionais, o texto de 2008, por meio do Artigo 117, determina que
“está proibida a realização de reformas legais em matéria eleitoral durante o ano
anterior à realização de eleições”.
4 GOVERNANÇA ELEITORAL NA VENEZUELA
A Venezuela se sobressai entre seus vizinhos por sua tentativa de escapar ao
modelo de democracia liberal, evitando uma via revolucionária que culmine em
derramamento de sangue e conciliando mecanismos de participação popular. A
Venezuela se destaca também por, ao contrário da Bolívia e do Brasil, não ter
passado por ditaduras depois da década de 1960, como prevenção à influência do
socialismo no contexto de Guerra Fria. Sua última ditadura terminou em 1958, com a
realização de eleições periodicamente. Até então, o país seguia o modelo
essencialmente liberal. Nessa trajetória, definida pelo ex-presidente Hugo Chávez
(1999-2013) como “Socialismo do século XXI”, privilegiou-se a realização de eleições.
Nas palavras de Pedro Arrelan (2013), naquele momento, foram “criadas formas de
participação que transcendem a democracia representativa em direção a uma
democracia participativa e protagonista” (p. 13).
O modelo de governança eleitoral adotado na Venezuela começou a se
conformar a partir de 1999, no primeiro ano do governo Chávez, com a nova
Constituição. Sua principal característica foi a criação de um Poder Eleitoral – como
11
ocorreria dez anos depois na Bolívia – paralelo ao Executivo, ao Legislativo e ao
Judiciário.
O órgão máximo da governança eleitoral passou a ser o CNE (Conselho
Nacional Eleitoral), em substituição ao CSE (Conselho Supremo Eleitoral), criado em
1936. A principal característica que distingue o CNE do antigo CSE é a composição de
seus membros. Numa tentativa de despartidarizar o órgão, determinou-se que nenhum
partido teria representação em sua estrutura ou funcionamento.
O CNE é composto por cinco membros, denominados “reitores” pela legislação
eleitoral. Conforme estabelece a Constituição, nenhum candidato a integrar o CNE
pode ter vínculo com grupos políticos. Os membros são selecionados por um “Comitê
de Postulações Eleitorais”, liderado por onze deputados da Assembleia Nacional e
outros dez membros de outros setores. De acordo com a Carta Magna, a seleção deve
priorizar três candidatos representantes da sociedade civil (com seis suplentes), um do
Conselho das Faculdades de Ciências Jurídicas das universidades públicas nacionais
(com dois suplentes) e um do Poder Cidadão (com dois suplentes). A resolução de
eventuais disputas está sob a responsabilidade da Sala Eleitoral do Supremo Tribunal
de Justiça. De acordo com os critérios de classificação dos organismos eleitorais, é
possível situar o modelo venezuelano como dissociado e especializado. No caso da
Posição Institucional, tal classificação se justifica porque a governança eleitoral, em
seus diferentes níveis, não possui ligação com o Poder Executivo. Sua governança
eleitoral é, portanto, neste aspecto, dissociada. Desde 1999, numa tentativa de
garantir sua autonomia, tornou-se um poder autônomo dentro do Estado. Quanto ao
Vínculo Institucional, a classificação “especializado” se justifica porque nenhum de
seus membros pode manter vínculo com partidos políticos. Até 2007, o modelo vigente
era o “combinado”, já que uma parcela dos membros tinha ligações com partidos
políticos, enquanto a outra não.
Dezesseis anos depois de sua implementação do CNE, a autonomia dos OEs
venezuelanos continua a ser um dos tópicos da disputa entre governistas e
oposicionistas. Se, por um lado, o governo nega exercer qualquer influência nessas
instituições, bem como a ocorrência de fraudes, por outro, parte da oposição hesita em
reconhecer os resultados das urnas. A entidade reflete uma polarização existente na
política venezuelana: quando a oposição sai vitoriosa, o governo diz que houve fraude;
quando o governo ganha, a oposição diz que houve fraude. A oposição denuncia a
existência de listas que perseguem servidores públicos, e diz que a identificação
biométrica é utilizada com a finalidade de “perseguir o eleitor”.
