Baixar este arquivo PDF
Transcrição
Baixar este arquivo PDF
Anamorfose - Revista de Estudos Modernos, 1 (2013), pp. 60-85 No seio das doutas virgens. Análise pastoral de um texto preambular de Montaigne Rafael Marcelo Viegas I O tema da “excelência da vida no campo”, equivalente ao bordão “melhor ficar longe da cidade”, é um antiquíssimo e resiliente topos cultural, que pode ser facilmente ligado à literatura de fundo bucólico-pastoral – aquela que, grosso modo, deita raízes nos Idílios de Teócrito (e seus imitadores ou continuadores, como Bion de Phlossa e Moschos de Siracusa) mas, sobretudo, nas releituras campestres dos idílios promovidas por Virgílio (a partir das suas Bucólicas), tradição latina continuada pelas obras de Calpúrnio Sículo e de Nemesiano. Por um lado, o cenário idealizado de pastores instalados em colinas férteis e verdejantes, sob o sol de um Mediterrâneo benfazejo (na Sicília ou nas montanhas da Arcádia grega), dados ao cultivo do amor e das artes poético-musicais. De outro lado, a noção de que a cidade (ou, mais propriamente, a civilização imperial, cortesã etc.) deturpa a essência do homem – essência, que seria, de maneira ampla e geral, a de acompanhar ciosamente os ciclos mais elementares da natureza. O mito da Época de Ouro não está longe1. Como vimos mais acima, uma longa tradição liga o material clássico grecoromano, sobretudo a écloga latina virgiliana, até Sannazaro e a literatura pastoral posterior2. O arquétipo dessa crescente produção renascentista continua sendo, em linhas gerais, o texto das Bucólicas, mas estas não constituem o único texto de cunho campestre de Virgílio. As Geórgicas, num contexto estético diferente, também são uma obra agrária – na verdade, do ponto de vista do conteúdo, bem mais agrária que a anterior, uma vez que em diversos momentos lida, por assim dizer, com aspectos propriamente “técnicos” da agricultura3. Neste ínterim, o mérito de pô-la na moda vem das obras latinas do poeta, dramaturgo e erudito italiano Angelo Poliziano (14541494)4. Embora já houvesse escrito um poema (o Manto) no molde das Bucólicas, foi a partir do seu Rusticus (quer dizer, “O Homem do Campo”) – que tinha entre outros objetivos servir de propedêutica literária à sua interpretação pública dos Trabalhos e os Dias, de Hesíodo, e das Geórgicas – que esta obra de Virgílio passou a ser conhecida 1 Harry Levin, The Myth of the Golden Age in the Renaissance, OUP, 1968; Georges Minois, A Idade de Ouro (orig. francês 2009), Unesp, 2011. 2 Para o desenvolvimento da pastoral pós-virgiliana, Roland Mayer, “Latin Pastoral after Virgil” in Marco Fantuzzi & Theodore Papanghelis (eds.), Brill’s Companion to Greek and Latin Pastoral, pp. 451-466. 3 É onde Virgílio banca o fazendeiro, na expressão de Philip Thibodeau, Playing the Farmer. Representations of Rural Life in Vergil’s Georgics, University of California Press, 2011. 4 L. P. Wilkinson, The Georgics of Virgil, A Critical Survey (1978), University of Oklahoma Press, 1997², p. 292. 60 A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M de um público mais amplo, ainda que, claro, restrito à capacidade de compreender o latim clássico5. Seja como for, os dois textos de Poliziano relembraram aos humanistas europeus uma linhagem poética celebrando a vida no campo, valorizando tanto modelos agrários (a dinâmica do campo tomada em seu aspecto mais concreto e ordinário) quanto bucólicos. Felix ille animi divisque simillimus ipsis, quem non mendaci resplendens gloria fuco sollicitat, non fastosi mala gaudia luxus, 20 sed tacitos sinit ire dies et paupere cultu exigit innocuae tranquilla silentia vitae, urbe procul, voti exiguus ; sortemque benignus ipse suam fovet ac modico contentus acervo non spes corde avidas, non curam pascit inanem ; securus quo sceptra cadant, cui dira minentur astra et sanguinei iubar existiale cometae6. O cenário aqui pode ser entendido na lógica pastoral mais clássica: a superioridade ética do campo, aliada à vida simples e frugal, longe das intempéries e do tumulto do mundo, é quase um resumo do que, de fato, o leitor encontra no texto das Bucólicas de Virgílio – bem como nas Bucólicas de Calpúrnio Sículo. Mas a expressão literal do trecho citado não está nas Bucólicas e sim, como era o objetivo do Rusticus no final das contas, nas Geórgicas: felix qui potuit rerum cognoscere causas atque metus omnis et inexorabile fatum subiecit pedibus strepitumque Acherontis auari: fortunatus et ille deos qui nouit agrestis Panaque Siluanumque senem Nymphasque sorores. illum non populi fasces, non purpura regum flexit et infidos agitans discordia fratres, aut coniurato descendens Dacus ab Histro, 5 É preciso entender que uma parte dos humanistas cumpria um papel detetivesco e a comunidade contemporânea de latinistas e grecistas ansiava por novidades de ordem editorial advindas da pesquisa nos arquivos das bibliotecas e nos repositórios de documentos Europa adentro – obsessão de colecionador que nem todo mundo estava, evidentemente, apto a fazer – ou simplesmente edições críticas (comparando-se manuscritos de origem diferente) de textos já conhecidos. 6 “Feliz em espírito e comparável aos próprios deuses é o homem que não está preso às tentações da glória, com seus falsos esplendores, ou aos prazeres malévolos da luxúria arrogante, mas aceita os dias de maneira discreta e, em seu modesto modo de vida, passa seu tempo na tranquilidade silente de uma vida sem mácula, longe da cidade, com poucos desejos. Ele aceita seu quinhão resignadamente e é feliz com suas modestas posses. Não alimenta ávidas esperanças ou preocupações vazias no coração. É indiferente à queda dos reinos, aos que são afetados pelos mórbidos signos no céu e ao brilho fatal dos cometas cor-de-sangue” (Angelo Poliziano, Rusticus, vv. 17-26). N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E 61 non res Romanae perituraque regna; neque ille aut doluit miserans inopem aut inuidit habenti. quos rami fructus, quos ipsa uolentia rura sponte tulere sua, carpsit, nec ferrea iura insanumque forum aut populi tabularia uidit7. A longa fórmula, retomada por Poliziano, ainda que dita em termos geórgicos, traduz à perfeição o estado de espírito bucólico que será retomado pelos poetas árcades posteriores. O discurso pastoral, por definição ideal e intangível (utópico-edênico), e o discurso agrário (supostamente didático e ao alcance da enxada ou do arado), funcionam, efetivamente, numa rede mútua de valorizações8. Entretanto, um detalhe importante sobressai nestas adaptações. Muito embora a dinâmica diferencial entre real (agrário) e ficcional (bucólico) possa ter sido importante para Virgílio, ela não existe para Poliziano: temos aí um homem urbano, um cortesão do Renascimento italiano, mais especificamente do humanismo florentino e da corte dos Médicis, e Geórgicas e Bucólicas, para ele, são, ambos, modelos puramente literários. O mesmo para Petrarca e Boccaccio. E, claro, literário será também o uso desses temas em Sannazaro9. 7 “Feliz o que pode conhecer a causa das coisas e que pôs sob os pés todos os medos, e o inexorável destino, e o ruído do avaro Aqueronte. Mas afortunado também aquele que conhece os deuses campestres, e Pã, e o velho Silvano, e as ninfas irmãs. Este, nem os feixes [fasces, machado amarrado com feixes de madeira, símbolo do poder dos cônsules romanos] outorgados pelo povo, nem o púrpura dos reis conseguiram dobrar, nem a discórdia que impele os irmãos sem fé [provável referência aos irmãos que disputavam o trono parta], nem o Dácio que desce do conjurado Ister [i.e., o Danúbio; os dácios, que habitavam a região entre o Danúbio e o Mar do Norte – a Transilvânia e a Moldávia atuais –, eram uma ameaça bárbara temida pelos romanos], nem os negócios de Roma, nem os reinos destinados ao declínio. Ele não vê em torno de si nem indigentes a rogar por misericórdia, nem ricos a invejar. Os frutos que dão os ramos, aqueles que as benevolentes campanhas fornecem de graça, ele os colhe sem conhecer nem as leis de ferro, nem o fórum insensato, nem as tábuas do povo [os atos civis que ficavam guardados no templo de Saturno]” (Virgílio, Geórgicas, II, vv. 490-502). 8 Esta simbiose entre dois modelos, o bucólico e o agrário, a princípio díspares, é um signo importante do valor desse material para Poliziano. Para Virgílio, o modelo agrário das Geórgicas estaria, em teoria, mais próximo de sua história pessoal enquanto filho de proprietários rurais (daí sua qualidade “didática”, obviamente discutível embora reconhecida como evidente por muitos de seus contemporâneos) que o modelo pastoral idealizado das Bucólicas. Mas Virgílio discorre acerca do agrário não num tratado técnico sobre a agricultura – como o De Agri Cultura, de Catão (160 a.C.) ou De re rustica, de Marcus Varrão (116 a.C.-27 a.C.) – e sim em seu longo poema, literário para todos os efeitos, de 2188 hexâmetros dactílicos. Logo, os dois modelos literários, da qual as Bucólicas (bucólico) e Geórgicas (agrário) são os representantes fundacionais, podem até ser separados por comodidade técnica e estilística, mas são em muitos aspectos interdependentes do ponto de vista ético e da concepção de mundo. Embora não se vejam signos propriamente árcades nas Géorgicas (nestas não há flautas, nem disputas de versos, nem espaço para amores perdidos), é evidente que aí também se trata, tal como nas Bucólicas, de um modelo idealizado. Logo, os dois modelos se entrecruzam num ziguezague histórico e teórico-literário: e um não pode ser considerado sem o outro. O debate atual separou, naturalmente, o modelo bucólico-pastoral da mimese do mundo campestre, considerando a cena pastoral (idealizada), como pano de fundo e pretexto a instâncias indiretas de crítica política e social, em vez de representação concreta do mundo. Mas isto pode ser colocado em discussão: ver, por exemplo, Ken Hiltner, What Else is Pastoral? Renaissance Literature and the Environment, que defende uma ideia de discurso pastoral como discurso agrário – quer dizer, ligado também à descrição concreta da natureza. 9 Iacopo Sannazaro (Francesco Erspamer, ed.), Arcadia – L’Arcadie, Les Belles Lettres, 2004. 62 A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M Vimos, no capítulo anterior, um resumo dessa evolução da pastoral moderna. Vimos também que a França, claro, não ficou imune a este sucesso. A primeira geração francesa influenciada por Sannazaro (a partir de meados do século XVI) produziu um sem-número de textos bucólicos, entre poesia, drama e prosa10. Some-se aí o impacto da disseminação das novelas imperiais, recém-descobertas pelos humanistas e traduzidas para o francês por Amyot na década de 155011, e teremos um resumo da produção literária propriamente moderna (no sentido de vanguarda) desta época: e foi assim que os pastores Dáfnis, Alexis, Córidon, por oposição aos cavaleiros Artur, Galvain, Perceval e Amadis, tomam de assalto o cenário subtextual da segunda metade do século XVI12. Para alguns autores franceses da geração posterior, no entanto, essa tradição bucólico-agrária ganhará, aos poucos, contornos diferentes. Uma série de importantes tratados técnicos sobre a agricultura já havia sido publicada por volta de meados do século XVI13. Porém, quando escritores como Pierre Charron14 escrevem, na virada do século seguinte, sobre o campo e seu significado, numa perspectiva mais filosófica que técnica, vemos que modelo pastoral e modelo agrário (ou doravante modelo “agrônomo”, se considerarmos que a Agronomia moderna tenha nascido por esta época15) já se confundem com uma dinâmica de discussão de viés sócio-político (a 10 “Indeed, the 1570s and early 1580s saw a flurry of rustic celebration, especially in the circle surrounding Pierre de Ronsard and the already elderly Jean Dorat, and De Thou was clearly caught up in this movement” (Ingrid de Smet, “Pastoral Politics in the Poetry of Jacques-Auguste de Thou, 1553–1617” in Canadian Review of Comparative Literature, March-June 2006, p. 116). Para o regime pastoral especificamente francês dessa época ver Alice Hulubei, L’eglogue en France au XVIe siècle, Paris, Droz, 1938. 11 Peças relativamente inéditas (oriundas do final da Antiguidade, não entraram nos cânones dos principais gramáticos e retores romanos, logo, não foram estudadas na Idade Média), exerceram uma influência enorme na Europa literária a partir da década de 1540, quando começaram a ser traduzidas para as línguas modernas: sobretudo Clitofonte e Leucipéia, de Aquiles Tatius (~II d.C.); a Etiópica, ou Theagenes e Charicléia, de Heliodoro de Emesa (~III d.C.); e Dafnis e Cloé, de Longo (~II d.C. – III d.C.). Delas retiraram-se enredos, temas e personagens de inúmeras peças século XVII adentro – das tragicomédias do Barroco às tragédias de Racine, passando por Shakespeare – e, muito embora não tenham influenciado a Arcadia de Sannazzaro, pois esta é anterior à sua redescoberta, foram fundamentais na produção subtextual da geração seguinte de escritores europeus (Belleforest, d’Urfé, Cervantes e daí por diante), permitindo uma mudança profunda no paradigma narrativo da época. Para sua ligação com a literatura pastoral, ver M. Di Marco, “The Pastoral Novel and the Bucolic Tradition” in Fantuzzi & Papanghelis (eds.), Brill’s Companion to Greek and Latin Pastoral, pp. 479-498. 