Artigo - Ana Carolina Aboin
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1 Responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público por dano decorrente de culpa do empreiteiro na realização de obra pública Ana Carolina Moraes Aboin RESUMO: A alusão do art. 37, § 6º da Constituição Federal, a danos que os funcionários das pessoas jurídicas de direito público, nessa qualidade, causarem, não afasta a possibilidade da responsabilidade solidária do empreiteiro, quando o prejuízo decorra de culpa sua, na realização de obra pública. Esta é a interpretação do dispositivo constitucional, considerando que haverá responsabilidade, não somente quando o funcionário de pessoa jurídica de direito público, nessa qualidade, cause dano, mas sempre que aquele que causou prejuízo esteja agindo em benefício da pessoa jurídica de direito público. Este é o entendimento predominante para reconhecer a responsabilidade do ente público. Apoio FAPESP. PALAVRAS-CHAVE: Responsabilidade. Obra pública. Estado. Dano. On the state's civil responsibility for damage due to contractor's fault on carrying out of public work ABSTRACT: The Federal Constitution, in its 37th article, §6º, talks about possible damages public employees may cause while doing their public functions, and it doesn’t excludes the solidary responsibility the contractor has when the damage is due to him on carrying out of public work. This is the correct interpretation of the constitutional article, considering that it will have responsibility not only when pubilc employees, in this quality, cause damages, but always when the one that caused it is acting in benefit of the State. That’s what rules in order to recognise the state’s civil responsibility. Support FAPESP. KEY-WORDS: Responsibility. Public work. State. Damage. 1. Introdução O presente trabalho foi elaborado com os resultados da pesquisa realizada em Iniciação Científica com apoio da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. 2 A partir da análise de decisões do Supremo Tribunal Federal foi escolhido um acórdão que mais se aproxima do entendimento adotado pela autora. Tendo em vista a brevidade do texto, o estudo aborda questões gerais de responsabilidade civil explorando, superficialmente, a responsabilidade civil do Estado, de um modo geral, e nas obras públicas, em especial. 2. Responsabilidade civil 2.1. Aspectos gerais A responsabilidade civil é a mais rica fonte de obrigações e vincula-se à ideia de ressarcimento de um dano causado a outrem. Do latim “respondere”, que, na sua origem etimológica, engloba os conceitos de obrigação, encargo, contraprestação. Responsabilidade civil é a obrigação que surge de indenizar, ressarcir outra pessoa quando há a ocorrência de um dano, seja ele moral ou material. O objetivo principal do instituto é reequilibrar a situação jurídica da pessoa que se encontra abalada diante do fato danoso1, trazendo-a de volta ao estado anterior no qual se encontrava. Muito se discute na doutrina acerca da definição desse instituto, que muitas vezes confunde-se com a ideia de reparação do dano. Refuta essa confusão dos termos aqueles adeptos da teoria da culpa, que entendem que responsabilidade civil é só aquela fundada na culpa, enquanto que nos outros casos se está diante de obrigação de indenizar. Acertado é o ensinamento de José de Aguiar Dias2, que entende que o mais racional seria sistematizar todos os casos como sendo reparação do dano, cujo nome é, agrade ou não, responsabilidade civil. Segundo o autor, “Não vemos utilidade em continuar a dissimular esse desencontro entre a denominação e o conteúdo da responsabilidade civil. Já não é só o leigo que amplia a significação do instituto a plano muito mais vasto do que o que estava contido na ideia primitiva. São os próprios juristas, e dos mais insignes, que prestigiam essa noção, 1 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 11.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 55. 2 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 11.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 23-24. 