Acidentes-de-trabalho-na

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Acidentes-de-trabalho-na
Acidentes de trabalho na construção civil: a inviabilidade, como regra, de aplicação,
da responsabilidade objetiva, com base no art. 927, Parágrafo Único, do Código Civil
Por Antônio Augusto Harres Rosa
1. INTRODUÇÃO
O art. 927, Parágrafo Único, do Código Civil brasileiro 1, impõe, expressamente,
a obrigação de indenizar, “independentemente de culpa” (responsabilidade objetiva),
ao autor de dano que exerça atividade que implique “por sua natureza, risco para os
direitos de outrem”.
Considerando a possibilidade de aplicação desta norma civil indenizatória aos
acidentes de trabalho, 2 o presente estudo tem o intuito de, analisando o conteúdo
1
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei,
ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os
direitos de outrem.
2
Trata-se, neste estudo, do acidente de trabalho típico, previsto no art. 19, da Lei 8.213/1991, in verbis:
Art. 19: Acidente do trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa ou pelo exercício do
trabalho dos segurados referidos no inciso VII do art. 11 desta Lei, provocando lesão corporal ou perturbação
funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho.
§ 1º A empresa é responsável pela adoção e uso das medidas coletivas e individuais de proteção e segurança da
saúde do trabalhador.
§ 2º Constitui contravenção penal, punível com multa, deixar a empresa de cumprir as normas de segurança e
higiene do trabalho.
§ 3º É dever da empresa prestar informações pormenorizadas sobre os riscos da operação a executar e do produto
a manipular.
1
destinado a proceder à concreção da referida cláusula geral, averiguar os critérios que
autorizam a objetivação desta responsabilidade.
Estabelecidos os parâmetros que autorizam prescindir da análise da culpa,
cumpre perquirir acerca da viabilidade de aplicação da responsabilidade objetiva nos
casos de acidentes de trabalho ocorridos na área da construção civil e os motivos pelos
quais dita atividade autoriza ou não a incidência da regra.
2. A RESPONSABILIDADE CIVIL E SUA VERTENTE OBJETIVA
Sabe-se que a responsabilidade civil clássica, advinda do dever geral de
neminem laedere (não causar danos a outrem) exige, para sua configuração, existência
de dano injusto 3, ato ilícito 4, nexo de causalidade 5 entre o dano e o ato e, por fim,
culpa 6.
3
Como nos ensina Serpa Lopes, “Constitui ponto interessante a indagação sobre se o dano é elemento integrante da
responsabilidade civil. A noção clássica e predominante é no sentido afirmativo. Onde não houver dano não há
fundamento para a responsabilidade, e nisto vai a diferença entre a responsabilidade civil e a penal (...)” (SERPA
LOPES, Miguel Maria de. Curso de Direito Civil. Obrigações em geral. 3ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961. p.
469 – grifou-se). Mas é fundamental lembrar que não é todo dano que enseja indenização, mas sim aquele que é
adjetivado como injusto. Em evidente evolução da Teoria da Diferença (para a qual o dano configuraria o resultado
da diferença entre a situação de determinado bem antes do fato danoso e a que se verifica posteriormente a tal
evento), a doutrina passou a adotar a Teoria do Interesse, a qual adiciona à teoria anterior a ideia da normatividade
do dano (além da concepção meramente naturalista). Nesta concepção, o dano insere-se como lesão a interesse
jurídico, como subtração de um bem jurídico - aqui ficam inseridas não apenas as lesões ao patrimônio
propriamente dito, mas também a todo interesse extrapatrimonial juridicamente tutelado. É este, portanto, o dano
a que convém adjetivar de injusto (MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. vol. V, tomo II. Rio
de Janeiro: Forense, 2009.p. 166-172).
