Doença e Morte: da Terceira para a Primeira Pessoa

Transcrição

Doença e Morte: da Terceira para a Primeira Pessoa
Celebração do Dia da Faculdade de Medicina
FACULDADE DE MEDICINA, UNIVERSIDADE DE LISBOA
14 Setembro 2015
“Doença, sofrimento e morte:
da terceira para a primeira
pessoa”
Isabel Fernandes
CEAUL/ULICES – University of Lisbon Centre for English Studies
FLUL – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Telefilme Wit, de Mike Nichols (2001)
Minutos: 30.10 a 31.10
Acessível em: https://www.youtube.com/watch?v=u0PPvYlGqL8
Max Oppenheimer, The Operation (1912), Prague National
Gallery
• Maurice Merleau-Ponty: “corpo-sujeito”
[corps-sujet], engajado num “diálogo
primordial” com o mundo. [Cf. Maurice MerleauPonty. Phénoménologie da la perception. Paris :
Gallimard, 1998].
Segundo Havi Carel:
• Abordagem “naturalista” = doença como
disfunção biológica
• Medicina = conhecimento objetivo capaz de
solucionar os males do corpo
• Avanços registados nas ciências médicas
• Técnicas e meios auxiliares de diagnóstico (em
especial os de imagem)
• Apuramento do diagnóstico
• Alargamento da esfera de intervenção do
pessoal médico
Aldous Huxley, Brave New World [Admirável Mundo Novo], 1932
João Lobo Antunes, A Nova Medicina
(2012)
• A Nova Medicina - “é cada vez mais eficaz, mas também
mais difícil, mais complexa e mais perigosa” (Antunes 34)
• “Ainda hoje na prática clínica o diagnóstico começa com a
colheita da história, o exame físico – agora um pouco
menosprezado pela abundância e rigor das técnicas de
imagem – a que se segue o recurso a exames auxiliares de
diagnóstico. Na Nova Medicina a imagem quase aboliu a
narrativa da doença, em parte porque o médico tem menos
tempo para ouvir (há um estudo que revela que o médico
tende a interromper o discurso do doente em média
dezoito segundos depois de ele começar!), e porque o
próprio doente tem dificuldade em explicar as suas queixas
e acha que a doença está claramente revelada nas imagens
obtidas.” (Antunes 29-30)
• Equilibrar os desenvolvimentos da medicina
como ciência e a tendência para uma certa
subalternização da relação interpessoal
• Com:
• Reconsideração do doente como pessoa (a
quem a doença afeta muito para lá do
biológico)
• Conceder-lhe espaço de escuta
• Ter em conta o seu ambiente social e familiar
• Médico elabora uma narrativa objectiva do
caso clínico que tem perante si =narrativa de
3ª pessoa.
• A complementar por: uma narrativa de 1ª
pessoa (experiência direta da doença pelo
próprio doente).
Dar espaço de escuta ao doente
A queixa que surge como quase universal neste contexto [o
contacto diário da própria autora com outros doentes do
Reino Unido e doutras partes do mundo] é: por que razão
não sou tratado como uma pessoa? Tal queixa aponta para
uma certa cultura instalada no mundo médico de tratar a
doença como uma disfunção puramente biológica. Se a
doença é vista como um mau funcionamento, ela (e, com
ela, a pessoa doente) serão tratadas de modo muito
diferente do que se fosse vista como um acontecimento
que transforma o mundo, porque modifica o mundo em
que o doente vive.
Havi Carel, (2008) Illness: The Cry of the Flesh. Durham: Acumen, 2013 (Rev.
Ed.), 54 (Tradução minha).
“Actualmente temos à nossa disposição as técnicas mais notáveis da medicina
moderna. Aprender a usá-las é suficientemente difícil. Mas compreender as suas
limitações é a tarefa mais árdua de todas.” Atul Gawande, Ser bom não chega , 146.