3 reconhecendo que a ideia do ressarcimento prima sobre a da responsabilidade”. Trata-se de fenômeno complexo por meio do qual se pode ver concretizado o sentimento de “justiça”, já que o agente causador do dano é obrigado a repará-lo com o escopo de restaurar o equilíbrio jurídico-econômico anterior ao dano. Segundo Carlos Roberto Gonçalves3, “indenizar significa reparar o dano causado à vítima, integralmente. Se possível, restaurando o statu quo ante, isto é, devolvendo-a ao estado em que se encontrava antes da ocorrência do ato ilícito”. O princípio “restitutio in integrum”, que rege o instituto, determina que a vítima deve ser reposta à situação em que se encontrava antes da lesão. Isso pode ser facilmente alcançando quando se trata de danos materiais, devendo ser respeitada a proporcionalidade entre o prejuízo sofrido e o montante da indenização. O devido respeito a essa proporcionalidade é de extrema importância para que o instituto não perca seu real caráter indenizatório e não se desvirtue tornando-se um verdadeiro “negócio lucrativo”. Entende-se por responsabilidade civil o dever jurídico de reparar um dano causado a outrem devido a uma violação a um dever jurídico preexistente que ocorreu através de uma ação voluntária. Essa violação consiste em ato ilícito, que quase sempre gera dano a outrem, fazendo surgir, assim, um novo dever: o dever de indenizar. O dever jurídico preexistente violado é dever originário, enquanto o dever jurídico de indenizar é sucessivo, e corresponde à responsabilidade civil. Dessa forma, tem-se que toda conduta voluntária que, ao violar um dever jurídico preexistente, cause dano a outra pessoa é fonte geradora de obrigação de indenizar, isto é, de responsabilidade civil. Essa obrigação é legal, isto é, tem sua origem na lei, e não na vontade das partes, como ocorre com as obrigações voluntárias. Os atos jurídicos lícitos geram as obrigações voluntárias que estão em conformidade com a vontade do agente, enquanto os atos jurídicos ilícitos geram obrigações que independem da vontade do agente, e que podem, como geralmente ocorre, atuar contra a vontade dele. A responsabilidade civil, de maneira geral, necessita de alguns elementos para que seja caracterizada. São eles: a ocorrência de um dano e o nexo causal entre a conduta do agente e o dano causado. Grande parte da doutrina considera que o elemento “culpa” também é um dos elementos caracterizadores da responsabilidade. No entanto, tendo em vista que a culpa não está presente em todas as modalidades de responsabilidade – diferentemente do 3 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. 10.ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 588. 4 dano e do nexo causal entre a conduta do agente e o dano causado –, não há que se falar em culpa como elemento da responsabilidade civil de maneira geral, sendo uma particularidade da responsabilidade civil subjetiva. O dano é o desencadeador de toda a responsabilidade civil. Assim, prevalece o entendimento de que, ainda que haja um ato ilícito, contrário à norma, e que viole um dever jurídico preexistente, se não houver dano não há responsabilização no âmbito civil, isto é, não há dever de indenizar porque não há prejuízo, não há razão para se indenizar4. Essa questão se torna um pouco delicada quando se trata de um dano moral, mas, ainda nesses casos, deve-se ficar provado que houve um dano para a vítima, embora não se trate de dano patrimonial e de fácil aferição de valores. Além disso, o prejuízo sofrido pela vítima deve ser significativo. A verificação da ocorrência do dano se faz necessária para haja a indenização e para que se possa determinar o montante da indenização, que deve ser proporcional ao prejuízo causado, uma vez que o objetivo desse instituto é reequilibrar a situação jurídico-econômica da vítima, o que não pode causar um prejuízo para o agente causador do dano, que deve responder nos limite da sua culpa. O nexo de causalidade entre a conduta do agente e o dano causado deve ser observado para que aquele que efetivamente causou o dano seja responsabilizado nos limites de sua culpa, ou de sua obrigação legal. O elemento “culpa” é determinante para que se saiba qual a modalidade de responsabilidade em questão. Na responsabilidade civil subjetiva, a culpa, entendida aqui como culpa “lato sensu”, deve estar presente para que o agente seja responsável. Assim, responde subjetivamente o causador do dano por toda espécie de comportamento contrário ao Direito, intencional ou não, imputável a ele. Na responsabilidade civil objetiva, por sua vez, o elemento culpa não se faz presente, conforme os termos do parágrafo único do art. 927 do Código Civil5. A responsabilidade deriva, portanto, de uma imposição legal. É a lei que determina quais as situações que são indenizáveis, independentemente de culpa por parte do agente causador do dano. Entende-se que também nos casos de responsabilidade civil objetiva há a violação de uma obrigação originária, e, por isso, é causada também por ato ilícito. 