Na Venezuela, destaca-se o esforço em produzir um processo eleitoral que
minimize a ocorrência de fraudes. A vitrine do CNE é seu sistema de votação, com um
12
processo automatizado e passível de ser auditado em todas as suas fases. Possui
identificação biométrica por meio da impressão digital e, em 2004, se tornou o primeiro
do mundo a realizar uma eleição nacional com máquinas que imprimem o
comprovante do voto. Todas as versões impressas dos votos são depositadas pelos
eleitores em uma urna de segurança. Ao final do processo, são verificadas,
obrigatoriamente, 54% delas, que são escolhidas mediante um sorteio incluindo todo o
território nacional venezuelano.
A preocupação em garantir boas eleições não se dá por acaso na Venezuela.
O país esteve livre das interrupções autoritárias que atingiram os países vizinhos entre
as décadas de 1960, 1970 e 1980 – sua última ditadura militar se encerrou em 1958 –,
mas atravessou momentos de instabilidade. Dois exemplos são as tentativas de golpe
de Estado perpetradas em 1992 e em 2002. A polarização das preferências políticas
se intensificou a partir de 1998, por conta da primeira vitória eleitoral de Chávez, que
colocou fim a um sistema bipartidarista de alternância de poder entre os partidos Ação
Democrática e Copei (Comitê de Organização Política Eleitoral Independente).
Com a notícia de retorno da doença de Chávez4, que estava então na
presidência pela terceira vez, e com a iminência de sua morte, a Venezuela
novamente passou por uma fase de incertezas. O ápice das tensões aconteceu nas
eleições presidenciais de 2013. Em 14 de abril, os venezuelanos escolheram, entre
sete nomes, o novo presidente, depois de anunciada a morte de Chávez em 5 de
março. Em 15 de abril, o CNE proclamou oficialmente vitorioso o candidato oficialista,
Nicolás Maduro, com 7.563.747 votos (50,75%). Derrotado por uma diferença de
265.256 votos, o oposicionista Henrique Capriles se negou a reconhecer o resultado,
segundo o qual ele teve 7.298.491 votos (48,97% do total). Em meio a protestos que
culminaram com a morte de sete pessoas, Capriles solicitou formalmente a apuração
do resultado em 17 de abril. O CNE analisou o pedido por dois dias e anunciou que
faria uma auditoria, que consistiu em contar todas as cédulas de papel depositadas
pelos eleitores depois do voto na urna eletrônica e comparar o número obtido nas
urnas, anunciado no dia da eleição. Em 11 de junho, por fim, a presidente do Poder
Eleitoral, Tibisay Lucena, anunciou o fim do processo de autoria. Concluíram que, dos
comprovantes de votação conferidos, 4.596.432 não tinham discrepância com o voto
computado na urna eletrônica. Esse número representa 99,98%.
4
Desde junho de 2011, Chávez passava pelo tratamento de um tumor maligno. Em abril
de 2012, anunciou estar curado. Em dezembro, porém, ele viajou a Cuba para fazer sua quarta
cirurgia, indicando que a doença havia voltado.
13
É preciso considerar ainda que as regras da competição eleitoral venezuelana
contribuem para essa polarização porque separam, no calendário eleitoral, a data da
escolha dos diferentes cargos. Como resultado, multiplicam-se os momentos em que a
política do país está mediada por processos eleitorais. Os venezuelanos votam para
escolher presidente, governador, membros da Assembleia, prefeito, “consejales” e
representantes paroquiais (essas três últimas são realizadas juntas com as eleições
municipais). Há eleições quase todos os anos e, em alguns casos, mais de um pleito
no mesmo ano, motivando um debate político constante provocado pelas campanhas
eleitorais, e submetendo o eleitorado à ameaça iminente de derrota ou de vitória e
alimentando a radicalização das posições políticas.
No caso venezuelano, em que existe um ambiente de polarização das
preferências políticas que afeta a governabilidade, o objetivo foi construir um sistema
eleitoral que servisse como garantia, à prova de fraudes e de contestação.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante dos três casos apresentados, uma das questões que surge diz respeito
às transformações pelas quais a governança eleitoral passou em sua história recente
até chegar ao modelo adotado: quais foram as motivações dessas mudanças? E
ainda: O que essas reformas buscaram? Quais foram os aspectos mais alterados
entre os três níveis de atividade da governança eleitoral? Existe uma perspectiva
comum entre as transformações nesses três países?