4
Alguns doutrinadores, a exemplo de Fernando Noronha (NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. São Paulo:
Saraiva, 2003. v.1. p. 364), entendem que o conceito de ilicitude abrangeria sempre a antijuridicidade (mera afronta
ao Direito; contrariedade à norma) e a culpabilidade (possibilidade de imputar a alguém a conduta antijurídica), as
quais deveriam se mostrar presentes para que estivesse plenamente configurada a ilicitude. Em contrapartida,
juristas de peso (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
p. 30) refutam tal entendimento, propondo uma divisão da ilicitude em objetiva e subjetiva. No aspecto objetivo,
observar-se-ia apenas a exterioridade da conduta (a sua antijuridicidade), ou seja, a desconformidade com aquilo
que o direito queria (transgressão de um dever jurídico); aqui a conduta mereceria a qualificação de ilícita ainda que
2
não tivesse origem numa vontade consciente e livre. No aspecto subjetivo, a ilicitude só atingiria sua plenitude
quando a conduta contrária ao juízo de valor que a norma visasse a atingir decorresse da vontade do agente (ato
humano consciente e livre), sendo necessária a possibilidade de imputação do ato ao agente. Concomitantemente a
esta divisão, a segunda corrente ainda divide o ato ilícito em sentido estrito e em sentido amplo: em sentido estrito,
o ato ilícito seria o conjunto de pressupostos da responsabilidade civil clássica: a conduta ilícita, a culpa, o dano e o
nexo causal. (MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico. Plano da existência. 12ª ed. São Paulo: Saraiva,
2003. p. 231-258). Esta responsabilidade decorrente deste ato ilícito estaria prevista no art. 927 do Cód. Civil. Em
sentido amplo, o ato ilícito seria configurado apenas pela conduta humana antijurídica (contrariedade a direito).
Entende-se, no presente trabalho, que maior correção apresenta a noção defendida pela segunda corrente. Não se
poderia aceitar, por exemplo, conforme entendem os juristas partidários da primeira noção apresentada, que a
responsabilidade objetiva não adviria de um ato ilícito (mas sim de um ato lícito), tendo em vista que não poderia
ser imputada a outrem a conduta.
5
Conforme preceitua a doutrina, o exame do nexo de causalidade, deve ser realizado antes de qualquer outra
análise, anteriormente à averiguação de eventual culpa/dolo do empregador, “porquanto poderá haver acidente
onde se constata o nexo causal, mas não a culpa do empregador; todavia, jamais haverá culpa se não for
constatado o liame causal do dano com o trabalho” (OLIVEIRA, Sebastião Geraldo. Indenizações por Acidente do
Trabalho ou Doença Ocupacional. 4ª ed. São Paulo: LTr, 2008. p. 135). Ora, caso não haja relação de causalidade
entre o dano e o ato ilícito, inviável se mostra a tentativa de discussão de qualquer indenização, razão pela qual é
despicienda até mesmo a análise da culpa ou do dolo do empregador. Restou consagrada, no direito brasileiro,
quanto ao nexo causal, a teoria da Causalidade Adequada. Desenvolvida pelo filósofo alemão von Kries, entre o final
do século XIX e o início do século XX, a teoria da Causalidade Adequada dispõe que o elemento da necessariedade
deve vir acompanhado da chamada adequação. Assim, não se mostra suficiente que, concretamente, o fato tenha
sido condição sine qua non para a produção do dano; é fundamental que, abstratamente, tenha sido o fato uma
causa adequada do dano. (VARELA, João de Matos Antunes. Das Obrigações em Geral. v.1. 7ª ed. Coimbra:
Almedina, 1993, p. 251). A adequação, dessa maneira, é averiguada de modo abstrato, ou seja, é verificado se,
normalmente, de acordo com os usos e costumes de determinado local, aquele fato seria ensejador do dano
causado. Em outras palavras, deve o dano verificado ser "consequência normalmente previsível do fato que estiver
em causa". (NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2003. v.1. p. 600). Em razão disso
que se afirma que os eventos os quais somente em situações excepcionais ensejariam dano não podem ser
considerados causas adequadas do mesmo. (SILVA, Rafael Peteffi da. Responsabilidade Civil pela Perda de uma
Chance. São Paulo: Atlas, 2007. p. 24). Para que se possa averiguar se o dano ocorrido é uma consequência
previsível do fato gerador, a teoria se utiliza do método da prognose retrospectiva ou prognose póstuma: por meio
deste exercício, o aplicador do Direito retrocede ao momento anterior ao que ocorreu o fato para, então, tentar
prognosticar se, em consonância com os usos comuns, o dano viria a ocorrer normalmente. "Se concluir que o dano
era imprevisível, a causalidade ficará excluída. Se concluir que era previsível, como consequência do fato praticado,
mesmo que estatisticamente não viesse a ocorrer, a causalidade será adequada."(NORONHA, Fernando. Direito das
Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1, p. 601).