4 5 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. 10.ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 589. Art. 927, parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. 5 O Código Civil Brasileiro de 1916 regulamentava apenas os casos de responsabilidade subjetiva, exigindo que a culpa fosse provada, nos termos do art. 1596. O Código Civil de 2002 inova, regulamentando tanto a responsabilidade civil subjetiva7 quanto a objetiva8. Nota-se tendência da doutrina de ampliar a adoção da responsabilidade fundada no risco – objetiva –, como esclarece Antunes Varela9 ao afirmar que, “Nota-se na vasta literatura jurídica sobre a matéria uma acentuada divergência de orientação entre os autores que, fiéis às linhas mestras do pensamento clássico, persistem em filiar a responsabilidade extracontratual na ideia de culpa (doutrina da responsabilidade subjetiva) e aqueles que, pelo contrário, tendem a desprender-se cada vez mais desse pressuposto individual, para olharem de preferência à necessidade ou conveniência social de reparar o dano sofrido pelo lesado (teoria da responsabilidade objectiva), desde que este não tenha agido com culpa grave ou dolo. A tendência dos últimos tratadistas é toda orientada no sentido de ampliar o domínio da responsabilidade fundada no risco e na prática de factos lícitos que, aproveitando a determinadas pessoas, causem prejuízos a outrem”. 2.2. Aspectos da responsabilidade civil do Estado A responsabilidade civil do Estado enquadra-se na categoria de responsabilidade objetiva, conforme disposição da Constituição Federal Brasileira de 1988, que, no parágrafo 6 Art. 159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano. 7 Art. 927, caput, Código Civil. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. 8 Art. 927, parágrafo único – ver nota 6. 9 ANTUNES VARELA, João de Matos. Das obrigações em geral. 10.ed. v.1. Coimbra: Almedina, 2006. p.523. 6 6º do art. 3710, determina que o Estado deve responder pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o causador do dano quando ele houver procedido com dolo ou culpa. Entende-se por responsabilidade civil do Estado o dever que ele tem de indenizar por perdas e danos, morais ou materiais, que terceiros venham a sofrer em decorrência de sua atividade, e não deve se confundir com a responsabilidade administrativa, que corresponde à submissão do Estado ao dever jurídico e político de prestar contas e informação – princípio administrativo da publicidade dos atos – de seus atos, assim como de corrigir eventuais desvios verificados em sua conduta11. Segundo Alvino Lima12, “a responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público pelos atos ilícitos de seus órgãos e funcionários ou agentes públicos, em geral, embora seja mais complexa, é regida, em substância, pelos mesmos princípios gerais que regulam a responsabilidade das pessoas jurídicas de direito privado e as soluções são comumente idênticas. Em matéria de responsabilidade civil, dizem Mazeaud-Tunc, não podem existir duas lógicas: uma pública e outra privada. Tal como na responsabilidade em geral, a finalidade da repressão, em se tratando das pessoas jurídicas de direito público, é garantir a indenização do dano sofrido pela vítima do ato ilícito”. O Estado deve atuar sob o Direito, e, portanto, deve responder por seus atos comissivos e omissivos caso estes venham a infringir a ordem jurídica, acarretando danos a 10 Art. 37, §6º. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. 11 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 3 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 947-948. 12 LIMA, Alvino. A responsabilidade civil pelo fato de outrem. Rio de Janeiro: Forense, 1973. p. 148. 