Bolívia, Equador e Venezuela têm uma série de aspectos semelhantes no tipo
de democracia que buscam. Isso se expressa também em pontos comuns na
governança eleitoral. Os três países promulgaram novas Constituições recentemente –
em 2009, em 2008 e em 1999, respectivamente – e optaram por um modelo
alternativo à democracia liberal. No caso da Bolívia, um Estado Unitário Social de
Direito Plurinacional Comunitário; no Equador, um Estado constitucional de direitos e
justiça, social e democrático; e um Estado Social de Direito e de Justiça na Venezuela.
As mudanças que essas novas cartas magnas tentaram seguir apontam na direção do
que o ex-presidente venezuelano Hugo Chávez denominou “Socialismo do Século
XXI”. O que esses três países têm em comum é um projeto político que, em síntese,
visa chegar ao socialismo sem abdicar da democracia, rechaçando o caminho
revolucionário – pelo menos em sua definição mais radical. Esses regimes, embora
apoiados na crítica às democracias liberais, não deixaram para trás, tampouco
relegaram, a realização de eleições – característica típica das democracias liberais.
Qual é, então, a função da governança eleitoral nesses três países em especial? Qual
14
é o papel da governança eleitoral diante da contestação pública enfrentada por esses
países quando tentam caminhar em direção a uma poliarquia?
Em primeiro lugar, é preciso considerar uma evidência constatada nos estudos
de caso: um dos objetivos das reformas realizadas é fortalecer a governança eleitoral.
As mudanças constitucionais reforçaram a realização dos processos eleitorais
enquanto pilares de seus regimes. Nos três casos, foi criado um quarto Poder, dotado
de função exclusivamente eleitoral, com igual hierarquia em relação ao Executivo, ao
Legislativo e ao Judiciário.
Pode-se afirmar ainda que Bolívia, Equador e Venezuela buscaram um
caminho muito semelhante. No marco de suas reformas, criaram uma governança
eleitoral e anularam completamente as estruturas anteriores. As antigas OEs, nos três
casos, haviam sido instituídas na primeira metade do século XX, tiveram seu
funcionamento
interrompido
durante
ditaduras
militares,
atravessaram
crises
institucionais e, especialmente na Bolívia e na Venezuela, estiveram no âmago de
denúncias de fraude eleitoral. Novas estruturas foram elaboradas, portanto, com a
finalidade de abandonar possíveis vínculos com uma trajetória dotada de hiatos
antidemocráticos para recuperar a credibilidade e construir um modelo legítimo.
Na Venezuela, é possível considerar que as reformas em sua governança
eleitoral, feitas a partir do final da década de 1990, tiveram como referência um
modelo cujo órgão máximo deve estar dotado de autonomia, livre da influência dos
partidos e do Executivo. No passado, os partidos com mais representatividade no
Legislativo conseguiam ter membros dentro dos OEs. Essa era uma característica
controversa, porque se questionava a confiabilidade de um funcionário quando estão
em voga os interesses do partido ao qual ele está filiado. Foi alterado, então, o vínculo
institucional dos OEs, de “combinado” para “especializado”. Ainda assim, é improvável
que se atinja o grau de isolamento partidário pretendido, na medida em que esses
funcionários seguem exercendo um dever não apenas fundamental, mas inevitável:
são eleitores, portanto possuem suas preferências partidárias. Sobressaem-se as
modificações feitas nas urnas com a finalidade de evitar fraudes (e, principalmente,
acusações de fraude). Além de usar a urna eletrônica, os venezuelanos votam em
uma cédula de papel, depositada em uma urna lacrada na seção eleitoral. Também
assinam uma ata para comprovar sua presença, fazem identificação biométrica e, ao
final do ato, embebem o dedo em uma tinta indelével, cujo potencial de resistência a
substâncias químicas como álcool, acetona e querosene é periodicamente aprovado
por todos os partidos depois da realização de um teste público.
As reformas feitas na Venezuela foram, sobretudo, fruto da ruptura institucional
levada a cabo com a chegada de Chávez à presidência, colocando fim ao
15
bipartidarismo de facto vigente desde o final da ditadura em 1958. Em um ambiente de
polarização das preferências políticas – e também de uma tentativa de golpe, em 11
de abril de 2002 –, o objetivo foi construir um sistema eleitoral à prova de fraudes e de
contestação e, assim, combinar um novo pacto, alinhando mecanismos mais
participativos a instrumentos mais rígidos de garantia da competição eleitoral.