12 Cf. Michel Simonin “La disgrace d’Amadis” in L’encre & la lumière (1976-2000), Paris, Droz, 2004, pp. 189-234. 13 Charles Estienne, Praedium rusticum (1554), traduzido para o francês por Jean Liébault em 1564 como L’Agriculture et la maison rustique – inúmeras reimpressões; as Vinti giornate dell’ agricoltura et de piaceri délia Villa etc. (1550), de Agostino Gallo, pai da agronomia italiana, sucesso editorial com mais de vinte edições e reimpressões, foi traduzido por François de Belleforest em 1570 como Secrets de la vraye agriculture, et honestes plaisirs qu’on reçoit en la mesnagerie des champs. Deve-se computar aí os tratados antigos, sobretudo os latinos, que circulavam, na primeira metade do século XVI, publicados quase sempre em conjunto, como antologias: Os Trabalhos e dos Dias, de Hesíodo, os Econômicos de Xenofonte, as Geopônicas de Cassiano Bassus, o De Agricultura de Catão o Antigo, o Res rustice de Varrão, o De re rustica de Columela, o De re rustica de Palladius, e, claro, as Géorgicas de Virgílio e a História Natural de Plínio o Antigo, entre outros. 14 No De la Sagesse (1600), capítulo 58 do Livro I (Comparaison de la vie rustique et menée ès villes), ele nos dá seu veredicto: “Les villes sont prisons mesmes aux esprits, comme les cages aux oyseaux et aux bestes”. 15 “II est communément admis, et à juste titre, qu’avec Le Théâtre d’Agriculture et mesnage des champs s’ouvre la voie de la science agricole moderne. Dès sa préface, Olivier de Serres, en fondant l’agriculture nouvelle sur la triade « science, experience et diligence », se distingue de son prédécesseur le plus connu, Charles Estienne, plus théoricien que praticien. Or, il faut N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E 63 análise atual dos poemas campestres virgilianos ressaltam, aliás, o mesmo aspecto), dando margem a uma reflexão moral, ascética (ainda que, obviamente, não monástica), aliada ao tema do retiro do mundo – tema que ganhará vigor (literário e religioso) na décadas seguintes16. Mesmo um agrônomo como Olivier de Serres ficará, como veremos abaixo, tentado a refletir de modo filosófico a respeito do campo – embora, no seu caso, protestante retirado em suas terras por conta das Guerras de Religião, não se trate apenas de simbolismo literário quando diz ser no campo que se protege contra a “fascheuse (...) foule du peuple”17. O desprezo da corte já era o topos de uma importante obra espanhola de 1539, o Menosprecio de corte y Alabanza de Aldea, de Antonio de Guevara, traduzido em francês por Allègre (Du mespris de la court & de la louange de la vie rustique) em 154218. Mas é a geração que escreve entre 1570-1580 que vai aprofundar esse menosprecio em território francês: e quando isso acontece, entramos já no reino particular e, de certa forma, pós-pastoral das vies rustiques – que podemos definir como uma moda cultural paradoxalmente cortesã19. O De re rustica, de Varrão, já oferecia um ponto de vista mordaz dos valores éticos da agricultura e da vida no campo em relação à cidade: désormais compter avec l’expérience née de la pratique et de la confrontation des savoirs savants et paysans” (Danièle Duport, “La ‘science’ d’Olivier de Serres et la connaissance du ‘naturel’” in Bulletin de l’Association d’étude sur l’Humanisme, la Réforme et la Renaissance, n° 50, 2000, pp. 85-95). 16 Bernard Beugnot, Le Discours de la retrait au XVIIe siècle, PUF, 1996. 17 Le théâtre de l’agriculture et ménage des champs (1600), 4 Vols., Paris, Meurant, 1802, IV, p. 626. 19 edições e reimpressões até 1675. Irresistível não enxergar nesta expressão um trocadilho com o fasces populi do livro II das Geórgicas de Virgílio (v. 495) citado mais acima, apesar da etimologia aceita para o adjetivo médio-francês fascheuse (na grafia atual, fâcheux, -euse, quer dizer, “irritante” ou “fastidioso”) faça-o derivar do latim fastidium e não de fasces, nominativo plural de fascis, -is (“feixe”): usado no plural, fasces significa o machado envolto em feixes de madeira, símbolo dos cônsules romanos. Ver Martine Gorrichon “Sources latines d’Olivier de Serres” in Bulletin de l’Association d’étude sur l’Humanisme, la Réforme et la Renaissance, n° 50, 2000, pp. 45-58. Para um estudo mais amplo, Jean Boulaine & Richard Moreau, Olivier de Serres et l’évolution de l’agriculture, L’Harmattan, 2002. 18 Antonio de Guevara (éd. bilingue critique de Nathalie Peyrebonne), Du mespris de la court et de la louange de la vie rustique, Classiques Garnier, 2012. Ver Pierre Civil, “Le thème de l’éloge de la vie rustique en Espagne au XVIème siècle” in Gabriel-André Perouse & Hugues Neveux (eds.), Essais sur la Campagne à la Renaissance, Société Française de Seiziémistes, 1991, pp. 103114. 19 Considera-se aqui, claro, uma moda literária e cultural pois poucos autores rustiques tinham, de fato, a experiência real da vida no campo – o que não quer dizer que a discussão a respeito dos valores atribuídos ao mundo rural por seus autores seja diminuída. Entre os escritores e as obras desta geração contamos, dentre outros, Les plaisirs de la vie rustique (1574) de Monsieur de Pibrac; Les Plaisirs de la vie rustique et solitaire (1583) de Claude e Pierre Binet; La columbière ou maison rustique (1583) de Philibert Hegemon; Les Plaisirs du gentilhomme champestre (1583), de Nicolas Rapin; Le Plaisir des champs, divisé en quatre parties selon les quatres saisons de l’année, où est traicté de la chasse et de tout autre exercice recréatif, honneste et vertueux (1583) de Claude Gauchet; Plaisirs et félicités de la vie rustique (1584) de Germain Forget; Les propos rustiques de Noël du Fail. Obras algumas vezes editadas em conjunto, no formato de antologias. Para o contexto, ver Jacqueline Bouchet, “Vrai ou faux amour de la campagne à la cour des derniers Valois” in Gabriel-André Perouse & Hugues Neveux (eds.), Essais sur la Campagne à la Renaissance, Société Française de Seiziémistes, 1991, pp. 57-72; Pauline Smith, The Anti-Courtier Trend in Sixteenth Century French Literature, Droz, 1966; Jeannice Brooks, Courtly Song in Late Sixteenth Century France, University of Chicago Press, 2000, esp. Cap. VI, “Pastoral Utopias”; para o significado do que era ser um nobre rural por essa época, ver Arlette Jouanna, La France du XVIe siècle, PUF, 2002³, cap. IV; e Emmanuel Le Roy Ladurie, História dos Camponeses Franceses (2002), 2 Vols., Civilização Brasileira, 2007, esp. cap. II. 64 A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M Viri magni nostri maiores non sine causa praeponebant rusticos Romanos urbanis. Ut ruri enim qui in villa vivunt ignaviores, quam qui in agro uersantur in aliquo opere faciendo, sic qui in oppido sederent, quam qui rura colerent, desidiosiores putabant. Itaque annum ita diviserunt, ut nonis modo diebus urbanas res usurparent, reliquis septem ut rura colerent. Quod dum servaverunt institutum, utrumque sunt consecuti, ut et cultura agros fecundissimos haberent et ipsi valetudine firmiores essent, ac ne Graecorum urbana desiderarent gymnasia20. Mas a fórmula literária que define o modelo rustique utilizado pelos franceses está em Horácio, declarado admirador das Bucólicas21: Beatus ille qui procul negotiis, ut prisca gens mortalium, paterna rura bubus exercet suis solutus omni faenore neque excitatur classico miles truci neque horret iratum mare forumque vitat et superba civium potentiorum limina22. 20 “Não por acaso, grandes homens, nossos ancestrais, preferiam os romanos do campo aos da cidade. Com efeito, assim como nas terras, os que vivem na casa de campo são mais fracos do que quem se ocupa da lavoura fazendo algum trabalho, julgavam mais ociosos os que se estabeleciam em cidades do que quem cultivava a terra. Assim, dividiram o ano de modo que apenas a cada oito dias eles se dessem aos assuntos urbanos, mas, nos outros sete, cultivassem os campos. Enquanto tiveram esse costume, lograram duas coisas: possuir os mais fecundos campos, cultivando; e serem eles próprios de melhor saúde, sem acharem falta dos ginásios urbanos à grega” (Varrão, Das coisas do campo, II, 1, [trad. Matheus Trevizam], Ed. Unicamp, 2012, pp. 126-127). 21 A influência rusticizante de Virgílio contaminou os escritores latinos seus contemporâneos e sucessores diretos: “Horace was not alone in his admiration of Virgilian pastoral. The contemporary erotic elegist, Tibullus, ‘rusticated’ the essentially urban code of elegy by dreaming of love in the country; his very first elegy strikes this unusual note. Like Horace, he too picks up Virgil’s ideal of the Golden Age (1.3.35–48), as a contrast to the grim reality of warfare. Tibullus’ work in turn influenced Propertius, who tries his hand at a recodification of elegy, by joining his mistress in a rustic retreat (2.19). The contrast between town and country is particularly stressed, and Propertius expresses satisfaction that once in the country his mistress will be out of the way of urban temptations (shows, and trysting places). Like Virgil’s Gallus, he fancies he’ll do some hunting (ipse ego venabor, l. 17), not great big lions or wild boars of course (too dangerous), but hares and birds. One last poet’s engagement with the pastoral mode deserves a word. Ovid incorporated many poetic modes in his kaleidoscopic Metamorphoses, and the bucolic world is certainly not neglected, particularly in the tales of Pan and of Narcissus” (Roland Mayer, “Latin Pastoral after Virgil” in Fantuzzi & Papanghelis (eds.), Brill’s Companion to Greek and Latin Pastoral, p. 453). 22 “Feliz aquele que, afastado dos negócios, / como a antiga raça dos mortais, / cultiva os campos paternos com seus bois, / liberto de toda usura; nem, como soldado, é despertado pela trombeta ameaçadora / nem teme o mar irado; / aquele que evita o foro e as soberbas moradias / dos cidadãos mais poderosos” (Horácio, Epodo II, vv. 1-8 e ss; tradução de Arlete José Mota in Calíope n° 20, 2010, pp. 101-105). N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E 65 E, efetivamente, o primeiro dos poetas rustiques, Monsieur de Pibrac, retoma de modo categórico esses termos horacianos, mas que também são os termos georgianos de Virgílio relidos pelo Rusticus de Poliziano: O bien-heureux celuy, qui loing des Courtisans, Et des Palais dorez pleins de soucis cuisans, Sous quelque pauvre toict delivré de l’enuie, Jouyst des doux plaisirs de la rustique vie : La trompette au matin ne l’esveille en sursaut, Pour hardy des premiers se trouver à l’assaut ; Ou guindé sur le mast d’un vaisseau n’importune, Par prieres & vœux le courroncé Neptune. Il ne luy chaut d’avoir la faveur des grands Rois, Ny les premiers honneurs aux joustes & tournois, Les couronnes de prix richements estoffées, Ny les chars entaillez de superbes trophées ;23 Por sua vez, Olivier de Serres afirma, invocando Virgílio e em torno de um verso de Les plaisirs de la vie rustique de Pibrac: Virgile tient qu’à l’homme des champs ne manque, pour sa félicité , que de connoître son bonheur, disant : h ! que par trop seroient heureux les laboureurs , O S'ils savoient leur bonlieur, auxquels loin des horreurs, Du discord martial, d'une volonté franche, De vivre largement, la terre juste épanche24 (...) Ces contentemens ont induit plusieurs grands personnages à chanter le plaisir des champs, s’égayant sur tant riche sujet, dont plusieurs livres se trouvent écrits, remplis de telle belle nature, et beaucoup d’illustres hommes à se retirer en la solitude de la campagne , pour, hors de bruit , jouir en repos des aises dont elle abonde. La sérénité du ciel, la salubrité de l’air, le plaisant aspect de la contrée, montagnes, plaines, vallons , coteaux, bois , vignobles, prairies , jardins, terre à bled, rivières, fontaines, ruisseaux, étangs, les beaux promenoirs et jardins, prairies, et d'un autre côté, la contemplation des belles tapisseries des fleurs, les beaux ombrages 23 Guy Du Faur de Pibrac, Les plaisirs de la vie rustique composez par le S. de Pyb. à Paris, par Federic Morel, Imprimeur du Roy, 1575 (BNF, Res Ye 4628), vv. 1-12. [Gallica] 24 Virgilio, Geórgicas, II, 458: O fortunatos nimium, sua si bona norint, / agricolas! quibus ipsa, procul discordibus armis, / fundit humo facilem victum justissima tellus. 66 A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M des arbres, la joyeuse musique des oiseaux, les divers chants et langages du bétail, gros et menu, louant le créateur, en sont les principales causes; y en ayant d'autres infinies, qui ne se peuvent réciter, pour la nourriture, vèture, port et plaisir de l’homme, dont Dieu a rempli la terre. Là dessus, dit le sieur de Pibrac : Bref, en l’homme des champs, on ne sauroit choisir Un jour, heure ou moment, sans honnête plaisir25 Entre lesquelles plaisantes commodités, ceste – ci est remarquable, qu’es champs, vous n’y voyés que de vos amis, vos ennemis ne vous allans jamais visiter. Et si bien vous n’y estes pas beaucoup accompaigné de vos semblables, vous y esprouvés véritable ce commun dire, qu’il vaut mieux estre-seul, que mal accompaigné ; se pratiquant tous les jours ès villes, combien fascheuse y est la foule du peuple, parmi lequel sont contraints de vivre ceux qui y habitent, estans souvent forcés de faire bonne mine à tels dont ils ne sont guières aimés : au lieu de la saincte liberté, en laquelle vit nostre noble mesnager26. Dessas passagens, interligadas como vasos comunicantes, decantamos uma substância ascética evidente, que, a partir de uma arquitetura mental (e de uma fraseologia) latina, desconfia (ao menos textualmente) dos elementos e dos quadros sociais que habitam as grandes cortes do Renascimento europeu. Esta reatualização rustique do topos bucólico-pastoral tem, contudo, certos pressupostos que devem ser levados em consideração quando se fala em valorização da vida rural no final do século XVI – uma vez que esta nova cena deve ser entendida não exatamente no contexto bucólicorenascentista mas já no contexto pré-moderno da civilité, a noção-chave que define o comportamento cortesão por essa época27. 