Fórum Sindical Brasil-México 2013: sem trabalho, não há dignidade
Transcrição
Fórum Sindical Brasil-México 2013: sem trabalho, não há dignidade
“À guerra, cavaleiros esforçados! Pois os anjos sagrados em socorro estão em terra. À guerra!” (Gil Vicente) 2 a quinzena de setembro de 2013 Vol.XX, nº 8 Fórum Sindical Brasil-México 2013: sem trabalho, não há dignidade Entre os dias 16 e 18 de setembro, o Fórum Sindical Brasil-México 2013 reuniu lideranças sindicais e políticas dos dois países, além de acadêmicos e outras personalidades, para discutir os problemas que afetam o mundo do trabalho no âmbito da globalização financeira. PÁG. 4 Espionagem: Brasil precisa fazer dever de casa A resposta à bisbilhotice da NSA não pode se limitar à retórica. PÁG. 8 Putin enfatiza reconstrução do Estado nacional O líder do Kremlin se mostra como um raro estadista à altura da crise global. PÁG. 12 Reserva Federal imprime dólares; BRICS compram ouro No Fórum Brasil-México, da esq. para a dir., o economista Carlos Lessa, o deputado Paulo Ramos, o ministro do Esporte Aldo Rebelo, o presidente da CSB Luiz Sergio da Rosa Lopes, o diretor da CROC-Jalisco Antonio Álvarez Esparsa e o jornalista Lorenzo Carrasco (foto Rodolfo Carrasco) si_20_08.pmd 1 O banco central dos EUA insiste em inundar os mercados com uma perigosa liquidez. PÁG. 14 30/09/2013, 19:45 2 Solidariedade Ibero-americana EDITORIAL Os leilões do superávit O afã do governo federal para leiloar o campo de Libra e o fracasso do leilão da rodovia BR-262, que não teve concorrentes, são sugestivos dos problemas ensejados pela questionável prioridade atribuída ao serviço da dívida pública na formulação da política econômica. Entre eles, a transferência da responsabilidade pelos investimentos vitais em infraestrutura energética e viária para a iniciativa privada – ou, como poderá ocorrer na exploração do pré-sal, empresas estatais estrangeiras. Libra, na Bacia de Campos, é um caso exemplar, pois trata-se, nada menos, que a maior descoberta petrolífera já feita no Brasil. Segundo a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), suas reservas recuperáveis são estimadas entre 8 e 12 bilhões de barris (as reservas totais brasileiras são estimadas em pouco acima de 15 bilhões de barris). Quando atingir o pico da produção, em torno de 2020, o campo deverá produzir cerca de 1 milhão de barris diários, a metade da produção nacional atual. De forma emblemática, das 11 empresas que se candidataram ao leilão, marcado para 21 de outubro, sete são estatais e, além da própria Petrobras, cinco encontram-se entre as dez maiores do setor por valor de mercado no mundo – o que ressalta a pieguice de certos comentaristas e editoriais midiáticos, que lamentaram a ausência das “gigantes anglo-americanas”, ExxonMobil, Chevron, BP e BG (atualmente, mais interessadas na Golfo do México, à espera da “flexibilização” do monopólio estatal prometida pelo novo presidente mexicano, Enrique Peña Nieto). Para o governo federal, ferreamente comprometido com o sacrossanto superávit primário, a oferta de Libra se revelou irresistível. Desde junho, a presidente Dilma Rousseff e o ministro da Fazenda Guido Mantega contam com os leilões do pré-sal e de concessões de rodovias, ferrovias e aeroportos, para gerar algo como R$ 30 bilhões, para “fechar as contas” do ano (estranhamente, em algum lapso freudiano, ao anunciar o pacote de concessões, Dilma criticou as privatizações de Fernando Henrique Cardoso, cuja receita também foi para o serviço da dívida). Em uma série de manifestações públicas, o senador Roberto Requião (PMDB-PR) tem sintetizado a opinião dos muitos opositores do leilão, ao afirmar que “é um crime contra o Brasil trocar petróleo por meta contábil de superávit primário”. Por outro lado, o fracasso da licitação da BR-262, que liga Minas Gerais ao Espírito Santo, levou o governo a anunciar um aumento da participação federal nos futuros leilões, assegurando as intervenções físicas nas rodovias e concedendo a gestão das mesmas à iniciativa privada. Ora, se o governo assume a parte do leão dos investimentos, fica difícil justificar tal transferência de atribuições ao setor privado – sem qualquer preconceito contra este. Talvez, tenhamos que esperar que um aprofundamento da crise sistêmica global neutralize de vez as armadilhas ideológicas e as pressões políticas que impedem que o Estado volte a assumir plenamente as suas responsabilidades nas áreas de infraestrutura e energia. EDIÇÃO EM PORTUGUÊS Diretora: Silvia Palacios Publicado pelo MSIA – Movimento de Solidariedade Ibero-americana si_20_08.pmd Conselho editorial: Angel Palacios Zea, Geraldo Luís Lino, Lorenzo Carrasco e Marivilia Carrasco Projeto Gráfico: Maurício Santos 2 Rua México, 31 s.202 CEP 20.031-144 Rio de Janeiro-RJ Telefax: + (21) 2532-4086 E-mail: [email protected] Sítio: www.msia.org.br 30/09/2013, 19:45 2 a quinzena de setembro de 2013 3 LEAP: ataques contra emergentes podem ser grandes oportunidades (para elas) Os recentes ataques especulativos contra as moedas das economias emergentes podem representar para elas uma grande oportunidade para reduzir as suas exposições ao cambaleante dólar estadunidense e, ao mesmo tempo, ajudar a catalisar uma mudança sistêmica na economia mundial. A sugestão é do Laboratório Europeu de Antecipação Política (LEAP), think-tank europeu que analisa a situação estratégica e econômica mundial sob uma perspectiva europeia e tem mostrado uma grande precisão em suas análises e prognósticos, divulgados nos boletins mensais GEAB (Global European Anticipation Bulletin). Em seu último boletim (GEAB no. 77), divulgado em 16 de setembro, os analistas europeus afirmam que a tendência de fuga do dólar como moeda de referência internacional, que se manifesta gradativamente desde 2009, tende a ser contrabalançada com uma regionalização das transações comerciais e monetárias – “de certo modo, uma ‘desmundialização’” [ou “desglobalização”, considerando que os franceses utilizam o termo “mundialização” como sinônimo de “globalização”]. Um exemplo levantado por eles é o ataque contra a rúpia indiana, que está levando o país a recorrer à sua própria moeda nas compras de petróleo e gás natural do vizinho Irã (com a devida contrapartida do uso do dinar iraniano). Assim, afirmam, “sai o dólar e os déficits comerciais destes países não refletem nada mais que um reajuste de sua produção para as suas próprias populações (e, consequentemente, menos exportações). Com efeito, que país ainda quer apostar tudo nas exportações pagas em dólares estadunidenses, quando estes são impressos pelo ‘Fed’ e, logo, não valerão grande coisa?”