7 terceiros. A existência de responsabilidade estatal assegura a supremacia da sociedade e a instrumentalidade do aparelho estatal. No Estado Absolutista e Despótico, vigia o princípio da irresponsabilidade, segundo o qual o Estado por nada respondia. Esse princípio representava a própria negação do direito, uma vez que permitir a responsabilização estatal era visto como um verdadeiro obstáculo para a execução de seus serviços. Sendo assim, as ações deveriam ser movidas contra a própria figura do funcionário, que não se misturava, nem quando em pleno exercício de suas funções, com a figura do Estado. No Estado de Direito, por sua vez, diante do fato de que o Estado também se encontra submetido ao ordenamento jurídico, a responsabilidade por suas ações é consequência da situação jurídica do Estado, que, nesse momento, é tido como sujeito de obrigações e deveres. Com o advento do Código Civil Brasileiro de 1916, tem-se, no art. 1513, o primeiro dispositivo a tratar da responsabilidade do Estado no país. Apesar da redação ambígua, entende a melhor doutrina se tratar de responsabilidade civil subjetiva. A responsabilidade civil objetiva, que tinha força na França e em alguns outros países europeus, defendida aqui por alguns autores como Rui Barbosa, Pedro Lessa, Amaro Cavalcante, apenas foi acolhida no país pela Constituição de 1946, como se pode depreender da redação do art. 19414. Atualmente, conforme já mencionado anteriormente, a responsabilidade civil do Estado é a objetiva, e está prevista pelo parágrafo 6º do art. 37 da Constituição de 1988. O fundamento adotado pela Constituição é a “teoria do risco administrativo”, originalmente proposta por Léon Diguit15, e desenvolvida por outros renomados administrativistas. Segundo 13 Art. 15. As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao Direito ou faltando a dever prescrito em lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano. 14 Art. 194. As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros. Parágrafo único - Caber-lhes-á ação regressiva contra os funcionários causadores do dano, quando tiver havido culpa destes. 15 Segundo Alvino Lima, “Diguit também defende o princípio do seguro, pelo Estado, do risco social. Diz o citado escritor que ‘toda sociedade é uma grande cooperativa na qual cada um aproveita certas vantagens que assegura a divisão do trabalho social. Mas, em retour as circunstâncias são tais que as perdas atingem alguns com exclusões de outras, ao passo que toda a coletividade deve intervir para reparar os prejuízos sofridos pelas 8 ela, a atuação da Administração Pública gera riscos, podendo causar danos aos cidadãos devido à normal ou anormal atividade do Estado. Essa teoria tem o escopo de fazer com que o Estado seja responsabilizado pelos riscos criados para a sociedade através de sua atuação administrativa. Qualquer lesão que o particular venha a sofrer deve ser ressarcida, independentemente de culpa do agente causador do dano. No entanto, é necessário que haja um nexo de causalidade entre a conduta do agente e o dano causado, conforme já exposto, para que seja caracterizada a responsabilidade. Não havendo esse nexo de causalidade, a responsabilidade do Estado fica afastada, como ocorre nos casos de fato exclusivo da vítima, caso fortuito ou de força maior e fato exclusivo de terceiro. O dever indenizatório é decorrência do princípio constitucional que consagra a igualdade dos indivíduos diante dos encargos públicos. Levando isso em consideração é possível que se divida a responsabilidade com base no ato – lícito ou ilícito – que a gera. Caso decorra de ato lícito, a responsabilidade tem por fundamento o princípio da distribuição igualitária dos ônus e encargos a que estão sujeitos os administrados, isto é, quando se tratar de serviços de interesse público, como o são as obras públicas, objeto de análise deste estudo, os danos causados a um particular devem ser repartidos por toda a comunidade através da indenização, cujo escopo é garantir a repartição igualitária dos ônus provenientes de atos ou efeitos lesivos. Alvino Lima esclarece que “a aplicação do princípio da igualdade oferece vantagem da desnecessidade da prova de culpa no serviço; a responsabilidade surge, uma vez que a igualdade dos encargos é rompida, uma vez que o dano resulte da atividade dos serviços públicos”16. Por outro lado, caso a responsabilidade decorra de ato ilícito, o fundamento é a violação da legalidade, o que faz com que o Estado deva indenizar por ter cometido um ato ilegal que resultou em dano a terceiro. Essa diferenciação é dotada de interesse jurídico no que tange à possibilidade ou não de responsabilizar o agente de cuja conduta teve origem o dano. Tratando-se de dano decorrente de ato ilícito, o agente causador deve recompor o patrimônio público destinado à recomposição dos prejuízos da vítima com o seu próprio patrimônio, dando ensejo a ação vítimas. A razão do Estado constitui, de qualquer forma, uma Caixa de seguros mútuos em proveito dos membros da sociedade’”. LIMA, Alvino. A responsabilidade civil pelo fato de outrem. Rio de Janeiro: Forense, 1973. p. 153. 