Edward Munch, O Grito (1893), Oslo , Munch Museet
José Perez, O cirurgião (séc. XX. ), colecção privada
• A ciência moderna, em
particular a Medicina:
“continua a tratar o
organismo humano como
um modelo de causa e
efeito, uma máquina
cartesiana com funções
previsíveis e mensuráveis
no mundo físico.”
• As “maquinações internas
do corpo humano,” a
grande maioria das quais
“está ainda por
compreender.”
David H. Newman. Onde falham os
médicos. Trad. A. G. Lucas. Alfragide: Casa das
Letras, 2010, 222-23.
[O] modelo estóico do médico moderno que
apoiamos – um observador objectivo e
distante – não existe. A nossa presença altera
a trajectória da doença e tem impacto sobre a
experiência humana. Não somos espectadores
indiferentes, nem devemos sê-lo; fazemos
parte integrante e poderosa tanto da doença
como da cura. (Newman 223)
Fotografia de André François, 2006.
• Ir além da dimensão
biológica
• Atender aos aspetos
linguísticos, emocionais,
sociais e outros da
experiência da doença
• Abandonar uma narrativa
exclusivamente narrada na
3ª pessoa (doente é objeto)
• Acolher relatos do doente
na 1ªpessoa, com
dimensão experiencial
(dúvidas, ansiedades,
medos e sofrimento)
• responsible = response + able = able to
respond
• “O médico, para reconhecer plenamente a
doença, (…) tem primeiro que reconhecer o
doente como pessoa; já no que toca ao
doente, o reconhecimento da sua doença
pelo médico é uma ajuda, porque separa e
despersonaliza essa doença.” (Berger 74 – Enfâses e
tradução minhas)
• Havi Carel: “fenomenologia – descrição da experiência
vivida – o auxiliar mais valioso” que encontrou “para
ampliar a abordagem naturalista da doença.” (10)
• A “fenomenologia privilegia a experiência na primeira
pessoa, desafiando assim a visão objetiva de terceira
pessoa característica do universo médico”. (Ibid.)
• “A abordagem fenomenológica pode ser um dos meios
de corrigir ou ultrapassar a condição de doença vista
como um exemplo de ‘injustiça epistémica.’” (Carel
xviii)
• Narrativas de doença (illness narratives) ou patografias
= relatos de doença narrados a partir da perspetiva de
quem a viveu.
• Autobiografia
• Raíz latina:
• Auto = (0) próprio Bio = Vida Grafia = Escrita
• Sugéneros autobiográficos: autobiografia, o romance
autobiográfico, o diário, a memória e cartas.
Exemplo de patografia
Narrativa da doença
depressiva do rei D.
Duarte, por ele
exemplarmente
documentada no livro
Leal Conselheiro.
In Clara Rocha, A
Caneta que escreve e a
que prescreve (2012)
Hilary Mantel
“A crónica duma longa história de erros de
diagnóstico e negligência, na qual os sintomas
de dor não identificada foram tomados por
depressão causada por ambição irrealista.
Seguiram-se tranquilizantes em série, com
efeitos secundários desastrosos. Aos 27 anos,
foi-lhe diagnosticada endometriose e foi
efetuada uma histerectomia. Os bebés que
nunca haveriam de nascer são vozes
implorativas e pungentes nesta história
impiedosa de perdas e derrotas.”
Brenda Niall, “Giving up the Ghost”(Maio 8, 2004) in:
http://www.theage.com.au/articles/2004/05/07/108388147
1653.html (acedido em 18-3-2013) (Tradução minha)
Fernandes, Isabel et al. (Eds.) Contar (com) a Medicina. Lisboa: Edições
Pedago, 2015.
Antologia de textos de autores
estrangeiros traduzidos para
português e versando
questões relacionadas com a
doença, o sofrimento e a
morte.