6
Nas palavras de Mário Júlio de Almeida Costa: “(...) a culpa pondera o lado subjetivo do comportamento do
agente, ou seja, as circunstâncias individuais concretas que o envolveram (juízo de censura sobre o agente em
concreto). (...) O primeiro pressuposto da culpa é a imputabilidade do agente (...) Mas o problema não se reduz,
obviamente, à imputabilidade do autor do facto ilícito. Importará apurar, em face das circunstâncias concretas, a
existência de culpa. Por outras palavras, terá que se averiguar se a sua conduta é reprovável e em que medida.
Operam aqui as modalidades de culpa que são, fundamentalmente, duas: culpa em sentido estrito (imprudência,
negligência ou imperícia) e dolo (acto praticado com a intenção malévola de produzi-lo, ou apenas aceitando-se
reflexamente esse efeito).” (ALMEIDA COSTA, Mário Júlio de. Direito das Obrigações. 9ª ed. Coimbra: Almedina,
2005, p. 531-533).
3
No séc. XIX, contudo, teve início, na França, um processo de aceitação de
responsabilidade
independente
de
culpa 7
(responsabilidade
objetiva
ou
responsabilidade pelo risco), a qual hoje, no direito brasileiro, foi consolidada no
Parágrafo Único, do art. 927, de nosso Código Civil.
Esta consolidação mostrou-se possível, principalmente, pela autonomia
conferida pelo Novo Código Civil à obrigação de indenizar, a qual ganhou destaque em
local próprio (Capítulo IX, Título I), assim “(i) liberando o conceito de ilicitude civil (arts.
186 e 187) das antigas ressonâncias que a subsumiam obrigatoriamente na culpa (...) e
(ii) possibilitando a sistematização dos variados casos em que, ocorrendo dano
derivado de ato ilícito, há eficácia indenizatória.” 8
Inobstante a evidente evolução que a aceitação do aludido instituto tenha
representado para o Direito pátrio, há que se ter prudência e critérios em sua
aplicação, jamais se podendo olvidar, como o fez Maria Celina Bodin de Moraes9, que a
necessidade de avaliação de culpa é a regra e que sua objetivação é a exceção. O
7
Com a Revolução Industrial e o problema dos acidentes de trabalho, os juristas franceses (Ripert, Josserand,
Saleilles), em um primeiro momento (séc. XIX), passaram a desenvolver a teoria do risco, em razão de, dadas as
circunstâncias da época, tornar-se ônus quase insuperável ao trabalhador a necessidade de comprovar a culpa do
empregador (ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora
Jurídica e Universitária, 1965, p. 238).
Caso paradigmático que analisou a responsabilidade independente de culpa foi julgado pela Suprema Corte norteamericana, em 1928: Palsgraf v. Long Island Railroad Co. Naquele julgamento, decidiu-se sobre a responsabilidade
da empresa ferroviária em razão dos atos de seu funcionário, que, ao tentar auxiliar no embarque de um passageiro
que carregava um pacote com fogos de artifício, acabou por provocar a queda do pacote e a explosão dos fogos,
causando danos em uma transeunte (Mrs. Palsgraf) que passava por local bastante afastado de onde ocorrera a
queda. Sob a alegação de que a conduta do funcionário não foi errônea com relação à autora e que sequer se podia
ter noção de que no pacote continham fogos de artifício, a companhia ferroviária alegou não ser responsável pelo
infortúnio. O Ministro Benjamin N. Cardozo, entretanto, em voto paradigmático, condenou a empresa pela teoria
do risco, sendo um dos primeiros julgamentos de grandes proporções acerca da matéria.