25 Ver Guy Du Faur Pibrac, Les quatrains de Pibrac; suivis de ses autres poésies, Paris, A. Lemerre, 1874 [Gallica, BnF YE- 30060], p. 117. 26 Olivier de Serres, Le Théâtre de l’Agriculture et Ménage des Champs (1600), Vol. IV, Paris, Meurant, 1802, p. 626 (conclusion). Encontrei a referência a Pibrac primeiramente em Maxime Gaume, Inspiration et les sources de l’Oeuvre d’Honoré d’Urfé, Université de Saint-Etienne, 1977, p. 288. 27 Para a reflexão clássica sobre o valor da civilité, ver Norbert Elias, O Processo civilizador (1939), 2 Vols., Zahar, 2000. E também Orest Ranum, “Courtesy, Absolutism, and the Rise of the French State, 1630-1660” in The Journal of Modern History, Vol. 52 n° 3 (Sep., 1980), pp. 426-445; Michael Curtin, “A Question of Manners: Status and Gender in Etiquette and Courtesy” in The Journal of Modern History, Vol. 57 n° 3 (Sep., 1985), pp. 395-423; Jacques Revel “Os usos da civilidade” in Philippe Ariès, Georges Duby & Roger Chartier (eds.), História da Vida Privada, Vol. 3, Da Renascença ao Século das Luzes (1986), Cia das Letras, 2006, pp. 169-209; Marvin Becker, Civility and Society in Western Europe, 1300-1600, Indiana University Press, 1988; Jennifer Richards (ed.), Early Modern Civil Discourses, Palgrave Macmillan, 2003; Anna Bryson, From Courtesy to Civility: Changing Codes of Conduct in Early Modern England, Clarendon Press, 1998, p. 24. N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E 67 Tal contexto é, a um só tempo, coerente e paradoxal. Por um lado, a França do Renascimento e do Ancien Régime é, para todos os efeitos, uma França rural: com quase 90% de sua população habitando o campo, a existência de uma literatura que o valorize seria quase que, olhando a partir da nossa experiência contemporânea, uma obviedade sócio-cultural. Mas, paradoxalmente, o que ocorre é o contrário. Como todas as suas instituições importantes (legislativas, religiosas, culturais) estão nas cidades e nas cortes (sobretudo, já por essa época, em Paris), a França pré-moderna pensa sua realidade interna de um modo esquizofrênico, transformando a cidade (minoritária em quase tudo) numa obsessão que permeia e controla todas as instâncias da sua vida intelectual28. Valorizar o campo, neste contexto, mesmo literariamente, tem certo ar de heterodoxia irônica. Além do mais, ressaltar sua superioridade em relação à cidade (tema essencial dos teóricos e poetas da vie rustique) implicaria, em última análise, num tipo de renúncia – uma renúncia complexa, claro, por conta das denegações implícitas e da lógica de legitimação social e cultural que a Cidade por excelência (Paris e sua corte, em nosso caso) impõe às classes abastadas francesas por essa época. Pois a Corte real do final do século XVI é já uma cosmologia particular: diferentemente dos quadros medievais da noblesse d’épée, onde o rei é um primum inter pares, a “nova” nobreza francesa, rural ou cortesã, de espada ou de robe, falida ou rica, que toma forma decisiva a partir dessas últimas décadas – mas cujo processo começa bem antes, com François I –, é uma aristocracia a mando do (e decorada pelo) Estado. E, em última análise, quando ocupando postos judiciários, é, na maioria das vezes, direta ou indiretamente, paga por ele29. Progressivamente, essa nobreza vai-se agregando à Corte naquela simbiose que define a clássica esfera político-administrativa da França moderna, sobretudo a partir de Henrique IV e dos Bourbons: a dos nobres estatizados30. 28 “As Hugues Neveux has recently observed, the geographic descriptions of France’s regions and provinces which developed as a literary genre from the second half of the sixteenth century onward regularly devoted as much as ninety per cent of their space to describing the towns of the regions in question. This reflects more than the simple fact that the most impressive architectural monuments of the kingdom were located disproportionately in the cities. Most of the institutions from law courts to episcopal sees which governed people’s lives and souls were found there as well. Much of the country’s wealth was, if not generated, then spent and displayed in the towns. And cities possessed exceptional significance in regional and national politics, as events from the Wars of Religion to the Revolution would demonstrate. Furthermore, it can be argued that between the years 1500 and 1789, the dominance exercised by cities over France’s economic and social life increased substantially” (Philip Benedict “French cities from the sixteenth century to the Revolution” in Philip Benedict, Cities and Social Change in Early Modern France, Routledge, 1992, pp. 6-7). 29 O fato de ser nobre paysan não significava, em absoluto, opulência ou tranquilidade financeira por si só: “Les revenus du domaine forment l’essentiel des ressources des gentilhommes campagnards, même si l’apport des droits seigneuriaux n’est pas négligeable lorsque ceux-ci sont perçus en nature. Ces moyens suffisent le plus souvent à leur procurer une vie conforme aux exigences de leur état” (Arlette Jouanna, La France de la Renaissance, Perrin, 2009², pp. 227-228). 30 Os chevaliers e títulos honoríficos concedidos pela Coroa francesa se multiplicam sensivelmente por essa época e a transformação dos gentilhommes em funcionários públicos é um dos pilares de um Estado Moderno apoiado, administrativamente, nos quadros da sua noblesse de robe: “A Corte é, antes de mais nada, um instrumento do poder real. Ela sustenta a nobreza, domesticando-a. Para muitas linhagens que se encontram em dificuldades devido ao modo de vida nobre, à preocupação com as aparências e à recusa de medir despesas, ‘fazer a corte’ e obter do soberano colocações, benefícios e doações são o único meio de escapar da ruína e da decadência social. É cada vez mais frequente que gaviões provincianos se apresentem ao rei para obter dele uma garantia de manter sua posição” (Jean Jacquart, François Ier, Fayard, 1981, p. 384). “Entre os Montaigne, sabe-se que o problema não é nem tanto a ‘preservação’, mas sim a elevação da posição social, sendo 68 A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M Para a elite que não só afirma literariamente, mas que efetivamente vive, a vie rustique, quer dizer, a nobreza paysan de fato, estar retirada no campo (longe da Corte) significa estar longe da cidade e de suas benesses civilizatórias. Mas para os rustiques cortesãos – que valorizam o campo de modo literário ou estetizado –, seria certamente um exagero imaginar que teorizam ou pregam algum tipo de retiro semi-monástico. Para os rustiques, valorizar o campo não significa dizer que, automaticamente, a civilização por inteiro é um mal31. Não se trata de macrobiótica social, de abandono do valor civilizatório da cidade para uma utopia animalesca do puro e do ingênuo, pois temos aqui um contexto de vida retirada onde os modelos são ainda e sempre obviamente aristocráticos e cortesãos: micro-ambientes que flutuam sob os poderes da cité. Pois mesmo quando, eventualmente, não está na Corte, essa aristocracia continua, às margens do mundo urbano, mesmo a léguas de distância da cidade mais próxima, funcionando com as armas da civilité: ou antes, contrabandeia e capitaliza a civilité em armadura, brasão e moral32. É evidente que nem Pibrac, nem Philippe Desportes33, e tampouco Olivier de Serres se pensam bárbaros porque escrevem sobre o campo (ou eventualmente a partir dele), glorificando ou estetizando sua excelência. Muito pelo contrário: o funcionamento da camuflagem aristocrática, já presente, aliás, na concepção teócrito-virgiliana de pastoral (aquela que põe pastores rústicos falando mais importante consolidar uma ascensão do que não afundar. Entretanto, na mente de Pierre Eyquem, a vocação de seu engenhoso herdeiro é inscrever-se nesse movimento que poderia ser descrito como a nacionalização da Corte, no qual a pequena ou média nobreza provinciana toma parte de bom grado” (Jean Lacouture, Montaigne a cavalo, p. 52). Para o contexto geral da mutação nobiliárquica no Renascimento francês, ver John Russell Major, From Renaissance Monarchy to Absolute Monarchy: French Kings, Nobles, and Estates, John Hopkins University Press, 1997; Keith Cameron, From Valois to Bourbon: Dynasty, State and Society in Early Modern France, Liverpool University Press, 1989; Arlette Jouanna. Le devoir de la révolte. La noblesse française et la gestation de l’État modern, 1559-1661, Fayard, 1989; Guy Chaussinand-Nogaret (ed.), Histoire des élites en France, du XVIe au XXe siècle, Tallandier, 1991; George Huppert, Les Bourgeois Gentilshommes. An Essay on the Definition of Elites in Renaissance France, University of Chicago Press, 1977; e para o caso específico de Montaigne, ver George Hoffmann, Montaigne’s Career, Clarendon Press, 1998. 31 Não devemos esquecer, claro, que a valorização do campo em relação à cidade (e vice-versa) funciona por vagas e depende de um sem-número de fatores que, muitas vezes, nada têm a ver com a vida no campo em si: “Nos tempos da Renascença, a cidade fora sinônimo de civilidade, o campo de rudeza e rusticidade. Tirar os homens das florestas e encerrá-los numa cidade era o mesmo que civilizá-los. Como dizia um diálogo elisabetano, um fidalgo criado na cidade seria mais ‘civilizado’ do que um educado no campo. A cidade era o berço do aprendizado, das boas maneiras, do gosto e da sofisticação. Era a arena de satisfação do homem. Adão fora colocado em um jardim, e o Paraíso terrestre associado a flores e fontes. Mas, quando os homens pensavam no paraíso da salvação, geralmente o visualizavam como uma cidade, a nova Jerusalém. (...)”. No entanto, o século XVIII começará a inverter essa noção: “(...) já bem antes de 1802, tornara-se lugar-comum sustentar que o campo era mais bonito que a cidade. ‘Ninguém’, escrevia William Shenstone em 1748, ‘preferirá a beleza de uma rua à de uma relva ou um bosque; na verdade, os poetas não achariam muito tentador o Elíseo, se o concebessem como uma cidade’” (Keith Thomas, O Homem e o Mundo Natural, pp. 290-291). 32 “The advantages of the country life are not limited to the abundance of good food, clean air, and fresh water that Guevara and his French imitators describe. The nobleman in the country is his own master, the ‘petit roi’ of his environs; at court, only the most powerful enjoy such freedom, while the majority of noblemen of modest fortunes live in servitude and obscurity. In the rural village, he is honored by the inhabitants of lower social status, and there are people much poorer than he upon whom he may bestow his liberality” (Jeanice Brooks, Courtly Song in Late Sixteenth-Century France, p. 361). 