. Em realidade, afirma o boletim, “os problemas dos países emergentes fortalecem os seus laços e os obrigam a responder de maneira coordenada. Eles têm grandes reservas, a maior parte em dólares. Para proteger-se dos si_20_08.pmd 3 ataques especulativos contra as suas moedas, se veem obrigados a vender os dólares e comprar sua própria moeda (ou ouro). Que grande pretexto para se desfazer dos dólares acumulados, que, a qualquer momento, podem não valer nada!”. Ou seja, “de uma suposta crise dos emergentes, passamos a um fortalecimento dos laços regionais e do consumo interno, e a uma oportuna venda dos dólares inúteis que permitem, particularmente, aumentar as reservas de ouro. Então, trata-se de uma crise ou de uma oportunidade?”. E convém prestar bastante atenção aos parágrafos finais da seção do boletim dedicada ao assunto: “A mudança sistêmica que mencionamos é, então, o grande desacoplamento das economias emergentes do Ocidente. Certamente, as suas economias estão abaladas, mas quem pode jactar-se de não ter sido afetado pela crise sistêmica global que reina desde 2008? Eles têm, realmente, muitas vantagens e um potencial de desenvolvimento ainda enorme – o crescimento dos emergentes é irreversível. Já o dissemos antes: são os grandes ganhadores da atual repartição mundial de cartas. Não nos equivoquemos de crise. Para os mercados emergentes, a tendência é clara. A sua influência em âmbito internacional é também cada vez mais evidente. Já mencionamos a vitória de Putin relacionada à Síria, mas também podemos falar do desejo da Armênia de unir-se à Rússia para uma associação comercial, afastando-se da União Europeia (possibilidade impensável há alguns anos), da decisão de Chipre de negar uma base para um ataque à Síria, já que a intenção é conseguir uma reestruturação da dívida por parte da Rússia, e outros exemplos. “O próprio Japão, finalmente, entendeu esta tendência reorientadora na direção das regiões geográficas naturais e tem a intenção de aproveitá-la.” 30/09/2013, 19:45 4 Solidariedade Ibero-americana Fórum Sindical Brasil-México 2013: sem trabalho, não há dignidade Marivilia Carrasco e Silvia Palacios Entre os dias 16 e 18 de setembro, realizouse no Rio de Janeiro (RJ) o Fórum Sindical Brasil-México 2013, promovido pela Central de Sindicatos Brasileiros (CSB), com a colaboração do Movimento de Solidariedade Ibero-americana (MSIa) e a Central Revolucionária de Trabalhadores e Camponeses (CROC-Jalisco) mexicana. O objetivo central do encontro foi promover uma discussão dos problemas que afetam o mundo do trabalho no âmbito da globalização financeira, como foi levantado no Fórum de Guadalajara, em outubro de 2012. Na sessão de abertura dos trabalhos, o jornalista Lorenzo Carrasco, presidente do MSIa e coordenador-geral do Fórum de Guadalajara, se referiu à importância da reunião de 2012: “Naquela ocasião, ressaltamos que a crise global vai além dos seus aspectos econômicos e financeiros. Ela supera a materialidade e implica em que não existem direitos inalienáveis, como a liberdade, o progresso e a busca da felicidade, sem o direito inalienável ao trabalho.” Referindo-se às recentes declarações do papa Francisco a respeito, Carrasco destacou “a decadência da civilização do desperdício se mede pela maneira como se descartam os velhos, desprezando a experiência e a história que representam, e como se descartam os jovens, que hoje enfrentam taxas de desemprego de 60%, em vários países do mundo. Com isto, se arrebata o principio da dignidade humana. Igualmente, entendemos que, ao defender o direito ao trabalho, se defende o projeto de nação.” De forma significativa, o evento foi realizado no auditório do Memorial Getúlio Vargas, o grande nacionalista que marcou de forma singular a história do Brasil, com um ideal de “Pátria Grande” que se aproximava do nacionalismo mexicano. si_20_08.pmd 4 Por isso, o símbolo do Fórum Brasil-México foi uma fusão das duas bandeiras, unindo-as pelas partes verdes comuns. Sob o tema geral “Unidade LatinoAmericana pelo Desenvolvimento e a Justiça Social”, os participantes do evento tiveram a oportunidade de ouvir e dialogar com varias personalidades políticas brasileiras, conhecidas por sua decidida postura nacionalista, como o senador Roberto Requião (PMDB-PR), o ministro do Esporte Aldo Rebelo e o economista Carlos Lessa, ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e ex-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em sua palestra, Requião assinalou que “as primeiras vítimas da globalização foram os trabalhadores, que, além de demitidos, tiveram cortados direitos adquiridos em décadas de conquistas (ver texto nesta edição). Durante os três dias dos trabalhos, os líderes sindicais presentes denunciaram a tenaz e sistemática agressão contra os sindicatos e seus dirigentes, por parte do poder político-financeiro e dos meios de comunicação ao seu serviço. O ataque aos sindicatos é concomitante com a devastação dos direitos trabalhistas de amplas massas de trabalhadores afetados pela globalização, que produz desemprego, redução do poder aquisitivo dos salários, empobrecimento das famílias dos trabalhadores e desmantelamento dos seus direitos sociais. A conclusão generalizada foi a de que a classe trabalhadora se encontra na fila de um moderno matadouro. Uma radiografia dos problemas enfrentados por ela foi feita com grande riqueza de elementos, na mesa-redonda final do evento. Na ocasião, o diretor da CROC-Jalisco, Antonio 30/09/2013, 19:45 2 a quinzena de setembro de 2013 Álvarez Esparza, afirmou que “há uma infinidade de ataques ao trabalho. O Estado se encontra em plena retirada. No México, agora, com a nova reforma trabalhista, se está dando status ao emprego ‘terceirizado’ ou ‘outsourcing’, embora isto seja proibido pela Constituição mexicana”. Em sua exposição, o ministro Aldo Rebelo secundou o senador Requião, ao assinalar “os efeitos desastrosos da globalização atual, em que se reduziram todos os direitos sociais, não só os sindicais”. Ao longo da História, disse, “houve várias globalizações, em momentos e com efeitos diferentes. Desde a globalização positiva, que