Projecto FCT “Narrativa & Medicina:
(Con)textos e Práticas
Interdisciplinares”(PTDC/CPC-ELT/3719/2012)
Site Oficial PT:
www.narrativmedicin.wordpress.com
Site Oficiel EN:
www.narrativmedicineng.wordpress.com
Cerca de quatro meses mais tarde [após a histerectomia], depois de, graças a repetidos ciclos de
penicilina, recuperar das infeções contraídas no hospital, regressei ao Botswana, ao meu frágil casamento,
à minha casa, aos meus cães e gatos. Agora vou ficar melhor, disse eu, vou ficar diferente. Voltei ao médico
de clínica geral que me tinha tratado, ou que não me tinha tratado, no centro da cidade, num consultório
poeirento sob eucaliptos. Sentia dificuldade em falar. Achava que não havia nada de que ter vergonha mas
sentia vergonha e não tinha a certeza do sigilo da consulta – parecia haver fugas de segredos nesta
pequena cidade do interior. Arrastando os pés, contei-lhe sobre a cirurgia.
– Enfim – disse eu –, como vê, ao fim e ao cabo não havia muito a fazer, atendendo ao ponto a
que eu tinha chegado. Acabou por ser uma pequena catástrofe.
– Bem – disse ele, arrastando os pés nas sandálias por baixo da secretária. – Sempre há uma
coisa boa. Agora não precisa de se preocupar com contraceção.
Até ao Natal, eu fora uma mulher que julgava ter escolha. Tinha vinte e sete anos e pensava que
podia ter um bebé, mesmo que não o quisesse, mesmo que o meu marido não o quisesse; tinha
liberdade de escolha, havia possibilidades. Agora não tinha liberdade e as possibilidades estavam-me
vedadas. A biologia era destino. A negligência – minha e da classe médica – privara-me das minhas
escolhas. Agora o meu corpo não era meu. Era uma coisa remexida, uma coisa operada. Era, ao mesmo
tempo, uma jovem de vinte e sete anos e uma velha. Fora sujeita àquilo que se chama “menopausa
cirúrgica” e a que os manuais da época chamavam “castração feminina”. Seria então eu um eunuco? A
castração é um castigo – qual seria então o meu crime? Esteve na moda chamar à endometriose “a
doença da mulher profissional”, subentendendo-se: ora aí tens, sua insensível, vê o que acontece
quando adias ter filhos e pões as tuas ambições em primeiro lugar. Se eu não servia para ter filhos, para
que servia eu? Quem era eu? Os meus circuitos hormonais estavam avariados, a minha endocrinologia
estava desfeita em pedaços. Era velha enquanto era nova, era uma primata e um borrão na página, era
um zero, nada de nada. O editor recusara o meu livro sobre a Revolução Francesa. Ao que parecia, nem
escrever sabia. Mas vá lá – venha daí o champanhe! Pelo menos não tenho de me preocupar com
contraceção!
Há momentos na vida em que se justifica darmos um murro na cara de alguém. Mas eu não reagi.
Sabia que era ao médico que competia desferir o golpe e a mim absorvê-lo. Às vezes sentimos um certo
orgulho neste tipo de resistência. Na altura, era tudo o que me restava. (Mantel 91-2)
Aspetos como a idade (era jovem e
inexperiente), o sexo (feminino) e a classe
(média baixa ou mesmo trabalhadora)
conjugaram-se negativamente e prejudicaram
uma avaliação criteriosa e isenta por parte dos
médicos, desencadeando a “pequena
catástrofe”.
• Os médicos não se livram de incorrer em
deduções e juízos apressados e
preconceituosos e a sua prática,
alegadamente imparcial, acaba por poder
ressentir-se desse contágio indesejável.
• Tal só pode ser corrigido com um
conhecimento mais próximo da pessoa do
doente e das suas circunstâncias de vida.
A doença na 1ª pessoa
• O recurso a relatos de doença na 1ª pessoa, reais ou
ficcionais, como meio de aproximar o médico do
doente.
• Representam a vida humana na sua complexidade,
com as suas crises, dilemas morais, sentimentos de
culpa, receios e desafios e podem constituir meios
excelentes de aceder ao drama humano na sua
plenitude, sobretudo em momentos críticos ou de
grande vulnerabilidade.