No Brasil, a primeira regra tratando do assunto foi o Decreto nº 2.681/1912, que trata da responsabilidade objeto
das estradas de ferro.
8
MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. vol. V, tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p.110111.
9
A autora chega ao excesso de referir que a responsabilidade objetiva, no contexto jurídico atual, teria se tornado
regra, ao passo que a subjetiva seria hoje residual (MORAES, Maria Celina Bodin de. Risco, solidariedade e
responsabilidade objetiva. In: Revista RT, São Paulo, v. 854, dez. 2006, p. 25).
4
saudoso mestre Miguel Reale, a alma do Projeto de Código Civil, ao explanar que
ambas as responsabilidades caminham juntas e em harmonia, ensinava precisamente
isto:
Responsabilidade subjetiva, ou responsabilidade objetiva? Não há
que fazer essa alternativa. Na realidade, as duas formas de
responsabilidade se conjugam e se dinamizam. Deve ser
reconhecida, penso eu, a responsabilidade subjetiva como norma,
pois o indivíduo deve ser responsabilizado, em princípio, por sua
ação ou omissão, culposa ou dolosa. Mas isto não exclui que,
atendendo a estrutura dos negócios, se leve em conta a
responsabilidade objetiva. 10
Assim, é preciso ter a máxima cautela para que, como parece vir ocorrendo
amiúde, no afã de se eleger um responsável por determinado dano, não se descure
dos critérios técnico-jurídicos necessários para o preenchimento do suporte fático
suficiente caracterizador da responsabilização, relegando-os a segundo plano. Judith
Martins-Costa traduz com precisão o delicado momento pelo qual estamos passando:
Há uma revolução copernicana de enfoque na responsabilidade
civil que reverbera nos seus pressupostos e perpassa a sua
técnica: para o bem ou para o mal, agora se privilegia o olhar
sobre a vítima, rompendo-se a equação moral que, centrada no
exame da conduta do agente, causador do dano, alicerçou por
séculos o instituto. O instituto da responsabilidade civil, em suma,
é acossado por um verdadeiro “excesso de inputs”, esperando-se
“que dê resposta a múltiplos fins, por vezes contraditórios” como
reparar o lesado, repartir perdas, distribuir riscos, punir o lesante,
10
REALE, Miguel. Diretrizes gerais sobre o Projeto de Código Civil. In: Estudos de filosofia e ciência do direito. São
Paulo: Saraiva, 1978, p. 176-177.
5
prevenir comportamentos ilícitos, controlar a atividade de
produção, assegurar o respeito à pessoa humana, etc. 11
Tem-se percebido, no cotidiano forense, principalmente no campo dos
acidentes de trabalho, que vem se tornando cada vez mais patente a tendência a se
relevar a necessidade de averiguação da culpa, ainda que não seja o caso de
responsabilidade objetiva, alertando e causando apreensão aos operadores do Direito.
Por conta disso, exsurge como fundamental o estabelecimento de critérios para
aplicação da exceção “responsabilidade objetiva” nesta área da justiça laboral.
Nas hipóteses de acidentes de trabalho, a Constituição Federal é cristalina, em
seu art. 7º, inc. XXVIII, em determinar que o empregador estará obrigado a indenizar
quando “incorrer em dolo ou culpa”. Isto é, a norma constitucional impõe, para a
responsabilização civil do empregador, a necessária presença de um dos dois
elementos da culpa lato sensu, quais sejam: a) ou o dolo (pleno conhecimento do mal
e intenção de o praticar); b) ou a culpa stricto sensu (violação de um dever que o
agente podia conhecer e observar, segundo os padrões de comportamento médio,
representado por negligência, imprudência ou imperícia). 12
Não se desconhece nem se nega, no entanto, também a possibilidade de
aplicação dos critérios de responsabilidade do Código Civil aos acidentes do trabalho 13,
11
MARTINS-COSTA, no Direito Civil brasileiro. In: CAMPOS, Diogo Leite de; MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES,
Gilmar Ferreira (Coords.). A Evolução do Direito no Século XXI – Estudos em Homenagem ao Professor Arnoldo
Wald. Coimbra: Almedina, 2007.