significou a migração do Homo sapiens ao longo dos vários continentes, até a criação do Império Britânico, passando pelo império de Alexandre e os gregos. A atual é uma globalização financeira, que impõe uma agenda de mercado e não permite uma agenda nacional. Diante dela, é bom que o Brasil e o México se unam, pois são duas grandes civilizações. Existem razões e condições para uma cooperação e necessitamos estar juntos, sob a perspectiva de que somente uma nação soberana e independente pode oferecer direitos trabalhistas e sociais aos seus trabalhadores e à sua população”, ressaltou o ministro. Por sua vez, Carlos Lessa proporcionou uma verdadeira aula de economia, assinalando o papel perverso que a globalização destina aos trabalhadores da periferia explorados contra as condições dos trabalhadores das principais economias, usando os baixos salários de uns contra os altos salários de outros. Ele proporcionou uma minuciosa análise da expansão da economia da China, onde não há qualquer força sindical: “Os trabalhadores chineses não se sentam à mesa para negociar, pois não há negociações capital-trabalho.” Portanto, “podem oferecer produtos a preços muito baixos, que, atualmente, dominam os mercados dos EUA e de outros países. Em troca disto, empregam o superávit comercial com os EUA para comprar títulos do Tesouro estadunidense, esquema si_20_08.pmd 5 5 com o qual se sustenta o valor do dólar e seu papel de moeda de reserva internacional. Isto não vai durar para sempre, mas, hoje, é um grande problema.” Lessa afirmou que “isso não é um ataque à China, mas uma forma de enfatizar que nem o Brasil nem o México merecem ter perdido a sua soberania em alimentos e outros processos industriais. Comer milho estadunidense, por exemplo, é escandaloso para o México. Aí se acabou com o excelente modelo de procurar a autossuficiência alimentícia”. Para ele, está claro que “ou nos integramos ou nos entregamos. Me aflige que a integração não seja tratada com a seriedade que merece. Quando os EUA eram apenas as 13 colônias europeias, Simón Bolívar foi premonitório ao observar que a América Latina precisaria se unir, ou seria dominada pelo colosso do Norte. E assim aconteceu”. Lessa concluiu com uma efusiva saudação à iniciativa de realização do Fórum, ao qual vaticina uma rápida expansão. No painel “O neoliberalismo no Brasil e no México: efeitos e estado atual”, o coordenador do Foro de Guadalajara no México, Ángel Palacios Zea, juntamente com a autora Marivilia Carrasco, descreveram o papel pioneiro do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), ao devastar a industria, a agricultura e as empresas estratégicas do Estado mexicano. As reações da plateia foram de assombro e indignação, diante dos números que comprovam a deterioração socioeconômica do México, depois de três décadas de políticas neoliberais - que, em vários aspectos, não é muito distinta da do Brasil. No México, entre outros dados, o PIB se encontra estagnado; o emprego informal representa 60% da população economicamente ativa; os salários perderam 72% do poder aquisitivo; e há um incessante crescimento da dívida pública, tanto interna como externa, acompanhada de uma crise fiscal, entre outros processos que demonstram a desindustrialização do país e o aumento do empobrecimento da população. 30/09/2013, 19:45 6 Solidariedade Ibero-americana As primeiras vítimas da crise global são os direitos dos trabalhadores Senador Roberto Requião Fórum Sindical Brasil-México, Rio de Janeiro, 16 de setembro de 2013. Parodiando o dramaturgo grego Ésquilo, segundo o qual “a primeira vítima da guerra é a verdade”, diria que a primeira vítima da crise financeira global são os direitos dos trabalhadores. É o gesto impulsivo, inevitável dos capitalistas: cortar gastos para não ter reduzidos os lucros. E cortar gastos não significa tão-somente cortas vagas, afinal a máquina não pode parar. Cortar gastos quer dizer principalmente cortar direitos. É a tal da “flexibilização dos direitos trabalhistas”, eufemismo malandro, esperto para a cassação dos direitos conquistados ao longo dos últimos 200 anos pelos trabalhadores de todo o mundo. Vejam: na origem da crise financeira global, está o descompasso entre o aumento da produtividade e os aumentos dos salários dos trabalhadores norte-americanos. À medida que o aumento da produtividade não é incorporado aos salários, temos um achatamento dos ganhos. Ora, com os salários arrochados, os trabalhadores não têm como pagar as hipotecas de suas casas, a escola de seus filhos, o carro e desmorona-se toda a engenharia financeira do subprime. E quando explode a crise, provocada pela irracionalidade da financeirização da economia, pela avidez pelos especuladores, no lombo de quem desabam as consequências? Elementar, senhores. Isso acontece não porque os empresários, os financistas, o FMI sejam maldosos, diabólicos. Não. Isso acontece porque si_20_08.pmd 6 essa é lógica do sistema. Foi sempre assim, vai ser sempre assim. A conciliação possível – se é que é possível – não se faz sob as regras – ou falta delas – do capitalismo liberal. O neoliberalismo vive em permanente estado de antagonismo com os direitos dos trabalhadores. A opção da senhora Merkel, do senhor Cameron e do ex-presidente Sarkozy por salvar o sistema financeiro, gangrenado pela crise do subprime, cortando pernas e braços dos trabalhadores, não foi uma escolha ditada pela maldade, pelo sadismo. Não se tratava de uma questão moral ou ética, já que esses valores não são levados em conta, no caso. Estado mínimo e terceirizado, esse o ideal dos neoliberais. Agora, se somarmos à precarização da mão-de-obra a desqualificação do trabalho provocada pela crise econômica, com o fechamento de fábricas, de laboratórios de pesquisas e desenvolvimento de produtos e de empresas de uso intensivo de tecnologia, temos uma mistura altamente corrosiva, avançando como câncer sobre o futuro de países em desenvolvimento, principalmente. Vamos a alguns dados, no que toca o Brasil. Na década de 80, a produção industrial brasileira era superior à produção industrial somada da China, Coréia do Sul, Malásia e Tailândia. Hoje, a nossa produção não alcança 15% da produção desses países. Em apenas 15 dias de funcionamento, apenas as fábricas chinesas produzem o equivalente à produção anual da indústria brasileira. A globalização neoliberal, à que o Brasil