33 “O bien-heureux qui peut passer sa vie | Entre les siens, franc de haine et d’envie, | Parmy les champs, les forests et les bois, | Loin du tumulte et du bruit populaire, | Et qui ne vend sa liberté pour plaire | Aux passions des princes et de rois !” (Oeuvres, Bergeries, I, p. 431). N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E 69 em sofisticado grego-helenístico ou em hexâmetros dactílicos), continua no contexto rustique tão vivo, em sua medida, quanto nas idealizações literárias de Poliziano e Sannazaro: pois aristocratas rurais também têm seu séquito local de empregados, vizinhos, amigos e frequentadores34. Logo, a civilité não só continua em funcionamento no campo como é uma carapaça utilizada como forma instrumental de poder. Por esses e outros motivos, o que os rustiques franceses valorizam no campo não é a natura naturans, mas a natura naturata: não a natureza selvagem e primitiva dos bosques e dos rincões perdidos – que será a de Rousseau e a dos Românticos alemães –, mas a paisagem fértil e cultivável do Vale do Loire e da Île-de-France35. Ainda assim, o valor ascético do décor agrário-pastoral nas vies rustiques é evidente e podemos extrair dele até mesmo, pela via de uma amplificação de ordem ética, um valor medicinal. Este está de par com certas recomendações pré-modernas contra a melancolia e que envolvem alguma espécie de phármakon pastoral36. Não por acaso, quando Robert Burton se expressa neste sentido na Segunda Partição da sua Anatomia, após haver examinado as curas possíveis da melancolia (meios lícitos ou ilícitos, dietéticos, ascéticos – nas Seções 1 e 2) chegando às proposições de ordem consolatória (mas antes de passar às digressões de ordem propriamente farmacológica – na Seção 4), usa exatamente o trecho de Poliziano (que também são os termos de Pibrac) que citei mais acima, associado ao famoso trecho do Epodo II de Horácio: Beatus ille qui procul negotiis Paterna rura bobus exercet suis. [Horácio, Epodo II, 1-2] 34 Vemos, por exemplo, no diário de Gilles de Gouberville (escrito entre 1549 e 1562), oriundo da pequena e modesta nobreza campestre que não pertence necessariamente à noblesse de épée, uma sucessão de situações que demonstram seu enorme prestígio junto aos habitantes de sua região: o pároco que espera sua presença na igreja para dar início à missa; os camponeses que batem à sua porta para dirimir contendas legais – apesar de seu estatuto específico de nobreza não prever prerrogativas de cunho judiciário; os pedidos de apadrinhamento dos recém-nascidos e assim por diante (Cf. Arlette Jouanna, La France du XVIe siècle, p. 82). Temos, neste caso, um retrato bastante consistente de um microcosmo social paysan, hierarquizado por um elemento da pequena nobreza campestre, mas que é, na verdade, um sistema bem horizontalizado de trocas diretas: “a familiaridade rural entre patrão e empregado, vivendo muito perto um do outro, em constante relação na família doméstica, nas atividades do campo: as ordens dadas para a realização das tarefas do dia, o salário pago diretamente pelo dono, o universo do trabalho em comum nos prados, nos campos e nos bosques” (Madeleine Foisil, “A Escritura do foro privado” in Philippe Ariès, Georges Duby & Roger Chartier (eds.), História da Vida Privada, Vol. 3, Da Renascença ao Século das Luzes (1986), Cia das Letras, 2006, p. 344). Para o texto de Gouberville, usei Le Journal du Sire de Gouberville (Eugène de Beaurepaire, ed.), 2 Vols., Caen, Henri Delesques, 1892. Ver Philippe Hamon, “Gilles de Gouberville officier” in Les Cahiers du Centre de Recherches Historiques, n° 23, 1999; Madeleine Foisil, Le Sire de Gouberville, Flammarion, 2001². Ver também Emmanuel Le Roy Ladurie, História dos Camponeses Franceses (2002), 2 Vols., Civilização Brasileira, 2007, esp. cap. II 35 Jacqueline Bouchet, “Vrai ou faux amour de la campagne à la cour des derniers Valois”, p. 60. 36 Federico Schneider, Pastoral Drama and Healing in Early Modern Italy, 2010, especialmente o último capítulo “The Pastoral phármakon”, pp. 203-210: o contexto, neste caso, refere-se mais a uma teoria do drama pastoral como phármakon [quer dizer, droga medicinal], mas é iluminador para a relação da pastoral com a melancolia. Ver também Laurent Giavarini, “Représentation pastorale et guérison mélancolique au tournant de la Renaissance: questions de poétique” in Etudes Epistémè, n° 3 (avril 2003), pp. 1-27; Laurence Plazenet, “Inopportunité de la mélancolie pastorale: inachèvement, édition et réception des œuvres contre logique romanesque” in Etudes Épistémè n° 3 (avril 2003), pp. 28-95. 70 A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M Happy he, in that he is freed from the tumults of the world, he seeks no honours, gapes after no preferment, flatters not, envies not, temporiseth not, but lives privately, and well contented with his estate; Nec spes corde avidas, nec curam pascit inanem Securus quo fata cadant. [Poliziano, Rusticus, vv. 24-25] He is not troubled with state matters, whether kingdoms thrive better by succession or election; whether monarchies should be mixed, temperate, or absolute; the house of Ottomans and Austria is all one to him; he inquires not after colonies or new discoveries; whether Peter were at Rome, or Constantine's donation be of force; what comets or new stars signify, whether the earth stand or move, there be a new world in the moon, or infinite worlds, &c. He is not touched with fear of invasions, factions or emulations; Felix ille animi, divisque simillimus ipsis, Quem non mordaci resplendens gloria fuco Solicitat, non fastosi mala gaudia luxus, Sed tacitos sinit ire dies, et paupere cultu Exigit innocuae tranquilla silentia vitae. [Poliziano, Rusticus, vv. 17-21]37 Poderíamos estender essas considerações, mas, para o que me propus aqui, esse pequeno resumo já mostra algumas possibilidades. Fazendo uma temerosa inflexão de ordem geral, poderíamos dizer que, na sociedade europeia pré-moderna, a disseminação da literatura pastoral se dá não apenas na aplicação recontextualizada de um modelo literário helenístico-romano, mas faz parte de uma ampla, contínua e dinâmica reflexão sobre certos padrões de comportamento e ação envolvendo a cidade e o campo. Essa reflexão canibaliza e ressignifica elementos de ordem literária na criação de um universo bastante particular de práticas sócio-culturais. E é a partir de um contexto diretamente derivado da vie rustique francesa, que por sua vez depende de topoi pastorais clássicos e modernos (apoteose da vida no campo, phármakon pastoral, revalorização de temas agrários na literatura, melancolia difusa, complexificação denegatória da civilité), que gostaria de analisar o texto abaixo. 37 “[Beatus ille...] Feliz daquele que, livre dos tumultos mundanos, não busca honras, não se embasbaca atrás de promoções, não bajula, não inveja, não temporiza, mas vive reservado e contente com seu estado, [Nec spes...]. Não se perturba com assuntos de estado, ou se reinos prosperam melhor por sucessão ou eleição, se monarquias deveriam ser mistas, temperadas, ou absolutas; a casa de Osmã e a Áustria para ele são a mesma coisa; ele não questiona sobre colônias e novas descobertas; se Pedro está em Roma, ou se a doação de Constantino fora feita à força; que significam cometas e novos astros, se a Terra está imóvel ou movente, se há um novo mundo na Lua, ou infinitos mundos, etc. Ele não se comove por medo de invasões, facções ou emulações; [Felix ille...]” (Robert Burton, A Anatomia da Melancolia [tradução de Guilherme Gontijo Flores], Vol. III da edição brasileira, Segunda Partição, Seção 3, Membro 3, Subseção 1, p. 204. As citações em latim estão no original inglês.). N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E 71 II An. Christi 1571 aet. 38, pridie cal. mart., die suo natali, Mich. Montanus, servitii aulici et munerum publicorum jamdudum pertaesus, dum se integer in doctarum virginum recessit sinus, ubi quietus et omnium securus (quan)tillum in tandem superabit decursi multa jam plus parte spatii: si modo fata duint exigat istas sedes et dulces latebras, avitasque, libertati suae, tranquillitatique, et otio consecravit38. Estas linhas ornam uma das paredes da Torre do château de Montaigne e tudo indica que foram escritas logo após a entrega do posto que Michel ocupava desde 1557 no Parlement de Bordeaux (seu primeiro posto, na Cours des Aides do Perigord, em 1556, foi absorvido pelo Parlement quando a Cours foi extinta em 1557). Seu pai, Pierre Eyquem de Montaigne, morrera um pouco antes, em 1568, e parece que Michel, a partir daí Sire de Montaigne e até então parlamentar por conta dos desejos de ascensão nobiliárquica da família, se sentia finalmente livre para cortar o último dos cordões umbilicais39. 38 “No ano do Cristo de 1571, com a idade de trinta e oito anos, na véspera das calendas de março, no aniversário de seu nascimento, Michel de Montaigne, já há muito tempo entediado com a escravidão da Corte do Parlamento e dos cargos públicos, sentindo-se ainda bem disposto, vem isolar-se para repousar no seio das doutas Virgens, na calma e na segurança; aí ele atravessará os dias que lhe restam para viver. Esperando que o destino lhe permita aperfeiçoar esta habitação, estes doces refúgios paternos, ele os dedicou à sua liberdade, à sua tranquilidade e a seu lazer". A citação em latim em Michel de Montaigne, Ensaios, Vol. 1, p. LXXXII; a tradução, de Costhek Abilio, p. LIX. 39 “Embora Jacques-Auguste de Thou veja em Montaigne (de longe) um magistrado ‘assíduo’, a experiência de Montaigne com a toga não deixa de ser uma série de desculpas para se esquivar, de viagens a trabalho, de férias fora de época. É significativo que a primeira referência a seu nome nos arquivos da região de Guyenne seja relativa a uma falta... E que o principal caso que conduziu, segundo os arquivos municipais, tenha envolvido a cobrança do imposto sobre bois, vacas e carneiros...” (Jean Lacouture, Montaigne a cavalo, p. 100). 72 A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M Do ponto de vista formal, esta inscrição de 1571, não é nem literatura, nem filosofia, nem história, nem ciência, mas uma efeméride, como as que foram escritas pelos Montaigne nas Efemérides de Beuther40. E as efemérides, que se associam tanto ao diário íntimo avant la lettre quanto a eventos de ordem cósmica, religiosa e civil, recortam um momento singular no tempo do indivíduo e do mundo. No entanto, embora efeméride, podemos facilmente ampliar seu quadro hermenêutico. Efetivamente, a inscrição pode ser entendida como o primeiro exemplo do mesmo impulso por citações que anima a ornamentação das famosas traves da sua Biblioteca41. Neste caso, podemos acrescentar-lhe também uma faceta gnômica explícita – aquela que, por sua vez, é tão característica do próprio texto dos Ensaios. Se entendida assim, a inscrição de 1571 constitui o primeiro momento da economia citacional que os anima: é sua abertura simbólica e concreta, ainda que algo paradoxal42. Com isso em mente, este pequeno texto explicitamente arcaizante43 – a princípio claro em seus objetivos imediatos (aposentadoria parlamentar e exclusivismo da vida intelectual), mas no fundo bastante enigmático – pode ser lido no quadro das inscrições de ordem monumental, como as do antigo Egito ou da antiga Pérsia44. Ou, ao contrário, como documento de derrota e capitulação45. Pode ser lido como grafito: marcando ou 40 As Éphémérides de Beuther eram uma espécie de agenda (trazendo apenas os dias e os meses) que mostrava as principais datas comemorativas do calendário. Não trazendo indicação do ano, e como metade de cada página era em branco, o usuário podia inscrever nela suas próprias efemérides (casamentos, nascimentos, óbitos, festas) durante praticamente a vida toda, e mesmo além – a agenda passando de pai para filho, por gerações. Ver “Notes de Montaigne inscrites sur son exemplaire des ‘Ephémérides’ de Beuther” in Montaigne (Albert Thibaudet & Maurice Rat, eds.), Œuvres Complètes [Bibliothèque de la Pléaide], Gallimard, 1962, pp. 1401-1415. 41 Sabe-se que a inscrição de 1571 foi gravada e pintada em um painel na parede do gabinete contíguo, mas as inscrições gregas e latinas da Biblioteca do château foram talhadas em baixo relevo nas 48 traves e vigas de madeira do seu teto (o que as torna solidárias de um dos topoi pastorais, como veremos abaixo). Ver Alain Legros, Essais sur poutres. Peintures et inscriptions chez Montaigne. Klincksieck, 2003². 42 Neste caso, ironicamente, a primeira das citações desta economia gnômica (quer dizer, as frases gregas e latinas das traves que se juntam às infinitas citações de autores antigos nos ensaios) não só não está no texto dos Ensaios como é do punho do próprio Montaigne. Reforça o aspecto gnômico geral, obviamente, o fato de a inscrição de 1571 também estar em latim, como a maioria das citações presentes nas traves e nos Ensaios. 43 “(...) tournée dans l’style de l’épigraphie classique” (Hugo Friedrich, Montaigne, p. 22). 44 Podemos considerar a arte rupestre pré-histórica como inscrições monumentais, mas esta a que me refiro aqui precisa da invenção da escrita. A inscrição de Behistun (nos montes Zagros, província de Kermanshah, no Irã) é um exemplo disso que chamo de inscrição monumental: imensa (25 x 15 m), foi gravada por volta de 515 a.C. na rocha de uma falésia, a 100 m de altura, a mando de Dario I (550-486 a.C.). Escrita em três línguas (antigo persa, elamita e acadiano), conta a história da sua ascensão ao poder diante de Smerdis da Pérsia. Tem pois uma dimensão solene, grave, institucional e ao mesmo tempo de júbilo, que caracteriza o ato conquistador. 45 Como se sabe, o título Chevalier de l’Ordre de Saint Michel foi outorgado a Michel de Montaigne também em 1571, a mando do rei Charles IX. A designação chevalier quer dizer, entre outras coisas, que o nobre com esse título descende da mesma linhagem dos nobres equestres romanos (a ordo equester reorganizada por Augusto como segunda ordem do Estado, lotada sobretudo nas províncias). Assim como os membros da ordo equester romana, que eram proprietários rurais (o equestre típico é um “bonus agricola”), o chevalier embora, essencialmente, um soldado, pode ficar sentado atrás de uma mesa, trabalhando diante de uma pilha de papel, rodeado por seus assessores ou cuidando de suas terras. Neste caso, um soldado que se alinha na tradição das antigas decúrias judiciárias do Império, perfazendo uma carreira no Direito e não no exército (Cf. Paul Corbier, L’épigraphie latine, esp. cap. 5, “Les cursus équestres et leur fusion avec les carrières sénatoriales au IVe siècle”, pp. 63-77). Desse modo, a inscrição de 1571 pode ser lida como um documento, irônico, de capitulação: à entrada na ordem dos cavaleiros N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E 73 poluindo o espaço público ou privado com palavras de ordem, codificações secretas, esotéricas ou simplesmente ininteligíveis (o latim tem, nisso, algumas vantagens e a criadagem do château constitui seu público incompreensivo)46. Neste caso, é também solidário às garatujas de banheiro, quer dizer, marca de comportamento eliminativo47. Pode ser lido como inscrição de caráter votivo, amoroso ou profético (no registro pastoral)48, ou como inscrição devocional e simbólica aos daimones ancestrais – os antigos romanos diriam de devoção aos deuses “Lares”49. Pode ser lido como documento corresponde a saída da vida pública. 