12
BARROS MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. 5ª ed. São Paulo: Saraiva. p. 412.
13
A jurisprudência dos Tribunais Superiores já é pacífica no sentido de aceitar a aplicação supletiva do Código Civil
brasileiro aos casos de acidente de trabalho, mormente da regra constante do art. 927, Parágrafo Único, eis que se
entende que o caput do art. 7º, da CF (“São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à
melhoria de sua condição social”) autoriza sua aplicação subsidiária, quando se tratar de direito que vise à melhoria
da condição social do empregado. É neste sentido também o Enunciado nº 37, aprovado na 1ª Jornada de Direito
6
na medida em que estas situações infortunísticas, embora apreciadas e julgadas pela
justiça do trabalho 14, têm raiz e cunho eminentemente civil. Dessa forma, aceita-se
que o art. 927, Parágrafo Único, do Diploma Civil, incida, excepcionalmente, em tais
hipóteses, motivo pelo qual, com o intuito de conferir maior segurança jurídica no
trato dos casos acidentários trabalhistas, a seguir são propostos parâmetros
autorizadores de aplicação da responsabilidade objetiva com fulcro na referida norma.
3. BALIZAS PARA APLICAÇÃO DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA AOS
ACIDENTES DE TRABALHO
O art. 927, Parágrafo Único, do Código Civil, é exemplo típico de cláusula
geral 15, o que, na precisão cirúrgica de Luiz Edson Fachin, trata-se de “uma técnica
legislativa que, oferecendo maior abertura para o intérprete (...), se torna instrumento
de positivação de princípios (bem como de algumas regras cujo conteúdo depende da
aproximação do intérprete ao caso concreto).” 16 Ou seja, dada a intencional amplitude
Material e Processual na Justiça do Trabalho, in verbis: “Responsabilidade civil objetiva no acidente de trabalho.
Atividade de Risco. Aplica-se o art. 927, Parágrafo Único, do Código Civil, nos acidentes do trabalho. O art. 7º,
XXVIII, da Constituição da República, não constitui óbice à aplicação desse dispositivo legal, visto que seu caput
garante a inclusão de outros direitos que visem à melhoria da condição social dos trabalhadores.
14
O STF já definiu e hoje se tem remansosa jurisprudência no sentido de que, com o advento da Emenda
Constitucional 45/2004, a competência para julgamento de ações referentes a acidentes de trabalho é da justiça
laboral.
15
De acordo com o magistério de quem até hoje melhor dissecou a estrutura das cláusulas gerais no país:
“Considerada do ponto de vista da técnica legislativa, a cláusula geral constitui, portanto, uma disposição normativa
que utiliza, no seu enunciado, uma linguagem de tessitura intencionalmente ‘aberta’, ‘fluida’ ou ‘vaga’,
caracterizando-se pela ampla extensão do seu campo semântico, a qual é dirigida ao juiz de modo a conferir-lhe um
mandato (ou competência) para que, à vista dos casos concretos, crie, complemente ou desenvolva normas
jurídicas, mediante o reenvio para elementos cuja concretização pode estar fora do sistema (...)”. (MARTINS-COSTA,
Judith. A Boa-fé no Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 303). Ruy Rosado de Aguiar, em clara
explanação, refere que “Todas essas cláusulas servem ao aperfeiçoamento e à integração do sistema e à garantia
de vigência e eficácia do princípio de justiça, cada uma delas constituindo-se em fator operacional de importância
considerável para a flexibilização do direito normatizado”. (AGUIAR, Ruy Rosado de. Comentários ao Novo Código
Civil. vol. VI, tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 2011,. p. 176).