aderiu gostosamente nos anos 80 e 90, 30/09/2013, 19:45 2 a quinzena de setembro de 2013 desnacionalizou e desindustrializou a produção industrial nacional. Nos anos FHC, o setor mais avançado da indústria brasileira, o de autopeças, foi miseravelmente abatido no exato momento que chegava ao apogeu. A Metal Leve, a Cofap, a Freios Varga, cuja qualidade dos produtos era internacionalmente respeitada, não suportaram a diminuição radical das tarifas de importação, que desabaram para apenas 2%! Com a quebra do setor de autopeças, foram de cambulhada 250 mil empregos industriais, de altíssima qualificação, com o fechamento de 3.200 fábricas da área. Os fantásticos laboratórios de pesquisas e de desenvolvimento de produtos que as fábricas mantinham, fecharam-se e foram transferidos para os países que absorveram essas industriais. Esse rápido e crudelíssimo processo de desindustrialização, com o fechamento de fábricas e a ociosidade do parque industrial brasileiro, bombardeado pela abertura e pela submissão colonial, acumulou um passivo estimado à época em 250 bilhões de dólares; 250 bilhões de dólares em máquinas, em tecnologia, em pesquisas, em mão-de-obra especializada. A valores de hoje, mais de 500 bilhões de dólares, muito mais que as nossas decantadas reservas cambiais. Em meados da década de 80, o produto industrial brasileiro representava 36% do PIB. No ano passado, caiu para 13,3%. E o número de metalúrgicos empregados sofreu um corte de 34%. A desqualificação do emprego industrial nos anos da adesão sabuja, servil, colonial à globalização neoliberal não foi recuperada nesses 12 anos de governo do PT. O esvaziamento do setor industrial, com a consequente degradação do trabalho qualificado, não foi estancado . A entrada da China no mercado, a partir dos anos 2000, como grande consumidora de commodities, atenua os efeitos econômicos da desindustrialização e desnacionalização do Brasil e da América do Sul. Lenitivo agora que se dissolve com a diminuição da voracidade compradora dos chineses. si_20_08.pmd 7 7 Vejam esses dados do passado recente. Em 2006, o déficit da balança comercial dos manufaturados era de 6 bilhões de dólares. Em 2011, decorridos apenas cinco anos, portanto, esse déficit pulou para 96 bilhões de dólares! Hoje, segundo as últimas estatísticas ultrapassa 100 bilhões de dólares. Enfim, os empregos industriais altamente qualificados foram exportados maciçamente. Insisti no tema desqualificação do emprego porque quanto mais desqualificada a mão-de-obra, menor a proteção ao trabalhador, menor o poder dos sindicatos, menor a influência do trabalho nas relações sociais. Hoje, os sindicatos dos metalúrgicos, que associam os trabalhadores mais qualificados e, em consequência, mais organizados e mais politizados, não têm o mesmo peso que nos anos 70/80, quando um certo barbudo punha de joelho a indústria automobilística e em xeque o regime ditatorial. O desaparecimento do emprego altamente especializado e o sucateamento de laboratórios e de centros de pesquisas industriais fazem mal ao Brasil, atentam contra o desenvolvimento nacional, tornam a nossa economia menos competitiva, limitam o nosso futuro, amarra-nos ao subdesenvolvimento e ao neocolonialismo. Para os defensores dos acordos bilaterais, que reservam ao Brasil apenas a produção de minérios, carnes e grãos, tudo bem. Afinal não é tão complexo assim formar um valoroso piloto de colheitadeira ou o condutor de uma escavadeira em Carajás. Enfim, parece existir uma incompatibilidade de origem entre a globalização neoliberal e a manutenção dos direitos trabalhistas e do emprego industrial nos países em desenvolvimento. Logo, a defesa dos direitos trabalhistas e do emprego faz parte da grande luta de nossos países pelo desenvolvimento, pela industrialização, pelo avanço tecnológico, pelo estancamento da sangria da remessa de lucros e juros, pela independência, prosperidade, justiça e grandeza de nosso continente. 30/09/2013, 19:45 8 Solidariedade Ibero-americana Espionagem: fazendo o dever de casa Geraldo Luís Lino A carraspana dada pela presidente Dilma Rousseff no governo dos EUA, na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, foi oportuna e simbólica, pois não é todo dia que os EUA se veem confrontados ali por um país considerado amigo. Em meio aos desdobramentos do escândalo de espionagem deflagrado pelo ex-analista de inteligência Edward Snowden – que ainda estão distantes de um fim –, a dura cobrança da presidente brasileira está recebendo no exterior, em geral, uma relevância bem mais significativa que muitas avaliações – algumas quase depreciativas – de comentaristas nacionais, principalmente, daqueles vinculados aos setores econômicos com interesses internacionais. Um exemplo é o comentário do sítio franco-belga De Defensa, publicado em 25 de setembro e intitulado “Roussef: líder anti-Sistema na ONU”. Evidentemente, o uso da palavra “líder” é retórico e os analistas do sítio não estão rotulando Dilma como uma versão de saias do falecido incendiário venezuelano Hugo Chávez (que, no mesmo lugar, equiparou George W. Bush a Satanás), entregando-lhe a liderança da reação mundial contra o que chamam o “Sistema BAO” – britânicoamericano-ocidental. Não obstante, habituados a inserir suas análises no contexto da crise civilizatória global, eles atribuem ao discurso um caráter si_20_08.pmd 8 “excepcional”: “(...) O caso da NSA, tal como nos é revelado, é de outra têmpera, é um caso à parte, único em sua dimensão ontológica; ele é ‘excepcional’, como pretende ser a nação que o instrumenta, e é isto o que assinala a intervenção de Rousseff. E, como estamos neste campo, é assim que esta intervenção deve ser igualmente apreciada, como ‘excepcional’.” Não obstante, vale insistir, para ser coerente com a retórica, Dilma terá que iniciar imediatamente o dever de casa, deixando para trás o descaso atávico com que as questões de segurança nacional, inteligência inclusive, costumam ser tratadas pelas autoridades e lideranças brasileiras. Por exemplo, a tramitação da Política Nacional de Inteligência, que deve orientar e regulamentar a atuação dos órgãos de inteligência do governo, encontra-se aguardando a chancela presidencial desde o final de 2010. Em abril deste ano, a Associação Nacional dos Oficiais de Inteligência (AOFI) divulgou uma nota cobrando a aprovação do texto legal, reiterando a urgência de