Em 2012 e em 2013, a Venezuela atravessou uma fase de tensões políticas e
de incertezas causadas pela notícia do retorno da doença do então presidente Hugo
Chávez e pela iminência de sua morte. Essa situação se intensificou depois de sua
morte, em 5 de março de 2013, e com a realização de eleições no mês seguinte,
conforme determina a Constituição. Inicialmente, o resultado do pleito não foi aceito
pelo principal candidato da oposição, Henrique Capriles, que solicitou a apuração da
votação, alegando fraude nas urnas. Por fim, as cédulas foram recontadas
manualmente, ratificando o número que havia sido inicialmente divulgado pelo CNE.
Já a Bolívia alterou o desenho institucional de sua governança eleitoral, mas
promoveu apenas um processo eleitoral desde então, em outubro de 2011, para
escolher membros do Judiciário. Não houve polêmicas nessas eleições. As próximas
eleições presidenciais acontecerão em outubro de 2014.
Uma modificação na governança eleitoral boliviana aconteceu antes das
reformas feitas no marco da nova Constituição, vigente a partir de 2010: a criação de
um padrão de identificação biométrica nas urnas por meio das impressões digitais. O
objetivo era colocar fim aos boatos – isto é, denúncias nunca investigadas – de que
cidadãos mortos participavam da votação e de que alguns eleitores votavam mais de
uma vez.
O novo texto criou o Órgão Eleitoral Plurinacional, o Poder Eleitoral dentro do
Estado boliviano, com autonomia em relação a outras instituições. O órgão máximo da
governança eleitoral passou a ser o Supremo Tribunal Eleitoral, desvinculado
totalmente da Corte Nacional Eleitoral, vigente até então. A imagem desse organismo
já estava desgastada por denúncias de fraude, falta de autonomia e pelo histórico de
interrupção de atividades causada por golpes militares. A partir do processo de
democratização iniciado na década de 1980 e da crise institucional que culminou com
a deposição do então presidente Gonzalo Sánchez de Lozada e sua subsequente fuga
para os Estados Unidos em 2003, tornou-se cada vez maior a contestação pública.
Com as modificações institucionais feitas pelo governo Morales, uma governança
eleitoral com bases sólidas passou a ser essencial para esse equilíbrio de forças.
O Equador não indica um cenário de polarização política constante, como
ocorre na Venezuela em alguns períodos, onde um grau de consenso mínimo que
permita governabilidade parece ser improvável. Existe, porém, um nível de
16
contestação pública que já levou o país a uma crise política. Em 30 setembro de 2010,
dois anos depois de aprovada a nova Constituição e reformada a governança eleitoral,
um protesto de policiais equatorianos contra a redução dos gastos públicos com
segurança pública culminou em um tumulto que, segundo o governo, foi uma tentativa
de golpe de Estado. No Equador, as mudanças constitucionais – além de alterarem a
governança eleitoral completamente – tiveram como objetivo ampliar os mecanismos
de participação.
A nova Constituição não causou uma ruptura da magnitude daquela observada
na Bolívia em 2010 porque já havia feito a inclusão do caráter plurinacional de seu
Estado em textos anteriores. A Carta Magna boliviana, por sua vez, provocou um
impacto maior porque, além dos instrumentos participativos, procurou criar instituições
que atendessem às demandas históricas dos povos originários.
Com um Poder Eleitoral autônomo, o Equador limou a participação dos partidos
por meio da nomeação de membros dentro dos OEs, como acontecia anteriormente, e
criou dois órgãos máximos que respondem pelos três níveis da governança eleitoral.
Nesse aspecto, diferencia-se dos outros dois países. De acordo com a Constituição
equatoriana, as instituições responsáveis pela solução de conflitos eleitorais são o
próprio Conselho Nacional Eleitoral e o Tribunal Contencioso Eleitoral. Nos demais, é
o Poder Judiciário que executa essa tarefa.
Em 2013, o Equador realizou eleições presidenciais e regionais, e os
resultados foram prontamente reconhecidos. Em 2012, o CNE apurou denúncias de
falsificação de assinaturas de eleitores por parte dos partidos para apresentação de
candidatura. Segundo a legislação, para que um partido possa apresentar candidatos,
precisa reunir pelo menos 158 mil assinaturas. Com exceção desse episódio, não
houve polêmicas envolvendo a governança eleitoral equatoriana.