16
FACHIN, Luiz Edson. Contrato e ordem pública. In: Jornal Carta Forense, São Paulo, n. 79, dez. 2009, p. 18.
7
desta cláusula geral, demanda-se o preenchimento específico de seu conteúdo pelos
intérpretes do Direito.
Na primeira parte do aludido Parágrafo Único, está expressamente disposto
que o causador do dano sempre deverá indenizar, independentemente de culpa, nos
casos expressos em lei; para os casos não especificados em lei, contudo, a norma
contém cláusula geral que determina que também será objetiva a responsabilidade
“quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua
natureza, risco para os direitos de outrem”.
Com o intuito de se proceder ao preenchimento do conteúdo da norma, nos
casos de acidente de trabalho, impõe-se a averiguação do que representa esta
“atividade” do empregador que, “por sua natureza”, venha a “implicar risco para os
direitos de outrem”.
Embora se encontre vasta doutrina acerca das Teorias do Risco e da
responsabilização objetiva, tem sido deficiente a averiguação no que concerne ao
conteúdo ou aos critérios a serem utilizados para a caracterização deste “risco” a que
alude o Parágrafo Único, do art. 927.
O Direito do Trabalho, como se sabe, dispõe de inúmeros estudos,
principalmente da área de medicina e de segurança do trabalho, que diferenciam os
conceitos de “risco” e de “perigo”. Enquanto risco é classificado como a “probabilidade
de ocorrência de um evento que cause ou possa causar dano”, perigo seria a “situação
ou condição em que o risco seja acentuado”. 17
17
LOPES NETTO, André. Risco e perigo. In: Revista CIPA, São Paulo, v. XXVI, n. 311, out. 2005, p. 100.
8
Já alguns doutrinadores civis, por vezes, equiparam ambos os conceitos, como
o faz Cavalieri, ao referir que “risco é perigo, é probabilidade de dano” 18, o que acaba
por causar confusão ainda maior, eis que o Direito necessita de precisão cirúrgica,
como bem refere Carlos Maximiliano, “presume-se que o legislador se esmerou em
escolher expressões claras e precisas, com a preocupação meditada e firme de ser bem
compreendido e fielmente obedecido” 19.
Utilizando-se os conceitos de risco e de perigo da doutrina ligada ao Direito
Laboral, a qual efetivamente parece utilizar critérios mais abalizados de distinção, a
“atividade de risco” do art. 927, então, seria aquela que geraria uma probabilidade de
ocorrência de um evento danoso. Ou seja, está-se tratando de casos em que se expõe
a vítima a uma situação mais gravosa do que aquelas a que estão expostas diária e
normalmente as pessoas da coletividade.
Veja-se que o Conselho da Justiça Federal, em sua 1ª Jornada de Direito Civil,
ocorrida em 2002, aprovou o seguinte Enunciado no tocante à matéria:
Enunciado 38 – Art. 927: A responsabilidade fundada no risco da
atividade, como prevista na segunda parte do parágrafo único do
art. 927 do novo Código Civil, configura-se quando a atividade
normalmente desenvolvida pelo autor do dano causar a pessoa
determinada um ônus maior do que aos demais membros da
coletividade. (grifou-se)
18
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 142.
19
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 111.
9
Ao que tudo indica, existe um consenso no sentido de que, para objetivação da
responsabilidade com base neste preceito legal, deve estar presente uma situação de
ônus acentuado, não se devendo flexibilizar demasiadamente o critério de risco, a
ponto de banalizá-lo.