uma definição mais clara das atribuições da inteligência de Estado. Da mesma forma, os recursos previstos para a rubrica “Implantação do Sistema de Defesa Cibernética” no Projeto de Lei Orçamentária Anual para 2014 foram reduzidos em relação aos já parcos números de 2013, caindo de R$ 90 30/09/2013, 19:45 2 a quinzena de setembro de 2013 milhões para R$ 70 milhões (Monitor Mercantil, 25/09/2013). Aparentemente, nada consegue demover as autoridades brasilienses da sua adesão pétrea à agenda de prioridade máxima para a formação do superávit primário e o serviço da dívida pública. Ainda assim, as autoridades e empresas estatais brasileiras podem recorrer a algumas medidas de custo relativamente baixo para se proteger da bisbilhotice dos ciberespiões da Agência de Segurança Nacional (NSA), desde que se disponham a dar um pequeno recuo tecnológico em suas comunicações. Uma delas é isolar da internet as redes intranet dos órgãos de governo e das estatais. No caso dos ministérios, não seria difícil estabelecer uma intranet coletiva com redes de fibra ótica, na qual operassem apenas equipamentos fisicamente isolados da internet; para os trabalhos que requeressem o acesso à rede mundial, usar-se-iam outros equipamentos. Outro recurso é evitar ao máximo as ligações telefônicas para assuntos sensíveis – lição que, de resto, já era ensinada há décadas por importantes políticos brasileiros, como Tancredo Neves e outros. Como as repartições ficam a pouca distância entre si, na Esplanada dos Ministérios, o uso de malotes e mensageiros pode resolver boa parte das necessidades. O mesmo recurso pode ser empregado pelas estatais, com os devidos cuidados com as empresas responsáveis pela circulação dos malotes. Até mesmo uma empresa como a Petrobras poderia usar este recurso para a transmissão de informações como os dados de produção de suas plataformas, em vez de utilizar a internet, pelo menos, enquanto um serviço de correio eletrônico nacional mais seguro não estiver si_20_08.pmd 9 9 disponível. Dá mais trabalho, mas pode ser mais seguro, no caso de informações que não se deseje que cheguem a olhos e ouvidos indiscretos. Antes que se pense que tais sugestões são pueris, vale lembrar que o governo da Rússia está comprando máquinas de escrever na Alemanha, para a redação de documentos sigilosos. Igualmente relevante é a lição da milícia libanesa Hisbolá durante a guerra de 2006 contra Israel, que driblou as sofisticadas capacidades de inteligência eletrônica israelenses utilizando mensageiros em motocicletas, ao mesmo tempo em que utilizava com grande eficiência os seus não menos capazes recursos eletrônicos obtidos junto ao Irã, cujas sofisticação e eficiência nada ficam a dever às das potências ocidentais (e também seria conveniente tomar nota deste fato, agora que o Irã está se reaproximando do Ocidente). Nada disso, evidentemente, pode dispensar providências de maior alcance, como a disponibilidade, no prazo mais curto possível, de satélites de comunicações estratégicas, de redes de fibra ótica interligando os países sul-americanos e, possivelmente, os parceiros do grupo BRICS, o sistema e-mail gerenciado pelos Correios e outras. Algumas delas já estão sendo implementadas, mas é preciso que todas, efetivamente, saiam do papel. Seja como for, o fato é que o País não pode mais esquivar-se de investimentos sérios em segurança nacional, escudando-se na velha ilusão de que “não tem inimigos externos”. Nunca é demais repetir o velho – e mais que nunca atual – refrão de que não se pode improvisar um sistema de defesa e inteligência eficiente. 30/09/2013, 19:45 10 Solidariedade Ibero-americana EUA: promiscuidade inteligência-empresas é (bem) mais antiga do que parece A revelação de que as grandes operadoras da Internet e de telefonia, como a Google, Microsoft, Facebook, YouTube, AT&T, Verizon e outras, mantêm acordos com a Agência de Segurança Nacional (NSA), para facilitar o acesso às comunicações e informações dos usuários dos serviços das empresas, escancarou para o mundo a extensão da cooperação entre o aparato de inteligência e o setor privado, que tem sido um dos pilares do “complexo de segurança nacional” estadunidense. Não obstante, embora este complexo tenha adquirido a sua forma atual no pós-guerra, a cumplicidade ativa de empresas de telecomunicações com os serviços de inteligência de sinais estadunidenses é uma prática que remonta aos primórdios de tais operações, ainda na década de 1920, quando a inteligência militar já tinha acesso aos telegramas enviados, recebidos e retransmitidos pelos EUA. A primeira agência estadunidense dedicada à interceptação de telecomunicações em tempos de paz foi a chamada Câmara Negra (Black Chamber), criada em 1919 a partir de uma reorganização de uma seção especializada do Exército, que havia desempenhado a função durante a I Guerra Mundial. Dirigida por um virtuose da criptografia, Herbert O. Yardley, a sua primeira façanha foi decifrar o código de comunicações utilizado pelo governo do Japão, o que permitiu aos EUA conhecer antecipadamente as posições japonesas durante a Conferência Naval de 1920, que negociou as proporções entre as frotas das cinco principais potências vencedoras da guerra – EUA, Grã-Bretanha, França, Itália e Japão. No ano seguinte, Yardley pressionou as empresas telegráficas estadunidenses, entre elas a Western Union e a Postal Telegraph, a permitir o si_20_08.pmd 10 acesso de sua agência aos telegramas transmitidos por elas. Como afirma o jornalista James Bamford, autor de três livros sobre a NSA, “ao final de 1920, a Câmara Negra tinha a cooperação secreta e ilegal de quase toda a indústria telegráfica estadunidense”. Em 1929, a Câmara Negra, vinculada ao Departamento de Estado, foi fechada por pressão do então secretário de Estado Henry Stimson (notabilizado pela declaração de que “cavalheiros não leem a correspondência de outros”), mas suas atividades foram apenas transferidas para outra repartição, o Serviço de Inteligência de Sinais (SIS) do Exército. A despeito das restrições da Lei de Comunicações de 1934, que estabelecia penalidades para a interceptação de comunicações privadas, a eclosão da II Guerra Mundial levou o presidente Franklin Roosevelt, em 1940, a autorizar a cooperação das empresas telegráficas com o SIS. Ao término do conflito, a agência tinha mais de 10 mil funcionários. Durante a guerra, tanto os EUA como a Grã-Bretanha desenvolveram extraordinárias capacidades de inteligência de sinais (Sigint, no jargão de inteligência), que se revelaram cruciais para o desfecho favorável aos Aliados e, no pós-guerra, se tornariam os embriões do vasto aparato de espionagem que está sendo exposto ao mundo, com a defecção do ex-analista Edward Snowden. Longe de ser reduzido, o advento da Guerra Fria proporcionou o pretexto para a sua ampliação constante, tanto física como quanto ao escopo da sua utilização, que, além da luta contra o comunismo soviético, passou a ser empregado em toda sorte de atividades clandestinas de interesse dos seus controladores, situados na cúpula do Establishment oligárquico anglo-americano. 