16 LIMA, Alvino. A responsabilidade civil pelo fato de outrem. Rio de Janeiro: Forense, 1973. p. 154. 9 regressiva por parte do Estado para que o autor do evento danoso responda pelo prejuízo que causou. Por sua vez, tratando-se de dano decorrente de ato lícito, não é possível que haja essa responsabilização do agente causador do dano, devendo o Estado ressarcir a vítima pelo prejuízo causado. Deve-se ter em mente que não são todos os comportamentos da Administração Pública que são considerados indenizáveis. A indenização deve ser medida pela qualificação da lesão sofrida, o que faz com que o dano ganhe destaque. A relação de causa e efeito entre o dano causado e a atividade estatal basta para caracterizar a responsabilidade objetiva, mas não é suficiente para uma responsabilização efetiva, que se traduz em obrigação de indenizar. Isso acontece, pois, caso contrário, a Administração estaria sempre sujeita, diante de cada melhoramento público que realizar, em especial nos casos de realização de obra pública, a indenizar um grande número de particulares eventualmente atingidos pelo desconforto das obras. A indenização – objetivo principal da responsabilização – segue os princípios e regras do direito comum, independentemente de se tratar de danos materiais ou de danos morais, e encontra as maiores dificuldades relacionadas à questão da prova, própria do direito processual. A indenização deve ser completa, o que significa que deve repor a vítima na situação jurídico-econômica em que ela se encontrava antes do evento danoso, e pode ser atingida via procedimento administrativo ou procedimento judicial. O procedimento administrativo deve ser proposto perante a Administração Pública mediante processo administrativo; já o procedimento judicial deve ser proposto perante o Poder Judiciário através de uma ação judicial. Apesar de o processo administrativo parecer uma boa alternativa para esses casos, nos quais, provado o dano e o nexo de causalidade entre a conduta do agente estatal e o dano, não há que se discutir a respeito da responsabilização, uma vez que ela é certa por se tratar de responsabilidade objetiva, a Administração Pública, ainda que evidente sua responsabilidade, propõe um ressarcimento vil ou rejeita o pedido pela via administrativa, forçando que a vítima se dirija à via judicial. O direito da vítima de exigir a indenização prescreve em cinco anos, conforme disposição do art. 1º17 do Decreto Federal n. 20910/1932. Entretanto, o direito do Estado de 17 Art. 1º As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em (cinco) anos, contados da data do ato ou fato do qual se originarem. 10 recompor seu patrimônio à custa do patrimônio do agente causador direto do dano que agiu com dolo ou culpa não prescreve. 2.3. A responsabilidade civil do Estado por dano causado em obras públicas Nos casos de obras públicas18, realizadas pela Administração Direta do Estado ou por suas autarquias, empresas públicas e sociedades de economia mista, assim como por todas as pessoas jurídicas de Direito Privado, prestadores de serviço público, o Estado responde objetivamente por eventuais danos causados a particulares, uma vez que a obra deriva de um ato administrativo, estando sujeita, portanto, às regras da Administração Pública. Segundo Hely Lopes Meirelles19, “O dano causado por obra pública gera para a Administração Pública a mesma responsabilidade objetiva estabelecida para os serviços públicos, porque, embora seja um fato administrativo, deriva sempre de um ato administrativo de quem ordena sua execução. Mesmo que a obra pública seja confiada a empreiteiros particulares, a responsabilidade pelos danos oriundos do só fato da obra é sempre do Poder Público que determinou sua realização. O construtor particular de obra pública só responde por atos lesivos resultantes de 18 Cabe aqui as considerações do doutrinador José Cretella Júnior acerca do que se entende por obra pública. “Assim, num primeiro sentido, obra pública é toda atividade ou operação sobre meio imóvel; num segundo sentido, obra pública é o próprio resultado final atingido, ou seja, a metamorfose exercida sobre imóvel, acrescentando-lhe algo ou alterando-lhe substancialmente a primitiva