46 Podemos pensar nos antigos graffiti (que para nós perderam completamente a noção de coisa ordinária para entrar no corpus sagrado dos monumentos) mas também no grafito moderno, demarcando uma cultura ou sub-cultura específica (o caso do hip-hop é um exemplo, cf. Janice Rahn, Painting without Permission: Hip-Hop Graffiti Subculture, Greenwood Press, 2002). Sem muita elucubração, também podemos pensar o texto na ordem da pichação pura e simples. Há, em todo caso, uma longa tradição associada a essas operações. “Most out-of-place inscriptions can be classified as tourist graffiti, inner-city graffiti of toilet graffiti. Tourist graffiti are scratched on rocks, trees and monuments by passing visitors and consist mainly of names, dates and simple expressions of affection. Roman soldiers left them on the pyramids during their occupation of Egypt, and hundreds of Greek and Latin inscriptions of the form ‘Kilroy was here’ have been found on rocks at a popular resting spot beside an ancient trail in Palestine. Inner-city graffiti tend to be more elaborate, featuring names, images and statements of identity painted on city walls, often staking territorial claims. Toilet graffiti – dubbed ‘latrinalia’ by one scholar – appear on bathroom walls. They are produced in a setting that is an unusual mixture of private and public. All graffiti-writing requires a certain amount of secrecy, and bathroom stalls are more private than the spaces where other forms of graffiti are produced, allowing wall-scribblers more time and leisure to compose their messages. The chances of being caught in the act of writing are minimal if the latch is correctly engaged” (Nick Haslam, Psychology in the Bathroom, Palgrave, 2012, pp. 114-115). 47 Roger-Henri Guerrand, Les lieux. Histoire des commodités, La Découverte, 1985; Nick Haslam, Psychology in the Bathroom, Palgrave, 2012; Harvey Molotch & Laura Noren, Toilet: Public Restrooms and the Politics of Sharing, NYU Press, 2010. 48 Se considerarmos a inscrição de 1571 (apesar de pintada numa parede) como mais um texto somado ao conjunto gnômico das traves, podemos aproximá-las das inscrições que ocorrem nos subtextos bucólicos, inscrições em madeira (quer dizer, nas árvores clássicas da literatura pastoral: a faia, o plátano, a cerejeira e o pinheiro), ora alimentando a mitologia de uma iminente época de ouro (Virgílio, Bucólicas IV; Calpúrnio Sículo, Bucólicas, I, vv. 21-89; Bucólicas, IV, vv. 128-136); ora lembrando recados eróticos entre amantes (Calpúrnio Sículo, Bucólicas, III, vv. 43 e ss; Virgílio, Bucólicas, V, vv. 13 e ss). Teócrito também faz referência ao plátano ornado por uma inscrição votiva: “(...) tomando um estilete de prata verteremos o untuoso licor gota a gota sobre um plátano umbroso. E uma inscrição será gravada sobre sua casca para ser lida pelo passante, como fazem os dórios: ‘Honrem-me, sou a árvore de Helena’” (Idílios, XVIII, v. 45-49). O tema é retomado por Sannazaro, no prólogo da sua Arcadia. 49 Juntamente com a pietas – quer dizer, o respeito à memória familiar e cívica –, o culto aos deuses Lares é um dos fundamentos da vida religiosa romana, desde a época real. Ele era atribuição exclusiva do pater familias (função, aliás, muito parecida com a de Michel de Montaigne a partir da morte de Pierre Eyquem, noves fora as diferenças históricas mais imediatas), e normalmente era prestado num altar (o lararium ou sacrarium) que ficava no atrium (peça frontal da casa, próximo à porta), o que faz do culto doméstico aos Lares uma religião de foyer: “The paterfamilias was responsible for maintaining the traditional rites of his family, the worship of the Lares and Penates and the other sacra inherited from his ancestors and destined to be passed on to his descendants (the sacra familiae); while on the country estate, as we learn from the agricultural handbook of Cato the Elder, the whole household (familia) including the slaves, would gather together for ceremonies to purify the fields and to pray to the gods for protection and for the fertility of crops and herds” (Mary Beard, John North & Simon Price, Religions of Rome, Vol. 1, CUP, 1996, p. 49). 74 A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M mágico50. Como epitáfio, cenotáfio ou placa memorial51 – e, neste caso, uma derivação possível é a de ser lido como uma inscrição de esquife52. Pode ser lido como documento 50 Inúmeros papiros gregos mágicos (que respondem pela sigla técnica PGM), por exemplo, mostram não apenas conjuntos de recitações ou fórmulas, utilizadas em práticas rituais ou semi-rituais, mas também regras para confecção de amuletos (filactérios) – que, uma vez sacralizados pelo ritual mágico, precisam permanecer junto ao corpo ou nos aposentos dos que esperam receber dele algum benefício (o olho de boi ou ferradura na porta de entrada das casas de hoje são sobrevivências dessas práticas antigas). Ver sobretudo Hans Dieter Betz (ed.), The Greek Magical Papyri in translation, University of Chicago Press, 1986. E também Christopher Faraone & Dirk Obbink (eds.), Magika Hiera. Ancient Greek Magic and Religion, OUP, 1991; John Gager (ed.), Curse Tablets and Binding Spells from the Ancient World, OUP, 1992; Marvin Meyer & Paul Mirecki (eds.), Ancient Magic and Ritual Power, Brill, 2001; Paul Mireki & Marvin Meyer (eds.), Magic and Ritual in the Ancient World, Brill, 2001; Matthew Dickie, Magic and Magicians in the Greco-Roman World, Routledge, 2001; Jan Bremmer & Jan Veenstra (eds.), The Metamorphosis of Magic from Late Antiquity to the Early Modern period, Peeters, 2002; Richard Kieckhefer, Magic in the Middle Ages, CUP, 1989. Boa compilação de ilustrações de amuletos para diversos fins em Sheila Paine, Amulets. A World of Secret Powers, Charms and Magic, Thames & Hudson, 2004; e também Claude Lecouteux, Le livre des talismans et des amulettes, Imago, 2005. Um exemplo de fabricação de filactério no contexto greco-romano é o PGM VII, linhas 579-590 (Cf. Betz, Op. cit., p. 134) – e a inscrição de 1571, com sua logística obsequiosa e de invocação, permite aproximá-la desse tipo de artefato mágico. No mesmo sentido, a partir de um raciocínio consideravelmente surrealista, a inscrição de 1571, se relida nesse contexto, poderia levar a uma reavaliação ampla e complexa da própria atividade citacional montaignista: a inscrição, somando-se à economia gnômica das traves, por sua vez ampliada pela economia gnômica dos próprios Ensaios, formariam um conjunto sentencioso relativamente coeso e solidário, doravante lido na perspectiva dos grimoires – livros mágicos contendo compilações de fórmulas e feitiços variados, quase sempre de segunda mão, e seu modus operandi. Ver Owen Davies, Grimoires, a History of Magic Books, OUP, 2009; Claude Lecouteux, Le Livre des Grimoires. De la magie au Moyen Age, Imago, 2008³. Neste caso, inverteríamos completamente a ordem das coisas: não o texto dos Ensaios sendo ornamentado por citações, mas as citações ornamentadas pelo texto dos Ensaios. Por último, como reforço a essa dimensão mágico-religiosa, não devemos esquecer que o latim, apesar de toda a sua importância para o humanismo do Renascimento, é também uma língua eclesiástica e, em última análise, também uma língua esotérica. 51 O túmulo e o epitáfio são, visualmente, e enquanto memento mori, os signos árcades da melancolia – elemento explorado, mais tarde, por Guercino e, sobretudo, por Nicolas Poussin em suas telas retratando Les Bergers de l’Arcadie. O memento mori, como vimos, já era valorizado como componente pastoral desde Sannazaro (o topos tumular arcadiano foi extraído da Écloga XII da sua Arcadia). A mais completa iconografia da melancolia (e da melancolia associada ao memento mori) que conheço é Jean Clair, Mélancolie. Génie et folie en Occident, Gallimard, 2005. Para o epitáfio na Antiguidade, Maureen Caroll, Spirits of the Dead: Roman Funerary Commemoration in Western Europe, OUP, 2006. Para uma poética do túmulo, Scott Newstock, Quoting Death in Early Modern England. The Poetics of Epitaphs Beyond the Tomb, Palgrave, 2009. Para a morte na Arcádia ver Bruno Damiani & Barbara Mujica, Et in Arcadia ego: essays on death in the pastoral novel, University Press of America, 1990. Para uma perspectiva geral do tema da morte e do fúnebre, Jean-Claude Schmitt, Os Vivos e os Mortos na Sociedade Medieval (1994), Cia da Letras, 1999; e, claro, Philippe Ariès, O Homem diante da Morte (1977), 2 Vols., Francisco Alves, 1982, e História da Morte no Ocidente (conferências de 1974), Nova Fronteira, 2012 [Saraiva de Bolso]. 52 No sentido dos coffin texts egípcios, textos exequiais inscritos no interior dos sarcófagos com o fim de ajudar o morto no trajeto ao além e no desenrolar da vida póstuma. São, no final das contas, documentos mágicos. A maior parte das inscrições vem dos textos piramidais do Império Antigo (~2700-2180 a.C.) e do chamado Livros dos Mortos – o que quer dizer que, inicialmente, eram de domínio exclusivo dos faraós. Depois do colapso do Império Antigo, inscrições desse tipo passam a figurar também nos sarcófagos comuns (de quem tinha dinheiro para comprá-los, claro), fenômeno denominado pelos especialistas de “democratização da vida além-túmulo”. Muitos desses textos implicam numa dramatização de um tribunal divino, o que não deixa de ser interessante no contexto pós-parlamentar de Montaigne (os parlements franceses do Ancien Régime são instituições de caráter jurídico, quer dizer, tribunais, e não de caráter legislativo): “Salve Thoth e seu Tribunal. Salve, ó Thoth, em quem está a Paz dos deuses, e todo o tribunal que está contigo!” (Faulkner, I, texto 9). Ver Steven Snape, Ancient Egyptian Tombs: The Culture of Life and Death, Wiley-Blackwell, 2012; Raymond O. Faulkner, The Ancient Egyptian Coffin Texts, 3 vols., 1972-78. Para os textos do Livro dos Mortos, E. A. Wallis Budge, O Livro Egípcio dos Mortos (1923), São Paulo, Pensamento, 1993. N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E 75 utópico53. Como documento escatológico-milenarista54. Ou simplesmente como literatura de parede, onde a própria casa é entendida como livro55. A inscrição indica ou pressupõe, portanto, um cosmo complexo e cheio de energia potencial. Ela sugere não apenas uma posição de princípio (no registro ético ou moral), mas também um lugar – um locus amoenus56 – múltiplo, multifacetado e com características bastante peculiares. Aqui, no entanto, quero explorar apenas uma dimensão fracionária desse locus, aquela que se liga à expressão mais propriamente ascética da vie rustique. E de fato, sem muito esforço, extraímos da inscrição de 1571, ao menos em princípio, um modelo de vida onde o Rusticus se sentiria em casa: o innocuae tranquilla silentia vitae (do verso 21) unido ao urbe procul e ao voti exiguus (do verso 22) do poema de Poliziano se casam com o ubi quietus, o ominum securus, o dulce latebras do texto da inscrição – ainda que, neste último caso, isto se dê num contexto que negocia com esse território austero da vie rustique e, aparentemente (por oposição ao texto de Poliziano, 53 A nova Idade do Ouro é, claro, também um topos pastoral. Em Virgílio, ele parece escapar do contexto das outras écoglas, mas o fato de ser um tema “um pouco mais alevantado” que os “arbustos e as humildes tamargueiras” da temática pastoral estrita não quer dizer que também não seja um tema pastoral – afinal de contas, a Écogla IV (que fala do nascimento de um menino prodigioso, que governará uma Roma beatífica e que terá ampla repercussão nas discussões milenaristas cristãs) foi publicada pelo próprio Virgílio como sendo uma... écloga. A passagem mais característica desse universo edênico é: “Ultima Cumaei venit iam carminis aetas; | Magnus ab integro saeclorum nascitur ordo. | Iam redit et Virgo, redeunt Saturnia regna [Já chegou a última idade da profecia de Cumas; a grande série de séculos recomeça. Já também retorna a virgem, voltam os reinos de Saturno]” (Virgílio, Bucólicas IV, vv. 4-6). Mais tarde, Calpúrnio Sículo igualmente celebrará sua própria época beatífica: “aurea secura cum pace renascitur aetas | et redit ad terras tandem squalore situque | alma Themis posito iuvenemque beata sequuntur | saecula, maternis causam qui vicit Iulis [Assegurada a paz, renasce a Idade de Ouro e, uma vez eliminada a torpeza e a sordidez, a benéfica Témis regressa, enfim à terra. Tempos felizes acompanham este jovem: saiu vitoriosa a causa dos maternos Julos]” (Calpúrnio Sículo, Bucólicas, I, vv. 21 e ss.). Estas passagens reforçam a ligação da literatura pastoral como um todo com os dispositivos utópicos (faceta que tem lugar preponderante também no desenvolvimento da vie rustique). Na citação de Virgílio, a referência é especialmente interessante, pois esse dispositivo utópico é anunciado, além da expressão Saturnia regna, pelo termo Virgo – que tem importância estrutural no texto da inscrição de 1571, como veremos abaixo. A dimensão utópica, neste caso, é, evidentemente, aquela que invoca o nascimento de um novo ciclo do tempo, um novo começo, uma nova ordem – compatíveis, portanto, com a atmosfera explícita da inscrição feita por Montaigne. 