Ao final, constatou-se que os três países citados escolheram modelos de
governança eleitoral semelhantes:
Quadro 5: Estrutura da governança eleitoral na Bolívia, no Equador e na Venezuela
País
Posição institucional
Vínculo institucional
Bolívia
dissociada
especializado
Equador
dissociada
especializado
17
Venezuela
dissociada
especializado
Não por acaso, as razões que levaram esses três países a tais modificações
foram, da mesma forma, muito parecidas. As transformações por que passaram foram
no sentido de romper os vínculos com partidos e com os poderes do Estado.
Resultaram, ao contrário, na criação de um quarto poder autônomo. Diante das
tentativas de escapar ao modelo de democracia liberal vigente, aumentando a
participação política e sem abandonar a eleição como método de renovação de
lideranças, julgou-se necessário ter um processo eleitoral que garantisse estabilidade
e fosse aprovado, portanto, por todos os participantes. Com um passado de
autoritarismo
e
interrupção
do
processo
democrático,
o
eixo
central
das
transformações foi a busca pela transparência, pela credibilidade e pela autonomia.
Nenhum dos países optou por um modelo de vínculo institucional combinado.
Existe a indicação de membros dos OEs, no caso da Bolívia, por parte do Legislativo e
do Executivo. Ainda assim, eles estão proibidos de ter participação na atividade
partidária. Equador e Venezuela encontraram um mecanismo para permitir a
fiscalização mútua por parte das organizações políticas: a tarefa de observar o
processo eleitoral é realizada por pessoas indicadas por todas as legendas,
independentemente da representação parlamentar, em todas as seções eleitorais do
país.
Diante da evidência de uma relação entre governança eleitoral e democracia, é
possível tentar responder ainda às seguintes perguntas: a governança eleitoral
contribui para a estabilidade ou acaba por aumentar o acirramento político nesses
países? Ou seu papel seria praticamente nulo, haja vista a preferência pelo modelo de
democracia participativa em detrimento do modelo liberal? A governança eleitoral
nesses países é, afinal, efetiva a ponto de contribuir para o método de renovação de
lideranças?
O que esses países têm em comum, além do modelo de governança eleitoral
adotado e do modelo que tentam implementar, combinando democracia liberal e
participativa, é seu passado de instabilidade. Bolívia e Equador – e suas 20
Constituições – enfrentaram governos autoritários no século XX. A Venezuela
encerrou sua última ditadura em 1958, antes, portanto, dos demais. Tinha, porém, os
níveis de contestação pública reduzidos por restringir os partidos que participavam da
competição eleitoral com o Pacto de Punto Fijo. Bolívia, Equador e Venezuela
18
enfrentam, portanto, um contexto de aumento da contestação pública, inerente aos
processos de democratização.
Apesar das inúmeras críticas feitas à democracia liberal, a governança eleitoral
está longe de ser indiferente aos contextos desses três países. A governabilidade
seria improvável nesses três, caso seus processos eleitorais tivessem credibilidade
com valor próximo de zero. A governança eleitoral, entretanto, mostrou-se um dos
pilares desses regimes nos três casos. Foi constante a preocupação em realizar
eleições transparentes.
Em relação ao papel da governança eleitoral para a estabilidade poliárquica, as
diferenças entre os países começam a surgir. No Equador e na Bolívia, a governança
eleitoral tem contribuído para manter o equilíbrio entre oposição e governo. Suas
regras visam a garantir um processo à prova de fraudes. Os dois países instituíram
cursos a fim de familiarizar todo o eleitorado com a urna e, assim, torná-la acessível à
maior parte dos eleitores. Suas instituições têm, pelo menos de acordo com a
Constituição e com suas leis eleitorais, autonomia para contestar os resultados e
condições de apurar denúncias. O que esse cenário tende a produzir é uma
governança
eleitoral
efetiva,
capaz
de
garantir
eleições
periódicas,
livres,
transparentes e com condições de igualdade. Sendo assim, apresentam condições de
funcionar como ferramenta para a renovação de lideranças, permitindo contestação
pública.
Já na Venezuela, a governança eleitoral ora contribui para equilibrar as forças
entre oposição e governo, ora contribui para a polarização das preferências políticas.