fisionomia. Na primeira acepção, obra pública é toda atividade de construção, modificação, reforma ou manutenção de bem imóvel, realizada pela Administração, direta ou indiretamente, para atender fins de interesse público, ao passo que, na segunda acepção, obra pública é toda realização concreta, de natureza imóvel ou móvel (a extraordinária técnica da moderna engenharia leva a ampliar a antiga construção de obra pública), levada a termo pela Administração sobre imóvel, direta ou indiretamente, para atender a fins de interesse público. Como se percebe, predomina o dinamismo na conceituação consubstanciada na primeira definição. Trata-se da obra in fieri. Na segunda, analisando-se-lhe os termos, identifica-se a obra pública realizada, terminada in concreto”. CRETELLA JÚNIOR, José. O Estado e a obrigação de indenizar. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 110. 19 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 34.ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 665. 11 sua imperícia, imprudência ou negligência na condução dos trabalhos que lhe são confiados”. Compete à Administração Pública a realização de obras através de seus órgãos competentes. Caso ela prefira delegar a realização de uma obra a uma empresa particular, ela continua responsável, porém solidariamente caso haja culpa do empreiteiro, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal. A responsabilidade solidária do Estado mesmo nos casos em que há culpa por parte do empreiteiro se justifica pelo fato de que caso o Estado não tivesse determinado a execução da obra, o prejuízo não se teria verificado. A diferença é que, nesses casos, cabe ação regressiva por parte do Estado perante o empreiteiro. 2.4. O entendimento do Supremo Tribunal Federal O Supremo Tribunal Federal, em decisão proferida no Recurso Extraordinário n. 94.121-5, de 26 de março de 1982, entendeu que a responsabilidade do Estado nos casos de danos decorrente de culpa do empreiteiro na realização de obra pública é solidária com a responsabilidade tocante ao empreiteiro, o que afasta a possibilidade de responsabilidade subsidiária do Estado, defendida por parte minoritária da doutrina. Essa decisão, apesar de ser a mais recente nesse sentido, segue o entendimento de decisão proferida pelo Ministro Moreira Alves em Recurso Extraordinário n. 85.079, de 21 de fevereiro de 1978. O Recurso Extraordinário n. 85.079 foi interposto para questionar a interpretação do art. 10720 da Constituição de 1969. No caso “sub judice” a Prefeitura Municipal de São Paulo, condenada a responder solidariamente com a empreiteira pelos danos causados, alegou que o causador do dano não é seu funcionário, mas sim uma empreiteira, e que, como foi reconhecida a culpa desta, ela não poderia ser condenada a responder solidariamente com base neste dispositivo constitucional visto que ele limita os casos de responsabilidade apenas aos danos causados por funcionários. Segundo o Ministro Moreira Alves, essa questão é muito controvertida, e foi examinada com base na doutrina francesa sobre responsabilidade decorrente das obras públicas. 20 Art. 107 – ver nota 21. A Constituição de 1969 era a vigente na época do julgado, cujo preceito é repetido pelo art. 37, §6º da Constituição Federal de 1988, vigente atualmente. 12 A hipótese que está sendo analisada neste estudo coincide com o objeto de análise do Recurso Extraordinário agora tratado, e diz respeito aos casos em que a obra é realizada pela própria Administração Pública por intermédio de empreiteiro. Nesses casos, a relação que se dá entre eles é uma relação contratual. Ocorre a licitação, e posteriormente há a assinatura de um contrato administrativo. Nessa situação, independentemente de a obra ser realizada pela própria Administração ou mediante empreiteira particular, a responsabilidade é da Administração Pública em face ao terceiro que foi lesado. Havendo culpa do empreiteiro, ele deve responder solidariamente pelo dano causado, o que abre um leque maior de possibilidades para o terceiro, que pode pleitear seu direito em face apenas da Administração Pública, em face apenas do empreiteiro, ou em face de ambos, e isso implica numa garantia maior de satisfação de seu crédito. O fundamento que legitima essa situação especial do construtor da obra pública em face do construtor de empreitada particular é que aquele não dispõe de liberdade para a condução dos trabalhos, ficando muito mais