54 Faço uma consideração a respeito mais adiante. Para uma literatura geral sobre o milenarismo ver Norman Cohn, The Pursuit of the Millennium: Revolutionary Millenarians and Mystical Anarchists of the Middle Ages, OUP, 1970; Barry Brummett, “Premillennial Apocalyptic as a Rhetorical Genre” in Central States Speech Journal 35 (Summer 1984), pp. 84-93; Stephen O’Leary, Arguing the apocalypse: a theory of millennial rhetoric, OUP, 1998; Bernard McGinn, Visions of the End. Apocalyptic Traditions in the Middle Ages, Columbia University Press, 1979. 55 Na Inglaterra elisabetana, por exemplo, as paredes são também utilizadas para comportar textos, sobretudo textos poéticos. No Welspring of wittie Conceights (anônimo, 1584) ou no A Hundreth good pointes of husbandry, lately maried unto a hundreth good poynts of huswifery (1570) de Thomas Tusser, encontramos propostas literárias específicas para esse tipo de inscrição: “At the end of the Welspring of wittie Conceights occurs a set of ‘Certaine worthie sentences, very meete to be written about a Bed-chamber or to be set up in any convenient place in a house’. The appendices to Thomas Tusser’s A Hundreth good pointes of husbandry… similarly include a series of something called ‘Husbandly Poesies’ – ‘Poesis for the hall’, ‘Posies for the Parler’, ‘Posies for the gest’s Chamber’ and ‘Posies for thine own bed Chamber’. These two sets of poems bear witness to the surprising fact that the Elizabethan householder was advised to write on his, or her, own walls. Evidence that such advice was followed is furnished by two Hertfordshire properties, on whose interior walls selections from Tusser’s posies can still be read” (Juliet Fleming, Graffiti and the Writing Arts of Early Modern England, Reaktion Books, 2009, p. 29). 56 Alexander Samson (ed.), Locus Amoenus. Gardens and Horticulture in the Renaissance, Wiley & Sons, 2012. 76 A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M que é altamente virtuosístico), não tenha em si grandes aspirações literárias57. Claro, por “modelo de vida” devemos entender o sentido que a palavra “modelo” guarda em termos de singularidade, de valor ideal: na inscrição de 1571, trata-se obviamente de uma tomada de posição, uma carta de intenções (o cansaço do trabalho no Parlamento conduziu à entrega do cargo e à vida doravante voltada para o château), mas não necessariamente de uma práxis real que deva ser entendida ao pé da letra58. E, neste caso, temos em funcionamento um exemplo de menosprecio – com suas inerentes contradições e paradoxos cortesãos. Seja lá como for, quer espelhe uma necessidade contingente ou uma mera intenção superficial, há algo de irônico nesta declarada ascese rústica, pois o “seio das doutas virgens” [doctarum virginum sinus] alia uma densidade altamente sexualizada à imagem do οἶκος ancestral. Essa correlação irônica se fortalece na medida em que “sinus virginum” coincide actancialmente, no texto da inscrição, com “dulces latebras” enquanto os lugares invocados como os de repouso e de reflexão59. Pois sinus pode ser entendido como seio, mas também como vagina60; e o substantivo latebras, embora seja um termo elegante para refúgio, está muito próximo do adjetivo latebrosus – que, associado a locus, pode significar tanto o lugar oculto, o recanto profundo e obscuro, quanto o lugar desrespeitável61. Sem contar que o mesmo radical também serve à 57 “[A inscrição de 1571 é] o pior e menos verdadeiro dos textos que [Montaigne] jamais escreveu” (Jean Lacouture, Montaigne a cavalo, p. 143). 58 A decisão pelo recolhimento, provavelmente preparada há muito tempo mas anunciada no dia do seu aniversário (28 de fevereiro), tem algo de teatral. Teatral também será a data de publicação da primeira edição dos Ensaios, 1 de março de 1580, no dia seguinte ao seu aniversário de 47 anos. Montaigne considerava seus novos ciclos sócio-profissionais como renascimentos? Certamente gostava de dramatizá-los. Seja como for, o “retiro do mundo”, como se sabe, mostrou-se um exagero: mesmo depois da entrega do cargo em 1571, Montaigne continuou uma intensa vida social e política, muito pouco ascética e solitária. Para uma análise histórica do tema do recolhimento, ver Georges Minois, Histoire de la solitude et des solitaires, Fayard, 2013; e Bernard Beugnot, Le Discours de la retrait au XVIIe siècle, PUF, 1996. Para uma abordagem sociológica, ver Roelof Hortulanus, Anja Machielse & Ludwien Meeuwesen, Social Isolation in Modern Society, Routledge, 2006. Em todo caso, por razões que explico mais abaixo, não gostaria de assimilar muito rapidamente o tema do contemptus mundi (na lógica místico-eclesiástica) à inscrição de 1571. Para este último, ver Michel de Certeau, Jean Daniélou et alli, Le mépris du monde, Cerf, 1965. 59 A tradução de Costhek para a inscrição de 1571, que segue literalmente a de Villey (pelo que se vê, o texto em português foi feito a partir do francês e não do latim), assumiu “dulces latebras, avitasque” como “doces refúgios paternos”, mas seria mais correto e literal dizer “refúgios doces e avoengos”. Muito embora possa ser subentendida, uma vez que Michel de Montaigne colocou a inscrição num dos cômodos do castelo que herdou do pai, não é a palavra “păternus, -a” que figura literalmente no texto em latim mas ăvīta [genitivo de ăvītus]: adjetivo que designa não o pai, mas o avô, o que muda completamente o contexto. Agradeço a Gustavo Olivieri a observação. 60 “Sinus is used of the vagina or womb by Tibullus, 1.8.36: ‘teneros conserit usque sinus’; cf. Ovid Fast. 5.256 ‘tangitur et tacto concipit illa sinus’. As an anatomical (or near-anatomical) term sinus strictly denoted the space between the chest and the arms held in front of the chest as if to clasp an object (= ‘bosom’). It is not from this usage that the above anatomical examples could be derived, but from its use in application to any hollow space or cavity” (J. N. Adams, The Latin Sexual Vocabulary, Duckworth, 1982, p. 90). 61 É este, por exemplo, o sentido de latebrosus no contexto de uma comédia de Plauto, as Báquidas. A entrada no Lewis-Short dá o seguinte: “lătēbrōsus, a, um, adj. latebra, full of lurking-holes or coverts, hidden, retired, secret. Lit. (rare but class.): loca, lurking-places, disreputable haunts, Plaut. Bacch. 3, 3, 26: via, * Cic. Sest. 59, 126: locus, Liv. 21, 54: viae, Amm. 14, 2, 2: loca, id. 17, 1, 6: flumina, Verg. A. 8, 713: latebrosae tempora noctis, Luc. 6, 120: serpens, Sen. Oedip. 153: latebrosa et lucifuga natio, Min. Fel. 8, 4.—Poet.: pumex, i. e. full of holes, porous, Verg. A. 12, 587”. A citação de Plauto: Magis illectum tuom quam lectum N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E 77 formação do perigoso substantivo latebricola62. Lugar desrespeitável onde se vai para repousar sobre as vaginas das doutas musas/virgens...63. Na inscrição de 1571 temos, evidentemente, uma lógica rústica e pastoral – mas que se cristaliza perfeitamente na performance contemplativa e extática do otium cum litteris humanista64. Afinal de contas, a rusticidade não se contrapõe à civilização65. Mas tal performance, em princípio ascética (ou puramente intelectual), existe num cenário erótico irônico e subliminar. A tensão entre os elementos masculinos e femininos presentes no texto em latim (expressos por vocábulos intelectualizados e/ou da tradição monástica, e que ordinária e classicamente são esvaziados de perspectiva corporal, como quietus, otium, tranquillitas, libertas) pode ser lida como perversamente complementar a esta densidade erótica e, na esteira desse jogo de significados, a relação estrutural entre latebras e sinus (relidos e ressignificados, como fiz acima, nos difamáveis domínios da lubricidade) não faz senão amplificá-la66. metuo. mala tu es bestia. | nam huic aetati non conducit, mulier, latebrosus locus. [Tenho menos medo dos teus jantares que das tuas iscas; és um animal sagaz. Na minha idade, moça, devemos evitar esses lugares de má reputação] (Báquides, Ato I, cena I, vv. 55-56). O contexto (a peça trata de uma escrava meretriz emprestada que não quer voltar ao seu dono) é evidentemente irônico, mas os tradutores do final do século XIX e início do século XX que verteram esta peça para as línguas modernas (ao menos nas versões que pude checar em francês e inglês) esvaziaram por completo a expressão latebrosus locus de seu sentido sexual. No subúrbio carioca dos anos 1970, traduziríamos a expressão latebrosus locus por “inferninho”, gíria da época para puteiro – guardando assim as características tectônicas e abscônditas de latebrosus, embora com um colorido judaicocristão que não se aplica a Plauto. “Inferninho” é bom ainda por outra razão: coincidentemente, o mais famoso latebrosus locus intelectual que se conhece hoje é o Enfer da Bibliothèque Nationale (sendo “enfer” um termo genérico usado pelos bibliotecários franceses para designar suas sessões de livros licenciosos e pornográficos), o que, a partir do projeto intelectual de Montaigne (a Biblioteca do château estreitamente ligada à produção dos Ensaios), só faria re-energizar sexualmente o contexto da inscrição e da vida intelectual de seu autor. 62 Quer dizer, “o que frequenta lugares de baixa reputação”. Mais uma vez, o contexto é de uma comédia de Plauto, Trinummus, v. 240: latebricolarum hominum corruptor. 63 É interessante notar que Starobinski, embora não tenha atentado para a possibilidade desse bricabraque terminológico psicodélico, também faz uso de uma leitura algo erótica de “sinus virginum” partindo, porém, do conceito psicanalítico de regressão: “A libertação vai de par com o encerramento. Uma estrita oposição se manifesta entre a expressão do desgosto, a vontade de ruptura (servitii aulici et munerum publicorum jamdudum pertaesus) e o ato votivo que consagra e circunscreve estreitamente o lugar de retiro ([...] libertati suae, tranquillitatique, et otio consecravit). Esse lugar é metaforicamente o “seio das doutas Musas” (doctarum virginum sinus): trata-se, seguramente, das paredes que lhe oferecem, ‘ao curvar-se’ [Ensaios, II, 3, p. 828], a coleção das obras de poesia, de filosofia, de história que ele quer cercar-se. A imagem do afastamento (recessit) do lugar oculto (dulces latebras), a figura feminina das Musas (...) evocam, para o leitor moderno o conceito psicanalítico de regressão, com seu cortejo de noções associadas” (Jean Starobinski, Montaigne em Movimento, p. 17). Ainda assim, Starobinski insiste que “a inscrição inaugural de 1571 não deve ser lida essencialmente como um documento psicológico”. 64 A fórmula deriva de um trecho das Cartas de Sêneca: (...) otium sine litteris mors est et hominis vivi sepultura [O ócio sem o estudo é a morte, a sepultura do homem ainda em vida] (Epistulae morales 82, 3), servindo como divisa ou inspiração para diversos humanistas do Renascimento (Cf. Hugo Friedrich, Montaigne (1949), Gallimard, 1968, p. 22). 65 Como já adiantava Idas, personagem de Calpúrnio Sículo: “Ne contemne casas et pastoralia tecta: rusticus est, fateor, sed non et barbarus Idas [Não desprezes as minhas choupanas nem meus abrigos pastoris. Confesso que Idas é rústico, mas não bárbaro]” (Bucólicas II, vv. 60-61). Ainda aqui, a inscrição de 1571 acompanha a tradição pastoral, valorizando um de seus aspectos fundamentais: a imagem do rústico aristocrático. 66 “Quando Montaigne evoca a tranquilidade (quietus, depois tranquillitas), a segurança (securus), o repouso (otium), pode-se acreditar que não faz mais do que confirmar a natureza regressiva de seu desejo. Por certo, a casa é o lugar ancestral (avitas sedes) e remete à linhagem dos ancestrais masculinos, mas essa masculinidade, ligada desde 1477 à propriedade dominial, acha-se contrabalançada (para a argumentação psicanalítica) pelo gênero feminino de sedes e pela preponderância dos nomes 78 A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M O jogo erótico não é, evidentemente, estranho ao bucolismo normativo. É importante não perder de vista que o regime pastoral tem firme no horizonte, desde sempre, o amor e o amor erótico: é para entender o amor que o Gallus de Virgílio está na Arcádia da última écloga; e é o amor erótico que está em jogo quando o pastor Córidon se desespera diante do desprezo do belo Alexis, ou quando Ástaco e Idas disputam um torneio poético para conquistar a jovem Crócale (Calpúrnio Sículo, Bucólicas II): não se espera nada de intelectual quando tais desprezos forem contornados, quando tais conquistas se concretizarem67. Por sua vez, o desenraizamento topográfico da pastoral em direção a uma autonomia aplicável a contextos não bucólicos, quer dizer, sua desterritorialização68, torna esse jogo erótico pastoral (filtrado pelos mecanismos da vie rustique) um dispositivo aplicável também ao contexto da Biblioteca do château. Quando relidos no ethos pastoral, a amizade e o erotismo se complementam e se energizam neste espaço da vida intelectual, sobretudo quando sabemos que a Biblioteca tem sua origem nos livros herdados de Étienne de La Boétie, o amigo por excelência de Montaigne69. Eis, portanto, outra relação bastante sintomática de reificação erótica da Biblioteca como um latebras/latebrosus locus70. Ainda uma vez, a inscrição de 1571, como elemento fundacional da economia gnômica e do processo intelectual femininos, na lista dos termos que a inscrição consagra (depois de libertas e tranquillitas, apenas otium não é feminino, mas neutro!)” (Starobinski, Montaigne em Movimento, p. 17). 