30/09/2013, 19:45 2 a quinzena de setembro de 2013 Em 1947, foi estabelecido o Acordo UKUSA, envolvendo os serviços de inteligência de sinais dos EUA, Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, também chamado ”Five Eyes” (Cinco olhos), que possibilita uma divisão de trabalho e um intenso intercâmbio entre as respectivas agências, mantendo-se até os dias de hoje. Ainda em 1945, as três grandes empresas telegráficas estadunidenses – Western Union, RCA e ITT – foram persuadidas a manter o esquema de cooperação que havia prevalecido durante a guerra, em um programa secreto que passou a ser chamado Operação Trevo (Operation Shamrock). Na RCA, o entendimento foi facilitado pelo fato de um de seus diretores, Sidney Sparks, havia acabado de deixar a chefia do Corpo de Sinais do Exército, que ocupara durante o conflito (um prenúncio da promiscuidade entre o serviço público e as atividades privadas, que, nas décadas seguintes se tornaria uma marca registrada do “complexo de segurança nacional”). O arreglo, autorizado pelo presidente Harry Truman (1945-1953), foi herdado pela NSA, fundada em 1952. Além de fazer parte da operação, a RCA forneceu grande parte dos equipamentos para a nova agência. Sem qualquer fiscalização do Congresso ou do Judiciário, a Operação Trevo passou a incluir entre os seus alvos quaisquer cidadãos e organizações que se opusessem às políticas governamentais, inclusive, os militantes do movimento de direitos civis – uma operação paralela estabelecida a pedido do FBI, que, em 1969, recebeu o nome Minarete (Operation Minaret). Na década de 1960, as empresas de comunicações passaram a gravar os seus dados em fitas magnéticas, que, combinadas com computadores, proporcionaram à NSA o que Bamford qualifica como “um salto quântico em sua capacidade de bisbilhotar”. Com o uso de palavras-chave, o trabalho de rastreamento das mensagens de interesse da agência foi consideravelmente facilitado. No início da década de 1970, entre os milhões de mensagens interceptadas mensalmente, cerca de 150 mil eram selecionadas para exame pelos analistas da agência. si_20_08.pmd 11 11 Quando Richard Nixon assumiu a presidência, em janeiro de 1969, ele nomeou um Comitê Interagências sobre Inteligência, o qual recomendou que a NSA expandisse o seu programa de vigilância a todos os cidadãos estadunidenses que usassem os serviços de empresas internacionais, incluindo vigilância eletrônica, quebra de sigilo postal e buscas clandestinas em escritórios e residências. As operações Minarete e Trevo foram encerradas em 1975, depois de serem reveladas por um comitê do Senado dirigido pelo senador Frank Church, que investigava denúncias de abusos do aparato de inteligência contra cidadãos nacionais. Na ocasião, quando os presidentes da ITT, RCA e Western Union foram convocados a depor ao comitê, o então presidente Gerald Ford (1974-1977), instigado pelo chefe de gabinete Dick Cheney e o secretário de Defesa Donald Rumsfeld (depois, respectivamente, vice-presidente e secretário de Defesa de George W. Bush), fez uma inédita extensão do dispositivo do “privilégio executivo” a indivíduos privados e recomendou-lhes que não atendessem à convocação. No entanto, os três decidiram depor, depois que o comitê ameaçou enquadrá-los por “desprezo ao Congresso”. Os depoimentos selaram o destino das operações clandestinas. Em 1976, Ford emitiu uma ordem executiva, proibindo a NSA de interceptar ligações telefônicas e telegramas domésticos. Em 1978, o Congresso consolidou a proibição com a aprovação da Lei de Supervisão de Inteligência Estrangeira (FISA), que restringia a agência a investigar cidadãos e grupos estrangeiros. Não obstante, tais restrições passariam a ser contornadas com uma crescente tendência à “terceirização” e “privatização” das atividades de inteligência, tanto internas como externas, iniciadas nos governos de Ronald Reagan (1981-1989) e George H.W. Bush (1989-1993) e elevadas a um paroxismo no período pós-11 de setembro de 2001. Portanto, a “cooptação” das empresas da Internet pela NSA não constitui qualquer surpresa, mas representa apenas a continuidade de uma longa tradição. 30/09/2013, 19:45 12 Solidariedade Ibero-americana Putin fala sobre a reconstrução do Estado nacional no Fórum de Valdai Elisabeth Hellenbroich, de Wiesbaden A 10ª reunião anual do Fórum de Discussões de Valdai, ocorrida entre 16-19 de setembro, foi um evento verdadeiramente extraordinário, em especial, pelas considerações ali apresentadas pelo presidente russo Vladimir Putin. Fundado em 2004, em uma iniciativa conjunta da agência noticiosa Novosti e o Conselho Russo de Assuntos Estrangeiros e de Defesa, dirigido pelo especialista em segurança Sergei Karaganov, o fórum (também chamado Clube Valdai) tem reunido todos os anos especialistas em segurança e defesa, acadêmicos, jornalistas, empresários e funcionarios de governo, da Rússia, Europa, China e outros países, para intensas discussões privadas e públicas, centradas no papel e perspectivas da Federação Russa no cenário global. Nos últimos anos, Putin tem participado das discussões, fazendo a palestra de encerramento do evento, o qual considera como uma importante plataforma para um intercâmbio de ideias franco e frutífero entre o Ocidente e o Oriente. Este ano, o tema central do evento foi “A diversidade da Rússia para o mundo moderno”. Em seu discurso, Putin fez uma abordagem crucial sobre os princípios essenciais do que rotulou como o “estadismo russo” – e, não menos, traçou uma “linha vermelha” sobre as características fundamentais do Estado nacional. De forma representativa do formato do fórum, ele compartilhou o painel final com o ex-ministro