subordinado às diversas imposições da Administração Pública, devendo atender ao edital de concorrência e aos padrões impostos pela Administração, o que o exime de assumir os riscos impostos pelo Poder Público. Esse entendimento é compartilhado pelo Ministro Moreira Alves, e expressa, portanto, o entendimento do Supremo Tribunal Federal quando da decisão do referido Recurso Extraordinário. O Ministro, em seu voto, ainda reafirma a adoção da teoria do risco administrativo. Em decisão do Recurso Extraordinário n. 94.121-5, de 26 de março de 1982, o Ministro Relator Moreira Alves repete “ipsis litteris” o teor do voto proferido no Recurso Extraordinário aqui analisado. Dessa forma, não há grandes considerações a serem acrescidas, principalmente pelo fato de que o entendimento do Supremo Tribunal Federal expresso nesses votos vem a confirmar o entendimento aqui adotado. 3. Considerações finais No que diz respeito à ação de responsabilidade civil do Estado, surge a questão da denunciação da lide ao agente, que deve ser proposta pela Administração Pública quando o agente estiver identificado e tiver agido com dolo ou culpa. Isso é possível quando a vítima 13 optar por acionar apenas o Poder Público. A questão é levantada por força do art. 70, III21, do Código de Processo Civil, que dispõe ser a denunciação da lide obrigatória àquele que estiver obrigado a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda. Caso seja feita a denunciação da lide, a Administração deve responder perante a vítima, enquanto o agente causador do dano responde perante a Administração, que vê concretizado seu direito de regresso. Caso ela não ocorra, o direito de regresso por parte da Administração continua existindo, podendo ser pleiteado em ação autônoma. Deve-se ter em mente que para que o Estado possa exercer seu direito de regresso é necessário que ele tenha sido condenado efetivamente a ressarcir a vítima do prejuízo sofrido. Nesse sentido, Hely Lopes Meirelles22 e José Cretella Júnior23. Tendo em mente as considerações aqui tecidas, não há dúvidas acerca da aplicação da responsabilidade objetiva para a Administração Pública, assim como acerca da aplicação da responsabilidade solidária da Administração e do empreiteiro quando comprovada sua culpa. Nesse último caso, é admitida pela jurisprudência a formação de um “litisconsórcio facultativo”, no qual o autor pode propor a ação contra a Administração Pública e contra o empreiteiro, cumulativamente. Isso é possível por se tratar de obrigação solidária, cuja solução está prevista no art. 27524 do Código Civil. Esse entendimento é de grande valia quando se pensa na efetivação da sentença judicial que condena a Administração Pública ao pagamento da indenização. A nosso ver, havendo culpa do empreiteiro e, portanto, havendo responsabilidade solidária, seria mais conveniente para a parte buscar a satisfação de seu crédito perante a empreiteira particular, uma vez que para a Administração Pública pagar os valores devidos, esse crédito entrará em regime de precatório25, podendo demorar anos para que o particular lesado veja seu crédito 21 Art. 70. A denunciação da lide é obrigatória: III – àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda. 22 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 34.ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 669. 23 CRETELLA JÚNIOR, José. O Estado e a obrigação de indenizar. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 323. 24 Art. 275. O credor tem direito a exigir e receber de um ou de alguns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum; se o pagamento tiver sido parcial, todos os demais devedores continuam obrigados solidariamente pelo resto. Parágrafo único. Não importará renúncia da solidariedade a propositura de ação pelo credor contra um ou alguns dos devedores. 25 CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 210. 14 satisfeito, o que não ocorre perante empresas particulares, que podem ser executadas e devem pagar de imediato, sem nenhuma prerrogativa. Referências Bibliográficas ANTUNES VARELA, João de Matos. Das obrigações em geral. 10.ed. v.1. Coimbra: Almedina, 2006. ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de Direito Administrativo. 3 ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Obrigações. Rio de Janeiro: Rio, 1977. CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado. 3.ed. 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