Contribui para o equilíbrio na medida em que produz resultados aceitos pela maior
parte dos candidatos. Quando Capriles deixou de reconhecer os resultados das
eleições presidenciais de abril de 2013, deu início a uma série de protestos violentos
denotando, de fato, o alto grau de disputa política naquele país, bem como as
dificuldades para obtenção do consenso. Até aquele momento, todos os resultados
haviam sido reconhecidos – inclusive os das votações em que o governo perdeu para
a oposição. A estabilidade foi recuperada com o anúncio de que a recontagem manual
de votos seria realizada. Se não houvesse a possibilidade de verificar as cédulas, ou
ainda, se os OEs tivessem recusado o pedido do opositor, qualquer equilíbrio entre
essas duas forças teria sido improvável. Por outro lado, o grau de polarização segue
elevado, o que dificulta um patamar mínimo de consenso e prejudica, portanto, a
governabilidade.
19
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARELLAN, Pedro. La democracia em Venezuela (1992-2012): uma aproximación
desde la teoria de Norberto Bobbio. In: Simposio venezolano de Ciencia Política UCV,
12, 2013, Caracas. Caracas: Universidade Central da Venezuela, 2013, 1 CD.
BALLIVIÁN, Salvador R. Medio siglo de historia electoral de Bolivia. América Latina
Hoy, Salamanca, v. 51, p. 77-94, 2009.
BIRCH, Sarah. Electoral institutions and popular confidence in electoral processes: a
cross-national analysis. Electoral Studies, v. 27, n 2, 2008.
DAHL, Robert. Poliarquia: participação e oposição. São Paulo: EDUSP, 1997. 235 p.
EISENSTADT, Todd A. measuring electoral court failure in democratizing Mexico.
Internacional Political Science Review, v. 23, n 1, 2002, p. 47-98.
HARTLYN, Jonathan; MCCOY, Jennifer, MUSTILLO, Thomas. La importancia de la
gobernanza electoral y la calidad de las elecciones en la América Latina
contemporánea. América Latina Hoy, n 51, 2009, p 15-40.
HUNTINGTON, Samuel. A terceira onda: a democratização no final do século XX.
São Paulo: Ática, 1994. 335 p.
JIMÉNEZ, Alfredo Ramos. Venezuela: el ocaso de una democracia bipartidista. Punto
de vista, Buenos Aires, n. 63, p. 35-42, 1999.
LEHOUCQ, Fabrice. Can parties police themselves? Electoral governance and
democratization. Internacional Political Science Review, v. 23, n 1, 2002, p. 29-46.
LÓPEZ-PINTOR, Rafael. Electoral managemente bodies as institutions of
governance. Nova York: United Nations Developmente Programme – UNDP, 2000,
251p.
LUCENA, Tibisay. Las reformas del sistema electoral venezolano y sus consecuencias
políticas: 1988-1998. Revista Alceu, Rio de Janeiro, v. 3, n. 6, p. 246-265, jan./jun.
2003.
MARCHETII, Vitor. Justiça e competição eleitoral. Santo André: Universidade
Federal do ABC, 2013. 251 p.
______ Governança Eleitoral: O modelo brasileiro de justiça eleitoral. Revista Dados,
Rio de Janeiro, v. 51, n 4, 2008, p. 865-893.
MOZAFFAR, Shaheen; SCHEDLER, Andreas. The comparative study of electoral
governance – Introduction. Internacional Poltical Science Review, v. 23,2002, n 1, p.
5-27.
O'DONNELL, Guillermo. Accountability horizontal e novas poliarquias. Lua Nova:
Revista de cultura e política, São Paulo, n. 44, p. 28-54, 1998.
PASTOR, Robert. The role of electoral administration in democratic transitions:
implications for policy and research. Democratization, v.6 1999, n 4, p. 1-27.
20
SARTORI, Giovanni. Ingeniería constitucional comparada: un enfoque de
estructuras, incentivos y resultados. México: Fondo de Cultura Económico, 1994. 239
p.
SCHEDLER, Andreas. The nested game of democratization
Internacional Political Science Review, v. 23, 2002, n 1, p. 103-122.
by
elections.
SCHEDLER, Andreas. Inconsistencias contaminantes: governación electoral y
conflicto poselectoral en las elecciones presidenciales del 2006 en México. América
Latina Hoy, n. 51, 2009, p. 41-59.
21