67 Note-se também que o regime erótico pastoral latino, continuado pela pastoral pré-moderna, teve como complemento a redescoberta da erótica das antigas novelas imperiais. 68 Ampliação de contexto, como vimos, presente já em Sannazaro, quando adaptou o bucolismo pastoral clássico (exclusivamente agrário) para um milieu não-campestre, substituindo os pastores pelos pescadores da região de Nápoles (as Eclogas piscatoriae foram publicadas em 1526). Ver Jacopo Sannazaro, “Piscatory Eclogues” in Latin Poetry (Michael Putnan, ed.), Harvard University Press [I Tatti Renaissance Library], 2009, pp. 102-141. 69 “On ne peut qu’en supposer les motifs [do retiro de Montaigne]; lui-même s’est exprimé de façon très vague à ce sujet. Ils tiennent peut-être dans l’obligation, survenue à la mort de son père, de reprendre la charge du château en qualité d’héritier. Il est possible que des déceptions politiques, la satiété de sa magistrature, le chagrin d’avoir perdu son ami La Boétie, aient joué leur rôle. Nous savons en tout cas qu’il s’installa dans sa ‘librairie’, entouré de livres dont la plupart lui venaient de la succession de La Boétie (…).” (Friedrich, Montaigne, p. 22). 70 Um dos elementos mais fundamentais da civilité, a conversação, não escapa de uma perspectiva erótica – complementada na imagem do casamento heterossexual como dispositivo que desfaz, no cidadão comum (quer dizer o cortesão que não é nem eclesiástico, nem asceta em busca de Deus), os perigos da solidão (problema complexo no contexto corteggiano, uma vez que impede o exercício das virtudes civis que são próprias ao homem socializado): “(...) et con la medesima raggione debbiamo porre quest’altro fondamento, ch’essendo l’huommo animal sociabile, ami di natura sua la prattica de gli altri huomini, & habbia in odio la solitudine, & facendo il contrario offenda l’istessa natura” (Stefano Guazzo, La Civil Conversazione, Tomazzo Bozzola, 1574, pp. 4-5). Milton, por exemplo, falará do casamento insistindo nesses termos: “In The Doctrine and Discipline of Divorce, [John] Milton argues that the original purpose of marriage was ‘to comfort and refresh [man] against the evil of solitary life’, assuaging ‘God-forbidden loneliness’ with ‘meet and happy conversation’. And, as Milton insists in Tetrachordon, such fulfillment is possible only in the heterosexual relation...” (Melissa E. Sanchez, Erotic Subjects: The Sexuality of Politics in Early Modern English, OUP, 2011, p. 212). Se não há referências diretas ao casamento na inscrição de 1571, sobram especulações sobre esse lugar privilegiado onde se unem erotismo e civilité: “Montaigne dirá que não sabe se não preferiria ter produzido um filho ‘nascido de um comércio [acointance, termo que até o século XVI é “próprio da linguagem nobre da ‘courtoisie’” (Cf. TLF-i), significando neste caso comércio no sentido sexual] com as musas a um produto das suas relações [acointance] com minha mulher’ (Ensaios II, VIII, p. 401 [“Da Afeição dos pais pelos filhos”, CA II, p. 105])” (Starobinski, Montaigne em movimento, p. 17). Ver também Georges Minois, Histoire de la solitude et des solitaires, Fayard, 2013; e Peter Burke, A Arte da Conversação (orig. inglês 1993), Ed. UNESP, 1995, esp. cap. 4. N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E 79 que ressignifica a Biblioteca e suas traves em dispositivo rustique, embora tenha um funcionamento interno irônico e multifacetado, permanece de fato sincrônica a uma das instâncias maiores do regime pastoral: esse lugar do retiro e da solidão é não só um lugar do cultivo da amizade, da amizade perdida que permanece no culto da memória (pública e privada) e do luto (pelo amigo e pelos ancestrais), como também o lugar do prazer e, mais profundamente ainda, o do gozo71. Por sua vez, esse dispositivo ascético, que se esvazia em ironia sexual implícita, precisa também ser lido em paralelo ao dispositivo político que lhe é inerente: a decisão de um funcionário de Estado de entregar seu cargo também é irônica na medida em que esta ação apenas o liberta de compromissos imediatos com a ordem hierárquica a qual ele estaria preso, se continuasse empregado no Parlamento. A frase “Servitii aulici et munerum publicorum jamdudum pertaesus” precisa, portanto, ser entendida em seu sentido literal. Cansado da escravidão da corte e dos cargos públicos – e não do trabalho, dos compromissos aristocráticos que sua posição exige e da ação política ordinária72. Ele pode, perfeitamente, agora que não representa mais o Estado, tornarse capaz de ações políticas concretas sem necessariamente revogar sua condição de 71 Resistirei à tentação de colocar no rol desta análise o funcionamento dos vários modelos monásticos cristãos, desde as primitivas regras cenobíticas de Antônio e de Pacômio até às ordens criadas no século XVI – modelos que exprimem, em teoria, microcosmos ideais, ainda que permeados de problemas práticos de todas as cores e tamanhos. Mas é evidente que as correlações são totalmente possíveis, sobretudo na insistência – estabelecida pelos reguladores desses contextos ascéticoanacoréticos – da problemática sexual como um dos pilares de sua organização teórica e prática. Uma leitura montaignista mais tradicional (p. ex., Friedrich, Montaigne, p. 21 e ss; Legros, Essai sur poutres, p. 239 e ss.), claro, valorizará a cena quase religiosa do “espaço votivo” ao falar da inscrição de 1571 – concepção que se liga, em última análise, à visão da Biblioteca do château como um tipo de monastério laico. Mas gostaria de acrescentar que, quando observo o cosmo citacional das traves conjuntamente com a inscrição de 1571, fica-me também a impressão irresistível e característica do pin-up – sobretudo se considerarmos as inscrições nesse contexto do gozo, ainda que intelectual. Logo, outra leitura possível é, para dizer o mínimo, a de inversão irônica dessa perspectiva monástica em uma dinâmica sexualizada – cujo rastro nos levaria, com um pouquinho mais de esforço, às margens totalmente laicas do... bordel. Ver Mark Gabor, Pin-up, a Modest History, Taschen, 1996²; Maria Elena Buszek, Pin-up grrrls: feminism, sexuality, popular culture, Duke University Press, 2006. 72 No trecho, Costhek Abílio parece ter se baseado exclusivamente na tradução francesa feita por Villey e não no texto latino da inscrição, pois literalmente “aulici”, em latim, significa apenas “corte”, no sentido de “corte do rei” – e não “corte do Parlamento”, como traduz Villey: aulĭcus, a, um, adj., of or belonging to a prince’s court, princely: apparatus, Suet. Dom. 4; luctatores, id. Ner. 45.—Hence subst.: aulĭci, ōrum, m., courtiers, Nep. Dat. 5, 2; Suet. Calig. 9 (cf. Lewis-Short). Neste caso, ela só teria razão em manter o acréscimo se entendermos “corte” como “corte de justiça” – quer dizer, neste caso, o Parlement de Bordeaux (no Ancien Régime, os parlements são instituições judiciárias e não legislativas), local de trabalho do Sire de Montaigne. No entanto, criaríamos aí uma ironia ainda mais profunda, pois uma coisa é a “corte” (i.e., a corte do Rei) e outra coisa é o “Parlement” (instituição mantida pelo Rei, mas que, em diversos momentos, por articulações de cunho políticonobiliárquico e pelas idiossincrasias da casuística judiciária, podia paradoxalmente fazer oposição ao poder real). Embora seu papel de oposição ao poder real só seja plenamente sentido no século XVIII, os Parlements provincianos, assim como outras instituições administrativas regionais (cours des aides, chambres de comptes etc.), são uma força de equilíbrio na dinâmica de poder do Absolutismo francês: “Si nous tenons compte de leurs origines qui nous sont bien connues, de leurs pouvoirs exactement délimités, calqués sur ceux des organes similaires qui existaient dans l’entourage du roi, il est clair qu’elles [as cortes provincianas] ne possédaient aucun caractère représentatif, et qu’elles ne pouvaient exercer aucune action politique. Elles n’auraient jamais inquiété le gouvernement central, si leur activité ne s’était pas parfois manifestée en faveur des autonomies provinciales : elles répondaient en effet à ce désir, généralement répandu, d’une administration renfermée dans un cadre régional étroit, et exercée par de magistrats originaires du pays [quer dizer, da região]” (Roger Doucet, Les institutions de la France au XVIe siècle, Tome I, Picard, 1948, p. 211) 80 A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M neutralidade – o que lhe será útil quando exercer o futuro papel de mediador entre Henrique de Navarra e Paris73. Neste aspecto, ainda uma vez, a inscrição de 1571 pode ser lida a partir do contexto bucólico clássico, pois a neutralidade do enquadramento político, embora não seja nominalmente declarada nos subtextos, é também uma das facetas explícitas do regime pastoral e, especialmente, da sua dinâmica utópica – ainda que a faceta implícita (que é a crítica subliminar ao poder constituído, dimensão valorizada pelos críticos atuais da pastoral) diga justamente o contrário. Tanto a IV Écloga de Virgílio quanto as éclogas I e III, de Calpúrnio Sículo, localizam a Época de Ouro após o advento de uma figura política real: Polião (neto de Otaviano) e Nero, respectivamente – segundo uma leitura mais tradicional. Pois a estabilidade edênica da pastoral depende de ações políticas diretas e concretas, de manutenção da ordem e de apaziguamento militar e/ou diplomático do cenário externo e interno74. Restaria saber que ordem existe na França (a agitadíssima França dos Guise e da Liga) em 157175. Ou se o texto aponta, nas crises preliminares que culminarão na Noite de São Bartolomeu (23-24 de agosto de 1572), seja para uma ordem política e social que precisa se reestabelecer de imediato para que a França não mergulhe no caos da guerra civil (onde a inscrição alcançaria seu sentido edênico pleno76); seja para uma nova ordem do indivíduo em relação às tensões crescentes e inevitáveis das Guerras de Religião (no que a inscrição, escrita em 1571, representaria, de certa forma, uma profecia77). Neste sentido, enquanto registro pastoral (funcionando numa dinâmica de forte crise de identidade social, política e religiosa da França na segunda metade do século XVI, mas também a da crise do indivíduo que remodela sua própria existência – no que não se poderia desprezar, no caso de Montaigne, também uma dinâmica intelectual própria ao ceticismo renascentista), a inscrição seria também um phármakon78. 73 “Até então [1586], esse católico confesso pôde atravessar sem maiores obstáculos as tempestades da guerra, considerado pelos seus [católicos] como um fiel aliado do poder, pelos reformados como um tolerante exemplar, respeitoso em relação a suas crenças, cujo irmão, irmã e muitos amigos haviam abraçado a Reforma. Seus textos sobre a guerra, que permeiam o primeiro tomo dos Ensaios, mostram duas faces do mesmo homem: facilmente envolvido ( junto aos católicos) nas operações longe de sua propriedade, do Poitou à Île-de-France, mas pacífico quando a batalha chega perto de seus horizontes familiares, de sua casa e dos seus” (Jean Lacouture, Montaigne a cavalo, p. 249). 74 “É ele [o recém-entronizado imperador da época, i.e., Nero] que concede paz às minhas montanhas; é graças a ele que, se me apraz cantar ou pisar, em ritmo ternário, a relva flexível, ninguém mo impede. Não só posso cantar dançando, como também gravar os meus cantos na casca verde de uma árvore, sem que as estridentes trombetas de guerra abafem a minha siringe” (Calpúrnio Sículo, Bucólicas, IV, vv. 128-136). 75 Sobre o contexto político envolvendo a Liga Católica, ver Jean-Marie Constant, La Ligue, Fayard, 1996. E também Pierre Miquel, Les Guerres de Religion, Fayard, 1980. 76 “Guerras civis” e “reestabelecimento da ordem” são tópicas subliminares das Bucólicas clássicas, como vimos acima. 77 O anúncio de uma nova Civitas Dei, mas de caráter particular e privado – como convém, aliás, numa visão grosseira, aos politicamente céticos. 