Riobaldo, protagonista de “Grande Sertão: Veredas”, em sua simplicidade e
sabedoria, já dizia que “viver é muito perigoso”. O cotidiano dos indivíduos está
permeado de situações que geram algum risco, mas risco em menor grau. Em tese,
todo e qualquer comportamento seria apto a gerar a possibilidade de ocorrência
algum evento danoso 20; contudo, obviamente, apenas aquelas situações que
ocasionem a geração de risco agravado podem ser aptas a causarem a incidência da
norma em questão, sob pena de, equivocadamente, tornar-se regra a exceção da
desnecessidade de averiguação da culpa.
Embora se tenha conhecimento do já referido critério diferenciador riscoperigo, afigura-se interessante para configurar como atividade de risco (risco
agravado) aquela que expõe o empregado a trabalho em situação de periculosidade,
como quando há contato com substâncias inflamáveis ou explosivos, substâncias
radioativas, ou radiação ionizante, energia elétrica (são os casos de transporte de
líquidos inflamáveis, trabalho em postes energizados, transporte de altos valores,
atividade de vigilância, etc). Em outras palavras, salvo melhor juízo, toda atividade que
enseja o recebimento de adicional de periculosidade 21 deve autorizar a incidência do
20
Se se começar a cogitar das possibilidades de danos que podem ocorrer diariamente, pintar uma parede, por
exemplo, pode ocasionar lesão na mão ou até mesmo a queda do muro de encontro ao pintor; andar de bicicleta
pode gerar atropelamento; digitar em um computador pode ocasionar choque elétrico ou a explosão da bateria de
um notebook; limpar a casa pode resultar em uma torção do pé; e assim por diante. Esse raciocínio demonstra, de
forma extrapolada, que, teoricamente, tudo gera risco, de modo que se devem obedecer critérios razoáveis para
que um risco seja considerado agravado.
21
O adicional de periculosidade é um valor devido ao empregado exposto a atividades periculosas, conforme
algumas condições preestabelecidas pelo Ministério do Trabalho, sendo devido a algumas profissões
10
art. 927, Parágrafo Único, sendo que danos provenientes de tais atividades são aptos a
fazerem incidir a teoria da responsabilidade objetiva.
Além dos casos abrangidos por este critério, também existem outras situações
que ensejam o cabimento da objetivação da responsabilidade, como em atividades
que, normalmente, demandariam a constatação de culpa, mas que, por conta de
ambiente de trabalho em condições não ideais, o empregado acaba por ficar exposto a
risco demasiado. São hipóteses em que há excesso de horas extras, não utilização de
equipamentos de proteção, ausência de ambiente físico com padrões mínimos de
segurança, etc.
Os empregados da construção civil (os quais não recebem adicional de
periculosidade), via de regra, não estão expostos a situações de risco acentuado, pois
suas atividades, claramente não inseridas no conceito de risco agravado, não destoam
daquelas realizadas diariamente pela imensa maioria de trabalhadores. As tarefas de
um pedreiro (quando realizadas dentro dos padrões técnicos de segurança do
expressamente previstas em normas e também caracterizada por perícia a cargo de Engenheiro do Trabalho ou
Médico do Trabalho, registrados no Ministério do Trabalho (MTE).
Art. 7º, inc. XXIII, da Constituição Federal: São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que
visem à melhoria de sua condição social:[...] XXIII - adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres
ou perigosas, na forma da lei [...].
Art. 193 - São consideradas atividades ou operações perigosas, na forma da regulamentação aprovada pelo
Ministério do Trabalho, aquelas que, por sua natureza ou métodos de trabalho, impliquem o contato permanente
com inflamáveis ou explosivos em condições de risco acentuado.
§ 1º - O trabalho em condições de periculosidade assegura ao empregado um adicional de 30% sobre o salário sem
os acréscimos resultantes de gratificações, prêmios ou participações nos locais da empresa.
§ 2º - O empregado poderá optar pelo adicional de insalubridade que porventura lhe seja devido.
Súmula nº 364 - TST
Adicional de Periculosidade - Exposição Eventual, Permanente e Intermitente
I - Faz jus ao adicional de periculosidade o empregado exposto permanentemente ou que, de forma intermitente,
sujeita-se a condições de risco. Indevido, apenas, quando o contato dá-se de forma eventual, assim considerado o
fortuito, ou o que, sendo habitual, dá-se por tempo extremamente reduzido.