da Defesa alemão Volker Rühe, o ex-primeiroministro francês François Fillon, e ex-premier italiano Romano Prodi e o presidente do Centro para o Interesse Nacional estadunidense, Dimitri K. Simes. Putin falou sobre a necessidade de fazer da Rússia uma nação de “criadores”, uma nação de indivíduos e cidadãos que se considerem como construtores da nação, a partir si_20_08.pmd 12 do recurso mais essencial da Rússia: a sua história secular, seus valores cristãos e a sua extraordinária literatura. Para uma “sociedade cívica” funcional, como a definiu, em que cada indivíduo seja consciente de suas responsabilidades e tome decisões autônomas, é importante atentar para as lições da História e ser consciente das suas partes boas e ruins. A sua visão combina uma sociedade criativa mais complexa e a ideia de que a Rússia deve se engajar, simultaneamente, em um esforço renovado para construir a União Econômica Eurasiática e promover mais ativamente o desenvolvimento da infraestrutura econômica da região. Observando que o Fórum de Valdai está sediado na região de Novgorod, que considerou como “um berço do estadismo russo”, Putin delineou os princípios fundamentais de tal orientação, que está vinculada ao futuro do mundo globalizado e o papel que a Rússia poderá desempenhar nele. Na sociedade russa, afirmou, ocorre uma intensa discussão sobre a questão “quem somos e o que queremos ser”. Ele deixou claro que não haverá um retorno à ideologia soviética e que os conservadores que idealizam o período pré-1917 são tão alheios à realidade como os liberais “globalizantes” pró-ocidentais. Os princípios básicos da nacionalidade russa foram assim descritos: • “Não se pode progredir sem uma autodeterminação spiritual, cultural e nacional”; sem ela, não há como se resistir aos competidores. • “Cada país tem que ter a sua força militar, tecnológica e econômica, mas a chave para uma nação e o que determina o seu sucesso é a qualidade dos cidadãos; a qualidade da sociedade é a sua força intelectual, espiritual e moral.” 30/09/2013, 19:45 2 a quinzena de setembro de 2013 • “Se os cidadãos de um dado país se consideram como uma nação, isto irá depender de até onde eles se identificam com a sua própria história, valores e tradições, e se eles estão unidos por objetivos e responsabilidades comuns. Realmente, a questão de se encontrar e fortalecer a identidade nacional é fundamental para a Rússia.” Na visão de Putin, o catastrófico século XX representou um grande golpe nos códigos nacionais e espirituais do povo russo, deixando atrás de si “um déficit de confiança e de responsabilidade” na sociedade. Por conseguinte, o princípio crucial do estadismo, atualmente, é desenvolver em cada cidadão um sentido de “responsabilidade própria perante à sociedade e à lei”. Putin enfatizou que, no período posterior a 1991, não foi feito um esforço suficiente para se promover um debate amplo sobre o tema da identidade nacional russa. A identidade nacional não se desenvolve de acordo com as regras do mercado, nem é um modelo que possa ser imposto de fora para dentro. “O desejo de independência e soberania nas esferas espirituais, ideológicas e de política externa constitui uma parte integral do nosso caráter nacional”, disse ele. “Nós precisamos de criatividade histórica, uma síntese das melhores ideias, um entendimento das nossas tradições culturais, espirituais e políticas, de diferentes pontos de vista, e entender que ela [a identidade nacional] não é uma coisa rígida que irá durar para sempre, mas um organismo vivo”, ressaltou. Para tanto, disse Putin, é necessário um amplo debate na sociedade, envolvendo pessoas com diferentes pontos de vista políticos, promovendo uma cultura de diálogo livre: “Todos nós – os chamados neoeslavófilos e neoocidentalizantes, estatistas e os assim chamados liberais – toda a sociedade deve trabalhar em conjunto para criar metas de desenvolvimento comuns.” O líder do Kremlin ressaltou que quer ajudar a criar uma sociedade criativa e vibrante, em que cada indivíduo seja capaz si_20_08.pmd 13 13 de ouvir os outros e se deixe de lado os hábitos de ouvir apenas os que pensem igual e de reagir raivosamente a qualquer outro ponto de vista – isto é, deve haver um amplo debate na sociedade, no qual os liberais aprendam a conversar com representantes da esquerda e, igualmente, os nacionalistas entendam que a Rússia foi formada especificamente como um país multiétnico e multiconfessional. Ao mesmo tempo, Putin se mostrou bastante crítico do fato de que, em vários países do Ocidente, muitas pessoas reneguem os valores e raízes cristãos de suas identidades, enraizadas na Civilização Ocidental, negando a identidade tradicional ocidental e promovendo excessivamente os preceitos da “correção política”, que enfraquecem a família: “Sem os valores basilares do cristianismo e das outras religiões mundiais, sem os padrões de moralidade configurados ao longo de milênios, as pessoas, inevitavelmente, perdem a sua dignidade humana. Nós consideramos que é natural e correto defender estes valores.” Por conseguinte, o papel da Rússia na política global se orienta pelo desenvolvimento de uma nação baseada na diversidade, harmonia e equilíbrio. A Rússia, como colocou Putin, tem evoluído como uma “complexidade florescente”, uma civilização de Estado reforçada pelo povo, a língua e a cultura russos, pela Igreja Ortodoxa Russa e pelas outras tradições religiosas do país. Putin finalizou, enfatizando que o povo russo deve desenvolver uma identidade cívica de uma maneira nova, com base em valores compartilhados e na participação ativa dos cidadãos na vida da sociedade. “A principal força da Rússia, neste século e nos vindouros, se baseará menos nos recursos naturais, e mais na educação, criatividade e saúde física e espiritual do seu povo”, afirmou. “Os cidadãos russos devem sentir que são os proprietários responsáveis do seu país, de sua região, de sua cidade, de suas propriedades e bens, e de suas vidas. Os governos locais e organizações de cidadãos autorreguladas funcionam como a melhor escola para a consciência cívica.” 