• Tornam-se não só humanamente partilháveis como
imaginativamente estimulantes – uma verdadeira
educação para a vida, quer pessoal quer profissional.
Os jovens médicos não teriam vantagem se lhes
puséssemos à frente, ao longo dos seus estudos,
algumas páginas de Balzac e Flaubert, de Manzoni e de
Tolstoï, de Proust e de Virginia Woolf ou ainda de
Tchékhov, Valéry, Kafka, Thomas Mann? Talvez
tenhamos começado a dar respostas a estas perguntas:
fala-se em programas de “Humanidades Médicas” nos
Estados Unidos e em Espanha, em Lausana e em
Genebra... É o complemento necessário do
maravilhoso aperfeiçoamento da maquinaria humana.
Jean Starobinski, «Em defesa das “Humanidades médicas”». Trad.
Maria de Jesus Cabral. In Isabel Fernandes et al. Contar (com) a
Medicina. Coimbra: Ed. Pedago, 2015, 17-19, 18-19.
• Escrita na 1ª pessoa, partindo dos próprios
estudantes ou pessoal de saúde, permite o
encontro destes consigo próprios e com a sua
prática, visando a autodescoberta, o
autoconhecimento e a autoanálise.
• Cria as condições para um autêntico diálogo
com o outro, abrindo caminho à empatia.
Médicos escritores portugueses
Médicos escritores estrangeiros
O que leva os médicos a escrever:
• Necessidade de um conhecimento de si.
• Sendo observadores e conhecedores
privilegiados do que de mais essencial marca a
nossa comum humanidade detêm posição
privilegiada para dar dela testemunho.
• A ficção literária permite- lhes dar livre curso ao
que são capazes de retirar dessas vivências - em
penetração psicológica, em lições de vida ou em
insondáveis enigmas, respeitando o segredo
profissional.
Escrevam. O que vocês escrevem não precisa de
ser perfeito. Precisa apenas que lhe acrescentem
alguma observação sobre o vosso mundo. (…) Ao
oferecerem as vossas reflexões a um público,
mesmo que diminuto, passam a fazer parte dum
mundo mais vasto. (…) A palavra escrita é uma
declaração de pertença a essa comunidade e
também de um desejo de contribuir com algo de
significativo para ela.
Atul Gawande, Ser bom não chega (228-29).
Leonid Pasternak, A noite antes do exame (1895),
Paris, Musée d’Orsay.
• Uma sólida
componente
científica e
técnica, em
permanente
evolução e, por
isso, carecida de
estudo aturado,
e de atualização
e leituras
constantes.
“O médico que só
sabe de medicina,
nem medicina
sabe.”
Abel Salazar
O “para além da medicina”:
• A capacidade comunicativa e de escuta.
• O sentido da responsabilidade perante o
outro.
• A transparência moral, na base da boa
deliberação.
• A diligência.
• O engenho ou imaginação.
O médico habita uma zona limiar, uma zona de fronteira: entre a saúde e a
doença, entra a vida e a morte.
Stanley Spencer, Travoys Arriving with Wounded at a Dressing-Station (1919), London,
Imperial War Museums
• Aristóteles (Ética a Nicómaco, Livro 6,
cap. 7): phronesis = saber prático
Saber prático vs. saber filosófico
• O sangue frio, a coragem e o engenho
para ultrapassar o desafio do momento.
Francisco Goya, Self-portrait with Dr. Arrieta (1820),
Minneapolis Institute of Arts, Minneapolis, Minnesota, USA
Vincent Van Gogh, Portrait du Dr. Pierre Gachet (1890), Paris,
Musée d’Orsay
Bibliografia
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http://sumateologica.files.wordpress.com/2009/07/aristoteles_-_metafisica_etica_a_nicomaco_politica.pdf (acedido em 88-14)
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Fricker, Miranda. Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing. Clarendon Press, 2007.
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Rocha, Clara (org.) A caneta que escreve e a que prescreve: doença e medicina na literatura portuguesa. Lisboa: Babel, 2011.
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