II - A fixação do adicional de periculosidade, em percentual inferior ao legal e proporcional ao tempo de exposição
ao risco, deve ser respeitada, desde que pactuada em acordos ou convenções coletivos.
11
trabalho), por exemplo, não diferem, em grau de risco, daquelas exercidas por uma
diarista; o risco de se lesionar um dedo com a queda de um tijolo não é distinto do
risco de queimadura ocasionado pelo fato de se passar roupa com um aparelho em
alta temperatura; quando do trabalho em altura, a colocação da tela de proteção no
entorno da obra, bem como a utilização do cinto de segurança, diminuem
sobremaneira o risco de acidente, sendo até mesmo mais arriscada a atividade da
doméstica que sobe em uma escada para limpeza de um lustre.
Resta claro que o canteiro de obras, resguardado da probabilidade de
ocorrência de danos pela utilização de EPIs (equipamentos de proteção individual)
pelos obreiros e de EPCs (equipamentos de proteção coletiva) no entorno da obra, não
dá azo à possibilidade de se considerar como de risco acentuado (acima do normal) a
atividade dos trabalhadores.
Evidentemente, na hipótese de o empregador não fornecer os equipamentos
de proteção ou de exigir que os trabalhadores, reiteradamente, realizem horas extras
de maneira demasiada, o risco a que os funcionários passam a estar expostos aumenta
sensivelmente, a ponto de se poder adjetivá-lo como “acentuado”. Do contrário, estarse-á a tratar de risco normal, não distinto daquele enfrentado pelo restante da
coletividade, devendo ser constatada a culpa do empregador para a configuração de
sua responsabilidade.
4. CONCLUSÃO
Ao cabo deste estudo, verifica-se que, efetivamente, há a possibilidade de
incidência do Parágrafo Único, do art. 927, do Código Civil, às hipóteses de acidente do
12
trabalho, não sendo, no entanto, aceitável a aplicação da norma a toda e qualquer
situação de acidente ocorrido com o trabalhador.
Devem ser respeitados alguns critérios para que a responsabilidade objetiva
com base neste artigo legal tenha aplicação, sob pena de se generalizar uma exceção e
se deturpar o instituto da responsabilidade civil clássica.
Como baliza para aplicação da regra, propõe-se que a cláusula geral do art. 927,
que faz referência ao “risco”, seja interpretada de forma a considerar como “de risco”
a atividade que gere para o empregado um ônus maior do que aquele que
normalmente é gerado à coletividade.
Um dos critérios para objetivação da responsabilidade é justamente a
verificação das hipóteses de concessão do adicional de periculosidade, o que gera a
presunção de exercício de atividade de risco. Além de tais hipóteses, também há a
possibilidade de aplicação da responsabilidade independente de culpa nos casos de
atividades que, caso exercidas dentro dos padrões de medicina e segurança do
trabalho, não seriam demasiadamente arriscadas, mas que, por conduta indevida do
empregador, que acaba negligenciando critérios de segurança, tornam-se “de risco”.
Com relação à construção civil, percebe-se que as tarefas dos trabalhadores
desta área, em regra, não podem ser consideradas de risco acentuado a ponto de
autorizar a aplicação ao art. 927, Parágrafo Único. Isso porque, quando observadas as
normas de segurança, o risco a que estão expostos estes obreiros não diverge daquele
a que cotidianamente estão expostos a grande maioria dos empregados.
Em razão deste contexto, parece restar evidente que a regra, nos casos de
acidentes de trabalho ocorridos na construção civil, é a aplicação da responsabilidade
civil subjetiva, com a necessidade indelével de averiguação da culpa do empregador,
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dentre os outros requisitos configuradores da responsabilização, para que haja o
surgimento da obrigação de indenizar.
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Professor Arnoldo Wald. Coimbra: Almedina, 2007.
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