78 Para alguns críticos (por exemplo, Susan Snyder, Pastoral Process: Spenser, Marvell, Milton, Stanford University Press, 1998), e resumindo aqui seus argumentos de maneira simplista, a pastoral tem por pano de fundo a alienação. Snyder pensa a nostalgia como o conceito chave da pastoral – sendo isso o que define, na prática, o que ela entende por alienação: “Nostalgics suffered from anxiety, depression, disruption of eating and sleeping. They were likely to court death through active or passive means. In a variety of ways they withdrew from present life, obsessed instead with private fantasies of the lost home” (Pastoral Process, p. 17). O sentido de nostalgia usado por ela, por sua vez, vem do médico suíço Johannes Hofer (Dissertatio medica de nostalgia, N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E 81 Não discutirei aqui no detalhe o contexto profético-milenarista e o contexto utópico, mas precisamos levar em conta que este último pode ser lido de maneira implícita no texto da inscrição e podemos explorá-lo de maneira especulativa de modo mais incisivo. Como vimos mais acima, na IV Écloga de Virgílio, o termo Virgo da expressão “Iam redit et Virgo, redeunt Saturnia regna [Já também retorna a virgem, voltam os reinos de Saturno]” implica numa assunção do reino de Saturno, quer dizer, o retorno a uma era de pujança e de plena potência. Os escoliastas virgilianos interpretaram a expressão literalmente, como sendo uma referência à constelação da Virgem, mas, como se entende hoje, ela poderia ser também Astréia (a versão romana da Δίκη, deusa grega da Justiça)79. Entendida como deusa ou constelação, temos a palavra latina virgo como marca contextual, elemento de anunciação dos novos tempos – no que efetivamente é o caso do contexto evangélico (no sentido propriamente grego, o de “boa nova”, do termo) da inscrição de 1571. Por esse motivo, o virginum (da inscrição) é tão evidentemente implicado na síntese de um momento edênico para Montaigne que sua associação imediata ao virgo (signo da Época de Ouro) da IV Écloga torna a relação etimológica entre esses dois termos uma obviedade quase absoluta. Entretanto, tal como na perspectiva do bucolismo clássico, os novos bons tempos, a nova era de Saturno, implicam sempre numa melancolia de fundo: a que reconhece sua própria finitude como inexorável80. A pujança e o bem-estar, signos maiores da Arcádia, se posicionados no âmbito dessa perspectiva cíclica ou circular do tempo cósmico, terão certamente um fim – o que permite reconhecer sua abordagem temporal na linhagem também clássica do tema do Eterno Retorno81. Na inscrição de 1571, o reino oder Heimwehe, Basel, 1688, translated by Carolyn Kiser Anspach in The Bulletin of the Institute of the History of Medicine Vol. 2-6, 1934, pp. 379-91) sendo a caracterização clínica do Heimweh (ou mais particularmente do Schweizerheimweh, quer dizer, a “saudade” de casa dos mercenários suíços de Luís XIV) o expediente, em Hofer, do que seriam essas “fantasies of the lost home”. Além disso, Snyder divide a nostalgia/alienação pastoral em dois vetores – uma pastoral “árcade” (nostalgia centrada na dimensão espacial) de uma pastoral “edênica” (nostalgia centrada na dimensão temporal). Logo, utilizando-se as categorias de Snyder, poderíamos afirmar que, na inscrição de 1571, desilusões de todas as ordens (políticas, religiosas, filosóficas) nos fazem localizar no texto o princípio nostálgico de “evasão do real” – um dispositivo inerente à esfera bucólica tradicional. Sendo esse “real” aqui entendido na discussão essencialmente rustique do menosprecio da corte, quer dizer, se reportando indissoluvelmente à ontologia do mundo cortesão, teríamos na inscrição de 1571 tanto o aspecto mais particularmente temporal (quer dizer, o in illo tempore da Idade do Ouro: “doutas virgens”, “refúgio ancestral”) quanto o aspecto espacial (“corte” ou “corte do Parlamento”). Logo, a inscrição poderá ser lida, na nomenclatura de Snyder, como um exemplo de pastoral plena, ao mesmo tempo árcade e edênica. Este tipo de leitura, por sua vez, permite pensar uma resultante terapêutica à pastoral – uma vez que tal evasão do real equivaleria a uma catarse. Os dispositivos rustiques têm, certamente, esse efeito – e a inscrição de 1571 acompanha, de certo modo, essa conformação catártica geral. 79 João Pedro Mendes, Construção e Arte das Bucólicas de Virgílio, p. 224, n. 7; Jérôme Carcopino, Virgile et le mystère de la IVe Éclogue. Paris, L’Artisan du Livre, 1943². 80 Não podemos esquecer aqui a associação de Saturno com a melancolia – ainda que esta relação direta não seja encontrada nos textos fundadores da etiologia atrabilar, mas uma formulação muito posterior, já árabe-medieval – porque as teorias renascentistas do gênio, que Montaigne segue de perto, reconhecem-na como uma de suas coordenadas mais elementares. Para a melancolia e Saturno, ver Rudolf & Margot Wittkower, Les enfants de Saturne, Macula, 1991; Erwin Panofsky, Fritz Saxl & Raymond Klibansky, Saturne et la mélancolie, (1923-69²), Gallimard, 1989; para a melancolia e o gênio, ver Noel L. Brann, The Debate over the Origin of Genius during the Italian Renaissance, Brill, 2002; e também Michael Screech, Montaigne et la mélancolie (1984), PUF, 1992. 81 Mircea Eliade, Le mythe de l’éternel retour (1969), Gallimard, 1991. 82 A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M das doutas virgens/musas, no contexto da Biblioteca (o latebras/latebrosus locus), existirá, portanto, somente até a morte daquele que ordenou seu registro na parede do quarto contíguo (e, posteriormente, porá inscrições na própria Biblioteca, nas traves que flutuam acima dela): graffiti e garatujas que projetam sua sombra melancólica a partir dos “dos tempos que [a Michel de Montaigne] restam para viver”. A inscrição de 1571 é, portanto, como lembrei mais acima, também uma mensagem apocalíptica, uma prece para o fim dos tempos. Apesar do contexto edênico do momento presente (doctarum virginum recessit sinus, ubi quietus et omnium securus (quan)tillum...), das forças revigoradas que apontam para uma nova era, ela é subitamente transfigurada em um memento mori ou uma vanité a partir da imagem diferida da morte e do fim (... in tandem superabit decursi multa jam plus parte spatii)82. O que, mais uma vez, ajuda a inflar o domínio semântico da inscrição até atingir as descrições pré-modernas da melancolia (que tem na vanitas, pictorialmente, um elemento chave)83. Por outro lado, se a inscrição de 1571 pressupõe, nessa dedução melancólica indireta, a finitude e a morte, no sentido inverso, ao pé da letra, ela se refere à vida, embora unicamente à vida daquele que mandou gravá-la na parede. E, de fato, o locus amoenus do responsável pela inscrição foi preparado e pensado exclusivamente para si mesmo: representa o fim de um ciclo (ancestral, amical, profissional), do qual seu autor se toma por herdeiro direto e privilegiado; e também o início de um novo, embora este que se 82 Uma vanité é uma derivação do gênero pictórico natureza-morta, com forte acento alegórico em torno da noção de finitude da vida: é a estetização pictural do memento mori. O termo (de uso corrente no mercado das artes francês por volta de 1652) foi transportado da Pintura para as Letras já no século XVII. “Le critère d’une vanité en littérature, le premier et le plus évident, repose sur cette articulation textuelle entre une matière austère et pessimiste traditionnellement identifiée autour du memento mori et de la vanité de toutes choses face au temps qui passe (savoir, gloire, richesses, beauté) et la volonté de donner à voir une représentation artistique au sens large en termes de beauté et d’effets” (Thierry Brunel, “«Vanités textuelles», «Vanités littéraires», validité du concept et critères de reconnaissance dans la littératures du XVIIe siècle?” in Études Épistémè, 22, 2012). A vanité literária será, claro, uma especialidade do Barroco. A expressão vanitas/vanité, por sua vez, vem do texto hebraico do Qoheleth (Eclesiastes), quer dizer, o “pregador das assembleias”, que a tradição cristã latina assimilou através da Vulgata: “(…) vanitas vanitatum omnia vanitas [vaidade de vaidades, é tudo vaidade]” (Ecl., 1:2). Sabe-se que onze, das dezesseis sentenças veterotestamentárias das traves, são citações do Eclesiastes: “En tout, entre les sentences et les Essais, Montaigne cumule une cinquantaine d’emprunts bibliques distincts, dont quatorze, proportion considérable – entre le quart et le tiers –, en provenance de L’Ecclésiaste. Aucun autre livre de la Bible n’a de loin la même importance pour l’auteur des Essais” (Jean-Charles Darmon, Littérature et vanité, PUF, 2011, pp. 10-11). Ver Alain Tapié (ed.), Les Vanités dans la peinture au XVIIe siècle [catalogue de l’exposition du Musée des Beaux-Arts de Caen], Albin Michel, 1990; M. Moutahar, Les Vanités, Ed. Traversière, 1994; Karine Lanini, Dire la vanité à l’âge classique. Paradoxes d’un discours, Honoré Champion, 2006. Para o gênero natureza-morta, ver Norbert Schneider, Naturezas Mortas (or. alemão Stillleben, 1999), Taschen, 1999; Claus Grimm, Natures mortes (2 Vols.), Herscher, 1996. 83 “Le système de représentation du XVIe et du XVIIe siècle établit une étroite parenté entre la mélancolie, la mort et la conscience de la vanité. La bile noire, qui présente les deux qualités contraires à la vie (froideur et sécheresse), est l’humeur de la mort. (...) La mélancolie est aussi associée au passage du temps et au sentiment de la vanité. Saturne est Chronos, le Temps qui ‘dévore ses œuvres’ et qui met en évidence la fugacité de toute chose. (...) L’iconographie met en évidence la parenté étroite de la mélancolie et du savoir de la vanité. La Melancholia I de Dürer représente en arrière-plan un sablier, symbole du passage du temps qui obsède le mélancolique et, de manière générale, la mélancolie est souvent associée à des objets exprimant l’inanité des choses matérielles (des sabliers, des souches d’arbres, des colonnes brisées ou de crânes)” (Christine Orobitg, Garcilaso et la mélancolie, Presses Universitaires du Mirail, 1997, pp. 159-160). Para a articulação pictural da vanitas com a Melancolia, ver Jean Clair, Mélancolie. Génie et folie en Occident, Gallimard, 2005. N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E 83 abre seja totalmente autorreferente. Não há sombra de parentes, consortes, qualquer sinal de que tudo aquilo que está descrito e pressuposto na inscrição (o atestado desse novo ciclo) possa estar sendo oferecido também para sua esposa, sua linhagem, seus filhos, netos, bisnetos ou amigos. Operação sumamente diferente da que preparou seu bisavô, legando aos Eyquem-Montaigne (o próprio Michel o reconhece usando a expressão avitasque) o latebras que é agora sua propriedade exclusiva84. E muito diferente do gesto de Etienne de La Boétie, ao doar em testamento os livros que Michel instalou no aposento contíguo e serão, doravante, seus companheiros durante os vinte anos de composição dos Ensaios85. A inscrição de 1571 é, portanto, para usar a expressão do topos pictural que surgirá algumas décadas depois86, o Et in Arcadia ego de Michel de Montaigne: o início de um projeto intelectual individual (e individualista) de toda uma vida sob o signo paradoxalmente melancólico, vaidoso, tumular e exequial (em outras palavras, pastoral, na roupagem moderna de Sannazaro) do seu próprio fim. Vemos, pois, que uma dinâmica pastoral pode se estabelecer a partir de um amplo espectro de questões heterogêneas (e não apenas da retomada do tema campestre em si). O exemplo da inscrição de 1571 mostra como essa dinâmica, funcionando já no contexto da vie rustique, poderia ter afetado um intelectual nobre vivendo o fim do “beau XVIe siècle”. Por extensão, e ao menos a título de exercício, a lógica paysan tornaria possível uma abordagem também pastoral de diversos capítulos dos Ensaios – o que, no final das contas, permitiria uma releitura do seu contexto geral, ressignificando alguns extratos, ampliando ou redimensionando seu campo teórico e, sobretudo, seu significado literário. 84 Como se sabe, o bisavô de Michel, Ramon Eyquem, comprou a propriedade de Montaigne (castelo e título nobiliárquico) em 1477. Tratava-se, então, de uma senhoria pertencente a outro comerciante da região, Guillaume Duboys, que por sua vez havia adquirido as terras da nobreza arruinada pela Guerra dos Cem Anos. Ligadas a um título nobiliárquico, as terras de Montaigne são um investimento em longo prazo, oferecido à sua descendência – sobretudo porque Ramon, que contava já com 75 anos, não deveria mesmo imaginar que sobreviveria tempo suficiente para tornar-se um aristocrata. De fato, morreu cerca de um ano depois, em 1478. 85 Legros, Essai sur poutres, p. 248. 86 Por conta dos quadros de Guercino (1622) e sobretudo de Poussin (1638). Ver Erwin Panofsky, “Et in Arcadia Ego”, p. 387 e ss. 84 A N A M O R F O S E - R E V I S TA D E E S T U D O S M O D E R N O S • V O L I • N º I • 2 0 1 3 • R i d E M Resumo Pouco estudada entre nós, a inscrição de 1571 – o texto escrito por Montaigne para decretar sua aposentadoria parlamentar e ao mesmo tempo dar início à sua carreira intelectual – permanece como um signo estruturante não apenas da sua biografia como também da escritura dos Ensaios. Neste artigo, faço algumas considerações que permitem entendê-la numa dinâmica ampla, deitando raízes na literatura bucólico-pastoral clássica e apontando para formas de leitura centrífugas, de modo a recontextualizá-la num dispositivo narrativo multifacetado. Sobre o autor Rafael Marcelo Viegas é pós-doutorando na área de Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro N O S E I O D A S D O U TA S V I R G E N S - A N Á L I S E PA S T O R A L D E U M T E X T O P R E A M B U L A R D E M O N TA I G N E 85