30/09/2013, 19:45 14 Solidariedade Ibero-americana A Reserva Federal imprime dólares; (alguns) BRICS compram ouro Mario Lettieri e Paolo Raimondi, de Roma Se bastasse criar liquidez a partir do nada para fomentar a economia e superar a crise, estaríamos há tempos na terra da abundância, especialmente, no caso dos EUA. Infelizmente, as coisas não são tão simples. Portanto, a recente decisão do Sistema da Reserva Federal de manter as maciças injeções mensais de liquidez no sistema financeiro revela, simplesmente, que o banco central estadunidense não se mostra mais capaz de interromper a sua função de fornecedor de “morfina” a um sistema cada vez mais “viciado”. É certo que as bolsas de valores têm respondido de uma maneira bastante animada com a elevação dos índices, mas não se pode dizer que isto seja um sinal positivo real. Na verdade , o próprio “Fed” , após a reunião do seu Comitê de Mercado Aberto, teve de admitir que “se fôssemos continuar com o aperto das condições financeiras (com o aumento das taxas de juros), observado nos últimos meses, o processo de melhora da economia e do mercado de trabalho poderia se tornar mais lento”. A consequência inevitável desta “filosofia” é que os EUA continuarão a praticar a sua “política monetária acomodatícia” , injetando 85 bilhões de dólares por mês na compra de novos títulos do Tesouro e derivativos baseados em ativos. O presidente do banco, Ben Bernanke, cujo mandato está prestes a expirar, si_20_08.pmd 14 reiterou que a “facilitação quantitativa” (quantitative easing, em inglês) continuará enquanto os níveis de desemprego nos EUA não caiam abaixo de 6,5 %. Como se espera que isto não aconteça antes do final de 2014, até lá, teremos cerca de 1,5 trilhão de dólares novos nos mercados internacionais. Porém, a edição de setembro do boletim trimestral do Banco de Compensações Internacionais (BIS) levanta sérias dúvidas sobre os “benefícios” da “facilitação”, detalhando as suas repercussões desastrosas, especialmente, nas economias emergentes. O boletim lembra que, em maio último, quando o “Fed” apenas ventilou a hipótese de uma mudança na sua política monetária, os juros dos títulos de dívidas dispararam, deflagrando uma cascata de efeitos negativos em muitos setores financeiros de várias partes do mundo. Houve uma corrida para a venda de títulos, com a consequente queda nos preços. Nos mercados emergentes, a retirada de capitais provocou uma forte desvalorização de algumas de suas moedas. A análise do BIS ressalta que, mesmo depois das garantias dadas pelo “Fed”, pelo Banco Central Europeu (BCE) e pelo Banco da Inglaterra, em julho, o aumento dos juros de longo prazo se manteve, enquanto os mercados esperavam um aperto na situação financeira em todo o mundo. 30/09/2013, 19:45 2 a quinzena de setembro de 2013 15 A situação é extremamente volátil. o Brasil é a exceção do grupo, pois suas Apesar deste aumento já por si desesta- reservas, ao final de 2012, não chegavam bilizador, os juros de longo prazo perma- a 70 toneladas e o Banco Central brasinecem baixos e empurram os investidores leiro não parece estar engajado em aquipara produtos e operações financeiras de sições importantes do metal. Isto não configura uma súbita atração alto risco. Consequentemente, crescem a emissão de títulos e de empréstimos nos pelo metal precioso, mas uma estratégia setores financeiros mais expostos e arris- de política monetária e geoeconômica cados – da mesma forma como ocorreu coerente. Em todo o mundo, a maioria pouco antes da eclosão da crise global de dos países está consciente de que o dólar 2007-2008. Por exemplo, a proporção estadunidense se enfraquece e se torna de “empréstimos alavancados”, crédi- mais instável a cada dia, por conta da tos bastante parecidos com as hipotecas criação descontrolada de moeda nova subprime – ou seja, concedidos a credo- pelo “Fed”. Estaremos chegando ao momento do res já altamente endividados e de confiabilidade duvidosa –, já atinge 45 % do ajuste de contas? Será chegada a hora da mercado de financiamentos “in pool”, adoção da célebre “cesta de moedas” e distribuídos entre um grupo de bancos. de ouro, proposta pelos BRICS para Observe-se que este percentual é 10% substituir o dólar? E a Europa, o que tem superior aos níveis até então recordes re- a dizer a respeito? gistrados antes do colapso do Lehman Brothers. Contra a corrente, vale registrar que as políticas monetárias de alguns membros do grupo BRICS e outros países emergentes importantes têm como uma das metas principais o aumento das suas reservas de ouro. Estima-se que, este ano, apenas a China deve comprar pelo menos 1.000 toneladas do metal, o que duplica as suas reservas. Em conjunto, China, Rússia e Índia poderão responder pela compra de cerca de 70% de todo o ouro produzido em 2013. Em 2012, a Rússia aumentou as suas reservas do metal em 8,5%, levando-as para um total aproximado de 1.000 toneladas. A Índia fechou 2012 com cerca de 560 toO Brasil deveria seguir o exemplo de seus parceiros no BRICS neladas. Neste particular, e aumentar as suas reservas de ouro si_20_08.pmd 15 30/09/2013, 19:45 16 Solidariedade Ibero-americana CONHEÇA O NOVO LANÇAMENTO DA CAPAX DEI EDITORA Loja virtual: www.capaxdei.com.br | [email protected] F A Ç A O S E U P E D I D O (acrescentar R$ 6,00 para remessa postal) Nome End. Cidade UF Tel.: CEP E-mail exemplar(es) do livro Quem manipula os povos indígenas contra o desenvolvimento do Brasil: um olhar nos porões do Conselho Mundial de Igrejas – R$ 35,00 assinatura anual do jornal Solidariedade Ibero-americana – R$ 135,00 Opção de pagamento: [ ] Cheque nominal à Capax Dei Editora Ltda. no valor de R$ [ ] Depósito bancário no Banco do Brasil, ag. 0392-1, c.c. 20.735-7 em nome da Capax Dei Editora Ltda. no valor de R$ Envie seu pedido e cheque ou comprovante de pagamento à Capax Dei Editora Ltda. R E M E T E N T E | R. México, 31 s. 202 si_20_08.pmd 16 CEP 20031-144 – Rio de Janeiro – RJ telefax +(21) 2510.3656 30/09/2013, 19:45
Documentos relacionados
Síria: gambito russo coloca “Partido da Guerra” em
a perspectiva de um ataque militar estadunidense contra a Síria, enquanto, no complexo e explosivo xadrez geopolítico da região, o presidente da Federação Russa, Vladimir Putin, se consolida como o...
Leia maisPetróleo não é mercadoria, é poder!
Lorenzo Carrasco O projeto de reforma da Constituição Siqueira, o analista político Alfredo JalifeMexicana, apresentado pelo governo do Rahme, os engenheiros Javier Jiménez presidente Enrique Peña ...
Leia maisCivilização mundial passou do ponto, diz Papa no Rio
acompanhar atentamente a sua tramitação, se preciso, pressionando o Congresso para acelerá-la.
Leia mais